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Ética e Serviço Social: formalismo, intenção ou ação?
Um estudo nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do
Estado do Rio de Janeiro
Valeria Lucilia Forti
Rio de Janeiro
2008
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Ética e Serviço Social: formalismo, intenção ou ação?
Um estudo nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do
Estado do Rio de Janeiro
Valeria Lucilia Forti
Tese apresentada à banca
examinadora como requisito parcial
para obtenção do título de doutor em Serviço Social
Orientadora: Profª Drª Yolanda A. Demétrio Guerra
Rio de Janeiro
2008
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F741 Forti, Valeria Lucilia.
Ética e serviço social: formalismo, intenção ou ação? : um
estudo nos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico do
Estado do rio de Janeiro / Valeria Lucilia Forti. Rio de Janeiro:
UFRJ, 2008.
393f.
Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Escola de Serviço Social, 2008.
Orientador: Yolanda Aparecida D. Guerra.
1. Ética profissional. 2. Instituições sociais. 3. Hospitais de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico Rio de Janeiro (Estado). I.
Guerra, Yolanda Aparecida Demetrio. II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Escola de Serviço Social.
CDD: 174
4
Valeria Lucilia Forti
Ética e Serviço Social: Formalismo, intenção ou ação?
Um estudo nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do
Estado do Rio de Janeiro
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da
Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob
orientação da Profª Drª Yolanda Guerra, como requisito parcial para obtenção
do título de Doutor em Serviço Social.
Rio de Janeiro, 11 de novembro de 2008.
__________________________________________________
Profª Drª Ana Mª Vasconcelos
__________________________________________________
Profª Drª Marlise Vinagre Silva
__________________________________________________
Profª Drª Sara Nigri Goldman
__________________________________________________
Profª Drª Tania Mª Dahmer Pereira
__________________________________________________
Profª Drª Yolanda A. Demétrio Guerra
5
GRÃO DE CHÃO
GRÃO DE CHÃOGRÃO DE CHÃO
GRÃO DE CHÃO
F
FF
FOLHA, MAS VIVA NA ÁRVORE,
FAZENDO PARTE DO VERDE.
NÃO A FOLHA SOLTA,
BAILANDO NO VENTO A CANÇÃO
DA AGONIA.
GRÃO DE AREIA, QUASE NADA,
INÚTIL QUANDO SOZINHO.
MAS QUE É TERRA,
QUANDO É GRÃO FAZENDO
PARTE DO CHÃO,
ESTA COISA FIRME
POR ONDE O HOMEM CAMINHA.
(THIAGO DE MELLO)
6
Esta tese é dedicada
À minha mãe, YOLANDA, mulher que, não obstante sua simplicidade e
seus 90 anos de idade, soube e sabe compreender e defender princípios caros
à vida, comumente violados em nossa sociedade;
Aos trabalhadores que constroem a riqueza social;
Às queridas crianças: ARTUR, DORA, FELIPE, LAURA, LAURINHA e LUISA,
esperanças de dias melhores no mundo;
“Aos desesperançados que podem permitir a esperança”.
(W. BENJAMIN)
7
Agradecimentos
Salvaguardada a inviabilidade de nomear todos que mereciam
agradecimentos, mesmo assim desculpo-me pelo fato e agradeço, inicialmente,
a todos os familiares e amigos pelo estímulo, apoio e carinho com que
acompanharam a realização deste trabalho acadêmico. Agradeço,
especialmente, à minha e, YOLANDA, ao ROBERTO e à LORENA grandes
amores da minha vida —, aos tios CLAUDIONOR, HILDA e MARGARIDA, à prima
NIA e aos amigos CARLOS CARVALHO e RICARDO VÁSQUES pelo
companheirismo e afeto particularmente nos momentos difíceis que pouco
tempo atrás passei, às queridas amigas MÁRCIA, CLEIER e LARISSA
presenças tão marcantes e construtivas em minha vida.
Agradeço também:
Pela delicadeza e pelo estímulo, àqueles que assistiram à defesa desta
tese, tornando melhor este momento;
Ao médico PAULO NIEMEYER e à sua equipe, exemplos de
competência profissional, que me habilitaram à conclusão deste trabalho
acadêmico;
À YOLANDA GUERRA, orientadora e amiga, pela acolhida carinhosa e
competente e pelo respeito intelectual, fundamentais à realização deste
trabalho;
Aos entrevistados, seja pela generosidade e responsabilidade no
fornecimento dos dados empíricos que viabilizaram esta tese, seja pela
significativa participação, com seus estagiários, do curso que promovi e
coordenei com a minha orientadora de tese, visando à capacitação da equipe
do Serviço Social das instituições aqui focalizadas;
À ex-coordenadora (e equipe) do Serviço Social da Secretaria de
Administração Penitenciária (SEAP) Assistente Social ANA SÍLVIA
VASCONCELOS pelo acesso aos Hospitais de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico para realização da pesquisa de campo e pela valorização deste
trabalho acadêmico.
8
À atual coordenadora (e equipe) do Serviço Social da SEAP
Assistente Social NORMÉLIA SILVA — pela liberação da equipe do Serviço
Social dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico para participar do
referido curso de capacitação, decorrente dos resultados da pesquisa de tese;
Aos professores que compuseram a banca de seleção para o ingresso
no doutorado da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), em 2004 EDUARDO VASCONCELOS, JOSÉ PAULO NETTO,
MYRIAM BARROS e YOLANDA GUERRA;
Aos professores do Programa de Pós-Graduação da Escola de Serviço
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) especialmente,
aos professores CARLOS NELSON COUTINHO, CARLOS MONTAÑO, JOSÉ PAULO
NETTO, JOSÉ Mª GÓMEZ e YOLANDA GUERRA;
Aos professores da Escola de Serviço Social da UFRJ. Todavia, pela
recepção carinhosa e/ou pela possibilidade de um convívio mais estreito,
especialmente, aos professores ANDRÉA TEIXEIRA, CLEUSA SANTOS, FATIMA
GRAVE, ILMA REZENDE, MARCELO BRAZ, MARILÉA PORFÍRIO, Mª MAGDALA SILVA,
NOBUCO KAMEYAMA, RITA DE SSIA LIMA, SARA GRANEMANN, SHEILA BACKX e
SILVINA GALÍZIA;
Aos colegas de turma do curso de doutorado do Programa de Pós-
Graduação da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Especialmente, ESTHER L. HEIN, DULCÉA MARTINS, FÁTIMA
MASSON significativo exemplo de fé na vida e serenidade —, JEFFERSON
MOURA, CELESTE MARQUES, MARILENE COELHO, MÁRIO A. PARDAL, RAIMUNDA
SOARES, SANDRA DO CARMO, SELMA MACHADO, TATIANA REIS e VANESSA
SOUZA;
Aos colegas de trabalho da Universidade do Estado do Rio de janeiro
(Uerj) professores e demais funcionários e a todos os que foram e/ou
serão meus alunos maiores fulcros do meu aprimoramento intelectual.
Especialmente, pelo convívio respeitoso e solidário, aos professores ALBA T.
CASTRO, ANDRÉA GAMA, ALZIRA LOBATO, CLEIER MARCONSIN, ELIANA
MENDONÇA, ELZIANE DOURADO, GISELE LAVINAS, CIA FREIRE, MARY JANE
OLiVEIRA, INÊS BRAVO, MARILDA IAMAMOTO e ROSÂNGELA BARBOSA. Aos
professores MAURÍLIO MATOS e MÔNICA TORRES dedico agradecimento
9
“especialíssimo”, haja vista o estímulo que deram para que eu realizasse o
doutorado;
Aos professores JOSÉ PAULO NETTO e MARILDA IAMAMOTO pelas
participações no meu primeiro exame de qualificação;
Aos professores que participaram do segundo examine de qualificação e
que compõem a banca examinadora final para a defesa desta tese ANA
VASCONCELOS (Uerj), MARLISE V. SILVA (UFRJ), SARA N. GOLDMAN (UFRJ) e
TANIA D. PEREIRA profª aposentada da Universidade Federal Fluminense
(UFF) e Assistente Social em exercício há quase quarenta anos no Sistema
Prisional;
À Assistente Social ELISABETE BORGIANNI e à profª SARA GRANEMANN
(UFRJ) por participarem como suplentes na banca examinadora final desta
tese;
Ao EDVALDO BELIZÁRIO, querido professor de italiano, pelo carinho,
dedicação e competência.
Às queridas amigas LUZIA SOUZA e MIRA MARCONSIN, a primeira pelos
importantes esclarecimentos quanto à língua portuguesa, muitos deles
incorporados nesta tese, e a segunda pela significativa ajuda na transcrição
das fitas cassete;
Aos queridos amigos GUILHERME FERREIRA pela inestimável ajuda para a
elaboração das partes gráfica e digital deste trabalho e TATIANA D. PEREIRA
pela tradução do resumo para língua inglesa.
10
Resumo
FORTI, Valeria Lucilia. Ética e Serviço Social: formalismo, intenção ou ação? Um
estudo nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de
Janeiro.
Esta tese aborda problemas que marcam nossa realidade social, mostrando o
vínculo do que se convencionou chamar “questão social” com o Serviço Social e a
ética. Dessa maneira, expressa compreensão desses elementos em seus nexos
político-econômicos e, em conseqüência, destaca aspectos sobre o planejamento e a
execução de políticas sociais, trazendo à baila também a discussão dos valores que
sedimentam determinadas concepções, determinados projetos e posicionamentos na
sociedade contemporânea, particularizando o campo profissional. Aqui se discutiu a
materialização dos Princípios Fundamentais do Código de Ética dos Assistentes
Sociais brasileiros no cotidiano de trabalho dos Hospitais de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro Princípios progressistas e democráticos,
consoantes com as conquistas da Constituição de 1988 e colidentes com o ideário
neoliberal. São referências que voltadas para os interesses dos trabalhadores
transcendem interesses corporativos, meramente restritos à categoria profissional, e
configuram as linhas fundamentais da ética nesse campo de trabalho como uma forma
particular de expressão da vida moral em sociedade. Para o desenvolvimento da
presente tese, o primeiro capítulo foi dedicado ao estudo da Ontologia do Ser Social.
O segundo voltado á discussão do capitalismo e sua relação com a “questão Social” e
a ética. O terceiro e último capítulo discutiu o Serviço Social, considerando sua gênese
e o percurso da ética na sua trajetória histórica — a partir das alterações inerentes ao
modo de produção capitalista com coadjuvação do projeto de recuperação da
hegemonia ideológica católica. Assim sendo, se buscou apresentar o Serviço Social
como uma profissão permeada por relações de poder, com clara dimensão política, ou
seja, mostrá-lo em seus nexos histórico-sociais, captando o Assistente Social nos
contextos em que esse profissional se insere e atua. Questões centrais neste trabalho
que aborda a possibilidade de materialização de princípios de um código de ética, que
pode ser considerado como referência destacada de um projeto profissional novo e
progressista — o Projeto Ético-Político do Serviço Social.
No desenvolvimento desta tese de doutorado consideramos a relevância das
referências contidas no Código de Ética Profissional os seus Princípios
Fundamentais face ao Projeto Ético-Político do Serviço Social, entendendo que
essas referências, que asseguram o conteúdo do documento, podem ser
materializadas no cotidiano do exercício profissional, em situações concretas, pois é aí
que os sujeitos decidem e agem. Sem pretender desresponsabilizar os sujeitos, pode-
se afirmar que a possibilidade dessas materializações depende também das
condições concretas que incidem na ambiência institucional, no contexto de inserção e
atuação profissionais.
Para concluirmos o presente trabalho, analisamos os dados da nossa pesquisa
com Assistentes Sociais da área sociojurídica, ou seja, profissionais dos Hospitais de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro. Campo que foi
selecionado por contar com exígua produção acadêmica, não obstante merecer ser
observado pela complexidade e relevância de suas características. Ou seja, um
âmbito de ação do Serviço Social que avaliamos poder ser apreciado como um
“campo-síntese”. Local em que, face à complexidade do seu objeto de intervenção, se
pode verificar a interseção de diferentes faces da política social o que o torna, no
nosso entender, parâmetro para outros estudos. Por fim, pensamos que este trabalho,
pelos aspectos que toca, não seja apenas interesse do Assistente Social mas de
diferentes estudiosos e/ou profissionais.
11
Abstract
FORTI, Valeria Lucilia. Ethics and Social Work: formalism, intention or action? A study
in the Rio de Janeiro Psychiatric Treatment and Custodial Statehood Hospitals
This thesis approaches problems that mark our social reality, exposing the link
between the so called “social question” with the Social Work and the ethics. In this way,
expresses understanding of these elements in its politician-economic nexuses and
consequently detaches social policies planning and execution aspects, bringing to the
scene also the values debate that establishes some determinate conceptions,
determinate projects and positions in the contemporary society, in particulate about the
professional field. Here the Brazilian Social Workers Ethics Code´s Basic Principles
materialization in the daily work of the Rio de Janeiro Psychiatric Treatment and
Custodial Statehood Hospitals was argued – advanced and democratic principles,
which expresses the 1988
th
Federal Constitution conquests against the neoliberal
ideology. They are references that come toward to workers interests exceeding
corporative interests, more restricted to the professional category and configure the
fundamental ethics lines from this labour’s field as a society’s moral life singular
expression mode. For the present thesis development, the first chapter was dedicated
to the social being’s ontology study. The second chapter is about the capitalism debate
and its relationship with the “social question” and the ethics. The third and last chapter
argued the Social Work, considering its geneses and the passage of the ethics in its
historical trajectory from the capitalism’s production mode’s inherent modifications
beside the catholic’s ideological hegemony recovery‘s project. Thus the study searched
to present the social work as profession marked by power relations, with clear politics
dimensions. That is, showing it in its social-historical nexuses, catching the social
worker’s professional insertion and practice contexts. Central questions in this study
that approach the ethics code principles materialization possibility that can be consider
as a new and advanced professional project detached reference the ethical and
political social work project. In this PhD theses development we consider the relevance
of the Professional Ethic Code’s references its basic principles face to the social
work ethical and political project, understanding these references that assure the
document contents, only can be in the daily professional practice materialized
considering concretes situations, when the agents decide and act. Without intending to
denial the agents responsibility it can be affirmed that these materializations also
depends on the concrete conditions that impact the institutional ambience, in the
professional insertion and performance context. To conclude the present study, we
analyze our research’s data realized with the Social Workers from the social and law
work area, that means, professionals that work in the Rio de Janeiro Psychiatric
Treatment and Custodial Statehood Hospitals. The research field was selected for its
exiguous academic production, not enough it deserves to be observed for its complex
and relevant characteristics. That means a performance ambience that can be
appreciated as a “synthesis field”. Place where, face to the complexity intervention
object, it can be verified the different social policies’ intersection – becoming references
for other studies. Finally, we think that the present study, for its aspects, is not limited
to the social workers interests, but also either to other academicals or to professionals.
12
Sumário
Introdução....................................................................................................... 13
Capítulo I – O Ser Social e a Ética ................................................................ 26
1.1Considerações iniciais sobre ontologia .............................................. 26
1.2 Ontologia do Ser Social e a Ética........................................................ 50
Capítulo 2 - O capitalismo pretende o controle da totalidade?!................. 77
2.1- Considerações acerca do modo de produção capitalista................ 77
2.2 Focalizando questões da realidade brasileira.................................. 105
2.3 Considerações sobre Ética e Economia........................................... 128
2.4 Criminalização da pobreza................................................................. 153
Capítulo 3 - Ética e Serviço Social.............................................................. 168
3.1 Breve histórico.................................................................................... 168
3.2 O Cotidiano Profissional e a Referência dos Princípios do Código de
Ética do Assistente Social ....................................................................... 213
3.2.1 Considerações acerca dos Hospitais de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico no estado do Rio de Janeiro........................................... 214
3.2.2 Considerações acerca do Serviço Social no Sistema Penal do
estado do Rio de Janeiro: a inserção do “pessoal do social” .......... 235
3.2.3 Os Princípios do Código de Ética Profissional vigente e a
questão da sua materialização no trabalho cotidiano dos Assistentes
Sociais dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do
Estado do Rio de Janeiro ..................................................................... 247
Considerações Finais .................................................................................. 364
Bibliografia.................................................................................................... 381
Anexo - Roteiro para as entrevistas com Assistentes Sociais dos
Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de
Janeiro. ......................................................................................................... 391
13
Introdução
Esta tese é fruto de uma vida que tem grande parte de sua trajetória
dedicada ao exercício profissional na área de Serviço Social, seja atuando em
instituição como Assistente Social, seja no campo acadêmico, como docente
na Faculdade de Serviço Social; mais precisamente, são trinta anos de
exercício nessa área profissional. Podemos dizer, de maneira geral, que se
trata de um percurso em que contrastam dores e alegrias, algumas poucas
(mas apesar disso) certezas, muitos desafios e inquietações e inúmeras
dúvidas, muitas delas aqui colocadas, bem como, logicamente, parte das
certezas.
Nascemos e vivemos na sociedade brasileira, o que significa dizer que
escolhemos e exercemos nossa profissão em uma das organizações sociais
que compõem o bloco do chamado capitalismo periférico. Portanto, sem o
intuito de destacarmos particularidades, podemos dizer que nosso exercício
profissional é efetivado em uma realidade na qual a exploração econômica dos
trabalhadores, a concentração de renda, a violência contra as chamadas
“minorias” homossexuais, negros, índios etc. estão presentes no
cotidiano e vêm paulatinamente sendo intensificadas e se tornando
banalizadas. Assim como ocorre com os maus-tratos e/ou as matanças de
crianças pobres que, sem qualquer proteção social, residem nas ruas dos
centros urbanos e cometem infrações também se observa a violência contra
outras pessoas pobres e inimputáveis, como os doentes mentais, a exemplo
daqueles que foram focalizados
1
neste trabalho basicamente, aqueles
1
Devido à nossa área de interesse de estudo, esta tese focaliza em parte os Internados dos Hospitais de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro.
14
pertencentes às classes populares —, que, assim como as crianças que
citamos, podem perambular pelas ruas das cidades. Enfim, podemos dizer que
a banalização da vida em nossa sociedade — ora nos limitamos à vida humana
—, se já era algo que merecia ser observado, tornou-se escancarada na
sociabilidade contemporânea, na sociedade delineada pela globalização, pela
“onda neoliberal”, cujo ideário propagado confronta-se com a lógica dos direitos
sociais e das políticas sociais, pois os valores prioritariamente difundidos
assentam-se na desigualdade, no individualismo e na concorrência. Portanto,
uma sociedade que sustenta a possibilidade de substituição de políticas sociais
pelas ações do chamado Terceiro Setor, seus projetos sociais e suas idéias de
relevância da iniciativa privada, civismo, solidarismo
2
etc..
Em nossa sociedade, o fenômeno da alienação focalizado aqui no
sentido de tornar o outro um estranho, o identificar o outro como um ser
igualmente moral, não identificar o outro como sujeito com igualdade de direitos
mostra-se proporcional ao vulto que toma a expansão das relações
mercantis, as quais vêm sendo generalizadas em consonância com a
mundialização do capital no País e atingem os espaços mais profundos, mais
recônditos da vida social costumam, assim, influenciar desde os aspectos
estruturais até os interpessoais. São relações que atravessam o trabalho e
seus desdobramentos imediatos, tais como a produção, a distribuição de bens
e serviços, mas afetam igualmente o Estado, a cultura e o cotidiano dos
cidadãos. Então, podemos experimentar, em escala menor, relações
desqualificadas nos planos familiar e interpessoal e uma espécie de
insensibilidade ou apatia em relação ao que é do outro e da coletividade e, em
2
Concepção de solidariedade que se limita às relações interpessoais e, obscurecendo a possibilidade de
apreensão das contradições da sociedade capitalista, descontextualiza os sujeitos envolvidos.
15
escala mais ampla, conviver com a atrofia do Estado no sentido das políticas
sociais e a conseqüente perda de direitos sociais, configuração de alteração no
quadro para a atuação de profissionais como os que se dirigem ao trato da
“questão social”, como é o caso do Assistente Social.
3
Um profissional,
trabalhador assalariado, que surge em decorrência de necessidades típicas de
certa fase do capitalismo a era dos monopólios e que se volta para a
“questão social” por meio das políticas sociais e que, apesar de certas
particularidades, está, como os demais trabalhadores, sujeito às injunções
impostas pela conjuntura definida pela crise contemporânea do capital.
Por meio do exposto pensamos esclarecer, em linhas gerais, as razões
de nosso interesse por essa profissão, pelo estudo da ética e pelo rumo que
tomamos na realização deste estudo. Ou seja, pensamos ter deixado claro
nosso interesse pelos problemas que marcam nossa realidade social e o nosso
conseqüente vínculo com o estudo do que se convencionou chamar “questão
social”, o Serviço Social e a ética, entendendo que estudar esses elementos
significa buscar compreendê-los em seus nexos político-econômicos,
entendendo também a importância de captar como vêm ocorrendo o
planejamento e a execução de políticas sociais e a discussão dos valores que
sedimentam determinados conceitos, determinados projetos e posicionamentos
políticos e econômicos. Ao nos dedicarmos ao desenvolvimento desta tese, a
qual discutiu a materialização dos Princípios Fundamentais do Código de Ética
dos Assistentes Sociais no exercício cotidiano de trabalho nos Hospitais de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro, entendemos
que a ética profissional é uma forma particular de materialização ou, de outro
3
Em todo este trabalho, utilizamos letra maiúscula ao nos referir a diferentes categorias pela importância
que têm neste contexto: Assistente Social, Internado, Instituição, Código de Ética dos Assistentes Sociais
(vigente) etc.
16
modo, de expressão da vida moral em sociedade. Nela encontramos o conjunto
de valores que fundamentam e legitimam a profissão, o rumo social escolhido
por determinada categoria profissional frente às demais alternativas, aos
diferentes projetos em disputa na sociedade. Cabe aos estudos nesse âmbito
apreender os nexos entre as profissões e as diferentes esferas da vida em
sociedade, considerando-se os diversos projetos societários a ética
profissional é uma forma particular de materializar ou de expressar a vida moral
em sociedade. Além disso, temos que salientar que não entendemos a ética
como um “código de castração” ou como algo que meramente sirva para
cercear como podem querer fazer crer, por exemplo, certas posições
assentadas em bases doutrinárias e/ou religiosas. A ética, como basicamente
qualquer outra produção humana/social, é um campo do conhecimento que
origem a (e se assenta em) idéias e concepções que indicam determinadas
direções sociais e históricas, condicionadas em suas alternativas pela estrutura
econômica e política na vida social.
Com base em Iamamoto (2007), pode-se dizer que o Serviço Social
participa de um mesmo movimento que possibilita a continuidade da sociedade
de classes e cria as possibilidades para a sua transformação. A sociedade é
atravessada por projetos sociais distintos e aí se encontra o solo sócio-histórico
para a construção de projetos profissionais também diversos, vinculados aos
projetos sociais mais amplos para a sociedade. Dessa maneira, pode-se inferir
que o Serviço Social é uma profissão permeada por relações de poder, com
clara dimensão política, o que, como bem esclarece a autora, não é
decorrência de mera intenção pessoal do Assistente Social, pois vai depender
dos condicionantes histórico-sociais, dos contextos em que esse profissional se
17
insere e atua. Essas foram questões centrais que nos impulsionaram a realizar
esta tese, acrescidas do nosso compromisso e responsabilidade profissionais
de transmissão, mesmo que parcial, do que pudemos aprender com a
experiência de quase 20 anos ininterruptos de trabalho como Assistente Social,
das constantes e relevantes indagações de nossos alunos, dos debates que
com eles travamos e dos debates e embates que em geral são travados quanto
à possibilidade de materialização dos Princípios do digo de Ética
Profissional e, por conseguinte, do Projeto Ético-Político do Serviço Social.
Cabe citarmos aqui também que alguns estudos acerca de trabalhos no
campo institucional, principalmente aqueles cujo tom crítico é ferrenho mas
nada propõem ou realizam para o aprimoramento destes trabalhos e/ou para a
qualificação dos profissionais que o desenvolvem, tampouco possibilitam
vínculos com os diferentes sujeitos envolvidos, podem trazer prejuízos
importantes. São realizações que, comumente, geram impactos e desestímulo
aos profissionais e, desse modo, contribuem para intensificar a desqualificação
da intervenção profissional no campo, uma vez que contribuem para afastá-la
ainda mais do necessário vínculo com a pesquisa e com o rigoroso fundamento
teórico. Ou seja, o estudos que, mesmo que se dirijam ao “campo
operacional” — o que a princípio significa sua valorização e conseqüente
enriquecimento —, paradoxalmente tendem a provocar ou a reforçar a
“separação entre a teoria e a prática”. Dessa maneira, melhor dizendo, por
essa compreensão, buscamos tomar rumo distinto disso.
Voltando nosso foco para o Serviço Social, pode-se dizer que teve sua
gênese a partir das alterações inerentes ao modo de produção capitalista com
coadjuvação do projeto de recuperação da hegemonia ideológica católica. É
18
profissão cuja origem se encontra no tecido da ordem societária do capitalismo
monopolista, haja vista a expressão da “questão social” à época e as
especificidades da divisão social do trabalho que foram desencadeadas
naquele período da História. Os Assistentes Sociais foram agentes requisitados
pelos interesses burgueses, sendo suas ões dirigidas à população
subalternalizada. No Brasil, o Serviço Social foi profissão que surgiu na década
de 1930, contudo sua institucionalização ocorreria anos mais tarde.
Interessa-nos porém destacar que, durante um longo período de seu percurso
histórico, essa profissão assegurou a hegemonia de projetos que não punham
em questão a ordem capitalista — se ocorresse, era superficialmente ou,
melhor, muitas vezes limitando-se a um anticapitalismo romântico.
Em decorrência do declínio de um período de crescimento da economia
capitalista mundial, assegurado desde a Segunda Guerra Mundial, acrescido
da Revolução Cubana — com sua ameaça pelo ideário libertário — e da
mobilização da juventude norte-americana em torno da guerra do Vietnã, além
de outros movimentos de tons críticos que reverberaram em questionamentos
da lógica burguesa, atingindo em dimensões e patamares diferentes e
específicos os países da América Latina nos quais o Assistente Social contava
com um nível de inserção significativa na estrutura sociocupacional, emergiram
no Serviço Social indagações quanto à sua funcionalidade. Ou seja, a
ambiência de contestação daquele período, que repercutiu em diferentes
práticas profissionais historicamente ligadas à ordem burguesa, incidiu também
no Serviço Social. Surgiu daí um movimento crítico que, apesar de não poder
ser observado como unidimensional, é chamado de Movimento Latino-
Americano de Reconceituação do Serviço Social. No Brasil, esse Movimento
19
viabilizou que uma parcela dos profissionais absorvesse novos aportes
teóricos. Em conseqüência, houve incorporação na profissão de novas
concepções de Homem, sociedade e Estado alicerçando um diferente
referencial teórico e ético. Assim, a partir de 1986, como desdobramento do
Movimento de Reconceituação, temos o primeiro Código de Ética Profissional
do Assistente Social que marca a busca de rompimento com o
conservadorismo na profissão. Como veremos nesta tese, essa afirmação não
significa isenção de equívocos nesse percurso, mas apenas consideração
histórica da importância que tem esse novo rumo na trajetória dessa profissão,
a qual, até então, não havia assumido um projeto substancialmente crítico da
sociedade vigente. Em 1993, tivemos o último Código de Ética, que buscou
ampliar e garantir as conquistas profissionais impressas no Código anterior.
Pode-se dizer que com esse último digo buscou-se depurar e ampliar as
referências para o exercício profissional que se encontravam no Código
anterior. O Código representa um dos elementos do atual Projeto Profissional,
como discutiremos no corpo do presente trabalho. É, a nosso ver, um elemento
destacado do Projeto Ético-Político do Serviço Social, uma vez que orientação
para ação profissional que revela, por meio dos seus Princípios, os
fundamentos dos compromissos assumidos pelo Serviço Social brasileiro nas
últimas décadas.
Dessa maneira, para a realização desta tese de doutorado
consideramos a relevância das referências contidas no Código Profissional
face ao Projeto Ético-Político do Serviço Social os seus Princípios
Fundamentais. Entendemos que essas referências, que asseguram o conteúdo
do documento, podem ser materializadas no cotidiano do exercício
20
profissional, em situações concretas, pois é, aí, nesse cotidiano, que os
sujeitos decidem e agem. Isto significa, que para pensarmos na efetivação
dessas referências, temos que ter clareza de que elas não dependem apenas
das intenções pessoais do profissional, mas das condições sócio-históricas.
Sem pretender desresponsabilizar os sujeitos, pode-se afirmar que a
possibilidade dessas materializações depende também das condições
concretas que incidem na ambiência institucional, no contexto de inserção e
atuação profissionais. E se assim não considerarmos, e não efetuarmos
investigações de campo, poderemos cair nas armadilhas do formalismo que
destituí de importância a materialidade das análises no campo da ética, como
se pudéssemos processar essas análises na lógica do dever ser”,
obscurecendo os seus elementos materiais, transformando o campo da ética
em algo prescritivo desvinculado da realidade ou colocando a ética no patamar
idealista que sustenta a ética da intencionalidade, como se a intenção do ato
bastasse como critério decisivo.
Para a realização deste trabalho elegemos os Hospitais de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico do Rio de Janeiro, por serem um campo de ação do
Serviço Social que conta com exígua produção acadêmica,
4
não obstante a
sua complexidade e a relevância de suas características, as quais, a nosso ver,
os tornam parâmetros para outras apreciações ou estudos desse gênero, e nos
fazem selecioná-los como campo de investigação. Ou seja, elegemos para
captação de elementos empíricos um campo de ação do Serviço Social que
evidencia a interseção de diferentes faces da política social. Pode-se, com isso,
4
Como produção recente, salvaguardada nossa possibilidade de erro, apenas duas dissertações de
mestrado, uma apresentada à PUC do Rio Grande do Sul, a qual fizemos referência nesta tese, e a outra
apresentada à PUC do Rio de Janeiro, em 2006, de autoria de Andréa S. Medeiros, intitulada Criminosas,
loucas e perigosas. Um estudo de representações sociais sobre internas nos hospitais de custódia e
tratamento psiquiátrico do estado do Rio de Janeiro.
21
dizer que se mostra como um tipo de “campo-síntese” — mais especificamente,
esse campo contempla a política penitenciária e a política de saúde (mental) —
e abarca um contingente populacional significativamente estigmatizado, na
medida em que representa a relação de aspectos como pobreza, transtorno
mental e criminalidade. É população tomada como uma ameaça para a
sociedade, pois, além de ser considerada improdutiva no mundo do trabalho,
traz à baila a associação do transtorno mental com o delito, retratando
diferentes nuanças da “questão social”. Todavia, diante de tudo isso, importa
destacar que se trata de um segmento populacional inimputável e que
necessita de política social fato irrefutável até para o “senso comum”, uma
vez que estamos nos referindo a pessoas oficialmente portadoras de
enfermidade mental e que para retornarem ao convívio à sociedade — fora dos
muros institucionais requerem tratamento. Além de estarmos focalizando
pessoas portadoras de transtorno mental oficialmente diagnosticado, trata-se
de pessoas que parecem merecer um tratamento “bem estruturado”, pois, pela
própria “lógica jurídico-social”, o pessoas doentes que não têm
responsabilidade sobre o ato violento que cometeram e que, por isso, estão
sob a guarda do Estado em uma instituição específica. Ou seja, até para o
senso comum fica claro que esse tipo de Instituição não pode prescindir da
prestação de tratamento de saúde, uma vez que a ausência de tratamento
poderá redundar em prejuízos (futuros) para a sociedade e, lógicamente, para
as próprias pessoas internadas. Esses argumentos inviabilizam a hipótese de
que essas pessoas sejam incluídas no rol daqueles sujeitos que, em
decorrência de seus atos de violência, são às vezes, equivocadamente,
considerados merecedores apenas de punição, ou seja, destituídos de direitos.
22
Aqui, portanto, referimo-nos a sujeitos institucionalizados sob a guarda do
Estado com direito à política social. Isto define a necessidade (e a
relevância) do trabalho do Assistente Social, o qual tem como fundamento as
referências para o exercício profissional constantes no seu Código de Ética
Profissional.
A esse respeito, é importante destacarmos que, como alegou Elisabete
Borgianni, ex-presidente do Conselho Federal de Serviço Social, em entrevista
publicada no jornal do Conselho Regional,
5
os avanços contidos no Projeto
Ético-Político do Serviço Social, expressos no Código de Ética vigente e em
outros marcos normativos da profissão estão na contramão das diretrizes
impostas pela atual conjuntura, a qual, muitas vezes, impõe condições de
trabalho adversas para o Assistente Social, a exemplo do Sistema
Penitenciário.
Dessa maneira, considerando que o Serviço Social participa do mesmo
movimento que permite a continuidade ou a superação da sociedade em que
vivemos; considerando que o Serviço Social conta com profissionais que
podem estabelecer estratégias político-profissionais visando ao reforço dos
interesses das classes subalternas; considerando os limites do formalismo, do
idealismo e do critério da intencionalidade no campo ético e salientando a
dissonância das diretrizes do Projeto Ético-Político do Serviço Social e, por
conseguinte, dos Princípios Fundamentais do Código de Ética atual diante do
contexto [da globalização] neoliberal e suas repercussões no âmbito de
trabalho dos Assistentes Sociais, discutimos na presente tese, como já
exposto, a materialização desses Princípios Fundamentais no cotidiano do
5
Serviço Social e Consolidação do Projeto Ético-Político. IN: Práxis: Conselho Regional de Serviço
Social - 7 ª Região, nº 39, Nov. – Dez. de 2006, p. 4.
23
exercício profissional dos Assistentes Sociais dos Hospitais de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico do Rio de Janeiro, partindo das entrevistas realizadas
com esses profissionais.
Utilizamos o material possibilitado pelas entrevistas e pelas observações
realizadas em visitas ao local visando a captar as contradições e os conflitos
expressos no cotidiano institucional, as condições de trabalho no local e as
palavras dos entrevistados como fenômenos ideológicos, mergulhamos na
elucidação de aspectos referentes ao campo e à sua relação com a estrutura
social. Lógico que para isso contamos também com os recursos acumulados
por meio de nossa experiência profissional e com pesquisa bibliográfica
ampliada. Assim sendo, desvendamos a dimensão das idéias, da consciência
dos profissionais entrevistados, dos seus valores e da ética na sua profissão —
ou seja, pudemos em parte analisar a relação da expressão do entrevistado
com a vida social e com o Serviço Social, nos aproximando do nosso objeto de
estudo.
A exposição desta tese será feita em três capítulos acrescidos de
considerações finais, bibliografia e (um) anexo, onde se encontra o roteiro
utilizado para as entrevistas — todas realizadas pela autora desta tese.
No Capítulo 1, tecemos considerações sobre Ontologia. Tratamos este
tema à luz de uma perspectiva histórica, buscando traçar uma síntese que
comportasse sua origem, sua relação com a metafísica clássica e seu perfil no
campo marxista ou seja, a superação que o campo marxista operou no
sentido ontológico. Por ser a materialização de princípios éticos o nosso objeto
de investigação, não poderíamos prescindir da discussão da Ontologia do Ser
Social, que é alicerce para o estudo da ética, pois supõe argumentos
24
fundamentais sobre a constituição do mundo humano (genérico) e sobre a
questão da sociabilidade.
No Capítulo 2, considerando os fundamentos ontológicos
problematizados, discutimos a sociedade burguesa solo histórico do Serviço
Social —, focalizando seu percurso histórico, suas peculiaridades em terras
brasileiras, a crise contemporânea do capital e algumas de suas repercussões
na vida em sociedade. Prosseguindo, e em consonância com o nosso objeto de
estudo discutir a materialização de princípios éticos no cotidiano do
exercício profissional do Assistente Social, fato que supõe considerar as
condições de trabalho que se definem em determinadas condições sócio-
históricas—, abordamos a polêmica relação entre a ética e a economia, como
também problematizamos a “questão social”, só que aqui enfocada por meio da
discussão do fenômeno da criminalização da pobreza, algo que não é novo
mas que, a nosso ver, mostra-se hoje diferente, pela insólita proporção que
assume.
No Capítulo 3, iniciamos por uma visão panorâmica da ética no Serviço
Social, uma discussão teórica que, além de nos permitir compreender a
profissão de modo geral, nos possibilita entender a origem e o rumo social do
atual Projeto Ético-Político do Serviço Social e, portanto, do Código de Ética
Profissional e seus Princípios Fundamentais observando os significativos
avanços que esta profissão experimentou, seja no plano intelectual, seja em
nível organizativo nas últimas três cadas. Em seções posteriores,
caracterizamos a Instituição, e para isso fizemos algumas considerações sobre
a loucura e o crime. Por fim, e em decorrência do conteúdo tratado até então,
mostramos e analisamos o material de campo selecionado e apresentamos as
25
considerações finais. Nestas objetivamos destacar que materializar os
Princípios do Código de Ética dos Assistentes Sociais significa não aceitarmos
a abstração no campo ético ou seja, significa trabalharmos no cotidiano
profissional norteados por estes Princípios cujas orientações humanizam a
vida, em vez de nos limitar, como explicita Iamamoto (2007, p. 227), à defesa
de interesses corporativos voltados unicamente para a obtenção de status da
categoria profissional na sociedade. Estes Princípios Fundamentais se
relacionam com o nosso atual Projeto Ético-Político que, segundo a autora, não
obstante defender prerrogativas profissionais e de trabalhadores
especializados, tem dimensão universal, estabelecendo uma orientação para a
maneira de operar o trabalho cotidiano que o impregna de interesses coletivos,
possibilitando que isso se torne um momento de afirmação da teleologia e da
liberdade na práxis social.
26
Capítulo I – O Ser Social e a Ética
1.1Considerações iniciais sobre ontologia
O que é a realidade?
Essa questão é comumente considerada o fulcro original da filosofia. A
propulsora do movimento de busca da verdade (alétheia), a qual suplanta as
explicações mágicas e as opiniões (dóxa) que são instáveis, mutáveis e
efêmeras. Inicialmente, a filosofia constitui um conhecimento racional acerca do
mundo e das causas de sua forma, de suas repetições, transformações, origem
e término. A procura de explicação racional para o cosmo o mundo
ordenado — suscitou a filosofia e caracterizou-a, a princípio, como investigação
dirigida à estrutura do universo, ou seja, como cosmologia. E a preocupação
com o devir foi o que levou os pensadores à distinção entre a aparência (do
mundo) e a essência.
Desse modo, conforme Chauí, a cosmologia pode ser entendida como
A busca do princípio que causa e ordena tudo quanto existe na
Natureza [...] e tudo quanto nela acontece [...] busca de uma
força natural perene e imortal, subjacente às mudanças,
denominada pelos primeiros filósofos physis (1995, 209).
A filosofia nasce no contexto da pólis, da Cidade-Estado grega,
superando as formulações mágicas dos Mestres da Verdade da Grécia arcaica
(poetas, adivinhos e reis-de-justiça) que não mais davam conta de explicar
satisfatoriamente a realidade. Surge como forma de diálogo humano, racional,
27
em busca da verdade, que, a princípio, se dirige à Natureza e, paulatinamente,
em função das grandes mudanças econômicas, sociais e políticas da pólis,
volta-se fundamentalmente para a discussão das instituições, dos valores, da
ética, da política, por constituírem focos de preocupação na vida da Cidade.
No período arcaico, quando nasce a filosofia, o os mitos que
não dão conta de explicar satisfatoriamente a realidade, e a
filosofia ocupará o lugar que eles não conseguem preencher
[...].
No período clássico, ao contrário, as grandes mudanças
sociais, econômicas e políticas que consolidaram a pólis
tornaram questionáveis e problemáticos os ensinamentos da
tradição [...] (CHAUÍ, 2002, p. 50).
Embora recorrente e proeminente no âmbito filosófico, a questão que
abre esse texto apresenta-se diferentemente ao longo da História, seja em
decorrência da apreciação do grau de sua pertinência/importância, seja pelos
rumos intelectuais que tomam os estudiosos no intuito de respondê-la. Como
explicitaremos, essa questão é também a fonte do que ora designamos
ontologia: “o estudo ou conhecimento do Ser, dos entes ou das coisas tais
como são em si mesmas, real e verdadeiramente” (ibid., p. 210).
Por volta do ano 50 a.c., Andrônico de Rodes recolheu e classificou
obras de Aristóteles que haviam ficado dispersas e perdidas e, por se tratarem
de um conjunto de escritos que se localizava após os tratados sobre a física ou
sobre a natureza, as denominou de Metafísica. Isso porque a palavra grega
Meta quer dizer depois de e a palavra Ta significa, em grego, aqueles. Desse
modo, esses escritos, que foram denominados pelo seu autor Aristóteles
de Filosofia Primeira, uma vez que decorrentes de estudos acerca do “ser
enquanto ser”, tornaram-se conhecidos como Metafísica.
Não obstante, o filósofo alemão Jacobus Thomasius, no século XVII,
considerou que a palavra ontologia seria a mais adequada para designar os
28
estudos da Filosofia Primeira, pois ao defini-la, Aristóteles explicitou que se
referia ao ser das coisas, a ousia, ou seja, a essentia em latim, a essência.
Portanto, Thomasius, entendendo que Aristóteles definira essa sua obra como
o estudo do ser das coisas, avaliou que nela encontrava-se a busca da
essência de um ente ou de uma coisa, ou seja, o estudo da ousia, que
possibilita o alcance do ser real e verdadeiro de um ente ou de uma coisa, o on
íntimo e perene.
Metafísica, por conseguinte, passaria, no entender do referido filósofo, a
definir apenas a localização da parte da obra aristotélica que se encontrava
depois dos escritos sobre a sica e era voltada para o “estudo do ser enquanto
ser”, e a palavra ontologia nomearia o próprio estudo. Isso, porém, não
expressava nem passou a significar entendimento majoritário/unânime a esse
respeito, pois a palavra metafísica foi a mais consagrada pela tradição
filosófica, em função de Aristóteles ter feito referência também a Filosofia
Primeira como estudo dos primeiros princípios ou causas primeiras de todos os
seres ou de todas as essências, isto é, algo que é condição de todos os outros,
os antecede. O que trazia a idéia de antecedência como sinônimo de
superioridade, como um estar além do que vem depois além das coisas
físicas e naturais , sendo sua condição de existência e de conhecimento, em
consonância com o que quer dizer a palavra meta; daí resultou ser também, e
majoritariamente, tida como pertinente a utilização do termo metafísica.
Metafísica, nesse caso, quer dizer: aquilo que é condição e fundamento de
tudo o que existe e de tudo o que puder ser conhecido” (id., 1995, p. 210).
29
Apesar da referência a Aristóteles, Parmênides de Eléia é considerado
marco na passagem da cosmologia à ontologia, pois filósofo que abre
discussão sistemática acerca da questão do “Ser e Não-Ser”.
Em verdade, Heráclito de Éfeso, com suas formulações acerca da
alétheia (verdade), do lógos (razão) e do devir (mudança - o mundo como devir
incessante, eterno -), e Parmênides podem ser vistos como os fundadores da
filosofia, por terem ambos trazido à baila questões, respostas e impasses que
definiram os rumos das reflexões filosóficas nos séculos posteriores. Quanto à
emersão da ontologia, o pensamento parmenidiano tem posição destacada por
apontar como ilusórias as formulações restritas aos estudos do cosmos
(cosmologia), uma vez que dedicadas ao devir (Não-Ser) e não ao imutável, ao
eterno, ao pleno, ao indivisível, ao visível apenas para o pensamento
(inacessível aos sentidos) e sempre idêntico. Ou seja, formulações não
dedicadas ao que esse pensador entende como Ser (verdadeiro), em
contraposição ao pensamento de Heráclito, que defendia o Ser como unidade e
multiplicidade, eternidade e devir, luta dos contrários.
Com esse pensamento, a Escola Eleata, contrapondo-se à cosmologia,
propagou a concepção de Ser como identidade, não-transformação, não-
contradição, em contraposição ao Não-Ser — o nada.
A esse respeito cabe destacar, a título de ilustração, trechos de um dos
poemas de Parmênides dedicado ao Ser:
Que o ser não é engendrado, e também é imperecível:
Com efeito, é um todo, imóvel, sem fim e sem começo.
Nem outrora foi, nem será, porque é agora tudo de uma
só vez, uno, contínuo. Que origem buscarás para ele?
Como e onde teria crescido? Do não-ser, não te permito
Dizê-lo nem pensá-lo: não é possível dizer o que não é
[...]
E como poderia existir o ser no futuro? E como poderia
nascer?
30
Se nasce, não é; e tampouco é, se é para ser no futuro.
[...]
Nem existe não-ser que lhe impeça alcançar a plenitude
Nem pode ser ora mais pleno, ora mais vazio porque é
todo inteiro inviolável, igual a si mesmo em todas as
partes [...].
6
Como dissemos, as formulações de Heráclito e Parmênides foram
fundamentais para a origem e o percurso da filosofia. Delas decorreram
inúmeras tendências filosóficas e, como explica Chauí,
Os que vieram depois de Heráclito e Parmênides já não podiam
aceitar que a razão ou o pensamento o lógos coincidisse
diretamente com a experiência sensível, como supunham os
que haviam filosofado antes deles. Seja para afirmar a unidade
múltipla em movimento, seja para afirmar a unidade única
imóvel, Heráclito e Parmênides haviam cravado um fosso entre
a realidade das coisas e a mera aparência [...]. A questão
deixada é como manter a idéia de que o ser é o ser verdadeiro
porque sempre idêntico a si mesmo (pois o que permanece
idêntico a si mesmo pode ser pensado e dito) e, ao mesmo
tempo, demonstrar que a multiplicidade e o movimento, a
diferença entre as coisas e a sua transformação também são
verdadeiras? [...].
A tarefa dos sucessores realizou-se quebrando o postulado
fundamental da cosmologia jônica e itálica e da ontologia
eleata: a unidade da phýsis. Doravante, a phýsis será
concebida como pluralidade originária. Assim como a pólis
democrática [...] é constituída pela diversidade e pluralidade de
seus cidadãos [...] (2002, p.106).
Platão identificou o mundo material, sensível, como o mundo das
aparências. Um mundo mutável, no qual não poderíamos encontrar as
verdades eternas, o verdadeiro Ser, que, assim como em Parmênides, é por
ele entendido como — uno, imutável, perene, idêntico a si mesmo, inteligível.
Assim sendo, em sua filosofia coube a existência de dois mundos, o
Mundo Sensível e o Mundo das Idéias. O primeiro, o que flui e é imperfeito, é
uma cópia deformada do Mundo das Idéias; portanto, onde se encontram as
aparências, o Falso-Ser o mundo do Não-Ser, mas não como o nada de
6
Trechos extraídos de Marilena Chauí, Introdução à História da Filosofia, 2002, p. 92 – 93.
31
Parmênides e sim como Pseudo-Ser. O outro é o mundo das essências o
mundo do Ser, o superior, o verdadeiro. Portanto, à filosofia cabe
[...] passar das cópias imperfeitas aos modelos perfeitos,
abandonando as imagens pelas essências, as opiniões pelas
idéias, as aparências pelas essências. O pensamento deve
passar da instabilidade contraditória das coisas sensíveis à
identidade racional das coisas inteligíveis, à identidade das
idéias que são a realidade, o ser, o to on (CHAUÍ, 1995, p.
213).
Desse modo, em Platão, a ontologia é a própria filosofia:
[...] conhecimento do Ser, isto é, das idéias, é a passagem das
opiniões sobre as coisas sensíveis mutáveis rumo ao
pensamento sobre as essências imutáveis. Passar do sensível
ao inteligível tarefa da filosofia é passar da aparência ao
real, do Não-Ser ao Ser (ibid., p. 217).
Como observamos no platonismo, a idéia é preeminente, é essência, é a
realidade, uma entidade ontológica.
7
Aristóteles difere de Platão em sua
filosofia, discorda da dualidade platônica, posto que não considera o mundo
sensível como mundo das aparências, das ilusões. Segundo ele,
Platão teria ficado tão impressionado com o mobilismo
heraclitiano que teria admitido como inquestionável o fluxo ou o
devir incessante [...], uma ausência de identidade, unidade e
permanência tais que impossibilitariam uma ciência das coisas,
ciência que seria encontrável colocando fora deste mundo
um outro, onde Heráclito não tivesse razão (CHAUÍ, 2002, p.
355).
Aristóteles entende que o mundo sensível é real e a multiplicidade dos
seres e o devir são a essência. No seu pensamento, apesar de a matéria ser a
causa que singulariza o ser, a forma é o que de universal no indivíduo
(sensível), a forma determina a identidade da coisa (ser ele e não o outro), ou
seja, determina a essência da coisa, que é encontrada na própria coisa. O
7
Quanto à concepção de Idéia no pensamento de Platão, é interessante consultar Marilena Chauí em
Introdução à História da Filosofia, 2002. nessa obra interessantes considerações acerca desse tema
que, em conseqüência das polêmicas que suscita, é avaliado como uma difícil e interminável ou
interminada discussão.
32
pensamento é via de distinção intelectual entre a materialidade e a forma, ou
melhor, entre o singular e o universal.
[...] Aristóteles considera que a essência verdadeira das coisas
naturais e dos seres humanos e de suas ações não está no
mundo inteligível separado do sensível [...]. As essências [...]
estão nas próprias coisas, nos próprios homens, nas próprias
ações e é tarefa da filosofia conhecê-las ali mesmo onde
existem e acontecem (id., 1995, p. 217).
Não obstante, se Aristóteles evidencia discordância com o pensamento
de Platão acerca do mundo sensível, dele se aproxima no que se refere à
existência de uma essência perfeita e imutável, à qual denominou Primeiro
Motor Imóvel do Mundo. Ser que sem ação direta sobre as coisas as atrai e é
desejado por elas. O motivo do devir, pois as coisas mudam e mudarão
eternamente em busca do alcance da perfeição, atraídas pela essência perfeita
e imutável.
A mudança ou o devir o a maneira pela qual a Natureza, a
seu modo, se aperfeiçoa e busca imitar a perfeição do imutável.
O ser denomina-se Primeiro Motor porque é o princípio que
move toda a realidade, e chama-se Primeiro Motor Imóvel
porque não se move e não é movido por nenhum outro ente,
pois [...] mover significa mudar, sofrer alterações qualitativas e
quantitativas, nascer é perecer, e o ser divino, perfeito, não
muda nunca (ibid., p. 219).
