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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS – GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
ROSANE TEREZINHA FELIPE
A IDÉIA DE POSIÇÃO ORIGINAL NA TEORIA DA
JUSTIÇA COMO EQÜIDADE DE JOHN RAWLS
TOLEDO
2008
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ROSANE TEREZINHA FELIPE
A IDÉIA DE POSIÇÃO ORIGINAL NA TEORIA DA JUSTIÇA
COMO EQÜIDADE DE JOHN RAWLS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação, em Filosofia, da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. José Luiz Ames
TOLEDO
2008
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ROSANE TEREZINHA FELIPE
A IDÉIA DE POSIÇÃO ORIGINAL NA TEORIA DA JUSTIÇA COMO EQÜIDADE
DE JOHN RAWLS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação, em Filosofia, da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre.
COMISSÃO EXAMINADORA
_________________________________
Prof. Dr. José Luiz Ames
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
_________________________________
Prof. Dr. Delamar José Volpato Dutra
Universidade Federal de Santa Catarina
_________________________________
Prof. Dr. Horacio Luján Martínez
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Toledo, 04 de julho de 2008.
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. José Luiz Ames e a Prof. Ms. Nelsi Kistemacher Welter, pelas orientações e
sugestões preciosas; pela amizade, confiança e motivação em todas as etapas.
A minha família, em especial meus pais, pelo incentivo e apoio.
Ao meu marido, pela sua compreensão e incentivo.
Aos meus colegas, pelo companheirismo ao longo do Curso.
Aos Professores e à Natália, pela constante presença nesta etapa de formação.
À Capes, pelo apoio financeiro.
E aos que contribuiram de alguma forma para a realização do trabalho.
FELIPE, Rosane Terezinha. A idéia de posição original na teoria da justiça como eqüidade
de John Rawls. 2008. Dissertação de Mestrado em Filosofia – Universidade Estadual do Oeste
do Paraná – UNIOESTE/ Campus de Toledo.
RESUMO
O objetivo do presente trabalho consiste na investigação e exposição da concepção de posição
original na teoria da justiça como eqüidade, elaborada por John Rawls. Para isso, destaca a
maneira como o autor expõe o acordo realizado nesta situação inicial de escolha, ou seja, as
partes simetricamente situadas na posição original e encobertas pelo véu de ignorância, que
tem como função impedir a passagem de informações arbitrárias que possam influenciar na
escolha dos princípios. Além disso, o acordo realizado na posição original é caracterizado
como hipotético e a-histórico. Rawls, nas obras posteriores a Uma Teoria da Justiça, destaca
que o mal-entendido quanto ao aspecto hipotético desta posição está no fato dela não ser vista
como um artifício de representação. Desta forma, a fim de compreender a argumentação
acerca da posição original, trata-se das doutrinas nas quais a teoria da justiça como eqüidade é
apresentada como uma alternativa, com o intuito de contextualizar a teoria de Rawls. A partir
das obras do próprio autor, procura apresentar as idéias fundamentais e a forma como estão
interligadas nesta teoria. Além disso, são objetos de estudo o papel e as características dessa
situação inicial de escolha e os princípios de justiça, como o resultado do acordo realizado
entre as partes na posição original. Esta posição é compreendida como uma situação inicial de
igualdade adequada para a escolha dos princípios, que devem especificar os termos
eqüitativos da sociedade compreendida como um sistema de cooperação social.
Palavras–chave: John Rawls; justiça como eqüidade; posição original.
FELIPE, Rosane Terezinha. The idea of original position in the theory of justice as fairness of
John Rawls. 2008. Dissertation of Master in Philosophy – Universidade Estadual do Oeste do
Paraná – UNIOESTE/ Campus de Toledo.
ABSTRACT
The objective of the present work consists in the investigation and exhibition of the
conception of the original position in the theory of justice as fairness, drawn by John Rawls.
For that, it is highlighted the way the author exhibits the agreement made in this initial
situation of the choice, in other words, the parts symmetrically situated in the original position
and covered by the veil of ignorance, that has the function to impede the passage of arbitrary
information that can influence in the choice of the principles. Besides, the agreement made in
the original position is characterized as hipothetical and non-historical. Rawls, in the
subsequent works of A Theory of Justice, emphasizes that the misunderstanding about the
hypothetical aspect of this position is due to the fact it isn´t seen as a representation artifice.
By this way , in order to understand the argumentation about the original position, it treats the
doctrines, in which the theory of justice as fairness, is presented as an alternative, with the
intent to contextualize the theory of Rawls. From the works of the own author, it looks for
presenting the fundamental ideas and the way how they are linked in this theory. Besides,
they are object of study the role and the characteristics of this initial situation of the choice
and the principles of justice, as the result of the agreement made between the parts in the
original position, are objects of the study. This position is understood as an initial situation of
the suitable equality for the choice of the principles, that must specify the fair terms of the
society understood as a system of social cooperation.
Key-words: John Rawls; justice as fairness; original position.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................8
1 A NOÇÃO DE CONTRATO SOCIAL NO CONTRATUALISMO CLÁSSICO E A
FORMAÇÃO DO CONCEITO DE POSIÇÃO ORIGINAL EM RAWLS...................14
1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO..................................................................................................14
1.1.1 O Contratualismo Clássico e sua Retomada Crítica na Contemporaneidade..................14
1.1.2 Teorias Vigentes – Utilitarismo e Intuicionismo.............................................................20
1.2 TEORIA DA JUSTIÇA: IDÉIAS FUNDAMENTAIS......................................................25
1.2.1 O Conceito de Justiça......................................................................................................25
1.2.2 A Idéia de Sociedade Bem-Ordenada como Sistema de Cooperação Social..................28
1.2.3 A Idéia de Pessoa como Cooperadora.............................................................................33
2 A POSIÇÃO ORIGINAL E SUA CARACTERIZAÇÃO...............................................37
2.1 A IDÉIA DE POSIÇÃO ORIGINAL.................................................................................37
2.1.1 O Papel do Véu de Ignorância.........................................................................................42
2.1.2 O Acordo Hipotético e A-Histórico ................................................................................48
2.1.3 A Posição Original enquanto Artifício de Representação...............................................53
2.2 AS RESTRIÇÕES FORMAIS AO CONCEITO DE JUSTO............................................56
2.3 A JUSTIÇA PROCEDIMENTAL PURA..........................................................................57
2.4 A IDÉIA DE EQUILÍBRIO REFLEXIVO........................................................................60
3 A RACIONALIDADE DAS PARTES NA POSIÇÃO ORIGINAL E OS PRINCÍPIOS
DE JUSTIÇA .......................................................................................................................65
3.1 AS PARTES NA POSIÇÃO ORIGINAL..........................................................................65
3.1.1 As Características das Partes...........................................................................................65
3.1.2 O Raciocínio para a Escolha dos Princípios de Justiça...................................................73
3.1.3 A Regra Maximin ............................................................................................................78
3.2 OS PRINCÍPIOS DE JUSTIÇA.........................................................................................82
3.2.1 Primeiro Princípio de Justiça: O Princípio da Igual Liberdade.......................................84
3.2.2 Segundo Princípio de Justiça...........................................................................................86
3.2.2.1 O princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades .................................................86
3.2.2.2 O princípio da diferença...............................................................................................87
3.2.3 Os Quatro Estágios para a Aplicação dos Princípios de Justiça......................................89
CONCLUSÃO.........................................................................................................................92
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................98
BIBLIOGRAFIA PRIMÁRIA .................................................................................................98
BIBLIOGRAFIA SECUNDÁRIA...........................................................................................98
INTRODUÇÃO
John Rawls (Baltimore, 1921-2002) começa a desenvolver o seu pensamento nos
anos 50, publicando alguns artigos a partir dos quais passa a ser conhecido. Contudo, somente
mais tarde, o autor alcança destaque no âmbito acadêmico e, de acordo com Garcia
1
(1985,
p.01-02) até ultrapassa esse âmbito, despertando o interesse de juristas, psicólogos, sociólogos
e economistas, após a publicação da sua obra Uma Teoria da Justiça (A Theory of Justice),
em 1971. Esta obra reúne em uma visão coerente as idéias desenvolvidas nos trabalhos
anteriores. Assim, com a repercussão da sua obra, Rawls é considerado por muitos autores
como o mais importante pensador da segunda metade do século XX.
Diversos acontecimentos importantes contribuíram para a elaboração destes
trabalhos. Podemos citar como exemplos as desigualdades sociais verificadas no interior da
sociedade, a questão do igualitarismo e dos direitos civis e o problema da justiça distributiva,
entre outros. Estes fatores influenciaram o desenvolvimento político e social e o crescimento
econômico das sociedades democráticas
2
. A obra Uma Teoria da Justiça caracteriza-se por
ser um texto teórico de difícil leitura, visto se tratar de uma teoria complexa, sistemática e às
elaborações abstratas que constituem o seu conteúdo.
A publicação de Uma Teoria da Justiça suscita uma série de objeções, críticas e
comentários que o autor procura responder nas suas obras posteriores. De acordo com
Oliveira
3
(2003, p. 10), Rawls sempre considerou as sugestões e comentários de seus colegas
e colaboradores, reformulando os pontos que ficaram obscuros e ambíguos e, até mesmo,
introduziu termos a fim de melhor responder às objeções e, assim, evitar mal-entendidos.
Devido a essas mudanças, alguns interlocutores interpretaram as reformulações como um
abandono do intento original da teoria de Rawls. Entretanto, de acordo com o autor, “apesar
das várias críticas à obra, ainda aceito suas principais coordenadas e defendo suas doutrinas
centrais” (RAWLS, 2002, p. XIII). Podemos, pois, dizer que, apesar das mudanças, o núcleo
de seu pensamento se manteve igual.
Na introdução de O Liberalismo Político, Rawls destaca uma importante distinção
entre esta obra e Uma Teoria da Justiça, a saber, que na sua obra-prima não aparece o
contraste entre uma concepção política de justiça e as doutrinas morais abrangentes, o que
1
GARCIA, Jesus Ignácio Martinez. La Teoria de la Justicia de John Rawls, 1985.
2
Para elementos sobre o contexto social e histórico que contribuíram para a elaboração da obra de Rawls
Cf. GARCIA, 1985, p. 05; OLIVEIRA, 2003, p. 11.
3
OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. Rawls, 2003.
9
poderia levar a pensar que a teoria da justiça como eqüidade é uma doutrina abrangente. Em
O Liberalismo Político o autor elimina a ambigüidade presente na sua primeira obra, de modo
que a teoria da justiça como eqüidade é compreendida como uma concepção política de
justiça. Além deste trabalho, no Prefácio de Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação
(RAWLS, 2003, p. XVII), o autor apresenta três mudanças em relação à sua obra-prima que
reforçam essa distinção e explicam o porquê destas reformulações. Estas mudanças dizem
respeito à formulação e ao conteúdo dos princípios de justiça; na forma como o argumento a
favor dos princípios, a partir da posição original, está organizado; e, por fim, que a teoria da
justiça como eqüidade deve ser compreendida como uma concepção política de justiça e não
como uma doutrina abrangente do bem.
Rawls, ao elaborar a teoria da justiça como eqüidade, tem como ponto de partida a
questão da desigualdade social. Ou seja, o autor compreende a sociedade como um sistema
eqüitativo de cooperação social marcada, ao mesmo tempo, por uma identidade e por um
conflito de interesses. Há uma identidade, porque a cooperação social possibilita aos cidadãos
uma vida melhor e a garantia dos seus direitos e liberdades básicas. Há um conflito de
interesses na medida em que as pessoas são indiferentes quanto à forma como os benefícios
resultantes da cooperação social são distribuídos e há a escassez moderada, que conduz cada
pessoa a garantir mais benefícios para si. Deste modo, no interior da sociedade há diferentes
posições sociais e as pessoas que nasceram e estão nestas posições têm expectativas de vida
diferentes determinados pelo sistema político e pelas circunstâncias sociais e econômicas da
sociedade. Segundo o autor, as instituições favorecem certas posições em relação a outras, o
que resulta em profundas desigualdades sociais.
Considerando isso, como resolver o problema da desigualdade social? Ou melhor,
como definir termos eqüitativos de cooperação social de modo que eles se apresentem como
uma alternativa razoável para tal problema? Rawls, a fim de apresentar uma possível solução
para os conflitos existentes, propõe a teoria da justiça como eqüidade. Ao elaborar a sua
teoria, o autor retoma o modelo argumentativo da teoria contratualista clássica. Contudo, o
autor não pretende instituir ou justificar o Estado ou uma forma de governo a partir do
contrato social, nem explicar a passagem do estado de natureza para a sociedade civil.
Igualmente, não analisa profundamente essas teorias nem investiga sistematicamente a
importância do contrato na contemporaneidade. O que o autor faz é utilizar esse modelo
argumentativo como instrumento para escolher princípios de justiça para serem aplicados, em
especial, à estrutura básica da sociedade já existente; ou seja, apresentar uma maneira
adequada de ordenar as instituições mais importantes da estrutura básica da sociedade a fim
10
de desempenharem de forma justa o seu papel, qual seja, o de atribuir direitos e deveres e
distribuir os recursos provenientes da cooperação social. Além disso, esta proposta tem por
objetivo apresentar uma alternativa para as doutrinas até então vigentes na sociedade, a saber,
o utilitarismo e o intuicionismo. Como o autor afirma no prefácio de Uma Teoria da Justiça, a
doutrina utilitarista não explica “[...] as liberdades e direitos básicos dos cidadãos como
pessoas livres e iguais, uma exigência de importância absolutamente primordial para uma
consideração das instituições democráticas” (RAWLS, 2002, p. XIV). Quer dizer, tais
doutrinas não resolvem de maneira satisfatória o problema da desigualdade social.
Mas, como é explicada a escolha de princípios de justiça a partir de um contrato
social? É possível, de acordo com o autor, a escolha de princípios não influenciados pelos
conflitos e informações do contexto social? Para resolver estas questões, Rawls apresenta que
os termos eqüitativos da cooperação social seriam escolhidos em uma posição de igualdade
que ele denomina “posição original”. O acordo, segundo ele, ocorre entre os cidadãos
compreendidos como livres e iguais, entre aqueles comprometidos com este sistema. Deste
modo, nesta situação de escolha, as partes – que são os contratantes neste modelo de contrato
social – estão encobertas por um “véu de ignorância”. A função deste véu é impedir que as
partes conheçam as suas habilidades, talentos, interesses, posição social que ocupam e a
concepção de bem que defendem, dentre outros elementos que poderiam influenciar na
escolha dos princípios e assim beneficiar o seu caso particular. Ou seja, elas estão abstraídas
dos dados irrelevantes para a justiça. Além disso, o acordo realizado na posição original é
caracterizado como hipotético e a-histórico. É hipotético porque o acordo não ocorre
realmente, quer dizer, não se pergunta o que as partes escolheram na posição original, mas o
que elas poderiam escolher nesta situação de igualdade. É a-histórico, porque a qualquer
momento elas podem se posicionar nesta situação de escolha com o objetivo de escolher
princípios de justiça.
O modelo levanta algumas interrogações: como o autor explica um acordo realizado
entre partes que desconhecem elementos necessários para a deliberação? Quais são as
informações às quais elas têm acesso a fim de escolher a alternativa que consideram a mais
razoável para a sua cooperação social? Quais elementos Rawls utiliza para justificar a
validade de um contrato hipotético? Considerando isso e compreendendo a importância que a
concepção de posição original possui na teoria da justiça como eqüidade, a nossa tarefa
central neste trabalho será a de desenvolver a argumentação do autor em defesa da concepção
de posição original como um procedimento contratualista, um exercício mental para a escolha
dos princípios de justiça. Ou seja, nosso propósito será apresentar o pensamento de Rawls
11
acerca da posição original como uma forma razoável, segundo ele, de escolher princípios de
justiça. Isto significa que deveremos entender as idéias fundamentais e os elementos que
compõem a teoria da justiça como eqüidade para, a partir disso, compreendermos como,
através do dispositivo contratual da posição original, ele explica a escolha dos dois princípios
de justiça de forma a garantir a eqüidade dos mesmos, quer dizer, sob quais condições e
restrições eles são estabelecidos; como o autor desenvolve o modelo contratualista da posição
original na teoria da justiça como eqüidade; quais elementos utiliza para explicar e legitimar a
posição original; e porque as partes, situadas nesta posição, escolhem esses princípios ao
invés de outros. Enfim, a nossa pretensão será desenvolver a alternativa contratualista da
posição original na teoria rawlsiana de justiça, isto porque o contrato social é, por assim dizer,
o eixo principal da sua teoria. Para tanto, dividiremos nosso trabalho em três capítulos, os
quais apresentaremos sinteticamente a seguir.
O primeiro capítulo está organizado em dois pontos principais: num primeiro
momento, o da contextualização, apresentaremos brevemente alguns aspectos que “explicam”
o período de silêncio que pairou sobre o contratualismo clássico e a sua retomada na
contemporaneidade a partir da teoria de Rawls. Além disso, serão expostas algumas razões
pelas quais o autor apresenta a teoria da justiça como eqüidade como uma alternativa para as
doutrinas utilitarista e intuicionista. A intenção é apresentar elementos nos quais a teoria de
Rawls se contrapõe a essas doutrinas por considerá-las insatisfatórias para resolver os
problemas da justiça social. Se faz necessário ressaltar que não pretendemos comparar a teoria
de Rawls com o contratualismo clássico nem com as doutrinas utilitarista e intuicionista.
Queremos apenas expor os elementos que contribuem para a compreensão do contexto do
qual Rawls parte para desenvolver a sua teoria. Num segundo momento, apresentaremos o
conceito de justiça, e as idéias de sociedade e de pessoa. Destacaremos, assim, porque o
objeto prioritário da concepção política de justiça proposta por Rawls é a estrutura básica da
sociedade; quais são as condições que tornam possível e necessário o papel e o objeto da
justiça; como o autor compreende a sociedade e quais são as características de uma sociedade
bem-ordenada; como são concebidas as pessoas que vivem e cooperam com este sistema.
Estas idéias são indispensáveis para compreendermos a teoria de Rawls e a sua argumentação,
a partir da posição original, para a escolha dos princípios de justiça.
O segundo capítulo tratará da posição original como dispositivo contratualista
proposto por Rawls para a escolha dos princípios de justiça. Ou seja, a partir da compreensão
da sociedade como um sistema eqüitativo de cooperação social, na qual as pessoas são
compreendidas como livres e iguais e plenamente cooperativas com este sistema durante toda
12
a sua vida, como determinar os termos eqüitativos que devem reger a cooperação social? Essa
é a nossa proposta, a saber, apresentar a forma como Rawls desenvolve a argumentação em
defesa da posição original como uma maneira eqüitativa de escolher uma concepção de justiça
razoável para ser aplicada, em especial, às instituições mais importantes da estrutura básica da
sociedade.
Com este objetivo, realizaremos uma exposição acerca da concepção de posição
original a partir de sua estrutura; a sua importância para a teoria da justiça como eqüidade; a
argumentação e defesa dessa concepção para a escolha dos princípios de justiça e as
condições e restrições que garantem a escolha imparcial destes princípios; as características
da posição original enquanto uma situação de escolha hipotética e a-histórica e a forma como
o autor justifica que o acordo hipotético possa ser aceito e seguido pelos cidadãos; e as idéias
de justiça procedimental pura e equilíbrio reflexivo, o seu papel e importância para a defesa
da posição original.
Devido ao fato da teoria da justiça como eqüidade ser uma teoria contemporânea,
que retoma um modelo argumentativo da teoria contratualista clássica para apresentar uma
alternativa para o problema da desigualdade social presente nas sociedades atuais, ela é objeto
de uma série de objeções, críticas e debates que não podem ser ignorados e nem negados.
Neste sentido, em nosso trabalho destacaremos brevemente e a título de ensaio a visão crítica
de Ronald Dworkin acerca da forma como Rawls desenvolve a posição original enquanto um
modelo contratualista. Contudo, ao apresentar a objeção levantada por este autor, não nos
aprofundaremos na sua argumentação, apenas faremos referência à sua objeção.
No terceiro capítulo destacaremos a racionalidade das partes para a escolha dos
princípios de justiça. Ou seja, quais são as características das partes situadas simetricamente
nesta situação de escolha a fim de escolher, entre as alternativas apresentadas, aquela que
consideram a mais razoável para reger a sua cooperação social. Diante da ausência de
informações quanto à situação social, política e econômica da sociedade e das suas próprias
informações, como elas raciocinam para chegar à conclusão de que os dois princípios são os
mais razoáveis para serem aplicados à estrutura básica da sociedade; a partir de que dados elas
realizam tal escolha; e o papel da regra maximin para este processo de deliberação. Num
segundo momento, são apresentados os dois princípios de justiça propostos por Rawls como
os mais adequados para serem aplicados às instituições da estrutura básica da sociedade e a
argumentação em defesa dos mesmos.
O ponto de partida para a nossa investigação, a saber, das idéias desenvolvidas na
teoria da justiça como eqüidade e da concepção de posição original, é a obra Uma Teoria da
13
Justiça, sobretudo a primeira parte, visto que nela o autor desenvolve a estrutura teórica da
sua teoria e apresenta a idéia de posição original. Quer dizer, nesta obra o autor trata
sistematicamente dos elementos fundamentais para a compreensão da forma como a posição
original conduz a escolha dos princípios de justiça. Além da sua obra-prima, contaremos com
a contribuição dos trabalhos posteriores. Nestas obras, o autor apresenta reformulações e
introduz aspectos que complementam as idéias desenvolvidas em Uma Teoria da Justiça.
Contudo, se faz necessário ressaltar que não pretendemos comparar os conceitos
desenvolvidos nas diferentes obras de Rawls, apenas acrescentar aspectos que contribuam
para a melhor compreensão dos conceitos e destacando, sempre que possível, as alterações
realizadas.
1 A NOÇÃO DE CONTRATO SOCIAL NO CONTRATUALISMO CLÁSSICO E A
FORMAÇÃO DO CONCEITO DE POSIÇÃO ORIGINAL EM RAWLS
A intenção de Rawls ao elaborar a teoria da justiça como eqüidade é apresentá-la
como uma alternativa para as tendências dominantes na filosofia moral moderna e como uma
possível solução para o problema da desigualdade social. Para tanto, o autor retoma o modelo
argumentativo do contrato social do contratualismo clássico como forma adequada de
selecionar princípios eqüitativos. Estes princípios possuem o papel de estabelecer uma forma
razoável de regular a maneira como as instituições sociais atuam, ou seja, a forma como
asseguram e distribuem os benefícios aos membros que vivem e cooperam com a sociedade.
Neste sentido, o nosso primeiro capítulo, dividido em dois momentos, constitui-se
de uma breve exposição dos seguintes pontos: o tópico referente à contextualização trata de
alguns elementos que “explicam” o período de silêncio que pairou sobre a teoria política e a
retomada, na teoria da justiça como eqüidade, do modelo argumentativo do contrato social do
contratualismo clássico; em seguida apresentamos a justificativa do autor de porque as
doutrinas utilitarista e intuicionista são insatisfatórias para resolver os problemas sociais,
razão pela qual ele apresenta a sua teoria como uma alternativa. Na segunda parte realizamos
a exposição das principais idéias da justiça como eqüidade, que compreende as idéias de
justiça, de sociedade bem-ordenada como sistema eqüitativo de cooperação social, e de
pessoa livre e igual. Estas idéias são fundamentais para compreendermos a teoria elaborada
por Rawls.
1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO
1.1.1 O Contratualismo Clássico e sua Retomada Crítica na Contemporaneidade
O conceito de contrato social é o método argumentativo utilizado pelos autores
contratualistas clássicos com o intuito de explicar a passagem do estado de natureza para a
sociedade civil. Apesar da semelhança na argumentação, os autores distanciam-se quanto aos
aspectos e finalidades do contrato. Todos os filósofos, com características distintas,
consideram os homens no estado de natureza como indivíduos livres e iguais. O contrato
15
social é considerado por alguns como um fato histórico (Locke), por outros como hipotético
(Hobbes e Rousseau) ou ainda como uma idéia da razão (Kant). A sua função é explicar a
instituição de um Estado ou de uma forma de governo. Com o pacto, os homens renunciam a
todos (Rousseau) ou alguns dos direitos (Hobbes, Locke e Kant) que possuíam no estado de
natureza, em busca da proteção de sua vida (Hobbes), propriedade (Locke), bem-comum
(Rousseau) ou uma autoridade instituída (Kant).
A doutrina do contrato social que predominou nos séculos XVII e XVIII encerra-se
com a teoria desenvolvida por Kant. Segundo Krischke
4
, os pensadores do século XIX
criticavam o conceito de contrato por este enfatizar o acordo entre indivíduos em vista de
interesses comuns. Ou seja, possuíam como ponto central da sua crítica a questão do
individualismo presente no contratualismo clássico. Assim, no século XIX, tem-se “[...] o
impacto de formas de ação e de pensamento que enfatizavam principalmente a supremacia do
Estado e a atuação das elites, grupos, classes e coletividades na legitimação política, em
substituição aos indivíduos, seus interesses e sua racionalidade” (KRISCHKE, 1993, p. 143).
Will Kymlicka
5
defende que o contratualismo clássico chegou ao fim no século
XIX, devido a algumas incoerências na sua argumentação, e aponta duas falhas para justificar
o seu pensamento. A primeira falha consiste no fato de que “[...] nunca existiu um tal
contrato, e sem um contrato real, nem os cidadãos nem os governantes são limitados por
promessas” (KYMLICKA, 1991, p. 187). Ou seja, os contratualistas clássicos pretendem,
com a sua teoria, instituir governos justos que cumpram as suas obrigações perante os
membros da sociedade. Contudo, segundo Kymlicka, contratos reais formam governos justos
e injustos, o que é contrário ao pensamento dos teóricos. Desta forma, pode-se pensar num
“contrato hipotético”, onde as pessoas celebram um acordo com um governo justo
6
e
acreditam que ele irá cumprir com as suas promessas. Entretanto, encontra-se uma outra
dificuldade, qual seja, a de que acordos hipotéticos não criam obrigações. Sendo assim, a
idéia de contrato social parece, segundo o autor, “[...] ou historicamente absurda, se ela tem a
intenção de identificar promessas reais, ou moralmente insignificante, se ela tem a intenção de
apontar promessas puramente hipotéticas” (KYMLICKA, 1991, p. 187-8). Ainda nesta
primeira falha do contratualismo clássico, o autor questiona o fato de não ser explicado o que
leva as futuras gerações a respeitarem o governo e as leis, que são o resultado do
consentimento daquele povo. A segunda falha caracteriza-se pela obediência ao governante
4
KRISCHKE, Paulo (org.). O Contrato Social: ontem e hoje, 1993.
5
KYMLICKA, Will. The social contract tradition, 1991, traduzido por Alcino Eduardo Bonella.
6
Está passagem não deve ser considerada para a teoria de Hobbes, uma vez que o contrato é celebrado entre os
próprios indivíduos, cada homem com cada homem.
16
pela palavra dada, ou seja, no contrato social, os homens transferiram os seus direitos e,
assim, eles não podem violar a sua palavra; quer dizer, voltar a fazer aquilo que faziam no
estado de natureza. A falha deste pensamento estaria em não questionar o porquê do dever de
cumprir a palavra.
Pettit
7
explica essa ruptura do pensamento contratualista a partir da forma como são
estudados os conceitos. Ou seja, de acordo com este autor, a teoria política tradicional tem
como objeto de estudo, simultaneamente, a exeqüibilidade e a desejabilidade. O exeqüível
compreende as ações que um grupo, um governo ou uma entidade estão ou não em condições
de fazer a fim de obter um resultado, tendo assim, condições de identificar quais das opções
são exeqüíveis. A desejabilidade, por sua vez, compreende aquelas coisas desejáveis para
atingir um determinado fim. Acontecimentos do século XX fragmentaram as faces de estudo
da teoria política. Isto ocorreu com a profissionalização das disciplinas, onde os economistas e
os cientistas sociais se dedicavam ao estudo do exeqüível, enquanto os filósofos estudavam a
desejabilidade. Segundo o autor, a exploração do que é desejável e do que é exeqüível de
forma isolada, não tiveram um bom resultado, visto ser necessário ambos os elementos, isto é,
explorar os fins desejáveis e o modo através do qual é possível executar tais fins para avançar
na análise dos conceitos e dos fatos
8
.
Em meados do século XX houve o ressurgimento da teoria política no campo da
economia, filosofia e ciências políticas, tendo a obra de Rawls garantido esse ressurgimento,
uma vez que ela trata de questões de desejabilidade e exeqüibilidade de forma simultânea. Ou
seja, os princípios de justiça propostos por Rawls pretendem garantir direitos, deveres e
liberdades a todos os membros que vivem na sociedade – direitos estes que todos os membros
desejam que sejam garantidos – e esses princípios, ao serem aceitos e seguidos de forma
voluntária pelos cidadãos, conduzem a uma estabilidade social.
A retomada do modelo argumentativo do contrato social predominante no período
moderno, na teoria da justiça como eqüidade proposta por Rawls, causou impacto entre os
estudiosos, na medida em que
para a maioria dos teóricos políticos, a noção de contrato pertencia aos séculos
anteriores, por estar ligada às concepções de pensadores como Thomas Hobbes,
John Locke e Jean-Jacques Rousseau, pelo que foi para eles uma autêntica surpresa,
mesmo uma revelação, a possibilidade de o pensamento contratualista poder ser
abordado na nossa época (KUKATHAS&PETTIT, 1995, p. 32).
7
KUKATHAS, Chandran; PETTIT, Philip. Rawls: “Uma Teoria da Justiça” e os seus críticos, traduzido por
Maria Carvalho, 1990.
8
BONELLA, Alcino Eduardo, Justiça como Imparcialidade e Contratualismo, 2000 (p. 36-42), apresenta outros
elementos do cenário no qual a teoria de Rawls se desenvolveu.
