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GRAMÁTICA MORAL DE UMA LENDA CONTEMPORÂNEA
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IULLE
A
DRIANA
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IEIRA DA
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IRIÁS
:
A
GRAMÁTICA MORAL DE UMA LENDA CONTEMPORÂNEA
D
ISSERTAÇÃO APRESENTADA AO
PROGRAMA DE PÓS
-
GRADUAÇÃO
EM
A
NTROPOLOGIA DA
UFMG
COMO PARTE DOS REQUISITOS
PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE
MESTRE EM
A
NTROPOLOGIA
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“Dias a fio estive especulando (...) sobre o que eu gostaria de dizer; em outros refleti sobre
o que eu não gostaria de dizer; e outros ainda sobre como eu gostaria de dizer.”
Schlößer – Prefácio à História universal para crianças
4
A
GRADECIMENTOS
Depois de tanto trabalho, é muito bom poder tornar pública minha gratidão. Os
meses de redação foram especialmente difíceis devido a uma gravidez complicada. Maísa
nasceu no dia 26 de dezembro de 2007, saudável e linda. Por isso, antes de mais nada, dou
graças a Deus, que decidiu por me enviar mais uma filha, um bebê sereno, que veio para me
fortalecer e ensinar a calma e a coragem para enfrentar a vida e suas contingências.
Um agradecimento especial a todas as pessoas que conversaram comigo sobre os
Piriás, colaborando com meu trabalho, a maioria das vezes, sem a menor noção do quanto
estavam me ajudando. Sem essas pessoas, não haveria dissertação. Muito obrigada a todos
pelas gentilezas, pela atitude solícita, pela generosidade e pelos “momentos narrativos”. E
obrigada também pela desconfiança, pelas perguntas, pelas dúvidas e reticências. Tudo foi
fundamental. Agradeço particularmente ao Sr. Feliciano, que se dispôs tão gentilmente a
andar comigo por Sete Lagoas atrás das lendas e garantiu meu acesso às memórias dos
policiais que participaram do caso. Na pessoa do Sr. Feliciano agradeço também a todos
eles.
Obrigada também à Dona Glória, minha primeira entrevistada, viúva de um dos
policiais mortos pelos Piriás. Dona Glória me emocionou com sua história e, logo de início,
abriu meus olhos para muitas das questões que orientaram meus esforços nesta dissertação.
Ao Prof. Pite, um personagem importante, que mesmo num momento tão delicado,
me recebeu em sua casa, cobrindo com sua história de vida várias lacunas da minha
pesquisa.
Um agradecimento também especial a Cleber Diniz, um apaixonado pelo caso dos
Piriás, que tão generosamente me cedeu inúmeros recortes de jornal; um tesouro que vem
sendo recolhido por ele, já faz bastante tempo, na intenção de produzir um filme a respeito.
Aos meus irmãos, parentes, amigos e conhecidos, meus conterrâneos, pela
empolgação, pela disposição para conversar, pela mobilização e envolvimento na pesquisa.
5
Houve um momento em que tive a nítida impressão de que todos vocês estavam fazendo
trabalho de campo também. Por causa de vocês, foi tudo muito divertido.
À Violeta Gonçalves, que durante toda a pós-graduação administrou minha casa, me
deixando tranqüila para que pudesse seguir em frente. Sua ajuda, querida Violeta, não foi
um detalhe.
Agradeço também a Angela, Lô, Branca e Leyla, pelo suporte em Sete Lagoas
durante o trabalho de campo e carinho e cuidado com que cercaram minha filha Lis durante
minha ausência.
A bolsa concedida pela CAPES também foi imprescindível. Garantiu minha
dedicação à pesquisa e viabilizou o trabalho de campo.
Aos professores do Departamento sou grata pelo interesse pelo meu trabalho, pelas
indicações de leitura e, principalmente, pelo retorno sempre tão imediato às minhas
indagações.
Meu carinho à Profª Drª Ana Lúcia Modesto, a quem agradeço de coração a maneira
doce e generosa com que conduziu a orientação. Quero aqui expressar minha admiração e
dizer o quanto aprecio seu espírito intelectual aberto e franco. Espero que tenha feito jus a
suas expectativas e à sua confiança. Muito obrigada!
Ao meu pai e à minha mãe querida, agradeço o exemplo de coragem e honradez.
Por causa de vocês, mantenho a fé nesses valores.
Minhas filhas Lis e Maísa, que fazem a vida tão bonita. Obrigada por me fazerem
entender que meus exílios devem ser breves. E obrigada por se submeterem aos espaços
limitados, à exigência de silêncio, às minhas ausências. Eu amo muito vocês.
Sérgio, meu querido esposo e parceiro. Obrigada por me compreender, por me
proteger, por dividir a vida comigo. Obrigada pelas conversas indispensáveis e pela sua
capacidade de desanuviar meus pensamentos. E obrigada pela paciência, quando justifiquei
no cansaço indelicadezas e omissões. Vo sabe que é o principal responsável por tudo
isso. Por isso, este trabalho é pra você.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
7
1. A DIALÉTICA DO OLHAR
15
1.1. Perspectivas teórico-metodológicas 24
1.2. A Pesquisa 29
1.2.1. Sobre as fontes: documentos e relatos orais 34
1.2.2. O caráter dialógico do trabalho de campo 38
Excurso: Antropologia depois do “fim da teoria” 45
2. HOMO NARRANS 51
2.1. Narrativa como objeto da folclorística 53
2.2. Narrativa como objeto da antropologia 59
2.2.1. O dito e o feito: narrativa e narração 71
Excurso: Estudo da narrativa popular depois da “morte do narrador” 77
3. A LENDA CONTEMPORÂNEA 96
3.1. Repensando um conceito 102
3.2. Lenda e crença 106
3.3. Um gênero comunicativo 109
3.4. Outros gêneros narrativos 125
3.4.1. A imprensa e a lenda 136
4. O CONTEXTO E O SENTIDO DA LENDA 144
4.1. Casos de polícia 157
4.2. Os personagens 169
4.2.1. Os irmãos Piriás 174
4.2.2. O fazendeiro 202
4.2.3. A polícia 219
4.3. Bandidos-sociais? 230
5. NARR-AÇÃO 235
5.1. Lenda: comunicação ou representação? 243
5.2. Uma luta por reconhecimento 248
6. FONTES E BIBLIOGRAFIA 253
ANEXOS 266
7
INTRODUÇÃO
No semestre de verão de 1999 tive a oportunidade de freqüentar, na Universidade de
Colônia (Alemanha), meu primeiro seminário com o Prof. Dr. Ion Taloş, um estudioso da
tradição oral dos países de língua neolatina (em especial Espanha e Itália). Ao final do
semestre, vendo minha empolgação pela Volkskunde, em especial pelos estudos de
narrativa popular, o professor chamou-me para uma conversa que foi decisiva para mim:
“Você deve escolher um objeto de pesquisa ao qual procure se dedicar de forma
sistemática, e com o firme propósito de organizar o conhecimento a seu respeito. A atração
da narrativa popular é fortíssima e não são poucos os que se satisfazem em colecionar
borboletas.”
Argumentei sobre a dificuldade de “escolher”. o sabia como fazê-lo, e a partir de
quais critérios. A resposta do professor foi simples e encantadora. Contou-me como
chegou, ele mesmo, ao seu primeiro objeto, a colindă romena sobre “O pastor e a ovelha”.
1
Na época, seu professor de graduação em folclorística havia lhe dado a pista: procure em
casa”. Nas férias, quando voltou à Romênia, ouviu sua mãe cantar o romance. Mas ouviu
de outra maneira, com outros ouvidos, aquilo havia ouvido tantas vezes na vida”. Taloş
decidiu naquele momento o que iria pesquisar. Depois de me contar sua história, reforçou a
lição aprendida, como que para garantir a transmissão da experiência: “procure em casa!”
Um ano se passou a que pude voltar em casa. Em julho de 2000 viemos, meu
marido e eu, passar uma temporada de três meses no Brasil. Sérgio deveria concluir suas
pesquisas para a redação de sua tese de doutorado. Durante o período que estive na
Alemanha, meus pais resolveram se mudar para a zona rural (um sonho antigo).
Compraram uma fazenda às margens do Rio das Velhas, num lugarejo chamado
Maquinezinho (distrito de Cordisburgo, MG), a duas horas de Sete Lagoas, minha terra
natal. Lembro-me até hoje de minha mãe apresentado-me o lugar. A Fazenda dos Crioulos
era muito antiga e sobre ela contavam-se muitas histórias. E minha mãe, que não perde uma
1
Trata-se de uma narrativa em verso, cantada, muito conhecida no interior da Romênia. A este “cantar de
MioriŃa” dedicou-se ninguém menos que Mircea Eliade, que se refere a esta ballade como tesouro do povo
romeno” (Eliade:1982:235-267). Uma tradução do romance foi feita por Michelet em 1854.
8
boa história, logo cuidou de me informar de todas.
2
Mas uma delas chamou minha atenção
de forma diferente, embora eu já a conhecesse de longa data:
“Ali no capão do meio tem uma gruta, uma lapa, onde os Piriás ficaram escondidos. Seu Antônio
[antigo vaqueiro da Fazenda dos Crioulos] chegou a ver os dois aqui. O dia que a polícia chegou,
achou na gruta os pertences: algumas pilhas de rádio, anzol, chumbada e uma lata com farofa de
passarinho, ainda quente. A fogueira ainda queimava. Nem tiveram tempo de comer”.
As “informações” eram enriquecidas pelo meu pai com alguns detalhes numa
conversa animada. De repente percebi que meus pais narravam o caso com uma espécie de
orgulho de agora fazerem parte da História: moravam num lugar que havia servido de
refúgio aos famosos Irmãos Piriás. De certa forma, um lugar encantado.
O nome Pirfuncionou naquele dia como uma senha de acesso a um mundo que
nunca tinha se revelado a mim daquela maneira, embora estivesse estado sempre ali, ao
meu alcance, e me fosse tão familiar. Naquele dia “escolhi” meu objeto. E agora estava
claro o critério a ser usado nessa “escolha”: era preciso olhar com outros olhos para meu
próprio mundo.
Primeiro gostaria de descrever esse mundo outro. Um fato acontecido no dia 21 de
abril do ano de 1978 provocou e ainda provoca comentários em Sete Lagoas e região.
Depois de um incidente” envolvendo a polícia, os irmãos Sebastião e Orlando Patrício da
Costa tornaram-se celebridades e sua fama se espalhou. Vou começar registrando a história
como eu a conto hoje em dia, sempre que a possibilidade ou a necessidade de fazê-lo se
apresenta.
Os Piriás eram dois irmãos que foram para Sete Lagoas atrás de trabalho,
vindos da região da Serra do Cipó. Na cidade, pegaram de empreitada uma
cerca pra fazer na fazenda de Seu Culego. Terminado o serviço, o fazendeiro
(que era turco) não quis pagar, porque achou que o serviço foi feito rápido
demais. Os irmãos, então, começaram a cobrar insistentemente. O fazendeiro se
2
Teria sido a fazenda mais rica da região, quando dos tempos dos escravos, que desembarcavam ali trazidos
de barco pelo Rio das Velhas. Mas também na época do Sr. Lelé, o grande fazendeiro do lugar, de cujo filho
caçula meu pai havia adquirido o terreno. Dizem que do chão brotava ouro e cristal. A terra era a mais fértil
das redondezas, uma fartura só. O lugar era guardado por uma luz que anda e persegue os forasteiros: dizem
que é o espírito de um escravo que morreu para defender seu patrão. Dele podem-se ouvir os gemidos à noite.
9
sentiu ameaçado e chamou a polícia. Resultado: um dos irmãos foi preso,
acusado de roubo de um rádio, que foi o que a polícia alegou para poder prender
o rapaz. Depois de solto, junto com o irmão, o Piriá voltou a cobrar do
fazendeiro, que chamou a polícia novamente. Na fuga, Orlando e Sebastião
acabaram por matar um policial com um tiro no meio da testa lá na Lapa
Branca, onde é hoje o bairro Padre Teodoro. A polícia tinha que vingar o
parceiro. Iniciou então uma perseguição aos Piriás que durou mais de seis
meses, dentro de uma área compreendida ao sul por Sete Lagoas e ao norte por
Diamantina. Os dois eram excelentes mateiros. Conheciam bem as redondezas e
escapavam com facilidade. Chegaram a matar vários policiais. A polícia só
conseguiu matar os dois na noite de natal daquele mesmo ano.
É a minha versão atual, que difere muito da versão que eu certamente narrava antes
de me dedicar a estudar narrativa popular. Antes, eu contava de uma maneira mais próxima
das histórias sobre os Piriás que registrei de outros narradores. São relatos que apresentam
uma forma muito diferente de combinar os “fatos”, de se relacionar com as possíveis
“ambigüidades” que aparecem no decorrer da construção da narrativa, de aplicar a
“imaginação”, de legitimar suas “afirmações” e, principalmente, de interpretar o que vem a
ser “realidade”. No decorrer desta dissertação terei a oportunidade de transcrever várias
passagens desses relatos. Por hora, entretanto, faz-se necessário antecipar alguns itens que
constam desses “casos” sobre os Piriás e que são indispensáveis para se adquirir uma noção
mais clara do meu objeto.
Eis o que se diz a respeito: a prisão do irmão cujo apelido era Caolho foi realizada a
mando de um fazendeiro poderoso, ex-patrão dos Piriás. Na prisão os moços apanharam
muito, sendo que um deles foi castrado; daí o ódio e a vingança: por isso eles matavam
policiais. Os Piriás eram exímios atiradores e matavam com tiro na testa. Tinham o
corpo fechado (disso praticamente ninguém duvida). Eram anfíbios, podendo ficar horas
embaixo d’água. Conseguiam percorrer léguas e guas em um dia. Na fuga, podiam se
transformar em cupim, arbustos e até mesmo em policiais, com farda e tudo, e era assim
que conseguiam informações sobre diligências futuras. A bússola dos dois era o rádio à
pilha, que informava dos passos da polícia. A sua guardiã mais fiel era uma cadela, que os
policiais mataram covardemente. “E que morreram que nada!” ouve-se sempre, e em
10
seguida a explicação: na verdade, a notícia da morte dos Piriá foi plantada pela polícia para
abafar a vergonha de ter sido desmoralizada por dois caboclos analfabetos.
O drama dos Piriás virou assunto na cidade de Sete Lagoas e região, suscitando as
mais variadas formas de expressão. Um cordel e uma novela foram escritos. Dois filmes
(um curta e um longa metragem) foram rodados e há o projeto de um terceiro. Para além da
região, os Piriás foram notícia até mesmo no Jornal Nacional. A imprensa mineira deu
grande destaque ao caso. Não faltou espaço sequer para as lendas:
“[...] a fama dos irmãos Orlando e Sebastião Patrício cresceu assustadoramente na zona rural
de Sete Lagoas. Em todos os locais de reunião, se contavam estórias sobre os dois irmãos. Uma das
lendas mais contadas, e que logo correu de boca em boca, dava conta de que Orlando e Sebastião
viviam no mato há muito tempo, desde o dia em que teriam assassinado a própria mãe. Esta, pouco
antes de morrer, teria lançado uma praga nos filhos, dizendo que eles iriam passar o resto de suas
vidas como animais selvagens, dormindo no mato e perseguidos, sem poder dormir duas noites no
mesmo lugar.
Outra estória que logo se tornou popular falava que eles tinham corpo fechado e parte com o
diabo e por isso nunca seriam feridos pelas balas disparadas contra eles. Esta versão surgiu em
virtude da maneira usada pelos Piriás para fugir aos constantes cercos. Atirando sempre e rodopiando
o corpo sobre si mesmo, eles tentavam se transformar num alvo difícil para os militares que os
caçavam. Além disso, a pontaria sempre certeira de um dos Piriás era motivo de conversa em todos
os locais e o povo começou a criar um mito em torno de seus nomes.
(...) Algumas pessoas diziam que a guerra que Orlando e Sebastião travavam contra a
polícia fora causada por maus tratos recebidos durante a prisão, e que teria deixado cego um deles.
Desde esse dia, eles teriam feito um juramento de lutar até a morte contra qualquer policial e não
maltratavam as pessoas que encontravam em seu caminho.”
3
Sempre achei que narramos histórias porque julgamos que elas merecem ser
ouvidas. E contamos muitas histórias. Sempre e tantas, que o ato de narrá-las é como que
naturalizado. Digo isso por mim, que venho de uma família em que as pessoas gostam
muito de contar caso. Narrar constituiu para mim, desde sempre, algo natural, parte do
processo também natural e necessário de comunicação de experiências. Uma forma de
trabalhar incertezas, temores, de legitimar visões de mundo e papéis sociais, de participar
de uma espécie de política de identidades. As narrativas compartilhadas sempre me
3
Diário da Tarde, 27/12/1978.
11
pareceram vir para aconselhar, prescrever condutas, criticar indolências e incompetências,
porque eram capazes de (co)mover aqueles que ouviam. Empenhavam-se na avaliação de
comportamentos e instituições além de abastecerem a memória com acontecimentos
espetaculares.
Claro, consegui elaborar essa visão da narrativa oral depois do contato com a
folclorística e a antropologia, que me permitiram abordar as lendas que pretendo analisar
aqui como algo que comunica uma moral, algo que constitui um Moral-Discurse.
Exatamente porque se oferecem como recurso moral, essas histórias são contadas no
momento preciso, considerado ideal para compartilhar um tipo específico de experiência.
Momento narrativo especial, que cuidaremos de descrever e analisar adiante.
Por hora, tomemos como exemplo do que estou afirmando um fenômeno que nos é
familiar: o das chamadas lendas urbanas. casos sobre pessoas que morrem no trânsito e
que passam a pedir carona ou provocar acidentes em cruzamentos amaldiçoados. Histórias
narradas como experiências próprias ou de segunda, terceira mão, que vêm à tona toda vez
que o tema da conversa são as ameaças que o viajante enfrenta numa estrada. Existem
também as histórias mirabolantes sobre a fabricação de hambúrgueres com carne de
minhoca, de cavalo ou canguru, contadas sempre que o tema são os perigos da alimentação
moderna. Há ainda aquelas outras fantásticas sobre imperícias médicas e curas milagrosas,
invariavelmente narradas nas filas do SUS ou nas enfermarias dos hospitais, ou ainda
quando a conversa é sobre os profissionais de saúde. E quem não se lembra do final da copa
de 1998, quando mil e uma histórias alertavam quanto aos super-poderes da Nike sobre o
destino da seleção brasileira de futebol, numa crítica ativa às mega corporações?
Todas essas histórias, o contemporâneas, configuram estratégias de moralização,
uma tentativa de formação de uma opinião “pública”.
4
Delas se vale para elogiar ou
satirizar, criticar ou incentivar. Daí a característica mais marcante desse tipo de narrativa: a
sua enorme variabilidade. Uma variabilidade que, ao contrário da forma acabada do conto
de fada ou da fábula, não é coberta pelas teorias sobre narrativas populares.
4
Uma excelente análise dessas modernen Sagen em sua função de moralização foi feita por Johannes Stehr
(1998). Devo muito de minha argumentação, nesse particular, à leitura desse livro, escrito a partir do que
de mais recente nos assim chamados cultural studies.
12
Minha intenção aqui é realizar um estudo das histórias sobre os Irmãos Piriás
enquanto lendas contemporâneas.
5
Trata-se de um tipo específico de gênero narrativo,
marcado por um ininterrupto desdobramento do significado atribuído a um determinado
evento. Nesse sentido, as lendas sobre os Piriás são resultado e, ao mesmo tempo,
instrumento de formalização da relação de uma “comunidade de comunicação” com um
dado acontecimento. Uma formalização que depende de uma tomada de posição no que diz
respeito aos critérios de avaliação de conduta dos sujeitos envolvidos naquele evento. Essa
tomada de posição se revela tanto na maneira como as pessoas descrevem a atitude dos
personagens das lendas quanto na forma e na escolha do momento de narrar.
Defenderei a tese de que, ao participar de um momento narrativo sobre os Piriás, os
interlocutores trabalham com expectativas morais; promovem a experiência de valores. A
narração dessas histórias, portanto, constituiria uma forma de manutenção do consenso
moral de uma dada comunidade de comunicação. Seu sentido está relacionado aos
pressupostos normativos do comportamento adotados no decorrer do conflito entre os Piriás
e a polícia. Da intenção de realizar uma investigação dos sentimentos morais que atuam
no cotidiano das pessoas que contam coisas sobre os Piriás, com foco privilegiado nas
normas morais de ação.
Vou testar a hipótese de que as lendas, como formas de representação moral do
cotidiano, giram em torno da violação do consenso moral que deveria idealmente falando
orientar as inter-relações entre civis e policiais (além de patrões e empregados). Essa
violação, vivenciada como privação do reconhecimento social, acabaria por motivar o
reexame coletivo de instituições, de papéis sociais, das formas de interação social, tudo isso
por meio das lendas sobre os Irmãos Piriás. Parece-me que todos os que narram histórias
sobre esses dois irmãos concordam sempre, tanto no que diz respeito a quais expectativas
morais deveriam ser preenchidas no intercurso das relações do dia-a-dia entre indivíduos e
instituições, quanto na certeza de que tais expectativas teriam sido lesadas num processo
fracassado de socialização dos irmãos no ambiente urbano.
É o que espero demonstrar nesta dissertação: que essa experiência de desrespeito
social sofrido pelos Piriás é como que revertida nas lendas. Ao contar as histórias, as
pessoas assentem e encorajam a atitude dos irmãos; nelas os dois adquirem voz e referem-
5
Os conceitos de lenda urbana e lenda contemporânea serão discutidos em detalhes no capítulo 3.
13
se a si mesmos como seres dotados de habilidades especiais reconhecidas pela comunidade
de valores que fala deles.
No caso específico das narrativas que pesquisamos, o que parece acontecer é uma
ampliação da representatividade da (re)ação dos Irmãos Piriás contra uma experiência de
agressão moral. O centro moral das narrativas sobre os Piriás constitui-se, assim, na
descrição de uma situação de experiência de reconhecimento denegado, de um sentimento
de vergonha social. As lendas sobre esses dois irmãos configurariam um momento de
debate público sobre a privação de direitos considerados fundamentais; descreveriam, antes
de mais nada, uma luta cotidiana pela honra, por reconhecimento social. Nelas os Piriás
conquistam, enfim, estima social.
Percebe-se que foi imprescindível para o resultado de pesquisa a valorização do
significado social dos sentimentos morais envolvidos no processo de conto/reconto dessas
histórias. Inspirada pela leitura de Honneth (2003), defendo a tese de que os sentimentos
que as lendas movem e que movem as lendas se orientam pelas pretensões de
reconhecimento e de respeito por parte dos indivíduos, tanto os que compõem o corpo de
personagens das histórias, quanto os que narram os feitos destes personagens. Assim sendo,
pretendi realizar uma investigação cujo foco estivesse centrado na cultura moral cotidiana
da comunidade de comunicação que escolhi para estudar, tendo por fio de Ariadne a noção
de narração como ação social. Sendo assim, um estudo de narr-ação; não de narrativa.
Foi o objeto quem ditou a forma como deveria ser pesquisado. Primeiro porque são
histórias que fizeram parte da minha história e de alguma maneira dizem respeito a
questões fundamentais para mim. Talvez por isso mesmo não tenha conseguido evitar o
tom pessoal em alguns momentos do meu trabalho. Talvez por isso também, o resultado
tenha sido em larga medida uma antropologia como forma de autoconhecimento, aquela
valiosa conquista do antropólogo at home de que fala Malinowski.
6
Segundo, porque são histórias que têm existência em si mesmas na medida em que
são observáveis em seu “uso”, em sua aplicabilidade nas interações sociais. Daí seu poder
de atração como objeto de pesquisa antropológico. Trata-se de um objeto que pede se
assim posso me expressar uma antropologia da socialização interessada em apreender as
6
Apud Peirano, 2006:20.
14
estratégias de interação que envolvem a narr-ação dessas histórias e em identificar a
maneira como tais narrativas se relacionam com a realidade.
Produzi uma dissertação a partir de diferentes orientações teóricas, onde se
encontram diversas “trilhas intelectuais” (Madan, 1994). Uma interdisciplinaridade que não
foi premeditada, mas ditada pelas circunstâncias da vida. Refém de uma formação
acadêmica “caótica”, como tem sido a minha, e inspirada por uma antropologia que se
concebe como “cruzamento de fronteiras disciplinares” (Kofes, 2001:13), pareceu-me
natural a opção por uma abordagem inclusiva em termos teóricos, onde a antropologia
constitui o campo disciplinar generoso, fora do qual dificilmente seria possível escrever um
trabalho com estas características.
Com isso me aproximo daquela idéia da antropologia como forma de
autoconsciência que surge do encontro de culturas na mente do pesquisador, como quer
Madan?
7
No meu caso, o que não pude evitar foi um encontro de culturas teóricas, o qual,
em última instância, conduziu a construção de minha identidade como antropóloga.
7
A concepção da antropologia como "forma intensificada de autoconsciência" foi elaborada pelo antropólogo
indiano T. N. Madan em seu alerta contra o que ele considera uma ênfase excessiva na alteridade e sua defesa
de uma antropologia produzida a partir de quadros teóricos mais abrangentes (Madan, 1994:138-139, 159).
15
1. A DIALÉTICA DO OLHAR
Na minha infância em Sete Lagoas, foram inúmeras as vezes em que ouvi minha
mãe e outras mães gritando para os filhos na rua: Vem pra dentro, minino. Piriá te pega!
Depois de adulta, presenciei o uso do nome Piriá como arma contra algum policial de
trânsito: Vai amolá Piriá! dizia de vez em quando alguém irritado com o guarda e sua
“autoridade”. Também havia dado boas gargalhadas toda vez que alguém contava a
história do oficial que teria “borrado as calças” quando se viu cara a cara com os dois
irmãos. Além do fascínio por aquelas duas figuras encantadas que podiam virar cupim,
ficar invisíveis a força de oração e que tinham o corpo fechado. Cheguei eu mesma a
experimentar um contato (direto e de primeiro grau) com esse outro mundo dominado pelo
numinoso: minha mãe conseguiu para mim, naquela época, uma oração brava, dessas
capazes de fechar o corpo da gente. Trago-a na carteira ainda hoje, incapaz de desacreditar
em seu poder e em sua proteção.
Pode-se concluir daí que a primeira coisa que aprendi com a antropologia foi que
tomar essas histórias (que, repito, fazem parte da minha história) como objeto de pesquisa
significaria colocar em risco certezas que tinham relação direta com a minha própria
identidade. Mas que tipo de risco seria este? Teria ele a mesma qualidade daquele ao qual
se submete o pesquisador de uma alteridade strito sensu? Precisava de uma resposta, que
ela determinaria em grande medida minhas escolhas teórico-metodológicas. Se fazia
necessário arcar com as conseqüências do fato de meu objeto não ser um objeto distante,
fechado em sua alteridade a exigir o ato heróico do antropólogo, qual seja, o de arriscar sua
própria identidade. Meu objeto não exigiria de mim “conversão”. Cuidaria de histórias que
participaram na composição do sistema de valores que orienta minha conduta e as
avaliações que faço do mundo, ainda hoje. São, nesse sentido, parte da minha experiência
de vida.
Voltar-se para um objeto próximo constitui, um bom tempo, direito do
antropólogo.
8
A disciplina autorizou-se a olhar para os “mundos contemporâneos” (Augé,
8
Sobre a "antropologia at home" e sua relação com a identidade da disciplina, cf. Peirano, 2006:15-52. Sobre
o famoso "valor de forasteiro" nas investigações antropológicas e para uma reflexão arguta sobre as
desvantagens da condição de "inteiramente participante", cf. Nadel (1987).
16
1997). Entendeu-se capaz de fazer uma “antropologia do próximo” (Augé, 1994), e para ela
o Ocidente perdeu sua impermeabilidade à investigação antropológica.
Contudo, o fato de termos deixado de ser reféns de uma antropologia que se
reconhece apenas em termos rigorosamente etnológicos – ou seja, uma ciência do distante –
não me parece o suficiente para justificar a natureza do objeto que escolhi. Nem creio que
os métodos desta disciplina sejam suficientes para transformar um objeto qualquer em
objeto antropológico, o que teria por conseqüência uma hiper-adjetivação da disciplina e a
ruptura com sua própria tradição.
9
Melhor dizendo, mais que essa “atualização” da
antropologia, que tem nos permitido a nomeação de novos interesses, de novos campos de
pesquisa e a realização de convergências teóricas inéditas, é a reavaliação dos termos de
validade do “olhar antropológico” como especificidade do trabalho antropológico que
melhor justifica a abordagem realizada aqui.
O questionamento dirige-se à especificidade prática da antropologia, definida como
um “olhar” específico. O que implica, queiramos ou não, uma evidente aproximação com a
sociologia. Mas não pretendemos responder à crise de identidade da antropologia
postulando uma volta à sociologia. Nem tampouco transformando-a em estudo da cultura
popular. Deveria então, concordar com a sugestão de Laplantine (1987:15) e simplesmente
acreditar que seria capaz deste “olhar” poderoso? A questão não é de fé.
O que me parece estar em jogo: a alteridade radical como pressuposto metodológico
básico da antropologia, entendida enquanto disciplina que “trata de todos os outros” (Augé,
1994:23). A idéia da alteridade radical como pano de fundo do fazer antropológico
demandaria a concepção de meu trabalho como um estudo de aspectos tradicionais” que
perdurariam numa sociedade “não-tradicional”, numa confissão sem volta de que cedi à
tentação do discurso das “sobrevivências”. Não era o que eu pretendia. Teria, por isso, que
encarar a tensão constitutiva da prática antropológica, que é produzida por esse “olhar”
principalmente quando se pretende fazer antropologia em casa. At home, não teria de
9
O temor é de Dumont (apud Augé, 1994:21), que no prefácio da reedição de La Tarasque avalia os perigos
de tal “deslocamento dos centros de interesse”. Dumont afirma que nossa ciência deveria seguir, ao contrário,
o exemplo dos estudos de tradição popular. É claro que ele se referia à etnologia européia francesa, que
insistiu por muito mais tempo em estudar tradição popular fechando os olhos à contemporaneidade. A
folclorística alemã, ao contrário, adiantara-se no reconhecimento de que tradição não exclui modernidade, até
porque não temos o direito de fazer da “mudança” um valor e nem de fazer da tradição o “outro” com o qual a
modernidade se mede. São frutos do intercâmbio forte e contínuo entre a folclorística e a sociologia
germânicas, ao contrário do que acontecera na França - como prova a biografia de Van Gennep.
17
converter-me a outra mentalidade para, depois, distanciar-me dela. Ali, o distanciamento
continua a se afirmar como estratégia antropológica por excelência, mas de uma outra
maneira.
A antropologia ensina que o descentramento é sempre teórico seja de si, seja da
alteridade internalizada. O olhar é ao mesmo tempo microscópico e telescópico, e engendra
um “efeito de distância” que permitiria fugir ao impulso de dissolução da alteridade na
identidade por meio da produção de um conhecimento por objetivação.
10
O movimento é
duplo: o pesquisador deve deixar-se envolver pelo outro para depois retornar a si (e só
então ser capaz de explicar o outro) O “verdadeiro” antropólogo deve ir ao interior do
“outro”, mas consciente de que compreendeeste “outro” caso retorne à sua própria
identidade, a partir da qual ele consegue ver o que o nativo não pode ver. Ao antropólogo
cabe, antes, uma “astuciosa inocência” (Reis, 2003:201) que se resume, paradoxalmente,
em interesse e simpatia temperados com distância pessoal.
Muito se discutiu sobre os riscos desta metodologia empregada nas tentativas de
produção de um discurso sobre o outro. Uma discussão, que não nos cabe resumir aqui, mas
que exige posicionamento. Considero crucial a crítica de que a apreensão da alteridade se
sempre na sua expressão atual e transitória, portanto muito aquém de sua totalidade.
11
Trata-se de um argumento fundamental, exatamente porque é este o que a antropologia
tenta desatar com a crença de que o intérprete pode reduzir os riscos implicados na
proximidade máxima com a alteridade por meio da preservação controlada e crítica de sua
identidade.
A questão principal, acredito, remete à subjetividade daquele que se propõe a
interpretar e explicar a alteridade. Trata-se de uma identidade profundamente alterada pela
10
A estratégia é malinowskiana: num primeiro passo, privilegia-se um modo de conhecimento “por dentro”
(Malinowski, 1978) para que, em seguida, resguardado pela Teoria científica da cultura (Malinowski, 1970),
se possa confortavelmente produzir um conhecimento distanciado.
11
As “crises” da representação (se devemos ou não denominar “científica” a reprodução de observações
através de textos) e da legitimação (se o observador é ou não capaz de livrar-se do seu background
etnocêntrico) têm sido exaustivamente analisadas. O efeito mais importante desse debate sobre as questões
que abordamos aqui talvez tenha sido o de provocar uma reflexão sobre o problema da observação
participante no interior da própria cultura. Diria que essas “crises” têm sido analisadas no sentido terapêutico
do termo. Como Marcus (1994:573) mesmo admite, existe uma "current exhaustion with the explicit rhetoric
of postmodern debates".
18
experiência (Erlebnis) de seu objeto, mas que conserva, de alguma forma, sua preeminência
sobre ele.
12
Esses são os termos que grande parte da antropologia usa para definir sua
especificidade e que podem ser remetidos ao melhor da filosofia idealista alemã, na sua
busca por uma maneira de perceber (ou adivinhar) o que se passa em outra consciência (ou
em outra sociedade, outra religião, outra cultura, etc.). Mas, consideremos que essa quase
obsessão pela alteridade não teve como calar as questões sobre a identidade, até porque,
aquela mesma filosofia também insistiu na lição de que, se o conhecimento do outro
depende do reconhecimento de si, o conhecimento de si depende do reconhecimento do
outro. Menos que gozar de primazia sobre a consciência, a autoconsciência se adquire na
interação com os outros. A subjetividade seria derivada da intersubjetividade, e não o
contrário.
13
Sendo assim, o que aconteceria se, em vez de usar do afastamento para produzir
conhecimento sobre a alteridade, o pesquisador fizesse da experiência da alteridade o ponto
de partida para produzir conhecimento sobre um fenômeno de sua própria cultura?
A tradição filosófica da qual falamos rapidamente acima já ensinou que é na
experiência da alteridade que a identidade se descobre no nível mais profundo. Resta-nos
apenas seguir seu movimento e considerar efetivamente a capacidade que a experiência do
outro tem de revelar facetas da identidade para além daquelas que se “conhece”. Não se
trata de reivindicar a substituição da alteridade pela identidade como objeto da
antropologia. Não é isso. Trata-se apenas de uma outra possibilidade de se fazer
antropologia: transpondo o “outro” para ter acesso ao “eu”. Transpor aqui no sentido de
colocá-lo em lugar diverso daquele em que estava antes; inverter a ordem, ou seja, deslocar
12
O conceito de Erlebnis, correntemente traduzido por experiência (ou vivência) é fruto da obra de Wilhelm
Dilthey. Embora diferencie “experiência interna” de “experiência externa”, para Dilthey a vivência que
chegamos a ter do outro é tão original quanto a que temos de nós mesmos. Uma originalidade que depende,
claro, da qualidade da recepção dada a este “outro”: quanto mais intensa a recepção, mais densa se faz a
presença da alteridade na identidade. O que não implica em transformar-se no “outro”, mas sim interpretá-lo
com sensibilidade e técnica, aquilo que o filósofo chamou de “compreensão empática”. Contudo, embora
alteridade e identidade o se revelem fora da experiência interativa, ou seja, uma não exista sem a presença
da outra, para Dilthey a compreensão é antes de tudo um modo (o principal) de auto-consciência. Sobre
Dilthey, ver Reis (2003).
13
Sobre a importância da “descoberta” do outro e de suas características para um sentido coerente de auto-
identidade, ver Giddens (2002), em especial o capítulo 2.
19
a alteridade para o interior mesmo da identidade reconhecendo a diferença no coração do
homem.
14
O adjetivo que determina essa antropologia que trata da identidade em seu caráter
composto, múltiplo, é o adjetivo “filosófico”. Um de seus mais ilustres sistematizadores foi
Helmuth Plessner. O filósofo e antropólogo alemão analisa o par identidade/alteridade com
extrema sensibilidade e acuidade e se decide por uma antropologia cuja característica
peculiar ainda continua sendo o “olhar”, mas agora voltado para a identidade que deixa
revelar sua diversidade a partir da observação “com outros olhos” (mit anderen Augen). A
discussão é interessante e pode enriquecer nossa “história teórica”.
15
Plessner parte do senso comum antropológico de que a intimidade com um objeto
nos cega pra ele. O que nos é familiar nos é indiferente. O que não significa dizer que
sejamos incapazes de nos distanciar e “estranhar” o que está tão próximo a ponto de se
confundir conosco. A lição de Plessner é valiosa e demanda uma inversão da lógica
emocional no nosso trato com a diferença. Para ele, o método antropológico é devedor
daquele movimento simples e cotidiano que determina que apenas o que nos é “estranho”
de alguma forma chama nossa atenção. Plessner inverte a prioridade da antropologia que
localiza no outro distante seu alvo de análise e compreensão, quando demonstra que o que
nos é familiar tem maiores chances de ser compreendido (Plessner, 1982:169). A
compreensão de um dado objeto é tributária tanto da intimidade quanto do estranhamento
do pesquisador em relação a ele. Seu método consiste em olhar de fora da “zona de
familiaridade” (Zone der Vertrautheit) aquilo que a intimidade excessiva, embotando
nossos sentidos, conseguiu tornar invisível.
Sigamos mais de perto o argumento de Plessner, que considero fundamental para
justificar a abordagem antropológica do objeto desta dissertação. Ao nos distanciarmos do
14
Não cabe aqui a discussão, mas faz-se necessário esclarecer que estamos cientes de que a identidade o é
uma mônada, algo perfeitamente circunscrito, homogêneo e estável. O ego não é indivisível e comporta em si
uma multiplicidade. Em última instância, uma discussão sobre a identidade sempre deságua na diferença. Na
verdade o “outro” parece ser uma obsessão no Ocidente exatamente porque configura uma ameaça a nossa
idéia sagrada de identidade que nega a reconhecer que um único ser é antes de mais nada um composto. Se
“existir é diferir” como afirmou Gabriel Tarde, se a diferença é o que as coisas têm “ao mesmo tempo de mais
próprio e mais comum”, e a identidade é apenas uma espécie rara de diferença (Vargas, 2000:217), direcionar
o olhar para a identidade não significa roubar à antropologia seu bem mais precioso. Ela continua a olhar para
a diferença. É apenas a localização da alteridade que muda.
15
O termo é de Peirano (2006:72), e diz respeito ao exercício de reconhecimento e/ou construção de vínculos
analíticos e temáticos, onde outras abordagens vêm arejar perspectivas clássicas.
20
que nos é familiar, somos como que recompensados por essa capacidade de estranhar a nós
mesmos, a nossa própria cultura. É esse estranhamento que visibilidade ao que antes era
incapaz de instigar nosso olhar por estar naturalizado. Vê-se que o poder aqui não é do
antropólogo. Falamos de uma propriedade intrínseca ao que é estranho, desconhecido;
porque visível a nossos olhos é apenas o que nos parece diferente, incomum.
Uma identidade se deixa questionar em sua originalidade a partir de um outro
ponto de vista. É este ponto de vista outro que desmonta a imagem da cultura observada
como indivisível, integral, original. A capacidade de ver depende da distância, porque
somente a experiência da alteridade é capaz de despertar nossa atenção para o que nos é
familiar (Plessner, 1982:169). Portanto, a compreensão dependeria tanto da intimidade para
com o objeto quanto da capacidade de estranhá-lo.
Até aqui, compreender um objeto implica aquele mesmo distanciamento de que
falávamos há pouco para a antropologia do distante. A diferença, para Plessner, está no fato
de que quem possibilita o distanciamento do objeto pesquisado é a experiência da
alteridade e não o retorno à identidade. No caso da antropologia do distante aparentemente
temos dois tipos de estranhamento. O primeiro que é aquela surpresa, aquele choque
imediato diante do “outro” longínquo. O segundo tipo de estranhamento parece menos
espontâneo, mais artificial, porque provocado por um distanciamento metodologicamente
planejado como condição de produção de conhecimento sobre a alteridade.
Plessner não fala do estranhamento nos mesmos termos. Para ele, teríamos o
estranhamento da cultura do outro que permite o distanciamento e o conseqüente
estranhamento da própria cultura. O estranhamento não condiciona a experiência do objeto
a ser observado desde o início, como é o caso na antropologia do distante. Ele vem depois,
como resultado do afastamento. Trata-se de um afastamento como práxis, vivência, não
como método, teoria.
Com isso, Plessner não quer dizer que essa visibilidade que a experiência da
alteridade confere aos aspectos múltiplos da identidade deva ser confundida com a
possibilidade de uma compreensão mais aprofundada do objeto próximo. Plessner não
pretende simplesmente a confirmação ingênua do dito popular segundo o qual “quem está
21
de fora melhor”. Para ele, a questão é mais delicada: somente quem esteve dentro e teve
que sair (e exatamente porque esteve dentro e fora) é capaz de “ver melhor”.
16
A crítica se faz àquele distanciamento metodológico e teórico presumivelmente
passível de ser controlado pela cognição mais pura graças aos poderes especiais” dos quais
somente antropólogos disporiam.
17
O distanciamento do qual nos fala Plessner é muito
diferente deste. Plessner não fala de uma simulação, no sentido de experiência controlada.
Nem é este distanciamento premeditado que permite a análise do objeto observado. É um
distanciamento de fato que envolve um transtorno emocional forte o suficiente para abrir-
nos “outros olhos”; da mesma qualidade do afastamento ao qual é submetido o emigrante e
sua experiência de desenraizamento e que permite ao sujeito a redescoberta de sua cultura.
Uma cultura que mantém seus efeitos sobre e através do pesquisador e para a qual este olha
não mais como aquilo que lhe protege do que é estranho, mas que ele olha mit anderen
Augen.
Note-se a insistência do filósofo na experiência de desterramento, de ruptura, de
crítica com relação à própria cultura. O que não quer dizer que Plessner afirme que basta
viajar e surpreender-se com a alteridade para se tornar antropólogo. O viajante faria uma
espécie de antropologia espontânea, onde a alteridade não perderia sua aura
fantasmagórica, que seu lugar de referência nunca deixa de ser a identidade. O
antropólogo, pelo contrário, faz da experiência da alteridade um instrumento metodológico.
Ver “com outros olhos” é a arte que todo cientista social deve praticar, em especial o
antropólogo, afirma Plessner. Esses “outros olhos” seriam abertos através de um vivência
real (echtes Erlebnis) da alteridade, ou seja, por uma dor (Schmerz) forte o suficiente para
perturbar o sentimento de proteção e segurança que o familiar sempre desperta. Esta dor é
que nos capacitaria a perceber melhor as coisas, libertaria o olhar e o fortaleceria face aos
preconceitos que insistem sempre em turvá-lo.
18
É este distanciamento “superior” em
termos subjetivos que abre a possibilidade de análise do objeto. Em vez de fazer a reflexão
16
Contudo, não há que se afirmar que a antropologia filosófica de Plessner se resuma a uma maneira de viver.
Na verdade, ela continua sendo uma forma de organização do conhecimento, embora não deixe de constituir
uma filosofia no seu sentido mais nobre.
17
Sobre os poderes especiais dos antropólogos como recurso de “construção da autoridade etnográfica”, ver
Clifford (1998).
18
A valorização dessa dor levou Plessner (1982:172) a afirmar que “a dor é o olho do espírito” (Der Schmerz
ist das Auge des Geistes). Por isso, “a força para ver é proporcionalmente inversa à felicidade de uma época”
(Die Kraft zum Sehen ist dem Glück der Epoche umgekehrt proportional).
22
depender da observação distanciada e sistemática do objeto, Plessner faz a reflexão
depender de uma reaproximação do objeto que, somente então, deve ser controlada e
sistematicamente analisada.
Em vez de “observação participante”, tem-se uma “participação observante”, onde,
seguindo os conselhos de Mauss, valoriza-se a experiência concreta como aquilo que define
o que é realidade.
19
Menos que aquela contemplação interpretativa, dedicada ao estranho
longínquo, o movimento se a partir de um ponto de vista afectado pela alteridade
experimentada sensorialmente, e cujos efeitos se voltam para a cultura do observador.
O que não quer dizer que a pesquisa deva se resumir à simples comparação entre o
que o pesquisador experimentou em outra cultura e o que experimenta de sua própria. Não
se trata de mera analogia, que per se seria capaz de explicar diferenças. O que Plessner
pretende demonstrar é que a implicação social do observador não é obstáculo ao
conhecimento antropológico; é antes uma de suas condições. Se o estudo de um fenômeno
social, em termos antropológicos, supõe a integração o mais completa possível do
observador, aquele que observa sua própria cultura já tem vencida esta etapa; já é integrado.
E se aquilo que o antropólogo vive em sua relação com seus interlocutores deve ser
considerado parte integrante de sua pesquisa, Plessner apenas afirma que isso valeria
também para a antropologia como ciência do observador capaz de olhar para si próprio. Se
é verdade que os interlocutores do antropólogo nunca se enganam por muito tempo sobre os
sentimentos que movem o pesquisador, no caso de uma pesquisa realizada no ambiente da
própria cultura, será mais difícil que o pesquisador se engane com os sentimentos de seus
interlocutores.
Plessner questiona o ideal de eliminação dupla do sujeito que rege a antropologia do
distante, um ideal que imagina ser possível tanto a objetivação total dos atores sociais,
quanto a ausência total da subjetividade do observador. Para Plessner, os dois momentos
configurariam meras simulações, porque impossíveis de serem realizados de forma a
viabilizar uma pesquisa mais ampla. A originalidade da situação etnográfica seria a relação
humana, que envolve necessariamente afectividade, diálogo entre subjetividades. Estas não
19
Mauss sempre defendeu que o objeto da antropologia deve ser apreendido de fora como uma “coisa”, mas
também de dentro como realidade vivida. É preciso perceber o fenômeno estudado tal como o estrangeiro o
perceberia, mas também como os atores sociais o vivem. O observador da própria cultura pode, segundo
Plessner, ocupar as duas posições: de estrangeiro e de nativo.
23
podem ser neutralizadas por meio de um procedimento técnico, baseado na crença absoluta
na racionalidade submetida aos critérios da “objetividade”. Não é esse modelo de
objetividade que sustenta a abordagem de Plessner. Nem poderia ser, que a antropologia
pretende compreender comportamentos humanos que sempre veiculam significações,
valores e sentimentos. Para o antropólogo-filósofo alemão, objetividade é uma escolha
moral com raiz na experiência; não um procedimento técnico que permite que um objeto
seja recortado, isolado e objetivado dentro de um campo de estudo do qual o observador
estaria completamente ausente.
20
O pressuposto por detrás da argumentação de Plessner não é o de que o
conhecimento enquanto produto cultural só tem validade no interior da cultura que o
produziu. Ele deixa bem claro que não devemos ignorar que os fenômenos sociais possuem
plausibilidade e realidade social para além das fronteiras em que os mesmos surgiram. A
questão diz respeito a algo mais abrangente. Em um mundo onde o interesse pelos outros
mais do que o interesse por nós mesmos substitui toda a virtude que Aristóteles acreditou
ser aquilo que fazia do homem um humano, é tarefa da antropologia, sim, ocupar-se com a
identidade.
21
O filósofo grego teria razões para condenar as palavras de Malinowski, para
quem a antropologia é uma “fuga romântica da identidade” e, exatamente por isso, deve
supor uma identificação com a alteridade.
22
O mesmo vale para o filósofo-antropólogo
alemão, que nunca compreenderia isso que Lévi-Strauss chamou de “repúdio ao vivido”
quando de sua aventura solitária nos tristes trópicos.
23
Um repúdio que não deixa de
conservar aquela antiga distinção entre saber científico e saber filosófico que ronda a
antropologia desde seu nascimento.
20
Não estamos afirmando que Plessner prega um humanismo não-científico para se contrapor a uma
cientificidade “desumana”. A diferença está no conceito de ciência do qual parte Plessner. Sobre este
conceito, falaremos no excurso no fim deste capítulo.
21
Essa interpelação crítica da própria identidade que Giddens (2002) chama de entendimento reflexivo da
auto-identidade, quando a questão chega ao indivíduo – há muito tem sido considerada uma demanda urgente
das ciências humanas face ao risco de despersonalização ao qual a identidade seria submetida depois do
desenvolvimento da sociedade industrial e urbana. Entretanto, me parece mais pertinente e frutífero o
questionamento dessa identidade enquanto mônada, fechada em si mesma. Um questionamento que Plessner
nos permite realizar.
22
Apud Laplantine (1993:51e 83).
23
Numa crítica direta ao postulado fenomenológico de continuidade entre o vivido e o real, Lévi-Strauss
(1993:52) afirma que para se atingir o real “é necessário repudiar o vivido”.
24
1.1. Perspectivas teórico-metodológicas
vimos que são diversas as “crises” da antropologia, todas exaustivamente
analisadas. O efeito mais importante desse debate talvez tenha sido o de provocar uma
reflexão sobre o problema da observação participante na própria cultura do sujeito do
conhecimento: nesse encontro com o supostamente “mesmo”, acontece também uma
“construção do outro”, porém de forma diferente.
A etnografia “em casa” que me propus a fazer foi concebida como dependente do
que convencionou-se chamar bestrangement ou depaysement do que é familiar, ou seja, a
distinção da própria cultura como mundo estrangeiro (Aman & Hirschauer, 1997), onde o
problema se desloca para a qualidade do conhecimento que o observador traz consigo para
o “campo de observação”. Esse conhecimento anterior é considerado superabundante, em
prejuízo do “afastamento” considerado ideal. Na situação de uma antropologia do distante,
o observador seria confrontado com uma situação de total não-familiaridade, não somente
com relação a situações específicas, mas no que diz respeito à cultura em geral. O pretenso
domínio do contexto cultural se torna muito mais dependente do controle metodológico
cognitivo – da experiência que no caso do encontro com o “outro” dentro da própria
cultura.
Este “outro” da antropologia do próximo, que preferimos, como Alfred Schutz
(1962), chamar de alter ego, é um ator diferente daquele que vive numa cultura estranha ao
antropólogo. No caso, observador e observado têm acesso ao mesmo background,
compartilham uma série muito maior de conhecimentos. É nesse backdrop of communality
que o observador procurará analisar diferenças.
24
Enquanto a antropologia envolvida com a
alteridade radical tenta se investir do ponto de vista do nativo (Malinowski, 1948), no caso
da antropologia onde o observador olha para a própria cultura, temos a ver com uma
differentia specifica na qualidade desse olhar nos termos de Plessner.
Como meu objeto faz parte da minha cultura, tinha vivido antes o que me propus
a estudar. Nada de aculturação invertida ou de “conversão”: antes do olhar antropológico, a
imersão era total, tudo estava interiorizado. Em campo, quando da análise dos dados, o
esforço foi para manter abertos os “outros olhos” que correm constantemente o risco de se
24
Para Schutz (1962), a interação guiada por esses elementos do conhecimento compartilhado constitui a
característica do “mundo da vida” de qualquer ser humano.
25
fecharem diante da aparência de eterna previsibilidade do que me é tão familiar. Os sinais
desse esforço aparecerão em várias passagens da dissertação. Espero não ter me (dis)traído
em algum momento.
Outra consideração metodológica que penso ser importante é o fato de ter concebido
minha dissertação como o resultado de um esforço de síntese de abordagens, onde procurei
respeitar as “demandas” do meu objeto como determinante das minhas escolhas teóricas.
Mas não é fácil fazer convergir hermenêuticas quando o tema é narrativa popular. Contudo,
o esforço pode ser recompensado, que cada perspectiva ilumina uma face do objeto
pesquisado, aperfeiçoando o olhar.
Meu instrumental teórico fui buscá-lo tanto na antropologia quanto na folclorística
(principalmente na folclorística americana). A relação que procurei estabelecer entre as
duas disciplinas é de complementaridade. Uma vem suprir o que me pareceu faltar na outra
no que diz respeito à narrativa oral. Convictos de que todos os membros de um grupo
particular detêm um repertório único de narrativas compartilhadas e movidos pela
necessidade de “preservar” esse patrimônio, tanto antropólogos, quanto folcloristas se
esforçaram por caracterizar o narrador popular como uma espécie em extinção. Folcloristas
e antropólogos acreditaram na profecia de Walter Benjamin e se dedicaram prontamente à
“descoberta” e documentação das histórias desses narradores.
Mesmo depois de uma revisão aguda e crítica de seus procedimentos, tanto a
antropologia quanto a folclorística optaram por continuar centradas na figura do narrador
como fonte de histórias prenhes de experiência e significado, ameaçadas pela aculturação
ou pela extinção com o advento da modernidade. Aos narradores foi atribuído todo o
conhecimento de um dado grupo tradicional assim como a identidade de seu “povo”. A
diferença entre as duas abordagens é que a antropologia dedicou-se mais à exploração das
conexões entre os conteúdos das narrativas e outros fenômenos culturais.
O enfoque foi aprimorado com o passar do tempo e a experiência em campo.
Contudo, questões sobre o comportamento do narrador quando do momento da narração,
sobre a influência de suas experiências e interesses pessoais na narrativa, ou sua relação
com a audiência, constituíram por muito tempo a preocupação das duas disciplinas. O que
resultou em trabalhos saturados de informações sobre narradores e suas audiências
específicas, transcrições excessivamente longas e enfadonhas do ato de “transmissão” das
26
histórias. Os interlocutores em interação no momento narrativo eram vistos como emissores
ou receptores de uma mensagem preexistente na forma de um tradicional tale. Acreditava-
se que essa “contextualização” das narrativas tradicionais, acrescida a um textual data-
base, por si só, levaria ao entendimento do significado das histórias, que todos estavam
de acordo que a narração ocorria sempre in context.
25
Todos os participantes do ato
narrativo eram classificados como ocupando o papel ou de narrador ou de audiência (com
um destaque ainda quase exclusivo para a primeira figura). A preferência era pela
caracterização comportamental e biográfica dessas figuras numa análise situacional do
storytelling.
Foi nos últimos cinqüenta anos que a folclorística, adiantando-se à antropologia,
engajou-se num estudo da narrativa enquanto comunicação (no seu sentido interacional).
Passou-se a caracterizar relatos orais como algo que emerge, ao mesmo tempo que se situa
e age, no contexto cultural. Todavia o foco ainda continuava a ser a narrativa e o narrador,
agora como performer, ou artista, ou como aquele que abraça as normas tradicionais ou é
capaz de alterá-las. Os antropólogos seguiriam os mesmos passos, desenvolvendo o que
convencionou chamar-se de antropologia da performance.
O que parece estar por detrás do tratamento que as duas disciplinas deram à
narrativa, é uma fidelidade a-crítica a um modelo tradicional de comunicação, fechado
numa estrutura pouco flexível que concebe os atos narrativos exclusivamente sob o viés
transmissão/recepção de textos. Daí essa obsessão pela figura do narrador e pela narrativa
em detrimento de uma análise da narração, ou seja, da narrativa enquanto ação social. O
que parece faltar, no caso, é um consenso quanto a um modelo alternativo de comunicação
que ofereça parâmetro e fundamento para uma análise que questione esse primado da
“representação” sobre a “comunicação”, e que reconheça que, quem conta uma lenda, não
apenas deseja que os outros tomem conhecimento do conteúdo do relato mas também que
seja reconhecida sua opinião e, mais que isso, que os interlocutores se manifestem em
relação a ela. Um modelo alternativo de comunicação permitiria a análise da narrativa oral
25
Ruth Benedict (1935), Daniel Crowley (1966) e Edmund Leach (1983; 1996) são alguns dos antropólogos
que se ocuparam da caracterização do modo como narradores (menos que a audiência) se comportavam em
sociedades ou grupos específicos. Essa copilação de um textual-contextual-data também fora realizada por
inúmeros folcloristas europeus e russos.
27
como práxis argumentativa, onde eventos são revisados a partir de um processamento
discursivo de experiências e narrativas constituem orientações de ação.
Estive à procura de um modelo de comunicação que me permitisse analisar as
lendas sobre os Irmãos Piriás dessa maneira. Nelas, seriam as expectativas morais relativas
ao comportamento dos indivíduos, mais que os costumes e as convenções, que permitiriam
o julgamento das ações dos personagens. Nesse sentido, tento analisar as lendas como
objeto correlato a uma práxis. Por esta razão, meu trabalho será marcado pela necessidade
de descrever as situações de narração de “histórias sobre os Piriás”, concebendo a narração
como “vivência” (Erlebnis). Portanto, não farei um estudo de “variantes” nos termos da
antiga folclorística clássica e estrutural. Nem o foco de nossa análise serão as cnicas
narrativas. Busco uma abordagem que seja capaz de retirar a narrativa popular dos
domínios tanto de uma folclorística tradicionalista quanto da análise literária. No que diz
respeito à Volkskunde, procuramos nos manter afinados com uma outra linha de estudos de
folclore, mais atenta para as percepções e sentimentos, valores e concepções morais dos
sujeitos. Por isso o esforço em analisar a prática narrativa engendrada num determinado
meio social.
As lendas sobre os Piriás envolvem, fundamentalmente, uma discussão sobre a
conduta da polícia como braço armado do Estado. São histórias que fazem uma avaliação
minuciosa dessa instituição e que questionam sua legitimidade, numa ação que continua
atual trinta anos depois da morte dos dois irmãos. Da definição por uma abordagem que
reconhece na narração dessas lendas uma reação diante desse problema grave que é a
relação entre sociedade civil e instituição policial. A opção afastou-me de uma análise
meramente simbólica das lendas. Nem parto de uma imagem da lenda como forma
organizada de defesa de direitos e valores morais tradicionais ameaçados pela sociedade
moderna (e pela polícia em particular). A questão é bem mais delicada e será levantada
diversas vezes ao longo da dissertação. Por hora, basta dizer que procurei analisar as lendas
sobre os Piriás como comunicação (mais que como representação), no sentido de que ao
narrar essas histórias as pessoas participam de um processo de formação e legitimação de
um senso moral e de justiça muito específicos. A essência desta práxis: o repúdio a certos
aspectos da estrutura social que implicam práticas desumanas, o estigma produzido pela
prisão ilegal e suas conseqüências sociais reais, além do desamparo absoluto frente às
28
instituições públicas. As pessoas que contam histórias sobre os Piriás conhecem e sabem da
continuidade de todas essas formas de não-reconhecimento social. E se a questão que
define os critérios de avaliação do comportamento no espaço público é questão política, não
há como ignorar uma dimensão política das lendas enquanto ação narrativa, que concorrem
para terem aceitos seus critérios.
Por isso, também não vou tratar as lendas como ação de uma coletividade nos seus
aspectos ritualizados. Nas lendas focalizam-se o significado, as motivações da ação dos
Piriás, sendo que a narrativa em si procura constituir-se como meio de legitimar essa ação.
Nos relatos, afirma-se que os iros agiram com base em uma certeza moral e um senso de
legitimidade. Mais que ajustar o ato dos irmãos num contexto simbólico coerente, o que se
faz nas lendas é dotar suas ações de legitimidade. E isso tem efeitos a nível prático como
procuraremos demonstrar analisando a forma de percepção que os narradores das lendas
têm tanto da validade do modo de ação dos Piriás quanto da ilegitimidade do modo de ação
da polícia. Portanto, mais que analisar um ritual comunitário, estarei atenta para a
importância dos valores para o comportamento daqueles que narram esse tipo de história.
Lendas como formas de descrever e de interpretar experiências sócio-culturais” (Turner,
1974:64), sim. Mas experiências que, ao contrário do que afirmou Turner, são formuladas.
As lendas em si como formulações de experiências.
Vem da antropologia de Turner (1974:46) a inspiração para a análise processual
dessas narrativas que tentarei realizar como algo que surge da experiência de interação (as
arising in the experience of human coactivity”). De Turner (1974:6) procurei seguir o
conselho para me livrar daquela desconfiança difusa com relação ao imaginativo e
emocional como empecilho para o reconhecimento do importante aspecto racional dessas
narrativas populares. Nessa linha, estive à busca dos indícios para a compreensão tanto do
pensamento quanto do sentimento das pessoas sobre suas relações com as instituições no
ambiente social em que operam.
Daí a preocupação com as “mediações morais” das quais nos fala o historiador da
cultura, tão afinado com os estudos de cultura popular, E. P. Thompson (2005). Mais que
desvendar “formas invisíveis de ação”, coube a mim assumir que narrar lendas é uma forma
de ação bem visível de configuração da própria história, onde os termos “comunidade” e
“legitimidade” aparecem interligados segundo um determinado senso de finalidade que visa
29
tanto avaliação, quanto validação e motivação de comportamentos. Pretendo demonstrar
que nas lendas sobre os Piriás concepções são atualizadas de forma que a narrativa adquira
impacto diretivo sobre as formas de ação dos indivíduos.
Todavia, optei por fugir ao pressuposto metodológico da existência a priori da
comunidade. Isso porque a legitimação que as lendas perseguem não vem do fato de elas
serem acionadas com a finalidade de defender direitos e costumes tradicionalmente
definidos (“comunitários”, no sentido mais coletivizante da palavra) com antecedência.
Pelo contrário: o que pude perceber no decorrer da pesquisa é que, ao narrar essas histórias,
um consenso vai sendo negociado (e mesmo confirmado já na circulação das lendas). Não é
um consenso que existe a priori, fruto perfeito de uma visão de mundo coletiva
homogênea. O consenso do qual trata a lenda tem caráter de constructo, produto de uma
negociação de visões de mundo e formas de apropriação do evento no contexto de narração.
1.2. A Pesquisa
O pensamento se complexifica ao enfrentar o real, nos dizia Augé (1997:86). O
efeito imediato desse aperfeiçoamento, na minha pesquisa, foi a consciência da necessidade
de uma reorientação metodológica, além da reavaliação dos pressupostos de pesquisa, uma
vez que tinha em mente um estudo definido pela relação que ele mantém com as
problemáticas exploradas pelo grupo de pessoas com o qual tive a oportunidade de
conversar.
No início da pesquisa, adotei um tanto mecanicamente o modelo metodológico da
etnografia do distante. Pensava em abordar um grupo social definido, avaliar instituições
sociais, eventos sociais específicos (Vieira da Mata, 2006). Mas a experiência de meu
objeto era de outra qualidade e obrigou-me a me ocupar de ações, interações e situações
sociais. Por isso mesmo a elaboração do objeto de pesquisa foi progressiva, e se deu, na
maior parte do tempo, no decorrer de conversas espontâneas em Sete Lagoas sobre o caso
dos Piriás (possíveis graças àquela vantagem de ser “de dentro”). Nessas conversas, alguém
sempre acabava por revelar aspectos antes insuspeitados, obrigando-me a um reexame das
hipóteses e considerações iniciais. Procurarei registrar vários desses momentos. Momentos
30
que tornaram constantes os reexames críticos do meu objeto e me fizeram entender na
prática ou seja, através da experiência aquilo que sabia na teoria: que o objeto
antropológico não se constitui independentemente dos interlocutores.
Esses mesmos interlocutores também me fizeram entender que a originalidade da
situação etnográfica é a relação humana que envolve necessariamente a afetividade,
colocando para mim a questão que ocupara o mestre Cardoso de Oliveira (1991) por toda
sua vida.
26
Estive incluída social e subjetivamente no campo, densamente envolvida, e na
verdade muito antes de ingressar no mestrado.
O fato de a significação antropológica de um fenômeno depender da relação com a
sociedade como um todo na qual ele se inscreve vem a meu favor e facilitou muito meu
trabalho. Embora soubesse de antemão que o para observar tudo, anotar tudo, viver
tudo, nem apreender um fenômeno ou comportamento na multiplicidade de suas dimensões
(mesmo tendo estado mergulhado nele a maior parte da minha vida), as vantagens de contar
“com outros olhos” (uma capacidade de ver “de fora”) se fazem perceber em todo o meu
trabalho. Ou seja, a difícil tarefa de conciliar empatia e subjetividade na situação de
pesquisa com a objetividade exigida para a análise e tratamento dos dados foi facilitada
pela metodologia de Plessner. O fato de olhar para meu objeto “com outros olhos” facilitou
em muito o controle sobre a geração dos dados e tratamento das narrativas, além de não
permitir que a força desse objeto antes reificado (lenda) desviasse minha atenção no
trabalho.
Permitiu também que eu fizesse um uso consciente dessa espécie de cumplicidade
controlada que tanto me foi útil no trabalho de campo. Como as lendas resultam da
interação de sujeitos, hoje sei que não teria acesso a elas se não me dispusesse a ser uma
pesquisadora co-agente, com participação direta no próprio momento narrativo. Tive que
demonstrar provar até que aceitava as experiências narradas como legítimas, e mais,
que dominava o código a partir do qual se engendrava cada contexto de interlocução. Uma
atitude positivo-aberta para com a tradição sempre me foi argüida como condição de
pesquisa e teve de ser adotada como forma de condução do trabalho. Nos termos de Bill
Ellis (1989:49), nossos informantes do not tell us the legend; they play themselves telling
the legend”. Assim, não tinha alternativa: poderia, como participante observante, play
26
Falo do binômio razão/afetividade.
31
myself telling. O acesso aos momentos narrativos só foi possível graças à experiência que já
trazia de antes e que me possibilitou reconhecer as situações em que o mundo dos Piriás
poderia vir à tona. Usei desse conhecimento para “desencadear” tais situações.
Meus informantes também “usaram” da outra face da minha condição, a de
pesquisadora. Pediram algo em troca do acesso ao momento de construção das narrativas. E
o que sempre queriam de mim era... uma narrativa! Uma narrativa que eles consideram
“especial”, o livro sobre os Piriás que eu haveria de escrever” a partir de suas falas e que
todos entenderam como oportunidade de reunir as várias narrativas que são de domínio
público. Várias vezes, tive que explicar como seria esse meu trabalho de “composição” de
histórias dos Piriás, sem alimentar a esperança de que minha narrativa teria algum poder de
“substituição”. Mas era sempre em vão. Hoje sei que terei que submeter meu texto à
avaliação daqueles que, não raro, só se dispuseram a colaborar comigo mediante a
promessa de que “receberiam uma cópia do livro”.
Por isso tudo, me convenci que o mais interessante no meu trabalho não seria
recolher relatos orais como registro de maneiras de agir e pensar, mas entender o ato
narrativo no seu interesse de interação. Instigante seria compreender como o assunto Piriás
move e liga as pessoas e por quê. Por isso, abandonei completamente a idéia inicial de uma
análise do narrador como ator social envolvido num evento narrativo nos termos de uma
antropologia da performance ocupada com a compreensão de uma poética vinculada a uma
estética narrativa particular cujo centro de análise é a competência do narrador. Não me
ocupou a análise dos recursos comunicativos de um narrador arquetípico nem sua
competência individual.
27
Nem as narrativas enquanto eventos narrados no que diz respeito
à sua forma, à profusão de marcadores dêuticos, cohesive-ties de todas as espécies,
repetições, paralelismos, meta-comentários e figuras de linguagem. Nem mesmo a conexão
de narrativas no que diz respeito ao caráter criativo que possibilita a conexão. Some-se a
isto que os contextos de performance eram vastos demais para que eu pudesse cobri-los.
De início não dei ouvidos ao conselho antropológico de evitar programação estreita
da pesquisa e a utilização de protocolos rígidos. Contudo, logo na minha primeira entrevista
formal, entendi que nem tudo seguiria o script.
28
A entrevistada foi a viúva do segundo
27
Como exemplo desse tipo de análise na antropologia, ver Silveira (2003) e Hartmann (2005).
28
Para o conceito de entrevista, ver Pereira de Queiroz (1988:20).
32
policial morto pelos Piriás.
29
Levei um roteiro extenso, que tentava cercar todas as minhas
hipóteses e expectativas. Fui surpreendida. Primeiro porque a entrevista começou a
acontecer “de fato” depois que Dona Glória se certificou de quem eu “realmente” era. Ou
seja, quem foi primeiramente entrevistada fui eu. Nesse preâmbulo, tive que de alguma
maneira “provar” que era digna de ocupar o lugar de ouvinte da sua história. E assim tive
que fazer todas as vezes que estive “formalmente” em campo. O procedimento protocolar
se mostrou inútil.
Segundo, porque a entrevista de Dona Glória, longe de restringir-se ao caso Piriás,
envolveu toda a sua história pessoal. Em vez de uma narrativa linear e bem acabada sobre
os irmãos Patrício, o que consegui foi um amontoado de “recortes”, um relato onde
convergiam diversos tipos de experiências e lembranças. A entrevista acabou
desembocando num processo de rememoração onde lembranças eram selecionadas e
configuradas de uma forma que eu não esperava; um relato sobre os Piriás acrescido da
representação da existência da própria entrevistada. À imagem dos Piriás ela acabou por
integrar uma imagem de si, que por sua vez me pareceu composta das representações que
os outros fazem da própria entrevistada, da instituição policial e dos Piriás.
30
Estava
despreparada para aquela situação. Por isso não tive como intervir no processo e a
frustração foi enorme.
Aquilo o era o que eu imaginava ser lenda. Um objeto reificado, quase natural,
invariante. Senti o mesmo quando dos relatos que recolhi de policiais. Eram narrativas
pessoais, histórias de vida, portanto; relatos de experiências e não histórias sobre
experiências. O que deveria fazer? De duas uma: ou deveria deixar de insistir na idéia de
que existisse algo como a “lenda”, ou teria que rever o conceito de lenda. Optei pela
segunda estratégia, já que pressentia que “a lenda vivia”.
Decidi procurar ver como as coisas aconteciam concretamente quando o caso é de
Piriá. Ou seja, como os discursos sobre esses dois irmãos são colocados em jogo nas mais
diversas situações. Nunca tinha ouvido ninguém falar a palavra lenda. Então comecei a
avaliar até que ponto aquele não era um conceito “meu”, uma categoria-fronteira de
natureza provisória. Deveria entender lenda como significante aberto a novos significados.
29
Sete Lagoas, 07/01/2005.
30
Sobre essa convergência de representações no relato, ver Augé (1997:148). Para uma análise da relação
estreita, prenhe de conseqüências, entre narração, rememoração e (re)composição do sujeito cf. Kofes (2001).
33
Portanto, algo diferente das narrativas com caráter de testemunho que exigiam de mim
outra postura e outros procedimentos.
Com o avançar do trabalho de campo, percebi que estava diante de um tema que se
apresentava sob uma diversidade enorme de formas. Pode-se falar de Piriás em uma história
de vida, numa lenda, como causo ou piada, na conversação cotidiana, como notícia, filme,
conto e até sob a forma de dissertação. Por isso, boa parte da pesquisa foi dedicada ao
cruzamento de diferentes narrativas sobre os Piriás em diferentes registros. Ao lado das
lendas, ocupei-me dos textos produzidos pela imprensa e pelo grupo intelectualizado” da
época, além de dois filmes, um relatório para o IPHAN sobre o tombamento de uma gruta
onde os Piriás teriam se escondido, além dos registros policiais, um cordel e uma novela. A
análise se deu a partir de uma memória escrita e falada, onde as “lembranças” variam em
qualidade, forma, intenções e efeitos. Cada forma tem uma função retórica diferente e
promove um tipo diferente de statement, o que exigiu de mim uma competência diferente
enquanto receptora da mensagem.
E mais: nenhuma das narrativas que recolhi pode ser considerada “lenda pura”. A
maioria dos relatos mescla histórias sobre os Piriás, situações vividas pelo narrador, bem
como por outras pessoas de sua rede social. O que não entrou em contradição com o
conceito lenda, agora devidamente refinado e fundamentado como narrativa que não conta
com a surpreendente estabilidade de narrativas populares como o conto de fadas
(Märchen), onde o texto oferece elementos cognitivos para a construção da história. Por
isso, no caso de estudos de lendas contemporâneas, não temos como fazer uma análise do
fenômeno da transmissão em si, mas sim da persistência da transmissão. Nem as narrativas
em si são o objeto de estudo mais interessante, mas sim as relações nas quais elas se
encontram imersas, já que elas sempre descrevem modos de inserção nas situações sociais
(ou seja, ações). O próprio objeto “lenda contemporânea” impede-nos de cair no vício
copilatório de uma certa folclorística, ao mesmo tempo em que escapamos ao viés
psicologizante de uma certa antropologia.
Vê-se que não demorei muito a entender o que Laplantine (1993:151) quis dizer
com a frase a busca antropológica tem algo de errante”. Só que nessa “aventura”, entendi
que a consciência não é a inimiga secreta das ciências dos homens como quis Lévi-
Strauss em seu elogio ao inconsciente.
34
1.2.1. Sobre as fontes: documentos e relatos orais
Os estudos sobre as lendas contemporâneas mostram que as mesmas surgem tendo
como base fatos “reais”. Mas é depois de passarem pelo filtro da crença popular que
aqueles se transformam em lenda, ganhando vida e chão no imaginário da comunidade
narrativa. Enquanto o conto de fadas é fabula incredibilis, quem narra esse tipo de lenda lhe
confere o caráter de testemunho.
Um historiador como Marc Bloch, desiludido com a natureza dos documentos
convencionais, mas ainda perseverante na sua busca pelos fatos, se refere a esse tipo de
narrativa como erro, “falsas notícias” cujo desenvolvimento e gênese são seu trabalho
desvendar.
31
“As falsas notícias, em toda a multiplicidade das suas formas simples boatos, imposturas, lendas
preenchem a vida da humanidade. Como nascem? A que elementos vão buscar a sua substância?
Como se propagam, como ganham amplitude à medida que passam de boca em boca ou de escrita
em escrita? Não questão que mais do que esta, mereça apaixonar quem quer que tenha o gosto
pela reflexão sobre a história.” (Bloch, 1998:179)
Apesar do encanto de Bloch pelas “falsas notícias”, sua abordagem desse tipo de
narrativa (mesmo que conduzida de forma tão elegante e fina como é o caso do historiador
francês) parte do primado da natureza externa e coercitiva dos fatos. Para completar seu
argumento, Bloch, que foi tão fortemente influenciado pela escola durkhemiana, enfatiza a
natureza construída das estruturas sociais através de práticas interpretativas dos membros
da comunidade de comunicação.
32
31
Reflexões de um historiador sobre as falsas notícias de guerra é um dos primeiros textos de Marc Bloch,
que, na juventude, se ocupou da análise dessas narrativas populares perturbado pela necessidade de desvendar
os fatos que nelas subjazem. Algo muito diferente e infinitamente menos sofisticado que o clássico Os Reis
Taumaturgos, que alçou Bloch à condição de historiador-referência na tradição francesa. Para outro exemplo
de uma análise de narrativa popular ainda preocupada com o esclarecimento dos fatos”, ver Rocha (2004).
Sobre o facto e o artefacto, numa aplicação muito interessante e criteriosa da teoria de Sahlins para a análise
de um “mito histórico”, ver Williamson (1992).
32
“Na origem [da lenda] vamos encontrar a alma coletiva” (Bloch, 1998:187).
35
“O erro se propaga, se amplia, só vive com uma condição: encontrar na sociedade em que se
difunde um caldo de cultura favorável. Nele, inconscientemente, as pessoas exprimem os seus
preconceitos, os seus ódios, os seus medos, todas as suas emoções fortes (...). Grandes estados de
alma coletivos têm o poder de transformar uma má percepção numa lenda” (Bloch, 1998:180)
A gênese da lenda foi identificada pelo jovem Bloch naquilo que ele denominou
“enganos coletivos”, dotados da capacidade de criar emoções comuns. Uma força capaz de
inclinar a opinião pública no sentido de suas posições. Não foram poucos os que se
deixaram tentar por esse fruto de uma espécie de grande experiência natural, capaz de
agitar e mesmo sobreexcitar as pessoas. Quando a história se volta para o presente como
apoio para a interpretação dos fatos passados, toda uma geração de historiadores
atormentados entre o amor pela verdade dos fatos e a paixão pelas volúveis representações
tornou-se incapaz de dar ouvidos ao alerta de Johann Gustav Droysen.
33
Em 1882, o
historiador alemão já argumentava que
“Sería desconecer la naturaleza de las cosas con las que se ocupa nuestra ciencia [a História] si se
creyera que ella tiene que ver con hechos objetivos. Los hechos objetivos no se nos presentan a
nuestra investigación en su realidad. Lo que ha acontecido objetivamente en un pasado es algo
completamente distinto de lo que se llama hecho histórico. (...) Todas las fuentes, por buenas o malas
que ellas sean, son concepciones de acontecimientos” (Droysen, 1983:160-161).
A seguir historiadores como Droysen e Chartier não que se falar de fatos como
algo que cabe ao historiador e de representações como o que cabe ao antropólogo.
34
As
próprias fontes que utilizei nesse trabalho me obrigaram a repensar essa relação e concluir
que não há qualquer conflito entre fatos e representações. Fatos e representações não
constituem em esferas isoladas. Pelo contrário, as representações se utilizam dos fatos e se
alegam como fatos. Os fatos, por sua vez, são organizados de acordo com as representações
que se fazem deles. Não teria como reconhecer o que é representação sem ter alguma noção
33
“O estudo do passado em tal matéria [falsas notícias] deve apoiar-se na observação do presente” (Bloch,
1998:179). Ou seja, era a história se outorgando o direito de se aproximar tanto das representações quanto do
presente. Uma empreitada que encontra em Roger Chartier sua expressão mais coerente e crítica (Chartier,
2002). Esse verdadeiro movimento, deslocou a cultura popular para uma posição intermediária de objeto tanto
da história quanto da antropologia. Cf. Peter Burke (1984).
34
Sobre a relação fatos/representações e história/antropologia, relação tão rica e ao mesmo tempo tão
complexa, ver Portelli (2002), de onde retirei a base de meu argumento neste caso específico. Para análise
semelhante, mas agora cotejando história e folclorística, ver Danielson (1996).
36
do que aconteceu naquele ano de 1978 exatamente porque tanto fatos quanto
representações convergem na subjetividade a partir do momento que são envoltos pela
linguagem”, diz Portelli (2002:111).
Portanto, é de complementação a relação entre as fontes orais e outras fontes
documentais tradicionais, picas do trabalho historiográfico. Cotejar fontes orais e escritas,
não sinaliza uma intenção investigativa no sentido de “desvendar” o que “realmente
aconteceu”. A intenção é bem outra: revela o desejo de apreender as razões pelas quais
determinados indivíduos constroem suas memórias – ou narrativas – desta ou daquela
maneira; como se configura o sentido (tanto coletivo quanto individual) de um evento
passado. Enfim, compreender como se a imbricação pessoa/personagem, fato/artefato.
Para isso, as fronteiras entre narrativas orais e escritas deveriam ser relativizadas. Primeiro,
porque não há como negligenciar a necessidade de “descrever” a configuração do fato
ainda que seja uma ilusão pretender descrever ou explicar “o que realmente aconteceu”.
Segundo, porque documentos orais e escritos atribuem sempre estatuto de “fato” ou de
“artefato” aos Piriás conforme convenha à razão narrativa em questão. Uma reportagem,
por exemplo, pode conferir “estatuto de artefato” aos cidadãos Orlando e Sebastião
Patrício, ao passo que um relato oral se esforça para conferir “estatuto de fato” aos
legendários Piriás.
35
Na verdade, estivemos diante de uma verdadeira disputa pelo domínio das
recordações daqueles que sabem alguma coisa sobre os Piriás. As reconstruções desse
passado são múltiplas e estão longe de subordinar-se à hierarquização que o jovem Bloch
estabelece nas suas Reflexões. Logo se percebe que há, sim, uma discrepância entre o que
os documentos puderam dizer daquele acontecimento e as percepções desse mesmo
acontecimento que compõem os relatos orais. Contudo, ambas as “versões” co-habitam no
tempo e no espaço e superam a oposição oralidade/escrita.
A diferença se dá na qualidade dos discursos controlados que contam com coerência
e uma rigidez maior de estrutura por um lado como é o caso dos documentos, textos da
imprensa, etc. – e das lembranças menos ordenadas, mais espontâneas, ou que vão se
35
Baseamo-nos aqui em Kofes (2001:154) que, considerando a História no seu fazer antropológico, chama a
atenção para o fato de que “pessoa também inclui personagem”, de modo que o “acesso à pessoa que viveu e
teve a experiência é mediado pelas narrativas de outros que falam sobre ela, criam a personagem”.
37
organizando no decorrer da narração à medida que as condições de comunicação vão sendo
preenchidas, como é o caso dos relatos orais.
Se quisermos adotar a perspectiva do construcionismo, poderíamos dizer que os
relatos orais reconstroem os fatos tornando-os conseqüentes em relação à crença de “como
as coisas deveriam ser”. O que vale também para os documentos que devem ter seu aspecto
ficcional considerado: eles tanto refletem normas sociais quanto são forma de conferir
sentido, dar coerência à experiência conforme intenções. Seguindo esta linha de raciocínio,
podemos afirmar que “o que realmente aconteceu” resulta, tanto no caso dos relatos orais,
quanto no caso dos documentos, de uma operação onde algumas facetas da situação são
amplificadas, outras são obscurecidas ou ainda definidas como irrelevantes conforme as
intenções de quem narra. Como exemplo, podemos tomar a construção dos fatos pelo
jornalista, supostamente baseada em “fontes” que assegurariam a facticidade objetiva da
explicação que ele dá ao fenômeno. Na verdade, a natureza das reportagens é construída.