Ainda com relação à discordância de Aristóteles face à Teoria das Idéias
de Platão, cabe destacar que Aristóteles considerou que tal teoria não
assegura conhecimento universal e necessário da realidade, uma vez que
imputa estatuto ontológico às formas e as separa em um mundo inteligível à
parte, o que impossibilita a explicação do mundo sensível, pois nela “o sensível
se reduz a uma aparência degradada [...] e o filósofo é convidado a abandoná-
lo em lugar de compreendê-lo [...]” (CHAUÍ, 2002, p. 352). Ou, conforme Garcia
Morente,
33
As idéias impedem que o mundo das coisas tenha
inteligibilidade: de fato, se somente as idéias são inteligíveis e
dotadas de pleno sentido racional, o mundo sensível não tem
sentido, é irracional e incompreensível e, portanto, tudo o que
se passa nele é irracional e sem sentido. Nesse caso, as
técnicas, a moral, a política, as artes, a vida e tudo o que
acontece no mundo das coisas não pode ser conhecido nem
compreendido. As idéias roubam o sentido do mundo em vez
de dar-lhe sentido (ap. CHAUÍ, 2002, p. 354).
A visão de Aristóteles difere da perspectiva filosófica de Platão, o que o
fez envidar esforços em busca de compreensão do mundo sensível, pois o
considerou possível de entendimento, sendo o seu sentido encontrado nele
mesmo.
Referindo-se a Aristóteles e a Platão, Jean Bernhardt afirma que
A grande diferença entre os dois filósofos encontra-se no fato
de que Platão desejava explicar por que o mundo sensível é tal
como é, encontrando a resposta fora dele; Aristóteles, ao
contrário, deseja compreender como o mundo é, o que é, por
que funciona como funciona, encontrando seu sentido nele
mesmo [...] Aristóteles afasta a reminiscência como causa da
busca da verdade que nos arrastaria para fora e para longe de
nosso mundo, único real. Para Aristóteles, trata-se de mostrar,
em primeiro lugar, que o próprio movimento é racional e pode
ser explicado de modo universal e necessário, e, em segundo,
que, no mundo sensível, o particular (que muda sem cessar) e
o universal e necessário (que permanece sempre idêntico a si
mesmo) estão entrelaçados, sendo tarefa da filosofia
demonstrar como esse laço é possível, qual sua causa e qual
sua significação racional (ap. CHAUÍ, 2002, p. 355–356).
Esse raciocínio, que traz a compreensão de que a idéia das coisas não
está em um mundo à parte Teoria das Idéias e de que tal idéia pode ser
captada pelo pensamento, levou Aristóteles à necessidade de desvendar o que
é o pensamento, como ele opera e a sua capacidade de engendrar a ciência
considerando o sensível ou, levou-o a dedicar-se, como coloca Chauí (2002, p.
356), à “tarefa de nos mostrar o que é o pensamento pensado, quais as suas
operações e as formas que o pensamento possui, que regras e normas ele
34
segue ao pensar, independentemente do conteúdo pensado”. Tarefa que
significa a obra aristotélica denominada Órganon os seus estudos sobre
Lógica.
Com o advento do cristianismo, as filosofias platônica e aristotélica não
perderam vigor, pois foram, por vias indiretas (vertentes neoplatônicas,
estoicismo etc.) ou, posteriormente, por acesso às fontes, adaptadas a essa
religião como mecanismo necessário à evangelização conversão dos não-
cristãos e universalização da religião. Mais especificamente, foi a necessidade
de convencer/converter os “homens de Estado” e os intelectuais gregos e
romanos, orientados por outras religiões e educados na tradição racionalista da
filosofia, da superioridade do cristianismo (da verdade cristã), que levou os
estudiosos cristãos a recorrerem a tais filosofias, ou seja, a se dirigirem à
metafísica.
Embora surja como uma adaptação da filosofia grega, a metafísica cristã
traz em si significativas diferenças do que lhe possibilitou origem, por se tratar
de formulação que, partindo da necessidade de evangelização, busca unir
preceitos racionais e fé. Nos termos de Chauí, a metafísica cristã “reuniu
novamente aquilo que ao nascer a filosofia havia separado, pois separara
razão e mito” (1995, p. 225).
Como procuramos mostrar no início desse texto, os filósofos,
tencionando superar as explicações mágicas, se empenharam na busca da
verdade (alétheia). Para os gregos, o Ser e o Não-Ser, a aparência e a
essência foram questões vigorosas que mereceram significativo esforço em
busca de solução racional, o que marca distinção com a ontologia cristã, na
35
qual o irracionalismo é presente e o contraditório não é negado, mas sim
tomados como questão de fé ou de solução pela fé.
Inúmeras são as dessemelhanças entre as citadas formas de metafísica.
Entretanto, em uma abordagem sucinta, faremos referência ao que avaliamos
como ponto central, por ter implicado muitos outros: na filosofia grega o Ser
existia de diferentes maneiras, mas com um único sentido no que se refere à
realidade e à essência de todos os entes. Esse aspecto, fundamental nessa
forma de metafísica, não poderia ser mantido na metafísica cristã, pois o
cristianismo, pregando Deus como o criador de tudo, estabelece distinção entre
o Ser do criador e o Ser das criaturas, entre o Ser infinito e imaterial que
produz uma natureza diferente da sua, finita e material. O que era impensável
no racionalismo grego, partindo da inerência dos princípios da identidade e da
não-contradição, os quais sempre demonstraram que um efeito advém de uma
causa de igual natureza.
De fato, a filosofia grega, em nome dos princípios da identidade
e da não-contradição, sempre demonstrou que uma causa
precisa ser de mesma natureza que seu efeito e, por esse
motivo, as Idéias (em Platão) e o Primeiro Motor Imóvel (em
Aristóteles) eram causas finais e jamais causas materiais,
formais ou eficientes. [...] Porque uma causa final age à
distância, sem se identificar com aquilo que a deseja, a
procura. Ao contrário, as outras três causas agem diretamente
sobre as coisas semelhantes a elas, de mesma natureza que
elas (CHAUÍ, 1995, p. 226).
A necessidade de afirmar a diferença de sentido entre o Ser em Deus e
o Ser nas criaturas fez com que, no cristianismo, a metafísica fosse dividida em
tipos distintos de conhecimento: Teologia (Ser como Deus), Psicologia
Racional (Ser como essência da alma humana), Cosmologia Racional (Ser
como essência das coisas naturais).
36
Independente das controvérsias, divergências ou diferenças
entre os pensadores, o cristianismo legou para a metafísica a
separação entre teologia (Deus), psicologia racional (alma) e
cosmologia racional (mundo), bem como a identificação de três
conceitos: ser, essência e substância [...].
Como conseqüência da identificação [...], de um lado, e, de
outro, a afirmação de que existem essências ou substâncias
universais tanto quanto individuais, a metafísica passou a ter
um número ilimitado de seres para investigar (CHAUÍ, 1995, p.
227).
Na modernidade, a recusa da tradição medieval trouxe à tona a
incompatibilidade entre razão e fé, o que não significou, porém, generalizada
aquiescência com exposições contrárias às verdades e aos dogmas religiosos.
A esse respeito, basta lembrarmos o controle contundente exercido pela
Inquisição e o pelo Santo Ofício, criados pela Igreja católica, do qual são
exemplos de vítimas pensadores do porte de Giordano Bruno e Galileu Galilei.
Nesse período, a questão da substância foi abordada de outro ângulo.
Surgiu uma concepção de substância, diferente daquela formulada pelo
pensamento cristão, limitada a três tipos de seres definidos pelos seus
atributos principais: Deus (substância infinita), cujo atributo é a infinitude; a
alma (substância pensante) cujos atributos são o intelecto e a vontade; e o
corpo (substância extensa), de atributos geométricos e físicos
(movimento/repouso, massa, figura e volume).
Essa redefinição de substância simplificou o campo de investigação da
metafísica e foi acompanhada por sua “requalificação”. A metafísica moderna,
tendo como objetos de estudo as essências do infinito, do pensamento, da
extensão, passou a ser basicamente concebida como teoria do conhecimento,
como possibilidade de se conceituar, de se produzirem idéias rigorosamente
racionais acerca dos seus objetos de estudo. E nisso a existência do real foi
condicionada à capacidade racional humana de conhecê-lo.
37
A esse respeito, Marilena Chauí explica:
O ponto de partida da metafísica é a teoria do conhecimento,
isto é, a investigação sobre a capacidade humana para
conhecer a verdade, de modo que uma coisa ou um ente é
considerado real se a razão humana puder conhecê-lo, isto é,
se puder ser objeto de uma idéia verdadeira estabelecida
rigorosa e metodicamente pelo intelecto humano. Assim, a
metafísica não começa com a pergunta: “O que é a realidade?”,
mas com a questão: “Podemos conhecer a realidade?” (CHAUÍ,
1995, p. 228–229).
Todavia, se tal condicionamento à capacidade do sujeito cognoscente
possibilitou distorções face à captação do real, também atribuiu valor
destacado à racionalidade, engendrando o antropocentrismo do mundo
moderno e sua perspectiva humanista, historicista e de emancipação humana.
Quanto ao período em pauta, Lukács entende que o Iluminismo deu
prosseguimento a tendências, originárias no Renascimento, que tiveram “como
meta construir uma ontologia unitária imanente, para com ela suplantar a
ontologia transcendente-teleológica-teológica” (1979a, p.14).
Essa forma de pensamento prevalente na modernidade representou a
busca do sujeito por libertar-se das forças heterônomas, situando o seu papel
como sujeito autônomo valorização da subjetividade —, mas fez trajetória,
produziu ramificações que, com múltiplas distinções, chega a vertentes do
pensamento contemporâneo. Chega a tendências filosóficas que podem até
ser tidas como “subjetivistas”, dado o privilégio excessivo do sujeito face ao
real. Com isso temos a primazia do Sujeito sobre o Ser, como se este fosse
produto da consciência do Sujeito, ou seja, como se a condição do Ser fosse
dada pelo Sujeito, não possuísse qualquer independência e legalidade própria.
Ademais, é importante lembrarmos que nesse contexto temos também a
emersão da ciência moderna em seu vínculo com as determinações postas
38
pelo ascenso das forças capitalistas, o que representará a busca pela
autonomia do indivíduo, pelo domínio da natureza e pela ampliação da
eficiência no trabalho ou seja, um giro no foco do conhecimento, pois os
esforços prioritários nesse sentido tornam-se dirigidos para um saber aplicável
na prática imediata, dirigido à ação avaliada como produtiva, um “saber de
resultado”, desvinculando ciência e filosofia. Desse modo, o saber ontológico
a preocupação com a essência das coisas e das ações humanas é em
grande parte desvalorizado em favor do saber racional funcional à ciência
moderna, aos métodos e às técnicas. E, em vez da preocupação com a
essência das coisas, o enfoque filosófico passa a ser dado com maior peso ao
como as coisas se mostram para a consciência.
Em 1830, começa o processo de decomposição da filosofia
burguesa clássica, que termina com a revolução de 1848”. [...].
Indicar a realidade como algo essencialmente contraditório
significa, doravante, fornecer armas teóricas ao movimento
anticapitalista da classe operária. [...] O pensamento burguês
transforma-se numa justificação teórica do existente. [...].
Decerto, essa determinação histórica da inversão do
pensamento burguês tem valor operatório quando vista sob
ângulo universal. [...] Ligadas àquele progresso técnico que o
capitalismo é obrigado a promover, surgem nos países
altamente capitalistas novas e originais investigações
científicas [...], mas tais investigações limitam-se a domínios
particulares [...] sem desempenharem o menor papel positivo
na construção de uma concepção do mundo (de uma ética e de
uma ontologia) científica (COUTINHO, 1972, p. 22-23).
Diante disso, se é importante destacar, conforme Lukács (ap. LESSA,
1997), que a modernidade é um período de raro valor, um período, por assim
dizer, de libertação humana das amarras divinas, por trazer a afirmação teórica
e prática de que o homem é capaz de fazer a sua História porque a História é
criação do próprio homem; não podemos deixar de ter em conta, também, o
que o nosso pensador esclarece quanto às relações mercantis que a partir daí
39
passaram a existir, pois essas relações, contrapondo cotidianamente a
existência individual e o gênero humano, fizeram da acumulação privada o
impulso determinante da vida das pessoas e efetivaram o individualismo
burguês, refluindo o sentido revolucionário inicial desse período. Isso significa
considerarmos o posicionamento burguês em função dos seus interesses, ou
seja, verificarmos que a produção social (cada vez mais ampliada) contraposta
à apropriação privada dos produtos característica do modo de produção
capitalista engendra a luta de classes e as conseqüentes estratégias que,
buscando obscurecer o caráter transitório da sociedade do capital, se colocam
em defesa da conservação da ordem instituída. Portanto, golpeiam o teor
revolucionário que inicialmente norteara a burguesia, produzindo o
desvirtuamento dos pilares de vertentes do pensamento moderno que se
colocavam em prol da possibilidade de emancipação humana. Pilares que
foram fundamentalmente erguidos como reação às amarras da heteronomia
teocêntrica, típicas do mundo feudal. Como dissemos, esse processo significou
a deterioração do caráter revolucionário que, a princípio, impulsionara o
movimento burguês. O refluxo do caráter revolucionário da burguesia desenhou
a sua decadência, pois não mais força revolucionária em luta contra o
absolutismo feudal, mas classe dominante em defesa de interesses
particulares, em defesa, agora, de um projeto de manutenção do poder. E,
conseqüentemente, com ideais dissonantes da razão dialética ou, melhor, em
acordo com o formalismo e o irracionalismo, pois capazes de obscurecer as
contradições e a transitoriedade do modo de produção capitalista.
Conforme Coutinho (1972), é possível distinguir, com certa nitidez, na
história da filosofia burguesa duas etapas principais: a primeira, caracterizada
40
por um movimento progressista, que vai dos pensadores renascentistas até
Hegel; a segunda, ocorrida por volta de 1830-1848, caracterizada pelo traço
decadente, pelo significativo abandono de conquistas efetivadas no período
anterior, representando, assim, o declínio do humanismo, do historicismo e da
razão dialética. Descontinuidade da evolução filosófica que corresponde à
própria descontinuidade do desenvolvimento capitalista.
Na época em que a burguesia era o porta-voz do progresso
social, seus representantes ideológicos podiam considerar a
realidade como um todo racional, cujo conhecimento e
conseqüente domínio eram uma possibilidade aberta à Razão
humana [...]. Ao tornar-se uma classe conservadora,
interessada na perpetuação e na justificação teórica do
existente, a burguesia estreita cada vez mais a margem para
uma apreensão objetiva e global da realidade; a Razão é
encarada com um ceticismo cada vez maior, renegada como
instrumento do conhecimento ou limitada a esferas
progressivamente menores ou menos significativas da
realidade (COUTINHO, 1972, p. 8).
Hume e Kant são dois dos expoentes do pensamento moderno. O
primeiro, partindo da teoria do conhecimento, contrapôs-se à idéia da
existência do Ser em-si e à possibilidade de o intelecto humano conhecer a
realidade tal como é em si mesma, ou seja, contrapôs-se, não à ontologia
clássica, mas à própria afirmação do seu tempo sobre a possibilidade de
conhecimento da realidade por operações intelectuais produtoras de conceitos
(rigorosamente racionais) sobre as coisas. Para ele, o sujeito do conhecimento
opera sensações, impressões e percepções recebidas pelos órgãos dos
sentidos e retidos na memória. Esse é o modo pelo qual as idéias são
formadas e nada mais representam do que hábitos mentais de associação de
impressões. Portanto, para o filósofo, a idéia de substância ou essência não
passa de nomeação dada ao conjunto de imagens e de idéias que a nossa
consciência tem por hábito associar em decorrência da semelhança entre elas,
41
apenas parecendo independente do sujeito. Essa perspectiva de que as idéias
produzidas pela razão humana não passavam de hábitos mentais do sujeito do
conhecimento instituiu uma crise na metafísica, uma vez que desestabilizou a
sua base fundamental, ou seja, colocou em xeque a sua competência para
investigar a realidade e produzir idéias rigorosamente racionais e verdadeiras.
Kant, por sua vez, considerando ter sido despertado por Hume do “sono
dogmático”, ou seja, da idéia da existência da realidade em-si, prosseguiu,
refinou e adensou o seu pensamento, formulando um vigoroso sistema
filosófico, com proeminência para o sujeito do conhecimento o Sujeito
Transcendental.
Em Kant, a teoria do conhecimento consolida-se como metafísica,
logicamente não como estudo do “Ser enquanto Ser”, de Deus etc., mas como
estudo das condições de possibilidade do conhecimento e da experiência
humanos. Além disso, o pensador buscou demonstrar que o sujeito do
conhecimento possui uma estrutura universal, diferente do sujeito psicológico e
individual de Hume, uma vez que focalizou a razão como uma propriedade
humana de todos os humanos em todos os tempos e espaços e como
faculdade a priori de conhecimento.
A respeito de Kant, cabe observarmos também que
Kant distinguiu duas modalidades de realidade [...] fenômeno
[...] nôumeno.
O fenômeno é a coisa para nós ou o objeto do conhecimento
propriamente dito, é o objeto enquanto sujeito do juízo. O
nôumeno é a coisa em si ou o objeto da metafísica, isto é, o
que é dado por um pensamento puro, sem relação com a
experiência. Ora, só conhecimento universal e necessário
daquilo que é organizado pelo sujeito do conhecimento nas
formas de espaço e do tempo e de acordo com os conceitos do
entendimento. Se o nôumeno é aquilo que nunca se apresenta
à sensibilidade, nem ao entendimento, mas é afirmado pelo
pensamento puro, não pode ser conhecido. E se o nôumeno é
42
o objeto da metafísica, esta não é um conhecimento possível
(CHAUÍ, 1995, p. 233).
Como vimos, em Kant, nunca conheceremos a realidade em-si,
separada e independente de nós (Sujeito do conhecimento). A realidade é
acessível ao sujeito como fenômeno, que o organiza segundo as formas do
espaço e tempo (estrutura a priori da razão), segundo os conceitos do
entendimento. Assim sendo, a realidade torna-se idealizada, por ser construção
efetuada pelo sujeito, pelas idéias do sujeito, como se o conhecimento viesse
das idéias para as coisas e não o contrário. E a metafísica, nesse contexto,
torna-se concebida como “conhecimento do conhecimento humano e da
experiência humana, ou, em outras palavras, do modo como os seres
humanos, enquanto expressões do Sujeito Transcendental, definem e
estabelecem realidades”. Outrossim, a metafísica tem também como seu objeto
no campo prático “a ação humana enquanto ação moral”, ou, conforme Kant, “a
ação livre por dever” (ibid., p. 234).
Com Kant, na medida da impossibilidade do conhecimento da coisa-em-
si, o problema desloca-se para: O que é conhecer? O que podemos conhecer?
Esse ceticismo kantiano terá a discordância de Hegel, pois
Para ele, enquanto as coisas-em-si estiverem fora do alcance
da razão, esta continuará a ser mero princípio subjetivo,
privado de poder sobre a estrutura objetiva da realidade, e o
mundo se separa em duas partes: a subjetividade e a
objetividade. [...]. O papel da filosofia, nesse período de
desintegração geral deveria ser o de evidenciar o princípio que
restauraria a perdida unidade e totalidade. [...]. Assim, a forma
verdadeira da realidade, para Hegel, é a razão, onde todas as
contradições sujeito-objeto se integram, constituindo, desse
modo, uma unidade e uma universalidade genuínas (HEGEL,
Os Pensadores, 1988, p. XI).
Citar a questão do Ser no pensamento hegeliano é fazer referência à
dialética. Hegel, segundo Luckács,
43
Não é de modo algum o primeiro dialético consciente entre os
grandes filósofos. Mas é o primeiro após Heráclito para
quem a contradição forma o princípio ontológico último, e não
algo que de algum modo deva ser filosoficamente superado
[...]. A contraditoriedade como fundamento da filosofia e, em
combinação com isso, o presente real como realização da
razão constituem, por conseguinte, os marcos ontológicos do
pensamento hegeliano. Essa combinação faz com que lógica e
ontologia se explicitem e se articulem em Hegel num grau de
intimidade e de intensidade até então desconhecido (1979a,
p.10).
Além disso, Luckács (1979) também ressalva que a filosofia de Hegel
deve ser compreendida considerando-se as implicações concretas da
Revolução Francesa a condição da Europa frente à ascensão burguesa e à
revelação daí decorrente de inadequação do reino iluminista da razão,
enquanto centro do pensamento filosófico. Isso redundou em perspectivas de
negação da relevância ontológica da razão ou de defesa da realidade presente
como período de transição para um autêntico reino da razão. Perspectivas
alinhadas a propostas teórico-filosóficas, assentadas seja no resgate do
passado (romantismo) seja no futuro (como as propostas utopistas”), as quais
Hegel não não endossou como buscou demonstrar, por meio de sua
filosofia, a pertinência do presente como reino da razão, com isso elevando a
contradição à categoria ontológica e lógico-gnosiológica central.
O comentário de Marcuse sobre Hegel é importante para a nossa
reflexão, pois destaca que a classe média alemã, fraca e dispersa em
numerosos territórios e interesses divergentes, não era capaz de projetar uma
revolução como fez a França. Na Alemanha havia lento desenvolvimento
econômico, sendo raros os empreendimentos industriais em meio a um vasto
sistema feudal, um sistema, como ressaltou o filósofo, que escravizava o
indivíduo ou o levava a escravizar. Embora vivesse tal realidade esse indivíduo
44
não se furtava ao menos pensar e, portanto, comparar a sua miséria com as
potencialidades humanas que a Revolução Francesa liberava. Desse modo,
passou a almejar, fosse apenas no plano moral, preservar a dignidade e a
autonomia humanas, pelo menos na vida privada. Com efeito, para nosso
pensador, enquanto a Revolução Francesa começou assegurando a realização
da liberdade, à Alemanha coube apenas se ocupar da idéia da liberdade. E
Hegel, como um dos expoentes da filosofia clássica alemã, produziu um
sistema que constitui “a última grande expressão desse idealismo cultural, a
última grande tentativa para fazer do pensamento o refúgio da razão e da
liberdade” (HEGEL, in: Os Pensadores, 1988, p. VII, VIII).
Coutinho (1972) salienta que o mérito essencial de Hegel reside na
capacidade de sintetizar e elevar aspectos progressistas do pensamento
burguês revolucionário, os quais podem ser resumidos em três núcleos:
1) humanismo - teoria de que o homem é um produto de sua
própria atividade, de sua história coletiva;
2) historicismo concreto - a afirmação do caráter ontologicamente
histórico da realidade, com a conseqüente defesa do progresso
e do melhoramento da espécie humana;
3) a Razão dialética em seu duplo aspecto, seja o de uma
racionalidade objetiva imanente ao desenvolvimento da
realidade (que se apresenta sob a forma da unidade dos
contrários), ou seja aquele das categorias capazes de
apreender subjetivamente essa realidade objetiva.
Como já aludido, em Hegel, o Ser é concebido como manifestação
dinâmica e contraditória, Ser/Nada (momento do): vir a ser, tornar-se. Desse
45
modo, o real para o filósofo não se limita ao meramente dado, por ser dinâmico
movimento que expressa o efetivado, o que está sendo realizado e o que
está por vir. Isso significa que é desse modo que Hegel se situa quanto à
ontologia, entendendo caber à razão enfrentar e revelar a dinâmica do Ser, sua
contraditoriedade, pois o real é contraditório e movimento. Além disso, no
pensamento desse filósofo, a aparência não significa o nada, o imperfeito, o
não-confiável ou qualquer outra coisa que não o momento imprescindível do
movimento que constitui a própria essência. Isso porque Hegel desvela o
caráter processual da realidade.
É apenas aparência o que está diante dela [da essência]. Mas
a aparência é o próprio pôr da essência [...] essa aparência não
é algo extrínseco, um outro com relação à essência, mas é a
própria aparência dessa essência [...] (HEGEL, ap. LUCKÁCS,
1979a, p. 83).
Na obra Fenomenologia do Espírito, Hegel afirma que a verdade é o
Todo. Formulação que marcará significativamente as pesquisas de Marx e que,
como explicita Luckács,
Significa o entendimento de “uma totalidade que se constrói
com inter-relações dinâmicas de totalidades relativas, parciais,
particulares. [...]. Mas apenas como sua forma esotérica [...] na
realização concreta esse princípio vem profundamente
sepultado sob raciocínios logicistas-hierárquicos” (1979a, p.
70).
Assim sendo, não obstante a importância e amplitude da temática
tratada nesta seção do trabalho, considerando o exposto e os nossos objetivos
gerais, tomaremos rumo conclusivo, e, logicamente, voltado à parte seguinte
deste texto, destacando que, em seu idealismo,
8
o pensamento hegeliano
8
Segundo exposição sobre a vida e obra de Hegel, na coleção Os Pensadores (1988), com consultoria de
Paulo Eduardo Arantes, esse pensador formulou um sistema filosófico que pretendia se apresentar como a
própria expressão da realidade, extinguindo a diferença entre a idéia e o real. Ou seja, ambas seriam
facetas de uma mesma coisa, daí a sua conhecida afirmação “o que é real é racional e o que é racional é
real”.
46
comportou inovações e trouxe elementos fundamentais à gênese e à
construção do pensamento marxista e, portanto, à ontologia nessa tradição
filosófica. As concepções de totalidade unidade dos diversos e de
dialética do real como processo e contradição exemplificam isso. Contudo, em
Marx, o legado hegeliano sofreu profundas revisões.
9
A dissolução da filosofia de Hegel, na qual a identidade do real
e do racional encontra a sua mais radical expressão nos
quadros do pensamento burguês, segue duas orientações,
uma “de esquerda” e outra “de direita”. Pode manifestar-se
como desenvolvimento superior do “núcleo racional” do
pensamento hegeliano, ou então implicar num abandono que
representa objetivamente uma regressão. O primeiro
movimento, efetivado pelo marxismo, é a expressão filosófica
do processo pelo qual o proletariado recolhe a bandeira
abandonada pela burguesia, supera seus limites e
contradições, elevando a racionalidade dialética a um nível
superior, materialista (COUTINHO, 1972, p.9).
Hegel exerceu notória influência no pensamento marxiano, seja via
direta seja através do pensamento crítico ao hegelianismo de Feuerbach.
Filósofo que, combatendo o idealismo hegeliano, formulou propostas para uma
nova forma do exercício da filosofia propôs a libertação dos sentidos, dando
relevo ao empirismo —, o que foi fundamental a Marx para o seu salto para o
materialismo.
Conforme nos explica Frederico (1995), o pensamento de Marx recebe
de Hegel e Feuerbach significativa herança filosófica, porém tanto o
materialismo feurbachiano quanto à dialética idealista de Hegel passaram por
“uma simbiose crítica, por um processo de síntese original, para servir de
fundamento norteador às pesquisas marxianas”.
9
No artigo: Marx, 1843: O crítico de Hegel, José Paulo Netto. In: Marxismo Impenitente, José Paulo
Netto, 2004, o autor mostra que o manuscrito marxiano: Crítica da Filosofia do Estado de Hegel, redigido
entre março e agosto de 1843, “constitui peça-chave para a compreensão do rumo ulterior de Marx”. Para
ele, nesse manuscrito Marx abandona a razão filosófica especulativa e inicia a assunção da prática social
como essencial à reflexão teórica. Assim, nesse texto aparece “a grande viragem que determinará o perfil
intelectual de Marx — a ultrapassagem da filosofia especulativa no rumo da teoria social”.
47
Segundo Netto, Marx contribuiu para dissolução do hegelianismo e sua
intervenção se inseriu num movimento abrangente que envolvia toda a
intelectualidade alemã de oposição ou que se confrontava polemicamente com
Hegel (2004, p. 25). Podemos, assim, nos referir a uma continuidade com
rupturas, pois, grosso modo, Marx (e expoentes da tradição marxista que
prosseguiram) reconstruirá em outras bases princípios deixados pela filosofia
de Hegel, colocando seu pensamento em outro patamar ou, em outras
palavras, o marxismo “com a ação materialista ’põe sobre os pés’ o idealismo
hegeliano apoiado sobre a cabeça”.
10
Diante do exposto, cabe apreciarmos a análise do próprio pensador:
Meu método dialético não difere basicamente do método
hegeliano, é o seu exato oposto. Para Hegel, o movimento do
pensamento, personificado sob o nome de Idéia, é o demiurgo
da realidade, que é tão somente a forma fenomênica da Idéia.
Para mim, ao contrário, o movimento do pensamento é apenas
a reflexão do movimento real, transportado e transposto para o
cérebro do homem. Critiquei este lado mítico da dialética
hegeliana há cerca de trinta anos, numa época em que ela
estava na moda (MARX, ap. NETTO, 2004, p. 16).
No marxismo, o real é contraditório, é movimento, expressão de inter-
relações, de ligações recíprocas, mas não subordinado à idéia como se esta
fosse responsável pelo seu sentido; tampouco o homem é abstratamente
captado, como se fosse possível reduzi-lo à idéia, ao pensamento. Isso porque
o marxismo compreende a dialética material e historicamente, contemplando a
constituição do Ser Social como autoconstrução que emerge da práxis, cuja
forma privilegiada, modelar, é o trabalho. O marxismo busca captar as
contradições da vida em sociedade, por conseguinte, captar as contradições
das relações sociais no mundo capitalista.
10
Referência feita por G. Luckács, em Ontologia do Ser Social: A falsa e a verdadeira ontologia de
Hegel, 1979, p.10.
48
A esse respeito, destacamos da obra de Marx e Engels:
As premissas com que começamos não são arbitrárias, não
são dogmas, são premissas reais, e delas só na imaginação se
pode abstrair. São os indivíduos reais, as suas ações e as suas
condições materiais de vida, tanto as que encontraram como as
que produziram pelas suas próprias ações. Estas premissas
são, portanto, constatáveis de um modo puramente
empírico.[...].
11
Podemos distinguir os homens dos animais pela
consciência, pela religião, por tudo o que se quiser. Mas eles
começam a distinguir-se dos animais assim que começam a
produzir os seus meios de vida, passo este que é condicionado
pela sua organização física. Ao produzirem os seus meios de
vida, os homens produzem indiretamente a sua própria vida
material [...].
Essa concepção da História assenta, portanto, no
desenvolvimento do processo real da produção, partindo logo
da produção material da vida imediata, e na concepção da
forma de intercâmbio intimamente ligada a este modo de
produção e por ele produzida [...].
Ao contrário da visão idealista da História, não tem de
procurar em todos os períodos uma categoria [...]; não explica a
práxis a partir da idéia, explica as formações de idéias a partir
da práxis material [...] (1984, p. 14–15-48).
No pensamento de Marx, a ontologia possui configuração materialista e
social. Uma concepção filosófica que não parte da idéia e volta-se para o
mundo social captando as suas particularidades frente ao mundo natural, sem
que isso signifique negligenciar a vinculação entre as duas esferas. Marx
trouxe à baila a centralidade da práxis face ao mundo dos homens, situando-a
como atividade humana que se distingue das demais por pressupor teleologia.
Atividade que, em resposta às necessidades humanas, se dirige à
transformação do objeto para criar o produto humanizado. Assim sendo, a
práxis é a atividade que possibilitou a existência humana e o seu
aperfeiçoamento, viabilizando o recuo das barreiras naturais em prol da
11
O primeiro ato histórico pelo qual podemos distinguir os homens dos demais animais não é o de
pensarem, mas o de começarem a produzir os seus meios de vida. Este trecho aparece na obra em nota de
rodapé.
49
ampliação do mundo social, um mundo que cada vez mais, sem a eliminação
da realidade natural, amplia as suas objetivações sociais.
Por conseguinte, a vertente do pensamento que Marx inaugura capta a
realidade social como movimento e investe no desvendamento da sua
legalidade, partindo do real concreto como instância possível de ser pensada e
interpretada pelo ser humano e não algo restrito à criação pela idéia. Desse
modo, não cabe qualquer relação disso com vertentes filosóficas subjetivistas,
as quais podem chegar a caracterizarem-se por tal prevalência da
subjetividade que a realidade torna-se pleno relativismo.
Segundo Guerra, o cariz ontológico do pensamento marxiano permite-
nos o entendimento de que é pela superação da filosofia como mera
interpretação do mundo ou como disciplina particular que podemos suscitar a
crítica substancial da sociedade burguesa, apreendendo a lógica que a
constitui. Isso porque essa vertente do pensamento não se limita à constatação
dos fatos sociais, compreende que eles são sinais para serem conhecidos e
processualmente desvendados pelos sujeitos sociais. Processo que pode
contar também com a transformação dos mesmos pelos sujeitos (2004, p. 21-
22).
Por fim, destacamos que, na contemporaneidade, nesse campo
filosófico marxista, Georg Lukács, partindo da obra de Marx,
12
dedicou-se a um
projeto de investigação sobre a ética; porém, para encaminhar tal projeto,
começou pelo estudo da ontologia do Ser Social, única parte que conseguiu
materializar, deixando dois volumosos manuscritos, uma vez que o projeto não
12
Importante consultar: Netto, J. Paulo, G. Lukács: um exílio na pós-modernidade. In: Marxismo
Impenitente, José Paulo Netto, 2004.
50
pôde ser totalmente concluído em função do seu falecimento.
13
Nessa obra que
deixou, intitulada Ontologia do Ser Social, o filósofo, além de fornecer alguns
elementos essenciais ao estudo da ética, “pretendeu demonstrar a
possibilidade ontológica da emancipação humana, da superação da barbárie
da exploração do homem pelo homem” (LESSA, 1997, p. 9). Aqui,
considerando que a ética é tema proeminente, essa obra é fundamento teórico,
sendo por nós explorada, especialmente a seguir, na próxima seção da
presente tese, seja diretamente, seja por meio da produção de outros autores
notórios estudiosos do pensamento lukacsiano.
1.2 Ontologia do Ser Social e a Ética
A compreensão do Ser Social pressupõe a consideração de que sua
existência é erigida sobre a base do ser orgânico, que, por sua vez, surgiu da
base inorgânica. o estamos nos referindo a um processo evolutivo do tipo
linear-progressivo, mas sim a um processo que realizou passagens de formas
(mais) simples a formas (mais) complexas, em conseqüência de saltos
ontológicos que produziram algo diferente do “incessante tornar-se outro
mineral” próprio do ser inorgânico e do “repor o mesmo”
14
pico da reprodução
do mundo biológico. Produziram o qualitativamente novo e com contínua
possibilidade de aperfeiçoamento o Ser Social —, sem que para isso
tenham sido erradicadas as bases ontologicamente originárias. Uma vez que
as esferas ontológicas referidas a inorgânica, a orgânica e o Ser Social —,
13
Sergio Lessa esclarece em sua obra, A Ontologia de Lukács, 1997, que alguns críticos de Lukács
argumentam ser um retrocesso fazer ontologia no século XX após toda a crítica da Ilustração ao
pensamento medieval, após o desenvolvimento do racionalismo moderno e da dialética. Porém, sem
entrar diretamente nessa polêmica, o autor procura evidenciar a novidade da concepção ontológica
lukacsiana, se confrontada com a metafísica tradicional.
A respeito da citada polêmica é interessante consultar: Sérgio Lessa, Para uma Ontologia do Ser Social.
In: Antunes, Ricardo & Rego, l. Walquiria (Orgs). Lukács: Um Galileu no século XX. SP.: Boitempo,
1996, p. 62 – 73.
14
As expressões colocadas entre aspas são de Sérgio Lessa, na obra A Ontologia de Lukács, 1997.
51
apesar de distintas, estão articuladas, observe-se que não há vida sem a
esfera inorgânica, assim como não há Ser Social sem vida.
A esse respeito, podemos apreciar em Lukács
[...] nenhum processo inorgânico se reproduz [...]. Tão somente
nas esferas biológica e social ser significa reprodução; apenas
nestas a existência se desdobra em ininterruptos processos
reprodutivos. [...] segundo Lukács, a essência deste processo
apesar das diferenças ontológicas que tornam a reprodução
biológica e a reprodução social qualitativamente distinta é a
elevação de cada uma destas esferas a formas superiores de
ser. Assim, a reprodução do ser social é o processo de
elevação do mundo dos homens a patamares superiores de
sociabilidade, de modo que o seu desdobramento concreto é
cada vez menos influenciado por categorias oriundas das
esferas ontológicas inferiores, e cada vez mais intensamente
determinado por categorias puramente sociais. [...] na
reprodução natural, bem como na reprodução social, as
categorias inferiores não são eliminadas, “mas subjugadas,
transformadas, replasmadas”, dando lugar ao predomínio cada
vez mais nítido dos complexos categoriais peculiares a cada
uma das esferas ontológicas superiores (LESSA, 1995, p.21
22).
O trabalho foi base “dinâmico-estruturante”
15
de um novo tipo de ser — o
Ser Social —, todavia, categoria cujo surgimento foi possível após certo
grau de desenvolvimento do processo de reprodução do ser orgânico. Isso
porque estamos nos referindo ao trabalho que se coloca como fulcro para a
constituição de um novo ser, diferente dos tipos de atividades que se mantêm
fixadas na diferenciação de espécies biológicas, como as atividades realizadas
pelas abelhas, por exemplo.
Nossa referência é, por conseguinte, ao trabalho que, essencialmente,
ultrapassa a dimensão do mero condicionamento biológico, da mera reação
adaptativa ou submissão ao mundo ambiental. Atividade considerada não
apenas pela realização do produto, mas cujo produto resulta de um processo
15
Denominação utilizada por Lukács (1978).
52
que contou com a consciência para a sua efetivação, ou seja, é a
transformação consciente do mundo natural que possibilita a existência do
produto humanizado um produto que, antes da sua materialização, já existia
como representação do sujeito-trabalhador, já existia como prévia ideação.
[...] o fundamento ontológico do mundo dos homens é o
trabalho, e este nada tem de natural. Pelo contrário, é uma
categoria gerada pelos homens em função da vida dos próprios
homens e, assim, é puramente social. [...] “um ponto de
interseção das inter-relações das legalidades da natureza e da
sociedade” [...] cuja legalidade ontológica consiste em colocar
“imediatamente em formas especificamente sociais tudo que
entra nesse processo [...]” (LUKÁCS, ap. LESSA, 1995, p. 28).
O trabalho considerado nesses termos é aquele que possibilita tanto o
próprio desenvolvimento quanto o desenvolvimento do ser que o realiza o
homem que trabalha. E, como mencionamos e consideramos indubitável, a
consciência tem papel destacado nesse processo, podendo-se até caracterizar-
se como papel decisivo. A ação consciente é aquisição que viabiliza a
ultrapassagem do animal que se humaniza para além da esfera da
necessidade, para além da restrição definida pelo nexo causal do mundo
natural, sem que para isso haja eliminação dos condicionamentos naturais.
Recorrendo à consciência e em busca de satisfação de suas necessidades, o
Ser Social constrói o mundo humano recuando, mas o eliminando, as
barreiras naturais.
Tão-somente o carecimento material, enquanto motor do
processo de reprodução individual ou social, põe efetivamente
em movimento o complexo trabalho; e todas as mediações
existem ontologicamente apenas em função da sua satisfação.
O que não desmente o fato de que tal satisfação possa ter
lugar com a ajuda de uma cadeia de mediações, as quais
transformam ininterruptamente tanto a natureza que circunda a
sociedade, quanto os homens que nela atuam, as suas
relações recíprocas etc.; e isso porque elas tornam
praticamente eficientes forças, relações, qualidades etc., da
natureza que, de outro modo, não poderiam exercer essa ação,
53
ao mesmo tempo em que o homem liberando e dominando
essas forças põe em ser um processo de desenvolvimento
das próprias capacidades no sentido de níveis mais altos
(LUKÁCS, 1978, p. 5).
Podemos inferir que o animal tornado homem assim se fez por meio do
trabalho — atividade por ele efetivada como via de solução para os seus
carecimentos.
O trabalho foi o elemento-chave, o fulcro do salto que permitiu a
hominização do ser natural e foi, simultaneamente, engendrado nesse
processo como mecanismo produtor de respostas às carências desse ser que
se humanizava. A carência material — e a conseqüente busca de satisfação
foi o motor que pôs em movimento o complexo do trabalho, pode-se dizer o seu
elemento ontológico primário. Porém, evidentemente, no decurso histórico, os
homens desenvolveram novas capacidades, novas qualidades e novas
necessidades.
A esse respeito, Lukács explicita que
[...] o homem torna-se um ser que respostas precisamente
na medida em que — paralelamente ao desenvolvimento social
e em proporção crescente ele generaliza, transformando em
perguntas seus próprios carecimentos e suas possibilidades de
satisfazê-los; e quando, em sua resposta ao carecimento que a
provoca, funda e enriquece a própria atividade com tais
mediações, freqüentemente bastante articuladas. De modo que
não apenas a resposta, mas também a pergunta é um produto
imediato da consciência que guia a atividade; todavia, isso não
anula o fato de que o ato de responder é o elemento
ontologicamente primário nesse complexo dinâmico. Tão-
somente o carecimento material, enquanto motor do processo
de reprodução individual ou social, põe efetivamente em
movimento o complexo trabalho; e todas as mediações existem
ontologicamente apenas em função da sua satisfação (id.,
ibid.).
Portanto, permitimo-nos fazer referência ao trabalho “atividade que
surge como solução de resposta ao carecimento que a provoca” (id., ibid.)
54
como categoria fundante do mundo humano. É por meio dessa atividade
que suscita a consciência e é guiada por ela que se efetiva o salto
ontológico que retira a existência humana das determinações meramente
biológicas, pois, diferentemente dos demais animais que meramente
consomem o que o meio natural lhes provê, o ser tornando-se humano produz
seus meios de vida, e assim constrói o mundo humano, conformando-se Ser
Social.
O trabalho apenas existe no interior do ser social, é uma
categoria exclusiva do mundo dos homens. [...] ser fundante
não significa ser cronologicamente anterior, mas sim ser
portador das determinações essenciais do ser social, das
determinações ontológicas que consubstanciam o salto da
humanidade para fora da natureza (LESSA, 2002, p.38).
Com sua ação, portanto, o ser humano ultrapassa o determinismo
natural, estabelecendo uma ão criadora face à natureza, conquistando a sua
humanidade — o homem é um ser “ontocriativo”, ou seja, um ser que cria o seu
próprio ser (KOSIK, 1976). Isso tem no trabalho a mediação, o eixo dessa
ultrapassagem do mero condicionamento natural para a criação do humano, do
Ser Social, apesar da conservação do conteúdo natural na existência humana.
[...] o ser social em seu conjunto e em cada um dos seus
processos singulares pressupõe o ser da natureza
inorgânica e orgânica. Não se pode considerar o ser social
como independente do ser da natureza, como antíteses que se
excluem, o que é feito por grande parte da filosofia burguesa
quando se refere aos chamados “domínios do espírito”. Mas,
de modo igualmente nítido, a ontologia marxiana do ser social
exclui a transposição simplista, materialista vulgar, das leis
naturais para a sociedade, como era moda, por exemplo, na
época do “darwinismo social” [...]. Esse desenvolvimento [...] é
um processo dialético, que começa com um salto, com o pôr
teleológico do trabalho, não podendo ter nenhuma analogia na
natureza (LUKÁCS, 1979, p. 17).
Escritos de Marx e Engels (1984) revelaram a significância do trabalho
para a existência humana, o evidenciaram como vital para essa existência. Isso
55
por ser atividade que a constitui e a caracteriza, uma vez que é fonte de
satisfação das necessidades do ser humano e sua possibilidade histórica. “O
primeiro ato histórico pelo qual podemos distinguir os homens dos demais
animais não é o de pensarem, mas o de começarem a produzir os seus meios
de vida” (ibid., p.14).
Por meio do trabalho atividade racional dirigida a um fim, pois
pressupõe a faculdade humana de projeção, de atribuição consciente de
finalidade às ações —, o homem transforma a matéria natural com vistas à
satisfação de suas necessidades e, nesse processo, também produz a si
mesmo, identificando-se com o que produziu, conquistando a sua humanidade,
produzindo as relações sociais e engendrando a História.
Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência,
pela religião, por tudo o que se quiser. Mas eles começam a
distinguir-se dos animais assim que começam a produzir os
seus meios de vida, passo este que é condicionado pela sua
organização física. Ao produzirem os seus meios de vida, os
homens produzem indiretamente a sua própria vida material
(ibid., p. 15).
O trabalho é também uma categoria social, pois se efetiva engendrando
as relações sociais e por meio dessas próprias relações. Portanto, pode-se
considerá-lo produtor e simultaneamente partícipe da sociabilidade meio de
transformação da natureza pelo qual o homem se constrói, constitui a sua
individualidade e também a totalidade social da qual é parte.
Logicamente, estamos nos referindo ao trabalho gerador de valores
úteis, atividade que, em resposta às necessidades do ser humano, materializa-
se tanto na criação do produto humanizado quanto na sua própria
autoconstrução o intercâmbio orgânico do homem com a natureza, que é
uma necessidade eterna face às reais carências humanas e, portanto, à
existência social.
56
Qualquer que seja a forma de sociedade, enquanto produtor de valores
de uso, o trabalho concreto é condição da existência humana, sua atividade
livre e consciente “é uma necessidade natural eterna que tem a função de
mediatizar o intercâmbio orgânico entre o homem e a natureza, ou seja, a vida
dos homens” (MARX, ap. LUKÁCS, 1979, p. 99).
Como mencionamos, a História é produção humana e, portanto,
divergindo de qualquer concepção mistificada a seu respeito, captamos o
homem como seu autor e simultaneamente seu produto. Quanto a isso, Kosik
explicita:
A razão se cria na história apenas porque a história não é
racionalmente predeterminada, ela se torna racional [...]. A
história só é possível quando o homem não começa sempre do
novo e do princípio, mas se liga ao trabalho e aos resultados
obtidos pelas gerações precedentes. Se a humanidade
começasse sempre do princípio e se toda ação fosse destituída
de pressupostos, a humanidade não avançaria um passo e a
sua existência se escoaria no círculo da periódica repetição de
um início absoluto e de um fim absoluto (KOSIK, 1989, p. 217-
218).
Diferentemente da história natural, que se restringe ao necessário ao
nexo causal do mundo natural —, a História humana tem por mediação um
insuprimível caráter alternativo, é ontologicamente distinta da história natural
por ser um espaço de escolhas entre alternativas inscritas em situações
concretas.
[...] os homens fazem a sua história [...] este fazer história não
encontra em nenhuma instância natural ou não qualquer
limite a priori, a-histórico, para o seu desenvolvimento. Os
homens são os demiurgos do seu destino. Assinalar que os
homens são senhores de sua história tem seu complemento,
em Lukács, no reconhecimento de que “a tradição de todas as
gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos
vivos” (LESSA, 2002, p. 65).
57
Com a ação do homem na matéria criando uma nova realidade
humanizada temos a práxis, cuja forma privilegiada é o trabalho (BARROCO,
2001, p. 26). Além disso, cabe destacarmos que “[...] toda práxis, mesmo a
mais imediata e a mais cotidiana [...] é sempre um ato teleológico, no qual a
posição da finalidade precede, objetiva e cronologicamente, a realização”
(LUKÁCS, 1979, p. 52).
Por meio do trabalho engendram-se as relações sociais, os modos de
vida social, as idéias, as concepções de mundo, os valores, uma vez que assim
como produzem os objetos, os instrumentos de trabalho, os modos de vida, os
homens produzem também “novas capacidades e qualidades humanas,
desenvolvendo aquelas inscritas na natureza orgânica do homem,
humanizando-as e criando novas necessidades” (IAMAMOTO, 2001, p. 39).
Nesse quadro emergem a consciência e o conhecimento, pois no
desenvolvimento do processo laborativo é que são gestadas as necessidades
espirituais do homem; é nesse percurso que a realidade vai sendo por ele
desvendada, tocando a sua dimensão subjetiva. Daí inferirmos que na
atividade laborativa o ser humano ultrapassa-se como ser puramente natural e
adquire consciência e é guiado por ela, produz conhecimentos e valores,
constrói-se socialmente e, tornando-se membro de uma coletividade, dá origem
a formas de regulação da sua convivência social, ou seja, cria mecanismos
reguladores como, por exemplo, a moral.
Assim como as escolhas, a orientação de valor é inerente às
atividades humanas; sua criação é objetiva, também gerada
pelo trabalho [...].
A valoração de um objeto supõe sua existência material
concreta: seu valor corresponde a uma práxis que o
transformou em algo novo que responde às necessidades, e,
como tal, é bom, útil, belo, etc. Por isso, o valor não é uma
decorrência apenas da subjetividade humana; ele é produto da
58
práxis. Assim se coloca o caráter objetivo dos valores; eles
sempre correspondem a necessidades e possibilidades sócio-
históricas dos homens em sua práxis (BARROCO, 2001, p. 29).
O trabalho, como observamos, é a possibilidade histórico-social do ser
humano, pois suscita as relações sociais em que se efetivam, mediante a
criação no intercâmbio com a natureza, respostas para os múltiplos
carecimentos humanos em face das condições objetivas do meio natural.
Nessa perspectiva, a História é captada tendo-se em vista:
[...] o desenvolvimento do processo real da produção, partindo
logo da produção material da vida imediata, e na concepção da
forma de intercâmbio intimamente ligada a este modo de
produção e por ele produzida, ou seja, a sociedade civil nos
seus diversos estágios, como base de toda a História, e bem
assim na representação da sua ação como Estado, explicando
a partir dela todos os diferentes produtos teóricos e formas de
consciência a religião, a filosofia, a moral, etc. (MARX e
ENGELS, 1984, p. 48).
Segundo Heller, a História é a substância da sociedade e nela estão
contidas esferas heterogêneas, como, por exemplo, a produção, as relações de
propriedade, a estrutura política, a vida cotidiana, a moral, a ciência e a arte
(1989, p. 3).
Estudioso rigoroso do pensamento de Georg Lukács, e, desse modo,
autor cuja obra é referência de importância destacada face à temática tratada
neste texto, Sergio Lessa possibilita-nos adensar e aprofundar as
considerações feitas até aqui. Segundo ele, em Lukács, a essência do trabalho
é uma peculiar e exclusiva articulação entre teleologia e causalidade, sendo a
primeira uma “categoria posta”, e a outra categoria, um “princípio de
automovimento que repousa sobre si mesmo”. Isso porque a teleologia
unicamente pode estar presente no mundo dos homens nessa
circunscrição é possível o trabalho com prévia-ideação do produto final.
59
Portanto, sobre a teleologia esse “pôr um fimque antecipa o produto a ser
realizado não cabe compreensão universalizante, uma vez que se trata de
aspecto inerente à consciência ou, melhor, aspecto inerente ao interior do Ser
Social, à consciência humana que é a única a ter propriedade de pôr finalidade.