17
O impacto causado pela teoria de Rawls está relacionada às suas inovações, visto
que a justiça como eqüidade tem como objetivo “[...] apresentar uma concepção da justiça que
generaliza e leva a um plano superior de abstração a conhecida teoria do contrato social como
se lê, digamos, em Locke, Rousseau e Kant” (RAWLS, 2002, p. 12). Ou seja, a teoria
elaborada por Rawls retoma os conceitos do contratualismo clássico, contudo, o acordo
realizado na posição original é mais geral na medida em que não compreende a
fundamentação de uma sociedade ou de uma forma de governo, mas a elaboração de
princípios de justiça que visam à estrutura básica de uma sociedade existente; e é mais
abstrata visto que esta situação de acordo é concebida como hipotética e a-histórica. Além
disso, segundo Krischke, uma inovação do contratualismo de Rawls em relação ao
contratualismo clássico, está no fato de que o contrato social na sua teoria tem como proposta
“[...] considerar e solucionar os problemas da desigualdade existente na sociedade”
(KRISCHKE, 1993, p. 145), enquanto que no contrato social clássico “a liberdade de
cidadania [...] servia antes para justificar a convivência com os problemas da desigualdade
existentes na sociedade [...] em lugar de os enfrentar e resolver” (KRISCHKE, 1993, p. 145).
Rawls, ao retomar os elementos deste pensamento, desconsidera – como pode ser
observado na passagem – o modelo de contrato proposto por Hobbes. Segundo Oliveira
9
, este
modelo pertence a uma concepção de contrato contestado por Rawls. Isto significa que nosso
autor descarta a forma como Hobbes explicita a passagem do estado de natureza para a
sociedade civil, uma vez que “[...] a inevitável identificação do estado de natureza com a
guerra de todos contra todos restringe a concepção do contrato como dispositivo de
regramento dos interesses e vantagens individuais” (OLIVEIRA, p. 04). Contudo, para
Oliveira, Rawls considera que na teoria hobbesiana há pontos importantes para o
contratualismo.
Enquanto uma teoria neocontratualista, a justiça como eqüidade tem como referência
os problemas sociais contemporâneos existentes no interior da sociedade como, por exemplo,
a má distribuição dos benefícios resultantes da cooperação social
10
, a violabilidade dos
direitos e os conflitos de interesses. Desta forma, a proposta de Rawls é elaborar uma
concepção política de justiça que visa diminuir as desigualdades sociais através de princípios
de justiça aplicados às instituições da estrutura básica da sociedade. Estes princípios têm a
9
OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. Hobbes, Liberalismo e Contratualismo. Disponível em
www.geocites.com/nythamar/rawls3/html. Acesso em 07 abr. 2007.
10
As idéias intuitivas fundamentais que são necessárias para a compreensão da teoria da justiça formulada por
Rawls serão apresentadas de forma mais clara nos subtítulos seguintes e no decorrer do trabalho.
18
função de regular e avaliar a forma como essas instituições asseguram e distribuem os bens
sociais primários, elementos essenciais para a realização do plano racional de vida das
pessoas, e para o exercício e desenvolvimento das suas capacidades morais, que os habilitam
a serem membros normais e plenamente cooperativos da sociedade ao longo de sua vida. De
acordo com estes aspectos, Rawls tem como foco as sociedades democráticas
contemporâneas, a forma como elas atuam e, conseqüentemente, influenciam as perspectivas
de vida das pessoas que cooperam com a sociedade.
Mas, como garantir que esses termos que devem regular a cooperação social sejam
eqüitativos e não influenciados por informações contingentes? A essas questões o autor
responde com o artifício da “posição original”. Esta posição compreende uma situação na
qual se supõe que as partes – que são os membros da sociedade responsáveis pela escolha dos
princípios de justiça – estão simetricamente situadas a fim de escolher os princípios mais
adequados como definidores dos termos eqüitativos de sua associação, preocupados em
promover os objetivos e interesses das pessoas que elas representam e os seus próprios.
Para assegurar que a escolha dos princípios de justiça ocorra de forma eqüitativa,
Rawls introduz o conceito de “véu de ignorância”, cuja função é dificultar a passagem de
informações específicas acerca da situação social, política e econômica da sociedade e as
informações particulares das partes e dos membros que elas representam. A idéia de posição
original é caracterizada como hipotética e a-histórica, ou seja, não se poderia realizar este
acordo de forma concreta, visto que a escolha destes princípios seria influenciada pelas
informações contingentes da sociedade e pelos interesses particulares.
Assim, Rawls destaca que a teoria da justiça como eqüidade é apenas um exemplo
de teoria contratualista dentre as diversas teorias contratualistas possíveis
11
. Isto porque, cada
teoria desenvolve uma interpretação da situação inicial de escolha de uma determinada forma,
cujo resultado é apresentado como a solução mais adequada para o problema proposto.
Em diversas passagens da obra Uma Teoria da Justiça, o autor enfatiza a
importância do modelo argumentativo do contrato social como a forma mais adequada de
escolher princípios de justiça. Isto fica claro na seguinte passagem:
11
Os autores Kukathas e Pettit (1995, p. 31-2) destacam que no período em que a obra Uma Teoria da Justiça
foi publicada, havia estudiosos cujas idéias estavam voltadas para abordagens contratualistas como, por
exemplo, John Harsanyi, apesar dos seus trabalhos não serem muito conhecidos. Com a publicação desta obra,
em 1971, vários autores passaram a desenvolver variantes da visão contratualista. Exemplos de teorias
neocontratualistas são desenvolvidas na obra de Oña Nuevas teorias del Contrato Social: John Rawls, Robert
Nozick y James Buchanan, 1985.
19
certamente quero sustentar que a concepção mais apropriada dessa situação conduz
a princípios de justiça contrários ao utilitarismo e perfeccionismo, e que portanto a
doutrina do contrato oferece uma alternativa para essas visões. Todavia é possível
contestar esse ponto de vista mesmo concedendo que o método contratualista seja
uma maneira útil de estudar teorias éticas e de apresentar os pressupostos em que se
baseiam (RAWLS, 2002, p. 17).
Em outra passagem destaca que “o procedimento das teorias contratualistas fornece,
então, um método analítico geral para o estudo comparativo das concepções da justiça”
(RAWLS, 2002, p. 131). Ou seja, ao posicionar as partes em uma situação de escolha – sob
certas restrições e com acesso às informações necessárias para deliberar acerca da melhor
alternativa – elas têm condições de escolher, dentre as concepções apresentadas, aquela que
consideram como a mais razoável para resolver a questão proposta nesta situação inicial. No
caso da teoria da justiça como eqüidade, a posição original tem como problema proposto a
escolha da concepção política de justiça mais adequada para resolver o problema da
desigualdade social. A solução para esta questão determina os princípios de justiça. A
justificativa da interpretação da posição original ocorre porque ela “[...] expressa da melhor
forma as condições que, de um modo generalizado, se considera razoável impor à escolha dos
princípios mas que, ao mesmo tempo, conduz a uma concepção que caracteriza nossos juízos
ponderados decorrentes de uma reflexão equilibrada” (RAWLS, 2002, p. 131).
Segundo o autor, a teoria da justiça como eqüidade está de acordo com as
convicções refletidas das pessoas, com aquilo que elas consideram justo ou injusto numa
concepção política, após um estado de equilíbrio. Ou seja, após avaliar as diversas alternativas
expostas na posição original e realizar uma reflexão, elas aceitam e agem segundo a
concepção que está de acordo com as suas convicções. Em Uma Teoria da Justiça, o autor
destaca que “a justiça como eqüidade é uma teoria de nossos sentimentos morais, que se
manifestam por nossos juízos ponderados, em estado de equilíbrio refletido” (RAWLS, 2002,
p. 130).
Partindo desta breve exposição do pensamento contratualista rawlsiano, pode-se
destacar alguns pontos em que a sua teoria se aproxima ou afasta dos contratualistas clássicos.
As semelhanças se referem ao modelo argumentativo utilizado pelo autor, isto é, o conceito
de contrato social e o seu aspecto hipotético, e a compreensão das pessoas como livres e
iguais. As diferenças estão na finalidade do acordo que, em Rawls, visa a elaboração dos
princípios de justiça. Enquanto nele o contrato tem em vista apresentar uma solução para os
problemas de desigualdade social, para os contratualistas clássicos, o contrato possuía a
20
função de instituir um Estado ou uma forma de governo a fim de garantir a vida aos membros
da sociedade.
Assim, em virtude da idéia de posição original ser o cerne da teoria contratualista de
Rawls – uma vez que é a partir desta posição que se garante a eqüidade dos princípios – a
nossa proposta é estudá-la com o objetivo de compreender a argumentação do autor acerca da
importância da mesma.
1.1.2 Teorias Vigentes – Utilitarismo e Intuicionismo
Rawls, ao elaborar a sua concepção política de justiça, tem como objetivo apresentá-
la como uma alternativa para as doutrinas até então vigentes na filosofia moral moderna, quais
sejam, o utilitarismo e o intuicionismo. Na obra Uma Teoria da Justiça, o autor desenvolve a
sua argumentação acerca destas teorias explicitando os pontos em que elas são insatisfatórias
para resolver as questões sociais, e os aspectos que as distinguem da sua concepção política
de justiça
12
. Ao tratar das teorias com as quais o autor debate, pretendemos apresentar um dos
argumentos que Rawls utiliza a fim de justificar a teoria da justiça como eqüidade como uma
concepção política adequada para as sociedades democráticas.
O primeiro ponto a ressaltar consiste na classificação de tais teorias. Rawls distingue
entre teorias deontológicas – a justiça como eqüidade – e as teleológicas – o utilitarismo e o
intuicionismo
13
. Deontológica é a teoria “[...] que ou não especifica o bem independentemente
do justo, ou não interpreta o justo como maximizador do bem” (RAWLS, 2002, p. 32). A
teoria da justiça como eqüidade, de acordo com o autor, é deontológica no segundo sentido.
Ao contrário, as teleológicas são aquelas em que “[...] o bem se define independentemente do
justo, e então o justo se define como aquilo que maximiza o bem” (RAWLS, 2002, p. 26).
No Prefácio à Edição Brasileira de Uma Teoria da Justiça, Rawls (2002, p. XIV)
destaca que
a razão principal para buscar essa alternativa é, no meu modo de pensar, a
fragilidade da doutrina utilitarista como fundamento das instituições da democracia
constitucional. Em particular, não acredito que o utilitarismo possa explicar as
liberdades e direitos básicos dos cidadãos como pessoas livres e iguais, uma
12
A nossa apresentação baseia-se na leitura realizada a partir da obra de Rawls.
13
Segundo Rawls (2002, p. 43), as teorias intuicionistas podem ser teleológicas ou deontológicas.
21
exigência de importância absolutamente primordial para uma consideração das
instituições democráticas.
Assim, o objetivo de Rawls ao elaborar a teoria da justiça como eqüidade, é fornecer
uma alternativa sistemática à teoria utilitarista, ou seja, uma maneira mais adequada de
garantir e justificar os direitos e deveres assegurados pelas sociedades democráticas aos seus
cidadãos. Com o intuito de garantir que todos os membros sejam beneficiados na distribuição
desses bens, o autor faz uso da idéia de contrato social como a maneira mais razoável para a
escolha de princípios, cuja função é regular a forma como a estrutura básica distribui os
direitos e recursos advindos da cooperação social.
Ao tratar do utilitarismo, o autor restringe-se ao pensamento utilitarista clássico
14
que na obra de Sidgwick tem sua formulação mais clara, cuja
[...] idéia principal é a de que a sociedade está ordenada de forma correta e,
portanto, justa, quando suas instituições mais importantes estão planejadas de modo
a conseguir o maior saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das
participações individuais de todos os seus membros (RAWLS, 2002, p. 25).
Para explicar como este princípio de maximização das satisfações ocorre na
sociedade, Rawls tem como ponto de partida a maximização do bem-estar e das satisfações
dos desejos de um homem, que são o resultado de diversas satisfações ao longo de sua vida.
Assim, um homem age de forma racional com o objetivo de realizar os seus interesses quando
ele avalia quais seriam os ganhos e as perdas de tais satisfações, e até mesmo aceitaria um
sacrifício presente a fim de obter uma satisfação maior no futuro. Desta forma, o homem age
“[...] de um modo muito apropriado, pelo menos quando outros não são afetados, com o
intuito de conseguir a maximização do seu bem-estar, ao promover seus objetivos racionais o
máximo possível” (RAWLS, 2002, p. 25). Partindo desta premissa, o que o utilitarismo
defenderia, segundo Rawls, seria a transferência da interpretação da maximização do bem-
estar individual para a maximização do bem-estar coletivo. Em outras palavras, o bem-estar
da sociedade seria fruto da soma dos desejos dos membros dessa instituição, da satisfação dos
seus desejos. Essa passagem é confirmada no que se segue: “[...] o princípio para a sociedade
é promover ao máximo o bem-estar do grupo, realizar até o mais alto grau o abrangente
sistema de desejos ao qual se chega com a soma dos desejos de seus membros” (RAWLS,
14
Na obra Uma Teoria da Justiça, Rawls destaca que há muitas versões da teoria utilitarista e que neste trabalho
não tem como objetivo destacar essas versões e nem mesmo o seu desenvolvimento, mas sim que o seu intuito é
elaborar uma teoria “[...] alternativa ao pensamento utilitarista em geral e conseqüentemente a todas as suas
diferentes versões” (RAWLS, 2002, p. 24). Contudo, o autor limita-se à teoria utilitarista clássica a fim de
compará-la com a teoria da justiça como eqüidade.
22
2002, p. 25). De acordo com Vita
15
(1993, p. 13), a concepção defendida pela doutrina
utilitarista é vazia de conteúdo próprio, isto porque, ela é formada a partir da combinação dos
desejos e interesses dos indivíduos, sem levar em consideração a motivação e a validade de
tais desejos.
Segundo Rawls, cabe ao observador imparcial – que possui os poderes ideais de
solidariedade e imaginação – organizar a multiplicidade de desejos dos membros num sistema
único de interesses. Desta forma, o observador vive os desejos como se fossem dele,
atribuindo-lhes um “valor” de acordo com os desejos unificados; feito isto, ele maximiza
esses interesses a partir de um ajuste com o sistema social.
Neste sentido, “os termos apropriados da cooperação social são estabelecidos por
tudo quanto, em determinado contexto, consiga a satisfação máxima da soma dos desejos
racionais dos indivíduos” (RAWLS, 2002, p. 27). Desta forma, o princípio utilitarista para a
sociedade é uma extensão de um princípio racional para um homem, que por sua vez é
construído a partir da unificação da pluralidade de desejos distintos dos indivíduos. Assim, o
princípio utilitarista admite que as vantagens de alguns sejam sacrificadas em favor de um
maior beneficio de outros, a fim de maximizar a sua utilidade geral. Não há a garantia de que
a realização do princípio de utilidade beneficie todos os membros, uma vez que este princípio
requer um sacrifício das expectativas de vida das pessoas, isto porque “a obediência ao
sistema social pode exigir que alguns, em especial os menos favorecidos, renunciem a
benefícios em favor de um bem maior para todos” (RAWLS, 2002, p. 193). Seguindo este
princípio ter-se-ia uma concepção instável, uma vez que dificilmente os membros aceitariam
uma condição menor para que outras pessoas pudessem se beneficiar, “[...] a não ser que os
que devem fazer sacrifícios tenham uma forte identificação com interesses mais amplos que
os seus próprios. [e] [...] a não ser que a compreensão e a benevolência sejam ampla e
intensamente cultivadas” (RAWLS, 2002, p. 193).
Ao contrário do princípio utilitarista, os princípios propostos pela teoria rawlsiana de
justiça são o resultado de um consenso realizado entre os membros que participam da
sociedade. Esta escolha é realizada na posição original, onde as partes estão abstraídas das
informações particulares que possam influenciar na escolha dos princípios. Estes princípios de
justiça impõem certos limites especificando quais satisfações são válidas. Além disso, os
princípios de justiça propostos por Rawls não requerem sacrifícios de alguns para que outros
15
VITA, Álvaro de. Justiça Liberal: Argumentos Liberais contra o Neoliberalismo, 1993.
23
sejam beneficiados, mas sim o beneficio de todos os membros que cooperam com a
sociedade, ou seja, requer vantagens mútuas.
Segundo Rawls, de forma direta, o utilitarismo não se preocupa com o modo através
do qual as satisfações e as desvantagens serão distribuídas, se são direitos, deveres, riquezas –
uma vez que tais elementos devem ser atribuídos aos membros – mas com a quantidade de
satisfações, ou seja, com a máxima distribuição.
Além destas distinções entre a teoria contratualista da justiça como eqüidade e o
utilitarismo, o autor trata da questão que desde o início da obra é apresentada como uma
crítica ao utilitarismo, a saber, o direito inviolável à liberdade. De acordo com as convicções
do senso comum, Rawls distingue as liberdades e os direitos – priorizando esses pontos – do
aumento do bem-estar social. Desta forma,
cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-
estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a
perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros.
Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que o
total maior das vantagens desfrutadas por muitos (RAWLS, 2002, p. 04).
A teoria utilitarista, de acordo com o autor, estaria em conflito com estes
sentimentos de justiça, uma vez que a prioridade da justiça estaria em segundo plano, ou seja,
ela seria uma regra secundária ao bem ou “[...] uma ilusão socialmente útil” (RAWLS, 2002,
p. 31). Diante deste fato, os direitos e satisfações distribuídos, como a liberdade, por exemplo,
estariam submetidos ao cálculo de interesses ou à maximização da satisfação de uma maioria
em detrimento de alguns. Esta forma de proceder não leva em consideração a pluralidade de
desejos e as características individuais, nem aquilo que os cidadãos compreendem por justiça,
a partir de suas convicções.
Deste modo, a teoria utilitarista não pode ser classificada com uma teoria
individualista, mas coletiva ou global, uma vez que o que importa é a soma total de satisfação.
Além disso, as instituições são justas quando elas atingem o maior saldo possível de
satisfação, de cujo nível depende o bem-estar dos indivíduos.
A teoria intuicionista
16
possui duas características: uma pluralidade de princípios
básicos que em alguns momentos podem ser contrários uns aos outros; e a inexistência de
16
De acordo com Rawls, há muitas visões intuicionistas e uma maneira de distinguir uma visão da outra “[...]
consiste em observar o nível de generalidade de seus princípios” (RAWLS, 2002, p. 38). Em outra passagem
destaca que “a característica distintiva, portanto, das visões intuicionistas [...] está [...] na importância
proeminente que conferem ao apelo às nossas capacidades intuitivas, sem dispor da orientação de critérios
24
uma regra de prioridade em vista da qual os princípios possam ser avaliados e comparados, o
que significa que “[...] precisamos simplesmente atingir um equilíbrio pela intuição, pelo que
nos parece aproximar-se mais do que é justo” (RAWLS, 2002, p. 37).
Segundo o autor, a teoria intuicionista é uma concepção parcial de justiça, uma vez
que ela não possui critérios para orientar as instituições e nem princípios para resolver a
questão da prioridade. O que há é um apelo direto à intuição e uma pluralidade de intuições.
Deste modo, mediante o fato de não possuir referência de justiça e nem critérios de prioridade
para as instituições, a resolução de problemas éticos do intuicionismo poderia ser influenciada
por interesses pessoais, quer dizer, aquela referência que uma pessoa considera como justa ou
injusta poderia ser utilizada para resolver conflitos. Isto pode ser verificado nesta passagem:
“o intuicionismo afirma que em nossos julgamentos sobre a justiça social devemos atingir
uma pluralidade de princípios básicos a respeito dos quais possamos apenas dizer que nos
parece mais correto equilibrá-los de um certo modo e não de outro” (RAWLS, 2002, p. 42).
Apesar de não considerar o intuicionismo uma teoria apta a resolver os conflitos
morais – devido ao seu pluralismo moral e à falta de um princípio prioritário – Rawls faz uso
de idéias intuitivas. As idéias de justiça, sociedade, pessoa, dentre outras que o autor
desenvolve, são denominadas de idéias intuitivas fundamentais. Estas idéias já estão
implícitas na cultura política pública
17
e deste modo já seriam familiares, razão pela qual os
membros aceitariam e seguiriam de forma voluntária os princípios de justiça formulados pela
teoria de Rawls. Contudo, “[...] o papel da intuição está limitado de várias maneiras”
(RAWLS, 2002, p. 45). Primeiramente, ao escolher os princípios eqüitativos, as partes
situadas na posição original sabem que devem levar em consideração a prioridade dos
mesmos. Um segundo ponto que limita o uso da intuição é a ordem serial ou lexical dos
princípios eqüitativos formulados por Rawls. Ou seja, o primeiro princípio, denominado
princípio da igual liberdade, é prioritário em relação aos demais e sua realização deve ser
satisfeita antes de passar para o segundo princípio. Isto significa que primeiro deve haver a
garantia das liberdades iguais para posteriormente tratar das oportunidades e desigualdades
sociais e econômicas. Neste sentido, Rawls (2002, p. 47) acredita que “[...] pelo menos em
certas circunstâncias sociais, a ordenação serial dos princípios de justiça oferece uma solução
aproximada para o problema da prioridade”.
implícitos e reconhecidamente éticos. O intuicionismo nega que exista uma solução explícita e útil para o
problema da prioridade” (RAWLS, 2002, p. 43-4).
17
A cultura política pública, segundo o autor “[...] compreende as instituições políticas de um regime
constitucional e as tradições públicas de sua interpretação (inclusive as do judiciário), bem como os textos e
documentos históricos que são de conhecimento geral” (RAWLS, 2000, p. 56).
25
Em linhas gerais, a teoria utilitarista não seria adequada para uma democracia
constitucional, visto que o seu princípio defende a maximização do bem-estar total, não se
preocupando com o modo como essas satisfações serão distribuídas. Além disso, tem-se o fato
de transferir o desejo racional para a escolha social, unificando os desejos em apenas um. O
intuicionismo, por sua vez, defende o apelo às intuições, tendo assim um pluralismo moral e,
além do mais, não possui um critério de prioridade. Desta forma, as questões de justiça teriam
uma resolução insatisfatória (superficial).
1.2 TEORIA DA JUSTIÇA: IDÉIAS FUNDAMENTAIS
1.2.1 O Conceito de Justiça
A teoria da justiça como eqüidade tem como objeto principal a estrutura básica da
sociedade, ou seja, as principais instituições políticas, sociais e econômicas da sociedade e a
forma como estas instituições estão unificadas a fim de formar um sistema de cooperação
social ao longo das gerações. Segundo Rawls (2002, p. 03), “[...] a justiça é a primeira virtude
das instituições sociais [...]”, ou seja, ela é a primeira característica destas instituições porque
são elas que asseguram e distribuem os benefícios oriundos da cooperação social. Desta
forma, uma teoria, leis ou instituições devem ser rejeitadas caso sejam injustas, isto é, se elas
não asseguram ou permitem a negociação dos direitos e liberdades básicas que devem ser
garantidos pela justiça. Este aspecto demonstra a primazia do justo em relação ao bem
desenvolvido na teoria do autor, uma vez que as liberdades são invioláveis e os direitos não
podem estar sujeitos ao cálculo de interesses.
Rawls destaca como instituições mais importantes a
[...] constituição política e os principais acordos econômicos e sociais. Assim, a
proteção legal da liberdade de pensamento e de consciência, os mercados
competitivos, a propriedade particular no âmbito dos meios de produção e a família
monogâmica constituem exemplos das instituições sociais mais importantes
(RAWLS, 2002, p. 08).
Essas instituições são compreendidas como “[...] um sistema público de regras que
define cargos e posições com seus direitos e deveres, poderes e imunidades, etc.” (RAWLS,
2002, p. 58), quer dizer, regras que definem os direitos, deveres e liberdades dos membros
26
que participam da sociedade, e que especificam ações permitidas ou proibidas, representadas
pela constituição política e pelos acordos econômicos e sociais. Além disso, essas regras “[...]
definem um esquema de atividades que conduz os homens a agirem juntos no intuito de
produzir uma quantidade maior de benefícios e atribuindo a cada um certos direitos
reconhecidos a uma parte dos produtos” (RAWLS, 2002, p. 90). A atuação das pessoas no
interior da sociedade depende do que é determinada por essas regras, ou seja, as pessoas agem
a partir daquilo que as regras definem como o seu direito de agir, e por sua vez, os direitos das
pessoas dependem daquilo que elas fazem. Em outras palavras, as ações das pessoas são
orientadas por essas regras públicas, e os seus direitos, enquanto cidadãos que vivem e
cooperam com a sociedade, são determinados por essas mesmas regras. Assim, as pessoas que
participam desse sistema “[...] sabem o que saberiam se essas regras e a sua participação na
atividade que elas definem fosse o resultado de um acordo. Uma pessoa que faz parte de uma
instituição sabe o que as regras exigem dela e dos outros” (RAWLS, 2002, p. 59). Isto porque,
as regras que determinam a sua ação e os seus direitos são públicas.
Em Uma Teoria da Justiça, o autor destaca que na estrutura básica da sociedade há
posições sociais diferentes, e que os homens nascidos nessas posições têm perspectivas
distintas, que são determinadas pelo sistema político, econômico e social. Rawls preocupa-se
com essa questão porque a forma como as instituições atuam e estão organizadas, reforçam ou
prejudicam os projetos e as expectativas de vida das pessoas desde o início; as suas ambições,
capacidades e talentos, o que influencia na forma como essas pessoas se vêem na sociedade; o
que elas querem ser e o que são neste sistema; as oportunidades e incentivos que podem
esperar vir a ter. Do mesmo modo, o autor destaca que as capacidades e talentos das pessoas
não são dons naturais fixos, mas que eles dependem das condições sociais para se
desenvolver. Isto é, para que seja possível o desenvolvimento de um determinado talento são
necessárias atitudes sociais que contemplem a realização desse talento, como, por exemplo,
incentivo, apoio e treinamento. Assim, de acordo com Rawls, a distribuição natural das
aspirações, habilidades, e até mesmo a posição social de uma pessoa, não devem ser vistos
como justos ou injustos, mas “[...] justo ou injusto é o modo como as instituições lidam com
esses fatos” (RAWLS, 2002, p. 109). Na obra O Liberalismo Político, o autor acrescenta que
o que a teoria da justiça deve regular são as desigualdades nas perspectivas de vida
dos cidadãos decorrentes de posição social inicial, vantagens naturais e
contingências históricas. Mesmo quando essas desigualdades não são muito
grandes em certos casos, seus efeitos podem ser muito importantes, pois, ao longo
do tempo, têm conseqüências cumulativas significativas (RAWLS, 2000, p. 323).
27
Desta forma, tem-se que as instituições devem garantir um contexto social justo,
uma vez que é neste contexto que as ações, projetos e expectativas dos homens são formados
e realizados. E, é a partir da forma como as pessoas compreendem a sociedade, que irão
aceitar e agir de acordo com as regras. Ou seja, se constatam que as instituições não
satisfazem os princípios – não distribuem de forma adequada os benefícios oriundos da
cooperação social e não asseguram os direitos dos indivíduos enquanto cidadãos que
participam da sociedade – elas não aceitam e não agem de acordo com os princípios de
justiça, visto que não formam um senso efetivo de justiça
18
. A proposta de Rawls é, então,
formular princípios de justiça social que devem ser aplicados às instituições da estrutura
básica para resolver os problemas de desigualdades sociais. Estes princípios têm o papel de
atribuir e distribuir de uma forma adequada os benefícios advindos da cooperação social, de
modo a beneficiar a todos que cooperam, uma vez que “a injustiça é uma conseqüência do
modo como elas [as instituições sociais] se combinam em um único sistema” (RAWLS, 2002,
p. 60-1). De acordo com isto, a teoria de Rawls está preocupada com a questão da justiça
social, com a justiça nas instituições sociais.
Assim, segundo o autor “deve-se, então, considerar que uma concepção da justiça
social fornece primeiramente um padrão pelo qual se devem avaliar aspectos distributivos da
estrutura básica da sociedade” (RAWLS, 2002, p. 10), já que uma teoria da justiça tem como
característica apresentar “[...] uma avaliação da importância de certos princípios distributivos
para a estrutura básica da sociedade” (RAWLS, 2002, p. 11). Deste modo, Rawls destaca que,
na maioria dos casos, cada pessoa ocupa duas posições sociais relevantes: uma delas define o
seu lugar pela distribuição de renda e riqueza, que neste contexto resulta em profundas
desigualdades sociais; e, a da cidadania igual, que é a posição a partir da qual a estrutura
básica deve ser avaliada, na medida em que ela é definida pelos direitos e liberdades
assegurados pelo primeiro princípio e pelo princípio da igualdade eqüitativa de oportunidade.
Deste modo, quando os princípios de justiça são satisfeitos, todos os cidadãos ocupam a
posição da cidadania igual. Essa posição define um ponto de vista comum, a partir da qual as
pessoas podem fazer reivindicações acerca dos seus direitos. Com base nessa posição, a
justiça como eqüidade analisa o sistema social, ou seja, através dos direitos, deveres e
18
Em outras palavras, ao destacar as três características de uma sociedade bem-ordenada, Rawls, no segundo
ponto, afirma que todos os membros da sociedade sabem que a estrutura básica respeita e está de acordo com os
princípios de justiça. No terceiro ponto salienta que “[...] seus cidadãos têm um senso normalmente efetivo de
justiça e, por conseguinte, em geral agem de acordo com as instituições básicas da sociedade, que consideram
justas” (RAWLS, 2000, p. 79). Assim, ao constatar que as instituições da sua sociedade agem de acordo com os
princípios, os membros formam um sentido efetivo de justiça que os capacita a compreender, aplicar e agir
conforme esses princípios.
28
liberdades que os cidadãos que cooperam com a sociedade possuem e da garantia desses
benefícios, e não a partir da posição social da pessoa, do desenvolvimento de suas habilidades
e talentos. Segundo Rawls (2002, p. 60), “idealmente, as regras devem ser fixadas de modo a
fazer com que os homens sejam conduzidos por seus interesses predominantes a agir de
modos que promovam fins sociais desejáveis”.
De acordo com isto, a teoria da justiça como eqüidade apresenta-se como uma
concepção política que nos seus princípios – escolhidos numa posição de igualdade –
asseguram direitos e liberdades básicas iguais, igualdade eqüitativa de oportunidades, e uma
melhor condição de vida para os membros, especialmente os menos favorecidos, a partir do
princípio da diferença.
