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Abaixo apresento pequeno relato da infância da professora observada na pesquisa,
levando-se em conta que os fatos por ela narrados possivelmente foram reinterpretados à luz de
novas experiências e conhecimentos.
Falar da infância, não significa apenas relatar fatos e acontecimentos. Falar da
infância significa remexer em uma série de sentimentos, emoções, sonhos, sensações,
frustrações, medos, inseguranças, que muitas vezes, acreditávamos estarem mortas
dentro de nós. É recordar amigos, brincadeiras, lugares, acontecimentos que de tão
importantes, ficaram marcados em nossa memória.
Uma memória que está sempre presente e que me remete muitas vezes aquele
tempo, é uma memória que vou chamar de “olfativa”, ou seja, do cheiro que tinha o
meu jardim de infância, as férias na casa da minha avó, as visitas à casa do amigo do
meu pai, a rua em que eu morava, o cheiro do óleo de bronzear que minha tia usava
quando íamos a praia... Até hoje, quando sinto algum desses cheiros, é como se um
filme passasse pela minha cabeça.
Tive uma infância humilde, sem brinquedos caros, sem muitas roupas novas, mas
com muita atenção, amor e espaço. Espaço para conversar, para ser ouvida, para brincar
e principalmente, para aprontar. Nossa... E como eu aprontava... Minha mãe sofria,
sempre tinha que deixar minha irmã (que é um ano e quatro meses mais nova que eu)
com alguém e correr comigo para o pronto socorro: era botão no nariz, varetinha de
bambu que foi parar no céu da boca, acento do balanço que caiu na testa, tombos, caco
de vidro, prego... mas o pior foi ter engolido um punhado de espinha pensando ser peixe
quando tinha dois anos.
Já na escola, quase não dei trabalho. Comecei a estudar no jardim III. Não me
lembro de choros, nem dramas pra ficar na escola. Ao contrário da minha irmã, que não
gostava nem um pouco de estudar. Estudava com a tia Silvia que no segundo semestre
foi substituída, mas meu sonho era estudar com a tia Heloísa... achava ela parecida com
a Mulher-Maravilha. Morria de medo da mulher loira do vaso. Adorava brincar no
parque com o Cristiano, tocar na bandinha, brincar de massinha (ainda que só fizesse
cobrinha). Mas a memória mais viva que trago é de catar joaninha na hora do recreio e
guardar em caixa de fósforos para depois soltar. Não me lembro do propósito, mas
lembro que era quase uma tradição entre os alunos. Certa vez, pedi minha mãe um
vidro, levei para escola e na hora do recreio enchi de joaninha, na hora da saída, toda
boba, peguei pra mostrar à minha mãe e estavam todas mortas. Minha mãe disse que
tinha que ter feito uns furos na tampa, mas eu nunca tinha feito furo na caixa de
fósforos, foi aí que descobri a importância do oxigênio na nossa vida.
Acredito firmemente ter tido uma infância feliz, e acho que isso tudo só
contribuiu, direta ou indiretamente, para que meu encontro com a educação
infantil se desse de maneira tão intensa que hoje não consigo me ver longe dela.
[grifos nossos]
Quadro 4: memorial sobre a infância da professora da turma observada.
Nota-se no texto acima a presença de sentimentos ligados a lembranças familiares, de
amigos, de brincadeiras tipicamente infantis e da escola. O mais interessante para mim é a
relação que a própria professora estabelece entre sua infância e a estreita ligação que atualmente