Assim sendo, “[...] a consciência, com o ato de pôr, início a um processo
real, exatamente ao processo teleológico. O pôr, portanto, tem nesse caso um
ineliminável caráter ontológico” (LUKÁCS, ap. LESSA, 2002, p. 72).
Ademais, é preciso que fique claro, que a esse respeito, não é
pertinente qualquer redução subjetivista, haja vista que o âmbito da realização
teleológica, como foi dito, é o interior do trabalho o pôr teleológico é uma
operação consciente e apenas possível no interior do trabalho, visando à
produção de algo novo, ou seja, um produto humanizado uma “nova
objetividade”.
Um mérito histórico da teoria de Marx é o de ter trazido à tona a
prioridade da práxis, sua função de guia e de controle em
relação à consciência. Marx, porém, não se contentou em
esclarecer essa conexão fundamental de modo geral, mas
mostrou o método para determinar o caminho através do qual
essa relação adequada entre teoria e práxis emerge no ser
social. Disso resulta que toda práxis, mesmo a mais imediata e
a mais cotidiana, contém em si essa referência ao ato de julgar,
à consciência etc., visto que é sempre um ato teleológico, no
qual a posição da finalidade precede, objetiva e
cronologicamente, a realização (LUKÁCS, 1979, p. 52).
Na medida em que a idealidade da teleologia realiza-se no interior do
trabalho transformando a matéria, ocorre a objetivação uma categoria que
conforma a síntese entre teleologia e causalidade, originando o “novo”, o
“socializado”, uma “causalidade posta” que é a essência do Ser Social.
Entretanto, a transformação da causalidade (dada) em “causalidade postanão
extingue a essência da causalidade, pois nessa operação mantém-se intacto o
60
“princípio de automovimento que repousa sobre si mesmo”. Quanto a isso,
Lessa observa que
[...] a realização prática do pôr teleológico tem a peculiaridade
de fundar uma “nova objetividade”, dando origem ao mundo
dos homens, sem com isso alterar “em termos ontológico-
naturais os fundamentos” da causalidade. [...] o seu “ser posto”
não implica a eliminação da objetividade primária do ser e a
sua conversão em subjetividade. Pelo contrário, o caráter posto
expressa a mediação pela qual a objetividade primária do ser
se subordina a dadas posições teleológicas, as quais têm o
poder de articular as propriedades da natureza em novas
formas e relações, dando origem a uma nova objetividade (o
mundo dos homens) (LESSA, 2002, p. 74).
Então, pode-se observar que no processo de constituição do Ser Social
a idealidade da teleologia articula-se à materialidade do real, sem que isso
signifique a perda das respectivas essências por nenhuma das duas
categorias, ou seja, sem que haja a descaracterização da distinção ontológica
entre ambas. A referida articulação — operada no interior do trabalho — efetiva
a transmutação da teleologia em causalidade posta e caracteriza o momento
da “objetivação”, momento em que a ntese da teleologia e causalidade é
realizada, fundando o Ser Social enquanto causalidade posta. Para Luckács,
O mais alto grau do ser por nós conhecido, o social, se constitui
como grau específico, se destaca do grau sobre o qual apóia
sua existência, o da vida orgânica, e se torna uma nova e
distinta espécie de ser, apenas porque nele há este operar real
do teleológico. Podemos sensatamente falar do ser social
somente quando compreendemos que sua gênese, seu
distinguir-se de sua própria base, seu devir enquanto algo que
é em si se apóiam no trabalho, isto é, na contínua realização
de posições teleológicas (LUKÁCS, ap. LESSA, 2002, p. 75).
Como vimos, o processo necessariamente operado no interior do
trabalho que articula a teleologia e a causalidade é o responsável pelo salto do
“meramente natural” para a humanização, ou seja, é o responsável pela
possibilidade de sociabilidade do ser natural e das coisas em objetos
61
socializados ou, nos termos de Lessa (2002), pela constituição do mundo dos
homens. Quanto a isso, cabe observar ainda que, apesar de podermos fazer
referência à existência real das categorias que o articuladas, a teleologia,
diferentemente da causalidade, não existe por si mesma. A teleologia é uma
categoria cuja existência decorre da esfera do trabalho e depende de nexos
causais determinados, portanto é dependente do intercâmbio do homem com a
natureza e da sua necessidade de transformá-la, o que também evidencia a
existência anterior da causalidade. Com efeito, o trabalho é a mediação que
possibilita o entrelaçamento de causalidade e teleologia, que resulta na
produção de uma diferente esfera de causalidade, constituindo o Ser Social, ou
seja, transformando a materialidade natural, sem extingui-la, em mundo dos
homens.
[...] essa utilização social de elementos e forças naturais não
resulta em uma justaposição de sociedade e natureza, mas na
produção, na síntese de uma esfera ontológica: o mundo dos
homens. Essa síntese é obra do trabalho — e, no interior deste,
do próprio processo de objetivação —, que, a partir do
rearranjo teleologicamente posto da natureza, funda o ser
social enquanto totalidade unitariamente homogênea e
internamente contraditória (os elementos naturais não deixam
de ser natureza, a teleologia e a causalidade são sempre
ontologicamente distintas etc.) (LESSA, 2002, p. 78).
Não obstante a configuração de uma nova objetividade causalidade
posta —, o mundo dos homens é material e objetivo e, sem a hipótese de
suprimirmos a distinção entre as esferas social e natural, podemos até dizer
que a causalidade posta torna-se para a vida humana dimensão concreta tal
qual o mundo natural. A essa nova objetividade, que pode até tornar-se
independente da consciência que a produziu, Lukács denomina “segunda
natureza” (LUKÁCS, ap. LESSA, 2002, p. 81). Para Lukács, à medida que foi
objetivado, o produto humanizado se converte em um ente distinto do sujeito
62
que o criou e adquire certa autonomia, passando a ter sua própria história.
Esse fato faz com que o sujeito criador se defronte com o seu produto (objeto
criado) em uma ação de retorno, sendo por ele afetado, influenciado em sua
autoconstrução. Além disso, como o ente adquire certa autonomia, se o sujeito
pretende controle sobre ele, poderá tentar obtê-lo caso aja conscientemente
em prol da sua pretensão. Esse aspecto é importante ou, melhor,
imprescindível, se quisermos considerar a sociedade, uma vez que, por ser
causalidade posta, denota materialidade e certa autonomia, configurando
também uma forma de segunda natureza que, para que seja controlada ou
alterada, posta sob determinada(s) pretensão(ões) do(s) sujeito(s),
analogamente à materialidade natural, cabe a pressuposição da ação
consciente do(s) sujeito(s) na transformação das relações sociais, o que
constitui uma forma de pôr teleológico, denominado por Lukács teleologia
secundária.
Como citado neste texto, a História se torna possível porque os
homens o começam sempre do novo e do princípio, mas ligam-se ao
trabalho e aos resultados obtidos pelas gerações precedentes. Daí concluirmos
que o conhecimento é, além de advir da ação do homem face à transformação
do real, algo acumulativo e que se torna complexo na medida da ampliação e
da complexidade das necessidades materiais e espirituais do ser humano.
Como explicita Lukács,
[...] a reprodução individual ou social, põe em movimento o
complexo trabalho; e todas as mediações existem
ontologicamente apenas em função da sua satisfação. O que
não desmente o fato de que tal satisfação possa ter lugar
com a ajuda de uma cadeia de mediações, as quais
transformam ininterruptamente tanto a natureza que circunda a
sociedade, quanto os homens que nela atuam, as suas
relações, qualidades etc., [...] ao mesmo tempo em que o
63
homem [...] põe em ser um processo de desenvolvimento das
próprias capacidades no sentido de níveis mais altos (1978, p.
5).
Nesse processo, é imprescindível levar-se em conta que o homem, para
alterar o “natural” das coisas em-si ou para dar prosseguimento em tal
alteração com produtos cada vez mais sofisticados, busca meios para tornar o
que é previa-ideação em algo materializado o homem busca meios
compatíveis com a sua projeção. Ou seja, ele procura captar as necessárias
determinações do real para tornar-se apto a operar sua transformação.
Logicamente, caso não seja capaz de colher devidamente essas
determinações, não conseguirá transformar a causalidade em causalidade
posta não realizará em ato a sua finalidade, não concretizará o potencial
teleológico. Com essa busca o homem inicia a identificação da propriedade das
coisas e inicia um processo de seleção e qualificação do em-si em função do
seu projeto de transformação da matéria natural em algo humanizado, o que
significa o embrião do processo de valoração.
Referindo-se a Lukács, Lessa (2002) nos permite prosseguir e refinar
esse raciocínio, à medida que esclarece que o pôr teleológico é composto por
dois momentos: a posição do fim” e a “busca dos meios”, os quais constituem
a mediação que fixa e desenvolve os conhecimentos do real adquiridos ao
longo da História. É a busca dos meios que torna ato a finalidade, pois é a via
de conhecimento do sistema causal dos objetos, da legalidade dos mesmos e,
simultaneamente, dos processos necessários para a sua transformação; é,
portanto, a possibilidade de o movimento para realização de um fim posto. A
busca dos meios compreende a disposição para a captura da legalidade do
64
em-si existente, sendo, desse modo, o eixo de conexão do trabalho com o
pensamento científico e com o seu desenvolvimento.
[...] a ciência [...] cumpre uma função social específica: é a
mediação que fixa e desenvolve o conhecimento acerca da
natureza ao longo da história [...].
Uma peculiaridade da ciência diante da consciência
cotidiana está na exigência de universalidade de suas
categorias (LESSA, 2002, p. 88).
Não obstante a afirmação da imprescindibilidade do conhecimento do
real pelo sujeito que tenciona transformá-lo, isso não pode ser confundido com
a suposição de um conhecimento absoluto do real para que uma posição
teleológica possa ser objetivada, pois
Se toda posição teleológica requer algum conhecimento do ser-
precisamente-assim existente, essa exigência pode ser
entendida como absoluta apenas para aquela porção do real
(objetos, relações etc.) diretamente envolvida no ato em
questão. Sem esse efetivo conhecimento do real, a atualização
do fim é uma impossibilidade. [...]. Desse modo, ainda que um
conhecimento absoluto da totalidade do existente seja uma
impossibilidade ontológica (acima de tudo porque o real está
permanentemente em movimento), sem um mínimo de
conhecimento do ser-precisamente-assim existente o trabalho
não pode ser bem sucedido (ibid., p. 92–93).
Assim sendo, a necessária apreensão de uma porção do real está
diretamente envolvida com o ato do sujeito para que possa atualizar uma
finalidade consciente. Essa atividade de apreensão denominado reflexo
diferente de qualquer hipótese reducionista que a situe como mera cópia
mecânica do real pela subjetividade — espelhismo —, significa
Fenômeno social que não apenas reproduz de forma
aproximativa o real na consciência, mas também realiza sujeito
e objeto enquanto pólos distintos da relação gnosiológica [...]
apenas tendo por mediação essa distância pode o
conhecimento se realizar enquanto movimento de constante
aproximação da consciência ao ser (ibid., p. 97).
Como vimos, o reflexo apreensão das determinações do real pela
subjetividade constitui o real (concreto) pensado e viabiliza a distinção entre
65
o sujeito que o capta e o próprio real (em-si). Com efeito, o reflexo que tem sua
existência no interior do trabalho, no momento da busca dos meios, é, além de
essencial à realização da teleologia, “um fato fundamental do Ser Social”, pois
instaura a dualidade” entre “o pensado e o real”, o sujeito e o objeto,
“tornando-se um dos momentos decisivos da distinção, no plano do ser, entre o
mundo dos homens e a natureza” (LUKÁCS, ap. LESSA, 2002, p. 99). Cabe
observar-se ainda que essa captura do real pela consciência o é algo isento
de determinações históricas, portanto um campo que pode sofrer influências
diversificadas, tais como a ideologia, a política etc.
As categorias pensadas tornam-se uma realidade expressa na
consciência. Contudo, apesar de constituir uma objetividade, essa realidade da
consciência não significa a realidade em-si, mas sim a sua reprodução na
consciência.
Esse movimento de apreensão do real — captação de uma porção
(necessária) da totalidade é imprescindível à conversão da teleologia em
“causalidade posta”. É o movimento que possibilita efetivar, pôr em ato, o que
se encontrava em estágio de ideação. Por meio da apropriação subjetiva do
real, o homem, tendo em vista a realização da sua finalidade, defronta-se com
diversas possibilidades concretas. Desse modo julga, escolhe o que tomar
como ato para que possa transformar algo em produção humanizada
transforma o que era prévia-ideação, mediante a categoria alternativa, em
produto resultante do seu trabalho.
Temos, dessa maneira, a objetivação como transformação
teleologicamente orientada do real, ou seja, como processo de materialização
de um produto humanizado por meio da escolha, da categoria alternativa posta
66
em prática pela opção do sujeito(s) face às demais possibilidades que a ele(s)
se mostraram (até a possibilidade de não realizar). Isso significa, também, que
a categoria alternativa, situada no âmbito da práxis social, articula-se com os
processos valorativos, pois se refere à opção do sujeito diante das diversas
possibilidades concretas que a ele se apresentam quando, ao se apropriar do
real na consciência, visa à realização teleológica, à concretização de um
produto previamente ideado, projetado pela faculdade humana de
conscientemente atribuir finalidade, movimento que precede a materialização
do produto final.
[...] a práxis é uma decisão entre alternativas, já que todo
indivíduo singular, sempre que faz algo, deve decidir se o faz
ou não. Todo ato social, portanto, surge de uma decisão entre
alternativas acerca de posições teleológicas futuras [...]
(LUKÁCS, 1978, p. 6).
Podemos dizer que, o reflexo se vincula à busca dos meios, conforme
explicado na gina anterior, e aos processos valorativos que atuarão também
na posição dos fins. Em todo esse processo o homem situa-se como produtor,
mas também como produto, uma vez que, ao intercambiar com a natureza
produzindo elementos humanizados, simultaneamente autoconstrói-se, constrói
o mundo humano, todavia em circunstâncias determinadas que não foram
por ele escolhidas.
[...] negamos aqui toda forma generalizada de teleologia, não
apenas na natureza inorgânica e orgânica, mas também na
sociedade; e limitamos a sua validade aos atos singulares do
agir humano-social, cuja forma mais explícita e cujo modelo é o
trabalho.
Todavia, a realidade do trabalho e suas conseqüências dão
lugar, no ser social, a uma estrutura inteiramente peculiar. De
fato, embora todos os produtos do pôr teleológico surjam de
modo causal e operem de modo causal, com o que sua gênese
teleológica parece desaparecer no ato de sua efetivação, eles
têm, porém, a peculiaridade puramente social de se
apresentarem com o caráter de alternativa [...]. Tais
67
alternativas, mesmo quando são cotidianas e superficiais,
mesmo quando de imediato têm conseqüências pouco
relevantes, são, todavia, autênticas alternativas, que contêm
sempre em si a possibilidade de retroagirem sobre o seu sujeito
para transformá-lo [...] contém em si a referida possibilidade
real de modificar o sujeito que escolhe (LUKÁCS, 1979, p. 81).
Como podemos observar, a categoria alternativa pertence ao âmbito da
práxis social, sendo descabida, portanto, a sua relação com o mundo natural.
Qualquer tentativa de analogia nesse sentido, com o mundo animal, por
exemplo, pode partir da indevida desconsideração de que o que é situado
como alternativa nessa esfera “se mantém no plano biológico e não provoca
transformações interiores de nenhum tipo” ou, melhor, como explicitado na
citação imediatamente anterior, o “contém sempre em si a possibilidade de
retroagir sobre o seu sujeito para transformá-lo”. Além disso, como também nos
torna claro Luckács, a alternativa social, contrariamente, mesmo quando é
profundamente radicada no biológico, como no caso da nutrição ou da
sexualidade, não é uma esfera que permanece fechada, uma vez que contém
sempre em si a citada possibilidade de modificar o sujeito que escolhe, tendo
inclusive a tendência a fazer recuarem socialmente as barreiras naturais (1979,
p. 81).
Todo ato singular alternativo contém em si uma série de determinações
sociais e o resultante dessa ação, por sua vez, adquire independência face às
intenções conscientes do sujeito e implica efeitos, constitui séries causais, cuja
legalidade se torna independente das intenções postas nas alternativas.
“Portanto, as legalidades objetivas do ser social são indissociavelmente ligadas
a atos individuais de caráter alternativo, mas possuem ao mesmo tempo
coercitividade social que é independente de tais atos” (ibid., p. 84).
68
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem de
modo arbitrário, em circunstâncias por eles escolhidas, mas
nas circunstâncias que encontram imediatamente diante de si,
determinadas por fatos e pela tradição (MARX, ap. LUKÁCS,
1979, p. 83).
Como exposto, o reflexo, elaboração do real na consciência,
apreensão de porção da realidade, é um potencial que pode objetivar-se ou
não; portanto nesse sentido um não-ser, uma vez que constitui um potencial
que pode efetivar-se objetivar-se ou não. Se objetivado, houve ação para
gerar o produto humanizado, o que permitirá via de retorno sobre o seu criador
e sobre a totalidade movimento denominado exteriorização , ou seja, “um
momento ineliminável do processo de individuação e, por essa mediação, do
desenvolvimento do humano-genérico [...] essencial ao devir-humano [...] um
momento universal do trabalho” (LESSA, 2002, p. 138).
À ação de retorno de todo ente objetivado sobre o seu criador
(e por essa mediação [...] sobre a totalidade social) Luckács
denominou exteriorização [...]. Ao contrário do estranhamento
ou alienação [...], que o os obstáculos socialmente postos à
plena explicitação da generalidade humana, a exteriorização
corresponde [...] aos momentos nos quais a ação de retorno da
objetivação (e, claro, do objetivado) sobre o sujeito impulsiona
a individuação (e, por meio dela, também a sociabilidade) a
patamares crescentemente genéricos (ibid., p. 137).
A teleologia transforma-se, por meio do trabalho, em causalidade posta,
em objetivação que tanto constrói a individualidade humana quanto constrói a
sociedade. É um processo em que o homem age e sofre as conseqüências das
suas ações, pois a objetivação significa o momento da transformação
teleologicamente orientada do real e a exteriorização corresponde ao momento
da ação de retorno da objetivação e do objetivado sobre o sujeito (e a
totalidade social). Quanto a isso, é importante situar ainda que toda a
objetivação implica a exteriorização do sujeito. Mas, se por um lado
69
exteriorização e estranhamento “possuem em comum ações de retorno das
objetivações sobre a individuação (e sobre a totalidade social, com todas as
mediações cabíveis)”, por outro lado distinguem-se por “ser o estranhamento
uma ação que reproduz a desumanidade socialmente posta, enquanto a
exteriorização é o momento de autoconstrução do gênero humano” (id., ibid.).
Prosseguindo na discussão sobre a questão do gênero humano, cabe
considerarmos que, assim como o trabalho em suas realizações iniciais
possibilitou o salto do ser orgânico para a condição de ser humano, o
desenvolvimento permanente do trabalho é responsável pela possibilidade do
ser humano em seu verdadeiro sentido social, uma vez que, como a obra de
Lukács (1979) esclarece, “o nascimento do gênero humano em sentido social é
o produto necessário, involuntário, do desenvolvimento das forças produtivas”.
Essa afirmação resulta de um importante estudo realizado pelo referido
pensador, que levou em consideração para o desenvolvimento do tema a
questão do gênero humano obras de diferentes autores, com destaque para
as referências feitas às seguintes obras de Marx: A Ideologia Ale e
Manuscritos Econômico-Filosóficos. Tal estudo permitiu que ora
mencionássemos, com base no seu pensamento (LUKÁCS, 1979), que,
diferentemente do mundo orgânico, cuja produção/reprodução da vida não cria
por si relações que possibilitem explicitar objetivamente a unidade dual entre
exemplar e nero, pois mantém unicamente relação biológico-vital forma
de “generalidade muda” —, o ser humano, em decorrência de suas
necessidades, produz meios de vida, por meio do trabalho, efetivando o
necessário intercâmbio com a natureza e com os homens entre si processo
produtor da consciência, da linguagem, das relações sociais, enfim, da
70
sociabilidade. E, por conseguinte, processo fundante do mundo humano e nexo
da ligação (crescente) dos indivíduos singulares com a sua própria essência
genérica. A esse respeito, é importante destacar, ainda, as seguintes
explicações:
A linguagem é tão velha como a consciência a linguagem é
a consciência real prática que existe também para outros
homens e que, portanto, assim existe para mim e a
linguagem nasce, como a consciência, da necessidade, da
carência física do intercâmbio com outros homens [...]. A
consciência é, pois, logo desde o começo, um produto social, e
continuará a sê-lo enquanto existirem homens [...] (MARX e
ENGELS, 1984, p. 33–34).
Além disso,
A realização do elemento genérico no indivíduo é indissociável
daquelas relações reais nas quais o indivíduo produz e
reproduz sua própria existência, ou seja, é indissociável da
explicação da própria individualidade. [...]. Assim como a
consciência especificamente humana pode nascer em
ligação e como efeito da atividade social dos homens (trabalho
e linguagem), também a consciência de pertencer ao gênero se
desenvolve a partir da convivência e da cooperação concreta
entre eles [...] a gênese da consciência genérica humana
apresenta ordens de grandeza e graus muito variados: desde
tribos, com vínculos ainda quase naturais, até as grandes
nações (LUKÁCS, 1979, p. 144–145).
Cabe observar que, com o advento da sociedade do capital, época de
maior desenvolvimento das forças produtivas na História período de
importante recuo do limite imposto pelas barreiras naturais e de alto grau de
desenvolvimento das relações sociais —, nos deparamos com a condição de
plena interdependência entre os povos. Condição de tal proximidade e ligação
entre os homens, em decorrência da efetivação de uma “economia mundial”
pelo capitalismo, que traz à baila a questão da possibilidade de qualificação
das relações entre eles, ou seja, a questão da unificação” do gênero humano
“o caminho para o nero humano em sentido social como uma
71
transformação do em-si natural em ser para-nós [...] transformação que poderia
alcançar até ‘a plena explicitação em um ser para-si’” (LUKÁCS, 1979), posto
que, tal como mencionado, “o gênero humano ascende à ordem do dia, como
problema universal que envolve a todos os homens, quando surge e se
intensifica o mercado mundial” (id., ap. LESSA, 1995, p. 29). No entanto, ao
mesmo tempo em que tal possibilidade torna-se aberta pelo mercado mundial,
contraditoriamente, nessa formação social a alienação é característica
fundamental.
16
Diante da referida possibilidade aberta pelo mercado mundial
ou, melhor, diante de um dos possíveis desdobramentos dessa situação
concreta — a emersão do ser para-si, a unificação do gênero humano
Lukács ressalva que
A elevação da humanidade ao seu ser-para-si requer que a
consciência reconheça em escala individual e social o
processo objetivo de integração dos homens; requer, também,
que seja valorada positivamente essa tendência objetiva e, por
fim, que seja reconhecido como máximo valor a elevação da
humanidade a unidade sócio-filogenética do gênero-humano
[...] exige “um ato consciente dos próprios homens” (LUKÁCS,
ap. LESSA, 1995, p. 25).
Ao considerarmos a questão do valor e a questão do dever-ser —
ambas relacionadas à genericidade humana —, cabe-nos situar a princípio que
essas duas categorias são categorias próprias do mundo humano. Não cabe
quanto a elas, qualquer referência à natureza inorgânica ou à natureza
orgânica, a qual possui como parâmetro de reprodução a adaptação ao
ambiente. Só no mundo humano encontra-se o trabalho ou, melhor, essa é a
16
Apesar de não pretendermos aqui polemizar e sabermos que autores que expressaram
discordâncias com relação a tal interpretação de Lessa, esclarecemos o uso do termo alienação na
perspectiva em que Lukács emprega o termo estranhamento, pois, segundo Sergio Lessa (1997, p.117), o
fenômeno denominado estranhamento por Lukács “corresponde à criação, pelos próprios homens, no
fluxo da práxis social, de obstáculos à plena explicitação do gênero humano (e, portanto, das
individualidades) ao contrário da alienação, que, para Lukács, corresponde ao momento de afirmação
do humano [...]”.
72
sua categoria fundante, e é por meio do produto do trabalho que surgem os
valores. São as propriedades que o produto adquiriu que ganham significado
para o homem, em decorrência das funções sociais que o produto
desempenhará. Melhor colocando, como esclarece Lukács (1978, p. 7), no
conhecimento distingue-se entre o ser-em-si dos objetos o seu
objetivamente existente e o ser-para-nós dos objetos o pensado sobre
eles. Todavia, no trabalho o ser-para-nós do produto torna-se a sua
propriedade objetiva realmente existente, além de tratar-se da propriedade em
virtude da qual o produto poderá, se posto e realizado corretamente,
desempenhar suas funções. Ou seja, as propriedades objetivas do existente
referência à matéria (ou objetivado) a ser utilizada ou do que a partir da
transformação realizada pelo homem passou a existir tornam-se valor ou
desvalor em função da satisfação das necessidades do homem. Portanto, seja
quando o homem identifica propriedades em algo para efetuar o produto
humanizado, seja na objetivação do trabalho humano — o produto humanizado
—, a valorização pressupõe alternativas, escolha face à existência de
elementos reais e sua utilidade em relação à práxis e às necessidades sociais
postas e repostas — recriadas — historicamente.
O ser humano, sendo forçado a operar posições teleológicas,
faz surgir os valores como “um tipo de comportamento prático
que tem de ser adotado inelutavelmente, que se desenvolve
necessariamente das determinações específicas do ser social e
é obrigatório para seu funcionamento específico”. “O trabalho
[...], assim como todas as formas sociais mais complexas da
práxis, realiza as posições teleológicas objetivamente
necessárias também sobre aqueles objetos naturais que
reentram no rculo do intercâmbio orgânico e, através dele,
surgem, como necessidade ontológica, valores e valorações”
(LESSA, 1995, p. 24).
73
Esses argumentos permitem-nos identificar que a valoração de um
objeto não é algo exclusivamente subjetivo; diferentemente de qualquer
concepção restrita ao subjetivismo, a valoração pressupõe a práxis, o trabalho
e seu produto neles encontramos a gênese dos valores e dos processos
valorativos —, ou seja, a base originária dos valores e dos processos
valorativos está (podendo a partir daí desdobrar-se em patamares mais
elevados de sociabilidade) nas ações dos homens em busca de resposta às
suas necessidades, sob determinadas condições sócio-históricas. Aliás, quanto
a isso, cabe ser apreciado, ainda, o que explica Lukács:
[...] o produto do trabalho tem um valor (no caso de fracasso, é
carente de valor, é um desvalor). Apenas a objetivação real do
ser-para-nós faz com que possam realmente nascer valores. E
o fato de que os valores, nos níveis mais altos da sociedade,
assumam formas mais espirituais [...] não elimina o significado
básico dessa gênese ontológica (1978, p. 7).
Em Lukács, também encontramos argumentos acerca do dever-ser.
Segundo o autor, a categoria do dever-ser cujo conteúdo é um
comportamento humano determinado por finalidades sociais tem, de forma
similar à categoria dos valores, a sua base no trabalho, uma vez que, como
explicitamos anteriormente, é essencial ao trabalho o comportamento humano
determinado por finalidades previamente postas. Assim sendo,
[...] essencial ao trabalho é que nele não apenas todos os
movimentos, mas também os homens que o realizam, devem
ser dirigidos por finalidades determinadas previamente.
Portanto, todo movimento é submetido a um dever-ser.
Também aqui não surge nada de novo, no que se refere aos
elementos ontologicamente importantes, quando essa estrutura
dinâmica se transfere para campos de ação puramente
espirituais [...] (id., ibid.).
Todavia, se a base dessas duas categorias é a ação dos homens em
função do carecimento material — “motor do processo de reprodução individual
74
ou social que põe efetivamente em movimento o complexo trabalho” —, essa
base desdobra-se em um processo historicamente aberto, ininterrupto, que
desencadeia nexos sociais cada vez mais complexos, pois os homens, além de
produzirem os instrumentos de trabalho, os produtos, e além de transformarem
ininterruptamente a natureza, também criam e transformam as relações sociais
e se transformam. Produzem, também, novas capacidades, novas qualidades e
criam novas necessidades e possibilidades, sejam materiais ou espirituais,
“põem em ser um processo de desenvolvimento das suas próprias capacidades
em níveis mais altos”. Cabe lembrarmos que, buscando dar respostas às suas
necessidades e indagando sobre suas próprias carências e sobre as
possibilidades de satisfazê-las, o ser “hominiza-se”. Assim, torna-se ser capaz
de criar, afastar barreiras naturais, indagar quanto ao sentido da vida e atribuir
significados.
Assim sendo, cabe observar que
[...] o máximo valor ético surge do desdobramento objetivo da
processualidade social; entre os valores e o ser-precisamente-
assim do mundo dos homens não há, pois, nenhuma relação
de exterioridade, nenhuma antinomia ao nível do ser. Pelo
contrário, os valores são sempre sociais. E, por serem sociais,
podem ter e efetivamente desempenham um papel de
relevo na processualidade objetiva das formações sociais, um
papel que tende a crescer na medida em que avança o
processo de sociabilização (LESSA, 1995, p. 25).
O trabalho pressupõe atos individuais, mas gera intercâmbio,
cooperação e sociabilidade entre os homens. Com o desenvolvimento da
sociabilidade as tensões entre as esferas particular e genérica tendem a se
apresentar cada vez mais nítidas, fazendo com que mediações sociais surjam
e tenham que operar na cotidianeidade. A necessidade social de tais
mediações é entendida, por Lukács, como origem e desenvolvimento de
75
aspectos como a moral, a tradição, o direito e a ética. Sem nos determos em
distinções, cabe destacar que, no parecer do referido pensador, esses
elementos têm como função social a atuação no espaço que se torna aberto
pela contradição entre o gênero e o particular, permitindo aos homens a
escolha de valores, sejam os referentes às necessidades humano-genéricas
sejam os referentes aos interesses apenas particulares de indivíduos ou grupos
sociais.
Todavia, apesar de não termos indicado distinções, cabe ressaltar que,
diferentemente dos outros elementos citados posto que esses, como
dissemos, apenas se situam no interior das tensões, sem que apresentem
alternativas para superá-las a ética, para Lukács, atua no interior da
contradição gênero/particular visando à superação da relação dicotômica entre
indivíduos e sociedade.
Observe-se que a sociedade burguesa a única formação até então
puramente social possibilita ao homem reconhecer-se como autor/ator da
sua própria História. Por meio da expansão do mercado (e do conseqüente
avanço científico), é possível ao indivíduo tomar ciência de que ele é parte da
humanidade, do gênero humano, e possível também a ciência de que indivíduo
e sociedade não são formas contrárias, mas facetas de uma mesma realidade.
Porém, contraditoriamente, é com essa sociabilidade burguesa que nos
defrontamos com o indivíduo burguês e o cidadão, com a contradição entre o
indivíduo e o humano-genérico, o privado e a idéia de pertencimento ao
público. Podemos então dizer que nos defrontamos com um antagonismo
indivíduo/sociedade e um conflito que se põe para a superação. Contudo, essa
superação pode ser pensada se se considerar a exigência de uma práxis
76
que construa mediações sociais que explicitem e favoreçam o reconhecimento
coletivo das necessidades postas pelo humano-genérico. E que considerem,
além disso, a exigência de que nos atos postos pelos indivíduos as escolhas,
as orientações de valores, as finalidades, enfim, os atos teleologicamente
postos, sejam predominantemente direcionados para o desenvolvimento da
genericidade humana. O que se encontra no campo da ética
(reflexão/investigação), uma vez que a ela cabe, segundo Lukács, a função
social de “conectar as necessidades postas pela generalidade humana em
desenvolvimento, com a superação do antagonismo gênero/particular” (1997,
p. 99).
Dessa maneira, tendo em conta nosso objeto de estudo e o exposto,
prosseguiremos nesse trabalho de doutoramento, considerando a relação entre
sociedade/sociabilidade burguesa, ética e Serviço Social. Para tanto, no
capítulo seguinte, teceremos considerações sobre o modo de produção
capitalista, sobre a relação entre ética e economia e o fenômeno ora
denominado criminalização da pobreza.
77
Capítulo 2 - O capitalismo pretende o controle da
totalidade?!
2.1- Considerações acerca do modo de produção capitalista
Inicialmente, face ao tema a ser desenvolvido, considerarmos importante
destacar, com base em Dobb (1983), o entendimento de que as fronteiras entre
os sistemas econômicos não devem ser traçadas nas páginas da História como
uma linha divisória bem clara. Deve-se captar predominâncias nas relações
socioeconômicas, percebendo que em certas proporções essas
predominâncias permitem a impressão de marcas no conjunto da sociedade
que influenciam a tendência do desenvolvimento. Dessa maneira, ao se
considerar a transformação da forma medieval de exploração do trabalho
excedente para a moderna, apesar de sabermos que não foi processo simples
e que possa ser apresentado como uma tabela genealógica de descendência
direta, é possível a distinção de certas linhas de direção do seu fluxo. Linhas
que incluem desde inovações de tecnologias e de instrumentos de produção,
inovações socioculturais, crescente divisão do trabalho e ampliação de trocas,
como também uma crescente separação entre os produtores, a terra e os
meios de produção e a conseqüente origem do proletariado (DOBB, 1983, p.
10-14).
78
Podemos dizer, por conseguinte, que o conflito entre as forças
produtivas e as relações feudais, engendrou o modo de produção capitalista.
Esse modo de produção/reprodução fincou suas raízes históricas e erigiu-se na
seqüência de um longo e conturbado processo que passou por abalos e
fissuras no sistema feudal até culminar no que poderíamos apreciar como sua
superação.
17
É importante ressaltar que esse modo de produção têve o
ineditismo de constituir-se pelo mercado pela supremacia do valor de troca,
pela orientação pelo/para o lucro. Um sistema de produção de mercadorias
onde a própria força de trabalho torna-se mercadoria, como qualquer outro
objeto de troca; e cuja existência constitui-se historicamente pela contradição
entre a concentração da propriedade, dos meios de produção, nas mãos de
pequeno segmento da sociedade e o conseqüente surgimento de uma maioria
destituída de meios de sobrevivência, levada à venda da sua força de trabalho.
Ou seja, ao lado da socialização do trabalho encontra-se a apropriação privada
da riqueza socialmente produzida.
Tivemos, assim, a conformação de uma organização social cujas
relações materializam a submissão do trabalho ao capital e os valores de uso
incorporam a condição de mercadoria (inclusive a força de trabalho toma a
forma de mercadoria que, para reproduzir-se, necessita ser trocada por
salário); tivemos a emersão de uma formação social cuja tendência é a
universalização das relações mercantis.
Quanto à mercadoria, Marx explicita:
17
È importante termos claro que a história do capitalismo e os seus estágios de desenvolvimento não
apresentam as mesmas datas para as diferentes partes do mundo, para as regiões dos próprios países e até
mesmo para os diferentes ramos da produção. Conforme Dobb (1983), mais adequado seria não nos
referirmos a uma única história do capitalismo, mas a uma coleção de histórias do capitalismo, todas com
uma semelhança geral de forma, mas cada qual separadamente datada no que diz respeito aos seus
estágios principais.
79
O processo de produção é a unidade imediata do processo de
trabalho e do processo de valorização, assim como o seu
resultado, o resultado imediato, a mercadoria, é unidade
imediata do valor de uso e do valor de troca (s/d, p. 57).
Nesse tipo de formação social, a mercadoria atravessa a sociabilidade,
mediante a primazia do trabalho alienado e do valor de troca, elementos que
lhe servem de fundamento e finalidade, e não o trabalho concreto, criativo e
produtor de valores úteis às reais necessidades sociais. Como se pode
observar em obra de Rosdolsky,
no capitalismo a apropriação do mais-trabalho se converte
em um fim em si, e o constante incremento deste se transforma
em condição indispensável do processo de produção. E o
capital dispõe de meios e de incentivos que superam
largamente “em energia e eficácia” o uso do trabalho forçado
direto, típico das sociedades anteriores (MARX, ap.
ROSDOLSKY, 2001, p.193).
Isso nos permite inferir que é imanente ao modo de produção capitalista
a disposição para a mundialização, haja vista a sua peculiar e contínua
necessidade de buscar matérias-primas e força de trabalho (o mais barata
possível), e de adequar as forças produtivas ao seu modo de operar a
produção e a circulação de mercadorias, extraindo/realizando mais-valia. Esse
elemento propulsor do movimento do capital tornou-o apto a romper fronteiras
e a ultrapassar barreiras que porventura se interpusessem (ou se interponham)
à sua expansão/valorização, especialmente em períodos que correspondem às
suas crises cíclicas.
Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a
burguesia invade o globo inteiro. É para ela uma necessidade
penetrar por toda parte, criar relações por toda parte.
Pela exploração do mercado mundial, a burguesia um
caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os
países (MARX e ENGELS, 1998, p. 55).
80
Entendemos que a História é uma produção humana, constituída por
complexos processos (variedade e diversidade de movimentos) que articulam
inúmeros fatores, vinculados, essencialmente, à base econômica (as relações
de produção, as forças produtivas e as suas correspondências no plano
subjetivo, na instância ideológica). Entretanto, sem pretender uma elaboração
de teor refinado nesse sentido histórico, permitimo-nos mencionar que a
gênese do capitalismo, em linhas gerais, pode ser situada no século XVI.
Período em que os pilares do modo de produção capitalista são fincados na
História, mediante uma perspectiva revolucionária que, a princípio, com a
burguesia à sua frente combatendo o absolutismo-feudal, trouxe a prerrogativa
do trabalho humano como a verdadeira fonte de riqueza social o que foi
também traçando o percurso de sujeição do trabalho ao capital e, por
conseguinte, o percurso da monopolização por uma parte da sociedade (a
burguesia) da riqueza socialmente produzida. Desse modo, a medida do
declínio do feudalismo é a mesma da ascensão do modo de produção
capitalista.
O monopólio das corporações da feudalidade foi sendo
progressivamente erradicado; em conseqüência, o mercado local e
circunvizinho cedeu lugar ao comércio ampliado e mais tarde à indústria e ao
“mercado industrial”. O artesão independente da Idade Média veio a ser
substituído pelo trabalhador assalariado o trabalhador livre para vender a
sua força de trabalho.
O sistema de produção das corporações medievais, cujos trabalhadores
vendiam o produto do seu trabalho, por serem os proprietários das matérias-
primas e dos meios de produção, foi tendo, gradativamente, que ceder espaço
81
à produção fabril, cujos trabalhadores, concentrados em maior número sob o
comando e o controle do capitalista dono dos meios de produção —,
passaram a vender a sua força de trabalho para a produção de mercadorias.
Recorrendo a Marx e Engels, podemos observar:
Eis, pois, o que vimos: os meios de produção e de troca que
servem de base à evolução burguesa foram criados dentro da
sociedade feudal. Em uma certa altura do desenvolvimento
desses meios de produção e de troca, as forças produtivas não
correspondiam mais às relações com que a sociedade feudal
produzia e trocava seus produtos [...].
Em seu lugar, estabeleceu-se a livre concorrência, com
uma organização social e política correspondente, sob a
dominação econômica e política da classe burguesa (ibid., p.
56 – 57).
O espaço circunscrito às cidades medievais tornou-se inoperante face às
forças sociais que avistavam maior possibilidade de expansão e poder em nova
forma produtiva e em novos e mais amplos horizontes comerciais. Diferentes
bases de organização social foram sendo construídas e, desse processo
decorreram a emersão e a consolidação do Estado como instância funcional à
expansão econômica capitalista dos sistemas políticos adequados aos
apelos de incentivo ao comércio exterior, o qual trouxe em sua esteira o
impulso à efetivação da produção e do comércio industriais, ao Estado
moderno —, lócus privilegiado do poder e da política e expressão do poder
social de classe.
18
Historicamente, essa forma se expressa a partir do século
XVIII, caracterizando um poder legitimado, centralizado, impessoal e territorial.
No percurso histórico do capital foi sendo gradativamente gestada uma
forma estatal funcional ao seu desenvolvimento, à produção e à circulação de
mercadorias. Não obstante ser produto direto do Estado absolutista, o Estado
18
Apesar de haver diferenças nas concepções de Estado entre os pensadores da tradição marxista
(incluímos o pensamento marxiano), estas concepções mantêm em comum a compreensão da natureza de
classe do poder estatal. A esse respeito, consultamos a obra Dualidade de Poderes de autoria de Carlos N.
Coutinho, 1987.
82
burguês é também, conforme Mandel (1982), a sua negação, haja vista os
empecilhos postos pelo Estado absolutista, especialmente em que se refere ao
intervencionismo econômico, face às pretensões de livre expansão do
capitalismo.
O Estado burguês difere de todas as outras formas de dominação de
classe pelo isolamento das esferas blica e privada da sociedade (que
obterão “novos” contornos na fase dos monopólios). Isso decorre, segundo
Mandel, da generalização da produção de mercadorias, da propriedade privada
e da concorrência de todos contra todos. Para ele, a concorrência capitalista
remete o Estado à autonomização, de modo que possa funcionar como um
“capitalista ideal”.
19
E, invocando Kaustsky, Mandel explicita, que é como se a
classe capitalista “reinasse, mas não governasse”.
20
O capital é incapaz de produzir por si mesmo a natureza social
de sua existência em suas ações; precisa de uma instituição
independente, baseada nele próprio, mas que não esteja
sujeita a suas limitações, cujas ações não sejam determinadas,
portanto, pela necessidade de produzir (sua própria) mais-valia.
Essa instituição independente, “ao lado, mas fora da sociedade
burguesa”, pode, baseada simplesmente no capital, satisfazer
as necessidades imanentes negligenciadas pelo capital.... O
Estado não deve ser visto, portanto, nem como simples
instrumento, nem como instituição que substitui o capital.
pode ser considerado como uma forma especial de
preservação da existência social do capital “ao lado, mas fora
da concorrência” (ALTVATER, ap. MANDEL, 1982, p. 336).
O percurso da promulgação das leis de proteção ao comércio e de
incentivo à indústria foi o mesmo da concorrência mercantil, da rivalidade entre
as nações, isto é, o percurso da luta concorrencial ou até da beligerância pelo
mercado traços que se tornaram pertinentes à ordem mundial burguesa.
Ordem esta que, após séculos de investidas da burguesia no sentido de
19
Referindo-se a Engels, na obra ANTI-Dühring.
20
Referindo-se a uma formulação de Kautsky, que, quando Mandel (1982) escrevia esta obra, havia
sido produzida há 70 anos.
83
viabilizar transformações favoráveis à constituição do seu poder econômico, se
consolidou pelo alcance do poder político o apogeu da burguesia contou
com inúmeras revoluções, inclusive grande parte delas travestidas de lutas
religiosas, entre as quais, como clássicas, destacamos: a Revolução
Holandesa, a Revolução Inglesa e a Revolução Francesa. As revoluções
burguesas, salvaguardadas as diferenças entre países e regiões, arrastaram-
se por séculos, até os destroços do feudalismo, e esmagaram reis, sacerdotes,
aristocratas, guildas, leis e ideários feudais, contando, inclusive, com diferentes
expressões de resistência dos trabalhadores em face de determinadas
estratégias de expropriação dos seus meios de trabalho/sobrevivência.
Todavia, a partir do século XVIII, a burguesia tornou-se classe dirigente,
uma vez que o capitalismo passou a ser o modo de produção predominante.
Para isso, a burguesia contou, em grande medida, com as condições que lhe
eram oportunas em função das lutas dos trabalhadores explorados e
destituídos dos seus meios de produção contra a nobreza parasitária da época.
Observe-se, ainda, que se tornar capitalista não significou ocupar somente uma
posição pessoal, mas, sobretudo, uma posição social no sistema da produção,
e “embora fosse na época uma classe progressista, a burguesia funda
objetivamente um regime de exploração e é limitada pelas formas de divisão do
trabalho que esse regime introduz” (COUTINHO, 1972, p. 16).
Não obstante compreendermos que não cabe comprometimento com
interpretações monocausais acerca do desenvolvimento do modo de produção
capitalista, permitimo-nos afirmar que a “chave dessa história” encontra-se na
porta que foi sendo aberta pela paulatina privação dos trabalhadores dos seus
meios de produção. Só assim o capital (inicialmente) acumulado pôde ser
84
adicionado, pôde se reproduzir, ampliando-se por meio do contínuo
investimento propiciado pelo trabalho não-pago que viabilizou/a novos ciclos
produtivos. Quanto a isso, Rosdolsky esclarece que
[...] só então, quando se baseia no trabalho assalariado, a
produção de mercadorias se impõe forçosamente à sociedade
como um todo, e então também a lei do valor-trabalho pode
sair da forma embrionária que se mantinha em condições pré-
capitalistas, convertendo-se em uma determinação que
abrange toda a produção social e a regula (2001, p.153).
Esse processo (em curso), que teve a sua emersão e que foi de início
operado sob determinadas relações sociais, engendrou e engendra relações
sociais próprias, pois, como se pode verificar historicamente, a determinados
modos e meios de produção e de apropriação da riqueza correspondem
determinados modos e meios de vida social.
O modo de produção capitalista se torna possível em certo
estágio do desenvolvimento das forças produtivas quando
existem condições materiais prévias à subordinação formal, e
depois efetiva, do trabalho ao capital (MANDEL, 1982, p. 395).
Assim, a ordem burguesa, configurada como organização social que
hegemoniza o valor de troca, produziu os seus mecanismos de
preservação/expansão, contando com a essencialidade do recurso à coação, à
persuasão e ao controle. Por conseguinte, leis, ciência, progressos técnicos,
educação, moral — enfim, o recurso a mecanismos reguladores “mais duros”, a
teorias, a métodos e técnicas e a normas sociais de conduta compatíveis com
a propriedade privada, a resignação (diante de uma ordem social
“absolutizada”), o individualismo, a competição — tornaram-se a superestrutura
— jurídica, política, ideológica — própria da produção/reprodução capitalista.
[...] a burguesia, a partir do estabelecimento da grande
indústria e do mercado mundial, conquistou enfim, de modo
exclusivo, o poder político do Estado representativo moderno.
A burguesia representou na História um papel
essencialmente revolucionário. [...].
85
[...] a burguesia arrasta na corrente da civilização até as
nações mais bárbaras. Numa palavra, modela o mundo à sua
imagem
21
(MARX e ENGELS, p. 53 - 55 – 56).
O capitalismo pode ser observado, em seu início, como uma
extraordinária revolução na história da humanidade, significando atualização de
possibilidades apenas latentes na economia feudal desenvolvida. No entanto,
não podemos deixar de ressaltar que o capitalismo implicou a submissão do
trabalho ao capital, além de significar complexidade da divisão do trabalho,
formas próprias de progressos sócioculturais, científicos e técnicos, ampliação
da produção e expansão do mercado. Ser a ultrapassagem, que traçando uma
nova geografia econômica, social e ideopolítica, supera uma organização social
que se mantinha assentada, basicamente, na produção voltada para o valor de
uso. Ou seja, uma produção voltada, fundamentalmente, para a satisfação de
necessidades imediatas de consumo e, portanto, restrita no espaço
sóciogeográfico, com divisão do trabalho pouco complexa e um mercado
restrito, que pouco extrapolava os limites do meramente local.
[...] apenas se realiza aquele pressuposto da cooperação em
grande escala ao crescerem os capitais individuais ou na
medida em que os meios de produção social e os meios de
subsistência se tornam propriedade particular de capitalistas.
assumindo a forma capitalista pode a produção de
mercadorias tornar-se produção em grande escala (MARX,
1996, p. 725).
Com o modo de produção em tela, passa-se ao trabalhador coletivo, ou
seja, dos mestres das corporações do feudalismo passa-se ao comando e ao
controle dos capitalistas sobre um contingente cada vez maior de trabalhadores
que efetuam seu trabalho de modo dependente e combinado.
21
Grifo nosso.
86
Progressivamente, o capital inicia a sua escalada de concentração e
centralização.
E é isto especialmente que distingue a centralização da
concentração, que é outra expressão para a reprodução em
escala ampliada. Temos a centralização por mudar
simplesmente a distribuição dos capitais existentes, por
alterar-se apenas o agrupamento quantitativo dos elementos
componentes do capital social. O capital pode acumular-se
numa só mão em proporções imensas, por ter escapado a
muitas outras mãos que o detinham. Num dado ramo de
atividades, a centralização terá alcançado o seu limite extremo,
quando todos os capitais nele investidos se fundirem num
único capital. Numa determinada sociedade seria alcançado
esse limite no momento em que todo o capital social ficasse
submetido a um único controle, fosse ele de um capitalista
individual ou de uma sociedade anônima (Ibid., p.728).
A racionalização continuamente mais apurada do emprego da força de
trabalho permitiu a organização e, mais tarde, a superação da manufatura — a
primeira forma de trabalhador coletivo que se dirigiu ao mercado externo. Essa
forma de produção, embora mantivesse as características do trabalho manual
(fundamental no período feudal), foi fragmentada em tarefas parciais pelo
capitalista, foi por ele absorvida com a efetivação de algumas mudanças,
objetivando a intensificação da produtividade em função do mercado externo.
O período manufatureiro, compreendido basicamente entre os culos
XVI e XVIII, destinou-se ao mercado mundial e marcou uma época de avanços
do comércio marítimo e de introdução do sistema colonial (domínio político e
econômico direto), período cujo predomínio antecedeu a era dos monopólios
capitalistas.
A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou grandes
centros urbanos, aumentou prodigiosamente a população das
cidades [...]. Do mesmo modo que subordinou o campo à
cidade, também subordinou as nações bárbaras ou
semibárbaras às nações civilizadas, os países agrícolas aos
países industriais, o Oriente ao Ocidente (MARX e ENGELS,
1998, p. 56).
87
Com o incremento do sistema manufatureiro de produção, a
especialização do trabalho ampliou-se subdividiu-se em prol da
produtividade —, e propiciando a intensificação da acumulação capitalista,
tornou-se a base do salto para um novo padrão de racionalidade aplicado à
produção, o qual tomou a ciência como sua forte aliada. Marx destaca essa
questão explicitando que
O pleno desenvolvimento do capital só ocorre [...] quando o
meio de trabalho [...] se apresenta diante do trabalho, no
processo de produção, sob a forma de máquinas; então o
processo de produção deixa de estar subordinado à habilidade
direta do trabalhador e aparece como aplicação técnica da
ciência. A tendência do capital, portanto, é dar à produção um
caráter científico [...] (MARX, ap. ROSDOLSKY, 2001, p. 205).
Podemos dizer que o surgimento da máquina a sua introdução como
meio de produção foi uma via para que uma nova forma de consumo da
força de trabalho se colocasse, em resposta às exigências capitalistas de
produção para o mercado ampliado. Encontra-se o “embrião” da modificação
radical operada pelo modo de produção burguesa a partir do século XVIII.