Elas também se constituem a partir de uma interpretação do senso comum que profissionais
utilizam para transformar entrevistas, relatórios, depoimentos e observações em
classificações, em avaliações da realidade. Esse deslocamento na definição e uso dos
documentos foi fundamental para o nosso trabalho no que diz respeito a uma análise crítica
da qualidade e da representatividade do material recolhido.
Seja no relato oral, seja no documento impresso, os Piriás são sempre produto de
um processo interpretativo. O jornalista transforma uma parte desse produto em
representação do todo: eles passam a ser agressores ou vítimas típicas (figuras típicas). A
lenda faz a mesma coisa. O cordel também. Em todos os casos, o efeito é a mobilização da
opinião pública para um evento, para o crime, para o escândalo, para um problema social.
Cabe ao antropólogo que se vale de fontes tão variadas estar atento para não tomar por fato
interpretações peculiares do evento. São “fantasias”, as construções defensivas e
ornamentações dos fatos de Freud. Mas são reais, enquanto objetivam valores.
36
Interessa o
que elas permitem existir; a reorganização da experiência que elas possibilitam.
No caso da lenda contemporânea, o caráter retórico da diferença entre fato e ficção
torna-se ainda mais evidente. Estamos tratando de histórias que confrontam nossas noções
36
Sobre a cultura popular enquanto construto, interpretação e realidade, ver o excelente ensaio de Brückner
(1984).
38
de causalidade e nossa compreensão da ordem natural, realizam a sobreposição de dois
mundos: o cotidiano e o extra-cotidiano. Mas por isso devem ser consideradas “falsas
notícias”? Só por isso valem menos que os “documentos”, no que diz respeito à “verdade”?
A verdade é um conceito movediço. Além do mais, podemos argumentar que, se alguém
aceita a existência de uma determinada figura extra-ordinária (como é o caso dos Piriás das
lendas), então aceita simultaneamente o code com o qual esta figura age. E isso é que tem
“efeito de verdade” em se tratando de lenda.
É num sentido duplo que Jakob Grimm afirmou, em 1844, que a lenda possui
autoridade histórica”.
37
Elas tanto participam da história quanto têm origem no evento
histórico.
38
Fazem parte de uma constelação de formas narrativas que criam um sentimento
de veracidade e afinidade. O material recolhido em campo não foi, por isso, usado para a
reconstrução histórica (nem essa é tarefa da antropologia). O que procuramos é
compreender o papel e o peso da tradição oral no processo de engajamento no mundo. O
tema, portanto, é a narração com suas possíveis conseqüências em matéria de continuidade
e mudança.
1.2.2. O caráter dialógico do trabalho de campo
O campo foi visitado em intervalos variados e irregulares nesses dois anos do curso
de mestrado. O que não justifica classificá-lo como superficial. O curto tempo de cobertura
do campo foi compensado pela intensidade da experiência anterior que eu possuía. A
análise dos dados também se deu de forma intensiva mesmo antes do ingresso no mestrado,
pelo menos desde 1999.
39
Tive que investir na relação com as pessoas em campo. Todos os momentos de
interação tiveram qualidade e profundidade. O que não prejudicou o controle sobre a
geração e tratamento da informação oral. Pelo contrário, abriu-me os olhos para os fatores
que afetam a produção e o caráter dessas fontes e para a peculiaridade da relação entre
37
Apud Bennett & Smith (1996:xvi)
38
Para o fato folclórico como processo histórico cf. Jech (1993).
39
Nas palavras de Lüders (2000:391): “Se há uma convicção entre os etnógrafos é a de que a prática situada e
o conhecimento local devem ser adquiridos e então analisados apenas com base numa longa participação no
campo”.
39
informante e entrevistador. Uma relação que em momento algum concebe razão e
afetividade como instâncias antagônicas. Soube muito cedo que não teria como pensar o
sentido e a função da narrativa senão pela participação e análise in loco de sua incidência
(contexto), que se dá por meio de consciências individuais sociais. No meu caso, diria que a
participação foi – literalmente – o suporte da observação.
Toda a atividade de pesquisa se realizou a partir do acionamento daquele
background knowledge compartilhado do qual falei mais acima. Logo meus informantes me
fizeram entender que sem uma comprovação de minha participação e domínio desse
background, a performance não seria possível. Tive que acionar a emic perspective
aplicando-a a situações, atividades e ações necessárias ao andamento da pesquisa. O que
não quer dizer que tenha sido necessária a reconstrução de um verdadeiro estoque cultural
de conhecimento compartilhado para agir no todo do campo. Somente alguns elementos
desse (party embodied) conhecimento – em sua maioria da ordem subjetiva – pareceram ser
relevantes para a interação em campo. Não houve nenhum contato que prescindiu da
avaliação de meus interlocutores no que diz respeito ao que eu sabia” sobre o caso, em
que tipo de coisa eu acredito, como opero com os conceitos “verdade” e “mentira”, e
principalmente o que penso da “polícia” e de “gente endinheirada”.
Sem essas informações, não é possível a interação social em torno do tema Piriá.
40
Eu sempre tive que narrar primeiro, demonstrar que tinha “ouvido” a história e por isso
“tinha algo para contar” sobre ela. Contando o que eu sabia, comprovando o saber-ouvir e o
saber-viver que daí advém é que pude ter acesso às narrativas dos outros. Em momento
algum a necessidade da pesquisa foi argumento. A única necessidade reconhecida como
legítima, quando o assunto é Piriá, é a necessidade mesma de narrar.
Entretanto, depois de narrar (ou seja, colaborar com o que me cabia para as
condições de diálogo) sempre procurei controlar os efeitos de minha participação no
momento narrativo. Usei a estratégia do psicanalista de “pontuar”, oferecendo minhas falas
poucas como suportes associativos com a intenção de desencadear o processo de
rememoração dinâmica que envolve quase toda narrativa oral sobre os Piriás. Estimulei a
40
Sobre a qualidade da interação em campo ver Kendon (1990) e Gumpertz & Hymes (1964). Para uma
defesa da metodologia que adotei como necessidade da qualidade interacional do objeto de pesquisa, ver
Harper (2007), Goodwin (2000) e Muecke (1994).
40
livre expressão, mas sem me esquecer de introduzir, gradualmente, um conjunto
padronizado de questões de modo a assegurar a comparabilidade das narrativas.
Essa provocação e mesmo criação de oportunidades de interação sempre visou
apoiar as pessoas no seu processo de reconhecer-se no performance right necessário ao ato
narrativo. A decisão de narrar e a forma como se narra sempre dependia da avaliação
daqueles que estavam presentes, variando conforme a expectativa de pessoas em diferentes
locações. Sempre há uma certa expectativa quanto à significação do acontecimento. Uma
expectativa que pode ser apreendida quando a pessoa fala” alguma coisa sobre o caso.
É como se essa primeira “fala” tivesse o poder de ir desencadeando, acelerando e mesmo
esquentando o debate. Com pouco tempo, as pessoas se inflamam, se soltam e começam a
“agir” interessadas em participar na construção da versão coletiva do acontecer “histórico”.
As falas se iniciam desconfiadas, submetidas a uma rigidez aguda no que diz respeito à
forma e à coerência. À medida que a participação se torna mais efetiva, as falas se livram
desse controle gido e transformam-se em falas mais espontâneas, submetidas ao clima da
discussão.
No final, o que se tem sempre são narrativas com aquela mesma dimensão episódica
e fragmentária que marca a experiência contemporânea, repletas de jogos de linguagens
onde diferentes tipos de experiências são aproximadas, enredadas numa teia discursiva de
amplitude sempre crescente. Por isso as “entrevistas” foram sempre muito longas. Ao falar
dos Piriás as pessoas acabam falando da cidade, da violência, da criminalidade. Narram
outras histórias cujos temas são aqueles mesmos valores que sustentam as narrativas sobre
os dois irmãos; histórias em que são valorizados o trabalho, a coragem, a honra e a palavra
empenhada. Fala-se de Bin Laden e dos Estados Unidos; da época em que o Exército vinha
pegar “homem preguiçoso para levar pro fogo da guerra”; de benzedores e curandeiros que
ajudaram pessoas da cidade; e de outros muitos e variados casos de polícia. O que perpassa
todos esses relatos parece ser a discussão de crises nos momentos de socialização.
Os relatos, na maioria das vezes, não apresentam os eventos num processo
diacrônico coerente. Carecem de consistência textual. Não têm um início, uma “fórmula de
abertura” por assim dizer. Simplesmente “começam” quando quem narra começa a registrar
o evento. Varia muito a escolha do dado que abre a narrativa e conta-se sempre com a
colaboração das demais pessoas presentes para sua continuação. Uma fórmula de
41
fechamento também não existe. Parecem estruturas sempre emergentes, sempre abertas,
sempre por terminar, como são as formas ordinárias de comunicação cotidiana. Constroem-
se por meio de aproximação de experiências. Um processo que é sempre de negociação de
“pretensões de verdade”, onde as pessoas vão encaixando fatos narrativos como num jogo
de Lego. As regras de formatação parecem invisíveis. Parecem ser mobilizadas
inconscientemente, onde a única aproximação possível é pela qualidade dos “fatos”
narrados, o que eles permitem ver, o que pretendem ensinar e, principalmente, como essas
composições se apropriam do evento.
O clima sempre é de comprometimento. O conteúdo dos relatos exige dividir
responsabilidades. Depende da certeza do compartilhamento de concepções, visões de
mundo. Pregam um saber-viver e exigem um saber-ouvir, porque ouvir é compartilhar
experiência, comprometer-se com o que foi narrado, tomar posição. São relatos que
anunciam as atitudes de quem narra frente às instituições, a padrões de conduta, habilidades
individuais e estratégias de socialização. Por isso, raramente tive contato com um
“narrador”, aquele prototípico. As pessoas resistem a falar dos Piriás assumindo para si
toda a responsabilidade do posto de narrador. Quanto mais gente para compartilhar a
responsabilidade sobre a narrativa, melhor, mais fluida a fala, mais rica, mais espontânea.
Por isso, menos que o comportamento cultural de um narrador, logo percebi que importante
era a narração como forma de interação, de debate, de engajamento no mundo. Entendi que
narrar um caso sobre Piriá é uma experiência que comporta uma parte de aventura pessoal,
mas que não tem como ser vivida sozinho. São muitas as emoções que o tema desperta. E
elas exigem o reconhecimento dos interlocutores, como partícipes e cúmplices morais.
Todos que participam do momento narrativo têm de demonstrar algum
conhecimento dos “fatos”. Esse conhecimento é avaliado segundo critérios que regem a
interação dos sujeitos no processo de narração. Em alguns momentos de interlocução,
aqueles que participam fazem das narrativas uma questão de crença. Nesses contextos,
qualquer demonstração de desconfiança quanto ao que é narrado pode colocar a narração a
perder. São momentos de narrativas absolutamente permeáveis ao sobrenatural, e onde as
noções de causalidade e racionalidade seguem outros princípios.
Já em outros contextos de interação em torno do caso Piriás, quem narra não
acredita na lenda, ou em parte dela. Faz questão de afirmar isso explícita e reiteradamente
42
no decorrer da narração. A estrutura da narrativa, mesmo composta coletivamente, também
se altera: está repleta de pontuações quanto à origem das informações, com a clara intenção
de transferir responsabilidades. As relações de causalidade também aparecem mais
marcadas, bem como as tentativas de “racionalização” dos eventos segundo uma outra
crença, aquela dirigida às forças da modernidade e da mudança. Poderemos explorar a
relação e mesmo a convivência desses dois momentos, dessas duas formas de como as
pessoas contam a história e decidem o que é uma boa história.
Importante agora é frisar que a narração de um caso de Piriá é um momento de
interação que não permite imparcialidade. Não pode haver “distanciamento objetivo”.
Inclusive, dar a entender que algo assim seria conveniente no caso de uma pesquisa sobre
os Piriás pode ser muito mal interpretado. A narração é, nesse caso, processo coletivo, onde
os interlocutores colaboram com fragmentos compostos de memórias, crenças, convicções
sobre o que “realmente aconteceu”. E o que “realmente aconteceu” depende de como o
evento é narrado, como se dá sua apropriação. No processo de apropriação que é a narração
da lenda, a contribuição de cada interlocutor vai sendo avaliada, cotejada com as demais até
se encaixar na narrativa final, alinhavada com um fio invisível que tentei identificar. Essa
narrativa composta por muitos atores constituiu um desafio para uma pesquisadora que
esperava do campo versões integrais e lineares, narradores articulados, audiências
identificáveis em sua participação quase muda, quase invisível. Cada narrativa que tive o
prazer de registrar caracteriza uma negociação e é nesse sentido que carecem de explicação.
De maneira que, se o campo não é suficiente para fazer o antropólogo, se este não existe
sem uma “descoberta etnográfica”, posso dizer que fiz a minha.
41
Agi como Dom Quixote, que, de início, se irrita com o jeito desordenado de Sancho
contar histórias: entrecortado de digressões e repetições. lhe restava então abrir mão de
seu ideal de narrativa linear, inspirado na escrita, se quisesse “ouvir” os casos de seu
escudeiro (Cervantes de Saavedra, 1978:109-111). Inicialmente, o fui capaz de
reconhecer embora tenha sido alertada para isso pela leitura de Simmel (1999) que a
41
depois de “descobrir” a lenda como resultado de um processo coletivo de narração é que tive acesso ao
trabalho da antropóloga e folclorista húngara Linda Dégh, que analisa a lenda contemporânea como resultado
da expressão de opiniões conflitantes. A análise da natureza polifônica da lenda, realizada por Dégh, volta-se
para seu interesse muito forte no processo de manutenção da identidade coletiva e mesmo no pressuposto da
existência de uma memória coletiva. Para atender seus objetivos, Dégh (2001) parte da associação lenda e
crença que discutiremos no capítulo seguinte.
43
experiência de sociabilidade engendra formas, no sentido de que permitem que a vida social
seja configurada, formatada por meio de um processo criativo de permuta de significados.
A sociabilidade que marca o momento da narração sobre os Piriás conta com essas
projeções de experiência pessoais na história, com as pausas no enredo para as remissões a
situações do momento, com uma margem de negociação no que diz respeito às avaliações e
valores com os quais uma narrativa é composta. Narrar é, neste caso, oportunidade para
participar da produção pública de opinião, não da produção de opinião para um público. Ao
contrário do que entende Habermas, a produção de uma esfera pública ainda se faz, a
espontaneidade social na produção de sentido não morreu. Na narração das histórias de
Piriá, a interação é marcada pela dialogicidade. A verdade narrativa é construída dialógica e
polifonicamente, onde é constante a preocupação com as conseqüências da fala, com sua
conotação moral, e onde a indisposição para dividir responsabilidades simplesmente
interrompe o processo de negociação, impede a narração.
As lendas sobre os Irmãos Piriás configuram, por isso tudo, um espaço
comunicativo para a crítica pública das instituições e aos interesses privados da forma
como os mesmos são organizados. Trata-se de uma racionalidade comunicativa, uma forma
de lidar com reivindicações valorativas que exige que o antropólogo, ao se voltar para as
lendas, se ocupe mais da fala que da língua. Por isso, o que tive oportunidade de registrar
foram leituras concretas dos eventos, costuradas em declarações individuais ou
reconstruídas no nível da “comunidade interpretativa”.
Por fim, vale repetir: minhas estratégias em campo sempre falharam quando
procurei confirmações para minhas hipóteses ou informações e fatos que corroborassem
minha percepção das coisas. Errei quando considerei as narrativas como simples fonte de
informações. O tempo passado no campo era inútil toda vez que queria fazer da pesquisa
uma atividade de mera informação, fora da vida cotidiana. Como bem disse Augé
(1997:81), “a natureza do diálogo é função do objeto de pesquisa”. Por isso tive de
participar de fato dos eventos narrativos, submeter-me a trocar informações e, por fim,
entender a narração como forma de participação na elaboração de uma experiência comum.
44
Excurso: Antropologia depois do “fim da teoria”
Parto do pressuposto de que fazer “ciência social” é estudar sistematicamente uma
realidade que é única com a intenção de produzir um objeto inteligível, já que o real não se
a pensar se não for condensado, seja na forma de narrativas, seja na forma de conceitos,
o que Heinrich Rickert chamou de “síntese da realidade”. Vejamos o que quero dizer com
isso.
As implicações do movimento pós-modernista para a noção de ciência social são
evidentes. Os princípios pós-modernos de incerteza ou melhor, de certeza da
inacessibilidade do real culminaram em críticas de ordem epistemológica que invalidam
todo e qualquer esforço de generalização. Os filósofos da linguagem declararam a
impossibilidade de expressão dos fatos: nunca podemos dizer nada verdadeiro porque a
linguagem é auto-referente e, por isso mesmo, incapaz de alcançar a realidade. Foi a partir
desse raciocínio que boa parte dos profissionais da antropologia passou a identificar a sua
disciplina como disciplina literária: os valores da antropologia como ciência social foram
substituídos pelos valores da literatura, aquela que se dedica ao estudo de textos e cujo
pressuposto é a “certeza” de que não se pode fixar o sentido objetivo a um discurso; apenas
sua interpretação subjetiva. O resultado é uma espécie de teoria da relatividade absoluta que
sentenciou o fim da teoria nos estudos antropológicos.
Assim, as etnografias passaram a ser entendidas como reduções da diversidade e da
complexidade histórica e cultural. Com isso, a rejeição de qualquer coisa que se aproxime
da idéia de princípio de causalidade”. Segundo essa orientação, ao pensamento é vetada a
possibilidade de identificar ao acontecimento um “centro”, ou seja, uma causa invariante. É
nesse sentido que podemos dizer que essas “novas certezas” aplicadas à antropologia
acabaram desaguando em solipsismo teórico. Toda teoria tornou-se suspeita, que todas
elas partem do pressuposto de que entre variáveis relações essenciais que podem ser
generalizadas, que por sua vez constituem “centros” identificáveis dos fenômenos em
questão.
Daí para a recusa do pressuposto de que algo como a ciência ou a racionalidade
exista, e que esta se expresse no método científico, foi um pulinho. De cega do
modernismo no status especial do conhecimento científico passamos a um ceticismo
45
fundamental (em Foucault, eu diria hostilidade até) em relação à ciência. Enquanto Lévi-
Strauss e outros se definiram como caçadores da verdade do mito, os pós-modernistas vêem
a ciência e a idéia de método, em si mesmos, como mitos. Assim sendo, o conhecimento
científico não difere de outras atividades humanas: é sobredeterminado pela cultura que o
produz. O que vemos através dos óculos da ciência como sendo “realidade” é, antes, uma
construção sócio-cultural, exatamente como o é a arte ou o texto literário. Por isso a ciência
não constitui acesso direto, muito menos privilegiado, à realidade como quiseram os
modernos. Ela é uma maneira de falar, de classificar e de agir como tantas outras, e que tão
somente é tomada como privilegiada porque “funciona”, à medida que, produz (torna real)
categorias.
Essa radicalização do caráter de constructo fechado numa espécie de “prisão da
linguagem” tem a etnografia em conta apenas como representação.
42
Após o banimento de
todas as determinantes causais, uma espécie de determinismo lingüístico parece se instalar
quando a realidade passa a ser definida como produto da linguagem. E se a língua é o
fundamento do mundo, não existe etnografia, já que, enquanto estamos dentro de uma
linguagem assim como dentro de uma cultura não podemos espiar o que fora dela.
Tudo o que fizermos vem culturalmente, já que cultura tornou-se um conjunto de hábitos
espontâneos tão profundos que somos impossibilitados até de examiná-los. É o argumento
que protege de qualquer crítica a teoria s-moderna se é mesmo de uma teoria que
estamos falando.
São vários os autores que insistem na impossibilidade de se separar fase da pesquisa
e fase da apresentação.
43
E desde então acreditamos que não como separar observação
de teoria, uma vez que os fatos são mera matéria prima a ser trabalhada e conformada na
narrativa. Desde o primeiro minuto da pesquisa, o problema da interpretação se impõe de
forma absoluta que é impossível tomar a linguagem da pesquisa como literal e
referencial. A relação essencial entre pesquisa empírica e produção do texto etnográfico é
de (con)fusão, porque contato com “o outro” implica necessariamente a produção imediata
de diálogos (ou seja, textos). Ao concluírem, portanto, que estabelecer fatos é um processo
42
Sobre a desintegração da autoridade etnográfica ver Clifford (1998) e sua caçada aos “elementos míticos”
da etnografia.
43
Cf. Marcus & Fischer (1986), Clifford (1998), Rosaldo (1990).
46
estafante, dada a complexidade do mundo real, não são poucos os que optam por desistir de
tentar organizar os fatos, ou seja, desistem da “ciência”.
No caso, a relação referencial possível entre narrativa e realidade sequer é
mencionada. O problema do uso da intertextualidade (narrativas referem-se umas às outras;
não à realidade) também não. No fim, o que sempre é interpretado é o “efeito de verdade”
dos textos, assim como o conhecimento que se constrói a partir deles é uma espécie de
“efeito de conhecimento”. O que os antropólogos produzem não é ciência, ainda que se
ocupem de causas e da elaboração de conceitos. Seus textos são meras lentes através das
quais a realidade pode ser vista “com outros olhos”, sendo úteis tão somente enquanto
possibilitam a experimentação do que é o “saber local”.
44
Constituem a massa sobre a qual,
então, os artífices pós-modernos trabalham para desvendar um esforço inútil de “relato do
saber científico ocidental” com o objetivo único e exclusivo de precisar seu estatuto.
A contra-face desse desespero teórico-metodológico é o “realismo ingênuo” de que
falava Dilthey: a crença na capacidade da ciência para reproduzir o real na sua integridade,
seja na narrativa antropológica, histórica ou sociológica. Assim, tomemos o virtuoso
caminho do meio do qual falam os chineses. Com Rickert (1961) entendo o real como algo
“irracional”, no sentido de que nenhuma narrativa é capaz de esgotá-lo. Contudo, não
dispomos de outra forma de abordá-lo senão por meio da narrativa histórica para Rickert,
antropológica para mim –, narrativas que configuram uma síntese da realidade – um
“conceito de realidade”, como Rickert preferia dizer cujos elementos fundamentais
devem ser selecionados. Seja na história, seja na antropologia, tratamos de
individualidades, o que não significa dizer que a antropologia ou a história deixem de ser
ciências. O foco está na diferença e no particular, mas sem abdicar do conceito ou da
etnografia – mais uma vez, uma síntese da realidade – como instrumento para operar
totalizações.
Fundador de uma corrente fundamental da tradição das “ciências culturais”
(Kulturwissenschaften), Rickert ensina que não dá para entrar em crise (as crises de
paradigma, de representação, da autoridade etnográfica) toda vez que nos damos conta de
44
Essas experiências seriam válidas apenas quando utilizadas em outros diálogos, onde texto e intérprete
poderão transformar-se. nesses autores especialmente em Capranzano (2004) uma apologia radical da
autonomia do texto, com suas possibilidades ilimitadas de interpretações mediante a referência a outros textos
(intertextualidade). A caça a ambivalências dos mesmos se faz através do uso do texto contra ele mesmo
(desconstrução).
47
que a História não converge para um telos. Antes, ela produz dispersão, particularidades,
sociedades e culturas singulares. Mas se o esforço de identificação sujeito-objeto é a fonte
de todas as crises, se toda interpretação está aprisionada a seu tempo e o distanciamento não
tem qualquer serventia, porque continuamos fazendo ciência social? Em outras palavras: se
a “fonte primária” da ciência que quero praticar são os textos e todas as interpretações são
arbitrárias, porque continuar interpretando? Esse sentimento, que diz respeito diretamente
ao meu objeto de pesquisa, pode ser resumido nas palavras do próprio Rickert (1961:134-
135):
“Tão logo é pensado até suas últimas conseqüências, o historicismo [...] revela-se uma forma de
relativismo e de ceticismo, e, como qualquer outro relativismo, se for levado a efeito de forma
conseqüente, só pode conduzir a um total niilismo”.
Para o caso da antropologia, basta substituir “historicismo” por “pós-modernismo”.
Malinowski, matemático de formação, insistiu num conceito científico de cultura quando
detectou na ciência etnológica um défice de observação. Todo o “mito do trabalho de
campo” foi narrado por ele para suprir tal défice. O mesmo background empiricista
orientou o funcionalismo quando da escolha a dedo de objetos que se submetiam à
observação de regras (matemáticas), normas e quantificações. O modelo de ciência ali era
único: fazer ciência, assim como fazer antropologia, era buscar leis universais. Mas
existiria apenas um modelo de ciência? Apenas um modo de fazer ciência?
Decerto que não. Provavelmente, Rickert entenderia a “narrativa antropológica” da
mesma maneira como entendeu a “narrativa histórica”. Veria nela uma ciência, já que ela
elabora e opera conceitos cuja função é reduzir a complexidade do real, possibilitar que ele
seja pensado, apreendido. E o fato de os conceitos da antropologia fazerem referência a
realidades investidas de valor, não é empecilho algum, já que ao cientista que se ocupa com
os fenômenos culturais cabe reconstituir “individualidades”, e não elaborar leis gerais. Em
outros termos, o que Rickert (1921:231) ensina para a história, valeria para a antropologia:
“O problema da conceituação histórica está [...] em se é possível um rearranjo e uma
simplificação científica da realidade sem que, simultaneamente, dela se perca como é o caso
das ciências naturais a individualidade, e, todavia, não se forme uma mera ‘descrição’ de
fatos, a qual ainda não deve ser vista como uma exposição científica”.
48
Sob o prisma de Rickert, de fato as etnografias continuam a ser entendidas sim
como reduções de complexidade histórica e cultural, tal como denuncia o movimento pós-
moderno. Redução, porém, num sentido positivo, pois é exatamente como síntese de uma
realidade que uma “narrativa antropológica” permite a apreensão do real. Nem a história,
nem a antropologia, desde que compreendidas como ciências individualizantes,
preocupadas com particularidades, precisariam lançar mão de métodos ou conceitos
generalizantes (como fazem as ciências naturais) a fim de afirmar sua cientificidade. O que
não significa dizer que a exposição antropológica se confunda com uma mera descrição,
como querem os pós-modernos. Ao descrever seu objeto, o antropólogo tem de relacioná-lo
a um contexto, tem que estudar as redes causais que a ele se relacionam sem cair no
equívoco durkheimiano de supor que falar em causalidade significa necessariamente falar
de “leis”. A atração da outra margem também é fatal: o nominalismo pós-moderno e sua
condenação de toda investigação de conexões causais.
Sempre haverá um princípio de “seleção do essencial” a partir de valores, uma vez
que o antropólogo nunca estará em condições de isolar todas as causas de um evento ou
processo social. O que o antropólogo faz é selecionar e analisar as que considera
significativas. E não problema algum nisso se nos colocamos do lado de Rickert, para
quem a história não deixa de ser ciência porque o historiador se deixa guiar por valores
quando compõe suas “exposições históricas”. Assim, a etnografia deve ser entendida como
um “conceito de uma dada realidade”, um conceito que, por sua vez, é síntese daquilo que é
essencial no real, uma síntese obtida à custa de esforço sistemático de compreensão-
explicação de uma particularidade comparável a outras.
Tal como Gellner (1992), não quero aqui insistir numa oposição absurda entre
racionalidade e cultura a partir do momento que identifico o fazer antropológico” como
algo que é ao mesmo tempo cultural (é e está em uma cultura) e cognitivo (sistemático).
Penso que, quando sabemos que os resultados apresentados ao fim de uma investigação têm
algumas de suas raízes em convicções ou consensos sociais, isso não nos obriga
necessariamente a declarar tais resultados como inúteis. Quando reconhecemos que o “fazer
antropológico” está aninhado em uma cultura, isso não deve significar uma declaração de
guerra explícita à possibilidade de organização do conhecimento sobre um dado fenômeno.
49
O significado e os valores da “objetividade” podem ser conflitantes com relação a outras
normas epistemológicas, mas nenhum deles tem a ver com irracionalidade.
Devemos atentar primeiramente para o fato de que diversas formas de
racionalidade; e, segundo, que cada uma delas opera com pressupostos culturais
diversificados. E é aqui que volto ao meu objeto de pesquisa: as lendas contemporâneas
sobre os Irmãos Piriás que me propus a pesquisar como uma daquelas formas de
racionalidade, que operam com valores e que constituem também “sínteses da realidade” à
qual se referem. Resultam daquele esforço contínuo e ininterrupto de apreensão do real que
condiciona nossa vida. Nesse sentido, o que realmente importa não é se Piriás, polícia e
fazendeiro eram tudo o que se diz que eles eram. O que realmente importa é o fato de se
acreditar que foi deste ou daquele modo que tudo aconteceu.
Esta investigação também é outra daquelas formas de racionalidade. Todavia,
diferentemente da outra (dos “nativos”), ela opera com outros valores: tem que considerar o
peso das ideologias, dos valores culturais e jogos em favor de interesses que concorrem na
produção de um trabalho como este. Não poderia ser de outra forma, depois de Foucault e
sua Microfísica do Poder. Um trabalho acadêmico configura-se sempre como uma forma
de “produção da verdade”, como função de um poder capaz de criar sua própria
legitimação. O que não dispensa a necessidade de uma atenção especial para com as
condições de elaboração das suas hipóteses. Por isso, procurei estar atenta aos “efeitos de
realidade”, especialmente porque o tema são discursos, meus e dos outros.
50
2. HOMO NARRANS
Segundo o folclorista americano Alan Dundes (1971:21-36), narrativas como as
lendas contemporâneas se ocupam com questões que dizem respeito a problemas sociais e
às formas de percepção desses problemas. São, por isso, capazes de alterar a percepção dos
mesmos. O problema social ao qual as lendas sobre os Irmãos Piriás se referem é sério:
experiências de abuso de poder patronal e, principalmente, policial. É esta experiência que
a lenda torna narrável, dizível. Ela atrai a percepção pública para aquilo que parece ter sua
origem na dificuldade desse grupo operacional em cumprir sua função: no caso, a
instituição policial, em vez de defender os cidadãos, emprega sua força para proteger
interesses privados da elite da cidade. Nas lendas, é este abuso da força policial que motiva
a (re)ação dos Irmãos Piriás, ao mesmo tempo em que justifica a aprovação da conduta dos
dois a partir de uma certeza moral e um senso de legitimidade que as próprias lendas
constroem. São narrativas que promovem sujeitos à exemplaridade.
Esse ajuste da ação dos irmãos dentro do contexto da lenda é mais do que
simbólico. Age no sentido de provocar aqueles que participam da narração para a
importância dos valores que guiam o comportamento do indivíduo em sociedade. Por isso,
o que a lenda realiza é uma verdadeira tecitura de valores a partir do conflito dos Piriás com
o poder institucionalizado com a finalidade de validar ou não, motivar ou não
comportamentos. Mais que defender um costume e uma tradição, o que essas narrativas
permitem é a reflexão quanto à necessidade de uma redefinição das normas de conduta, dos
limites do poder policial e patronal a nível local. Em última instância, são relatos que
constituem uma forma de repensar (e mesmo de resistir a) imposições culturais.
É nesse sentido que narrar é algo tipicamente humano.
45
Narração como forma de
reconhecer um acontecimento, ou seja, torná-lo passível de um diagnóstico nos termos
repertoriados pela sintaxe social e cultural. Por meio de narrativas convertemos
experiências vividas em categorias deslocáveis, transportáveis. Narrar sempre implica ou
uma ampliação, ou uma adaptação, ou uma atualização semântica na atribuição de
significado às ações dos outros. Portanto é sempre uma operação analítica no sentido que
confere (no duplo sentido da palavra) significados, privilegiando alguns em detrimento de
45
O impulso para narrar seria algo natural, no entendimento de Hayden White (1992).
51
outros conforme uma dada expectativa acerca da significação do acontecimento. Nesse
sentido, uma narrativa não apenas recria, mas cria o passado. O passado não existe sem as
narrativas que se constroem sobre ele.
46
Conhece-se narrando. Portanto, estudar narrativas
orais é pesquisar o modo como uma experiência emerge da ação narrativa. E fazê-lo em
termos antropológicos depende da transferência do foco da narrativa para a narração.
Narrativa como ação social, no sentido de Luckmann (1996:97): uma ão que tem
lugar na realidade cotidiana e cujo sentido se dirige a outros homens, seus atos, sua
conduta. Esta abordagem concebe o sentido do relato como governado pela ação de narrar,
ao mesmo tempo em que admite que é o sentido que motiva a narração. O sentido que as
lendas analisadas por mim parecem localizar na conduta de seus personagens. Foi o mesmo
Luckmann (1996:40-44) que afirmou que o que a narração mediatiza é a conduta, à medida
que informa e permite a discussão sobre ela. Conduta como ação interpretada pelos outros
como encarnação de uma ação conformada às regras sociais comunicadas no processo de
socialização dos indivíduos. A seguir este raciocínio, podemos dizer que as condutas
avaliadas pelos narradores de lendas sobre os Piriás são julgadas a partir de uma espécie de
projeto típico (no sentido de ideal) de ação com uma perspectiva prática muito evidente.
Narradas nas lendas, as ações desses personagens imprimem, mais que expressam, uma
maneira de comportar-se.
Toda a comunidade de comunicação é espectadora desses personagens e procura ler
em seus movimentos o que eles experimentam, o que ocorre com eles. É o que Luckmann
(1996:44) chamou de “indícios de conduta”, a partir dos quais é constituído o sentido.
Esses indícios são captados, colocados em relação com outros atos, máximas morais,
legitimações, adquirindo assim um sentido reflexivo, ampla e socialmente relevante. No
momento da narração, esses personagens são transformados em tipos (membros de um
dado segmento social). O que não quer dizer que essesmodelos” ou “papéis” sejam
mecanicamente sancionados pela lenda. Nela o comportamento desses tipos é moldado a
partir de considerações práticas, contingências, estratégias, que governam o momento
narrativo. Esse momento narrativo, por sua vez, é composto por uma pluralidade de atos
narrativos individuais, atos de produção e interpretação, realizados a partir de um mundo
social compartilhado que parece pedir pela ação regulativa da lenda, na medida em que esta
46
Narrar vem do latim narrare, que se remete a gnarus cuja origem é gnosis. Cf. Nicolaisen (1996:97).
52
reivindica legitimação para noções específicas de justiça, honra, valor e trabalho. Uma
reivindicação que a lenda permite que seja feita já que ela se oferece como meio de
condensar na esfera blica o problema social vivido pelos Piriás, tão significativo na
experiência cotidiana das pessoas que narram essas histórias.
As lendas constituem, assim, parte da tradição, uma vez que se apresentam como
resultado de esforços intersubjetivos de articulação de temas, sentimentos e vivências. Elas
possuem uma relação interna com valores, encerram uma avaliação (mais que uma
construção) da realidade. Por isso são interessantes, menos como comportamento cultural
de um narrador específico, do que como uma forma de ação social de caráter coletivo. Não
são constructos sem conseqüências, sem qualquer efeito na realidade exterior. Um efeito
que não é o puramente cômico no sentido literário, com a reconciliação de todas as
contradições e tensões no final da história. As lendas vão além disso. Por isso, ao contrário
do que afirmou Lévy-Bruhl (em seus Carnets) a respeito dos mitos, não é necessário
esforço algum para se interessar por elas.
2.1. Narrativa como objeto da folclorística
Devemos nos redimir do erro de atribuir ao folclore o estudo de fenômenos sociais
não escritos, não formalizados, não institucionalizados (isto é, a maior parte de nossa
existência). Para além do registro inconsistente, a folclorística promoveu avanços teóricos
inegáveis que podem complementar, principalmente no que diz respeito às lendas
contemporâneas, a abordagem antropológica.
Como disciplina, a folclorística teve dificuldades diante da necessidade de incluir
em seus estudos o que poderíamos chamar de “folclore contemporâneo”. Um passo como
esse implicou a reavaliação da categoria “sobrevivências”, seu objeto anterior, e, por
conseguinte, levou a uma completa reconfiguração do conceito de tradição.
47
O foco
transferiu-se para o processo interativo por meio do qual o fato folclórico é comunicado,
todavia a partir da ênfase no micro-contexto como marca da performance theory que
47
Sobre essa dificuldade da folclorística e o que sua superação significou em termos de revisão teórica e
metodológica, ver Orso (s/d), Weber-Kellermann (1985), Neumann (1993), Bendix (1995) e Fine (1998). Para
o conceito de tradição e sua revisão ver Honko (1993) e Glassie (1995). Sobre a idéia da “tradição em ação”,
ver Barry McDonald (1997).
53
passaria a dominar, nos anos 1970, os estudos de folclore como um todo, em especial nos
Estados Unidos.
Para esta folclorística, o narrador continua a ser o personagem que merece maior
atenção. O interesse de análise se concentrava, então, na maneira como um indivíduo ouve
ou narra alguma coisa como algo dependente do seu placement no grupo. O que não queria
dizer que a pesquisa devesse se fechar no interesse de produção de conhecimento sobre
uma comunidade tradicional específica. O objetivo passou a ser situar o folclore como parte
do sistema social na sociedade contemporânea, onde narrativas pudessem ser vistas como
radiografias (imagens) da estrutura social, conectadas à realidade institucional daqueles que
narram, mas agora no que diz respeito à sua congruência com a base moral da sociedade.
Não mais como reflexo, mas instrumento de transformação da ordem.
A folclorística passou, assim, a examinar o fato folclórico considerando a
diferenciação e a mudança. Uma abordagem que exigiu ainda mais da disciplina, que tem
em comum com a antropologia essa redefinição constante. E a motivação veio da tradição
européia de estudos de folclore, a primeira a chamar a atenção para a narração como evento
social de base tanto material quanto expressiva. Era necessário passar de uma análise
literária, estática, para uma visão dinâmica. Para o folclorista americano Gary Alan Fine
(1998:345) a narrativa popular, como todo fato folclórico, pode “support the change or may
act as a force to retard that change”.
Teorias foram elaboradas para demonstrar como o contexto sobredetermina o
nascimento da lenda contemporânea, demonstrando que essas histórias podem ser tanto
produto do mundo moderno quanto sobrevivência nele. Daí o atual interesse da folclorística
em examinar os valores que compõem essas lendas para além do contexto social e dos
canais de comunicação. A disciplina seguia a tradição de olhar preferencialmente para a
identidade, vale dizer, para o “outro” dentro da própria aldeia. E nesse olhar para si, não
teve como continuar cega para a necessidade de se analisar as reações a essas histórias e o
caráter negociável das “verdades” nelas contidas.
48
As narrativas orais em geral, mas em
especial as lendas contemporâneas, passaram a ser consideradas como meio e resultado de
interação social, como uma forma de transação social (Nicolaisen, 1996:95), enquanto
48
Para Georgina Boyes (1996:42), narração envolve necessariamente articulação e validação de uma
“verdade”.
54
expressão das dúvidas sobre o mundo moderno e avaliação das estratégias de engajamento
neste mundo.
Os folcloristas perceberam que lendas contemporâneas colaboram na definição de
um dado problema social. Poderiam, desta forma, ser analisadas como processo político, no
sentido que a folclorista americana Blumer empresta ao termo: social problems as
products of claims-making activities, in which people call others’attention to social
conditions.”
49
Não que a folclorística passasse a advogar para as lendas contemporâneas um
ultimate power. No caso das lendas sobre os Piriás, elas não foram capazes de iniciar, por
exemplo, um movimento popular que reclamasse os direitos de liberdade e proteção de todo
cidadão amparado pelo Estado de Direito, e muito menos o de promover uma alteração no
ethos policial. Não é essa a questão da folclorística. O que os folcloristas fizeram foi apenas
reconhecer que uma narrativa popular não é, em si, inerentemente “libertária” ou
“conservadora”. Ela constitui-se de idéias objetivadas através da experiência cotidiana das
pessoas e é, por isso mesmo, capaz de provocá-las nem que seja no sentido de uma reflexão
para a qualidade e para as conseqüências dessas experiências.
50
Na verdade, a folclorística
permite que tais histórias sejam consideradas como um expressive enviroment onde
interlocutores negociam significações. Nas palavras de Fine (1988:349) são um emotional
enviroment for a variety of political theorics” que “provides a recipe for behavior”, ou seja,
in effect, an obdurate psychosocial reality in wich social actors operate”.
A folclorística – em especial a americana que havia enfatizado em sua análise a
recepção das narrativas, sua produção, sua unidade e coerência de significado, se dedica
agora à análise de narrativas orais como forma de engajamento no mundo. Veja bem que a
idéia não é mais a de construção, mas de participação por meio da ação criativa no mundo
em que se vive. As lendas como modo de participação descrevem o mundo que se percebe
por meio da ação nele.
O acento é na diferença da funcionabilidade interacional, não na unidade do
significado da narrativa. O que não significa uma escolha entre significado e função (o que
seria uma falsa escolha). Uma folclorística que se ocupa do fato folclórico contemporâneo
não tem como estabelecer uma diferença entre a narrativa oral e ação simbólica. Na
49
Apud Best & Horiuchi (1996:123).
50
Para uma crítica da idéia de narrativa popular enquanto capaz desse ultimate power, ver Fine (1998:349-
350).
55
verdade, a opção analítica tem qualidade moral e prática ao mesmo tempo. Como
dissemos, a narrativa, mais que reflexo da realidade, é instrumento ativo capaz de interferir
na realidade social onde ela surge (mesmo que psicológica e emocionalmente), criando
disposições e sensibilidades. São “textos” usados para criar tanto um senso de
pertencimento muito específico quanto para estabelecer um campo de luta social e política.
Daí essa necessidade de valorização da ão criadora do fato folclórico face à vida
cotidiana.
Com base nessa corrente de análise é que considero as lendas sobre os Piriás como
instrumentos para desenvolver definições, tópicos, temas e opiniões por meio dos quais
indivíduos podem descrever e discutir experiências de abuso do poder patronal e policial.
Contudo, é exatamente neste ponto que esbarrei numa limitação da folclorística.
As lendas contemporâneas tornam narrável um tipo específico de experiência. O
que força o reconhecimento de que narradores e audiência são algo mais que meros
depositários passivos de perspectivas ou visões de mundo. Eles são ativos constituintes.
Apesar de reconhecer isso, a folclorística continuou dando ênfase à visão de mundo e
significados compartilhados como marca dos estudos da cultura popular em geral.
Mas até que ponto essa visão de mundo é mesmo algo dado a priori? Até que ponto
partir desse a priori não era ceder a uma idéia de tradição como algo inerte, que se
preocupa em se manter e conservar? Eu entendia o significado por detrás das lendas dos
Piriás como fruto de negociação e revisão constante que se faz do mundo com a ajuda
dessas mesmas lendas. Não que quisesse negar que elas comportassem uma espécie de
mensagem cultural elementar, em larga medida fosse parte de um sistema de mbolos
culturais, elas mesmas “símbolos culturais”. Só procurava não desconsiderar seu valor
enquanto práxis discursiva e social, que, como os demais discursos, “interferem” na
realidade.
Para levar a cabo a discussão que pretendo desenvolver nesta dissertação considero
a necessidade de se abordar o folclore em geral como um processo dinâmico de
comunicação (Ben-Amos, 1979). Ou seja, as lendas como formas simbólicas produzidas e
comunicadas no contexto social; mas elas mesmas participando da manutenção desse
contexto social. Refiro-me, aqui, a Bauman (1986:113):
56
“Narrative here is not merely the reflection of culture, or the external charter of social institutions, or
the cognitive arena for sorting out logic of cultural codes, but is constitutive of social life in the act of
storytelling.”
Assim, as lendas modernas não apenas “reproduziriam” cultura e sociedade. Narrá-
las constitui, antes, uma práxis discursiva, mediante a qual se selecionam símbolos
disponíveis, sendo os mesmos reformulados no ato mesmo de narrar. Narrar lendas
contemporâneas, portanto, seria um ato de comunicação onde experiências são “reduzidas”,
isto é, passam a constituir uma forma de reorganização da realidade (e não a sua
substituição). Nelas são classificados acontecimentos e personagens específicos que a
lenda, em si, é uma forma de exposição de tipos de comportamento. Nelas são prescritas
tipos de relações. Narrar tais histórias significa converter categorias em elemento social
central”, como diria Turner, de maneira que podemos reconhecer um aspecto operacional
desses atos simbólicos. Por meio delas engaja-se na realidade social, pode-se manejá-la.
Nas lendas que escolhemos para analisar, categorias são acionadas visando a
articulação de um discurso repreensivo frente a determinados tipos de comportamento. São
histórias que permitem uma “experimentação indireta” das conseqüências da não
adequação a um determinado padrão de conduta. Constituem verdadeiros relatos das
conseqüências funestas da conduta amoral e configuram uma oportunidade de expressão
controlada do comportamento moralmente inadequado e de experiência das conseqüências
do mesmo. Constituem prática de um exercício de classificação moral. São, por isso,
enunciados prescritivos e avaliativos que valorizam saberes encarnados nos personagens
que as lendas apresentam. Por meio da construção da narrativa sobre esses personagens
específicos, competências são avaliadas a partir dos critérios de eficiência (qualificação) e
de justiça (sabedoria ética).
51
Narração constitui um processo de legitimação desses enunciados (o que alguns
chamariam de opinião, ou consenso) que permite circunscrever áreas de atuação, modos de
51
Nas histórias, os irmãos são mateiros hábeis, práticos e combativos, detentores da simpatia do povo da
região como homens corajosos e destemidos, encarnações efetivas dos valores fundamentais da comunidade
de comunicação. Eles detêm um saber-fazer. Contra eles "imagina-se" uma polícia inoperante e pouco
estratégica. Urbana, essa polícia não domina o ambiente hostil do cerrado como os Piriás-heróis e sai em
desvantagem no combate. À extrema mobilidade e vantagem adaptativa dos irmãos, as lendas contrapõem a
imobilidade e ineficiência de uma polícia da qual a comunidade desconfia. O mesmo ocorre no que se refere à
sabedoria ética (o saber-viver) dos irmãos e à ausência desta sabedoria na polícia.
57
comportamento e seus critérios de avaliação. Exatamente como no caso das lendas sobre os
Piriás, cujas figuras representam o sucesso ou o fracasso da integração às instituições
estabelecidas. Ao mesmo tempo em que nessas lendas critérios de conduta são
estabelecidos, as condutas que ali se realizam ou podem ser realizadas são avaliadas.
A inspiração e muito do argumento para a minha análise das lendas como meio de
comunicação de mensagens morais vem do trabalho de Johannes Stehr (1998), que defende,
inspirado pela sociologia de Valentin Volosinov, que todo ato de comunicação produz
moral. Para Volosinov, a moral é constituída no uso da língua (ou seja, cabe à fala), de
onde Stehr concluiu que as lendas urbanas contribuiriam com seu quinhão na tarefa de
constituição dessa espécie de esquema moral” necessário. São histórias que dramatizam
acontecimentos considerados relevantes, e que reclamam por um posicionamento. Elas
tornam perigos visíveis, realçam sua importância enquanto avaliam condutas.
52
Escolhem
por tema algo que diz respeito às preocupações específicas de quem narra e de quem ouve,
e permitem o debate da ação cotidiana mais comum dos indivíduos no cumprimento de seus
papéis sociais. Os temas são assim úteis para o discurso moral cotidiano. Por isso surgem
nos contextos informais e privados.
53
E como o são histórias compostas para depois
serem narradas, são anteriores às ideologias. Compõem-se na narração mesma, de forma
que composição e narração configuram um ato único.
Para Stehr, nas lendas contemporâneas (assim como no discurso mediático comum)
os símbolos relevantes para uma dada comunidade narrativa são transformados no contexto
da experiência cotidiana pessoal.
54
Daí sua capacidade de interferir no cotidiano. É por
meio das imagens criadas nessas narrativas que o drama é “desenvolvido”. São sempre
“figuras” com qualidade dramática e emocional, que “espalham” estereótipos, matrizes
figurativas e também normas e valores como critérios de avaliação de situações, ações e
personalidades específicas. Constituem-se como potências significativas ao passo que se
configuram como significativas em si mesmas.
Percebe-se que o estudioso da cultura deve ir além da narrativa. Adotar uma
concepção que não separe a personalidade da idéia de agência moral. Sendo assim,
52
Para uma análise dessas lendas urbanas sob uma perspectiva antropológica de inspiração exclusivamente
turneriana, ver Rial (1996).
53
A vida cotidiana apresenta-se atravessada por essas histórias já que é freqüente o deslocamento das
questões que interessam para o “ambiente” das lendas.
54
Sobre o discurso mediático em sua propriedade de “produtor de mitos”, ver Barthes (1976).
58
pretendemos mais que uma análise da estrutura profunda da imaginação lendária. Vemos as
lendas sobre os Piriás como resultado de uma ação interessada em conferir significado a
eventos, validar direitos e papéis sociais e avaliar condutas.
2.2. Narrativa como objeto da antropologia
A narrativa oral é uma categoria que foi repertoriada pela antropologia de várias
maneiras. Como um produto da fantasia ou de fatos históricos. Como fato real e como
representação. Alguns se preocuparam com sua origem, suas variantes e sobrevivências,
enquanto outros perceberam que a narração tem um significado distinto em cada época, e
mesmo em cada circunstância em que ela ocorre. De um lado a valorização da narrativa; de
outro a preocupação com a narração e o contexto social em que ela aparece. E não foram
poucos os que se interessaram pelas narrativas enquanto capazes de inventar conceitos e
alterar a realidade. foram consideradas dispositivo ritual, cuja eficácia se
condicionada a um determinado contexto, cujos resultados podem ser virtuais ou efetivos.
Houve também quem aplicasse à sua análise categorias literárias fechando os olhos à sua
especificidade e mesmo à sua relação com outras formas de expressão e narrativa.
Entre todas essas formas de abordar a narrativa oral há profundas divergências
teóricas e metodológicas. Primeiro optou-se por uma perspectiva genética, com a pesquisa
orientada para a origem de um determinado tipo de narrativa. As diferentes etapas de
formação do enredo, as transformações históricas dos motivos ao qual as narrativas faziam
referência foram pensadas como um princípio de explicação em que o essencial estava na
busca de um arquétipo primeiro. Cada versão era estudada isoladamente e cada narrativa
reduzida, ora a um acontecimento histórico, ora a uma prática ritual. E mesmo
reconhecendo que a narrativa pudesse agir, procedendo por adição com relação à realidade
na qual ela se introduzia e que constituía seu embasamento, tudo não passava de uma
fantasia redundante, desprovida de significação intrínseca. A noção de uma narrativa que
age como evitação das dificuldades de análise da narração em si não deixa de ser
engenhosa.
59
Depois, chegou-se até a falar do papel que as narrativas desempenhavam
efetivamente no contexto social e institucional. A narrativa passou a ser vista como parte de
um conjunto mais vasto que é a vida social enquanto sistema de instituições, valores,
crenças e comportamentos. Sua verdade deixou de ser uma simples explicação abstrata para
se tornar justificativa e apresentação da ordem tradicional numa forma codificada, fácil de
transmitir e de entender. As narrativas orais viriam, assim, a satisfazer uma necessidade
geral de estabilidade e regularidade das formas de interação, ao mesmo tempo que
permitiriam aos indivíduos se ajustarem, submeterem-se às mesmas normas e visão de
mundo. O desejo seria por equilíbrio funcional. Portanto, a busca antropológica visava o
sistema que conferiria inteligibilidade às narrativas. Um sistema que não estaria mais no
texto, na sua organização aparente ou oculta, mas nos contextos sócio-culturais onde as
narrativas apareciam. Narrativas expressariam a vida social; e até permitiriam, no caso de
algumas delas, que a vida social funcionasse.
Uma outra vertente da antropologia logo cuidou de tomar a narrativa oral como
símbolo, utilizado na acepção literária. Narrativas em seu caráter mítico, original ou a
fantasias imaginativas daqueles que narram. Foi quando nas narrativas orais passou-se a ver
um modo de expressão diferente do pensamento conceitual, onde todos se perguntavam
sobre o sentido e o alcance dessas criações. A psicologia, a fenomenologia, e uma
orientação francamente hermenêutica estabeleceram o mbolo como fio condutor desse
pensamento, uma unidade cuja função seria ligar entre si orientações opostas. Assim,
enquanto símbolos, as narrativas orais não representariam outra coisa. Elas se colocariam e
se afirmariam a si mesmas a partir do momento que reações e aspirações nelas se
projetavam, se objetivavam e se exprimiam na forma de imaginário. Sua linguagem seria
simbólica e imagética. Como símbolos, elas seriam capazes de se recarregarem de novas
significações, de incorporar comentários e interpretações com vistas à expressão simbólica.
O trabalho do antropólogo, portanto, seria agora o de análise das estruturas da narrativa,
abstraído todo contexto cultural, toda investigação de ordem sociológica ou histórica.
Daí a fazer da narrativa oral uma conduta verbal codificada, capaz de veicular
maneiras de classificar, de agrupar e contrapor fatos, de experimentar semelhanças e
diferenças não custou muito. Foi o momento de um Granet (1989; 1997) dizer que, no caso
da China, a lenda é o lugar onde se decifram os fatos fundamentais do pensamento coletivo,
60
e por isso, de certa maneira mais verdadeira que a história. Seriam exemplares do “fato
social total”, comportando em si, como expressão simbólica, o econômico, o político, o
estético, o ético. Das narrativas orais poder-se-ia partir para a descoberta de realidades
sociais e estruturas da mentalidade, já que haveria uma estreita solidariedade entre símbolos
e práticas institucionais, entre fatos da língua e estruturas mentais. Foi quando as narrativas
orais passaram a ser vistas como sistemas de comunicação, com categorias e estruturas a
resgatar. Sua função seria midiatizar um fundo semântico” (Ricoeur 1995:35; 1981), ou
seja, tornar tal fundo “acessível a uma compreensão mais segura”. Seriam, assim, um modo
de produção de sentido, uma maneira de provocar significações, interpretações. Signos, no
sentido de Pierce: algo que representa algo para alguém em algum aspecto, cuja
significação depende do contexto de aparição e da expectativa do receptor. Portanto, o ato
de narrar lendas sobre os Piriás deveria ser analisado como um trabalho de simbolização.
Até que a antropologia autorizou-se a interpretar narrativas orais como símbolos que
orientam a conduta. O ato de narrar tais histórias pôde então ser identificado como ação
simbólica, ou seja, ão significativa, uma força social que intervém, um ato cultural. Os
relatos orais em si podiam, enfim, ser entendidos como “símbolos actantes”: formulações
tangíveis de idéias (experiências fixadas em formas concretas, como diria Boas), o lado
visível da concepção que cada uma delas visa tematizar.
Uma perspectiva que teve sua inspiração primeira em Victor Turner. Narrativas
orais enquanto símbolo, no sentido turnerino, são comprometidas com o interesse de
reafirmação dos princípios morais vigentes, conferem forma à realidade tanto social quanto
psicológica dos membros da comunidade narrativa,
55
colaborando na manutenção de
sensibilidades específicas necessárias para a avaliação de dados tipos e conduta. Podem
induzir disposições, e, nesse sentido, conectar forma e sentimento ativando emoções e
sensações, apresentando-se como verdadeiros exercícios de significação da experiência de
determinados comportamentos.
Narrativas como representação ou como comunicação? Parecia ser a escolha que a
antropologia me impunha quando do início de minhas reflexões teóricas. Mas, antes de
escolher, teria que testar as duas proposições. Decidi começar pela “representação”. A que
noção de mbolo aderimos quando entendemos narrativas como “representações” ou
55
Sobre o conceito de comunidade narrativa, ver Lima (1985).
61
“reflexos” de fenômenos sócio-culturais? Na certa nos aproximamos de Lévi-Strauss
quando nos deixamos seduzir pelas facilidades de se pensar o valor dos termos conforme
sua posição na estrutura. Nos termos do mestre francês, as lendas sobre os Irmãos Piriás
utilizariam formas simbólicas disponíveis na construção de uma realidade específica, um
repertório social de símbolos.
Poderíamos ceder aqui à tentação de afirmar que aqueles que narram essas histórias
agiriam como o “bricoleur” de Lévi-Strauss, no seu trabalho com escombros e restos de
sentido, onde arranjos importam mais que conteúdo, que, no caso, o que interessa é a
persistência da estrutura. Contudo, a matéria-prima para aquele que “cria” uma lenda, como
é o caso das dos Irmãos Piriás, não são apenas “motivos” que poderiam ser adaptados,
atualizados segundo uma demanda social ou cultural específica, a partir dos quais se
formariam composições sempre novas no sentido do estruturalismo lévi-straussiano. O
processo de tradicionalizção no caso das lendas sobre os Piriás é antes um continuum,
sempre renovado e renovável.
As lendas sobre os Piriás não se conformam simplesmente a uma tradição de
histórias pré-existentes, sobredeterminadas por uma estrutura. Diríamos, antes, que elas
criam uma tradição sempre nova à medida que respondem aos discursos com os quais
dialogam. A apropriação de recursos simbólicos através da narração desse tipo de história
se faz, em larga medida, pela produção de significado no sentido mais radical. Trata-se de
um processo mais abrangente do que a mera reconstrução de temas.
Se no mito, segundo Lévi-Strauss (1975; 1984), a estrutura salva o acontecimento,
não é este o caso das lendas sobre os Piriás. Nelas, uma preeminência do evento sobre o
sistema. Elas dispõem do acontecimento para desvelar-lhe o sentido num trabalho de
interpretação por parte da comunidade de comunicação que visa conferir identidades,
projetar noções, legitimar discursos, avaliar condutas. Ao contrário do que acontece na
bricolage, a reutilização de símbolos nessas lendas implica um acréscimo de significado.
Ocorre na prática uma “regulação sentica do conteúdo” (Ricoeur, 1969; 1981), uma
reinterpretação dos eventos onde os fatos “acontecem” segundo uma dada compreensão
hermenêutica que revela uma unidade de intenção a governar tais narrativas. Ao serem
narradas, essas histórias não são simplesmente decodificadas. Delas é (re)tomado um
62
sentido com a intenção explícita de distribuição de papéis, reforço de autoridade,
determinação da qualidade das relações pessoais, de compreensão de si.
Enfim, no mundo das lendas sobre os Piriás, mbolo e ação simbólica aparecem
vinculados; ações e experiências são carregadas com significação e sentido. Todos os
elementos da ação e da experiência gravitam em torno desses centros de significação
chamados símbolos. Nos termos de Soeffner (2000:180), as lendas que analisamos nesta
dissertação representam uma espécie de sistema de orientação de sentido” das interações
vis-à-vis. Enquanto ações simbólicas, o que essas lendas fazem é afectar (affizieren) nos
interlocutores o que elas representam (Soeffner 2000:188). Constituiriam assim “marcos de
memória” para as experiências que elas re-apresentam.
Fiel à abordagem antropológica da narrativa, posso considerar, sim, as lendas sobre
os dois irmãos como mbolo ou como ão simbólica. Todavia, no sentido de que são
formas especiais de Appräsentation, ou seja, elas são presentificação ativa da experiência
na percepção. São o objeto tangível, observável, mas que não deixa de sugerir seu reverso,
apresentando dois “dados” em uma única unidade de consciência.
56
As lendas de que
tratamos, enquanto textos narrados, são a parte presente, experimentada de forma direta no
cotidiano, mas que evocam uma noção “abduzida”, que entendo ser a noção de ordem
moral ideal que transcende de alguma forma o cotidiano. Essa ordem não é descrita nas
lendas, mas faz-se presente por meio delas. Tal ordem é uma construção social, interpretada
a partir de concepções morais compartilhadas; a parte do símbolo ou da ação simbólica que
“realmente” interessa no caso das lendas. Sem esse “fundo transcendente”, esses relatos
perderiam todo o poder de simbolizar. É a serviço dessa epifania a ordem moral
idealizada – que as lendas sobre os Piriás se apresentam. Por meio das lendas, esta ordem se
impõe como presença real, que as narrativas produzem efeitos naqueles que com elas
entram em contato. Assim, as lendas acabam por constituir uma espécie de corredor que
conduz de um estilo de experiência a outro.
57
56
Trata-se do “princípio de apresentação” que Husserl elabora em suas Meditações cartesianas. Na
Appräsentation constitui-se um par o presente e o não-presente num processo de “síntese”. A idéia se
aproxima do “processo de abduçãocomo descrito por Peirce: a inferência primeira que ocorre do lado da
representação. Sobre o tema ver Santaella (1995) e Soares de Souza (2006:168).
57
Para a discussão sobre o mbolo como “pontes entre ‘níveis de realidade’ distintos” ver Schutz e
Luckmann (1984:195-2000). Sobre o rito como “forma de ação simbólica”, ver Luckmann (1985)
63
O significado decisivo da lenda como símbolo estaria na reação social que ela
motiva, na sua influência sobre as concepções e ações daqueles por ela afectados. As
narrativas que analisei de fato configuram uma teia de argumentos, metáforas e figuras
acionadas com a intenção de garantir a invariância de experiências específicas, idéias e
concepções validadas, condutas e disposições idealizadas. Elas transportam elementos de
uma moral que procura instituir sua própria legitimidade.
A narração de uma lenda dos Piriás coloca lado a lado coisas e acontecimentos
separados no tempo e no espaço, numa espécie de montagem que confere uma
corporalidade dupla ao acontecimento: ao mesmo tempo em que nas lendas coisas
concretas, personagens reais são colocados em ação, essas mesmas coisas e personagens
passam a “simbolizar” para além delas mesmas. Em histórias assim, feixes de ação,
motivos, pessoas, objetos, tornam-se símbolos cuja função é articular. Unir não apenas as
partes que compõem a narrativa, mas todos que participam do momento narrativo, na
medida em que a visão de mundo dos que ali estão é afetada num esforço de confirmação
da legitimidade de uma dada ordem moral. As lendas se fundam numa audição
compartilhada. Um processo que (con)funde experiências num feito homoneo que atrai
para si outros contextos. É como se em histórias assim fossem fundidas “apresentação” e
“representação” onde imagens tradicionais são adaptadas a situações modernas numa re-
configuração que faz das imagens escolhidas pontos de cristalização – digamos assim – das
intenções daqueles que narram. A regulação do sentido por parte da “tradição interpretante”
(Ricoeur 1969:44) é contínua. E, ao contrário dos mitos, encerrados no nível estruturado
que protege seus fundamentos estáveis, como quis Lévi-Strauss, as lendas sobre os dois
irmãos dependem da aprovação daqueles que participam de sua narração e manifestam por
isso uma variedade extrema em função da personalidade dos interlocutores.
É preciso ressaltar ainda que lendas desse tipo constituem a melhor expressão
possível de uma experiência que não foi vivida por todos os que narram (como queria
Benjamin). E o que interessa a todos os que narram essas histórias é a experiência do não-
reconhecimento social pela qual passam os Irmãos Piriás. Por meio das lendas, essa
experiência é reatualizada, presentificada, num processo de aproximação de uma
experiência extra-ordinária re(a)presentada na narrativa. A narração transporta aquilo que é
“relativamente desconhecido” (porque indizível) para dentro do “mundo da vida”,
64
permitindo a nomeação daquilo que foge da ordem considerada ideal pelos interlocutores. É
como se, por meio das lendas, a comunidade de comunicação ajustasse o foco, direcionasse
a atenção para o-que-realmente-interessa, o que deve ser experimentado, subjetivado.
Portanto, histórias que se constroem a partir da atividade interpretativa, ao mesmo tempo
que a provocam.
No caso das lendas sobre os Piriás, percebemos que as histórias sempre recuperam
acontecimentos, cenas ou figuras que podem servir a um “interesse de moralização”. São
narrativas que colaboram explicitamente na apropriação de significações morais, uma vez
que operam com conceitos morais específicos do público que delas compartilham. Histórias
que se apóiam em um tipo de moral que se pretende dominante, cuja base são definições
pretendidas inequívocas do que é comportamento aceitável ou condenável. Além disso,
induzem um conjunto de disposições morais-valorativas. Objetivam preferências morais”,
evocam sentimentos morais, dão provas da verdade moral daqueles que compartilham sua
narração. Enfim, se referem a princípios e valores da organização social, noções normativas
consideradas axiomáticas. Através delas, os narradores negociam com a substância moral
de sua cultura.
São, por isso mesmo, capazes de instruir um tipo específico de “competência
interpretativa” (Geertz 1968:109-110) que ocupa um lugar central na comunicação
cotidiana ordinária. Elas intensificam a consciência dos participantes da comunidade de
comunicação quanto à ordem moral “idealizada”, ao mesmo tempo em que provocam a
reflexão conformada por uma espécie de competência pública (no sentido de publicizada)
desenvolvida para a interpretação desse tipo de história. A narração acontece quando se
tem certeza de que se pode contar com a compreensão imediata da mensagem da lenda e
que ouvi-la resultará de uma tomada de posição quanto ao ordenamento moral que ela
postula. Uma capacidade que, como ensina Geertz, o é anterior à experiência coletiva,
mas produto dela.
Discordo de Geertz, todavia, no que diz respeito a seu interesse pelo texto, pela
narrativa em si, em detrimento do processo de textualização. O antropólogo evita as
questões sobre o ato de tecer significados, ou seja, sobre a narração. Mas, deixemos a
questão da textualização para depois e voltemos à reflexão sobre a qualidade de uma
análise simbólica das lendas sobre os Piriás.
65
Penso que esses textos constituem, sim, um reservatório importante e seguro de
recursos simbólicos ao qual se pode recorrer quando da necessidade de se (re)avaliar uma
determinada realidade. Uma “fonte extrínseca” de informações simbólicas decisivas para a
avaliação do comportamento daqueles que ouvem e contam essas histórias.
58
Mas não que
configurem uma prédica moral. Aqueles que compartilham lendas assim são “consumidores
táticos” no sentido de Certeau (1984): eles des- e recontextualizam formas simbólicas de
maneira que elas se tornem relevantes para eles próprios. Trata-se de pragmatismo muito
mais que de uma cultura de contestação.
As lendas sobre os Piriás configuram fontes simbólicas de concepções a partir do
momento que têm o poder de influenciar, modelar padrões de conduta, induzindo reações
ou sentimentos, desenvolvendo “suscetibilidades” a certas disposições morais, formulando
idéias de ordem quando transformam experiências inacessíveis, privadas, em coisas
observáveis, experimentáveis. Elas afetam cognitiva e emocionalmente. Narrar esse tipo de
história possibilita a conexão símbolo/comportamento em uma situação identificada como
sendo de desordem moral. As lendas são acionadas para competir num momento de
“afluência de significações” sobre um dado evento. Porque, se não é o consenso mental que
garante a harmonia (como quiseram os herdeiros do lendário Leviatã) cabe aos atores
recorrer a esse tipo de constrangimento por via sensorial.
Aqui nos referimos diretamente a Victor Turner e sua idéia do símbolo como algo
associado a interesses e propósitos, determinação de fins e meios. Se toda conduta revela
significados latentes, o “hábito” de narrar lendas como as dos Piriás é, no caso, uma
oportunidade excelente para a análise antropológica/simbólica na perspectiva de Turner. O
ato de narrar essas lendas é inegavelmente um “foco de interação”: pessoas se mobilizam
em torno delas. A partir daí, identificar-lhes a função de reforço das concepções do que
deve ser a ordem moral e social configurou-se quase que por si só. Nessas lendas são
dramatizados os conflitos com as normas de conduta consideradas ideais pela comunidade
de comunicação. Elas colocam em cena figuras específicas exemplares que permitem à
comunidade de comunicação reforçar modelos de conduta, avaliar expectativas morais.
Seus personagens interessam diretamente ao público no que diz respeito à sua conduta, à
sua maneira de agir, à qualidade de sua interação social e de sua socialização num dado
58
São os “modelos de” analisados por Geertz (1989).
66
contexto social. São histórias que “presentificam” normas, prescrevem condutas, buscam
conformar opiniões, reanimam valores e expectativas morais por meio de protótipos
negativos e positivos de conduta que demonstram o que acontece quando não se faz aquilo
que se deve fazer. A desgraça que se abate sobre aqueles que não agem como deveria é
descrita de forma detalhada com a intenção forte de provocar sensibilidades, emoções e
tomada de posição. Nos termos de Turner, os símbolos acionados pelas lendas dos Piriás
são “saturados de qualidades emocionais”, capazes de impregnar condutas e situações
sensorialmente.
Esses detalhes carregados de significata sensoriais intentam fazer “sentir na pele”,
mesmo que indiretamente, as conseqüências sempre dolorosas, cruéis e, sobretudo,
desonrosas do fato de não se agir como é moralmente esperado. Esse estimular de emoções
permite ver na narração um tipo de ação mais eficaz. Por isso, fiquei tentada a considerar as
lendas que analisei como formas condensadas de comportamento no sentido de Sapir,
que elas substituem à expressão direta dos comportamentos desviantes permitindo assim a
liberação da tensão emocional que tais comportamentos provocam. Conferem a tais
experiências realidade empírica à medida que destacam componentes da ordem social e
moral considerados relevantes. E, como “potências” que são, influenciam, afetam, indagam.
Seguindo esse raciocínio, acabei me aproximando cada vez mais da idéia de Turner do
símbolo como unidade de ação”. As lendas dramatizariam desvios de conduta, ao mesmo
tempo em que celebram de forma simbólica e dogmática os princípios e regras morais tidos
como “os mais corretos”. E fariam isso provocando “emoções”, ou seja, materializando a
cognição. Neste caso, podemos usar as mesmas palavras que Turner (1980:33) usou para o
símbolo: ele coloca “normas éticas e jurídicas da sociedade em estreito contato com fortes
estímulos emocionais”.
Sendo assim, as lendas configurariam objeto de constante construção cuja função é
manter os interlocutores perto da experiência que elas descrevem. Como mbolos, elas
tornam a possibilidade de “reação” aos desmandos da polícia, à arbitrariedade do
fazendeiro, à “coragem e senso de honra” dos Piriás algo sensorialmente perceptível
(Turner, 1974:45). São textos que materializam uma idéia, corporificam a ação que não
teve como ser experimentada em primeira mão. E como os símbolos turnerianos, são
forjados na experiência de vida, como dispositivos evocadores para despertar, canalizar,
67
domesticar emoções poderosas (Turner, 1974:59). Envolvem a totalidade da pessoa
enquanto expressão simbólica de interesses. Somente nesses termos que penso justificar-se
uma análise em termos de uma antropologia do simbólico.
No que diz respeito aos meus objetivos nesta dissertação, circunscrevo-me a Geertz
e Turner evitando aproximar-me demais de um tipo de análise puramente literária dos
textos, que se restringe ao estudo das versões em função do tipo de narrativa, seu gênero, da
personalidade do narrador, sua elaboração e transformação na literatura e na arte. Ou seja, a
narrativa oral analisada como pertencendo à mesma ordem de fenômenos que a criação
estética, poética e intelectual. Turner e Geertz me permitiram reconhecer que o interesse
maior destas narrativas está na relação que essas histórias têm com a vida cotidiana das
pessoas que as narram e com a interpretação que essas pessoas fazem do acontecimento no
qual tais lendas se baseiam.
Permanecendo no nível de análise da narrativa, cabe considerar ainda que uma
distância entre o acontecimento que acredita-se poder situar em sua origem e a série de
narrativas sobre os Piriás. Com Sahlins (2004:99-100) pode-se afirmar que a ficção não
pode ser separada da vida real, que a gica é ao mesmo tempo de significação e ação. E
as lendas agem, transformando assassinos de policiais em heróis, e o braço forte do Estado
em carrasco de civis; transformando o Caolho em atirador de elite, o fazendeiro ganancioso
em turco, dois irmãos em um. Investem os Piriás de grandeza em virtude da posição que
ocuparam na situação de confronto com a polícia, além de permitirem o deboche da
instituição policial. Se por um lado é consentida aos Piriás a “autorização” para fazerem
história (Sahlins, 2006:17), por outro, as lendas negam à polícia essa mesma autorização.
As conseqüências dessa atitude são as mais variadas e são elas que merecem a atenção do
antropólogo.
Contudo, acredito que não se trata, pois, de fundamentar a antropologia na história
(Sahlins, 1990), nem de realizar uma história cultural. Não pretendo estudar essas
narrativas como expressão do social, mas sim compreender o significado da ação de narrar
esse tipo de história. Não pretendo limitar-me ao estudo da narrativa como um modo de
conhecimento da cultura, tal como fez a antropologia no caso da língua. Gosto da fala, mais
que da língua. Não que pregue uma antropologia que não deva se interessar pelas maneiras
de se expressar em si. Mas gostaria de uma antropologia dinâmica que me possibilitasse
68
pensar a dinâmica da narração, sua transformação, como forma de ação. Lendas como
“ideologias”, quer dizer, como tipos específicos de “teorias” que as pessoas elaboram e
acionam para dar conta de si mesmas. Lendas como comunicação, mais que como
representação, livre da caça insana pelos “mais sábios” entre os locais e suas versões totais,
num retorno ao vício da copilação como explicação antropológica.
Uma antropologia que me permita analisar as lendas dos Irmãos Piriás enquanto
comunicação exigirá de mim um estudo dessas narrativas não a partir dos interlocutores
considerados como elementos separados uns dos outros, mas a partir dos processos de
interação no momento narrativo. Voltará meus olhos para uma forma de comportamento e
de sociabilidade. Forçará de minha parte o reconhecimento de que essas narrativas partem
de um repertório de meios teatrais e simbólicos, sim, mas que são usados, reconfigurados,
apropriados para servir a intenções específicas que vão desde o mero divertimento à
tentativa de limitar e reformular imposições culturais ou mesmo (re)definir e até
constranger autoridades.
Não se trata simplesmente do desejo de descobrir um comportamento autônomo e
politizado das “massas” como quiseram alguns historiadores da cultura ou mesmo um ou
outro antropólogo. Até porque não estarei lidando com “comunidade narrativa” enquanto
categoria não-diferenciada que se opõe à política ou à elite local numa ênfase demasiada na
coesão da comunidade que considero pouco produtiva em termos analíticos. Apenas penso
que, se narrar lendas não é um comportamento declaradamente “político”, isso não nos
autoriza a julgá-lo “a-político”. Não é à toa que o tema das lendas sobre os Piriás seja a
capacidade que aqueles aparentemente destituídos de poder têm de “forjar” autoridade
dentro da estrutura social. Nessa perspectiva, narrar uma história dessas ultrapassa de fato o
mero reflexo dos valores da comunidade de comunicação. Narrar passa a ser entendido
como desafio, com forte conotação política, e até mesmo uma declaração de hostilidade.
Cada oportunidade narrativa pode se tornar, de fato, uma provocação.
Procurei não ignorar as conseqüências do impacto dessas histórias sobre as pessoas
que fazem questão de narrá-las. Foi assim que consegui entender porque as pessoas hesitam
tanto antes de narrar; porque o cuidado e o vagar na avaliação dos interlocutores, porque a
necessidade de segurança quanto às possibilidades de controle dos efeitos da narrativa. O
momento narrativo de uma lenda de Piriá é um momento de compartilhar
69
responsabilidades, porque ali, naquele caldeirão de oposições e hostilidades “ilegais”,
condutas estão sendo avaliadas e posições assumidas a partir de um consenso moral que
toma forma no momento mesmo da discussão. Lugar de encontro e reconhecimento. Ali,
todos são “forçados” a se posicionar participando da construção da narrativa.
Não tenho como negar uma certa inspiração geertziana, no caso dessa busca dos
recursos comunicativos conscientemente empregados, o exame do comportamento público
em termos do que esse comportamento “diz”. Mas não estarei investigando o texto, sim a
narração no que ela comporta de sentimentos, motivações, valores e concepções de mundo
a partir de um approach à la Turner. Não pretendi uma “reconstrução” aos moldes de
Negara, onde as lendas apareceriam apenas como dramatizações de um ideal político,
representando uma “estrutura de ação” descrita como uma “constelação de idéias
cultuadas”, ou coisa assim (Geertz, 1980:135). Não possuo o talento prodigioso de Geertz,
a principal garantia da qualidade de sua análise cultural. Pelo contrário, identifico-me mais
com o estilo seminômade do pensamento de Turner, seu pensamento marcadamente
fracionário, uma certa veleidade teórica e metodológica.
Por isso, minhas hipóteses estão baseadas num corpo teórico de natureza plural. As
teorias antropológicas, como se poderá perceber, funcionaram no sentido daquele chart of
observation do qual falou Malinowski: permitiram-me mapear o fenômeno, indicar a
relevância presumível de determinados aspectos do objeto e até mesmo antecipar linhas de
investigação.
59
Entendo cada uma delas como passíveis de correção, complementação e
mesmo substituição. Isso porque não penso que seja vão o esforço de organizar algum
conhecimento sobre o ato de narrar embora saiba que não tenho como apresentar evidências
empíricas inquestionáveis das atribuições de intenção nas declarações daqueles com os
quais interagi em campo ou das interpretações que fiz de suas reações e emoções.
Concentrei-me na ação humana de ouvir e contar histórias. E o descartei a possibilidade
de aproximação de alguma outra teoria, desde que ela tivesse algo a dizer sobre essa coisa
tão antiga e que tanto me encanta.
59
Apud Nadel (1987:61).
70
2.2.1. O dito e o feito: narrativa e narração
“Uma interpretação antropológica precisa levar em conta que o dito é também feito;
é também ação social.” Dito e feito. Seguindo o conselho de Mariza Peirano (2006b:5):
para além da narrativa, me ocuparei também da narração.
O exercício analítico que proponho fazer consiste em recuperar duas categorias
antropológicas a partir dos dados recolhidos em campo e tendo em vista as questões que
elegi como mais relevantes para meu trabalho. As categorias em questão são mito e rito. A
primeira refere-se à esfera do pensamento, da representação, da simbólica, portanto, da
narrativa, da lenda;
60
e a segunda, à ação, à comunicação, à pragmática: a narração, o
momento narrativo.
61
A dicotomia “ritual versus representação” é antiga e, vez por outra, ressurge nas
análises antropológicas: coloca-se de um lado as ações, de outro, o pensamento. E, apesar
do esforço da antropologia em harmonizar teoricamente o viver e o pensar, não raro, o
reconhecimento de que o mito é “bom para pensar” implica uma certa depreciação do rito.
O ideal seria uma pesquisa que reconhecesse mito e rito como fenômenos interligados, e
que fugisse à tentação de dissociar os dois fenômenos.
62
É este, poderíamos dizer, o pano
de fundo de nossa análise das funções múltiplas pragmáticas e rituais/simbólicas das
lendas sobre os Irmãos Piriás enquanto fabricação negociada, um evento narrativo especial
onde são apontados e revelados valores de uma dada comunidade de comunicação.
Se, como Peirano (2003, 2006a), evitarmos uma definição absoluta de ritual e
considerarmos que ele não se separa de forma absoluta de outros comportamentos sociais,
estaremos então em melhores condições de pensar a narração das lendas sobre os Piriás em
seu aspecto ritual, passível de interpretação em sua arquitetura, eficácia e propósito.
Sendo assim, definimos o momento narrativo sobre os Piriás como um tipo de
evento (um evento narrativo), um momento especial de participação emocional, de
60
O parentesco entre lenda e mito só se dá no sentido de que são ambos gêneros narrativos. Estamos
conscientes de que o mito conta com regras formais próprias, além de uma intenção diferente da lenda. E
embora o mito também demarque o sentido de ações situando-as numa escala de valores, a lenda é mais
“aberta”, está mais sujeita a objeções e contestações. De maneira que os personagens da lenda são menos
modelos que objetos de contestação.
61
A homologia explicitada na equação rito:narração/mito:narrativa serve aqui exclusivamente a fins
heurísticos.
62
Segundo Peirano (2003), Malinowski, Leach e Tambiah fazem desse reconhecimento o ponto de partida de
sua antropologia.
71
comunhão afetiva (ou melhor dizendo, moral); um momento em que valores são acionados
e transmitidos, relações sociais são analisadas, reproduzidas e a realidade reorganizada. A
princípio, a associação narração = evento ritual é útil.
Se para o antropólogo, o ritual é recriação da experiência (leia-se, da realidade) em
termos morais, não teremos problema algum em identificar para a narração das lendas
sobre os Piriás um caráter ritual. Ao narrar a história dos dois irmãos o que os interagentes
fazem é reformular a experiência de forma que o que “deveria ter sido” venha a prevalecer,
mesmo que em um outro nível de realidade. No fim da narração (ou seja, do ritual), aos
Piriás é sempre concedida alguma forma de reconhecimento, de estima social, o que
corresponde a uma recriação da realidade.
Também Mary Douglas (1976:82) identifica o ritual como o lugar onde a
experiência é formulada, por enquadramento. Ou seja, a função precípua do ritual segundo
ela é controlar a experiência direcionando a atenção para “o-que-realmente-interessa”. No
caso das lendas sobre os Piriás, “o-que-realmente-interessa” é a experiência do não-
reconhecimento pela qual passam os dois irmãos. É esta experiência que os interlocutores
formulam no decorrer da narração da lenda e é ela que deve ser avaliada, controlada,
quando se narra uma lenda sobre os Piriás.