1.2.2 A Idéia de Sociedade Bem-Ordenada como Sistema de Cooperação Social
A partir das considerações apresentadas anteriormente, pode-se constatar que o autor
compreende a sociedade como um sistema eqüitativo de cooperação social, cujas
características são: “(a) [...] a cooperação social guia-se por regras e procedimentos
publicamente reconhecidos, que aqueles que cooperam aceitam como apropriados para reger
sua conduta” (RAWLS, 2003, p. 08). Em outras palavras, a sociedade, enquanto um sistema
eqüitativo de cooperação social, é governada por regras de conduta que são aceitas como
apropriadas pelos membros e que guiam as relações humanas no interior da sociedade.
(b) a idéia de cooperação contém a idéia de termos eqüitativos de cooperação: são
termos que cada participante pode razoavelmente aceitar, e às vezes deveria aceitar,
desde que todos os outros os aceitem. Termos eqüitativos de cooperação incluem a
idéia de reciprocidade ou mutualidade: todo aquele que cumprir sua parte, de
acordo com o que as regras reconhecidas o exigem, deve-se beneficiar da
cooperação conforme um critério público e consensual especificado (RAWLS,
2003, p. 08).
A segunda característica define que as pessoas aceitam e agem de acordo com os
termos eqüitativos da cooperação social, esperando o mesmo dos demais membros. Desta
forma, ao cooperar com a sociedade, eles devem beneficiar-se dessa cooperação a partir de
um critério adequado de distribuição dos benefícios. E “(c) a idéia de cooperação também
contém a idéia de vantagem ou bem racional de cada participante. A idéia de vantagem
racional especifica o que os que cooperam procuram promover do ponto de vista de seu
29
próprio bem” (RAWLS, 2003, p. 09). Dado o fato de que a sociedade compreende uma
pluralidade de doutrinas abrangentes – que são as doutrinas religiosas, filosóficas e morais
existentes no interior da sociedade –, a cooperação social permite aos cidadãos professar uma
concepção do bem, a partir da qual eles defendem uma concepção política e cooperam com o
intuito de promover o seu próprio bem.
Apesar da sociedade ser compreendida como um sistema de cooperação social que
visa vantagens mútuas, ela é marcada, simultaneamente, por uma identidade e por um conflito
de interesses. Há uma identidade de interesses porque os membros compreendem que ao
participar da sociedade e agir de acordo com as regras de conduta (ou termos eqüitativos),
eles terão uma vida melhor (com melhores condições de vida e direitos garantidos) do que se
tivessem que viver a partir de seus próprios esforços. Há, ao mesmo tempo, um conflito de
interesses na medida em que os membros não tomam posição em relação à distribuição injusta
dos benefícios oriundos da cooperação social. Isto porque cada um preferiria ter mais a ter
menos benefícios, concordando, assim, com uma distribuição desigual dos mesmos realizada
pelas instituições sociais, desde que isto seja vantajoso para os seus objetivos
19
. Além disso,
há uma escassez de recursos que conduz cada membro a procurar garantir uma maior
quantidade de bens para si.
Essas condições são denominadas por Rawls de circunstâncias da justiça. Estas
circunstâncias “[...] se verificam sempre que as pessoas apresentam reivindicações
conflitantes em relação à divisão das vantagens sociais em condições de escassez moderada”
(RAWLS, 2002, p. 138). As circunstâncias da justiça são divididas em: circunstâncias
objetivas, que compreende a coexistência de muitos indivíduos em um mesmo espaço com
capacidades físicas e mentais semelhantes, ou pelo menos essas capacidades podem ser
comparáveis, na medida em que nenhum homem pode dominar os outros. Contudo, Rawls
destaca que os homens podem ter os seus planos não realizados pela união das forças dos
outros homens
20
; outra circunstância é a escassez moderada de recursos, uma vez que se
houvesse uma condição de abundância, um esquema de cooperação para assegurar uma
distribuição adequada dos benefícios seria inviável, da mesma forma, uma situação de forte
escassez poderia conduzir um esquema viável ao insucesso. As circunstâncias subjetivas se
19
Este ponto retoma aquela idéia apresentada anteriormente, qual seja, a de que agindo desta forma –
distribuindo de maneira desigual os benefícios – as instituições beneficiam algumas habilidades, talentos e
posições sociais em detrimento de outras, o que resulta em profundas desigualdades sociais.
20
Possivelmente esta circunstância se refere à necessidade de princípios que visam garantir aos membros a
defesa e a realização de seus planos racionais de vida. Ou seja, que a realização do plano de vida de um membro
não dependa ou não esteja sujeita as forças de outros membros, mas que isso seja possível pela ordenação das
instituições, pela garantia dos seus direitos.
30
referem aos aspectos das pessoas que cooperam com a sociedade. Ou seja, apesar das pessoas
possuírem interesses semelhantes ou até mesmo complementares que possibilitam a sua
cooperação vantajosa, elas têm seus próprios planos de vida e “esses planos, ou concepções
do bem, as levam a ter objetivos e propósitos diferentes, e a fazer reivindicações conflitantes
em relação aos recursos naturais e sociais disponíveis” (RAWLS, 2002, p. 137). Além das
pessoas terem um plano racional de vida que procuram realizar, há uma pluralidade de
doutrinas religiosas, filosóficas, morais e de doutrinas políticas e sociais diferentes defendidas
e professadas pelas pessoas. De acordo com estes aspectos, se não houvesse as circunstâncias
da justiça – uma escassez moderada e os conflitos de interesse – não teria sentido e nem a
necessidade de falar em justiça, elaborar princípios de justiça com o intuito de garantir uma
distribuição menos desigual das vantagens da cooperação social e assegurar a garantia de
direitos e deveres.
A sociedade como um sistema eqüitativo de cooperação social se torna uma
sociedade bem-ordenada quando ela é efetivamente regulada por uma concepção política
pública de justiça
21
, cujas características são:
[...] a primeira (e isto está implícito na idéia de uma concepção de justiça
publicamente reconhecida), que se trata de uma sociedade na qual cada indivíduo
aceita, e sabe que todos os demais aceitam, precisamente os mesmos princípios de
justiça; a segunda (implícita na idéia de regulação efetiva), que todos reconhecem,
ou há bons motivos para assim acreditar, que sua estrutura básica – isto é, suas
principais instituições políticas, sociais e a maneira segundo a qual se encaixam
num sistema único de cooperação – está em concordância com aqueles princípios; e
a terceira, que seus cidadãos têm um senso normalmente efetivo de justiça e, por
conseguinte, em geral agem de acordo com as instituições básicas da sociedade,
que consideram justas (RAWLS, 2000, p. 79).
A sociedade é bem-ordenada quando, além dos seus membros aceitarem e agirem de
acordo com os princípios de justiça, esperando o mesmo dos demais, eles reconhecem que as
instituições da estrutura básica da sociedade estão de acordo com estes princípios. Ou seja,
que elas asseguram os direitos, deveres e liberdades e distribuem de forma adequada os
benefícios aos que cooperam com a sociedade. Além disso, os cidadãos de uma sociedade
bem-ordenada têm um senso efetivo de justiça, isto é, os membros têm a capacidade de
compreender, aplicar e agir de acordo com uma concepção política de justiça e de seguir as
21
Rawls (2000, p. 221-2) destaca três características de uma concepção política de justiça, que são: primeiro, é
uma concepção moral elaborada para ser aplicada, em especial, à estrutura básica da sociedade; segundo, aceitar
uma concepção política não pressupõe aceitar nenhuma doutrina abrangente do bem e, terceiro, o seu conteúdo é
formado de idéias fundamentais implícitas na cultura política pública.
31
instituições que consideram justas
22
. Deste modo, a sociedade governada por uma concepção
política de justiça, com as características apresentadas pelo autor, é uma sociedade onde os
membros possuem um ponto de vista comum a partir do qual podem fazer as suas
reivindicações, justificar os seus juízos políticos e as suas instituições uns em relação aos
outros.
Na obra Uma Teoria da Justiça, o autor considera que sociedades concretas
raramente poderiam ser bem-ordenadas, visto que há distintas concepções do que é justo e
injusto e não há uma concordância sobre os princípios mais adequados para reger a sociedade.
Contudo, os membros defendem a necessidade de uma concepção de justiça para regular a
sociedade. Nas obras O Liberalismo Político e Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, o
autor afirma que a idéia de sociedade bem-ordenada é um conceito ideal, isto porque ela é
elaborada para verificar se uma concepção de justiça desempenha de forma adequada o seu
papel de concepção política pública de justiça e, ao mesmo tempo, se ela é reconhecida pelos
membros da sociedade que são vistos como cidadãos livres e iguais. Em outras palavras, o
que se quer verificar é se o conteúdo da concepção política, quando publicamente expressa, é
auto-sustentável
23
. Além desse aspecto, uma concepção de justiça é insatisfatória caso ela não
consiga conquistar o apoio de um consenso sobreposto
24
, ou seja, dos cidadãos que afirmam
as diversas doutrinas abrangentes do bem existentes na sociedade.
Este apoio é justificado pelo fato de que os cidadãos que cooperam com a sociedade
possuem dois pontos de vista: as concepções defendidas pelas doutrinas religiosas, filosóficas
e morais abrangentes; e uma concepção política de justiça aceita e reconhecida publicamente
por todos os membros. Esta concepção política se restringe àquilo que Rawls denomina de o
“domínio do político”, enquanto que as concepções das doutrinas abrangentes englobam os
aspectos daquilo que tem valor para a vida humana. Neste sentido, é a partir das visões das
doutrinas abrangentes – de um pluralismo razoável e de suas distintas concepções – que os
cidadãos defendem a concepção política de justiça. Uma doutrina abrangente do bem não
conseguiria obter o apoio de um consenso sobreposto, visto que ela dificilmente teria o apoio
22
Uma das capacidades morais que as pessoas possuem é o senso de justiça. Esta idéia será melhor explicada no
próximo subtítulo que apresenta as características das pessoas.
23
De acordo com o autor: “uma concepção política de justiça que não satisfaça essa função pública é, a meu ver,
seriamente insatisfatória. A adequação de uma concepção de justiça a uma sociedade bem-ordenada é um
importante critério de comparação entre concepções políticas de justiça” (RAWLS, 2003, p. 12).
24
Segundo Rawls (2003, p. 45), uma característica permanente das sociedades democráticas é o pluralismo
razoável, ou seja, a diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais professadas pelos cidadãos. Desta
forma, a concepção política de justiça – que é aceita por todos os membros – é afirmada a partir das distintas
doutrinas. Em outras palavras, consenso sobreposto consiste no apoio que a concepção política recebe das
doutrinas abrangentes existentes na sociedade.
32
das demais doutrinas existentes na sociedade, além de não conseguir resolver os problemas de
justiça social.
Seguindo esta forma de compreender a sociedade – em cujo interior existe e se
desenvolvem muitas comunidades – Rawls faz uma distinção entre as características da
sociedade e das associações e comunidades, a fim de explicitar os elementos opostos destes
sistemas. A sociedade é compreendida como um sistema completo e fechado. Por completo,
compreende-se um sistema auto-sustentável, que possui espaço para a realização das
atividades, necessidades, aspirações e objetivos dos membros que ali vivem e participam. Por
fechado, entende-se um sistema que não mantém relação com outras sociedades; os membros
não vêm de outro lugar, mas, entram na sociedade ao nascer e só saem dela ao morrer, o que
significa dizer que a sua permanência neste sistema não é um ato voluntário, que não podem
escolher o momento em que irão participar ou não da sociedade, uma vez que sua
permanência e cooperação ocorre ao longo da toda a vida. Além disso, a sociedade defende
como seu objetivo último aqueles especificados em uma concepção política de justiça, ou
seja, aqueles expressos nos princípios de justiça. Estes princípios não permitem o beneficio de
uns em relação aos outros, uma vez que todos são considerados membros da sociedade, tendo
assim os mesmos direitos.
Numa associação os membros entram quando atingem a idade da razão ou no
momento em que escolhem se associar, o que significa que a sua entrada e saída é um ato
voluntário. Os membros de uma associação – que compartilham objetivos comuns e que
participam deste sistema a fim de realizar essas aspirações – podem receber diferentes
posições e recompensas, devido à contribuição dada ao sistema ou aos fins comuns. Uma
comunidade é caracterizada como um sistema onde as pessoas são unidas e governadas por
uma doutrina religiosa, filosófica ou moral abrangente. Numa comunidade e numa associação,
os objetivos e a abrangência de suas ações estão além do campo político, ou seja, englobam
todos os aspectos da vida das pessoas, enquanto que numa sociedade restringe-se ao domínio
do político.
Em linhas gerais, Rawls compreende a sociedade bem-ordenada como um sistema
em que os membros aceitam e agem de acordo com a concepção política de justiça; as
instituições da estrutura básica estão de acordo com esses princípios e os cidadãos
reconhecem isso; os membros da sociedade formam um senso de justiça que os levam a agir
segundo essas instituições. Além destes aspectos, a sociedade é compreendida como completa
e fechada e distinta das comunidades e associações que existem em seu interior.
33
1.2.3 A Idéia de Pessoa como Cooperadora
Segundo Rawls, a concepção de pessoa, adotada pela teoria da justiça como
eqüidade, está de acordo com a idéia fundamental de sociedade como um sistema eqüitativo
de cooperação social. Ou seja, o autor destaca que há diferentes aspectos de nossa natureza
que são significativos para a compreensão da concepção de pessoa, que é determinada pelo
objetivo e ponto de vista seguido. Na teoria rawlsiana de justiça, pessoa
25
é compreendida
como “[...] alguém que pode ser um cidadão, isto é, um membro normal e plenamente
cooperativo da sociedade por toda a vida” (RAWLS, 2000, p. 61). Isto significa dizer que a
concepção de pessoa é caracterizada pela forma através da qual os membros da sociedade
devem ver a si mesmos e aos outros nas suas relações no interior desse sistema. Ou seja, como
pessoas livres e iguais que possuem as capacidades necessárias para cooperarem ao longo de
toda a sua vida com este sistema, compreendendo que os recursos oriundos dessa cooperação
se traduzem em benefícios mútuos. Além desse aspecto, as pessoas têm a capacidade de
compreender e aceitar os termos eqüitativos que regem a cooperação social, agindo de acordo
com eles e esperando a mesma atitude dos demais membros da sociedade. Esta concepção
política de pessoa esta implícita na cultura política pública da sociedade, o que fica claro na
seguinte passagem: “[...] a concepção de pessoa é elaborada a partir da maneira como os
cidadãos são vistos na cultura política pública de uma sociedade democrática, em seus textos
políticos básicos (constituições e declarações de direitos humanos), e na tradição histórica da
interpretação desses textos” (RAWLS, 2003, p. 27).
Deste modo, as pessoas são caracterizadas como livres e iguais, razoáveis e
racionais. As pessoas são livres porque elas possuem as faculdades da razão, que são o
julgamento, o pensamento e a inferência, que estão ligadas às duas capacidades morais, que
são o senso de justiça e a concepção do bem. Além destas características, na obra O
Liberalismo Político, Rawls destaca três aspectos que definem as pessoas como livres e cuja
descrição compreende a concepção de pessoa num sentido político. As pessoas são livres
25
Na obra O Liberalismo Político, Rawls explica que a questão fundamental da justiça política é “[...] qual é a
concepção mais apropriada de justiça para especificar os termos da cooperação social entre cidadãos
considerados livres e iguais, membros normais e plenamente cooperativos da sociedade, ao longo de toda a
vida?” (RAWLS, 2000, p. 63). De acordo com isto, o autor não considera as incapacidades das pessoas – sejam
elas temporárias ou permanentes –, doenças mentais e outras debilidades que impossibilitam as pessoas de
cooperarem com a sociedade. Isto não significa dizer que as pessoas não sofram acidentes ou fiquem doentes,
mas que, para o objetivo proposto, as pessoas com tais inabilidades não são consideradas como pessoas normais
e plenamente cooperativas da sociedade.
34
porque, em primeiro lugar, elas concebem a si mesmas e aos demais membros como
possuidores da capacidade moral de ter uma concepção do bem; em segundo lugar, os
cidadãos
[...] se consideram fontes auto-autenticadoras de reivindicações válidas. Isto é,
consideram-se no direito de fazer reivindicações a suas instituições de modo a
promover suas concepções do bem (desde que essas concepções estejam incluídas
no leque permitido pela concepção pública de justiça) (RAWLS, 2000, p. 76);
e o terceiro aspecto considera as pessoas como livres, na medida em que elas assumem a
responsabilidade por seus objetivos, e são capazes de adaptar as suas reivindicações em vistas
ao que é permitido pelos princípios de justiça.
As pessoas são iguais porque elas possuem as capacidades num grau suficiente para
serem membros normais e plenamente cooperativos da sociedade durante toda a sua vida,
além de respeitar e agir de acordo com os termos eqüitativos que governam a cooperação
social. Neste sentido, todos os cidadãos assim caracterizados, possuem os mesmos direitos,
deveres e liberdades básicas assegurados pelos princípios de justiça.
Essas capacidades morais que possibilitam aos cidadãos serem membros
cooperativos da sociedade, são o senso de justiça e a concepção do bem. O senso de justiça
“[...] é a capacidade de entender, aplicar e ser em geral motivado por um desejo efetivo de
agir em função dos (e não apenas de acordo com) princípios de justiça, enquanto termos
eqüitativos de cooperação social” (RAWLS, 2000, p. 356). A concepção do bem “[...] é a
capacidade de formar, revisar e tentar racionalmente realizar tal concepção, isto é, uma
concepção do que consideramos que seja para nós uma vida humana digna de ser vivida”
(RAWLS, 2000, p. 356). Ou seja, a concepção do bem engloba aquilo que tem valor para a
vida humana como projetos, aspirações e fins que as pessoas desejam realizar ao longo de sua
vida, o que significa dizer que as concepções do bem que as pessoas possuem não são fixas,
mas que elas mudam e se desenvolvem ao longo da sua vida, a partir das suas reflexões. Os
elementos destas concepções fazem parte das doutrinas abrangentes do bem que os cidadãos
afirmam na sociedade. Além desta concepção, Rawls afirma que as pessoas possuem uma
determinada concepção do bem que expressa a sua relação com o mundo através das visões
religiosas, filosóficas ou morais e que elas auxiliam na compreensão dos seus desejos e fins.
As pessoas são caracterizadas também como razoáveis e racionais. As pessoas são
razoáveis na medida em que elas estão dispostas a propor termos eqüitativos para a
cooperação social, além de aceitar e agir segundo estes termos, acreditando que os demais
35
membros da sociedade agirão da mesma forma. Deste modo, estes termos apresentam-se
como razoáveis e aceitáveis por todos, visto serem princípios a partir dos quais todos podem
raciocinar acerca da sua cooperação, ou seja, são termos eqüitativos a partir dos quais os
membros podem avaliar a sua conduta e a forma de agir das instituições sociais. A idéia de
termos eqüitativos aceitos como razoáveis pelos membros implica a idéia de reciprocidade
que é compreendida pelo autor como uma idéia que “[...] encontra-se entre a idéia de
imparcialidade, que é altruísta (o bem geral constitui a motivação), e a idéia de benefício
mútuo, compreendido como benefício geral com respeito à situação presente ou futura, sendo
as coisas como são” (RAWLS, 2000, p. 93). Isto significa dizer que, ao aceitar e seguir os
princípios de justiça espera-se o mesmo dos demais membros e assim, todos se beneficiam
com os resultados da cooperação. A partir destes elementos compreende-se que as pessoas
enquanto razoáveis possuem um “aspecto” público, na medida em que elas consideram as
conseqüências de suas ações para o bem-estar e a felicidade dos membros da sociedade. A
racionalidade, por sua vez, é a característica de um agente único, particular, não público, uma
vez que compreende a capacidade de julgar, buscar e realizar da melhor maneira possível os
fins e interesses em benefício próprio de uma forma coerente.
Compreendidas dessa forma, o razoável e o racional na cooperação social são idéias
distintas e independentes, o que significa dizer que uma não deriva da outra, ou seja, que o
razoável não deriva do racional. Contudo, elas são noções complementares, visto que há a
necessidade das pessoas que vivem e participam desse sistema de cooperação serem razoáveis
e racionais. Segundo Rawls, uma pessoa que possuísse somente a característica da
razoabilidade não procuraria realizar os seus fins, interesses e aspirações pessoais no interior
da sociedade; seria uma pessoa sem fins últimos a procurar realizar neste sistema de
cooperação social. Da mesma forma, uma pessoa “puramente” racional não teria o senso de
justiça necessário para aceitar e agir de acordo com os princípios aceitos e seguidos pelos
outros cidadãos; além de não reconhecer as reivindicações dos outros membros. Uma pessoa
que age apenas de acordo com os seus próprios interesses, não considera as conseqüências
que suas ações terão para as outras pessoas. Na teoria rawlsiana de justiça, as noções de
razoabilidade e racionalidade estão conectadas com as capacidades morais, ou seja, o razoável
está ligado à capacidade de ter um senso de justiça, na medida em que os membros da
sociedade respeitam os termos eqüitativos de cooperação social, esperando a mesma atitude
dos demais membros. O racional, por sua vez, está ligado à capacidade de ter uma concepção
do bem, que compreende os interesses e objetivos que desejam realizar.
36
Assim, a concepção de pessoa possui um papel fundamental na teoria da justiça
como eqüidade, na medida em que o autor as considera como cidadãos que vivem e
participam da sociedade compreendida como um sistema eqüitativo de cooperação social
durante toda a sua vida. Em virtude das suas características de serem razoáveis e racionais,
livres e iguais, esta concepção tem um sentido político. Ou seja, a concepção de pessoa é
política e não moral, filosófica ou religiosa. Assim, ao deliberar acerca dos princípios de
justiça mais razoáveis para reger as instituições da estrutura básica, são consideradas as
características das pessoas enquanto cidadãos e não os dados acerca do plano racional de vida
ou a concepção do bem que elas defendem, ou mesmo sua posição social. Neste sentido, a
preocupação do autor é com a pessoa enquanto cidadão e não como membro de uma
associação, por exemplo.
A nossa pretensão neste primeiro capítulo foi a de expor a teoria da justiça como
eqüidade como uma teoria que retoma o modelo argumentativo do contratualismo clássico,
apresentando alguns elementos que mostram o período de silêncio do contrato social
moderno. Rawls utiliza o contrato social como uma maneira adequada para elaborar uma
concepção alternativa para as doutrinas utilitarista e intuicionista. Em outras palavras, a teoria
proposta por Rawls é elaborada sob certas condições e restrições, a fim de assegurar a
garantia dos direitos e liberdades básicas e a distribuição dos recursos a todos os cidadãos que
participam da sociedade. Assim, a teoria da justiça como eqüidade apresenta-se como uma
possível solução para os problemas da justiça social existentes no interior da sociedade.
Além destes aspectos, o capítulo tratou das idéias intuitivas fundamentais
indispensáveis para compreendermos a teoria da justiça como eqüidade. Se faz necessário ter
sempre presente a forma como Rawls concebe a sociedade, as pessoas que vivem e cooperam
com este sistema, e quais aspectos relevantes caracterizam uma sociedade bem-ordenada
regulada por uma concepção política de justiça.
2 A POSIÇÃO ORIGINAL E SUA CARACTERIZAÇÃO
A concepção política de justiça, cujo conteúdo são os princípios de justiça, é, na
teoria de Rawls, o resultado de um acordo realizado na posição original em condições
definidas. Ou seja, as partes que escolhem os princípios estão simetricamente situadas umas
em relação às outras, e encobertas por umu de ignorância que não permite a passagem de
informações que possam influenciar na escolha dos princípios. Assim, a posição original, de
acordo com o autor, é a alternativa que melhor atende aos seus objetivos, a saber, selecionar
princípios de justiça mais razoáveis que especificam os termos eqüitativos que devem regular
a sociedade, compreendida como um sistema eqüitativo de cooperação social.
Nossa proposta neste capítulo é apresentar a argumentação do autor em defesa da
posição original. Em outras palavras, as características da posição original enquanto situação
inicial de igualdade para a escolha dos princípios de justiça; quais são as restrições sobre as
quais os princípios são escolhidos; porque as partes aceitariam esses princípios frente às
alternativas apresentadas a elas na posição original, isto é, diante da abstração das
informações particulares, como Rawls explica a escolha dos princípios de justiça pelas partes;
baseadas em que informações elas realizariam tal escolha; a noção de justiça procedimental
pura que é incorporada nesta situação inicial, ou seja, essa noção estabelece que as
circunstâncias eqüitativas de escolha determinam ou tem como resultado princípios justos; e a
idéia de equilíbrio reflexivo que consiste num momento de ajuste entre os dois princípios de
justiça e as convicções refletidas das pessoas.
2.1 A IDÉIA DE POSIÇÃO ORIGINAL
John Rawls, ao elaborar a teoria da justiça como eqüidade, tem como referência os
problemas sociais contemporâneos, como as desigualdades sociais e o problema da justiça
distributiva, por exemplo. Assim, o trabalho do autor visa à escolha de princípios de justiça
aplicáveis, em especial, à estrutura básica da sociedade
26
.
26
Na obra Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, Rawls distingue três níveis de justiça: a justiça local
(compreende os princípios que se aplicam as associações, grupos e arranjos sociais existentes no interior da
estrutura básica); a justiça doméstica (abrange os princípios que devem regular a estrutura básica da sociedade);
38
No artigo A Estrutura Básica como Objeto, tem-se que o papel das instituições que
compõem a estrutura básica é de “[...] garantir condições justas para o contexto social, pano
de fundo para o desenrolar das ações dos indivíduos e das associações” (RAWLS, 1978,
p. 13)
27
. Em outras palavras, como a sociedade é compreendida como um sistema eqüitativo
de cooperação social fechado e auto-suficiente, no interior do qual as pessoas livres e iguais
realizam as suas atividades e satisfazem as suas necessidades, as instituições deste sistema
devem garantir condições justas para o desenvolvimento dos projetos e objetivos essenciais
das pessoas. Desta forma, a maneira como as instituições mais importantes da estrutura básica
agem, quer dizer, a forma como elas atribuem os direitos, deveres e liberdades básicas aos
cidadãos e distribuem os recursos advindos da cooperação social, influenciam as perspectivas
de vida das pessoas, desde o início e por toda a sua vida. Caso a estrutura não seja regulada
por princípios razoáveis que visam o benefício de todos, ou seja, caso seja realizada uma
distribuição desigual dos direitos e dos benefícios, o contexto social no qual serão
desenvolvidas as atividades humanas não será justo, mesmo que os acordos particulares
realizados pelos membros desta sociedade sejam eqüitativos
28
. Na opinião de Silva
29
(2003,
p. 43), “para Rawls, a forma como as instituições se organizam e se relacionam é fator
determinante, em última instância, da vida dos indivíduos”. Deste modo, a forma como as
instituições atuam, indica os aspectos naturais das pessoas e formam os indivíduos, ou seja,
para que os talentos naturais das pessoas possam se desenvolver é necessário condições
sociais justas. Não é possível o desenvolvimento e mesmo a concretização de um talento ou
capacidade independente das condições sociais nas quais os membros estão inseridos.
a justiça global (enfatiza os princípios do direito internacional ou, como Rawls denomina, o direito dos povos).
De acordo com estes níveis, o objetivo principal da teoria da justiça como eqüidade é a elaboração de princípios
que sejam aplicados à estrutura básica da sociedade e, de acordo com o autor, ficará satisfeito se formular uma
concepção política de justiça adequada para esse propósito. Os princípios escolhidos para regular essa estrutura,
por exemplo, podem não ser razoáveis, justos e adequados para reger as associações e divergências do cotidiano,
assim como do direito internacional. Isto porque cada nível de justiça é governado “[...] por princípios distintos
devido a seus objetivos e propósitos diferentes e sua peculiar natureza e exigências singulares” (RAWLS, 2003,
p. 15). Contudo, os princípios da estrutura básica podem limitar ou interferir nos problemas de justiça local, mas
não determinar os seus princípios (RAWLS, 2002, p. 09).
27
Para compreender melhor o papel das instituições de garantir um contexto social justo Cf. RAWLS, 2000,
p. 318-9; p. 338 e RAWLS, 2003, p. 75.
28
Com esta passagem não estamos querendo dizer que a teoria de Rawls não admite uma desigualdade na
atribuição dos benefícios. Essa distribuição não precisa ser igual, mas deve ser vantajosa para todos os membros
que vivem e cooperam com a sociedade. Além disso, as desigualdades são admitidas desde que elas representem
o maior beneficio para os membros menos favorecidos da sociedade. Se as instituições da estrutura básica
distribuírem os benefícios sem critérios razoáveis e adequados, tal forma de agir conduzirá a um contexto com
profundas desigualdades sociais, no qual algumas pessoas serão beneficiadas enquanto outras serão prejudicadas.
Assim, a teoria da justiça como eqüidade propõe princípios de justiça como critérios adequados para regular a
atribuição dos benefícios e assim, diminuir as desigualdades sociais.
29
SILVA, Sidney Reinaldo da. Formação Moral em Rawls, 2003.
39
Segundo Rawls, as desigualdades nas perspectivas de vida das pessoas não podem
ser ignoradas, do mesmo modo que elas não devem se manifestar sem a instituição de regras
adequadas para preservar a justiça de fundo. Se isto ocorrer, “[...] não estaremos levando a
sério a idéia de sociedade como um sistema eqüitativo de cooperação entre cidadãos livres e
iguais” (RAWLS, 2003, p. 79). Assim, ao escolher os princípios de justiça, deve-se levar em
consideração a natureza e a forma como a estrutura básica atua, isto porque a maneira como
ela desempenha a sua função e influencia as desigualdades sociais e econômicas, está
relacionada às perspectivas de vida das pessoas.
Por conseguinte, as desigualdades tratadas na teoria da justiça como eqüidade, têm a
sua origem em três contingências: “[...] (a) sua classe social de origem [...]; (b) seus talentos
naturais [...] e as oportunidades que têm de desenvolver esses talentos em função de sua classe
social de origem; (c) sua boa ou má sorte ao longo da vida [...]” (RAWLS, 2003, p. 78) e,
além disso, as perspectivas de vida das pessoas são afetadas “[...] pela maneira como a
estrutura básica, pela forma como dispõe as desigualdades, usa essas contingências para
cumprir certas metas sociais” (RAWLS, 2003, p. 78). Ou seja, a distribuição natural dos
talentos, a posição social e a boa ou má sorte das pessoas ao longo de sua vida, não devem ser
consideradas justas ou injustas, mas sim a forma como as instituições tratam esses aspectos
naturais
30
. Este último ponto está relacionado à forma como as instituições distribuem os bens
primários
31
que são direitos, liberdades, oportunidades, renda e riqueza. Estes bens são
necessários para a realização dos projetos e objetivos das pessoas, sejam eles quais forem.