Originou-se um contínuo processo de aperfeiçoamento da maquinaria, tendo
em vista o anseio dos capitalistas por se libertarem das amarras impostas
pelos instrumentos manuais de trabalho. Esse fato fez com que aos poucos a
destreza e a força humanas se submetessem ao ritmo definido pelas
máquinas: um ritmo bem mais uniforme, contínuo, repetitivo e, por conseguinte,
tendente à disciplina, à dependência, à monotonia e ao desestímulo.
Para que surja a produção generalizada de mercadorias do
capitalismo, é preciso que a socialização do trabalho comece a
substituir o caráter individual do trabalho. É preciso que à
divisão do trabalho entre as várias ocupações se acrescente a
divisão de trabalho em manufaturas e grandes empresas. É
preciso que a maioria dos produtores deixe completamente de
produzir para atender às próprias necessidades e passe a
88
satisfazê-las principalmente por meio do mercado. Isso
demanda maquinaria desenvolvida [...]. A produção de
máquinas, o desenvolvimento da produtividade material do
trabalho, a constante aceleração do processo de socialização
objetiva do trabalho são fatores que constituem as façanhas
historicamente progressistas do modo de produção capitalista
(MANDEL, 1982, p. 395).
No percurso do modo de produção capitalista, ou se preferirmos, do
percurso histórico que vai do surgimento da máquina-ferramenta à automação,
é possível observar inúmeras alterações sociais, lutas sociais, movimentos de
resistência dos trabalhadores, face ao “inalterável” a disposição do capital
em busca da produção/realização (ampliada) de mais-valia.
Para isso, o conhecimento científico foi sendo subordinado, além de
capturado como força produtiva, como meio e método de submeter o trabalho
ao capital; como meio de submeter o trabalho vivo ao morto (e até em parte
descartá-lo), estratégia de efetivação e intensificação da produtividade visando
à extração de mais-valia, especialmente a relativa (ou a sua conjugação com a
absoluta). O que, logicamente, não exclui outras formas de exploração
capitalista, à medida que o modo de produção em questão não se desenvolve
de maneira homogênea, por lhe ser inerente a combinação de diferentes
formas e desiguais estágios de produção, assim como lhe são correspondentes
os embates originários das contradições sociais classistas, uma vez que, ao
gerar desigualdades, gera também rebeldias dos sujeitos que a elas resistem e
se opõem.
Embora fosse na época uma classe progressista, a burguesia
funda objetivamente um regime de exploração e é limitada
pelas formas de divisão do trabalho que esse regime introduz
na vida social. Por isso, ao mesmo tempo em que elabora um
conhecimento objetivo de aspectos essenciais da realidade,
tende a deformar ideologicamente várias categorias desse
processo [...] posições ideológicas a serviço da justificação da
positividade capitalista (COUTINHO, 1972, p. 16).
89
Diante do que viemos explanando, parece-nos claro que a produção
capitalista expressa um modo historicamente determinado de os homens
produzirem/reproduzirem material e espiritualmente. É um modo de produção
que não se esgota em si mesmo, mas que constitui um processo que, apesar
de não assegurar condições para homogeneidade em sua expansão, tem
vocação para mundialização e reverbera em todas as dimensões da vida
social.
A esse respeito podemos apreciar trecho da obra de Marx e Engels:
[...] o desenvolvimento do processo real da produção, partindo
logo da produção material da vida imediata, e na concepção da
forma de intercâmbio intimamente ligada a este modo de
produção e por ele produzida, ou seja, a sociedade civil nos
seus diversos estádios, como base de toda a História, e bem
assim na representação da sua ação como Estado, explica a
partir dela todos os diferentes produtos teóricos e formas de
consciência — a religião, a filosofia, a moral, etc. (1984, p. 48).
E, ainda, considerarmos outro trecho da obra marxiana, selecionado por
Coutinho, para evidenciar o limite das interpretações que captam a
ideologização na sociedade burguesa como mera conseqüência da
intencionalidade de classe:
Não se deve formar a concepção estreita de que a pequena
burguesia, por princípio, visa a impor um interesse de classe
egoísta. Ela acredita, pelo contrário, que as condições
especiais para sua emancipação são condições gerais sem as
quais a sociedade moderna não pode ser salva nem evitada a
luta de classes. [...]. O que os torna representantes da pequena
burguesia é o fato de que sua mentalidade não ultrapassa os
limites que essa classe o ultrapassa na vida, de que são
conseqüentemente impelidos, teoricamente, para os mesmos
problemas e soluções para os quais os interesses materiais e a
posição social impelem, na prática, a pequena burguesia
(MARX, ap. COUTINHO, ibd., p. 18).
Torna-se importante, também, realçarmos que a produção capitalista é
uma relação social que não procede de leis naturais. É uma relação social
90
historicamente construída que posiciona classes sociais e que engendra um
determinado modo de organização social, uma sociabilidade própria.
Capital e trabalho assalariado são uma unidade de diversos, uma
relação entre classes sociais antagônicas que se expressa na contradição do
“mundo das mercadorias”. Num mundo em que essa relação toma a aparência
de relação entre coisas, obscurecendo o verdadeiro processo de
produção/reprodução dos bens sociais. Temos, assim, uma formação social
regida pela lei geral da acumulação do capital, cuja riqueza monopolizada por
uma das classes torna-se inseparável da condição de pauperismo dos seus
produtores.
Prosseguindo no raciocínio acerca do modo de produção da sociedade
do capital, cabe acrescentarmos que o aperfeiçoamento da maquinaria, a
sofisticação tecnológica e a conseqüente expansão da divisão do trabalho
possibilitaram a ampliação da produção a tal ponto nos países mais avançados
que a sua finalidade, isto é, a lucratividade, passou a ser apreciada sob
ameaça. Assim sendo, diferente das inquietações iniciais que giravam em torno
da geração de condições favoráveis para a produção ampliada uma
produção suficiente e capaz de atender rapidamente às exigências do
mercado, operando a circulação de mercadorias sem perder de vista a
dimensão prioritária da realização da mais-valia —, emergiram os problemas
referentes à concorrência ampliada pelo mercado, uma luta ainda mais acirrada
em busca de lucratividade, superlucros,
22
a qual inclui a transferência de mais-
valia de setores não-monopolizados para os monopólios. Ou seja, com o
alcance de níveis mais elevados de produtividade, despontam questões
22
Termo utilizado por Mandel (1982).
91
relacionadas ao consumo, à baixa dos preços, à possibilidade de nivelamento
da taxa de lucro; a concorrência havia se estabelecido, e com ela aspectos
como leis de proteção às nações, barreiras tarifárias se firmaram, pois parte
considerável das nações em condições capitalistas avançadas havia
introduzido maquinaria e técnicas eficientes de produção, contando com
importantes pólos industriais. Isso, demonstrando a contradição desse modo de
produção, passou a emperrar a sua própria dinâmica de expansão/valorização,
impulsionando, por conseguinte, o movimento do capital em direção a novas
formas e novos campos de investimento a configuração do capital
monopolista.
As crises, no entanto, não são estratégias específicas da
época do capital. Sempre existiram crises econômicas. Mas,
antes da revolução industrial, em todas as sociedades e em
todas as épocas, as crises econômicas eram provocadas ou
por calamidades da natureza, ou por conflitos políticos. Eram
acidentes externos às rotinas da vida econômica. [...] as crises
eram precipitadas pela destruição dos fatores de produção,
causada por catástrofes naturais ou sociais, mas sempre por
razões extra-econômicas. [...].
o capital introduziu na história um novo tipo de crise, as
crises industriais, em que o desemprego resulta de uma
abundância de mercadorias que não encontram consumidores.
[...].
Em outras palavras, no capitalismo, a destruição material
das forças produtivas não se apresenta como causa, mas como
conseqüência da crise. [...].
Segundo Marx, a crise capitalista se manifestaria como
crise de superprodução, isto é, como um excesso de valores de
troca disponíveis (ARCARY, 2004, p. 78 – 79).
Não se tratava mais unicamente de operar a comercialização de
mercadorias por meio da exportação, mas também da necessidade de escoar
capitais excedentes que já não eram produtivos nos seus países de origem, em
face da busca de acréscimo nas possibilidades de extração/realização de mais-
valia. O que se efetiva por meio do recurso a diferentes mecanismos de
92
submissão do trabalho e sujeição de áreas e ramos não-capitalistas e/ou de
parco nível industrial. Assim, gradativamente, a fusão e a internacionalização
de significativos setores produtivos e bancários deram origem aos grandes
blocos capitalistas. Os trustes e os cartéis passaram a comandar a
concorrência, expulsando do mercado os capitais pequenos, com o objetivo de
controlar o mercado para o acréscimo do lucro configuração de uma forma
ampliada de concorrência, visando aos superlucros.
Mesmo quando se pensa no que geralmente se considera o
constituinte mais positivo do sistema, a competição que leva à
expansão e ao progresso, seu companheiro inseparável é o
impulso para o monopólio e a subjugação e a exterminação
dos competidores que se colocam como obstáculos ao
monopólio que se afirma. O imperialismo, por sua vez, é o
concomitante necessário do impulso incansável do capital em
direção ao monopólio, e as diferentes fases do imperialismo
corporificam e afetam de modo mais ou menos direto as
mudanças da evolução histórica hoje (MÉSZÁROS, 2003, p.
12).
Diferentemente do período capitalista caracterizado pela livre-
concorrência, por certa imobilidade do capital em direção aos superlucros,
derivada, basicamente, do vasto exército industrial de reserva e da abundância
de áreas para investimentos, especialmente na Europa Ocidental e nos
Estados Unidos, a era dos monopólios, ou a fase imperialista do capital,
caracteriza-se por um forte movimento de exportação de capitais para regiões
menos desenvolvidas, por alterações fundamentais nas condições do período
anterior.
A referida monopolização capitalista, iniciada nas últimas décadas do
século XIX, resultou do nexo de alguns fatores, dentre os quais destacamos:
um movimento migratório da força de trabalho, declinando
o exército industrial de reserva e, conseqüentemente,
93
fortalecendo a luta operária em prol do aumento do salário
real;
a necessidade de aquisição de matéria-prima a preços
mais baixos;
o esgotamento da revolução industrial e tecnológica à
época, a qual promoveu um acelerado volume de capital,
exigindo novos campos de investimento.
Ademais, lembramos que o capitalismo monopolista emerge como uma
expressão das contradições inerentes ao modo de produção capitalista, haja
vista surgir da assimetria entre capacidade de absorção da produção e
capacidade efetiva de produzir, o que implica a necessidade de escoar o tido
como excedente produzido, pois o objetivo é a valorização do capital, mesmo
que em detrimento de qualquer outra alternativa relacionada essencialmente a
necessidades sociais. Para isso, lança mão de várias estratégias para viabilizar
a sua finalidade mais-valia —, dentre as quais citamos, ressalvando
correspondência mais característica com sua fase avançada:
mecanismos geradores de consumo, campanhas de vendas e
diferentes modos de manipulação das necessidades dos
possíveis compradores potenciais;
a beligerância em nome da paz social. Propalada como
expressão do desenvolvimento econômico, e alcançada,
portanto, pela livre expansão do capital. O que exige a isenção
de obstáculos, sejam internos ou externos, a exemplo dos
“obstáculos” que podem ser causados por “minorias”
94
insatisfeitas, ou por ameaças externas, especialmente as que
se relacionam com o mundo socialista.
Diante do exposto, cabe destacarmos que, sendo, como já assinalamos,
o movimento de expansão, ou seja, a mundialização, um movimento
característico do capital, ele não pode ser confundido com qualquer hipótese
de internacionalização homogênea da produção/reprodução capitalista. Ao
contrário, o desenvolvimento do modo de produção capitalista, por sua
natureza, conduz ao desequilíbrio, à hierarquia e às diferenças que são
engendrados, especialmente, pelas discrepâncias entre os níveis internacionais
e intranacionais de produtividade do trabalho (regiões, setores produtivos e
firmas),
23
oriundos, inclusive, da própria luta concorrencial do capital. Com isso,
torna-se evidente uma lógica mercantil com prerrogativa em benefício dos mais
desenvolvidos, dos mais industrializados, lógica que, mediante um sistema
diferenciado de preços de produções nacionais e de preços unificados no
mercado mundial, possibilita aos países capitalistas mais desenvolvidos
alcançarem superlucros. Esses países conseguem introduzir e circular as suas
mercadorias, seja pela ausência destas nos países compradores, seja pelos
preços abaixo dos possíveis nos países compradores, dadas as superiores
condições de produtividade e de comercialização dos países desenvolvidos.
Em última instância, a diferença no nível de desenvolvimento
entre os países metropolitanos, de uma parte, e de outra parte,
as colônias e semicolônias deve ser atribuída ao fato de que o
mercado mundial capitalista universaliza a circulação capitalista
de mercadorias, mas não a produção capitalista de
mercadorias.
24
Numa colocação ainda mais abstrata: as
23
É comum ocorrerem discrepâncias também entre as regiões desenvolvidas (os setores produtivos e as
firmas) e as subdesenvolvidas no interior dos Estados capitalistas industrializados. Segundo Mandel, esse
processo é análogo à relação entre os países imperialistas e os países subdesenvolvidos gera
intercâmbio desigual, ou uma constante transferência de valor das regiões subdesenvolvidas para as
regiões industrializadas do mesmo Estado capitalista (1982, p. 58 - 59 - 60).
24
Grifos nossos.
95
manifestações do imperialismo devem ser explicadas, em
última análise, pela falta de homogeneidade da economia
mundial capitalista (MANDEL, 1982, p.58).
Completando esse raciocínio, é importante lembrar o comentário de
Behring em que situa com maior clareza o pensamento de Mandel acerca do
processo de monopolização do capital e do seu correspondente imperialismo:
Mandel quer explicar não só as diferenças entre os países, mas
também a existência de colônias internas, inclusive para
identificar as razões essenciais desse movimento do capital
para fora. Sua explicação fundamenta-se no fato de que o
superlucro é produto do diferencial da produtividade do
trabalho. Neste sentido, o capital se move em direção à
perpetuação desses diferenciais, fugindo de qualquer
possibilidade de nivelamento da taxa de lucros (2002, p.116).
Ainda recorrendo a Mandel (1982), pode-se explicitar que o período da
livre-concorrência capitalista (em torno do século XIX) assentou-se
basicamente na indústria de bens de consumo, sobretudo na indústria têxtil. Os
produtores de meios de transporte, como o ferroviário, por exemplo, só
surgiram em fase adiantada desse período, o que determinou inclusive a
expressão de uma “onda longa com tonalidade expansiva”
25
entre os anos
1847 e 1873.
Nesse contexto capitalista, a penetração da produção em regiões não-
industrializadas significou, fundamentalmente, a exportação de bens de
consumo, pois o setor de produção desse tipo de mercadorias era o setor
predominante à época nos países metropolitanos. E isso é o que determinava a
possibilidade da livre-concorrência, haja vista a modéstia do volume de capital
exigido para o ingresso nesse setor de produção, não fomentando o
acirramento da concorrência a ponto de favorecer o surgimento de monopólios.
25
Para Mandel, a história do capitalismo opera flutuações, numa dinâmica expressa por “ondas longas”
(com tonalidades de expansão e de estagnação).
96
Todavia, a introdução do motor elétrico no processo de produção, em
substituição ao do tipo a vapor, implicou alterações no modo de produção
capitalista e, no último quartel do século XIX, trouxe a supercapitalização do
setor de bens de capital, ou, nos termos de Mandel, do Departamento I
ramos da produção capitalista que fabricam meios de produção. Isso provocou
a substituição da prioridade nas exportações de bens de consumo
(Departamento II), conforme ocorria na época denominada livre-concorrência,
pelas exportações de capital, configuração de uma significativa alteração no
impulso expansionista do capital a emersão dos monopólios e do
imperialismo, “unidades de um mesmo circuito” em prol da valorização do
capital.
[...] a exportação dos bens de consumo para regiões pré-
capitalistas deu lugar à exportação de capitais (e de artigos
comprados com esses capitais, especialmente vias férreas,
locomotivas e instalações portuárias, isto é, aparelhamento
infra-estrutural para simplificar e baratear a exportação de
matérias-primas produzidas com o capital metropolitano).
Juntamente com a concentração cada vez maior do capital,
essa foi a razão decisiva para o aparecimento da nova
economia capitalista mundial — a estrutura imperialista.
Essa mudança na operação do modo de produção
capitalista, ou nas proporções entre as principais variáveis
independentes desse modo de produção, também explica a
transição do capitalismo de livre concorrência ao capitalismo
monopolista (MANDEL, 1982, p.131).
A origem dos monopólios resultou na tendência à superacumulação nas
metrópoles capitalistas e, conseqüentemente, na exportação de capitais e na
divisão do mundo em colônias e regiões importantes para o controle e o
domínio das potências imperialistas. Fatos que também alteraram os contornos
do Estado burguês, ampliando-o e, por conseguinte, exigindo uma maior
utilização dos rendimentos sociais na sua direção, tanto em função das
despesas com o militarismo, o armamentismo e a guerra, em decorrência das
97
rivalidades imperialistas, quanto em face de funções sociais dirigidas à
preservação do capital frente aos possíveis ataques da crescente organização
operária.
Segundo Netto, a passagem do capitalismo concorrencial para a era dos
monopólios fez recrudescerem as contradições imanentes a tal sistema, pois “o
capitalismo monopolista recoloca em patamar mais alto o sistema totalizante de
contradições que confere à ordem burguesa os seus traços basilares de
exploração, alienação e transitoriedade histórica” (2001, p.19).
Desse modo, podemos inferir que houve alteração na dinâmica dos
processos inerentes à ordem burguesa, na medida do acirramento de fatores
como a exploração, a alienação e a concorrência, motivos que suscitaram, para
a sua preservação, o recurso a mecanismos extra-econômicos, incorporando o
Estado um papel de destaque, consoante com os interesses postos pela
emersão desse “novo” ordenamento do capital. Distinta da ão que pode ser
qualificada como episódica e pontual da fase da livre concorrência, o Estado na
era monopolista se amplia, torna-se a imbricação orgânica do econômico e do
político, implicado que está diretamente com a lógica dos superlucros.
Em Mandel (1982) pode-se ter evidência de que uma característica
importante dessa época foi a ampliação da legislação social em geral.
Legislação tomada pelo imperialismo como concessões, sob limites, em face
das crescentes lutas operárias, visando a proteger a dominação capitalista da
possibilidade de ataques mais intensos dos trabalhadores. Salvaguardadas as
diferenças essenciais com a comparação, pode-se dizer que, assim como o
caráter armamentista e as guerras, a ampliação da legislação social, ou seja,
as políticas sociais, se, por um lado, incrementaram a destinação de
98
rendimentos sociais para o Estado, por outro, também corresponderam aos
interesses da reprodução ampliada do modo de produção capitalista. Pois,
como esclarece o autor citado, não cabe pensarmos nessas políticas em outros
termos, ou seja, como possibilidade de efetivação da redistribuição da renda
nacional que crescentemente retire do capital em favor do trabalho, haja vista
termos que considerar que isso, inevitavelmente, implicaria o colapso do
sistema, pois geraria a queda da taxa média de lucro e, portanto, arriscaria não
só a reprodução ampliada do capital como a simples.
As ilusões quanto à possibilidade de socialização através
da redistribuição não passam, tipicamente, de estágios
preliminares do desenvolvimento de um reformismo cujo
fim lógico é um programa completo para a estabilização
efetiva da economia capitalista e de seus níveis de lucro.
Esse programa incluirá habitualmente restrições periódicas
ao consumo da classe operária, a fim de aumentar a taxa
de lucro e assim “estimular investimentos” (MANDEL, 1982,
p. 339).
No percurso do capital monopolista, a automação é elemento destacado
no processo de supercapitalização e superacumulação que se instaura. Assim,
o capitalismo tardio
26
evidencia de modo ainda mais acentuado a ampliação
das funções do Estado, dadas as dificuldades crescentes de valorização do
capital. O Estado torna-se, por assim dizer, um sustentáculo dos movimentos
e momentos críticos” do capital, passando a exercer um papel de maior
responsabilidade face à produção, tendo que envidar esforços para a
valorização mais rápida do capital excedente, bem como influir com eficiência
no plano ideológico, utilizando-se de mecanismos que viabilizem a
fragmentação da consciência de classe dos trabalhadores que, nesse
período, mais organizados, passaram a contar, inclusive, com partidos de
26
Mandel (1982) denomina capitalismo tardio título da sua obra à qual aludimos aqui uma fase
mais avançada do capital monopolista, iniciada nos Estados Unidos em 1940, e nos demais países
imperialistas em 1945, contando com a introdução da automação e da energia nuclear.
99
massas, lutando pela socialização da economia e da política e os
transformem em cidadãos adequados à ordem social vigente, ou nos termos de
Mandel (1982), os integrem à sociedade capitalista tardia como consumidores.
O Estado procura constantemente transformar qualquer
rebelião em reformas que o sistema possa absorver, e procura
solapar a solidariedade na fábrica e na economia [...]. A
pressão geral no sentido de um controle maior de todos os
elementos do processo produtivo e reprodutivo, quer
diretamente exercido pelo capital ou indiretamente pelo Estado
capitalista tardio, é uma conseqüência inevitável da dupla
necessidade de evitar que as crises sociais ameacem o
sistema e de proporcionar garantias econômicas ao processo
de valorização e acumulação do capitalismo tardio.
A hipertrofia e a autonomia crescentes do Estado [...] são um
corolário histórico das dificuldades crescentes de valorizar o
capital e realizar a mais-valia de maneira regular [...]. Também
estão associadas à intensificação da luta de classe entre o
capital e o trabalho [...]. Correspondem ao agravamento das
contradições sociais tanto internas quanto entre os países
imperialistas metropolitanos, entre o sistema imperialista como
um todo e os Estados não capitalistas, e entre as classes
dirigentes e as classes exploradas das semicolônias [...] (ibid.,
p. 341).
Diante do exposto, temos a evidência da(s) política(s) como elemento
funcional, estratégico da ordem monopolista, por constituír(em) a resposta
necessária aos interesses da burguesia e à conseqüente necessidade de
legitimação do Estado burguês face às “novas” configurações dos conflitos de
classe, suscitados por essa ordem do capital e pela conseqüente conformação
política dos movimentos operários mecanismo tomado como eficiente para
aplacar os conflitos que ameacem pôr em xeque a ordem societária
estabelecida, ou seja, os antagonismos da relação capital/trabalho, objetivados
nas múltiplas e tipificadas expressões da “questão social”.
Todavia, pode-se ainda referir a um período de relativa estabilidade e
prosperidade do modo de produção capitalista nos países centrais, alinhados
ao padrão de produção norte-americano e assentados na reprodução do
100
domínio imperialista ocidental em concorrência com o denominado bloco do
socialismo real.
Não obstante, após um longo período de expansão capitalista, ou,
utilizando os termos de Mandel (1982), após uma onda longa com tonalidade
expansiva, os denominados “trinta anos gloriosos” do capitalismo, que
contaram com a produção e o consumo de massa o padrão de produção
fordista, em seu vínculo com o Estado planejador keynesiano começam a
mostrar, a partir de meados da década de 1960, sinais do surgimento de mais
uma das crises do capital.
Essa crise, que se mostrou com nitidez a partir dos anos 1970, abalou
profundamente a reprodução capitalista e colocou no centro da questão os
compromissos assumidos pelo Estado (welfare state) com as políticas sociais.
Com efeito, os trabalhadores foram apontados como responsáveis pela queda
da produtividade, pela elevação dos custos e como obstáculos à
competitividade, pois havia problemas supostamente gerados pelos
instrumentos de regulação da economia e pelas políticas sociais do Estado
(MATTOSO, 1995, p. 57).
A crise contemporânea do capital, denominada comumente crise do
padrão fordista/keynesiano, decorre de um complexo de fatores, entre os quais
citamos:
a queda da taxa de lucro, especialmente pelo aumento do
preço da força de trabalho, resultante das conquistas
após 1945 e pela intensificação das lutas sociais dos anos
1960, visando ao aumento do salário e ao controle da
produção. Esses aspectos que incidiram sobre os níveis
101
de produtividade, acentuando o decréscimo na taxa de
lucro;
a incapacidade do padrão taylorista/fordista de responder
à retração do consumo, que respondia ao desemprego
estrutural que se iniciava;
hipertrofia da esfera financeira, a qual adquire certa
autonomia em face do capital produtivo. O capital
financeiro torna-se campo prioritário para a especulação,
na nova fase do processo de internacionalização;
ampliação da concentração de capitais, decorrente das
fusões entre empresas monopolistas e oligopolistas;
crise do Estado de Bem-Estar (welfare state),
ocasionando crise fiscal do Estado capitalista e a
necessidade de redução dos gastos públicos, além da sua
transferência para o capital privado;
incremento acentuado das privatizações, sinalizando a
tendência de generalização da desregulamentação e da
flexibilização do processo produtivo, dos mercados e da
força de trabalho (ANTUNES, 2002, p. 29 - 30).
Ruy Braga (1996), ao referir-se a essa crise capitalista, explicita que, ao
considerá-la, devemos ter clareza de que a sua gênese está na ntese das
contradições e antagonismos amadurecidos no âmbito da correlação de forças
estabelecida entre burguesia, classes subalternas e Estados-nações, no
decorrer do processo de expansão do imperialismo ocidental em concorrência
102
com o bloco do socialismo real bloco coletivista de Estado —,
27
no período
entre os anos 1950 e os anos 1970. O autor, dando destaque ao período após
1968, esclarece, outrossim, que tal crise contou com momentos de ruptura, às
vezes até violenta, dos vínculos que atavam as classes subalternas a todo um
ambiente intelectual e moral, pois ocorreu um intenso movimento de erosão
das bases sociais e materiais do consentimento das classes subalternas face
ao tradicional domínio burguês. Nesse contexto, o welfare state foi abalado,
impondo às classes dominantes uma reação alternativa à altura da ameaça
que todo esse processo significava. As classes dominantes responderam com
o que o autor denomina posicionamento restauracionista do capital, ou seja,
uma contratendência erigida pelas classes dominantes, objetivando retardar as
conseqüências da tendência à queda da taxa de lucro.
A perplexidade das classes dominantes é acompanhada pelo
sentimento de terror, dada a perda de confiança em suas
próprias forças e no futuro. Impõe-se, como necessidade
histórica, engendrar uma reação à altura das exigências do
período.
A reação do capital assume um aspecto essencialmente
restauracionista. [...]. Nesse processo devem-se intensificar os
métodos de trabalho, modificar as formas de vida operária,
multiplicar o desenvolvimento das forças produtivas e,
principalmente, engendrar as bases políticas e sociais de uma
iniciativa que permita às classes dominantes apresentarem
seus interesses particulares como universais, isto é, validos
para todas as classes (1996, p. 173).
Temos, desse modo, a base definidora do desencadeamento do
processo, ainda em curso, de reestruturação do capital, sua reorganização
como resposta às dificuldades postas à sua disposição de expansão e de
valorização ampliada. Isso contou, e ainda conta, fundamentalmente, com uma
27
Denominação utilizada por Ruy Braga.
103
perspectiva ideopolítica apropriada, “o seu cimento ideológico” — isto é, a
perspectiva neoliberal.
O neoliberalismo tomou fôlego como uma reação, teórico-política, contra
o Estado Intervencionista e de Bem-Estar, cujo combate ao keynesianismo
propiciou as bases para uma outra forma de capitalismo, duro e livre de regras
(ANDERSON, 1995).
Para fazer frente a esta crise, o capitalismo articula e põe em
cena uma dupla solução: o neoliberalismo e a reestruturação
produtiva. Estas duas estratégias constituem a mesma
processualidade. O capitalismo, “superados” os principais
obstáculos à sua continuidade, entre eles, o desmonte objetivo
dos Estados “socialistas”, coloca em questão o chamado Bem-
Estar Social. Os capitalistas liberam-se de todo e qualquer
compromisso com a satisfação das necessidades reais da
população e de ampliação da cidadania. Para tal, levaram a
extremos a idéia de liberdade do mercado (DIAS, 1998, p. 49).
A reorganização do capital sua resposta à própria crise
desencadeou um forte processo de ataque ao Estado e à classe trabalhadora.
Observa-se, assim, “ondas privatistas”, a preconização de um “Estado Mínimo”
um Estado funcional à maior mobilidade do capital, ou, como indica Netto
(1993), um Estado mínimo para os trabalhadores e máximo para o capital —, e
um Estado cujos contornos se mostram mais repressivos se comparados aos
do Estado de Bem-Estar, ou seja, vem emergindo um tipo de “Estado Penal”
em substituição ao Estado de Bem-Estar Social.Tudo isso nos possibilita
verificar as desregulamentações do trabalho e do mercado, a vulneração das
conquistas dos trabalhadores (identidade de classe, consciência de classe,
organização sindical, direitos trabalhistas e sociais), a utilização de novas
tecnologias e métodos de produção e de gestão do trabalho, assim como a
atual face do fenômeno da criminalização da pobreza, entre outros fatores.
Elementos que vêm ocasionando graves impactos nas condições de vida e
104
trabalho daqueles que vivem do seu próprio trabalho. Esse é o contexto
delineado pelo recrudescimento do imanente processo de mundialização do
capital, o qual, contando, sobretudo, com a ampliação das operações do capital
financeiro especulativo, pretende o domínio capitalista em escala mundial, ou,
conforme Mészáros (2003), o controle da totalidade do planeta.
A crise teve dimensões tão fortes que, depois de desestruturar
grande parte do Terceiro Mundo e eliminar os países pós-
capitalistas do Leste Europeu, ela afetou também o centro do
sistema global de produção do capital. Na cada de 1980, por
exemplo, ela afetou especialmente nos EUA, que então
perdiam a batalha da competitividade tecnológica para o
Japão.
A partir dos anos 1990, entretanto, com a recuperação
dos patamares produtivos e a expansão dos EUA, essa crise,
dado o caráter mundializado do capital, passou também a
atingir intensamente o Japão e os países asiáticos, que
vivenciaram, na segunda metade dos anos 1990, enorme
dimensão crítica. E quanto mais se avança a competição
intercapitalista, quanto mais se desenvolve a tecnologia
concorrencial em uma dada região ou conjunto de países,
quanto mais se expandem os capitais financeiros dos países
imperialistas, maior é a desmontagem e a desestruturação
daqueles que estão subordinados [...] em meio a tanta
destruição de forças produtivas, da natureza e do meio
ambiente, também, em escala mundial, uma ação destrutiva
contra a força humana de trabalho, que tem enormes
contingentes precarizados ou mesmo à margem do processo
produtivo [...] (ANTUNES, p. 32 – 33).
Como indicado, não obstante a vocação para mundialização, o modo
de produção capitalista não assegura homogeneidade em sua expansão; ao
contrário, é presidido pelo desequilíbrio, pelas diferenças e pelas hierarquias.
Engendra, pois, mecanismos que buscam sustentar tal lógica, suas
contradições e suas limitações, sendo o imperialismo o seu correspondente, a
sua expressão máxima.
Sendo assim, ora entendemos caber referência ao pensamento de
Mészáros, na recente obra O século XXI socialismo ou barbárie?, que, ao
105
caracterizar a fase contemporânea do imperialismo como a era do Imperialismo
Global Hegemônico, torna claro que a idéia de um “enorme mercado
transnacional” capaz de trazer prosperidade para todos não passa de uma
quimera. Ademais, Mészáros sustenta que o início da crise estrutural do capital
(1960/1970) gerou importantes mudanças na postura do imperialismo.
Significou sua atitude cada vez mais “agressiva e aventureira”, apesar da
adoção de uma retórica conciliadora, a propagação de uma “nova ordem
mundial” e as promessas de “dividendos de paz”. Segundo o autor, entramos
na fase mais perigosa do imperialismo em toda a História, fase que tem uma
única potência hegemônica, buscando submeter todas as menos poderosas
ou, melhor colocando, buscando o controle não apenas de uma parte do
planeta, mas da sua totalidade, como se fosse o “Estado do sistema capitalista
por excelência”. Contudo, o autor oferece ainda à apreciação:
[...] para imaginar uma resposta historicamente viável para os
desafios propostos pela atual fase do imperialismo hegemônico
global, teremos de enfrentar a necessidade sistêmica de o
capital subjugar globalmente o trabalho por meio de toda e
qualquer agência social específica capaz de assumir o papel
que lhe for atribuído. Naturalmente, tal conformação só será
viável por meio de uma alternativa radicalmente diferente do
impulso do capital à globalização imperialista/monopolista, no
espírito do projeto socialista, corporificado num movimento
progressista de massa. Pois é somente quando essa
alternativa radical se torna uma realidade irreversível ou,
conforme as belas palavras de José Martí, patria es
humanidad que a contradição destrutiva entre
desenvolvimento material e relações políticas humanamente
compensadoras poderá ser definitivamente relegada ao
passado (MÉSZÁROS, 2003, p. 13).
2.2 Focalizando questões da realidade brasileira
Conforme procuramos explicitar na parte anterior deste texto, a origem
dos monopólios, em decorrência da superacumulação das metrópoles
106
capitalistas, relaciona-se à exportação de capitais, assim como à divisão do
mundo em colônias e regiões importantes para o controle e o domínio das
potências imperialistas.
A esse respeito, Sodré esclarece que o progresso material, o
desenvolvimento e a cultura de determinados países ocorreram em função
do atraso, da incultura e da miséria de outros países e regiões. Citando
Schulze-Gaevernitz, estudioso do imperialismo inglês, evidenciou ainda a
profunda dependência financeira da América do Sul a Londres. E, citando
M. Jay, o autor destacou sobre o Brasil:
A abolição aparente do sistema colonial não foi, portanto, mais
que uma mudança de metrópole: e o Brasil cessou de
depender de Portugal para tornar-se uma colônia da Grã
Bretanha (1964, 167).
Esses aspectos foram destacados inicialmente por considerarmos que
são essenciais a qualquer pretensão de entendimento e/ou explanação sobre o
capitalismo brasileiro, uma vez que a burguesia brasileira tem como
característica a constituição na etapa imperialista do capital.
O Brasil surge na História mundial no momento em que as relações
feudais, predominantes à época, passam a ser afetadas pelo processo de
gestação do capitalismo — as trocas passam a ocorrer em nível mundial,
vinculando partes desconhecidas do mundo à Europa e à Ásia. Sua existência
é marcada por um longo período de escravismo ou, melhor, marcada pelo
escravismo colonial — uma forma de escravismo, diferente do escravismo
originário das guerras e da deterioração de comunidades primitivas indígenas,
pois uma forma transplantada pela violência e que foi mantida no País por
quatro séculos.
107
No século XVIII, enquanto nos Estados Unidos (separando-se da
Inglaterra) e na França (liquidando as relações feudais e com o bonapartismo)
as revoluções burguesas se iniciam, no Brasil predominam as relações
escravas e as relações feudais derivadas do pastoreio no sertão. Nesse
período, a expansão militar napoleônica, que atinge a península ibérica, impeliu
o governo metropolitano a transferir-se para o Brasil, o que ocasionou à
abertura dos portos.
O período joanino, realmente, abre perspectivas à autonomia
política que corresponde, adiante, à manutenção da liberdade
de comércio conquistada por via circunstancial. Esse período
permite ainda o lançamento das bases do tipo de aparelho de
Estado que presidirá os destinos do país, quando de sua
autonomia: é uma espécie de introdução ou preparação para a
autonomia, contribuindo para moldá-la segundo os interesses
da classe dominante colonial, a dos senhores de terras e de
escravos ou de terras e servos (SODRÉ, 1964, p.56-57).
No governo de D. João, junto da abertura dos portos, normas foram
baixadas no sentido de estimular determinadas atividades econômicas, a
exemplo da introdução de máquinas para o beneficiamento de ferro, algodão
etc.. Porém, isso esteve longe de significar possibilidade concreta ou intenção
de geração de indústrias. A política de D. João é essencialmente submissa ao
latifúndio exportador e aos interesses expansionistas externos.
O desenvolvimento do comércio no Brasil — a abertura dos portos
propiciou o desenvolvimento do comércio exterior repercutiu no
desenvolvimento do crédito, o que originou o Banco do Brasil, em 1808. Além
disso, o monopólio comercial, ou seja, a intermediação portuguesa que
subordinava o Brasil à metrópole foi gradualmente sendo extinta. O Estado
passou a ser gerido pela “classe senhorial” (proprietários de terras, senhores
de relações escravistas ou feudais), a qual estabeleceu aliança com a Grã
Bretanha. Aliança que claramente representava o interesse comum de extinção
do antigo monopólio comercial, e que conciliava interesses de uma economia
108
exportadora com a política de um país que dominava os transportes marítimos
à época.
A autonomia, em essência, resumira-se na derrocada do
regime de monopólio comercial. [...]. Não alterara a estrutura de
produção, a propriedade da terra, a propriedade servil.
Mantivera as relações de produção coloniais, eliminando a
intermediação portuguesa, a que estava reduzida, finalmente, a
subordinação do Brasil à metrópole [...]. Inseria-se, assim, o
Brasil no amplo quadro da revolução burguesa, mas com uma
economia colonial intacta (ibid., p. 61).
As relações do Brasil com a Inglaterra foram permeadas por
empréstimos tomados pelo Brasil, o que logicamente delineou dependência
desse país à Inglaterra. Dois meses depois da sua Independência, ou seja, em
29 de outubro de 1822, o Brasil propunha empréstimo aos ingleses.
Empréstimo que foi firmado em contrato e dividido em duas parcelas, em 20 de
agosto de 1824 a primeira delas e em 12 de janeiro de 1825 a outra parcela.
A fase colonial deixara para o Brasil significativa fragilidade econômica,
desordem financeira e dificuldades para manter a produção. Esses aspectos
foram fundamentais para que o Brasil recorresse à ajuda externa, firmando
acordos e relações de dependência financeira, especialmente com a Inglaterra,
a qual apesar de praticamente não ser consumidora de nossos produtos os
comercializou, assumindo a posição de distribuidora desses produtos no
mercado externo. “Esse domínio da comercialização se completa com os
empréstimos, que representam a sujeição absoluta da economia brasileira”
(ibid., p.65).
Como mencionamos no início deste texto, o escravismo teve vida longa
em nosso País, e isso se deu fundamentalmente por interesses dos
latifundiários brasileiros. Sua existência atravessou quatro séculos, apesar de
correntes contrárias internas e externas, acordos e movimentos de repressão
109
ao tráfico negreiro, especialmente os referentes ao posicionamento inglês que,
contrário e repressivo ao tráfico, significava ameaça às relações financeiras
com o Brasil.
No Brasil, na segunda metade do século XIX se evidencia o declínio
do trabalho escravo e/ou servo e a conseqüente emersão do trabalho
assalariado, sem que isso signifique uma passagem direta, uniforme, sem
intervalos.
Em verdade, o que ocorreu no País em grande medida, seja numérica
ou temporal, foi a transformação do trabalho escravo em servo. Relação de
trabalho adequada aos interesses do latifúndio que pretendia se desonerar do
custo do escravismo, e que contou com a força de trabalho dos imigrantes
trabalhadores que vieram para o Brasil em função do empobrecimento de
algumas regiões da Europa.
A lei considera livres esses africanos importados, mas a
realidade os considera escravos. A lei considera livres
numerosos outros trabalhadores, mas a realidade os considera
servos. no Brasil, assim, uma face legal e institucional e
uma face ilegal, mas real. E esta é a que prevalece (ibid., p.76).
É nesse contexto, marcado por uma economia cuja produção é de bens
primários destinados ao exterior, desvinculada das necessidades da população
(interna) e sem condições mínimas de qualquer produção elaborada, que o
Brasil se integra à economia mundial,
Um tortuoso processo de adaptação dessa economia colonial,
[...], às condições criadas pelo avanço capitalista no exterior
[...]. O capitalismo, em desordenada expansão, transferia os
prejuízos de suas crises à economia brasileira dependente. No
seio desta, os prejuízos eram transferidos da classe senhorial
às outras classes. As possibilidades de acumulação interna,
por isso mesmo, eram consideravelmente reduzidas (ibid., p.
87-88).
110
Logicamente, as condições descritas evidenciam dificuldades para que
a burguesia emergisse na sociedade brasileira. A cultura do café cumpriu
importante papel nesse sentido, pois se constituiu como produção plenamente
nacional que trouxe saldo constante para o Brasil.
A cultura do café significou possibilidade de acumulação de renda no
País. Cultura nacional que englobou tanto a produção quanto à
comercialização desse produto. Assim sendo, apesar das dificuldades impostas
pelo vínculo entre a sua classe dominante e os senhores do mercado externo,
uma vez que sua produção destinava-se fundamentalmente para esse
mercado, o Brasil conseguiu com o surto cafeeiro elevar sua renda, a partir da
segunda metade do século XIX — reteve no País parte da renda nele gerada.
A acumulação da renda se faria sentir logo no início da
segunda metade do século XIX. É essa, realmente, uma fase
de mudança, de intensas atividades, de introdução de técnicas
até então desconhecidas no Brasil. [...]. “A segunda metade do
século XIX assinala o momento de maior transformação
econômica na história brasileira”, constata Caio Prado Junior. E
os traços que lhe parecem mais importantes: “O país entra
bruscamente num período de franca prosperidade e larga
ativação de sua vida econômica. No decênio posterior a 1850
observam-se índices dos mais sintomáticos disto: fundam-se
no curso dele 62 empresas industriais, 14 bancos, 3 caixas
econômicas, 20 companhias de navegação a vapor, 23 de
seguros, 4 de colonização, 8 de mineração, 3 de transporte
urbano, 2 de gás e, finalmente, 8 estradas de ferro [...]” (ibid., p.
132-133).
Entretanto, se, como observamos, ocorreu ascensão da renda no Brasil,
isso não se deu uniformemente. Houve desigualdade na apropriação pelas
classes e camadas sociais, bem como entre as regiões produtoras, pois o
desenvolvimento não era do País, mas de certas regiões. Fato que acirrou a
divisão na classe dominante: há uma fração ligada ao avanço das forças
111
produtivas, no limite das conveniências de classe, e outra fração ligada ao
atraso das forças produtivas.
Enfim, enquanto, por um lado, em certas áreas do País colocam-se em
curso condições para o desenvolvimento de novas relações de produção as
capitalista —, por outro, áreas em que não só persistem as velhas relações
como também existem fortes resistências à possibilidade de emersão das
novas. “A burguesia brasileira, na sua infância, era encarada com graves
suspeições: pareciam subversivas, ao latifúndio, as relações capitalistas que se
esboçavam” (ibid., p. 138).
O avanço da economia mercantil no Brasil impulsionou a divisão do
trabalho, a ampliação da legislação e das redes institucional e de transporte. A
partir desse período, apesar das pressões do imperialismo e do latifúndio,
temos a introdução de “técnicas que caracterizam a Revolução Industrial que,
no Brasil, nessa época, ficariam limitadas ao transporte, às comunicações e
aos serviços públicos urbanos” (id., Ibid.).
Como indicado inicialmente, a burguesia brasileira tem origem e
desenvolvimento marcados pelo imperialismo. A partilha do mundo realizada
em função dos interesses imperialistas possibilitou que colônias e países com
economias frágeis fossem alvos da busca de rápida expansão pelo capital.
Nessas áreas o imperialismo tornava-se uma espécie de sócio majoritário.
Enquanto o capitalismo permanece o capitalismo, o excedente
de capitais é consagrado, não a elevar o nível de vida das
massas em um dado país, — porque disso resultaria uma
diminuição de lucros pela exportação de capitais ao
estrangeiro, nos países atrasados. Ali, os lucros são
habitualmente elevados, porque, neles, os capitais são pouco
numerosos, o preço da terra relativamente mínimo, os salários
baixos, as matérias-primas fáceis. A possibilidade de
exportação de capitais provém de que um certo número de
112
países atrasados é antes e agora integrado na engrenagem do
capitalismo mundial [...] (LÊNIN, ap. SODRÉ, 1964, p.165).
A burguesia brasileira assentou-se numa economia exportadora,
basicamente na exportação do café. Isso ocorreu em associação com o capital
internacional pela comercialização do produto no exterior (outros produtos
também foram comercializados no exterior, a exemplo do algodão, do úcar e
da borracha), pela construção de vias ferroviárias de acesso aos grandes
portos brasileiros para viabilizar tal comercialização, pela aplicação de capitais
estrangeiros nos bancos, nas empresas de seguros e nas de navegação. A
referida associação, além de aprofundar as desigualdades no interior do país,
também gerou discordâncias entre os componentes da classe dominante, uma
vez que parte desta estava ligada exclusivamente ao mercado Interno.
O Brasil tornou-se dependente da exportação, o que o levou a ampliar
cada vez mais o volume dos produtos exportados, haja vista, inclusive, a sua
necessidade de importar produtos para o consumo Interno. Dinâmica que foi
fortemente abalada com o declínio do preço do café, após a I Guerra Mundial.
Dessa maneira, a burguesia constatou a necessidade de reformas que
incluíssem alterações na esfera estatal para torná-la conveniente aos seus
interesses e expansão.
Em 1930, a expressão da economia latifundiária brasileira é atacada. A
Revolução de 30, decorrente em grande parte da crise cíclica do capitalismo
em 1929, representa o avanço das forças burguesas em detrimento do
latifúndio, significa a busca de adequação do Estado aos interesses de
expansão da burguesia. Porém, pouco a pouco, essa desavença na classe
dominante vai sendo desfeita e a recomposição das forças sociais dominantes
vai ocorrendo.
113
O alcance da Revolução de 1930 não foi percebido de imediato
nem mesmo pelos seus mais destacados protagonistas. Ela
carreara muito do que havia de mais velho no país, de mistura
com o que havia de novo, como é comum. Nas hostes
revolucionárias, entretanto, era fácil perceber as duas
componentes: a reformista e a conformista [...].
O estudo da Revolução de 1930 e de seu processo fica
muito mais claro quando se aprecia não o que pensavam os
que dela participaram, mas o que foi realmente executado e as
lutas para se executar isso. Nessa concretização dos
propósitos reformistas surgiu a luta entre as duas
componentes, a conformista e a reformista e a confusão na
própria área reformista (ibid., p. 291).
A chegada de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, e a conseqüente
queda de Júlio Prestes representante das forças sociais pró-economia agro-
exportadora significou o avanço das forças sociais em favor da
industrialização no Brasil, em favor de uma economia interna alinhada à
expansão das relações capitalistas, derrubando a oligarquia rural. Foi o
surgimento de um projeto que buscava afirmar a possibilidade de um modelo
nacional industrializador. O que, logicamente, inquietou tanto o latifúndio
quanto os interesses imperialistas.
Foi significativo o avanço industrial brasileiro na década de 1930, assim
como a ampliação do mercado Interno no País segundo Sodré, a indústria
passou a participar 13% da renda nacional (ibid., p. 307). Esse contexto trouxe
à cena o operariado, sua organização e seus movimentos reivindicatórios. Ao
assumir o poder, profundamente afetado pela crise de 1929, Vargas
reconheceu o direito de sindicalização dos operários urbanos — contingente de
trabalhadores minoritário em comparação aos trabalhadores rurais e sindicatos
subordinados ao Ministério do trabalho.
As políticas desenvolvidas nesse período na América Latina tendiam a
privilegiar a industrialização, sem colocar no mesmo patamar de importância a
114
reforma agrária, com exceção do México em função das conquistas do seu
período revolucionário período de surgimento e fortalecimento da classe
trabalhadora em vários países latino-americanos, com conseqüente alteração
do panorama sociocultural e político da região.
O Brasil, tendo sua base produtiva no meio rural, adequado ao quadro
político citado, firmou a diferença entre os seus dois tipos de trabalhadores
rurais e urbanos —, na medida em que, para viabilizar o processo industrial no
País, privilegiou a área urbana, o que, como esperado, estimulou o êxodo dos
trabalhadores do campo para a cidade, provocando sérias mazelas sociais na
área urbana, além de traçar o caminho para os conflitos no campo que se
arrastam até hoje, pela ausência da reforma agrária.
O referido movimento dos trabalhadores, mesmo se tratando de uma
classe operária urbana incipiente, inquietou significativamente a recente
burguesia brasileira.
Nada mais inquietante para a burguesia brasileira, ainda
recente, do que o progresso das reivindicações operárias e o
clima criado pela livre discussão dos problemas e livre
arregimentação das opiniões. Na medida em que o
imperialismo emergia, de sua parte, dos efeitos da tremenda
crise iniciada em 1929, aumentava a sua pressão sobre as
áreas dependentes, retornando ao uso e abuso de seus
métodos e processos, inclusive o das interferências políticas.
Assim como armava e financiava o fascismo e o nazismo
europeus, concedia toda atenção ao quadro latino-americano,
em que forças sociais renovadoras apareciam e se fortaleciam
(ibid., p. 318).
Como vimos, a interferência do imperialismo na América Latina foi
destacada nesse período que emergiu dos efeitos da grave crise capitalista de
1929. Dessa maneira, conciliada com o latifúndio e associada a ele e ao
imperialismo, a burguesia brasileira instaurou o denominado Estado Novo,
período em que as reformas em favor da industrialização iniciadas com a
115
Revolução de 1930 têm continuidade, mas com uma ditadura que utilizou forte
repressão para aplacar qualquer tipo de oposição. Segundo Sodré (1964), esse
foi um período de uma espécie de revolução burguesa contra o operariado ou,
salvaguardando as devidas proporções, de um tipo de movimento similar aos
refluxos que são característicos nos períodos posteriores às revoluções
burguesas, períodos em que a burguesia se recompõe com a velha classe
feudal que foi retirada do poder e substituída por ela, separando-se das classes
e camadas que a ajudaram na sua ascensão. Esse período, todavia, foi
marcado por certa estagnação na economia brasileira compensada ou, melhor,
disfarçada pelos preços de alguns produtos exportados.
Após a Segunda Guerra, Vargas é deposto em consonância com os
interesses das forças do latifúndio e do imperialismo.
Observe-se que os períodos da Primeira e Segunda Guerra Mundiais e o
da crise de 1929 permitiram certo desenvolvimento das economias dos países
periféricos, como o exemplo da economia brasileira, haja vista a redução da
pressão imperialista sobre eles. Entretanto, logo após o término desses fatos a
pressão imperialista é retomada, principalmente como meio de transferência
dos gastos acarretados seja pela crise ou em função das guerras. Essa
pressão normalmente não se limita aos aspectos econômicos, conta com fortes
intervenções no plano político. O que no Brasil pode ser observado desde a
intervenção imperialista no episódio da deposição de Vargas, em 1945.
