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como meta voltar-se sobre si e reapropriar-se de si”
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(HEIDEGGER, 2002a, p. 40).
Como podemos ler no § 9 de “Ser e tempo”, a vida fáctica do Dasein é apresentada
nos seguintes termos: “o que, onticamente, é conhecido e constitui o mais próximo é,
ontologicamente, o mais distante, o desconhecido, e o que constantemente se
desconsidera em seu significado ontológico” (HEIDEGGER, 2006c, p. 87). No § 5 da
mesma obra, lemos ainda: “na verdade, o Dasein não somente está onticamente
próximo ou é o mais próximo. Nós mesmos o somos a cada vez”; mas, ressalta o
autor, “[...] apesar disso, ou justamente por isso, é que ele é o mais distante do ponto
de vista ontológico” (HEIDEGGER, 2006c, p. 52).
Heidegger denomina publicidade (Öffentlichkeit) — ou opinião pública — a
este “termo médio”, graças ao qual o Dasein vive no modo da cotidianidade
(Alltäglichkeit); nele, não é o indivíduo que vive facticamente sua vida, mas, antes,
se deixa levar pelo entorno, pela corrente de pensamento dominante, e passa a agir
“assim como muitos outros” (HEIDEGGER, 2002a, p. 41), como se age comumente
— seja no âmbito do cuidado, da lida, da circunvisão ou das formas de apreensão
do mundo. Este “alguém” que vive e de acordo com o qual muitos vivem, este modo
como “se” vive, e que remete à idéia de “normalidade” (Üblichkeit) da vida, é o que o
autor chama de impessoal
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(das Man), o qual, segundo Inwood, “[...] leva embora
as escolhas de Dasein e sua responsabilidade pelo que faz e acredita [...]”, pois, ele
se exime de decidir “para que” as coisas servem ou mesmo quais deve utilizar;
ocorre que nem o Dasein toma autonomamente, em seu ser cada vez, estas
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Heidegger afirma que “este caráter dinâmico [...] não é um traço acidental, que aflore de tempos em
tempos, e que possa ser erradicado em épocas mais avançadas e mais felizes da cultura humana”
(HEIDEGGER, 2002a, p. 39); Embora amplamente reconhecida, Heidegger observa que a
preocupação com a manifestação desta tendência nunca foi devidamente tematizada: exempli gratia,
para Descartes, na Primeira das “Meditações”, “era preciso, [...] que, uma vez na vida, fossem postas
abaixo todas as coisas, todas as opiniões em que até então confiara [...]”, ou seja, todas as crenças
que recebera da tradição. Mas, ao final da mesma meditação, vemos o pensador “titubear” diante das
dificuldades desta tarefa; assim, lemos: “mas, esse propósito é laborioso e uma certa (s.i.c.) desídia
devolve-me à vida de costume e, não diferentemente do prisioneiro que, desfrutando talvez em um
sonho de uma liberdade imaginária, quando começa em seguida a desconfiar de que está dormindo,
teme despertar e, por prudência, passa a ser conivente com as doces ilusões, a fim de que o logrem
por mais tempo, assim também eu volto a recair espontaneamente em minhas inveteradas opiniões,
receio acordar de medo que a vigília laboriosa, que venha a suceder o sossegado repouso, não
transcorra de agora em diante, não sob alguma luz, no conhecimento da verdade, mas em meio às
inextricáveis trevas das dificuldades que acabam de ser suscitadas” (DESCARTES, [s.d.], p. 27).
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Em “Ser e tempo”, tanto quanto nos escritos do início da década de 1920, Heidegger utiliza o termo
das Man para designar o caráter “não-pessoal” da publicidade da vida fáctica; ele é geralmente
traduzido por “impessoal” e expresso pelo emprego do pronome “se”, terceira pessoa do singular do
caso oblíquo — que se aplica aos dois gêneros — e que é utilizado como símbolo de indeterminação
do sujeito e como palavra expletiva (para realçar, nos verbos intransitivos, movimento ou atitude do
sujeito), e do pronome indefinido “alguém”.