Assim, a função dos princípios é determinar uma maneira adequada de atribuir direitos e
deveres fundamentais e distribuir os benefícios de forma que seja vantajoso
32
para todos os
membros que vivem e cooperam com a sociedade.
Na obra Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, Rawls apresenta duas razões
que justificam o fato da justiça como eqüidade ter como objeto principal a estrutura básica da
sociedade. Em linhas gerais, a primeira razão “[...] diz respeito ao funcionamento das
instituições sociais e à natureza dos princípios necessários para regulá-las ao longo do tempo
a fim de preservar a justiça de fundo” (RAWLS, 2003, p. 74). A segunda razão está
30
Por aspectos naturais entende-se o vigor, a saúde, a inteligência, os talentos, as aspirações, dentre outras
características próprias das pessoas que não estão sob o controle direto da estrutura básica da sociedade. Não
depende dessa estrutura uma pessoa ter nascido com o talento para a música e não para a dança, por exemplo,
mas o desenvolvimento desses bens naturais depende da forma como a estrutura básica atua.
31
O papel dos bens sociais primários será apresentado mais adiante.
32
Em Uma Teoria da Justiça, § 11, o autor ao apresentar os princípios de justiça e explicar o que tais princípios
asseguram, destaca que o segundo princípio não propõe uma distribuição igual da renda e da riqueza a todos,
mas que essa distribuição deve ser vantajosa para todos os membros que cooperam com a sociedade (RAWLS,
2002, p. 65).
40
relacionada à influência profunda que, desde o início da vida, as pessoas que vivem sob estas
instituições estão submetidas. Estas razões reforçam a idéia destacada acima e que foram
expostas em Uma Teoria da Justiça.
De acordo com o autor, “mesmo quando essas desigualdades não são muito grandes
em certos casos, seus efeitos podem ser muito importantes, pois, ao longo do tempo, têm
conseqüências cumulativas significativas” (RAWLS, 2000, p. 323). Os princípios de justiça,
além de definirem os termos eqüitativos que regem a cooperação social entre os membros,
“[...] devem regular todos os acordos subseqüentes; especificam os tipos de cooperação social
que se podem assumir e as formas de governo que se podem estabelecer” (RAWLS, 2002,
p. 12).
Compreendendo que o objetivo de Rawls é elaborar uma teoria da justiça que se
apresente como uma alternativa para resolver o problema da desigualdade social, como ele
desenvolve a sua argumentação a fim de escolher princípios justos que visam o benefício de
todos os membros da sociedade? Sob que condições estes princípios devem ser escolhidos
para que sejam considerados critérios adequados para reger a estrutura básica de uma
sociedade bem-ordenada?
33
Em outras palavras, compreendendo a sociedade como um
sistema eqüitativo de cooperação social entre pessoas livres e iguais, como determinar os
termos eqüitativos que devem regular essa cooperação? A estas questões o autor apresenta as
seguintes alternativas:
por exemplo: eles são ditados por algum poder distinto do das pessoas que
cooperam entre si, digamos pela lei divina? Ou esses termos são reconhecidos por
todos como eqüitativos tendo por referência uma ordem moral de valores, por
exemplo, por intuição racional, ou por refencia ao que alguns definiram como “lei
natural”? Ou eles são estabelecidos por meio de um acordo entre cidadãos livres e
iguais unidos pela cooperação, à luz do que eles consideram ser suas vantagens
recíprocas, ou seu bem? (RAWLS, 2003, p. 20).
O caráter contratualista da teoria de Rawls se evidencia no fato de o autor adotar a
terceira alternativa, isto é, os termos eqüitativos que devem reger a cooperação social são o
resultado de um acordo realizado entre pessoas racionais livres e iguais, que estão
comprometidas com esse sistema, no qual nasceram e passarão a sua vida toda. Esta forma de
especificar a escolha dos princípios exclui do acordo os termos emanados de um texto ou
instituição sagrada, e a referência a uma ordem moral de valores. Assim, Rawls retoma o
33
Rawls afirma que os princípios de justiça escolhidos na posição original são aqueles que “[...] deveriam
regular uma sociedade bem-ordenada” (RAWLS, 2002, p. 09), isto porque uma sociedade bem-ordenada é
caracterizada como um sistema regulado por uma concepção política de justiça, cujo conteúdo são os princípios
de justiça.
41
modelo argumentativo do contrato social – da teoria contratualista clássica – a partir da
situação inicial de igualdade denominada de posição original. Os princípios de justiça, cuja
função é regular “os sistemas institucionais básicos” (RAWLS, 2002, p. 69), são objetos de
um consenso inicial ocorrido na posição original, em condições razoavelmente definidas. Ou
seja, os princípios são escolhidos pelas partes
34
– que são os representantes dos cidadãos
concebidos como livres e iguais – que se supõe estarem simetricamente situadas na posição
inicial de escolha que, por sua vez, é uma situação eqüitativa, na medida em que a eqüidade é
garantida por certas restrições. De acordo com o autor, “[...] não há outra alternativa melhor
senão um acordo entre os próprios cidadãos, concertado em condições justas para todos”
(RAWLS, 2003, p. 21), quer dizer, um acordo realizado entre os próprios membros da
cooperação social, que vivem e cooperam com esse sistema.
Na obra O Liberalismo Político, Rawls enfatiza que a posição original é um recurso
através do qual será especificada a concepção de justiça, cujos princípios são os mais
adequados para conciliar os valores de liberdade e de igualdade, isto porque, de acordo com o
autor, “[...] não há concordância sobre a forma pela qual as instituições básicas de uma
democracia constitucional devam ser organizadas para satisfazer os termos eqüitativos de
cooperação entre cidadãos considerados livres e iguais” (RAWLS, 2000, p. 46).
Cabe salientar, antes de destacarmos as características da posição original, que o
acordo realizado nesta posição é distinto dos demais acordos. Os acordos particulares ou
concretos realizados no quotidiano por indivíduos, grupos e associações, são efetuados no
interior da estrutura básica da sociedade, ou seja, têm como pano de fundo as instituições da
estrutura básica. Ao realizá-los, os contratantes sabem das características da situação na qual
foi realizado o acordo, as aptidões, interesses, propósitos e sabem, através das suas próprias
informações, qual das alternativas irá beneficiar o seu caso particular. Assim, eles certamente
não concordarão com a alternativa que poderá prejudicar os seus interesses, mas sim com
aquela que os beneficiará. Em outras palavras, os acordos concretos são realizados de forma
parcial, quer dizer, leva-se em conta os dados particulares dos contratantes. De acordo com
Rawls (2003, p. 21), “[...] a não ser que essas situações [o contexto das instituições no qual
são realizados os acordos particulares] satisfaçam as condições para acordos válidos e justos,
os termos acordados não serão considerados justos”.
34
Denominaremos partes, parceiros ou representantes as pessoas situadas na posição original, cujo papel é de
escolher os princípios de justiça mais adequados para reger a cooperação social; e pessoas, membros ou
cidadãos, aqueles que participam e cooperam com a sociedade.
42
Ao contrário dos acordos concretos, o acordo realizado na posição original
especifica os princípios de justiça que devem ser aplicados, em especial, à estrutura básica da
sociedade, isto é, o acordo visa o próprio pano de fundo, ou o contexto social no qual são
realizados os pactos particulares.
No artigo A Estrutura Básica como Objeto, Rawls destaca que um contrato social
deve levar em consideração três fatos: “[...] que a participação na nossa sociedade é dada, que
não podemos saber o que teríamos sido se não pertencêssemos a ela [...] e que a sociedade
tomada como um todo não tem fins nem hierarquia dos fins, no sentido em que os indivíduos
e as associações têm” (RAWLS, 1978, p. 26)
35
. Relacionando esses fatos com o acordo
realizado na posição original, tem-se que primeiro a participação na sociedade é fixa, quer
dizer, as pessoas nascem nela e nela desenvolvem uma de suas formas ou habilidades
possíveis, dentre muitas outras que podem ter; segundo, o véu de ignorância, além de
estabelecer uma situação eqüitativa entre os parceiros, abstrai as partes das informações sobre
as suas capacidades e interesses, de modo que “[...] ele [o véu de ignorância] corresponde
igualmente ao fato de que, fora do nosso lugar e da nossa história numa sociedade, nem as
nossas capacidades potenciais podem ser conhecidas nem os nossos interesses e o nosso
caráter ainda estão formados” (RAWLS, 1978, p. 28); terceiro, o fato de que a sociedade não
tem fins que pretende realizar, como os fins de indivíduos e associações, mas sim os fins
especificados pelos princípios de justiça. Essas características destacam o contexto de um
contrato social.
De acordo com estes elementos, Rawls apresenta uma dificuldade na realização do
acordo celebrado entre as partes, a saber, sob que ponto de vista é possível garantir que a
escolha dos princípios de justiça será realizada de uma forma eqüitativa, sem a influência de
interesses pessoais, das contingências da sociedade e dos valores das doutrinas defendidas
pelas pessoas, como ocorre nos acordos particulares.
2.1.1 O Papel do Véu de Ignorância
A posição original, juntamente com o artifício do véu de ignorância, é esse ponto de
vista através do qual os princípios são escolhidos abstraídos das informações particulares e
35
Este mesmo argumento encontra-se na obra O Liberalismo Político (2000, p. 329-330).
43
dos dados da estrutura básica. Rawls afirma, em Uma Teoria da Justiça (2002, p. 20) – e este
mesmo argumento encontra-se em O Liberalismo Político (2000, p. 67) – que há um consenso
de que a escolha dos princípios de justiça deve ser realizada sob certas restrições, a fim de
beneficiar a todos os membros da sociedade. Quer dizer, há um consenso de que ninguém
deve ser beneficiado ou prejudicado devido à sua posição social ou aos seus dotes e talentos
naturais. Ou seja, uma das convicções refletidas das pessoas (aquilo que elas consideram
como justo ou injusto na sociedade) é de não propor ou esperar que os outros representantes
aceitem uma concepção política unicamente porque elas ocupam uma determinada posição
social ou defendem uma doutrina abrangente específica. Da mesma forma, os princípios não
devem ser adaptados para indivíduos ou grupos particulares a fim de beneficiá-los, assim
como a sua escolha não deve ser afetada pelos interesses e aspirações das pessoas. Estas
restrições, que são apresentadas como condições necessárias para que o acordo seja “[...]
válido do ponto de vista da justiça política” (RAWLS, 2003, p. 21), têm o objetivo de “[...]
excluir aqueles princípios cuja aceitação de um ponto de vista racional só se poderia propor,
por menor que fosse sua probabilidade de êxito, se fossem conhecidos certos fatos que do
ponto de vista da justiça são irrelevantes” (RAWLS, 2002, p. 21). Quer dizer, o véu de
ignorância tem a função de impedir a passagem de informações arbitrárias e assim, exclui
princípios que beneficiariam apenas alguns membros, mas não todos, que é o que Rawls
objetiva com a sua teoria.
Para assegurar a escolha de princípios eqüitativos, as partes não têm acesso às
informações contingentes acerca da situação da sociedade e da sua própria pessoa, elementos
estes que são destacados no § 24 de Uma Teoria da Justiça, conforme segue:
supõe-se, então, que as partes não conhecem certos tipos de fatos particulares. Em
primeiro lugar, ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição de
classe ou seu status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição
de dotes naturais e habilidades, sua inteligência e força, e assim por diante.
Também ninguém conhece a sua concepção do bem, as particularidades de seu
plano de vida racional, e nem mesmo os traços característicos de sua psicologia,
como por exemplo a sua aversão ao risco ou sua tendência ao otimismo ou
pessimismo. Mais ainda, admito que as partes não conhecem as circunstâncias
particulares de sua própria sociedade. Ou seja, elas não conhecem a posição
econômica e política dessa sociedade, ou o nível de civilização e cultura que ela foi
capaz de atingir. As pessoas na posição original não têm informação sobre a qual
geração pertencem. Essas restrições mais amplas impostas ao conhecimento são
apropriadas, em parte porque as questões da justiça social surgem entre gerações e
também dentro delas [...]. [...] as partes não devem conhecer as contingências que
as colocam em oposição. Elas devem escolher princípios cujas conseqüências estão
preparadas para aceitar, não importando a qual geração pertençam (RAWLS, 2002,
p. 147).
44
O acesso a estas informações particulares poderia conduzir à opção por princípios
que beneficiariam algumas pessoas e prejudicariam outras, isto porque as partes escolheriam
os princípios a partir de dados contingentes. Nesta perspectiva, para garantir que todos sejam
beneficiados com a seleção dos princípios, Rawls supõe que as partes não são influenciadas
por esses dados, visto que elas estão encobertas pelo véu de ignorância
36
. Assim, as partes
estão numa situação de igualdade a fim de escolher a concepção política mais adequada para a
cooperação social, e os princípios de justiça selecionados nesta situação de escolha são o
resultado de um consenso eqüitativo
37
.
Em Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, o autor justifica a abstração das
informações contingentes porque um acordo eqüitativo entre pessoas livres e iguais sobre
princípios de justiça para serem aplicados a estrutura básica “[...] têm de eliminar as posições
vantajosas de negociação que, com o passar do tempo, inevitavelmente surgem em qualquer
sociedade como resultado de tendências sociais e históricas cumulativas” (RAWLS, 2003,
p. 22). Na obra O Liberalismo Político, acrescenta que “tais vantagens contingentes e
influências acidentais do passado não devem afetar um acordo sobre os princípios que hão de
regular as instituições da própria estrutura básica, no presente e no futuro” (RAWLS, 2000,
p. 66). Estas restrições impostas para a deliberação dos princípios de justiça são consideradas
por Rawls como fundamentais, visto que estão de acordo com aquilo que as pessoas
consideram condições justas para a escolha de princípios. Isto é, o véu de ignorância,
abstraindo as informações particulares, impossibilita a seleção de princípios parciais
garantindo, assim, a imparcialidade, a escolha unânime
38
de uma concepção de justiça. Desta
forma, ao assegurar que os princípios escolhidos não são afetados por elementos particulares,
tem-se que as partes não têm informações contingentes para negociar a escolha de uma
determinada concepção de justiça, não são orientadas pelos seus preconceitos, ou seja, por
dados anteriores e independentes aos princípios e, até mesmo, por princípios anteriores a essa
situação inicial. Além destes aspectos, Rawls destaca que as partes nesta situação de escolha
36
Rawls desenvolve a sua argumentação acerca do artifício do véu de ignorância como um “instrumento” ou um
artifício figurativo que assegura a escolha de princípios eqüitativos. Mas o autor não descarta a possibilidade do
véu de ignorância levantar algumas dificuldades e ser mal compreendido. Na obra Uma Teoria da Justiça, o
autor destaca duas objeções que poderiam ser levantadas sobre a noção de véu de ignorância (RAWLS, 2002,
p. 148-9).
37
Em várias passagens de suas obras, no presente caso a obra Uma Teoria da Justiça, Rawls destaca a
importância da posição original, conforme podemos visualizar nos seguintes fragmentos: “[...] os consensos
fundamentais nela alcançados são eqüitativos” (RAWLS, 2002, p. 13-4); “caracterizada por acordos totalmente
aceitos” (RAWLS, 2002, p. 15); “definida de modo a ser um status quo no qual qualquer consenso atingido é
justo” (RAWLS, 2002, p. 129); “a idéia da posição original é estabelecer um processo eqüitativo, de modo que
quaisquer princípios aceitos sejam justos” (RAWLS, 2002, p. 146-7).
38
A expressão “unânime” é encontrada nas obras do autor (RAWLS, 2002, p. 151-2 e RAWLS, 2003, p. 122).
45
eqüitativa desconhecem as suas diferentes características e são racionalmente iguais, o que faz
com que elas sejam convencidas pelos mesmos argumentos. Segundo o autor,
[...] podemos considerar o acordo na posição original a partir do ponto de vista de
uma pessoa selecionada ao acaso. Se qualquer pessoa, depois da devida reflexão,
prefere uma concepção da justiça a uma outra, então todos a preferem, e pode-se
atingir um acordo unânime (RAWLS, 2002, p. 150).
A unanimidade das partes na escolha dos princípios de justiça é explicada por Rawls
através do uso do véu de ignorância na posição original. A eliminação de informações
arbitrárias e o igual acesso aos elementos genéricos na situação de deliberação, resulta numa
concepção de justiça que “[...] representa uma genuína conciliação de interesses” (RAWLS,
2002, p. 152), isto porque, a justiça como eqüidade analisa o sistema social a partir da posição
da cidadania igual, dos direitos, deveres e liberdades dos cidadãos, bem como a sua
prioridade, que são essenciais para os membros que cooperam com a sociedade. A cidadania
igual é um status que todas as pessoas compreendidas como livres e iguais possuem na
sociedade, e é a partir destas características que as partes irão deliberar acerca dos princípios
de justiça, e não a partir de dados irrelevantes que colocam os homens em posição de disputa
para garantir mais recursos. Isto explica porque as partes representam na posição original os
cidadãos livres e iguais. Desta forma, numa sociedade justa todos os cidadãos possuem o
mesmo valor, visto que eles possuem as capacidades necessárias para serem membros
normais e plenamente cooperativos da sociedade ao longo de sua vida. Essas condições
impostas para a escolha dos princípios são restrições razoáveis de conduta, uma vez que
conduzem a um acordo eqüitativo sobre os princípios de justiça.
No artigo A Estrutura Básica como Objeto, o autor destaca que os parceiros,
enquanto pessoas morais livres e iguais que escolhem os princípios de justiça, devem saber
pouco sobre si mesmos, isto porque são esses princípios que irão reger a cooperação social da
qual fazem parte e a sua relação com as outras pessoas enquanto pessoas morais. Assim, se as
partes têm acesso a essas informações, os princípios escolhidos beneficiam o seu caso
particular, e a cooperação social e as relações entre as pessoas serão reguladas por esses
mesmos princípios. Este argumento reforça a importância do véu de ignorância, que
representa, na teoria de Rawls, as restrições desejadas e a característica essencial para a
escolha de princípios eqüitativos. Assim, as circunstâncias que definem a posição original
compreendem que ela é eqüitativa em relação às pessoas morais, concebidas como detentoras
de uma concepção do seu próprio bem e de um senso de justiça. Em virtude da forma como as
46
partes estão situadas e caracterizadas – e pelo conhecimento das informações que possuem –,
a escolha dos princípios de justiça é, de acordo com Rawls, a melhor escolha que se pode
fazer dentre as alternativas apresentadas a fim de garantir os interesses ou a realização dos
planos racionais de vida das pessoas.
De acordo com este limite às informações, poder-se-ia pensar que as partes
selecionam os princípios ao acaso ou por um ato de adivinhação. Rawls destaca que os
parceiros situados na posição original têm acesso às informações gerais acerca das
circunstâncias da justiça – escassez moderada e conflito de interesses – que são as
circunstâncias a partir das quais surge a necessidade da elaboração dos princípios, e “[...]
conhecem os fatos genéricos sobre a sociedade humana. Elas entendem as relações políticas e
os princípios da teoria econômica; conhecem a base da organização social e as leis que regem
a psicologia humana” (RAWLS, 2002, p. 148). Deste modo, as partes na posição original não
sabem qual das alternativas irá beneficiar o seu caso particular, mas devem avaliar e deliberar
acerca dos princípios a partir das considerações gerais a que têm acesso. Segundo o autor, não
há limites
39
em relação às informações gerais sobre a sociedade e a psicologia humana,
porque são esses dados genéricos – que são informações do próprio sistema ao qual os
princípios serão aplicados – que compõem as premissas a partir das quais os parceiros irão
deliberar a fim de escolher os princípios de justiça. Isto se confirma no que segue: as “[...]
premissas que caracterizam essa estrutura são utilizadas para deduzir os princípios da justiça”
(RAWLS, 2002, p. 276-7)
40
. Assim, Rawls (2002, p. 170) afirma que “o essencial, é claro, é
que essas premissas sejam verdadeiras e suficientemente gerais”. Isto significa dizer que as
39
Em Uma Teoria da Justiça, o autor afirma que, na maioria das vezes, as partes têm acesso a todas as
informações gerais necessárias para a escolha dos princípios; não há limites as informações e nem são ocultados
dados. Rawls justifica essa não limitação aos elementos gerais com a seguinte afirmação: “faço isso
principalmente para evitar complicações” (RAWLS, 2002, p. 153).
40
O autor, em sua obra Uma Teoria da Justiça, enfatiza que pelo menos idealmente o raciocínio para a escolha
dos princípios de justiça pode ser dedutivo, visto que esses princípios são os mais razoáveis de serem escolhidos
frente à descrição da posição original e diante das características e da psicologia das partes. Contudo, nesta
mesma passagem, acrescenta que a forma como o seu raciocínio é desenvolvido fica aquém de um raciocínio
dedutivo, classificando-o como intuitivo. Na obra Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, o autor apresenta
um outro argumento que reforça essa idéia, a saber, que “os princípios de justiça que são objeto de acordo não
são, portanto, deduzidos das condições da posição original: são selecionados de uma lista dada. A posição
original é um procedimento de seleção: opera a partir de uma família de concepções de justiça conhecidas e
existentes em nossa tradição de filosofia política, ou elaboradas a partir dela” (RAWLS, 2003, p. 117). Apesar
da argumentação de Rawls enfatizar que os princípios não são deduzidos das condições da posição original, mas
selecionados a partir das alternativas apresentadas, pensamos que seu raciocínio é dedutivo visto que a forma
como o autor desenvolve a sua argumentação acerca das características da posição original, faz com que
tenhamos dela a visão de um argumento dedutivo. Ou seja, a partir das premissas destacadas, que são as
características da posição original que visam garantir um acordo eqüitativo, tem-se como conclusão princípios de
justiça eqüitativos, resultado “correto” ou válido das premissas. Garcia (1985, p. 131) apresenta elementos que
explicam esse caráter dedutivo da posição original. Para verificar argumentos do autor quanto a este ponto Cf.
RAWLS, 2002, p. 128 e p. 276-7; RAWLS, 2003, p. 23 e p. 188.
47
informações a partir das quais as partes argumentam a favor dos princípios de justiça devem
ser adequadas, partir do contexto da estrutura básica. Estas informações, de acordo com o
autor, são suficientes e adequadas para a deliberação dos princípios e a partir das quais, as
partes devem avaliá-los.
Segundo Silva, as informações gerais às quais as partes têm acesso apesar do véu de
ignorância, são fundamentais para a escolha de princípios de justiça a partir de uma
perspectiva comum. Quer dizer, as partes escolhem os princípios com base em informações
comuns, gerais, que não privilegiam uma pessoa, grupo, posição social ou mesmo uma
concepção do bem, mas sim informações relevantes para a concepção política de pessoa,
enquanto membros normais e plenamente cooperativos da sociedade, compreendidos como
livres e iguais e que procuram realizar o seu plano racional de vida.
Este aspecto reforça uma das características da teoria da justiça como eqüidade enquanto
uma concepção política de justiça, a saber, que o conteúdo da teoria é formado da ordenação e
ajuste de idéias fundamentais implícitas na cultura política pública, ou seja, são idéias e
convicções presentes no contexto de uma sociedade democrática. Assim, nas obras posteriores
a Uma Teoria da Justiça, tem-se que o objetivo é elaborar uma concepção política de justiça
para as sociedades democráticas. Na obra O Liberalismo Político, o autor explica por que uma
concepção política de justiça parte de idéias presentes no interior dessa sociedade. Nas
palavras de Rawls (2000, p. 56),
numa sociedade democrática, há uma tradição de pensamento democrático, cujo
teor é, no mínimo, familiar e inteligível ao senso comum civilizado dos cidadãos
em geral. As diversas instituições da sociedade, e as formas aceitas de interpretá-
las, são vistas como um fundo de idéias e princípios implicitamente
compartilhados.
Se não fosse assim, quer dizer, se não partisse de idéias da própria cultura política
pública, tal proposta seria inútil, uma vez que as premissas usadas para a escolha dos
princípios poderiam partir de dados ideais (não pertencentes à sociedade na qual os princípios
devem desempenhar o seu papel) ou de elementos de uma concepção abrangente do bem.
O destaque dado às características da posição original e do véu de ignorância e o seu
papel para a escolha dos princípios de justiça se justifica porque “queremos definir a posição
original de modo a chegarmos à solução desejada” (RAWLS, 2002, p. 152). Ou seja, a
escolha de princípios eqüitativos para serem aplicados à estrutura básica da sociedade. Assim,
a posição original é o argumento desenvolvido por Rawls com o objetivo de saber quais
seriam os princípios escolhidos pelas partes enquanto pessoas racionais livres e iguais e que
48
são os representantes das pessoas assim concebidas. A natureza dos membros – de serem
racionais livres e iguais – é expressa quando eles agem de acordo com os princípios
escolhidos em uma posição que leva em consideração essa natureza, quer dizer, quando ela
situa e considera as pessoas através dessas características, e não a partir de seus aspectos
contingentes, como talentos, posição social e concepção do bem que defendem. Assim, agir
de acordo com princípios escolhidos na posição original é um desejo de expressar a natureza
de pessoas racionais livres e iguais. Desta forma, a cidadania igual compreende todos os
membros que participam da sociedade como sujeitos de justiça, considerando as suas
características enquanto cidadãos e não enquanto pessoas com determinados desejos e
interesses.
2.1.2 O Acordo Hipotético e A-Histórico
A posição original é uma posição de igualdade em que as partes que escolhem os
princípios de justiça estão simetricamente situadas e encobertas pelo véu de ignorância. Esses
princípios têm como função reger a estrutura básica da sociedade que é formada pelas
instituições que determinam a justiça de fundo, ou seja, o contexto no qual as pessoas
desenvolvem suas atividades e satisfazem suas necessidades. Assim, as partes concebidas
como morais, livres e iguais, devem levar em consideração apenas as informações relevantes
para a seleção dos princípios, e desconsiderar dados que possibilitam a escolha de princípios
parciais. Deste modo, o acordo realizado na posição original não ocorre numa situação
histórica concreta, mas é um acordo hipotético e a-histórico.
O caráter hipotético da posição original é uma característica questionada na teoria do
autor, uma vez que – retomando uma das falhas apontadas por Kymlicka do contratualismo
clássico – contratos hipotéticos não criam obrigações. Contudo, Rawls, ao desenvolver a sua
argumentação, justifica esse aspecto da situação inicial de escolha. Na obra Uma Teoria da
Justiça, o autor afirma que “essa posição original não é, obviamente, concebida como uma
situação histórica real [...]. É entendida como uma situação puramente hipotética caracterizada
de modo a conduzir a uma certa concepção da justiça” (RAWLS, 2002, p. 13)
41
. Em outros
41
Quando da caracterização de um contrato social, o autor destaca que a posição original é “[...] (1) um acordo
hipotético entre todos os membros de uma sociedade e não somente entre alguns deles, (2) enquanto membros da
49
termos, na sua obra mais recente, Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, o autor
salienta que a posição original “[...] é hipotética na medida em que nos perguntamos o que as
partes (conforme foram descritas) poderiam acordar, ou acordariam, e não o que acordaram”
(RAWLS, 2003, p. 23), e é compreendida como “[...] ahistórico na medida em que não
supomos que o acordo tenha sido concertado alguma vez ou venha a ser celebrado. E mesmo
que o fosse, isso não faria nenhuma diferença” (RAWLS, 2003, p. 23). Ou seja, pergunta-se
quais princípios as partes poderiam escolher ou escolheriam dentre as alternativas
apresentadas, e não quais princípios elas realmente escolheram. Assim, o acordo realizado na
posição original não ocorre de forma concreta, como os acordos realizados entre pessoas e
grupos, por exemplo, mas é concebido como uma hipótese, na medida em que as partes
deliberam “como se” elas estivessem situadas simetricamente e encobertas por um véu de
ignorância, com o objetivo de escolher princípios eqüitativos.
Segundo Nedel
42
, o contrato proposto por Rawls é celebrado a partir de condições
consideradas como ideais para a deliberação a favor dos princípios de justiça. Já Garcia
destaca que as partes que escolhem os princípios são seres idealizados, visto que elas são
privadas de algumas informações, contudo, outras são reforçadas. Além disso, a posição
original compreendida como hipotética “[...] se libera del pasado para adoptar el potencial, la
posibilidad fuera del tempo” (GARCIA, 1985, p. 100), ou seja, ela pode ser adotada a
qualquer momento e seus princípios são razoáveis para as futuras gerações.
Deste modo, o acordo realizado na posição original pode ser visto como
desvinculado do tempo, isto porque “[...] um processo hipotético não histórico, como, por
exemplo, o procedimento que conduz ao acordo na posição original, não pode acontecer”
(RAWLS, 1978, p. 11, n. 6). Significa, portanto, que as partes podem a qualquer momento se
imaginar nessa situação de escolha com o intuito de deliberar acerca dos princípios de justiça.
Nas palavras do autor, “[...] uma ou mais pessoas podem, a qualquer tempo, passar a ocupar
essa posição, ou, talvez melhor, simular as deliberações que seriam tomadas nessa situação
hipotética, simplesmente raciocinando de acordo com as restrições apropriadas” (RAWLS,
2002, p. 148).
Rawls justifica as características hipotética e a-histórica da posição original pela
impossibilidade de escolher princípios eqüitativos em acordos reais. Ou seja, como os
princípios visam à estrutura básica da sociedade a fim de diminuir as desigualdades sociais,
sociedade (enquanto cidadãos) e não enquanto indivíduos que ocupam uma posição ou um papel particular no
seio da sociedade” (RAWLS, 1978, p. 04).
42
NEDEL, José, A Teoria Ético-Política de John Rawls: Uma Tentativa de Integração de Liberdade e igualdade,
2000.