As lendas sobre os Irmãos Piriás fazem parte do conjunto de representações
simbólicas cotidianas” (Douglas, 1976:80) daqueles que compartilham dessas histórias. Ou
seja, constituem um mecanismo de enfoque, possuem uma função de enquadramento, de
seleção das experiências nas quais os interlocutores devem se concentrar. Elas alertam
quanto a um tipo especial de expectativa, criam uma disposição receptiva. Por meio delas,
pode-se alterar a percepção do que realmente aconteceu, segundo princípios seletivos
acionados no decorrer da narração.
A opinião de Douglas é compartilhada por Durkheim (1989), para quem os ritos
também criam e controlam a experiência. Durkheim pretendeu demonstrar como o ritual se
incumbe da representação de valores socialmente significativos. E não nos é difícil
reconhecer quais seriam os valores representados nas lendas sobre os Piriás, como teremos
oportunidade de demonstrar. De fato, durante a narração valores morais são “criados” e
inferidos pelos interlocutores. As lendas falam desses valores como algo situado, fonte da
dignidade, e até mesmo da identidade de personagens (e narradores). Por meio das lendas,
72
ensina-se que valores morais têm sua origem na experiência; eles devem ser vividos para
serem reais. E o serão no ritual, que segundo Durkheim, tem a capacidade de imprimir os
sentimentos sociais nos indivíduos.
Nesses termos, diríamos que as lendas são o medium de representação e reprodução
da moralidade do grupo. A narração dessas lendas enquanto rito, portanto, consolidaria
sentimentos que alimentam normas e valores fundamentais da comunidade narrativa. No
decorrer da narração, a matéria vivida por Sebastião e Orlando é moldada, exibida ao
exame minucioso dos interlocutores da lenda, e que procedem a um verdadeiro escrutínio
moral. Os valores que governam os Piriás enquanto protagonistas das lendas são, assim,
transmutados em conhecimento partilhado no decorrer da narração.
Aqui tocamos na questão da qualidade narrativa da experiência moral e sua relação
com a transmissão de valores. Um tema para a antropologia da experiência de Victor
Turner.
Turner realiza uma análise do processo ritual como lugar onde valores são inferidos
ou mesmo criados pelos atores durante a performance.
63
O processo ritual consiste em
enfatizar, exagerar, acentuar aspectos da experiência cotidiana; uma verdadeira
reconfiguração dos elementos do cotidiano. O ritual deriva, pois, do drama social, ao passo
que este é a janela para os valores da sociedade (Turner, 1982:43). Consiste na transposição
“ficcional” do drama social por meio da narrativa. É nesse momento de expressão – ou seja,
de performance que a experiência se torna iminente (Turner, 1996). Dito de outra
maneira, a experiência só se completa através de uma forma de expressão.
Quando o assunto é experiência, a inspiração de Turner (1982) vem do pensamento
de Wilhelm Dilthey, para quem as estruturas da experiência não são meramente cognitivas,
mas também, e antes até, afectivas (no sentido de que afectam). Toda experiência, segundo
Dilthey, é um conjunto de impressões diversas de fatos (externos ou espirituais)
organizados discursiva e conscientemente. No ensaio Dewey, Dilthey and Drama, ao qual
poucos dão a devida atenção, Turner analisa os cinco momentos que constituem a Erlebnis
63
O termo performance em Turner pertence ao contexto geral de atos da fala em suas conseqüências; o que
pede uma análise da eficácia da ação social. Por isso, Turner sempre a linguagem em ação e nos permite
identificar a narrativa como gênero performativo eficaz. Se Lévi-Strauss viu no mito o acesso à estrutura
(inconsciente), para Turner só se encontra a estrutura por meio do rito.
73
para Dilthey.
64
Depois de (1) acontecer ao nível da percepção, (2) imagens de um dado
evento são evocadas (frisadas em seus contornos de forma aguda) permitindo que (3)
emoções associadas a ele o evento possam ser revividas. É assim que (4) o evento
passado é presentificado, vale dizer, abre-se a possibilidade de descoberta e construção de
seu significado. A experiência finalmente (5) se completa através da forma de expressão.
Vida, experiência da vida e sua narrativa: a distinção que Turner deve a Dilthey.
Dizer que a performance realiza a experiência implica em dizer que a narrativa,
enquanto gênero performático, é igualmente capaz de suscitar experiência. A descrição do
evento do drama social é tensa, capaz de produzir nos interlocutores uma espécie de
assombro diante de um cotidiano que, ali, naquele momento “liminar”, passa a ser
“estranhado”. O cotidiano “estranhado” no ritual de narração das lendas sobre os Piriás é
marcado por uma desordem moral, descrita nas histórias como algo intolerável. É para esta
desordem que a narração da lenda direciona a atenção; é ela que é especificada, focalizada,
tematizada.
Por meio da narração dessas histórias, tensões sociais são dramatizadas e ganham
em concretude, podem ser reorganizadas na análise (e auto-análise) que os interlocutores
fazem da conduta dos atores/personagens. Ali, intenções, estados mentais, crenças morais
são inferidas, uma “virtude moral” é compartilhada.
Se reconhecemos, nos termos de Turner, uma qualidade ritual no momento narrativo
de uma lenda sobre os Piriás, podemos falar desse evento narrativo como ocasião especial
em que a experiência dos dois irmãos é colocada em ressonância com a experiência
daqueles que narram suas aventuras e desventuras. Podemos ver como valores literalmente
surgem no espaço de interação. Ali objetivam-se noções morais.
Todas as três características que Turner identifica no ritual (fixos, rotinizados e de
relevância para os nativos) podem ser encontradas guardadas as devidas proporções na
modalidade de evento ritual à qual nos dedicamos nesta pesquisa. Os momentos narrativos
são marcados por uma certa fixidez. Constituem-se de seqüências que seguem uma certa
ordem, um quase-padrão, onde a comunicação se dá segundo um arranjo sui generis que
64
Para uma discussão sobre o que a antropologia da experiência de Turner deve a Dilthey, ver Dawsey
(2005).
74
procuraremos identificar.
65
Trata-se de momento relevante para a comunidade de
comunicação que reconhece sua qualidade especial.
Os trabalhos de Edmund Leach, acreditamos, o, por sua vez, suporte à idéia de
que a comunidade de comunicação encontra a matéria de seu vínculo moral não apenas na
significação dessas narrativas, mas no ato mesmo de narrá-las. Ao focalizar mito e rito em
ação, Leach eleva a um novo patamar a reflexão antropológica a respeito, levantando
importantes considerações sobre o aspecto ritual da comunicação” e da ação como meio
de transmissão de conhecimento. Depois de retratar os kachin em sua luta por
reconhecimento num contexto em que “apreço é produto cultural” (Leach, 1996:23), ele
chega à conclusão de que o comportamento ritual público sempre afirma algo sobre o status
social do ator. Além de reconhecer alguma diferença entre “conteúdo pragmático” e
“conteúdo de comunicação”, Leach fala ainda do processo de simbolização como afirmação
de uma idéia e não como descrição da realidade (Leach, 1983:140,152,163).
As implicações de tais proposições para nosso objeto são várias, e dizem respeito
diretamente ao par narrativa/narração e sua relação com a experiência de valores. Se
aplicarmos os termos de Leach ao nosso objeto, além de fundamentarmos de forma mais
consistente o fato de que as lendas não dizem sobre valores, mas também fazem valores,
podemos concluir que a narrativa constitui um símbolo público da participação numa ordem
moral ideal. Narração, portanto, como afirmação simbólica de uma ordem moral
idealizada. Participar de um momento narrativo sobre os Piriás implica compromisso moral
por parte dos atores, de modo que, a narr-ação em sua qualidade ritual se refere a um status
moral publicamente firmado e reconhecido. Não como participar desses eventos sem
envolver-se de alguma forma, sem se posicionar moralmente, sem confessar quais valores
guiam nossa conduta. A qualidade (ou função) moral da narrativa é derivada das
circunstâncias rituais em que esta narrativa é composta, ou seja, da própria narr-ação.
A perspectiva de Leach nos mostra que a lenda deve ser analisada, sim, como aquilo
que sintetiza o conceito socialmente valorizado do que é moral. Mas não se deve esquecer
que ela é fruto de um contexto, ou melhor, de uma pragmática comunicacional, organizada
segundo expectativas morais em torno do que os atores aceitam como legítimo. uma
65
A etnometodologia de Bergmann (1987) nos permitirá analisar como, nesses momentos narrativos, define-
se o que é preciso dizer para ser entendido; o que é preciso escutar para poder falar. Trata-se portanto de uma
performance a partir de uma dupla competência: o saber-dizer e saber-ouvir ordenando o “ritual”.
75
axiologia que determina, em cada oportunidade de narração, o que é socialmente valorizado
no contexto social. É essa axiologia que se estrutura no decorrer da narração.
O interesse exclusivo pela narrativa, sem a preocupação de esclarecê-la a partir de
seu contexto cultural, ou desconsiderando a narr-ação, já induziu muita gente a falar do dito
como forma simbólica em seu sentido raso; uma maneira figurada de apresentar uma
“verdade” que caberia ao intérprete expor. Ocupar-se apenas do “texto” significa apoiar a
concepção de narrativa em um modelo ideal, renunciando à tarefa de análise da ação no
contexto cotidiano. O pesquisador pode ver-se perseguindo ressurgências de temas, pistas
de suas transformações, obcecado por identificar a filiação de cada versão, descrevendo a
carreira literária de uma variante ou convicto da sabedoria que ela exprime de forma
cifrada. Fechar a análise na narrativa, não raro, implica apenas na exegese de uma alegoria;
um exercício de substituição de dados do texto por equivalentes simbólicos.
É preciso ir além da decifração do “texto” (que limita a pesquisa ao quadro formal
da narrativa); investir também numa análise (o mais minuciosa possível) da organização
narrativa dos relatos bem como da arquitetura da narração. Associar análise do conteúdo da
narrativa, do jogo de correspondências simbólicas, das relações semânticas, dos níveis
múltiplos de significação implicados nas lendas, da hierarquia dos códigos utilizados na
mensagem a uma análise do momento narrativo, do jogo de temas, associações,
aproximações e contrastes que determinam a mensagem e sua inteligibilidade no contexto
de comunicação.
Penso que o ideal seria uma análise que permitisse reduzir ao máximo a distância
entre mito e rito, representação e comunicação, narrativa e narração. Mas como disse,
trata-se de um ideal. Receio não ter condições de estabelecer o equilíbrio desejável entre
aqueles dois momentos de análise. Sendo assim, tive que escolher. A opção pelo primeiro
programa – uma análise centrada na narrativa revelaria problemas diferentes, demandaria
métodos diferentes, suporte teórico diferente daqueles que desenvolvi nesta dissertação.
Dediquei a maior parte do meu tempo à comunicação de valores entre pessoas, portanto, à
narrativa como resultado da narr-ação. Pareceu-me ser esta a vocação primeira da
antropologia, que no início de sua história (teórica), entendeu, como Malinowski (1976),
que não existe significado isolado da ação.
76
Excurso: Estudo da narrativa popular depois da “morte do narrador”
Entre os que se dedicaram ao estudo da narrativa encontram-se nomes como os de
Vladimir Propp, Julien Greimas, Roland Barthes, Claude Brémond, Gérard Genette,
Umberto Eco e Paul Ricouer. Cada um, a sua maneira, definiu o que entende por narrativa a
partir de uma teoria semiótica diferente. De Eco e sua “semiótica da comunicação” a
Barthes e sua “semiótica criativa”, passando por Genette e Brémond e a “semiótica
estrutural”. Uma diversidade teórica que, ao mesmo tempo em que permite a apuração e
ampliação do debate a esse respeito, pode levar o pesquisador a confundir perspectivas
divergentes. Ao pesquisador cabe o ônus de escolher aquela com a qual tem mais afinidade;
e, sobretudo, aquela que melhor “funciona” no estudo do fenômeno que pretende explicar.
que minha preocupação é menos a narrativa que a narr-ação, a teoria que
suporte à minha análise vem da sociologia da comunicação de Thomas Luckmann,
66
a qual
articulamos aqui com a teoria da narração na sociedade moderna desenvolvida pela
folclorística americana, especialmente na figura da etnóloga e folclorista Linda Dégh. Essa
combinação me afastou das abordagens desenvolvidas pelos autores clássicos citados
acima.
Entretanto, há um clássico que merece atenção especial quando o assunto é narrativa
popular na contemporaneidade: Walter Benjamin. O Narrador é um texto canônico,
referência obrigatória quando se fala de narrativa num contexto de modernidade. Uma
análise detida do argumento de Benjamin permitirá deixar claro como concebo o objeto
desta dissertação, em especial no que diz respeito à relação entre narração e transmissão de
experiência.
Como disse, cresci ouvindo coisas sobre os Piriás e por muito tempo fui incapaz
de me afastar dessas histórias de maneira que pudesse duvidar do “estatuto de verdade” que
cada uma delas se atribui. A primeira vez que olhei para uma dessas lendas com algum
distanciamento foi a partir da leitura do texto O Narrador, de Walter Benjamin (1980).
Diante do anúncio da morte do narrador, lembro-me até hoje da pergunta que me fiz: como
posso acreditar em Benjamin se ainda ouço histórias como as dos Piriás? Formulando de
outra maneira: como poderia compreender o processo de subjetivação daquelas narrativas
66
Para uma visão de conjunto da importância de Luckmann no revigoramento da sociologia da comunicação
a partir da década de 1980, cf. Knoblauch (s/d).
77
se na modernidade as narrativas seriam incapazes de transmitir experiência? Meu espanto
era o do crente quando sabe, por Nietzsche, da morte de Deus. E meu impulso primeiro,
como no caso de um crente, foi o de rejeitar a “narrativa” de Benjamin, numa confissão
explícita da minha incapacidade de entender as histórias sobre os dois irmãos como “não-
experiência”.
Já faz muito tempo que Walter Benjamin declarou que o narrador está morto. A tese
foi aceita sem maior resistência, num daqueles estados de comunhão total entre os espíritos
dispostos a crer e que os cientistas da religião já descreveram tantas vezes. E não é exagero
a comparação com religião, quando nossa atenção se dirige para o texto mais mitificado de
Walter Benjamin. Em seu ensaio, Benjamin nos faz um retrato do novelista Michail
Leskov, o qual ele relaciona com uma ampla reflexão sobre a transformação histórica e o
status da figura do narrador no contexto de modernidade. Seu argumento incorpora,
basicamente, a historicização do gênero épico nos termos de Hegel e cita diretamente a
teoria do romance de Lukács (1916). Benjamin concebe a multiforme práxis da narrativa
oral como exclusiva das comunidades tradicionais, e o tom do texto é de uma profunda
nostalgia: já iria longe – e pra não mais voltar – uma suposta “era de ouro” da narrativa.
As sagas e lendas, os provérbios, os contos de burla, o conto maravilhoso – todas as
formas simples analisadas por André Jolles (1974) são tomadas por Benjamin como
medium por excelência para expressão e troca de experiência social naqueles bons tempos
de ricas narrativas, porque de ricas experiências. Benjamin atribui a esses textos (em
especial, aos contos de fada) propósitos sociais conscientes, como a educação ou a
moralização, e ainda, talvez como uma função inconsciente, a manutenção da comunidade
tradicional com todas as virtudes que já foram enunciadas sob tal rubrica.
Se nos afastarmos emocionalmente do texto envolvente de Benjamin, se tivermos o
cuidado de contextualizar tanto a narrativa benjaminiana quanto o próprio Benjamin, logo
perceberemos que insistir na função essencialmente “social” daquelas narrativas
“tradicionais” foi um modismo tipicamente alemão, um tipo de pragmatismo da
folclorística romântica, como contraste com a idéia de “arte pela arte” que supostamente
caracterizaria culturas “modernas”. Uma idéia que persistiu até meados do século passado.
Hoje em dia, contudo, sabe-se que as formas narrativas de uma sociedade não têm como ser
78
reduzidas a um objetivo ou a uma só função. E com o conto maravilhoso (Märchen) o
protótipo da narrativa, segundo Benjamin –, não foi nem é diferente.
67
Um fato que marcou as pesquisas do conto maravilhoso como narrativa privilegiada
na Alemanha foi a idealização do narrador dessas histórias como protótipo do Erzähler, e
isso muito antes de Benjamin. Verdadeiras operações de “salvamento” dessa espécie em
extinção resultaram em inúmeras e imensas coletâneas de Märchen. Teorias foram escritas
para lamentar a morte desse narrador “genuinamente popular” e outras cuidaram de
interpretar sua “sabedoria” na tradicionalização do “verdadeiro espírito do povo”. De um
lado, o mito do narrador ideal era construído. De outro, e a um tempo, a epopéia de sua
morte ia sendo narrada para mais tarde ser chorada por Benjamin e seus seguidores.
São considerações que, penso eu, abalam a estrutura do argumento benjaminiano em
O Narrador. As pesquisas mais recentes seguem na contramão do prognóstico de
Benjamin. Como aconteceu com os contos maravilhosos, em vez de morrer, a “verdadeira
narrativa” adaptou-se a novos contextos. No caso dos contos de fada, eles acabaram ficando
mais curtos para caber nos cartoons, nas piadas e nas charges surrealistas. São inúmeras
suas releituras no cinema, no teatro e na literatura. Princesas, cavaleiros, bruxos, anéis
mágicos, unicórnios e dragões continuam fazendo parte do imaginário infantil – e do adulto
também. São muito poucos os que resistem ao fascínio desse outro mundo. Apesar de todas
essas alterações, persistem a estrutura e o modelo de ação dos contos maravilhosos.
68
Os
Märchentypen são ainda reconhecidos, o que nos leva a concluir que o conto de fada
moderniza-se, ao contrário do que prega uma idéia da tradição ou do narrador como
algo em vias de extinção. Eles compõem uma inesgotável fonte de arquétipos para a
construção de novas narrativas contemporâneas, que como os “clássicos” Märchen, cuidam
de preencher a rotina de vida com fatos surpreendentes e maravilhosos.
Para Benjamin, o primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de
contos de fadas”. Seria o caso de nos perguntarmos o que ele entendia por conto de fadas
antes de aceitar sua definição de narrador. O fascínio de Benjamin pelo Märchen tem raízes
67
O que chamamos aqui de klassisches Märchen é o conto maravilhoso europeu como tipo idealizado dos
estudos de narrativa popular. O seu uso tornou difícil uma percepção adequada da variabilidade funcional
desse tipo de narrativa além de colaborar para a construção do seu narrador como modelo não somente
popular, mas também do romance, como no caso de Goethe, Cervantes, Boccacio e Shakespeare.
68
Sobre a atualidade dos contos de fadas e sua dinâmica relação com a modernidade, ver o excelente volume
organizado por Hans-Jörg Uther (1990).
79
(subjetivas) mais profundas. Judeu alemão, ele compartilhou a experiência de ser educado
ouvindo essas histórias maravilhosas, geralmente recitadas pela mãe, pelos avós ou criadas
da casa.
69
Dizia-se que na casa de um alemão não poderiam faltar dois livros: a Bíblia e o
Kinder- und Hausmärchen dos Irmãos Grimm. No que diz respeito à Bíblia, a secularização
cuidou de diminuir a freqüência de sua leitura. O mesmo não se pode dizer quanto ao outro
livro (ou outros tantos que se seguiram a ele). As prateleiras transbordam contos
maravilhosos do mundo inteiro, seguindo uma tradição que vem de longe. São mais de 500
as coletâneas alemãs de contos de fadas copiladas somente no século XIX (Röhrich,
2002:364). O consumo desta literatura literalmente consumiu os germanos. Além de úteis
na educação das crianças, recitar contos maravilhosos tornou-se um jogo divertido entre os
adultos da nobreza européia nos séculos XVII e XVIII. Nos círculos intelectuais, eram
narrados com a intenção de divertir e fazer refletir.
A importância desse gênero na Alemanha foi tanta, que cedo os contos de fada
tornaram-se objeto de pesquisa acadêmica. Foram os folcloristas alemães os primeiros a
valorizarem o narrador do conto de fadas em seu contexto, antecipando algumas das
questões teórico-metodológicas fundamentais da antropologia e da sociologia no tratamento
de relatos orais recolhidos em campo.
Demorou bastante até que o rchen fosse alçado à condição de “arte popular” a
partir da valorização e idealização da vida camponesa como encarnação das virtudes
nacionais no fim do século XVIII. As narrativas populares passaram a ser vistas como
representantes do tradicionalismo em oposição ao cosmopolitismo da Aufklärung. O marco
desta mudança foi o Kinder- und Hausmärchen, que permitiu a consagração do conto
maravilhoso como instrumento da Bildung. Função esta que se tornou uma verdadeira
obcessão nas pesquisas sobre narrativa popular. A vida na comunidade tradicional aparecia
fortemente idealizada. A impressão que se tem ao analisar coletâneas de contos
maravilhosos daquele período é a de que os narradores tradicionais não tinham nada mais a
fazer senão cumprir sua nobre” (embora popular!) missão de contar histórias fantásticas
para educar a audiência valendo-se de sua reconhecida “sabedoria”. Falar dos problemas
cotidianos, somente por meio da linguagem cifrada dos contos.
69
Benjamin foi colecionador de livros infantis raros. É de se imaginar que, junto com o corcundinha que o
acompanhou toda a vida, Benjamin tenha retirado de livros assim sua idéia do que seria a “verdadeira
narrativa”. Sobre sua biblioteca, ver o ensaio de Hannah Arendt (1989:169).
80
Mas seria mesmo este uma arte popular sem par? Esse narrador perfeito, que vive
tão somente para narrar contos maravilhosos, realmente existe (ou existiu)? Ou teria
narrado assim somente para satisfazer colecionadores viciados em mitologias, passado e
tradição? Eram as questões que me instigaram quando li, pela primeira vez, o ensaio de
Benjamin.
A verdade é que até transformar-se em “história popular”, o Märchen teve sua
função alterada inúmeras vezes. E hoje, o que se pode afirmar em relação a esse gênero da
“oraliteralidade” é que os contos maravilhosos foram idealizados e “oficializados” como
arte tradicional. Muitos perderam o fio dentro desse labirinto do Märchen como gênero
popular, e a responsabilidade quanto a isso recai, em grande parte, sobre a própria
folclorística alemã e sua idealização do conto maravilhoso como gênero precípuo da
tradição popular.
Foi com o desenvolvimento da indústria editorial e os programas de alfabetização
no século XIX que a troca entre literalidade e oralidade intensificou-se e o Märchen pôde
saltar os muros dos palácios, escapar das prateleiras dos casarões da elite e andar entre o
povo, disputando espaço com outras formas narrativas. O estado das pesquisas atuais em
folclorística tem boas razões para afirmar que o Märchen foi apenas um gênero a mais na
narrativa popular. Ele nunca foi o gênero predominante e, longe de monopolizar as
oportunidades do ato narrativo, circunscreveu-se a situações bastante específicas.
Mas não é o caso aqui de nos atormentarmos com a questão da origem dos contos
maravilhosos. Mais vale analisar o espanto dos “modernos civilizados” quando esbarraram
com essa prosa tão elaborada e bem acabada num meio rústico e tradicional. A primeira
reação à descoberta do ato de narrar como arte popular foi “classificar” os dois tipos de
narradores ali encontrados. De um lado, as mulheres que usavam da tal arte para educar as
crianças. A função pedagógica dessas narrativas previa uma audiência específica (as
crianças), com características muito específicas, que não teremos como abordar aqui. Mas é
necessário chamar a atenção para o fato de que, neste caso, o pólo ativo da situação de
comunicação é localizada na figura do narrador.
O outro protótipo do narrador passou a ser o idoso em sua “sabedoria” e autoridade
para a transmissão de experiências. À idealização da velhice também se seguiu uma
subvalorização da audiência. Os jovens, inexperientes, a comunidade narrativa, que no
81
silêncio de seus velhos não têm onde buscar uma moral para suas histórias. É por esse
segundo modelo idealizado que Benjamin parece ter se deixado seduzir, fechando sua
teoria para outros tipos de narradores. Crianças e jovens, por exemplo, pouco teriam para
contar.
Essa romantização da vida camponesa, e junto dela, a idealização do ato de narrar,
parece-me, marcaram fortemente a concepção benjaminiana do narrador. A vida dura e
monótona, o trabalho manual rude e cansativo são transformados sob sua pena em uma
espécie de tédio necessário, sem o qual não se configuraria a oportunidade para ouvir. E se
hoje em dia não trocamos experiências, é antes porque “ninguém mais fia ou tece enquanto
ouve história”, afirma Benjamin em um de seus desabafos contra a modernidade.
A figura do narrador foi idealizada por Benjamin. A narr-ação é por ele congelada e
se perde no passado. Benjamin trata de construir para essa “arte” uma aura, afastando a
possibilidade de que ela se presentifique. Ele segue a inventividade dos folcloristas, que,
apaixonados por seus informantes, inventaram o narrador como tipo idealizado. O narrador
do conto maravilhoso, longe de ser aquele que dominou a comunicação nas comunidades
tradicionais, foi, antes, o eleito pelos pesquisadores como o principal, o mais querido, o
mais completo dentre tantos outros tipos de narradores das diversas comunidades de
comunicação. Descritos nas inúmeras autobiografias, relatórios de viagens e pesquisas de
campo que encheram as prateleiras européias a partir de meados do século XVIII, o
Märchen (como gênero narrativo predominante da tradição) e o Märchenerzähler (como
narrador exemplar) firmaram-se como categorias inquestionáveis a partir de então.
70
Vê-se que essa forma polida de contar histórias de final feliz tem suas raízes
populares amplamente questionadas hoje em dia. O Märchen sempre relacionou-se
estreitamente com a literalidade. O curso do raciocínio de Benjamin (oralidade
literalidade) ignora o caráter dialético antigo e eficaz das trocas entre registro escrito e
narrativa oral do qual nos fala Chartier (1987). Antes dos Grimm, essa prosa popular era
entendida como espelho do registro e moldagem literária. Na verdade, a idéia de que os
70
A relação narrador/audiência simplesmente foi ignorada durante boa parte desse tempo, o que contribui
significativamente para a construção do Erzähler como protótipo do narrador ideal. Outro aspecto diz respeito
à relação de quem conta com quem ouve. Karoly Gaál demonstrou, na década de 1970, que os narradores
camponeses alteravam significativamente a qualidade de suas narrativas conforme o que eles pensavam ser a
expectativa do pesquisador. Eles acentuavam em seus relatos aquelas características julgadas como sendo de
maior interesse para as “pessoas da cidade” (Gaál, 1970).
82
Märchen tenham surgido na oralidade pura e simples (sabidamente um ideal romântico)
promoveu, por tabela, uma hiper-valorização da tradição oral que levou à desconsideração
absoluta do fato de que pontes entre oralidade e literalidade sempre existiram.
71
No mundo
antigo encontramos inúmeros motivos do conto maravilhoso nos poemas aos deuses e
heróis. No antigo Egito, os contos maravilhosos eram usados na educação dos príncipes,
bem como na Índia antiga, serviram pedagogicamente à formação dos sacerdotes. Na Idade
Média, o conteúdo dos contos maravilhosos ganhou a forma de lendas sobre os santos e
histórias de exemplo nas pregações (hagiografias, exempla). Depois, mesmo Lutero se
valeria desse recurso. E com Perrault, esses textos contribuíram para entretenimento nas
cortes e no cultivo do “bem falar”. Com Musäus, o conto de fadas tornou-se Literatursatire
em sua função elucidativa, para com os Grimm “terminar” como prosa romântica e livro de
educação infantil nos lares do mundo inteiro. É ao seu registro escrito que esse tipo de
narrativa tem, em grande parte, que agradecer sua longevidade na tradição. Desde sempre,
o texto escrito foi o apoio de memória – mesmo que indiretamente – para o Märchen.
A relação com a escrita, que se traduz na forma e no acabamento do Märchen,
confere a ele uma certa “nobreza” estilística peculiar, porque absurdamente familiar. Desde
que os famosos caderninhos franceses
72
tornaram-se disponíveis graças à nascente indústria
editorial no século XVIII, e desde que suas seguidas traduções cuidaram por levar aquelas
histórias para os lares do mundo todo, o ato de recitar contos de fadas assumiu inúmeras
outras funções para além de uma nova forma de educação e lazer. Foi quando a
interdependência entre leitura e narração intensificou-se, tornando-se ainda mais aguda.
73
Os contos dos Grimm tiveram uma contribuição fundamental nesse sentido. Ainda hoje é o
livro de língua alemã mais traduzido no mundo. Os contos de Andersen e Afanasiev, o As
mil e uma noites e o Pantschatantra, espalharam-se e misturaram-se a motivos bíblicos, aos
contos de Apoleius e Esopo, encaixaram-se nas formas do romancero hispânico e nas
cantigas medievais e, ainda hoje, (con)fundem-se às versões cinematográficas de Walt
71
Sobre a escrita como apoio de memória e seu papel estratégico na manutenção da tradição, ver Aleida
Assmann (1999). Sobre a escrita e sua relação com a lembrança, a construção identitária e sua ação na
memória cultural, ver o importante estudo de Jan Assmann (1997). Sobre a relação entre oralidade e
literalidade, cf. Olson e Torrance (1991).
72
Refiro-me aqui aos mil e um Petit contes-de-fée-cahier de la Bibliothèque Bleue.
73
Delícia sempre foi ouvir um Märchen atento para a competência do narrador para recitá-lo “como deve
ser”. Comparamos o que ouvimos com um original” que não conseguimos identificar direito onde está.
Assim, se diante das crianças, em vez de anões a professora fala em homenzinhos, logo será questionada
quanto a seu “domínio” da verdadeira história da menina branca como a neve.
83
Disney e nas peças e romances de Ariano Suassuna. Os Contos e histórias de proveito e
exemplo do autor português Gonçalo Fernandes Trancoso surtiram o mesmo efeito no
Brasil. Ainda hoje, quem conta um conto no Cariri, aumenta um ponto numa “história de
trancoso”, embora não cite o livro. Em outros lugares trata-se de histórias da Tia Nastácia
de Lobato.
O registro escrito tem e sempre teve um papel fundamental na narração de
contos de fadas.
74
As duas informantes dos Grimm eram criadas, mulheres do povo. O que
poucos levam em consideração é que elas eram de origem francesa, letradas, bem versadas
na arte de recitar contos de fada aprendidos quando da leitura daqueles livretos azuis. Os
dois irmãos nunca fizeram uma pesquisa de campo e o “estilo Grimm” nasceu da pena de
Wilhelm Grimm e seu empenho por fazer daqueles textos relíquias do autêntico espírito
germânico (Volksgeist), histórias moralmente perfeitas.
75
Impossível definir a fronteira
entre oralidade e literalidade.
É por tudo isso que podemos dizer que o narrador foi para os folcloristas do século
XIX o que hoje poderíamos chamar de uma categoria a-histórica. A busca pelo narrador
ideal, aquele dos contos longos, bem acabados, com sua moral da história cristalina
fechando o texto, tornou-se uma epopéia. Diante da evidente dificuldade de se encontrar
esse narrador, anunciou-se, e bem antes de Benjamin, a extinção da espécie.
76
Quem ainda
conhecia algum Märchen, normalmente só conseguia recitar fragmentos, e quase nada valia
o esforço para registrá-los!
Essa busca pelo narrador ideal, impetrada pelos folcloristas do século XIX, baseou-
se em pressupostos mitocêntricos, na idealização da capacidade poética criadora do
Volksgeist, no desinteresse em ouvir as pessoas como elas “verdadeiramente” narram.
Pressupostos estes que persistiram até meados do século XX, sólidos como castelos na
paisagem nórdica, mesmo (ou talvez, por isso mesmo) depois de milhares de contos
maravilhosos terem sido copilados e circularem generosamente por todos os cantos do
74
A expressão “conto de fada” surgiu para denominar os textos escritos por mulheres na França. Foi nos
contos maravilhosos franceses (escritos os por mulheres), que as fadas entraram nesse tipo de história pela
primeira vez e as bruxas perderam seu caráter liminar. Qualquer semelhança com a ideologia do romance no
que diz respeito à construção dos personagens não é mera coincidência.
75
Sobre a importância de Jacob e Wilhelm Grimm como intelectuais situados entre o romantismo, o
historicismo e a folclorística, cf. Mata & Vieira da Mata (2006).
76
Sobre a “morte do narrador” bem antes de Benjamin, ver o estudo centenário de Schambach & Müller
(1855).
84
globo oferecendo-se em sua materialidade como apoio privilegiado de memória. Os
alfabetizados foram os verdadeiros narradores de contos de fadas, desde o início. Narrador
de conto tradicional sempre foi aquele que sabe estabelecer as pontes entre oralidade e
literalidade, e isso muito antes de Leskov.
A questão nos interessa muito porque é inegável a tensão que Benjamin provoca
entre teoria da narrativa e história da narrativa. Sua valorização da “memória cultural” com
seus poucos (porque extra-cotidianos) narradores, que ocorrem num ensejo especial,
77
seu caráter extra-ordinário, seu contexto ritualizado em grande medida, seu apreço pela
forma, acaba por polarizar a “memória comunicativa” (Assmann, 1999). Esta fica do outro
lado, onde, a princípio, todos podem ser narradores porque o ato de narrar ativa-se
facultativamente, é cotidiano, “profano”.
78
A “verdadeira narrativa” de Benjamin se
constrói sobre a memória cultural. A comunicação de experiência não dispensa a
memória comunicativa porque se na oralidade como ele a idealiza. Sua concepção da
autoridade do narrador, fundada no passado, atribui à experiência uma consistência de
cânone. O ato de narrar configura-se menos dinâmico e menos espontâneo que o
conveniente. Em sua teoria do narrador o espaço para as narrativas cotidianas.
Simplesmente porque este tipo de narrativa não teria a “aura” dos contos maravilhosos.
Voltemos ao tema desta dissertação. de se considerar que o confronto dos dados
registrados nas coletâneas do passado com as novas fontes históricas, resultado das
pesquisas atuais, tem demonstrado que lendas sempre ocuparam mais espaço na
comunicação que o conto maravilhoso. Falo aqui das narrativas utrius-que fortunae
aquelas sobre as misérias cotidianas, acasos estranhos e coincidências surpreendentes. São
histórias imprecisas, não raro inconclusas, cheias de frases que afirmam a impossibilidade
de “controle da experiência”, completamente deficientes naquela precisão formal que
caracteriza um conto de fadas com seu ritual de abertura e fechamento da fala do narrador.
Hoje sabe-se que, diferentemente do Märchen e sua ilusão de ordenamento histórico
(historische Einordnung), o que na prática move o ato de narrar é outra coisa. O conto de
77
A valorização da morte por Benjamin como o momento privilegiado dessa narrativa da experiência
corrobora nosso argumento.
78
Valemo-nos aqui da divisão que Aleida e Jan Assmann fazem da mémoire collectiveem dois pólos: a
memória cultural e a memória comunicativa. A primeira com a função de assegurar a identidade da
comunidade narrativa, a segunda ocupa-se da orientação cotidiana do indivíduo na realização de suas rotinas.
Formas narrativas podem localizar-se entre os dois extremos como numa escala. Nossa fonte para a discussão
dos dois conceitos é Raible (1988).
85
fadas nunca foi o gênero narrativo popular mais “usado”, nem nunca foi exclusivamente
“popular”, como vimos. Nem mesmo os Grimm, os fundadores da Erzählforschung,
escolheram seus contos por serem aqueles os mais narrados pelo povo. Os contos de fada
chamaram a atenção dos Grimm, e de todos os que seguiriam seus passos, por sua nobreza
poética, seu caráter exemplar. Com os avanços dos estudos sobre a cultura popular
(devidamente expurgados os preconceitos românticos), folcloristas como hrich (1974),
Schenda (1991), Bauman (1986), Brednich (1994) e Dégh (1995) afirmam que o mais
provável é que a narração, que nos séculos passados acontecia na oficina, na venda, durante
a lavação de roupa no rio, ao tear ou durante a torra do café, não tenha sido muito diferente
da comunicação cotidiana que hoje se dá nas ruas, nos escritórios, na lanchonete, dentro
dos ônibus, nas filas de banco ou nas enfermarias e albergues estudantis. O que podemos
afirmar é que as situações do Dasein foram as que representaram o papel principal também
naqueles tempos. O que se narra precipuamente é a experiência cotidiana.
Entre nós narrou-se e narra-se ainda como a vida cotidiana se apresenta para a
maioria das pessoas. Os temas são viagens, turismo de aventura, encontros inesperados,
coincidências espetaculares, fugas, perseguições e prisões, manotas, vinganças, histórias
sobre o sentimento de vergonha e de culpa, memórias de guerra ou do último assalto,
acidentes no trânsito e tragédias no esporte, piadas, pragas, calúnias, fofocas e histórias de
amor, descrições de esperas e saudades, histórias de perseverança e boa vontade, encontros
com personalidades e epopéias burocráticas mirabolantes, comentários sobre filmes,
novelas e o último Linha Direta ou Big Brother, a última da escola ou aquela lembrança da
época dos heróis do Tiro de Guerra, os vestidos e os bailes, crimes e casos escabrosos
envolvendo parentes e vizinhos. E assim por diante, ad eternum. O conteúdo do que se
narra não tem como ser esgotado em um livro ou teoria. Muito menos pode ser contido pela
expressão “verdadeira narrativa”.
O que nos resta fazer, assim, é tentar entender como se pratica a narração, que a
narrativa tal como a entende Benjamin não é patrimônio exclusivo da comunidade
tradicional. Nesta dissertação, partirei do pressuposto de que narr-ação é práxis social; algo
que faz parte do convívio entre as pessoas onde houver um grupo e condições para partilhar
experiências. Seja na fábrica, na lanchonete, no salão de beleza, no bar ou nas reuniões de
família, a narração sempre encontra condição de possibilidade. Na verdade, a narrativa se
86
apropriou de múltiplas formas, de novo conteúdo” como afirma o próprio Benjamin.
Contudo, contrariando seu argumento, não podemos ignorar que ela continua sendo o que
sempre foi: uma forma de comunicar a experiência.
Corrobora nossa crítica, o fato de que, com exceção de dois informantes, não
encontramos no nosso trabalho de campo o narrador de Benjamin, aquele “clássico”,
atuante, que narra as ações de dentro, a partir das experiências que tem ou pensa ter
delas. A maioria dos narradores que tive a oportunidade de conhecer, narraram histórias
sobre os Piriás em diálogo, num esforço explícito de troca de opiniões sobre ações e
condutas que são discutidas e avaliadas. Ou seja, a possibilidade de intercâmbio intenso de
experiências é que revela o narrador, que quase nunca é o tipo idealizado por Benjamin.
Nas lendas sobre os Piriás, a ação narrada tem aplicabilidade imediata porque é
relativa a circunstâncias que se repetem ainda no presente. De certa maneira, a narrativa
sobre esses dois irmãos parece presa a uma dimensão “utilitária”: são falas condicionadas
por um certo “senso prático”, no sentido de que são narradas para ensinar algo. Até aqui
estamos de acordo com Benjamin. O problema parece ser seu conceito de “narrador
espectador”, aquele que estaria aquém deste vel prático, porque narraria de fora as ações
que aprendeu a conhecer pela observação. O narrador que “informa” sobre outra pessoa.
Para Benjamin, este tipo de narrador não tem como falar de maneira exemplar a seu
ouvinte. O que ele narra decorre de uma vivência alheia a ele e a seu público. Nesse
sentido, a ação narrada torna-se apenas espetáculo, e o espetáculo torna a ação apenas
representação, pura imagem incapaz de permitir a partilha de experiências. É por isso que,
para Benjamin, embora recebamos notícias do mundo todo, “somos pobres em histórias
surpreendentes”. “Histórias surpreendentes”? As lendas sobre os Piriás o repletas desse
“surpreender-se”. Mas isso não basta para Benjamin, porque o narrador destas lendas
narraria de segunda mão, numa narrativa pobre em experiência direta. Este narrador
espectador seria capaz tão somente de informar, de forma não muito diferente do jornal, por
exemplo.
A relação lenda/mídia nos interessa diretamente para o caso das lendas dos Irmãos
Piriás, como veremos mais tarde. Por hora, basta dizer que Benjamin parece não atentar
para o fato de que o acesso à informação pode fomentar a criação de “histórias
surpreendentes” prenhes desse poder de afectar a audiência, presentificar experiências. A
87
mídia impressa e falada está repleta delas, e não somente no caso dos Irmãos Piriás. Nos
jornais, minhocas e petróleo continuam sendo usados na fabricação de hamburgers, essa
espécie de comida “estranha” tão asquerosa quanto aquela que o herói do conto é obrigado
a comer no reino dos mortos. Na TV, de repente nos vemos obrigados a questionar nossa
dependência cada vez maior de estranhos quando ouvimos, atônitos, que babás vez por
outra colocam bebês em fornos, exatamente como havia feito a impiedosa bruxa da casa
de pão de mel de João e Maria. Raptos de crianças para retirada dos órgãos tem feito a
meninada gritar toda vez que cruza com um carro preto no portão das escolas de Mariana.
A notícia de que foi encontrado um cadáver na caixa d’água ou mesmo no reservatório da
Coca-Cola é capaz de alterar hábitos de consumidores de um bairro inteiro. Ouvir sobre os
ataques com seringas contaminadas pelo vírus da AIDS demanda cautela antes de nos
sentarmos nas poltronas dos cinemas. E os moradores de Ponto Chique (norte de Minas) e
entorno continuam acreditando que Lampião ainda vive. É um senhor que escolheu aquela
região para terminar o resto de seus dias em paz. A história é narrada por um professor
primário da localidade, investido da devida autoridade de narrador desse evento
extraordinário, que, diz ele, “só não foi publicado porque disseram que alteraria a História”.
Narrativas continuam alterando a história, quer dizer, promovendo
“experimentação”. Por meio delas pode-se “focar” um problema específico, dirigir a
atenção daqueles que narram e que ouvem. Todas essas lendas modernas que citamos
acima, bem como as lendas sobre os Piriás, nos falam do extraordinário no cotidiano. Elas
inserem o numinoso, o mistério, o extraordinário na nossa rotina de vida.
79
O encontro com
o extra-cotidiano, assim como no conto maravilhoso, também se faz nessas narrativas
contemporâneas, porque tanto aqui quanto trata-se de um universo mental onde o
maravilhoso é algo rigorosamente plausível.
Todavia, mais do que isso, são narrativas que confrontam as pessoas com ameaças
e novas formas de comportamento. Quem ouve esse tipo de história, de repente se percebe
cercado por problemas que demandam algum tipo de reflexão e reação. É diante da
impiedosa Zivilizationsmaschinerie que as pessoas usam dessas lendas para alertar,
aconselhar. E nesse quesito elas não devem nada à “verdadeira narrativa” de Benjamin e
79
Sobre o conceito de lendas modernas e seu caráter de experiência de segunda mão cf. Smith (1984) e
Konrad (1980).
88
sua função formadora. Além disso, são histórias para divertir, para estreitar laços, para
espantar o cansaço ou condicionar comportamentos e juízos. Exatamente como no caso do
conto de fadas, essas lendas são sempre narradas conforme uma demanda específica que
varia segundo as intenções, motivações e experiências daqueles interessados em narrar. Foi
assim para o narrador de Benjamin; é assim para os narradores das lendas contemporâneas.
Estes fazem escolhas ao narrar. Colocam sua personalidade nas histórias,
conseqüentemente fazem delas criação sua. uma quantidade de elementos formativos
disponíveis, mas a habilidade de juntá-los depende tanto do talento de quem narra quanto
da qualidade da interação entre os interlocutores no momento narrativo.
O exemplo das lendas contemporâneas mostra, portanto, que o narrador o morreu
e continua trabalhando como um oleiro. Ele afecta com suas histórias, forma opinião. Os
movimentos e o olhar, o tom de voz e o ritmo da fala, fazendo aparecer o humor, ou o
pathos, ou a ironia de sua visão. Contribui efetivamente para a composição da narrativa em
si. Essa performance provoca uma imersão na história de outra qualidade que aquela do
leitor mudo, por exemplo. Isso foi verdade antes e continua sendo verdade hoje. A
impressão da personalidade de quem narra, sua percepção pessoal do mundo e das
potencialidades artísticas, sempre terão peso nessa ininterrupta troca de experiências.
Influenciado até certo ponto pelas expectativas de sua audiência, o narrador, seja o da lenda
contemporânea, seja o de Benjamin, realiza uma espécie de amálgama de experiências
compartilhadas.
No caso das lendas contemporâneas, entretanto, de se chamar a atenção para o
caráter menos acentuado da figura do narrador. No momento narrativo de uma lenda
contemporânea não como distinguir de maneira forte a figura desse narrador arquetípico
de Benjamin. Ali, todos são interlocutores e tomam parte da performance. E todos são
ainda, até certo ponto, condicionados pelos padrões de interação na narração. No caso das
lendas sobre os Piriás, não estivemos analisando uma fala de um para todos, mas de todos
para todos. E o texto final, menos que uma “versão”, uma “variante”, uma repetição, é o
resultado de um poiésis de vários performers.
Podemos assim afirmar que é a própria oralidade que une as pessoas em
participação na “experiência” coletiva de narrar uma lenda sobre os Piriás. É no momento
narrativo que o relato circula entre os membros de uma comunidade de comunicação. E é
89
dessa circularidade que a narrativa depende para existir, não da performance de um
narrador idealizado. No momento narrativo dessas lendas, uma experiência do passado se
constitui e é atualizada, onde a narração depende, de alguma maneira, de uma concentração
deliberada e pessoal de habilidades de todos os interlocutores presentes. Qualquer um pode
interromper, criticar, interferir com novas informações, aplaudir ou abafar a voz de quem
fala, ou mesmo assumir as rédeas da narração. Tudo de acordo com um fundo comum e
com a intenção explícita de negociação dos elementos que haverão de compor a “verdade
da narrativa”. O julgamento sempre se dá, porque é o manuseio” permanente da narrativa
como texto de todos para todos que garante a proximidade entre narrador, objeto e
audiência, e mesmo a (con)fusão desses papéis numa remodelagem constante conforme as
pretensões de cada interlocutor. A reconstrução da experiência é, pois, ininterrupta e
implica em negociação.
Uma experiência que é, sim, compartilhada, mas não no sentido de “transferida”
avant la lettre. Como bem observou Paul Ricouer (1995) em sua análise estética da
recepção, a experiência não poder ser compartilhada; apenas os sentidos que dela
emanam.
80
Falamos em compartilhar experiências no sentido de que as narrativas provocam
experimentação, cuja qualidade pode variar segundo uma série de fatores inerentes ou
externos à narrativa em si e que não precisa necessariamente coincidir com a experiência do
narrador para ser válida. Como no caso de um filme, as lendas afectam aqueles que têm a
oportunidade de participar do momento narrativo em que elas emergem, permitem alguma
forma de conhecimento. Simmel dizia que não é preciso ser César para compreender César.
O que nos autoriza a concluir que não é preciso ter vivido uma guerra para poder
experimentá-la, mesmo que por meio de uma “experiência de segunda ordem”, como quer
Benjamin. É da “interferência” entre todos aqueles que participam do momento narrativo
que surge a comunicação de experiência, e disso Benjamin se esquece. A experiência não é
algo que o narrador per se, em sua sabedoria absoluta e autoridade idealizada, pode
80
Com Ricouer concorda Vilém Flusser (1998:75-92), para quem a experiência alheia pode ser
interpretada, nunca vivida. Para Flusser, fatos comunicados não têm como ser vivenciados pelo receptor, já
que este é incompetente para captar a vivência toda. Esta confissão de Flusser é kantiana na sua concepção de
que mensagens transferidas estão sempre sujeitas à deturpação, o que desqualificaria a qualidade da
“experiência de segunda mão”. Na perspectiva de Flusser, a tentativa de vivenciar as mensagens que nos são
transmitidas são chamadas de “defasagem”. A tentativa de se anular a diferença entre o vivenciado e o
comunicado estaria sempre condenada ao fracasso de nunca atingir a qualidade da “experiência original”, do
emissor da mensagem, portanto do narrador de Benjamin.
90
“conceder” conforme seu querer. Nem sempre o momento narrativo é controlado pela
figura do narrador admirado e temido, que nunca tem seu poder ameaçado de fato por uma
audiência que até pode participar diretamente da produção dos textos, mas que nunca
supera seu papel de mero receptor da mensagem.
O que Benjamin parece ignorar é que a arte de narrar se (re)coloca sempre que
houver essa participação. Sua (sobre)vivência depende menos da pessoa do narrador que do
interesse que uma história é capaz de despertar e da vontade de participar de sua
(re)construção. Toda e qualquer experiência que se venha a viver através dessas histórias,
será tudo menos solitária e intransmissível. Teorias como a de Benjamin podem ter isolado
o narrador de sua audiência, mas não na ação narrativa como ela se dá no mundo da vida,
porque é narrando que estabelecemos relações e fazemos a manutenção das ligações
subjetivas necessárias ao reconhecimento de nossa condição e papel social.
Por tudo isso, parece-me que o lamento de Benjamin quanto à morte do narrador
recobre um outro pesar: o afastamento do narrador de sua audiência. Indivíduos não
escapam da experiência direta do que é narrado quando participam diretamente da
construção dos textos.
Erzählen não diz respeito exclusivamente (ou precipuamente) a uma história bem
estruturada e longa sobre algo extraordinário. Nem implica decorar, tornar parole, um texto
que algum dia se viu fixado no papel. Narrar é antes de tudo publicizar uma mensagem, ou
seja, um ato de performance, mas que não precisa ser necessariamente individual. O
narrador não é uma personalidade no sentido de alguém a quem se atribui um dom especial.
E nem sempre as pessoas assumem o performance right que cabe a quem se dispõe a
cumprir essa função que comporta tantos riscos e responsabilidades. A existência do
narrador encontra sua condição de possibilidade não somente na audiência. Narrar pode
depender da possibilidade de comutar funções (de narrador ou de espectador), dividir
responsabilidades sobre a mensagem e sobre seus efeitos.
81
The telling ist the tale”, diz Linda Dégh (1984:315). Assim, a narrativa
dificilmente é valorizada da mesma forma em todo tempo e lugar. E as fronteiras
artificiais entre os gêneros tradicionais da narrativa como contos maravilhosos, lendas,
81
Discutiremos de forma mais aprofundada essa troca de papéis narrador/espectador no momento narrativo
no capítulo 3 desta dissertação.
91
contos de burla e sagas não são tão definidas. E se tornam ainda mais problemáticas
quando consideramos a influência da escrita na manutenção da tradição oral. O modo e a
intenção da narrativa alteram-se conforme a classe social e o contexto em que uma
determinada história se faz ouvir.
82
Tanto a situação em que se a narrativa quanto sua
função e a intenção que ela expressa são definidos pelo momento narrativo, que não
necessariamente permite a identificação de quem ocupa o papel de narrador ou de
audiência.
Devemos atentar para a necessidade de considerarmos narrador e audiência dentro
de um outro modelo de comunicação para além da mera transmissão/recepção de textos.
Uma teoria da narrativa que considere apenas um dos pólos no caso de Benjamin, o
narrador torna-se insuficiente para analisar o ato de narrar em sua dinâmica. O caráter
ativo do leitor, por exemplo, não pode sequer se imaginado segundo essa “tipologia do
narrador”. Nem o caso do modo coletivo de produção de lendas contemporâneas como as
dos Piriás. Benjamin nos permite pensar a evolução do narrador como diretamente
relacionada à transformação do público. Mas se fecha à idéia de que quem ouve ou
uma história possa assumir o papel de narrador. A este narrador, que ele classifica como
sendo de segunda-mão, Benjamin nega o reconhecimento de qualquer tipo de autoridade.
Sete Lagoas está repleta de narradores de segunda-mão. Estão lá, muito embora
“não existam” para Benjamin. Minha intenção é identificar esses narradores-interlocutores,
mostrar que eles existem e compreender o que eles narram e porque narram. E eles narram
assim:
Vocês ficaram sabendo do caso do menino? Era meia noite. No hospital em Sete Lagoas
uma mulher dava a luz a um menino de três olhos. Ao ver a criatura, o médico disse:
- Nossa, que menino feio!
O menino respondeu de pronto:
-Feio? Feio é o que vai acontecer no show da banda Calypso!
Dito isso, o menino morreu.
É verdade. Deu no jornal. Aconteceu que a venda de ingressos foi um fracasso. O ingresso
que custava 25 reais estava sendo vendido por 1 real. Um amigo de um conhecido meu é que teve
prejuízo. Ele havia vendido a moto. Comprou tudo de ingressos antecipadamente para vender como
cambista e lucrar. Está desesperado. Perdeu tudo.
82
Sobre o tema, ver Wehse (1983).
92
-E o show?
O jornal desmentiu. Disse que era boato tentando consertar a situação. Mas você sabe o
povo como é, né? Acabou que foi pouquíssima gente.
- Você foi?
Fui. O show corria meio tenso, quando pelas tantas, a luz acabou. Foi um desespero só.
Gente correndo pra todo lado gritando:
- É o menino de três olhos! É o menino de três olhos! Um desespero.
83
Uma história e tanto, não? E não em Sete Lagoas pessoa que não tenha uma
versão para os fatos”. O assunto animou conversas em salões de beleza, botecos e escolas
por meses. E deu também no jornal, repetindo-se a relação fato/ficção que engendra as
histórias sobre os Irmãos Piriás.
Tomei conhecimento de uma outra história, tão chocante quanto essa, em Goiânia
(GO). Dela circulam outras versões pela internet, vindas de Juiz de Fora, Montes Claros
(MG), mas também Jundiaí (SP) e Resende (RJ).
Meu colega da escola ficou sabendo da história. Quem contou foi sua vizinha, amiga da
mãe do menino, coitado. Ela tinha costume de levar o filho nessa lanchonete [uma rede multinacional
de fast-food]. Eles comiam e depois o menino ia brincar na piscina de bolinhas como sempre.
Naquele dia, o menino saiu da piscina aos berros, com a mão no pescoço, dizendo que um bicho
havia picado. A mãe olhou, achou que fosse uma picada de inseto. Acalmou o filho e disse que ia
passar. Levou o filho pra casa. Ele começou a suar, tremer e fazer vômitos. Teve febre também. Os
pais então levaram o filho para o hospital, mas já era tarde demais. O menino morreu. Havia sido
picado por um filhote de jararaca. Talvez se os pais tivessem reagido mais rápido, ele não tivesse
morrido. Você não acha?
As pessoas têm evitado ir àquela lanchonete. Estranho é que o deu nada no jornal. Na
certa a rede de lanchonetes pagou para abafar a notícia, não é mesmo?
84
Podemos concluir, a partir da existência e da prática de histórias como estas, que o
que Benjamin pensou ser uma crise da narrativa foi na verdade uma crise da teoria da
narrativa.
85
Se para Benjamin, o narrador morreu por causa do modo de produção, podemos
argumentar que ele está mais vivo do que nunca exatamente por causa da técnica. A
83
I. V., 26 anos, estudante de fisioterapia, Sete Lagoas (14/01/2007).
84
F. M., 14 anos, registro feito em Sete Lagoas (12/06/2006).
85
Brincamos aqui com o título do artigo de Wohlfarth (1981), “Krise des Erzähelns, Krise der Erzähltheorie”
(Crise da narrativa, crise da teoria sobre a narrativa).
93
internet configurou-se como locus de novas comunidades narrativas. E não raro é da rede
(mas também do noticiário da TV, da revista, do jornal, do rádio) que surgem essas
histórias com todos os seus detalhes e potencial de empolgação. A possibilidade de
transmitir experiências aumenta por causa da tecnologia; por seu intermédio compõem-se
novas comunidades de comunicação, em sua intenção de homogeneizar a interpretação e
fortalecer sentidos. Não raro, a técnica dá ensejo para que as pessoas narrem, e na narração
se re-conheçam.
Por outro lado, se para Benjamin o narrador morre porque ninguém mais sabe dar
conselhos, constatamos que histórias assim não raro têm por finalidade exatamente
aconselhar, moldar comportamento, oferecer um modelo de experiência. Contos de fada
foram valorizados num tempo em que contavam mais a ética da honra aristocrática com sua
ênfase na glória, nas virtudes do cidadão e do guerreiro, sua busca por fama e renome ou o
recato, disciplina e presteza das mulheres. Os princípios de autonomia, das práticas de auto-
exame e da vida comercial provocaram uma recessão nessa ética. Mais valorizado passou a
ser o empenho no trabalho, a acumulação de riquezas, os costumes mais “polidos” e mais
“gentis”, os bens de produção, a vida organizada e em paz, as atividades cotidianas, a
eficiência das instituições. Contudo, o conflito desses mesmos valores com aqueles outros,
que habitualmente são chamados de tradicionais, é aberto. A tradição não é um ente que se
retirou para seu outro mundo quando da chegada do império da modernidade.
Benjamin (1994:43) fala do narrador como aquele que converte suas experiências
pessoais em lastros de pertencimento e sociabilidade; como alguém que deve ser valorizado
em sua capacidade de incorporar “coisas narradas à experiência de seus ouvintes”. Para ele
é o narrador quem confere significado a toda a experiência, determina sua transmissão.
Nessa transmissão estaria a prova de força da tradição na qual o narrador estaria preso.
Uma força que Benjamin só vê diminuir face ao avanço da modernidade.
Não que pretenda negar a intenção pedagógica da narrativa, tão cara a Benjamin.
Mas não se deve “personificaressa intenção. Uma análise centrada no narrador, como é a
dele, faria das lendas sobre os Piriás uma espécie de lição generosamente comunicada por
uma espécie de mestre. À lenda seria atribuído um potencial quase canônico, análogo ao
das mitologias, que toda a capacidade de afecção da narrativa Benjamin a faz depender
da força de sugestão de seu narrador ideal.
94
O conflito entre valores na contemporaneidade é, por excelência, o tema de lendas
como as dos Piriás. Nelas, narradores – ou melhor, interlocutores – continuam contribuindo
para a construção da experiência vivenciada no hic et nunc, num processo que
denominaríamos atualização da experiência.
Dessa forma, se nos dispusermos a dar ouvidos a estes narradores-interlocutores,
não há como deixar de concluir que, de certa forma, Walter Benjamin errou em sua
profecia. Tudo acaba como sempre acaba um conto maravilhoso: “Und wenn sie nicht
gestorben sind, dann leben sie noch...
86
Nada mais enganoso, dizia Weber (2001:141-
142), que confundir tipo ideal e ideal. O primeiro é uma utopia útil, um mero instrumento
de análise sem qualquer concretude histórico-social. O erro de Benjamim parece ter sido
justamente esse, o de reificar seu ideal do que deveria ser o narrador. Talvez se possa dizer
que foi este ideal, não o narrador, que de fato morreu.
86
“... e se eles não morreram, vivem ainda hoje”. É com esta frase que se fecha a maioria dos contos
maravilhosos alemães.
95
3. A LENDA CONTEMPORÂNEA
A lenda é um gênero a partir do qual se definem diversos subgêneros. A partir do
conteúdo das histórias, sua difusão, sua origem, sua função, sua estrutura, sua forma ou
estilo, etc. Pode-se falar em “lendas demonológicas” se o tema são seres ou fenômenos
sobrenaturais.
87
Existem as aetiológicas, que cuidam da objetivação de um fenômeno, ou
seja, em sua explicação.
88
ainda as “lendas históricas” cujo enredo gira em torno de
pessoas ou fatos reais.
89
(extraído de Bausinger, 1980:187)
Pode-se falar ainda em “lendas de jornal” (Zeitungssagen), saint’s legend, belief
legends, além dos causos, histórias exemplares e outras historietas que margeiam o gênero
87
Em Sete Lagoas pode-se ouvir diversas delas. Muito interessantes são as que contam do trevo amaldiçoado
que ficava na saída da cidade, onde os mortos em acidentes pediam carona aos motoristas que por ali
passavam.
88
Uma série de lendas desse tipo foram criadas para explicar uma mancha que apareceu em um muro de uma
residência em Sete Lagoas. A forma da mancha foi identificada pela população local como sendo o rosto do
Cristo. Muitos visitaram o lugar em busca de milagres. Até que o bispo mandou pintar o dito muro.
89
Como aquela que conta da praga lançada sobre a cidade. Um padre, acusado injustamente de ter
engravidado uma respeitável senhora da paróquia, adoeceu de desgosto e morreu. Mas antes de falecer, rogou
uma praga: como castigo pela injustiça, Sete Lagoas ainda haveria de se tornar uma lagoa só.
96
e que sempre se encontram na região fronteiriça entre o factual e o fabuloso, entre o
profano e o sagrado, entre o ritual e a livre performance, entre a tradicional e a popular
culture conforme a relação da contemporary legend com as demais formas de narrativa
tradicional.
(extraído de Smith, 1996:109)
A lenda foi definida como estória”, evento social, um traço cultural universal,
gênero performativo, resposta a um stimulus social, ato comunicativo, espécie de arte,
necessidade psicológica, forma de dialética ou mesmo de filosofia popular, uma reflexão
fantasiosa sobre o mundo real, sistema de símbolos ou forma específica de resposta coletiva
a ambigüidades sociais. Essas inúmeras definições fizeram com que o conceito de lenda
perdesse grande parte de sua operacionalidade. Sua definição quase sempre se dá em
termos de comparação com outros gêneros. De forma que a legend é hoje considerada um
gênero “flutuante”, localizado na interseção entre outros gêneros, como bem demonstra o
quadro abaixo, elaborado pelo folclorista e cientista da religião finlandês Lauri Honko.
97
(extraído de Dégh, 2001:80)
O problema do gênero acabou por contaminar o subgênero lenda contemporânea.
Desde 1925, quando o folclorista alemão Friedrich Ranke empregou pela primeira vez o
termo (reconhecendo a lenda moderna como objeto de estudo),
90
até a explosão dos mass
media e o retorno a esse tipo de narrativa nos Estados Unidos, os estudiosos das narrativas
populares não foram capazes de definir a lenda contemporânea, nem que tipo de análise lhe
seria mais adequada.
91
90
Ranke foi o responsável pela idéia de lenda moderna como “falso relato” pressuposto verdadeiro porque
pretende-se descrição de um fato histórico. O termo foi definido por Ranke em comparação com conto de
fada (Märchen) que constituiria a mais pura fabulação. A lenda moderna seria marcada por sua relação com o
mundo real apesar de constituir uma “falsa notícia”. Essa estratégia de definir a lenda contemporânea por
oposição ao Märchen determina ainda hoje o tratamento dado ao termo (Dégh, 2001:35-36).
91
Os folcloristas americanos foram os principais responsáveis por demonstrar que a lenda sobreviveu à
modernidade. Diferentemente de outros gêneros da literatura popular, a lenda contemporânea/urbana teria
sofrido menos a ameaça de anacronismo graças à sua capacidade de superar a barreira da oralidade. Lendas
desse tipo podem ser comunicadas via imprensa, rádio, televisão e internet. Sobre lenda contemporânea na era
do computador, ver o instigante artigo de Schneider (1996).
98
Muitos foram os critérios utilizados na tentativa de definição desse subnero.
Primeiro estabeleceu-se seu alto grau de flexibilidade como característica principal. Depois
adotou-se a “crença” como diferencial da lenda contemporânea. Para mais tarde avaliar-se a
especificidade de sua performance. Tudo isso, sempre em comparação com outros neros
populares no que diz respeito a forma, função e contexto de narração.
Finalmente, conceitos como lenda urbana, lenda contemporânea, lenda moderna
passaram a constituir termos sinônimos, operacionalizados pelos especialistas interessados
em fazer uma etnografia do living legendry.
92
Nenhum deles, porém, chegou a ser
elaborado de forma sistemática. Não são produto de uma reflexão teórica analiticamente
testada, controlada. Além do que expressam a dificuldade de vários folcloristas em
considerar a relevância social dessas narrativas enquanto gênero orientado para os
problemas locais e interessado em formar opinião.
Posição contrária à de Linda Dégh (2001:90), para quem as lendas, sejam de que
tipo forem, são sempre contemporâneas, por sua própria natureza, no que diz respeito ao
time it is told. A narração deste tipo de história, segundo ela, é sempre um fenômeno
intensificado pela ocorrência de um evento histórico, exatamente como no caso Piriás. Mas
seria esta semelhança suficiente para justificar o uso do termo “lenda contemporânea” para
as histórias fantásticas sobre os dois irmãos de Sete Lagoas? Penso que sim. Para
comprová-lo, decidi comparar vários conceitos de lenda contemporânea, selecionando deles
os aspectos que me pareceram mais adequados para caracterizar algumas das histórias sobre
os Piriás.
93
92
Alguns folcloristas diferenciam, é verdade, lenda contemporânea de lenda urbana. Um deles é Brunwand,
para quem modern urban legends são, antes, representativas da sociedade tecnológica contemporânea. Outro
folclorista, Carl Lindahl, usa o termo supernatural technological helferpara se referir à tecnologia no que
diz respeito à sua importância ou sua inconveniência na vida moderna, como tema de discussão nessas
histórias. Para Lindahl, essa tecnologia possui o mesmo caráter mágico daqueles auxiliares encantados do
conto tradicional (a lâmpada mágica, o pente, a roca ou a panela mágica, além dos animais que ajudam o
herói na sua aventura). O que, segundo Lindahl seria uma prova irrefutável da existência do “outro mundo” na
lenda urbana, que, nesse sentido, seguiria os moldes do gênero clássico, a lenda tradicional. Ver Lindahl
(1996:69-90).
93
Um dos conceitos considerados foi o de Jean-Bruno Renard (1999:6): “Anonymous recital of short forms of
surprising contents, presented in multiple variants told as true and recent, taking place in a social milieu, and
expressing fears an aspirations.” Para uma discussão detalhada do conceito de lenda contemporânea ver
dentre outros Stahl (1977), Röhrich (1966), Gerndt (1988), Graf (1988) e Sedlaczek (1997), além da excelente
coletânea organizada por Leander Petzoldt (1969), que contém os textos mais significativos de folcloristas
europeus sobre o assunto.
99
1) Narrar lendas desse tipo envolve articulação e validação de uma “verdade”. Por
isso, a lenda contemporânea é fruto de uma transação social onde os interlocutores
colaboram cada um à sua maneira no controle da qualidade das informações apresentadas,
ao mesmo tempo que se comprometem com a formulação da narrativa enquanto “versão
verdadeira” do acontecimento histórico. Por isso, a performance, no que tange à lenda
contemporânea, é sempre dialógica e comunal. Sua natureza é dialética e polifônica. É o
que faz dela um gênero tão resistente à entropia.
94
Ela aceita a redefinição do mundo real
pelos interagentes na narração e depende muito mais que o conto de fadas, por exemplo, da
resposta individual a sua mensagem.
2) São histórias elaboradas a partir de um padrão de moralidade que permite a
distinção entre o que é justo ou injusto, honroso ou desonroso, bom ou mal, etc. Por isso,
permite tanto o controle da validade desse padrão bem como a “definição” de um problema
social. Como afirma Linda Dégh (2001:136), o foco dessas lendas são the sensitive social
problems projected in expressive forms”. Nesse sentido, configuram respostas a certos
estímulos de ordem moral e emocional, negociadas e performadas por aqueles que
interagem no momento narrativo.
95
3) A lenda contemporânea trabalha com a sobreposição de dois mundos, o cotidiano
e o extra-cotidiano, num processo de “expansão” do acontecido, onde o limite das
possibilidades reais pertence unicamente aos interlocutores da lenda.
96
O que é real ou não
na narrativa depende daquela negociação que acontece na interação social que constitui o
momento narrativo.
4) A lenda contemporânea, mais que outras formas da tradição, comporta uma
diversidade enorme de formas de apresentação. Ou seja, são diversas as maneiras de se
contar a mesma história, sendo que essas diferentes formas comunicam-se, interferem-se,
têm suas informações cruzadas e são sempre reapropriadas em outras oportunidades de
narração. Portanto, estamos diante de um gênero fixável, mas não fixo. Não uma forma
94
Portanto, o que pretendemos em nossa análise não vai na direção nem de uma “fenomenologia da recepção”
nos termos de Zumthor (1997), nem de uma análise estética da recepção no sentido de Ricouer (1994).
95
Para um exemplo de análise da narrativa popular nos seus aspectos sócio-culturais e enquanto resposta a
problemas sociais, ver o artigo da folclorista grega Papamichael-Koutroubas (1990).
96
Rudolf Otto (1997) foi o primeiro a chamar a atenção para a justaposição entre o real e o numinoso na
lenda. Heinrich Burkhardt foi mais incisivo: viu a lenda como derivada da experiência de encontro com o
sobrenatural. Ele escreve: Legends are popular narratives with unusual contents that often stem from the
break-in of the supernatural world into the world of everyday reality and factual happenings [The legend]
is related in the form of a simple experience-report”. Apud Dégh (2001:39).
100
que se repita, que concentre boa parte dos esforços de um único narrador. Não encontramos
uma versão re-performed, o que demonstra a não dependência da lenda relativamente a
uma forma específica. Pelo contrário: a lenda depende de sua capacidade de mudar, de
inserir-se em ou mesmo confundir-se com outros neros, vincular-se a outros meios para
além da oralidade.
97
5) A lenda contemporânea surge no processo de apropriação de um evento histórico
nos seus aspectos considerados mais significativos.
98
Esse evento deve ser suficientemente
volátil para provocar o sentimento público, a sensibilidade para uma questão específica.
Deve apresentar-se como locus do conflito em que práticas sociais são alteradas; aquelas
práticas que são o tema das lendas. São os valores que determinam o caráter que se
conferido a esse evento, bem como permitem a construção de uma identidade para os
envolvidos no acontecimento, transformando-os em personagens da lenda. A conclusão é
de Kofes (2001): identidades são construídas à medida que vão sendo localizadas em um
repertório de histórias postas em enredo. A lenda configura-se, portanto, como verdadeiro
repertório de ações dotadas de legitimação e significado. Por outro lado, cada vez que dá-se
um evento similar, que permite uma leitura nos mesmos termos, a lenda contemporânea é
intensificada, retomada, rearranjada. Outras oportunidades de narração se apresentam
graças à ocorrência de um evento histórico relacionado àquele já tematizado pela lenda em
ocasiões anteriores.
6) A lenda contemporânea demanda a formação de uma opinião pública, bem como
a percepção de uma ansiedade comum aos interlocutores.
99
Depende de uma plataforma
comum de compreensão que é estabelecida na conversação preparatória que antecede a
narração da lenda. Ou seja, a narração é dependente de uma tomada de posição por parte de
quem participa do momento narrativo.
97
Por isso a oralidade não configura pedra de toque do estudo da lenda contemporânea. Muito se aprende
sobre ela no estudo das assim chamadas media legends onde o foco de análise é a interpenetração entre mass e
folk culture.
98
“Such narratives do not emerge in response to every new component of our enviroment; instead they are
told only about those elements that generate in us some curiosity, some anxiety, some uncertainty such as
(…) the anonymity and violence associated with urban life”. Bogart (1982:100-101).
99
“Any crisis, however mild, arouses popular exitement and leads to formation of a public consisting of those
who are in some way concerned with an event that has disturbed the routine of organized life”. (Shibutani,
1966:56-58). Para uma análise antropológica de lendas sobre o assassinato de crianças negras numa
comunidade em Atlanta, que prioriza a relação das legends com as questões contemporâneas e sua função na
formação de uma opinião pública, ver o excelente texto de Patricia Turner (1991).
101
No caso da seleção desses elementos recorrentes nos vários conceitos de lenda
contemporânea, a nossa atenção esteve voltada para as diferenças na apropriação ou no uso
da lenda como formas culturais. Em nossa abordagem, a prioridade será dada à luta e ao
conflito, mais que à ordem e ao significado. A intenção foi se afastar de uma teoria redutora
da cultura enquanto mero reflexo da realidade social. Neste caso, procuramos fugir à
concepção de formas de ação simbólica como simples expressão de um significado central,
coerente, comunal. Para atingir este objetivo não poderíamos entender as lendas como
textos transparentes: elas são acionadas com diferentes intenções e a partir de diferentes
estratégias. São, em grande medida, “produto da fantasia”, sim, mas no sentido de Dundes:
“One does not escape the real world into legend; rather legend represents fantasy in the real world
(…). It is ‘true’ fantasy, not to be confused with the ‘false’ or fictional fantasy or folktale.” (Dundes,
1971:24)
Ao narrar uma lenda contemporânea, as pessoas reconhecem-se mutuamente por
meio de uma negociação de significações. Cada lenda sobre os Piriás é resultado dessa
negociação. Por meio das lendas, o caso Piriás é envolto sob a forma de um núcleo temático
onde a consciência com relação ao que aconteceu é sintetizada. Ao mesmo tempo, as lendas
se compõem de referências com existência sempre atual e atualizada, bem como de um
horizonte sempre aberto a elementos relevantes.
3.1. Repensando um conceito
As histórias sobre os Irmãos Piriás se colocam na fronteira entre dois conceitos
caros aos estudos de folclorística, sobre os quais os próprios especialistas não conseguiram
firmar um consenso. São eles os conceitos de lenda contemporânea e lenda urbana, e que,
na maioria das vezes, o tomados como sinônimos.
100
No meu caso, muito vinha me
sentindo incomodada com a sinonímia. No projeto para o mestrado usei
100
Não seria o caso de abordar a discussão tal qual ela se apresenta nos estudos de folclore. Sobre as
contradições na descrição da natureza e do status das lendas contemporâneas/urbanas enquanto gênero
folclórico, ver os dois primeiros capítulos do clássico de Linda Dégh (2001).
102
indiscriminadamente as duas expressões, não sem um certo desconforto. Sem o devido
refinamento, nenhum dos dois conceitos cobria meu objeto.
O termo “lenda contemporânea” definia o objeto pela proximidade no tempo. Nesse
sentido, as histórias sobre os Piriás não seriam contemporâneas stricto sensu, que tudo
aconteceu há quase três décadas. Contudo, as histórias são narradas ainda hoje. E por isso,
o ato de narrar é ação contemporânea.
o termo “lenda urbana” delimitava, por sua vez, o objeto no espaço. O que me
criou um problema de ordem metodológica: a Sete Lagoas da época dos Piriás não era
necessariamente o que poderíamos chamar de espaço urbano moderno. Era mais um
contexto de rurbanidade, para usar a expressão de Gilberto Freyre. E essa (con)fusão entre
rural e urbano não se dava somente na esfera da organização do espaço ou da vida na
cidade. Ela é gritante quando se vê naquela Sete Lagoas dois códigos em vigor: um de
comunidade profundamente tradicional com tudo o que a palavra tradicional comporta; e
outro moderno, tentando garantir o estado de direito. O espaço urbano de Sete Lagoas
adotou de jura este segundo código, embora , no tempo dos Piriás, fosse ainda de fato lugar
onde o poder público não chegava para todo mundo, a política ainda era dominada por uma
oligarquia local, as pessoas confundiam esfera pública e privada, direito e privilégio, etc.
O trabalho de campo evidenciou ainda mais a ineficiência do conceito “lenda
urbana” para os casos sobre os dois irmãos. As narrativas recolhidas na zona rural do
município diferem qualitativamente daquelas que recolhi na região urbana. Seja no que diz
respeito à menor permeabilidade ao sobrenatural ou ao maior grau de “deboche” com
relação à polícia, as versões “urbanas” da história dos Piriás são diferentes.
Por tudo isso, optei pelo conceito “lenda contemporânea”. Usam-se três parâmetros
principais para defini-la:
a) a lenda contemporânea tem por base um fato histórico;
b) quem narra uma lenda contemporânea oferece o caso como sendo verdadeiro;
c) a narrativa pode parecer parcial ou totalmente absurda para aqueles situados fora
da comunidade narrativa.
Os Piriás foram personagens históricos e quem conta uma história a seu respeito
confere à narrativa um caráter de testemunho, além de sempre alegar a validade da ação dos
103
irmãos como homens contaminados pelo sobrenatural. Portanto, lenda. Mas e quanto ao
adjetivo contemporânea?
A necessidade de precisar o conceito se faz no sentido de delimitar o campo
semântico da palavra “contemporânea”. Nesse sentido, decidi por tomar o termo
“contemporâneo” num sentido mais preciso: as lendas sobre os Irmãos Piriás seriam, sim,
contemporâneas já que surgem e agem num contexto de modernidade, ou melhor, de
confronto com a modernidade. Não importa aqui se o contexto é rural-urbano ou se tais
histórias se referem a um passado não imediato.
São lendas que m por base um conflito que se origina de uma experiência de
desrespeito social por parte de dois cidadãos simples, vindos do campo e que falham na sua
socialização no meio urbano por não terem reconhecidas suas habilidades nem seu código
moral. O desrespeito ao qual os dois irmãos são submetidos é violento na dupla acepção da
palavra: trata-se do uso da violência a serviço da proteção de interesses privados contra o
cidadão, a quem é negado o reconhecimento do status de pessoa de direito.
101
Por trás desse meu raciocínio está a idéia de adaptação a um “novo sistema”. No
caso dos Piriás, a passagem do rural para o urbano é um dos temas das lendas. Por meio
delas, as pessoas compartilham o desapontamento com a modernidade e seu código. Ou
melhor dizendo, com a “falsa modernização” (Souza, 2000) ou seja, a ampliação do status
de pessoa de direito somente ao nível do discurso, enquanto que, na realidade mais
imediata, o que se verifica é um desacoplamento entre o reconhecimento em termos
jurídicos e reconhecimento em termos de estima social.
É preciso frisar ainda que não disponho das lendas enquanto textos acabados,
independentes de outras falas no contexto narrativo. O que chamo aqui de lendas sobre os
Irmãos Piriás são textos ora longos, ora curtos, mais completos ou rudimentares, sempre
inseridos num contexto de comunicação mais amplo, ao qual denominei momento
narrativo.
102
Cada um desses momentos narrativos registrados por mim, configura uma
101
Gillian Bennett define lendas contemporâneas como product of social strain and social organization of
the response to that strain(Bennett and Smith, 1993:xxxviii). Para Linda Dégh (1983), elas comporiam uma
série de scripts como respostas para problemas contemporâneos. Já Paul Smith (1996:108) afirma que
contemporary legends may also function as part of the non-institutionalized system of information-
dissemination and are often used to impart information about situations in the real world (...). They
disseminate and reinforce existing attitudes by stereotyping, not just people, but also beliefs and attitudes.”
102
Ver anexo. Para o conceito de “momento narrativo”, ver página 115.
104
possibilidade de análise da narração das lendas sobre os Piriás na contextualidade de ões
comuns.
103
Por isso, usarei o conceito de lenda para o caso Piriás de uma maneira mais ampla,
de forma a englobar esses outros exemplares de narrativas. Para uma análise mais
significativa do fenômeno, seguirei o conselho de Linda Dégh:
“I will lump together all of the materials that contain a possible legend core, and will treat them as
legend unless my analisis informs me otherwise.” (Dégh, 2001:97).
Sendo assim, interessam para esta dissertação todos os tipos de narrativa cujo foco
esteja na adequação ou inadequação de condutas e valores que entram em campo quando o
tema são os Piriás embora nosso objeto primeiro sejam as lendas. Primeiro porque são
vários os gêneros narrativos sobre o caso Piriás que se referem à lenda. Segundo porque a
maioria deles se ocupa, tal qual a lenda, em analisar como indivíduos e instituições se
portaram no decorrer daqueles seis meses do ano de 1978. E terceiro, porque cada uma
dessas outras formas de narrar surte algum efeito sobre a lenda e pode acolaborar para
sua manutenção.
103
A menção aos locais onde os momentos narrativos aconteceram também será fornecida de forma parcial.
Gravei momentos assim na rodoviária, numa selaria, numa capotaria, numa joalheria, numa feira, na saída da
missa, numa madeireira, em salões de beleza, praça, fila de posto médico, na sala de espera de um hospital e
ponto de ônibus, além de ocasiões de encontro de familiares como festas de aniversário ou almoços na casa de
amigos e conhecidos.
105
3.2. Lenda e crença
No lugarejo chamado rrego do Soldado, dizem que uma mulher pressentiu que
havia algo de errado com a morte do filho Walace Roberto, de 14 anos, que havia sido
internado no hospital de Itaúna no dia 7 de julho de 2005. Com o incentivo do patrão, a mãe
pediu a exumação do corpo. Quando o caixão foi aberto, o menino estava virado de bruços,
todo arranhado e com as mãos cheias de cabelo. As marcas de unha no caixão são a prova
do desespero do garoto para escapar da morte. Ele havia sido enterrado vivo.
Trata-se de uma descrição dos “fatos” ou de um “produto da fantasia”? Nem uma
coisa nem outra. É lenda contemporânea, matéria de capa do jornal Estado de Minas, e que
procura demonstrar como a transferência do caixão de um menino para o cemitério de
Itaúna, região Centro-Oeste de Minas, foi transformada no que os próprios jornalistas
chamaram de história de terror, boato ou lenda urbana.
104
O esforço da reportagem é no
sentido de apresentar a “verdade” sobre os “fatos”. O jornalista parte do pressuposto de que
o “povo” não sabe separar fato de ficção, que a massa insiste em narrar a lenda apesar de
todos os desmentidos.
Mas quem narra histórias assim “crê” necessariamente no que está narrando? Esta é
a questão que tem provocado muita discussão entre os estudiosos de lendas
contemporâneas. De um lado os que defendem a associação legend/belief. De outro, os
que chamam a atenção para o risco de ceder à conotação quase-religiosa da palavra e ao
“acreditar” como qualidade deste gênero. A mais ilustre defensora da “crença” como
critério-base de qualificação do gênero lenda contemporânea é Linda Dégh (2001:220) para
quem “the legend-tellers are telling the truth.”