O governo Dutra, que emergiu desses acontecimentos, deveria
ser, como foi, uma clara afirmação dos laços de dependência
com o imperialismo e um período em que a economia de
exportação buscaria retomar a sua predominância sobre o
mercado Interno. Politicamente, as limitações democráticas
seriam ostensivas [...]. Ao fechamento do partido Comunista,
seguiu-se a cassação dos mandatos dos seus representantes,
ferindo violentamente as normas democráticas. As relações
116
com a União Soviética, que haviam sido restabelecidas, e de
que a burguesia poderia esperar grandes proveitos, pela
abertura de novos mercados, foram interrompidas, de forma
grotesca (ibid., p. 326-327).
Após a Segunda Guerra, ampliara-se consideravelmente a área
socialista no mundo e os Estados Unidos tomara posição destacada nas áreas
em que vigoravam as relações capitalistas. Com isso, a disputa das
Superpotências, a denominada Guerra Fria tendo a União Soviética e os
Estados Unidos frente a projetos societários diferentes, definindo dois campos
políticos em disputa, respectivamente o socialismo e o capitalismo —,
atravessou a realidade mundial com significativa repercussão nos países
periféricos. No Brasil, esse contexto influenciou as perspectivas de
desenvolvimento nacional à época. O imperialismo não tinha qualquer
interesse na industrialização dos países periféricos, por conseguinte, além de
não favorecer empréstimos com a finalidade de desenvolvimento industrial
nesses países, penetra nessas áreas com conjuntos industriais inteiros, como
se a reserva do mercado Interno para a indústria nacional fosse limitada à
instalação de indústrias no interior do País e não uma perspectiva de
industrialização com capital nacional. Assim, no nosso País, que contava
com o início de um parque industrial de bens de produção, teve suas indústrias
colocadas como subsidiárias das indústrias estrangeiras introduzidas no
mercado Interno.
O governo Vargas, que sucedera Dutra, permitiu que forças
antinacionais se instalassem no Estado, mediante sucessivas concessões ao
imperialismo e não estabeleceu alianças conseqüentes com os movimentos
populares a ponto de contar com forças sociais que garantissem o
encaminhamento de projetos em defesa dos interesses nacionais. Assim, ao
117
acenar com possíveis ações políticas dissonantes dos interesses estrangeiros,
ou seja, ao assumir, com o desenrolar de sua política de governo, uma postura
direcionada ao nacional-desenvolvimentismo, desagradou às forças
imperialistas, sendo liquidado.
Vargas confessaria ao despedir-se da vida:
A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à
dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do
trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no
Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se
desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na
potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás, mal
começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A
Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o
trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja
independente. [...]. Os lucros das empresas estrangeiras
alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do
que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de
100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-
se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a
resposta foi violenta pressão sobre a nossa economia a ponto
de sermos obrigados a ceder (ap., SODRÉ, 1964, p. 342).
Com a morte de Vargas, em 1954, após um longo período de governos
transitórios Café Filho, Carlos Luz, Nereu Ramos —, a burguesia se
mobilizará para a ascensão de Juscelino Kubitschek ao poder presidencial.
Em 1956, Kubitschek assume a presidência do País, tendo o
desenvolvimento como meta. Isso significava desenvolvimento econômico
como superação do subdesenvolvimento mudanças dentro da ordem
capazes de integrar (e manter) o Brasil ao mercado capitalista global. O
governo JK foi marcado pela idéia da inevitável necessidade do capital
estrangeiro para o desenvolvimento nacional. Assim, o presidente
ambiguamente defendia internamente uma postura nacionalista ao mesmo
tempo em que buscava alianças econômicas com o capital estrangeiro.
118
Conclamava, inclusive, investimentos estrangeiros na medida em que através
de obras de infra-estrutura considerava preparar o País para recebê-los.
Esse período é marcado por idéias de “Segurança pelo
Desenvolvimento”, pois o desenvolvimento é compreendido como um estágio
alcançável pelos países subdesenvolvidos, através do esforço do seu povo em
favor da industrialização, o que evitaria a miséria e os desvios referentes aos
valores democrático-cristãos. Perspectiva que não jogava luz para o
entendimento da heterogeneidade e hierarquia inerentes ao mundo capitalista.
E, apesar de não podermos esquecer da postura democrática do presidente
JK — eleito cumpriu o mandato e transmitiu o cargo regularmente —, tampouco
esquecermos que na sua gestão houve alguns avanços do País no “processo
de substituição de importações” incentivos às indústrias de bens de
consumo, automobilística e têxtil —, cabe destacarmos que esse foi um
período de forte penetração dos capitais estrangeiros no País e que o Plano de
Metas desse governo não viabilizou a evolução da indústria brasileira em bases
nacionais.
Com KubitscheK, o desenvolvimentismo o realizou uma ampla
mudança econômico-social que viabilizasse desenvolvimento com justiça social
no nosso País, como tão apregoado nesse período. Pode-se dizer que
significou um projeto que mesclava conservadorismo com alguns tons
progressistas, implicando numa renegociação da nossa dependência.
Jânio Quadros sucessor de Juscelino Kubitschek teve curta
passagem pelo poder presidencial. Um sucessor que apesar de contundentes
críticas às políticas econômica e financeira do governo anterior não alterou
seus rumos. Tornou-se um prisioneiro de contradições insuperáveis, uma vez
119
que foi presidente que chegou ao cargo presidencial com compromissos tanto
com as camadas populares quanto com o poder latifundiário histórico na
realidade brasileira, a burguesia e o imperialismo.
É importante salientarmos que seu governo ocorreu logo após a
Revolução Cubana (1959). Fato que colocou o socialismo na América Latina,
instalou uma experiência nesse campo no continente Latino Americano.
Portanto, em maior proximidade com a realidade brasileira, adensando a
necessidade de implementação de ões preventivas, uma vez considerada a
miséria dos países subdesenvolvidos como possível estímulo aos valores
incongruentes com os valores cristãos ocidentais e base para a subversão.
Dessa maneira, enquanto no governo Jk, dada a consideração do
desenvolvimento como melhor maneira de combate à miséria e, por
conseguinte, ao comunismo, foi proposto aos Estados Unidos hegemonia
capitalista a realização de um programa econômico com finalidades
políticas, chamado Operação Pan-Americana OPA; no governo de Jânio
Quadros, por sua vez, foi desenvolvida a Aliança para o Progresso, um
programa proposto pelos Estados Unidos, objetivando prioritariamente
garantias políticas em favor da expansão do capitalismo e da manutenção de
sua posição hegemônica no campo capitalista.
João Goulart assume o governo com a renúncia de Quadros e com ele,
de um modo geral, pode-se falar em um governo dirigido ao desenvolvimento
nacional, mediante reformas econômicas e sociais. Porém, com o golpe militar
de abril de 1964, dias após a sua assinatura de decretos de nacionalização de
refinarias e reforma agrária, este governo foi interrompido, sem implementar as
reformas propostas.
120
Sader (2003, p. 103-104) explicita que o período que vai do após crise
de 1929 até 1960 foi o de maior crescimento econômico de países como
Argentina, Peru, Chile e Brasil. Entrou em curso um processo de
industrialização que deu origem à classe trabalhadora e propiciou seu
fortalecimento em vários países da América Latina. O que decorreu da trégua
dada pelo imperialismo em função da recessão decorrente da crise capitalista
de 1929 e da economia de guerra que se impuseram pela deflagração da
Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Todavia, esse período caminha para
seu término com a passagem do cenário internacional para aquele denominado
de Guerra Fria e efetivamente se esgota em meados de 1960, com o processo
de internacionalização das economias, com a consolidação das grandes
corporações multinacionais e o estreitamento dos espaços nacionais de
acumulação. Desse modo, acompanhando o esgotamento do modelo de
substituição de importações, a crise democrática-liberal emerge com golpes
militares em diferentes países latino-americanos. Em curto espaço de tempo os
regimes políticos democrático-liberais da periferia capitalista foram declinando
em favor de ditaduras militares orientadas pela doutrina de segurança nacional
Brasil em 1964 e Bolívia em 1964 e 1971, Argentina em 1966 e 1976, Chile
em 1973.
Com o golpe militar de 1964, a história brasileira passou a contar com
mais uma interferência dos militares nos rumos políticos do País. Dessa vez,
porém, com uma ditadura militar que, sem nos determos em suas distinções
por períodos, golpeou brutalmente os movimentos políticos, sindicais e
sócioculturais, obstruindo os canais de participação popular e suprimindo
direitos, ou seja, golpeando um patrimônio que levou anos de lutas sociais para
121
ser conquistado. Esse fato, contudo, não bloqueou o crescimento da economia
brasileira, por longo tempo, tendo essa um ciclo expansivo, mesmo que ao final
de menor intensidade, até o início da década de 1980. O golpe ocorreu num
período em que o capitalismo internacional estava no seu ciclo longo expansivo
o ciclo de maior expansão do capitalismo. E, funcional politicamente ao
processo de acumulação capitalista, o período da ditadura militar, utilizando-se
de recursos externos investimentos e empréstimos —, permitiu que a
industrialização brasileira fosse ampliada e contasse com a introdução de
tecnologia moderna. Entretanto, conformou-se um processo industrial
direcionado, basicamente, para o consumo sofisticado, de luxo, e para a
exportação bloqueio das necessidades/reivindicações populares. Houve
também vigorosa exploração da força de trabalho, com significativa
concentração de renda pelo capital nacional e internacional e o aumento da
dependência econômica do País, haja vista a atração acentuada de capitais
externos, especialmente os referentes a empréstimos.
Dessa maneira, o Estado foi
[...] posto a serviço de uma política de favorecimento do capital
imperialista, política essa que se assentou na superexploração
da força de trabalho assalariada, na indústria e na agricultura.
Esse foi um dos segredos da persistência e reafirmação do
lema “segurança e desenvolvimento”.
A indústria do anticomunismo, que floresceu sob esse
lema, tinha como contrapartida econômica e política principal a
superexploração do proletariado (IANNI, ap. SERRA, 2000, p.
54).
Com a passagem do capitalismo para mais uma de suas fases
recessivas e o endividamento dos países da América Latina emerge no
continente latino-americano um período recessivo, a partir de meados de 1970,
suscitando, em detrimento das perspectivas desenvolvimentistas, as condições
122
favoráveis para a adesão às fórmulas neoliberais.
28
Nesse continente, o
neoliberalismo ancorou-se nos consensos para o combate à inflação e para a
estabilidade monetária.
A América Latina foi o berço e o laboratório de experiências do
neoliberalismo. Foi no combate à hiperinflação boliviana que
Jeffrey Sachs pôde testar os modelos de estabilidade
monetária que depois foram exportados para países do Leste
europeu. Foi no Chile de Pinochet que os economistas da
Escola de Chicago, sob direção de Milton Friedman,
encontraram o primeiro país com as condições políticas criadas
para a experimentação de suas propostas econômicas de
abertura econômica e de desregulação. O combate à inflação
foi a pedra de toque da construção do modelo hegemônico
neoliberal. Os diagnósticos que levaram às políticas de
desregulação foram os que atacaram a inflação como fonte dos
problemas que haviam levado à estagnação econômica, à
deterioração dos serviços sociais e da infra-estrutura do
Estado, ao empobrecimento generalizado da população
(SADER, 2003, p. 104-105).
Comparado a outros países da América Latina, o Brasil entrou
tardiamente no processo neoliberal, uma vez que a ditadura militar lançou mão
de mecanismos capazes de utilizar o período expansivo do capitalismo
internacional em favor da economia nacional, retardando o seu ciclo recessivo.
Desse modo, no País ocorrerá a evidencia de crise no final da década de
1970, o que associado à redemocratização política do País, dificultará a
penetração do neoliberalismo mesmo ainda na década de 1980. Apenas na
virada dos anos 1980 para os anos 1990 vai se delineando a hegemonia do
neoliberalismo no Brasil.
É bastante ilustrativo o comentário de Sader a esse respeito:
28
A respeito do neoliberalismo, cabe observar-se a desaparição do chamado “campo socialista” e a atual
hegemonia do projeto neoliberal.
Destacamos ainda a importância do texto de Perry Anderson, no qual o autor faz distinção entre
o liberalismo clássico e o neoliberalismo e descreve a gênese dessa reação teórica e política veemente
contra o Estado intervencionista e de bem-estar: Perry Anderson, Balanço do neoliberalismo: In: SADER,
Emir e GENTILI, Pablo (Orgs.). Pós-neoliberalismo as políticas sociais e o Estado democrático. Rio
de janeiro: Paz e Terra, 1995.
123
O atraso relativo da esquerda, construída num país agrário até
entrada da segunda metade do século XX, permitiu que o golpe
militar de 1964 atingisse um inimigo relativamente débil em
comparação com a força que já dispunham os vizinhos [...]
Argentina, Chile e Uruguai. Ao impor-se anos antes que em
outros países[...], a temporalidade jogou a favor de um novo
ciclo no processo de acumulação brasileiro [...].
Essa temporalidade também contribuiu para que não se
desse a convergência existente nos outros países entre o
movimento golpista e as ideologias neoliberais [...]
[...] o Brasil não ingressou numa fase de hegemonia
neoliberal, mas passou por um período em que o consenso
dominante era a democratização institucional e o resgate da
dívida social deixada pela ditadura. [...].
Isso se deu também pela força que a esquerda passou a
ter. O golpe militar ficou longe no tempo, construiu-se social,
política e ideologicamente uma nova esquerda [...] (ibid., p.148-
149).
O Brasil, como mencionado, associou o cerceamento das lutas sindicais
e da participação popular a um crescimento econômico importante no período
ditatorial, especialmente entre 1967 e 1979. Contou, inclusive, com significativo
índice de exportações de seus produtos e de importação de capitais. Isso
repercutiu na classe trabalhadora brasileira, que, ampliada, procurou utilizar o
seu potencial organizativo não só em favor do combate a aspectos referentes à
área trabalhista, mas também para o enfraquecimento do poder ditatorial, em
aliança com os movimentos populares e com outras forças sociais que
combatiam o autoritarismo do regime militar.
Assim sendo, na década de 1980, com a crise da dívida externa dos
países latino-americanos e com a mobilização das forças sociais contrárias ao
autoritarismo, a ditadura militar brasileira declinou, porém com marcas de
continuidade com a sua participação na coalizão que redundou na nomeação
do Sr. José Sarney para a presidência do País.
No cenário de crise do modelo econômico acelerado, batizado de “milagre
econômico”, o poderio ditatorial processou seu declínio, retomando a
124
sociedade brasileira os rumos da democracia política. Os anos finais da década
de 1970 e os anos de 1980 foram palco da reinserção dos movimentos
sindicais, políticos e populares no País, lutando pela redemocratização e pela
defesa de outros interesses concretos da vida cotidiana. Um processo que
contou com significativa participação da Igreja católica que, no espírito da
teologia da libertação, constituiu as Comunidades Eclesiais de Base.
A campanha das “Diretas Já” e a luta em prol de uma Assembléia Nacional
Constituinte livre, democrática e soberana foram insólitos episódios de
mobilização e pressão populares na sociedade brasileira.
Em 1988, tivemos o relevante fato de uma nova Constituição brasileira.
Constituição marcada pela participação de forças progressistas e que
assegurou direitos significativos para o povo no País. Por isso chamada de
“Constituição Cidadã” e dissonante das diretrizes que vinham sendo
implementadas pela hegemonia neoliberal no continente latino-americano.
Na gestão do presidente Collor de Mello, a hegemonia neoliberal
evidenciou-se no Brasil. O presidente Collor, deposto por corrupção no terceiro
ano após o ano da sua eleição 1992 —, marca o início da implementação
dos projetos alinhados ao Consenso de Washington.
29
Projetos que terão
continuidade com a posse do vice do Sr. Collor de Mello que assumiu o poder
presidencial, após sua saída, e mediante as eleições do presidente Fernando
Henrique Cardoso, respectivamente 1994 e 1998, ministro da economia na
gestão anterior.
29
Em novembro de 1989, representantes dos organismos de financiamento internacional (BID, FMI,
Banco Mundial), funcionários do governo americano e economistas latino-americanos realizaram
encontro para avaliar (e definir sobre) reformas econômicas na América Latina, o que se tornou
conhecido como Consenso de Washington.
125
No governo Cardoso a atração de capitais especulativos, por meio de
taxas de juros altíssimas, foi o recurso utilizado para obtenção da estabilidade
monetária, em vez de investimentos na produção para o crescimento e
consolidação da economia e o saneamento das finanças públicas.
Esse governo, abrindo a economia para o capital estrangeiro, multiplicou
nossas dívidas, possibilitou a elevação das importações e o declínio da
competitividade externa da economia brasileira. O que afetou
significativamente a balança comercial e a balança de pagamentos do País,
inviabilizando a retomada do seu crescimento econômico.
[...] se nos anos 1980 o crescimento havia ficado reduzido a
3,02% e a renda per capita aumentado somente 0,72, como
resultado da crise da dívida, na década passada a taxa de
expansão da economia foi ainda menor, de 2,25% e uma
expansão da renda per capta de 0,88, outra vez menos da
metade do crescimento demográfico, no país de distribuição de
renda mais injusta do mundo.
Um balanço sintético das transformações vividas pelo
Brasil na década de 1990 e especialmente durante o governo
de Cardoso pode ser resumido em dois aspectos centrais: a
financeirização da economia e a precarização das relações de
trabalho (SADER, 2003, p. 155).
A política neoliberal “modelo hegemônico, que cruza a economia, a
política, as relações sociais e a ideologia, redefinindo as relações de força
internacionais e o lugar de cada país [...]” (ibid., p. 171) — ao penetrar no Brasil
fez com que esse País tivesse queda em sua posição no comércio
internacional e perdesse importância política, haja vista a subordinação à
política norte-americana, ao Fundo Monetário Internacional, ao Banco Mundial
e à Organização Mundial do Comércio. O País perdeu em capacidade
produtiva, financeirizou-se e teve a vida dos trabalhadores impactada pela
queda do poder aquisitivo e pela perda de direitos trabalhistas e sociais, haja
vista o aumento da informalidade do trabalho e o do desemprego e a atrofia da
126
abrangência estatal no que se refere à política social, o que merecia ser
observado como fgil. Aspectos que também concorreram para o
adensamento da violência urbana no País.
O neoliberalismo produziu uma crise de desenvolvimento econômico no
País. Conforme Sader (2003), essa crise não traz índices de crescimento
econômico que contrastam com os índices relativos ao período de expansão da
economia brasileira entre as décadas de 1930 e 1970, mas índices que se
mostram abaixo daqueles da década de 1980, considerada a “década
perdida”.
30
No entanto, a denominada globalização da economia e a política
neoliberal fenômenos de um mesmo processo chegaram ao País com
forte propaganda oficial, sugerindo tratarem-se de um processo inevitável cuja
efetivação traria avanços econômicos. Processo que aumentaria nossa
capacidade mercantil, possibilitando inclusão no mercado internacional e
elevando-nos a um tipo superior de capitalismo. Portanto, uma modernização
capaz de nos tirar de uma forma capitalista atrasada, trazendo
desenvolvimento e conseqüente minimização dos nossos males sociais. É
como se a lógica do livre comércio aplicada amplamente fosse possibilidade, e
provavelmente única, de resolução dos problemas das sociedades modernas, e
o neoliberalismo concepção teórico-política nova e competente, capaz de
captar essa verdade, interpretando a realidade social e tendo ações políticas
correspondentes.
Essas questões, que atravessaram os anos da década de 1990 no
Brasil, tiveram como resposta a expressiva votação obtida por Luiz Inácio Lula
da Silva para a presidência da república.
30
Essa década foi assim denominada em função dos índices desfavoráveis ao desenvolvimento da
economia capitalista.
127
Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente Lula, ex-operário e ex-sindicalista,
chegou à presidência da república com significativo número de votos obtidos
pela expectativa de mudanças nos rumos que tomou a história do País na
última década. O Partido dos Trabalhadores, com o Sr Luis Inácio à frente,
corporificou a possibilidade de mudança, haja vista ter exercido forte oposição
à política do governo anterior. O Partido combateu o que identificou como
política subordinada ao Consenso de Washington — política neoliberal. No
entanto, mesmo que a legitimidade conferida pela expressiva votação desse ao
referido Presidente a possibilidade de colocar em curso alterações que
materializassem, mesmo que em parte, as mudanças esperadas pelos seus
eleitores, isso não se realizou.
Assim, conforme Netto (2004) o governo Lula, ao contrário do que
apregoado em compromisso de campanha eleitoral, não reverteu, mas
aprofundou a política macroeconômica do governo Cardoso. Netto,
considerando traço marcante do governo Cardoso a presença do capital
parasitário-financeiro, esclarece que este governo caracterizou-se também pela
dilapidação do patrimônio público pela via das privatizações, pelas taxas
residuais de crescimento, pela notável minimização dos princípios
constitucionais de 1988 nos domínios da ação estatal referidos às políticas de
seguridade social (designadamente a previdenciária e a assistencial). Ou seja,
um difícil legado que não vem sendo, conforme o esperado, combatido pelo
atual presidente, o que pode tornar-se força contrária aos projetos societários
dissonantes da proposta neoliberal, por suscitar em significativa parcela dos
brasileiros a sensação de impotência e pelo descrédito na política com a idéia
da sua homogeneização
128
2.3 Considerações sobre Ética e Economia
O item anterior, o qual discute o nosso “solo histórico” e, por
conseguinte, o do exercício do Serviço Social, encerrou expressando
contradições acerca de projeto societário, de ação política e de ditames
econômicos. Dessa maneira, entendendo caber aprofundamento dessa
questão em função do nosso campo de estudo, melhor aproximá-la do nosso
foco de investigação, desenvolveremos a presente temática, buscando
argumentar quanto à relação entre a ética e a economia.
Compreender o mundo humano significa apreender a atividade social e as
relações sociais por meio das quais os seres humanos, intercambiando com a
natureza, produzem as condições de sua existência produzem seus meios
de vida e simultaneamente se constroem, condicionados pela natureza.
Significa também a compreensão histórica que identifica que os produtos da
atividade social e das relações sociais incorporam força material cuja potência
torna-se semelhante às forças da natureza.
Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência,
pela religião, por tudo o que se quiser. Mas eles começam a
distinguir-se dos animais assim que começam a produzir os
seus meios de vida, passo este que é condicionado pela sua
organização física. Ao produzirem os seus meios de vida, os
homens produzem indiretamente a sua própria vida material
(MARX e ENGELS, 1984, p. 15).
O processo da produção material da vida é a possibilidade histórico-
social do ser humano. É processo em que o Homem transforma, por meio do
trabalho forma privilegiada de práxis —, a matéria natural tendo em vista a
satisfação de suas necessidades, identificando-se no que produziu, e
engendrando as relações sociais e os modos de vida social. É um processo
129
que, além de satisfazer as necessidades humanas imediatas por meio do
trabalho, possibilita que o Homem produza novas capacidades, qualidades e
necessidades. É o contexto da emersão da consciência, do conhecimento, das
idéias, dos valores, das concepções de mundo. É a História humana, a qual,
conforme Heller (1989), é a substância da sociedade que contém esferas
heterogêneas, como, por exemplo, a produção, as relações de propriedade, a
estrutura política, a vida cotidiana, a moral, a ciência e a arte.
Pode-se observar que a esfera produtiva não é um fenômeno natural,
mas produção social que expressa historicamente as relações sociais. Ou seja,
o sistema produtivo não está separado de seus atributos sociais, não é algo
abstrato ou representante de leis naturais independentes da História.
Esse raciocínio leva-nos ao entendimento de que a economia não é,
conforme explicou Marx, “uma rede de forças incorpóreas, mas, assim como é
a esfera política, [...] um conjunto de relações sociais” (ap. WOOD, 2003, p.
28). Isso não significa qualquer negação da expressão científica das “leis”
econômicas, mas sim a apreensão da economia em sua constituição social, a
captação dos modos de produção, de apropriação e de consumo como
fenômenos sociais. Ou seja, a apreensão do objeto da economia em sua
dinamicidade, o que significa nos voltarmos para as relações sociais que se
estabelecem entre os homens na produção, nos voltarmos para a estrutura
social que é fruto da produção.
Significa, também, entender a relevância do pensamento dos clássicos
da antiguidade grega, o qual desvendou que todas as atividades humanas
subordinam-se à política como condição de organização da vida na pólis. Essa
concepção sofreu significativas alterações, especialmente a partir do mundo
130
moderno, haja vista as finalidades específicas que nesse período foram
assumidas pelo Estado em prejuízo de posições de interesse geral. No Estado
da sociedade capitalista contemporânea temos evidência da inversão do
referido papel da política, pois não cabe mais organizar e regular a economia
ao contrário à economia (com características próprias) coube assumir a
dianteira, modelando a vida social em função dos interesses do mercado.
31
Ressaltando que a inovação radical de Marx face à economia burguesa
foi definir o modo de produção e as próprias leis econômicas em termos de
“fatores sociais”, diferentemente, por exemplo, de Max Weber, seu oponente
que esvaziou o capitalismo de sentido social, ao atribuir-lhe definição
puramente econômica, Wood (2003) mostra que, em certa medida, o sistema
capitalista obscurece a sua determinação sócio-histórica, ou seja, o seu
aspecto político, as relações sociais que definem produção/apropriação, em
função de a apropriação do excedente do trabalho ocorrer na própria esfera
econômica.
Com a separação do trabalhador dos meios de produção, surge o
denominado trabalhador livre, sem relação de dependência ou servidão, uma
vez que, livre para vender sua força de trabalho, e, em conseqüência disso, a
transferência da mais-valia para outro o proprietário dos meios de produção
—, tornou-se condição inevitável, inseparável da própria produção. Forma
diferente dos períodos pré-capitalistas, quando a apropriação dos excedentes
do trabalho ocorria por meios extra-econômicos, a exemplo das coações legal
ou militar que impunham a transferência de excedentes para um Senhor ou
para o Estado. No capitalismo, a perda da mais-valia é condição da própria
31
Isso significa sujeição de classe, pois é, segundo pensamento marxiano, submeter os interesses de todos
os outros membros da sociedade aos interesses daqueles que detêm o poder econômico — a burguesia.
131
produção e, portanto, da reprodução do trabalhador, um mecanismo que define
certa autonomia da esfera econômica e que trouxe para alguns, inclusive
intelectuais marxistas, como explicita Wood (2003), a impressão de separação
entre a economia e a política. No entanto, a autora, contrapondo-se a essa
posição, esclarece que
A propriedade privada absoluta, a relação contratual que
prende o produtor ao apropriador, o processo de troca de
mercadorias exigem formas legais, aparatos de coação e as
funções policiais do Estado [...]. Em todos esses sentidos,
apesar de sua diferenciação, a esfera econômica se apóia
firmemente na política (ibid., p. 35).
Portanto, compreendendo a economia como produção social,
entendemos que, apesar de não ser esfera da vida social restrita à reflexão do
ponto de vista ético, a economia não está isenta desse tipo de reflexão; muito
ao contrário, uma vez que, como toda produção social, a economia é orientada
por finalidades, comportando escolhas, atribuição de valores e significados
sociais.
32
Assim, prosseguindo nesse ângulo de raciocínio, acrescentamos que,
diferentemente das concepções que captam a sociedade como um
pressuposto para a existência do(s) indivíduo(s) isolado(s),
33
a sociedade
capitalista assenta-se na pressuposição da origem da sociedade como fruto de
um processo que teve como ponto de partida, e fundamento permanente, a
existência de indivíduos ontologicamente isolados.
A esse respeito é importante o comentário de Marx, na Introdução à
Crítica da Economia Política (1857-1858), situando o indivíduo historicamente:
32
Esta tese discute os Princípios do Código de Ética Profissional do Assistente Social. Quanto a isso,
cabe aqui destacarmos que entre esses Princípios encontra-se a “defesa do aprofundamento da
democracia, [entendida] enquanto socialização da política e da riqueza socialmente produzida”.
33
Nos pensadores gregos, a exemplo de Aristóteles, em Hegel e em Marx encontramos essa idéia.
132
Os profetas do século XVIII, sobre cujos ombros se apóiam
inteiramente Smith e Ricardo, imaginam este indivíduo do
século XVIII produto, por um lado, da decomposição das
formas feudais de sociedade e, por outro, das novas forças de
produção que se desenvolvem a partir do século XVI como
um ideal, que teria existido no passado. Vêem-no não como um
resultado histórico, mas como ponto de partida da História,
porque o consideravam como um indivíduo conforme a
natureza [...], que não se originou historicamente, mas foi posto
como tal pela natureza (1987, p. 3).
Na sociedade burguesa, a propriedade privada emerge como uma
categoria antropológica fundamental possuir é atributo natural e eterno do
indivíduo, condição de humanização e satisfação das necessidades do ser
humano. E nessa organização social a liberdade é basicamente entendida
como interesse próprio — como condição de satisfação dos próprios interesses
individuais —, liberdade individual para possuir e realizar trocas.
Quanto a isso, Marx explicita que
[...] na “sociedade burguesa”, as diversas formas do
conjunto social passaram a apresentar-se ao indivíduo como
simples meio de realizar seus fins privados, como necessidade
exterior. Todavia, época que produz este ponto de vista, o do
indivíduo isolado, é precisamente aquela na qual as relações
sociais (e, deste ponto de vista, gerais) alcançaram o mais alto
grau de desenvolvimento (ibid., p. 4).
nessa formação social a idéia de autonomia do privado e a idéia de
indivíduos relacionados entre si como proprietários de si e proprietários das
coisas. Isso diverge de concepções que, como as dos pensadores da Grécia
antiga, por exemplo, compreendam a sociedade no caso dos gregos a pólis
34
como pressuposto para emersão dos indivíduos, e como o espaço de
efetivação da liberdade, sua condição e possibilidade, pois âmbito da
sociabilidade racionalmente constituída, que viabiliza a auto-realização e o
aperfeiçoamento dos homens como seres livres. Ou, se quisermos de outra
34
Essa consideração não significa anuência com os limites da chamada democracia grega.
133
maneira, como condição e possibilidade, mediante a práxis, de conquista da
humanidade, de construção das relações sociais, uma vez que a sociedade é
produto e o espaço do processo de construção do mundo humano, no qual, por
meio de suas escolhas, de suas projeções e de suas ações, os Homens são
produto e autores da História, constituem e dão sentido à vida humana, em
condições determinadas.
Para Marx, o Homem é literalmente um zoon politikon, pois
[...] não um animal social, mas animal que pode isolar-se
em sociedade. A produção do indivíduo isolado fora da
sociedade uma raridade, que pode muito bem acontecer a
um homem civilizado transportado por acaso para um lugar
selvagem, mas levando consigo já, dinamicamente, as forças
da sociedade é uma coisa tão absurda como o
desenvolvimento da linguagem sem indivíduos que vivam
juntos e falem entre si (id., ibid.).
A produção dos Homens ocorre em condições determinadas; como
explica Marx, “[...] trata-se da produção em um grau determinado do
desenvolvimento social, da produção de indivíduos sociais” (id., ibid.). Isso
possibilita nossa compreensão da sociedade capitalista como uma sociedade
produtora de mercadorias, cuja finalidade precípua é a produção de valor e a
produção do sobrevalor o engrandecimento ilimitado do capital e não a
satisfação das reais necessidades humanas.
Segundo Netto e Braz (2007), a economia se tornou disciplina
estritamente especializada, eliminando preocupações históricas, sociais e
políticas, uma vez que a burguesia abandonou os valores da cultura ilustrada
ou, melhor, entrou em decadência ideocultural, a partir de 1848, dado o intuito
de manutenção do poder de classe.
35
A economia tornou-se uma disciplina
35
Segundo José P. Netto e Marcelo Braz, na obra Economia política: uma introdução crítica, (2007), a
Revolução burguesa o materializou o projeto de emancipação humana propalado pela burguesia
revolucionária e resumido na consigna: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Lógico que sua realização
134
particular, específica, técnica, com estatuto científico-acadêmico; uma
disciplina instrumental, adequando-se aos interesses da ordem social burguesa
conservadora, e desenvolvendo, desse modo, um enorme aparato técnico com
formato predominantemente matemático. Isso porque renunciou ao papel de
fornecer as bases fundamentais que permitiriam compreensão do conjunto da
vida social, restringindo-se à análise superficial e imediata da vida econômica.
O desenvolvimento da sociedade burguesa, como argumentado na
seção anterior, configurou modos de vida social e de Estado (relações sociais,
jurídicas, políticas), e impulsionou avanços científico e tecnológico. É nessa
organização social que a questão social” emerge como fenômeno
característico da contradição instituída pela socialização do trabalho e a
apropriação privada dos seus meios de realização e dos seus frutos — a
riqueza socialmente produzida. Essa contradição expressa o desenvolvimento
das forças produtivas do trabalho social e as relações de desigualdade,
pobreza e miséria. Segundo Netto (1989; 2001) a “questão social” é “o conjunto
de problemas econômicos, sociais, políticos, culturais e ideológicos que cercam
a emersão da classe operária como sujeito sociopolítico no marco da
sociedade burguesa” problemas que logicamente, hoje também, estão
presentes, pois inerentes à sociedade capitalista, apesar de suas expressões
corresponderem ao atual estágio desse modo de produção. Com base em
trouxe avanços para a ordem social, consideradas as ingerências do período feudal; todavia, cabe
notarmos o insuperável limite desse feito para a emancipação humana, haja vista a dominação de classe.
Esse fato teve repercussões históricas que fizeram com que, a partir de 1848, a burguesia ingressasse no
seu “ciclo de decadência ideológica”, ou seja, deixasse de ser capaz de proposições emancipadoras,
convertendo-se em classe conservadora. Nisso inclui-se o abandono de conquistas teóricas da Economia
Política Clássica, tal como a idéia de valor como produto do trabalho. Esse movimento histórico da
burguesia foi traçando também a substituição da Economia Política Clássica, a qual pesquisa a vida social
e econômica a partir da produção dos bens materiais e não da sua distribuição, pela Economia como
disciplina científica especializada, desvinculada de preocupações históricas, sociais e políticas,
preocupações que passaram a outras áreas das ciências sociais que se articularam a partir daí: História,
Sociologia, Teoria (ou Ciência) Política.
135
Iamamoto (2001c), de modo similar, podemos nos referir à “questão social”
como conjunto das expressões das desigualdades sociais engendradas na
sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Ou
seja, como expressão de desigualdades econômicas, políticas e culturais das
classes sociais que configuram um processo denso de conformismos e
rebeldias em função das lutas pelos direitos sociais e políticos dos indivíduos
sociais lutas que remeteram a “questão social” para a esfera pública,
exigindo a ação estatal face aos direitos e deveres dos envolvidos e, portanto,
viabilizando a formulação de políticas e serviços sociais.
Na sua configuração atual, o mundo capitalista evidencia um processo
produtivo articulado em escala mundial, no qual liberdade e democracia são
identificadas e propaladas como livre comércio. Defrontamo-nos, dessa
maneira, com a chamada globalização”, a “globalização” dos mercados, nos
marcos da financeirização da economia e das alterações regressivas na esfera
estatal a contra-reforma do Estado —,
36
a qual trouxe sérias implicações à
vida social, haja vista a restrição das responsabilidades públicas frente aos
direitos conquistados e/ou às necessidades sociais, ou seja, a ampliação, o
aprofundamento e a criminalização da “questão social”.
É relevante citarmos Iamamoto, a respeito da “questão social”:
Recicla-se a noção de “classes perigosas” não mais
laboriosas —, sujeitas à repressão e extinção.[...]. Evoca o
passado, quando era concebida como caso de polícia, ao invés
de ser objeto de uma ão sistemática do Estado no
atendimento às necessidades básicas da classe operária e
outros segmentos de trabalhadores (2001c, p. 27).
Todavia, essa expressão atual do capitalismo veio como resposta a mais
uma de suas crises cíclicas, após um período de significativa expansão
36
A esse respeito é importante consultar a tese de doutorado de Elaine R. Behring, intitulada A contra-
reforma do Estado no Brasil (2002).
136
econômica nos países centrais os denominados “trinta anos gloriosos” ou a
“época de ouro” do capitalismo; período em que o Estado interveio de modo
significativo, seja tocando no plano da produção propriamente dita, buscando
arrefecer os riscos causados pelas crises próprias ao sistema de produção,
seja como mediador nas relações (conflitos) entre o capital e o trabalho. O
Estado envidava esforços para viabilizar o processo de acumulação capitalista
articulado às políticas salariais e sociais, um processo que, por meio da
organização da produção dirigida ao consumo de massa e da produção de
bens em massa, possibilitava certa combinação entre intensidade no trabalho,
elevada produtividade, alta taxa de lucro, políticas de pleno emprego e salários
crescentes — convencionalmente chamado de padrão de acumulação fordista.
Esse padrão de acumulação, desenvolvido após a Segunda Guerra
Mundial, iniciou a mostrar sinais de crise desde meados de 1960, e para
enfrentá-la desencadeou-se um radical processo de reestruturação capitalista.
Surgiu na organização da produção um novo modelo para substituir as grandes
corporações empresariais que produziam desde matérias-primas até o produto
final. Esse modelo corresponde à estrutura de produção dita flexível, ou seja,
uma resposta defendida como eficiente e ágil face às necessidades imediatas
de consumo da população. É tido como um tipo de produção que, sem
estoques, sem estrutura verticalizada e com o menor número necessário de
trabalhadores para realizar os produtos em acordo com o interesse imediato do
consumidor, possibilita menor custo de fabricação.
A reestruturação da produção que comportou mudanças organizacionais
e alterações tecnológicas (a microeletrônica, por exemplo), bem como a
desregulamentação dos mercados, inclusive o da força de trabalho, está no
137
bojo das atuais transformações societárias que tocam os Estados nacionais
para o recrudescimento do processo de mundialização do capital. É parte de
um movimento em busca de revitalização do capitalismo avançado mundial,
após a sua crise na década de 1970 (com sinais desde meados de 1960 e
ainda em curso), quando uma profunda recessão combinou baixas taxas de
crescimento com altas taxas de inflação. É, como citamos (Dias 1998), uma
resposta à crise do capital que põe em cena uma dupla solução: o
neoliberalismo e a reestruturação produtiva. Ou seja, uma resposta que coloca
em questão o Estado de Bem-Estar Social, comprometendo-se radicalmente
com a perspectiva de liberdade do mercado, desobrigando-se de
compromissos com as necessidades da população e com a ampliação da
cidadania, após o capitalismo não mais contar com a ameaça do bloco
socialista.
Ruy Braga (1996), autor também citado em páginas anteriores, refere-se
ao atual processo posto em curso pelo capital como sendo um posicionamento
restauracionista (do capital) com o objetivo de protelar as conseqüências da
sua queda da taxa de lucro. Diante do que interessa-nos situar que esse é um
processo que vem violando conquistas duramente alcançadas pela classe
trabalhadora e trazendo profundos danos à vida em sociedade. Observa-se,
ao lado do ataque às políticas públicas e a ampliação da desigualdade social
e seus evidentes desdobramentos nos índices da chamada violência urbana
—, perda de postos de trabalho, melhor dizendo, desemprego, trabalho sem
regulamentação e diversidade de contratações temporárias, ou seja, aumento
combinado de formas de exploração do trabalhador, seja pela “informalidade”
do trabalho seja por meio da introdução de novos padrões tecnológicos e/ou
138
gerenciais. O enfraquecimento dos sindicatos também é visível, com sérios
prejuízos à possibilidade de organização e, portanto, resistência dos
trabalhadores. Esse é o contexto de sociedades, particularmente as da periferia
capitalista,
37
que exibem, paradoxalmente, ao lado da sofisticação tecnológica
— considerável capacidade de produção de riquezas sociais —, precárias
condições de trabalho e vida de significativo contingente de seus
trabalhadores; sociedades essas que muitas vezes quando conseguem não
aumentar sua estatística de pobreza ou não ampliar o seu contingente de
pessoas miseráveis, acirram mesmo assim a desigualdade social. Ou seja, são
sociedades onde o cessar ou até a diminuição numérica dos índices de
pobreza e miséria podem não significar necessária e automaticamente
apreciação de melhoria na qualidade de vida da população em geral, uma vez
que, apesar disso, essas sociedades podem manter ou até piorar as condições
de vida e trabalho de faixa majoritária dos trabalhadores, pois poucos
segmentos da população trabalhadora podem ter acesso a condições dignas
de trabalho e às riquezas produzidas socialmente. Fatos que ocorrendo, além
do dano que causam pela inviabilidade de tais acessos, levam a população
trabalhadora à dupla penalidade,
38
pois também reforçam a desigualdade
social e podem ser comumente verificados por meio de fenômenos
relacionados à (in)segurança pública.
A esse respeito, é interessante observarmos o comentário de Wacquant
autor que evidencia o desenvolvimento de um Estado Penal em substituição
37
Essas sociedades sempre tiveram um sistema de proteção social frágil e sempre mereceram observação
pelas marcas do desrespeito aos direitos do trabalho. Apesar de impactadas pelo processo em curso de
reestruturação do capital, nunca contaram com um Estado de Bem-Estar Social que ora pudesse ser
atacado.
38
Evidentemente, apesar de salvaguardadas diferenças, sem abstrações e homogeneidades, esse é um
processo que afeta a sociedade em geral.
139
ao Estado de Bem-Estar Social em nota introdutória dedicada aos leitores
brasileiros de sua obra As prisões da miséria:
[...] a despeito do retorno à democracia constitucional, o Brasil
nem sempre construiu um Estado de direito digno do nome. As
duas décadas de ditadura militar continuam a pesar bastante
tanto sobre o funcionamento do Estado como sobre as
mentalidades coletivas, o que faz com que o conjunto das
classes sociais tenda a identificar a defesa dos direitos do
homem com a tolerância à bandidagem.
Em tais condições, desenvolver o Estado penal para
responder às desordens suscitadas pela desregulamentação
da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado e
pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes
do proletariado urbano, aumentando os meios, a amplitude e a
intensidade da intervenção do aparelho policial e judiciário,
equivale a (r)estabelecer uma verdadeira ditadura sobre os
pobres (2001, p.10).
Naturalmente, o obstante tratar-se de um processo em escala
mundial, não cabe observar com homogeneidade esse processo de
reestruturação do capitalismo. Sabemos que nele existem particularidades e
“hierarquias” ou, melhor, que ele comporta a realidade de diferenças e
desigualdades inerentes ao capitalismo. Outrossim, sabemos que essa
realidade não foi tecida por leis naturais ou sobrenaturais, mas construída
socialmente e dissonante de projeto societário dirigido à genericidade humana,
o qual poderíamos caracterizar como favorável ao processo de humanização
do ser humano.
O mundo capitalista evidencia um processo produtivo articulado em
escala mundial (o que comumente é chamado de globalização), em que
liberdade e democracia o identificadas e propaladas como livre-comércio. E,
por sua vez, esse livre-comércio, passou a ser identificado e propagado como o
eixo regulador da vida social, correspondendo ao desenvolvimento de uma
racionalidade assentada no pragmatismo. Uma defesa da produtividade, da
140
competitividade, da eficiência, do individualismo e do útil como critério de
verdade, quesitos que compõem a lógica que deve nortear a vida em
sociedade.
Anderson, discutindo o neoliberalismo, explicita que
[...] este é um movimento ideológico, em escala
verdadeiramente mundial, como o capitalismo jamais havia
produzido no passado. Trata-se de um corpo de doutrina
coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a
transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição
estrutural e sua extensão internacional (1995, p. 22).
O neoliberalismo teve origem, após a Segunda Guerra, como reação
teórica e política ao Estado Intervencionista e de Bem-Estar.
39
Um
posicionamento fortemente contrário aos mecanismos estatais para regular o
mercado, para planificar a economia, sob alegação de serem danosos à
liberdade tanto econômica como política.
Hayek e demais adeptos desse pensamento
40
combatiam o
keynesianismo, visando à emersão de um outro tipo de capitalismo, ou, melhor
dizendo, visando a um capitalismo mais duro e livre de regras, restritivo às
conquistas do trabalho e/ou às possibilidades de novas conquistas pelo
trabalho.
No pensamento neoliberal, o qual tomou fôlego a partir da crise
capitalista evidenciada na década de 1970, a causa dessa crise do modelo
produtivo após a Segunda Guerra Mundial seriam o poder do movimento
operário e os gastos com as políticas sociais. Aí poderíamos encontrar os
responsáveis pelos prejuízos ocorridos no processo de acumulação capitalista.
39
O caminho da servidão de Friedrich Hayek, escrito em 1944, é o texto considerado como o de origem
do neoliberalismo.
40
Perry Anderson (1995) esclarece que, após convocação de Hayek aos que compartilhavam sua
orientação ideológica para uma reunião na pequena estação de Mont-Pélerin, na Suíça, por volta de 1947
período de formação das bases do Estado de Bem-Estar na Europa —, foi fundada por eles uma
espécie de maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada
dois anos.
141
O Estado Intervencionista e de Bem-Estar Social é considerado
prejudicial à economia e aos cidadãos, uma vez que constitui um empecilho à
liberdade do mercado, à sua prosperidade e à prosperidade dos cidadãos.
Estes tornam-se parasitários, dependentes das políticas públicas que
prejudicam os lucros empresariais, agigantam e oneram o Estado, enfim, que
desencadeiam crises nas economias de mercado.
Observe-se que, enquanto no contexto do após-guerra a intervenção
estatal foi tida como mediação para se enfrentarem as crises do capital, como
possibilidade de pelo menos minorar substancialmente seus efeitos, a crítica
neoliberal inverte tal lógica alegando que o que se tomava como possibilidade
de solução seria a própria causa da crise.
Os anos 1980 testemunharam, nas economias capitalistas dos países
centrais, a vitória do neoliberalismo, com seu ideário em favor do mercado livre,
da competição como melhor maneira de alcançar a realização dos indivíduos e
garantia de atendimento às suas necessidades. O governo inglês de Margareth
Thatcher foi pioneiro nas experiências neoliberais e, com prática aguerrida,
teve iniciativas como a imposição de legislação anti-sindical, a efetivação de
programas privatistas, a baixa de impostos sobre altos rendimentos.
Mesmo nos países com governos cuja ideologia neoliberal era, por
princípio, inimiga central — os social-democratas — essa ideologia foi se
irradiando com correspondência prática.
Em Anderson, observamos que
O que demonstram estas experiências era a hegemonia
alcançada pelo neoliberalismo como ideologia. No início,
somente governos explicitamente de direita radical se
atreveram a pôr em prática políticas neoliberais; depois,
qualquer governo, inclusive os que autoproclamavam e se
142
acreditavam de esquerda, podia rivalizar com eles em zelo
neoliberal (ANDERSON, 1995, p. 14).
Na América Latina, após o Consenso de Washington de 1989
41
o
neoliberalismo penetrou trazendo a redução do Estado, as “ondas privatistas”,
e a abertura dos mercados. Ou, em outros termos, forjando políticas
propaladas como necessárias à produtividade e à competitividade,
características de um planejamento subordinado à concorrência e visando à
soberania dos mercados, apesar do veemente posicionamento neoliberal
contra o planejamento socioeconômico. A partir daí nos deparamos com a idéia
da importância e da inevitabilidade da globalização (neoliberal), um processo
tratado com tamanho grau de inexorabilidade que parece corresponder a
razões e leis naturais.
Como destacamos de outra maneira, no pensamento neoliberal
(liberal) o desrespeito à liberdade do mercado, ao laissez-faire e à lógica
individualista é o motivo dos problemas das sociedades modernas. Segundo
esse pensamento, não é pertinente interferência consciente nos assuntos
sociais, pois as questões das sociedades atuais têm na implantação total do
mercado a sua solução. Não cabe planejamento socioeconômico porque é
mediante a lógica impessoal do mercado que se torna possível a submissão de
todos a padrões gerais, ou seja, ditados sem espaço para privilégios de
interesses particulares de indivíduos ou grupos.
O mercado comporta produção, consumidores e produtos e é a
possibilidade de equilíbrio da vida social, desde que haja combinação entre
esses diferentes fatores, ou seja, desde que a produção e o consumo estejam
41
Conforme explicitamos em nota anterior, em novembro de 1989 representantes dos organismos de
financiamento internacional (BID, FMI, Banco Mundial), funcionários do governo americano e
economistas latino-americanos realizaram encontro para avaliar (e definir sobre) reformas econômicas na
América Latina, o qual se tornou conhecido como Consenso de Washington.
143
em adequação. Para isso, é necessário implantar o mercado total, um mercado
livre e ampliado que permita aos indivíduos livres buscarem a satisfação de
suas necessidades e seus desejos, partindo de seus recursos e conhecimentos
perfeitos dos acontecimentos que ocorrem no mercado, sem interferência de
qualquer plano imposto por planejamento/ação estatal. A ordem social,
portanto, emerge do entrelaçamento das ltiplas ações individuais, da lógica
produzida pelo e para o funcionamento do mercado. Ou seja, em uma
sociedade de complexa divisão social do trabalho, cuja coordenação das ações
portanto, da vida social é considerada impossível por mecanismos
conscientes de regulação, o mercado é tomado como o recurso adequado para
realizar tal tarefa. Ele permite, mediante a racionalidade produzida pelo
entrelaçamento das ações individuais em busca de satisfação de necessidades
e desejos, a coordenação e a regulação dessas diversas ações cumpre um
papel considerado impossível pelo conhecimento dos sujeitos na coordenação
direta das múltiplas ações na sociedade.
O neoliberalismo reedita a tese da “supremacia do mercado” ou,
conforme explicita Oliveira (1995), reedita os argumentos liberais de tendência
imanente do mercado ao equilíbrio e de sua possibilidade de exercer “função
epistêmica”,
42
aspectos de alcance inviável pelo planejamento, pela ação
consciente dos sujeitos. Em outros termos, o neoliberalismo retoma a
concepção liberal do mercado como o mecanismo que impede a anarquia, por
suscitar um sistema produtivo coordenado, apesar de produzido não
intencionalmente pelo automatismo do mercado.
42
A esse respeito, Oliveira (1995) explica que o mercado é legitimado epistemicamente, pois é captado
como instrumento para suprir conhecimentos e como mecanismo indispensável de coordenação em uma
economia complexa.
144
Todavia, com base em F. Hinkelammert (ap. Oliveira, 1995, p. 62), cabe-
nos apreciar a contradição que essa tese comporta. Por um lado, ela coloca o
mercado como portador de função epistêmica justifica teoricamente o
mercado a partir dessa função, alegando que ele permite uma coordenação
que, de outro modo, pressuporia conhecimento inatingível pelo Homem.