50
acordos concretos realizados neste contexto social seriam influenciados por informações
contingentes, que desencadeariam em princípios que beneficiariam alguns e prejudicariam
outros, isto é, princípios parciais. Desta forma, não é possível, em acordos reais, em que as
pessoas sabem dos seus interesses, aspirações e posição social, ultrapassar os dados
irrelevantes e nem estabelecer um critério independente para a escolha de princípios, ou seja,
uma forma concreta de realizar o acordo e que assegurasse que as partes agiriam segundo
essas restrições. Isto porque, se as partes argumentassem a partir da sua condição, sem a
restrição do véu de ignorância e em uma situação de acordo concreta, a escolha dos princípios
seria influenciada por esses dados. Entretanto, argumentando conforme as restrições impostas,
poder-se-ia chegar à escolha de princípios eqüitativos. Em Uma Teoria da Justiça, Rawls cita
um exemplo com o objetivo de ilustrar o papel que o véu de ignorância exerce na escolha dos
princípios. Segundo este exemplo, se um homem soubesse da sua condição social, quer dizer,
se é rico ou pobre, defenderia princípios que beneficiariam a sua situação e não a dos outros.
Ou seja, se ele fosse rico “[...] poderia achar racional defender o princípio de que vários
impostos em favor do bem-estar social fossem considerados injustos; se ele soubesse que era
pobre, com grande probabilidade proporia o princípio contrário” (RAWLS, 2002, p. 21).
No artigo A Estrutura Básica como Objeto, Rawls confirma e justifica essas
características da posição original da seguinte forma:
[...] o acordo na posição original representa o resultado de um processo racional de
deliberação nas condições ideais e não históricas, que exprimem certos
cerceamentos razoáveis. Não existe na prática meio algum para conduzir esse
processo de deliberação na realidade nem para ter certeza de que ele responde às
condições impostas. [...] O resultado deve ser determinado por um raciocínio
analítico, isto é, a posição original deve ser caracterizada com suficiente precisão
para que seja possível estabelecer, a partir da natureza dos parceiros e da situação
em que eles se encontram, a concepção da justiça que será preferida durante a
confrontação dos argumentos (RAWLS, 1978, p. 23).
Na obra O Liberalismo Político, o autor destaca que o aspecto hipotético e a-
histórico da posição original não apresenta dificuldades, desde que estas características sejam
compreendidas a partir do seu propósito teórico. Ou seja, conforme destacamos no primeiro
capítulo, a teoria da justiça como eqüidade retoma, através do artifício da posição original, o
modelo argumentativo do contratualismo clássico. Assim, a posição original é um
procedimento racional de deliberação com o objetivo de escolher a concepção política mais
razoável para reger a estrutura básica da sociedade. Diante disto, as características da situação
inicial de escolha devem ser consideradas sob esta ótica, ou seja, enquanto aspectos com
propósitos teóricos.
51
Contudo, é na obra Uma Teoria da Justiça que encontramos uma primeira defesa da
posição original enquanto um acordo hipotético e a justificativa do interesse pelos princípios
de justiça que são o resultado desse acordo. Esta defesa versa que
[...] as premissas incorporadas na descrição da posição original são premissas que
de fato aceitamos. Ou, se não as aceitamos, talvez possamos convencer-nos a fazê-
lo mediante o raciocínio filosófico. Pode ser demonstrado o fundamento de cada
aspecto da situação contratual. Assim, o que faremos é juntar num único conceito
um número de postulados para os princípios que, após as devidas reflexões,
estaremos dispostos a aceitar como razoáveis. Essas restrições expressam aquilo
que estamos prontos a considerar como limites em termos eqüitativos de
cooperação social (RAWLS, 2002, p. 24).
Quer dizer, as características e restrições impostas para a escolha de princípios
eqüitativos estão de acordo com aquilo que as pessoas consideram como justo ou injusto. Por
exemplo, Rawls acredita que as pessoas consideram injusto que os princípios beneficiem uma
parcela dos membros devido à sua situação social, ou por possuir um dote natural. Mas
consideram justo que os benefícios advindos da cooperação social sejam distribuídos de
forma vantajosa a todos, do mesmo modo que as liberdades e os direitos básicos devem ser
garantidos igualmente aos membros da sociedade. De acordo com isto, a posição original é
um recurso ou um exercício mental que reúne e combina as condições que as pessoas
consideram justas para a escolha dos princípios de justiça. Contudo, se elas não estiverem de
acordo com essas premissas, mediante um raciocínio, podem aceitar essas restrições como as
mais adequadas e razoáveis para a escolha dos princípios.
Ronald Dworkin, na sua obra Levando os Direitos a Sério, capítulo 6, desenvolve a
sua argumentação acerca da característica hipotética da posição original. A objeção de
Dworkin ao modelo de contrato desenvolvido por Rawls tem como ponto de discussão o fato
de que acordos hipotéticos não criam obrigações, não tem uma força vinculadora, e por isso o
acordo celebrado entre as partes não teria significado
43
. Segundo Dworkin (2002, p. 236), o
contrato proposto por Rawls
[...] é hipotético, e contratos hipotéticoso fornecem um argumento independente
em favor da eqüidade do cumprimento de seus termos. Um contrato hipotético não
é simplesmente uma pálida forma de um contrato real; na verdade, não é contrato
algum.
Dworkin discute que poderia haver um outro argumento que justifique a escolha dos
dois princípios de justiça propostos por Rawls, dentre as alternativas apresentadas, que atenda
43
Esta formulação da objeção de Dworkin é apontada por Rawls (2003, p. 23).
52
aos interesses de todos os membros da sociedade. Contudo, este argumento, segundo
Dworkin, deve fazer uso da idéia de interesse antecedente. Ou seja, como as partes estão
temporariamente ignorantes de suas informações particulares, não sabem quem são fora da
situação inicial de escolha, a sua posição social, nem mesmo os talentos e aspirações que
possuem; elas devem escolher, dentre as alternativas, aquela que consideram como a mais
adequada para realizar os seus planos racionais de vida. Entretanto, ao ser retirado o véu de
ignorância, elas podem constatar que os princípios por elas escolhidos não estão de acordo
com os seus interesses atuais, e que se elas tivessem escolhido outros princípios, os seus
interesses poderiam ter sido satisfeitos de uma forma mais adequada e poderiam estar assim
em uma melhor condição. Disso segue que
[...] o fato de uma escolha particular ser de meu interesse em um dado momento,
em condições de grande incerteza, não é um bom argumento em favor da eqüidade
da realização dessa escolha contra mim mais tarde, em condições de muito maior
conhecimento. Mas, segundo essa interpretação, é isso o que sugere o argumento da
posição original, pois procura justificar o uso presente dos dois princípios na
suposição de que, em condições muito diferentes das atuais, seria do interesse
antecedente de cada um concordar com eles (DWORKIN, 2002, p. 239-240).
De acordo com Dworkin, o argumento de que os interesses antecedentes das partes
na posição original são diferentes dos interesses das pessoas em sociedade, não se manteria se
Rawls apresentasse um outro argumento. Ou seja, Dworkin acredita que se as pessoas
tivessem acesso às suas informações particulares, mas tivessem que chegar a um acordo, por
convenção, dos princípios injustos que deveriam ser excluídos, este seria um argumento a
favor dos princípios propostos por Rawls
44
. De acordo com isto, tais princípios seriam
escolhidos pelas pessoas se Rawls pudesse demonstrar como este acordo garantiria a exclusão
desses princípios injustos. Assim, Dworkin (2002, p. 241) defende que “[...] os dois grupos de
homens teriam então o mesmo conhecimento sobre si próprios, e estariam sujeitos às mesmas
restrições morais contra a escolha de princípios evidentemente injustos”
45
.
Em linhas gerais, procuramos destacar neste tópico o acordo realizado na posição
original como hipotético e a-histórico e como Rawls justifica a importância dessa posição
para a escolha dos princípios de justiça, frente a essas características. Além disso,
44
Conforme apresentamos, Rawls afirma que proceder de uma outra maneira para a escolha dos princípios de
justiça, ou seja, não colocar as partes sob um véu de ignorância, ainda permitiria que as contingências sociais e
particulares influenciassem na escolha dos princípios. De acordo com isto, parece que a alternativa que Dworkin
está apresentando para argumentação de Rawls não é viável, visto que o véu de ignorância objetiva a escolha de
princípios eqüitativos abstraídos de informações arbitrárias (RAWLS, 2000, p. 325).
45
Parece que a proposta de Dworkin é equiparar o contrato social a um acordo concreto. Isto porque as pessoas
estabeleceriam por convenção quais princípios injustos deveriam ser eliminados do acordo, entretanto, elas
teriam acesso as todas as informações. Assim, não indica como garantir a eqüidade dos princípios.
53
apresentamos a objeção que Dworkin faz à característica hipotética da posição original a fim
de verificar como Rawls responde a esta objeção.
2.1.3 A Posição Original enquanto Artifício de Representação
Nas obras posteriores a Uma Teoria da Justiça, Rawls (1985, p. 220-1, n. 18 e 2003,
p. 23-4) responde a objeção levantada por Dworkin acerca da característica hipotética da
posição original, argumentando que a importância dessa situação está no fato dela ser um
artifício de representação, ou seja, as dificuldades apresentadas sobre a descrição da posição
original são resolvidas quando ela é vista como um procedimento de representação
46
.
Ao compreender a posição original desta maneira, tem-se que ela “[...] representa o
que consideramos – aqui e agora – condições eqüitativas, segundo as quais os representantes
de cidadãos livres e iguais devem especificar os termos da cooperação social no âmbito da
estrutura básica da sociedade” (RAWLS, 2000, p. 68-9). Quer dizer, a posição original
representa aquilo que os cidadãos consideram como restrições adequadas para a escolha dos
princípios, ou seja, as partes estão simetricamente situadas e encobertas pelo véu de
ignorância. Isto assegura que os princípios escolhidos consideram as pessoas a partir do
aspecto da igualdade, ou seja, elas são vistas como detentoras das capacidades mínimas
necessárias para serem membros normais e plenamente cooperativos da sociedade, e não a
partir dos seus dados particulares. Assim, garante-se a escolha de princípios imparciais. A
posição original também
[...] representa o que, nesse âmbito, consideramos restrições aceitáveis às razões de
que as partes dispõem para favorecer uma concepção política de justiça em
detrimento de outra, a concepção de justiça que as partes adotariam identifica a
concepção de justiça que consideramos – aqui e agora – eqüitativa e justificada
pelas melhores razões (RAWLS, 2000, p. 69).
De outra forma, a posição original representa o que as pessoas consideram restrições
aceitáveis quanto à escolha de uma concepção política, ou seja, são restrições razoáveis
impostas às razões às quais as partes, concebidas como representantes racionais, podem
recorrer. Em outras palavras, se as pessoas são ricas ou pobres, professam uma determinada
doutrina, têm aptidão para um instrumento ou atividade, estas não são razões adequadas para
46
No artigo A teoria da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica (1985) a expressão usada é
“procedimento de apresentação”.
54
aceitar ou esperar o consenso dos demais membros acerca de uma concepção que favoreça o
caso particular de uma pessoa ou quem compartilha dessas mesmas condições. De acordo
com o autor, estas não são boas razões para aceitar uma concepção política. Desta forma,
[...] se a posição original é um modelo adequado de nossas convicções sobre essas
duas coisas [...], conjeturamos que os princípios de justiça que fossem objeto de
acordo entre as partes [...] determinariam os termos de cooperação que
consideramos [...] eqüitativos e baseados nas melhores razões. Isso porque, nesse
caso, a posição original teria conseguido formalizar de um modo apropriado as
considerações que, ponderando cuidadosamente, julgamos ser razoáveis para
fundamentar os princípios de uma concepção política de justiça (RAWLS, 2003,
p. 24).
Assim, a posição original enquanto artifício de representação serve como “[...] um
meio de reflexão e auto-esclarecimento públicos” (RAWLS, 2000, p. 69). Isto significa dizer
que a posição original auxilia na elaboração e na relação das convicções refletidas das pessoas
acerca da justiça, considerando quais são as condições mais razoáveis para a escolha dos
princípios, a forma como as partes devem estar situadas, dentre outros fatores. Nas palavras
do autor, um dos papéis da posição original é o de “[...] colocar em ordem nossas convicções
refletidas de justiça em todos os níveis de generalidade, do mais geral ao mais particular”
(RAWLS, 2000, p. 89).
De acordo com estes aspectos, a argumentação referente à escolha dos princípios de
justiça na posição original, conduz a uma conexão entre as concepções de pessoa e de
sociedade, com os princípios de justiça. Isto quer dizer que as partes, enquanto representantes
racionais de pessoas livres e iguais e que são membros cooperativos da sociedade, estão
situadas na posição original e argumentando de acordo com as restrições impostas, com o
objetivo de escolher, dentre uma lista de alternativas, aquela que realiza da melhor maneira
possível o plano racional de vida das pessoas e possibilita o desenvolvimento e exercício de
suas capacidades morais. Desta forma, ao concordarem com a escolha dos princípios, há uma
conexão entre esses e a concepção de pessoa.
Além destes aspectos, Rawls salienta que a posição original representa uma
concepção completa de pessoa, ou seja, contempla as duas capacidades morais que as pessoas
possuem, a saber, a capacidade de ser razoável e a de ser racional. Contudo, se faz necessário
estabelecer uma distinção entre essas duas capacidades. As partes representam o aspecto
racional na posição original. Quer dizer, a partir das informações a que têm acesso, as partes
sabem que as pessoas possuem planos de vida ou uma concepção do bem que desejam realizar
da melhor maneira possível, embora elas não tenham acesso às informações particulares
55
acerca desses planos. Então, a partir destas informações, elas escolhem, dentre as alternativas,
aquela que julgam a mais adequada para proteger os seus próprios interesses e,
conseqüentemente, das pessoas que elas representam. O razoável, por sua vez, representa as
restrições impostas para a escolha dos princípios na posição original, ou seja, a simetria das
partes na situação inicial e a ausência de informações contingentes, através do uso do véu de
ignorância. A representação dessas condições razoáveis torna a posição original eqüitativa. Na
obra O Liberalismo Político, Rawls (2000, p. 96) enfatiza que “parece provável que qualquer
derivação plausível tenha de situar agentes racionais em circunstâncias em que estejam
submetidos a certas condições apropriadas e que essas condições expressarão o razoável”. De
acordo com Oña, a combinação entre o razoável e o racional possibilita a escolha dos
princípios na posição original, uma vez que o razoável representa as restrições impostas, e o
racional a motivação para a escolha dos princípios. Segundo este autor “así es como ha de
entenderse la vinculación de un determinado concepto de la persona a un proceso de
construcción [...]” (OÑA, 1985, p. 63).
A partir da descrição de ambas as capacidades na posição original, tem-se que o
razoável tem prioridade sobre o racional e esta prioridade, por sua vez, expressa a prioridade
do justo sobre o bem. Em outras palavras, conforme destacamos no primeiro capítulo, a teoria
da justiça proposta por Rawls é uma teoria deontológica, na medida em que o justo é
prioritário em relação ao bem. Não há, como no utilitarismo, uma noção de maximização, mas
ao contrário, a justiça limita o bem. Apesar das partes deliberarem acerca dos princípios tendo
como motivação a realização dos interesses das pessoas que representam e dos seus próprios,
elas não têm acesso aos dados específicos dos planos racionais de vida das pessoas,
escolhendo assim, aquela proposta que julgam a mais adequada para a realização dos seus
objetivos. Neste sentido, a concepção de bem defendida pelos membros deve estar de acordo
com a concepção política de justiça seguida pela sociedade. Nas palavras do autor, “[...]
supõe-se que os membros da sociedade são pessoas racionais capazes de ajustar as suas
concepções do bem à própria situação. Não há necessidade de comparar o valor das
concepções de pessoas diferentes, já que se supõe que elas são compatíveis com os princípios
da justiça” (RAWLS, 2002, p. 100).
Dessa forma, a posição original é compreendida, nas obras posteriores a Uma Teoria
da Justiça, como um artifício de representação que, segundo o autor, consiste numa resposta
para a sua importância frente à característica de ser um acordo hipotético. Além disso,
apresentamos neste tópico a conexão entre as concepções de sociedade e pessoa com os
56
princípios de justiça, e como a posição original representa as capacidades das pessoas de ser
racional e razoável.
2.2 AS RESTRIÇÕES FORMAIS AO CONCEITO DE JUSTO
Além das condições impostas às partes para a escolha dos princípios de justiça, o
autor apresenta as restrições formais ao conceito de justo
47
, que são elementos que parecem
razoáveis e adequados para a escolha de princípios eqüitativos. A estas restrições é somado o
limite às informações através do uso do véu de ignorância. Deste modo, a concepção do justo
“[...] é um conjunto de princípios, gerais em sua forma e universais em sua aplicação, que
deve ser publicamente reconhecido como uma última instância de apelação para a ordenação
das reivindicações conflitantes de pessoas éticas” (RAWLS, 2002, p. 145). Na teoria da
justiça como eqüidade essas restrições estão organizadas em cinco grupos.
A primeira condição versa que os princípios devem ser gerais quanto à sua
formulação. Ou seja, as partes na posição original têm acesso às informações gerais acerca
delas próprias, das pessoas que representam e da sociedade. Assim, elas devem escolher os
princípios a partir dos elementos gerais aos quais têm acesso. Com isto, elas não sabem dos
dados singulares que poderiam resultar na escolha de princípios que favorecessem a elas
próprias ou a um grupo particular. Esta condição é assegurada pelo uso do véu de ignorância,
que não permite a passagem de informações contingentes para as partes que estão escolhendo
os princípios. De acordo com o autor, esta condição é natural visto que os
[...] princípios básicos devem poder servir como estatuto público de uma sociedade
perpetuamente bem-ordenada. Sendo incondicionais, eles sempre se aplicam
(dentro das circunstâncias da justiça), e o seu conhecimento deve ser acessível aos
indivíduos de qualquer geração (RAWLS, 2002, p. 142).
Deste modo, os princípios são gerais na medida que são formulados sem o emprego
do nome de uma pessoa em especial ou destinados a um grupo em particular. Ou seja, sem
fazer distinção, o que significa que eles são escolhidos a partir de dados gerais das pessoas e
da sociedade e que os indivíduos de qualquer geração podem adotar tais princípios, na medida
47
Em Uma Teoria da Justiça, Rawls (2002, p. 141) acrescenta que essas restrições não servem apenas para a
escolha de princípios de justiça, mas que elas (as restrições) podem ser aplicadas para a escolha de todos os
princípios éticos.
57
em que eles não são escolhidos para um grupo de indivíduos ou para um momento histórico
em particular. Quer dizer, podem ser adotados por qualquer geração e a qualquer momento.
A segunda condição determina que os princípios devem ser universais em sua
aplicação, ou seja, devem ser aplicados a todos os membros enquanto pessoas morais que
cooperam com este sistema. Assim, eles devem ser compreendidos e utilizados nas
deliberações de todos os membros.
A terceira restrição, que é natural em uma visão contratualista, é a publicidade.
Nesta perspectiva, “as partes consideram que estão escolhendo princípios para uma concepção
comum da justiça. Acreditam que todos saberão a respeito desses princípios tudo o que
saberiam se a sua aceitação fosse o resultado de um consenso” (RAWLS, 2002, p. 143).
A quarta condição determina que “[...] uma concepção de justo deve impor às
reivindicações conflitantes uma ordenação” (RAWLS, 2002, p. 144).
E por fim, a quinta condição trata do caráter terminativo dos princípios. Quer dizer,
eles devem ser avaliados como a última instância para a resolução de reivindicações.
Deste modo, as partes situadas na posição original para a escolha dos princípios de
justiça estão limitadas pelas restrições formais ao conceito de justo, quer dizer, os princípios
de justiça são formulados de modo a serem aplicados a todas as pessoas compreendidas como
morais, livres e iguais. A publicidade assegura a escolha de uma concepção comum de justiça;
além disso, eles devem implicar uma ordenação aos interesses em conflito e possuem um
caráter terminativo, ou seja, como um último padrão para resolver reivindicações.
2.3 A JUSTIÇA PROCEDIMENTAL PURA
A argumentação de Rawls acerca da posição original como procedimento eqüitativo
para a escolha de princípios de justiça, incorpora a noção de justiça procedimental pura em
sua formulação. Ou seja, desde que sejam respeitadas certas condições – as partes
simetricamente situadas na posição original e abstraídas de informações arbitrárias – uma
situação de escolha eqüitativa produz um resultado justo, qualquer que seja ele. Nesta
perspectiva, tem-se que condições eqüitativas para a escolha dos princípios transferem-se para
os princípios escolhidos.
58
Segundo o autor, a noção de justiça procedimental pura ficará mais clara quando
explicitada e comparada com as noções de justiça procedimental perfeita e justiça
procedimental imperfeita.
A justiça procedimental perfeita possui duas características, a saber, “primeiro, há
um critério independente para uma divisão justa, um critério definido em separado e antes de
o processo acontecer. E, segundo, é possível criar um procedimento que com certeza trará o
resultado desejado” (RAWLS, 2002, p. 91). Com o intuito de ilustrar essa noção, o autor cita
o exemplo da divisão de um bolo entre um grupo de homens. Assim, para garantir uma
divisão justa do bolo, em partes iguais, considera-se como procedimento para garantir essa
divisão, que um homem corte o bolo e que após todos pegarem o seu pedaço, então este pega
aquele que lhe corresponde. Deste modo, a divisão é realizada em partes iguais, já que ele não
sabe qual dos pedaços será o seu. Esta forma de agir conduz a um resultado, ou a uma divisão,
justa. Contudo, de acordo com o autor, esta forma de proceder é “[...] rara, para que não se
diga impossível, em casos de interesse muito mais concretos” (RAWLS, 2002, p. 91).
Em contraposição, na justiça procedimental imperfeita, “[...] embora haja um critério
independente para produzir o resultado correto, não há processo factível que com certeza leve
a ele” (RAWLS, 2002, p. 92). Neste caso, tem-se como exemplo de um processo criminal.
Embora sejam respeitadas as leis e o processo seja conduzido de forma adequada para garantir
que o julgamento produza um resultado justo, esse resultado pode ser incorreto. Ou seja, o
resultado correto de um julgamento é o que considera culpado aquele que cometeu um crime
ou infração, e absolve um inocente. No entanto, podem ocorrer erros judiciais, quer dizer, um
inocente pode ser declarado culpado, assim como um culpado pode ser declarado inocente.
Deste modo, há um critério independente para a obtenção de um resultado justo, porém, não
há um procedimento capaz de garantir o resultado pretendido.
Ao contrário das noções de justiça procedimental perfeita e imperfeita, a justiça
procedimental pura não possui um “[...] critério independente para o resultado correto: em vez
disso, existe um procedimento correto ou justo de modo que o resultado será também correto
ou justo, qualquer que seja ele, contanto que o procedimento tenha sido corretamente
aplicado” (RAWLS, 2002, p. 92). Como exemplo dessa noção, o autor menciona o caso das
apostas. As apostas realizadas em um processo justo, quer dizer, sob certas condições – como
realizadas de forma voluntária, ninguém procurando maiores vantagens para si, e a soma do
dinheiro é igual à quantia inicial – conduz a um resultado final justo. Garcia explica o
exemplo das apostas da justiça procedimental pura da seguinte forma: “antes de jugar no
conocemos el resultado: el resultado se crea en el juego. Todo el problema se reduce a aceptar
59
las reglas del juego” (GARCIA, 1985, p. 70). Ou seja, como não há um critério que determine
anteriormente como chegar ao resultado, deve-se aceitar as regras e as condições impostas
pelo procedimento para que o resultado do jogo seja justo.
Esta noção não possui um critério independente que determina que o resultado é
justo, mas o próprio processo determina isso. Isto é, não há a possibilidade do resultado ser
justo se o procedimento que conduz a ele não for colocado em prática e isto de uma forma
adequada, uma vez que “um procedimento eqüitativo traduz a sua eqüidade no resultado
apenas quando é efetivamente levado a cabo” (RAWLS, 2002, p. 93).
A posição original, enquanto situação inicial de escolha dos princípios de justiça,
incorpora a noção de justiça procedimental pura. Isto porque, frente às restrições a que as
partes estão submetidas nesta situação, qualquer das alternativas por elas selecionadas dentre
a lista será justa.
Rawls justifica o uso desta noção, no artigo O Construtivismo Kantiano na Teoria
Moral, como um recurso para explicar em que sentido os representantes são agentes
autônomos. Isto significa que os parceiros, ao deliberarem acerca dos princípios de justiça,
não estão ligados e nem utilizam princípios anteriores ou aspectos exteriores ao momento de
escolha. Em outras palavras, não há um critério independente para a escolha dos princípios de
justiça. Mas, os princípios por eles escolhidos, são o resultado da sua deliberação no interior
da posição original e as partes são livres (na medida que não estão presas a princípios
particulares) para escolherem a concepção de justiça mais adequada para a realização de seus
interesses.
Esta mesma noção é utilizada para justificar a característica hipotética da posição
original. Nas palavras do autor, “[...] quando o resultado é alcançado pela deliberação das
partes em ocasiões reais, ele não pode ser corroborado pela justiça procedimental pura”
(RAWLS, 2000, p. 326). Quer dizer, como os princípios de justiça visam a estrutura básica da
sociedade e esta estrutura é marcada pelas circunstâncias da justiça e pelo pluralismo
razoável, um acordo concreto realizado sob estas circunstâncias seria influenciado por dados
contingentes. Assim, as partes, sabendo de sua condição social e das suas informações
particulares, escolheriam princípios que beneficiariam os seus interesses. Desta forma, este
acordo não poderia ser confirmado pela justiça procedimental pura, uma vez que o processo
através do qual o acordo foi realizado não é justo (visto que está sob a influência de
informações arbitrárias), e o resultado do acordo também não pode ser justo, na medida em
que a escolha dos princípios poderia beneficiar alguns e prejudicar outros. De acordo com
60
estes elementos, a justiça procedimental pura implica que “[...] a eqüidade das circunstâncias
transfere-se para a eqüidade dos princípios aceitos” (RAWLS, 2000, p. 311).
Em linhas gerais, a noção de justiça procedimental pura assegura que na escolha dos
princípios não sejam utilizados princípios anteriores ao processo de deliberação, mas sim que
as partes escolham a partir da posição original, no próprio procedimento de deliberação,
através das informações disponíveis para tal escolha.
2.4 A IDÉIA DE EQUILÍBRIO REFLEXIVO
Após a escolha dos princípios de justiça na posição original, sob as condições e
restrições impostas até agora, o autor introduz a idéia de equilíbrio reflexivo. Esta idéia, na
teoria da justiça como eqüidade, tem o papel de verificar se os princípios de justiça estão de
acordo com os juízos ponderados das pessoas, e que, conseqüentemente, levaria à defesa e
justificação de tais princípios.
A noção de equilíbrio reflexivo tem como ponto de apoio a caracterização dos
cidadãos como possuidores de um senso de justiça e das faculdades da razão, imaginação e
julgamento, necessários para a elaboração dos juízos. Cada pessoa, ao atingir uma certa idade
e devido às capacidades intelectuais que possui, desenvolve, nas condições normais da
sociedade e da vida humana, um senso de justiça. Isto consiste numa habilidade para julgar as
coisas como justas ou injustas e para fundamentar esses juízos, que são variados e muitos.
Com a maturidade, tais juízos são mais generalizados, ou seja, são exercidos em diversos
níveis, desde a atuação das instituições da estrutura básica até ações cotidianas. Assim, as
pessoas agem de acordo com aquilo que consideram justo ou injusto dentro da sociedade, e
esperam a mesma atitude dos demais membros.
Desta forma, ao observar quais dos juízos de justiça política devem ser considerados,
as pessoas podem escolher alguns e excluir outros. Quer dizer, podem excluir aqueles juízos
que formulam quando estão nervosos, com medo, em situação de vantagem ou em outras
condições cujos juízos podem estar errados ou favorecer os seus próprios interesses. Isto
significa que esses juízos não visam à justiça, mas aos interesses próprios da pessoa que os
formulou. Esses juízos, denominados de juízos ponderados, “[...] se apresentam como aqueles
juízos nos quais as nossas qualidades morais têm o mais alto grau de probabilidade de se
mostrarem sem distorção. [...] são simplesmente os que são feitos sob condições favoráveis ao
61
exercício do senso de justiça [...]” (RAWLS, 2002, p. 51). Em outras palavras, são juízos
formulados levando em consideração que a capacidade de julgamento pôde ser plenamente
exercida, sendo o resultado correto e adequado. Por exemplo, as pessoas julgam que a
discriminação racial é injusta. Esse juízo é ponderado porque foi examinado cuidadosamente
e não foi considerado sob distorções, ou seja, não foi analisado num momento de nervosismo,
ou sob pressão, ou ainda visando aos próprios interesses, mas sob condições que asseguram
que o juízo é imparcial. Este juízo é imparcial, porque as suas questões foram avaliadas,
medidas em relação a outros pontos, isto é, ele foi julgado tendo em vista o exercício do senso
de justiça. Rawls destaca que qualquer concepção de justiça deve combinar com esse juízo,
porque as pessoas têm claro que a discriminação seja ela racial, religiosa ou sexual, é injusta;
porque as pessoas assim a considera. Assim, acredita-se que a pessoa que exprime esses
juízos ponderados possui a habilidade, a oportunidade e o desejo de alcançar uma explicação
correta das atitudes.
Além desses juízos refletidos que as pessoas possuem a respeito das questões de
justiça, Rawls destaca as convicções acerca das restrições que devem ser impostas às razões
apresentadas em defesa dos princípios de justiça. Ou seja, trata-se das restrições ao fato de
estar numa determinada posição social, ou defender uma doutrina específica do bem, não ser
uma boa razão para propor, ou mesmo esperar, que os outros aceitem os princípios de justiça
escolhidos por essa pessoa ou grupo.
O papel do equilíbrio reflexivo, neste contexto, é o de verificar se os juízos
ponderados que as pessoas possuem combinam com os princípios escolhidos na posição
original. Esses princípios de justiça descrevem, assim, o seu senso de justiça. De acordo com
o autor “do ponto de vista da teoria ética, a melhor explicação do senso de justiça de uma
pessoa não é a que combina com suas opiniões emitidas antes que ela examine qualquer
concepção de justiça, mas sim a que coordena os seus juízos em um equilíbrio refletido”
(RAWLS, 2002, p. 52).