Muitos críticos têm acusado Dégh de ignorar que tanto a lenda, quanto a crença e
mesmo o evento que a lenda descreve são constructos (Bennett, 1996). Para estes
pesquisadores, apresentar a lenda contemporânea como história verdadeira seria apenas um
tipo de legend performance, que existem aqueles que narram anti-lendas, histórias onde
104
Depois da morte do filho, declara o diretor do hospital, a família não teve dinheiro para fazer o enterro e o
garoto foi enterrado em vala comum. Alguns dias depois alguém comoveu-se com a história e doou um
túmulo. Apesar de a troca de sepultura ter sido acompanhada por policiais, apesar de o caixão ter permanecido
o tempo todo fechado (segundo declaração do delegado), apesar de o diretor do hospital e a própria mãe
dizerem que é mentira, a lenda passou a circular na cidade inclusive via internet. A lenda termina assim: “Só
agora isso começa a vir à tona, pois tem gente graúda que não quer que a população fique por dentro desse
assunto”. Estado de Minas (02/10/2005, p.22).
106
encontram-se freqüentes marcações que explicitam um esforço de neutralização, de
racionalização do extra-ordinário.
Vejamos um exemplo desse esforço a partir de um momento narrativo registrado
por mim no dia 05/01/2007, na rodoviária de Sete Lagoas, durante um bate-papo sobre os
Piriás.
X: - (...)
A: - Bom, vendendo pelo preço que comprei. Dizem que o Piriá tinha ameaçado o tal do
turco, o Culego...
B: - Mas, no fim, foi a polícia que fez a imagem deles, né? Porque a polícia faz a imagem do
matador.
A: - É! Mas corria que eles desaparecia à força de reza brava, que eles tinha parte com o capeta,
aquele trem de interior. E cada vez mais a polícia ficava mais com raiva por causa disso, que não
punha a o neles de jeito nenhum e tal coisa e tal. Essa de reza brava eu mesmo escutei foi muito.
Que eles tinha reza que protegia eles. Diz que a polícia começava a trocar tiro com eles e ele sumia
na frente da polícia. Tem gente que conta e acredita. Sei não... Na verdade acho que é bobagem. Tem
gente que acredita até que ele virava cupim.
G: - Eu já ouvi sobre isso mesmo.
B: - Nas conversa a gente sempre escutava isso, ah, que Piriá tem parte com o capeta. Está na
frente da polícia, a polícia atira neles, eles some, vira cupim, vira num sei o quê...
A: - É! Mas eu sempre digo assim: gente, deixa de bobagem. Gente, manda esse que tem
reza brava, leva num país desses ruim, que tem guerra entre eles lá, revolução, golpe de estado,
essas coisa, e coloca ele na frente da metralhadora pra nós vê o resultado que vai sê. A gente tem que
ter na cabeça que o dia que isso valesse alguma coisa, todas as guerra, eles iam contratá feiticeiro,
tudo quanto há. Tem que tirá essa bobajada da cabeça, gente. Você não acha?
X: - (...)
O trecho exemplifica bem o que Dégh chama de “crença” e cria um problema para
os seus críticos. Para ela, a crença não se restringe à figura do narrador. No caso, explicitly
or implicitly, the legend must make it clear that its messages is or was believed by
someone, sometime, somewhere (Dégh, 2001:140). Ela prossegue:
“It is not the positive declaration of belief that makes a legend a legend but rather the debate of
participants considering the legend’s believability.” (Dégh, 2001:311)
107
O tratamento que Dégh à questão cobre o spectrum de opções performativas da
lenda como verdade e como fantasia (nos termos “o povo dizia...”, “falam por aí...”, ouvi
dizer que...”, “estou vendendo pelo preço que comprei”). Como vemos no momento
narrativo transcrito acima, não é preciso que um narrador acredite na lenda para que narre
uma boa história. Mesmo porque não se trata de um narrador.
O que Dégh afirma é que a lenda não deriva sua substância da certeza documental
do evento. Para ela, trata-se de um gênero que nasce das esperanças e temores
contemporâneos e por isso mesmo trabalha com uma credibilidade dupla: de um lado a
explicação por meio de uma lógica racional; de outro uma lógica do extra-ordinário. O fato
de uma ou outra lógica prevalecer no relato é sempre questão de opção e não tem nada a ver
com a questão de acreditar ou não na lenda. O que a narração da lenda faz, na verdade, é
apresentar o problema da crença. De maneira que, quem participa do momento narrativo de
uma lenda contemporânea sempre precisa assumir a stand and calls for the expression of
opinion in the question of truth and belief” (Dégh, 1971:67).
105
Vale dizer: a reação positiva ou negativa ao lendário não muda a qualidade e
conseqüente apreciação da história. Falamos aqui de uma prática cultural que, se por um
lado encontra boa parte de seu fundamento em materiais legados pela tradição, por outro
sujeita esse mesmo material à supervisão e à censura. Portanto, não há que se falar das
lendas como um fenômeno cuja difusão é tanto maior quanto mais nos aproximamos da
base da pirâmide social. Não se trata nem de ingenuidade nem de irracionalismo. Não
falamos aqui de histórias engrandecidas pelo “gênio popular”, nem de uma verdade alterada
pela “ingenuidade” também popular. Falamos de um processo em que cabem diverncias
de opiniões, confronto de informações concernentes ao caso.
O momento de narração dessas histórias é um momento de debate intenso e vivo em
que os interlocutores estabelecem tópicos a partir da identificação de pessoas, datas, lugares
relativos ao evento contribuindo com detalhes sobre o seu desenvolvimento. Todos os
participantes são co-proponentes e todos se apresentam com suas crenças (ou melhor,
105
“Legendry is expressive rhetoric promoting a position on the question of authenticity and veracity of is
content. While the exact nature of personal subject belief is irrelevant, it seems to be a rule that the general
reference to belief is an inherent and most outstanding feature of the folk legend” (Dégh & Vázsonyi,
1971:304).
108
“verdades”) para a conclusão da narrativa. O processo está sempre aberto às proposições
dos outros, e dura enquanto as pessoas tiverem tempo disponível para estarem juntas.
106
Narrar uma lenda sobre os Piriás é, portanto, articular “verdades” culturalmente
específicas. Uma articulação que é realizada pelos indivíduos na narr-ação.
3.3. Um gênero comunicativo
Uma coisa é saber que algo como a lenda dos Piriás existe. Outra coisa é praticá-la
narrando-a. E outra ainda é tentar compreender essa prática. Para isso, convém separar,
analiticamente, o conceito da práxis, já que, na verdade, é a práxis que nos revela a lenda.
A lenda surge dentro de uma seqüência de comunicação que, por sua vez, configura
o contexto de narração. São “textos” que não contam com uma fórmula para abrir nem para
fechar sua forma de apresentação. O que não quer dizer que a lenda não possa ser
identificada como uma amostra de ato comunicativo dentro de um contexto de interação
mais amplo.
O processo de construção da lenda é social. Portanto, se na ação daqueles que
participam do momento narrativo. Ao narrar uma lenda sobre os Piriás, o que se faz é
constituir um contexto de interpretação para a percepção que se tem daquele evento onde os
irmãos estiveram envolvidos. É o significado da formação deste contexto e sua natureza
pragmática que pretendemos verificar.
Para isso, partimos do princípio de que o momento de narração dessas lendas deve
ser entendido e definido como um conjunto de condições interativamente produzidas, de
forma que o sentido da narração constitui-se in situ. Quer dizer, quem quiser participar
desta forma de comunicação específica tem que dominar as regras que definem os termos
da narração da lenda. Sendo assim, identificamos a lenda como um gênero comunicativo
nos mesmos termos que Jörg Bergmann (1987) usa para definir as narrativas cotidianas e
sua forma tão distanciada das formas ideais de narrativa que seguem o paradigma literário.
106
Nesse sentido, caberia melhor o conceito de Umberto Eco para aqueles que participam da narração de uma
lenda contemporânea. Em vez de falarmos em crédulos, deveríamos falar em incréus: Not that the
incredulous person doesn’t believe in anything, It’s just that he doesn’t believe in everything... Incredulity
doesn’t kill curiosity; it encourages it” (Eco, 1986:xx).
109
Pessoas que participam desse tipo de ato comunicativo dominam a forma espontânea” de
organização do momento narrativo como um todo.
107
O mesmo acontece no caso das lendas em questão: trata-se de relatos proferidos na
interação e que devem, portanto, ser entendidos como produtos da interação. Afirmar que a
lenda é organizada de forma interativa significa dizer que os interagentes promovem sua
narração no entendimento tuo e segundo princípios que devem orientar uma conversa
sobre os Piriás. Por isso, para a descrição e compreensão dessa espécie de gênero
comunicativo que são as lendas de que tratamos nesta dissertação, não basta uma análise da
narrativa isoladamente. É preciso compreender a narração, ou seja, os princípios e regras
que permitem ou não que a lenda seja narrada.
108
O que pretendo demonstrar é que uma lenda sobre Piriá, no contexto de
comunicação cotidiana, aparece quase sempre integrada a uma seqüência de interação
comunicativa. A seqüência de interação onde a lenda aparece alojada inicia-se com a ação
dos interlocutores, que in situ, procuram reconhecer competências específicas antes de
decidirem por compartilhar suas assertivas e opiniões em relação ao tema da lenda.
109
Eis um exemplo:
X: - (...)
A: - É importante sim. Os velho estão morrendo e a gente fica sem saber das memória, dos
ensinamento antigo.
G: - Ainda mais em Sete Lagoas, que tem muita história, né?
A: - É sim. Mas é difícil ver uma moça nova interessada em história de gente velha.
G: - Eu gosto. É porque eu estudo a história da cidade.
B: - Ah! Agora eu entendi. O Sérgio também estuda história, né?
G: - É! E diz que quem dorme com o capeta cria rabo...
[risos...]
G: - Mas tem uma história especial. Quero escrever um trabalho na universidade sobre ela.
107
Bergmann (1987:43-47) define essas “formas primárias” de narração como gêneros comunicativos
(komunikative Gattungen). O conceito foi originalmente desenvolvido por Thomas Luckmann (2002:183-
200).
108
Para uma discussão nos mesmos termos para a “fofoca” como gênero comunicativo, ver Bergmann
(1987:57). À leitura deste seu livro devo a inspiração para todo o argumento desenvolvido nesta seção.
109
É como no caso da piada, para citar um outro gênero comunicativo da tradição oral. Ao contar piada, o
indivíduo nunca tem certeza se fará os outros rirem ou se terá seu comportamento considerado inconveniente
ou estranho pelo público. Mas tenta garantir o “sucesso” de sua ação procurando verificar as condições de
interação que ordenam o momento narrativo específico no qual deseja interagir.
110
A: - Qual?
B: - Não vai me dizer que é sobre a Central.
G: - Não. É sobre os Piriá.
A: - Os Piriá! Vixe!
B: - Mas você se lembra disso, menina?
G: - Lembro. Que quando eu era criança, mãe vivia mandando a gente sair da rua que Piriá
pegava. A gente ficava morrendo de medo.
[risos...]
B: - É! Foi um caso famoso.
G: - Mas foi verdade mesmo?
A: - Bom! O povo falou muito na época.
B: - Deu no jornal.
A: - Mas o que você quer com essa história?
B: - O Teko comentou comigo que você quer escrever um livro!
G: - É um trabalho para a universidade. Uma pesquisa de mestrado.
A: - Um livro sobre os Piriá ia ser interessante. Muita gente ia querer ler. Mas tem que ter
cuidado. Afinal o assunto é meio brabo.
G: - Eu sei. Mãe e pai vivem falando isso. Mas sempre que eu posso, pergunto quem lembra.
B: - É, mas não é todo mundo que fala assim. Se bem que depende. Sendo gente conhecida, de
confiança. Já te contaram alguma coisa?
G: - Já! Contaram que os dois eram irmãos e tiveram uma pendenga com a polícia. Ah, e que
bala não pegava os dois e que eles podiam até virar cupim.
[risos...]
B: - Mas falaram já pra você do caso aqui no Paredão?
G: - Já! Fiquei sabendo que mataram um soldado com apelido de peixe... como é que era
mesmo?
B: - Surubim. Um soldado pintadinho assim, mais que ocê.
G: - É isso! Surubim. não entendi direito o motivo da encrenca dos dois com a polícia.
Parece que um fazendeiro, um tal de Culego, ou Galego, sei lá...
A: - Culego! O nome dele era Culego. Contratou o serviço dos dois de empreito. Pra fazer uma
cerca.
B: - Combinô e não pagô!
X: - (...)
111
Eis o registro de uma seqüência de interação onde o tema Piriá é introduzido.
Participei ativa e intencionalmente, “criando” a oportunidade de narração sobre o caso.
110
Para isso, tive de provar para meus interlocutores que detinha uma espécie de conhecimento
prático que me permitia tanto reconhecer” a história dos Piriás, quanto participar de sua
narração de uma forma efetiva.
111
Quem participa do momento narrativo de uma lenda de Piriá deve “conhecer o que”
(ou seja, deve deter um conhecimento substantivo do tema) e “conhecer como” (ou seja,
deve deter um conhecimento processual da narr-ação). Deve preencher uma série de
condições de realização da ação comunicativa em que ocorre a lenda, já que a lenda só se
narrada se os participantes do contexto comunicativo identificam seu interlocutor e quais
podem ser as possíveis reações ao que vier a ser dito.
O que Bergmann chamou de “garantia do entendimento intersubjetivo”
(Intersubjektive Verständigungssicherung) dentro da seqüência interativa de comunicação
permite aos participantes da narração da lenda decidirem se e como participar, bem como
escolherem o que e como narrar.
112
Percebe-se que, no caso, expectativas mútuas de
comportamento estão mergulhadas no fluxo da interação. Conseqüências da narração são
antecipadas, avaliadas, percebidas, interpretadas, confirmadas e levadas em consideração
durante toda a seqüência de interação, e não somente no preparo da narração.
113
É como se
110
Minhas intervenções são assinaladas com a letra G. O momento narrativo aconteceu no decorrer de uma
festa de aniversário de minha sobrinha no dia 14/01/2007. Neste momento conversávamos eu, R.A., 62 anos e
J.D., 64 anos, velhos conhecidos da família. Tive a ajuda de uma irmã que registrou por escrito uma boa parte
da conversa, embora não estivesse participando dela. Só mais pelo meio da conversa, disse aos meus
interlocutores que tinha anotado o que tínhamos conversado, pra não esquecer. Mostrei as anotações e
perguntei se poderia continuar anotando. Os dois se surpreenderam. Mas depois de ver o papel anotado,
assentiram, ressaltando que aquilo era o que “todo mundo dizia”. Um deles disse: “Sei não. Tem que ter
certeza de falar só o que os outros disseram”. O momento narrativo sobre os Piriás acabou se perdendo no
contexto da festa.
111
Para uma justificativa desta estratégia, ver Boyes (1996:41-54).
112
Aqui discordamos abertamente da folclorística e da valorização de um common frame of reference (Honko,
1962:96-99) como necessidade primeira da narração oral. Um common frame que, na verdade, é sempre
avaliado, não é perceptível, nem se trata de uma evidência por si . Pelo contrário, precisa ter sua presença
comprovada, avaliada. Discordamos também de Linda Dégh (2001:316), para quem a única qualificação
necessária para a narração de uma lenda é a fascinação com o “world featured by the legend and deep concern
with its messages”. Vê-se que no caso de narração de uma lenda de Piriá, esse inherent frame of reference,
formado por tudo aquilo que persuade os participantes à conformidade in responding to information
(impulsos sociais, crenças, anseios, medos, pressões) não é suficiente para fazer das pessoas interlocutores
nesse sistema de comunicação.
113
Nas transcrições que apresentamos em anexo, pode-se perceber claramente que esse processo de
interpretação e confirmação das conseqüências da narração é retomado enquanto durar a interação. O que
confirma a preocupação de todos os envolvidos com tais conseqüências. A verificação dos critérios para
112
todos o que tomam parte na ação de narrar pretendessem determinar o curso da narração. E
nesse sentido, a narração de uma lenda de Piriá é sim uma ação construída em termos
daquilo que é fundamental para os participantes do momento narrativo: no caso, a mútua
inteligibilidade da mensagem da lenda e a mútua responsabilidade quanto ao seu conteúdo.
É o que se pode perceber numa entrevista que realizei em 04/01/2007 num armazém
tradicional da cidade. Iniciei a conversa com o Sr. A.S., de 83 anos. Cheguei ao local com o
intuito de realizar uma entrevista em termos formais. Apresentei-me, mas logo fui como
que forçada a identificar minha origem familiar. Depois de se informar por onde andam
minha mãe e meus tios e depois de se assegurar sobre quem “eu realmente era”, é o que Sr.
A.S. se dispôs a conversar sobre os Piriás.
X: - (...)
G: - Agora estou morando em Mariana.
A: - Veio ver sua mãe?
G: - Foi. Mas estou aproveitando também para pesquisar sobre uma história que aconteceu na
cidade.
A: - Motivo de estudo, então.
G: - É. Tenho que escrever um trabalho para a universidade.
A: - Mas você já não é professora e advogada, menina. Estudando mais?
G: - É. O problema é que quero dar aula na universidade e pra isso tenho que estudar mais.
A: - E a advocacia?
G: - Não é pra mim não, Seu A.S.. Advogado tem que ter paciência e cara-de-pau e eu não
tenho nenhuma das duas coisas.
[risos]
A: - Mas paciência não dá pra não ter.
[Entra um freguês. Compra alguma coisa e os dois conversam rapidamente].
A: - E sobre o que você quer saber do velho.
G: - Queria saber se o Sr. se lembra de alguma coisa dos Piriás.
A: - Demais. Comprei muito arroz na mão do pai deles. Moravam aqui na Várzea.
G: - E era gente de bem?
julgamento moral das ações e ordens sociais apresentadas na lenda também é retomada sempre que
considerado conveniente, numa tentativa de garantir a compreensão subjetiva tanto das circunstâncias, quanto
do conteúdo da narração. A inteligibilidade da lenda deve ser mútua para que as compreensões ordinárias de
ação e evento que ela veicula possam ser concretizadas e mantidas no decorrer da narração.
113
A: - De pavio meio curto, mas de bem. Muito trabalhadores. Eles tinha um circo de torada.
X: - (...)
Eu estava gravando, mas, segundo as normas, deveria pedir a autorização. E
assim fiz. Foi quando a conversa mudou de tom. A fala do entrevistado então se tornou
mais controlada e ganhou um certo ar de artificialidade. A empolgação inicial esfriou e a
conversa passou a depender única e exclusivamente do meu interesse (agora identificado
como interesse de pesquisa) e do meu empenho. Ele só respondia ao que eu perguntava.
G: - O Sr. se importa se eu gravar nossa conversa? É que a memória falha. E tenho conversado
com muita gente.
A: - Tem problema não. Se é pra trabalho de estudo, não tem problema. Mesmo porque o que
eu lembro é o que todo mundo lembra.
G: - O que o sr. lembra?
A: - O pai deles foi preso acusado de acobertá os filhos. Um velho. Ficou na cadeia.
G: - Ouvi sobre isso mesmo.
A: - Pois é! O Caolho era bom de montaria. Eles tinha um circo de tourada e montavam aqui na
praça da igreja quando das festa. Eram trabalhadô. Mas de pavio curto. Depois falaram que a polícia
judiou com eles. Mas eu não sei se é verdade.
G: - E o Sr. lembra de dizer por que é que eles se envolveram com a polícia?
A: - Parece que pessoal daí não queria eles na terra deles. denunciô eles. Denunciô
injusto. Mas era forte de poder.
G: - E aí eles foram presos!
A: - Foram. Mas depois foram soltos e aí começou.
G: - A polícia demorou a pegar os dois, né?
A: - Foi. Demorou muito. E aí começou a inventá história.
G: - As histórias de que eles dois tinham o corpo fechado?
A: - Ah! Mas isso é conversa. Falavam que eles tinha oração que protegia eles. Que o pai fez.
Mas não é isso não.
G: - O que é então?
A: - Acho que a polícia é que não conseguia acompanhá os dois no mato.
G: - A polícia pegou os dois?
A: - Falaram que a polícia pegou eles dormindo dentro de uma bueira. Mataram eles lá.
G: - Mataram?
A: - Diz que mataram.
G: - Apresentaram os corpos?
114
A: - Acho que levou eles dois pra Belo Horizonte. Deu no jornal que eu lembro. O jornal
contava a ladainha deles.
G: - É verdade que teve gente que protegeu os dois?
X: - (...)
É o que acontece sempre que procurei registrar a narração da lenda no contexto de
pesquisa. A forma de narrar torna-se descontínua, fragmentada, sujeita a reiteradas
correções, revisões da mensagem, subordinada a marcações quanto à origem das
informações.
114
Essa situação se altera quando o contexto de entrevista formal dá lugar a
um momento narrativo.
Chamo de “momentos narrativos” as situações de interação em torno do tema Piriás.
Trata-se de algo totalmente diferente da entrevista nos termos da História Oral. Nesses
momentos narrativos, não raro, pessoas entram e saem da conversa sem que eu tivesse tido
chance de registrar nenhuma informação sobre elas. Várias vezes registrei esses momentos,
ou trechos desses momentos, por escrito, simplesmente porque na hora não dispunha do
gravador ou porque a situação de interação se apresentou de forma absolutamente
espontânea, sem qualquer planejamento de minha parte.
No decorrer do momento narrativo, dois ou mais interagentes participam da ação
comunicativa, esta que implica em reconstrução de experiências e acontecimentos
intersubjetiva e socialmente significativos em termos morais. O resultado desse verdadeiro
evento narrativo é a lenda enquanto registro de uma hierarquia valorativa, fruto de
“ajuizamentos” sobre a conduta dos persongens que participam da história. Uma hierarquia
produzida na ação, portanto.
A caraterística essencial do momento narrativo é o maior grau de espontaneidade na
participação dos informantes, algo muito diferente do que acontece na entrevista. Muitas
vezes, mesmo sabendo que conversam com alguém interessado em realizar uma pesquisa
sobre os Piriás, as pessoas acabam se distraindo desse “detalhe”, que, no momento
narrativo, podem amparar seus relatos uns nos outros e dividir responsabilidades quanto às
suas “versões”. Visto que as pessoas invariavelmente explicitam o medo e até resistem em
tocar no assunto num contexto formal de pesquisa e ciente do esforço de meus informantes
114
Aprendi em campo que, como pesquisadora, não tenho como ser reconhecida como uma original
destination. Portanto, não “mereço” um original text, para usar os termos de Paul Smith.
115
em resguardarem suas falas optei por usar na transcrição dos relatos apenas letras do
alfabeto. A letra muda quando muda o interlocutor, mas sem revelar-lhe a identidade.
115
Na maioria das vezes, as pessoas resistiram em conversar comigo sobre o caso num
contexto de entrevista formal. Como exemplifica bem a entrevista acima quando os
próprios informantes promoveram a transformação do contexto de entrevista em um
momento narrativo. Diante da última pergunta que lhe fiz (“É verdade que teve gente que
protegeu os dois?”), o entrevistado sorriu e deu uma pausa, que durou até a interferência
do Sr. G.M., 49 anos, filho do entrevistado, e que, pouco antes, tinha entrado no
estabelecimento e acompanhava a conversa. Com a chegada deste segundo interlocutor, que
de certa maneira, foi autorizado e mesmo incentivado pelo interlocutor mais velho a
participar da conversa, saímos do molde de entrevista formal e entramos no momento
narrativo, onde passaram a interagir todos os presentes. Foi quando a narração da lenda
assumiu um caráter muito mais espontâneo, uma verdadeira seqüência de interação
comunicativa.
116
Procuremos descrever uma seqüência de interação sobre o caso Piriás com mais
detalhes. Num contexto espontâneo de narração de uma história deste tipo, as fronteiras
performáticas são bastante amplas. O local onde um caso desses vem a ser narrado é
geralmente um lugar informal, marcado por uma certa espontaneidade. A performance, por
isso mesmo, tende a ser mais animada, divertida, menos séria e controlada. Seja como for,
uma conversa sobre Piriá “engrena” depois que os envolvidos se certificam das
circunstâncias nas quais se encontram. Por isso, no caso específico das lendas sobre os
Piriás, a conversa se inicia de forma cautelosa, marcada por um controle sobre a forma de
relatar o que se “sabe” e por uma necessidade de garantia quanto às reações virtuais dos que
ali se encontram.
Inspirada em Bergmann, elaborei um esquema onde se pode visualizar como o
contexto da conversa é produzido pelos interlocutores da lenda. Esta ação comunicativa, na
115
Para pontos de contato entre esta forma de registro etnográfico e a etnometodologia, ver Bergmann (1987)
e Heritage (1999)
116
Cf. a transcrição deste momento narrativo no anexo ao fim desta dissertação.
116
forma em que se realiza, serve como uma espécie de “grade” (Muster) capaz de acomodar
outras seqüências de interação de narração de lendas de Piriás.
117
S
EQÜÊNCIA DE INTERAÇÃO COMUNICATIVA DE UMA LENDA DE
P
IRIÁ
C
ONVERSAÇÃO PREPARATÓRIA
LENDA
C
ONVERGÊNCIA DE NARRATIVAS
De início, o contexto de comunicação se caracteriza por uma avaliação da
receptividade no que diz respeito à adequação dos presentes às exigências do “gênero
comunicativo” (no caso, as lendas sobre os Piriás). Inspirada na leitura de Bergmann,
chamarei esta fase de conversação preparatória”: o momento que antecede a introdução,
no fluxo da conversa, da lenda propriamente dita e que visa conferir se as condições para a
narração da lenda se apresentam.
118
Primeiro, avalia-se a relação entre os possíveis
interlocutores, procurando aferir até que ponto “todos” compartilham dos termos da lenda,
conhecem sua mensagem, o que se sabe sobre o acontecido e, principalmente, que tipo de
opinião se tem a respeito. então tem início a interação propriamente dita, a partir da
garantia de que a narração será sustentada por todos de forma que as responsabilidades
pelos efeitos da mensagem da lenda sejam divididas.
117
Cf. Bergmann (1987:136). Que este esforço de compreensão da forma de organização da narração da lenda
não venha a ser tomado como um desejo ingênuo de reificar a situação de narração num contexto padronizado
e determinante. Tenho consciência de que cada situação de interação difere, em maior ou menor grau, de
todas as outras. As pessoas criam, sustentam, participam dessa atividade essencialmente transformável.
Contudo, apesar do contexto de narração poder vir a ser alterado ou restaurado (no curso e por meio da
narração), estamos diante de uma forma de organização uma estrutura? – onde os participantes estabelecem
um conjunto de expectativas e obrigações uns com relação aos outros.
118
Bergmann (1987:114) fala em Prä-Sequenz.
117
Se os interlocutores são identificados como pessoas inapropriadas para participar da
narração, a lenda não aparece. Imagina-se que o ouvinte vá achar a história desinteressante,
absurda. Ou que o argüido não será capaz de narrar o que pretensamente deveria ser
narrado. Se os interlocutores, ao contrário, são identificados como capazes de narrar/ouvir a
lenda, quer dizer, se são classificados como pessoas que aceitam a mensagem na sua forma
considerada “original”, então a lenda será narrada com empolgação, a mensagem se
apresentará de forma mais íntegra, destacada dentro da seqüência de interação
comunicativa.
Nessa espécie de prospecção da conversa, que nada mais é que uma tentativa de
antecipação da conduta dos envolvidos na narração, não se é informado apenas sobre o
conhecimento prévio do objeto da lenda. Esse momento visa esclarecer também que tipo de
conhecimento os interlocutores têm sobre esse objeto. Os interlocutores fazem questão de
considerar a qualidade desse conhecimento.
É através deste procedimento que se define quem pode ser interlocutor, quem pode
ou deve agir na narração, quem participará ou o da co-produção da lenda, e mesmo se a
lenda será ou não narrada. Porque narrar algo sobre os Piriás não se limita a informar sobre
o que aconteceu a esses dois irmãos. Narrar aqui significa disposição e habilidade do
produtor ou co-produtores da lenda em colaborar no contexto de interpretação para as
informações que a lenda traz consigo.
* * *
Em resumo, nesta fase de preparação, os envolvidos pretendem:
a) assegurar-se da disposição dos presentes para participar da narração da lenda
(narrar junto ou ouvir);
b) certificar-se do conhecimento que já se tem quanto aos “fatos” a serem narrados;
c) verificar se há “interesse” quanto ao que vai ser informado; e, por fim,
d) negociar a posição de produtor e/ou receptor da informação da lenda.
Depois desta fase preparatória a qualidade da comunicação se modifica.
Assegurados todos esses itens, a narração flui. As pessoas se soltam; se dispõem a narrar,
118
livres que se sentem da necessidade de se precaver quanto aos efeitos da mensagem da
lenda ou do temor quanto à reação dos presentes, agora alçados à condição de parceiros de
interação. A partir daí, todos os interlocutores garantem seu “direito de fala” [Rederecht].
119
É importante a aquisição deste Rederecht, que a narração de uma lenda de Piriá
sempre comporta comentários, exige posicionamento, implica valoração por parte dos
atores da narração no que diz respeito ao comportamento dos protagonistas. A reconstrução
do evento ao qual a narração da lenda se propõe não é valorativamente neutra. Não o os
fatos que são informados, mas sua valoração”. Diante da variedade de comentários que se
apresentam no decorrer da co-produção da lenda é preciso submeter-se à negociação: se os
outros parceiros de interação assentem com um comentário, este acaba sendo repetido ou
mesmo reforçado. Caso contrário, a fala do outro será desdita de imediato. Vejamos um
exemplo.
X: - (...)
A: - Eles era é benzido. Acendi vela benta e pus na porta da casa pra cercá Piriá. Na época tive
muito medo.
G: - Medo de Piriá?
A: - Medo do estranho.
B: - Ah! Bobage! Era fechamento de corpo que nada. Era mais medo da polícia.
G: - Medo da polícia?
B: - É! A polícia ficou com medo do Piriá. Queria pegá os dois vivo. E nem vivo, nem morto.
X: - (...)
120
Podemos ver neste trecho um exemplo do que afirmamos: que a narração de uma
lenda de Piriá configura um momento de negociação de pretensões de validade das
percepções que cada um tem do evento. Os interlocutores participam, colaboram cada qual
com seu quinhão, desdizendo-se uns aos outros, ou apoiando assertivas a partir de outros
pontos de vista. Todas essas intervenções acabam por coadunar-se no “texto” da lenda,
fruto de uma negociação no interior da seqüência de interação.
119
O termo é empregado por Bergmann (1987) e Luckmann (2002).
120
Momento narrativo dia 15/01/2007, numa mercearia em Santana de Pirapama. Sem informação sobre os
interlocutores, no caso, uma senhora, um senhor de idade e eu. Forma de registro: anotação.
119
Esse amálgama de pretensões possibilita a divisão de responsabilidades quanto à
“verdade da lenda”. Como foi dito, mesmo se tratando da reconstrução de um
acontecimento específico, os produtores da lenda estão interessados em efetuar uma
generalização dos tipos sociais em discussão.
121
O proferimento desses juízos de valor
que fazem da lenda um relato moral implica uma certa responsabilidade que demanda,
por sua vez, disposição para a cumplicidade na práxis comunicativa. Por isso, a lenda é
narrada quando se confirma a possibilidade de que sua asserção em termos morais pode ser
aceita como válida. A narração da lenda depende dessa cumplicidade ancorada em regras e
valores compartilhados pelos interlocutores no momento narrativo. Contudo, tais regras e
valores morais não chegam a ser explicitamente formulados no decorrer da práxis
interacional, embora determinem em larga medida a forma como a seqüência de interação é
estruturada. O que é dito, como é dito e pra quem é dito depende dessas regras e valores
que conferem ao momento de interação um caráter moral explícito.
A narração da lenda aparece, assim, moralmente ordenada. O lugar onde não apenas
os atores do evento são tipificados e indexados em termos morais, mas também os
interlocutores da lenda. A intenção parece ser sempre a de alertar para o fato de que o “caso
é sério”, porque diz respeito a ferimento de normas, a falhas de conduta, a injustiças e
incompetências, arbitrariedades e indolências. Sendo assim, qualquer um que “ousar” falar
do caso, tem que estar muito bem resguardado, que a lenda é sempre uma representação
tendenciosa, no sentido de que quem narra e pelo simples fato de narrar – de certa
maneira acaba por dar razão aos Piriás, ou seja, acaba posicionando-se contra a polícia.
O que a lenda faz é incentivar a necessidade de correção de alguns atos e condutas.
Atos e condutas que não são selecionados a partir de critérios como verdade ou
objetividade, mas a partir de seu caráter de referência moral. Por isso, a lenda acaba sempre
por prover um sentido moral para aqueles que dela compartilham, que valoriza a forma
de realização dos Piriás (ou seja, o reconhecimento de suas características e qualidades
diferenciais) desencadeando nos interlocutores um sentimento ativo de reconhecimento
ou até de admiração dessas figuras. Sendo assim, cooperar na construção da narração é
partir de uma noção de ordem moral.
É o que se pode verificar no momento narrativo a seguir.
121
No capítulo 4 tratarei desse processo de “tipificação”.
120
X: - (...)
A: - Diz que quando convocava soldado aqui pra pegá Piriá, vinha todo mundo com medo.
Dizem até que teve gente que fez xixi nas calças.
[risos]
A: - Isso é folclore, né? Mas saía todo mundo de lá, todo mundo corria. Teve que vir reforço de
Caeté, porque a polícia daqui saía correndo.
[risos]
G: - A polícia deve ter ficado bastante incomodada.
A: - Foi. Eles queria polícia. O negócio deles era gente fardada. Porque foi a polícia que
judiô deles. O povo também revoltô com isso. Ninguém ficou contra os Piriá. Tinha medo deles. Mas
não ficô contra não.
G: - Mas eles roubaram muita gente.
A: - Eles não foram julgados. E costumava rouas coisa e vendia, mas era pra sobrevivência,
né, que com a polícia atrás não dava pra trabalhar. Era a polícia aparecer, eles sumiam. Que eles era
gente briguenta era, mas era gente trabalhadora.
B: - Isso não deu nos jornais da época não?
A: - Deu. Sete Lagoas virou manchete.
B: - E você não conseguiu os jornais não, Giulle?
G: - Consegui.
B: - Cadê?
G: - Estão lá em casa. A próxima vez que eu vier, te mostro.
A: - O jornal deu muita coisa. Mas muita coisa de interesse. O negócio era acalmá a população,
porque todo mundo estava torcendo pelos Piriá.
G: - Mas não teve jeito, não. A fama se alastrou.
A: - É! Viraram lenda, né?
B: - E as pessoas contam pra rir da polícia?
A: - Tinha mesmo esse negócio de contá pra debochá da polícia. Na verdade, a polícia custou
foi muito pra levantar o nome dela aqui em Sete Lagoas.
G: - O povo então concorda que eles foram injustiçados?
A: - Concorda. Eles usaram do último recurso pra fazer justiça.
B: - E pelo visto, conseguiram, porque ninguém esqueceu deles.
X: - (...)
122
122
Momento Narrativo numa reunião de parentes na casa de meus pais em 12/07/2007. Interlocutores: P.G.,
59 anos, J.L., 24 anos, e eu.
121
A narração da lenda, neste caso, depende de uma certa garantia quanto ao padrão
moral que deve conduzir a conversa, que narrar a lenda implica indexar moralmente os
personagens do evento a partir de valores compartilhados pelos interlocutores, que podem
ser sim “negociados”, que comportam diferenciações em termos de detalhes. No que
tange ao padrão moral, todavia, cabe o consenso, que é este padrão que define (de
antemão) quem é quem na história. Entende-se que é este padrão moral que deve orientar a
opinião dos interlocutores sobre o caso quando da narração da lenda.
Sendo assim, somente depois do controle dos pressupostos contextuais e da
certificação da relevância compartilhada do conhecimento de fundo moral que a narração
implica é que a lenda pode ser efetivamente narrada, assumindo-se os riscos de participação
em um relato moral. Por isso, a narração é tão marcada por estratégias de autorização
quanto ao conteúdo, sobretudo no que diz respeito à validade dos argumentos empregados.
* * *
Na atividade de análise da conduta moral que a lenda realiza não como narrar de
forma neutra e distanciada. Nela, não é o conteúdo que interessa, mas seu comentário e sua
avaliação. Daí o caráter moralmente contaminado da informação que se transmite na lenda.
Na verdade, menos que a descrição do que aconteceu, o que se faz na narração é
(re)construir moralmente o evento, de forma que não são os fatos isoladamente que devem
ser apreendidos, mas sim o conteúdo moral da história.
Tanto é assim que, após narrada a lenda, o que se segue na seqüência de interação,
não raro, é a narração de outras histórias numa espécie de convergência de narrativas, cuja
tarefa parece ser o reforço do centro moral da lenda. Por meio dessas outras histórias, os
interlocutores na seqüência de interação comunicativa acabam por reforçar as opiniões
morais expressas na narração da lenda. E o fazem comparando condutas, personagens e
eventos como se solicitassem a confirmação do conteúdo moral da lenda.
Vejamos um exemplo.
Depois de falar muito dos Piriás frisando, de forma muito insistente até, sua
condição de homens trabalhadores e honestos, e de insistir na questão de que a polícia, na
época dos Piriás, “andou matando trabalhador”, um lavrador da região de Maquinezinho
122
(lugarejo pertencente ao município de Cordisburgo) começa a falar sobre uma outra época.
Época de convocação para a guerra, quando a “polícia” ainda sabia distinguir o trabalhador
do indolente.
X: - (...)
A: - A polícia matou dois na mata de eucalipto. Um homem e uma mulher. Achou que era
Piriá. Mas era trabalhador.
G: - E o que aconteceu depois?
A: - O Estado teve que indenizar, né, porque era trabalhador. Mas eu vou te contar uma outra
história do freguês aqui do tempo que vinha polícia pegando aqueles rapaz, principalmente... de
preferência o preguiçoso. O trabalhador não viria pegar. Levava pra guerra e pro luto. O esquadrão
vinha pegando, amarrando e levando. O preguiçoso ia pro fogo da guerra. A polícia vinha. E aqueles
rapaz mais novo da época, eles fugia pro meio do rio. Eles pegava uma barca e pegava uma pedra e
levava ela, amarrada no cipó. Chama poita. Ali deitava. Fazia a cama na canoa e dormia. Agora os
velho levava comida pra eles. Quem era preguiçoso ficava bão pra trabaiá ou tinha que cortar a poita
se não quisesse ir pro fogo da guerra.
[risos]
B: - Meu pai, nessa época, ele conta, isso foi nos anos 40, 41 mais ou menos que a guerra
terminou em 44...
A: - 45.
B - Não, 44. Chamaram pra acabá com o fogo lá. A polícia vinha pegar. Meu pai contava que
na região de Matozinhos, os rapazes escondiam era na lapa.
G: - Na lapa?
B: - É lá região de muita lapa. Minha mãe fez promessa de levantar a bandeira de Santo
Antônio pra livrar meu pai da guerra e todos os descendente homem da família. E ninguém serviu
nem exército até hoje.
G: - Mas ninguém é preguiçoso.
B: - Ninguém tem que ir pra guerra dos outros...
A: - Agora tinha um que sabia uma reza que chama reza de São Marco da Orelha Parada. Reza
e se ele não quisesse, a pessoa não via ele. O esquadrão estava em baixo. Disseram pra ele. Ele
então falou que não tinha medo deles não e foi até lá. No meio da estrada deu de cara com os home.
Virou pra eles. Quando os soldado viram disseram: “olha que cavalo o de dar uma volta”. Ele
então riu. Os soldado então disseram: “Ele relinchô. Quer ir andar!” E foram passando. O cavalo era
ele. Virou cavalo na força da oração.
123
X - (...)
123
Observe-se que as narrativas sobre as estratégias de fuga da convocação acabam por
reforçar o argumento moral que fundamenta a leitura que os informantes fazem do evento
Piriás. Primeiro a idéia de que homens trabalhadores devem ser respeitados; segundo que
devem evitar se envolver em guerras dos outros”. Por meio dessas narrativas, os
interlocutores da lenda acabam por desenhar uma verdadeira topografia moral do contexto
em que os Piriás e todos os membros da comunidade de comunicação estiveram (e estão)
envolvidos. Um reino onde deve reger a moral e a honra, a coragem e o valor do trabalho, a
fé e astúcia, a solidariedade e a cumplicidade entre aqueles que se conhecem. São narrativas
que têm em comum com a lenda a discussão moral de condutas e instituições e parecem vir
como reforço ou mesmo atualização da mensagem da lenda. Esse conjunto de narrativas,
juntamente com a lenda, desencadeia um processo de progressiva assimilação das
expectativas de comportamento normativo e moral por parte dos interlocutores. Elas
colaboram para que as pessoas desenvolvam a percepção de quais expectativas elas devem
atender ou exigir.
Falamos aqui de um verdadeiro mundo de “sentimentos morais” (Taylor) que a
lenda e as demais narrativas a ela justapostas tornam acessível, experimentável. No
decorrer da seqüência de interação, os sujeitos podem refletir sobre os valores objetivados
nessas narrativas, articulando sentimentos morais sob forma discursiva.
Nas lendas articulam-se noções de justiça, honra e dignidade e tenta-se impedir que
essas noções percam sua força condutora e inspiradora dos comportamentos no meio social.
Mas a lenda em si não tem como garantir que tais noções se tornem ineficazes enquanto
fonte moral da conduta. Quem narra a lenda sabe disso. Sabe que está num contexto de
“negociação” onde a noção de ordem moral, bem como todo o conhecimento de fundo que
de certa maneira determina o contexto de interação entre as pessoas, será e está
constantemente sujeito a reavaliações. Por isso, o máximo que essas histórias podem fazer é
oferecer-se como forma de articulação reflexiva de sentidos valorativos. O que elas fazem é
tornar visível o esforço intersubjetivo de articulação de temas, sentimentos e vivências sob
a forma de narrativas. Na figura dos Piriás (ou em outra que se preste à mesma função), a
123
Momento narrativo dia 11/01/2007. Maquinezinho. Interlocutores: P.M., 68 anos, lavrador, H.M., 75 anos,
lavradora, meu pai, 62 anos, agricultor e eu.
124
lenda desdobra e objetifica valores, provoca reações como admiração, respeito, reprovação
e até medo. Mas pára por aí.
A perspectiva que adotamos aqui considera que narrativas como as lendas sobre os
Irmão Piriás são mais que estruturas lingüísticas. O que nos permite reconhecer que
narração implica acomodação de interesses, participação negociada em verdadeiras
transações sociais que dizem respeito menos à verdade dos fatos do que às formas de sua
percepção. Por isso, podemos reconhecer as lendas na sua intenção de correção dos atos e
das normas morais de conduta, mesmo que elas não sejam capazes de alterá-los de forma
imediata. Importa mais, no caso, o debate que a lenda permite e seu efeito de reflexão
quanto à realidade e aos padrões de referência que orientam o comportamento das pessoas
em sociedade. Trata-se de uma perspectiva de análise onde a teoria narrativa não goza de
primazia sobre a práxis narrativa, nem a representação se impõe à comunicação, pois
reconhece a interdependência entre expressão e contexto de expressão, entre ação de narrar
e sentido da ação narrativa.
3.4. Outros gêneros narrativos
A lenda mediatiza a relação com a realidade. Por isso trata-se de uma relação de
outra ordem, parcial em certo sentido. A experiência é construída a partir das imagens
fornecidas pela lenda; o que é contado é experimentado de forma concreta.
O caso Piriás tornou-se um espetáculo interessante para esse tipo de construção
secundária da realidade. Além das lendas, foram várias as forças que concorreram na
construção da imagem dos dois irmãos. Outras instâncias acabaram por promover uma
ampliação da narração do caso, e, por conseguinte, do próprio acontecimento. Um dos
resultados dessa ampliação, e talvez o mais interessante, foi a diversificação dos efeitos da
lenda no contexto mais geral. A preeminência dada ao caso dos Piriás nos meios de
comunicação parece ter ampliado a familiaridade com a “forma” como as coisas
aconteceram. E a discussão da forma como as coisas aconteceram, no geral, se deu nos
termos da lenda, que parte da percepção pública da dificuldade de um dado grupo
operacional – a polícia – em cumprir sua função.
125
Referimo-nos aqui de uma verdadeira tipologia das narrativas sobre os Piriás, já que
a imagem dos dois irmãos é moldável segundo o ponto de vista narrativo. um cordel,
dois filmes (sendo um deles, um documentário), uma novela, diversas reportagens em
jornais locais e da região, dois levantamentos cnicos (um histórico e um patrimonial),
além das experiências de vida (narradas por pessoas que viveram de forma direta os
acontecimentos) e da lenda.
Cada um desses neros narrativos motiva de uma maneira diferente, que todos
se apresentam como capazes de provocar sentimentos carregados de valores no público. E é
assim que todos eles, ao lado das lendas, reinauguram o acontecimento histórico como
totalidade de sentido. Cada recontar reativa essa totalidade que é a memória do evento. Esta
memória é a realidade na qual se crê. Nesse sentido, tanto as lendas como qualquer outra
narrativa sobre os Piriás, “fazem a memória”. Daí seu efeito normativo no que diz respeito
ao que “deve ser lembrado”. É essa anamnese ou seja, esse “fazer a memória” que
restitui a presença dos Piriás na contemporaneidade da narração.
A narração, nesses termos, é sempre uma apresentação seletiva do passado, onde
lembranças entram em conflito, disputam autoridade e emprestam à realidade uma
dimensão plural. É “o jogo entre lembranças e esquecimentos” de que fala Kofes (2001:12),
e que confere um caráter negociado à mensagem da narrativa. As lembranças acionadas no
decorrer da narração não são iguais, o que gera sempre algum tipo de conflito acerca da
posse da interpretação registrada em cada caso específico. Diversas interpretações são
dadas aos acontecimentos e negociadas no processo de rememoração.
A narração de um caso de Piriá configura, portanto, um processo de rememoração
de figuras e eventos entendidos como dignos de lembrança. Assim, a memória local sobre
esses dois irmãos se molda no decorrer de inúmeras oportunidades de narração de suas
histórias. Trata-se de uma memória “formalizada” em narrativas, ideologicamente mediada.
Narrativas que cumprem a tarefa de produzir experiências e construir sujeitos.
As formas dessa reconstrução narrativa são múltiplas. Algumas representações
desse passado seguem uma tendência unificadora e expressam o desejo de estabelecer a
verdade histórica com base em fontes de informação diversificadas. É o caso das matérias
de jornal sobre o caso, que se ocupam da descrição da configuração do acontecimento. A
descrição se dá a partir das diversas “versões dos fatos” disponíveis, que o jornalista
126
recolhe e organiza segundo uma “pretensão de verdade” impermeável à negociação
argumentativa.
Em outros tipos de narrativa prevalecem outras percepções, como é o caso dos
filmes, do cordel e da novela de Francisco Timóteo sobre os Irmãos Piriás. O efeito é de
reassimilação, reforço (ou intensificação) e distribuição do imaginário lendário sobre os
irmãos a partir de outras estruturas de narração e outras formas de comunicação. Nessas
outras estruturas, a interpretação do evento também tem como objetivo reencenar a lógica e
o sentido do que aconteceu, mas de uma outra maneira, priorizando outros significados,
privilegiando outros interesses.
124
Essas diversas formas de narrar a história dos Irmãos Piriás empregam meios de
comunicação e práticas narrativas múltiplas, que se sobrepõem, se interpenetram, se
contrapõem. Há a associação da palavra falada e do texto escrito; a palavra falada fixada na
escrita; a linguagem da lenda traduzida em imagem. Todas empregam meios para
influenciar e firmar a memória sobre o caso. Todas agem nessa disputa pelo
reconhecimento da validade de seus termos; querem se afirmar como “memória verdadeira”
em algum sentido. Por isso mesmo, todos esses gêneros de elaboração do que aconteceu
com os Piriás estiveram interessados em conferir significado ao evento, procuraram validar
direitos e papéis sociais, agiram com o propósito de apagar todas as outras interpretações.
Não raro são narrativas inconciliáveis, embora se apresentem rias vezes
justapostas devido ao processo de abdução de lembranças que marca a construção de todas
elas.
125
Seja na lenda, no cordel, nos filmes ou nas reportagens de jornal, tenta-se sempre
um acordo com outras formas de comunicação do evento, ao mesmo tempo que se
124
No futuro pretendo analisar o efeito desses outros vetores de transmissão da memória sobre os Piriás
(imprensa, filme, novela, cordel etc.) sobre o conteúdo das lendas. Outra questão interessante que vai merecer
nossa atenção é o problema da invenção ou “romanceação” do passado envolvidos em algumas dessas formas
de narrar. Como exemplo, podemos citar o alto grau de estilização do conteúdo da lenda em um dos filmes e
de ideologização desse mesmo conteúdo no cordel.
125
O conteúdo da lenda parece ter influenciado a resposta dos habitantes de Sete Lagoas ao conteúdo dos
outros gêneros narrativos. No caso do documentário, exibido no cinema da cidade, registrei a opinião de
pessoas que não ficaram satisfeitas com o “enredo”. Um dos entrevistados comenta: “Não contaram as coisas
como realmente aconteceram. Inclusive colocaram na minha boca coisa que eu não disse, nem pensei”
(06/01/2007). A crítica se refere à construção de uma memória dos fatos da qual o entrevistado não participou
e que por isso mesmo é desautorizada por ele. Outro comentou (03/01/2007): “Fizeram um filme sobre eles.
Nunca vi filme ruim desse jeito (...). Não tinha ação, não tinha nada. Nem mostra eles matando eles. Mostra
eles morrendo, no fim do filme. Muito sem graça. A história que eu sei é diferente. É a seguinte...”. Parece
que cada confronto com um novo gênero narrativo provoca no público uma revisão acerca das narrativas
consideradas legítimas. No caso deste último interlocutor, a narrativa legítima continua sendo a lenda.
127
estabelece uma diferenciação com relação a elas. Assim, cada um desses gêneros narrativos
acaba por constituir “guetos” normativos lutando por maior espaço no ambiente de discurso
mais amplo sobre os Piriás.
Cada uma dessas formas de narrar constitui uma espécie de diagnóstico. Há o
diagnóstico popular, dos policiais que participaram da caçada” aos irmãos, das viúvas dos
oficiais mortos, mas também do jornalista, do historiador, do cineasta, do escritor etc. Entre
eles, um ponto em comum: a descrição parece sempre ser uma conseqüência da reação ao
comportamento dos atores do evento. É o que acontece no caso da figura dos irmãos, cuja
posição e ão passam por “racionalizações” com base em justificativas ora históricas, ora
legais, ora psicológicas, conforme o gênero narrativo. Cada tipo de narrativa explica de
forma diferente porque os Piriás agiram como agiram.
Ao comparar esses diagnósticos podemos perceber que cada um dos gêneros
empreende a elaboração de uma racionália específica: um mesmo dado, dependendo da
função que lhe é atribuída, pode ser utilizado de diversas maneiras. Como exemplo,
podemos citar a morte dos policiais pelos Piriás. aqueles que duvidam que os irmãos
tenham mesmo matado policiais.
“Na época rolou mesmo o boato de que não teriam sido os Piriás que mataram os policiais. Na
verdade, foi um erro da polícia, que na confusão, desorientô e saiu atirando, atirando e matando
quem não devia. Mas como não tinha ninguém lá pra ver a não ser Deus...”
126
“Ninguém sabe se foram os Piriá que mataram a polícia. E ninguém sabe se os que foram mortos
eram mesmo Piriá.”
127
Outros “confirmam” que os Piriás mataram sim, mas somente os policiais que
teriam judiado deles na cadeia.
“Eles juraram pegá foi o tal do Surubim, que parece ser o que judiou dos dois na cadeia. E pegaro.
Com um tiro no meio da testa que o Caolho não errava tiro não.”
128
126
Momento narrativo na fila de espera de atendimento hospitalar, Sete Lagoas, 07/01/2007.
127
Momento narrativo na feira da Boa Vista, Sete Lagoas, 15/07/2007.
128
Momento narrativo com dois senhores no posto de Saúde do Bairro Nossa Senhora das Graças, Sete
Lagoas, 15/03/2005.
128
Outro exemplo é o caso do rádio. Ora os Piriás foram acusados injustamente do
roubo de um rádio; ora roubavam rádios e pilhas para que pudessem se informar dos passos
da polícia. Outras ainda, o rádio é substituído pela vitrola, pela eletrola ou pelo toca-fitas.
também formas diversas de apropriação da figura da cadela pelas diferentes
narrativas. Ora eram os Piriás que tinham uma mascote que os ajudava dando sinal da
aproximação da polícia. Ela teria sido morta pelos policiais.
“O Piriá matou o Geraldinho da gia. a polícia matou a cachorra, porque a cachorra
tava defendendo eles. A polícia tava com medo deles pelo que eu vi.”
129
Ora foram os Piriás que mataram a cadela que ajudava os policiais nas buscas.
X: - (...)
A: - Era raiva da polícia, porque ela perseguia eles e eles roubava pra comer. A polícia tava
com uma cachorra. Eles corriam é da cachorra.
B: - Sei não. O que sei é que no início da vida deles eles tinham uma cachorrinha. E ela é que
protegia eles.
A: - Não. Quem matou a cachorra dos Piriá foi a polícia. Piriá matô foi soldado.
X: (...)
130
E ainda a reportagem publicada no Estado de Minas, segundo a qual os Piriás
teriam matado covardemente uma cadela em uma fazenda. Neste último caso, o destaque
vai para o requinte de crueldade dos “bandidos” que teriam atirado por puro gosto uma
cachorrinha prenhe.
“A cadela Amanda estava deitada na sala. O animal recebeu uma carga de chumbo no pescoço, mas
não morreu. Ontem à tarde, Amanda olhava para as pessoas que chegavam ao casebre e se limitava a
rosnar baixo. Ela devia dar cria nos próximos dias...”.
131
129
Momento narrativo num sítio no lugarejo de Maquinezinho, cujos interlocutores eram P.M., 68 anos,
lavrador, H.M., 75 anos, lavradora, meu pai, 62 anos, agricultor e eu, 10/01/2007. Em reportagem, o lavrador
João Inácio de Oliveira fala da cachorrinha que acompanharia os Piriás: “Eles estão com uma cachorrinha
vermelha. O animal está muito magro, mas enleia nas pernas deles e late muito” (Estado de Minas,
09/08/1978 e 11/08/1978).
130
Participaram desse momento narrativo M.A, 67 anos, dona de casa, E. A., 73 anos, lavrador, J. A., 70 anos,
lavrador, meu pai e eu. Registrado no decorrer do de uma conversa de fim de tarde na casa de um morador do
Maquinezinho, 11/01/2007.
129
Como se vê, cada tipo de narrativa cria uma hierarquia de significação dos fatos,
atribuindo-lhes funções diferentes como elementos da história. Essa hierarquia é reveladora
dos valores que movem a narração. É o que se nota ainda no Levantamento Histórico
realizado a pedido da ILCOM Mineração e Indústria e Comércio Ltda, para se contrapor a
um laudo arqueológico apresentado pelo IPHAN a favor da preservação da lapa onde os
Piriás teriam se refugiado e que fica dentro do terreno da citada mineradora.
132
No
levantamento avalia-se “a pertinência da recomendação para a autorização de um Programa
de Preservação da Memória dos Irmãos Piriás” segundo as Diretrizes para o Patrimônio
Histórico e Cultural.
133
Ali advoga-se a legitimidade da manutenção do “mito” dos Piriás
por meio do tombamento da gruta dentro do terreno da empresa. Os autores do
Levantamento Histórico evitam explicitamente a análise dos fatos e fundamentos cio-
culturais que deságuam no surgimento do “mito Piriás”. O julgamento que fazem do caso
expressa uma espécie de profissão de fé positivista.
“A nós ‘letrados’, de quem se espera uma capacidade crítica mais apurada, cabe até abstinar-se de
juízos de valor, mas dizer que o crime, desde que cometido por trabalhadores ‘desqualificados’ e
apenas contra policiais é legítimo ou mesmo aceitável equivaleria a anularmos todo o processo de
evolução humana da qual a Ciência, e principalmente as Ciências Sociais, é balizadora. Há menos
que estejamos prontos a administrar as conseqüências que adviriam das então concessões penais a
toda criminalidade que se originar das desigualdades sócio-econômicas.”
134
A lógica que governa esta narrativa é a das instituições (públicas, privadas ou
“científicas”) que se engajam na construção do Levantamento e que simplesmente negam a
tradição oral que se formou em torno dos Piriás como fenômeno digno de importância. A
131
“Piriás atacam de novo e matam um lavrador”, Estado de Minas (15/08/1978). A reportagem apresentou
inclusive, em destaque, uma foto da cadela viva e com olhar tristonho, bem na cabeceira da página, entre duas
outras fotos. De um lado, o casebre da vítima. Do outro, a família do lavrador com seus sete filhos. A
crueldade dos Piriás também pode ser “comprovada” nos comentários do Capitão da Polícia, que concluiu
“por dedução lógica” que foram os Piriás que mataram o dono de Amanda: Furiosos, eles lhe cortaram a
língua. Depois, furaram o seu olho para que ele não pudesse reconhecê-los. Mas o velho morreu de tanto
sangrar.” Jornal Em Tempo (16/08/1978).
132
Levantamento de Potencial de Patrimônio Cultural. Belo Horizonte, junho de 2003 [1-24].
133
Levantamento Histórico: discussão quanto ao valor histórico-cultural da ‘saga’ dos Irmãos Piriás. Sete
Lagoas, abril de 2005 [1-18].
134
Transcrito ipsis litteris do Levantamento Histórico, p. 15.
130
tradicionalização da tradição oral, além dos novos registros discursivos como a imprensa e
a mídia cinematográfica, é citada, mas apenas para ser imediatamente deslegitimada. O
papel das lendas no desenvolvimento de um senso de lugar e de pertencimento (que por si
já valida a argumentação pró-conservação da gruta) sequer é mencionado.
E mais. Ao contrário da lenda, o relatório faz uma análise dos irmãos Sebastião e
Orlando a partir de uma “teoria correcional dos desvios” que permite localizar numa
característica específica a predisposição para o crime. Os Piriás são descritos no
Levantamento Histórico como criminosos devido à perturbações de outra ordem que não o
fracasso de sua socialização secundária: o Levantamento diagnostica os impulsos
criminosos dos dois irmãos como expressão de uma moralidade individual deficiente. A
estratégia usada na narrativa é correlacionar ambiente social e crime, num argumento que
advoga a afinidade entre pobreza e desvio de conduta, naquele velho e conhecido discurso
sobre as “classes perigosas” (os desempregados, os subempregados, os negros etc.) em sua
ameaça constante aos valores das classes ditas “respeitáveis”. A linguagem utilizada nesta
“versão dos fatos” opõe ordem e desordem ao mesmo tempo em que vê nos Piriás a
realidade do pobre perigoso, criminoso, perturbador da ordem e da paz social.
“(...) homens nascidos em berço de chão’, sem qualquer escolaridade, recuados em sua
insignificância sócio-econômica, famigerados situação de boa parte dos brasileiros, comum
também aos trabalhadores rurais do interior mineiro.”
135
E continua:
“Acaso hoje somos tão tolerantes com as ‘vítimas sociais’ desprovidas de oportunidades (...) a ponto
de considerar heróis ainda que de sua ‘classe’? (...) O fenômeno social da criminalidade generalizada,
em decorrência de um mundo de desigualdades, será a partir de então objeto de tombamento do
patrimônio histórico e cultural? Penso que as razões (e os desvios psíquicos) individuais para as
contravenções não podem ser flexibilizadas a ponto de alcançarem a dimensão representativa de um
protesto ou uma ação social, conforme está sendo sugerido pelos colegas [do IPHAN].”
136
135
Levantamento Histórico, p. 5. O grifo consta do original.
136
Levantamento Histórico, p. 15.
131
o cordel Os Irmãos Piriá: uma guerra no sertão apresenta os mesmos Piriás
como homens revoltados com as desigualdades estruturais e dispostos a morrer em nome de
seus ideais. Promove-se assim uma “esquerdização” dos protagonistas. A ação dos irmãos é
interpretada como uma advertência dramática contra os abusos da autoridade policial e do
poder patronal. O texto deságua quase que numa convocação à violência coletiva, prato
cheio para uma análise histórico-cultural nos termos de E. P. Thompson (2005).
E a vida continua
Dura, perversa e mortal
A violência anda nua
Nas manchetes do jornal
E por mais que morte mate
Há sempre alguém em combate
Contra o crime oficial.
Piriá brota no rio
No meio do capinzal
Renasce no desafio
No mato e na capital
Um Piriá morre aqui
Outros levantam dali
Até a meta final!
137
Ao comparar os gêneros narrativos sobre os Piriás, percebemos que o que é
compreendido como reação à arbitrariedade da polícia, pode ser interpretado, outras vezes,
como expressão de “disposições comportamentais” duradouras. Ora temos narrativas que
amplificam a ação da polícia e obscurecem o protesto contra suas práticas, ora elas mesmas
retiram os Piriás do anonimato numa espécie de crítica velada à instituição policial.
Estamos, pois, diante de uma pluralidade de perspectivas morais.
Tal pluralidade pode também ser encontrada nos dois tipos de lendas sobre os Piriás
por mim identificados. Tipos estes que se definem a partir da forma como
valorizam/justificam a conduta dos irmãos. Apesar de nos dois tipos de lenda articular-se a
137
Cordel Os Irmãos Piriá: uma guerra no sertão (1979), de João Evangelista e Toninho Camargos [pp.
40,41]. O mesmo tom ideologizado pode ser percebido em reportagens como a que foi veiculada pelo jornal A
Gazeta (30/12/1978), onde o jornalista Gilberto Menezes conclui: “Os Piriás foram sepultados em Beltrão,
longe dos olhos curiosos. Muita baboseira circulou por em seu nome e antes que o capim cresça sobre sua
morada, é bom repetir que a dupla, que mereceu tantas manchetes nos jornais e lendas nas mesas dos
botequins, pagou o preço dos pecados de todos nós, governantes e governados. Orlando e Sebastião Patrício
da Costa repetem viciosamente outros milhares de marginais fabricados no dia-a-dia, alimentados pelo ódio
injetado violentamente pela sociedade, pelo abandono, pela humilhação, pela insegurança, ignorância, fome.
A receita é simples. Menino sem escola e sem pão, cresce Piriá”.
132
demanda pública por uma resolução do conflito entre polícia e sociedade civil, em um o
passado dos Piriás é irrelevante, enquanto no outro, é o passado que determina todo o
futuro dos irmãos.
Neste último caso, as pessoas localizam num passado bem mais remoto a origem da
tragédia dos Piriás. Eles teriam matado a própria mãe, que rogou-lhes uma praga: “Nunca
haveriam de dormir mais de duas noites num mesmo lugar e viveriam como bicho no meio
do mato”, disse-me uma senhora no decorrer de um momento narrativo sobre Piriá num
salão de beleza, no bairro Canaã, em 04/07/2007:
X: - (...)
A: - É! E praga de mãe né! Ai...
B: - Pois o caso deles foi isso mesmo. Praga de mãe. Parece que foi porque eles bateram na
mãe, né?
A: - Bateram não, minha filha! Mataram. Mataram a própria mãe. Uma coisa horrorosa. Por
isso pagaram a pena.
C: - Ah, foi? Disso eu não sabia. O que ouvi dizer foi a mãe morreu quando deu à luz.
A: - Não. Ela mãe rogou a praga nele. E mãe pra rogar praga em filho tem que ter um muito
bom motivo.
C: - Mas não dizia que o pai é que fez oração pra fechar o corpo dos dois?
B: - Pai, né! É outra história.
A: - Vai vê que os dois não se davam, né?
B: - Mas isso ninguém pode dizer, porque ninguém sabe, ninguém viu. E essas coisa de casal é
sempre muito complicada. Melhor não meter a colher...
C: - Que coisa estranha, Deus me livre: praga de mãe e proteção de pai!
A: - A sina deles era mesmo matar, pra cumprir o destino.
B: - Mataram só polícia. O primeiro foi ali no Paredão.
A: - O quê que você tanto escreve, menina?
G: - Estou anotando pra não esquecer a história.
A: - O que eu sei é isso. Foi um furdunço em Sete Lagoas no tempo dos Piriá.
X: - (...)
138
138
No cordel, um pai de santo incorpora o espírito dos Piriás e deixa que os dois contem sua história.
Sebastião, o Piriá mais moço, diz: “Minha mãe ao me parir / Faleceu de tanta dor, / E por isso eu recebi / A
fama de matador! / Eu carrego essa ferida / Desde o princípio da vida / Como se fosse um tumor. Os Irmãos
Piriá: uma guerra no sertão, p.160.
133
Nesta narrativa o foco é a falha na socialização primária dos irmãos. A conduta
desviante dos Piriás é apresentada como determinada por fatores situados no passado
longínquo dos dois indivíduos, de forma que a escolha e a ação individual dentro do mundo
social é reduzida a tendências fixadas. Assim, Orlando e Sebastião têm seus atos
apresentados como independentes de suas respectivas consciências. O fato de matarem
policiais seria assim mera circunstância precipitadora de um destino ou uma predisposição
traçada no passado. Neste tipo de lenda todas as circunstâncias presentes são ignoradas e
o fracasso na socialização secundária é mero reflexo do fracasso na socialização primária
dos Piriás.
no outro tipo de lenda, os Piriás se apresentam como atores conscientes, livres
dos determinantes de eventos passados e de supostos distúrbios psíquicos ou morais. A
ênfase é posta na socialização secundária incompleta. Orlando e Sebastião aparecem agora
como personagens deslocados, como atores “fora do lugar” no interior de uma ordem cujos
códigos “secretos” eles não dominam.
X: - (...)
A: - Contava que eles entravam no canavial e virava e sumia, né? Que eles tinha parte com o
capeta, num é isso?
B: - O povo contava essas lenda todas.
A: - É! O povo contava. Contava assim, igual nós tamo falando aqui.
B: - O rádio dava notícia toda hora. Informava à população por onde os Piriá tava andando. E
informava os Piriá onde é que tava a polícia.
A: - Eles atirava só na testa. Não errava mesmo.
B: - Não teve polícia pra por a mão neles.
A: - Olha que veio polícia de Belo Horizonte com cachorro. Eles cercaram o canavial. Viam
Piriá entrando no capinzal, mas não via saindo. Isso aqui perto, em fazenda aqui perto.
G: - Essa confusão com a polícia é que não sei explicar direito.
A: - Ah, disso eu me lembro. Bom, vagamente. Acusaram os dois de ter roubado um rádio.
B: - Uma vitrola que eles tinham comprado na Bemoreira.
A: - Mas eles não roubaram. Foi desculpa da polícia pra prender os dois que estavam cobrando
serviço do fazendeiro. Prenderam o Piriá e judiaram demais dele. Judiaram demais.
B: - eles revoltaram. Mas revoltaram com a polícia e começou a confusão. Da parte deles
mesmo era vingança. Só atiravam na polícia. Não foi?
134
X: - (...)
139
Vê-se que razões diferentes resultam em narrativas diferentes. Moralidade
individual, ambiente social, circunstâncias econômicas, podem ser apresentados como
centrais para a justificação da conduta dos personagens. De qualquer maneira, a visão de
como o mundo funciona nos termos de cada relato é sempre parcial.
É assim que todos esses gêneros narrativos concorrem na elaboração de uma
memória para o caso Piriás como algo capaz de promover sentimentos, valores. que a
visão do que é a ordem social está longe de ser consensual, esses relatos, cada um à sua
maneira, organizam os elementos do acervo de informações a respeito do caso. Em cada um
deles, significativo é tão somente o que se elege como tal (exatamente como acontece na
lenda).
Aqui estamos diante de algo diferente da representação do passado compartilhada
por uma coletividade nos termos de Halbwachs. Podemos falar, sim, em “memória
coletiva”, mas no sentido de que todos esses relatos individualmente considerados, e apesar
de sua variação, apontam para a importância da análise de condutas em termos morais
como algo central em seu conteúdo. É este o caráter recorrente e repetitivo de toda narração
sobre os Piriás e é ele o alvo da aceitação ou o do público que se confronta com essas
mensagens.
Apesar de a reação pública aos Piriás ter sido e ser ainda tão diversificada, percebe-
se que o olho que observa o evento é moralizador. É esse olho que vence o abismo entre o
que “a história” tem a dizer e as percepções que prevalecem num dado tempo e espaço de
narração.
140
139
Momento narrativo registrado durante a visita à casa de um velho conhecido de minha família, em
10/07/2007. Da conversa participaram o sr. J.L., 82 anos, a sr. M.L., 63 anos, e eu. O trecho foi anotado, por
eu não dispor de gravador naquele momento.
140
Seria um desafio e tanto escrever uma história da recordação desse acontecimento. Mas deve ser deixada
para outra oportunidade a busca pela compreensão de como as pessoas assimilaram e reconstruíram esse
passado, uma análise que parta de uma concepção de memória como fenômeno sempre atual, “um laço vivido
no presente eterno” (Nora, 1984:xvii) bem como fenômeno comunicativo (Assmann, 2000).
135
3.4.1. A imprensa e a lenda
No caso dos Piriás podemos observar o fenômeno de interpenetração entre mass
culture e folk culture. Pois ao contrário do que comumente se afirma, na fronteira com a
lenda não está o conto maravilhoso, mas a notícia.
141
Tanto no caso da lenda quanto no caso
da notícia de jornal the moralizing frames of the accounts were a part of that rhetoric of
truth”, como bem nota Elliot Oring (1996:329). E a despeito das diferenças entre a forma
de construção da reportagem e da forma de construção da lenda contemporânea, ambas
produzem seus respectivos “efeitos de verdade” sobre o evento. Notícias e lendas,
informam sobre o acontecido, já que “events make stories but stories conceptualize events”,
sendo que uma notícia “may imply a moral well” (Oring, 1996:322).
Embora as lendas sejam associadas à ficção e as notícias apareçam como sinônimo
de fatos, a notícia não deve ser entendida como oposto da lenda.
142
Primeiro, porque não
raro, a própria imprensa se vale da lenda para criar “uma boa história”.
143
Em casos como
os de Lampião, dos Irmãos Naves, do Bandido da Luz Vermelha e mesmo Fernandinho
Beiramar, a imprensa colaborou ativamente na construção de verdadeiras mitologias. Essas
figuras atuam em histórias que fazem parte dos grandes momentos da imprensa, do rádio e
da televisão exatamente porque permitiram à mídia, naquele momento, a exploração de
uma promessa de mito que se desenhava. Eram casos capazes de mexer” com a opinião
pública. Não foi diferente com os Irmãos Piriás, que na época estiveram no centro das
atenções, de forma que sua história foi acompanhada durante meses por uma audiência
atenta e interessada. A mídia esforçou-se amplamente por integrar todos os comentários ou
todos os fenômenos relativos ao caso. E por vezes assumiu claramente a função de
141
Para uma análise da insistência da literatura especializada na comparação entre a lenda e o conto
maravilhoso, ver Bascom (1965), Dégh (1972:58-60) e Oring (1990). Sobre a íntima relação entre lenda e
media e sobre a imprensa como potencial source of legends, ver Darnton (1975), Hughes (1940), Mitchell
(1979), Brunwand (1981), Fischer (1985), Stephens (1988) e Dégh (2001:171-203). Para uma análise
antropológica dessa relação entre notícia e lenda com foco privilegiado na narração e menos na narrativa, cf. o
excelente texto de Stevens (1990).
142
A factualidade e a objetividade configuraram estandartes do jornalismo no século XX. A imprensa passou
a ser entendida como uma poderosa organização dedicada à apuração e informação dos fatos. Ao Quarto
Poder não caberia juízo de valor. Interpretações, quando aparecem, são atribuídas a uma fonte. As opiniões da
imprensa em si ficam reservadas aos editoriais. Contra a ilusão da transparência da representação dos eventos
podemos alegar que a seleção do que será ou não news está longe de ser factual ou objetiva.
143
Veja o caso do menino enterrado vivo na matéria do Estado de Minas, ou da lenda do menino de três olhos
publicada no Hoje, jornal local de Sete Lagoas.
136
direcionar a opinião pública ou difundir reações e resultados pretendidos pelas forças
políticas e sociais envolvidas.
144
Segundo, porque a reportagem se empenha em neutralizar
o suposto efeito de irrealidade atribuído à lenda, se opondo a ela, ao mesmo tempo que
colabora na sua difusão.
Mas o que se pode perceber é que as reportagens pouco alteraram a percepção que a
comunidade de comunicação da lenda tinha e tem do caso Piriás. Como no caso da lenda do
menino enterrado vivo em Itaúna, ou do menino de três olhos de Sete Lagoas, as pessoas
continuaram insistindo na fábula, utilizando-se das informações obtidas nas notícias de
jornal para atualizar e amparar suas narrativas. A notícia é comumente usada para
confirmar a legitimidade da “verdade” da lenda; quase nunca para desautorizá-la.
É o caso da reação dos conhecedores da lenda diante da notícia da morte dos Piriás.
Tive a oportunidade de realizar o experimento de confrontar pessoas que acreditam que os
Piriás ainda estão vivos com as fotos dos seus corpos publicadas nos jornais da época.
(foto publicada no jornal Estado de Minas, 27/12/1978)
144
Podemos apontar algumas evidências do esforço da imprensa na época para influenciar as atitudes públicas
com relação ao caso Piriás. Ao mesmo tempo que a cobertura “profissionaldo caso colocava a história para
circular, ela convocava a população para a denúncia, cedia espaço para supostos experts comentarem o caso,
concedia a palavra à polícia reproduzindo seu discurso de “esclarecimento” do acontecido, fazia uso de fotos
e imagens que ultrapassavam em muito a mera ilustração dos fatos.
137
A reação, em todas as vezes em que fiz este experimento, foi sempre a mesma: a
foto não foi capaz de abalar em nada a convicção de que os Piriás escaparam com vida.
X: - (...)
G: - É! Mas não dá pra fazer como fizeram com os Piriás. Acabaram mortos sem julgamento.
A: - Dizem que mataram, né? Mas ninguém... bom, isso eu não sei. Mas você se lembra
dessa história?
[segue a conversação preparatória, onde os interlocutores se certificaram de quem eu era e do que
eu sabia. Até que descobrimos que temos um conhecido em comum no bairro Padre Teodoro. A
conversa ficou mais solta. Então retomei o assunto dos Piriás.]
G: - Os Piriás também moraram na Várzea, né? Parece que trabalharam na Fazenda da
Melancia.
A: - Trabalharam nessas fazenda tudo aqui. Eram valente pra trabalhá.
B: - É!
G: - Eu ouvi dizer que a polícia matou os dois. Será que foi isso mesmo?
B: - Num sei!
G: - Conheço muita gente que diz que eles não morreram. Que estão bem vivos pra contar a
história.
A: - Pois é! ! Ninguém viu o corpo. Não teve nem velório. Diferente do caso do Damião
de Cachoeira do Macaco.
B: - Os corpos foram apresentado lá na frente do [cemitério] Santa Helena. Tinha até mulher
grávida morta a tiro. Confronto com a polícia.
G: - Dessa história eu não lembro. Que coisa absurda.
A: - Isso é muito estranho mesmo, porque se tivesse tido um velório do Piriá, Nossa Senhora, ia
ser o maior de todos. Todo mundo ia lá. Mas ninguém viu.
B: - Diz que pegaram eles na beira de um corgo, sei lá. Mataram pelas costa e pegaram assim
como indigente. De emboscada.
A: - Isso parece uma história sem cabimento. Quem é a mãe dos Piriá? Ninguém sabe. Não teve
choro nem revolta de parente nenhum!
G: - Eu tenho aqui um jornal da época.
A: - De onde isso, menina?
G: - Estudo a história da cidade, e um conhecido meu que é jornalista me arrumou pra eu fazer
um trabalho.
B: Posso ver?
[Os dois olharam o jornal com a foto dos dois irmãos mortos. Não leram a notícia; só a manchete.]
A: - Estranho! Esse jornal é daqui?
G: - Não! É de Belo Horizonte.
138
B: - Essa foto está estranha. Acho que não é a feição deles não.
G: - Como assim?
A: - É! Não parece ser eles não. Cheguei a conhecer os dois na Várzea. Não tem aparência
não.
G: - Será que tem algum problema com a foto?
A: - Parece, viu?
B: - Eu não vi essa foto na época.
A: - Talvez pra abafar o caso não deixaram saí. A polícia ficou desmoralizada. Ai de quem
falasse o nome Piriá perto de um soldado.
[risos]
B: - Pode ter matado dois pobre coitado por e mandaram dizê que era Piriá pra vê se o povo
parava de falá.
A: - Bom, que eu sei, é que conheço gente que já viu eles andando por aqui. Ouvi que eles
trabalham lá pros lado de Goiás e vem aqui passeá de vez em quando.
X: - (...)
145
O outro experimento foi ainda mais interessante. Eu conversava com um parente
que acredita piamente que, assim como Lampião, os Piriás também não morreram. Por isso,
além da foto dos Piriás mortos, mostrei a foto das cabeças do bando de Lampião.
146
Em vez
de reavaliar os “fatos”, a reação foi a seguinte:
“Sei não. O jornal tem interesse. em Ponto Chique conversei com o professor que entrevistou
Lampião, que vive nas redondezas. Já os Piriá trabalham na carvoeira. Mataram dois aí e falaram que
era eles. Mas não adiantou que as viúvas reclamaram os corpos. E aí todo mundo viu que era
mentira. A polícia quis foi limpar o nome dela. Fez num caso o que tinha experiência no outro.
Mataram foi nada. Tentaram é enganar o povo.”
147
145
Momento narrativo no ponto de ônibus do bairro Padre Teodoro, Sete Lagoas, 18/07/2007. Minha
conversa foi com dois senhores que esperavam o ônibus para a Várzea, o bairro onde fica a pedreira onde os
Piriás se esconderam por algum tempo. Não usei gravador. A anotação da conversa foi feita assim que minha
irmã e eu nos afastamos dos dois. A conversa começou por causa da ação de um policial que estava
revistando um rapaz do outro lado da rua, mais embaixo, quase em frente ao banco Itaú. Acionei a conversa
dizendo: “Vai ver que é gente trabalhadora.” Os dois assentiram. Um disse que tinha visto no jornal que a
polícia no Rio tinha dado uma trégua por causa dos últimos Jogos Panamericanos, mas que tinha matado
muita gente na favela. O outro disse que bandido tinha é que matar mesmo. Eu então provoquei: “É! Mas não
dá pra fazer como fizeram com os Piriá. Acabaram mortos sem julgamento.”
146
Foto reproduzida na Folha de São Paulo, 02/09/2006.
147
Momento narrativo na casa de meus pais depois de um almoço em família, Sete Lagoas, 21/04/2006.
139
De nada adianta a foto no jornal. No caso dos Piriás, as pessoas desconsideram nas
notícias os “novos” argumentos ou evidências que coloquem em questão a sua pretensão de
verdade em relação ao acontecido. Com Habermas (2004), podemos dizer que a verdade de
um enunciado sempre é compreendida como coerência com outros enunciados. E o
enunciado de quem acredita na lenda torna a notícia da morte dos Piriás algo incoerente ou
mesmo inverossímil. A concordância quanto ao fato de que os Piriás não morreram indica
que essa crença é verdadeira e a notícia do jornal uma mentira. O que prova que a
apreensão direta dos fatos não tem impacto algum sobre a verificação quanto à pretensão de
verdade que a lenda produz. Referindo-nos a Habermas mais uma vez, diríamos que,
também no discurso da lenda, a verdade sempre depende da justificação, exatamente como
o significado sempre depende da ação.
148
E a pretensão de verdade da lenda tem valor moral: ela diz respeito à vitória dos
Piriás sobre a polícia e é este “fato” que se apresenta como incondicional, capaz de
ultrapassar todas as evidências tornadas disponíveis pela imprensa.
* * *
A intimidade da imprensa com o público é uma ilusão, como bem disse Augé
(1997:122-123). O público do jornal é uma abstração diluída no anonimato cuja reação à
notícia é irremediavelmente imprevisível.
149
Enquanto o receptor da mensagem da lenda
está interessado em validar sua opinião com relação ao conteúdo da narrativa por meio da
participação da narração, a reportagem é construída de fora da coletividade, sem relação
direta com as vibrações, as expectativas e as impressões dos diversos interlocutores.
Por mais que a notícia invista em detalhes para conquistar a credibilidade dos
leitores, por mais que ela se esforce por homogeneizar versões do evento, ela quase nunca é
reconhecida pelo blico da lenda como instrumento capaz de apreender e expressar a
verdade. Pelo contrário! O pressuposto é de que a imprensa se deixa guiar por outros
148
Segundo Habermas (2004:227-312), a verdade de um enunciado não pode ser compreendida como
correspondência com algo no mundo. No contexto de comunicação como sinônimo de contexto de
justificação, contam as evidências que os interlocutores fazem valer. Essas evidências é que autorizam cada
interlocutor a levantar pretensões de verdade.