Ninguém e/ou nenhuma instituição pode ter conhecimento das múltiplas ações
e questões da sociedade, ou seja, conhecimento o amplo a ponto de
empreender uma intervenção eficiente, conscientemente construída, na
realidade socioeconômica. Isso faz com que o mercado se torne a resposta
necessária nas sociedades modernas. Todavia, por outro lado, essa tese
pressupõe que o equilíbrio do mercado aconteça na medida em que os que
dele participem tenham conhecimento perfeito de todos os acontecimentos que
ocorrem no mercado, além de considerar necessária a capacidade ilimitada de
adaptação dos fatores (produção, consumidores e produtos) às situações em
mudança constante. Isto significa que o equilíbrio efetivado pelo mercado só é
possível mediante conhecimento inatingível pelo Homem ou seja, por meio
do aspecto que justificaria teoricamente o mercado como resposta necessária
nas sociedades modernas. Disso se pode inferir a incongruência do marco
teórico do neoliberalismo, uma teoria autocontraditória, como explica Oliveira
(1995), haja vista não caber captarmos o mercado com função epistêmica,
como racionalidade evidente por sua tendência imanente ao equilíbrio ou como
o elemento capaz de produzir a coordenação das atividades necessárias ao
equilíbrio socioeconômico das sociedades modernas. Tampouco cabe
considerar, em conseqüência, que a ampliação do mercado quanto mais se
assegure a propriedade privada e a liberdade de contratos nas atividades
145
humanas signifique o caminho, a racionalidade apropriada para a solução
dos problemas socioeconômicos das sociedades modernas.
Diante do que viemos explanando, cabe observar-se, ainda, o
comentário de Oliveira ao destacar que, paralelamente ao enaltecimento do
mercado considerado o grande “imperativo econômico” —,
43
o socialismo é
apresentado como irracional pela pretensão de substituí-lo:
O socialismo se manifesta [...] exatamente como irracional por
pretender substituir o mercado, portanto por pretender realizar
o impossível. O resultado só pode ser o caos exatamente
porque seu projeto de sociedade implica, enquanto propõe uma
planificação global, que pressupõe um conhecimento perfeito
da realidade econômica, a destruição das relações mercantis,
as únicas em condição de solucionar o problema econômico
numa sociedade moderna. O socialismo tem, em sua raiz, uma
falsa concepção de homem: supõe um homem absoluto capaz
de adquirir um conhecimento completo que lhe permita dominar
todos os possíveis acontecimentos. Trata-se, aqui, claramente,
da negação da finitude essencial do ser humano e por isso de
uma expressão de orgulho ilusório. O socialismo é, por isso,
uma ideologia perigosa, pois, tentando realizar uma ilusão, ele
vai ter que apelar para o terror (1995, p. 63).
Sabemos que, no sistema capitalista a finalidade é o (ilimitado)
engrandecimento do capital e não propriamente a satisfação geral das
necessidades sociais. E isso, como colocado, implica hierarquia e
desigualdade. Configura um mundo de produção de mercadorias destinadas à
troca para a realização da mais-valia, no qual a força de trabalho também se
torna mercadoria com a especificidade de, ativada como trabalho, tornar-se
fonte de valor/sobrevalor. Ou seja, nessa formação social as relações
mercantis invadem a sociabilidade e as diversas dimensões da vida em
sociedade. Todavia, a economia de mercado é apresentada pelo pensamento
neoliberal como via de equilíbrio social, e como possibilidade de felicidade e de
43
Denominação utilizada por Manfredo Araújo de Oliveira (1995, p. 63).
146
liberdade, com isso a competição e o individualismo são valorizados. A idéia de
bem-comum de interesse geral aparece como caminho a ser efetivado
pela luta em prol da satisfação dos interesses de indivíduos isolados,
interesses perseguidos individualmente e consoantes com a lógica mercantil,
ou seja, submetidos a essa lógica. A submissão ao mercado é sugerida como
meio de realização humana, pois o mercado
[...] se impõe para além da consciência como um mecanismo
coletivo de produção de decisões, como um processo que se
impõe às ações individuais.
Por esta razão a principal e fundamental virtude desta
postura ética consiste na humildade da aceitação da primazia
deste mecanismo inconsciente na vida, ou seja, na renúncia a
uma ação consciente em função da submissão a um
mecanismo inconsciente, mas eficaz (OLIVEIRA, 1995, p. 64).
Essa citação adensa o que viemos discutindo e sinaliza a relevância de
pensarmos no sentido da economia na vida humana, pois, como se pode
apreender, a teoria econômica implica conseqüências para a vida humana e
não significa um saber (e/ou pressupõe agir) isento de valores e de finalidades.
Não obstante,
Desde seu nascimento na modernidade, mas, sobretudo, a
partir dos economistas neoclássicos, a ciência econômica
levanta[r] a pretensão de articular-se [...] como um
conhecimento de fenômenos isento de valores (OLIVEIRA,
1995, p. 65).
Dessa maneira, cabe observar que o que discutimos no Capítulo I torna
clara a relação entre valores e economia, uma vez que nele abordamos
produção/reprodução do Ser Social. Ao situarmos o trabalho como categoria
fundante do mundo humano, evidenciamos que é por meio do trabalho que
surgem os valores como propriedades que o produto adquiriu e pelo significado
que ganham para o Homem, em decorrência das funções sociais que o produto
desempenhará. São propriedades objetivas do existente, ou daquilo que, a
147
partir da transformação realizada pelo Homem, passou a existir. Podem ser
propriedades identificadas pelo Homem em algo para efetuar o produto
humanizado ou referir-se ao que passou a existir, pela objetivação do seu
trabalho, e tornou-se valor ou desvalor em função da satisfação das
necessidades humanas. Ou seja, a valoração pressupõe a práxis e sua base
originária que tende a desdobrar-se em patamares mais elevados de
sociabilidade pode ser encontrada nas ações dos homens em busca de
respostas para as suas necessidades, em determinadas condições sócio-
históricas.
O dever-ser também tem sua base no trabalho, pois, como
comportamento determinado por finalidades sociais, tem na escolha entre
alternativas e na projeção na teleologia características para sua
efetivação. Tais categorias se realizam no trabalho e nas formas mais
complexas da práxis, uma vez que podem transferir-se para campos de ação
puramente espirituais.
Além disso, cabe focalizar que, mesmo que a ciência se pretenda
conhecimento independente da subjetividade, isso só poderia ser pensado,
sem nos prendermos a análises profundas, nas ciências naturais, fora isso, tal
possibilidade é impensável, e nas ciências sociais é projeto inexeqüível. Com
base em Oliveira (1995), essa afirmação pode ser ratificada e adensada, se
observarmos que o modelo de ciência moderna expressa em linguagem
matemática na economia não redundou em extinção de preferências ou valores
humanos, mas “na absolutização ética da utilidade identificada com o bem, na
identificação da racionalidade instrumental referida à maximização da utilidade
com a racionalidade da ação enquanto tal”.
148
As ciências em geral, e particularmente as que se referem à sociedade,
são produções do mundo humano e não estão isentas dos valores e finalidades
de quem as produziram. Isso não quer dizer inviabilidade de aproximação
(contínua) da realidade (natural ou social) para conhecê-la e/ou nela intervir
conscientemente, de modo eficiente.
No interior do trabalho, o Homem escolhe entre alternativas, projeta, ou
seja, estipula finalidades e busca meios de materializar o que previamente
idealizou. Nesse processo ocorre a busca do conhecimento ao longo da
História, e é nele que se desenvolve a ciência, a busca do conhecimento da
legalidade do existente, visando ao conhecimento universalizante, visando ao
alcance de categorias universais. Todavia, isso requer projeções, escolhas,
determinação de finalidades sociais e ação em função de necessidades
sociais. A ciência constitui um processo produtor de conhecimento que cumpre
uma função social específica, vinculado às necessidades e às
responsabilidades do mundo humano. Disso participa originalmente a ciência
econômica, da necessidade e da responsabilidade da produção, da
apropriação, e da distribuição de bens para a satisfação de necessidades
sociais.
O Homem, por meio do trabalho, em busca de satisfação de suas
necessidades, escolhe entre alternativas, determina e é responsável pela
ordem econômica, imprime sentido ao agir econômico e, por conseguinte,
evidencia a finalidade social assumida por esse agir, tornando ou não a vida
humana possível.
Quanto a isso, é interessante observar-se que:
Se nosso ser é um ser da necessidade de um ter que ser pela
mediação de nossa práxis, esta necessidade é, em primeiro
149
lugar, uma “necessidade natural” por ser o homem um sujeito
“vivo”, parte da natureza tendo que se produzir a si mesmo
através da mediação da natureza [...]. Por esta razão, se a
história é o espaço de luta pela efetivação da liberdade, ela é,
antes de mais nada, “luta pela vida”, pela conquista das
condições materiais que tornem a vida humana possível
(OLIVEIRA, 1995, p. 70).
Dessa maneira, entendemos que a economia exerce papel
preponderante na vida em sociedade na medida em que, cumprindo sua
função social vinculada aos fenômenos da produção, da distribuição e do
consumo dos bens, da riqueza produzida socialmente —, esteja a serviço da
satisfação das necessidades básicas do ser humano, o que significa na direção
da satisfação das necessidades de todos na sociedade; na medida em que,
exercendo sua liberdade, sua possibilidade de escolha, o Homem opte e se
responsabilize por teorias e ões econômicas consoantes com sua existência
material e espiritual, com sua contínua necessidade de conquista como ser,
pois, como mencionamos em páginas iniciais deste trabalho, o Homem é um
ser ontocriativo, portanto, um ser inacabado que cria, melhor dizendo, que
conquista sua humanidade, o seu próprio ser. Isso porque sua ão pode
também dirigir-se ao contrário, ou seja, voltar-se para a sua destruição. Fato
que, no nosso entender, mostra-se no âmbito da economia por meio de
perspectivas que, vinculadas aos fenômenos da produção, da distribuição e do
consumo da riqueza socialmente produzida, não tenham como finalidade a
satisfação das reais necessidades sociais, não coloquem o Homem como seu
fim, tornando-o meio e/ou instrumento para satisfação de outros interesses
particulares, sejam de indivíduos isolados, sejam de grupos. Além disso, por
meio de perspectivas que retirem do Homem a possibilidade de, como ser
genérico, exercer a liberdade, pois independente da subjetividade, o que
150
significa retirar do Homem a tarefa de criação do seu mundo e,
simultaneamente, da sua autocriação e do seu aperfeiçoamento, ou seja,
perspectivas sem possibilidade emancipadora, como, por exemplo, a teoria
neoliberal a qual, colocando o mercado como Sujeito, o situa, conforme
Oliveira (1995), além da consciência, como mecanismo coletivo de produção
de decisões, como processo social que se impõe às ações individuais,
trazendo com isso, inclusive, a possibilidade de isenção radical da moralidade
na vida humana, uma vez que a questão dos fins da ação humana torna-se em
última instância decidida pelo mercado.
Essa teoria político-econômica tem por finalidade o engrandecimento
desmedido do capital, e por isso alicerça de diversos modos a efetivação da
produção exacerbada de excedente pelo trabalhador, em detrimento do
necessário para a sua reprodução ou seja, possibilita ampliar sobremaneira
a exploração do trabalho e coloca o Homem cada vez mais a serviço das
coisas, em vez de viabilizar que as coisas sejam colocadas em função da
criatividade e da realização humanas.
Tudo isso nos leva a inferir que, apesar de não restrita à ética, a
economia — teoria ou ação/realização nesse campo — é construção social que
comporta valores e finalidades sociais; portanto, não está isenta de reflexão no
campo ético. Daí a importância de considerá-la no bojo das indagações acerca
dos rumos que vem tomando a existência humana e das questões vinculadas à
decifração do sentido da História humana. Daí a importância de avaliar-se o
que é e o que pode ser diferente, ou seja, apreciar na vida em sociedade, no
âmbito sócioeconômico, o ser e o dever-ser, categorias que estão no âmbito de
estudo da ética.
151
Diante do que expusemos, é importante ainda se observar que relação
tem com o Serviço Social, uma vez que, além de nossa profissão, é profissão
cuja gênese encontra-se em determinada fase do capitalismo a era dos
monopólios e tem nele solo histórico do desenvolvimento de suas ações,
pois ações destinadas ao trato das diferentes expressões da “questão social”.
O Serviço Social é profissão que vem sofrendo consistentes
repercussões no seu âmbito de ão, não por seus agentes serem
trabalhadores assalariados, mas por serem trabalhadores assalariados que
trabalham nas políticas sociais em função das expressões da “questão social”
matéria do seu trabalho —, num momento em que as propostas para o
enfrentamento da “questão social” não ultrapassam perspectivas
assistencialistas, que articulam focalização e repressão e reforçam a face
repressiva de segurança pública.
44
É uma profissão que vem sofrendo novas
requisições e configurações nos seus espaços ocupacionais em decorrência
das transformações societárias — que retratam alterações regressivas nas
relações entre o Estado e a sociedade civil correspondentes ao quadro
recessivo da economia internacional, economia submetida à lógica financeira
do grande capital e alicerçada por um vasto empreendimento ideológico que,
como já explicitamos, compromete processos e valores democráticos — o
ideário neoliberal.
A esse respeito, cabe o seguinte comentário de Iamamoto:
44
Conforme procuramos explicitar em outros textos, a concepção de segurança pública não deve limitar-
se à repressão policial:
Cleier Marconsin e ValeriaL. Forti. Segurança social ou (in)segurança pública?! (2000); Por uma
concepção ampliada de segurança pública: o Serviço social discute os direitos humanos e de cidadania
( 2001); e Segurança pública e Serviço Social: discutindo o (des)respeito aos direitos humanos (2002).
152
Vive-se um momento particular de inflexão do cenário mundial
que afeta a produção, a distribuição e o consumo de bens e
serviços materiais, culturais, públicos e privados, atingindo a
vida de todos. O desenvolvimento das forças produtivas sociais
do trabalho — e dos avanços técnico-científicos em que se
apóia é apropriado por países e grupos sociais que detêm o
monopólio da economia, do poder político e militar. O reverso
da acumulação e da centralização de capitais tem sido o
alijamento de segmentos sociais majoritários do usufruto dos
ganhos da civilização. É a ampliação da dependência cada vez
maior dos cidadãos à ciranda do mercado, que se impõe aos
sujeitos como uma força inexorável, invertendo e subvertendo
valores quando a referência é a emancipação humana (2001c,
p. 19).
Como vimos, essa citação situa com clareza as implicações desse
processo em curso para o Serviço Social brasileiro — destaca-se a apropriação
dos avanços técnicos e científicos pelo monopólio econômico político e militar,
o alijamento de segmentos sociais majoritários do usufruto dos ganhos da
civilização e a inversão e subversão de valores referentes à emancipação
humana. Esses aspectos se contrapõem aos compromissos assumidos pelo
Serviço Social, ou seja, à direção ético-política defendida e assumida em seu
projeto profissional — o atual Projeto Ético-Político do Serviço Social Brasileiro,
um projeto profissional que é expressão de um processo de luta pela
hegemonia entre as forças sociais presentes na profissão e na sociedade e,
como abordaremos mais adiante nesta tese, dissonante dos valores e
finalidades propagados e efetivados pelo atual ordenamento socioeconômico.
Ou seja, um projeto profissional que, diametralmente oposto às diretrizes
políticas neoliberais, tem como valor central a liberdade e se fundamenta na
ontologia do ser social assentada no trabalho. O Serviço Social rompendo
com sua postura conservadora acabou por gestar, ao longo das últimas
décadas, uma direção social estratégica colidente com a hegemonia política do
grande capital, tendo como referência princípios claramente expressos no
153
seu último Código de Ética Profissional cuja materialização supõe a luta no
campo democrático-popular em prol da construção de uma nova ordem
societária.
2.4 Criminalização da pobreza
Se discutir o modo de produção capitalista significa discutir o que
engendra e dá forma ao percurso histórico do Serviço Social — “seu solo
histórico” —, significa também problematizar o objeto de estudo/intervenção
dessa profissão, ou seja, a “questão social”. Esse tema será aqui enfocado por
meio da discussão do fenômeno da criminalização da pobreza, algo que não é
novo mas, a nosso ver, ora se mostra diferente pela insólita proporção que
assume.
45
Como foi citado no item anterior deste texto, podemos nos referir à
“questão social” como o “conjunto de problemas econômicos, sociais, políticos,
culturais e ideológicos que cercam a emersão da classe operária como sujeito
sociopolítico no marco da sociedade burguesa” (IAMAMOTO, 2001c).
Sociedade que necessitou, para constituição e expansão do modo de produção
capitalista com os inerentes conflitos da relação entre o capital e o trabalho
—, recorrer a determinados mecanismos, seja para disciplinar a força de
45
São constantes as notícias em jornais impressos e telejornais de ocupações pelos Órgãos de Repressão
em áreas populares, em função das chamadas “guerra do tráfico e guerra ao tráfico”, o que penaliza
inúmeros sujeitos. Todavia, em situações individualizadas, a nosso ver, nunca foram tão freqüentes
notícias nos mesmos veículos de comunicação sobre jovens (comumente pobres) presos ou até mortos por
policiais, por serem confundidos com aqueles que, por violarem a lei, são avaliados como bandidos. Não
obstante serem numerosos, selecionamos em função de nosso objetivo aqui, em um pequeno flash
ilustrativo, apenas dois casos que consideramos emblemáticos: no dia 03/11/2006, em São Paulo, em um
telejornal noturno da rede Bandeirantes, ouviu-se que dois jovens trabalhadores, motoboys, foram presos
por terem sido confundidos com uma pessoa que havia cometido delito e estava sendo procurada. Em
outro canal, poucos minutos depois, a rede Globo anunciava em seu telejornal das 20h.— que um
jovem de 19 anos de idade fora baleado por policiais, que pensaram tratar-se de assaltante. O fato acorreu
quando o jovem tentava pegar um táxi, próximo à sua residência favela do Jacarezinho —, no Rio de
Janeiro, para socorrer o pai que passava mal.
154
trabalho adequando-a a esse modo de produzir, seja para o
controle/naturalização dos seus conflitos.
Assim, se os espetáculos públicos em que a evidência da dor pela
punição brutal dos corpos, deixando marcas visíveis, suplício com morte lenta,
eram comuns na era antiga, exposições que tinham pretensão de evidenciar o
arrependimento daqueles sujeitos que rompiam normas sociais e/ou cometiam
crimes, desestimulando-os, e execuções públicas, representando a força dos
soberanos, daqueles que detinham o poder atravessaram a era medieval e
parte da modernidade, representando o despotismo dos soberanos, que
levavam à forca, à decapitação, à fogueira etc.. Pereira (2006, p. 68-69)
explicita que, no feudalismo, a moeda e a produção eram pouco desenvolvidas
sendo o corpo o bem mais acessível portanto os castigos, se considerados
necessários, poderiam ser pensados basicamente nessa esfera, a esfera
corporal. Diferentemente disso no que se refere aos castigos passaram a
acontecer no mundo da economia mercantil, cujo incentivo ao trabalho, e o
conseqüente recurso a mecanismos de disciplinamento e controle, conforme
havíamos mencionado, tornaram-se avaliados como importantes para o
desenvolvimento da manufatura. Com isso, a internação dos mendigos e dos
infratores em casas de correção e em hospitais gerais tornou-se meio (punitivo)
eficaz, com o objetivo de torná-los sujeitos dóceis para o trabalho
manufatureiro. com um significativo número de trabalhadores livres e
disciplinados, em estágio mais avançado, a economia capitalista na sua fase
industrial não mais utilizou mecanismos para disciplinar trabalhadores para a
obrigação do trabalho: passou a lançar mão de casas de detenção com fins
corretivos. Além do explicitado, Pereira acrescenta que, na Inglaterra do século
155
XIX, as medidas de controle e proteção relativas à Lei dos Pobres tornaram-se
inviáveis, haja vista a rebeldia dos proprietários com o crescimento dos gastos
com a assistência, o que fez com que os abrigos destinados aos pobres e
mendigos fossem transformados em casas de trabalho.
Quanto a isso, é importante observarmos:
[...] as casas de trabalho foram antepassados da prisão. Elas
foram uma espécie de manufatura reservada às massas
insubordinadas, sobretudo, em relação à recusa ao trabalho
nas condições impostas pelas elites. Assim, Molossi também
qualifica as casas de trabalho como instituições onde aquela
população “perigosa” deveria ser adestrada ao modo de
produção capitalista (MOLOSSI, ap. PEREIRA, 2006, p. 69).
Cabe, além disso, lembrar que as lutas da classe trabalhadora
marcaram a História em prol da conquista de direitos sociais, expressando a
rebeldia conseqüente da desigualdade social e das péssimas condições de
sobrevivência em que muitas vezes se encontraram os trabalhadores, lutas que
significaram avanços, mas que também e em grande parte tiveram como
resposta a força repressiva do Estado.
Atualmente, a reestruturação do capital vem desencadeando um forte
processo de ataque ao Estado e à classe trabalhadora. “Ondas privatistas” e a
preconização de um “Estado nimo”, um Estado funcional à maior mobilidade
do capital ou, como indica Netto (1993), um Estado mínimo para os
trabalhadores e máximo para o capital, com as desregulamentações do
trabalho e do mercado, a vulnerabilização das conquistas dos trabalhadores
(identidade de classe, consciência de classe, organização sindical, direitos
trabalhistas e sociais), a utilização de novas tecnologias e métodos de
produção e de gestão do trabalho, entre outros fatores, o provas de tal
afirmação elementos que vêm acarretando impactos nas condições de vida
156
e trabalho daqueles que vivem do seu próprio trabalho. Ou seja, um contexto
em que o recrudescimento do imanente processo de mundialização do capital
dificulta sobremaneira as lutas da classe trabalhadora, que se encontra na
condição ou sob a ameaça constante do desemprego ou do subemprego,
podendo vir a fazer parte não mais do “exército industrial de reserva”, mas dos
desnecessários, dos dispensáveis.
Com isso, como discutimos no item 2.1 desta tese, podemos dizer que a
política neoliberal é o modelo hegemônico que perpassa a economia, a política,
as relações sociais e a ideologia, posicionando as relações e o lugar de cada
país e das coisas em cada país. Isto significa dizer, por conseguinte, que temos
um quadro de proeminente lógica mercantil: recuo da proteção social coletiva,
significativa ampliação da insegurança social suscitada pelo declínio e
fragmentação do trabalho assalariado, mercantilização das relações humanas
etc. — uma lógica que, inclusive, como explicita Wacquant.
[...] pretende remediar com um “mais Estado” policial e
penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a
própria causa da escalada generalizada da insegurança
objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como
do Segundo Mundo (2001a, p. 8).
Enfim, um quadro em que produção capitalista, desigualdade social e
punição aos pobres são as tonalidades que se tornaram marcantes, sobretudo
nos países capitalistas periféricos que nem chegaram a constituir um Estado de
Bem-Estar que possa ser desmontado, substituído ou remediado pelo “mais
Estado Penal”.
Sabemos que a crise contemporânea do capital, comumente denominada
crise do padrão fordista/keynesiano, decorre, como focalizado em item anterior
desta tese, de um complexo de fatores um contexto em que o welfare state
157
foi abalado, impondo às classes dominantes uma reação alternativa à altura da
ameaça que todo esse processo significava. As classes dominantes
responderam a essa crise com o que Ruy Braga (1996) denomina
posicionamento restauracionista do capital, ou seja, uma contratendência
erigida pelas classes dominantes com o objetivo de retardar as conseqüências
da tendência à queda da taxa de lucro.
Isso possibilitou que o neoliberalismo tomasse fôlego como reação
teórico-política ao Estado Intervencionista e de Bem-Estar, combatendo o
keynesianismo e, além disso, forjando o que Loïc Wacquant (2001a, p. 8)
denomina penalidade neoliberal, ou seja, “o conjunto das práticas, instituições
e discursos relacionados à pena e, sobretudo, à pena criminal”. Dessa maneira,
a insegurança social, ou seja, as seqüelas geradas pela ausência de política
social, pelo desemprego, pela instabilidade ocasionada pela “flexibilização” dos
direitos do trabalho e pela mercantilização das relações humanas vêm sendo
discutidas e, sobretudo, enfrentadas pela razão penal em substituição à lógica
outrora instituída pelo Estado Social.
Em elaboração crítica à criminologia positiva, Thompsom (1983)
esclarece que, em uma sociedade complexa e hierarquizada, as leis são
ditadas pela classe que dispõe de poder, e isso permitirá a essa classe definir e
manter a ordem legal, com a existência das desigualdades que lhe possibilitam
os privilégios, enquanto for uma realidade sustentada pelos subalternos. Isso,
segundo o autor, retira a conotação idealística que envolve os termos crime e
criminoso, tornando evidente que ambos não são entidades absolutas, ou
naturais, não são entidades passíveis de serem vistas como algo em si.
158
Se, por exemplo, nos detivermos, mesmo que en passant, nas questões
do delito contra o patrimônio (Código Penal), as quais são relevantes em nossa
sociedade, poderemos observar que tais questões, em suma,
fundamentalmente se assentam na idéia de “transferir bens ou direitos de uma
pessoa para outra, sem o pleno conhecimento e concordância da primeira”
(CHAMPMAN, ap. THOMPSON, ibid., p. 59). Todavia, diante disso, seguindo o
raciocínio de Thompsom (1983, id., ibid.), cabe-nos indagar: quais são o
significado e a coerência de tal perspectiva (“criminal”) face ao mundo
concreto, face à sociedade industrial-mercantil, face ao mundo dos negócios,
dos bons e excelentes negócios?
Wacquant (2001a, 2001b) produziu importantes obras mostrando quanto
a lógica dos “sujeitos perigosos”, referindo-se fundamentalmente à camada
empobrecida, que inclui negros e estrangeiros, vem produzindo o
encarceramento em massa nos Estados Unidos e um sofisticado e
economicamente próspero aparato de segurança/vigilância, forma que se
mostra mais presente na Europa. Observe-se que essa lógica criminaliza os
trabalhadores que a própria crise contemporânea do capital tornou
dispensáveis.
46
Os governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher são citados em
destaque por Wacquant (2001a) no que se refere aos empreendimentos
realizados no combate ao keynesianismo e às políticas justificadoras do
aparelho penal.
Ainda segundo o mesmo autor, muitos daqueles sujeitos que produziram
obras que antes defendiam “menos Estado” como solução para os problemas
46
Indaga-se em que medida há conveniência na perpetuação da “lógica do perigo”, em função da
prosperidade da economia da vigilância.
159
das sociedades contemporâneas, se alvoroçam com solicitação de “mais
Estado” para resolver ou, melhor, conter as atuais conseqüências desastrosas
da desregulamentação do trabalho assalariado e da deterioração das políticas
de proteção social. Entretanto, solicitam uma perspectiva de “mais Estado”
assentada na lógica mercantil, uma lógica que, ao invés de exigir efetivação
(ampliada) de políticas públicas, focaliza os problemas sociais de modo
individualizante, ou seja, restrito à análise moral e/ou psicossocial,
submetendo-os aos aparatos de segurança, como se “questão social” e
“questão criminal” fossem sinônimas.
A doutrina da “Tolerância Zero” utilizada em Nova York um
mecanismo de gestão policial e judiciária daquela pobreza que incomoda, que
se vê, que causa problemas no espaço público, provocando certa sensação de
insegurança, inconveniência propagou-se rapidamente e foi
significativamente admirada por muitos países, chegando inclusive a ser
imitada em vários deles.
Conforme Wacquant (ibid., p. 31), a exemplo disso o presidente do
México que, imitando o citado programa nova-iorquino, em agosto de 1998,
lança uma “Cruzada Nacional contra o Crime”, por meio de um pacote de
medidas apresentadas como as mais ambiciosas da história daquele país.
Naquele mesmo ano, na Argentina, o Secretário de Justiça e da Segurança de
Buenos Aires declara que utilizará hangares industriais abandonados na
periferia da cidade para convertê-los em centros de detenção. Em 1999, ano
seguinte, após visita de dois altos funcionários da Polícia nova-iorquina, ao
Brasil, o governador Joaquim Roriz, anuncia a aplicação da doutrina
“Tolerância Zero” por meio da contratação imediata de 800 policiais civis e
160
militares suplementares, em resposta a uma onda de crimes que a capital do
País já conhecia periodicamente.
Essas idéias estão consoantes com as idéias que, se originárias da
direita reacionária americana, ganharam consenso na autoproclamada
vanguarda da “nova esquerda” européia e partícipes das idéias comuns no
continente latino-americano, idéias segundo as quais os “maus pobres” devem
ser capturados pela mão (de ferro) do Estado para que seus comportamentos
possam ser corrigidos pela reprovação pública e pela intensificação das
coerções administrativas e das sanções penais” (ibid., p. 40).
Se em 1999 observamos concepção valorizando a “utilização do aparato
repressivo” pelo Sr. Governador Joaquim Roriz, como se a questão da
violência urbana devesse meramente ou, essencialmente, ser assim
enfrentada, não podemos esquecer que a literatura nos mostra que lidar com
expressões da “questão social” no que se inclui a violência urbana por
meio desse tipo de aparato não é incomum em nosso País, e, a nosso ver,
pode-se considerar que seja recorrente.
Dessa maneira, em continuidade a esse raciocínio, mencionamos que só
após 1930 podemos nos referir à formação de uma classe operária um pouco
mais consistente no Brasil, uma vez que somente a partir daí houve a
dinamização da indústria brasileira. No entanto, pode-se dizer que antes disso,
mesmo que embrionariamente, especialmente no eixo Rio-São Paulo, havia
operários em setores como os de tecelagem e alimentação, por exemplo;
diante desse fato interessa-nos salientar que os problemas inscritos na relação
entre o capital e o trabalho não apareciam como questão a ser considerada no
161
aspecto político. A esse respeito, Gisálio Cerqueira Filho (1982), nos explica
que
Antes de 1930 [...], a “questão social” o aparecia no discurso
dominante [...]. Por isso popularizou-se, para a República
das oligarquias agrárias, a sentença a questão social é um
caso de polícia”. [...]. As classes dominantes (oligarquias
agrárias), na medida em que detinham o monopólio do poder
político, detinham simultaneamente o monopólio das questões
políticas legítimas; das questões que, em última instância,
organizam a percepção do funcionamento da sociedade. Neste
contexto, a “questão social”, por ser ilegítima, não era uma
questão legal, mas ilegal, subversiva e que, portanto, deveria
ser tratada no interior dos aparelhos repressivos de Estado (p.
58-59).
A “questão social” é legitimada no Brasil após a denominada
Revolução de 1930 — e a partir daí alternará períodos de trato ora como
“questão política ora como questão de polícia”. Nesse período, como
explicamos em seção deste trabalho, a expressão da economia latifundiária
brasileira foi atacada, em favor da expansão da produção industrial. A
Revolução de 30, decorrente em grande parte da crise cíclica do capitalismo
em 1929, representa o avanço das forças burguesas em detrimento do
latifúndio, significa a busca de adequação do Estado aos interesses de
expansão da burguesia.
A chegada de Getúlio Vargas ao poder em 1930, e a conseqüente queda
de Júlio Prestes representante das forças sociais pró-economia
agroexportadora significaram o avanço das forças sociais em favor da
industrialização no Brasil, em favor da expansão das relações capitalistas. Foi
o surgimento de um projeto que buscava afirmar a possibilidade de um modelo
nacional industrializador.
O Brasil, tendo sua base produtiva no meio rural, para viabilizar a
industrialização privilegiou a área urbana, o que estimulou o êxodo dos
162
trabalhadores do campo para a cidade, provocando sérias mazelas sociais
especialmente na área urbana, e traçando o caminho para os conflitos no
campo que se arrastam até hoje, pela ausência de reforma agrária. Esse
movimento dos trabalhadores, mesmo se tratando de uma classe operária
urbana ainda incipiente, inquietou significativamente a recente burguesia
brasileira.
Entretanto, se foi nessa época que a “questão social” foi tomando vulto
anos 1930 e, em conseqüência, sendo legitimada no País, não podemos
deixar de considerar diante disso, conforme esclarece Cerqueira Filho, que “no
Brasil, ainda que muitos tenham escapado à influência do positivismo e nem se
definam como tal, é inegável a sua marca, sobretudo reforçando o
autoritarismo, o conservadorismo, [e] o elitismo presentes na formação
ideológica brasileira [...]” (1982, p.68). Aspectos que nos permitem captar a
razão costumeira de identificação da “questão social” como manifestação de
desordem social, como manifestação que mereça, em vez de trato político, de
urgente repressão, de urgente trato na esfera policial, haja vista sua
semelhança com algo perigoso e não com algo que nos remeta à idéia de
direitos ou à idéia de algo a ser considerado politicamente.
Getúlio Vargas iniciou o processo de legitimação da “questão social”, a
partir da Revolução de 1930, retirando-a da ilegalidade e a trazendo para a
arena política, mas não hesitou, posteriormente, em outros períodos que
esteve à frente do governo, em identificá-la também como “caso de polícia”.
47
Após 1930, a “questão social” teve como resposta a formulação de políticas
47
Algumas realizações das gestões de Vargas: criação do Ministério do Trabalho em 1931; da carteira de
trabalho em 1932; instituição do salário mínimo em 1940; Consolidação das Leis do Trabalho de 1943
legislação trabalhista que, entre suas finalidades contou, com o desaparecimento do sindicalismo
autônomo, enfraquecendo o movimento dos trabalhadores.
163
sociais, mas legislação social cujo caráter foi basicamente antecipatório,
inviabilizando a organização popular para a conquista de direitos. Com o
Estado Novo, a ditadura de Vargas colocou a “questão social” novamente na
arena policial, porém de maneira diferente daquela que se vira no período que
antecedeu 1930, quando tal questão era avaliada como ilegal e subversiva. De
modo diverso, como explicita Cerqueira Filho,
[...] a repressão desencadeada pela ditadura varguista contra o
movimento operário organizado não terá como objetivo retirar a
legitimidade da “questão social”, mas resguardar a legitimidade
da “questão social” para dentro de uma arena política
específica formada pelos Aparelhos de Estado liderados pelo
Ministério do Trabalho. [...]. O caráter legítimo da “questão
social” acabará por fundir-se ao seu caráter legal. A partir de
então será legítimo o que for legal e vice-versa (1982, p.
132).
48
Enfim, o que nos interessa destacar é que considerar de modo repressor
a “questão social” criminalizando a classe trabalhadora e pobre é algo
que pode ter nuanças diversas, mas, como já dissemos, não guarda ineditismo.
Ao que discutimos, acrescentamos que, segundo Thompson (1983), o status
de criminoso é atribuído às pessoas não pelo que elas fizeram, mas em
grande parte pelo que elas são, ou seja, pela sua trajetória de vida, pelo lugar
que elas ocupam na sociedade. Quanto a isso, cabe apreciarmos:
Na forma da legislação, o juiz deveria examinar a prova do
processo para concluir se está demonstrada a existência do
delito e sua autoria por parte do réu. Atingida tal certeza, só
então se preocuparia com as condições pessoais do culpado,
para o efeito de escolher a pena a ser aplicada. Na prática,
porém, uma inversão na operação: faz-se o exame da
pessoa do réu, a ver se se adéqüa ao estereótipo do
delinqüente [...]. Configurado o tipo abstrato do delinqüente,
basta encontrar sua confissão no inquérito policial [...]; o
importante é saber se aquele indivíduo deve ou não ir para a
cadeia. Não interessa o que ele fez, mas o que ele é (p. 94-95).
48
A esse respeito, é importante destacarmos também que em 1941 surgiu a Lei de Contravenções Penais,
que traz entre os seus artigos a punição para os sujeitos que não comprovem registro de vínculo
empregatício em carteira de trabalho.
164
Como dissemos, apesar da inexistência de ineditismo, hoje, com a crise
contemporânea do capital, a repressão à “questão social” é algo que toma ares
globalizantes e, sobretudo, algo que se faz sentir em países, como o nosso,
que nem um Estado de Bem-Estar tiveram para que fosse substituído por um
Estado Penal, como indica Wacquant (2001a).
Não podemos considerar que o sistema prisional, a punição, seja a
solução para os problemas sociais, não cabe optarmos pelo investimento em
equipamentos repressivos em vez de políticas sociais massivas, bem
trabalhadas e planejadas, quando não desconhecemos que ao nosso redor
crianças sem creches, jovens sem concluírem o ensino fundamental, sem
alimentação suficiente, bem como jovens que anseiam por uma oportunidade
no mercado de trabalho, jovens que são cooptados pelo tráfico de drogas por
não terem condições objetivas/subjetivas de existência e/ou esperança em um
futuro melhor etc.. Chegamos ao absurdo de considerar possível conviver em
uma sociedade que reserva para alguns a possibilidade apenas de um tipo de
inclusão às avessas, conforme Pereira (2006, p. 340) ou seja: inclusão em
que o indivíduo pode usufruir minimamente de certos serviços, por mais
precários que nos pareçam, a exemplo do serviço médico, odontológico,
profissionalizante ou alimentação suficiente, caso sejam oferecidos por parte
de algumas das prisões brasileiras.
Será que queremos imitar a atual lógica mercantil de certos países de
economia avançada nos quais a questão social” é basicamente encaminhada
para uma atividade claramente próspera, como é o caso do mercado de
segurança que triunfou ao longo das últimas décadas porque mercantilizou a
165
assistência aos encarcerados e utilizou o trabalho dos presos de modo
precarizado (workfare)?
49
Wacquant (ibid., p. 96-97) chama atenção para a gica perversa que
vem cumprindo o sistema carcerário na realidade americana. Segundo esse
autor, se antes, no culo XIX, “a reclusão era um método visando ao controle
das populações desviantes dependentes” e os detentos, principalmente pobres
e imigrantes europeus recém-chegados ao Novo Mundo, atualmente, com
função análoga, a reclusão se dirige aos supérfluos, seja da reestruturação da
relação social, seja da caridade do Estado: as frações decadentes da classe
operária e os negros pobres das cidades. Assim sendo, o autor salienta que o
sistema penal vem cumprindo um papel de um tipo de gestão da miséria, pois,
na medida em que mantém um significativo número populacional de
encarcerados, o sistema penal comprime artificialmente uma multidão de
“miseráveis” ou, melhor, esconde um potencial número de trabalhadores
(desempregados), ao mesmo tempo em que gera secundariamente aumento
de emprego no setor de bens e serviços carcerários, setor fortemente
caracterizado por postos de trabalho precários.
Diante disso, porém, cabe observar-se que o efeito do encarceramento
em massa sobre o mercado de trabalho é acelerar o trabalho assalariado de
miséria e da economia informal, produzindo um grande contingente de força de
trabalho submissa disponível: os antigos detentos não podem pretender senão
os empregos degradados e degradantes, em razão de seu status judicial
infame. Ou seja, são medidas que, além de perversas, ampliam o problema de
origem.
49
A esse respeito consultar Punir os pobres de L. Wacquant, 2001.
166
Quanto a isso, é importante apreciarmos que:
[...] a curto prazo, o aumento substancial da população
encarcerada reduz artificialmente o índice de desemprego ao
omitir das estatísticas uma importante reserva de pessoas em
busca de emprego. Porém a médio e a longo prazo, pode
agravá-lo, ao tornar mais dificilmente empregáveis [...] aqueles
que estiveram presos. A que se somam os efeitos do
encarceramento sobre populações e os lugares mais
diretamente colocados sob tutela penal: estigmatização,
interrupção das estratégias escolares, matrimoniais e
profissionais, desestabilização das famílias, supressão das
redes familiares, enraizamento nos bairros deserdados onde a
prisão se banaliza, de uma “cultura de resistência”, até mesmo
de desafio, à autoridade, e todo o cortejo das patologias, dos
sofrimentos e das violências (inter)pessoais comumente
associadas à passagem pela instituição carcerária (ibid.,
p.143).
Voltando-nos para a realidade brasileira, é significativo observarmos que
Pereira (2006, p. 241, 261) ao analisar o ofício de Inspetor de Administração
Penitenciária, considerou que a renovação do quadro de funcionários nas
penitenciárias, especialmente na década de 1990,
50
oriundos de concursos
públicos, seja na área de segurança penitenciária, seja na área das
assistências, ocorreu em função da duplicação do contingente de presos e da
construção de novas unidades prisionais. Segundo essa autora, enquanto se
podia observar, em 1993, 8.300 presos e, em 2001, 33 unidades prisionais. Em
2006, a SEAP/RJ
51
passou a contar com 42 unidades prisionais, entre hospitais
penais, casa de custódia, presídios e patronato e cerca de 25. 000 presos. A
progressão da população carcerária no Brasil é espantosa. Se em 1995
tínhamos 148.760 pessoas encarceradas, em 2008 o número de presos salta
para 422.590.
52
Esse total leva-nos a pensar no destaque dado à idéia de
penalidade neoliberal por Wacquant (2001a) nos países do “Segundo Mundo”,
50
Devemos lembrar que esse foi o período da introdução das políticas neoliberais no País.
51
Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro.
52
Dados do Departamento Penitenciário, obtidos em 20/09/08 pelo site www.memorycmj.
br/cnep/palestras/mauricio-kuehne.pdf.
167
quando esse autor sublinha quão violento se torna esse processo nessas áreas
e em terras brasileiras, local que merecia ser observado pela fragilidade do
sistema de proteção social e por uma cultura democrática não muito
solidificada. Pois a ausência de um Estado Social não permite qualquer idéia
de substituição por um “mais Estado Policial ou Penal”, mas sim equivale a
aprofundar “a dessocialização do trabalho assalariado, a pauperização relativa
e absoluta de amplos contingentes do proletariado urbano, aumentando os
meios, a amplitude e a intensidade de intervenção do aparelho policial e
judiciário, restabelecendo uma verdadeira ditadura sobre os pobres.
168
Capítulo 3 - Ética e Serviço Social
3.1 Breve histórico
Para discutirmos o tema deste capítulo, partimos da moral, explicitando
que, definida como o conjunto de normas, valores e padrões que regem a
conduta (e as relações) dos homens em sociedade, tem origem no momento
em que o homem passa a ser membro de uma coletividade. Ou seja, a relação
associativa assentada no trabalho para viabilizar a existência humana suscitou
mecanismos de regulação da convivência social; portanto, a moral é um meio
de regulação das relações dos homens entre si e destes com a comunidade,
presente ao longo da História, com formas várias nos diferentes modos de
sociedade.
Dessa maneira, divergindo de concepções que a situam como um mero
conjunto de princípios formais, intemporais e abstratos, entendemos a moral
como produção do homem concreto, ser real e histórico, representando uma
forma de regulação das relações dos indivíduos em uma dada comunidade
algo mutável ao longo do tempo que indica variedades relativas aos diferentes
modos de vida em sociedade.
Como explanado, a sociedade capitalista assenta-se na
pressuposição da sua origem como fruto de um processo que teve como ponto
de partida, e fundamento permanente, a existência de indivíduos
ontologicamente isolados.
169
Partindo dessa consideração pode-se dizer que, com a sociedade
burguesa, a moral tornou-se, basicamente, um mecanismo que se sustenta em
parâmetros individuais e cuja função social é a manutenção da ordem, ou seja,
a legitimação da ordem social instituída, mediante valores adequados aos
interesses daqueles que detêm o poder. Uma regulação da convivência social,
que, por buscar legitimar interesses particulares de indivíduos isolados ou de
grupos determinados, caracteriza uma universalidade abstrata. Forma de
regulação que representa interesses particulares como se fossem gerais (ou
até o geral absoluto), ou seja, interesses próprios ao segmento dos que
detêm o poder material como representação de toda a coletividade (universal).
Aspecto que implica no campo ético.
A esse respeito, cabe apreciarmos:
As idéias da classe dominante são, em todas as épocas, as
idéias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material
dominante da sociedade. A classe que tem à sua disposição os
meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo
tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe
estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as idéias
daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual.
As idéias dominantes não são mais do que a expressão ideal
das relações materiais dominantes concebidas como idéias;
portanto, das relações que precisamente tornam dominante
uma classe, portanto, as idéias do seu domínio (MARX e
ENGELS, 1984, p. 56).
Portanto, sob o nosso ângulo de análise, estudarmos a moral significa
entendê-la em relação à produção dos modos e meios de vida social, em
relação à organização econômico-social, ou seja, as condições concretas
produzidas pelos homens que fazem deles o que são, pois a determinados
modos de produção e apropriação de bens correspondem formas de
consciência e modos de vida e, portanto, morais históricas concretas.
170
Segundo Vázquez, ao situar a moral fora da História nós a situamos fora
do próprio homem real; e esse a-historicismo moral indica determinadas
direções no campo da reflexão ética que, em síntese, são as seguintes:
- Deus como origem ou fonte da moral: as normas morais derivariam de um
poder sobre-humano e, logicamente, as raízes da moral não estariam no
próprio homem;
- a natureza como origem ou fonte da moral: a conduta moral do ser
humano não seria senão um aspecto da conduta natural, biológica.
Portanto, as virtudes, as qualidades morais teriam origem nos instintos;
- o Homem (ou homem em geral) como origem e fonte da moral: o homem
como dotado de essência eterna e imutável. A moral constituiria um
aspecto que permanece e que dura, independentemente das mudanças
históricas e sociais (1975, p. 26).
Lukács considera que a ética tem a função social de propiciar conexão das
necessidades postas pela generalidade humana em desenvolvimento com a
superação do antagonismo gênero/particular (1997, p. 99). Naturalmente, a
construção de alternativas voltadas para a superação da contradição
gênero/particular é campo vasto para reflexão ética, para reflexão acerca dos
valores, dos sentidos, das finalidades que correspondam a ações consoantes
com tais alternativas.
Daí, no nosso entender, a importância da ética como
disciplina voltada para o comportamento moral dos homens em sociedade,
voltada ao estudo, à reflexão, à crítica, à investigação sobre os valores, sobre
as normas, e, portanto, as formas morais que moldam e regulam as relações
sociais entres os indivíduos e a sociedade. Logicamente, entendemos
disciplina como conhecimento acumulado e crítico acerca do que aqui tratamos
171
e, além disso, como algo em movimento e em articulação com as demais
produções sociais, diferente da idéia de especialização ou, melhor, de um tipo
de conhecimento autônomo, independente.
As indagações, os questionamentos e as reflexões no campo do
comportamento moral suscitam e constituem a ética. Podemos dizer que, fruto
da sociabilidade, a ética é resultado da passagem da posição que meramente
se restringe às experiências vividas na esfera moral para uma postura reflexiva
diante das mesmas ou, melhor considerando, uma relação entre a moral
efetiva, vivida e as noções e elaborações teórico-filosóficas daí originárias.
Esse movimento reflexivo pode possibilitar, portanto, a superação do
particular em direção ao universal, a superação do que é fruto imediato da
vivência cotidiana em grande parte imersa no senso comum, no estabelecido,
pelo dever ser, pelo horizonte das finalidades relacionadas ao social-genérico.
Permitir avaliar-se o que é e o que pode ser diferente, ou seja, como
colocamos no capítulo anterior, apreciar-se na vida em sociedade, no âmbito
socioeconômico, o ser e o dever-ser, categorias próprias ao âmbito de estudo
da ética.
Dizemos isso porque na cotidianidade efetivam-se basicamente as
atividades imediatas, destinadas à reprodução do Ser Social; atividades que
denotam repetição e espontaneidade ou, se preferirmos, que não exigem
elaboração reflexiva, pois “mecanizadas” em função do tempo disponível
voltado à reprodução da vida social. Isso se relaciona à alienação, fenômeno
com forma peculiar e condicionada no mundo do capital.
Levando em conta argumentações fundamentadas em Lukács que viemos
expondo, inferimos que, mediante as reflexões, os estudos e as conseqüentes
172
formulações no campo da ética ou, ainda, acrescentando o pensamento de
Oliveira (1998, p. 29), por meio da “revisão radical da vida humana pessoal e
coletiva”, podemos favorecer para as individualidades a compreensão de que
elas, indubitavelmente, possuem um ineliminável caráter genérico-social, o que
pode ser propício à superação do antagonismo gênero/individualidade, e
também propício à opção cada vez mais consciente de objetivar caminhos que
expressem valores predominantemente voltados para a genericidade humana,
em vez da escolha de valores que se limitem à expressão única de interesses
particulares.
Como nos explica Lukács (ap. LESSA, 1997, p. 98), a ética tem como
finalidade a superação da relação dicotômica entre indivíduos e sociedade, e
ao seu âmbito de estudo entendemos caber, como mencionamos, o campo
do comportamento moral (dos homens em sociedade). Ou seja, o campo de
um fenômeno sócio-histórico com o qual a ética se depara para refletir como
seu objeto de estudo, investigando os seus nexos determinantes e
condicionantes em busca de conhecimento, podendo até formular conceitos,
interferir e exercer influência sobre esse campo, partindo dos seus
questionamentos e das suas considerações teórico-filosóficas. É importante
destacar, ainda, que nesse processo está presente a discussão acerca das
diferentes formas e concepções de mundo/sociedade/Homem e os seus
respectivos valores/normas/padrões de conduta na vida em sociedade. Como
qualquer produção humana/social, a ética é uma área do conhecimento que se
assenta em e origem a idéias e concepções que indicam determinadas
direções sociais, relacionando-se com a estrutura econômica ou, melhor, sendo
173
condicionada em suas alternativas pela estrutura econômica e seus reflexos na
vida social, evidenciando mudanças no seu percurso histórico.
A ética é teoria, investigação ou explicação de um tipo de
experiência humana ou forma de comportamento dos homens,
o da moral, considerado, porém, na sua totalidade, diversidade
e variedade (VÁZQUEZ, 1975, p. 11).
Quanto à ética no âmbito profissional, se, por um lado, diante do que
viemos discorrendo, podemos afirmar a inexistência de diferença essencial em
sua configuração, por outro temos que considerar as particularidades que são
engendradas no seu próprio processo de existência, de vivência. Em outros
termos, a ética profissional é uma forma particular de materialização de
expressão da vida moral em sociedade. Os estudos nesse campo devem
voltar-se para a reflexão/investigação acerca dos nexos entre as profissões e
as diferentes esferas da vida em sociedade, levando em conta, inclusive, os
diversos projetos societários. É necessário apreender o movimento histórico
das sociedades em que se situam e se praticam tais profissões e os aspectos
que determinaram a sua origem, as concepções que as fundamentam e
sustentam inicialmente o exercício profissional, o percurso histórico próprio de
tais profissões, os seus fundamentos teórico-práticos e ideopolíticos, a sua
funcionalidade, os seus modos/meios de resposta às necessidades sociais, a
seleção/legitimação de seus objetivos e finalidades. Essas questões
engendram as referências para o exercício profissional. Dessa maneira,
levando em conta a relação da profissão (elementos teórico-práticos e
ideopolíticos) com os projetos societários que correspondem a diferentes
concepções de mundo, de Homem, de sociedade, de Estado e de interesses
de classe — isto é, projetos diversos, contrastantes e até antagônicos em dada
sociedade —, os sujeitos envolvidos com tal temática buscam fundamentos
174
(teórico-filosóficos) para compreensão, refletem, formulam explicações,
questionamentos, projetos profissionais com determinadas direções sociais e,
em conseqüência, podem influir na moral profissional com referências e
recomendações ao exercício dos profissionais; comumente há, inclusive, a
formulação de códigos que regulamentam o exercício profissional o que,
logicamente, está implicado com os processos propulsores da história
profissional.