Assim, Rawls (2002, p. 50) destaca que “[...] no presente caso, pode-se ver a teoria
da justiça como a descrição do nosso senso de justiça”, mas o que se requer com isso não é
que sejam julgadas as ações e instituições e apresentadas as fundamentações de tais juízos,
mas sim que, após a formulação de princípios, estes sejam ligados aos conhecimentos que as
pessoas têm das circunstâncias sociais e, a partir de então, elas possam emitir juízos acerca
dessas circunstâncias com as suas fundamentações. Ou seja, o autor enfatiza que para uma
compreensão correta das atitudes éticas, ou aquilo que as pessoas consideram como justo ou
injusto, o senso de justiça deve envolver padrões que vão além do senso comum e da
62
aprendizagem, devem envolver princípios teóricos. Sob estes aspectos, de acordo com Silva
(2003, p. 37) “[...] o senso moral revela-se como a capacidade de ponderar juízos e princípios
buscando um equilíbrio reflexivo [...]”.
Com o propósito de elaborar uma situação inicial de escolha cujos princípios estejam
de acordo com as convicções refletidas das pessoas e até mesmo orientem os seus juízos em
questões cujas convicções são vacilantes, é que Rawls desenvolve a posição original a partir
de condições que são geralmente partilhadas e genéricas e verifica se tais condições produzem
princípios razoáveis. Se esses princípios estão de acordo com os juízos ponderados das
pessoas, então a situação inicial é adequada. Mas nem sempre tudo combina. Às vezes se faz
necessário realizar algumas alterações na situação inicial ou mesmo revisar os juízos. Isto
porque,
por meio desses avanços e recuos, às vezes alterando as condições das
circunstâncias em que se deve obter o acordo original, outras vezes modificando
nossos juízos e conformando-o com os novos princípios, suponho que acabaremos
encontrando a configuração da situação inicial que ao mesmo tempo expresse
pressuposições razoáveis e produza princípios que combinem com nossas
convicções devidamente apuradas e ajustadas. A esse estado de coisas eu me refiro
como equilíbrio ponderado. Trata-se de um equilíbrio porque finalmente nossos
princípios e opiniões coincidem; e é reflexivo porque sabemos com quais princípios
nossos julgamentos se conformam e conhecemos as premissas das quais derivam
(RAWLS, 2002, p. 23).
De acordo com o autor na obra Uma Teoria da Justiça, a posição original é
apresentada como “[...] sendo o resultado desse tipo de roteiro hipotético de reflexão. Ele
representa a tentativa de acomodar num único sistema, tanto os pressupostos filosóficos
razoáveis impostos aos princípios, quanto os nossos juízos ponderados sobre a justiça”
(RAWLS, 2002, p. 23). Quer dizer, a posição original, enquanto um modelo argumentativo de
deliberação, acomoda as condições adequadas para assegurar a escolha de princípios
eqüitativos, como a simetria das partes e a abstração de informações contingentes, e considera
os juízos ponderados das pessoas, aqueles juízos formulados após a observação de diferentes
concepções. Deste modo, a concepção política de justiça escolhida na posição original
especifica os juízos ponderados, ou seja, está de acordo com aquilo que as pessoas
consideram uma maneira adequada e justa de regular a cooperação social.
Na obra Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, o autor destaca a diferença
entre um equilíbrio reflexivo restrito e amplo. Toma-se como ilustração o fato de uma pessoa
encontrar uma concepção política que requer poucas revisões e alterações dos seus juízos, ao
mesmo tempo em que a pessoa aceita essa concepção como a mais correta quando
63
apresentada. O equilíbrio reflexivo restrito ocorre quando a pessoa em questão considera essa
concepção e combina os seus outros juízos a ela. Em outras palavras, quando a pessoa não
considera e nem analisa outras concepções alternativas para verificar se os seus juízos
combinariam mais com as outras alternativas, mas aceitou aquela que exigiu poucas revisões.
O equilíbrio reflexivo amplo ocorre quando a pessoa avalia as diversas concepções propostas
e os argumentos que a sustentam.
Estas interpretações do equilíbrio reflexivo não estão tão claras na obra Uma Teoria
da Justiça como estão nesta obra mencionada, contudo, a distinção entre ambas está presente
na passagem:
pois essa noção [de equilíbrio reflexivo] varia dependendo de se saber se a pessoa
deve considerar apenas os tipos que em grau maior ou menor correspondem às suas
opiniões atuais, salvo discrepâncias secundárias, ou se deve considerar todas as
alternativas possíveis com as quais pudesse plausivelmente conformar seus juízos,
juntamente com todas as demonstrações filosóficas pertinentes (RAWLS, 2002,
p. 52).
A teoria da justiça como eqüidade admite a segunda noção de equilíbrio reflexivo,
isto porque as pessoas, através de uma reflexão teórica, examinam e avaliam, dentre a lista de
concepções tradicionais de justiça, aquela alternativa que se articula melhor com os seus
juízos. Assim, o senso de justiça das pessoas pode sofrer alterações, isto porque ela considera
diversas alternativas antes de “apoiar” uma delas e compreende os argumentos que sustentam
essas concepções. Desta forma, Rawls argumenta que os dois princípios de justiça satisfazem
essa condição, ou seja, eles se ajustam às convicções refletidas das pessoas, além de organizar
essas convicções numa visão coerente.
Segundo o pensamento de Rawls, na sociedade bem-ordenada, que é regulada por
uma concepção política de justiça, os cidadãos alcançam um equilíbrio reflexivo pleno, ou
seja, amplo e geral. Amplo de acordo com as características já mencionadas, e geral porque os
cidadãos reconhecem e afirmam a mesma concepção política de justiça.
Deste modo, a idéia de equilíbrio reflexivo é compreendida como uma reflexão
teórica na qual são avaliadas as concepções de justiça propostas na posição original. Ou
melhor, o equilíbrio reflexivo é um processo associado à idéia de posição original, que tem
como papel verificar se a alternativa escolhida pelas partes sob as restrições impostas, está de
acordo com os juízos ponderados das pessoas, que são obtidos a partir da avaliação de
diversas concepções e depois de verificar os fundamentos de cada uma delas. Em linhas
gerais, este processo consiste num movimento de vai-e-vem entre princípios de justiça e
64
juízos que, em alguns momentos, faz necessário realizar revisões nos elementos da situação
inicial, e em outros momentos, alterações nos juízos, até que se obtenha um equilíbrio entre os
princípios e os juízos.
A pretensão deste capítulo foi a de apresentar a argumentação do autor em defesa da
posição original, como a maneira mais adequada de escolher princípios de justiça para serem
aplicados à estrutura básica da sociedade. Neste sentido, destacamos a concepção de posição
original e suas características, juntamente com o papel e a importância que tais aspectos
possuem no desenvolvimento dessa argumentação. Rawls considera que, colocando as partes
em uma condição de igualdade, ou seja, simetricamente situadas e desconhecedoras de suas
informações particulares, elas têm condições de escolher a concepção política de justiça mais
razoável para uma sociedade compreendida como um sistema eqüitativo de cooperação social
entre pessoas concebidas como livres e iguais. Além destes elementos, Rawls destaca as
restrições formais ao conceito de justo que, juntamente com o véu de ignorância, asseguram a
escolha de princípios eqüitativos. A posição original também incorpora a noção de justiça
procedimental pura, uma vez que os princípios não são selecionados a partir de um critério
independente do processo, mas do próprio procedimento justo, que resulta em princípios
justos. A idéia de equilíbrio reflexivo é introduzida com o objetivo de justificar a escolha dos
dois princípios de justiça na posição original. Ou seja, verificar se os princípios estão de
acordo com as convicções refletidas das pessoas quando colocados em equilíbrio reflexivo.
3 A RACIONALIDADE DAS PARTES NA POSIÇÃO ORIGINAL E OS PRINCÍPIOS
DE JUSTIÇA
A posição original, na teoria rawlsiana de justiça, é apresentada como uma situação
inicial de igualdade para a escolha dos princípios de justiça mais razoáveis que especificam os
termos eqüitativos da cooperação social. Este acordo ocorre sob certas restrições a fim de
assegurar a eqüidade dos princípios escolhidos.
De acordo com isto, apresentaremos neste capítulo as características das partes que
escolhem os princípios de justiça. Ou seja, como são compreendidas as partes, enquanto
representantes das pessoas concebidas como livres e iguais; qual é o raciocínio que elas
realizam para a escolha dos princípios de justiça, isto é, como Rawls explica o fato de que,
dentre as opções a que as partes têm acesso na posição original, elas escolhem os dois
princípios de justiça; qual é o papel da regra maximin, uma regra inusual que estabelece que
as partes devem escolher, dentre as alternativas, aquela cujo pior resultado é melhor que o
pior resultado das outras; e o conteúdo, alterações, dentre outros elementos necessários para
compreendermos os dois princípios de justiça propostos por Rawls.
3.1 AS PARTES NA POSIÇÃO ORIGINAL
3.1.1 As Características das Partes
Até este ponto, destacamos o papel que as partes desempenham na posição original,
isto é, o de escolher os princípios de justiça mais adequados para reger a estrutura básica da
sociedade. Contudo, é preciso ressaltar as características das partes que escolhem estes
princípios, ou seja, quem são os representantes das pessoas livres e iguais; quais aspectos as
distinguem; porque elas selecionariam dentre uma lista de alternativas os dois princípios de
justiça; quais são seus objetivos ao selecionar esses princípios.
Nas suas diversas obras, Rawls destaca que as partes são pessoas morais livres e
iguais. Em Uma Teoria da Justiça, elas “[...] são indivíduos definidos teoricamente”
(RAWLS, 2002, p. 158), enquanto que nas obras posteriores são definidas como personagens
ou pessoas artificiais. Além destes aspectos, as partes são pessoas racionais mutuamente
66
desinteressadas. De acordo com isto, os elementos característicos que definem as partes estão
voltados para o acordo por elas realizado na posição original, enquanto que as pessoas em
geral são definidas como membros que cooperam com a sociedade e agem de acordo com os
princípios escolhidos pelos representantes.
As partes, ao deliberar acerca da concepção política de justiça que deve regular as
relações sociais entre as pessoas, devem argumentar como se soubessem pouco a respeito de
suas próprias informações, bem como das pessoas que elas representam. Isto se justifica na
medida em que agir de outro modo permitiria a escolha de princípios sob a influência de
dados contingentes. De acordo com estes dados, as pessoas não estão sendo consideradas
como morais, livres e iguais, mas pessoas com determinados interesses, posição social,
concepção de bem, dentre outros aspectos.
Assim, as partes são consideradas livres porque “[...] têm objetivos fundamentais, e
interesses em nome dos quais julgam legítimo fazer reivindicações recíprocas em relação à
estrutura básica da sociedade” (RAWLS, 2002, p. 163). Em outras palavras, as partes
possuem um plano racional de vida ou uma concepção do bem que desejam realizar da melhor
maneira possível. Embora elas não saibam o conteúdo desse plano, elas supõem que têm tais
interesses
48
. Desta forma, ao deliberar acerca dos princípios de justiça mais razoáveis, elas
irão escolher, dentre as alternativas, aquela que promove os seus interesses e objetivos. Além
disso, segundo Rawls (2002, p. 164), “[...] não só elas têm objetivos finais que, em princípio,
podem buscar ou rejeitar, mas também a sua fidelidade e dedicação contínua a esses objetivos
devem ser formadas e afirmadas em condições de liberdade”. Quer dizer, as partes devem ter
a liberdade de buscar e defender os seus interesses ou, até mesmo, alterar e rejeitar um plano
de vida caso isso se faça necessário. Elas não estão presas a uma determinada concepção do
bem, mas “[...] devem tentar assegurar condições favoráveis para a promoção desses objetivos
definidos, quaisquer que sejam eles” (RAWLS, 2002, p. 200).
Na obra O Liberalismo Político, Rawls destaca duas categorias através das quais a
liberdade das partes pode ser explicada, complementando os aspectos desenvolvidos em Uma
Teoria da Justiça: em primeiro lugar, “[...] como pessoas livres, elas se vêem como pessoas
cujo interesse supremo é regular todos os seus outros interesses, inclusive os fundamentais
[...]” (RAWLS, 2000, p. 333); e, em segundo lugar, as pessoas são responsáveis pelos seus
interesses e objetivos, revisando-os ou alterando-os conforme a necessidade. De acordo com o
autor, além de saber que possuem interesses que devem ser defendidos, os parceiros também
48
Segundo o autor, as partes possuem determinados interesses e não são “[...] meras potencialidades para todos
os interesses possíveis [...]” (RAWLS, 2002, p. 200).
67
sabem que “[...] as liberdades básicas exigidas para protegê-los [os interesses] são garantidas
pelo primeiro princípio” (RAWLS, 2002, p. 163), razão pela qual eles dão prioridade ao
princípio que assegura liberdades básicas iguais para todos. Desta forma, como as pessoas
desejam realizar a sua concepção do bem, as partes situadas na posição original sabem,
através das informações gerais às quais têm acesso, que devem procurar garantir princípios
que tornem possível aos membros a formação, revisão, execução e até mesmo a rejeição de
seus interesses e objetivos. Garcia acrescenta a essas características das partes o fato delas
serem livres “[...] de todo tipo de coacción, de pensar, proponer y votar lo que quieran”
(GARCIA, 1985, p. 101).
Os representantes são concebidos como iguais porque estão simetricamente situados
na posição original; todos possuem os mesmos direitos na escolha dos princípios, podendo
apresentar propostas e votar para a aceitação dos termos eqüitativos. Estas condições
representam a igualdade entre as pessoas morais
49
enquanto pessoas que possuem a
capacidade de uma concepção do bem e a capacidade de um senso de justiça. Nas palavras do
autor, “toma-se como base da igualdade a similaridade nesses dois pontos” (RAWLS, 2002,
p. 21). No artigo A estrutura básica como objeto, Rawls (1978, p. 22) enfatiza que as partes
“[...] devem ser encaradas, na medida do possível, unicamente como pessoas morais,
abstração feita das contingências”, ou seja, as partes são vistas como iguais na medida em que
elas estão escolhendo os princípios sob as condições impostas e porque elas não possuem
acesso às informações particulares acerca da sua pessoa e das pessoas que representam.
Enquanto situadas simetricamente e encobertas pelo véu de ignorância, sabem que possuem
uma concepção do bem e um senso de justiça, mas não conhecem os dados específicos dessas
capacidades, como o seu conteúdo, por exemplo. Assim, as partes são iguais porque são
definidas pelas mesmas propriedades e características. Estas limitações impostas para a
escolha dos princípios são necessárias para garantir a eqüidade do acordo, visto que, desta
forma, as partes são concebidas como representantes de pessoas livres e iguais que cooperam
com a sociedade, e não como pertencentes a uma determinada classe social, a uma associação
particular ou possuidores de um determinado talento.
Os parceiros também possuem um senso de justiça. Esta capacidade é de
conhecimento público entre eles, o que quer dizer que todos possuem essa capacidade e
sabem que os outros também a possuem. Assim, eles têm a confiança mútua de que todos
49
No original da obra Uma Teoria da Justiça encontramos “[...] moral persons, [...]” (RAWLS, 1971, p. 12),
quer dizer, “pessoas morais” e não “pessoas éticas” como está traduzido na 2ª edição desta obra (RAWLS, 2002,
p. 13).
68
aceitam e agem de acordo com os princípios de justiça escolhidos, assegurando a obediência e
o respeito aos princípios, sejam eles quais forem, o que significa que o acordo realizado na
posição original não foi em vão. Além disso, o senso de justiça demonstra o desejo das partes
de agir de acordo com as restrições impostas para a escolha dos princípios eqüitativos. Ao
considerar as condições e as restrições sob as quais os princípios são acordados, as partes
serão racionais na medida em que não escolhem princípios cujas conseqüências serão
inaceitáveis, ou que poderão aceitar mediante grandes esforços ou dificuldades, ou ainda,
realizar acordos que sabem que não poderão cumprir. De acordo com Rawls, ao selecionar os
princípios de justiça, as partes levam em consideração a força do compromisso, avaliando que
“[...] aquela [concepção de justiça] que escolherem será estritamente obedecida. As
conseqüências de seu acordo devem ser depreendidas desse fundamento” (RAWLS, 2002,
p. 157). Desta forma, o autor destaca que a escolha dos princípios de justiça é realizada em
caráter definitivo, o que significa que elas devem escolher aqueles princípios que sabem que
poderiam aceitar e de acordo com os quais poderiam agir após a retirada do véu de ignorância,
honrando o acordo por elas celebrados, sejam quais forem as circunstâncias verificadas. Em
outras palavras, o que Rawls defende é que os princípios selecionados devem ser passíveis de
aceitação, ou melhor, que as partes escolhem princípios que são capazes de aceitar e de agir
em conformidade com eles. Assim, as partes devem realizar um acordo unânime acerca da
concepção política de justiça mais razoável para reger a sua cooperação social, o que requer
delas compromisso e responsabilidade ao deliberar. Isto fica claro na seguinte passagem:
uma vez que o acordo original é definitivo e tem caráter perpétuo, não existe
segunda oportunidade. Em vista da seriedade das possíveis conseqüências, a
questão do peso do compromisso é primordial. Uma pessoa está escolhendo em
caráter definitivo todos os padrões que devem governar suas perspectivas de vida.
Além do mais, quando firmamos um acordo, devemos ser capazes de honrá-lo
mesmo que as piores possibilidades venham a se concretizar. [...] as partes devem
ponderar com cuidado se serão capazes de manter o compromisso em todas as
circunstâncias. Sem dúvida, ao responder a essa questão, elas só contam com um
conhecimento genérico da psicologia humana. Mas essa informação é suficiente
para indicar qual concepção da justiça envolve a maior tensão (RAWLS, 2002,
p. 191).
Mas, na teoria da justiça como eqüidade, quem são as partes que escolhem os
princípios de justiça cujo papel é o de atribuir direitos e deveres e distribuir os benefícios da
cooperação social? Rawls afirma que os membros comprometidos com a sociedade escolhem
juntos, de forma definitiva, aquilo que consideram como justo ou injusto na cooperação
social, o que determina os princípios de justiça. No § 40 de Uma Teoria da Justiça, enfatiza
que os princípios são escolhidos pelas partes enquanto pessoas racionais, livres e iguais, num
69
acordo conjunto, tendo acesso apenas às informações acerca das circunstâncias da justiça –
escassez moderada e conflito de interesses – que tornam possível e necessária a escolha dos
princípios. Na obra O Liberalismo Político, o autor define as partes como representantes dos
cidadãos, cujo acordo, caracterizado como hipotético, é realizado por todos os membros
compreendidos como pessoas livres e iguais, que vivem e participam desse sistema de
cooperação social. Nesta mesma obra, descreve as partes como pessoas artificiais,
personagens que estão situados na posição original enquanto um procedimento de
representação para a escolha dos princípios eqüitativos. Já no § 22 de sua obra-prima, Rawls
caracteriza as partes de uma forma mais específica, ou seja, elas são definidas como chefes de
família preocupados com os seus descendentes. Nas palavras do autor,
podemos adotar uma suposição de motivos, e considerar as partes como
representantes de uma linhagem contínua de reivindicações. Por exemplo, podemos
pensar nas partes como chefes de famílias que têm, portanto, um desejo de
promover pelo menos o bem-estar de seus descendentes mais próximos (RAWLS,
2002, p. 139).
Este mesmo argumento é destacado em outra passagem, quando o autor enfatiza que
“[...] as pessoas na posição original não devem ver a si mesmas como indivíduos únicos e
isolados. Ao contrário, presumem que têm interesses que devem proteger da melhor forma
possível, além de vínculos com certos membros da geração seguinte [...]” (RAWLS, 2002,
p. 223). Assim, as partes ao escolherem os princípios, levam em consideração as futuras
gerações, o que reforça a escolha dos mesmos em caráter definitivo.
Além desses elementos, o autor destaca uma característica própria das partes que é a
racionalidade mutuamente desinteressada. Ou seja, “[...] são concebidas como pessoas que
não têm interesse nos interesses das outras” (RAWLS, 2002, p. 15). Os interesses e objetivos
que as partes procuram proteger ao selecionar os princípios de justiça são os seus próprios
interesses. Elas não possuem interesses diretos pelos interesses das outras pessoas
50
e nem
selecionam os princípios a partir dos objetivos dessas pessoas, embora ao deliberar acerca dos
princípios de justiça, elas possam preocupar-se com terceiros, com seus descendentes.
Contudo, elas não são consideradas egoístas por serem mutuamente desinteressadas, isto é,
50
De acordo com o autor, as partes, enquanto representantes, não possuem interesse pelos interesses das outras
pessoas, visto que elas devem escolher os princípios de justiça a partir das informações gerais que possuem.
Desta forma, elas sabem que devem proteger certos direitos, deveres e liberdades. Ao escolher os princípios a
partir destes dados, estão levando em consideração apenas os seus próprios interesses (que, em linhas gerais, são
os interesses de todos os membros, visto que todos são representados simetricamente como pessoas livres e
iguais e porque os bens assegurados pelos princípios são necessários para os cidadãos que cooperam com a
sociedade). Contudo, as pessoas na sociedade têm interesse umas pelas outras, quer dizer, reconhecem os seus
objetivos, direitos e reivindicações (RAWLS, 2002, p. 159).
70
não são indivíduos que querem proteger determinados bens para si, como poder, riqueza,
posição social
51
, ou impor os seus objetivos sobre os objetivos das outras pessoas. As partes
também não são invejosas, visto que elas não estão dispostas a sacrificar os seus interesses a
fim de prejudicar os outros, nem mesmo, abandonar os seus objetivos para que as outras
pessoas tenham menos meios de satisfazer os seus próprios objetivos. As partes não são
acometidas pela inveja porque os outros possuem mais bens primários, desde que tais
desigualdades não ultrapassem os limites da justiça. Desta forma, cabe às partes que estão
simetricamente situadas na posição original a escolha dos princípios que consideram mais
razoáveis para a realização do seu benefício pessoal ou bem.
Segundo o autor, “uma outra suposição é a de que as partes tentam promover a sua
concepção do bem da melhor maneira possível, e que ao fazerem isso elas não estão ligadas
entre si por vínculos morais prévios” (RAWLS, 2002, p. 138). Quer dizer, a indiferença
mútua garante que os princípios selecionados na posição original não dependeram de
elementos muito exigentes. Ou seja, esta característica leva em conta apenas os interesses e
objetivos das partes que estão escolhendo os princípios, visto que “uma concepção da justiça
não deve pressupor, então, laços abrangentes de sentimento natural. Na base da teoria,
tentamos presumir o mínimo possível” (RAWLS, 2002, p. 140). Desta forma, ao selecionar a
concepção de justiça que realiza os seus interesses, os parceiros estão escolhendo para as
outras pessoas e protegendo os interesses delas. Assim, o postulado da indiferença mútua leva
as partes a escolherem de forma interessada unicamente por seus interesses, a fim de proteger
os seus objetivos e promover a sua concepção do bem, e não preocupados com aquilo que
poderia beneficiar ou prejudicar as pessoas. A escolha de uma alternativa eqüitativa ocorre
devido ao artifício do véu de ignorância, que impede as partes de escolher princípios a partir
de seus dados particulares e cujo resultado lhes beneficia. De acordo com Garcia, as partes
são racionais na medida em que elas podem calcular as propostas apresentadas e verificar qual
delas satisfaz a sua concepção do bem. Rawls resume o aspecto mutuamente desinteressado
das partes da seguinte forma:
[...] as pessoas na posição original tentam reconhecer princípios que promovem
seus sistemas de objetivos da melhor forma possível. Elas fazem isso tentando
garantir para si mesmas o maior índice de bens sociais primários, já que isso lhes
possibilita promover a sua concepção do bem de forma efetiva, independentemente
51
No § 22 de Uma Teoria da Justiça, Rawls destaca que os objetivos e os interesses das pessoas não são
egoístas, entretanto, para afirmar isso é necessário conhecer esses fins e objetivos. Assim, “se a riqueza, a
posição, a influência, bem como as honras do prestígio social, são os propósitos finais de uma pessoa, então com
certeza a sua concepção do bem é egoística” (RAWLS, 2002, p. 139). Segundo Rawls (2002, p. 159), a teoria da
justiça como eqüidade não é uma teoria egoística. Pensar esta teoria desta forma é uma opinião equivocada.
71
do que venha a ser essa concepção. As partes não buscam conceder benefícios ou
impor prejuízos umas às outras; não são movidas nem pela afeição nem pelo
rancor. Nem tentam levar vantagem umas sobre as outras; não são invejosas e nem
vaidosas (RAWLS, 2002, p. 155).
Além das partes serem caracterizadas como racionais por escolherem princípios que
sabem que poderão aceitar e agir de acordo com eles, elas possuem o aspecto da racionalidade
que “[...] é padrão em teoria política, de adotar os meios mais eficientes para determinados
fins” (RAWLS, 2002, p. 15). Ou seja, as partes deliberam de modo a adotar meios viáveis
para alcançar os seus objetivos; procuram escolher, dentre as alternativas, aquela que realiza o
seu fim da melhor maneira possível; e, além disso, elas organizam as atividades com o intuito
da maioria desses fins serem realizados. Sob estes aspectos, os parceiros são capazes de
calcular qual concepção é a mais adequada para promover a sua concepção do bem. Desta
forma, o fim que as partes buscam proteger é a realização do seu plano racional de vida e os
meios para realizá-lo são os bens sociais primários
52
. De acordo com Oña (1985, p. 77), a
racionalidade é entendida como o cálculo do próprio benefício.
Segundo Rawls, a forma como as partes escolhem os princípios de justiça na posição
original pode levantar algumas objeções como, por exemplo, de que a sua proposta está
distanciada da realidade, uma vez que as pessoas em sociedade são acometidas por certas
psicologias, como a inveja e o rancor. Em Uma Teoria da Justiça, a resposta a essa objeção
apresenta-se na divisão do argumento a favor dos princípios em duas partes, a saber, num
primeiro momento, considera-se a escolha dos princípios de tal forma que essas psicologias
estão ausentes. Ou seja, os parceiros deliberam levando em consideração apenas os seus
próprios interesses e considerando que eles são auto-suficientes. A segunda parte da
argumentação verifica a possibilidade dos princípios de justiça escolhidos na posição original
se manterem numa sociedade em que as pessoas possuem tais psicologias, ou seja, se seriam
aceitos e seguidos pelas pessoas que são propensas a sentir inveja, rancor, egoísmo, por
exemplo. Se isto ocorrer, então Rawls acredita que a concepção política de justiça por ele
proposta é estável. Na obra Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, o autor argumenta
que as partes não são movidas por essas psicologias, ao contrário das pessoas em sociedade,
por que “[...] cabe a nós, a você e a mim, que estamos elaborando a justiça como eqüidade,
descrever as partes (enquanto pessoas artificiais em nosso procedimento de representação)
como melhor se adequar ao nosso objetivo de desenvolver uma concepção política de justiça”
(RAWLS, 2003, p. 123). Este ponto destaca o que apresentamos anteriormente, a saber, que a
posição original, enquanto um modelo argumentativo ou um exercício mental, é elaborado de
52
Este argumento com algumas modificações é emprestado de Garcia (1985, p. 102 e p. 125).
72
forma a conduzir ao resultado desejado, qual seja, uma concepção política de justiça. Assim,
na obra O Liberalismo Político, o autor destaca que as partes não são descritas com aspectos
de pessoas que conhecemos, mas como personagens cuja natureza cabe a quem está
elaborando a teoria da justiça como eqüidade; um modelo de como devem ser os
representantes dos cidadãos concebidos como livres e iguais. De acordo com Rawls, a sua
teoria é mal-entendida quando são atribuídas às partes características e psicologias próprias
das pessoas em sociedade.
A estas características, na obra O Liberalismo Político, o autor destaca um outro
elemento que distingue as partes das pessoas, que não aparece em Uma teoria da Justiça. Este
aspecto se refere à sua autonomia.
As partes situadas na posição original possuem uma autonomia racional que, por
sua vez, é definida como aquela característica que
[...] baseia-se nas faculdades intelectuais e morais das pessoas. Expressa-se no
exercício da capacidade de formular, revisar e procurar concretizar uma concepção
do bem, e de deliberar de acordo com ela. Expressa-se também na capacidade de
entrar em acordo com outros (quando restrições razoáveis se apresentam)
(RAWLS, 2000, p. 117).
As partes, enquanto representantes dos cidadãos livres e iguais, são racionalmente
autônomas de duas formas: “[...] são livres, dentro dos limites da posição original, para fazer
um acordo sobre quaisquer princípios de justiça que considerem os mais vantajosos para
aqueles que representam; e, ao estimar essa vantagem, consideram os interesses de ordem
superior dessas pessoas” (RAWLS, 2000, p. 119). No artigo O Construtivismo Kantiano na
Teoria Moral (1980, p. 58-9) – o mesmo argumento encontra-se na obra O Liberalismo
Político (2000, p. 118) – o primeiro ponto de vista segundo o qual as partes são descritas
como autônomas, destaca o aspecto da justiça procedimental pura, a saber, que as partes não
estão ligadas a princípios anteriores ou prévios de justiça, mas que a escolha dos mesmos
ocorre a partir da deliberação das partes através de uma lista de concepções de justiça. Com
relação ao segundo aspecto, Rawls destaca que, devido ao uso do véu de ignorância que
dificulta a passagem de informações particulares acerca das concepções que as pessoas
defendem, as partes têm acesso aos três interesses de ordem superior, que são as capacidades
morais do senso de justiça, a concepção do bem, e uma determinada concepção do bem –
definida ao longo de sua vida. Guiados por esses interesses, as partes escolhem princípios que
asseguram as condições necessárias e adequadas para que os membros da sociedade possam
desenvolver os poderes morais num grau suficiente para serem membros normais e
plenamente cooperativos da sociedade durante toda a sua vida. Em O Liberalismo Político, a
73
autonomia racional “[...] consiste em agir exclusivamente em função de nossa capacidade de
sermos racionais e da concepção específica do bem que temos em qualquer momento dado”
(RAWLS, 2000, p. 360).
As pessoas são compreendidas como livres no sentido político a partir de três
aspectos
53
. Possuir liberdade de acordo com estes pontos possibilita aos membros ter
autonomia plena. As pessoas são caracterizadas tanto pela autonomia racional, que é
modelada pela deliberação das partes na posição original; quanto pela autonomia plena, que
compreende a forma como as partes estão situadas na posição original e os limites impostos às
informações
54
. A autonomia plena das pessoas é aquela dos cidadãos em sociedade, no seu
cotidiano, e é adquirida pelo fato delas aceitarem e agirem de acordo com os princípios de
justiça e por reconhecer os princípios como aqueles escolhidos na posição original. Além
disso, compreende a capacidade de realizar a concepção do bem de acordo com os princípios
de justiça, ou seja, de forma compatível com eles. Assim, a autonomia racional das partes é
“[...] destinada a modelar a concepção plena de pessoa, tanto como ser razoável quanto como
ser racional” (RAWLS, 2000, p. 361).