149
“(...) os textos ou as palavras destinadas a configurar pensamentos e ações nunca são inteiramente eficazes
e radicalmente aculturadores. As práticas de apropriação sempre criam usos ou representações muito pouco
redutíveis às intenções e desejos daqueles que produzem os discursos e normas” (Hunt, 1992:233).
140
interesses, os mesmos que a lenda combate. Está a serviço da elite local e mesmo da própria
polícia. Os jornais, menos que apresentar a verdade, se empenhariam em “abafar o caso”,
ou mesmo “plantar a notícia da morte dos Piriás” de acordo com os interesses que não são o
da comunidade de comunicação da lenda. Apesar do empenho em convencer, apesar das
considerações factuais e racionais, o público não entende que tais recursos prevaleçam
sobre a “ideologia” que realmente orientaria o discurso da imprensa.
150
E mesmo que a mensagem da notícia seja aproximada do conteúdo moral da lenda,
a reportagem não parece capaz de responder ao sentido social do evento como demandado
pelo público da lenda. Um sentido que é o conjunto das relações instituídas e simbolizadas
(ou seja, admitidas e reconhecidas) que o público identifica na legend.
Para este público, o jornal está comprometido com o “poder”. Mais: ao falar dos
Piriás, a imprensa instila um respeito persuasivo pela autoridade legal e uma aversão a
qualquer atitude desviante, transformando uma parte do evento em representação do todo:
os Piriás são apresentados como agressores do Estado, não como sua vítima. Esta
mensagem não encontra eco numa audiência ansiosa por novas informações que confirmem
que, de alguma maneira, os Piriás foram vítimas do “sistema”.
O público da lenda pensa saber exatamente quem é quem na história. Sendo assim,
o efeito de uma notícia sobre os Piriás acaba se tornando apenas uma dentre tantas outras
oportunidades para narração e difusão de um relato a lenda que antecede e que é a
condição mesma da notícia. Para este público específico, a lenda é superior à notícia. O que
demonstra que o fato ocupou um lugar de destaque na rotina moral de um grande número
de pessoas em Sete Lagoas e região naquele ano de 1978, mas nos termos da lenda, não da
imprensa.
E novamente esbarramos nos problemas teóricos relativos ao domínio da recepção.
Conclui-se que a crença no poder da imprensa como formadora de opinião não passa
mesmo de uma crença. O que na realidade ocorre é um hiperdimensionamento do caráter da
mídia em geral como instrumento de manipulação. Um equívoco, cuja fonte está no modelo
clássico de comunicação como ato social de trocas intencionais e individuais. De fato,
150
Suely Kofes demonstra, em sua análise detalhada da construção da imagem de Consuelo Caiado na
imprensa de Goiás Velho na década de 1990, como aquelas “narrativas públicas” sempre aparecem ligadas ao
que ela denomina “formações culturais e sociais mais amplas” (Kofes, 2001:155). A mesma ligação é
identificável para o caso das reportagens sobre os Irmãos Piriás.
141
analisando a relação entre as lendas e as notícias de jornal sobre os Piriás percebemos
claramente que sujeito comunicante e sujeito interpretante não se separam no ato de
comunicação. No contato com qualquer narrativa o que ocorre é uma “cooperação
interpretativa”, onde o leitor sempre atualiza o conteúdo do que segundo suas
expectativas e percepções (Eco, 1996). As idéias que prevalecem no contexto de
comunicação são aquelas que têm algum sentido para os interlocutores.
Por isso, as notícias da morte dos Piriás parecem estar sempre sujeitas a
reformulações e reinterpretações desses interlocutores. Ademais, a atenção que essas
pessoas dedicam às notícias sobre os Piriás ainda hoje parece sempre oblíqua. As matérias
são normalmente lidas com prazer e desconfiança, num misto de fascínio e distância. Como
observa Lynn Hunt (1992:235), “a crença e a descrença andam juntas, e a aceitação da
verdade naquilo que se ou ouve não diminui as dúvidas fundamentais acerca dessa
suposta autenticidade”.
uma autonomia criativa do interlocutor da lenda diante da imprensa, e que não
deve ser ignorada. A relação com uma matéria sobre os Piriás, marcada pelo domínio
anterior da lenda, é de desafio. A postura é defensiva diante das mensagens da notícia
jornalística, e que sempre o avaliadas nos termos do conteúdo da lenda e em prejuízo da
notícia. É o mesmo que se observa naqueles casos, tão comuns à nossa volta, de pessoas
que insistem em acreditar – a despeito de todas as evidências em contrário, por mais brutais
que sejam que o impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello resultou de
uma conspiração de interesses contrariados, e em cuja defesa a imprensa teria atuado de
forma explícita e estratégica. Ao contrário da produção pública de opinião por interesses
privados, o que o público identifica nas notícias é uma produção de opiniões como se
fossem públicas. O que está muito distante daquela forma de produção de sentido que
engendra a lenda.
151
151
Para Habermas, a mudança estrutural da esfera pública dependeria de uma mudança estrutural da
imprensa, como espaço privilegiado do debate público das experiências tanto públicas, quanto privadas. Jessé
Souza aponta que para Habermas, a relação do público hoje em dia com a imprensa seria marcada por essa
idéia da imprensa como negócio antônimo de uma imprensa de opinião subordinada política e
economicamente a interesses privados, incapaz de distinguir entre blico e consumidor. Para uma
apresentação desse debate em Habermas e para sua teoria da ação comunicativa vinculada à tese da
colonização do mundo da vida a partir de uma verdadeira invasão do imperativo da esfera econômica sobre a
esfera pública, ver Souza (2000:59-94).
142
Não ignoramos, evidentemente, a capacidade das notícias de jornal de influenciarem
a percepção dos fatos por parte dos interlocutores da lenda. Porém, como nota Rifiotis
(2001:3), todo grupo social ou instituição s’interroge à partir des médias sur les imagens
qui y sont présentées”. Mas ao mesmo tempo que se ofereceu como instrumento de leitura
da realidade para o público em geral, na época a imprensa trabalhou em favor das
instituições interessadas no caso. A imagem mediada também serviu à esfera política,
institucional, que les médias font partie du complexe processus de production et de
reproduction de la perception sociale des violences et d’evaluation de l’action des services
de police” (Rifiotis, 2001:4).
Todavia, devemos nos precaver contra a idéia adorniana de indústria cultural como
influência determinante na formação da opinião pública. É necessário reconhecer o papel
estratégico da imprensa na atribuição de sentido. Na verdade, como recherche des faits”,
uma notícia sobre o caso Piriás em um jornal de 1978 foi tanto uma produção que exigiu da
polícia uma revisão radical de sua estratégia de “caçada” aos Piriás, quanto uma fonte a
partir da qual o público pôde reelaborar as lendas sobre o caso.
143
4. O CONTEXTO E O SENTIDO DA LENDA
Sete Lagoas está localizada a 70 Km de Belo Horizonte, sentido noroeste. Hoje sua
mancha urbana é três vezes maior do que era em 1978. O tamanho da população também
aumentou na mesma proporção.
152
E pode-se afirmar que a vida tipicamente urbana
consolidou-se ali relativamente cedo, se comparamos o desenvolvimento da cidade com o
das localidades vizinhas.
A cidade passou por várias fases em seu processo de urbanização. Depois de
enfraquecido o poder dos fazendeiros na política local, foi a vez dos comerciantes e
ferroviários. As fábricas chegaram nos anos 1950, onde já havia desde 1896 a estação
ferroviária e as oficinas da Estrada de Ferro Central do Brasil e era forte a exploração de
jazidas de mármore e cristal. Na época, Sete Lagoas contava com dois cinemas, além de
um teatro. O comércio cresceu com a implantação da Cedro Cachoeira indústria de
tecidos –, da Itame da Cooperativa. Mais tarde, em meados dos anos 70, a cena local
passou a ser dominada pelos empresários da indústria guzeira. E atualmente, a cidade vive
o domínio da classe médica e dos empresários do setor de serviços.
O que significa que mudanças culturais para além das mudanças econômicas devem
ser consideradas no caso de Sete Lagoas. Como pode-se verificar nos registros da memória
da cidade e na fala dos sete-lagoanos,
para cada nova fase de modernização da cidade,
podem ser identificadas transformações de hábitos e costumes, a introdução de novos
valores, normas, a alteração de estilos de vida, além dos melhoramentos sociais, a mudança
na paisagem humana da cidade e a reorientação da vida social. A introdução de todo um
mundo material e simbólico novo, seja no primeiro grande surto de urbanização que
avançou sobre a cidade quando da instalação da Central do Brasil em fins do século XIX,
seja com sua redefinição em termos industriais cerca de meio século depois, o movimento
foi sempre no sentido da valorização de um novo código de conduta e dos valores que
compõem o núcleo da idéia de modernidade segundo a visão de mundo do sete-lagoano.
153
152
Sete Lagoas é considerada uma cidade pólo: a 1maior cidade de Minas Gerais em população e a 10ª em
arrecadação do PIB e população estimada em 208.000 habitantes (dados do IBGE).
153
“A gica material e simbólica tipicamente impessoal do capitalismo engloba e redimensiona todas as
relações sociais” (Souza, 2003:182).
144
De maneira que fases econômicas sucessivas colaboraram para a construção e preservação
de uma imagem idealizada de Sete Lagoas sobre si mesma como “cidade progressista”.
154
Todavia, o que se percebe é que essa auto-imagem não é capaz de garantir a
adequação de todos os habitantes da cidade ao padrão moderno. Apesar de as noções
modernas de organização do espaço urbano e do poder público como força capaz de reger
as relações no espaço da cidade serem idéias-força perfeitamente ativas na cultura local e
definirem os termos de exigência quanto à conduta tanto das instituições como dos
indivíduos no espaço urbano, a modernidade opera ali muito mais como uma “ideologia”.
As relações sociais continuam sendo realizadas às expensas de patrocínios e lealdades. A
cidade ainda hoje não foi capaz de transformar-se em um lugar onde as regras públicas são
mais importantes que lealdades privadas. A ordem política, não raro, se baseia no
patrocínio, não no direito.
Desde os anos 1970, pouca coisa mudou em termos da hierarquia valorativa que
define a concepção de mundo local: caução política e vantagens econômicas continuam
sendo traduzidas em lealdades, já que o que impera não é a ética de observância da lei entre
iguais, mas o ímpeto forte de formação de subgrupos sociais.
155
A possibilidade de
igualdade de tratamento, tornada eficaz no estado de direito, convive com uma outra ordem
que pressupõe distinção e privilégio.
Nesse contexto, a ordem moral jurídica e moderna não se mostra capaz de regular
todas as práticas institucionais e dimensões da sociabilidade. A eficácia da modernidade no
que toca à centralização da justiça e constituição de uma esfera moral parece localizada e
transitória. Em outras palavras: o eixo de ação na esfera social parece dividido entre uma
forma de organização impessoal, universalizante e igualitária (um código moderno de
conduta) e uma forma de classificação social que se faz segundo uma moralidade pessoal.
No contexto ao qual estamos nos referindo, o código moderno de conduta,
organizado a partir de leis gerais, não é o único a determinar a lógica das práticas
institucionais fundamentais, embora, no contexto local, seja amplo o entendimento de que
154
Essa verdadeira ideologia do crescimento contínuo sempre ditou, segundo Dalton Andrade, a relação do
sete-lagoano com a cidade em termos de sua “carência e necessidade de significações e pertencimento”
(Andrade, 2000:13).
155
Empregamos o conceito "hierarquia valorativa" no mesmo sentido que Jessé Souza (2003:182): crenças
compartilhadas acerca do valor relativo dos indivíduos, ancoradas institucionalmente e reproduzidas
cotidianamente pela ideologia que dirige as práticas e determina o lugar social dos sujeitos.
145
este é o código que deveria organizar o comportamento individual, que entende-se que
ele é o único capaz de submeter todos à lei abstrata e igualitária. Apesar de a modernização
do espaço sete-lagoano ter pressuposto a reconstrução da topografia moral local, a
modernidade que se instaurou ali parece irremediavelmente (a)tingida pela tradição. É
como se ali, naquele espaço social específico, uma ordem moral se opusesse a seu duplo e
contrário.
E aqui esbarramos na questão da efetividade do processo de modernização em
cidades de médio porte, com vasta área rural como é o caso de Sete Lagoas.
156
Se partirmos
do princípio que a série de mudanças pelas quais a cidade passou permitiu um alto grau de
penetração dos ideais modernos no cotidiano, chegando a determinar a forma como se
regula a interação no espaço social, como explicar essas “sobrevivências”? Constatada essa
dualidade, estaríamos autorizados a afirmar que o advento da modernidade em Sete Lagoas
não se efetivou realmente?
Penso que não. A cidade que abriga a lenda deve ser entendida como um terreno de
percepções e regras comuns, onde concepções modernas e tradicionais de mundo se
encontram. Mas, nem por isso, devemos repetir aqui o discurso da “modernização
inautêntica”, nem insistir no dualismo indeciso entre forças “pré-modernas” e modernas
enquanto princípios divergentes de organização social.
157
Vê-se nas lendas que, apesar de a
realidade institucional moderna não ser tão eficiente nem tão ampla como seria o ideal, os
valores modernos m importância crucial na definição dos termos em que deve se
estabelecer a ordem local. uma cobrança quanto à observância desses valores por parte
do poder político, das instituições e da opinião pública. Nota-se que, apesar desta cultura da
modernidade não se apresentar como capaz de determinar todas as esferas da vida social, o
que se pode perceber é que seus valores gozam sim de estabilidade e permanência. Ali, a
realidade das instituições e sua racionalidade prática intervêm na experiência cotidiana das
pessoas. Assim, não há como ignorar em nossa análise das lendas o compromisso e a
156
Sobre o desenvolvimento de Sete Lagoas e para uma discussão muito interessante sobre o conceito de
“cidade média”, cf. Andrade (2000).
157
O discurso da “modernização inautêntica” (Souza, 2000) implica a fé na modernização efetiva, que
contaria com uma consciência moral capaz de coagir a todos os atores sociais. Uma ordem moral (ideal) que
renegaria formas de interação que operem por intermédio do prestígio pessoal ou da influência, permitindo
para o espaço público tão somente as formas institucionalizadas de reconhecimento social.
146
reação à cultura da modernidade no contexto em que as histórias sobre os Piriás estão
inseridas.
* * *
Sete Lagoas, nos idos de 1978, tal qual as lendas a descrevem, era experimentada
como um espaço onde os mecanismos institucionais modernos (criados para lidar com
insultos e assaltos à honra e mesmo à dignidade dos atores) se mostravam ineficientes;
lugar onde a patronagem não raro se infiltrava nas relações do estado de direito. Ali, apesar
da ampla aceitação da idéia de poder impessoal como fonte precípua para dirimir conflitos,
os atores sociais ainda viviam sob a égide do poder pessoalizado. A realidade se apresenta
marcada pela dissensão quanto aos termos que devem reger as interações no espaço urbano.
Nas lendas, as pessoas se ocupam desse paradoxo: de um lado uma ordem oficial
que pede ao indivíduo que oriente sua conduta em direção à observância da lei segundo os
ditames do sistema impessoal de organização social; do outro, é negado a esse mesmo
indivíduo o acesso às instituições, à sua proteção efetiva e à condição de pessoa de direito.
É assim que os interlocutores da lenda percebem as coisas. Tanto que essas mesmas
pessoas constroem suas narrativas a partir da reavaliação dos termos publicamente em vigor
na cidade, acusando a desconexão entre regra social e prática social, entre legalidade e
legitimidade. A cidade, nesse sentido, aparece nas lendas como governada por uma moral
múltipla. Conseqüência? Um verdadeiro caos em termos de expectativas do
comportamento; indivíduos submetidos à incerteza e imprevisibilidade das formas de
interação social. Tem-se um lugar onde o estado de direito, entendido como aquele que
deveria ter por objetivo garantir o reconhecimento do homem trabalhador, honesto,
diligente e punir o preguiçoso, o desonesto, o velhaco, mas que age às avessas. A intenção
por parte dos interlocutores da lenda parece ser a de registrar o momento em que o valor da
pessoa é simplesmente desconsiderado, sem qualquer punição, fazendo parecer que virtudes
como diligência e honestidade são de pouca utilidade.
Os Piriás, enquanto personagens”, dramatizam as conseqüências desse fracasso na
imposição do estado de direito que deveria concentrar em si a imparcialidade (moral) e a
instrumentalidade (eficácia funcional), mas que não o faz. Pelo contrário: nas lendas, a
147
polícia age contra os Piriás para proteger os interesses pessoais do fazendeiro. O
comportamento da polícia é descrito como algo que ultrapassa tanto o ordenamento
positivo quanto as convicções morais dos indivíduos. Nas lendas, o representante da ordem
pública despreza tanto a noção de justiça em termos do senso comum, quanto a noção de
direito como igualdade generalizável e julgamento em igualdade de condições. A ação da
polícia em favor do fazendeiro demonstra que “cidadão” na Sete Lagoas de 1978 não era
uma categoria englobadora.
X: - (...)
G: - A polícia era do mesmo jeito que é hoje?
A: - Não mesmo. Hoje a polícia é mais comunidade. A gente criança conversando com
polícia. Policial que se engaja nas escolas em campanhas de combate à droga e violência no trânsito.
A polícia de hoje é outra. Respeita mais os direitos humanos. mais entrosamento entre policial e
população e a polícia está mais eficiente. É mais do público. Mas na época dos Piriás, que foi pouco
tempo depois do caso de Angueretá, o caso era bem diferente. Polícia fazia a limpa mesmo e nessa
varredura ia gente que não tinha nada a ver com o pato. A idéia era atiprimeiro e perguntá depois.
E a polícia prestava serviço pra particular. Foram lá e prenderam os Piriá porque o fazendeiro dicidiu
que não ia pagar pelo empreito. O advogado tirô os dois da cadeia e olha que foi fácil, que a prisão
foi ilegal. Deu no jornal. Depois a polícia continuou perseguindo os dois e a violência só foi
aumentando porque aí, os Piriá mataram um colega da corporação, mas pra se defendê. E polícia é
que nem enxame de abelha: mexeu com um, mexeu com todo mundo. É da honra deles defenum
ao outro, mesmo que errado. Porque na época ninguém provô que foi mesmo Piriá que matô os
policiais. Parece que foi mesmo erro da polícia na confusão.
G: - Então a polícia errou muito!
A: - Errô quando prendeu os dois a mando do tal fazendeiro; errô quando acusou injustamente
de roubo; errô quando judiô dos dois e er quando demorô pra pegá os dois. Porque o mito
cresceu. E ainda fia dúvida da morte dos dois. O povo que conhecia o trabalho dos Piriá ajudô.
Mas a polícia tinha recurso e não conseguiu recuperá a moral. E isso não é bom. A polícia tem que
cumpri o papel dela, senão ninguém respeita. E aí, vira terra sem lei.
X: - (...)
158
158
Momento narrativo, 09/07/07, D.M., 66 anos, funcionário público aposentado, praça da Prefeitura de Sete
Lagoas. Interessante a alteração do padrão de linguagem que ocorre no deccorer da narração. Ao falar da
polícia, o interlocutor faz uso de um registro mais formal da língua. No decorrer da conversa, tudo vai sendo
envolvido numa atmosfera mais emocionalizada, e o padrão de linguagem vai se tornando cada vez mais
coloquial.
148
A fala demonstra que, as expectativas do comportamento normativo da polícia
foram progressivamente assimiladas. Acontece que a instituição parece não responder a tais
expectativas. Ao que parece, embora a polícia seja vista pelos interlocutores como agente
legítimo do Estado, a idéia não possui eficácia social suficiente para condicionar a ação da
instituição em termos de valores. Contrariando o amplo entendimento dos termos e valores
que devem gerir os comportamentos no contexto moderno, o poder da polícia se une ao
poder do fazendeiro, atendendo a estímulos sociais que seguem na direção oposta. O que se
é a descrição do momento em que o poder pessoal contamina a instituição que deveria
agir segundo o princípio impessoal. A crítica se faz contra essa interpenetração de
interesses que tenta estabelecer um continuum entre formas de conduta incompatíveis.
Sem dúvida, uma interpretação nos moldes do dualismo fundamental, bem ao gosto
da antropologia de Roberto da Matta, que parte do pressuposto da “dualidade constitutiva”
composta de um lado pela ideologia das leis impessoais que caberia às instituições e de
outro pelas relações que governariam a práxis cotidiana.
159
Todavia, assumir o discurso damattiano significaria admitir que vemos na lenda
uma forma de superação ou mesmo de síntese de perspectivas distintas. Um erro, que a
função da lenda não é unir leituras antagônicas da realidade num dualismo articulado, capaz
de superar ou mesmo suprimir (mesmo que a nível simbólico) as contradições que nela se
projetam. O tema da lenda não é a competição entre princípios de organização social, ou
seja, o famoso dilema brasileiro” e sua dicotomia insuperável entre um discurso moderno,
igualitário, universalizante, oficial e um outro mais implícito, hierarquizante, “tradicional”,
fora do lugar. As lendas sobre os Piriás não tratam do antagonismo fundamental
modernidade/tradição, embora procurem descrever o confronto entre modalidades
diferentes de relação social.
Mas o que a lenda faz então? Antes de responder, seria conveniente argumentar
quanto às limitações de uma análise das lendas sobre os Piriás fiel aos termos demattianos.
A seguir o postulado dessa dupla moral, a luta dos Piriás deveria ser interpretada
como reação a um mundo frio, hostil, impessoal, moderno. Ou melhor, uma luta pela volta
a um “código rural”, sertanejo, tradicional, que se fia na proteção do costume e da tradição,
159
Todo o nosso argumento no sentido da crítica ao “dualismo fundamental” se inspira na crítica de Jessé
Souza ao pressuposto do que ele chama de “sociologia da inautenticidade”. Cf. Souza (2000; 2003).
149
idealmente baseado na faculdade pessoal dos indivíduos de “reconhecerem” o valor uns dos
outros. Teríamos que partir do princípio segundo o qual os mandatos morais que regem os
personagens das lendas são na verdade dois – o da lei e o do costume e nos ocuparíamos
com a tarefa fascinante de desvendar como os dois modos de orientação da conduta
convivem. Forçosamente teríamos que falar em valores “tradicionais” como honra,
coragem, valentia, em oposição aos do cidadão ordeiro, consciencioso, responsável, fiel aos
ideais modernos de racionalidade e auto-controle. Uma franca oposição entre os valores de
honra e dignidade.
160
Por fim, fatalmente cairíamos no antagonismo fundamental entre modernidade e
tradição, assumindo o discurso francamente moralizador das éticas sociais dúplices, que
pressupõe, em uma frente, a na modernização efetiva, e em outra, a crença na
permanência de um domínio moral essencialmente tradicionalista. Constatada a realidade
da coexistência dos dois princípios, nos restaria apenas concluir, corroborando nossa crença
nas “sobrevivências”, que a (ir)racionalidade tradicional nunca sucumbirá à modernização.
Mais convictos do que nunca, encamparíamos a bandeira da modernização
superficial, epidérmica, inautêntica, como base de nossa análise. E mesmo que tentássemos
disfarçar, ora nossa obsessão pela eternidade da influência pré-moderna, ora nossa cega
na modernidade, e chegássemos a afirmar que as duas lógicas – a moderna e a tradicional
não se excluem mutuamente, que uma racionalidade não é imune à outra, chegando mesmo
a falar em apropriações recíprocas, ainda assim nos confessaríamos reféns da concepção de
que idéias e visões de mundo são anteriores à práxis social.
Acontece que as lendas sobre os Piriás não falam do confronto
modernidade/tradição, costume/lei, indivíduo/pessoa, e muito menos em duplicidade moral.
Seu alvo não é a modernidade ou os valores modernos. Nas lendas, os Piriás não são atores
que se posicionam contra a ordem legal ou o código da “rua”. O que subjaz à lenda não é
uma concepção de mundo marcada pelo sentimento de aversão à legalidade e ao poder
impessoal. Não é este o sentimento que governa a conduta moral de interlocutores que
convivem em um contexto social onde valores modernos são adotados em seus discursos e
160
Berger (1970:339-347) analisa como a modernidade logrou operar uma transformação do conceito de
honra em dignidade.
150
criam estímulos diversos para sua conduta individual. Ali, esses valores são mais que mera
ideologia ou verniz cultural.
A modernidade, no contexto das lendas, é uma realidade efetiva. A ponto de fazer
da lenda uma crítica coerente do défice de efetivação de alguns de seus valores. E se
modernidade, no sentido que adotamos aqui, implica uma relação essencial entre valores e
sua efetivação e se a superação inovadora da tradição se garante pela possibilidade sempre
existente da articulação reflexiva de novos valores (Taylor, 1997), cabe apontar que valores
são esses que compõem o esquema perceptivo e avaliativo do mundo daqueles que narram
lendas sobre os Piriás. Esses valores, em ampla medida modernos, se condensam na
categoria trabalhador, uma noção recorrente nas lendas sobre os Piriás e que parece agir
como evidência moral imediata, um pressuposto das ações na vida cotidiana.
Ao analisar essas histórias com mais cuidado, percebemos que os interlocutores no
ato comunicativo se esforçam por fazer valer a condição de trabalhador como sinal social a
partir do qual toda a classificação social deve ser feita, inclusive a atribuição do status de
cidadão como categoria universal e globalizadora em contigüidade com o mundo das leis
impessoais. Por meio da categoria trabalhador-cidadão o indivíduo que trabalha apresenta-
se como suporte da normas e regras. Sendo assim, nas lendas, trabalhador é cidadão, e
cidadão, é somente aquele que é trabalhador. De forma que o reconhecimento social se faz
sobre uma base cultural encarnada na categoria trabalhador-cidadão como equivalente à
noção moderna de cidadania jurídica e política.
A idéia de fundo é de oposição entre direitos do bandido e do trabalhador, onde a
categoria trabalhador concentra o esforço dos interlocutores em construir representações
acerca dos Piriás e de si próprios dissociando criminalidade (não-direito) e pobreza.
161
Uma idéia que se resume no questionamento de um informante:
“Só queria saber quem é o bandido nessa história, porque Piriá era trabaiadô!”
162
161
A categoria trabalhador-cidadão me parece ser fruto da reação ao processo de criminalização do pobre (o
pobre como foco privilegiado das agências de controle social) que vigora desde sempre na nossa sociedade. É
por meio da condição de trabalhador que se pode estabelecer uma distinção fundamental entre aqueles que se
unem na pobreza: sendo trabalhador, o pobre honesto se distingue do bandido (que seria bandido, porque é
pobre). O contexto é de oposição entre o bandido pobre e o pobre trabalhador; este digno de todos os direitos
e aquele sem direito algum (nem mesmo os processuais).
162
Momento narrativo, 12/07/2007, numa barraca do Mercado Municipal, Sete Lagoas, J.F. 64 anos,
agricultor de Inhaúma. Forma de registro: anotação.
151
O termo trabalhador como categoria social é fruto de uma modificação profunda da
psique individual provocada pelos estímulos constantes de instituições modernas como o
Estado e, em especial, o Mercado. Tornou-se assim uma entidade moral (um domínio moral
institucionalizado, nos termos de Jessé Souza) capaz de produzir leis, mas também
emoções, imagens e formas as mais variadas de reações. Trata-se de uma concentração de
valores considerados legítimos; uma categoria apta a estimular a conduta dos indivíduos no
mundo da vida.
Por isso, a categoria trabalhador, nas lendas é usada para reivindicar “respeito”.
Nesse sentido, é uma espécie de operador simbólico que permite classificar as pessoas
como dignas ou não de apreço, impondo critérios que conferem relevância moral a modos
de agir. Ao adotar a hierarquia valorativa cujo vértice é ocupado por esta categoria, os
interlocutores da lenda legitimam a distinção social entre o trabalhador e o malandro (ou o
bandido) como questão fundamental de reconhecimento. Razão pela qual o potencial
discriminador da categoria trabalhador é reiteradamente realçado nas narrativas,
evidenciando a necessidade de sua adoção como critério de distribuição de reconhecimento
social, principalmente no caso da polícia.
As lendas sobre os Piriás expressam a tomada de consciência dos pressupostos
morais subjacentes à cultura na qual elas surgem. Contudo, não foi a lenda dos Piriás que
inventou a categoria trabalhador como fonte de dignidade, uma noção generalizável, cujo
lugar privilegiado é o mundo do trabalho, mas cuja moralidade se apresenta como capaz de
determinar todas dimensões da vida. Desde fins dos anos de 1970, o termo trabalhador
voltou a influenciar fortemente o senso comum do brasileiro (o primeiro momento decisivo
se dera no período Vargas). A luta trabalhista foi um marco histórico importantíssimo num
momento em que o horizonte de participação política era bastante estreito. O sindicato
polonês Solidariedade e as greves no ABC paulista firmaram-se como possibilidade de
expressão autônoma dos trabalhadores e atraíram a atenção da população. De forma que os
princípios e valores defendidos pelos trabalhadores lograram ultrapassar a esfera da luta
salarial. Esta foi resignificada como luta por reconhecimento social, o que implicava
conseqüências muito mais amplas no que diz respeito à ação prática. O termo trabalhador
passou a corresponder a uma figura de direito, o que pressupõe um aprendizado moral.
152
Anos 70! Período em que a condição de trabalhador torna-se o fundamento do
reconhecimento social infra e ultra jurídico.
163
Os efeitos dessa valoração? O trabalhador
foi alçado à condição de novo elemento de diferenciação social, relativizando o prestígio
das classes abastadas. O trabalho produtivo como fundamento da atribuição de valor e
reconhecimento social se colocava abertamente contra a ética do ócio. Os indivíduos sem
outra fonte de riqueza que não a habilidade e a disposição para o trabalho encontraram,
assim, seu lugar no mundo moderno onde, ao menos teoricamente, talentos pessoais são
mais valorizados que privilégios herdados. Valorizada passou a ser a perícia, a eficiência e
a vontade de trabalhar, de forma que a categoria trabalhador passou a operar de “baixo para
cima”, impondo uma nova ordem moral, uma outra hierarquia para os valores.
164
O consenso valorativo que acompanha pari passu essa consolidação da categoria
trabalhador como fonte moral firmou-se de forma lenta, mas fundamental, promovendo a
absorção não somente dos valores da cidadania, mas também de uma nova ética. Uma ética
do trabalho efetivada em termos da valorização tanto do talento individual quanto de uma
outra forma de relação social que feriu de morte o malandro como auto-imagem do
brasileiro. De herói nacional, o “sujeito esperto”, que ganha dinheiro sem trabalhar e sem se
“sujar” e que sabe “correr da polícia”, passou a figura negativa. Tal figura desbotou-se
diante da imagem do trabalhador como fonte de reconhecimento e auto-estima.
165
Diante da
figura do trabalhador como concepção moral, não mais como legitimar o discurso da
“esperteza como a arma do pobre”. Nos termos das lendas sobre os Irmãos Piriás, o pobre
não tem mais como continuar a ser malandro depois de sua redefinição como trabalhador-
163
Os termos são de Jessé Souza (2003:165-166) que fala de um “processo coletivo de aprendizado moral”
quando se refere a esse período.
164
Mais uma vez, nosso raciocínio está em dívida com Jessé Souza. Em especial no que se refere à concepção
de que instituições modernas como o Estado e o Mercado constituem bases autônomas para o
desenvolvimento dos valores modernos, mesmo que estes venham a ser reconfigurados moralmente. É nesse
sentido que podemos afirmar, junto com Souza (2003), que, além dos valores modernos, as instituições
modernas são necessárias para a redefinição da consciência subjetiva individual.
165
A teledramartugia tratou recentemente dessa questão na novela “Paraíso Tropical”, de Gilberto Braga. O
fracasso do personagem Belisário, pai do self made man Antenor Cavalcanti, ilustra bem o final desse
processo de inversão da polaridade da figura do malandro no ideário nacional. Belisário, um jogador
incorrigível, espertalhão e acomodado, apesar de toda simpatia e do esforço dos autores da novela, foi
interpretado pelo público como “folgado”, “irresponsável” e aproveitador; um peso na vida do filho, este
guiado por outra ética, a ética do trabalho, da responsabilidade e da autonomia individual. A descontinuidade
entre os dois sistemas de valores um encarnado no pai e outro no filho foi evidenciada na narrativa
durante todo o tempo em que a novela esteve no ar e mexeu com a opinião pública.
153
cidadão.
166
Essa distribuição da cidadania a partir deste novo valor prova que o pobre se faz
agente social por meio da categoria trabalhador. Esta condição que permite ao indivíduo
exigir a eficácia das regras jurídicas e das instituições que cuidam da aplicabilidade dessas
regras.
O posto do malandro como símbolo do triunfo da inteligência “amoral” sobre o
fracasso imposto por uma ordem social que tende a perpetuar a desigualdade é ocupado
pelo trabalhador e seu ideal de triunfo da moral sobre a tendência de “institucionalização”
da amoralidade. É essa moral expressa na categoria trabalhador-cidadão que se encarna na
figura dos Piriás enquanto personagens.
Vê-se que, como não ficamos congelados no tempo dos carnavais, malandros e
heróis, não que se falar da lenda como sistematização da imagem do senso comum
(precisamente da ideologia) de aversão ao trabalho, à legalidade e a tudo que diga respeito
ao “mundo da rua”. Nas lendas sobre os Piriás, o brasileiro não fala de si como alguém de
tendência inata à corrupção e completamente refratário à lei, um prisioneiro eterno da
“casa” e sua razão emocional. Pelo contrário! Trágico para os interlocutores da lenda é o
momento em que o código da “casa” insiste em invadir a rua” com seus critérios pessoais
de hierarquização segundo afetos e sentimentos que submetem completamente o
reconhecimento social à volição e “boa vontade” do vetor dominante na relação social. A
lenda insiste que no mundo moderno, a virtude e a moral não devem se restringir a fontes
privadas e pessoais de orientação de sentido. Por detrás da lenda está a consciência da
indispensabilidade das instituições. Por isso, o que a lenda acusa é a incapacidade do
mercado (encarnado na figura do fazendeiro) e do Estado (encarnado na figura da polícia)
de funcionarem como suporte dos valores de cidadania tal qual traduzidos pela categoria
trabalhador.
Nas lendas, as duas principais instituições modernas são retratadas como
impermeáveis a esses valores que constituem uma espécie de legislação social para a qual
se exige eficácia. O que nos leva a concluir que o foco da lenda é a não-intitucionalização
dessa categoria valorativa (trabalhador-cidadão), que, a partir de um dado momento, passa
a ser considerada senha de acesso aos direitos do cidadão.
166
Para uma análise que segue na direção oposta, ao discutir a valorização da ética malandragem pelos jovens
da periferia de Brasília, cf. Abramovay (2002).
154
Mais uma vez: no contexto tematizado na lenda percebe-se claramente que o
conceito de cidadão definido a partir da condição de trabalhador ainda não era capaz de
determinar, enquanto valor, o uso e a gica do poder, fosse ele do fazendeiro, fosse ele da
polícia. E é isso que a narração da lenda permite debater. Nela, os valores reunidos na
categoria trabalhador formam a base de argumento contra as categorias de super- e
subcidadão; contra a falta de articulação entre os níveis de ação social e de ordem social;
contra a ruptura intencional do vínculo entre eficácia institucional e predisposição
valorativa individual.
Não se trata, pois, de um embate entre dois sistemas de valores distintos (ou duas
ideologias). Na verdade apenas um sistema de valores que orienta a lenda e se apresenta
como aplicável a todos, do fazendeiro à instituição policial, dos Piriás aos interlocutores da
lenda. Neste código valorativo, vale a defesa do trabalhador-cidadão como categoria
portadora dos valores que deveriam reger indivíduos e instituições no contexto do mundo
da vida.
Portanto, não cabe falar em continuidade de um esquema viciado de poder como
base da organização das relações sociais, comandado por relações pessoais. A lenda mesma
demonstra que os valores são outros, quando fala de um tempo em que a modernidade
havia submetido os atores a novos estímulos sociais, mesmo que ainda não funcionasse
como princípio hegemônico.
Aqui voltamos à questão da lenda como suporte de uma concepção de mundo. Por
meio dessas narrativas, os interlocutores estabelecem a hierarquia valorativa que deve
perpassar e dirigir a dinâmica social. Nelas podemos constatar que normas e valores são
atualizados e materializados pelos indivíduos. Portanto, as lendas sobre os Piriás podem ser
tomadas como uma forma de apreender e interiorizar expectativas morais e normativas,
noções de direito e dever.
É como se os interlocutores da lenda soubessem que valores não legitimam a si
mesmos; que eles encontram legitimidade na medida que indivíduos se vêem como seus
portadores. Tanto que é exatamente isso que os participantes do momento narrativo fazem:
“revelam-se” como portadores desses valores, ou melhor, suportes desses valores. Como
gênero comunicativo, a lenda conta com a possibilidade de envolvimento com o mundo da
cidade, de discussão das tramas que nela se encenam. O momento narrativo, por isso
155
mesmo, constitui-se como espaço de encontro e debate sobre os valores que regem as
relações naquele momento e espaço social, o que faz das lendas um verdadeiro inventário
da socialização capaz de veicular significados e valores comuns.
Mais uma vez é necessário afirmar que não se trata aqui de adotar uma imagem da
lenda como forma organizada de defesa de direitos e valores morais tradicionais ameaçados
pela sociedade moderna e pela polícia em particular. Não se deve basear a análise de sua
mensagem na dualidade estrutural que localiza em um setor moderno a ordem e o progresso
supostamente ameaçado por uma “periferia” marginalizada que sofre com a desigualdade
(“periferia” encarnada na figura dos Piriás).
167
A hierarquia valorativa considerada mais
legítima pelos interlocutores da lenda não se identifica com a descrição de um código de
conduta em termos do que é “tradicional”, “rural” ou “sertanejo”.
168
Menos que a oposição entre tradicional e moderno, o que a análise dessas lendas nos
permite concluir é que significações não são simplesmente aniquiladas mediante a presença
de outros significados. A aceitação de mensagens e modelos sempre opera através de
ajustes, combinações, resistências”, como afirma a historiadora Lyn Hunt (1992:234).
Seguindo o conselho de Souza (2003), não devemos subestimar a capacidade da
modernidade de impor uma “hegemonia cultural” nem a capacidade dos atores em limitar
ou reformular os termos da organização da interação social. As lendas tratam de uma
demanda por justiça a partir da categoria trabalhador, como dissemos. Por isso,
constituem histórias que podem ser pensadas como estratégia para limitar ou mesmo
reformular esses termos. São narr-ações que se esforçam na redefinição das obrigações
éticas das instituições frente à população. Fundamentam-se num verdadeiro sistema de
valores culturais, que exalta (virtualmente acima de tudo mais) o valor do trabalhador numa
sociedade onde o que acontece, de fato, é a negação sistemática da dignidade e do
reconhecimento de sua condição. Do ponto de vista dos interlocutores da lenda, são esses
valores identificados com a categoria trabalhador que devem se tornar socialmente eficazes.
167
Uma análise nesses termos teria conseqüências éticas sérias já que contribuiria ativamente para o
transbordamento das representações violentas e criminosas que se fazem das classes marginalizadas da nossa
sociedade.
168
Para a definição do “código de conduta sertanejo”, baseado na noção de honra e lealdade e que culmina na
prática de uma “servidão voluntária”, ver Carvalho Franco (1997). Para uma análise de uma corpus de textos
da tradição popular onde o “código do sertão” se aplica de forma hegemônica às relações sociais, ainda sem a
influência dos valores modernos, ver Vieira da Mata (2003b).
156
É claro que essa unidade moral representada na lenda não é capaz, por si, de reduzir
a desordem cotidiana que a própria lenda acusa. Não podemos exigir isso dela. O que a
lenda faz é recolocar esses valores, interpretá-los situacionalmente a partir de um evento
onde práticas cotidianas se deslocam de suas prescrições legais e morais. Trata-se de algo
mais abrangente que a mera reafirmação simbólica de princípios e valores morais; algo para
além da crítica meramente cerimonial de instituições. Na figura do fazendeiro a lenda
critica o cálculo da vantagem individual como elemento regulador das relações sociais. Na
figura da polícia, fala do medo da arbitrariedade como elemento regulador das relações
sociais. Na figura dos Piriás, prega a noção de dignidade do trabalhador como elemento
regulador legítimo dessas mesmas relações num contexto onde a relação com o trabalho
aparece como poderoso transformador da vida individual.
4.1. Casos de polícia
Não se pode negar o colorido especial de história local que colabora na construção
dessas narrativas fantásticas sobre os Irmãos Piriás. São histórias intimamente ligadas a um
processo de revisão da conduta policial e fortemente determinadas pelos sentimentos que
agitavam as pessoas naquele momento marcado por uma maior reflexividade quanto à
qualidade da relação entre polícia e sociedade civil, quando o imaginário social relativo à
imagem da polícia agia na construção de relatos sobre a instituição, e isso não apenas no
que diz respeito às lendas que estamos analisando.
O que chamo aqui de imaginário social relativo à polícia nada mais é que a percepção
que as pessoas comuns faziam desta instituição. Na época, a imaginação das pessoas estava
como que sobreexcitada diante da profusão de relatos sobre a polícia. A polícia vivia
naquele ano antes da abertura política a pressão da recém instaurada Comissão dos Direitos
Humanos e suas ações começavam a ser submetidas às Comissões de Disciplina instauradas
em todas as polícias, como parte do processo de redemocratização do país. E a mídia fazia
sua parte, tentando assumir o lugar que idealmente lhe compete em uma democracia: se
encarregava de divulgar histórias de policiais corruptos, de torturadores, de denunciar a má-
157
conduta dos agentes de segurança país afora.
169
Pela imprensa, as pessoas podiam
acompanhar, por exemplo, o resultado das investigações de cemitérios clandestinos em
grutas e cisternas no entorno de Sete Lagoas.
170
A polícia é o mbolo mais imediato da autoridade pública e seus valores. Assim, ainda
hoje, a cada novo escândalo que envolve algum desvio de conduta policial, podemos
presenciar momentos narrativos em que a opinião pública reavalia a instituição a partir do
que é considerado inaptidão de ordem moral para ditar a lei e implementar a ordem. Uma
ordem que não corresponde ao que chamamos Estado de Direito em sentido pleno e seu
poder de prescrever os comportamentos dos agentes sociais.
O que não quer dizer que as críticas que as narrativas cotidianas fazem à polícia – ainda
hoje necessariamente expressem a demanda de um corpus de leis abstratas, legisladas
com base nos princípios de igualdade e universalidade em defesa da pessoa, de uma
“cultura da civilidade” baseada na tolerância e respeito mútuo e na idéia de um contrato
social. Não é uma avaliação jurídica da conduta da instituição policial que é feita no
decorrer dessas conversas. Nelas, os interagentes não se propõem a reivindicar um Estado
de Direito. Nessas narrativas, o que se requer para a polícia é um novo digo de conduta,
baseado numa concepção de moralidade que não coincide necessariamente com a idéia de
legalidade.
Prova disso é que nessas avaliações recorrentes do comportamento policial, insiste-se
na violência como recurso necessário no combate ao crime. Nelas, não raro, a violência
policial é entendida como algo dotado de validade desde que obedeça a determinados
169
Começam a aparecer uma série de reportagens que tematizavam os métodos e a arbitrariedade da força
policial. Numa reportagem denuncia-se o ex-policial que montou um verdadeiro esquadrão da morte na favela
do Buraco Quente (Estado de Minas, 12/12/1978). Em outra, lê-se com espanto sobre o drama do rapaz de 19
anos, morto por um soldado depois que o jovem, indignado com a covardia do policial contra um civil dentro
de um bar, chamou-lhe a atenção em público (Estado de Minas, 12/08/1978). Noutra, vê-se a foto de um
suspeito sendo puxado pelos cabelos por um detetive escada abaixo no Departamento de Investigações em
Belo Horizonte (Estado de Minas, 11/08/1978). Havia ainda as denúncias contra os “mistérios” que
envolviam assassinatos dentro do presídio de Ilha Grande (Estado de Minas, 01/01/1979). Um dos casos mais
famosos, o de Lúcio Flávio, encontrado morto em sua cela (1975), supostamente vítima do “Esquadrão da
Morte”, que teria em sua lista mais de 30 presos marcados para morrer. O caso foi amplamente noticiado à
época.
170
Além do famoso caso de Angueretá, do qual ainda teremos oportunidade falar, houve também o caso da
Gruta do Pião em Prudente de Morais, município vizinho de Sete Lagoas. O primeiro caso teve suas
investigações concluídas no fim do ano de 1978. A descoberta do cemitério clandestino na gruta em Prudente
de Morais se deu no mesmo ano. Cf. Estado de Minas (19/09/1978) e Jornal do Centro de Minas
(23/09/1978), além do tablóide especial publicado pelo Jornal de Minas, do mesmo ano, entitulado
Documento: tudo sobre os crimes de Angueretá, uma copilação de documentos sobre o caso além da
reportagem “Conspiração do Medo” do jornalista Mauro Santayana.
158
critérios. Violência policial não é apresentada ali como uma ruptura na experiência social.
Ela é parte da ordem.
171
Depois de dedicar um pouco mais de atenção a essas narrativas, nota-se que nelas
também a violência policial é percebida como um fenômeno “natural”. Entre nós, não é
difícil encontrar quem defenda a idéia da volta à Ditadura como forma de acabar com a
“bandidagem” ou quem discurse contra aqueles que defendem direitos humanos para
criminosos.
172
São muitos os que falam abertamente a favor da pena de morte, que o
combate ao crime é amplamente entendido como incompatível com a manutenção dos
direitos individuais.
173
Nesses termos, a violência policial não constitui o limite do controle
social; é, antes, entendida como a forma por excelência de controle, não como um problema
social.
174
A violência policial em si não é o elemento chave, nem da lenda nem das demais
narrativas apresentadas paralelamente a ela. A crítica de todas essas narrativas não se dirige
a situações isoladas de violação da lei que deveria reger a conduta policial. O alvo da crítica
é a incapacidade da polícia em distinguir os “trabalhadores” dos “bandidos”. Grosso modo,
os índices de abuso de autoridade pelo poder policial no Brasil é algo que tira o sono
apenas da Anistia Internacional.
Trata-se obviamente de um blico persuadido de que reside na impunidade dos
criminosos a causa da deterioração da ordem pública e que, por conseguinte, entende o
crime como expressão de uma crise moral. Para esse público, a violência policial parece
não ser um problema. Não é ela que assusta. O problema real parece ser identificado nos
casos em que a polícia erra o alvo” e em vez de acertar um criminoso, acerta um
estudante, uma mãe de família, um trabalhador. A violência policial como fantasma, sem
171
O processo de validação da violência como recurso que essas narrativas cotidianas ajudam a construir
explica, em larga medida, o surto psicológico de violência que vivemos atualmente e que determina a relação
da população com a instituição policial. Como constata Rifiotis (1997:9), “a violência implica uma visão de
mundo”. Sendo assim, a violência policial como experiência reiterada interfere na forma como as pessoas
definem o Estado de Direito. Como a polícia se coloca fora das fronteiras desse Estado, o que se tem é a
apliação das funções da violência no contexto social.
172
“É assim: direito humano pra bandido e humano direito sem direito nenhum”. Comentário de P.G., 60
anos, aposentada (Mariana, 18/12/2007), durante uma conversa sobre a percepção da violência nos dias de
hoje.
173
“Bandido tem é que matar mesmo!” é a frase que explica muito da concepção comum de que a “leié
para os inimigos. Os excessos da polícia são considerados válidos, desde que em termos abstratos e à
distância, nunca em termos concretos, “no quintal de casa” como diz Rifiotis (1997).
174
A idéia é a de que “pé de galinha não machuca pintinho”. Mais um dito popular onde a violência é
entendida como necessária à conformação dos sujeitos às regras e padrões de conduta. É essa a idéia que
fundamenta os discursos saudosistas quanto ao império da ordem na época da ditadura.
159
hora nem lugar. É este o tema que ocupa espaço na fala cotidiana sobre a polícia: a
imprevisibilidade da violência policial, não sua (i)legitimidade.
O sentimento que justifica a mensagem desses discursos é o medo de tornar-se vítima
devido à incapacidade ou desinteresse da polícia em distinguir quem é quem, que na
fala comum, a polícia pode – diria mesmo: deve – ser violenta, desde que o seja “com quem
merece”. O que amedronta é o fato de não se poder prever contra quem a polícia decide
agir, já que, em princípio, ela pode agir contra qualquer um, segundo seu arbítrio exclusivo,
livre de qualquer controle externo. O sentimento predominante é o de sujeição à
imprevisibilidade da conduta policial; de insegurança e ansiedade em relação à
corporação.
175
O caráter de sua prática é instável, imprevisível, particularista. Às vezes, não acontece
nada, caso a pessoa demonstre a “devida deferência”. Ou tudo pode depender de um
complexo jogo de influências ou do fato de o tipo de ato cometido fazer ou não parte da
lista de prioridades da polícia.
O que prova que valores e instituições não se contrapõem mutuamente: a polícia como
instituição perpassada por valores, tende sempre a fazer escolhas avaliativas. Enquanto
aparato institucional coercitivo, não age segundo uma lógica normativa neutra. Não é esta a
base de seu funcionamento. Não há, tal como a própria instituição sugere em seu discurso
sobre si mesma, neutralidade e universalidade na prática policial. Sua eficácia não depende
da neutralidade de suas ações. Depende da eficiência em hierarquizar. São os critérios
adotados nesta hierarquização e a eficiência nesta hierarquização que o discutidos nas
lendas. Nelas, as ações da polícia são criticadas ora por sua imprecisão, ora por sua
ineficácia, mas nunca por sua violência. Nelas, a polícia é incapaz de distinguir entre
trabalhador e bandido.
Vem daí o medo da polícia, como fica claro na fala de um informante ao justificar
porque as pessoas insistem em afirmar que não ajudaram os Piriás, embora a população
tivesse efetivamente dado cobertura aos dois:
176
175
Não se discute a necessidade de um controle externo, sistemático e efetivo sobre a instituição de
segurança, já que o senso comum entende que a mesma age segundo uma ética da responsabilidade individual
onde o discernimento do que se deve ou não fazer em termos do combate ao crime depende quase que
exclusivamente de cada um dos membros da corporação em particular.
176
Momento Narrativo em 12/07/2007, numa barbearia no bairroVárzea, Sete Lagoas.
160
“Não se mexe com quem está envolvido com a polícia, porque ela não vai sabê distinguí quem é quem.”
É esta suposta incapacidade da polícia em distinguir “quem é quem” que inquieta os
interlocutores das lendas sobre os Piriás. A mesma preocupação aparece em outras
narrativas que convergem com a lenda no decorrer de outros momentos narrativos. Numa
conversa com interlocutores em Maquinezinho, um deles disse:
X: - (...)
A: - Medo da polícia a gente não tinha o. Eles estava aqui pra protegê o lugá. E quem não
qué seu lugá protegido. A gente tinha mais é que colaborá. O problema era a polícia cismá,
porque não é sempre que dá tempo de explicá. Na época a gente evitava de andar de dois, de Kichute
ou sujo. Os polícia seguia os Piriá pelo rastro do Kichute, que eles tinha um par, e um calçava um
e o outro calçava outro, às avessa, pra parecê que tava indo pra frente, quando na verdade eles
andava pra trás. Eu e um companheiro mesmo, a gente foi confundido com Piriá porque estava de
dois e trajando Kichute, que era bom pra lida na roça. Os policial chegaram falando com voz
grossa. Na hora me arrependi de não ouvi minha irmã que sempre briga pra não saí andano sujo por
aí depois do serviço. É o tipo de coisa que pode dá marge pra confusão.
177
Em um outro momento narrativo, a conversa acabou se deslocando para o caso
famoso dos Irmãos Naves.
178
X: - (...)
A: - Na época a polícia trocou os pés pelas mãos. Prendeu os dois inocente. E dizem que judiô.
É o que o povo diz. E não duvido não, que a polícia costuma errá.
B: - Como no caso dos Irmãos Naves, cê lembra?
A: - É de vera. Foi na mesma época, né?
B: - É. Esses outros dois também era inocente, que foro denunciá o crime do otro que tinha
fugido com o dinhero do trabalho deles. Um sócio trem-a-toa, que ficô escondido. A polícia, pra
177
Momento Narrativo, dia 09/01/2007 em Maquinezinho, distrito de Cordisburgo. Seguiu-se com a conversa
e um outro interlocutor presente contou sobre a prisão de um rapaz, que estava sujo por causa do serviço
pesado mas que, em vez de voltar para casa, teria ido comprar ingresso para um show e acabou preso,
segundo ele, injustamente, pelo fato de o rapaz portar uma carteira de estudante falsificada, sem sabê-lo. “A
polícia não soube que ele estava sujo porque estava trabalhando. É um constrangimento que deixou o menino
revoltado.”
178
Momento narrativo em uma borracharia em 08/07/07. Forma de registro: anotação.
161
mostrá serviço, acabou fazendo o que fez. Mas o Estado teve que pagá pelo erro. Indenizou o que
sobreviveu na cadeia.
A: - Mas depois de trinta anos de sofrimento. E eu pergunto: compensô?
B: - Seu pneu tá pronto, menina (...)
Em outra ocasião, depois de falar do caso Piriás, eis que o assunto passa a ser Davi
Damião, um “místico” que em fins dos anos 1940, arregimentou fiéis no lugar chamado
Cachoeira dos Macacos depois município de Cachoeira da Prata, vizinho de Sete Lagoas.
Davi Damião teria liderado seus seguidores na invasão de uma fazenda no lugar.
X: - (...)
A: - Reuniu as pessoas para orar e trabalhar. Só que nem os fazendeiros, nem o padre do lugar
gostaram daquilo. Mandaram então a polícia até lá pra conter o Damião. Damião não se intimidou.
Distribuiu uma medalhinha para os crentes e disse que eles podiam enfrentá a polícia. Resultado foi
que morreram oito, fuzilado.
B: - Achando que tava sob a proteção da medalhinha.
A: - É! E em Cachoeira até hoje ninguém gosta de tocá no assunto. Eu fui lá vê os corpos no
necrotério. Eu era menino na época e me lembro bem, porque foi impressionante. Chocava vê aquele
tanto de gente morta por arma da polícia.
B: - Ainda mais que diziam que foi por ordem do padre lá de Cachoeira que ordenou a ação da
polícia.
A: - Davi Damião era um tipo benzedô. Mas queria ajudar o povo sem terra. Um que morreu
tava até de chuteira (?), dando sinal que tava é trabalhando na hora do confronto. E tinha mulheres
também, inclusive uma grávida. Diz que na hora do tiroteio, a grávida fugindo foi passá embaixo da
cerca de arame farpado e rasgou a barriga. O feto apareceu. Uma coisa pavorosa.
B: - Morte de gente inocente. Coisa de cinqüenta anos atrás. Mas ainda acontece coisa assim. A
gente vê no jornal todo dia.
A: - Aí não é lenda mais. É fato.
162
X: - (...)
179
Famoso também é o caso do policial que teria dado voz de prisão a um ônibus
inteiro. O policial estava deixando o serviço. Estava fardado, no ponto de ônibus, esperando
para ir pra casa, quando ouviu um deboche por causa dos Piriás.
“Ele então entrou no ônibus, um desses ônibus que leva os pessoal que trabalha em siderúrgica, e deu
voz de prisão para 50 pessoas. Quando ouviu alguém dizer:
- Em vez de prender Piriá, tá prendendo trabalhadô!
Ele ficou furioso. Ia prender o ônibus inteiro. Uma coisa impossível.”
180
Todos esses “casos de polícia” discutem uma prática consolidada no mundo da vida.
Tratam de uma realidade naturalizada, auto-evidente do abuso da força por parte do poder
policial. Mas, como vimos, não é o uso da violência como meio que é criticado. Na
verdade, este é visto como necessário, pré-requisito, inclusive, da eficiência da ação policial
que, segundo a gica que dirige a lenda, a polícia é o aparato de controle social que
opera com o fim de “curar” desvios de comportamento, de “limpar” a cidade do crime.
Sempre que ela atuar nesse sentido, mesmo que mediante o recurso excessivo da violência,
terá sua ação legitimada pela opinião de uma larga faixa da população.
É o que demonstra a recorrente referência ao Cabo Madureira nos momentos
narrativos sobre os Piriás. José Henrique Madureira, o Cabo Madureira, tornou-se figura
famosa em Sete Lagoas por causa do caso Angueretá.
181
Ele, que à época respondia a um
179
Momento narrativo na casa de um interlocutor, Sete Lagoas, dia 04/01/07. Da conversa participaram C.L,
66 anos e E. S de 59 anos, além de mim.
180
Informante em entrevista no dia 30/03/2005, em Sete Lagoas.
181
Numa cisterna em Angueretá, nas terras do fazendeiro José Luís Figueiredo, foram encontradas 19
ossadas. Em inquérito foi apurado que três militares, dentre eles Cabo Madureira, teriam agido em defesa dos
interesses da família Figueiredo. As execuções teriam transcorrido entre os anos de 1970 e 1977, quando
houve a denúncia. Com o tempo tais execuções teriam evoluído para o que entendia-se como um acerto de
contas da polícia com a justiça. Cansados de prender o que classificavam de vagabundos, ladrões, cachaceiros
e arruaceiros, os policiais teriam decidido agir por conta própria. Como se pode ler num dossiê publicado
sobre o caso (Documento: tudo sobre os crimes de Angueretá Jornal de Minas, pág.04): “Que adianta
prender? A justiça é morosa e condenscendente. Os jurados, os juízes não sabem o que é passar noites inteiras
no frio, na caça de vagabundos que não valem duzentos réis. Não conhecem o perigo que corre o policial
prendendo homens que amanhã estarã soltos e podem esperá-los numa emboscada qualquer, como
escorpiões.”
163
inquérito sobre o referido caso, e que já estava prestes a ser reformado, ofereceu-se
publicamente para trabalhar na captura dos Piriás.
182
“Eu me ofereci para fazer a captura porque eles mataram um colega. Eu tinha experiência e poderia
ajudar. Os outros inclusive foram mortos por falta de expriência. Tinha que andar à paisana e ter
muita paciência na recolha das informações sobre o paradeiro dos dois. Eu não via possibilidade de
prender os dois, a não ser que se entregassem, porque era sabido, que quem chegasse perto deles era
recebido à bala.”
183
Foram várias as pessoas com quem conversei que deram a entender, direta ou
indiretamente, que a polícia teria resolvido o caso dos Piriás com mais “ligeireza” se tivesse
permitido que Cabo Madureira trabalhasse no caso.
X: - (...)
A: - Você tem que conversar é com o Cabo Madureira. Aquele ali matô foi gente, num foi, B?
B: - Contam. Diz que matô.
A: - Antes a estratégia da polícia era bem clara. Preso que dava muito trabalho e coisa e tal eles
combinava de transferi pra Pompéu. E pra lá de Paraopeba, pra chegar em Angueretá, tem o Rio
Paraopeba, não é mesmo, B?
B: - É.
A: - Pois então. Eles parava no trevão, deixava os preso bebê água, café, coisa e tal, tal, tal.
Depois “esquecia” de passar o cadeado na porta. Corria. Quando chegava na ponte do Paraopeba,
parava pra fazê xixi. Eles descia. Era descendo e eles metralhando. Tentativa de fuga (...). Ih! Sete
Lagoas vivia tranqüila. Tranqüila mesmo.
B: - Bom! sabe da história assim, né? Conheço quem conte de outro jeito. Que eles pegava
a pessoa que o fazendeiro não gostava ou um nêgo que não tinha conserto e levava pra lá. Chegava
lá, dava um tiro nele e jogava dentro da cisterna. Inclusive um que fugiu, que foi o L., que tá
morando hoje em Paracatu, esse L. fugiu. Ele levou um tiro, mas a bala passou de raspão na
cabeça dele. E ele caiu dentro. Depois de um certo tempo, voltou a si e conseguiu saí. Denunciô
tudo, mas na polícia de Belo Horizonte. Foi donde desenrolô a história toda que foi notícia pra
tudo quanto é jornal. Isso foi de uma repercussão no estado de Minas fora do comum (...)
A: - É! Era a época do Cabo Madureira. Ele não trabalhou no caso Piriá, mas vai saber te dizer
do que aconteceu.
182
Vide entrevista com o policial no jornal A Gazeta de 09/08/1978 (pág.9).
183
Entrevista com Cabo Madureira (policial reformado, 83 anos) em 04/01/2007, em sua casa em Sete
Lagoas.
164
X: - (...)
184
Vê-se nitidamente corroborada a idéia de que o exercício extremo da força é
amplamente compreendido como procedimento eficiente e necessário até. Uma conduta
legítima desde que contra o alvo certo. A questão por detrás do prestígio da figura do Cabo
Madureira é a crítica ao fato de que o Estado, representado pela instituição policial, tende a
falhar onde se espera que ele atue. O que está em questão não é a pretensa ilegitimidade dos
meios utilizados pela corporação para cumprir seu papel, mas sua ineficiência ao fazê-lo.
É claro que a polícia da qual Cabo Madureira fez parte era bem diferente da de hoje.
Àquela época, policial era sinônimo de militar, o braço da repressão, o “funcionário” do
DOPS e do DOI-Codi. Segurança pública não era manchete como é nos dias que correm e a
imagem da instituição policial se definia em outros termos. Hoje em dia, teme-se o policial
como alguém que supostamente estorque e é facilmente corrompido. Trata-se do agente da
lei, que ao contrário de tudo o que deveria fazer ou representar, age em conluio com
criminosos ou mesmo como criminoso. Não há dúvidas de que a imagem da polícia
degenerou ao longo de três décadas e que vivemos uma situação anômica, onde o
representante da ordem legal, não raro, é visto como amigo de bandido.
Para o imaginário popular no contexto da ditadura militar, porém, a polícia era
outra. O fato de a figura do policial ser identificada como aquele que prendia, torturava, e
sumia com gente, não implicava o entendimento de que a polícia pudesse associar-se a
criminosos. Ela era vista como ligada exclusivamente ao aparelho de Estado, em seu
compromisso de combater o crime. Apesar disso, as lendas sobre os Piriás nos remetem
àquela mesma tensão estrutural entre a prescrição institucional da conduta policial em
termos do Estado de Direito e a práxis cotidiana da polícia. E o fazem questionando
precisamente a contingência da violência policial, a ilegitimidade da acusação, prisão e
perseguição dos Piriás.
“O que o pessoal contava é que eles eram dois irmãos. Dois irmãos que trabalhavam. Trabalhavam
muito e moravam numa fazenda. Era peão de fazenda. Eles eram trabalhadores e muito alegres e
tudo. E que eles, trabalhando, juntaram dinheiro e no natal vieram pra Sete Lagoas. Quando
184
Momento narrativo na casa de um informante, Sete Lagoas, dia 04/01/07. Da conversa participaram C.L,
66 anos e E. S de 59 anos, além de mim.
165
chegaram em Sete Lagoas ainda existia as lojas Arapuã, que eles entraram e compraram uma
radiola. Daquelas radiola de disco vinil. É! De vinil. Compraram a radiola e muito alegres saíram
com a nota da radiola da Arapuã. E acabaram indo para um barzinho. Sentaram e andaram bebendo
umas cachaça, uma cerveja na cidade. E dizem que colocaram a radiola e estavam escutando disco.
Não sabe se foi alguém que chamou a polícia ou se a polícia chegou e invocou com eles, e diz que
chegaram. A polícia chegou se identificando e chutou a radiola deles. que eles [os policiais]
falaram que eles [os Piriás] tinham roubado. Mas os dois falaram que não tinha roubado a radiola,
que a radiola era deles, que eles tinha comprado na Arape tinha atirado nota fiscal que most
pra polícia. que o policial pegô a nota, rasgô e jogô na cara deles e falô que eles era ladrão.
Ladrão! Ladrão! Ladrão! Que eles era ladrão. E que tomô a radiola deles. Tomaram a radiola deles e
levô pra cadeia. Diz que ainda bateram neles na cadeia, muito e tudo, né? E diz que a revolta deles...
diz que eles ficaram revoltadíssimo, né? Que eles queriam a radiola deles de volta, que eles não tinha
roubado a radiola. Que a única coisa que eles queixavam na cadeia é que eles queriam a radiola
deles de volta. Mas eles [os policiais] não devolveram a radiola deles não. Falô que eles tinha
roubado e eles falaram que não tinha roubado, que pudesse ir na Arapuã, que eles iam ver que eles
tinham comprado a radiola. eles ficaram preso. E eles fugiram da cadeia. E quando eles
fugiram da cadeia, eles embrenharam no mato, que eles tava acostumado a morar em fazenda. a
polícia foi atrás. diz que a polícia foi atrás e eles enfrentaram a polícia mesmo. Matô um . Diz
que atirava bem mesmo (...). A gente na época só via polícia na rua. E foi uma desmoralização, que o
assunto era só esse, né? E eles... todo mundo assim com raiva, né? Porque os dois e conta de
mais de centena de policial. Até veio policial de Diamantina, Curvelo e até Belo Horizonte, reforço,
e não dá conta de pegá os dois, dois home só? Uma vergonha também porque eles não podia ter feito
o que eles fizeram, né? A polícia. Errô de tê rasgado o documento sem conferí. Tinha que ter levado
na Arapuã. E ia que era verdade, a radiola fruto do trabalho deles. Mas ninguém conferiu.
foram acusando de ladrão. Mas eles não era ladrão. Era gente trabalhadera. Foi a polícia que criou
esses monstro. Foi os maus-trato, o desrespeito que fez eles fazerem isso tudo. Diz que bateram no
rosto deles. Nó! Diz que eles ficaram furiosos. Diz que bateram muito no rosto deles. E que eles
falaram que home não apanha na cara. E aí, foi dque surgiu a raiva deles, a fúria deles, a coragem
pra entrá na guerra com a polícia.”
185
O questionamento da lenda se refere menos a um ambiente de não-legalidade, à falta
de procedimentos de salvaguarda dos direitos da pessoa, ou a acusações sem a proteção das
regras do processo e sem evidências adequadas. Ao contrário do que possa parecer, o tema
não é a ilegalidade do ato da polícia contra os Piriás, mas a sua imoralidade: a polícia
deveria ser capaz de distinguir os dois como trabalhadores; cidadãos dignos da proteção
185
Momento narrativo, 05/01/2007 na casa de um policial de reformado (Sete Lagoas).
166
policial. Prender dois trabalhadores, a mando do patrão e acusá-los de serem ladrões é ação
interpretada mais como agressão ao consenso moral que como violação do código legal. É a
agressão ao consenso moral partilhado pelos interlocutores da lenda que em verdade
configura o crime; não a agressão ao consenso normativo expresso em lei. E esse
ressentimento dos interlocutores quanto ao não-reconhecimento da condição de trabalhador
que se expressa nas lendas. E são as conseqüências desse não-reconhecimento que são
descritas por elas.
“Tem um ditado que diz que o capeta não é tão feio tal qual se pinta. O que se via falá na época é que
os Piriá foram gerado pela polícia que trabalhô na perseguição dos patrões deles. Foi um dos patrões
deles que começou a encrenca toda. Um decendente de turco que tem aqui em Sete Lagoas, sabe? É
igual eu te falei, né? Tô vendendo pelo preço que comprei. Porque é a sociedade que gera essas coisa
todas, né? Esse mal. Porque eles não eram o que falava que eles eram não. Não eram gente terrível,
que roubava, que matava, que batia assim não. Não era malandro nem preguiçoso. Era gente de bem.
Muita gente conheceu os dois. E diz que não eram assim não. Era gente trabalhadora e que não
levava desaforo pra casa porque andava certo. A polícia acabou fazendo isso com eles em acordo
com o tal Culego. Os Piriá mesmo não fizeram mal pra ninguém. A polícia disse que eles tinha
ameaçado o tal Culego, o turco. Depois disseram que os dois tinham roubado um rádio. Cada hora
uma história. No fim, sei que foi a polícia que fez a imagem deles, né? Porque é a polícia que faz a
imagem do matadô. Transforma o trabalhador em bandido criminoso.”
186
E retornamos à categoria trabalhador como conceito central da lenda. Nela,
expressa-se uma demanda por cidadania, sim, mas em termos da categoria trabalhador-
cidadão, uma espécie de categoria de acesso aos direitos civis. O alvo do protesto da lenda
é o não-reconhecimento da condição de trabalhador como salvaguarda contra a
arbitrariedade policial. É o tema do reconhecimento da condição de trabalhador, e por sua
vez, da moralidade que essa condição evoca, o elemento, por assim dizer estrutural, que
persiste e conduz essas narrativas associadas. É relativamente a esta falha no
reconhecimento do trabalhador-cidadão que podemos dizer que a violência da polícia
contra os Piriás, tal como descrita nas lendas, não se distingue de outros atos violentos da
polícia descritos nas narrativas convergentes.
186
Momento narrativo do dia 05/01/2007 com o Sr. J.L., 63 anos, na Delegacia de Proteção ao Menor de Sete
Lagoas.
167
Articulando todas elas, há um certo sentido comum desse não-reconhecimento como
problema social que diz respeito a todos. É deste sentido comum que emerge o conjunto de
perspectivas e compreensões sobre como é o mundo e como lidar com ele. E os Piriás
representados nas lendas encarnam o conjunto de alternativas baseadas nessas perspectivas,
fazendo das lendas uma espécie de racionalização da posição desses dois trabalhadores que
decidiram reagir ao não-reconhecimento de sua condição não se submetendo à contingência
da violência policial.
Não estou, por isso, me referindo a uma suposta função “revolucionária” da
violência coletiva metaforizada na figura dos Piriás.
187
Nem falo da narração da lenda como
reação social (difusa e uniforme) aos crimes contra a pessoa cometidos pela polícia. A
reação à violência policial não é uma decisão tão óbvia quanto gostaríamos que fosse. Pelo
contrário. Em sociedades tão desiguais como a nossa, a capacidade de suportar agressões
desse tipo, a persistência dessa des-ordem” é que constitui a rotina. De fato, não um
consenso quanto à qualidade criminosa do abuso da força por parte da instituição policial,
como vimos. O consenso que garantiria o julgamento desse tipo de conduta como desvio,
um absurdo ou mesmo uma patologia social.
A narração das lendas ou melhor, sua tradicionalização não sugere um
“engajamento” dos interlocutores numa possível alteração desse estado de coisas, como se
o ato de narrar as façanhas dos Piriás pudesse ser entendido como uma clara rejeição da
violência policial. Na prática, não é essa a forma privilegiada de questionamento da
inadequação do comportamento das instituições públicas.
Nas lendas, o comportamento pretensamente ideal da polícia depende de uma
hierarquia de valores que não se encontra no corpus abstrato da lei. A moralidade que julga
a ação policial na lenda se distingue claramente da noção de legalidade. Gostaria de insistir
nesse ponto: o que é considerado grave na atuação da polícia é não saber distinguir quem é
o trabalhador. É somente neste sentido que podemos dizer que os interlocutores da lenda
têm interesse na conquista de uma justiça e uma ordem social: nessas histórias luta-se por
reconhecimento social, mas em termos de uma outra hierarquia valorativa organizada a
187
As lendas não pregam uma “indignação moral dos impotentes” dirigida contra “criminosos invisíveis”,
ocultos atrás da Lei e da Ordem como simulacro de interesses particulares. Nem pregam a “revolução” pelas
mãos dos Piriás. Esta é, antes, a ideologia do cordel sobre os Irmãos Piriás, essencialmente anacrônico e
composto ao gosto da melhor ideologia marxista.
168
partir do valor do trabalho. Essa hierarquia valorativa apresentada na lenda é capaz de
vincular subjetivamente todos os envolvidos na narração ao mesmo tempo que faz da narr-
ação um processo de classificação social.
4.2. Os personagens
Victor Turner (1974:38) lembrou à antropologia a importância da quebra das
normas que regulam o intercurso das partes para a construção do sentido da ação social,
provocando assim uma ampla revisão dos pressupostos da nossa disciplina à época, mas
que no nosso caso também demanda algum questionamento. No caso das lendas sobre os
Irmãos Piriás, menos que o poder normativo (a legalidade) que gere a ação social, o que
concentra a atenção dos interlocutores é a dimensão moral da conduta. É em termos de
moralidade ou imoralidade que cada ação dos personagens é classificada. O fazendeiro age
imoralmente (mais que ilegalmente) contra o contrato de empreito e quando faz uso do seu
poder para acionar a polícia. A polícia, por sua vez, age imoralmente (mais que
ilegalmente) atendendo ao interesse privado, prendendo os Piriás de forma irregular e
matando-os, ao final, sem julgamento. os Piriás encarnam a própria noção de
moralidade; sua imagem é moldável segundo a visão que os interlocutores da lenda têm
deles, do evento e do mundo a sua volta.
É o que nos autoriza a afirmar que as lendas sobre os Irmãos Piriás se formam à
medida que os interlocutores produzem tipificações sociais. Nelas, o acontecimento é
reconstruído a partir de um processo especial que articula conduta e tipificação social dos
personagens. A conduta remete a regras que compõem a ordem moral tida como ideal pelos
interagentes da narração da lenda. E é a partir dessas regras (ao mesmo tempo
compartilhadas e reavaliadas no decorrer do ato comunicativo) que os interlocutores
reconstroem todo o evento, tipificando os personagens ao mesmo tempo que indexam
moralmente sua conduta.
188
A partir desse raciocínio, defendo a tese de que a lenda compõe-se de um conjunto
de “tipos”, ao passo que o evento é captado em suas “determinações típicas”. Os
188
A lenda em si oferece, por sua vez, um enfoque interpretativo para a conduta que interessa aos
interlocutores analisar.
169
personagens, por sua vez, são tipos adequados, construídos e reconhecidos a partir de
experiências anteriores dos interlocutores das lendas.
189
Afirmo que é através desses tipos
que os interlocutores da lenda operacionalizam sua pretensão de domínio do evento em
termos de sua significação. O que permite que falemos das lendas como resultado da
estabilização de “tiposoriginados no decorrer da narr-ação e de seus personagens como
resultado da objetivação de “tipificações” (Schutz & Luckmann, 2003:225). Em outras
palavras: nos personagens, os interlocutores da lenda conferem “corporiedade” ao que é
considerado tipicamente significativo em termos valorativo-morais, “criando” personagens
como sedimentações de tipos significativos para todos os que compartilham das histórias.
Os personagens são, portanto, como que cristalizações socialmente aprovadas, das quais
qualquer um pode se apropriar efetivamente no decorrer da narr-ação, a qual, antes de mais
nada, configura um processo de socialização por intermédio de tipos de significações
específicas.
Um exemplo já mencionado é o caso da categoria trabalhador. Nas lendas, os
irmãos Sebastião e Orlando Patrício são como que ordenados ao tipo “trabalhador”. Esse
tipo, como vimos, é estabelecido em experiências anteriores dos interlocutores da lenda,
que ao narrar a história dos Piriás, enriquecem o tipo “trabalhador” com outras
determinações também típicas.
190
De uma maneira tal que a condição de trabalhador”, da
maneira como é definida nas lendas, passa a oferecer o contexto de determinação da figura
dos dois irmãos de maneira absoluta. O tipo trabalhador” passa a operar como uma pauta
de conduta das ações e, por conseguinte, um eficiente esquema interpretativo da figura dos
Piriás.
A lenda constitui-se, assim, como um esquema experencial da significação (social)
da categoria trabalhador. Nela, as experiências subjetivas objetivadas nesse “tipo” o
trabalhador formam um contexto de sentido que, por sua vez, permite a experiência das
determinações valorativas que constituem a essência do “tipo” em questão. É enquanto
determinação pré-existente no acervo de conhecimento prévio dos interlocutores, a partir de
189
Todo meu argumento aqui está fortemente baseado no conceito de “tipificação” elaborado por Schutz e
Luckmann (2003).
190
O termo “trabalhador” adquire, no decorrer da narração, uma significação ampliada, já que é na narrão
que o “tipo” é aplicado à situação concreta. Ou seja, por meio dos Piriás descritos segundo a tipificação
“trabalhador”, o evento se esclarece a partir de um outro campo de sentido, que se constitui remodelando os
sentidos já existentes antes da narr-ação.
170
experiências subjetivas dos interlocutores, que o “tipo” enquanto personagem da lenda é
captado na narr-ação.
191
É a partir dessa hierarquia valorativa, elaborada e compartilhada pelos interlocutores
no momento narrativo, que os personagens da lenda são elaborados, transformados em
signos sociais visíveis da eficácia de valores específicos na vida cotidiana. Dito de outra
forma: na narração os interlocutores objetivam um contexto de sentido específico:
(re)organizam uma hierarquia valorativa, de forma que os valores considerados prementes
adquirem “materialidade” e eficácia sob a forma de personagens. É o que permite aumentar
o grau de articulação desses valores no decorrer do ato comunicativo.
A hierarquia valorativa que os personagens da lenda permitem projetar no cotidiano
se opõe à hierarquia real, mas não necessariamente visível, desse mesmo cotidiano. Nos
termos da lenda, o consenso valorativo operante que governa a ação policial no mundo da
vida é apontado em sua lógica patrimonialista, legitimadora de preconceitos e
desigualdades sociais. Ali se escancara a realidade do acesso diferencial aos serviços da
instituição nas suas conseqüências mais terríveis.
O consenso valorativo a respeito dos Piriás segue na direção oposta. Ele confere
força e obrigatoriedade mesmo que moral à idéia de eficácia do valor do trabalhador
enquanto cidadão protegido pela lei. Embora trate de uma unidade de pessoa e ação
diferente daquela que define o Direito. Neste último, ação e pessoa são separados. As
sanções a uma infração não implicam o julgamento da pessoa como um todo, mas apenas
do desvio por ela cometido. Diferentemente da lenda, onde o personagem é o que ele faz,
onde ele se define por sua conduta, onde apenas uma de suas ações passa a definir toda sua
personalidade.
192
191
Schutz e Luckmann (2003:224) mostram que o “tipo” nunca é captado em sua existência fática. Ele é
sempre “experimentado” no seu modo “típico” de “ser de tal ou tal maneira”. O tipo, enquanto contexto de
sentido, se estabelece na experiência subjetiva do mundo da vida. Constitui, portanto, “una relación uniforme
de determinación sedimentada em experiências anteriores” (Schutz & Luckmann, 2003:225).
192
Outra forma de “julgamento” onde podemos identificar essa mesma unidade entre pessoa e ação é o caso
do que poderíamos chamar de linchamento moral, caracterizado pela (hiper)exposição de acusados e mesmo
suspeitos de crimes no noticiário. O consenso é o de que se deve denegrir publicamente a imagem do pretenso
“desviante”, punindo a pessoa por inteiro, sendo precisamente esta a punição de fato, tida como capaz de
substituir até mesmo a punição pelo sistema legal. Sobre a unidade entre pessoa e ação como característica
principal do direito pré-estatal, cf. Wesel (1985:321). Sobre o conflito entre a forma de punição da pessoa por
inteiro e a punição via sistema legal como um problema da ordem pública, cf. Colson (1975).
171
Não custa repetir que, no caso das lendas sobre os Piriás, a ação definidora de toda a
personalidade de Orlando e Sebastião Patrício é sua valentia” para o trabalho. É essa a
condição que define todas as ações dos dois irmãos na história. Por serem trabalhadores,
não haveria alternativa de ão para os Piriás nas circunstâncias sociais em que eles se
encontravam: na lenda, eles teriam que agir exatamente como agiram. A condição de
trabalhadores justifica inclusive uma disposição para agir de forma digna, honesta e
guerreira, não obstante seus “crimes”. Eis a razão pela qual, apesar de roubarem, de
matarem policiais, de serem foragidos da lei, a ação dos dois irmãos sempre aparece na
lenda como moral, racional, legítima, ao passo que a forma de ação da polícia é descrita de
forma contrária, vale dizer, como imoral, irracional, ilegítima e, como veremos mais
adiante, ineficaz. Esse défice de prestígio social da polícia é formulado pelos atores da
narração de forma drástica, ofensiva , dando ensejo para o deboche, a crítica da imagem do
braço armado do Estado.
A esse défice de prestígio social da polícia corresponde um plus de prestígio social
dos Piriás enquanto personagens avaliados segundo uma outra ordem valorativa que
permite descrever a ação dos Piriás nas lendas como um meio “legítimo” de “acertar as
contas” com aquela parcela da polícia que violou e atentou contra a integridade física e
liberdade de trabalhadores. À violência responde-se com violência. Por isso, os Piriás são
apresentados nas lendas como indivíduos conscientes do seu direito de usar da violência
contra a polícia (e contra os ricos), com o objetivo explícito de redefinir seus papéis e fazer
valer seu direito ao reconhecimento social.
Trata-se de uma espécie de permissão para agir segundo um outro código, que
permite questionar a forma como se dão as relações sociais no espaço urbano moderno. Nas
lendas, os Piriás podem tirar proveito da imagem de mateiros, brigões, valentes para
ampliar suas possibilidades de ação em diferentes situações. O processo é de uma
verdadeira inversão do pólo de valorização de características reconhecidas como típicas dos
dois irmãos antes mesmo do seu enfrentamento com a polícia. Num contexto normal de
relação nos termos tipicamente urbanos, ser mateiro, brigão, marrento seriam características
amplamente reprovadas. Todavia, na lenda, todas essas características são revertidas em
“coragem”, compreendida agora como capacidade dos excluídos para adquirir prestígio e,
eventualmente, poder dentro das estruturas sociais existentes.