Voltando nossa atenção para o Serviço Social, profissão vinculada ao
trato das múltiplas expressões da “questão social”, destacamos que a
profissionalização nesta área não é mera conseqüência da qualificação, por
meio da ampliação de conhecimentos teóricos, de ações que, mediante a
filantropia e o assistencialismo, voltavam-se para a “questão social”.
Diferentemente da hipótese de mera qualificação, a emersão do Serviço Social
corresponde a determinadas estratégias do capital em um período específico
a era dos monopólios —, haja vista a própria configuração do capitalismo e
da “questão social” à época (NETTO, 2001).
53
Devemos observar também que a emersão do Serviço Social vincula-se
à necessidade de prática assistencial distinta daquelas que caracterizaram as
suas protoformas, a exemplo das tradicionalmente realizadas pela ação
católica. A nese dessa profissão resulta de alterações inerentes ao modo de
produção capitalista com coadjuvação do projeto de recuperação da
53
Podemos considerar “questão social”, como explicitado na página de 95 deste trabalho, “o conjunto
de problemas econômicos, sociais, políticos, culturais e ideológicos que cercam a emersão da classe
operária como sujeito sociopolítico no marco da sociedade burguesa” (NETTO, 1989, 2001).
Logicamente, hoje problemas presentes, pois inerentes à sociedade capitalista, apesar de suas expressões
corresponderem ao atual estágio desse modo de produção.
Além das obras citadas na página de 95 da presente tese, a respeito da “questão social” é
importante consultar Gisálio Cerqueira Filho. A questão social no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1982 e a Revista Temporalis nº 3, Brasília: ABEPSS, ano 2, 2001.
175
hegemonia ideológica católica, o qual foi posto em prática pela Igreja católica
com o suporte das encíclicas Rerum Novarum de 1891 (divulgada pelo papa
Leão XIII) e Quadragésimo Anno de 1931(divulgada pelo papa Pio XI).
54
Quanto à encíclica Rerum Novarum, é importante destacar que contém
resposta ao contexto de sua época, defendendo a propriedade privada tida
como um direito natural outorgado e reconhecido divinamente e fazendo
referência à organização do Estado e da sociedade como correspondentes à
vontade divina. Por conseguinte, rebelar-se se posicionando contrário à lógica
da sociedade burguesa equivale a opor-se à justiça natural.
Analisando a referida encíclica, Castro (1987) explicita que a Rerum
Novarum foi uma resposta à situação da classe operária e ao acirramento da
luta de classes, o que a caracterizou como documento eminentemente político,
tentando constituir-se como proposta articuladora da conciliação entre as
classes. A encíclica foi documento que não expressava oposição à exploração
da força de trabalho, mas, simultaneamente, apelava à reflexão dos capitalistas
e do Estado sobre os riscos morais e políticos da sua conduta feroz. E,
apelando para que as coisas terrenas dos homens se submetessem ao poder
divino, opunha-se às propostas socialistas.
A Rerum Novarum traçou formas de ação para as classes, o Estado e,
especialmente, para a estrutura organizacional da Igreja, sustentando a
reforma social como instrumento para enfrentar os problemas sociais da época.
Isso significou uma matriz ideológica com clara direção social e sustentação
para determinadas intervenções, como o Serviço Social, por exemplo, que teve
nessa orientação base para sua formação.
54
A respeito das relações da produção capitalista, Igreja católica e Serviço Social é importante consultar a
obra de Manuel Manrique de Castro. História do Serviço Social na América Latina, 1987.
176
A respeito da outra encíclica, a Quadragésimo Anno, cabe
apreciarmos o que nos diz Castro:
A Quadragésimo Anno, pouco depois da Revolução Russa e
da Primeira Guerra Mundial, e em meio à crise de 1929,
desenvolve-se em tom mais radical, embora dentro do mesmo
espírito da anterior.
[...] assim como antes foram os clérigos os encarregados
da “beneficência diária” lembrados por Leão XIII na Rerum
Novarum —, ou das prefigurações do Serviço Social (como
diríamos nós), assim também agora deverão ser os assistentes
sociais católicos, entre outros profissionais leigos, os que
assumam na prática “o cuidado com a questão social”,
acrescentando-lhe ao espírito caridoso a perícia técnica os
que assumam militantemente as “duras batalhas” e os “mais
pesados trabalhos”. Eis como a caridade, o messianismo, o
espírito de sacrifício, a disciplina e a renúncia total passam a
ser parte constitutiva dos aspectos doutrinários e dos bitos
que acompanharam o surgimento da profissão sob a
perspectiva católica [...] (1987, p. 57-59).
Dessa maneira, detendo-nos no Serviço Social, observemos que os
rumos dessa profissionalização originaram-se no marco das alterações que
afetaram profundamente a Europa e os Estados Unidos nas últimas décadas
do século XIX. Na passagem do capitalismo concorrencial para o seu estágio
monopolista significativos impactos na estrutura societária podem ser
observados, em decorrência do recrudescimento das contradições imanentes a
tal sistema “o capitalismo monopolista recoloca em patamar mais alto o
sistema totalizante de contradições que confere à ordem burguesa os seus
traços basilares de exploração, alienação e transitoriedade histórica” (NETTO,
2001, p. 19). Com a transição da forma concorrencial para a forma monopolista
ficaram evidentes alterações em toda a dinâmica dos processos inerentes à
ordem burguesa. O capitalismo acirrou aspectos que lhe são inerentes, em
especial a exploração, a alienação e a livre concorrência. E, em conseqüência,
para assegurar a ordem econômica monopolista, necessitou de mecanismos
177
extra-econômicos, incorporando o Estado um papel destacado, compatível com
os interesses postos pela “nova ordem”.
Portanto, diferentemente da ação que poderíamos qualificar como
episódica e pontual do período concorrencial, o Estado na fase monopolista
viabiliza a imbricação orgânica do político e do econômico, com estratégias
consoantes com os interesses da ordem monopolista. Ou seja, o Estado
amplia-se e efetiva ações sistemáticas, contínuas, que chegam até a tocar de
modo direto na produção, em função da perspectiva dos superlucros.
É a política social do Estado burguês no capitalismo
monopolista (e, como se infere desta argumentação, só é
possível pensar-se em política social pública na sociedade
burguesa com a emergência do capitalismo monopolista),
configurando a sua intervenção contínua, sistemática,
estratégica sobre as seqüelas da “questão social”, que oferece
o mais canônico paradigma dessa indissociabilidade de
funções econômicas e políticas que é própria do sistema
estatal da sociedade burguesa madura e consolidada (NETTO,
2001, p. 30).
Esse é o contexto originário da(s) política(s) social(ais) como elemento
funcional, estratégico para a ordem monopolista. Pois, diante dos interesses
burgueses e da conseqüente necessidade de legitimação do Estado burguês e
em face das “novas” configurações dos conflitos de classe suscitados pela
“nova” ordem do capital e pela conseqüente conformação política dos
movimentos operários, a(s) política(s) social(ais) torna-se resposta necessária
e adequada ao intuito de administrar a ordem social; ou, em outros termos,
mecanismo tomado como eficiente para aplacar os conflitos que possam pôr
em xeque a ordem societária estabelecida os antagonismos advindos da
relação entre capital e trabalho, objetivados nas múltiplas e tipificadas
expressões da “questão social”. Podemos dizer ainda, sem perder de vista a
sua determinação na luta de classes, assentando-nos no pensamento de Netto
178
(2001): um mecanismo hábil frente à perspectiva de refuncionalizar certos
interesses da classe trabalhadora em prol da ordem monopólica, efetivando,
inclusive, a imagem do Estado “social”, mediador dos interesses conflitantes.
Com efeito, o Serviço Social é profissão cuja origem se encontra no
tecido da ordem societária do capitalismo monopolista, haja vista a
configuração da “questão social” à época e as particularidades da divisão social
do trabalho desencadeadas nesse período da História. Os profissionais do
Serviço Social agentes requisitados pelos interesses burgueses cujas ões
devem ser dirigidas à classe subalternalizada devem implementar e
executar as políticas sociais, ou seja, ter ações num espaço instituído pelas
lutas travadas entre as classes no processo de expansão do capital; ações,
portanto, incompatíveis com perspectivas dissonantes seja do conservadorismo
seja do reformismo. O Serviço Social, especialmente, o de feição européia
contou com significativa influência da Igreja católica, representando a
assimilação por frações classistas dominantes da proposta católica frente ao
desenvolvimento da luta de classes. É uma fórmula pertinente para enfrentar
os problemas sociais, atenuando-os e permitindo sincronia da Igreja católica
com os novos tempos, ou seja, uma militância em prol do “capitalismo
harmonioso”, como explica Castro (1987). Além disso, cabe dar destaque a
Netto:
Emergindo como profissão a partir do background acumulado
na organização da filantropia própria à sociedade burguesa, o
Serviço Social desborda o acervo das suas protoformas ao se
desenvolver como um produto típico da divisão social (e
técnica) do trabalho da ordem monopólica. Originalmente
parametrado e dinamizado pelo pensamento conservador,
adequou-se ao tratamento dos problemas sociais quer tomados
nas suas refrações individualizadas (donde a funcionalidade da
psicologização das relações sociais), quer tomados como
seqüelas inevitáveis do “progresso” (donde a funcionalidade da
179
perspectiva pública” da intervenção) e desenvolveu-se se
legitimando precisamente como interveniente prático-empírico
e organizador simbólico no âmbito das políticas sociais (2001,
p. 79).
Até aqui viemos traçando um panorama do Serviço Social que,
naturalmente, implicou em realçar referências ao Estado e à política social.
Agora, tomando como referência a profissão no continente latino-americano,
complementamos o que foi dito esclarecendo que neste continente a gênese
do Serviço Social não significou simples prolongamento do desenvolvimento do
que fôra alcançado na Europa, uma vez que corresponde às relações
determinadas pelo modo de produção capitalista nessa região, cujo ritmo de
desenvolvimento foi acentuado no último quartel do século XIX. Assim,
salvaguardadas as relações estruturais entre a Europa e a América Latina e as
singularidades locais de cada um dos países latino-americanos onde o Serviço
Social surgiu, podemos fazer referência à emersão da profissão como
resultante das condições inerentes ao desenvolvimento do capitalismo
periférico e as respectivas formas de expressão da “questão social”.
Ratificando o que dissemos, Castro (1987, p. 26-27-28) ao comentar
obras de Ezequiel Ander Egg e J. Barriex — autores latino-americanos e
estudiosos do Serviço Social explica que esses autores, equivocadamente,
não estabelecem diferença entre a formação dos Estados burgueses, as
diversas modalidades que a exploração da força de trabalho adquire, as formas
particulares de resistência e organização da classe operária, as camadas
médias etc., desconsiderando, desse modo, traços determinados pela maneira
como, ao longo do tempo, a lógica da expansão capitalista opera na Europa e
na América Latina, o que, em conseqüência, interfere nas suas análises
acerca das condições de emersão e desenvolvimento do Serviço Social.
180
Esses autores, além de considerarem que a origem da profissão no
continente latino-americano se explica no âmbito superestrutural e pela
intercorrência de forças desse nível a exemplo de modelo proposto no
exterior, outras profissões, influência de personalidades esclarecidas —, não
levam em conta, como deveria ocorrer, a captação de sua gênese a partir da
base material, ou seja, da realidade sócio-econômica e política interna de cada
região que singularizará a origem dessa modalidade profissional na divisão
sociotécnica do trabalho. Os autores não consideram o desenvolvimento das
forças produtivas, as relações entre as classes inerentes ao capitalismo na sua
face latino-americana e no processo histórico de cada um de nossos países,
expressando com isso análise equivocada do Serviço Social na América Latina.
A primeira escola de Serviço Social na América Latina, que recebeu o
nome do seu fundador, o médico Alejandro Del Rio, foi fundada no Chile, em
1925. Não obstante ser centro laico de formação, a Igreja católica não esteve
ausente do seu processo constitutivo e foi a responsável mais diretamente pela
fundação da segunda escola de Serviço Social chilena, a escola católica de
Serviço Social Elvira Matte de Cruchaga, em 1929.
Enquanto na primeira escola citada a ênfase dada era no Assistente
Social como subtécnico cuja incumbência precípua era colaborar diretamente
com o médico, na Elvira Matte de Cruchaga a perspectiva era, ampliando o
âmbito de ação do Assistente Social e representando projeto da Igreja em ação
complementar e não antagônica à primeira, pois compartilhavam de base
doutrinária comum, viabilizar possibilidades diversificadas de ação profissional
católica face à “questão social”. Conforme Castro,
A Escola Elvira Matte de Cruchaga representou não uma
possibilidade diversificada de ação profissional, mas também
181
um centro de educação especializado que definiu a sua
fisionomia a partir do Serviço Social católico com decisiva
influência européia, é certo — e onde membros ilustres da
burguesia puderam desenvolver as suas mais arraigadas
convicções doutrinárias (1987, p. 71).
A formação da Elvira Matte de Cruchaga correspondia aos interesses
mais gerais da Igreja católica, ou seja, colocar-se novamente a frente da
condução moral da sociedade, pois
Comprimida entre o pragmatismo burguês e o “ateímo”
socialista, a Igreja redobrava a sua ação nos terrenos mais
diversos, renovando os seus intelectuais orgânicos e dotando-
os dos instrumentos de intervenção requeridos pelo momento
(ibid., p. 68).
Frente aos seus objetivos, a Igreja católica entendeu a importância da
profissionalização da assistência social, uma vez que necessitava lidar com a
emergente “questão social”, na moderna sociedade capitalista. Sua ação não
mais deveria se dirigir aos vitimados pelas pestes ou recém libertos, mas
dirigir-se aos que, como explica Castro,
Suportavam as conseqüências de uma ordem social que
mercantiliza a força de trabalho, redefine a família, promove
concentrações urbanas, incorpora ao salariato a mulher, origina
novas doenças etc. (ibid., p. 69).
Agora focalizaremos o Serviço Social brasileiro, por meio de
considerações acerca da sua gênese, do seu percurso histórico e da inerente
configuração da ética nessa profissão.
O panorama mundial das primeiras décadas do século XX comportou as
lutas travadas entre as forças da organização política e sindical dos
trabalhadores e as forças constitutivas do capitalismo monopolista e do
fascismo, além da pressão exercida pela pauperização de significativo
contingente populacional. Nesse cenário, foram direcionados esforços para a
182
dimensão “social”, na tentativa de aplacar os conflitos e garantir o “equilíbrio”
da ordem estabelecida.
Os Estados Unidos, nação que emergia como centro de referência do
capitalismo, e a Europa envidaram esforços no sentido de viabilizar ações
profissionalizadas no campo social, tomando diferentes rumos na execução
dessa tarefa. A esse respeito destaca-se o pensamento de Netto:
É no imediato pós-guerra civil que se engendram as condições
culturais elementares que, na virada do século, permearão as
protoformas do Serviço Social [...]. A crítica sociocultural, na
Europa, era obrigada a pôr em questão aspectos da
socialidade burguesa; na América, o tipo de desenvolvimento
capitalista não conduzia a crítica a checá-lo. No período que
estamos enfocando, a síntese dessas diferenças pode ser
resumida da seguinte maneira: nas fontes ideológicas das
protoformas e da afirmação inicial do Serviço Social europeu,
dado o anticapitalismo romântico, vigoroso componente de
apologia indireta do capitalismo; nas fontes americanas, nem
desta forma a ordem capitalista era objeto de questionamento.
São notáveis as conseqüências dessa profunda diferença
para a emergência e a consolidação profissional do Serviço
Social [...].
Essas duas tradições cultural-ideológicas são as que
penetram as protoformas e as primeiras afirmações
profissionais do Serviço Social [...] o desenvolvimento
profissional do Serviço Social deu-se simultaneamente, com a
imbricação dessas duas linhas evolutivas e com suas
modificações particulares (2001, p. 114 -115-120).
Todavia, pode-se dizer que a Europa teve suas formulações vinculadas
ao pensamento sociológico conservador em conexão com a doutrina social da
Igreja católica, o que significa dizer também que essa foi a sua tônica
“humanista” na profissionalização do Serviço Social, a qual repercutiu,
inclusive, no Serviço Social brasileiro.
No Brasil, o Serviço Social teve origem na década de 1930, tendo como
referência fundamental o Serviço Social europeu, o que significou forte
influência da doutrina social da Igreja católica — o neotomismo.
183
A denominada Revolução de 1930 que levou Getulio Vargas ao poder
alterou o quadro político sob a direção das oligarquias. O Estado tomou a
dianteira no comando da política econômica e social, alicerçando a ampliação e
a consolidação das bases industriais no País. Vargas assumiu luta em prol do
declínio do poder oligárquico e da construção das bases para o surgimento de
um poder burguês industrial.
Apesar de sua institucionalização ocorrer verdadeiramente nas
décadas seguintes, o Serviço Social despontou, nesse processo, como uma
das estratégias concretas para o disciplinamento, o controle e a reprodução da
força de trabalho, estratégia viabilizada pelo empenho que uniu esforços do
Estado e da Igreja católica em consonância com a expansão do capitalismo no
País a Constituição aprovada em 1934 favorecia significativamente a Igreja
católica. Em Castro podemos observar que
As vantagens obtidas pela Igreja nesta etapa resultaram de
uma complexa interação com o governo de Vargas, que
reconhecia nela um aliado apreciável a ser atraído em função
da sua influência e autoridade, especialmente depois de alguns
confrontos nos quais a hierarquia deu provas da sua disposição
de luta (em 1931, D. Sebastião Leme não hesitou em
proclamar que “[...] ou o Estado [...] reconhece o Deus do povo
ou o povo não reconhece o Estado” (1987, p.97).
Nesse contexto, o avanço do processo organizativo da classe
trabalhadora e os conseqüentes conflitos na relação entre o capital e o trabalho
caracterizavam a realidade brasileira
55
e eram aspectos captados pelos
detentores do poder econômico como fortes ameaças à ordem social, ou seja,
55
Cabe lembrarmos que as primeiras décadas do século passado, no Brasil, foram caracterizadas pela luta
operária. Em 1917, houve greve geral em São Paulo que contou com a adesão de trabalhadores de cidades
interioranas desse estado, enquanto no Rio de janeiro ocorreu forte movimento reivindicatório por jornada
de oito horas de trabalho. Após tentativa frustrada de greve geral revolucionária pelos anarquistas, em
1918, movimentos grevistas ocorreram em diversas capitais brasileiras — Porto Alegre, Recife, Salvador,
Curitiba, Rio de janeiro, entre outras todos duramente reprimidos. Em 1922, foi fundado o Partido
Comunista Brasileiro. Esse contexto foi também o da promulgação das primeiras leis trabalhistas.
184
à expansão capitalista. Desse modo, mecanismos hábeis no controle das lutas
sociais e na difusão de ideário útil ao modo de vida capitalista no seio da classe
trabalhadora tornaram-se imprescindíveis para o enfrentamento da “questão
social” formas de ação mais conseqüentes que a mera repressão policial ou
a mera ação caritativa, típicas da República Velha, um tipo de “terceiro
caminho” que deveria surgir consoante com o “novo” momento que
despontava. Um cenário propício para a emersão do Serviço Social brasileiro, o
qual surge materializando o que é requisitado à profissão o obscurecimento
da sua dimensão política aliado à perspectiva de apelo moral no trato das
seqüelas da “questão social”. Com uma concepção de
homem/sociedade/Estado alimentada, basicamente, pela doutrina social da
Igreja católica o neotomismo —, os profissionais da área tinham,
resguardando a estrutura societária, suas ações restritas a formas viáveis à
confirmação da ordem constituída.
Assim como em outras regiões da América Latina, em linhas gerais, as
bases para a organização da profissão no Brasil foram definidas
predominantemente por segmentos femininos pertencentes às camadas sociais
mais abastadas, com o respaldo da hierarquia da Igreja católica. Com o
amparo das instituições fundadas à época, de feição católica,
56
cuja importância
nesse processo é incontestável, esses segmentos femininos engrossavam a
militância católica, desenvolvendo consistentes ações para a recuperação da
influência da Igreja na sociedade, dentre elas a profissionalização da
56
Tendo em vista o seu projeto de revigorar o papel da Igreja na sociedade, ou seja, retomar sua
hegemonia na sociedade civil e no Estado, inúmeras instituições foram criadas pela Igreja católica. A esse
respeito consultar Manuel Manrique de Castro. História do Serviço Social na América Latina, 1987.
185
assistência social.
57
Aspecto de significado inconteste face às questões que
cercavam a emergente classe trabalhadora urbano-industrial brasileira.
Em 1936, em São Paulo, foi criada a primeira escola de Serviço Social
no Brasil, inspirada pela doutrina social da Igreja católica. Essa escola forneceu
quadros para formação da segunda escola de Serviço Social brasileira, ou seja,
para a escola de Serviço Social fundada na capital do País, em 1937.
A primeira escola de Serviço Social do Rio de Janeiro surgiu,
respaldada pelo Grupo de Ação Social (GAS), em 1937. Logo após, em 1938,
surgiu outra escola nessa capital voltada principalmente para o atendimento
à criança —, por iniciativa do Juizado de Menores, e o curso preparatório que
havia para a formação em Serviço Social incorporou-se à Escola de
Enfermagem Ana Nery, em 1940. No entanto, mesmo que órgãos diretamente
desvinculados da Igreja católica estivessem envolvidos com essas escolas
surgidas posteriormente, as bases religiosas católicas não deixaram de dar o
tom da formação desses profissionais.
Castro (1987), analisando as primeiras escolas de Serviço Social no
Chile e no Brasil, destaca que
Enquanto, no Chile, a primeira escola surge impulsionada a
partir da beneficência pública, por um médico ou seja, a
partir do Estado e para auxiliar o exercício da Medicina —, no
Brasil a primeira escola surge no seio do movimento católico e
sem estar medularmente vinculada a qualquer profissão que
lhe atribua um papel explicitamente tributário. Mas, no Rio de
janeiro, a expansão da profissão conecta-se à Medicina e ao
Direito (1987, p. 104).
Todavia, apesar de ressalvar distinção entre as escolas do Chile e do
Brasil, o autor esclarece que sobressai o fato dessas escolas igualmente
57
Conforme nos explica Manuel M. Castro (1987), desse processo fez parte o curso intensivo de
formação de jovens, promovido pelas religiosas de Santo Agostinho, para o qual foi convidada a Srª.
Adèle Loneux, da Escola de Serviço Social de Bruxelas, Bélgica. Neste evento foi criado o Centro de
Estudos e Ação Social — CEAS —, considerado o vestíbulo da profissionalização do Serviço Social.
186
surgirem como resposta à “questão social”, e por meio do estímulo de
segmentos das classes dominantes que exerciam ativas práticas de apostolado
católico. Ademais, mesmo que não possamos fazer referência à transposição
rígida dos modelos europeus para os países da América Latina, nos cabe citar
também a indubitável influência belga na formação das escolas de Serviço
Social desse continente.
Dessa maneira, foi com um posicionamento pouco afeto à crítica,
compatível no máximo com perspectivas relativas a um anticapitalismo
romântico — desautorizando, portanto, questionamentos que negassem os
alicerces da realidade social, da vida social concreta no mundo capitalista —,
que o Serviço Social estabeleceu as referências e as normas para o exercício
profissional.
Esse rumo ídeo-cultural pode ser percebido no primeiro código de ética
profissional do Serviço Social, aprovado em 29/9/1947, quando analisamos os
deveres a serem observados pelos assistentes sociais:
- Cumprir os compromissos assumidos, respeitando a lei de
Deus, os direitos naturais do homem, inspirando-se sempre,
em todos os seus atos profissionais, no bem comum e nos
dispositivos da lei, tendo em mente o juramento prestado
diante do testamento de Deus.
- Respeitar no beneficiário do Serviço Social a dignidade da
pessoa humana, inspirando-se na caridade cristã (ABAS, 1948,
p. 41).
Portanto, o Serviço Social com um posicionamento moralizador face às
expressões da “questão social”, captando o homem de maneira abstrata e
187
genérica, configurou-se como uma das estratégias concretas de
disciplinamento e controle da força de trabalho, no processo de expansão do
capital monopolista. Essa concepção conservadora, não jogando luz sobre a
estrutura societária, contribuiu para obscurecer para os assistentes sociais,
durante um amplo lapso de tempo, os determinantes da “questão social”, e
caracterizou uma cultura profissional acrítica, sem um horizonte utópico que os
impulsionasse para o questionamento e às ações conseqüentes em prol da
construção de novos e diferentes rumos face às diretrizes sociais postas e
assumidas pela profissão.
A expansão industrial no Brasil implicou alterações na racionalidade
posta ao enfrentamento da “questão social”, pois, além das mazelas
decorrentes diretamente do declínio do tipo de produção em bases agro-
exportadoras prioritário anteriormente, a constituição da economia urbana-
industrial passou a outro consumo da força de trabalho e exigiu meios de
qualificação e de integração dos trabalhadores nos processos de trabalho. Com
isso, entidades assistenciais emergiram no cenário nacional, desencadeando o
processo de legitimação e institucionalização do Serviço Social.
O processo de surgimento e desenvolvimento das grandes
entidades assistenciais estatais, autárquicas ou privadas
é também o processo de legitimação e institucionalização do
Serviço Social [...]. O assistente Social aparecerá como
categoria de assalariados quadros médios cuja principal
instância mandatária será, direta ou indiretamente, o Estado
[...].
As grandes instituições assistenciais desenvolvem-se num
momento em que o Serviço Social, como profissão legitimada
dentro da divisão social do trabalho entendido o Assistente
Social como profissional que domina um corpo de conhe-
cimentos, métodos e técnicas — é um projeto ainda em estágio
embrionário; é uma atividade profundamente marcada e ligada
à sua origem católica, e a determinadas frações de classe, as
quais ainda monopolizam seu ensino e prática. Nesse sentido,
o processo de institucionalização do Serviço Social será
188
também o processo de profissionalização dos Assistentes
Sociais formados nas escolas especializadas (IAMAMOTO,
1985, p. 315).
Desse modo, a partir das condições que configuram a realidade
brasileira e mundial, a busca de cientificidade torna-se um imperativo para a
profissão, a qual foi gradativamente sendo influenciada por determinadas
vertentes teóricas em voga na época,
58
especialmente os pressupostos do
funcionalismo adotado pelo Serviço Social norte-americano. Entretanto, nesse
movimento, não foi superado o ideário neotomista. Nos períodos em que as
concepções desenvolvimentistas têm hegemonia no Brasil e no continente
latino-americano, uma conjugação da vertente funcionalista com tal ideário
neotomista caracterizou a profissão.
Cabe observar que o desenvolvimentismo foi assumido pelos governos
latino-americanos como possibilidade de ultrapassagem do denominado
subdesenvolvimento da região. Essa perspectiva teve forte impacto no Serviço
Social, já que seus agentes foram avaliados como de grande valia na execução
de atividades profissionais consoantes com tal diretriz política. O projeto
assumido por diversos regimes latino-americanos alinhava-se à estratégia dos
países desenvolvidos, especialmente os Estados Unidos, que pretendiam a
integração dos mercados desse continente à dinâmica capitalista mundial sob a
sua hegemonia financeira. Nesse contexto, tiveram importância diversas
profissões, como dito, o Serviço Social, por exemplo, uma vez tornar-se
necessária a renovação no âmbito estatal. Fato que, em meados dos anos de
1950, levou que o Assistente social e outros profissionais recebessem
formação especializada para funções de planejamento, de administração e,
58
Daí pode-se observar o caminho da construção de um ideário sincrético e do ecletismo na profissão.
189
prioritariamente, para execução de projetos de Desenvolvimento de
Comunidade. Esse período caracterizou-se, conforme Castro (1987), pelo
chamado boom universitário, processo que implicou em multiplicação das
profissões, inclusive as tributárias das ciências sociais, a sociologia, a
antropologia e a psicologia. Segundo esse autor, foi por meio do
desenvolvimento dessas profissões que o funcionalismo e a influência norte-
americana predominaram, alicerçando o discurso oficial em prol do
desenvolvimentismo assumido na América Latina após a Revolução Cubana.
O Desenvolvimento de Comunidade — método característico do período
em questão era propagado como método de trabalho capaz de viabilizar a
soma dos esforços da população (das comunidades) aos do seu governo para
melhorar as condições econômicas, sociais e culturais das comunidades,
integrando-as à vida do país e, conseqüentemente, contribuindo para o
progresso da nação. Um método que, logicamente, necessitava de
profissionais devidamente gabaritados para concretizá-lo. Dessa maneira,
[...] a ONU animou numerosos programas de aperfeiçoamento
profissional que, por seu alcance continental, forjaram um
continente homogeneamente qualificado, em alguns casos sob
o tratamento genérico de “especialistas em desenvolvimento” e,
noutros, como o dos assistentes sociais, mais especificamente
denominados de “especialistas em desenvolvimento
comunitário” e isto, por seu turno, alentou uma significativa
expansão profissional, de conseqüências modernizantes sobre
as diversas instâncias do Serviço Social (CASTRO, 1987, p.
146).
O Serviço Social brasileiro nesse processo conjugava neotomismo com
funcionalismo, o que manteve em grande parte a o-percepção dos
profissionais acerca do antagonismo entre as classes sociais, apagando do
conteúdo dos conhecimentos em debate, os conflitos, as contradições ou
melhor, os fundamentos da “questão social”.
190
O código de ética de 1965 aponta diferenças em relação ao primeiro,
datado de 1947, as quais sinalizam as influências da referida conjugação:
- Ao assistente social cumpre contribuir para o bem comum,
esforçando-se para que o maior número de criaturas humanas
dele se beneficiem, capacitando indivíduos, grupos e
comunidades para sua melhor integração social (p. 7).
- O assistente social estimulará a participação individual, grupal
e comunitária no processo de desenvolvimento, propugnado
pela correção dos desníveis sociais (p. 7).
Dos anos 1940 até meados da década seguinte, a economia brasileira
experimentou um considerável crescimento. Todavia,
[...] a deterioração das relações de troca, o esgotamento das
reservas em moeda forte e o endividamento externo crescente
a partir de 1955, e a luta pela definição das opções tendo
em vista criar condições favoráveis à expansão econômica, nos
marcos do “capitalismo dependente”, são elementos das
condições concretas em que se engendra a ideologia
desenvolvimentista [...] (IAMAMOTO e CARVALHO, 1985, p.
346).
Com base no pensamento de Cerqueira Filho, entendemos que a
referida ideologia desenvolvimentista, dominante no governo Kubitschek,
embora propalasse a viabilidade de desenvolvimento econômico com justiça
social, apontando para a direção de uma ampla alteração econômico-social
que resultaria em desenvolvimento, não ultrapassou a esfera de uma
experiência revolucionária” inconclusa, implicando uma renegociação da
dependência (1982, p.150). Como explicitado em capítulo anterior, o
desenvolvimentismo não realizou uma ampla mudança econômico-social
efetivando desenvolvimento com justiça social no nosso País. Significou
tendo KubitscheK a frente —, um projeto de governo que mesclava
191
conservadorismo com tons progressista, mas não ultrapassou efetivamente a
experiência de renegociação da nossa dependência.
Nesse período, sem maiores embargos, a presença marcante do capital
estrangeiro no País foi tomada como essencial à possibilidade de
desenvolvimento, à solução dos problemas tradicionais na sociedade brasileira.
Foi um período de forte penetração dos capitais estrangeiros no País e que,
apesar de constar no seu Plano de Metas, não viabilizou a evolução da
indústria brasileira em bases nacionais.
Não obstante tal ideologia vincular-se a questões que afetavam o
horizonte profissional dos assistentes sociais, uma significativa parcela desses
profissionais manteve-se distante dessa temática por um largo período,
excetuando-se aqueles que se relacionaram com experiências em programas e
projetos de Desenvolvimento de Comunidade atividades que, como
citado, deram maior fôlego à influência norte-americana no Serviço Social
brasileiro, haja vista o apoio para a capacitação técnica e o patrocínio de
organismos internacionais, a exemplo da OEA e da Unesco.
Entretanto, na profissão, em consonância com o contexto da década de
1960, emergiu um movimento crítico, denominado Movimento de
Reconceituação Latino-Americano do Serviço Social. Esse movimento, em sua
heterogeneidade por países e regiões, trouxe à tona inúmeros
questionamentos acerca da sociedade e das injunções postas ao trabalho do
Assistente Social, impulsionando um posicionamento crítico em relação ao
Serviço Social ao conservadorismo historicamente plasmado na profissão —
e, conseqüentemente, à lógica capitalista.
192
O Movimento de Reconceituação do Serviço Social não foi um projeto
desvinculado do contexto do seu tempo. Não é projeto que caiba qualificação
de “endogenista” ou vanguardista, mas sim um processo dinâmico e
contraditório de mudanças no interior do Serviço Social, consoante com
determinadas forças sociais do seu período histórico. Projeto engendrado no
momento em que na dinâmica da sociedade latino-americana se encontrava
em curso um processo de questionamentos da sua estrutura dependente e
excludente.
Não obstante, esse projeto profissional não comportou proposta
unidimensional, caracterizou-se pela heterogeneidade, pela convivência
debates e embates de tendências diversas até conflitantes. Tendências que
podemos avaliar como congruentes tanto com a conciliação e a reforma social
quanto com perspectivas modernizadoras e até transformadoras da ordem
social vigente o Documento de Araxá, formulado por Assistentes Sociais
brasileiros em 1967, é exemplo de tendência modernizadora, enquanto no
Chile de Allende, conforme explica Faleiros (1987), propostas do Serviço
Social de caráter político-revolucionário.
Cabe observar que, como nos explica Netto (1981), esse foi um
Movimento tipicamente latino-americano que: enquanto fenômeno sócio-
cultural articulou-se em conseqüência da crise estrutural que a partir da década
de 1950 afetou os padrões de dominação vigentes na América Latina; e,
enquanto fenômeno profissional, representou resposta possível dada por
determinados segmentos dessa categoria profissional como alternativa ao
Serviço Social tradicional, o qual, também segundo Netto (id.), distingue-se do
Serviço Social clássico, pois, enquanto este último significa as fontes do
193
Serviço Social, o denominado “Serviço Social tradicional” deve ser
compreendido como prática empirista, paliativa, reiterativa e burocratizada
realizada pelos profissionais na América Latina.
Em decorrência do declínio de um período de crescimento da economia
capitalista mundial, assegurado desde a Segunda Guerra Mundial, a tensão
nas estruturas sociais do mundo capitalista ganha caráter diferente. Além
disso, a Revolução Cubana (1959), com seu ideário de libertação, reverberou
em todos os quadrantes do planeta, e a Guerra do Vietnã mobilizou a
juventude norte-americana. O cenário mundial passa a contar, assim, com
amplos movimentos de luta sindical entrecruzando-se com lutas pela
reordenação de recursos governamentais para as políticas sociais, movimentos
com demandas sociais e culturais diversificadas (mulheres, negros, jovens), em
defesa do meio ambiente, da terra, dos direitos sociais (educação, lazer, saúde
etc.). Enfim, foi um período em que a racionalidade do Estado burguês torna-se
alvo de questionamentos.
Tais questionamentos atingiram, em patamares e dimensões diferentes
e específicos, além dos países latino-americanos, todos aqueles em que a
profissão do Assistente Social contava com um nível avançado de inserção na
estrutura sociocupacional. Entre nós, pode-se considerar que os
desdobramentos no percurso histórico do Serviço Social brasileiro se iniciam
relacionados com as questões do cenário latino-americano dos anos 1960, pois
giravam em torno da funcionalidade do Serviço Social tendo em vista a
superação do subdesenvolvimento (NETTO, 1991).
A baliza de 1968, de Berkeley a Paris, de Praga à selva
boliviana, do movimento das fábricas do norte da Itália à
ofensiva Tet no Vietnã, das passeatas do Rio de Janeiro às
manifestações em Berlim-Oeste, assinala uma crise de fundo
194
da civilização de base urbano-industrial que se refrata em todas
as esferas da ação e da reflexão [...]. O tensionamento das
estruturas sociais do mundo capitalista ganhou, quer nas suas
áreas centrais, quer nas periféricas, uma nova dinâmica; num
contexto de desanuviamento das relações internacionais
(superados já os tempos de Guerra Fria), gestou-se um quadro
favorável para a mobilização das classes subalternas em
defesa dos seus interesses imediatos. Registraram-se então
amplos movimentos para direcionar as cargas da
desaceleração do crescimento econômico, mediante as lutas
de segmentos trabalhadores e as táticas de reordenação dos
recursos das políticas sociais dos Estados burgueses (ibid., p.
142).
Reportando-nos, ainda, ao pensamento de Netto, cabe acrescentar que
o referido Movimento sofreu a influência de determinados aspectos exteriores à
profissão, dos quais ressaltamos: a revisão crítica operada nas ciências
sociais, as quais historicamente forneceram elementos para a validação
teórico-metodológica do Serviço Social; as alterações processadas em
instituições com evidente nculo com a profissão, ou seja, a Igreja católica e,
em plano de menor significação na nossa realidade, algumas confissões
protestantes, as quais adensaram alternativas de interpretação teológicas que
justificavam posturas concretamente anticapitalistas; o movimento estudantil,
que dinamizou a erosão do tradicionalismo profissional “a ‘rebelião
estudantil’ foi tanto mais eficiente quanto mais capaz se mostrou de atrair
para as suas posições estratos docentes” (ibid., p. 145).
Diante de tudo isso, cabe-nos observar que a ambiência de contestação
das várias práticas profissionais historicamente ligadas à ordem burguesa
incidiu também no Serviço Social tradicional.
59
Os pressupostos de integração
das políticas do welfare state passam a ser negados pelos resultados que
produzem, a neutralidade é questionada e recusada.
59
É importante lembrar que o processo não se restringiu à nossa profissão e nem mesmo às políticas do
welfare state ele se deu em todas as atividades institucionalizadas que operavam na reprodução das
relações sociais. Referimo-nos aqui apenas ao Serviço Social por ser nosso objeto de estudo.
195
Na América Latina, como sinalizamos, a operacionalização dos
programas de Desenvolvimento de Comunidade foi questionada, tendo início o
processo de “erosão da legitimidade do Serviço Social Tradicional” (NETTO,
1991).
Pode-se dizer que foi um movimento importante para a absorção, por
uma parcela dos profissionais, de novos aportes teóricos. A análise crítica da
sociedade do capital possibilitou, assim, que uma parcela dos profissionais
inseridos nesse processo problematizasse o papel do Assistente Social na
sociedade capitalista e as demandas a ele dirigidas. Isso, em conseqüência,
viabilizou alterações nas concepções adotadas de Homem/Sociedade e
Estado, fundamentando um diferente referencial teórico e ético para a
profissão, que, não obstante, veio a ser objetivado em um código de ética
profissional duas décadas depois, em 1986, após passarmos por um longo
período de “conservadorismo com nova roupagem” caracterizando a profissão,
representando o seu projeto hegemônico, um rearranjo do tradicionalismo
profissional funcional à modernização conservadora, ao Estado ditatorial e ao
grande capital, construindo o que Netto (1991) denomina Perspectiva
Modernizadora do Serviço Social.
Conforme apontamos, as diretrizes conservadoras “vestidas em nova
roupagem” podem ser verificadas no código profissional de 1975:
- Exigências do bem comum legitimam, com efeito, a ação do
Estado, conferindo-lhe o direito de dispor sobre as atividades
profissionais formas de vinculação do homem à ordem
social, expressões concretas de participação efetiva na vida da
sociedade (p. 6).
196
- O valor central que serve de fundamento ao Serviço Social é
a pessoa humana. Reveste-se de essencial importância uma
concepção personalista que permita ver a pessoa humana
como centro, objeto e fim da vida social (p. 7).
- Entre os princípios encontramos: Subsidiariedade que é
elemento regulador das relações entre os indivíduos, as
instituições ou as comunidades, nos diversos planos de
integração social (p. 8).
-Nas relações com instituições: respeitar a política administrativa
da instituição empregadora (p.13).
Logicamente, essa forma de conceber a profissão, expressa nesse digo
de ética, consolida a hegemonia dos modernizadores.
Nisso Netto (1991) identifica um transformismo que absorve os tradicionais
Assistentes Sociais —, adequando-os aos novos tempos, extraindo
possibilidades de crítica, tanto à sociedade na qual a profissão se insere,
quanto às suas próprias bases ídeo-políticas. A esse respeito, merece
destaque também o pensamento de Iamamoto:
O positivismo tende, pela sua natureza, a consolidar a ordem
pública, pelo desenvolvimento de uma sábia resignação, ante
as conseqüências das desigualdades sociais, apreendidas
como fenômenos inevitáveis. O Serviço Social defende-se
dessa resignação, encobrindo-a por meio de uma visão do
homem, norteadora das ações dos profissionais, pautada pelos
princípios filosóficos neotomistas, na defesa de uma natureza
humana abstrata: a pessoa humana, dotada de dignidade,
sociabilidade e perfectibilidade, postulados essenciais do
Serviço Social (tais como sustentados no “Documento de
Araxá”, de 1967). Preserva-se, no campo dos valores, a
liberdade dos sujeitos individuais, deslocados da história
(Iamamoto, 1998a, p. 222).
197
Quando analisamos o Documento de Teresópolis,
60
torna-se claro o
privilégio a uma concepção operacional da profissão, uma vez que ele,
diferente do Documento de Araxá que o antecedeu, não se deteve na
discussão de valores, de teorias, de finalidades ou da legitimidade profissional,
mas priorizou as formas instrumentais capazes de garantir eficácia à ação
profissional, buscando a sua validação nos complexos institucional-
organizacionais.
No Documento de Teresópolis, constata-se uma busca de qualificação do
Assistente Social através de um perfil sociotécnico adequado à modernização
conservadora da ditadura militar, consolidando-se o estrutural-funcionalismo
como concepção teórica.
Nesse sentido, a perspectiva modernizadora se afirma como concepção
profissional geral e como pauta de intervenção, adequando o Serviço Social à
ambiência própria da modernização conservadora conduzida pelo Estado
ditatorial, atendendo aos interesses do grande capital e das características
próprias do desenvolvimento capitalista brasileiro.
No entanto, sabemos que o Movimento de Reconceituação, que surge
no Serviço Social a partir de meados da década de 1960, foi marco do início do
“percurso crítico” que tomou parte dos profissionais do Serviço Social brasileiro.
O processo de reconceituação impulsionou alterações qualitativas para a
formação profissional do Assistente Social. Mesmo que nesse processo não
tenha ocorrido uma consistente crítica teórica do passado profissional, a partir
dele surgiram elaborações teórico-práticas que se desdobraram e romperam a
hegemonia do conservadorismo na profissão, possibilitando, inclusive, a
60
O Documento de Teresópolis é resultante do Encontro de Teresópolis, em 1970. Trata-se de produção
posterior ao Documento de Araxá, que, tal como ele, também é um marco no processo de renovação do
Serviço Social na perspectiva Modernizadora.
198
construção de um referencial ético que não mais preconizou valores
assentados em interesses individuais ou de grupos sociais particulares. Esse
referencial crítico em relação à sociedade do capital depurou-se e atualmente
busca assegurar valores que se dirijam à legitimação de práticas que
contribuam para a construção de uma nova ordem societária, uma ordem cuja
lógica não seja a contradição gênero/indivíduo e tampouco o primado da
mercantilização na vida social.
A construção de tal referencial ético objetivou-se com a elaboração do
código de ética profissional de 1986, no período de retomada da democracia
política no País. Nesse processo os Assistentes Sociais foram também
sujeitos históricos, e tiveram a possibilidade de experimentar significativos
avanços, tanto no plano intelectual quanto em nível organizativo. Isso
possibilitou que a hegemonia da perspectiva modernizadora fosse colocada em
questão e que o veio crítico e progressista do Movimento de Reconceituação
se reacendesse, suscitando debates e embates no seio da profissão que
tiveram como um dos resultados a elaboração do código de ética do Serviço
Social que é marco na busca de rompimento com o conservadorismo na
profissão. Nesse código de 1986, é visível a derrocada do privilégio das
referências éticas sem conexão com a História, seja pela perspectiva alinhada
com os valores da religiosa, seja pelos pressupostos da “neutralidade”. Com
esse instrumento profissional, apesar de não desconsiderarmos a existência de
equívocos teórico-filosóficos partícipes das questões intrínsecas aos
desdobramentos do Movimento da década de 1960, podemos dizer que se
procurou superar as reflexões éticas obscurecidas pelas construções
idealizadas da realidade, as quais situam a ética fora do campo dos
199
condicionantes históricos, fora das implicações dos interesses de classe. Ao
mesmo tempo, reconhecimento, por parte dos segmentos profissionais que
defendem essa nova postura, da dimensão político-ideológica que marca a
profissão desde o seu início e caracteriza a sua história.
Na própria introdução do código de ética de 1986, é possível observar tal
superação e tal reconhecimento:
Inserida nesse movimento, a categoria de Assistentes Sociais
passa a exigir também uma nova ética que reflita uma vontade
coletiva, superando a perspectiva a-histórica e acrítica, onde os
valores são tidos como universais e acima dos interesses de
classe. A nova ética é resultante da inserção da categoria nas
lutas da classe trabalhadora, e, conseqüentemente, de uma
nova visão da sociedade brasileira [...] (p. 7).
Não obstante consideração de equívocos teórico-filosóficos, a exemplo
de certa limitação ao explicitar posicionamentos profissionais em relação às
classes sociais,
61
a importância do código de ética de 1986 é evidente, pois
pode ser considerado como um “divisor de águas” na história da ética
profissional do Serviço Social. Esse código representa, face aos
desdobramentos históricos do Movimento de Reconceituação, a sua vertente
de inspiração mais crítica. Porém, em acréscimo, considerando seus limites,
cabe apreciarmos o pensamento de Iamamoto acerca do marxismo da
reconceituação:
Embora contraposto ao conservadorismo profissional, mantém
com ele [...] uma linha de continuidade. É esse elo que faz com
que a reconceituação não ultrapasse o estágio de uma busca
de ruptura com o passado profissional. Tal fenômeno encontra-
se diretamente dependente das formas específicas pelas quais
se deu a aproximação do Serviço Social com a tradição
marxista [...]: no campo da ação por meio do militantismo
61
Este código de ética é avaliado, por vezes, como equivocado em algumas referências ao exercício
profissional. Além das críticas que o observam como um documento que expressa certo “maniqueísmo” e
abstração na maneira de apreender/referir-se às classes sociais, comentários de distorções no que lhe
compete como instrumento de orientação profissional, uma vez que lhe atribuem tom um tanto
“militantesco” em certas posições .
200
político partidário e no campo da teoria pela vulgarização
marxista e de rudimentos do estruturalismo marxista
althusseriano, numa relação utilitária e pragmática com o
conhecimento, tendo em vista a ação profissional imediata [...].
A junção de um marxismo positivado e de uma ação política
idealizada são as novas capas de um velho e sempre mesmo
problema que perpassa a trajetória do Serviço Social,
segmentando o campo cognitivo do campo dos valores
implicados na ação profissional, redundando em uma
atualização às avessas, dos dilemas postos pela herança
conservadora do Serviço Social (1998a, p. 223 - 224 - 225).
Apesar da importante repercussão no percurso histórico do Serviço
Social, possibilitando avanços e qualificação intelectual, as primeiras
aproximações do Serviço Social com as heranças de Marx, conforme
Iamamoto (1996), evidenciaram desconsideração da História e esvaziamento
da riqueza analítica contida no pensamento desse autor. Foram apreensões
que travestiram tal pensamento com uma lógica positivista, formulando
questões que marcaram fortemente o código de ética profissional do Serviço
Social de 1986. Um código profissional que sobressai na trajetória dessa
profissão por representar claramente perspectiva de rompimento com seu
histórico conservadorismo. Código que golpeia o mito da “neutralidade” no
Serviço Social, anunciando seu compromisso com as lutas e os interesses da
classe trabalhadora, ou seja, configurando uma nova concepção de
sociedade/Homem/ética no percurso histórico da profissão. Todavia, se nisso,
na superação da visão do Assistente Social como mero executor das políticas
sociais, pois visto como capaz de participar da estrutura decisória dos
programas institucionais, ou por meio de outros posicionamentos, como o de
inaceitação de determinação patronal que violasse os princípios assumidos
pela categoria contidos no código, este documento demonstrou
amadurecimento e avanço profissionais, paralelamente não deixou de
201
evidenciar limites, a exemplo da não captação da contradição inerente às
relações sociais na sociedade capitalista, ou seja, a exemplo da já citada
posição dualista com relação às classes sociais.
Em seu último Código de Ética, datado de 1993, o Serviço Social
garantiu e buscou ampliar as conquistas profissionais impressas no código
anterior.
62
Ou seja, a revisão do código profissional de 1986, que deu origem
ao de 1993, objetivou o refinamento e a ampliação das referências para o
exercício profissional, mantendo o sentido do código precedente (1986).
O digo de 1993 foi aprovado em período de ampla discussão e
mobilização da sociedade brasileira com relação à ética na política, na vida
pública, pois momento marcado por escândalos de corrupção que contaram
com o impeachment do Presidente da República, o Sr. Fernando Collor de
Mello. Um contexto também fortemente marcado pela implementação da
política neoliberal por esse governo em terras brasileiras, marcado pelas
injunções do projeto neoliberal no País. É período em que a globalização, a
“mercantilização traçada mundialmente” resposta à crise capitalista
contemporânea —, sobressai nos países periféricos, evidenciando sua lógica
de desresponsabilização do Estado face à “questão social”. Com isso a
exacerbação das mazelas sociais típicas do mundo capitalista, particularmente
em áreas da periferia capitalista cujos sistemas de proteção social mereciam
ser observados como frágeis.
62
Salientamos: a) o perfil do Assistente Social como profissional voltado à investigação científica e à
formulação e à gestão das políticas sociais; b) o não-corporativismo, expresso especialmente no destaque
à denúncia da desqualificação do trabalho profissional; c) o compromisso com a qualidade dos serviços
prestados à população; d) a importância atribuída ao trabalho com os estagiários.