Em linhas gerais, são essas as características discutidas e apresentadas por Rawls
que distinguem as partes (enquanto representantes dos cidadãos compreendidos como livres e
iguais e que escolhem os princípios de justiça) das pessoas (enquanto membros que aceitam e
agem de acordo com estes princípios). Deste modo, sob as condições eqüitativas impostas
pelo ponto de vista da posição original e do artifício do véu de ignorância, e com as
características descritas, as partes devem selecionar os princípios mais razoáveis para reger a
cooperação social.
3.1.2 O Raciocínio para a Escolha dos Princípios de Justiça
Os parceiros, enquanto pessoas artificiais na posição original, têm acesso a uma
pequena lista de concepções tradicionais de justiça, cujas propostas são de reger a estrutura
básica da sociedade em que vivem. Na obra Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, o
53
Estes três aspectos são: “primeiro, como pessoas que têm a capacidade moral de formular, revisar e procurar
concretizar racionalmente uma concepção do bem; segundo, como pessoas que são fontes auto-autenticadoras de
reivindicações válidas; e terceiro, como pessoas capazes de assumir responsabilidade por seus fins” (RAWLS,
2000, p. 116-7).
54
Este argumento encontra-se na obra O Liberalismo Político (RAWLS, 2000, p. 122).
74
autor destaca que as partes têm acesso a essa lista de alternativas a partir da qual selecionarão
os princípios, ressaltando que “[...] não tentamos dizer que princípios deveriam ser
considerados como possíveis alternativas” (RAWLS, 2003, p. 117). Ou seja, elas são livres
para escolher unanimemente, dentre as alternativas, aquela concepção que julgarem como a
melhor, ou a mais razoável para regular a sua cooperação social. Portanto, não são indicados
quais princípios elas deveriam escolher, uma vez que estes são resultado do próprio processo
de deliberação.
No § 21 de Uma Teoria da Justiça, Rawls apresenta as concepções alternativas a
que os parceiros têm acesso na posição original. Esta lista está dividida em cinco categorias:
os dois princípios de justiça; concepções mistas; concepções teleológicas clássicas;
concepções intuicionistas e concepções egoísticas
55
. Desta forma, o autor acredita que o
raciocínio das partes considera certas características da estrutura básica que, de acordo com
ele, conduziriam à escolha dos dois princípios de justiça. Em outras palavras, ao comparar as
alternativas disponíveis e baseadas nas informações genéricas, as partes concordariam com os
dois princípios de justiça porque elas “[...] sabem que [...] devem tentar proteger as suas
liberdades, ampliar as suas oportunidades, e aumentar os seus meios de promover os seus
objetivos, quaisquer que sejam eles” (RAWLS, 2002, p. 154). Estes princípios são descritos
pelo autor conforme segue:
A. Os dois Princípios da Justiça (em ordem serial)
1. O princípio da maior liberdade igual
2. (a) O princípio da (justa) igualdade de oportunidades
(b) O princípio da diferença (RAWLS, 2002, p. 133)
56
.
Compreendendo que o papel das partes é o de promover da melhor maneira possível
o bem das pessoas que representam – dadas as restrições impostas pela posição original – e
uma vez que elas estão abstraídas do conteúdo da sua concepção do bem, dos seus objetivos e
fins – o que dificultaria a realização do acordo –, como é justificada a escolha desses
princípios de justiça? Qual é a motivação das partes
57
para escolher esses princípios? Rawls
justifica que as partes escolhem esses princípios dentre as alternativas apresentadas porque
55
Em Uma Teoria da Justiça, Rawls destaca que a lista de alternativas apresentadas para as partes “[...] inclui
teorias representativas da tradição da filosofia moral, que abrange o consenso histórico acerca do que, até agora,
parece ser o conjunto de concepções mais razoáveis e viáveis” (RAWLS, 2002, p. 648).
56
No § 11 de Uma Teoria da Justiça, Rawls apresenta os dois princípios de justiça em sua formulação provisória
e no § 46 da respectiva obra a formulação final dos dois princípios. De acordo com o autor, há várias
formulações dos princípios que se aproximam dessa elaboração final na sua primeira obra, o que permite que
“[...] a exposição se desenvolva de forma natural” (RAWLS, 2002, p. 64). Para verificar essas formulações Cf.
RAWLS, 2002, p. 64 e p. 333.
57
Kukathas e Pettit (1995, p. 39-40) destacam três aspectos acerca da motivação das partes na posição original.
75
elas desejam possuir uma quantidade maior, ao invés de menor, de bens sociais primários. Ou
seja, na base da escolha realizada pelos parceiros está o desejo de possuir bens sociais
primários que “são coisas que é racional desejar, independentemente de outros desejos.
Assim, dada a natureza humana, desejá-las faz parte de ser racional [...]” (RAWLS, 2002,
p. 278). De acordo com isto, as partes, enquanto representantes racionais dos cidadãos, são
dotadas de uma psicologia necessária para proteger o bem das pessoas que representam, bem
este especificado pelos bens sociais primários. Assim, os parceiros, tendo claro que devem
proteger os direitos, deveres e liberdades das pessoas, devem selecionar, dada a característica
do desinteresse mútuo, a alternativa mais racional para eles, ou seja, aquela que protege o seu
plano racional de vida e os seus fins.
Antes de apresentarmos a idéia de bens sociais primários, se faz necessário
esclarecer o que caracteriza o bem racional de uma pessoa. Segundo Rawls, o bem de uma
pessoa é aquilo que ela considera o mais racional plano de vida para si mesma e que engloba
diversos desejos e objetivos que se complementam entre si. Desta forma, “um plano racional
de vida leva em consideração nossas habilidades, interesses e circunstâncias especiais, e
portanto depende de nossa posição social e dotes naturais” (RAWLS, 2002, p. 497). Isto é, o
plano racional de uma pessoa é formado a partir dos bens naturais que ela possui, como dotes,
talentos e habilidades. Esses bens não são influenciados diretamente pela estrutura básica da
sociedade, visto que essa distribuição não é justa ou injusta, mas a forma como as instituições
atuam influencia as perspectivas de vida das pessoas, quer dizer, o desenvolvimento desses
bens naturais. Deste modo, o plano racional de vida de uma pessoa leva em consideração a
forma como as suas habilidades e dotes são tratados no interior da sociedade. De acordo com
isto “[...] o bem é a satisfação de um desejo racional. Devemos supor, então, que cada
indivíduo tem um plano de vida racional delineado de acordo com as condições com que se
defronta” (RAWLS, 2002, p. 98). Ou seja, se as instituições agem de forma justa, as pessoas
formam um plano que sabem que podem efetivar porque a concepção política adotada pela
sociedade é considerada eqüitativa e permite a realização de planos racionais.
O autor compreende de forma diversa os bens sociais primários necessários para a
perseguição e realização dos planos e objetivos racionais de vida das pessoas. Os bens sociais
primários são inicialmente definidos como
[...] coisas que se supõe que um homem racional deseja, não importa o que mais ele
deseje. Independentemente de quais sejam em detalhes os planos racionais de um
indivíduo, supõe-se que há várias coisas das quais ele preferiria ter mais a ter
menos. Tendo uma maior quantidade desses bens, os homens podem geralmente
76
estar seguros de obter um maior sucesso na realização de suas intenções e na
promoção de seus objetivos, quaisquer que sejam eles (RAWLS, 2002, p. 97-8).
Nesta passagem, os bens sociais primários são compreendidos como meios
necessários para realizar os interesses e o plano racional de vida das pessoas. Contudo, no
Prefácio à Edição Brasileira da obra Uma Teoria da Justiça, Rawls destaca que esta forma de
considerar os bens primários é uma deficiência da edição inglesa
58
. Deste modo,
os bens primários são agora caracterizados como aquilo de que as pessoas
necessitam em sua condição de cidadãos livres e iguais, e de membros normais e
totalmente cooperativos da sociedade durante toda uma vida.[...] considera-se que
esses bens respondem às suas necessidades como cidadãos, em oposição às suas
preferências e desejos (RAWLS, 2002, p. XV-XVI).
Nas obras posteriores a Uma Teoria da Justiça, e nesta passagem citada, os bens
primários são caracterizados como coisas que as pessoas necessitam enquanto cidadãos,
concebidos como pessoas morais, livres e iguais, que vivem e cooperam ao longo de toda a
sua vida com a sociedade, e não enquanto seres humanos desvinculados de uma concepção
normativa e política de pessoa. Os bens primários são necessários para o desenvolvimento e
exercício das capacidades morais das pessoas, quais sejam, o senso de justiça e a concepção
do seu próprio bem. Na obra O Liberalismo Político, o autor enfatiza que as partes, para
promover o bem das pessoas por elas representadas, escolhem os princípios que “[...]
incentivam o desenvolvimento e permitem o exercício pleno e bem-informado das duas
capacidades morais” (RAWLS, 2000, p. 380), assim como procuram assegurar os interesses
de ordem superior que as pessoas possuem ao desenvolver essas capacidades.
No prefácio da sua obra Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, Rawls destaca
três mudanças em relação à sua obra-prima. Uma dessas mudanças diz respeito à análise dos
bens primários que “[...] os vincula à concepção política e normativa dos cidadãos como
pessoas livres e iguais, de tal forma que esses bens já não pareçam [...] definir-se apenas com
base na psicologia e nas necessidades humanas” (RAWLS, 2003, p. XVII). De acordo com
isto, para se estabelecer uma lista dos bens sociais primários depende-se “[...] de uma
variedade de fatos gerais sobre as necessidades e aptidões humanas, suas fases e requisitos
normais de cuidados, relações de interdependência social, e muito mais” (RAWLS, 2003,
p. 82), além da necessidade de saber dados gerais acerca dos planos racionais de vida, como a
sua estrutura, e porque eles necessitam de bens primários para o seu processo de
desenvolvimento. Contudo, ao destacar a necessidade dos fatos gerais dos seres humanos a
58
Para compreender a justificativa de Rawls quanto a esta deficiência CF. RAWLS, 2002, p. XV.
77
partir dos quais explica-se a necessidade desses bens primários, Rawls não descreve os bens
primários como apoiados apenas em fatos psicológicos, sociais ou históricos, mas sim esses
fatos vinculados à compreensão dos membros como pessoas morais, livres e iguais que
cooperam com a sociedade. Ou seja, a descrição dos bens primários leva em consideração a
necessidade das pessoas enquanto cidadãos, e não a partir das necessidades e desejos
enquanto humanos. De acordo com isto, tem-se a visão de que a teoria da justiça como
eqüidade é uma concepção política de justiça, está preocupada com o domínio do político e
não uma doutrina abrangente do bem, cujo objetivo compreende tudo aquilo que tem valor na
vida humana.
Em Uma Teoria da Justiça, o autor apresenta esses bens em categorias genéricas que
“[...] são direitos, liberdades e oportunidades, assim como renda e riqueza. (Um bem primário
muito importante é um senso do próprio valor [...])” (RAWLS, 2002, p. 98), enquanto nas
obras posteriores, em especial em O Liberalismo Político e também no artigo O
Construtivismo Kantiano na Teoria Moral
59
, Rawls enumera os cinco bens sociais primários,
com a explicação de por que os princípios escolhidos seriam aqueles cujo conteúdo contemple
os bens primários.
Rawls, ainda na sua obra-prima, destaca que, na medida em que as partes possuem
planos racionais de vida que procuram realizar, e que devido a vários talentos e habilidades,
há uma diversidade de planos com diferentes interesses e objetivos
60
. Os bens primários são
caracterizados como elementos comuns necessários ou pré-requisitos para a realização desses
planos. Quer dizer, são elementos através dos quais as pessoas podem estruturar e realizar o
seu plano racional, independentemente do conteúdo ou dos fins desse plano
61
. Assim, a
escolha dos princípios não é realizada a partir dos objetivos particulares que as partes
defendem – mesmo porque elas não têm acesso ao seu conteúdo –, ou através de palpites e de
um exercício de adivinhação, mas a partir da preferência e do desejo de possuir uma
quantidade maior de bens sociais primários, a fim de realizar aquele que consideram o plano
de vida mais racional para si. De acordo com Rawls, a partir das informações gerais às quais
as partes têm acesso na posição original – os dados da psicologia humana e da forma como as
instituições atuam – elas conhecem a estrutura da concepção de bem que as pessoas defendem
59
Para visualizar a exposição dos bens sociais primários e a explicação pela preferência desses bens Cf.
RAWLS, 2000, p. 363 e RAWLS, 1980, p. 62-3.
60
Além dos planos de vida das pessoas serem diferentes, Rawls destaca que elas possuem a “[...] liberdade para
determinar o seu bem, sendo as visões dos outros consideradas apenas como orientações” (RAWLS, 2002,
p. 496).
61
Esses bens são elementos necessários para que as pessoas coloquem em prática as suas concepção de bem que
são compatíveis com a justiça.
78
e, além disso, sabem acerca dos elementos dessa concepção. As partes, apesar de não
conhecerem o conteúdo dos seus planos de vida, procuram proteger esses interesses e as
condições necessárias para o exercício da sua personalidade moral, através da garantia de
bens sociais primários.
A necessidade desses bens ocorre porque eles
[...] consistem em diferentes condições sociais e meios polivalentes geralmente
necessários para que os cidadãos possam desenvolver-se adequadamente e exercer
plenamente suas duas faculdades morais, além de procurar realizar suas concepções
do bem. Olhamos aqui para os requisitos sociais e para as circunstâncias normais da
vida humana numa sociedade democrática (RAWLS, 2003, p. 81).
Rawls justifica a introdução da idéia de bens primários da seguinte forma: “[...] para
estabelecer esses princípios, é necessário o apoio de alguma noção de bem, pois precisamos
de suposições sobre os motivos das partes na posição original” (RAWLS, 2002, p. 438).
Assim, as partes classificam, dentre as alternativas apresentadas, aqueles princípios que
garantem uma maior quantidade de bens sociais primários, visto que, a partir destes bens, é
possível desenvolver, num grau necessário, as capacidades dos cidadãos e as concepções de
bem por eles professada. A realização da concepção de bem faz com que a vida em sociedade
tenha sentido. Isto é, ao aceitar e agir de acordo com os princípios de justiça, elas sabem que
os seus direitos, deveres e liberdades fundamentais estarão garantidos. Deste modo, ao
assegurar bens sociais primários de forma a beneficiar a todos os membros, a vida de todos
melhora, e garante-se, assim, a satisfação dos seus interesses.
3.1.3 A Regra Maximin
Rawls destaca que as partes, situadas na posição original e encobertas pelo véu de
ignorância, não têm como obter maiores garantias para si mesmas na escolha dos princípios
de justiça, do mesmo modo que não faz sentido elas aceitarem desvantagens especiais. Assim,
tem-se que num primeiro momento, as partes aceitam princípios de justiça que garantam uma
distribuição igual dos bens sociais primários. Contudo, se uma desigualdade em relação à
renda e à riqueza visa o beneficio de todos, tendo em vista a condição de igualdade, o autor
questiona o porquê de não permitir tais desigualdades. Estas desigualdades são permitidas
desde que elas sejam compatíveis com as liberdades iguais e com a igualdade eqüitativa de
79
oportunidades e, principalmente, desde que elas melhorem a condição de todos, em especial a
dos membros menos favorecidos. Assim Rawls destaca que, raciocinando desta forma, as
partes consentem com a escolha dos dois princípios em ordem serial através de uma estratégia
de argumentação denominada de regra maximin.
O termo maximin significa maximun minimorum, e a “[...] regra dirige a nossa
atenção para o pior que pode acontecer em qualquer curso de ação proposto, e nos leva a
decidir com base nisso” (RAWLS, 2002, p. 670). Assim, dentre as alternativas apresentadas,
frente às condições de incerteza com relação aos interesses fundamentais dos cidadãos e a
ignorância das informações na posição original, esta regra apresenta-se como uma estratégia
da qual as partes fazem uso a fim de escolher aquela proposta que consideram como a mais
razoável para reger a cooperação social. Neste contexto, ela “[...] determina que
classifiquemos as alternativas em vista de seu pior resultado possível: devemos adotar a
alternativa cujo pior resultado seja superior aos piores resultados das outras” (RAWLS, 2002,
p. 165).
A regra maximin orienta a escolha em situações de incerteza, como é o caso da
posição original, em que as partes não sabem quem são na sociedade, se são ricos ou pobres,
quais habilidades possuem, entre outros aspectos que lhes estão desconhecidos. Assim, ao
escolher os princípios baseados nesta regra, as partes estão maximizando as expectativas
mínimas, ou seja, como elas não sabem quem são fora da posição original, escolhem dentre as
alternativas aquela que garante um mínimo necessário. Deste modo, elas estão maximizando o
exercício e desenvolvimento de suas capacidades morais e a realização de sua concepção do
bem. Assim, as partes evitam o risco de perder o mínimo assegurável pelos bens primários
que, de acordo com o autor, é um mínimo satisfatório para os cidadãos.
Muitos autores, de acordo com Rawls, confundem e até mesmo utilizam a expressão
“princípio maximin” ao invés de “princípio de diferença”. Contudo, o autor destaca (2003,
p. 60, n. 3) que as expressões são distintas. Isto ocorre porque, segundo Oña, a regra maximin
apresenta-se como um método para a escolha de princípios que minimize o prejuízo dos
membros menos favorecidos da sociedade, ou como destaca o próprio Oña (1985, p. 100)
“[...] las partes maximizan el mínimo aceptando una distribución desigual sólo si ello va en
beneficio de los menos aventajados (por si resultara que cualquiera de ellos pudiera
encontrarse dentro de ese grupo)”.
Além disso, a regra maximin é aplicada em situações que possuem determinadas
características. A proposta de Rawls, então, é argumentar a favor dos dois princípios a partir
do fato de que a posição original tem essas características em um grau muito elevado.
80
Rawls destaca três características
62
“[...] de situações que conferem plausibilidade a
essa regra incomum” (RAWLS, 2002, p. 166), conforme segue: a primeira característica versa
que “[...] como a regra não leva em conta as probabilidades das circunstâncias possíveis, deve
haver algum motivo para que se descartem sumariamente as estimativas dessas
probabilidades” (RAWLS, 2002, p. 166). Relacionando essa característica com a descrição da
posição original, as partes, devido ao uso do véu de ignorância, não têm acesso ao estado
possível da sua sociedade, da posição social que ocupam e de outras informações que possam
influenciar na escolha dos princípios. Assim, as partes não têm como realizar cálculos
probabilísticos a fim de verificar qual das alternativas beneficia o seu caso particular ou
afetam os interesses das pessoas que elas representam. Da mesma forma que a escolha dos
princípios por elas realizadas deve parecer razoável aos outros membros, em especial aos seus
descendentes, uma vez que os seus direitos serão afetados pela escolha realizada pelas partes.
A relação com a regra maximin está, então, no fato de que na posição original as partes não
têm acesso às informações acerca das circunstâncias possíveis da sociedade.
A segunda característica da regra maximin determina que
[...] a pessoa que escolhe tem uma concepção do bem que a leva a preocupar-se
muito pouco, ou nem um pouco, com o que possa ganhar acima do estipêndio
mínimo que, de fato, ela pode ter certeza de obter seguindo a regra maximin. Para
ela, não vale a pena arriscar-se em nome de uma vantagem a mais, especialmente
quando existe o risco de perder muito do que se preza (RAWLS, 2002, p. 166).
Em Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, o autor apresenta que, como a
regra maximin impõe essa condição às partes, elas não devem se preocupar com aquilo que
poderiam ganhar a mais do que foi garantido através da regra, segundo o autor, este é um
“nível assegurável”. Na obra Uma Teoria da Justiça, destaca-se que os dois princípios
escolhidos na posição original garantem um mínimo satisfatório. Quer dizer, o autor acredita
que o mínimo assegurado pelos princípios de justiça não deveria ser colocado em risco em
vista de obter maiores vantagens sociais e econômicas. O mínimo assegurado pelos
princípios, que é a garantia dos bens sociais primários, é suficiente para que as pessoas
possam realizar a sua concepção do bem e a sua personalidade moral. Rawls (2002, p. 168)
classifica como “[...] insensato, senão irracional, correr o risco de não ter essas condições
satisfeitas”.
62
Em Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, o autor afirma que não é necessário que todas as três
condições ou que quaisquer delas se realize por completo para que a regra maximin organize a deliberação. Para
compreender melhor este ponto Cf. RAWLS, 2003, p. 140-1.
81
E, por fim, a terceira característica versa que “[...] as alternativas rejeitadas têm
resultados que dificilmente são aceitáveis” (RAWLS, 2002, p. 166-7). Quer dizer, as
alternativas podem ter resultados que seriam inaceitáveis para as partes que estão escolhendo
uma concepção de justiça. Assim, como as partes devem escolher dentre as alternativas aquela
que garante um mínimo satisfatório, elas devem rejeitar os piores resultados de todas as
outras, uma vez que essas alternativas estão abaixo do nível assegurável.
Rawls (2003, p. 140) enfatiza em Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação que
[...] não é essencial que as partes utilizem a regra maximin na posição original.
Trata-se simplesmente de um procedimento heurístico útil. O enfoque nos piores
resultados tem a vantagem de nos forçar a considerar quais são realmente nossos
interesses fundamentais quando se trata da configuração da estrutura básica.
De acordo com esta passagem, o que o autor propõe é que as partes na posição
original são levadas a pensar acerca dessa questão, a saber, quais são os interesses
fundamentais dos cidadãos livres e iguais a serem realizados na estrutura básica da sociedade,
isto é, escolher a proposta que realiza os planos racionais de vida das pessoas e permite o
exercício e desenvolvimento da personalidade moral, que são os elementos fundamentais para
que as pessoas possam ser concebidas como cidadãos iguais. De acordo com isto, o autor
afirma que os dois princípios de justiça são, dentre as alternativas propostas, os que
asseguram os interesses fundamentais dos cidadãos compreendidos como livres e iguais.
Deste modo, a regra maximin apresenta-se como um argumento em defesa dos dois
princípios de justiça escolhidos na posição original. Isto ocorre porque como as partes estão
simetricamente situadas e encobertas pelo véu de ignorância, o que caracteriza uma escolha
em situação de incerteza, elas não sabem quais são os interesses fundamentais das pessoas que
elas representam e delas próprias. Assim, elas selecionam, dentre as propostas apresentadas,
aquela alternativa cujo pior resultado é superior aos piores resultados das outras alternativas.
Ou seja, a opção que garante os bens sociais primários indispensáveis para os cidadãos que
vivem e cooperam com a sociedade. Deste modo, esta regra conduz as partes a avaliarem as
alternativas a partir dos interesses que são realmente importantes para os cidadãos.
82
3.2 OS PRINCÍPIOS DE JUSTIÇA
A teoria da justiça como eqüidade é a concepção política de justiça que Rawls
acredita ser objeto de um consenso entre as partes situadas simetricamente na posição
original. O conteúdo dessa concepção são os dois princípios de justiça que devem ser
aplicados à estrutura básica da sociedade, cuja função é a de atribuir direitos e deveres e
distribuir de forma adequada os benefícios provenientes da cooperação social.
Após revisões, o autor modifica a versão dos dois princípios de justiça apresentada
em Uma Teoria da Justiça
63
, cuja formulação mais recente está exposta na obra Justiça como
Eqüidade: Uma Reformulação, conforme segue:
(a) cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente
adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema
de liberdades para todos; e
(b) as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições:
primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em
condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de
beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (o princípio de
diferença) (RAWLS, 2003, p. 60).
Em Uma Teoria da Justiça, o autor destaca que os dois princípios são uma
concepção especial de justiça, derivados de uma concepção mais geral expressa da seguinte
forma: “todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais
da auto-estima – devem ser distribuídos igualitariamente a não ser que uma distribuição
desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos” (RAWLS, 2002, p. 66)
Segundo o autor, a formulação dos dois princípios de justiça pressupõe que a
estrutura básica da sociedade está dividida em duas partes mais ou menos distintas, e que cada
um dos princípios é aplicado a uma destas partes. Neste contexto, distingue-se entre “[...] os
aspectos do sistema social que definem e asseguram liberdades básicas iguais e os aspectos
que especificam e estabelecem as desigualdades econômicas e sociais” (RAWLS, 2002,
p. 64-5).
63
A última formulação dos dois princípios de justiça apresentada em Uma Teoria da Justiça versa que:
Primeiro Princípio: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades
básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos. Segundo Princípio: as
desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo: (a) tragam o maior
benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa, e (b)
sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades”
(RAWLS, 2002, p. 333).
83
Rawls estabelece, assim, uma hierarquia entre os dois princípios denominada de
ordenação serial ou lexical. Esta ordenação apresenta que o primeiro princípio tem prioridade
sobre o segundo, ou seja, “[...] as reivindicações da liberdade devem ser satisfeitas primeiro”
(RAWLS, 2002, p. 267), e que a primeira parte do segundo princípio tem prioridade sobre a
segunda parte. Isto significa que, ao ser aplicado ou testado, o segundo princípio pressupõe
que as exigências do primeiro já estejam satisfeitas, ou seja, tenham sido aplicadas de forma
satisfatória. Do mesmo modo, ao aplicar o princípio da diferença, este está subordinado ao
primeiro princípio e à primeira parte do segundo princípio, o que significa dizer que ele é
empregado em associação com os princípios que o antecede. Entretanto, na obra O
Liberalismo Político, Rawls destaca um princípio anterior ao primeiro princípio de justiça em
ordem lexical, a saber, um princípio
[...] que prescreva a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos, ao menos à
medida que a satisfação dessas necessidades seja necessária para que os cidadãos
entendam e tenham condições de exercer de forma fecunda esses direitos e
liberdades. É evidente que um princípio desse tipo tem de estar pressuposto na
aplicação do primeiro princípio (RAWLS, 2000, p. 49-50).
Este princípio garante um mínimo social que representa as condições indispensáveis
para que os cidadãos possam participar da sociedade enquanto cidadãos iguais, ou seja, para
que tenham condições de compreender, exercer plenamente e de forma adequada os seus
direitos e liberdades.
Retomando o ponto primeiramente exposto, a prioridade do primeiro princípio sobre
o segundo implica que as liberdades básicas iguais não podem ser violadas, negadas,
negociadas ou trocadas por outros benefícios, como vantagens sociais e econômicas. Somente
é permitido um limite às liberdades quando estas entram em conflito com outras liberdades, e
as liberdades, segundo o autor, têm a tendência de entrarem em conflito entre si. Desta forma,
o que se requer é um ajuste
64
entre as exigências dessas liberdades para que elas possam
formar um sistema coerente de liberdades básicas iguais para todos. De acordo com isto, “a
meta é fazer esses ajustes de tal forma que pelo menos as liberdades mais importantes,
relacionadas com o desenvolvimento adequado e o pleno exercício das faculdades morais nos
dois casos fundamentais, sejam normalmente compatíveis” (RAWLS, 2003, p. 147). Quer
64
Rawls distingue “restrição” (“restriction”) de “regulação” (“regulation”) ao tratar do ajuste das liberdades
básicas. Em linhas gerais, esses termos não apresentam dificuldades, visto que por “regulação” compreende-se
regras de ordem para que uma discussão – o exemplo dado pelo próprio autor – ocorra de forma organizada e
satisfatória. Nesse caso, não ocorre a violação da prioridade das liberdades básicas, uma vez que a regulação as
ordena num esquema final. Já as “restrições” são regras impostas, por exemplo, proibição ao conteúdo de um
discurso, ou de questões levantadas, ou ainda a defesa de uma doutrina abrangente.
84
dizer, o esquema de liberdades básicas deve estar ajustado de forma a tornar possível o
desenvolvimento das faculdades morais dos indivíduos, a saber, a sua concepção de bem e seu
senso de justiça. Isto significa que nenhuma liberdade é absoluta, mas que todo o esquema das
liberdades é prioritário. Contudo, segundo o autor, “tampouco se exige que no esquema final
já ajustado cada liberdade básica seja garantida de forma igual (seja lá o que isso queira
dizer)” (RAWLS, 2003, p. 156).
A partir destes aspectos gerais acerca dos princípios de justiça, podemos passar à
apresentação das características específicas de cada um dos princípios.
3.2.1 Primeiro Princípio de Justiça: O Princípio da Igual Liberdade
O primeiro princípio de justiça, denominado princípio da igual liberdade, assegura
certas liberdades básicas iguais a todos os cidadãos que cooperam com a sociedade. Na obra
Uma Teoria da Justiça, Rawls apresenta a lista das liberdades mais importantes defendidas
por este princípio. As liberdades não especificadas nessa lista não são consideradas liberdades
básicas
65
. Assim, as liberdades básicas que devem ser iguais para todos são:
[...] a liberdade política (o direito de votar e ocupar um cargo público) e a liberdade
de expressão e reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; as liberdades
da pessoa, que incluem a proteção contra a opressão psicológica e a agressão física
(integridade da pessoa); o direito à propriedade privada e a proteção contra a prisão
e a detenção arbitrárias, de acordo com o conceito de estado de direito (RAWLS,
2002, p. 65).
No Prefácio da obra Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, Rawls destaca
algumas mudanças realizadas nas obras posteriores a sua obra-prima. Neste contexto, a partir
de críticas e sugestões, uma das mudanças realizadas visa a formulação e o conteúdo dos
princípios de justiça, em particular a caracterização das liberdades básicas e sua prioridade
66
.
Assim, na tradução desta obra tem-se a seguinte lista de liberdades básicas especificadas no
primeiro princípio de justiça:
65
Rawls discute a questão das liberdades básicas abarcadas pelo primeiro princípio, das liberdades não incluídas,
em Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação. E acrescenta dois defeitos em Uma Teoria da Justiça no que
diz respeito à análise das liberdades básicas (RAWLS, 2003, p. 157-8).