172
A lenda inverte também a rotina do comportamento na vida real, marcada por uma
idéia bem clara de como deve ser o comportamento do cidadão perante a força policial. O
consenso dominante é o de se evitar envolvimento com quem está envolvido com a polícia.
O que se procura evitar, no caso, é a arbitrariedade da ação policial, que a polícia seria,
em tese, incapaz de (ou não teria interesse em) distinguir entre os cidadãos de bem e o
contraventor. “Com polícia é sim senhor, não senhor, pois não senhor” é o conselho que se
ouve com freqüência em Sete Lagoas. O sentido desta atitude é que o envolvimento com a
polícia (assim como o envolvimento com o “estranho”) traz perigo, ao passo que o familiar,
a rotina, a docilidade garantem segurança e tranqüilidade. É a perspectiva do indivíduo
constantemente assustado, zelosamente conformista. Uma estratégia de fuga dos perigos e
frustrações que parecem inerentes à relação cidadão/instituições e que justifica a não-ação
no espaço público e o ceticismo face às normas institucionais. Uma não-ação à qual a lenda
se contrapõe no seu esforço de tematização dos pressupostos morais subjacentes à cultura e
de construção dos Piriás como identidades com papel e poder específicos dentro do
contexto de interação social.
Vê-se que a questão diz respeito ao problema da orientação do indivíduo
contemporâneo. Diferentes forças se articulam como eixos definidores de sua identidade.
São forças éticas diferentes que se afirmam, de um lado, a partir de critérios culturais de
avaliação da conduta dos indivíduos, e de outro, a partir de critérios institucionais de
avaliação dessa mesma conduta. Sob a égide da modernidade, o que ocorre é um choque de
inter-influência entre esses critérios (culturais e institucionais). Poder-se-ia falar numa
cesura entre os dois tipos de critério de apreciação moral de conduta. As condutas dos
personagens fazendeiro, polícia e Piriás são apresentadas como extensão ou aplicação
de vínculos morais mais amplos e fundamentais que aqueles determinados pelos critérios
institucionais de avaliação de conduta no espaço público. De maneira que podemos afirmar
que a aceitação da “existência” de uma determinada figura na lenda implica a aceitação do
code implícito a partir do qual essa figura age.
Porque nas lendas lidamos com tipos de comportamento, mais que com tipos de
pessoas; tipos de ação, mais que tipos de personalidade. Enquanto operações simbólicas,
essas narrativas permitem aos interlocutores hierarquizar as pessoas como dignas de apreço
ou não, permitindo a realização de uma verdadeira esquematização da visão de mundo dos
173
interagentes na narr-ação. O que faz da lenda um tipo de mapa social que se esforça por
guiar a conduta dos interlocutores como atores sociais exatamente como guia a conduta de
seus personagens.
A afirmação de uma identidade na lenda se faz sempre a partir da conduta do
personagem em questão, cujo “efeito” (talvez o termo seja excessivo) é um tipo de
identificação que a narração da lenda regularmente suscita. Personae históricos no
sentido que não precisam ser inventados passam a ser “edificados” nas lendas a partir de
sua adequação ou não ao ideal moral compartilhado pelos interlocutores no momento
narrativo. Trata-se de uma verdadeira substantivação de categorias, uma tipificação” onde
a relação que se estabelece entre interlocutores e essas personagens é parcialmente
imaginária, mas de alguma forma familiar: quando alguém diz que “conheceu” os Piriás,
afirma antes de mais nada que “reconhece” os Piriás no que toca à legitimidade de certos
valores e à confiança em um determinado modo de conduta. Sendo assim, a essência desses
personagens está nos efeitos que a apreciação de suas qualidades (formais ou morais) surte
sobre o conteúdo da narrativa e sobre o grau de credibilidade e de aceitação da mensagem
da lenda.
4.2.1. Os irmãos Piriás
Nas lendas, os Irmãos Piriás são apresentados como homens que agem conforme um
esquema de tipificação de pessoas e ações constituído pela comunidade narrativa a partir da
categoria trabalhador. É a condição de trabalhador que fixa aos dois as metas dignas de
estima por parte dos interlocutores da lenda. É por meio dessa categoria que a comunidade
narrativa diz o que os Piriás fazem, e, por conseguinte, quem eles são. O que faz dos Piriás
“tipos”, e ao mesmo tempo, impede que ambos sejam identificados como representações de
um segmento social específico.
“‘Eu conheço eles desde meninos, gente boa que quando pegava no serviço era pra valer’
testemunhou 20 dias o sitiante Isidoro Cunha, 42 anos, o ‘Nonô Cunha’ de Sete Lagoas. E o
fazendeiro Manoel Cirilo, de 73 anos, em cujas terras fica a ‘Lapa Branca’, grota onde os Piriás
moraram alguns meses, atestou, por sua vez: ‘eles nunca me deram amolação no tempo que moraram
ali’ diz apontando uma montanha de pedras cerca de um quilômetro de extensão – ‘não eram gente
174
ruim não. Eram gente de bem, trabalhadora. Parece que ficaram bandidos por judiação da
polícia.’”
193
Nas lendas, os interlocutores se referem aos Piriás como valentes para o trabalho”,
homens que não recusavam serviço, “não escolhiam serviço”, “bons de serviço” e “muito
trabalhadores”. Evidentemente, o uso desses termos o é meramente retórico. Neles deve-
se reconhecer o esforço dos interlocutores da lenda em firmar a condição de trabalhador
como pré-requisito do reconhecimento social.
Em outras palavras: nas lendas, é a condição de homens trabalhadores que garante
aos Piriás o acesso ao reconhecimento social, mais até que o acesso aos direitos
substantivos associados à noção de pessoa jurídica. O trabalho determina a avaliação do
valor de cada indivíduo no que diz respeito à proteção legal dos direitos subjetivos
universalisáveis e intercambiáveis, mas também no que diz respeito à estima social dos
indivíduos.
194
Assim sendo, o sentido primordial dessas narrativas é assegurar identidade,
auto-estima e reconhecimento social aos Piriás, valendo-se da categoria trabalhador. Uma
forma de conquista social diferente daquela inerente ao direito abstrato, impessoal e
universal, uma vez que a condição de trabalhador se refere a cada indivíduo em particular e,
portanto, o reconhecimento social que daí advém pode ser conquistado individualmente.
Ou seja, o respeito social atribuído ao papel do trabalhador bem como o reconhecimento
desse papel na lenda é algo que depende em ampla medida da ação individual.
Assim, a lenda configura uma espécie de legitimação cotidiana, de princípios de
distribuição de reconhecimento social a partir da categoria trabalhador. Essa ética do
trabalho elaborada na lenda opera como uma ideologia para uma “novaordem, definindo
os limites do poder da polícia bem como do fazendeiro que parecem partir do princípio do
não-valor de trabalhador-cidadão dos Piriás, que agem contra os irmãos como se eles
fossem subgente, desqualificando-os como merecedores de “consideração” ou dignidade
(no sentido tanto jurídico quanto extra-jurídico do termo). A repressão policial a mando do
fazendeiro rico aparece na lenda, portanto, como uma imposição por parte daqueles que
193
Estado de Minas, 10/08/1978.
194
Embora, na lenda, “trabalhador” seja sinônimo de cidadão, seus interlocutores não parecem preocupados
com a necessidade de homogeneização do tipo humano trabalhador como precondição para uma idéia atuante
de cidadania stricto sensu. O que não quer dizer que a condição de trabalhador como pré-requisito do acesso
aos direitos de cidadão não esteja implicada na forma de se construir a lógica do argumento moral da lenda.
175
acreditam-se acima da lei e que, devido à sua posição na escala social, acreditam poder
ignorar impunemente tanto o princípio de igualdade do direito abstrato quanto a ordem
moral considerada legítima por aqueles que são vítimas de seus desmandos.
Acima da lei, nas lendas, estão o fazendeiro e a força policial, identificados pelos
termos “o rico” e “a polícia”. O rico e a polícia são tomados como referentes “típicos” de
uma ordem peculiar cuja base é composta por uma verdadeira ralé de subcidadãos, estes
sob constante ameaça daqueles.
195
Nas palavras de uma moradora do Maquinezinho,
distrito de Pirapama:
“O medo é bom companheiro. E que se ter medo de estranho, de rico e de polícia. É gente que a
gente não consegue se apercebê bem. Aqui o medo de Piriá era medo de estranho. No caso dos
moço, o angu de caroço todo foi que ele enranxô com a polícia e com home rico. O bom conselho
diz que não mexesse com gente rico não, nem com polícia. Era gente boa. não gostava de polícia
nem de gente rica.”
196
Por isso, a mensagem é clara:
“Ideal , menina, é não se envolvê nem com rico, nem com polícia. Mas os Piriá quebraro essa regra e
deu no que deu. A polícia passô foi vergonha.”
197
A lenda revela como os critérios para atribuição de reconhecimento social no
mundo da vida são historicamente contingentes, bem como culturalmente determinados.
Nas lendas, evidencia-se uma visão de mundo (portanto, uma hierarquia valorativa)
estabelecida, responsável por preconceitos profundos e invisíveis. Nas lendas, ela deixa de
ser subliminar para aparecer simbolicamente articulada na narração.
Por isso, não devemos ignorar a força do símbolo em termos de sua efetividade no
mundo social. As lendas sobre os Piriás acenam com a possibilidade de um impacto
195
O mesmo pode ser observado nas lendas sobre Lampião. Segundo M.A., 67 anos (momento narrativo em
11/01/2007, num sítio no lugarejo de Maquinezinho), Lampião teria vivido uma história muito parecida com a
de Orlando e Sebastião. Seu mal era raiva de gente rica e da polícia. Nas suas palavras, “Lampião não gostava
de rico também não. Era igual Piriá mesmo. E de polícia, nem se fala. A polícia fez Lampião. E ela também é
que trouxe a má fama dos Piriá.”
196
Percebe-se claramente na fala de M.A. um ideal de não-ação orientando sua versão da história. Um ideal
que não aparece em outras falas sobre o caso Piriás que tive oportunidade de registrar.
197
Momento narrativo em 10/01/2007, Maquinezinho. O interlocutor é P.M., 68 anos, lavrador.
176
transformador nas formas de interação a nível local à medida que “apresentam” a luta por
reconhecimento que os dois irmãos travavam naquele momento. Descrevendo como os
Piriás “enganavam” seguidamente a polícia e “amedrontavam” os volantes com sua
pontaria certeira, as pessoas fazem crescer uma admiração por esses personagens. A ponto
de, à época, hastearem uma faixa no centro de Sete Lagoas com os dizeres “Piriás, estamos
com vocês!”. Claro que a polícia recolheu a faixa.
198
Mas não teve como evitar que, nas
eleições daquele ano de 1978, quase uma centena de cidadãos votassem em Orlando e
Sebastião Piriá para a Câmara Federal e a para a Assembléia Legislativa.
199
Um antigo
vizinho confessou-me ter votado nos dois:
“Hoje posso falá que votei. Votei pra se a cara dos político queima. Imagina um Piriá na política.
Claro que seria uma coisa impossível. Mas que ia podê ensina alguma coisa pra esse bando de
político sem vergonha, ah isso ia. Era gente trabalhadora e inocente que sofreu injustiça muita, que
nem acontece todo dia por por causa dos político que não fazem nada. Não qué sabê de trabalhá.
Só de roubá do povo.”
200
Percebe-se que o simbólico é acionado para se opor abertamente à política do não-
reconhecimento. No caso das lendas isso é feito a partir do momento em que insiste-se na
condição de trabalhadores dos dois irmãos como linha divisória que separa cidadão de
subcidadão, classificados de desclassificados sociais. É por meio desta categoria
(trabalhador) que a lenda opera na disseminação efetiva de concepções morais que passam
a funcionar como idéias-força no contexto de comunicação.
201
É assim que todas as ações
dos Piriás se tornam defensáveis (e são efetivamente defendidas). Até o comportamento
desviado da condição de trabalhador pode ser explicado em termos de uma motivação
“especial”: os Piriás só roubavam porque, perseguidos pela polícia, não podiam trabalhar.
198
Muita gente se lembra da faixa. O caso é citado em uma reportagem do jornal Em Tempo de dezembro de
1978.
199
O sucesso dos Piriás nas eleições daquele ano foi comentado na reportagem “PM enterrou os Piriás” no
Diário da Tarde, 27/12/1978.
200
Conversa informal com um antigo vizinho, Sr. T.M.C, 72 anos, encanador aposentado. Forma de registro,
anotação.
201
Retomemos nosso argumento: o que se tem é uma verdadeira redefinição da condição de cidadão a partir
da categoria trabalhador. O trabalhador não pode nem deve ser confundido com “vagabundo”, “malandro”,
“preguiçoso”. Merece ser “reconhecido”, e contra ele não se deve cometer nenhuma injustiça. Mais que
definir o trabalhador como merecedor da dignidade fundamental da cidadania em termos jurídicos, o que
ocupa a lenda é o reconhecimento do trabalhador em termos sociais.
177
“Qual é aquele que estando com fome, com medo de morrer, não roba. se besta. Eles tava
trabalhano, mas a perseguição da polícia impedia eles de continuá no caminho do bom vivê.”
202
Vê-se que normas – sejam quais forem – são reconhecidas como princípios elásticos
e eventualmente revisáveis, que podem ser ajustados e alterados no curso de sua aplicação a
contextos concretos, já que valores e categorias são mobilizados conforme a situação.
Encarnando a condição de trabalhadores ideais, os Piriás incorporam, na lenda, uma
espécie de autoridade revelada. A forma de ação comum, que tende à evitação do (ou pelo
menos à desconfiança em relação ao) rico e da polícia, que implica em conformismo frente
ao não-reconhecimento social, não comporta os Piriás. Além de “muito trabalhadores” e
eficientes, os Piriás seriam homens indóceis, de (re)ação, gente “brava”.
“Pelo que eu sei, era gente honesta, trabalhadora. A polícia é que fez hora com a cara deles. Acho
que eles era pra esses lado do Cipó. É gente perigosa, esquentada. O povo desses lado tem fama.
Não leva desaforo pra casa. Era o caso dos dois. Mas gente honesta, trabalhadora.”
203
Os mesmos adjetivos aparecem em outras ocasiões, quando os interlocutores da
lenda insistem em representar os Piriás como indivíduos autônomos, sujeitos úteis e dignos,
sem outra fonte de recursos que não sua habilidade e disposição para o trabalho.
X: - (...)
A: - A gente tava na barraquinha. E naquela época, quando um rapaz pedia pra conversá com
uma moça ela tinha que dá atenção pra ele. Se ela não conversasse e depois ficasse de papo com
outro, era briga na certa.
B: - Meu Deus!
[risos]
G: - E quem quis conversar com quem?
A: - Os Piriá estavam no dia e mandaro recado pra H.
[risos]
B: - Mas tia H., hein?
G: - Que sina, meu Deus. E ela?
202
Momento narrativo em uma oficina de automóveis no bairro Boa Vista (Sete Lagoas), em 22/05/2006.
Registro por escrito.
203
R.M.P., 63 anos, doceiro. Momento narrativo na casa do informante (Sete Lagoas), em 04/01/2007.
178
A: - Ela não quis. Mas depois Soim e Cabrito foram conversá com a gente. Soim gostava de H.
Aí os Piriá quiseram brigar. E foi um apuro.
B: - Teve barraco?
A: - Quase. Mais falação e empurra-empurra.
[risos]
G: - Eles eram brigões então?
A: - Não, mas eles eram assim mesmo. Todo mundo tinha medo deles. Tinha fama. Um era
vesgo e era o pior. O outro era mais calmo.
B: - Era feio?
A: - Rapaz pobre, maltratado. Os fazendeiros que gostava muito deles. Eram muito
trabalhadores. Todo mundo falava. Desde novinho.
G: - Mas foi um fazendeiro que mandô prendê os dois.
A: - Foi, mas um só. Teve os outros que ajudaram. Davam comida e munição. Escondia eles.
X: - (...)
204
Percebe-se que é a condição de trabalhador que define o horizonte prático-moral que
conforma a vida dos dois personagens e suas relações sociais. Toda a série de habilidades e
atributos especiais atribuídas a eles (brigões, pavio curto, valentes, corajosos,
eficientes,etc.) é inferida a partir do traço distintivo inicial que é a condição de valentes
para o trabalho”.
X: - (...)
A: - Pois é! O Caolho era bom de montaria. Eles tinha um circo de tourada e montavam aqui na
praça da igreja quando das festa. Eram trabalhadô. Mas de pavio curto. Depois falaram que a polícia
judiou com eles. Mas eu não sei se é verdade.
X: - (...)
A: - A tourada era de circo. Os Piriá junto com o pai fazia pra ganhá bico. Eles era rapaz de
enfrentá qualquer coisa, qualquer trabalho. Foro capaz de enfrentá polícia armada. E eles nem tinha
armamento, hein? A polícia ficou desorientada. Não tava acostumada com resposta a desaforo.
B: - O povo confundia a polícia de medo. Não podia denunciá Piriá. Eles não matava civil, mas
o povo respeitava. Covardia só fizero com o home em cima do pé-de-laranja.
[risos]
B: - Coragem que eles tinha era muita. Coragem de sobra.
A: - Não tinha armamento direito, mas não errava tiro.
204
Momento narrativo gravado em 12/07/2007, numa conversa sobre os Piriás com membros da família em
Sete Lagoas. Participaram os interlocutores P.G., 59 anos, J.L., 24 anos e eu.
179
B: - Isso é verdade. Ficava um de costa pro outro. Um carregava a arma e o outro mandava
chumbo. E ia rodando que nem máquina.
X: - (...)
205
(Con)formados na e pela condição de trabalhadores, os irmãos Orlando e Sebastião
constituem verdadeira encarnação de valores a ela associados, sendo o “trabalhador”
entendido pela comunidade narrativa como qualidade do indivíduo corajoso, honesto,
ordeiro e diligente.
A partir dessa idéia ampliada do tipo “trabalhador”, os interlocutores da lenda
descrevem para os dois irmãos uma autêntica ética do trabalho como fundamento do que
poderíamos chamar de invulnerabilidade moral. Todas essas características compõem uma
estrutura perceptiva e avaliativa do mundo que os interlocutores da lenda criam para os
Piriás. Uma estrutura que serve como base para a avaliação de todas as experiências dos
dois irmãos. Um verdadeiro esquema de conduta, ação, percepção e pensamento para esses
personagens concebidos como moralmente invulneráveis. Uma condição que eles trazem
inclusive marcada no corpo, pois é também por meio da descrição dos traços físicos
especiais dos Piriás que os interlocutores da lenda constroem a imagem dos irmãos Orlando
e Sebastião.
“Dizem que um deles era muito feio, né? Tinha uma cicatriz horrorosa. Era o que atirava melhor.”
206
Outro interlocutor confirma:
“O Sebastião Patrício, o Caolho, era o mais bravo dos dois. E atirava como o demo. Era raiva da
polícia porque perseguia eles. Tem aqui um parente deles, um que tem o braço cortado, o tal de
Mãozinha. É caolho também. Da mesma índole. Gente brava, pau-de-espinho que nem o Lucifer.
207
205
Momento narrativo registrado em 04/01/2007 (Sete Lagoas). Cf. anexo.
206
Momento narrativo em 03/01/2007, Sete Lagoas. A interlocutora, A.M.M, 72 anos. Forma de registro:
anotação.
207
Curto momento narrativo dia 14/01/2007 em um posto de gasolina em Pirapama. O interlocutor, um senhor
de 58 anos, lavrador. Forma de registro: anotação. Nas lendas, Caolho é o Sebastião, o mais escuro, mais alto
e mais novo. Orlando é que é o Gentil. No filme e no cordel sobre os Piriás a relação é invertida: Orlando é
identificado como Caolho, e Sebastião como Gentil. Na imprensa, os Piriás eram identificados como nas
lendas: “Orlando Patrício da Costa, 20 anos, mulato, forte, 1,65m, rosto com várias marcas e cabelo ouriçado,
180
A condição de cego, caolho, evoca o poder simbólico do Piriá: o cego vê mais.
208
“Um deles era cego de um olho. E sabe que o que é cego não precisa fazê mira não porque é
cego dum olho mesmo. Era esse Piriá, um deles, o dito Caolho que atirava como o cão. Diz que
atirava e rodava num pé só. E tiro num pegava mesmo.”
209
O poder de “ver para além”, atribuído aos Piriás, é destacado em outra narração:
“Eles tinha o poder de se unir. Como se virasse um. De costa um pro outro saía atirando que policial
via bala zunino no da orelha. De costa um pro outro. Formava o poder de olhá pra todas as
direção e de andá confundindo o rastro, como quem tem parte com o capeta.”
210
Esse “poder de olhar para todas as direções” ao mesmo tempo se amplia. Unidos
“virados um só”, os Piriás são descritos como um ser-duplo. Duas cabeças, quatro mãos,
quatro pés e o “poder” de ver mais, correr mais, trabalhar mais, serem mais eficientes em
tudo.
211
Assumindo a forma de ser-duplo, os dois eram invencíveis. Só poderiam ser mortos
se separados. E é o que se disse mais tarde: somente depois de separar os dois irmãos,
ferindo gravemente um deles, é que a polícia conseguiu apanhá-los. Quem explicava era o
próprio Capitão José Ivo Gomes de Oliveira, o “Capitão Ivo”, em entrevista ao Estado de
Minas (24/11/1978).
e Sebastião Patrício da Costa, 19 anos, claro, 1,70m, cabelos ouriçados e com um defeito na vista seu
apelido é Caolho eram acusados pela polícia de praticarem furtos na zona rural e estiveram presos em
Sete Lagoas, Pirapama, Pedro Leopoldo e Matozinhos” (A Gazeta, 09/08/1978). Mesmo na imprensa de Belo
Horizonte os jornalistas não conseguiam distinguir quem era quem.
208
Sobre a figura do cego na cultura popular em geral, e em especial como figura mística e detentora de todos
os saberes, ver Schenda (1993:131-137).
209
Momento narrativo gravado em Maquinezinho, dia 9/01/2007. Informante, E.B.M., 72 anos, lavrador. Em
uma matéria de jornal, o jornalista relata que Caolho era “descrito pela polícia como exímio atirador e
apontado como autor das mortes de policiais. Seu irmão raras vezes foi visto nos confrontos com a polícia,
que deduziu que ele funcionava como municiador, o que explicaria a capacidade de fogo que levou a dupla a
enfrentar a polícia e a furar vários cercos destinados a capturá-los.” A Gazeta, 30/12/1978.
210
Momento narrativo na Feira do Morro Vermelho, dia 06/01/2007. A fala é de M.G.B, 63 anos, operador de
forno de siderurgia aposentado. Até mesmo o capitão de polícia falou à época dessa tática especial dos dois
irmãos: “Um deles é exímio atirador. O que não é bom atirador, fica municiando o outro. Isto foi observado
pelos soldados durante o tiroteio na pedreira do Paredão” (Estado de Minas, 08/08/1978).
211
Para uma análise detalhada da importância da figura do ser-duplo (Doppelwesen) na mitologia grega, em
especial no mito de Apolo, cf. Usener (1913: 315-356).
181
“O povo da região está dando notícia de apenas um Piriá, porque, depois do tiroteio, cada um correu
para um lado e eles ainda não se reuniram. Temos certeza apenas que o Gentil escom o braço
ferido à bala e bastante infeccionado. Quem nos passou essa informação foi o lavrador que
conversou com eles”.
212
Percebe-se claramente que todas as características atribuídas aos nossos
protagonistas são descritas no decorrer da narração num verdadeiro processo de construção
de personagens a partir de uma (in)corporação de significados morais que torna os corpos
dos Piriás um verdadeiro “reservatório de valores” (no sentido de Bourdieu); ou seja, o
corpo passa a ser entendido como um operador analógico das hierarquias do mundo social,
o que permite que valores se tornem personagens.
213
Seus corpos constituem o sinal
externo, visível e imediato da blindagem moral que protege os dois. É essa
invulnerabilidade moral que justifica não apenas as características físicas dos protagonistas
da lenda, mas também suas ações, seu caráter e sua natureza. Trata-se de uma condição
especial que, marcada fisicamente nos dois personagens, permite aos que compartilham das
lendas ler nos corpos dos Piriás o que eles fazem, o que eles experimentam, o que se passa
com eles, e, por fim, os indícios de sua conduta numa demonstração clara de que, como
tipos, eles transcendem a realidade histórica.
A insistência na descrição desses sinais corporais procura evidenciar o caráter extra-
ordinário do status moral dos dois iros.
214
O defeito físico de Sebastião permite antever
sua identidade social. Circulava, aliás, a versão de que ele teria sido castrado.
X: - (...)
A: - Judiaram deles. Pelo menos é o que o povo diz. Tem gente que conta que um deles, o
Caolho, foi até capado. Pode tê revolta maior prum home?
B: - Daí que parece vindo a força deles. Não era gente de se conformá. Ainda mais num
caso grave desse, se é que foi isso mesmo.
212
O grifo é meu. Em outras reportagens afirma-se o mesmo: Orlando foi ferido e se separando de Sebastião,
sendo inclusive julgado como morto. Para uma reportagem mais completa sobre a questão cf. A Notícia,
27/12/1978.
213
Bourdieu citado por Souza (2003:43).
214
Cf. o conceito de “estigma” para os gregos em Goffman (1982:11). Lindahl prefere o termo insígnia.
Diríamos, com ele, que os Piriás “must reveal its identity to the wary through one telltale sign” (Lindahl,
1996:78).
182
A: - Se isso aconteceu mesmo, resta concluí que foi a polícia mesmo que fez eles crescê desse
jeito.
X: - (...)
215
A seguir o raciocínio do próprio interlocutor, o Caolho teria se tornado ainda “mais
homem”, exatamente por ter sido castrado.
216
A castração teria despertado nele o ódio aos
que o mutilaram, reforçando, assim seu caráter anterior: ele não é descrito nas lendas como
o tipo de homem que se conformava (um “pau mandado”, no dizer popular). Antes é aquele
que entra em guerra contra a forma de conduta que prevalece em seu meio. A idéia de
castração tem diretamente a ver com esse padrão moral de conduta de Sebastião, que o
castrado manteria a consciência de sua masculinidade por meio do ódio e da fúria contra a
polícia e os ricos. No caso, em vez de lhe retirar a força, o crime de castração seria a fonte
de sua força tanto física quanto moral.
217
O mesmo princípio vale para sua condição de “cego de um olho”:
“O certo é que os irmãos Piriás conseguiram ganhar ajuda dos moradores, que por medo ou amizade,
lhes forneciam comida e davam informações sobre o deslocamento dos soldados. Algumas pessoas
diziam que a guerra que Orlando e Sebastião travavam contra a polícia fora causada por maus tratos
215
O grifo é meu. Momento narrativo registrado em uma madeireira em Sete Lagoas (12/07/2007). Dos
interlocutores um de 47 anos e o outro de 49 tive acesso aos apelidos. O boato é citado em uma
reportagem do Diário da Tarde (27/12/1978), que começa falando da espectativa quanto ao laudo do IML
quanto ao número de tiros que os dois irmãos receberam. E segue: “Há inclusive a curiosidade de se saber se
um dos ‘irmãos Piriás’ tem o órgão genital inutilizado, pois correm boatos de que Orlando e Patrício [sic]
passaram ao crime depois de torturados ‘por causa de um dio de pilha comprado legalmente’”. O cordel
também menciona a suposta castração do Piriá Caolho: “E depois disso um boato / No arraial circulou: /
‘Como se fosse um gato / A polícia lhe castrou / E ele perdeu a força / Virou bicha, virou moça’ / - Toda a
gente debochou!” (Evangelista & Camargos, 1979:21)
216
Mary Douglas (1985; 1970) advoga que a ênfase no corpo humano é uma forma de simbolizar um conflito
social, de maneira que partes do corpo se tornam sinedoques para o corpo como um todo, e o corpo, em si,
sinedoque para o grupo. A castração poderia ser interpretada como um crime contra os vários corpos que
compõem um coletivo; e a reação dos Piriás ao suposto crime de castração como símbolo de uma reação
coletiva contra a polícia.
217
Diferentemente do boato de que “o Piriá mais claro e mais alto” teria sido visto vestido de mulher. Um
rumor que tentaram implantar na cidade, mas sem sucesso. Ao ler a reportagem “Sebastião desfilou vestido de
mulher?” (A Notícia 10/08/1978), percebe-se claramente a intenção de se ridicularizar o Piriá repetindo-se a
estratégia utilizada com Leonel Brizola que, segundo o folclore político conservador, teria fugido do Brasil
vestido de mulher. Um ex-empregado da olaria no bairro Progresso, lugar de onde, segundo o jornal, teria
surgido a “informação”, me disse que não houve nada disso. “Na época não me lembro de ninguém na olaria
falar que o Piriá tivesse vestido de mulher. A gente chegou a ver mesmo os dois pelos matos ali, mas com
saco nas costas os cano das arma pra fora. Um deles pediu cigarro. A gente desconfiô que era Piriá e deu.”
(Momento narrativo na praça do Bairro Progresso em 10/07/2007. O interlocutor é J.M.C, 56 anos. Forma de
registro: anotação.).
183
recebidos durante uma prisão, e que teria deixado cego um deles. Desde esse dia, eles teriam feito
um juramento de lutar até a morte contra qualquer policial e não maltratavam as pessoas que
encontravam em seu caminho.”
218
Note-se que o “poder” de Sebastião Caolho está estreitamente relacionado com o
fato de ele ter estado na prisão – inclusive no DOPS,
219
que, no imaginário urbano da época
do Regime Militar, tornou-se uma espécie de região inacessível, um lugar para além dos
limites da sociedade. Ao ser preso, Caolho foi colocado “fora” do sistema social normal e a
lenda registra esse momento de qualidade ritual, em que poderes lhe são “atribuídos”. A
façanha de Caolho foi ter estado neste espaço liminar e retornado dele: “disforme”, mas
investido de poderes especiais.
220
Exatamente por isso é que, nas lendas, Sebastião é o mais
forte, o mais alto, o Caolho, o castrado, o marcado por cicatrizes, o mais feio, o mais
corajoso, o mais audacioso, o que atira melhor. Mais ainda: sua mãe teria morrido quando
lhe deu à luz. Daí sua sina de matador. É aquele que esteve na prisão, o que passou por uma
espécie de morte ritual e foi capaz de renascer, concentrando em si “todo o poder”. É o que
jura vingar o irmão Gentil e assume a responsabilidade de defendê-lo. É nesse “se juntaram
e juraram vingança” que as qualidades do Caolho contaminam o Gentil.
À medida que essa “dupla moral” é investida de poderes nas lendas, os
interlocutores vão debatendo sobre formas sociais e valores. Todas essas características, de
certa forma desviantes, “fora do padrão”, vão adquirindo valor simbólico generalizado. As
pessoas que ouvem as histórias supõem, quase automaticamente, que os Piriás possuem
muitas outras características facilmente associáveis. É o que se pode perceber nas falas a
seguir.
X: - (...)
G: - A confusão foi grande então?
A: - Foi. Dizem que o trem todo foi um só. Eles compraro um rádio, que a polícia tomô deles e
falô que eles era ladrão. Mas eles não mexia com ninguém não.
G: - Eles não eram ladrão?
218
Diário da Tarde (27/12/1978).
219
Trataremos deste episódio na seção 4.3.2.
220
Mary Douglas sustenta que “o homem que retorna dessas regiões inacessíveis traz consigo um poder
inacessível àqueles que tenham permanecido sob o controle de si mesmos e da sociedade. (...) Ter estado nas
margens é ter estado em contato com o perigo, é ter ido à fonte de poder” (Douglas, 1976: 118, 120).
184
A: - Da onde? Era gente trabalhadora. A polícia é que cismô, né B?
B: - É. Cismô com eles aí na rua.
G: - Mas cismô por quê?
A: - Eles andava de cabelo grande, né? Fora do padrão, né?
B: - É! Pobre, né?
A: - Mas era gente honesta. E atirava era bem. De repente eles colava as costa um no outro e
saía rodando. Rodando e atirando. Eles via tudo e polícia não via nada.
X: - (...)
221
Como disse, penso que o processo de simbolização se amplia a partir da
necessidade se ratificar o caráter extra-ordinário do status moral dos Piriás, de maneira que
até a descrição da estratégia de combate dos dois se faz em termos do extra-cotidiano.
Unidos na forma de um ser-duplo, os Piriás se tornam invencíveis. Uma invencibilidade
militar e moral – que só pode ser superada por meio do recurso à traição.
“Até onde eu sei os dois morreram numa tocaia da polícia. Já andavam pelos lado de Corinto, lugar
que não conheciam tão bem. Um deles ficou gravemente ferido por causa de um tiro que atingiu ele
numa luta lá pros lado do rio Jabuticaba. Foi salvo por um aguacero que despencou do céu. Eles
vestiram um tronco de madeira com roupa e a polícia achô que tinha apanhado um Piriá. Mas não
apanhô não. Um irmão apoiado no outro, conseguiram seguir. parece que encontraram na estrada
um policial disfarçado de trabalhadô, montado num burro, não sei, que disse pra eles seguir a linha
do trem. Eles não conheceram que era policial e caíram na armadilha. Morreram furado que nem
penêra.
222
Por ocasião de uma entrevista na capital, um jornalista fez a pergunta que não
poucos interlocutores da lenda queriam ver respondida.
“- Major, eles não teriam sido atingidos pelas costas?
- Não. Eles foram atingidos a partir do cerco”.
223
221
Momento narrativo registrado em uma madeireira em Sete Lagoas (12/07/2007).
222
Momento narrativo com um ex-vizinho (J.L., 64 anos, aposentado) quando de uma visita à sua casa em
Sete Lagoas, em 16/10/2004. Forma de registro: anotação. A fala de meu ex-vizinho parece se confirmar
numa reportagem do Estado de Minas (24/11/1978): houve o encontro do cabo Nestor com os Piriás. O
cabo estava montado numa mula e ele conversou com os dois. Explicou que estava procurando gado e a
conversa terminou em discussão. Os Piriás diziam que a fazenda era deles”.
223
Entrevista coletiva concedida pelo Major que coordenou a operação que resultou na morte dos irmãos
Orlando e Sebastião. Diário da Tarde (27/12/1978).
185
Em sua resposta, o major Jurandir Afonso Marinho afirmou que chegou a gritar aos
Piriás para que eles se entregassem, recebendo tiros como resposta. Os dois teriam furado o
cerco e acabaram se afastando um do outro. O Caolho teria sido abatido primeiro, e seu
irmão cerca de 50m à frente.
224
As declarações do major não surtiram o efeito esperado. Pelo contrário, pareciam
corroborar os termos das lendas. As pessoas continuam dizendo que os Piriás foram
enganados por um policial à paisana que os teria induzido ao erro, fazendo com que
caíssem numa emboscada, sendo Caolho morto primeiro. Somente depois, sem a proteção
de seu tutor, Gentil teria tombado. É o que se diz. Exatamente como os dióscures gregos, os
Piriás poderiam ser mortos à traição e depois de separados um do outro. Tudo se passa
como na trama de Hércules, que jurou vingança depois de perder a luta para Eurytos e
Kreatos: o filho do todo poderoso Zeus conseguiu matar os dois irmãos à traição, pelas
costas, num momento em que os dois se encontravam separados (Usener, 1913).
225
A imputação de atributos sobrenaturais aos protagonistas da lenda segue. Os Piriás
são apresentados como homens encantados, que possuem o dom da metamorfose e da
ubiqüidade.
“A velha Natividade Pereira dos Santos levanta a mão enrugada e diz para a jovem jornalista da TV
Globo: ‘Eles têm parte com o sujo. Andam feito bichos do mato e ninguém pega eles fácil, não (...).
Para outros, eles têm o corpo fechado e conta-se que o soldado Gastão descarregou neles seu
revólver à queima-roupa sem contudo acertar um tiro”.
226
Algo que se justifica também na identidade homem/animal expressa na alcunha
escolhida para os dois.
224
Cf. também Estado de Minas (27/12/1978).
225
No caso de Lampião, teria acontecido algo parecido. Reza a lenda que o cangaceiro só foi morto quando se
separou de Corisco, seu amigo-irmão, numa emboscada armada pela polícia.
226
A Gazeta (09/08/1978).
186
“O nome deles se formô assim de preá, pereá, priá, até virá piriá. Tem história de que, desde criança
eles desmontavam guarda-chuva pra fazer espingarda. E eles caçavam preá, aquele coelhinho, pra
comer. Um bicho esperto. Eles eram espertos, pequenos, cabelo gafurina.”
227
A identidade entre os dois irmãos e o animal conhecido como pré realçada em
várias outras ocasiões.
228
X: - (...)
C: - Quem pôs o nome Piriá foi a polícia.
G: - E o que é Piriá?
A: - Piriá é um coelhinho que dá sempre em lugá de brejo.
C: - Na beirada desse corgo aí tem demais, ô.
G: - E por que Piriá?
A: - É um bicho esperto demais. É mais esperto que coelho. Difícil de pegá.
C: - É um rato grande o piriá.
A: - Não. O piriá é mais encorpado que o rato. O rato é fino. O piriá é mais grosso, e muito
mais esperto que o rato.
B: - Agora, esse negócio de Piriá de corpo fechado parece mais crendice antiga.
X: (...)
229
Diferentemente do que poderia sugerir a fala dos interlocutores, o nome Piriá não é
empregado por causa de sua etimologia. O que importa em sua adoção é a força de seu
status semântico. Nas lendas, o nome Piriá emerge da ação dos dois irmãos em uma nova
significação. Poder-se-ia falar até num novo campo lexical, onde palavras e atos
equivalem-se absolutamente, e até mesmo as qualidades inatas de Orlando e Sebastião
Patrício são valorizadas como algo pré-traçado como fica claro no decorrer da narração a
seguir.
X: - (...)
227
Entrevista com C. D. em Sete Lagoas (30/03/2005), que falou-me de seu trabalho de resgate da cultura
sete-lagoana e seu projeto de filmagem de um longa-metragem sobre a história dos Irmãos Piriás. segundo
reportagem do Estado de Minas (09/08/1978), lavradores deram o nome Piriás aos dois irmãos porque
Orlando e Sebastião se alimentariam preferencialmente do animalzinho o preá. Daí sua habilidade de viver
no mato como preás.
228
Sobre a identidade homem/animal como característica peculiar do herói que consegue fugir aos perigos do
outro mundo, ver Propp (1997:241-258).
229
Momento narrativo registrado em 03/01/2007. Cf. Anexo, Momento Narrativo I.
187
B: - Isso é verdade. Ficava um de costa pro outro. Um carregava a arma e o outro mandava
chumbo. E ia rodando que nem máquina.
A: - Por isso é que chamava eles de Piriá. Por causa do Piriá esperto do arrozal.
B: - Eles plantava arroz, que é uma trabalhera danada. E treinaro de porvera matando aquele
bichim esperto como curisco que atacava a plantação. E mataro foi muito. Por isso foro chamado
Piriá. Era esperto como um bichim daquele. Vale di que os Piriá viraro Piriá matando piriá e
defendendo o que era seu.
A: - É porque aquilo cai numa roça de arroz, arrasa tudo e não tem quem pegue.
X: - (...)
230
A descrição das fugas dos Piriás também vai ganhando caráter espetacular. Grutas e
lapas são morada predileta dos dois irmãos encantados. E não é exagero dizer que, nesse
caso, grutas e cavernas são vistas pelos interlocutores das lendas como o além-lugar; um
lugar de passagem: tal qual Lázaro, na gruta se entra morto para sair vivo.
231
Outras vezes fala-se de uma maldição como destino:
“- Não sei se é verdade, mas corre por aqui um boato de que eles mataram a mãe. ouvi também
que a mãe jogou uma praga nos meninos. Segundo contam, ela disse que eles conseguiriam ter
sossego se matassem sete policiais. Três eles já mataram.
Esta lenda, contada pelo soldado Valter Lúcio, é confirmada pelo comandante da Companhia do
Batalhão da Polícia Militar, mas de outra maneira. Disse o Capitão José Ivo que ouviu falar na
praga.
- A mãe deles afirmou que os filhos não conseguiriam dormir nem dois dias no mesmo lugar.”
232
Os episódios vão ganhando força e distinção de mito, onde a magia é toda uma
ambiência. Eis o depoimento de uma esposa de um policial reformado:
X: - (...)
A: - Diz que ficava de frente com a polícia assim ó, e que, de repente, eles sumiam. Então o
povo conta que eles tinha corpo fechado. Que a polícia atirava neles e eles não... bala não pegava
neles. Que eles tinham rezas que eles aprenderam com os escravos, o povo que veio da África, do
230
Momento narrativo registrado em 04/01/2007. Cf. Anexo, Momento Narrativo II. Grifo meu.
231
Não custa recordar ao leitor o colorido especial que a história local empresta a esta imagem: em Sete
Lagoas, lugares como lapas, grutas, grotas e cisternas estão estreitamente associadas à idéia de morte. Ao
mesmo tempo, contam-se histórias fantásticas sobre aqueles que retornaram desses “além-lugares” vivos,
como nos casos dos crimes de Angueretá e da Gruta do Pião.
232
Estado de Minas, 10/08/1978.
188
quilombo daqui de perto. Era o povo mais antigo que então ensinava as rezas pra eles. Então eles
tinham rezas que eram rezas que faziam as pessoas ficarem bobas quando eles chegavam perto.
Quando eles chegavam num lugar, então eles entravam, comiam. Mas diz que eles não fazia maldade
com ninguém não. Diz que eles entrava, comia e chegava aa trabalhá nas fazenda, mesmo depois
de tudo. Mas toda vez que encontrava com a polícia era tiroteio mesmo. E aí eu lembro que
mandaram buscar reforços em Diamantina, Belo Horizonte. Diz que veio muito reforço pra ajudá a
pegá esses home, mas que não tinha jeito. A polícia não punha a mão neles de jeito nenhum. Diz que
na hora que via, que sabia onde que eles estava era troca de tiro, que eles trocava tiro com a polícia e
que eles atirava pra matá e matava mesmo quem aparecia de farda na frente deles. E eles sumia.
Neles a polícia não conseguia atirar de jeito nenhum. Eles rezava. Aprenderam a reza de São Marco,
São Cipriano e tinha uma outra, gente, que diz que punha o povo meio bobo. São Marco, São
Cipriano e a outra eu esqueci o nome da outra reza que diz que ele rezava, era brava também e punha
a pessoa mansa, bobinha. E aí eles chegava, entrava, comia e ia embora sem ninguém dá fé. Qual era
o nome da reza, meu Deus?
G: - São Bento?
A: - São Bento! São Bento! São Bento! É isso! São Bento.
G: - Minha vó falava dessa reza. Ela sabia. Rezava pra amansar quem estivesse muito bravo.
A: - É isso mesmo. São Bento. E até hoje... eu quando estava conversando com esse menino,
esse policial, esse Surubim, que ele também foi caçá Piriá e que ele to tiro dos Piriá e tinha
chumbo no corpo de Piriá. Até ele, que um dia eu tava conversando com ele, ele disse: “Os home
parecia o capeta. A gente tava de frente com eles assim ó, de frente, e os home sumia assim, ó, no
meio das pedra, no meio das árvore.” Que diz que eles sumiam, sumiam assim como... como se
tivesse um trem. E ele ainda falô comigo assim ó, que contam que até hoje ninguém sabe se eles
realmente morreram. Ninguém sabe se eles morreram realmente, porque sumiram.
X: - (...)
233
Os interlocutores falam de “corpo fechado”. A história do fechamento é de
conhecimento público, sendo narrada, como vimos, em detalhes. O poder dos Piriás
advém, em grande medida, da sua intimidade com aquilo que Durkheim (1989:488)
chamava de o “sagrado nefasto”.
X: - (...)
A: - (...) Eles virava cupim. Foi o pai deles, né, B?
233
Momento narrativo registrado em Sete Lagoas
(
05/01/2007). Interlocutores: M.G., dona de casa, e F. C.,
policial reformado.
189
B: - É! Tinha esse negócio de vera. Que o pai deles sabia muita coisa, muita reza, recurso de
oração.
A: - Reza brava que fechava o corpo. Diz que eles não passava debaixo de cerca. O pessoal
falava muito disso.
G: - Por quê?
A: - É que passá debaixo de cerca desfaz, né?
B: - É! Desfaz o fechamento.
A: - Um parente de um conhecido, em Paraopeba morreu assim. Numa troca de tiro ele pu
a cerca. Foi na hora. Morreu agarrado na cerca. E não pode passá não.
X: - (...)
234
É o informante J.R., 69 anos, natural de Santana de Pirapama, quem explica:
“Pra pegá Piriá, só debaixo de arame ou debaixo d’água.”
235
Ou como teria declarado à época o próprio pai dos Piriás, Antônio Patrício dos
Santos:
“Eles só serão mortos se a polícia pegar eles debaixo de uma cerca, em cima de uma ponte ou numa
encruzilhada”.
236
Lembremo-nos ainda que a condição de irmãos também reforça a qualidade mágica,
a força mística dos protagonistas da lenda. Os dois representam, na lenda, uma unidade. E
isso a tal ponto que nem sempre as pessoas sentem a necessidade de distinguir um do outro.
É comum que os interlocutores não usem da forma plural para se referir aos irmãos. A
forma singular indica que, sempre que convém, os Piriás não são considerados como
234
Momento narrativo registrado uma madeireira em Sete Lagoas (12/07/2007). Nas versões da lenda em que
admite-se que os Piriás de fato morreram, o lugar da morte é sempre um lugar liminar, uma fronteira:
tombaram atravessando uma cerca, dentro de uma bueira ou de um rio, debaixo de uma ponte ou numa
encruzilhada. Gravei também uma versão em que se conta que Caolho, antes de morrer, teria traçado um
círculo no chão, com o facão, em torno de si (tal qual os amansadores de gado, que traçam no chão um círculo
mágico ou uma estrela de Davi para prender boi bravo). Esta cena é descrita também no cordel. Cf.
Evangelista & Camargos (1979:38).
235
Momento narrativo na fila de atendimento de hospital, Sete Lagoas, 04/01/2007. Igualmente interessante é
a fala que se segue: “A polícia cortou o cabelo dele com facão”. A semelhança com o mito de Sansão não é
mera coincidência. Sobre o cabelo como a parte do corpo que concentra a força e para uma análise de seu
simbolismo a partir da “idéia de participação”, cf. Röhrich (1956:55).
236
A Gazeta, 09/08/1978.
190
indivíduos num sentido pleno. São, na verdade, uma personalidade social única. Uma
unidade que ultrapassa a dualidade física e que chega mesmo a superá-la.
A união entre os irmãos adquire valor simbólico amplificado na medida em que é
reforçada diante da ameaça de forças externas (Girard, 1990:17-19). Nem mesmo o
destaque que se confere, nas lendas, à figura de Sebastião (o Caolho, o mais bravo, o mais
valente, o que tinha a melhor mira, etc.) é capaz de perturbar esta unidade. Mas como
explicar, então, o destaque concedido à figura de Sebastião? Penso que, a partir de Morin
(1997:137), pode-se identificar Sebastião como o duplo de Orlando, o auxiliar mágico, ao
mesmo tempo exterior e íntimo de seu protegido. As narrativas deixam a impressão de que
no Caolho se concentra a força que contamina e fortalece o Gentil. É nessa força e nessa
natureza encarnada no irmão Caolho que Gentil confia. Natureza que ele compreende como
parte de si mesmo. É o que explica a identidade de destinos dos dois irmãos: um existe em
função do outro. Caolho existe para salvar Gentil. Um irmão é guardião do outro; por isso
têm que viver a mesma aventura. E embora a individualidade de Sebastião seja
caracterizada de forma mais nítida, tudo que acontece com ele se comunica a Orlando.
237
Voltemos à imagem dos dióscures do mito de Apolo. Tal como os dois iros
gregos Eurytos e Kreatos, Sebastião e Orlando constituem manifestações diferentes de uma
mesma força ou de um mesmo ser.
238
237
Sobre essa solidariedade bem como sobre a natureza dessa comunicação entre os duplos, cf. Durkheim
(1989: 335-336).
238
Para uma análise de uma versão portuguesa de um “conto de dois irmãos” (Zweibrüdermärchen), ver
Vieira da Mata (2003: 5-28). A hipótese defendida no artigo é a de que os dois irmãos representam o mortal e
seu duplo (um espírito tutor), de forma que nessas narrativas populares tal qual no “pensamento totêmico”
(Durkheim, 1989) e no sacrifício dos dióscures (Gehrts, 1995) não vida possível sem um tutor, um
auxiliar, alguém que conte com uma superioridade “mágica” (ou moral). Sobre a origem comum como
definidora da essência comum dos dióscures, cf. Usener (1913) e Gehrts (1995:20-27). Rank (1925), por sua
vez, defende a origem do “mito do duplo” a partir do processo de defesa contra a morte.
191
(extraído do cordel Os Irmãos Piriá, p. 39)
Apesar de terem direito cada qual a fisionomia, características e habilidades
próprias, a vida de um é simulacro da vida do outro, de forma que a força simpática que une
os Irmãos Piriás inviabiliza toda tentativa de individualização.
239
Até o discurso “oficial”
confirma essa lógica da lenda:
“Todos que conhecem a dupla dizem que Sebastião, o mais escuro e mais baixo, é o líder e o mais
corajoso. O outro, Orlando, no assalto à fazenda de Raimundo Moreira, perto de Pirapama, na
segunda-feira, também se mostrava bastante ousado, fazendo ameaças de morte, segundo o rapaz,
filho do fazendeiro, que foi trancado no quarto por eles. Para a polícia, o fato demonstra que Orlando
também foi tomado pelo entusiasmo do irmão, orgulhoso de seu sucesso no tiroteio com a
polícia.”
240
239
Em outras narrativas populares, os dois irmãos são gêmeos. Uma maneira de representar de forma ainda
mais definitiva a simpatia (moral e mágica) entre os irmãos. A gemialidade como símbolo absoluto da não-
individualidade: se a origem é comum, a essência é a mesma e os dois são um. Um ambicioso estudo
comparativo da figura dos dois irmãos na tradição popular é feito por Ranke (1934).
240
A Notícia, 18/08/1978.
192
Quase sempre, os dois são representados como um ser único. Uma unidade que,
acredito, pode ser interpretada como um emblema do dever moral que um irmão tem de
proteger o outro. De uma maneira tal, que, nas lendas, esse dever moral é representado
como algo situado para além da vontade individual.
“O que eu sei é que um deles foi preso e judiado na cadeia. Depois de sair de lá, ele se juntou com o
irmão. O irmão, revoltado, jurou vingança. E aí saiu por aí matando policial. Não podia ver polícia
que atirava. E não errava. Com civil não faziam nada não”.
241
Nesse contexto, o fato de Orlando e Sebastião serem irmãos permite um outro tipo
de interpretação e classificação: ao ratificar o princípio (moral) segundo o qual irmãos se
ajudam e protegem mutuamente, o que os interlocutores da lenda fazem é firmar uma
hierarquia de valores específica que deve idealmente reger várias das relações
sociais.
242
A qualidade dessa relação, expressa na linguagem do parentesco, reflete o
vínculo moral entre esses dois numa sociedade onde o “parente” em especial o irmão
tem importância estrutural.
243
A qualidade da relação entre os irmãos, determinada por
valores morais específicos, se opõe, nas lendas, à qualidade do vínculo fazendeiro/polícia,
que, ao contrário da obrigação moral que vincula Orlando e Sebastião, teria se dado em
defesa de interesses privados às custas do direito de outros, ou seja, de forma imoral.
244
Nota-se que os dois protagonistas da lenda são “feitos” pela comunidade de
comunicação e que sua condição gica é determinada pelo lugar moral que passam a
241
Momento narrativo com vizinhos, Sete Lagoas (18/11/2004). Forma de registro: anotação.
242
O famoso bandido social Joaquim da Califórnia também tinha um irmão, morto por uma diligência do
governo americano. Toda a justificativa para a reação de Joaquim da Califórnia contra os agentes da força
governamental parte do princípio de que um irmão tem o dever de vingar, ajudar, proteger o outro. Cf. Evans
(1989: 151). O mesmo vale para o primeiro epos da humanidade, o Gilgamesh, onde Uruk e Enkidu, os
amigos-irmãos, vivem para cumprir a obrigação de proteção mútua. Segundo a epopéia, é essa obrigação
moral que “transforma” os inimigos em irmãos. Moral da história: a unidade em fraternidade prescinde do
laço de sangue. Sua garantia é moral, antes de qualquer outra coisa.
243
O parentesco, no caso da nossa sociedade, constitui ainda uma moldura referência para os relacionamentos
coletivos e para a definição do status social dos indivíduos.
244
Todavia, não acredito que se deva pensar os Irmãos Piriás como tipos que valorizam mais as relações
pessoais que as obrigações sociais, como poderia sugerir uma análise inspirada nos “tipos místicos” de Turner
(1974:135). Como veremos, os Piriás são tidos como tipos engajados em uma verdadeira luta por
reconhecimento, onde exigências quanto a obrigações sociais e/ou morais são feitas de forma concreta,
para além do mero gesto ritual. Embora não se negue aqui que, enquanto personagens de lendas, os Piriás
possuam um caráter liminar nos termos de Turner (1974:117, 133,156 e 159).
193
ocupar no contexto social. Extrai-se de sua condição (moralmente determinada) o
argumento que justifica sua predestinação ao uso do sobrenatural como defesa contra as
violências às quais são submetidos.
245
A autoridade dos Piriás está ancorada em forças
especiais, extra-cotidianas, e que, portanto, tornam inócuo o recurso a explicações
convencionais. Somente assim entende-se porque a polícia, apesar de todos os recursos que
tinha a seu dispor, não conseguia pegar dois joões-ninguém.
X: - (...)
G: - E o Sr. lembra de dizer por que é que eles se envolveram com a polícia?
A: - Parece que o pessoal dos Culego não queria eles na terra deles. Aí denunciô eles.
Denunciô injusto. Mas era forte de poder.
G: - E aí eles foram presos!
A: - Foram. Mas depois foram soltos e aí começou.
G: - A polícia demorou a pegar os dois, né?
A: - Foi. Demorou muito. E aí começou a inventá história.
G: - As histórias de que eles dois tinham o corpo fechado?
A: - Ah! Mas isso é conversa. Falavam que eles tinha oração que protegia eles. Que o pai fez.
Mas não é isso não.
G: - O que é então?
A: - A polícia é que não conseguia acompanhá os dois no mato.
X: - (...)
246
A demora e a dificuldade da polícia em apanhar dois “peões de roça” exigia
explicação.
247
Os recursos gicos então o acionados para esclarecer uma situação que
não se deixava explicar de outra maneira. Apesar da insistência de alguns interlocutores em
justificar que “não crêem” que os Piriás fossem realmente figuras encantadas, em
praticamente todas as narrativas as pessoas atribuem as habilidades dos protagonistas a
245
Nesses termos, os Piriás evidenciariam a validade da teoria maussiana da magia (Mauss, 2003), segundo a
qual o fenômeno individual nasce do fato social. Também no caso dos dois irmãos de Sete Lagoas, magia é
fato de opinião.
246
Momento narrativo registrado em 04/01/2007. Cf. Anexo, Momento Narrativo II.
247
“Ninguém está admitindo que um aparato policial tão grande e tão equipado deixasse escapar os dois
salteadores. Há dúvidas quanto ao trabalho da polícia, mas pode-se afirmar que todos os empregados na busca
se empenharam com suas possibilidades. Quando havia uma pista, eles iam conferir, que não encontravam
nada” (Estado de Minas, 11/08/1978).
194
fatores sobrenaturais e assim, justificam seu “sucesso”.
248
Nas lendas dos Piriás, a magia
vence toda a técnica.
X: - (...)
G: - O Sr. falou de tecnologia, lembrei que na época dos Piriá usaram até helicóptero?
A: - Não, que acho que nem tinha isso na época. Usaro foi um aviãozinho, desses teco-teco que
um fazendero emprestô pra polícia. Os dono da cooperativa onde os Piriá apanharo umas galinha pra
comê.
B: - É! Mas veio até visão de Raio X do exército dos Estados Unidos pra enxergá os Piriá no
escuro. Não valeu titica. Os home sumia mato adentro e quem é.
G: - Sumia que nem mágica.
B: - Que nem feitiço. Mas não era nada disso não. Eles era é esperto mesmo e conhecia a
redondeza. Não tinha medo do mato e sabia se virá.
G: - Já a polícia...
B: - É melhó deixá pra lá.
[risos]
X: - (...)
249
O mesmo pode ser observado no caso dos Irmãos Voitka, da Estônia (Kalmre,
2005). Eram considerados encantados e tiveram suas fugas espetaculares explicadas
magicamente em inúmeras lendas, as quais narram seus feitos heróicos no decorrer de 14
anos (1986-2000) de perseguição pelas autoridades russas e depois estonianas. Os Voitka
podiam, por exemplo, se transformar em animais e conversar com eles. O saber de que
dispunham e que garantiu por tanto tempo sua sobrevivência nas florestas da Estônia é
transformado, no imaginário popular, em poder sobrenatural. Os irmãos Ülo e Aivar Voitka
248
Apesar de sempre recorrerem a ela na contrução de suas narrativas, alguns interlocutores parecem
desqualificar a explicação de tipo mágico. A intenção seria resguardar-se ante uma possível ridicularização
por parte daqueles que não compartilham do mito dos Piriás. A questão central, porém, é outra: por que, a
despeito de não “acreditarem”, tais interlocutores continuam a evocar o caráter mágico dos Piriás? Tratamos
desta questão no capítulo 3, seção 3.2.
249
Cf. Anexo, Momento Narrativo II. Os jornais da época não se cansavam em enumerar os recursos da
polícia. Cavalaria, cães adestrados, rádios, aparelhos de visão noturna, coletes à prova de bala, etc. O destaque
ao aparato técnico da polícia vinha estampado nos títulos das reportagens. O uso de helicóptero e avião
mereceu destaque especial: “PM perto dos Piriás. Até helicóptero na operação” (A Notícia, 16/09/1978);
“Polícia usa avião contra loucos do Paredão” (Estado de Minas, 15/09/1978); “Polícia usa teco-teco na caçada
e irmãos Piriás atacam em Corinto” (Estado de Minas, 12/12/1978). Causou sensação também a vinda, dos
Estados Unidos, de um “aparelho para investigações à noite, dotado de raios ultravioleta” cujas instruções de
uso tiveram que ser traduzidas pessoalmente pelo capitão da polícia, segundo informa a reportagem no jornal
A Notícia (17/08/1978).
195
foram transformados em verdadeiros “forest brothers”. Eles se protegiam mutuamente
naquilo que foi identificado como uma verdadeira guerra contra as autoridades locais, em
especial a polícia russa, que pretendia submetê-los ao serviço militar soviético.
250
Contudo, tanto nas lendas dos Piriás quanto nas dos Voitka, o que está em questão
não é o estabelecimento de uma equivalência entre magia e técnica. O poder dos dois
irmãos é considerado superior ao da polícia. De forma que a divergência de interesses e,
sobretudo, de valores se traduz em assimetria de poder. A técnica da polícia aparece
neutralizada pela condição mágica dos Piriás e também dos Voitka –, e isso, não apenas
nas lendas. É o que se pode perceber na chamada de uma reportagem do jornal Em Tempo.
“Contra as cartucheiras dos irmãos Piriás, a Polícia Militar armou uma praça de guerra no cenário
imortalizado pelo escritor Guimarães Rosa. 150 soldados, cavalos, cães rastreadores, metralhadoras,
fuzis, um helicóptero, um avião teco-teco e até um sofisticado aparelho de raios infravermelhos para
a observação noturna, muito utilizado pelos americanos no Vietnã. (...) No entanto, nas dez vezes em
que eles foram localizados, ou a polícia era irremediavelmente abatida na troca de tiros ou
simplesmente ludibriada.
251
A ilustração que acompanha a reportagem citada acima reforça essa qualidade
sobrenatural dos Piriás. A imagem dos dois tem algo de etérea. Só assim se explica que eles
literalmente escapem por entre os dedos de seu perseguidor, um policial como disfarce
escolhido pela morte.
250
Segundo a lenda, os Voitka fugiram do serviço militar. Uma fuga que é descrita como um feito de
heroismo, mas que comporta também um significado político. A figura dos dois irmãos foi instrumentalizada
para se transformar em link associativo para as aspirações de independência da Estônia frente ao domínio
soviético. Para Eda Kalmre (2005), trata-se de um caso típico de justaposição das características do herói
tradicional e do modern hero media”. A comparação entre os Irmãos Piriás e os Irmãos Voitka demandaria,
em si, uma investigação à parte. Além de media legends”, os Piriás da Estônia também viraram filme,
quadrinhos, documentário, além de personagens de lendas contemporâneas. E como os Piriás, promoveram o
debate público sobre valores e formas de distribuição de reconhecimento social.
251
A reportagem foi publicada em dezembro de 1978 (na cópia a que tivemos acesso não consta a data exata).
O poder mágico como garantia de fuga dos dois irmãos aparece aqui e ali nas reportagens sobre o caso. Cf.
“Polícia cerca Macacos e os irmãos somem no mato” (Estado de Minas, 10/08/1978), “Aguaceiro e escuridão
salvam os Piriás” (Estado de Minas, 24/11/1978) e “Mais que Lampião” (Em Tempo, ?/12/1978). Para o
conceito de “fuga mágica”, cf. Campbell (1999:190-199).
196
(extraído do jornal Em Tempo, dezembro de 1978)
Nas lendas, é por intermédio de seu acesso privilegiado ao sobrenatural que Orlando
e Sebastião conseguem vencer a polícia e seu aparato técnico. Pouco importa que o mérito
caiba às habilidades de mateiros dos dois irmãos e à sua impressionante perícia no
manuseio de armas de fogo; a justificativa para as fugas espetaculares dos dois se faz
sempre, ou quase sempre, em outros termos:
“- ‘Eles dão dois passos pra frente e um pra trás. Assim, vão dando voltas e fugindo. Quando ele
gritou, eu rodei o corpo e a bala passou raspando no meu braço...’
Quem conta isto é o cabo Varonil, destacado de Sete Lagoas, relatando o encontro da patrulha com
os irmãos Orlando e Sebastião Patrício, do qual resultou a morte de um sargento e um soldado, além
de ferimentos gravíssimos em outro militar. A dupla Orlando e Sebastião acabou de se transformar
em lenda, pelo menos para a população rural de seis municípios próximos a Sete Lagoas. O cabo
Varonil, experimentado policial de idade madura, a exemplo de muitos de seus colegas, confirma
que os bandidos rurais ‘são bons de tiro e conhecem muito bem a região onde vivem’, o que facilita a
fuga. (...) O comandante daCompanhia do Batalhão da Polícia Militar, capitão José Ivo Gomes
197
de Oliveira participou pessoalmente das operações de captura que resultaram nas mortes de seus
comandados (...). Ele disse que Orlando e Sebastião ficaram costa a costa e, enquanto um municiava
as armas utilizadas, o outro disparava tendo, inclusive, escapado de rajadas de metralhadoras quase a
queima roupa. (...) Para o povo, não contam os conhecimentos empíricos de maneiras de subsistir
nas selvas (...), o perfeito domínio da topografia muito acidentada, com excelentes esconderijos (...).
Principalmente para Sete Lagoas, uma cidade em polvorosa com a presença dos criminosos na
região e a movimentação policial fora do comum, os bandidos têm parte com o capeta.”
252
Em resumo: embora a polícia tenha lançado mão de tantos recursos, tenha variado
sua estratégia, para a maioria continuava valendo a solução ditada pelo saber popular
tradicional: “pra matar Piriá só em cima de cerca ou embaixo de ponte” – como pude ouvir
diversas vezes em meu trabalho de campo. Mas o que parece ser magia, acionada para fazer
frente à técnica do aparato policial militar, é na verdade apenas uma modalidade de técnica
mais eficiente. Diferentemente de Arnold Gehlen (s/d:22-26; 1963:79-92), que explorou de
forma tão instigante essa íntima relação entre magia e técnica, vendo na segunda um
substituto moderno da primeira, penso que as lendas sobre os Piriás não tratam da distinção
entre magia e técnica, como coisas passíveis de substituirem-se mutuamente. Ali a relação
entre ambas é de outra ordem: em vez de substituição de uma pela outra, o que temos é o
recurso técnico traduzido em termos mágicos, que o que confere à técnica qualidade
mágica é, antes de tudo, o grau de sua eficácia. Ou seja, quanto melhor funciona, mais
mágica a técnica parece. Por isso o conhecimento simples que garante a sobrevivência dos
Piriás frente às investidas da polícia é traduzido em termos da linguagem da magia, ao
passo que toda a sofisticação do aparato policial é reduzido à condição de farsa, encenação,
exatamente porque não funciona.
Vejamos mais um exemplo que ilustra bem como se essa tradução da técnica em
magia por meio da avaliação do grau de eficiência. O Estado de Minas, depois de registrar
a insatisfação da população com a ineficiência da polícia, refere-se aos cães rastreadores
empregados na caçada:
“As condições dos cães rastreadores da Polícia Militar foram, também, bastante questionadas entre o
povo e os próprios policiais. Ninguém conseguiu entender como os animais, especializados em
252
Diário da Tarde (07/08/1978). O grifo é meu.
198
buscas, após ter contato com objetos dos irmãos Piriás, não conseguiram localizá-los poucas horas
após o tiroteio”.
253
Dois interlocutores deram-me, sem qualquer embaraço, sua visão do que acontecia.
X: - (...)
B: - Veio batalhão de choque de Diamantina (...). Veio cavalaria, veio canil (...). Foi justamente
na época que surgiram os cães adestrados da polícia. E não deu conta?
A: - Quando achava roupa deles, passava a roupa deles pro cão...
B: - E nem assim!
A: - Diz que passava embaixo das árvores, olhava pra cima, latia, latia e ninguém via. Isso a
gente via muita gente contá, que passava a roupa deles nos cachorro, que os cachorro chegava
debaixo da árvore, ficava doido debaixo da árvore, gritando debaixo da árvore, querendo su e
ninguém enxergava ninguém na copa das árvores.
B: - Não tem lógica.
A: - Eles ficava invisível na oração. Era isso que acontecia. Bom, ao menos é o que o povo
dizia.
X: - (...)
254
Conclui-se que, por meio da magia, os Piriás são tornados grandes, poderosos,
capazes de superar circunstâncias externas impostas pelas instituições.
Nas lendas, a ação dos Piriás é reação. E é por causa deles que o evento pode ser
descrito como um momento de passagem do equilíbrio, do estático e da ordem, para o
conflito, a ação. Os dois irmãos reagem (de forma violenta) à ausência de um fundo ético
capaz de impor regras consensuais a todos reagem, pois, àquela ausência de
institucionalização da esfera moral de que fala Jessé Souza (2000, 2003). Essa “prática
violenta da moral” surge, na lenda, como necessária diante da impossibilidade de uma
prática “não-violenta da moral”.
255
Se o Estado idealmente deveria deter monopólio da
violência física, o que a lenda demonstra é que as coisas no mundo da vida não são bem
253
Estado de Minas (11/08/1978).
254
Momento narrativo registrado em 05/01/2007, na casa dos interlocutores (M.G. e F.C.) em Sete Lagoas.
255
Nesse sentido, a não-violência tem mais a ver com o grau de legitimidade de uma ação do que com um
ideal de ausência total da violência. A violência, seguindo as concepções de honra e justiça que orientam as
narrativas, é perfeitamente compreensível desde que justificada em termos morais. É o caso das violências
praticadas pelos Piriás: eles mataram policiais – e somente policiais – para defender sua honra. Dessa
maneira, encenam a forma de regulação social que deveria ser exercida pela polícia e não é. Diferentemente
dela, os Piriás nunca “erram o alvo”.
199
assim. Por causa de personalidades como a dos Piriás evidencia-se a propensão ao recurso à
violência nas relações sociais.
256
Os irmãos encenam uma violência estereotipada em episódios decisivos que, ao
mesmo tempo que exaltam a coragem e a eficiência dos Piriás, sancionam seu code moral.
Os dois irmãos são tidos como expressão de um tipo específico de modus vivendi, de
maneira que sua conduta é julgada sempre legítima e perfeitamente razoável, como se o
conflito com a polícia representasse a possibilidade de auto-consciência desses
personagens, além da objetivação das contradições que marcam a forma de interação no
meio social. De tal maneira que a forma de agir dos Piriás é transformada em sinal social
através do qual eles podem ser classificados. O plus ético-moral de suas ações pode ser lido
como reverso do conformismo: sua (re)ação é descrita como uma explosão (eventual e
violenta) da vontade individual reivindicando reconhecimento social.
Essa propensão à violência mesmo que não adquira uma dimensão coletiva de
intenção transformadora, mantendo-se confinada à esfera individual é apresentada na
lenda como um problema para a ordem estabelecida. Na lenda deixa-se claro que, ao errar o
alvo e agir contra trabalhadores, o que a polícia faz é dar oportunidade para a manifestação
violenta por parte daqueles que respondem à violência com violência. De um lado, uma
violência (policial) ilegítima. De outro, o exercício legítimo da violência (por parte dos
Piriás).
257
Todavia, e apesar de todo o fascínio e da força de que desfruta a imagem social de
Orlando e Sebastião, não devemos nos esquecer que o caráter dos Piriás, nas lendas, é uma
imputação; uma identidade virtual é criada para eles no decorrer da narração a partir da sua
condição de trabalhadores. Ao passo que tal condição é que permite que todas as ações dos
dois sejam descritas (e interpretadas) em referência a expectativas morais específicas. Essas
expectativas morais, por sua vez, adquirem caráter normativo, que a ação dos Piriás é
apresentada como uma forma de manutenção de uma visão específica de mundo. A
256
A insistência das lendas em caracterizar Orlando e Sebastião como “brigões” explicita a possibilidade ou
mesmo a ameaça de uso da força física por parte daqueles que não têm seu valor reconhecido. Trata-se de
valores de virilidade na forma de expressões que reforçam a masculinidade dos Piriás. Cf. Velho e Alvito
(1996:10).
257
A nos fiarmos em Rifiotis (1997), a violência dos Piriás configuraria uma “sobrevivência” em plena
modernidade, um “arcaismo social”. Mas, na verdade, a situação de violência nas lendas não é entendida (ou
apresentada) como uma ruptura na experiência social moderna. Não está fora do lugar, nem do tempo. Tanto é
assim que essas histórias sobre os Piriás continuam vivas em Sete Lagoas ainda hoje.
200
narrativa é toda ela construída em termos do que concretiza ou desaponta essas expectativas
morais. Por isso, ao mesmo tempo que as lendas fazem referência ao contexto de cada ação,
elas o fazem descrevendo o caráter, os motivos e as intenções dos agentes qualificando
moralmente todas as suas ações, toda sua personalidade e todas as circunstâncias que
cercam sua trajetória, inclusive quando se trata da descrição de sua morte.
Para a grande maioria das pessoas, os Piriás não morreram. A explicação para isso é
clara: eles eram moralmente invulneráveis e, por isso, “duros de matar”. Ao afirmar que os
Piriás não morreram, fala-se da morte como algo que pode ser evitado, como se morrer ou
não se tratasse de uma escolha. Como exemplo do que estou afirmando, posso evocar o
episódio, ou a versão, em que os Piriás teriam matado a própria mãe. Nas narrativas que
seguem esse enredo, os dois irmãos sempre morrem: é como se somente essa forma
paroxística de crime hediondo fosse capaz de finalmente romper a blindagem moral dos
protagonistas das lendas.
“Mas há os que dizem ‘que sempre será seu destino: vão continuar perseguidos pelos homens,
acuados como feras, até o fim de seus dias, e quando morrerem vão pagar suas penas eternamente
nas garras do diabo’, porque afirmam que ‘eles mataram a própria mãe’”
258
Essa relação entre vulnerabilidade moral e finitude, observada por Honneth
(2003:93-94), pode ser identificada em todas as narrativas sobre os Piriás. Nos casos em
que os interlocutores, com base no noticiário, “sabem” que os Piriás foram mortos pela
polícia, a morte dos dois é justificada com base no recurso da emboscada, da traição.
“Vai que o João Viana mantinha o fogão aceso, com as labaredas do fogo sendo avistadas de longe.
Enquanto isso, os policiais ficaram escondidos dentro do tal tanque, ali do lado. No que os Piriá
vieram, um chegando na casa ao modo de pedir fogo para acender o pito, o Lapinha deu a volta e
avisou a polícia. Em quando esse um saía, passando debaixo da cerca de arame do fecho da linha,
no meio do capim, os policiais abriram fogo. Não teve escapatória! Ele arriou em cima do rastro! O
outro escapuliu, indo pra o lado do rancho do Chico de Aleixo, sem por onde escapar. Pois vinha
polícia de tudo quanto é lado.”
259
258
A Gazeta, (09/08/1978).
259
Quem conta é José Dias, 80 anos, conhecido pela alcunha de Milunga, vaqueiro em Contria, região onde os
Piriás teriam se defrontado pela última vez com a polícia. Quem registrou a memória do Milunga foi
Francisco Timóteo, em sua novela Os Irmãos Piriás (2002:104) conforme o autor mesmo me disse por
201
Reza o dito popular que “herói, morto”. Sendo assim, se os Piriás estão mortos;
longa vida aos Piriás”. É como se aqueles que narram as façanhas de Orlando e Sebastião
precisassem dos Piriás como signo, um verdadeiro esquema para o debate público sobre os
valores que regem as relações sociais num dado contexto. É um code moral que se preserva
na imagem dos dois, mesmo mortos. Sendo assim, apesar de sua finitude, Orlando e
Sebastião continuam a ser percebidos como moralmente invulneráveis: heróis, portanto. E
como heróis, representam os valores morais de seu tempo.
4.2.2. O fazendeiro
Os conflitos dos Irmãos Piriás com os fazendeiros da região se iniciaram bem antes
de seus problemas mais sérios com a polícia. Consta que ainda eram menores de idade a
primeira vez que foram parar numa delegacia. Isso teria se dado no ano de 1968, em
Matozinhos. Eram acusados de caçar passarinho com cartucheira e colocar em risco da vida
dos trabalhadores numa fazenda do lugar. Já naquela época, a polícia teve dificuldades em
pegar os dois, como declarou o soldado Valter Lúcio Freitas:
“Bastou bater na janela pra que eles pulassem fora e com a cartucheira. Foi difícil prendê-los. Os
meninos tinham o capeta no corpo, mas prendemos assim mesmo. O pai não estava em casa. Eles
ficaram algum tempo presos, depois foram soltos, por ordem do juiz. Daí pra frente tivemos
notícias de artes praticadas por eles.”
260
ocasião de uma conversa em fevereiro de 2004. Francisco Timóteo falou-me ainda das entrevistas que fez
antes de escrever sua novela e prometeu-me acesso ao material. O que infelizmente não foi possível, que,
pouco tempo depois, veio a falecer.
260
Estado de Minas (10/08/1978).
202
Teria havido uma segunda, e finalmente uma terceira prisão.
261
A última delas,
motivada também pela denúncia de um fazendeiro, aconteceu em 22/12/1975. Na região de
Jequitibá, a alegação foi de incômodo ante a presença dos Piriás nas terras do proprietário
rural: os dois homens, armados, estariam assustando os moradores da fazenda com suas
andanças e caçadas, além das pernoites em grutas e lapas do lugar.
262
Presos, Orlando e
Sebastião foram levados para a delegacia do DOPS em Belo Horizonte, o que é atestado
pela reportagem do Estado de Minas.
“Há 5 anos foram presos pela primeira vez, denunciados pelo fazendeiro Túlio Geraldo Barbosa, de
Araçaí. A acusação: matar passarinhos e andar sempre armados. No ato da prisão, trocaram tiros com
policiais do DOPS. Terminaram mandados para Belo Horizonte, onde, segundo declararam a seu
advogado, foram torturados. As acusações eram tão sem fundamento, que logo foram libertados.
Porém começou aí uma seqüência de prisões e perseguições, sempre a partir de denúncias feitas por
fazendeiros.”
263
Mas se no discurso “oficializado” insiste-se em criar a imagem de que foram
“dezenas de fazendeiros” que acusaram os Piriás de furtos, roubos e ameaças (cf. A Gazeta,
30/12/1978), no caso das lendas fala-se apenas de um único fazendeiro. Trata-se de
261
A segunda prisão, por suspeita: um dos Patrício foi confundido com o famoso “criminoso do capote”, que
movimentou os ânimos da população da região, em especial Pedro Leopoldo, no ano de 1974. O outro irmão
teria sido preso como suspeito de cumplicidade. Para explicar desde quando conhecia os Piriás, o delegado
Eurico Lanna confirma: “Quando fui transferido para Pedro Leopoldo (1974), eu e o escrivão Francisco
prendemos os ‘Piriás’ como suspeitos de um crime que havia tido o famoso ‘crime da japona’. E eles,
porque eram elementos já de alguma periculosidade naquela época, foram mais ou menos acusados [grifo
meu - GVM] porque os traços físicos do criminoso se pareciam com um deles o Caolho. Depois ficou
apurado que eles não tinham nada com o caso”. A Gazeta, 09/08/1978.
262
Também aqui pode-se falar numa centralidade da categoria “trabalhador”. O que justifica a não-aceitação
do fato de os irmãos Patrício viverem como andarilhos, da caça e da pesca, é o mesmo que valoriza a
condição de trabalhador; inclusive como requisito de outras virtudes consideradas derivadas, como a
honestidade e a coragem. É o que fica explícito na fala do vereador e fazendeiro de Matozinhos, Artur
Correia, que à época declarou ao Estado de Minas (24/09/1978): Eu digo que eles são covardes, pois eu
considero que todo homem que o trabalha um covarde. Eles somente gostam de caçar passarinho e viver
no mato”.
263
Os grifos são meus. Estado de Minas (01/01/1979). Antes de iniciar esta pesquisa, ouvi várias vezes, de
diversas pessoas em Sete Lagoas, menção ao fato de um dos Irmãos Piriás ter sido levado para o DOPS.
Narra-se, com detalhes, como ele teria sido torturado, em especial o fato de ter sido colocado nu em uma cela
onde podia ficar agachado ou de pé, com água gotejando sobre a cabeça. Este Piriá, como já vimos acima,
teria sido castrado. O espanto que as pessoas fazem questão de demonstrar é com relação ao fato de o rapaz
ter “conseguido” sair vivo do DOPS, o que é considerado uma proeza sobrenatural pelos interlocutores. Quase
sempre, à narração desses “acontecimentos” segue-se a menção ao famoso caso dos Irmãos Naves.
Infelizmente, o possuo registro de nenhum momento narrativo em que a conversa chegasse a esses termos.
A sensação que tive foi a de que as pessoas evitam explicitamente falar do DOPS quando conscientes de que
sua fala pode ser citada em uma pesquisa.
203
Antônio Lúcio Chamon, o “Lúcio Culego”.
264
Culego era inimigo declarado dos irmãos
Patrício.
265
Segundo informação do delegado à época, Eurico Lana Marinho, um dos Piriás
o Caolho fora detido duas vezes pela polícia com base em suas denúncias.
266
Na
primeira destas prisões, a acusação aos Piriás parece ter sido de ameaça de morte; eles
teriam ainda queimado uma roça (ou uma carroça, numa outra versão) de Culego.
267
A
última prisão teria se dado nas seguintes condições:
“De outra feita, andando de bicicleta por uma estrada na região rural, novamente José, Orlando ou
Gentil foi atropelado por uma caminhoneta de ‘Gulego’, com soldados [que o fazendeiro havia
buscado num posto policial - GVM] e levado para o quartel da 3ª Companhia do 3° Batalhão de
Polícia Militar de Sete Lagoas. Ele carregava um saco, e dentro, uma radiola comprada na Casa
Jorge, em Sete Lagoas, com os policiais acreditando que ela tivesse sido roubada. Mas Gentil
apresentou os recibos de compra, desfazendo a dúvida.”
268
As mesmas informações aparecem combinadas de uma forma distinta na matéria
Caçada humana no sertão”, do repórter Glizer Neves.
“Realmente, já há coisa de dois anos, o fazendeiro Lúcio Culego, de Sete Lagoas, contratou uma
empreitada com os Piriás e, no final do trabalho, recusou-se a pagar o combinado. ‘Os meninos
ficaram uma fera’ conta o advogado Carlos Paiva e, com medo deles o fazendeiro chamou a
polícia. O Caolho foi preso e ficou 17 dias na cadeia sem que corresse qualquer processo contra ele’.
Graças à intervenção do advogado, Caolho foi colocado em liberdade. ‘Saiu reclamando ter sido
espancado durante o tempo em que esteve preso e que a polícia lhe roubara uma eletrola, diz o
264
Nas lendas as pessoas insistem em frizar que se trata do Culego velho, o pai, não do filho, que ainda está
vivo e mora em Sete Lagoas. Em outras ocasiões, não é feita a distinção, chegando-se a afirmar que tudo se
passou com o Culego filho.
265
“O fazendeiro Lúcio Antônio Chamon acha difícil que a polícia consiga por a mão nos irmãos Piriás.
Lúcio é inimigo dos Piriás, que várias vezes tentaram matá-lo. Ele mesmo afirma que ‘os dois são espertos
demais’” (A Notícia, 17/09/1978). No Estado de Minas (24/09/1978) lê-se: “Os irmãos Piriás são
reconhecidos até mesmo por um seu inimigo – o fazendeiro Lúcio Guleko – como homens humildes”.
266
Não tive acesso aos registros oficiais dessas prisões. Parece mesmo que, com exceção do caso da
transferência para o DOPS, tais registros não existem, como pode-se concluir a partir de uma reportagem da
época que cita as cinco prisões dos Piriás ou de apenas um dos irmãos (a primeira em 1968, a segunda em
1974, uma outra em 1975 e as outras duas no início de 1978): “(...), o delegado reconheceu que houve falha
por parte da polícia: eles não foram identificados regularmente. Não havia fotos nem foram tiradas suas
impressões digitais. E ainda nem o nome completo e possivelmente verdadeiro havia sido anotado” (A
Gazeta, 30/12/1978).
267
A queima da carroça e a ameaça de morte são narradas com freqüência nas lendas, o que se pode verificar
nas transcrições de momentos narrativos (cf. anexo).
268
Estado de Minas (12/08/1978).
204
advogado. Ao se ver livre, o Caolho juntou-se ao irmão e embrenhou-se novamente pelo mato.
Meses depois, não se sabe se por nova queixa do fazendeiro, a polícia tentou prendê-los mais uma
vez. ‘Foi o início de tudo’ diz o advogado Carlos Paiva ‘eles reagiram como animais acuados e
um dos soldados foi morto a tiros de espingarda. Não posso dizer que eles eram santinhos até então.
Eram ladrões de galinha, roubavam pra comer. Mas assassinos, eles viraram após o Caolho ter
provado injustamente o gosto da prisão’”.
269
O repórter repete os termos empregados nas lendas: um dos Piriás foi preso a mando
do fazendeiro. Quando, nelas, se fala do fazendeiro, a atenção se volta não para as
estratégias de cobrança dos Piriás, mas para a quebra do “trato” de empreito; um tipo de
contrato de trabalho muito específico, de vez que depende quase que exclusivamente da
relação de confiança entre as partes. Confiança esta que se ancora não em critérios externos
à relação patrão/empregado, mas em regras e costumes consolidados numa espécie de
direito consuetudinário. Na empreitada, percebe-se o peso conferido a esse elemento
“tradicional”, tido como capaz de regular as relações de trabalho e limitar o arbítrio das
partes. Diria mais: na relação de trabalho por empreito, a proteção é do costume e da
tradição, ideologicamente interpretada como garantia do reconhecimento social do
trabalhador, independentemente da vontade do patrão.
270
O “trato” em si, a palavra
empenhada, deve, em tese, “sacralizar” a forma geral como as partes devem proceder (e
mesmo pensar), numa espécie de legitimidade substantiva, diferente da legitimidade
processual do contrato de trabalho formal.
No caso da relação de trabalho entre os Piriás e o “fazendeiro turco” da lenda, não
uma instituição externa responsável pela organização da solução de conflitos: a relação
de trabalho aparece abandonada ao livre parecer do fazendeiro, que, por não reconhecer o
valor do trabalho dos contratados, não respeita o “trato”.
X: - (...)
A: - O pessoal ficou até com raiva, os outros presos. Ele ficou preso mais de quinze dias.
G: - Só foi preso um?
269
Em Tempo (?/12/1978).
270
Num contexto de desigualdade, exploração e dominação social evidente (como aquele descrito nas lendas
sobre os Piriás), trata-se de uma tradição problemática, porque dispensa a necessidade e ignora a importância
da institucionalização e regulamentação das relações de trabalho.
205
A: - Não. Os dois. Logo que foram solto eles me contaram o caso. Eles tinham recibo da
radiola.
G: - Mas eles foram acusado de roubo, não?
A: - Parece que a história e que os Piriás estavam ameaçando policial, mas era o contrário.
Depois de soltos eles continuaram a ser perseguidos.
G: - Perseguidos por quê?
A: - Na saída da cadeia, me disseram que foi o Culego que mandou prender eles para se livrar
da cobrança de uma dívida. Eles tinham feito um serviço de empreitada. Foi por esse motivo.
G: - E o Culego não pagou os dois. Foi isso?
A: - Ele pagou. Pagou. E com o dinheiro eles [os Piriás] compraram a radiola que a polícia
alegou que era roubada.
G: - Então, se o fazendeiro pagou... qual era o problema?
A: - É que pagou depois de muita pressão. O Culego pagou, mas o queria pagar. Tanto
que denunciou que foi ameaçado pelos dois irmãos.
G: - E foi?
A: - Na delegacia depois falaram que eles tinham ameaçado o Culego que ficou com medo de
eles fazerem alguma coisa contra ele. O Culego era um sujeito meio rico. E tinha sua influência.
G: - A raiva da polícia era por isso então, que prendeu os dois a mando do fazendeiro rico.
A: - Eram duas pessoas pobres, mal sabiam conversar e viviam do trabalho honesto. Todos os
presos ficaram sabendo do caso deles. E eles ficaram com raiva do Capitão Ivo.
G: - Ficaram com raiva por que foram presos injustamente?
A: - Era gente trabalhadora. Na verdade eles fizeram o serviço. Mas fizeram o serviço muito
rápido, que os dois eram bons. Agora, trabalhar e não receber? E depois ser preso acusado de ladrão?
G: - Eles falaram com Sr. alguma coisa sobre se vingar da polícia?
A: - A explicação que o delegado me deu foi que os dois estavam ameaçando policiais e o
próprio delegado. Mas ficaram presos por causa de um arbítrio da polícia. A polícia se sentiu
ameaçada. Um deles falou comigo que a polícia não ia pegar eles fácil não. Mas não era ameaça.
Eles sabiam que conseguiam fugir. Ele foi embora com o irmão dele, o Caolho. E sumiram. Eles
conheciam a região. Entrava pro meio do mato e a polícia não acompanhava. Quando chegou perto,
atiraram e mataram o primeiro [policial]. a polícia teve que resolver. Foram atrás deles [dos
Piriás] e mataram.
G: - Foi a prisão injusta que provocou a raiva deles então?
A: - Eles não faziam mal a ninguém. Eram queridos por quem conhecia os dois. Eu sei que eles
foram muito judiados. E depois o pai foi preso. Isso tudo revoltou os dois.
G: - Então prenderam o pai deles também?
A: - Quando eles mataram o primeiro policial, prenderam o pai deles para ele falar onde
estavam os filhos. Pegaram o pai deles e começaram a conversar com ele. E prenderam o senhor.
Prenderam o pai por causa dos filhos.
206
G: - E foi o Sr. quem tirou o pai deles da cadeia também?
A: - Foi. Nunca vi prender pai por causa de erro de filho. Então eu soltei o pai deles também.
Os policiais tiveram que soltar ele.
X: - (...)
271
Em entrevista concedida ao Estado de Minas (24/09/1978), o advogado Carlos
Paiva relata o acontecido com alguma variação. Segundo o registro das lembranças
passadas do “Dr. Pite”, apenas um dos Piriás teria sido preso.
272
“A prisão deste Piriá tem uma versão que seria a seguinte: ele fez serviços e o fazendeiro não pagou
o combinado. O fazendeiro teria visto Orlando numa bicicleta, correu até o posto policial, buscou a
polícia e atropelou o rapaz. Este fazendeiro se chama Lúcio Antônio Chamon, Lúcio Guleko.
Chamam-no assim porque ele é filho do Guleko. (...) Lúcio teria jogado a camioneta em cima do
rapaz, a PM correu atrás dele e o prendeu. Acontece que, exatamente no dia em que o Piriá foi preso,
ele havia comprado uma radiola na Casa Jorge, no centro, e estava com o recibo de pagamento da
radiola. Segundo o Piriá Orlando, a radiola estava com ele na bicicleta. Segundo o fazendeiro Lúcio e
os soldados, a radiola não estava com Orlando, quando foi preso (...)”.
273
Como no caso das lendas, as histórias de vida do advogado Carlos Paiva descrevem
a atuação do fazendeiro como sinal do défice de lastreamento institucional dos valores que
deveriam garantir a conduta das partes no contrato de empreito. Quando não reconhece o
271
Entrevista com o Carlos Paiva, 75 anos (Sete Lagoas, 11/07/2007). O “Dr. Pite”, como é conhecido na
cidade, foi o advogado responsável pelo relaxamento da prisão dos Piriás.
272
Na entrevista que gentilmente me concedeu, Dr. Paiva insistiu e confirmou que os dois irmãos foram
soltos por ele. na entrevista dada ao Estado de Minas (reportagem A prisão ilegal de Patrício”,
24/09/1978) o advogado fala que apenas Orlando teria sido preso (o que se confirma na fala do delegado
Eurico Lanna em outras reportagens sobre o caso). A diferença entre as “lembranças” do Dr. Carlos Paiva
poderiam ser explicadas de várias maneiras, inclusive a partir do efeito das lendas sobre a memória que os
envolvidos preservam do evento. Entretanto, é preciso termos em mente que o Professor Pite se encontrava
muito debilitado quando conversou comigo sobre o caso, devido a complicações por causa da diabetes.
Segundo sua esposa, o Professor vem sofrendo de esquemias, o que tem prejudicado sua memória.
273
As diferenças existentes entre os dois depoimentos do Dr. Carlos Paiva sobre o caso a entrevista ao
jornal à época e a entrevista concedida a mim – são muito interessantes e mereceriam uma análise mais detida
no que diz respeito ao processo de seleção e comunicação das histórias de vida. Além disso, questões como a
da continuidade/descontinuidade da memória, a relação entre memória e a necessidade de estabilização da
identidade e mesmo uma análise da memória como construção de valores poderiam ser analisadas para este
caso, com base em diversas teorias sobre a tradição: de Weber a Freud, de Hobsbawm a Benedict Anderson.
ainda a questão dos limites que o tempo impõe à memória, a necessidade de uma discussão sobre o tempo
da ação e o da narrativa, além da oportunidade para um debate sobre a noção veritas filia temporis que
poderia ser discutida para as memórias do Professor Pite a partir das diversas “estratégias culturais da
duração” analisadas por Aleida Assmann (1999).
207
desempenho de Orlando e Sebastião na empreitada e chama a polícia, o fazendeiro mostra
que não estabelece distinção entre obrigações morais, pessoais e legais. Ao supor que os
Piriás malandramente combinaram um preço alto por um serviço que duraria tão pouco, ao
supor que os irmãos queriam lhe “passar a perna”, ao deixar de avaliar a qualidade do
serviço reconhecendo o esforço individual e o desempenho diferenciado dos dois, o
fazendeiro menospreza a noção social e idealmente estabelecida de que as pessoas são o
que elas fazem – concepção esta que sustenta a narração das lendas sobre os Piriás.
Esta gica fica exemplificada no “ataque” do fazendeiro aos trabalhadores Piriás.
Tal “ataque”, que temos identificado como uma forma de não-reconhecimento social, é
inaceitável para os interlocutores da lenda porque coloca em questão os valores que
Orlando e Sebastião representam. Por outro lado, ao insistir na afirmação de que Culego
chamou a polícia, o que os interlocutores denunciam é a ausência de qualquer limitação
externa à sua vontade: com os préstimos da polícia, o fazendeiro preferiu ignorar a
eficiência dos irmãos além de submeter os Piriás às conseqüências do seu arbítrio pessoal.
A lenda registra esse momento em que a vontade do fazendeiro é imoralmente transferida
para a esfera pública.
Uma experiência cotidiana, que empresta os elementos que compõem a figura do
fazendeiro como personagem da lenda: ali ele é um hiperindivíduo, o vértice da hierarquia
social. Analisado em termos do significado e dos motivos de sua conduta, Culego é, na
lenda, quem age exclusivamente segundo sua vontade. Parece não haver nada que
constranja suas ações. Nas versões em que ele aparece, tudo depende do seu arbítrio.
Contudo, não se trata aqui de tomar a figura de Culego como a corporificação de
padrões culturais anteriores, e que permaneceriam devido à ausência de mecanismos
eficazes de controle (Souza, 2000:202). O fazendeiro não representa, nas lendas, a
continuidade de um “esquema viciado de poder” como base de uma organização social
“comandada por relações pessoais”. Ele não deve ser interpretado como personagem-
metáfora do personalismo transplantado para a cidade num processo de simples
transferência de valores do espaço rural para o urbano. Os atores vindos de um contexto
tradicional não têm como impor a bel-prazer seus valores e hábitos ao ambiente moderno
circundante (e isso vale tanto para o fazendeiro da lenda como para os Piriás).
208
De maneira que deve-se levar em conta que tudo se passa num ambiente onde se
compreende a presença e a necessidade do aparato estatal e do complexo de instituições que
o acompanham. Uma presença que interfere na posição e relativiza o prestígio do
fazendeiro da mesma maneira que reforça a condição de trabalhador como elemento de
diferenciação social e moral de Orlando e Sebastião, alterando assim, de forma radical, os
critérios de distribuição e conquista de reconhecimento social na Sete Lagoas de fins da
década de 1970. Naquele lugar e naquele momento, todos (inclusive o fazendeiro) estão
submetidos a um código valorativo efetivamente moderno. E é este código que mitiga o
excesso de arbítrio pessoal do fazendeiro da lenda, o qual, embora pudesse contar com sua
própria milícia para resolver o “problema” da cobrança dos Piriás, vê-se, ele próprio,
obrigado a recorrer ao poder mais abstrato e impessoal encarnado pela polícia. Sob o
influxo da modernidade, a imposição dos interesses privados no espaço público não poderia
mais se dar pela ação direta do fazendeiro e de suas forças paramilitares. O advento da
modernidade, baseada em uma nova hierarquia de valores, provoca uma revisão das noções
preexistentes a respeito do que é possível em termos de interação e, sobretudo, conflito
social. Essa atualização de valores é descrita (e mesmo exigida) de forma muito explícita
nas lendas.
Além disso, ao acionar a polícia, o fazendeiro fere um princípio de honra, segundo o
qual a questão deveria ser resolvida “de homem pra homem”, como pude ouvir de várias
pessoas. Nesse sentido, o ato de recorrer à polícia é classificado como imoral (mais que
ilegal).
Imoral também, porque o fazendeiro não recompensa os dois irmãos de acordo com
sua utilidade e seu mérito como determinam as regras – e os valores implícitos do
contrato de empreito. O que permite caracterizar, por oposição ao dinheiro honesto dos
Piriás, a fortuna do fazendeiro como algo imerecido.
274
O que nos leva a concluir que os valores culturais que subjazem ao par
Piriá/fazendeiro estão em conflito aberto nas lendas: do lado dos Piriás, o valor do trabalho
e da honestidade (e talvez também da pobreza!); do lado do fazendeiro o poder financeiro, a
274
Note-se que, muitas vezes, a categoria usada na lenda para se referir ao fazendeiro é “rico”. Importante
ressaltar também que não se trata aqui da figura do “coronel ladrão”, bil, astuto e bem sucedido, ora
degradado e ridicularizado em inúmeras narrativas populares. Apesar de uma paradoxal admiração que se
possa eventualmente ter por essas figuras em alguns tipos de narrativas, as lendas sobre os Piriás não
demonstram uma disposição, diríamos, amigável com figuras desse tipo.
209
esperteza, o poder de influência pessoal. Vale dizer, a discussão da qual se ocupam as
lendas trata das formas de legitimação social a partir da discrepância entre valores culturais
e modo de relação social.
De um lado, os valores representados pelos Piriás. Por meio desses personagens, os
interlocutores apresentam o “sucesso” na realização do trabalho como algo indissociável da
totalidade do comportamento dos agentes sociais. De maneira tal que é a partir da condição
de trabalhadores competentes que afere-se o caráter e mesmo toda a personalidade de
Orlando e Sebastião. É exatamente por serem trabalhadores excepcionalmente diligentes,
que aos Piriás não cabem “esperteza” e astúcia como meio (legítimo) para atingir seus
objetivos; nem se concebe nas lendas que eles pudessem desviar-se de seus princípios
morais, pelo menos enquanto dispusessem de sua disposição e habilidade para o trabalho.
Do outro lado, tem-se o fazendeiro e seu poder “amoralmente construído”. Ao
narrar as lendas em que se encontra alguma fala sobre o fazendeiro, todos se mostram,
abertamente, contrários à sua forma de agir, interpretada que é como “velhacaria”.
X: - (...)
A: - Tinha muito fazendeiro aqui da região que gostava deles. Era gente trabalhadora apesar do
gênio difícil.
B: - Mas teve aquele que eles fizeram subí no pé de laranjeira. Ele não foi um dos que protegeu
os Piriá não.
A: - De quem cê tá falando?
B: - Eu lembro que os Piriá colocaram aquele homem em cima do pé-de-laranja. Qual era o
nome dele? O dono daquele terreno...
A: - Quem, sô?
B: - Foi porque ele não pagô eles. Negócio de uma roçação de pasto. Porque eles acabaram a
roçação muito rápido e... Bom, os Pirinfezaro e colocaro fogo na carroça dele. ele deu parte
deles. Como é que chamava o home? Culego?
A: - Eu num tô lembrado do nome. Qual fazendeiro mesmo?
B: - Aquele que tinha terreno . O primeiro que os Piriá foram no terreno dele, onde
começaram a matança. Como é que chamava? Sei que não pagaram eles. Eles foram e enfezaram e
puseram fogo na carroça. denunciaram eles. Eles foram preso injustamente. E depois que eles
saíram de lá de jura de fazer vingança. Cê lembra?
G: - Não tão bem. Eu era muito menina na época.
X: - (...)
210
G: - Estou juntando informações sobre eles. Tem muita coisa e cada um lembra de uma
passagem. Quero juntar tudo.
B: - Eles mataram o policial em cima da pedreira. É que eles estavam morando na pedreira.
Eles atiraram no meio da testa dele. Foi que começou a matança foi aí. Eles atiravam muito bem.
A: - Aprenderam a atirar com porvera, né?
B: - Não errava mesmo.
A: - O Caolho era danado. Atirava que nem o capeta. Quando eles mataram ele foram mil
home.
B: - Fizeram um cerco. Prepararam uma emboscada em Lassance. Quando eles foram passar
embaixo da cerca de arame, mataram os dois.
A: - Não me lembro é do caso do pé-de-laranja.
B: - Num lembra, pai. Tiraro a ropa dele [do fazendeiro] e mandaro ele apanhá a laranja toda
pra ele aprendê a não fazê o que fez com eles.
[risos]
B: - Subiu peladão.
G: - Mas fizeram alguma violência com ele?
B: - Não. Não batero, nem mataro porque ele fez o que os Piriá mandaro. E eles não matava
civil.
A: - Mas e o caso daquela matança na Serra [de Santa Helena]. O casal de velho morto a golpe
de foice.
B: - Isso não é da época dos Piriá não.
A: - É sim. O caso do Albertão.
B: - Não. Aí também foro dois. Mas quem pegô os dois foi Cabo Madureira.
A: - Mas é caso parecido.
X: - (...)
275
O humor que vez por outra marca a narração expressa uma evidente tomada de
partido. É o que se pode perceber no momento narrativo a seguir:
C: - A história que eu sei é a seguinte. Eles foram trabalhar pra esse turco, esse tal de Galego.
A: - Culego. O nome é Culego.
275
Momento narrativo registrado em Sete Lagoas (04/01/2007). Cf. anexo, transcrição do Momento Narrativo
II. O “caso do Albertãocitado pelo informante diz respeito a um crime de latrocínio cometido contra um
casal de velhos que moravam na Serra de Santa Helena. O crime aconteceu em 1959 e comoveu a cidade.
Muita gente ainda hoje fala do caso. Os dois criminosos, identificados como Mariano e Tomé, foram
capturados pelo Cabo Madureira, que, em entrevista me disse que, depois de 12 dias de perseguição, teve que
matar os dois, já que ambos resistiram à voz de prisão.
211
C: - É isso! Esse Culego combinou um serviço com o Piriá e não pagô. Inclusive, na época
dessa matança toda aí, esse Culego foi fugido pro Rio de Janeiro com medo.
A: - Medo de Piriá.
[risos]
C: - É! Fugiu dele de medo. E esse Culego não pagô. E era ruim pra pagá mesmo. Turco.
A: - Ele tinha fazenda aí, lá perto de Jequitibá. O turco.
C: - Ele era turco. O apelido era Galego, não sei.
A: - O sobrenome é que é Culego. Cu-le-go.
C : - É ! Então tudo bem ! Eles roçaram o pasto pra ele na fazenda aqui...
A: - Em Jequitibá. A fazenda é em Jequitibá.
C: - Onde é a [fábrica da] Iveco, por ali.
D: - Então não é Jequitibá. É mais Sete Lagoas.
B: - É bem Sete Lagoas.
C: - Eu nem sei se ele morreu!
A: - Há muitos anos, ué!
C: - Eu não ouvi se ele morreu?
D: - Tem um filho, ele.
B: - Lúcio Culego, né não?
A: - Não. A encrenca foi com o pai de Lúcio.
C: - Ah! Então foi com o pai?
A: - É!
B: - Lúcio Culego é o outro.
C: - Então não é desse que eu tô falando não ué. Então eu tenho até que retirar, porque o que eu
tô falando que é ruim pra pagar é o outro, o Lúcio que eu tô falando.
A: - Mas não ué! É pai e filho...
C: - É!
[risos]
C: - Então é de família.
[risos]
B: - Mas, continua o caso.
C: - Então. Eles roçaram esse pasto pra ele e ele não pagô eles. Eles então foram cobrar,
receber e ele mandou a polícia cortar eles no côro.
D: - Acho que eles tinha comprado um radinho na época.
A: - É não. Uma vitrola. Agora deixa eu colocar um pedacinho no meio aqui, que eu
passei pra ela, mas agora vai ficar melhor.
C: - Pois não. Faça o favor!
212
X: - (...)
276
A experiência que o Culego teria tido com os Piriás, segundo as lendas, parece ter
tido sua serventia: outros fazendeiros também teriam ficado amedrontados com os dois
irmãos.
“Foi lá na fazenda desse conhecido. Os Piriá chegaram pedindo um frango. Esse meu conhecido
falou com eles que podia pegar. Eles então perguntaram qual. O fazendeiro apontou um lá. Então o
Caolho, tinha um deles que era Caolho e bom de tiro, perguntou se podia atirar. O amigo disse que
podia. O Pir atirô que rancô a cabeça da galinha com um tiro; um tiro só, certero. Esse meu
conhecido não sabia que era os Piriá. Quando ficou sabendo, deu um piriri nele [risos]. Era o (...).
Você pode tentar falar com ele. Tem gente dele que mora ali na Paulo Frontin. O Piriá arrancou a
cabeça da galinha com um tiro e o (...) ficou de piriri quando soube que era Piriá.”
277
Note-se que os interlocutores não estabelecem uma relação mecânica entre crime e
pobreza, da mesma forma que o tratamento dado ao “fazendeiro turco” necessariamente
não expressa “revolta” dos pobres contra a riqueza ou algum sentimento difuso de inveja e
hostilidade que transformariam a lenda em um discurso marcado pelo ressentimento contra
as “elites”.
278
É contra a associação entre pobreza e desproteção institucional que se reage
na lenda. É desse outro sentimento coletivo que se trata. Narrando essas histórias, as
pessoas tentam organizar esses sentimentos contra a ordem social que os evoca.
Ao
apresentar o fazendeiro como alguém capaz de deturpar a lógica de funcionamento das
instituições em benefício próprio, recrimina-se também a forma de ampliação do capital por
meio de contatos e influências. Quer dizer, apesar de todo seu poder nas lendas, o
276
Momento narrativo registrado em Sete Lagoas, 03/01/2007. Cf. anexo, transcrição do Momento Narrativo
I.
277
Momento narrativo registrado numa capotaria em Sete Lagoas, 05/01/2007. No Estado de Minas de
16/08/1978 conta de que os Piriás realmente estiveram na fazenda citada por meu interlocutor. Teriam
levado galinhas e ovos com a permissão do fazendeiro, que não sabia que se tratava dos famosos Irmãos
Piriás.
278
Ressentimento, aqui, no sentido que Nietzsche e Scheler emprestam ao termo: uma espécie de teoria da
inevitabilidade que culmina na condenação daquilo que se ambiciona secretamente. Para uma discussão sobre
o ressentimento, ver Simmel (1999, 218-219; 276-277).
213
fazendeiro tem o que temer. Ele deve temer o “trabalhador honrado”, representado nas
lendas pelos Piriás.
279
Contudo, nem sempre o fazendeiro é representado como inimigo dos Piriás.
280
variantes (e não são poucas) em que é exatamente o fazendeiro quem ajuda os dois irmãos
em sua guerra contra a polícia. Nessas versões, um ou vários fazendeiros, exatamente por
conhecerem os dois e por “saberem” que se tratava de gente trabalhadora, teriam ajudado
os Piriás, fornecendo guarita, comida e munição.
X: - (...)
A: - Teve fazendeiro que protegeu eles. Deu arma, ajudou eles.
G: - Por que ajudou? Não era perigoso ajudar os Piriás? Podia arrumar confusão com a polícia,
não?
A: - É. Acontece que o pai deles trabalhava para um fazendeiro grande aqui. E eles [os
Piriás] foram preso suspeito de roubar, não sei se um porco ou um negócio assim. a polícia...
quando a polícia foi procurar por eles não conseguiu prender os dois e então prendeu pai e mãe deles.
Um absurdo. Contam que judiaram muito deles. Aí, esse fazendeiro, que sabia que os pais não tinha
nada a ver com a história, entendeu. Deixou eles [os Piriás] ficarem escondido lá [na fazenda],
forneceu arma, forneceu comida pra eles, entendeu? Então, quando a polícia chegava perto, eles
riliava com ela, trocava tiro e fugia pra outro lugar. Mas por causa de quê? Pra vingá os pais que era
gente trabalhadora, de bem. Fugia rumo Paraopeba, Araçaí. Eles sabia pra onde a polícia ia e trocava
de rota. Inclusive houve policial que ficou dias e dias atrás desses dois. E a polícia foi correndo longe
com eles. Eu, do meu ponto de vista, eu não acredito naquela foto que eu vi deles morto não. Eu não
acredito não. Aquilo ali pra mim foro uns pobre coitado que a polícia encontrô e... Porque tava
uma vergonha já.
G: - É! Dizem que foram quase sete meses de perseguição, né?
A: - Não, não. Sete meses não. Não foi isso tudo não. Uns três meses atrás deles. Uns três
meses. Eu vi a foto no jornal, mas a foto não foi assim capaz de esclarecer nada não. Não trouxeram
279
Ouvi várias vezes em campo narrativas sobre patrões (em especial fazendeiros) que se rebelam contra as
leis trabalhistas. A que mais me chamou a atenção foi o caso do Maquinezinho, um lugarejo próximo a
Santana de Pirapama, que deve sua origem a um litígio trabalhista. Os funcionários do principal fazendeiro do
lugar moveram uma ação conjunta contra ele na Justiça do Trabalho, que obrigou o proprietário da fazenda
Maquiné a indenizar a todos. O resultado da sentença foi a falência do fazendeiro, que teve que ceder uma boa
parte de suas terras aos seus ex-empregados. Nestas terras fundou-se o arraial. Esta história me foi narrada
várias vezes, em geral associada ao caso dos Piriás.
280
Nas palavras de um dos meus entrevistados (entrevista em 30/03/2005), “o mito é sempre dividido.
Acredito na colaboração civil. Eu mesmo tenho um tio que era a favor deles [os Piriás], que foi na fazenda,
deu comida pra eles e não sei quê mais. Mas tem o outro tio, da outra fazenda, que pôs um monte de
empregados da fazenda à disposição da polícia para caçá-los. Pra você ver: dentro da minha própria família,
eu tenho as duas situações”.
214
os corpos. Enterraram por mesmo. Meteram fogo, tiraram a foto. Balearam os cara e tiraram a
foto. Trouxeram a foto e saíram falando que tinha matado eles. Bem, que cada um conta de um
jeito. Mas se você atrás da fantasia que se criô sobre eles, é isso aí. Agora, o caso de Davi Damião
é mais velho.
B: - É! Mas aí não tem lenda não.
X: - (...)
281
A própria polícia admitiu, na época, a hipótese de um possível apoio logístico aos
Piriás por parte de indivíduos interessados em prejudicar a imagem da PM” (A Gazeta,
30/12/1978). Embora houvesse policiais que negassem peremptoriamente o apoio da
população ou de fazendeiros aos Piriás, não era o que se veiculava na imprensa e nas
lendas.
“Há grande intranqüilidade na região e a polícia afirma que os Piriás devem estar sendo ajudados.”
282
São narrativas que insistem na comunicação social entre desiguais. Uma relação que
se dá na base de valores compartilhados. Sobretudo, o valor do trabalho, que na narrativa
reproduzida mais acima chega a aparecer como uma qualidade transmitida de pai para
filho: o pai e a mãe dos Piriás eram igualmente trabalhadores diligentes. Ao contrário das
versões onde o ex-patrão é o detonador do trágico envolvimento dos Piriás com a polícia,
agora os dois irmãos devem muito ao auxílio dos fazendeiros. Nessas outras variantes o que
se tem é um fazendeiro moralmente vinculado aos irmãos Piriás e que, por isso, protege-os,
numa indicação evidente de que compartilha com eles o mesmo sistema de valores.
Por tudo isso, podemos afirmar que a lenda não fala do fazendeiro enquanto classe
social, o mero representante de um coletivo. Na verdade, ele nunca chega a configurar uma
Tipik. Ao contrário da imagem que se cria para a polícia, o fazendeiro é sempre um
indivíduo.
Na verdade, foi a partir de agosto de 1978, depois de quase quatro meses de
perseguição e de ver os Piriás se tornarem personagens de lendas aclamados pela opinião
pública local, que o discurso das autoridades decidiu transformar a guerra Piriás vs. Polícia
em uma guerra Piriás vs. Fazendeiros, como se pode aferir em várias reportagens.
281
Momento narrativo registrado em 06/01/2007, na casa de um dos interlocutores em Sete Lagoas.
282
A Gazeta, 30/12/1978.
215
“O caso dos Piriás é o caso de uma revolta espontânea, primeiro contra os fazendeiros.”
283
São palavras do delegado Lanna Marinho em resposta à pergunta do repórter quanto
aos “boatos” de que os Piriás vinham sendo ajudados por fazendeiros da região. A notícia
que corria era a de que um determinado fazendeiro estaria ajudando Orlando e Sebastião:
um seu empregado era enviado regularmente a Sete Lagoas para comprar munição e
alimentos para os dois irmãos. É este o rumor que a polícia tenta neutralizar, porém, sem
deixar de investigar muito bem o caso.
284
É a polícia, através da imprensa, que tenta construir uma tipificação (positiva) do
fazendeiro, apresentando-o como membro de uma camada da população favorável ao
trabalho das forças de segurança. Se no início das lendas, a polícia não age como deveria
para dirimir o conflito entre trabalhadores e fazendeiro, agora a tônica é outra. Ou seja, ela
se coloca não mais a serviço de um fazendeiro e seus interesses particulares, mas de todos
os fazendeiros da região, ou seja, em defesa dos interesses de uma coletividade.
O discurso veiculado pela mídia impressa à época passa a ressaltar a necessidade
premente de ação na defesa dos direitos dos fazendeiros, os quais estariam exigindo
proteção para seus funcionários, que, com medo dos “malditos”, estariam abandonando as
fazendas, as lavouras e o trabalho. As reportagens desejam mostrar como os Piriás estariam
prejudicando os interesses não somente dos fazendeiros, mas de todos os trabalhadores
rurais. Caberia à polícia proteger a todos dos Piriás. O discurso jornalístico, que antes
incorporara e mesmo difundira elementos da lenda, passa a representar Sebastião e Orlando
como indivíduos amorais. Se, antes, Culego, e apenas ele, era motivo de censura (ainda que
velada) diante da insatisfação de um número crescente de fazendeiros, os Piriás são
transformados em bandidos da pior espécie.
Em várias versões da lenda temos a perseguição da polícia aos dois irmãos atribuída
à denúncia de um fazendeiro especificamente, enquanto que nas reportagens pode-se
perceber uma insistência crescente em “recuperar” a imagem do fazendeiro como
283
A Gazeta (30/12/1978). Uma avaliação similar é feita pelo Estado de Minas em 12/08/1978.
284
Ao contrário do que afirma o delegado, lê-se na reportagem d’A Gazeta (16/08/1978), que “a polícia
admite que as tentativas até agora feitas, ‘podem ter sido prejudicadas por pessoas que estão dando apoio
direto aos marginais’. (...), a polícia não sabe explicar como eles conseguem se deslocar com tanta rapidez
sem serem localizados”.
216
representante de toda uma classe. O que é feito ora dando destaque à colaboração dos
fazendeiros da região à “missão” dos policiais, ora descrevendo os fazendeiros como alvo
de um suposto ódio da parte dos Piriás. Uma das reportagens noticia o empréstimo de um
avião por um fazendeiro para ajudar na “caçada” aos Piriás (Estado de Minas, 12/12/1978;
A Notícia, 12/12/1978). Outra explica que o presidente da Cooperativa de Produtores
Rurais de Corinto esteve com o governador do Estado para pedir providências e recursos a
fim de prender os “bandidos” que estariam “provocando a fuga de homens do campo da
região” (A Notícia, 12/12/1978). Corinto inteira teria ficado alarmada com a conclusão da
polícia de que os tiros desferidos contra “o carro do fazendeiro Otaviano Pereira Pinto,
dono da fazenda Sucuri, na beira do Córrego Jabuticaba”, tinham alvo certo: o próprio
fazendeiro (Estado de Minas, 24/11/1978). Noutra reportagem ainda, dá-se destaque para o
proprietário que ajudou pessoalmente (inclusive disponibilizando seus “homens”) na
caçada aos Piriás perto de sua fazenda, na região do Córrego Jabuticaba. O cachorro deste
fazendeiro teria sido uma peça-chave na operação que conseguiu ferir gravemente um dos
irmãos.
285
Um outro fazendeiro também teria ajudado no cerco aos Piriás em Macacos,
chegando a arriscar sua vida: tentara ganhar a confiança do Piriá que se aproximou de sua
casa pedindo fogo e comida. O fazendeiro se esforçara para convencer o rapaz a entrar em
sua casa com a intenção de mantê-lo ali até que um empregado seu avisasse a polícia
(Estado de Minas, 10/08/1978).
A identificação dos fazendeiros como alvo primeiro da vingança” dos Piriás
começa a ser feita em reportagens do mesmo período, por volta de agosto, quando todas as
investidas da polícia contra os irmãos se revelaram inúteis e “o mito crescia”, como as
pessoas gostam de dizer. O melhor exemplo dessa tentativa de inversão dos termos do mito
é a narrativa que a imprensa e a polícia fornecem do caso do assassinato do agricultor
Geraldo Florentino, o “Baiano”, em Araçaí, distrito de Curvelo. As reportagens insistem
285
“No dia vinte e um [de dezembro de 1978], uma das turmas localizou os dois rapazes no meio de um
cerrado, a três quilômetros de Contria, distrito de Bocaiúva. Eles estavam deitados no meio do mato. Podia ser
uma hora da tarde. De início, foram localizados pelo cachorro de um fazendeiro” explica o tenente-coronel
Klinger que, por determinação do comandante das operações, ficou encarregado de montar uma equipe
especial para caçar os Piriás (Estado de Minas, 27/12/1978). No jornal A Gazeta (30/12/1978), o cachorro do
fazendeiro também é mencionado: “Com a colaboração de fazendeiros e roceiros, foi possível saber no dia 19
[de dezembro] que eles [os Piriás] haviam roubado comida a cerca de dez quilômetros da fazenda União. Dia
21, os policiais ficaram sabendo que eles estavam acampados, descansando. (...) Os policiais se dirigiram ao
local apontado como seu acampamento, mas o cachorro de um fazendeiro, ao notar os estranhos começou a
latir e houve violento tiroteio entre os Piriás e a polícia”.
217
nos requintes de crueldade dos assassinos e chega-se a falar num “estilo Piriá” (A Notícia,
17/09/1978). No jornal Em Tempo (?/12/1978) descreve-se como os “malditos” teriam
assassinado a pauladas um dono de terra, ex-curandeiro, um velho entrevado, de 60 anos.
Não sem antes cortarem-lhe a ngua e lhe furarem o olho bom”. Até mesmo uma
cachorrinha prenhe é baleada. “Mataram ele como só o capeta sabe fazê” disse uma
comadre do morto, em depoimento aos repórteres. O motivo do crime: vingança. Por qual
motivo? Ninguém informa.
A partir daí, todos os assaltos a fazendas da região passam a ser atribuídos aos Piriás
em matérias que enchem as páginas dos jornais de Sete Lagoas e de Belo Horizonte. No
mesmo dia em que teriam matado seu “inimigo” Baiano, os Piriás teriam ainda assaltado
uma fazenda em Lagoa Bonita, agredindo a dona do lugar e acertando-lhe um tiro nas
nádegas.
286
No dia seguinte, foi a vez de um certo Raimundo Moreira, que viu sua
propriedade ser invadida pelos dois “bandidos”, que tiveram a ousadia de prender seu filho
num quarto enquanto salteavam a casa. A reportagem prossegue:
“Começa na região uma onda de pânico: diversos fazendeiros (alguns ‘jurados’ de morte) procuram a
polícia e pedem policiamento para suas famílias ameaçadas.”
287
Tudo era atribuído aos Piriás. Mas, como conclui o repórter Glizer Neves, que
acompanhou de perto o caso, “deduções como esta começaram a surgir com impressionante
freqüência, certamente para criar um clima adverso aos irmãos”. A figura do fazendeiro,
nessas narrativas “oficiais”, passa de perseguidor a vítima. A Fazenda Peri-Peri, por
exemplo, teria sido assaltada duas vezes. Como no caso da morte de Baiano, “a polícia
também não teve dúvidas: foram os Piriás”.
288
A estratégia, contudo, não deu o resultado esperado. Até mesmo o administrador da
fazenda Peri-Peri, Agostinho Fernandes, não teria se convencido:
286
A história é repetida à exaustão e foi registrada em uma reportagem do Estado de Minas (08/08/1978) onde
uma sitiante declara: “Sei que eles deram um tiro na parte de trás da Maria. Eles deram tiros quando a gente
estava trabalhando perto da Lagoa dos Patos, um lugar até alto (...). Primeiro deram um tiros aqui em cima, na
capoeira, e mataram um galo e uma galinha. Depois respondeu um outro tiro. Quando eu vi a Maria mais
minha filha que vinham mais que vinham ventando”.
287
A Gazeta (30/12/1978).
288
A própria polícia teve que voltar atrás na sua “conclusão” quanto à autoria do crime contra Geraldo
Florentino, já que o argumento apresentado por Capitão Ivo soou à população como absurdo.
218
“Ninguém viu quem foi. Como é que se pode sair dizendo que foram os Piriás? Isto aqui é terra de
malandro. Tem muita gente aproveitando essa história de Piriás pra fazer o que não presta”
289
4.2.3. A polícia
É sempre muito difícil, em uma sociedade como a brasileira, falar da polícia. O
assunto deixa as pessoas inseguras, pouco à vontade. Esta é uma das razões pelas quais, ao
tratar das histórias sobre os irmãos Piriás, estarei analisando a leitura que os interlocutores
da lenda, de forma coletiva, fazem da conduta policial.
Nessas histórias, os Piriás são apresentados como homens habilidosos e práticos,
combativos, mateiros conhecedores do sertão e detentores da simpatia do povo, o exato
oposto de uma polícia representada como ineficiente, urbana, pouco inteligente, mal quista
pela população. São narrativas que se constroem por meio de um processo que despe a
instituição policial de qualquer status privilegiado, colocando em xeque sua reputação e a
legitimidade de suas ações. A narração funciona como uma espécie de rito de degradação
onde a imagem da corporação é posta abaixo.
Tal como o “trabalhador”, a polícia também é tipificada no ato narrativo: as
diferenças individuais são niveladas de forma que ela aparece como algo composto por
exemplares de um tipo social único. Um processo de redução onde identidades morais são
convertidas em tipo social no caso da polícia, um tipo social degradado.
290
O ameaçador
nessa tipificação é, talvez, menos o fato do “erro” da polícia vir a ser interpretado como
289
Em Tempo (?/12/1978).
290
Evidentemente, isso não vale para os depoimentos dos policiais envolvidos na caçada aos Piriás. Nesses
relatos, o narrador não opera o que estamos chamando aqui de tipificação social da polícia. Pelo contrário. É
o que se pode verificar na crítica do policial reformado P.M., 56 anos, que participou da captura dos Piriás
(entrevista registrada em 04/01/2007, Sete Lagoas): Ninguém gosta de ver a polícia com vitória; com
derrota, até o dia de hoje. A polícia que faz um bom trabalho não é comentada. Quando um elemento, no
meio de 35, 40 mil homens dá um deslize, é a polícia inteira que é penalizada. E isso não é com a polícia.
Se um médico, se um engenheiro, se um político erra, todo político é ladrão. Se um médico erra, a classe
intiera é pixada. Porém, eu acho que deviam escolher aquele único elemento para ser martirizado e não a
classe inteira.” Um outro informante, para se resguardar das duras críticas que fazia ao trabalho da polícia à
época, também evita a tipificação: “A polícia tem uma parte muito boa e outra muito ruim com ela
(momento narrativo registrado em 10/01/2007, Sete Lagoas).
219
algo generalizado, do que o fato de que essa imagem tipificada venha a se consolidar e
passe a exercer influência sobre as interpretações das suas ações futuras da instituição.
“Eles [os Piriás] foram detidos por dois policiais falecidos, que eu prefiro não dizer o nome, e
foram... espancados por esses policiais civis. E desse dia em diante, começaram a assaltar. O meu
pensar é o seguinte: trabalharam, não receberam e apanharam, vão assaltar, vão ser ladrão, por ter a
mentalidade curta, porém muito inteligentes eram eles na fuga, vida na mata, a vida privativa, ou
seja, viver como pessoas primitivas, e viviam muito bem. A meu ver, eram pessoas que trabalhavam
e que passaram a ser marginais por erro de dois elementos da polícia.”
291
Ao contrário dos Piriás, que puderam lutar por e defender sua honra, nas lendas a
honra da polícia está, por assim dizer, perdida.
292
No caso da polícia, o sentimento de honra
que sempre é mencionado como sinal da diferença social da instituição, traduz-se melhor
no conceito de prestígio social. Tal conceito evoca mais um sentimento de apego à posição
ocupada que a consciência subjetiva e pessoal da necessidade de reconhecimento social por
parte de um indivíduo. O pertencimento ao coletivo, à corporação, é que determina a honra,
no caso. E é o afastamento do coletivo, mais que a conduta pessoal, que implica a perda
dessa “honra”. Como parte desse coletivo que é a corporação, o policial reage sempre como
membro de uma classe profissional que constitui uma verdadeira categoria social. O que
confere uma outra dimensão ao temor ante a ameaça de degradação moral produzida pela
lenda.
Os interlocutores sabem desse temor embora pareçam não distinguir entre a defesa
da honra dos Piriás e a defesa do prestígio social da polícia. Na narração das lendas, o
processo de busca e captura dos dois irmãos é descrito como um duelo, ou antes, como um
ritual de concorrência pela honra. Contudo, como não é nossa intenção apenas descrever a
realidade da lenda tal como é percebida pelas pessoas, faz-se necessário notar que aqueles
que narram uma lenda sobre os Piriás parecem partilhar a idéia de que a honra da polícia
291
Entrevista com P.M, citada na nota anterior. O informante critica abertamente a conduta irregular de
alguns elementos da polícia. E prossegue: “Depois de tudo o que aconteceu, a função nossa era prendê-los [os
Piriás] e entregá-los à justiça. Mesmo que a justiça soltasse os dois no dia seguinte. Nossa função era prendê-
los. Mas por infelicidade do destino, fomos obrigados a acompanhá-los até o cemitério.”
292
Sobre a defesa da honra como parte de um processo de reprodução simbólica das diferenças em termos de
reconhecimento social, cf. O capítulo IV de Neckel (1991), onde o autor estabelece uma diferença entre honra
social e dignidade individual.
220
ao contrário da dos Piriás é irrecuperável. A começar pela descrição que se faz do modo
como a polícia reagiu ao “ataque” dos irmãos Patrício.
Nenhuma das táticas policiais utilizadas na caçada aos dois irmãos tem a simpatia
dos interlocutores da lenda. Pelo contrário, são duramente criticadas, ridicularizadas até. Os
cães adestrados, a cavalaria, o aparelho de visão noturna, helicópteros, aviões e todo o
esforço da Polícia Militar para prender Orlando e Sebastião foi interpretado em termos
negativos. A mobilização de um grande contingente de soldados parecia ser a expressão de
um verdadeiro “medo dos Piriás”. Até mesmo a intenção de pegá-los vivos foi alvo de
críticas. Como ouvi várias vezes em campo: “aí nem vivo, nem morto”.
293
Mais tarde, a mudança de tática, com o uso de policiais à paisana, foi interpretada
como uma “atitude covarde”. No início de agosto de 1978, depois de quatro meses de
perseguição, montou-se um novo esquema para a captura dos Piriás.
“Todo o esquema foi modificado: o pelotão de choque de Diamantina, os cães e cavaleiros
retornaram à suas unidades e, desde ontem, o pessoal foi espalhado pelo mato sem fardas e nenhuma
peça de uniforme militar (...). O novo esquema montado para captura dos irmãos (...) consiste
basicamente no levantamento de informações, que são comunicadas através do rádio e investigadas
por equipes de cinco ou seis homens, militares e da delegacia civil. Outras equipes cerca de 20
homens foram espalhadas em várias regiões, principalmente a de Fazenda Velha, com o pessoal
vestido com roupa de vaqueiro e lavrador, para observação. A única novidade, hoje, é a entrada em
ação dos sete elementos da Polícia Militar, treinados no serviço de informações e capturas. Eles
prenderam marginais em várias partes do Estado, trabalhando principalmente no mato”
294
293
Como afirmou o delegado Eurico Lanna em uma entrevista: “Nós estamos interessados em pegar os Piriás
vivos, a delegacia quer esclarecer uma série de crimes que estão aí, insolúveis e tudo se credita a eles; não
achamos possível aceitar que todos os crimes são deles” (A Notícia, 17/09/1978). Em outra reportagem
afirma-se que “existe uma recomendação aos policiais no sentido de que capturem os dois irmãos vivos. Por
isto, foi modificada, cerca de um mês, a maneira de conduzir as buscas, procurando evitar um choque
direto. O objetivo, de acordo com os planos traçados, é armar um cerco e utilizar principalmente material
químico, como bombas de gás lacrimogênio” (Estado de Minas, 15/09/1978).
294
A Notícia (10/08/1978). A mudança de estratégia também foi sublinhada pelo Estado de Minas
(12/08/1978): “Os irmãos Piriás, que mataram um sargento e dois soldados na região de Fazenda Velha, em
Sete Lagoas, ferindo um quarto militar com um balaço na cabeça, continuam fugitivos na região. Para a gente
humilde da zona rural, eles viraram lenda, mas a polícia tem outros planos. Os Piriás agora estão sendo
caçados por homens especializados da equipe do Coronel Pedro Ferreira, de Governador Valadares, famosos
pela captura de muitos pistoleiros da região do Vale do Rio Doce. Os policiais estão ‘vestidos e agindo como
lavradores, trabalhando em fazendas’, munidos de ‘talkies-talkies’
[sic]
para contatos imediatos que
permitam reunir imediatamente o grupamento, tão logo surjam notícias do paradeiro dos irmãos Sebastião e
Orlando Patrício” [grifo nosso].
221
A reação violenta dos Piriás alterou a dinâmica de poder dentro da polícia e
transformou sua maneira de agir. Era o retorno de uma estratégia da polícia utilizada
durante toda ditadura militar. Apesar da insistência da opinião blica para que a polícia
abandonasse a estratégia de dilincias de captura e adotasse uma conduta mais afinada
com os direitos humanos, a força policial em Sete Lagoas retrocedeu e o comando da
missão de captura dos Piriás foi retirado das mãos de Capitão Ivo. Sob seu comando, a
primeira fase de busca aos Piriás foi marcada pela ênfase nos meios institucionais-legais.
mais tarde, quando a caça aos Piriás toma a proporção de luta, é que o método de
captura foi adotado pela polícia. Esse “retrocesso” em termos táticos demonstra que, a
partir do momento em que a captura dos Piriás tornou-se “questão de honra” para a polícia,
a ênfase passou a se concentrar antes no resultado que nos meios.
295
“A prisão dos irmãos Orlando e Patrício [sic] passou a ser uma ‘questão de honra’ para a polícia
militar (...). O militar, treinado em táticas policiais e antiguerrilha nos Estados Unidos, juntou à
Cia um grupamento de ambientados em perseguição na selva. Mais de cem homens se empenharam
na caçada aos Piriás, com o auxílio de cães rastreadores e de oito cavalos, além de várias viaturas,
durante mais de um mês (...). Os estrategistas da PM ficaram surpresos diante da facilidade e rapidez
com que os Piriás se deslocavam: às vezes mais de 40 Km à noite. (...) quando municiados e com
mantimentos, grandes conhecedores da região, eles se escondiam durante o dia e andavam à noite.
Por isso a PM resolveu mudar de tática e suspendeu o cerco militar, substituindo-o por patrulhas com
homens em trajes civis (...). Os boatos sobre o aparecimento dos irmãos eram cada vez mais
freqüentes e as informações eram contraditórias. Várias vezes o esquema de captura que contava
com uma retaguarda de homens treinados em guerrilha rural – foi acionado para vasculhar áreas num
raio de mais de 70 quilômetros, sem conseguir pistas concretas (...). Os cercos eram feitos, mas eles
sempre levavam vantagem. Em fins de novembro, eles trocaram tiros com a PM, que passou a
rechaçá-los mais para o norte, mantendo homens na região disfarçados de pescadores, coletando
informações de moradores.”
296
295
O comando da missão passou às mãos do Cel. Jurandir Afonso Marinho, membro da Delegacia de
Capturas desde a década de 1960. Sobre ele escreveu o Klinger Sobreira de Almeida, então tenente-coronel da
Polícia Militar: “No rol de seus maiores feitos são inúmeros cito o caso dos irmãos Piriás, facínoras que
desafiavam, ao final da década de 70, grandes aparatos policiais na região do cerrado mineiro. Jurandir,
chamado para a missão, dispensou aquele aparato ostensivo de batalhões e convocou uns quatro policiais de
nossa antiga equipe de capturas. Discretamente e longe dos holofotes da imprensa, acabou com a extensa
carreira deliquencial dos Piriás em duas semanas” (Sobreira de Almeida, 2005:227).
296
A Gazeta, 30/12/1978.
222
A nova estratégia foi quase que unanimemente condenada pela população.
Sobretudo porque ignorava as regras do “duelo”, retirando aos Piriás o direito de identificar
os soldados.
“Era um monte de paisano andando por aí. Um deles é que levou o Piriá pra emboscada. Se tivesse
de farda, não tava aí pra contá a história.”
297
Aos olhos dos interlocutores da lenda tudo se passa como se os policiais não
quisessem ser reconhecidos nem pela população e muito menos pelos Piriás. Tudo isso por
medo dos irmãos, que Piriá não errava alvo.
298
Um pressuposto, aliás, que a própria
polícia reforçou rias vezes na época. Conforme relatório da polícia repassado à imprensa
local, no dia 21 de agosto de 1978
“(...) por duas vezes (às 15h30m e 16h) os Piriás trocam tiros com a polícia na fazenda Capoeira
Grande, no município de Araçaí. Um deles grita para o cabo Geraldo: ‘ô cabo, vem cá. É ocê mesmo
que nós queremos.’”
299
Já nas palavras do Capitão Ivo,
“Eles são meliantes, perigosos e maus. São tão maus que eles disseram: ‘Levante para você morrer’,
quando um dos nossos estava atrás de um monte, já com a munição terminada.”
300
Capitão Ivo é mencionado nas lendas de forma bem pouco elogiosa. Isso não deixa
de ser interessante, pois foi ele um dos primeiros oficiais da região a chamar a atenção para
a necessidade da polícia observar os direitos processuais. Todos os ex-policiais com os
297
Fala de um informante que não tive tempo suficiente para identificar, durante uma conversa rápida sobre
os Piriás num bar do bairro São Pedro, Sete Lagoas. Forma de registro: anotação. O encontro dos Piriás com o
“paisano” também é narrado em uma reportagem do Estado de Minas (24/11/1978).
298
“A maioria das pessoas sabe que Orlando e Sebastião prometeram não matar civis, poisquerem mesmo
atingir soldados da Polícia Militar, como fizeram com três e feriram outros dois. A polícia continua
achando que tem gente protegendo os Piriás em várias partes da região. O cabo Nelson considera impossível
duas pessoas continuarem tanto tempo no mato e aparecendo em lugares onde a polícia está longe, sem ajuda.
Ninguém na região de Corinto confirma esta suposição da polícia. (...) Mas não tanto medo do pessoal
que trabalha nas roças (...). Eles são da opinião que os Piriás querem dos civis alguma coisa pra comer. Se
ninguém reagir, eles não matam mesmo” (Estado de Minas, 12/12/1978).
299
A Gazeta (30/12/1978)
300
Estado de Minas (08/08/1978).
223
quais conversei o elogiam nesse sentido, e é geral em Sete Lagoas a opinião de que se
tratava de uma pessoa serena e digna. Capitão Ivo insistiu inúmeras vezes, em público, no
fato de que os Piriás deveriam ser capturados vivos para serem devidamente julgados.
301
Muitos policiais discordavam abertamente dele, alegando que a única maneira de apanhá-
los vivos seria se eles se entregassem, o que, acreditavam, nunca iria acontecer.
302
Os interlocutores da lenda também não. Tanto que a crítica à ineficiência da polícia
tem sua manifestação máxima na crença de sabor francamente mítico de que os Piriás
na verdade não morreram:
“Mesmo após a nota oficial da PM, diversas versões continuavam a circular entre a população:
fazendeiros teriam matado os Piriás, um deles teria recebido mais de trinta perfurações (a polícia
contradiz alegando que usou arriós [metralhadora] que espalha projéteis); que os dois irmãos
simplesmente foram emboscados sem chances de defesa (a polícia argumenta que eles se deslocaram
pelo menos uns 600 metros dentro da mata e que o objetivo era pegá-los vivos). quem não
acredite que eles estejam mortos (a PM fez fotos e colheu impressões digitais, contudo, embora eles
tenham sido presos algumas vezes, essas impressões não constam dos arquivos policiais)”.
303
Apesar de todo seu aparato, a polícia não teria conseguido capturá-los, o que, em
última análise, significa dizer que a polícia não conseguiu “restaurar” seu prestígio. De
certa forma, mesmo nas versões em que os interlocutores admitem que Orlando e Sebastião
morreram, a “honra” da polícia parece definitivamente maculada: a morte dos Piriás só teria
acontecido à custa de traição.
Encontraram um “posseiro”
Que lhes mostrou o caminho.
301
“Em quase todas as preleções para os soldados, o tenente-coronel [Vicente Rodrigues] e o capitão [José
Ivo] têm repetido que deve ser ‘feito o possível e o impossível para que os Piriás sejam capturados vivos’. Por
isso, a Polícia Militar modificou, há cerca de um mês, a maneira de conduzir as buscas procurando evitar um
choque direto com os irmãos”. A Notícia, 16/09/1978.
302
No comunicado oficial da morte dos Piriás, o Coronel responsável pela operação, depois de afirmar
“tiramos uma pedra do sapato”, lamenta o desfecho do caso: “Lamentamos muito. s que abominamos a
violência, não admitimos que a vida humana (...) sucumba ante o julgamento das armas. Mas, diante do
inevitável, quedaram-se. Nós os queríamos vivos, para que pudessem confessar as atrocidades que praticaram,
na longa senha de crime que trilharam (...)”. E explica que, tendo sido a voz de prisão respondida com tiros,
não restou alternativa para os oito homens que cercavam os Piriás. Cf. Nota Oficial de 26/12/1978, divulgada
pelo Diário da Tarde (27/12/1978). Ver também Estado de Minas (27/12/1978).
303
A Gazeta, 30/12/1978.
224
Falou com ar sombranceiro
E até com certo carinho:
- Segue a linha da Central
Que na serra do Cabral
A estrada é sem espinho.
Os versos do cordel de Evangelista & Carvalho (1979:37) repetem os termos da
lenda. Os Piriás seguem o conselho de um agente disfarçado, caindo na emboscada armada
pela polícia.
304
Nas lendas fala-se de “tocaia”, “traição”. A estratégia usada pela polícia é
considerada “covarde”, tanto porque os Piriás teriam sido induzidos ao erro por um
“paisano”, quanto porque se acredita que um deles estava ferido, o que teria facilitado a
ação da polícia.
305
Também se especula com relação à forma como eles foram mortos. Muita gente
deduz do fato de a polícia não ter apresentado os corpos que os Piriás teriam “virado
peneira”.
“Dizem que atiraram tanto que um pedaço de gengiva soltou. O Piriá caiu e o dente ficou preso no
toco. Um policial que estava lá achou e pegou o dente do Piriá e fez pingente. Anda com ele
pendurado no pescoço pra ganhá admiração, fama. Que nada. Fala que foi de Piriá pra ganhá
admiração e fama. Porque morrer, eles não morreram não.”
306
Milunga, informante de Francisco Timóteo que teria testemunhado o cerco final aos
Piriás, também se disse impressionado com a quantidade de tiros que alvejaram os dois
irmãos. Timóteo (2002:105-106) registrou assim, em sua novela, as palavras de Milunga:
“Os policiais não deixaram a gente chegar perto dos dois Piriá. Sendo que eles levaram um e
puseram deitados um do lado do outro. Depois da levada deles embora, para Beltrão, eu fui ver o
tanto de ramo cortado e tronco de pau refurado pela saraivada das balas. Uma coisa medonha! Ali, no
304
Em várias reportagens, o termo técnico cerco é substituído pela palavra tocaia. Cf. Estado de Minas
(27/12/1978).
305
“Seguindo a pista, os militares ficaram sabendo que eles haviam roubado a 20 quilômetros do local do
tiroteio, em Barra do Lavado. Isso permitiu deduzir o possível trajeto da dupla e os oito policiais montaram
uma tocaia, para esperar. Os dois apareceram por volta das cinco horas da manhã do dia de Natal. O major
fala que gritou que eles se entregassem, recebendo tiros como resposta”. A Gazeta (30/12/1978) [grifo meu].
306
Momento narrativo registrado em 20/12/2007, em Mariana. O interlocutor é P.V., 60 anos, aposentada.
Forma de registro: anotação.
225
chão ensangüentado, eu achei um pedaço de gengiva com um dente. Encobri com terra e pus, no
lugar uma cruzinha que eu mesmo fiz. Aquilo merece respeito. É um pedaço de gente. É o modo
como eu penso!”
Um outro informante acredita, com base no que lhe teria dito um soldado, que
Caolho fora cravejado de balas.
“Diz que ele fincou o facão no chão duro e ficou rodando, uivando e rodando como um bicho, como
um lobo. Que ele gritava e uivava. E tomando tiro, tomando tiro. Aque ele ajoelhou. Batia o facão
no chão. Tinha cascalho e saía faísca que ele fazia batendo o facão. Até que caiu morto dentro do
círculo que tinha feito no chão com o facão.”
307
Toda a (re)ação da polícia é duramente avaliada nas lendas: ela é tida como
desonrosa e ineficiente. Descrevendo as ações da polícia nesses termos, nela os
interlocutores censuram a não observância dos códigos e princípios que deveriam ditar o
comportamento da instituição. O código moral com o qual os interlocutores da lenda se
identificam realça valores como coragem, eficiência, disposição para o cumprimento do
trabalho e, claro, justiça.
Em momento algum as ações da polícia encontram apoio por parte daqueles que
narram as lendas. Além disso, toda a narrativa é construída de forma a enfatizar que a
polícia não teria interesse no julgamento dos dois, pelo simples fato de que não haveria o
que ser julgado. O princípio moral que rege a lenda é o de que os Piriás foram vítimas da
polícia e de que justamente a polícia teria interesse em fazer deles criminosos.
Os Piriás não sofreram qualquer condenação pública. Pelo contrário. Pelas matérias
dos jornais, em especial quando a palavra é dada à polícia, vê-se o quanto ela se esforça por
iniciar um processo de linchamento moral dos Piriás, ignorando sua condição de simples
suspeitos e falando deles como criminosos.
308
Ali, os Piriás são apresentados como ameaça
307
Entrevista com C. D. em Sete Lagoas, 30/03/2005. Esta cena pode também consta no cordel sobre os Piriás
(Evangelista & Carvalho, 1979:38).
308
O sentenciamento, a punição de jura tem função dupla: pode promover a dissuasão ritual quanto ao crime
além de fomentar a coesão normativa necessária ao funcionamento eficiente do sistema legal. Portanto, seria a
única maneira de a polícia restaurar sua honra, deixando que o sistema legal “provasse” que os Piriás eram
mesmo bandidos. Apelar para o recurso do linchamento moral não se revelou uma boa estratégia. Primeiro
porque o linchamento moral depende de um consenso pré-verbal (valorativo) quanto à culpa do “acusado”, o
226
à segurança da elite e da autoridade pública; eles são verdadeiros agentes da desordem.
Fala-se de sua suposta predisposição ao desvio e de suas ações como resultado de uma
falha em termos de controle social. Em seu discurso, a polícia se reconhece, e afirma-se
como instrumento da ordem social responsável pelo controle desses impulsos.
* * *
Sabe-se que a polícia constitui uma verdadeira cultura própria, capaz de induzir os
seus membros a focarem suas convicções emocionais sobre os fins que a instituição se
destina, bem como sobre os métodos por ela prescritos. Essa aderência à conduta-padrão é
um valor central para ela. Para o público externo, a ênfase é dada formalmente às práticas
institucionalizadas. O que tende a produzir uma grande diferença entre discurso oficial e
privado sobre as atividades policiais.
309
Nas minhas conversas com os policiais que participaram da caçada aos Piriás pode-
se verificar como objetivos pessoais são canalizados institucionalmente, a ponto de a
experiência individual ser estimada em termos da atividade profissional e de seus
resultados. Neste sentido, se a luta dos Piriás é por reconhecimento, a luta da polícia
também o é, mas nos termos estabelecidos pela própria instituição. Não devemos
desconsiderar que os policiais na caçada aos Piriás respondem às pressões de sua própria
situação: depois de falhar em seu papel fundamental, só resta à polícia “dar fim” ao
problema.
Tudo passa a ser definido como “questão de honra”, encarnada na figura de um
policial específico, o Sargento José do Rosário, a segunda vítima dos irmãos Piriás. Depois
da morte de seu amigo Santos de Paula, o sargento teria jurado capturar os “meliantes”,
passando a investigar por conta própria o paradeiro dos dois.
“Em abril passado, eles [os Piriás] foram surpreendidos por um lavrador na localidade de Paredão e o
feriram a tiros, fugindo em seguida. Soldados da Cia. foram deslocados para a área e o soldado
que seria impossível no caso dos Piriás. Segundo, porque o linchamento moral o serve à dissuasão ritual
quanto à condição de criminoso, nem diz respeito à coesão normativa.
309
Essa diferença entre discurso oficial e privado sobre as atividades policiais perturbou e muito a produção
de um filme como “Tropa de Elite”; uma narrativa em primeira pessoa onde o Capitão Nascimento, viciado
pela tensão de alcançar objetivos, é o resultado da tentativa forçada de fusão entre os fins do indivíduo e os
fins da instituição.
227
Santos de Paula, que havia aproximado mais do esconderijo dos irmãos, foi morto a tiros, de tocaia.
Os Piriás levaram seu revólver e munição. Isto aconteceu no dia 21 de abril. Dezenas de policiais
vasculharam o local e as vizinhanças por vários dias, sem encontrar pistas. Depois disso, o sargento
José Rosário passou a chefiar grupos de homens a paisana, que se deslocavam para os lugares onde
se dizia que os Piriás tinham sido vistos. Com a determinação de prender os assassinos de seu amigo,
o sargento José Rosário foi morto com um tiro na testa dia 5 de agosto, juntamente com o soldado
José Roberto Sétimo. Na emboscada, também ficou ferido o soldado Gastão. O fato causou comoção
e mais de cinco mil pessoas se aglomeraram nas imediações do quartel da 3ª. Cia PM, à saída dos
corpos para o enterro.
310
Para justificar as ações dos policiais, o que esse tipo de narrativa destaca no seu
próprio código moral também é a honra.
311
O processo de mitificação posto em marcha três
décadas atrás não mostras de ter perdido sua força. Mesmo quando descritas a partir do
ponto de vista policial, as narrativas sobre os Piriás também ganham contornos de mito: os
Piriás mataram o primeiro policial no dia 21 de abril de 1978, dia de Tiradentes, patrono da
polícia militar de Minas Gerais.
Não quero aqui reduzir os crimes dos Piriás contra policiais a um simples jogo de
identidades espelhadas. Mas é necessário dizer que aquilo que poderíamos chamar de saga
da polícia é algo totalmente distinto do que temos chamado até agora de lenda dos Piriás.
A partir da insistência dos interlocutores no fato de que a polícia estava se
mostrando incapaz de realizar seu trabalho, pode-se afirmar que esses mesmos
interlocutores participaram, narrando lendas, do momento de revisão dos critérios de ação
policial que marca o período que antecede a abertura política. Mas em vez de exigir dessa
polícia a adequação a um contexto de redemocratização, de defesa dos Direitos Humanos e
das liberdades civis, o que a lenda sugere é outra coisa.
Foram inúmeros e sérios os problemas de reforma e reenquadramento institucional
da polícia nesse período da história brasileira recente. Um processo que exigiu o
reaparelhamento, ainda que tímido, do sistema de justiça criminal e reforma da legislação
penal.
A reforma do sistema de segurança pública iniciou-se em meados dos anos 1970, a
partir dos debates sobre a violência e o crime no Brasil. A Esquerda, bem como os
310
A Gazeta (30/12/1978).
311
Observe-se que também a polícia afirma ter sido vítima de técnicas de luta desonrosas.
228
defensores dos direitos humanos, conseguiram dar visibilidade à violência policial e o tema
ganhou foro público durante a transição para a democracia (Adorno, 2002:107-108).
Contudo, e paradoxalmente, uma das conseqüências desse debate foi, a rigor, uma
distorção: a idéia de que os direitos humanos foram indevidamente estendido àqueles
supostamente destituídos de qualquer traço de humanidade: os “bandidos”.
312
Todo o
esforço de reforma da polícia chocou-se com o apoio do senso comum referente à aplicação
de medidas extrajudiciais no que se refere ao combate à violência. Um senso comum
segundo o qual o infrator é percebido como pessoa destituída de direitos e até mesmo de
humanidade razão pela qual pode ser eventualmente eliminado sem julgamento. Segundo
este raciocínio, a relação entre violência e eficácia policial é íntima e insuperável; e a lei
pode – e deve, sempre que necessário – ser substituída pelo arbítrio.
Num contexto assim, em que não se dá o pleno reconhecimento do outro, o conceito
de proteção dos direitos da pessoa é potencialmente interpretado como um estorvo para a
ação policial, de tal maneira que se instala um conflito entre a concepção jurídica e a
concepção popular de justiça.
313
A noção de direitos humanos passa a ser interpretada como
chanceladora de práticas criminosas, como demonstra a fala de um interlocutor com quem
conversei. Propositadamente, fiz menção à “época do Cabo Madureira”. O artifício
funcionou.
314
“O que complica a ação da polícia hoje é o tal dos direitos humanos. Na época do Cabo Madureira,
policial trabalhava bem. Não andô na linha não, ia pará dentro de uma grota ou da cisterna, porque
não tinha esse negócio de direito pra bandido não.”
315
312
Para uma antropologia do fenômeno da desumanidade, ver o perturbador ensaio de Plessner (2000:198-
208) intitulado “A barbárie” (Unmenschlichkeit).
313
Um bom exemplo do reforço dessa diferença entre direito oficial e concepção popular de justiça são reality
shows como o Programa do Ratinho, onde o apresentador insiste em reforçar a idéia de que é impossível
eficiência na ação policial caso a polícia tenha de observar os Direitos Humanos. A associação entre violência
e contenção do crime é reforçada em todos os programas através de frases como esta: “No Paraná, é cacete
em bandido! A polícia mata! Não tem conserto! (...) Nós temos que proteger o trabalhador”. Riccio (2003:93).
Note que a frase também reforça aquela distinção entre trabalhador e bandido à qual havíamos nos referido
anteriormente.
314
A conversa aconteceu numa banca de jornais em Sete Lagoas (08/07/2007). Não tive como identificar o
informante. Anotei a frase depois que ele se retirou.
315
Um raciocínio confirmado pelo próprio Cabo Madureira: “Muita gente em Sete Lagoas manifesta a minha
falta. (...) Os direitos humanos tirou a força toda da polícia pra trabalhar. Graças a Deus, foi depois que eu me
aposentei [04/09/78] que isso saiu. Mas hoje em dia o policial não tem força pra trabalhar. Não tem
autonomia. Por isso os direitos humanos tinha que acabar pra bandido. É o meu pensamento.” Entrevista em
Sete Lagoas (04/01/2007).
229
O bandido é aquele que não é trabalhador. E a vida do trabalhador não tem o mesmo
valor e significado da vida do bandido, do preguiçoso, do malandro. A polícia erra
quando não consegue distinguir um do outro. Assim, nas lendas sobre os Piriás, toda a
desconfiança no desempenho da polícia é traduzida em termos de sua incapacidade em
identificar os critérios considerados legítimos (porque socialmente pactuados e
compartilhados) de julgamento das contendas sociais que envolvam essas duas figuras
opostas: trabalhador e bandido. Para a maioria, os Piriás pertenciam à primeira categoria,
não à segunda.
4.3. Bandidos-sociais?
É sempre um espetáculo o que produz o homem que luta contra as idéias correntes.
Vem daí, ao menos em parte, o fascínio pelos irmãos Piriás e por sua luta contra a polícia.
Uma luta por reconhecimento social que, em outras narrativas, passa a ser tomada como
luta pela dignidade de todos os espoliados, todos os injustiçados.
“Os Piriás ganham a admiração das populações pobres da região, que também são vítimas constantes
da arbitrariedade policial e dos grandes fazendeiros. O povo os ajudava nas fugas e nas lutas contra a
polícia, dando-lhes alimentos, munição e avisando da proximidade dos comandos que os caçava.
Viraram uma lenda, personagens de histórias incríveis, uma espécie de ‘Lampiões’ mineiros.
316
Como no caso do cordel Os irmãos Piriás: uma guerra no sertão, onde os Piriás
passam por uma leitura abertamente ideologizada, bem ao gosto das esquerdas:
“Mas quem é Piriá? (...) é lavrador sem terra, salário de fome, a enxada na mão e a estrada na frente.
O suor do rosto depositando moeda nos cofres dos patrões. E o pouco que lhe resta um radinho pra
alegrar – ainda bate suspeita. A polícia vem saber – e pobre não tem vez. Maus tratos, humilhação.
O lavrador um dia cansa: de andar em desatino, buscando o pouco sustento, e de ser perseguido por
aquilo que não fez... E resiste à injustiça. De arma na mão, agora é cangaceiro sem bando: lutando
316
Estado de Minas (01/01/1979).
230
contra a polícia, lutando contra o patrão. Agora é Piriá. E se morre um aqui, renascem mil
adiante.”
317
Vê-se como a luta solitária e, poderíamos mesmo dizer, pré-política dos Piriás
“evolui” para a forma coletiva de protesto social nessas narrativas que, como o cordel,
insistem em uma solidariedade quase natural dos dois “bandidos” com a massa rural.
Bandidos? Estaríamos diante de um caso exemplar de “banditismo social”?
Antes de respondermos a essa pergunta é preciso levantar quais são os elementos
recorrentes do banditismo segundo o modelo de Hobsbawm, mas sem descuidarmos da
necessidade de enfatizar a dimensão antropológica do conceito mesmo de “bandido social”.
Eric Hobsbawm (1974, 1976) criou o que poderia ser chamado de lenda do bandido social:
o modelo de análise privilegiado de sua História Social.
318
Sob sua pena, o banditismo
social foi caracterizado como forma pré-política de resistência camponesa. O bandido
social encontraria na desintegração dos valores tradicionais da comunidade sua condição de
possibilidade. Do ponto de vista moral, constituiria um modelo de virtude para o próprio
homem urbano.
É defendendo sua honra que o bandido social, como tipo desenhado por Hobsbawm,
se torna personagem mediador entre o mundo rural e o mundo urbano, entre os valores da
tradição e os valores da modernidade. De maneira que um bandido social não se envolve no
mundo por acidente: antes, ele reage à injustiça e à opressão que encontra no mundo,
sobretudo onde as instituições reguladoras de conflitos falham ou inexistem. De forma que
o banditismo social facilmente “evolui”, na teoria de Hobsbawm, para um movimento
coletivo enquanto forma de expressão de descontentamento com as estruturas de poder.
Mas voltemos à questão: as lendas sobre os Piriás seriam lendas que tratam de
bandidos sociais? Penso que não, e por rios motivos. Nas lendas não são privilegiadas
formas coletivas de ação, mas práticas individuais. Embora o caso particular dos Piriás seja
transformado em exemplo constituindo uma Tipik e extraia todo seu fascínio de um
acontecimento realmente vivido, os interlocutores das lendas não entendem que os Piriás
foram atacados como membros de uma classe social específica. Nas lendas, Orlando e
Sebastião não aparecem como “representantes” de um coletivo. É a ação dos dois irmãos
317
Evangelista & Carvalho (1979:3-4).
318
Sobre a “invenção do badido social”, ver Ferreras (2003).
231
enquanto indivíduos que interessa ali, não sua condição de homens que lutam pela melhoria
das condições de vida dos homens do campo.
Pode-se caracterizar os Piriás como tipos rurais revoltados, e sua ação a partir de
um tipo social arquetípico, como aliás fez o advogado Sílvio Batista Pereira em entrevista
ao Estado de Minas:
“(...) na minha opinião eles são vítimas da violência. Digo isso, mas também não se justificam os
crimes (morte dos PMs) que eles praticaram. Os Piriás partiram para este tipo de agressão em
conseqüência de outras agressões que sofreram. Eles são vítimas de uma situação de injustiça e de
ignorância de nosso meio rural. Eles não são maus”.
319
Percebe-se que, em falas assim, os Piriás são descritos como uma espécie de
rebeldes de ocasião. Uma descrição que segue os termos do ideário do bom rebelde” do
imaginário popular, o bandido contra a própria vontade. Contudo, como já demonstramos, a
lenda não define o caráter do homem do campo em oposição ao homem moderno. Os Piriás
personagens das lendas não são pessoas identificadas com valores patriarcais tradicionais.
Ver nos Piriás bandidos sociais significaria ceder à hipervalorização, feita por Hobsbawm,
da oposição entre elite rural” e bandido”, esquecendo que a relação entre Piriás e
fazendeiros é infinitamente mais complexa. Não se devem ignorar as versões que insistem
que os dois irmãos foram ajudados por fazendeiros.
320
Embora os Piriás gozem da condição de invisibilidade e invencibilidade dos nobres
bandidos de Hobsbawm, embora se encaixem na categoria de “bandidos vingadores”,
embora seus valores sejam os mesmos do bandido social, não estamos diante do mito do
social rebel. Apesar de tomarmos as lendas dos irmãos Piriás como base de nosso
argumento, tal qual Hobsbawm, que partiu das narrativas populares para criar seu modelo,
nosso interesse são as implicações sociais e culturais do caso, não o mito em si. E o caso
dos Piriás nos revela uma outra lógica.
319
Estado de Minas (24/09/1978).
320
“Far from being class enemies of the elite, major Latin American bandits worked for and with the rural
oligarchy and even with governamental officials.” (Slatta, 1987:192). Neste sentido, Hobsbawm faz uma
avaliação excessivamente “positiva” do fenômeno, o que levou à romantização da figura do bandido social
por parte de pesquisadores mais engajados.
232
Nas lendas, os Piriás não são bandidos. São trabalhadores. E aqui, não é exagero
nenhum afirmar que o trabalho salva o homem do crime. Como bandidos, os dois não
teriam direito algum. Como trabalhadores, possuem todos os direitos. Esta é a condição que
faz com que a situação vivida por eles, nas lendas, seja interpretada como uma espécie de
ilegalidade forçada e não merecida, que, como trabalhadores, os irmãos preencheriam
todas as expectativas morais dos que preservam sua memória.
Na verdade, nenhum ato dos Piriás é considerado como caso de delinqüência, crime
ou imoralidade. Pelo contrário! Se matam policiais é por legítima defesa ou defesa da
honra. Se roubam é por necessidade de sobrevivência (“pra comer”) e porque, perseguidos
pela polícia, são impedidos de trabalhar.
As lendas são uma prova de que a idéia de legalidade é uma construção cotidiana e
de que o desvio não é qualidade do ato, mas conseqüência das respostas dos outros
indivíduos ao ato de uma pessoa. Os interlocutores da lenda apresentam justificativas para
todas as ações dos Piriás. E as justificativas para os “desvios de conduta” desses dois
personagens se baseiam em critérios outros, para além daqueles definidos pelo sistema
legal. O que a norma jurídica considera um comportamento desajustado, o senso comum
(que orienta a lenda) pode considerar ajustado.
Um exemplo do que estou afirmando diz respeito à maneira como os interlocutores
da lenda definem um ato violento. Nas lendas, a violência dos Piriás expressa uma
habilidade elogiável. a violência da polícia contra eles é vista como uma ofensa punível.
A violência dos Piriás é uma mera reação. A da polícia, arbitrariedade.
321
O “crime” dos
Piriás goza de benefícios intangíveis tais como o reconhecimento, a honra, a satisfação do
senso pessoal de justiça enfim, a aprovação dos interlocutores da lenda. O “crime” da
polícia implica em perdas para a instituição, já que todas as suas ações são entendidas
como algo que perturba acordos tácitos e regras morais que deveriam ordenar as relações
sociais.
As ações dos Piriás podem ser passíveis de sanções legais, mas não morais. A
legitimidade das mesmas é definida a partir de outros parâmetros: é nas lendas que são
321
No que diz respeito às lendas, o primeiro ato de violência da polícia prender ilegalmente os irmãos
trabalhadores e mesmo “judidar” deles parece ser interpretado como um alerta: os “fracos” (Piriás) não
devem esquecer quem manda”. o segundo ato de violência da polícia matar os dois irmaõs parece
significar outra coisa: os “fortes” (Piriás) devem ser eliminados antes que se tornem fortes demais.
233
determinadas as razões plausíveis para que eles continuem o que começaram. Os Piriás
(não a polícia) são os sujeitos morais e gramaticais dessas narrativas. Por isso eles não
morrem em tantas dessas histórias. Vivos, eles continuam conferindo eficácia aos valores
que representam. Vivos, a autoridade moral dos Piriás se sobrepõe à autoridade da polícia.
234
5. NARR-AÇÃO
Estive falando da narração das lendas como um processo de reflexão discursiva
capaz de promover a convergência de compreensões e valores entre aqueles que se
encontram engajados no ato comunicativo. Portanto, não é absurdo afirmar que a narração
das lendas promove consenso social. Nos termos que Malinowski usou para sua análise do
efeito criativo do discurso, podemos afirmar que as lendas são histórias que mobilizam a
opinião pública frente a um tipo de prática ou conduta, fazem explodir o “escândalo” e
geram sentimentos necessários para que as pessoas prossigam em seus papéis sociais.
322
Convertem relações vividas em categorias deslocáveis, transportáveis. São operações
analíticas no sentido que conferem (no duplo sentido da palavra) significados, reificando
alguns em detrimento de outros.
Nesse sentido, as lendas sobre os Irmãos Piriás não refletem necessariamente a
ordem social. Na verdade elas são transformações da ordem à qual se referem. Elas revelam
a existência de um lastro valorativo ideal, aquele que permite a articulação, reflexividade e
consciência das contradições no funcionamento das instituições para as quais os
interlocutores direcionam sua atenção. Formam um contexto moral explícito, articulado,
que se contrapõe à lógica que governa as práticas cotidianas. Constituem ato de
comun(ic)ação onde os interlocutores trabalham pela legitimidade de uma hierarquia de
valores específica.
Assim, a lenda, enquanto instância alternativa de produção de sentido, é um
comentário sobre o cenário social do qual faz parte, tanto quanto é uma forma de
intervenção nesse cenário, graças ao seu poder de convencimento como articulação da
hierarquia valorativa que perpassa a vida cotidiana. Como a lenda ancora essas idéias
valorativas, narrar essas histórias é uma forma de participar do processo de maturação de
uma ordem moral, onde a visão de mundo “popular” se esforça por permear as práticas
sociais. E a lenda o faz a partir do momento que fornece uma linguagem possível para o
processo de abstração e generalização das funções das intituições sociais em especial, a
polícia definidas a partir de uma axiologia embasada no valor do trabalho como pré-
condição da cidadania e base do reconhecimento social.
322
Apud Becker (1982:61).