66
No artigo Justiça como Eqüidade: Uma Concepção Política, não Metafísica e na obra O Liberalismo Político,
o autor destaca que a mudança de formulação ocorre devido a revisões da análise das liberdades básicas
realizada na obra Uma Teoria da Justiça, cujo objetivo é responder às objeções levantadas por Hart. Para
verificar os argumentos de Rawls Cf. 1985, p. 208, n. 7 e 2000, p. 343.
85
[...] liberdade de pensamento e de consciência; liberdades políticas (por exemplo, o
direito de votar e de participar da política) e liberdade de associação, bem como os
direitos e liberdades especificados pela liberdade e integridade (física e psicológica)
da pessoa; e, finalmente, os direitos e liberdades abarcados pelo estado de direito
(RAWLS, 2003, p. 62).
Uma distinção apontada por Rawls refere-se ao termo usado para enunciar a lista de
liberdades, ou seja, segundo o autor, em Uma Teoria da Justiça, é usado o termo singular
“liberdade básica”, enquanto que nesta obra, a saber, Justiça como Eqüidade: Uma
Reformulação, utiliza-se o termo “liberdades básicas”
67
. Isto justifica-se na medida em que o
termo singular “[...] obscurece esse importante aspecto dessas liberdades” (RAWLS, 2003,
p. 62). A mudança de “liberdade básica” para “liberdades básicas” também significa dizer
“[...] que não se atribui nenhuma prioridade à liberdade enquanto tal, [...]” (RAWLS, 2003, p.
63), mas toda a lista de liberdades é prioritária ou absoluta. Devido às sugestões e críticas que
resultaram em mudanças, Rawls destaca como um novo critério
68
para a análise das liberdades
básicas e da sua prioridade, o aspecto de que essas liberdades devem garantir aos cidadãos as
condições adequadas para o desenvolvimento e o exercício das duas faculdades morais.
Garcia (1985, p. 29) destaca que “podemos pensar que la libertad es fundamental
para la vida porque vivir es proyectar, eleger, y sin libertad no puede hacerse. [...] La libertad
es condición necesaria para la realización de nuestra concepción del bien y para el desarrollo
y ejercicio de nuestro sentido de la justicia”. Ou seja, as liberdades são fundamentais na
medida em que, através delas, as pessoas desenvolvem as capacidades necessárias para formar
e procurar realizar o seu plano de vida e o desejo de agir de acordo com a concepção política
através do senso de justiça.
Deste modo, o primeiro princípio tem prioridade sobre o segundo, na medida em que
Rawls defende a inviolabilidade da liberdade, e assim a sua teoria assegura a prioridade do
justo sobre o bem. Ou seja, essa inviolabilidade garante que as liberdades não sejam
negociadas, trocadas ou mesmo negadas em favor de um maior benefício econômico ou
social.
67
Esta mudança na utilização do termo encontra-se na obra original do autor. Assim, em A Theory of Justice,
§ 11, primeiro princípio tem se “[...] basic liberty [...]” (RAWLS, 1971, p. 60), em outra passagem, neste mesmo
parágrafo o autor escreve que “the basic liberties of citizens are, [...]” (RAWLS, 1971, p. 61). A tradução que
usamos, a saber, da Martins Fontes, utiliza o termo “liberdades básicas” para fazer referência à essa lista de
liberdades.
68
Este novo critério é o que o autor propõe após destacar os defeitos dos dois critérios desenvolvidos em Uma
Teoria da Justiça. Assim, para verificar tais defeitos conferir referência da nota 62.
86
3.2.2 Segundo Princípio de Justiça
As alterações realizadas no segundo princípio estão relacionadas às inversões de
ordem das duas partes. Ou seja, na formulação de Uma Teoria da Justiça a ordem é, princípio
da diferença e princípio da igualdade de oportunidades; nas obras posteriores, esta ordem
inverte-se, adequando-se assim à ordem lexicográfica, quer dizer, primeiro o princípio da
igualdade eqüitativa de oportunidades, em seguida o princípio da diferença.
O segundo princípio proposto por Rawls é subdividido, então, em duas partes
69
, a
saber, o princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades e o princípio da diferença. No §11
de Uma Teoria da Justiça, o autor enfatiza que o segundo princípio é aplicado à distribuição
de renda e riqueza e às organizações que regulam as posições de autoridade e
responsabilidade. Neste contexto, tem-se que a distribuição da renda e da riqueza, da mesma
forma que as posições de autoridade, não precisam ser distribuídas de forma igual a todos,
mas, respectivamente, elas devem ser vantajosas e acessíveis a todos os membros da
sociedade.
3.2.2.1 O princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades
O princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades não exige apenas que as
posições e cargos de responsabilidade, assim como o acesso à educação, cultura, esportes, por
exemplo, estejam formalmente abertos, mas que também todos os membros tenham uma
oportunidade igual de acesso a essas posições. Nas palavras do autor, “em todos os âmbitos da
sociedade deve haver praticamente as mesmas perspectivas de cultura e realização para
aqueles com motivação e dotes similares” (RAWLS, 2003, p. 62). Ou seja, as pessoas com
habilidades, talentos e disposições semelhantes devem ter a mesma oportunidade ou chance
de ter acesso a um cargo, tendo assim a expectativa de atingir essas posições,
independentemente da sua classe social.
69
De acordo com alguns comentadores, por exemplo Nedel (2000, p. 63), a lista dos princípios de justiça
propostos por Rawls poderia, desde que houvesse o desdobramento do segundo princípio, compreender três
princípios de justiça, ou até mesmo quatro, desde que se considere o princípio do mínimo essencial que,
conforme apresentamos, na obra O Liberalismo Político, é anteposto ao primeiro princípio de justiça.
87
Deste modo, o que deve ser considerado como critério de acesso a esses cargos não
são as informações particulares, como sexo e concepção do bem que professa, nem mesmo a
posição social, ou a convicção política que a pessoa defende, mas sim a aptidão, a habilidade
e a formação para a execução do cargo.
3.2.2.2 O princípio da diferença
O princípio da diferença não propõe uma igualdade econômica entre todos os
cidadãos a partir, por exemplo, de uma distribuição igual da renda e da riqueza, mas uma
situação de menor desigualdade, quer dizer, que a distribuição dos bens deve ser realizada de
modo vantajoso a todos os que cooperam com o sistema.
Na obra Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, o autor destaca que
os cidadãos cooperam para produzir os recursos sociais aos quais dirigem suas
reivindicações. [...] A estrutura básica está organizada de tal modo que quando
todos seguem as normas publicamente reconhecidas de cooperação, e honram as
exigências que as normas especificam, as distribuições específicas de bens daí
resultantes são consideradas justas (ou pelo menos, não injustas), quaisquer que
venham a ser (RAWLS, 2003, p. 71).
As desigualdades organizacionais e econômicas permitidas pela estrutura básica
devem beneficiar a todos os membros da sociedade, em especial os menos favorecidos. Além
disso, essas desigualdades devem estar de acordo com a liberdade igual e com a igualdade
eqüitativa de oportunidades. Ao garantir que todos os membros sejam beneficiados, tem-se
que o princípio da diferença é considerado um princípio de reciprocidade Ou seja, ao
beneficiar as expectativas dos membros menos favorecidos, ocorre ao mesmo tempo uma
melhora na situação dos demais membros. Deste modo, uma pessoa não se beneficia às custas
dos outros ou do trabalho destes, mas todos são beneficiados na medida em que as vantagens
são recíprocas.
Em uma passagem da obra Uma Teoria de Justiça, Rawls (2002, p. 103) expressa
uma definição aproximativa dos membros menos favorecidos da sociedade, a partir das três
contingências que afetam as perspectivas de vida das pessoas que são, a sua classe social de
origem, os dotes naturais que possuem e a sua sorte ao longo de sua vida. Na sua obra mais
recente, Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, os membros menos favorecidos são
88
definidos a partir de outros elementos, tais como: “[...] aqueles que usufruem em comum com
os outros cidadãos das liberdades básicas iguais e oportunidades eqüitativas, mas têm a pior
renda e riqueza. Utilizamos renda e riqueza para especificar esse grupo [...]” (RAWLS, 2003,
p. 92). Ou seja, os menos favorecidos são compreendidos como aqueles membros que
possuem uma quantidade menor de renda e riqueza. Entretanto, usufruem de modo igual dos
princípios prioritários que antecedem este, quais sejam, das liberdades básicas iguais e da
igualdade eqüitativa de oportunidades.
De acordo com o autor, na obra O Liberalismo Político, o princípio da diferença
aplica-se no contexto institucional no qual são realizadas as transações e as decisões. Ou seja,
ele não se aplica às negociações particulares realizadas pelas pessoas e associações, mas “[...]
à tributação da renda e da propriedade, à política fiscal e econômica. Aplica-se ao sistema
proclamado de direito público e normas legais [...]” (RAWLS, 2000, p. 336).
Em Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, o autor argumenta a favor do
princípio da diferença, que é criticado na teoria da justiça como eqüidade. Segundo Rawls,
[...] devemos reconhecer que o princípio de diferença nem sempre é expressamente
endossado; com efeito, constata-se que poucos o defendem na cultura política
pública dos tempos atuais. Ainda assim, acredito que vale a pena estudá-lo, pois
apresenta vários aspectos atraentes e formula de maneira simples uma idéia de
reciprocidade para uma concepção política de justiça. A meu ver, essa idéia é de
certa forma essencial para a igualdade democrática se considerarmos a sociedade
como um sistema eqüitativo de cooperação social entre cidadãos livres e iguais de
uma geração para a outra (RAWLS, 2003, p. 187).
Portanto, são estes os dois princípios de justiça propostos por Rawls e que seriam o
resultado do acordo realizado entre as partes na posição original. Estes princípios seriam
escolhidos pelas partes enquanto pessoas racionais livres e iguais, interessadas em promover o
seu plano racional de vida, e que possibilitam o desenvolvimento e exercício das suas
capacidades morais. Além disso, tais princípios são apresentados com o intuito de fornecer
um modo adequado das instituições mais importantes da estrutura básica da sociedade
assegurar os direitos e liberdades básicas e distribuir os encargos da cooperação social.
89
3.2.3 Os Quatro Estágios para a Aplicação dos Princípios de Justiça
De acordo com as características apresentadas dos princípios de justiça, o primeiro
princípio, além de aplicar-se à estrutura básica da sociedade, é especificado por uma
constituição; isto é, as liberdades são garantidas por meio de uma constituição, seja ela escrita
ou não. O primeiro princípio abarca os “[...] elementos constitucionais essenciais, ou seja,
aquelas questões fundamentais em torno das quais, dado o fato do pluralismo, é mais urgente
conseguir um acordo político” (RAWLS, 2003, p. 65). Isto significa dizer que os direitos e
liberdades assegurados pelo primeiro princípio são necessários para garantir o exercício e o
desenvolvimento das faculdades morais e, a partir da natureza fundamental destes direitos e
liberdades, para a compreensão dos cidadãos enquanto pessoas livres e iguais, este princípio
tem prioridade em relação ao segundo princípio
70
. Estes elementos são prioritários na medida
em que o autor estabelece um critério para assegurar e defender a prioridade dos mesmos,
qual seja, a inviolabilidade das liberdades fundamentais. Além disso, o acordo acerca dos
direitos e das liberdades básicas, da mesma forma que a verificação da realização de tais
elementos, é mais simples de ser realizado e constatado.
Apesar de alguns elementos do princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades
(como carreiras abertas a talentos) e do princípio da diferença (como um mínimo social para a
satisfação das necessidades básicas dos cidadãos) serem elementos constitucionais essenciais,
esses princípios exigem mais do que isso. A distinção entre os princípios não está no fato do
primeiro expressar valores políticos e o segundo não, uma vez que ambos expressam esses
valores. Esta distinção tem quatro motivos: o fato dos princípios serem aplicados às
instituições em estágios diferentes e a estrutura básica estar dividida em duas partes, cada
princípio correspondendo a uma delas; a urgência pelo estabelecimento de tais elementos; o
modo evidente (ou mais fácil, nas palavras do autor) de constatar a realização desses
elementos e, por fim, a possibilidade de “[...] chegar a um acordo sobre quais devem ser esses
elementos essenciais [...]” (RAWLS, 2003, p. 69).
Estes aspectos traduzem os quatro estágios através dos quais os princípios de justiça
são adotados e aplicados às instituições. O primeiro estágio compreende a escolha que as
partes realizam dos dois princípios de justiça na posição original. Neste estágio, as partes
70
Na obra Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, o autor destaca os aspectos relevantes do primeiro
princípio que especifica os elementos constitucionais essenciais e as condições favoráveis para o exercício dos
direitos e liberdades básicas (RAWLS, 2003, p. 63-7).
90
estão abstraídas das informações arbitrárias devido ao uso do véu de ignorância. Nas etapas
seguintes, esse véu se tornará mais fino e assim as partes terão acesso aos dados particulares
das pessoas e da sociedade. No segundo estágio, no qual será formada uma convenção
constituinte, as partes influenciadas pelos princípios escolhidos “[...] devem propor um
sistema para os poderes constitucionais de governo e os direitos básicos dos cidadãos”
(RAWLS, 2002, p. 213). Neste estágio, as partes não têm acesso aos dados particulares das
pessoas que representam. Contudo, as informações acerca da sociedade ultrapassam os dados
genéricos, ou seja, os parceiros sabem acerca dos recursos naturais, o nível de
desenvolvimento econômico e cultura política, dentre outros elementos que possibilitam as
partes escolher uma constituição que condiz com os princípios de justiça. O primeiro
princípio aplica-se a esse estágio na medida em que “[...] em face da constituição, em seus
dispositivos políticos e na maneira como eles funcionam na prática fica mais ou menos
evidente se os elementos constitucionais essenciais estão garantidos” (RAWLS, 2003, p. 68).
De acordo com Rawls, a constituão, na medida em que assegura as liberdades e direitos,
garante a cidadania igual e implementa a justiça política. O estágio legislativo compreende a
promulgação de leis conforme os aspectos admitidos e permitidos pela constituição e pelos
princípios de justiça. Neste estágio, “[...] toda a gama de fatos sociais e econômicos de caráter
geral entra em jogo” (RAWLS, 2002, p. 216). O segundo princípio de justiça aplica-se a esse
estágio,
[...] e está relacionado com todo tipo de legislação social e econômica, e com os
vários tipos de questões que surgem nesse ponto [...]. Saber se os objetivos do
segundo princípio foram alcançados é algo bem mais difícil de asseverar. Esses
assuntos estão sempre, em alguma medida, abertos a divergências razoáveis de
opiniões; dependem de inferências e julgamentos para avaliar complexas
informações sociais e econômicas (RAWLS, 2003, p. 68).
E, por último, o estágio final que compreende a “[...] aplicação das regras a casos
particulares por parte dos juízes e administradores e o da observância delas pelos cidadãos em
geral” (RAWLS, 2002, p. 216). Neste estágio, tem-se o acesso a todas as informações
necessárias, na medida em que são importantes para o estabelecimento de regras que
consideram as características e as circunstâncias das pessoas.
De acordo com Rawls, “esses princípios, então, regulam a escolha de uma
constituição política e os elementos principais do sistema econômico e social” (RAWLS,
2002, p. 08). Ou seja, os princípios de justiça escolhidos de forma eqüitativa na posição
91
original são fundamentais para a formulação da constituição, que por sua vez contribui para a
promulgação da legislação e regula os atos e regras do sistema judiciário.
Ao elaborar a teoria da justiça como eqüidade, Rawls tem como objetivo determinar
quais seriam os princípios de justiça escolhidos na posição original. Assim, ao impor certas
condições para a realização dessa escolha, o autor acredita que, dentre a lista apresentada às
partes, os dois princípios por ele propostos são os mais adequados para regular as instituições
da estrutura básica. Contudo, qual o raciocínio realizado pelas partes a fim de selecionar esses
princípios, e não outros? O autor justifica esta escolha a partir da garantia de bens sociais
primários. Ou seja, como as partes “sabem” que as pessoas têm planos racionais de vida que
desejam realizar e que os seus direitos e liberdades devem ser assegurados, elas escolhem a
alternativa que assegura os bens sociais primários, que são necessários para a realização dos
planos de vida e para o exercício e desenvolvimento das capacidades morais. Assim, elas
escolhem dentre as alternativas, aquela cujo pior resultado é superior ao pior resultado de
todas as outras, isto é, a opção que assegura um mínimo satisfatório. A partir deste raciocínio,
apresentamos os princípios de justiça propostos pelo autor, dispostos em ordem serial. O
primeiro princípio assegura liberdades básicas iguais a todos; o segundo princípio, na primeira
parte, defende igualdade eqüitativa de oportunidades aos membros da sociedade com
aptidões, habilidades e capacidades semelhantes, independentemente da sua posição social;
enquanto que a segunda parte do princípio, o princípio da diferença, propõe que as
desigualdades sociais e econômicas são permitidas, desde que elas beneficiem os membros
menos favorecidos da sociedade. E, destacamos também, a seqüência de quatro estágios para
a aplicação dos princípios de justiça.
CONCLUSÃO
Nosso trabalho teve como objetivo compreender o modelo contratualista
desenvolvido por Rawls, a saber, a idéia de posição original. Conforme destacamos, a teoria
da justiça como eqüidade apresenta-se como uma opção para as tendências dominantes na
filosofia moral moderna, visto que elas, de acordo com Rawls, não resolvem de maneira
satisfatória o problema da justiça social. Deste modo, o autor toma como ponto de partida as
desigualdades sociais existentes no interior da sociedade, ou seja, não está preocupado com a
justiça nas associações, grupos e relações cotidianas; nem com a justiça internacional, mas
com a justiça social, com a forma como as instituições mais importantes da estrutura básica da
sociedade asseguram e distribuem os benefícios produzidos pelas pessoas que cooperam com
este sistema. Com o objetivo de apresentar uma proposta para a resolução desta questão, o
autor propõe a elaboração de princípios de justiça, como forma eqüitativa de regular a
maneira como as instituições atuam. Estes princípios, a fim de garantir a sua eqüidade, são
escolhidos na posição original, pelas partes que estão simetricamente situadas e abstraídas dos
dados contingentes da sociedade e de suas próprias informações.
Desta forma, tivemos como objeto de estudo a argumentação do autor em defesa da
concepção de posição original como um dispositivo eqüitativo para a escolha dos princípios
de justiça. Quer dizer, procuramos destacar as características desta situação inicial de escolha;
como o autor justifica a posição original enquanto um procedimento de escolha hipotético e a-
histórico; qual o raciocínio que as partes fazem para a escolha dos princípios, uma vez que
elas estão abstraídas de informações que possam beneficiar ou prejudicar o seu caso
particular. Para o desenvolvimento da nossa pesquisa, utilizamos principalmente as obras do
autor. Deste modo, o nosso ponto de partida foi a obra Uma Teoria da Justiça, acrescentando
elementos e destacando reformulações e alterações quando necessário e possível, presentes
nas obras posteriores.
De acordo com isto, no primeiro capítulo, apresentamos alguns aspectos apontados
por comentadores acerca do período de silêncio pelo qual a teoria contratualista clássica
passou e qual o objetivo do autor ao retomar o modelo de contrato social na
contemporaneidade; as doutrinas com as quais discute e as idéias que compõe a teoria da
justiça como eqüidade, que são indispensáveis para compreender a sua argumentação. Deste
modo, Rawls, através da retomada do modelo argumentativo do contrato social, propôs, por
meio desse exercício mental, a elaboração de uma concepção política de justiça cuja
93
preocupação consiste em apresentar uma solução para o problema da desigualdade social
existente na cooperação social. A partir do acordo realizado entre as partes na posição
original, tem-se o estabelecimento de princípios de justiça que possuem o papel de ordenar as
instituições da estrutura básica da sociedade. Assim, a teoria da justiça como eqüidade visa o
benefício mútuo dos membros compreendidos como livres e iguais e que cooperam com este
sistema durante toda a sua vida, ao contrário do utilitarismo que, segundo o autor, está voltado
para o bem-estar de uma maioria, em detrimento de uma minoria; ou do intuicionismo, que
possui uma pluralidade de princípios e não há uma regra de prioridade para avaliar esses
princípios. Deste modo, as idéias fundamentais de justiça, sociedade e pessoa são necessárias
para a compreensão da forma como o autor desenvolve a sua teoria.
O segundo capítulo destacou a posição original enquanto situação eqüitativa para a
escolha dos princípios de justiça. Assim, simetricamente situadas e encobertas pelo véu de
ignorância, as partes escolhem os dois princípios dentre uma lista de opções propostas. O
autor justifica a importância da posição original frente ao fato dela ser hipotética através da
compreensão desta posição enquanto artifício de representação. Ou seja, a posição original
representa o modelo daquilo que as pessoas consideram como condições eqüitativas para que
os representantes dos cidadãos possam escolher os princípios de justiça mais razoáveis para
regular a estrutura básica da sociedade ao longo das gerações. Também representa restrições
apropriadas às razões das partes. Ou seja, o fato de defender uma concepção abrangente do
bem ou estar em uma posição social vantajosa não são boas razões para propor ou esperar que
os outros aceitem os princípios de justiça propostos por ela. De acordo com isto, os princípios
de justiça combinariam com as convicções refletidas das pessoas em equilíbrio reflexivo, e
com as condições que consideram razoáveis para a escolha dos princípios que devem
especificar os termos eqüitativos da cooperação social. Além destes pontos, tem-se como
forma de justificar a escolha dos princípios realizada na posição original a noção de justiça
procedimental pura. Em outras palavras, esta noção não possui um critério independente para
determinar se o resultado do processo é justo, mas o próprio processo estabelece um resultado
justo. Isto é, a eqüidade no processo de seleção dos princípios transfere-se para os princípios
escolhidos.
Desta forma, os princípios de justiça escolhidos sob as condições eqüitativas da
posição original representam os interesses de pessoas morais, livres e iguais, que vivem e
cooperam com a sociedade ao longo de toda a sua vida. Isto porque, de acordo com Rawls, os
princípios de justiça devem regular as instituições da estrutura básica da sociedade ao longo
das futuras gerações, razão pela qual a escolha de tais princípios não pode ser influenciada
94
pelas informações da condição social, política e econômica da sociedade e dos elementos
particulares das pessoas que as partes representam e das suas próprias informações. De acordo
com isto, a teoria da justiça como eqüidade visa o benefício de todos os membros que
participam da sociedade a partir da sua condição de cidadãos livres e iguais, como detentores
das capacidades morais para serem membros normais e plenamente cooperativos da
sociedade, e não o benefício de um pequeno grupo ou de uma maioria.
Mas, como o autor explica que os princípios escolhidos em um acordo hipotético se
tornam exeqüíveis? De acordo com Rawls, após a escolha dos princípios de justiça sob certas
restrições, ou seja, abstraídos das psicologias especiais, procura-se verificar se a teoria da
justiça como eqüidade é uma concepção política de justiça estável. Em outras palavras, a
estabilidade envolve a questão de saber se as pessoas que crescem em instituições básicas
justas, isto é, que satisfazem os princípios de justiça, desenvolvem um senso de justiça forte
para compreender e respeitar essas instituições e resistir às tendências à injustiça. Uma outra
forma de constatar se é possível a estabilidade dessa concepção política consiste em verificar
se, dado o fato das sociedades democráticas serem marcadas pelo pluralismo razoável, que
compreende uma diversidade de doutrinas morais, religiosas e filosóficas abrangentes, ela
pode ser o objeto de um consenso sobreposto. Ou seja, se a concepção política de justiça
adotada pela sociedade recebe o apoio das doutrinas abrangentes do bem existentes em seu
interior. Isto porque, de acordo com Rawls, os cidadãos defendem e professam diferentes
doutrinas religiosas, filosóficas e morais abrangentes e é a partir das visões dessas doutrinas
que eles defendem uma mesma concepção política de justiça.
De acordo com isto, segundo o autor, a teoria da justiça como eqüidade possui as
três características de uma concepção política de justiça capaz de conquistar um consenso
sobreposto, quais sejam, a concepção política de justiça tem como objeto principal as
instituições da estrutura básica da sociedade e a forma como elas estão organizadas em um
único sistema; esta concepção é auto-sustentada, ou seja, a aceitação desta concepção não
pressupõe a aceitação de nenhuma doutrina abrangente específica; e, as idéias que compõem a
concepção política são familiares aos cidadãos, isto é, estão implícitas na cultura política
pública da sociedade.
Contudo, se faz necessário ressaltar que não desenvolvemos a questão do consenso
sobreposto e da estabilidade social no nosso trabalho, uma vez que o nosso objetivo principal
foi o de compreender a concepção de posição original na teoria rawlsiana de justiça.
E, por fim, no terceiro capítulo, apresentamos que Rawls concebe as partes que
escolhem os princípios de justiça na posição original como pessoas livres e iguais, racionais e
95
mutuamente desinteressadas. Assim, como as partes não têm acesso aos dados contingentes
elas escolhem, segundo o autor, não por um processo de adivinhação, mas a partir de
informações gerais acerca das circunstâncias sociais, políticas e econômicas da sociedade e da
psicologia humana; elas sabem que as pessoas têm concepções do bem que desejam realizar e
que certos direitos e liberdades devem ser assegurados. A partir de tais informações, as partes
raciocinam acerca da alternativa que garante a realização desses interesses. De acordo com
isto elas escolhem, dentre as alternativas, aquela que assegura um mínimo satisfatório, isto é,
o mínimo garantido pelos dois princípios de justiça é suficiente para que as pessoas possam
desenvolver as suas capacidades morais, quais sejam, o senso de justiça e a concepção do
bem. Este mínimo assegurado são os bens sociais primários, ou seja, direitos, liberdades,
oportunidades, renda e riqueza. A partir disso, a regra maximin é introduzida com o intuito de
justificar a escolha dos princípios de justiça. Assim, esta regra, que orienta a escolha dos
princípios na condição de incerteza da posição original – uma vez que elas não sabem quem
são fora dessa posição – determina que a opção escolhida seja aquela cujo pior resultado é
superior aos piores resultados das outras alternativas.
Após a exposição desses aspectos, apresentamos os princípios de justiça que,
segundo Rawls, seriam escolhidos na posição original. Estes princípios, dispostos em ordem
serial, são divididos em dois: o primeiro, denominado princípio da igual liberdade, tem
prioridade em relação ao segundo, na medida em que Rawls defende que as liberdades básicas
devem ser asseguradas de maneira igual a todos os cidadãos e que não é permitido negar,
trocar ou negociar as liberdades em vista de maiores benefícios econômicos ou sociais. O
segundo princípio é dividido em duas partes: o princípio da igualdade eqüitativa de
oportunidades (primeira parte), que defende que as oportunidades devem estar abertas a todos
com habilidades e disposições semelhantes, independentemente da sua posição social, de sexo
ou de outros elementos particulares; este princípio tem prioridade em relação à segunda parte
do segundo princípio, a saber, o princípio da diferença, que permite desigualdades sociais e
econômicas desde que elas beneficiem aos membros menos favorecidos da sociedade, ou seja,
aqueles que usufruem em comum com os outros as liberdades básicas e as oportunidades, mas
possuem a pior renda e riqueza.
A partir destes elementos destacados, podemos verificar a importância e o papel que
a posição original possui na teoria da justiça como eqüidade. Conforme apresentamos, esta é
apenas um exemplo de teoria contratualista dentre outras teorias possíveis, e o autor a
apresenta como uma alternativa e não como a única ou a alternativa verdadeira. De acordo
com isto, acreditamos ter realizado o nosso intento inicial, qual seja, realizar a exposição da
96
argumentação do autor quanto à concepção de posição original como um dispositivo
contratual que assegura condições justas para a escolha dos princípios. Esta pesquisa teve
como ponto de partida o contexto do qual o autor parte e as idéias fundamentais implícitas na
cultura política pública que contribuíram para a compreensão da forma como Rawls organiza
e desenvolve a sua teoria, e a argumentação acerca da posição original; culminando com a
exposição dos princípios escolhidos nesta posição, juntamente com a argumentação em defesa
dos mesmos.
É preciso ressaltar, contudo, que há limites no desenvolvimento do nosso trabalho.
Ou seja, não desenvolvemos a idéia de consenso sobreposto e estabilidade social e outras
idéias introduzidas pelo autor nas obras posteriores a Uma Teoria da Justiça. Além disso, não
destacamos as críticas e as discussões proferidas com relação à teoria de Rawls, como os
trabalhos de Nozick, Sen, Habermas, Taylor, dentre outros que contribuiriam para a leitura e
compreensão da teoria rawlsiana de justiça. Sabemos que muitos trabalhos foram e são
produzidos com relação ao pensamento do autor e a forma como desenvolve a sua teoria, e
que tais trabalhos – sejam eles comentários, críticas, defesas e avaliações de sua teoria – não
podem ser negados nem desconsiderados. Por esta razão, pelo menos a título de ensaio,
apresentamos a objeção de Dworkin quanto à característica hipotética da posição original.
Uma proposta para uma pesquisa posterior consiste em listar as objeções e críticas
desenvolvidas acerca da teoria de Rawls, em especial, a concepção de posição original, para
verificar se esta concepção possui o mesmo status que possuía em Uma Teoria da Justiça. Ou
seja, diante da introdução de novos elementos e de alterações e reformulações, a concepção de
posição original mantém a mesma importância? Qual seria o papel destas idéias e a sua
relação com a concepção de posição original? Em que pontos tais elementos contribuem para
a possibilidade desses princípios serem postos em prática?
Em linhas gerais, a posição original é apresentada por Rawls como uma situação
eqüitativa para a escolha de uma concepção política de justiça que tem como objeto primário
a estrutura básica da sociedade. Assim, o acordo realizado nesta posição leva em consideração
as características das pessoas como cidadãos livres e iguais, e não os dados irrelevantes para a
justiça, isto é, informações que podem influenciar na escolha dos princípios. Deste modo, o
autor tem como ponto de partida os problemas de desigualdade social existentes no interior
das sociedades e, ao elaborar a sua teoria, parte de idéias e princípios que estão implícitos na
cultura política pública da sociedade. Deste modo, a sua intenção foi de organizar essas idéias
em uma concepção política de justiça alternativa, que poderia ser vista como justa e razoável
para ser aplicada à estrutura básica da sociedade. De acordo com isto, a proposta de Rawls
97
não consiste num sistema igualitário, mas numa condição de menor desigualdade, um sistema
que visa vantagens mútuas.
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99
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