235
De forma que a função da lenda não é meramente simbólica. É prática. Ela colabora
efetivamente na formação da visão de mundo dos interlocutores. Por meio dela, idéias
podem tornar-se eficazes a partir do momento que logram tomar os corações daqueles que
participam dos momentos narrativos. Nos termos de Augé (1997:110), a narração dessas
lendas poderia ser identificada como uma espécie de “dispositivo ritual ampliado” que
“visa, se não a mudar o estado das forças sociais, pelo menos a fazer evoluir os
sentimentos, as associações, o estado de espírito de alguns, a persuadir afetivamente e a
convencer intelectualmente, em suma, a movimentar o que, em termos estatísticos, chama-
se de ‘o estado da opinião pública’”.
Mas, priorizando o rito voltamos ao pragmatismo? Significaria isto um pecado
teórico grave, e pior, um apelo às famosas “razões do coração” e tudo mais? Mas como
ignorar, no meu caso, a experiência que encontra na narração sua condição de
possibilidade?
As lendas sobre os Piriás constituem um mecanismo de enfoque ritual, já que
ajudam a selecionar experiências sobre as quais os interlocutores “devem” concentrar sua
atenção. De maneira que a lenda formula experiência; uma experiência de valores. Valores
que, por sua vez, suscitam envolvimento emocional de cada interlocutor. Em especial o
valor do trabalhador como ethos, como objetivo da vida pessoal daqueles dois irmãos. Ao
narrar as histórias sobre esses dois, o que se é a co-experiência do conjunto de valores
que orienta a ação dos Piriás.
Através das lendas, os interlocutores vivem uma relação com o evento. Dessa
relação qualitativamente especial e excepcional resulta o contato com os valores que ali são
explicitados, que balizam moralmente todas as ações. O reconto das lendas, por isso
mesmo, constitui assim um reforço constante de um todo mutuamente inteligível. Trata-se
de re-produção valorativa de um conjunto articulado de normas e valores. Uma verdadeira
moral social.
Não devemos, contudo, falar de lenda como se ela fosse uma “entidade”, reificando-
a. A lenda enquanto realidade histórica simbolizada, um código condicionado ao
aferimento de vantagens simbólicas, não é capaz de fazer nada por si. Quem faz são os
interlocutores; o que interessa é a narr-ação. A comunicação de uma lenda de Piriá, em si, é
o acontecimento que merece análise, porque é, desde o início, fundada em avaliações
236
morais. Mais que uma tentativa de reconstrução de um evento por meio de um modelo de
narrativa, o que identificamos no momento de narração dessas lendas é uma possibilidade
de tematização de um acontecimento social muito específico, um processo de identificação
moral.
O que não quer dizer que acreditamos que a narração dessas lendas per se seja capaz
de redefinir normas de conduta, limites do status e poder policial a nível local. Não falamos
das lendas sobre os Piriás como mito e sua função de “mapa para a ação”, como quis Lévi-
Strauss. Nem concordamos nesse ponto com Linda Dégh, para quem a função precípua da
lenda contemporânea é explicar o extra-cotidiano com base no sistema religioso que orienta
os interlocutores.
323
Creio que são várias as funções dessas narrativas que, além de
configurarem problemas sociais projetados em formas expressivas, tais histórias têm uma
função moral inegável. É a partir dessa função moral que se podem derivar outras, como a
função lúdica, por exemplo. Não raro, as pessoas se divertem contando essas histórias. Para
elas é divertido saber que alguém acredita no que é narrado. É divertido testar essa
“crença”.
Vejamos um outro exemplo. Diversas vezes ouvi as pessoas contarem o caso do
Menino de três olhos, simplesmente pelo prazer de criticar a “ignorância” e “atraso” do
povo de Sete Lagoas.
324
Saber que alguém acredita no fato de que tenha realmente nascido
um menino de três olhos o deixa de ser uma experiência, se não divertida, no mínimo
inusitada.
325
Outro exemplo de narração de lenda contemporânea no contexto sete-lagoano,
também marcada por essa função lúdica, são os casos de Repórter, ex-prefeito da cidade
de Santana de Pirapama, famoso por sua “burrice”.
326
Na pessoa de Repórter, o que se
323
Todo o seu magnum opus (Dégh, 2001) está fundamentado nesta premissa profundamente inspirada em
estudiosos da religião como Mircea Eliade e Lauri Honko, que valorizam a função cognitiva do mito.
324
“Uma história dessas só podia ter surgido em Sete Lagoas, mesmo. Êta povinho capiau!” (Arquivo pessoal.
K.L, 21 anos, balconista). “Lá em Diamantina o pessoal fica debochando de mim por causa dessa história.
Meus amigos contam e ficam morrendo de rir, dizendo: Eh, Ju, podia ser de Sete Lagoas!”. Arquivo
pessoal. J.V., 24 anos, estudante de fisioterapia).
325
Narrei a história para uma conhecida (V.R., 46 anos, moradora do distrito de Padre Viegas, Mariana -
MG). Depois de ouvir tudo atentamente, ela argumentou o que lhe pareceu a coisa mais óbvia do mundo:
“Mas o que fizeram com o corpo do menino? Os médicos deveriam ter feito uma exumação. Se não fizeram é
porque tiveram a intenção de abafar o caso. Muito estranho!” (Mariana, 28/10/2006).
326
“Zé Repórter foi aos Estados Unidos receber uma ajuda do governo americano para a construção de um
hospital. Ao chegar, leu numa faixa ‘Welcome, Reporter!’. O prefeito achou aquilo estranho, mas não
demorou a dar o troco. Assim que a delegação americana veio a Pirapama para conferir a obra, foi recebida
237
critica é a elite política, sua incompetência, sua rusticidade. Uma crítica que vem em forma
de riso.
O humor como oportunidade de exercício de reflexividade também acontece no
caso da narração de uma lenda sobre os Piriás quando a história descamba em deboche
explícito da polícia. Geralmente, isso se no final da interação comunicativa, quando
todos se sentem mais seguros quanto às “regras” que determinam o contexto de narração. É
o momento dos comentários abertos sobre as condutas analisadas nas lendas, com um
especial destaque para a inadequação do comportamento da polícia. Quando o caráter
dialógico da reconstrução do acontecimento parece mais forte e evidente, liberando os
participantes para o riso e seu poder de reflexividade.
Mas a intenção dos interlocutores não se limita ao fazer rir. Para muitas dessas
pessoas é o drama dos Piriás que realmente importa, sua luta. E, nesse caso, não há nada de
divertido na narração. Quando a lenda é mais que fonte de divertimento, os fatos do
conflito aparecem ampliados, indicando outras dimensões da realidade. O foco dos
interlocutores se desloca para as ações dos Piriás. Elas são ampliadas e incrementadas no
que diz respeito à sua eficácia; são traduzidas como reação social à polícia. Mais que um
caso isolado, trata-se de uma manifestação de um Charaktertypus em seu potencial de
generalização e intenção inclusive de promover um comportamento imitativo.
O que não nos autoriza a dizer que as lendas providenciam modelos de
comportamento. Pensar nesses termos seria ceder a um idealismo convencido da
possibilidade de reação social, que a lenda seria capaz de operar, por meio de uma
desmistificação do poder policial. Não é este o caso. Na verdade, nenhum dos
interlocutores da lenda expressa o desejo de “sujar as mãos” na luta real. E embora as
lendas contribuam levantando o debate sobre as práticas policiais, a sua mera narração não
é capaz de minar a “tolerância” para com a violência policial como algo que eventualmente
pode ser mobilizado conforme a demanda da situação específica, do contexto social, etc. A
lenda não é capaz de limitar (ainda que simbolicamente) a arbitrariedade do poder policial.
O que a narração das lendas permite é a restituição da “presença” dos Piriás. Como
dissemos, trata-se de uma prática de anamnese por meio de narrativas, onde cada reconto
por Repórter, que disse ao microfone: Wel come Repórter, mas Repórter come Wel também!’. Os
americanos ficaram sem entender nada. Repórter era mesmo uma figura.” (V.R., 35 anos, mecânico,
registro por anotação. Sete Lagoas, 10/05/2005).
238
reativa uma totalidade de sentido, ou seja, uma memória de um passado capaz de conferir
algum sentido ao presente. A cada narração, os Piriás “apresentam” os valores que eles
encarnam enquanto personagens, e promovem a reflexão quanto à legitimidade e eficácia
desses valores: não somente no passado, mas principalmente no presente. As lendas
povoam o mundo da vida com personagens de significação moral. Transporta-os para o
“aqui e agora” da experiência dos interlocutores direcionando o foco de sua atenção
cognitiva e emocional, provocando uma espécie de tensão da consciência no que tange aos
valores que regem às formas de interação social. São os valores que orientam a forma de
aproximação do evento Piriás. Portanto, são os valores que orientam a narr-ação de suas
lendas.
A narr-ação dessas histórias, por isso mesmo, é possível entre pessoas que têm
uma base comum de valores, que os personagens das lendas incorporam uma hierarquia
valorativa e permitem a tipificação de formas de interação social.
327
Nas lendas, as
experiências biográficas dos Piriás são reunidas em uma ordem geral de significado, que
pode, então, na forma de narrativas, servir à instrução moral daqueles que participam do
momento narrativo. À medida que a narr-ação difunde a “experiência” dos Piriás,
promove-se uma sintonia entre as intenções subjetivas desses interlocutores; uma
aproximação intersubjetiva em relação a uma dada ordem moral.
Os Piriás representam uma ordem de ação que tem balizamento moral (como
qualquer outra atividade social). Esta forma de ação está relacionada à compreensão da
importância do trabalho para a dignidade do homem, como dissemos. Nas lendas, a
categoria trabalhador enquanto valor traduz um “dever ser”, possui um caráter ideal que
pede realização em termos sociais. Uma realização que, no mundo da lenda, depende da
experiência desses valores segundo a hierarquia estabelecida na narrativa.
A dependência da narr-ação quanto a essa sincronia de experiências de ordem
valorativa entretanto não permite que falemos em termos de comunidade narrativa como
um grupo delimitado, uma little community como quintessência de nossa investigação
antropológica. Não cairemos na “tentação da totalidade” da qual nos fala Augé (1994:47).
Primeiro porque trata-se de uma comunidade narrativa que não se submete aos critérios de
327
As lendas constituiriam portanto “esquemas tipificadores”, que permitiriam a apreensão dos Piriás e todos
os “outros” como tipos em meio situações entendidas como típicas. Cf. Berger & Luckmann (1993:49).
239
espacialização comumente utilizados para a definição de seus limites. Não uma ordem
espacial restritiva e evidente que concentre em si todos aqueles que narram coisas sobre os
Piriás. Por isso, não tenho como relacionar aqueles com os quais tive a oportunidade de
interagir a uma paisagem específica. Eles se localizam, na verdade, em uma multiplicidade
de espaços, de forma que se fronteiras para a comunidade narrativa, essas fronteiras são
flutuantes. Embora as lendas contenham um caráter local, determinado pela qualidade
imediata e circunscrita dos feitos dos Piriás, a identificação dos interlocutores acontece
no decorrer dos momentos narrativos. É na ação comunicativa que as pessoas se encontram
e se re-conhecem como membros de um grupo social individualizado pela axiologia que a
narr-ação das lendas estabelece. Por isso, falamos de comunidade de comunicação
pessoas reunidas em um ato comunicativo onde se promove a experiência comum de
valores específicos em vez de “comunidade narrativa”, o termo preferido daquela
folclorística que identifica a Gemeinschaft como um mundo “outro”, “anterior”,
contaminado por um quê de arcaísmo. Até porque estamos falando de lendas
contemporâneas.
São vários os problemas de definição sociológica da comunidade de comunicação
com a qual decidimos trabalhar; um agrupamento que não coincide com classes sociais
específicas, nem se deixa delimitar por categorias como profissão, gênero ou de
pertencimento geográfico. Isso decorre do fato de que as lendas, enquanto maneira de
colocar sob o signo do discurso um evento histórico, pode ultrapassar várias dessas
categorias. As “leituras” que as pessoas fazem do caso Piriás surgem, sim, na família em
que elas foram criadas, nos lugares em que elas trabalham, nas instituições das quais elas
participam. Todavia, o evento comunicativo em si, que é o que nos interessa, é uma
estrutura de relações que pode perfeitamente ultrapassar esse tipo de circunscrição,
reunindo pessoas de “origens” diversas na narr-ação como experiência de valores.
E não estamos falando aqui de uma experiência via introspecção, que depende de
um estado meramente cognitivo. Amparada na antropologia filosófica de Max Scheler,
penso que, narrando as lendas dos Piriás, as pessoas possibilitam a si mesmas a vivência
240
dos valores expressos nas lendas. Uma vivência que ocorre à medida que os interlocutores
procedem ao “julgamento” das ações e condutas dos personagens.
328
Nesse sentido, narrar lendas sobre os Piriás significa, antes de tudo, mobilizar
emoções e, por meio delas, permitir que dados valores adquiram significado para a ão
prática. Por isso, a narr-ação se faz acionando normas e regras morais. O que não significa
que a narr-ação das lendas implique em simplesmente reforçar um grupo social. A
comunidade de comunicação, menos que uma totalidade indivisa e homogênea, é um fórum
no qual se erguem muitas vozes, onde lugar para a dissensão. Estamos longe daquela
“pulsão da unidade” de que nos fala Maffesoli (1984:29), num momento de inspiração
francamente durkheimiana.
Reiteramos que as lendas não constituem uma forma indireta de controle social, cuja
única função seria expressar a indignação moral dos atores da narr-ação ante a não-
observância de um ordenamento moral. Por mais que concordemos com Turner (1974: 156)
no entendimento dessas lendas como formas culturais capazes de incitar a ação e o
pensamento, atribuir a essas histórias a função de confirmar a validade de normas morais
seria uma redução bem ao gosto do funcionalismo. Subsumir a narração dessas lendas à
concepção teórica do controle social significaria entender a lenda como mecanismo de
estabilização de um grupo. Significaria reeditar a tese de Durkheim, segundo a qual o crime
seria capaz de provocar, por si, a indignação pública e a demanda por punição. Unida em
torno dessa demanda, a comunidade permitiria o fortalecimento da legitimidade de
determinadas regras, engendrando uma consciência social.
Nesse caso, a lenda não registraria apenas um Kodex moral, mas seria capaz de
determinar a validade das normas e valores morais específicos de um grupo determinado. O
objetivo da narração seria, assim, garantir a conformidade da “comunidade” àquelas
concepções morais consideradas válidas no contexto da lenda. Significaria partir do
pressuposto que os interlocutores se reconhecem como membros de uma unidade social,
cujo pertencimento deve ser reforçado por meio do ritual narrativo. A idéia seria a do grupo
como sistema a ser renovado e reforçado.
328
Para o conceito de “experiência moral” a partir da combinação de estados emocionais e cognitivos e para a
noção de valor como algo integrado à percepção e afetividade humana, cf. Murilo de Carvalho (2004:47-62).
241
A análise da narração da lenda como um ritual de restauração do equilíbrio moral e
ético de uma comunidade atingiria seu ponto alto na interpretação do ato de narração como
momento de liberação da agressividade contra a polícia e de solução, simbólica, para um
conflito de ordem estrutural entre indivíduos e instituições. A identidade e a coesão desse
grupo social formado por indivíduos movidos por um suposto sentimento de pertencimento
cuja fonte seria o reconhecimento de valores e concepções de mundo. Convenhamos que
trata-se de um “processo social” de difícil comprovação empírica.
Uma outra forma de análise, que em vez do grupo, privilegiasse o indivíduo agente,
tenderia a negar essa relação entre grupo social e lenda. É evidente que quem narra a lenda
é sempre o indivíduo, não a comunidade. O que nos força a concluir que o indivíduo narra
com um objetivo específico. Há quem diga que tal objetivo seria tão somente a troca
informações determinada exclusivamente pelo interesse dos participantes da narração.
Narrar essas histórias seria, a seguir tal raciocínio, apenas uma ação estratégica, com o
objetivo precípuo de fazer valer os interesses pessoais do narrador. Uma espécie de
information management no sentido que Goffman (1982) confere ao termo, onde quem
narra visaria simplesmente obter informações sobre o acontecido ou ainda lançar mão das
concepções valorativas e morais implícitas nas lendas para legitimar interesses pessoais ou
criar condições de interpretação que estejam de acordo com esses mesmos interesses. Sem
dúvida, nos aproximamos perigosamente do individualismo metodológico encarnado na
figura do narrador. E não é o que pretendemos. Não quisemos falar aqui da lenda
instrumentalizada como técnica que possibilita aos indivíduos adquirir informações e
distribuí-las segundo interesses próprios. Não identificamos como objetivo da narração a
elevação do status do narrador.
Nem a idéia da narração da lenda como controle social e mecanismo de preservação
de um grupo social, capaz de acionar normas e regras morais para reforçar a identidade de
um grupo. Nem a visão da narração da lenda como mero agenciamento de informação por
parte do narrador. No primeiro modelo, teríamos a teoria em função do grupo. No segundo,
ela serve ao indivíduo. O prejuízo decorrente da absolutização de um desses níveis é
enorme: termina-se por ignorar o fato de que na narração das lendas sobre os Piriás estamos
lidando com dimensões complementares. No que diz respeito ao grupo, que se
considerar a forma coletiva de composição das lendas, que tornam o momento narrativo
242
dessas histórias uma prática socialmente apreciada desde que coletivamente praticada. No
que tange à dimensão individual, trata-se de uma busca consciente de informações sobre o
evento e sobre a qualidade das ações que a lenda descreve.
329
Nosso objetivo nesta dissertação foi chamar a atenção para uma possibilidade de
análise da narração dessas lendas como processo de indexação e expressão de indignação
moral. Ao narrar uma lenda dos Piriás, os interlocutores especificam a legitimidade de
certos valores aplicando-os na análise de um caso específico. Trata-se, portanto, de um
procedimento hermenêutico em que valores são atualizados e expressos sob a forma de
indignação moral. Aqui, não é a vivência dos interlocutores que organiza a lenda enquanto
forma de expressão e valores. Antes, é durante a narração que a forma de experiência e
mesmo de vivência desses valores é organizada. A narração é, na verdade, uma
possibilidade de “reorganização da experiência”; o lugar onde sentidos de episódios
desordenados são conectados; um evento comunicativo capaz de produzir uma vivência.
O resultado da narração são as lendas; narrativas que podem ser entendidas como
pontos de referência moral. Narrando-as, constrói-se um sistema de relações que
corresponde às expectativas morais dos interlocutores. Assim, os interlocutores (re)fundam
uma experiência comum a partir da base axiológica que sustenta o julgamento das
condutas, tanto individual quanto das instituições, fora e dentro da própria lenda.
São histórias morais que alertam quanto às conseqüências do não-reconhecimento.
Nelas são recortadas experiências sociais significativas para a ordem moral desejada pelos
interlocutores. Uma ordem moral considerada ideal, que exatamente por não ser uma
estrutura pré-constituída e permanente, deve ser realizada continuamente em práticas
cotidianas como a narração.
5.1. Lenda: comunicação ou representação?
A linguagem presta-se tanto à comunicação como à representação, ensina Habermas
(1987). O “entendimento mútuo” impõe, para além de representação e comunicação,
329
Uma busca que culmina em subjetivação. Por isso mesmo, todos os interlocutores demonstram um
interesse particular numa “versão total” da história.
243
também a ação, que, na práxis cotidiana, não empregamos a linguagem sem agir. Uma
ação comunicativa que intenta, sempre, a correção de enunciados proferidos por outros
interlocutores sobre as expectativas morais e as formas de relações interpessoais no mundo
social.
Ou seja: mais que uma verdade para nossos enunciados sobre coisas e eventos no
mundo, o que pretendemos ao nos comunicarmos é um acordo na ação e na experiência. O
que está em jogo não é a representação correta da realidade, mas uma práxis.
330
É esse o sentido que identificamos nas lendas dos irmãos Piriás como descrições”
de um momento em que práticas habituais entram em colapso, exigindo uma revisão de
suposições e expectativas morais de conduta. No ato de comunicação das lendas, essas
certezas abaladas são reavaliadas (ou até mesmo resgatadas) discursivamente, de modo que
as percepções compartilhadas pelos interlocutores possam (re)tornar ao contexto de ação
sócio-cultural. O processo é de comunicação e implica tradução de opiniões em “verdades”.
Através desses “discursos”, o conflito no qual os Piriás se viram envolvidos passa a ser
considerado à luz de expectativas de comportamento, numa “reavaliação” em termos
morais do que aconteceu. Por isso mesmo, essas narrativas não são proposições
descritivas do que aconteceu. Elas expressam, antes, uma tentativa de “correção” das
atitudes adotadas no evento, reforçando, assim, o caráter imperativo dos modos de agir
considerados “legítimos” por aqueles que comentam o acontecido.
Nunca é demais dizer que os sentimentos dos personagens desempenham um papel
constitutivo para essas confrontações morais que o momento de narração das lendas
possibilita. As re-ações dos Irmãos Piriás diante do comportamento do fazendeiro e da
polícia são descritas como afetivas, porém, sem perder seu conteúdo cognitivo: os
sentimentos de humilhação, desonra e ultraje infligidos aos Piriás são explicitados sob a
forma de juízos de valor, ao passo que as percepções desses sentimentos pelo público da
lenda se deixam explicitar sob a forma de enunciados no ato de comunicação. Tudo é
descrito em termos de reação às circunstâncias desfavoráveis, ao insulto, à injustiça, ao
não-reconhecimento. Os sentimentos de ofensa, desonra, indignação são apresentados nas
330
Toda a nossa argumentação no que diz respeito à lenda como ato de comunicação estará ancorada na teoria
habermasiana sobre a ação comunicativa (Habermas, 2004) segundo a qual a “verdade de uma opinião”
pode ser explicada com o auxílio de outra opinião, que enunciados não se justificam por si mesmos. Para
uma aplicação interessante e crítica do pensamento de Habermas, ver Souza (2000:59-94).
244
lendas como evidências de que a ação da polícia e do fazendeiro contra os dois irmãos
perturba a ordem moral e o reconhecimento recíproco nos termos do “deve ser”.
331
Na fala repleta de marcadores do tipo “isso é o que diziam” ou “foi comprovado”,
“deu no jornal” ou “está no livro de Francisco Timóteo”, os interlocutores tentam se
resguardar das possíveis conseqüências de sua fala. A estratégia retórica camufla o esforço
de validação de uma verdade específica, que o informante construiu para si e na qual
“acredita”. E parece ser sempre assim, quando o caso é Piriá: em discussão está uma
pretensão de validade para normas morais consideradas justas por aqueles que tratam do
que “aconteceu”. A narração é sempre uma oportunidade de validação dessa pretensão.
Estamos diante de algo muito diferente da verdade de um acordo normativo prévio
ou da reprodução de uma forma de vida cultural considerada ideal por um grupo social
específico. A reação dos Piriás à perseguição da polícia não é compreendida como uma
“punição” que a comunidade de comunicação impinge à polícia e ao fazendeiro pela não
observância das normas de conduta ou mesmo das expectativas morais em sociedade. A
lenda não tem esse poder, digamos, “objetivo”. A norma moral explícita na lenda (como
aquela demandada pela lei) não é capaz de definir de maneira compulsória, o que os
membros de uma comunidade podem exigir uns dos outros” (Habermas, 2004:273).
332
Mais
que reflexo de padrões de valor ou de visões de mundo, os juízos morais realizados nas
lendas constituem uma argumentação.
Nessa perspectiva, podemos dizer que as lendas sobre os Piriás o provas
argumentativas das convicções morais dos interlocutores contra orientações dissonantes
face aos valores entendidos como os mais legítimos na situação. Portanto, podemos
concluir que a lenda é um discurso de reação contra a ausência de um consenso moral que
inclua de forma mais ampla as expectativas de todos.
331
Nos termos de Habermas (2004:273), esses sentimentos são apresentados como “sinais de advertência”
contra condutas consideradas impróprias e “constituem uma base empírica intuitiva pela qual controlamos
nossas fundamentações refletidas das ações e os modos de agir regulados por normas”.
332
A ênfase de Habermas é no sentido de que uma norma, seja ela moral ou jurídica, não tem como se impor
simplesmente por meio da ameaça de sanção. Para ele, toda norma necessita de fundamentação, o que é
possível na operação de distinguir juízos morais tidos como válidos e juízos morais de fato em vigor no
mundo da vida. O comportamento moral, portanto, não se condicionaria a um padrão de reação que deve ser
tornado público. O comportamento moral é antes o resultado de uma tradução consciente de juízos
fundamentados segundo um consenso moral compartilhado e que, nem por isso, deixam de ser suscetíveis de
justificação (Habermas, 2004:274).
245
O saber que guia a narração da lenda é moral, e se distingue do saber empírico sobre
o acontecimento.
333
Sendo assim, a lenda não estabelece nenhum fato. Ela simplesmente
“fundamenta” uma pretensão de validade moral baseada num consenso existente sobre o
que é considerado justo na relação patrão/empregado, polícia/cidadão, etc. Consenso que,
no discurso lendário, merece o reconhecimento intersubjetivo de sua validade e de sua
capacidade de reger a práxis no meio social em situações semelhantes às descritas nas
lendas. É como se a moral dos Piriás devesse transcender o estado de coisas, passando a
regular legitimamente todas as relações interpessoais no círculo para além dos destinatários
da própria lenda, que os valores que pretensamente teriam guiado a (re)ação dos dois
irmãos seriam “bons para todos”.
A forma de agir da polícia e do fazendeiro, tal como descrita nas lendas, demonstra
que não se apresentam condições necessárias à formação desse consenso moral no mundo
social. Pelo contrário, é a falha na conduta dessas instituições que cria condições para o
surgimento das lendas. Como discursos práticos, elas pretendem tornar exeqüível o agir
moral por elas idealizado, mesmo que em outro nível de realidade.
Através das lendas, sujeitos julgam ações e conflitos relevantes com relação a um
universo de relações bem ordenadas, idealizado, e argumentam, portanto, de um ponto de
vista moral. Interagentes na narr-ação da lenda são, assim, juízes morais que regulam seu
veredicto por um mundo social idealmente projetado, que não pode se tornar real sem a
intervenção dos próprios sujeitos da ação moral. Socializados naquele espaço social e
naquele tempo histórico da narração, os indivíduos têm de se entender sobre aquilo a que
estão moralmente obrigados, reconhecer intersubjetivamente as normas que, acreditam,
devam ser seguidas.
Eis porque afirmamos, apoiados em Habermas, que essas lendas tratam
discursivamente da necessidade de esclarecimentos morais com relação a momentos
específicos em que processos de socialização, hábitos e instituições não foram capazes de
garantir as motivações necessárias ao cumprimento de exigências morais. São relatos que
constituem-se como práxis argumentativa onde os envolvidos desejam se convencer
mutuamente, mas também aprender uns dos outros a partir de opiniões a respeito do evento
333
Sobre “saber moral” e sua diferença em relação ao “saber empírico”, ver Habermas (2004:269).
246
foco de interesse da lenda, o qual é examinado quanto à legitimidade das ações de seus
personagens.
334
Na narração, o caráter construtivista (no sentido moralizante) do discurso da lenda
substitui o caráter estático das normas que regulamentam, no cotidiano, a relação entre
cidadãos e instituições. A lenda constitui assim uma espécie de normatização inteligente,
mais sensível a argumentos morais, que não ignora o gap entre norma e realidade, entre
eticidade e legalidade, entre um senso de justiça mais natural e o senso de justiça
corporificado. Quem narra, deseja que o ouvinte não só tome conhecimento de sua opinião
(representação dos fatos), mas que chegue à mesma concepção, que compartilhe, portanto,
sua opinião a partir do reconhecimento intersubjetivo da validade das asserções que a lenda
elabora.
Vê-se que, como ato comunicativo, a narração da lenda não revela um primado da
função de representação.
335
As lendas não são simplesmente veículo do pensamento. É
necessário considerá-las tanto como resultado quanto como instrumento de uma ação. o
primado de uma função sobre a outra. A comunicação não é autônoma em relação à sua
função representativa; nem a função representativa independe do objetivo comunicativo.
Quem narra a lenda quer, antes de tudo, comunicar um fato. Mas o dispõe de um acesso
direto a condições de facticidade, ou seja, que prescindam de interpretação. No ato
comunicativo, o que existe, na verdade, são condições que permitem a cada interlocutor
avaliar uma dada informação como sendo verdadeira (ou não) a partir de justificações
morais publicizada. O público, interagindo num mundo social suposto como comum,
decide se cada proposição pode ser considerada aceitável a partir do tipo de justificação
apresentada.
Toda a fala na narração visa convencer, quer dizer, é uma fala orientada para o
entendimento mútuo. Sendo assim, além de exprimir intenções dos interlocutores e
representar estados de coisas (ou supor sua existência), a narração permite estabelecer
relações interpessoais. Ela permite que as pessoas interajam na tentativa de fazer
reconhecer como válidas a verdade de seu discurso, uma verdade construída a partir das
334
Nesse sentido, o mundo da vida constitui tanto o contexto das conversações, ou seja, da narração das
lendas, quanto a fonte do conteúdo comunicativo destas lendas.
335
Não partilho, como espero ter deixado claro, das posições de Chartier em seu conhecido ensaio “O mundo
como representação” (Chartier, 2002:61-79).
247
expectativas de comportamento moral.
336
São essas expectativas, mais que costumes e
convenções, que permitem julgar a ação dos Piriás e da polícia. Não apenas como
comportamento legal ou ilegal, normal ou desviante, mas como “moral” ou “imoral” em
relação à noção de justiça e moralidade compartilhada pelos interlocutores da lenda. Na
narração dessas histórias, o que é moral ou imoral, honroso ou desonroso, certo ou errado,
se confunde com o que é justificado ou injustificado (Habermas, 2004:268).
5.2. Uma luta por reconhecimento
Uma investigação antropológica como a que realizamos neste trabalho, cuja atenção
está dirigida à cultura moral cotidiana de uma comunidade de comunicação, deve se
ocupar com as normas morais da ação inseridas nas lendas. O resultado dessa investigação
foi a descrição de um consenso tacitamente efetivo em torno do qual se organizam as
expectativas morais tanto dos personagens das lendas quando dos interlocutores das lendas.
Um consenso moral que regula a forma de distribuição de direitos e deveres e que deveria,
idealmente, fazer o mesmo no contexto do mundo da vida. O tema das lendas é o
desapontamento dessas expectativas morais e o abalo de relações de reconhecimento social
produzidas por este desapontamento. Ou seja, em foco na lenda está uma situação que
contraria o consenso moral compartilhado pelos interlocutores.
As lendas conseguem chamar a atenção da opinião pública para a importância dos
valores representados pelos Piriás. Narrar essas histórias é elevar o valor social daquilo que
eles representam. por detrás da lenda uma axiologia que permite aos interlocutores
estimar os Piriás por suas realizações e capacidades, realçar-lhes a importância social. É
como heróis de lendas que esses dois contribuem para a realização de valores centrais da
comunidade de comunicação que estivemos analisando.
336
Se concordamos com Habermas, devemos partir do princípio de que todos os discursos buscam “uma
única verdade concreta”, ou seja, são um tipo de ação que visa o entendimento. O ambiente é de negociação,
onde interlocutores têm experiência de que nenhuma convicção está a salvo da crítica. A atitude em relação às
convicções tornadas problemáticas nunca pode ser dogmática. Cf. Habermas (2004:258).
248
E contribuem de uma forma muito particular: as lendas permitem que os
interagentes na narração experimentem, de forma direta, o desrespeito que vitimou os
personagens de suas histórias e que levou-os a resistirem.
337
“A polícia séria, armada, na caça de dois pé-rapados, dois caipiras e eles davam o nó na polícia. Isso
é engraçado, não? Eu acho que esse mito é forte aqui porque... é prazeroso pras pessoas contar que
fizeram parte de uma história de Piriá, que tem uma história. Quando conta a pulsação aumenta, as
pessoas ficam agitadas, riem, os olhos brilham. Quem conta, conta com medo, com receio, mas
também com prazer. O estado normal da pessoa muda quando vai falar de Piriá. Por isso eu gosto
dessa história. Mas a história fere o orgulho de certas pessoas na cidade. Por isso não é todo mundo
que fala assim aberto do assunto. Mas pra ouvir, todo mundo está sempre muito bem disposto.”
338
A fala do entrevistado explicita o papel dos sentimentos no contexto de conversa
sobre os Piriás, além de ressaltar aquela implicação moral da fala sobre o caso que tanto
preocupa as pessoas que conheceram a história. Percebe-se aqui, claramente, que
sentimentos motivam sua narr-ação. O momento narrativo constitui-se como um contexto
de confrontações morais onde os sentimentos desempenham um papel constitutivo (reações
afetivas a um comportamento avaliado como certo ou errado). A indignação, a reprovação,
a simpatia ou a solidariedade se tornam condição para uma compreensão “adequada”
daquilo que “aconteceu” com os Piriás. Nesse esforço para compreender as causas da
indignação dos Piriás valoriza-se o significado social dos sentimentos morais por meio do
esclarecimento de atitudes tomadas e atitudes empreendidas de parte a parte ao longo do
confronto. Essa tentativa de compreensão da motivação por detrás da ação dos personagens
demonstra que na narração das lendas uma precedência da interação sobre a ação,
que o que mais interessa são os valores que orientam as ações dos envolvidos.
Ao fim, o resultado da narração é o resgate dos Piriás como cidadãos que merecem
respeito e consideração. Nas lendas garante-se aos dois estima social ao mesmo tempo que
registra-se um esforço de integração ética da comunidade de comunicação. Como heróis de
337
Para uma análise dos sentimentos em sua função de motivar ações, e para a experiência de desrespeito
como fonte emotiva e cognitiva de resistência, cf. Honneth (2003), que oferece uma análise surpreendente do
desrespeito social a partir de uma síntese de perspectivas diversas (antropológica, sociológica, psicanalítica e
filosófica). Todo meu argumento no sentido da análise da lógica moral por detrás do conflito dos Piriás é
devedor da teoria de Honneth.
338
Entrevista com o ator C. D. em Sete Lagoas, 30/03/2005.
249
lendas, os Piriás conquistam estima social.
339
O subprivilégio jurídico do qual são vítimas e
que causou neles o sentimento de vergonha social é anulado em seus efeitos: nas lendas, os
Piriás se libertam de toda humilhação. Fazem de sua luta uma luta pela integridade de sua
pessoa inteira. Verdadeiros heróis, apresentam uma admirável disposição para uma luta de
vida e morte por reconhecimento.
340
Uma luta simbólica por estima social (Honneth, 2003).
Por meio dessas figuras, os interlocutores da lenda definem o que é moralmente
inadmissível. Além de permitirem que a degradação sofrida pelos dois irmãos seja
experimentada como força motivacional para o estabelecimento de novas pretensões éticas.
As lendas são, nesse sentido mais prático, formas de representação da experiência de
desrespeito sofrida pelos Piriás, que constituem uma objetivação de sentimentos
particulares de injustiça frente a formas de interação moralmente contingentes. É nelas que
o sentimento de infração das expectativas de reconhecimento é articulado num quadro de
interpretação intersubjetivo que compõe o momento narrativo de um caso de Piriá. Nos
termos de Honneth (2003:258), diríamos que se trata de uma “semântica coletiva que
permite interpretar as experiências de desapontamento” dos Piriás como algo que afeta não
só a eles, “mas também o círculo de muitos outros sujeitos”, no caso, aqueles que compõem
a comunidade de comunicação. De forma que as lendas oferecem algo como uma receita
da forma ideal de distribuição de reconhecimento social, ao mesmo tempo em que tornam
transparentes as causas sociais tidas como responsáveis pelos sentimentos (individuais) de
vergonha social e a privação de direitos fundamentais dos dois irmãos. O debate é feito
publicamente, de maneira que a experiência de desrespeito que motiva os Piriás para a luta
pode ser experimentada por todos os interlocutores da lenda.
A luta dos Piriás nas lendas é uma luta por reconhecimento” desencadeada a partir
de um conflito moral no qual os persongens são envolvidos e que é entendido na
comunidade de comunicação como violação das expectativas normativas e morais. Nas
lendas descreve-se como conflitos que se originam de uma experiência de desrespeito
339
Para Honneth (2003:184), a estima social é uma das formas de reconhecimento. Diferentemente do
reconhecimento jurídico determinado pelo direito formal e que alcaçaria todo e qualquer ser humano, a estima
social depende do ajuizamento de uma comunidade de valores. Trata-se do respeito social, uma conquista do
indivíduo.
340
Sobre a relação entre disponibilidade para morrer e defesa da legitimidade das pretensões morais, e sobre
as implicações da noção de honra nesse processo, cf. Honneth (2003:55-57, 91-92).
250
social podem suscitar uma ação que busca restaurar (ou eventualmente instaurar) relações
de reconhecimento, em termos idênticos aos descritos por Honneth (2003:18).
Nessas histórias, é considerado o potencial de aprendizado prático-moral do conflito
no qual os Piriás se envolvem. O que atesta a centralidade do conflito na análise da lógica
tanto das narrativas quanto da narr-ação. Os Piriás aparecem ali como sujeitos de ações
agressivas que visam recuperar a atenção daqueles que lhes negaram reconhecimento.
341
Daí a legitimidade de suas ações violentas, de seus “crimes”, todos justificáveis nos termos
morais dos interlocutores da lenda.
É que em uma luta por reconhecimento como aquela em que se envolvem Orlando e
Sebastião Patrício, uma luta detonada pelo desrespeito às suas pretensões morais, os Piriás
aparecem como personagens movidos por uma força moral. Eles anseiam por
reconhecimento, como todos nós. E reconhecimento no caso não é uma cortesia. É uma
necessidade vital, como diria Charles Taylor (1994b). Tem sempre uma base cultural. Por
isso, no centro moral das lendas sobre os Piriás está o conflito que se origina de uma
experiência de desrespeito social capaz de suscitar (re)ação. É por meio dessa (re)ação que
os sujeitos das lendas buscam restaurar o seu próprio reconhecimento.
Tal luta constitui a força moral que sustenta a narrativa e que revela as expectativas
do comportamento moral que permitem o julgamento das ações tanto dos Piriás quanto da
polícia. É esta força moral que procura realinhar os papéis dentro da lenda e, por
conseguinte, no mundo da vida. É a partir dela que os interlocutores promovem o
alargamento da percepção da realidade no que diz respeito aos papéis sociais; uma
compreensão mais adequada da profundidade e abrangência dos comportamentos e
condutas no contexto social.
Ao narrar uma lenda de Piriá, o que se realiza é uma transvaloração onde a
experiência direta do não-reconhecimento é descrita numa verdadeira denúncia das formas
de limitação ao status de pessoa de direito e digna de estima social. As lendas resultam da
avaliação da dimensão dessa desigualdade e desse não-reconhecimento. Explicam como se
essa distinção social e revelam o conjunto de pressupostos adotados para a atribuição de
341
A questão remete ao papel construtivo do crime no processo de formação ética tal como foi preconizado
por Hegel, em seus escritos de juventude, sobre uma teoria do reconhecimento social. Para Hegel, o ato
agressivo visa recuperar a atenção do outro, conquistar o reconhecimento denegado. A respeito, cf. Honneth
(2003: 37-68, 87-88).
251
prestígio naquele contexto específico. Não se trata, pois, de uma condenação irrefletida das
ações de alguns personagens e elogio inflamado das ações de outros. Trata-se, antes, de
uma “articulação” entre os valores em voga e os valores considerados mais legítimos, entre
fatos e representações, entre a vida dos personagens e a vida dos interlocutores da lenda.
E, apesar de o reconhecimento que a lenda garante aos Piriás não assumir a forma
de uma realidade social efetiva e nem poder ser traduzido em termos de uma ideologia da
igualdade, são histórias que co-movem as pessoas que participam de sua narração. Embora
a luta por reconhecimento dos Piriás não se deixe generalizar para além da lenda a ponto de
tornar-se base para um movimento de dimensões coletivas, enquanto traduções de
experiências morais de desrespeito essas histórias são capazes de afetar todos aqueles que
vierem a ouvi-las. E isso ainda hoje.
252
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265
A
NEXOS
266
Momento Narrativo I – Transcrição integral
Data: 03/01/2007
Interlocutores: J.R., 76 anos
S.R., ????
V.X., 43 anos
O.R., ????
Eu (G)
Contexto: os interlocutores são antigos vizinhos e velhos conhecidos de minha família,
principalmente de meu pai. Apresentei-me então como “filha de Helvécio” e esclareci o que
pretendia. Meu pai já havia adiantado em outra ocasião que eu estava fazendo uma pesquisa
sobre a história da cidade e que andava interessada em memórias sobre os Piriás “para
escrever um livro”. Depois de cerca de vinte minutos de conversa sobre o passado e sobre
nossas famílias, fui arguída sobre meu interesse nos Piriás. De início, apenas dois
interlocutores além de mim estavam presentes e procuraram levantar” o que lembravam e
o que eu sabia. A partir deste momento da interação, perguntei se poderia gravar a
conversa, o que me foi autorizado.
342
X: - (...)
A: - contaram pra você alguma coisa aí do Paredão [pedreira] com a polícia? [tom mais baixo, diria
receoso].
G: - Não. Essa parte não. Falaram alguma coisa aí da Lapa da Orelha, mas...
A: - Mas então. Os Piriás, segundo o conhecimento, eles eram rapaz novo. Moravam aqui na Várzea. De
onde eles vieram eu não tenho certeza, porque conhecemos eles aqui. Minha profissão exige muito da gente.
E fico aqui 12, 14, 16 horas aqui dentro e a gente vê o movimento.
G: - E tudo passa por aqui. Bem na porta do Sr., não é mesmo?
A: - É. Então eu fiquei conhecendo eles assim, trançando aí na rua. Trabalhavam de servente de
pedreiro. Disso eu lembro deles trabalhando. Depois eu não sei o porque, segundo a história, é que eles
foram presos. É o que você já tem aí contado sobre a polícia, não é isso?
G: - O Sr. Chegou a ouvir na época porque eles foram presos?
342
Interessante notar que o fato de o gravador ser tão pequeno ajuda muito: as pessoas acabam se distraindo
dele. Diria que, de início, até duvidam que ele possa realmente “gravar”. Várias vezes tive que demonstar que
o gravador “realmente” funcionava.
267
[riso meio sem graça]
G: - Porque eu tenho ouvido muita história de porque eles foram presos.
A: - Mas o que você tem ouvido?
G: - Ah! Que os dois teriam trabalhado pra um fazendeiro aqui da região. E parece que tem uma história
com um rádio, não sei. Um roubo...
A: - É! O que se fala é isso aí. Nessa época era um rádio portátil. Ele era tipo um livro, né? E, segundo a
história, foi isso aí. Eles judiado. E, segundo a história, também não tinha sido eles que tinha sido roubado
[sic]. Eles estavam junto com quem roubô. Isso é segundo a história.
G: - Isso!
A: Agora, a história mais forte deles que eu tenho certeza foi aqui no Paredão. Tinha uma lapa pequena.
Que a Lapa da Orelha é aquela perto da BR 040.
G: - Sei.
A: E eu não lembro. Eu não lembro deles ali. Eu lembro deles aqui no Paredão. Que no Paredão
tinha umas casa já abandonadas e foi onde eles tiveram maiores atritos com a polícia foi aí. Quando é
que mataram um soldado e foram atirado e tal. Então eu sei como é que eles conseguiram... Eu sei foi que eles
rodearam esse Paredão aí, todas as propriedades que são como as ruas daqui, tem nome. Tem Paredão,
Machado e fazenda de Wilson Abreu. E na fazenda de Wilson Abreu tem muitas lapa. Foi onde eles livraram
da polícia foi aí. E depois foram fugindo, segundo as informações da época e até das pessoas, que eles foram
vistos na região carregando a mochila e a espingarda, a aparência deles dois. E depois, o que eu sei é que
eles foram mortos aí, entre Corinto e Lassance. Andando pela linha e a polícia foi e... bom... teve informação.
E eles então foram matados lá. Segundo a história.
G: - Disso eu não sabia!
A: - É! Mas eles roubaram minha espingarda. Eu não estava na fazenda, mas minha esposa estava lá.
Tinha um pessoal que era os casero lá. Ela, na roça, a gente tinha muita liberdade. A gente tramelava a
porta da cozinha, saía, passava a chava da casa, a chave punha no bolso e saía. As janela ficavam todas
abertas. D que eles entraram foi pela janela. Ficou rastro de que eles pularam pra dentro e pra fora e
levaram. Isso na época em que eles estavam sendo perseguido pela polícia. Pouco tempo depois foram
mortos. Isso aí é praticamente o final da vida deles.
G: - Mas, o que mais as pessoas falavam na época?
A: - Como assim?
G: - Dizem que havia muitas histórias, de que eles eram encantados, coisa assim.
[risos]
A: - E tinha. Mas eu não acredito muito nisso não.
G: - Mas o Sr. Lembra de ouvir?
268
A: - Demais, demias! Eles falavam que eles sumia. Que tinha muita gente que tem assim com oração
brava. Eles falam que era de oração que as pessoa sumia de vista. Mas o que eu sei é por boca dos outro. Eu
mesmo nunca vi. O que eu sei é que tinha muita facilidade de esconder e tem muita grota, muita pedra que
tem buraco, na... a lapa não é grande, assim como meia parede, a terça parte. Eles viviam por aí, porque é uma
região que tem muita nascente, muita água e sempre uma grota ali que tem água, tem outro, que sem água
é difícil viver, ? Eles eram habilidosos. Conheciam bem o mato. E segundo a história, eles andavam
roubando comida nas residência aí. Às vezes, a pessoa saía para trabalfora longe, né? E ia levando.
Roubava galinha que precisava comer. Mas isso é segundo a história. Eu mesmo não participei. Isso é o que
eu sei.
G: - E as pessoas da época? As pessoas tinham os dois como gente de bem ou não?
A: - É! A opinião varia.
G: - É verdade que diziam que a população protegia os dois?
[risos]
A: - Eh! Fala-se nisso na época. Mas eu não cheguei a ver isso não. Isso era falado na época. Mas o
que eu sei é da perseguição. Eles passavam aqui pela rua, que eles moravam na Várzea. Trabalhavam de
servente. Então a gente via eles sujo de massa. Eran trabalhadores. Mas isso foi pouco tempo depois,
aconteceu tudo assim inesperado. Eles não foram mortos velhos não. Deviam ter uns vinte anos por aí. Rapaz
novo. Isso eu tenho certeza.
G: - Os dois foram presos juntos?
A: - Os dois foram presos juntos. Estavam os dois, segundo a história, estavam os dois mais um
companheiro. O companheiro roubou o rádio. Foram presos os três.
G: - Por quê?
A: - É porque a polícia judiou muito deles e parece que o índole era ruim e então eles foram vingar,
né? E então começaram a ter atrito dentro da cidade aí. E cê sabe, soldado naquela época não tinha condução.
Fazia ronda no jipe. E quando panhava um, dois no jipe, dava pedrada neles, isso segundo a história.
G: - Os Piriás davam pedrada?
A: - É! Isso segundo a história. E a polícia foi perseguindo. E eles andaram machucando polícia aí.
Parece que ao índole dos dois era mau. Eles chegaram a matar três soldados de vingança. Eu lembro de um.
Você sabe disso?
G: - Eu conversei com a viúva de um deles.
A: - E ela falou se ele foi morto aqui no Paredão? Aí no Machado, por aí?
G: - É! Acho que foi isso mesmo.
A: - Esse eu lembro da morte. Ambulância foi buscar, ida e volta. Disso eu lembro muito. Tudo que
acontecia passava aqui pela rua. Aqui era rota dos tropeiros. A primeira estrada de Sete Lagoas, você sabia?
G: - Não sabia.
269
[o interlocutor começa a falar sobre a cidade, a história do bairro, da catedral e da Central do Brasil]
A: - O Casarão foi tombado pelo patrimônio. Mas o pessoal não pagou e tomaram.
G: - Disso eu não sabia.
A: - Acho que estou disvirtuando tudo, né?
G: - Não, de jeito algum. O Sr. o se preocupe não. Se eu não quiser ouvir eu falo. Aprendi com pai
que franqueza é uma virtude.
[risos]
A: - É mesmo. Igual eu. Porque eu sou branco e franco.
[risos]
A: - E tudo é história, né. Sempre serve pra alguma coisa.
[E continua falando da cidade. Nesse meio tempo, chega o terceiro interlocutor. Ele me cumprimenta.]
A: - O que cê sabe dos Piriá pra contar pra ela?
C: - Eu? Num mexo com esse tipo de história não, sô?
[risos]
A: - Ela está fazendo uma pesquisa sobre a história da cidade e quer escrever sobre os Piriás.
C: - Mexe com isso não, menina!
B: - Você vai escrever a história deles?
G: - Eu quero saber o que as pessoas falavam sobre eles na época. Eu era muito menina e me lembro de
pouca coisa. Então estou perguntando quem lembra.
B: - Vai escrever um livro?
C: - Ia ser bom tirar essa história a limpo.
G: - Como assim?
C: - Tem coelho gordo nesse mato.
[risos]
B: - Tem muita gente com quem você pode conversá.
A: - É! Tem o pessoal dos Martins, né?
B: - Tem. Pode falar também com Pescoço e com os ex-polícia da época.
270
[Segue uma discussão animada sobre os prováveis informantes. O interlocutor A pede para que eu anote os
nomes.]
A: - É gente que viu as coisas e pode falar da história. O resto é lenda.
G: - Mas o interessante são as lendas.
A: - É! Mas na época também não tinha tanta desordem como hoje e a gente não tinha tanta informação.
G: - Mas as pessoas sabiam do caso. Falou-se muito a respeito. Eu lembro.
A: - Eles foram mortos perto de Corinto, não foi fulano?
B: - Em Beltrão, na fazenda do povo de Zé Eustáquio.
C: - Não foi em Beltrão não.
A: - Segundo consta, foi sim, porque margeava a linha.
C: - Foi não! Beltrão não é margeando a linha!
A: - Cê lembra então?
C: - Ah sô! Eu não lembro de bandido não, sô.
[risos]
C: - Eu não entendi direito. Você está revirando essa história pra quê mesmo?
G: - É uma pesquisa.
A: - Ela vai escrever um livro sobre os Piriá. Ela e filha de Helvécio, sô. Helvécio da madereira, filho de
Soneca.
C: - Qual Soneca?
A: - Soneca que morou aqui na João Libório. A da mãe dela era dona Maria Saboeira, esposa de Seu
João, aqui atrás da igreja São José.
C: - Então você é sobrinha de Dona Hilda.
G: - Sô.
C: - E está pesquisando sobre os Piriás?
G: - Estou. Pra um trabalho na universidade.
C: - E já conseguiu muita informação?
G: - Já. Quase todo mundo lembra de alguma passagem do caso.
A: - Ela entrevistou a viúva do soldado morto aqui no Paredão.
C: - O Santos?
G: - Não. O Zé Roberto. O Santos mataram foi lá na Lapa da Orelha, não?
C: - A lapa onde eles mataram o primeiro soldado não existe mais não...
A: - Existe, sô! É lá no Nô de Dona Mariinha...
C: - Qual Nô?
A: - Nô do Emílio Machado ali, sô!
C: - Não! Não foi não! O primeiro soldado que eles mataram não foi lá não...
271
A: - Foi onde então?
C: - Foi perto da pedreira dos Correia, aqui ó!
A: - Dos Correia? Aí? Então se é assim a história vai emendando.
C: - O segundo é que foi lá na Mariinha. O primeiro foi na Lapa Branca.
A: - Lapa da Orelha ou Lapa Branca?
C: - É uma coisa só. De qualquer alto aqui a gente vê ela lá.
B: - Na ILCOM. É lá. Lá era fazenda.
C: - Eles foram lá, o primeiro soldado. O povo chamou porque Piriá tava roubando galinha naquele
tram lá, na redondeza. Aí foram dois soldado. Eles atiraram no meio da testa de um [soldado].
A: - Aí! Bom de tiro!
C: - Eles tava morando nessa lapa lá e pra comer tinha que roubá mesmo.
A: - Desde essa confusão com a polícia que eles foram preso, segundo a história aí, que era injusto e
que eles apanharam muito. Daí passa a vir o desespero, sabe como é que é. Que eles não passaram
mais a viver na casa. Foram pro mato. Com medo, né, de ser preso de novo. E eles morava na Várzea.
Muito próximo da cidade, mas não podia vir aqui. Porque é o seguinte, ali vai a estrada do Paredão. De lá eles
podia controlar o movimento. Tinha grota, água e lugar pra esconder. Era esperto os dois. Conhecia bem o
lugar e era habilidoso. Mas começaram a viver de roubo ali na região...
[Chega mais um interlocutor. Todos se cumprimentam com animação. O interlocutor A se volta pra mim.]
A: - Você tá lembrando quem é ela?
D: - Tô. Mas não estou muito certo se é quem eu estou pensando.
A: - Você tá achando que é a filha de Helvécio?
D: - Isso mesmo. Lá da madeireira. E a June?
G: - Não! Sou a Giulle, a mais velha.
D: - Mas você sumiu, menina. E seu pai? Seus irmãos? Tem muito tempo que não vejo ninguém.
G: - Tá todo mundo bem, graças a Deus.
D: - E a Julimare. Lembro do dia que levei ela para o hospital.
G: - Está em Diamantina, etudando.
[Conta do dia que levou minha irmã para o hospital e fala dos tempos que nós, os filhos, trabalhávamos na
madeireira com meu pai e ele ia sempre até lá.]
D: - Mas e você, menina? O que anda fazendo? Fiquei sabendo que se mudou.
G: - É! Agora moro em Mariana.
D: - Então veio passeá!
A: - Você não se lembra nada dos Piriá, não?
D: - Lembro demais. Lembro sim! Mas, por quê?
272
A: - Ela está fazendo uma pesquisa.
D: - Bom. Não lembro assim não. Só umas passage. História mesmo eu só ouvi dizer.
A: - A gente tá aqui recordando. Ela já sabe muita coisa.
C: - Um foi embora daqui escondido deles, ué!
A: - Quem?
B: - Mataram os dois.
C: - Não. Que eles num mataram eles não.
D: - Mataram, sô.
C: - Num mataram não. Já viram eles na carvoeira por aí.
D: - É o povo que diz. Eu não me lembro.
C: - Como é que chama aquele turco?
A: - Uns fala que matô, outros fala que não matô. Uma coisa é certa: mataram dois que tava pescando
no Rio das Velhas lá.
D: - Mas veio um caminhão, eu lembro que pasou aqui na rua.
C: - É! Passá passó! Mas vê que é bom ninguém viu. Ninguém viu o corpo.
D: - É! Ninguém viu.
C: - Eles trouxeram os home no caixão. No caixão. Ninguém viu. eles que viram matando. Quem
matô disse que morreu, mas foi só eles que deram testemunho.
A: - Dizem que já foram visto por aqui.
C: - Conheço gente que já encontrô com eles na rua aqui perto. Ali perto do Dodô.
D: - Sei não!
C: - Eu lembro da gente aqui no morro São José só vendo rapa subindo e descendo. Que ano que foi?
A: - 78, não é isso?
G: - Foi. 78.
C: - 64 pra 78 é quanto? Eu tinha uns 14 anos. Fizeram até um filme sobre eles. Nunca vi filme ruim
desse jeito.
G: - O Sr. assistiu?
C: - Assisti, uai. Chegou a passar aqui no Rivello. Na época, muita gente foi vê. O cinema ficava cheio.
Ficou quase um mês em cartaz aí. “Os Irmãos Piriás” ...
G: - E num gostô não!
C: - Ah! Eu não sei se é porque eu não gosto de filme brasileiro. Eu só vi um filme brasileiro que é
bom até hoje na minha vida que eu gostei, que foi “O Cangaceiro”. Só. O resto eu...
A: - Mas por que não gostô?
C: - Eu gostava muito na época era de filme de bang-bang.
G: - Muito diferente do filme dos Piriá.
C: - É! Achei sem graça. Não tinha ação, não tinha nada.
A: - De um modo geral, era uma invenção.
C: - Nem mostra eles matando eles. Mostra só eles morrendo no fim do filme. Sem graça.
273
D: - Bem sem graça mesmo.
C: - A história que eu sei é a seguinte. Eles foram trabalhá pra esse turco, esse tal de Galego.
A: - Culego. O nome é Culego.
C: - É isso! Esse Culego combinou um serviço com o Piriá e o pagô. Inclusive, na época dessa
matança toda aí, esse Culego foi fugido pro Rio de Janeiro com medo.
A: - Medo de Piriá.
[risos]
C: - É! Fugiu dele de medo. E esse Culego não pagô. E era ruim pra pagá mesmo. Turco.
A: - Ele tinha fazenda aí, lá perto de Jequitibá. O turco.
C: - Ele era turco. O apelido era Galego, não sei.
A: - O sobrenome é que é Culego. Cu-le-go.
C : - É ! Então tudo bem ! Eles roçaram o pasto pra ele na fazenda aqui...
A: - Em Jequitibá. A fazenda é em Jequitibá.
C: - Onde é a Iveco, por ali.
D: - Então não é Jequitibá. É mais Sete Lagoas.
B: - É bem Sete Lagoas.
C: - Eu nem sei se ele morreu!
A: - Há muitos anos, ué!
C: - Eu não ouvi se ele morreu?
D: - Tem um filho ele.
B: - Lúcio Culego, né não?
A: - Não. A encrenca foi com o pai de Lúcio.
C: - Ah! Então foi com o pai?
A: - É!
B: - Lúcio Culego é o outro.
C: - Então não é desse que eu falando não ué. Então eu tenho aque retirar, porque o que eu
falando que é ruim pra pagar e o outro, o Lúcio que eu tô falando.
A: - Mas não ué! É pai e filho, ...
C: - É!
[risos]
C: - Então é de família.
[risos]
274
B: - Mas continua o caso.
C: - Então. Eles roçaram esse pasto pra ele e ele não pagô eles. Eles então foram lá cobrar, recebê e ele
mandô a polícia cortá eles no coro.
D: - Acho que eles tinha comprado um radinho na época.
A: - É não. Uma vitrola. Agora deixa eu só colocar um pedacinho no meio aqui, que eu já passei pra ela,
mas agora vai ficar melhor.
C: - Pois não. Por favor!
A: - Eles eram três: os Piriás e mais um. E eles foram e o companheiro deles é que roubou o rádio. Eles
não roubaram.
C: - Não roubaram não. Tinha até recibo da prestação paga na Casa Jorge.
A: - É! E a polícia pegô foi só os Piriá e judiô deles.
C: - E eles foram cobrá e o home mandô a polícia cortá eles no coro. Bateu neles. Bateu muito, mas
depois soltô.
D: - O advogado soltô os dois que a prisão foi ilegal.
C: - Aí, dessa seqüência aí eles foram matar o soldado na Lapa Branca ali ô. Se você quiser ir lá é fácil.
B: - É na ILCOM. Mineradora ILCOM, né?
C: - Dá pra ir de carro lá.
A: - Pode tirar umas fotos pro seu livro. Vai pelo trevinho do Padre Teodoro...
[Chega um freguês. O interlocutor A pára para atender. Todos param a conversa. O interlocutor D vai embora.
Terminado o atendimento, a conversa é retomada.]
A: - Deixa eu só explicar pra ela aqui. Na primeira estrada você entra...
B: - Alguém aqui pode ir lá com ela, não pode?
A: - Claro! Eles são conhecidos nossos.
B: - Se quiser, é só combinar e eu vou lá com você.
G: - Obrigada. Não dispenso a ajuda não.
A: - Lá dentro da mineradora que fica a lapa que eu falei.
C: - Eles foram morar nessa lapa. Ficaram morando lá. Agora que eu retomei. Então tinha essas mulher
que catava lenha. E eles era uns cara feio mesmo.
A: - Maltratado de viver no mato.
C: - essas mulher que cata lenha, eu num sei se deram de cara com eles. Não sei. Sei que elas não
gostaram deles por lá. Foi então que chamaram a polícia. subiu uma viatura. Dois policiais. Um entrou na
lapa. Território desconhecido. Não deu otra. Eu sei que a hora que esse um entrô, eles brearam a cara dele de
chumbo. Foi o primeiro que eles mataram. E eu esqueci o nome dele, pôxa. Cê deve sabê!
G: - Roberto, eu acho. Tem também o Rosário e o Nelson se não me engano.
C: - Ele tinha um apelido.
G: - Santos?
275
C: - Pois é! Foi aí que começou. Depois trocaram tiro com eles aqui na Gamela, quase dentro da cidade.
Eles deram um tiro na cabeça de um que estava dentro do carro. A bala pegô na coluna do carro e depois na
cabeça. Eles matava polícia mesmo.
A: - O que era Caolho era bom mesmo de tiro.
C: - É! O Caolho não errava. Matava passarinho voando. Mirava assim e tuuummm... caía lá. O matador
era só ele. O outro municiava. Aí eles apertaram eles aí, e eles vazaram na braquiara. Aí eles foram lá pra esse
tal lugar... Beltrão, né?
A: - É, Beltrão.
C: - E a polícia cerca daqui, cerca dali. E sabe que a polícia perseguindo assim o cara fica
desorientado, né? eles foram esbarrar nesse terreno que eles falaram aí, da Dona Mariinha Verdureira, que
é viva ainda. E esse moço, o Nô ainda mexe lá nas terra.
A: - Num te disse! Aí! O Nô. É filho dela. Mora aqui em frente a casa da sua tia.
C: - Foi onde eles cercaram eles lá. Foi onde o Piriá matô dois.
A: - Mas primeiro eles mataram um na Lapa Branca.
C: - É, eu já falei. Num falei?
A: - É, já. E a polícia? Não falô foi da polícia.
C: - Na época, se ocê falasse o nome Piriá perto de soldado aí, cê tava na lenha. Se falasse o nome Piriá
com meganha eles pegava a gente e batia. E aí, depois mataram esses dois aí. Uns fala que eles morreram.
Outros fala que não morreu.
A: - Mas o boato foi quente na época e desapareceu. Deve ter matado mesmo, porque era normal.
C: - Um soldado me contou que veio atirador de elite de Belo Horizonte para pegar os dois. Eu até
acredito que mataram eles. Mas ouvi história de gente dizendo que já viu os dois trabalhando em carvoeira
aí pra baixo, esses dois. Já ouvi história de gente que já encontrou com um deles aqui ô, no Dodô.
A: - Dodô já morreu faz tempo.
B: - Cabo Madureira não conversava com ela não?
C: - Que é isso! Cabo Madureira já tinha sumido daqui, sô. Ele num tava mais aqui não.
A: - Cabo Madureira tava respondendo o processo pelas morte de Angueretá.
B: - Com Cabo Madureira dá pra sabê o nome dos soldado da época. Deve ter muita gente viva aí ainda.
C: - O duro é convencê a falá.
A: - Mas fala sim. É só chegá pra conversá com jeito. Falá que é pesquisa pra livro.
B: - Ele deve sabê muita coisa.
A: - Se você conversá com ele, você não acredita que ele tem um índole assim. É educado, bom de
papo, não é?
B: - É.
A: - Pode falá que eu te mandei lá. Ele é cumpadre do meu sogro. Já fiz muita capa de revólver pra ele.
B: - Diz que ele matô muitos e jogô na cisterna de Anguertá, mas não matô nenhum que prestasse.
A: - Foi uma limpeza na época. Foi mesmo.
C: - Sei não.
276
B: - Como assim?
C: - Mataram muita gente aí. Muita gente ruim. Mas aqueles que era gente boa, bastava a turma não
gostá dele que tava morto também. Nesse caso, tem sempre um otra história que a gente não sabe como
começa, mas sabe bem como termina.
B: - Pode ser. Mas o que eu ouvi falá não é isso não. Sei que Sete Lagoas era bem mais tranqüila na
época em que essa turma vigiava.
A: - Teve o caso dos Naves. Numa cidade ali nas margens do Araguaia. Foi na época da ditadura. Foi
depois da revolução.
C: - Eles bateram foi muito no pai deles [Piriás]. O pai deles até morreu. Num passou muito tempo,
ele morreu. Bateram pra ver se ele falava alguma coisa e ele não sabia nada.
A: - Eles achô que ele tava acoitando os filho, né. E ele não sabia de nada.
C: - Diz que ele preparô uma oração, que bala não pegava em filho dele.
B: - Será?
C: - O povo fala.
A: - Já ouvi também.
C: - Era o boato que corria.
A: - Falava muito na época que eles viravam cupim. Mas eu nunca acreditei nisso não.
C: - Isso era lenda , né? Eles era acostumado a trabalhá com gado, amansá bicho. Conhecia bem a
região. Trabalharam nas fazenda tudo aí.
B: - Já disseram que eles moravam aqui na Várzea?
G: - Já.
A: - Mas os pais não eram daí não.
C: - Quem pôs o nome Piriá foi a polícia.
G: - E o que é Piriá?
A: - Piriá é um coelhinho que dá sempre em lugá de brejo.
C: - Na beirada desse corgo aí tem demais, ô.
G: - E por que Piriá?
A: - É um bicho esperto demais. É mais esperto que coelho.
C: - É um rato grande o piriá.
A: - Não. O piriá é mais encorpado que o rato. O rato é fino. O piriá é mais grosso, e muito mais
esperto que o rato.
B: - Agora esse negócio de Piriá de corpo fechado parece mais crendice antiga.
C: - O Sr. já viu desse boato aí, da lenda dos antigo, do povo antigo. Diz que cobra num morde mulher
grávida, né?
A: - Já ouvi sim.
C: - Pois é. Domingo mesmo, uma pregô o bico numa aí. Ela tava viva no hospital até ontem. Mas
perdeu o menino. A fia de Fia, sô.
A: - É?
277
C: - É. Ali na Gineta.
A: - Ali no Waldemar, no Zé Cuim?
B: - Que é isso. A fia de Fia tomô uma picada de cobra? Qual qualidade de cobra?
C: - Sei não.
[A partir daqui não para compreender a gravação, porque os interlocutores B e C deram continuidade ao
caso da picada de cobra enquanto o interlocutor A quis voltar a falar de Sete Lagoas. Como ele é que estava
mais próximo do gravador é a fala de quem pude acompanhar alguma coisa. Ele falava da urbanização da
Lagoa Paulino, no meio da qual, dizem, haveria um sumidouro. Falou também do buraco que se abriu no chão
perto do Campo do Boa Vista. Incentivei, arguindo se não seria por causa do terreno calcário. Ele então
começou a falar da praga que foi rogada na cidade.]
A: - A história parece que foi uma injustiça. Foi na época da política do Café com Leite. E o tal padre
era muito destacado e rogou a praga de que Sete Lagoas haveria de se tornar um lagoa só. E depois disso, todo
buraco que abre na cidade, o povo lembra da praga do padre. Bobagem, você não acha?
G: - Eu ouvi essa história sim. Só que diz que rogou a praga porque inventaram uma mentira com o
nome dele.
[Nesse momento, os outros dois interlocutores voltam para a conversa.]
C: - Dizem que tem um braço de mar que passa ali embaixo da Serra de Santa Helena.
B: - Por isso que a água aqui é assim.
C: - Por causa dos buraco vieram muitos, como se diz, geólogos, é isso? É. Geólogos que descobriram
um rio que passa embaixo de Sete Lagoas. Um rio chamado Eldorado. E disseram que tinha diamante demais
nesse Rio Eldorado e que Cecé levou tudo pra ele.
B: - Se a dinheirama de Cecé vem do rio eu não sei. Mas que vem de algum lugar vem.
[risos]
A: - E pra tampar o buraco foi um trabalheira. E impressionante a quantidade de caminhão que passava
aqui com pedra pra cerrar o buraco.
C: - Diz que jogava a pedra e ficava ouvindo. E demorava um tempão até que se ouvia um barulhinho
longe, lá no fundo. Essa terra tá perdida mesmo.
[risos]
[A conversa continuou sobre a corrupção na política local, tudo com muito deboche e boas risadas. Esperei
um tempo e então me despedi.]
278
G: - tomei muito o tempo de vocês todos. Agradeço muito o papo bom. Mas minha pequena está
esperando. Passei o dia todo longe dela.
A: - Que nada. Precisando de alguma coisa fique às ordens.
C: - Converse com mais gente aqui do comércio antigo. Cê vai consegui mais informação.
B: - E quando o livro ficar pronto, trás pra gente vê.
X: (...)
279
Momento Narrativo II – Transcrição integral
Data: 04/01/2007
Interlocutores: A.S., 83 anos
G.M., 49 anos
Contexto: Apresentei-me. Logo foi identificada minha origem familiar como de praxe, mas
desta vez por parte da família do lado materno. Depois de uma conversa rápida sobre por
onde andam minha mãe e meus tios e sobre mim...
X: - (...)
G: - Agora estou morando em Mariana.
A: - Veio ver sua mãe?
G: - Foi. Mas estou aproveitando também para pesquisar sobre uma história que aconteceu na cidade.
A: - Motivo de estudo?
G: - É. Tenho que escrever um trabalho para a universidade.
A: - E sobre o que você quer saber do velho.
G: - Queria saber se o Sr. se lembra de alguma coisa dos Piriás.
A: - Demais. Comprei muito arroz na mão do pai deles. Moravam aqui na Várzea.
G: - E era gente de bem?
A: - De pavio meio curto, mas de bem. Muito trabalhadores.
G: - O Sr. se importa se eu gravar nossa conversa? É que a memória falha. E tenho conversado com
muita gente.
A: - Tem problema não. Se é pra trabalho de estudo, não tem problema. Mesmo porque o que eu lembro
é o que todo mundo lembra.
G: - O que o Sr. lembra?
A: - O pai deles foi preso, acusado de acobertá os filhos.. Um velho. Ficou na cadeia.
G: - Ouvi sobre isso mesmo.
A: - Pois é! O Caolho era bom de montaria. Eles tinha um circo de tourada e montavam aqui na praça da
igreja quando das festa. Eram trabalhadô. Mas de pavio curto. Depois falaram que a polícia judiô com eles.
Mas eu não sei se é verdade.
G: - E o Sr. lembra de dizer por que é que eles se envolveram com a polícia?
A: - Parece que o pessoal daí não queria eles na terra deles. denunciô eles. Denunciô injusto. Mas
era forte de poder.
G: - E aí eles foram presos!
A: - Foram. Mas depois foram soltos e aí começou.
G: - A polícia demorou a pegar os dois, né?
280
A: - Foi. Demorou muito. E aí começou a inventá história.
G; - As histórias de que eles dois tinham o corpo fechado?
A: - Ah! Mas isso é conversa. Falavam que eles tinha oração que protegia eles. Que o pai fez. Mas não é
isso não.
G: - O que é então?
A: - A polícia é que não conseguia acompanhá os dois no mato.
G: - A polícia pegou os dois?
A: - Falaram que a polícia pegou eles dormindo dentro de uma bueira. Mataram eles lá.
G: - Mataram?
A; - Diz que mataram.
G: - Apresentaram os corpos?
A: - Acho que levou eles dois pra Belo Horizonte. Deus no jornal que eu lembro. O jornal contava a
ladainha deles.
G: - É verdade que teve gente que protegeu os dois?
B: - Teve!
[Esta última fala foi do segundo interlocutor que havia chegado pouco e estava ouvindo a conversa. A
partir daqui saímos do molde de entrevista formal e passamos a um momento narrativo que conta com a
interação de todos os presentes.]
G: - Teve?
B: - Teve.
A: - É coisa complicada de se dizer.
B: - Eu me lembro bem.
A: - Tinha muito fazendeiro aqui da região que gostava deles. Era gente trabalhadora apesar do gênio
difícil.
B: - Mas teve aquele que eles fizeram subi no pé de laranjeira. Ele não foi um dos que protegeu os Piriá
não.
A: - De quem cê tá falando?
B: - Eu lembro que os Piriá colocaram aquele homem em cima do pé-de-laranja. Qual era o nome dele?
O dono daquele terreno...
A: - Quem, sô?
B: - Foi porque ele não pagô eles. Negócio de uma roçação de pasto. Porque eles acabaram a roçação
muito rápido e... Bom, os Piriá infezaro e colocó fogo na carroça dele. ele deu parte deles. Como é que
chamava o home, fulano?
A: - Eu num tô lembrado do nome. Qual fazendeiro mesmo?
B: - Aquele que tinha terreno aí. O primeiro que os Piriá foram no terreno dele, onde começaram a
matança. Como é que chamava? Sei que não pagaram eles. Eles foram e enfezaram e puseram fogo na
281
carroça. denunciaram eles. Eles foram preso injustamente. E depois que eles saíram de lá de jura de fazer
vingança. Cê lembra?
G: - Não tão bem. Eu era muito menina na época.
B: - Tem até um filme. Você sabia?
G: - Me disseram mesmo.
B: - Já viu?
G: - Não. Ainda estou tentando conseguir.
B: - Seria bom pra você ver. Vai escrever um livro sobre os Piriá? Ouvi você falando com pai.
G: - Estou juntando informações sobre eles. Tem muita coisa e cada um lembra de uma passagem.
Quero juntar tudo.
B: - Eles mataram o policial em cima da pedreira. É que eles estavam morando na pedreira. Eles
atiraram no meio da testa dele. Foi que começou a matança foi aí. Eles atiravam muito bem.
A: - Aprenderam a atirá com porvera, né?
B: - Não errava mesmo.
A: - O Caolho era danado. Atirava que nem o capeta. Quando eles mataram ele foram mil home.
B: - Fizeram um cerco. Preparam uma emboscada em Lassance. Quando eles foram passar embaixo da
cerca de arame, mataram os dois.
A: - Não me lembro é do caso do pé-de-laranja.
B: - Num lembra, pai. Tiraro a ropa dele e mandaro ele apanhá a laranja toda pra ele aprendê a não fazê
o que fez com eles.
[risos]
B: - Subiu peladão.
G: - Mas fizeram alguma violência com ele?
B; - Não. Não batero nem mataro porque ele fez o que os Piriá mandaro. E eles não matava civil.
A: - Mas e o caso daquela matança na Serra [de Santa Helena]. O casal de velho morto a golpe de foice?
B: - Isso não é da época dos Piriá não.
A: - É sim. O caso do Albertão.
B: - Não. Aí também foro dois. Mas quem pegô os dois foi Cabo Madureira.
A: - Mas é caso parecido.
B: - E Angueretá? Você não vai pô nada de Angueretá no seu livro não?
G: - Até conversei com Cabo Madureira. Mas...
A: - E o que foi que ele falou.
[Olhares cúmplices e meio sorriso dos dois. Depois, risos.]
G: - Ele me contou a história, a parte que ele sabia.
282
A: - Contou do jeito dele, né?
B: - Aquele matô gente, viu. Aquele matô gente com borra. Eu lembro, porque na época dos Piriá eu
tinha 16 anos.
G: - Lembra de Capitão Ivo?
B: - Capitão Ivo foi aqui nos mato e borrô as calça toda...
[risos]
A: - O povo falava que eles sumia e coisa e tal.
B: - Não existe gente que some não. Eles tinha coragem e a polícia não tinha coragem de enfrentá.
Porque, se achasse dois que tivesse coragem de enfrentar, igual aqueles soldado alemão que Hitler treinô, não
ia falhá e a coisa não rendia.
A: - Eles era valente. Eu xinguei o pai deles certa feita. Por causa de um negócio. Eu não tinha medo
deles não. Que não só de cedê pra valentia tola.
B: - Muita coisa exageraro. A polícia judiô muito com eles.
A: - Era uns jão-ninguém, né? Sem força.
B: - A polícia não devia incomodá quem andava direito. No mais não fazia o serviço dela. Teve de vir
destacamento de fora. Pra todo lado tinha soldado. Mil home pra fechá o cerco, pra madois bosta. fi
que os dois era matadô treinado. Eles tivero foi peito de enfrentá a polícia.
G: - Enfrentaram e acabaram mortos.
B: - Falaram que mataro, né?
A: - Falaram.
B: - Disseram foi que mataro dois pescadô. Paredão [jornalista local] tirô foto do corpo. falô com
Paredão? Ele vai podê te explimuita coisa. Ele é repórter, e viu, né? Vai falá bem. Ainda mais que é
pra colocá no livro.
G: - As fotos eram dos Piriá, então?
B: - O povo fala que num matô, porque queria que fosse igual aquele outro lá, o Bin Laden.
A: - É! Que o Bin Laden tá vivo.
B: - Eu acho que ele não conseguiu saí de lá. O Bush quê ele morto. E aquele manda, né? Aquele
manda que é uma desgraça.
A: - Aquilo é uma praga.
B: - Se tivesse que jogá uma bomba atômica tinha que jogá por lá. Por isso, eu acho que o Bin Laden
fez errado. Ele devia ter derrubado aquela duas torre não. Devia jogado o avião em cima do palácio do
home.
G: - Eu ainda não tinha ouvido esse caso da tourada.
A: - A tourada era de circo. Os Piriá junto com o pai fazia pra ganbico. Eles era rapaz de enfrentá
qualquer coisa, qualquer trabalho. Foro capaz de enfrentá polícia armada. E eles nem tinha armamento, hein?
A polícia ficou desorientada. Não tava acostumada com resposta a desaforo.
283
B: - O povo confundia a polícia de medo. Não podia denunciá Piriá. Eles não matava civil, mas o povo
respeitava. Covardia, só fizero com o home em cima do pé-de-laranja.
[risos]
B: - Corage que eles tinha era muita. Corage de sobra.
A: - Não tinha armamento direito, mas não errava tiro.
B: - Isso é verdade. Ficava um de costa pro outro.Um carregava a arma e o outro mandava chumbo. E ia
rodando que nem máquina.
A: - Por isso é que chamava eles de Piriá. Por causa do Piriá esperto do arrozal.
B: - Eles plantava arroz, que é uma trabaiera danada. E treinaro de polvera matando aquele bichim
esperto como curisco que atacava a plantação. E mataro foi muito. Por isso foro chamado Piriá. Era esperto
como um bichim daquele. Vale dizer que os Piriá viraro Piriá matando piriá e defendendo o que era seu.
A: - É porque aquilo cai numa roça de arroz, arrasa tudo e não tem quem pegue.
B: - Mas tem muito tempo que você tá pesquisando?
G: - Na verdade, comecei pra valer foi ontem. Já conversei com fulano. Foi ele que disse pra eu vir aqui.
B: - É? E o quê que ele falô?
G: - Contou da morte do policial aqui no Paredão.
B: - E você é filha de quem?
A: - Ela é filha da neta da dona Maria Saboeira, esposa de Seu João que morava aqui, perto da São José.
B: - Do povo de Careca da fábrica?
G: - É! Tio Expedito, Tio Cirino, Tio Joãozinho.
B: - Conheço demais.
G: - Tenho que conversar com eles ainda. Certamente se lebram de alguma coisa.
B: - Quando eu era rapaz, se a gente via polícia falava: “Vou chamá Piriá pr’ocê!”
G: - Meu Deus!
[risos]
B: - Eles morria de raiva. Morria de raiva. Todo mundo falava. Qualquer coisinha que discutia com eles
na rua, né, principalmente no trânsito: “Ah! Ocês tem que mexê é com Piriá. Eles é que dá conta d’ocês.”
[risos]
G: - Que coisa! Mas isso não era perigoso?
B: - Isso virô foi um problema moral. Eles ficaro desmoralizado, que a polícia de Sete Lagoas não deu
conta dos Piriá. Teve de vir destacamento de Belo Horizonte. Até capitão, cagô tudo nas calça, breô todo.
284
[risos]
B: - Virô motivo de deboche na cidade e tudo ficô gravado aí, muito tempo aí.
G: - Capitão Ivo morreu, né?
A: - Tem bem tempo que não ouço falá dele. Deve tê morrido.
G: - Eu não sei é que era o prefeito na época.
B: - Acho que era Cecé.
G: - Então, de lá pra cá mudou pouca coisa!
[risos]
B: - A polícia em Sete Lagoas envolvia mais era com trânsito, né? É a terra que mais tem blitz no Brasil.
Olha que já rodei o Brasil todo. É impressionante.
G: - Era pro trânsito ser melhor, né?
B: - É tanto roubo de carro que tem aqui. Quer dizê que não resolve, né?
A: - Por isso que seguro aqui é essa fortuna.
B: - pouco tempo, Sete lagoas é a cidade onde tem o maior número de roubo de D20 no Estado [de
Minas Gerais].
[Segue uma seqüência de relatos sobre roubos de carro de pessoas conhecidas e sobre as estratégias os
ladrões.]
A: - É melhor andá de carro velho.
B: - Eu mesmo, se pudesse, era um novo na garagem e uma furreca para batê.
G: - E o problema é que nem alarme adianta.
B: - Nada. Sai uma tecnologia nova, o ladrão aprende antes. Tecnologia não vale de nada não. O que
resolve mesmo é o “frei carnero”. Aquele ali, so se arrebentá tudo. E até arrebentá, dá tempo de acudi.
G: - O Sr. falou de tecnologia, lembrei que na época dos Piriá usaram até helicóptero?
A: - Não, que acho que nem tinha isso na época. Usaro foi um aviãozinho desses teco-teco que um
fazendero emprestô pra polícia. Os dono da cooperativa onde os Piriá apanharo umas galinha pra comê.
B: - É! Mas veio até visão de raio X do exército dos Estados Unidos pra enxergá os Piriá no escuro. Não
valeu titica. Os home sumia mato adentro e quem é.
G: - Sumia que nem mágica.
B: - Quem nem feitiço. Mas não era nada disso não. Eles era é esperto mesmo e conhecia a redondeza.
Não tinha medo do mato e sabia se virá.
G: - Já a polícia...
B: - É melhó deixá pra lá.
285
[risos]
X: - (...)
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