202
O Código de Ética vigente
63
representa, a nosso ver, de maneira
destacada, uma vez que orientação para a ação profissional,
64
a direção dos
compromissos assumidos pelo Serviço Social brasileiro nas últimas décadas do
seu percurso histórico o Projeto Ético-Político hegemônico.
65
Nele pode-se
observar claramente uma perspectiva crítica à ordem econômico-social
estabelecida e a defesa dos direitos dos trabalhadores. Isso porque, o avanço
experimentado pelo Serviço Social nas últimas três décadas que possibilitou,
inclusive, a concretização do seu Código atual ou, melhor, o processo de
renovação em curso nessa profissão em detrimento do Serviço Social
tradicional, vem sendo acompanhado por metamorfoses sociais que em favor
do capital aviltam o trabalho, chegando, não representar a inviabilidade de
ampliação do movimento de conquistas da classe trabalhadora, mas o seu
retrocesso.
A crise capitalista contemporânea desencadeou alterações,
principalmente nos países periféricos, que exacerbam dificuldades na vida
social por meio de aspectos como: a reestruturação da produção, a penetração
63
Esse documento aqui é privilegiado, haja vista suas referências para orientação do exercício
profissional.
64
Entendemos que o Serviço Social é profissão inserida na divisão social do trabalho e que, apesar de
poder estar indiretamente na produção, recebe assalariamento em função da requisição
patronal/institucional de participar no sentido de viabilizar a subordinação do trabalho à produção/ao
capital. É uma profissão que mesmo que não consumida diretamente no processo de produção visando à
valorização do capital é requisitada para participar disso, do seu engrandecimento. Além disso, cabe
esclarecermos que, o obstante a polêmica acerca de trabalho, processo de trabalho e Serviço Social, a
qual o faz parte do nosso universo de discussão nesta tese, ora utilizamos indistintamente os termos
ação profissional, intervenção/exercício profissional e trabalho do Serviço Social/Assistente Social. A
respeito dessa polêmica, são interessantes para consultas as diferentes produções: Rosângela N. C.
Barbosa et al.. A categoria “processo de trabalho” e o trabalho do Assistente Social. In: Serviço Social &
Sociedade. São Paulo: Cortez, 58, 1998; Norma Alcântara B. Holanda. O trabalho em sentido
ontológico para Marx e Lukács: algumas considerações sobre trabalho e serviço social. In: Serviço Social
& Sociedade. São Paulo: Cortez, nº 69, 2002.
65
Segundo Marcelo Braz M. Reis (2001), os elementos constitutivos que emprestam materialidade ao
Projeto subdividem-se em: a) dimensão da produção de conhecimentos no interior do Serviço Social; b)
dimensão político-organizativa da categoria; c) dimensão jurídico-política da profissão. Nesta última
estão presentes o Código de Ética Profissional, a Lei de Regulamentação da Profissão e as Diretrizes
Curriculares, mas precisamente, as Diretrizes Curriculares da Associação Brasileira de Ensino e pesquisa
do Serviço Social — ABEPSS.
203
intensificada do capital financeiro, as reformas na esfera estatal,
obstaculizando os direitos sociais e as políticas sociais, âmbito de ão
caracteristicamente do Serviço Social.
Diante do que viemos discorrendo, cabe destacarmos os Princípios
Fundamentais do Código Profissional vigente:
-Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas
políticas a ela inerentes autonomia, emancipação e plena expansão dos
indivíduos sociais
-Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do
autoritarismo.
-Ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa primordial
de toda a sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis, políticos e sociais
das classes trabalhadoras.
-Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da
participação política e da riqueza socialmente produzida.
-Posicionamento em favor da eqüidade e justiça social, que assegure
universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e
políticas sociais, bem como sua gestão democrática.
-Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito,
incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente
discriminados e à discussão das diferenças.
-Garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais
democráticas existentes e suas expressões teóricas, e compromisso com o
constante aprimoramento intelectual.
204
-Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção
de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e
gênero.
-Articulação com os movimentos de outras categorias profissionais que
partilhem dos princípios deste Código e com a luta geral dos trabalhadores.
-Compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e
com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional.
-Exercício do Serviço Social sem ser discriminado, nem discriminar, por
questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade,
opção sexual, idade e condição física (CFESS, 1993).
Como se vê os compromissos assumidos pelo Serviço Social brasileiro
não endossam, tampouco absolutizam” a lógica instituída pelo capital. Essa
profissão que inicialmente caracterizou-se pela prática moralizante e pelo
privilegio, por longo período de tempo, do controle e do “papel educativo”
favorável ao mundo do capital tem atualmente salvaguardada a
heterogeneidade profissional o seu histórico conservadorismo e/ou
neoconservadorismo defrontado com um projeto profissional, tido como
hegemônico, engendrado em bases progressistas (internas e externas ao
Serviço Social). Isso porque, conforme Netto (1999), a ruptura com o quase
monopólio do conservadorismo no Serviço Social, não significou a erradicação
de tendências conservadoras ou neoconservadoras na profissão, além do mais
em tempos de democracia política elas representam a concorrência entre
projetos distintos nas categorias profissionais.
205
Assim sendo, retomando a idéia lukácsiana da ética como via
favorecedora da superação da contradição gênero/particular,
indivíduo/sociedade podemos inferir, tendo em conta a gênese e o percurso do
Serviço Social, que essa profissão avançou e amadureceu tanto em sentido
teórico quanto em ético-político. Para o alcance de tal conclusão, comparamos
as diretrizes e as finalidades expressas nos códigos de ética profissional do
Serviço Social anteriores com a direção social dos compromissos expressos no
último Código de Ética Profissional entendendo significar revisão do código
de 1986.
66
Esses compromissos representam um projeto profissional
67
que, a
partir dos anos 1990, no Brasil, se tornou denominado Projeto Ético-Político do
Serviço Social, porém produto de desdobramentos do Movimento Latino-
Americano de Reconceituação do Serviço Social, iniciado em meados da
década de 1960, que tomaram maior vulto nos anos da década de 1980.
Nos limites definidos pelo âmbito da ação profissional, esse Projeto
diferente das perspectivas conservadoras que caracterizaram o Serviço Social
por um longo período e/ou neoconservadoras, as quais hoje também estão
presentes nessa profissão tenciona contribuir para legitimar valores que
apontem para a necessidade de desenvolvimento da generalidade humana,
para a possibilidade de emancipação humana, em vez de privilegiarem o
corporativismo, os interesses apenas particulares de grupos sociais ou
66
É importante lembrar que a primeira manifestação pública dos Assistentes Sociais de ruptura com o
conservadorismo até então característica marcante na profissão ocorreu em 1979, no III Congresso
Brasileiro de Assistentes Sociais conhecido como Congresso da Virada”. Além disso, lembremos
também que apenas a partir de 1990 é que os Assistentes Sociais brasileiros se voltaram para a ética como
tema privilegiado. A grande discussão dos anos 1980 girava em torno, basicamente, da dimensão política
da profissão, não indicando, ainda, profundidade quanto à fundamentação ética.
43 Entendemos que, apesar do Código expressar tais compromissos, esses não se esgotam nesse
documento. A esse respeito, é importante consultar: José Paulo Netto, A construção do projeto ético-
político do Serviço Social frente à crise contemporânea. In: Capacitação em Serviço Social e Política
Social. Módulo 1 – Brasília: ABEPSS/CFESS, 1999.
206
indivíduos. Não fortalece, desse modo, a propalada idéia de dissociação entre
o particular-individual e o social-genérico, ou seja, não contribui para fomentar
“particularismos” que, predominando sobre a perspectiva de interesses
genérico-coletivos, criem obstáculos ao desenvolvimento dos próprios
indivíduos e da sociedade.
Diante do exposto, destaca-se à consideração de Lessa (1995) sobre a
“supervalorização” por parte do liberalismo das “iniciativas individuais”, as
quais, segundo o autor, chegam ao absurdo de converter o ser-homem em algo
cujas “raízes últimas” seriam “ontologicamente independentes da existência da
sociedade, de maneira que nos encontraríamos, em alguns casos, forçados a
indagar sobre as inter-relações de duas entidades ontologicamente autônomas
(individualidade e sociedade)” (LUKÁCS, ap. LESSA, 1995, p. 74). Lessa
lembra também, valendo-se ainda do pensamento de Lukács, que a
individualidade pode vir a ser enquanto um ente social concreto, cuja
atividade imprescindível para a sua reprodução efetiva-se em interconexão
com a totalidade social e é o que fundamenta a existência da própria
sociedade. Portanto, individualidade e sociabilidade não se contrapõem, mas
pressupõem interação entre a totalidade social e o indivíduo singular concreto.
E a ética, segundo Lukács, “ata os fios entre o gênero humano e o indivíduo
que supera sua própria particularidade” (ap. LESSA, 1995, p.103), pois um tipo
de “exigência” que “eleva à generalidade o horizonte das finalidades operantes
nas decisões alternativas de cada indivíduo; isto é, faz do indivíduo uma
individualidade autêntica, genérica; o torna consciente de ser membro do
gênero humano” (ibid., p. 102).
2
07
Desse modo, considerando o exposto, salientamos a fecundidade de
investigações que se voltem para o exercício profissional do Serviço Social
(aqui destacamos o brasileiro), para a materialização do seu Projeto Ético-
Político que tem expressão destacada no Código de Ética Profissional —,
haja vista os já mencionados compromissos assumidos por essa profissão, que
indubitavelmente supõem estudos qualificados e sistemáticos,
68
e a realidade
ora traçada pelo recrudescimento do imanente processo de mundialização do
capital, que, conforme száros (2003), evidencia a pretensão de controle da
totalidade. Outrossim, salientamos entender que à efetivação de tais
investigações cabe ter claro que as conjunturas “não condicionam
unilateralmente as perspectivas profissionais; todavia impõem a elas limites e
possibilidades” (IAMAMOTO, 1998a). Significa, dessa maneira, se considerar,
no limite das instituições empregadoras, as possibilidades e os óbices para o
Assistente Social efetivar a sua relativa autonomia na execução do seu
trabalho — profissional assalariado que surge em função de necessidades
típicas de certa fase do capitalismo, vinculado às políticas sociais e sujeito,
como os demais trabalhadores, às injunções postas pela atual conjuntura.
Pensarmos a concretização do Projeto Ético-Político do Serviço Social, a
materialização dos Princípios Fundamentais do seu Código de Ética no
cotidiano profissional ou captarmos a percepção dos Assistentes Sociais a
esse respeito é mister para a compreensão dessa profissão frente à crise
capitalista contemporânea. Isso significa buscarmos entender em que medida
68
O conhecimento qualificado é essencial para que se possa discutir e encaminhar esse Projeto Ético-
Político. Isso nos leva a indagações quanto ao nível e à direção social da formação profissional,
especialmente na atual conjuntura de avanço da iniciativa privada face às instituições de ensino. Não é
desconhecido que o ensino universitário vem se transformando em alvo de empreendimento dos grandes
capitais.
A esse respeito, é importante consultar: Larissa D. Pereira. Educação e Serviço Social: do
confessionário ao empresariamento da formação profissional. São Paulo: Xamã, (no prelo).
208
as mudanças macrossocietárias vêm produzindo alterações nas necessidades
e demandas sociais, espaços de intervenção, finalidades, competências e
objetivos profissionais, requisições institucionais e condições objetivas de
trabalho; em suma, em que medida essas mudanças vêm tocando condições
histórico-materiais e ideopolíticas que delineiam as possibilidades e os limites
do exercício profissional do Assistente Social.
Outrossim, significa discutir a hegemonia do citado Projeto Profissional,
lembrando que a abstração no campo ético “não não se opõe à
desumanização da vida, como é funcional a ela”, conforme nos esclarece Tonet
(2002) ao analisar a fratura entre a realidade objetiva e os valores éticos
proclamados na sociedade capitalista. Trata-se de uma forma de abstração que
favorece a reprodução da ordem do capital, obscurecendo suas contradições
internas e permitindo que essa ordem funcione sem perder sua natureza
essencial.
assim poderemos nos voltar a indagações substanciais sobre os
rumos que vem tomando essa profissão (Serviço Social) na História humana.
Pois, voltando-nos à realidade brasileira, mesmo que possa ter surgido em
função da última eleição presidencial qualquer vislumbre de mudança no
cenário nacional pela alteração no quadro do poder político, especialmente
na esfera federal —, como abordamos em capítulo anterior, a mudança não
tem sido característica do atual governo.
Vivemos uma crise profunda que, tendo em vista as marcas do
redimensionamento da economia, da redução da participação do Estado e da
abertura à concorrência internacional, iniciada no País nos anos 1990, nos leva
a questionamentos sobre os rumos da História humana, do País e do Serviço
209
Social. Assistimos ao paradoxo de um país de vasto potencial econômico,
como é o Brasil, que, ao lado de sofisticação tecnológica para produção, exibe
crescente aumento da precarização do trabalho, fome, violência e desamparo
de um significativo contingente de seus cidadãos. Assistimos à atrofia do
Estado
69
e das políticas de proteção social, assistimos à criminalização da
pobreza, a um “retorno” da consideração da “questão social” como caso de
polícia e o de política, à “informalização” e à vulneração do trabalho pelo
subcontrato, pela inserção temporária gerando fragilidade técnica e
organizativa, pela perda de direitos, pela diminuição de postos, pela
instabilidade/insegurança e pela sua intensificação.
Em escala mundial assistimos a um processo que ameaça de destruição
a própria humanidade pelo perigo de uma guerra nuclear ou da exploração
desmedida dos recursos naturais, ao qual Höffe denomina “globalização da
violência”, uma vez que sua característica principal é a substituição do direito
pelo arbítrio e pela força nas relações entre as pessoas (ap. OLIVEIRA, 2004,
p. 24).
Esse processo em curso caracteriza-se pela submissão ou substituição
da política pelo mercado, sobretudo financeiro, na condução dos processos
sociais. Ou seja, caracteriza-se pela “mercantilização da vida social como um
todo, na medida em que o lucro se põe como o grande mecanismo de
estruturação de todas as esferas da vida social” (OLIVEIRA, 2004, p. 24).
Marilda Iamamoto explicita que a perspectiva neoliberal, com hegemonia
ideológica mundial, inclusive nos governos contra os quais se insurgiu em sua
origem — os social-democratas —, em vez de impulsionar a produção em favor
69
Como explica Netto, na obra Crise do socialismo e ofensiva neoliberal, Cortez: 1993, o Estado torna-se
mínimo face às necessidades da classe trabalhadora, mas o mesmo não ocorre em função dos interesses
do capital.
210
da ampliação das taxas de crescimento econômico, favoreceu o crescimento
especulativo da economia, recrudescendo as desigualdades sociais e o
desemprego. Tal perspectiva apostou no mercado como a grande esfera
reguladora das relações econômicas, focalizando o Estado como o responsável
pelas desgraças que afetam a sociedade capitalista, o que resultou em um
Estado cada vez mais submetido aos interesses econômicos e políticos
dominantes, com a prevalência da financeirização da economia (1998a, p. 35).
Desse modo, entendendo que os Homens fazem sua História e o curso
dessa História depende não das suas decisões e ações, mas dos
condicionamentos colocados às alternativas de ação desses sujeitos, uma vez
que essas decisões e ações são efetivadas em situações concretas,
pretendemos discutir, na seção seguinte da presente tese, a materialização no
cotidiano do exercício profissional dos Assistentes Sociais dos Princípios
contidos no Código de Ética Profissional, uma vez que dissonantes das
diretrizes propaladas e efetivadas no atual ordenamento socioeconômico
definido pela crise capitalista contemporânea e as políticas neoliberais. Discutir
a percepção que os Assistentes Sociais têm da materialização no cotidiano do
seu exercício profissional dos Princípios contidos no seu Código de Ética
Profissional, o que significa dizer uma forma de consideração desses
profissionais acerca do atual Projeto Ético-Político do Serviço Social. Isso
porque, apesar de constatarmos as conquistas históricas desses profissionais,
temos que considerar especialmente dadas as implicações da atual
conjuntura —, frente às suas decisões e alternativas de ação a existência de
condicionamentos, uma vez que decisões e ações no campo profissional,
211
mesmo não condicionadas unilateralmente, são tomadas em situações
concretas. Ademais, conforme Vinagre Silva, cabe considerar que
Sobretudo em tempos em que florescem particularismos e
voltam à cena, com novas roupagens, com distanciamento da
identidade profissional e releituras do conservadorismo
profissional, é tarefa de todos aqueles sujeitos singulares que
partilham do sonho de uma outra ordem societária lutar pela
reafirmação do projeto ético-político do serviço social (2004, p.
202).
Para efetivação desse propósito, selecionamos os Hospitais de Custódia
e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro
70
âmbito de ação do
Serviço Social que conta com exígua produção acadêmica, apesar de exibir
traços relevantes, os quais o torna, a nosso ver, parâmetro para outras
apreciações ou estudos desse gênero —, pois campo de ão profissional que
evidencia interseção de diferentes faces da política social e abarca um
contingente populacional que representa de maneira “emblemática”, ou, se
melhor considerarmos, potencializada, segmento para o qual o Serviço Social
habitualmente dirige sua ação camadas pauperizadas (e estigmatizadas)
que costumam recorrer às políticas públicas. Trata-se de segmento da
população amplamente estigmatizado e excluído socialmente
71
seja pela
70
Em 1984, com a edição da Lei de Execução Penal, os Manicômios Judiciários passaram a chamar-se
Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico.
No presente trabalho pode-se utilizar, por vezes, indistintamente as denominações: Hospital de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico, Hospital de Custódia, Manicômio Judiciário, Hospital Psiquiátrico
Penal, este último porque o hospital criado para urgência psiquiátrica dos presos acometidos de
transtornos psiquiátricos Hospital Psiquiátrico Penal Roberto Medeiros também recebia(e)
Internados por Medida de Segurança, tal como os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico,
antigos Manicômios Judiciários. Todavia, hoje, essa Unidade do Sistema Prisional está prioritariamente
se voltando (fase de transição) para o tratamento da dependência química, e foi denominada Centro de
Tratamento de Dependência Química Roberto Medeiros.
71
Entendemos ser a exclusão inerente à sociedade capitalista, uma vez que essa supõe hierarquia e
desigualdade. Todavia, destacamos que, além da “não-integração” no processo produtivo, a população ora
referida é excluída do convívio social, pois institucionalizada enquanto persistir avaliação de sua ameaça
para a sociedade ou seja, reclusa, sob Medida de Segurança, pelo período de 1 a 3 anos, porém
diferente do preso comum, dependente da avaliação do grau de sua periculosidade para definição do
tempo real de sua saída —, podendo ainda ser observada como desnecessária economicamente (até por
possuir comprometimento crônico de saúde) e, em conseqüência, totalmente dispensável para a
sociedade.
212
representação de “possível perigo” para a sociedade seja pela idéia de sua
improdutividade no mundo do trabalho, especialmente nesse momento em que
a crise contemporânea do capital traz profundas questões tanto pela
desregulação do trabalho assalariado quanto pela necessidade de
hipermobilidade do capital, remediando, conforme Wacquant (2001a) com
“mais Estado Policial e Penal”, a falta de Estado Social, ou seja, trazendo a
possibilidade de criminalização da pobreza. Vale destacar ainda que os
referidos Hospitais são locais em que se verifica particularmente a associação
do transtorno mental com o delito e onde se mesclam diferentes faces da
“questão social”.
Todavia, não obstante a condição criminal, o que se está focalizando
aqui é um contingente populacional inimputável que se encontra em instituição
pública para tratamento e que necessita de política social. Esse fato irrefutável
até pelo “senso comum”, por se tratar de pessoas oficialmente portadoras de
doença que requerem tratamento para seu retorno à sociedade, o que
inviabiliza qualquer hipótese de que sejam incluídas no rol daqueles sujeitos,
por vezes equivocadamente considerados, em decorrência de seus atos de
violência, como sujeitos apenas merecedores de punição sujeitos sem
direitos. Ou seja, nos referimos a Sujeitos em Instituição Pública colocados
sob a guarda do Estado com direito à política social, o que define a
necessidade do trabalho de diversos profissionais. Apesar de aqui ser
focalizado, especificamente, o trabalho do Assistente Social, o qual deve ser
orientado pelas referências/diretrizes do Código de Ética Profissional em vigor.
213
3.2 O Cotidiano Profissional e a Referência dos Princípios do
Código de Ética do Assistente Social
Como já explanamos, nas décadas de 1980 e 1990 constituiu-se no
Serviço Social a hegemonia da perspectiva de rompimento com o tradicional
conservadorismo na profissão. Apesar de não podermos nos referir à
erradicação desse conservadorismo, constatamos a solidificação de bases
progressistas que democratizaram a profissão, declinando, assim, as
estreitezas do doutrinarismo cristão e das vertentes teóricas refratárias à crítica
substancial da ordem capitalista. As aproximações com diferentes aportes
teóricos, especialmente com o marxismo, em função do Movimento de
Reconceituação (e seus desdobramentos), viabilizaram avanços tanto
organizativos quanto teórico-culturais no Serviço Social, resultando em nova
perspectiva ético-política ora expressa em aspectos da profissão como
exemplifica o Código de Ética em vigor. Contudo, embora identifiquemos a
importância dos Princípios e/ou referências contidos nesse documento,
sabemos que esses só ganham significado, só podem ser objetivados, no
âmbito das situações concretas, ou seja, no cotidiano do exercício profissional.
Se assim não for considerado, incorreremos nos limites do formalismo, cuja
lógica do “dever ser” obscurece a importância dos elementos materiais,
transformando a ética em mero conteúdo prescritivo desvinculado da realidade
concreta (do ser), ou de um plano ideal que sustenta uma ética da
intencionalidade, no qual a intenção do ato constitui critério decisivo.
Portanto, salientando a dissonância das diretrizes do Projeto Ético-
Político do Serviço Social face ao que preconiza e efetiva o atual ordenamento
socioeconômico e destacando que apontamos características da área
selecionada para efetivação do nosso trabalho de campo, discutiremos a
214
materialização dos Princípios do Código no cotidiano do trabalho profissional
dos Assistentes Sociais nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico
do Estado Rio de Janeiro. Buscaremos captar se materialização desses
Princípios, considerando as injunções postas ao exercício profissional e
sabendo que as perspectivas profissionais não são condicionadas
unilateralmente pela conjuntura, mas que a ela cabem possibilidades e limites,
conforme nos explica Iamamoto (1998a).
Dessa maneira, inicialmente, faremos considerações sobre a origem dos
referidos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico e sobre o Serviço
Social no Sistema Prisional.
72
Depois desses temas, abordaremos a referência
ética no Serviço Social ou, melhor dizendo, os Princípios do Código e a sua
materialização no cotidiano do exercício profissional —, partindo,
fundamentalmente, da percepção dos entrevistados, por meio da análise das
entrevistas realizadas com os Assistentes Sociais dessas Instituições.
3.2.1 Considerações acerca dos Hospitais de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico no estado do Rio de Janeiro
Os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico surgiram, em 1921,
a partir da construção do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro em 21 de
abril de 1920, nos fundos da Casa de Correção, na rua Frei Caneca, foi
lançada a pedra fundamental do primeiro Manicômio Judiciário do Rio de
Janeiro, que seria inaugurado em 30 de maio do ano seguinte —,
73
e são locais
que, conforme explica Carrara, conseguem “articular duas das realidades mais
72
Por não existirem dados suficientes, nem relatos orais, não foi possível particularizarmos o Serviço
Social dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico.
73
Esta seção foi realizada, basicamente, com dados extraídos do livro de Sergio Carrara, Crime e
loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século, 1998 (como utilizamos apenas
este livro do autor, as referências que aqui fizemos prescindem de indicação da obra).
215
deprimentes das sociedades modernas o asilo de alienados e a prisão e
dois dos fantasmas mais trágicos que nos ‘perseguem’ a todos — o criminoso e
o louco” (p. 26). Esses hospitais são locais que, se, por um lado, mostram a
semelhança entre prisão e manicômio no que se refere à exclusão do convívio
social, por outro ressaltam a diferença entre eles, no que diz respeito ao fato de
para a prisão enviarmos culpados
74
e para os hospitais inocentes que
necessitam de tratamento de saúde mesmo que se refira a tratamento em
busca de saúde mental, pois loucura é diferente de delinqüência. A esse
respeito, é interessante complementarmos com a observação de Carvalho:
“loucos na cadeia e criminosos no hospital, os Internados dos hospitais penais
são os excluídos entre os excluídos da sociedade” (2002, p. 45). Isso ratifica o
que explica Carrara acerca desse tipo de instituição que abarca tratamento
psiquiátrico e encarceramento, um campo institucional cuja “marca distintiva é
a ambigüidade como espécie de ‘defeito constitucional’” (p. 28). Essa
ambigüidade se expressa nos conflitos de competências entre os profissionais
considerados como responsáveis pela ordem e pela lei (guardas, juízes etc.) e
74
Os Internados dessas Instituições, como explicamos, o inimputáveis, cumprem Medida de
Segurança, que, diferentemente de punição, se aplica por fato provável, ou seja, por possível repetição de
novos crimes.
A Medida de Segurança não evidencia caráter repressivo, pois se fundamenta no dever de
defender a sociedade daqueles que, sem plena consciência dos seus atos, realizaram ações tipificadas na
lei como crimes. Além dos menores de 18 anos de idade, a Medida de Segurança, por meio da psiquiatria,
abrangeu o portador de transtorno mental e infrator, mais diretamente os considerados psicopatas ou
sociopatas. Encontra-se isento de pena (inimputável) ou pode ter sua pena reduzida em um a dois terços
(semi-imputável) o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardo, não
possuía plena capacidade de entender ao tempo da ação ou omissão o caráter criminoso do fato ou
determinar-se de acordo com esse entendimento. Portanto, a Medida de Segurança é fundamentada na
idéia da periculosidade e não da culpabilidade. Conforme encontramos em obra referente à psiquiatria
As razões da tutela, de Paulo Delgado (1992) a Medida de Segurança inovação capital do Código
de 1940, segundo disse o ministro Francisco Campos é providência de cunho individual destinada a
dupla finalidade: proteger a sociedade dos inimputáveis perigosos, e tratá-los até que cesse sua
periculosidade. É produto da Escola Positiva que se distingue da pena, pois considera a necessidade da
cura e da readaptação do portador de transtorno mental infrator. A efetivação do crime e a existência da
periculosidade são pressupostos para a Medida de Segurança.
A Medida de Segurança pode ser de dois tipos: a detentiva que implica internação; a restritiva
que implica tratamento ambulatorial obrigatório e é medida jurídica que, regulada pelo artigo 97 do
Código Penal, se executada, só será suspensa mediante laudo psiquiátrico de cessação de periculosidade.
216
aqueles considerados responsáveis pelo tratamento da saúde (médicos,
assistentes sociais, terapeutas ocupacionais etc.), ou também nas
contrastantes concepções de períodos de permanência do Internado na
Instituição e nas diferentes construções da identidade dos mesmos.
75
Retornando ao que citamos inicialmente, em 1921 apareceu o primeiro
Manicômio Judiciário no Rio de Janeiro. Essa foi a primeira instituição do
gênero na América Latina e esteve, a princípio, sob a direção do médico
psiquiatra Heitor Pereira Carrilho, que já vinha chefiando a Seção Lombroso do
Hospital Nacional — ou seja, a seção que foi embrião do referido manicômio.
A partir do final do século XIX e início do século passado foi que as
ciências e as instituições se articularam em torno da questão dos considerados
loucos-criminosos. Tudo indica ter sido a Inglaterra o primeiro país a erguer,
em 1870, uma instituição especial para os indivíduos considerados como
delinqüentes alienados. Os Estados Unidos e a França até então apenas
haviam destinado anexos de alguns presídios para a reclusão e o tratamento
dos considerados delinqüentes-loucos ou dos condenados que enlouqueciam
nas prisões.
Mas as discussões que sistematicamente ocupavam o mundo científico
e articulavam ciências e instituições científicas/profissionais em torno do crime
e da loucura ultrapassaram essa esfera, e ganharam as ruas através da
imprensa popular. Isso devido ao significativo aumento da criminalidade nas
grandes metrópoles na passagem do século XIX para o século XX, comumente
explicado pelos que se dedicaram ao assunto como relacionado à
intensificação do processo de urbanização e de industrialização, não nas
75
São comuns diferentes referências aos Internados dessas Instituições, mas, de modo geral, são
alternadamente chamados de pacientes ou de presos.
217
cidades de países de economias centrais, mas também, guardadas as
proporções e as especificidades, nas cidades de países periféricos, como as
brasileiras.
No Brasil, o Código Penal de 1890 apenas fazia referência aos
delinqüentes, penalmente irresponsáveis, no sentido de entregá-los às suas
famílias ou interná-los se representassem ameaça à segurança dos cidadãos.
Caberia ao juiz a decisão em cada caso. Em 1903, porém, a construção de
manicômios judiciários torna-se proposta oficial. Surgiu uma lei especial
regularizando a assistência médico-legal aos alienados do Distrito Federal, com
o objetivo de tornar essa medida regional modelo para a organização desse
serviço nos diversos estados da União (Dec. 1132, de 22/12/1903).
Enquanto não fosse possível a construção de manicômios judiciários, os
estados deveriam providenciar anexos especiais aos asilos públicos para o
recolhimento desse tipo de doente chamado alienado. Foi provavelmente
desse modo que se introduziu uma seção especial para abrigar indivíduos tidos
como loucos-criminosos no Hospício Nacional de Alienados, a chamada Seção
Lombroso do Hospício Nacional.
Como dissemos, a ênfase na reflexão acerca do crime e da loucura
ocorreu basicamente em fins do século XIX e início do século XX, e esteve
especialmente ligada às alterações decorrentes do processo industrial. No
caso do Brasil, um processo industrial sem planejamento que vinha
consumindo força de trabalho, numa economia que não muito tempo atrás era
tocada basicamente em função da agricultura e do trabalho escravo e que
entrava no mercado competitivo de tipo capitalista. Essa mudança marcava
fortemente a vida da sociedade brasileira, trazendo contradições e conflitos, ou
218
seja, tensões sociais típicas de cidades que abarcam aglomerados de
trabalhadores sem que tenham infra-estrutura suficiente face ao acelerado
processo de industrialização, produzindo inúmeras mazelas sociais. Tais
aspectos que concorreram para a formação dos “meios delinqüenciais”
fechados e para a organização e especialização do crime e do aparato
repressivo.
Através da prisão, o “crime” se organiza, se especializa e se
profissionaliza no meio urbano, e a nova feição que adquire
aparece marcada pelo fenômeno da reincidência. Desligado
de seu meio social de origem, dados os longos períodos de
reclusão a que é submetido, e preso nos jogos da
marginalização, começa a se desenhar para o criminoso uma
trajetória social sem retorno. Foi, sem dúvida, frente a uma tal
realidade sociológica que se tornou possível conceber o
criminoso como um “tipo natural” (CARRARA, p. 64).
A exacerbação das seqüelas das desigualdades sociais inerentes às
relações sociais capitalistas define o perfil que o crime e a delinqüência
assumem no nosso meio urbano. Isso e a possibilidade de reincidência foram
justificativas para que técnicas de controle e repressão fossem prontamente
desenvolvidas e/ou modernizadas pelos aparelhos de Estado. Logicamente,
também se somaram como justificativas as manifestações contrárias à ordem
estabelecida e essas técnicas não se limitaram ao “mundo do crime”, mas se
dirigiram à sociedade em geral e, em especial, às classes/frações das classes
subalternas ou, se preferirmos, às “classes perigosas”,
76
avaliadas como
necessitadas de maiores cuidados com relação à vigilância e à disciplina.
No entanto, interessa-nos observar que, diferentemente de análise que
recaia sobre argumentos totalizantes; ou seja, argumentos que considere a
diversidade dos determinantes dos fenômenos sociais e busque na crítica
76
A esse respeito, é importante consultar Cecília Coimbra, Operação Rio: o mito das classes perigosas,
2001. A autora discute esse mito, partindo da “Operação Rio”, ou seja, partindo da ocupação pelas Forças
Armadas (1994-1995) de áreas faveladas do Rio de Janeiro consideradas perigosas.
219
substancial da ordem social os fundamentos essenciais da “questão social”,
dos processos de resistência e rebeldia, e, portanto, da transgressão às
normas e aos valores sociais ou até da emersão de certas formas de
delinqüência e de criminalidade, a sociedade burguesa forja argumentos que
parecem não aceitar que alguém conscientemente possa não se submeter à
sua lógica, à sua moral, às suas normas, aos seus valores. Dessa maneira, a
lógica burguesa torna questão individual e naturaliza processos de ordem
social, torna questão da natureza humana ou coloca em questão a própria
natureza humana o que com ela não for compatível ou estiver colidindo.
Nesse ângulo de análise, como explicita Carrara, a aproximação entre
crime e loucura temática que nesta tese tem abordagem definida e limitada
em função do nosso objeto de estudo, uma vez que trata de aspectos que com
ele se relacionam mas não o constituem —, expressando reflexão que coloca o
crime como manifestação de uma doença mental ou nervosa, surge
simultaneamente ao aparecimento das sociedades fundamentadas em ideais
liberais. Sociedades em que supostamente, por meio de contratos sociais,
teríamos interesses individuais e sociais se sobrepondo harmoniosamente — o
que significa dizer que ataques a essas sociedades, aos contratos sociais que
as constituem são sinônimos de irracionalidades, pois nada poderia ser tão
representativo de tamanha irracionalidade quanto atos contra sociedades que
ao mesmo tempo significam atos contra si próprio.
Com isso, desenvolvem-se idéias de alma humana pervertida, culpas,
punições etc. E, como explica Castel,
As razões dessas dificuldades não me parecem ser muito
obscuras: a sociedade burguesa, liberal, democrática,
progressista, representação do próprio paraíso reconquistado
(ou, ao menos, passo fundamental para tal reconquista), não
220
parece aceitar que alguém possa agredi-la em consciência
(ap. CARRARA, p. 69).
Ancorado em autores como Robert Castel e Michel Foucault, Carrara
explicita que, no século XIX, os alienistas franceses tiveram suas primeiras
incursões fora dos muros dos asilos dos alienados a chamado de tribunais de
justiça para desvendar crimes que se apresentavam como “enigmáticos”.
Esses crimes eram assim qualificados por não denotarem motivação aparente,
tampouco serem praticados por pessoas que se enquadrassem nos moldes
clássicos da loucura, ou seja, pessoas que parecessem delirantes. Esses
profissionais eram chamados à elucidação de problemas que estariam
subvertendo escandalosamente valores considerados básicos para o convívio
social e que, portanto, deveriam estar enraizados na própria “natureza
humana”, tais como amor materno, amor filial, solidariedade face à dor e/ou
sofrimento humano. Aspectos que poderiam colocar em xeque a “humanidade”
dos parricidas, dos infanticidas, etc., tornando os atos desses sujeitos mais
viáveis de explicação pelas interpretações das ciências biológicas, das ciências
da natureza, ou seja, relacionando-os às selvagerias da natureza ou, a nosso
ver, descaracterizando-os como produção consciente, social.
Contudo, aqui é importante registrar que foi através de tais casos que se
desenvolveu uma primeira reflexão sobre a relação entre crime e loucura, o
que tem a ver com a origem dos manicômios judiciários em fins do século XIX.
Nessa relação encontra-se a categoria nosológica da monomania,
elaborada no campo da patologia mental no início do século XIX pelos
alienistas franceses.
A noção de monomania guarda nítida referência a uma concepção
intelectualista da loucura, tendo como seu tipo exemplar o maníaco.
221
Para os alienistas franceses, as monomanias significavam espécies de
delírios parciais, tipos de delírios que estariam circunscritos a apenas uma
idéia. Essa idéia operaria uma espécie de premissa falsa a partir da qual tudo
se edificaria pelo doente. O tipo ideal de monomaníaco parece ter sido o
“perseguido-perseguidor”, porém outras formas de monomania se mostraram,
como monomanias religiosas, homicidas etc.
Todavia, além dos delírios parciais, a monomania progressivamente
passou a codificar, em várias de suas formas, uma perturbação mental que
não mais se referia às desordens da inteligência ou a qualquer delírio, mas sim
aos movimentos inesperados e incontroláveis das paixões e dos afetos. Sem
pretensão de aprofundamento, podemos fazer referência a um quadro em que
apareciam diferentes formas de monomania, sendo dois os blocos das mais
significativas das suas tendências, as chamadas “monomanias raciocinantes” e
as “monomanias instintivas”. As últimas, doenças que comumente são
manifestadas em surtos rápidos e repentinos. Os doentes acometidos desses
tipos de monomania têm vida pacata e o transtorno mental, apesar de
presente, pode ser imperceptível, podendo ocasionar a qualquer momento um
delito ou um ato insano que cause perplexidade pela “ausência de razão
aparente”. Diferentemente na monomania raciocinante, ou loucura moral, os
indivíduos, diferentemente, expressam ao longo de sua trajetória de vida um
comportamento indisciplinado, reivindicador, agressivo, amoral, cruel. São
indivíduos que constantemente são alvos de críticas e avaliações negativas.
Em suma, esse foi o caminho encontrado, à época, pelos alienistas franceses
em busca de explicação para os atos cometidos por tipos tão diferentes de
transgressores ou criminosos inusitados.
222
Diante disso, importa-nos salientar que o aparecimento da noção de
monomania relaciona-se com a interpretação que a psiquiatria faz de certos
crimes e também se vincula tanto à própria história da psiquiatria quanto à da
loucura. Foi essa noção que permitiu a elaboração da concepção de loucura
como alienação mental, ou seja, como doença que não se caracteriza apenas
e/ou necessariamente pelo delírio.
A introdução da noção de monomania no pensamento psiquiátrico, além
de conseqüências para a concepção de loucura que vinha sendo articulada no
século XIX, influiu profundamente na chamada “síntese asilar” internamento
mais tratamento moral. Com isso houve a ampliação do poder de intervenção
social dos alienistas, uma vez que a eles coube a competência do diagnóstico
de tal enfermidade. Tal consideração caberia aos alienistas, porque se tratava
de uma forma de alienação entendida como de tal modo oculta que poderia
não ser captada pelo doente, pelas pessoas mais próximas ou até mesmo
pelas autoridades judiciárias. Ademais, a noção de monomania situa a doença
mental não apenas como um estado mórbido transitório e de reversão possível
por meio de terapêutica individualizada, mas como algo que possui atributo
(mesmo que ainda não bem definido) da própria natureza do sujeito.
Dessa maneira, os alienistas trouxeram à baila questões que, partindo
da nova acepção, das monomanias, tornaram-se aspectos que passaram a
fazer parte do universo não só de suas discussões e práticas, mas também dos
juristas, dos magistrados e dos psiquiatras nos tribunais, aproximando crime e
loucura, estabelecendo vínculo entre a esfera médica e a legal.
Quanto a algumas dessas questões podemos observar:
Como curar algo que se delineia como fruto de um processo
mórbido congênito ou hereditariamente adquirido, que é
223
muito mais uma condição anormal do que uma situação
doentia?
[...] como utilizar um tratamento moral na cura de indivíduos
(como os loucos morais) cuja doença não lhes permite
justamente assimilar regras morais da sociedade em que
vivem? [...]
É a partir dessas novas figuras da loucura que o internamento
asilar adquire a ambivalência que parece explicar porque ainda
resiste séculos: ele é prática terapêutica humanitária mas é,
ao mesmo tempo, prática de contenção relativa a uma loucura
que, através dos movimentos incontidos dos monomaníacos,
tornou-se incurável e perigosa (CARRARA, p. 77-78).
A nova concepção situou a loucura fora ou no mínimo distante da esfera
pública e lhe tirou sinais que permitiam que fosse percebida com facilidade, o
que levou os tribunais a dependerem do aval dos alienistas para que pudessem
desenvolver seus trabalhos. Ademais, o ingresso desses alienistas nos
tribunais trouxe à tona questões de ordem teórico-práticas tanto para a
psiquiatria quanto para o judiciário. No entanto, isso não significou
questionamentos à lógica punitiva ou ao sistema penal que se instalava nas
sociedades liberais, uma vez que, no início do século XIX, “se existe uma
reflexão médica sobre o criminoso, ela dizia respeito às maneiras de humanizar
e potencializar o poder corretivo da pena, e não ao seu fundamento jurídico”
(CASTEL, ap. CARRARA, p.79).
Contudo, a partir de meados do século XIX as elaborações acerca das
monomanias passaram a receber severas críticas. Surgiram outras
argumentações teóricas, e o que então se discutia eram os degenerados
77
eram esboços de reflexões médicas específicas sobre o crime, os primeiros
fragmentos teóricos de uma espécie de “criminologia”. Esse material contava,
inclusive, com elaborações que iniciavam questionamentos acerca dos
fundamentos do direito penal liberal.
77
O termo monomania continuou a ser utilizado pelos médicos por todo século XIX e não caiu em
desuso, apesar das teorizações sobre os degenerados.
224
Foi com o austríaco Benedict-Augustin Morel, em meados do século XIX,
que a doutrina da degeneração recebeu sua elaboração mais significativa no
interior do pensamento psiquiátrico. Intensificando a lógica própria das
monomanias, a qual concebia o louco mais como um tipo específico do que
como um indivíduo afetado por uma situação doentia, a teoria da degeneração
concebeu a loucura e as doenças nervosas em geral como sendo, em sua
maioria, expressão da anomalia nervosa original e irredutível da degeneração
de um dos principais sistemas vitais: o sistema nervoso.
Entretanto, nas suas formulações Morel não deixa de distinguir formas
de doenças mentais, ou seja, para ele, existem as doenças que têm origem
degenerativa e as que não têm. As doenças não-degenerativas teriam
possibilidade de cura e poderiam ser originárias, por exemplo, de infecção
intercorrente, de um choque emocional violento, de uma grande paixão ou de
uma grande tristeza etc. Porém, caso não fossem tratadas, poderiam tornar-se
doenças degenerativas das futuras gerações. As doenças mentais
provenientes da degeneração do sistema nervoso eram, em princípio,
diferentemente das outras, consideradas incuráveis.
Dessa maneira, o diagnóstico de degeneração mental implicava
concretamente uma observação médica criteriosa, bastante sensível às
condições e à história de vida do “doente” e de sua família, uma vez que as
fontes de degeneração poderiam ser encontradas tanto no meio natural quanto
no meio social, atingindo ao indivíduo, direta ou indiretamente, por meio de
herança deixada por seus ascendentes. Além disso, é importante observarmos
que entre as rias características que Morel atribui à degeneração ou, se
225
preferirmos, a também chamada loucura hereditária, surge como um traço
marcante o crime.
78
Com Morel e seus discípulos, a teoria da degeneração, quando
atravessava a segunda metade do século XIX, foi questionada de modo
contundente, especialmente pelos estudiosos da antropologia criminal, uma
área do conhecimento que antecipa constituição de uma doutrina do direito
penal: a criminologia.
79
É interessante o comentário de Carrara sobre a questão da
degeneração:
Enquanto a monomania parece incorporar à figura do louco a
face do perigo e do crime, a degeneração claramente
patologiza e medicaliza o crime. É a partir dessa reflexão
genérica sobre o crime como comportamento mórbido que a
medicina mental poderá, na segunda metade do século XIX,
romper o equilíbrio prisão/hospício, incidindo mais
agressivamente no campo do direito criminal, questionando
suas premissas básicas. Como punir criminosos se o crime não
é senão uma manifestação patológica? (p. 97).
A psiquiatria expandiu seus estudos, ampliando categorias nosológicas,
e abarcou nos quadros da alienação mental uma série de comportamentos até
então apenas observados pelo ângulo moral ou legal. A noção de monomanias
e as elaborações em torno das degenerações buscaram compreensão médica
para comportamentos que aproximavam a loucura e o crime. Para
comportamentos onde os crimes eram observados como resultantes de mentes
perturbadas ou conseqüentes das degenerações, enquanto disfunções
orgânicas. Isso, segundo Carrara (p.100), parece que trouxe para a psiquiatria
78
Grifo nosso.
79
Segundo Carrara, o termo criminologia apareceu pela primeira vez em 1890, para designar a parte da
antropologia geral que se ocupava do homem delinqüente, ou seja, apareceu como sinônimo de
antropologia criminal. Atualmente, a criminologia parece ser uma “ciência” menor, que oscila entre
abordagens do crime e do criminoso, ora com perspectivas biologizantes, ora com perspectivas
psicossociologizantes (p. 101-102).
226
uma forma de abordar o crime desqualificando-o, uma vez que, para
compreendê-lo, tinha de submetê-lo ao sintoma de uma moléstia mental
qualquer.
Diferente do modo de abordagem da psiquiatria, ou seja, sem a
necessidade de, para abordar o crime, o submete-lo à dualidade
sanidade/insanidade, e tampouco o considerá-lo em função dos limites
estabelecidos pelas suas conseqüências para a prática penal e penitenciária,
surgirá uma abordagem de uma disciplina que nasceu nas últimas décadas do
século XIX: a antropologia criminal. Essa disciplina, como dissemos, dirigindo
seu foco de estudo para o crime e reivindicando posição de ciência natural
positiva e legítima, forjou as críticas mais radicais ao sistema jurídico-penal das
sociedades liberais. Esse sistema teve sua base orientadora no pensamento
iluminista, sistematizado por Cezare Beccaria em seu livro Dos delitos e das
penas, publicado em 1767.
As bases do direito clássico repousam em três postulados básicos; o
primeiro diz respeito à igualdade de todos os homens perante a lei; o segundo
propõe o rigor da lei de acordo com a gravidade do delito cometido; o terceiro
prega a não retroatividade da lei penal, o que significa dizer que não crime
sem que haja lei anterior que o preveja. Essas diretrizes foram postas em
questão pela antropologia criminal, que teve como um dos seus mais notórios
representantes o médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909), cujos estudos,
que utilizaram técnicas de antropometria e cranioscopia, buscavam demonstrar
a existência de uma variação singular do gênero humano ou seja, a
existência do “criminoso nato”. Essa perspectiva de se alcançar o
conhecimento de uma variação humana em que “a maldade estaria estampada
227
em seu corpo, fazendo parte de sua natureza, é, sem dúvida, bastante mais
antiga que a do criminoso nato” (CARRARA, p. 101), mas encontrou uma
matriz de pensamento, fez significativo número de adeptos e aliou-se a
vertentes do pensamento positivista, por ser adepta do mecanicismo, da
perspectiva de causalidade inerente às leis da natureza no mundo humano,
nas ões e nas reações humanas, como se essas fossem produtos
biodeterminados e não resultantes da vontade e da consciência dos homens
em condições determinadas.
A concepção do criminoso nato fez sua grande aparição em 1870, com
publicação de autoria de Cesare Lombroso, intitulada Uomo delinquente.
Nessa obra Lombroso traçou para a espécie humana uma variação na
perspectiva do crime, pois, assim como a loucura com Morel e outros
estudiosos desse tema, o crime passara a ser explicado por uma variação
antropológica da espécie humana, ou seja, por mecanismos da
hereditariedade.
Não obstante parecer haver semelhança com formulação em torno do
que já expusemos acerca da degeneração, Lombroso marcou sua distinção na
medida em que desconsiderou, diferente do que fizeram Morel e seus
seguidores com a loucura, qualquer sentido patológico na variação que traçou
para a espécie humana sobre o crime. Para ele, o crime deveria ser entendido
como fenômeno do atavismo um comportamento próprio das formas humanas
inferiores, mas com possível retorno em grupos sociais nos quais estaria
ultrapassado.
228
O que Lombroso entendia como criminoso nato era uma espécie de
homem pré-histórico.
80
E o crime seria:
[...] a irrupção da animalidade ou da barbárie no interior da
civilização. De um lado, “biodeterministicamente”, ao
delinqüirem, os criminosos apenas obedeciam à sua natureza
bestial; a partir das idéias evolucionistas, acreditava-se que não
seriam criminosos se vivessem em estágios anteriores à
civilização ou em tribos selvagens. Eram, portanto, tipos
humanos regressivos (CARRARA, p.105).
A idéia do criminoso nato, pelo que inferimos, alinha-se à idéia de lei
natural, ou seja, ao que não é produção consciente, regido ou decidido pelo
sujeito, pelo mundo dos homens. É como se o crime fosse produto de uma
lógica natural: qualquer delito cometido corresponderia ao imponderável efeito
da inferioridade biológica, evidenciando uma espécie de impossibilidade do
indivíduo que o cometeu de conviver em sociedade que alcançara um
estágio além da sua capacidade evolutiva. Avaliação similar também poderia
ser estendida a outros segmentos da sociedade, ou seja, a segmentos cuja
desvalorização social ou, melhor, a “inferioridade biológica” é evidente, a
exemplo das mulheres (aquelas que querem ousam pensar e agir como
se fossem homens) e dos negros (aqueles que querem ousam pensar e
agir como se fossem homens brancos) etc.
80
Não podemos desconsiderar que ainda são comuns cotidianamente idéias que atribuem às pessoas, a
partir de determinados traços físicos ou determinados comportamentos, apenas por serem diferentes,
estigmas de doentes e/ou criminosos. Dessa maneira, é interessante observarmos destaques sobre o
“criminoso nato” de Lombroso, verificando que, apesar de diferenças, algumas das características que
observaremos também se referem aos degenerados formulação iniciada por Morel. Salientamos que,
diferentemente de formulações acerca da degeneração, no caso do criminoso nato os estigmas tornaram-
se imediata e grosseiramente indicadores de ferocidade original e não de anomalia orgânica.
Segundo Carrara (p. 105), algumas características do criminoso nato são:
Anatômicamente: ausência de pêlos, braços compridos, a “obtusidade” das feições, as orelhas munidas do
tubérculo de Darwin, fronte “fugidia”, maxilares superdesenvolvidos etc.
Fisiológicos: analgesia, desvulnerabilidade (rápida recuperação de ferimentos) etc.
Psicológicos: gosto pela tatuagem, pela gíria e onomatopéias, imprevidência, vaidade, impulsividade,
amor à orgia e à preguiça etc.
Fisionômicos: olhar frio e fixo nos assassinos e errante, oblíquo e inquieto nos ladrões. Além disso,
os criminosos natos costumavam ser sensíveis aos metais, à eletricidade, aos meteoros e às mudanças
atmosféricas, especialmente a tempestades, sendo em grande parte homossexuais (pederastas) ou com
pouco gosto pelas mulheres.
229
A teoria do criminoso nato e demais idéias que dela se desdobraram
grande parte presente na Escola Positiva de Direito Penal foram fortemente
combatidas por intelectuais e/ou cientistas de diferentes áreas contrários às
concepções biodeterministas.
81
As críticas e polêmicas que disso resultaram
serviram de fundamentos iniciais para formar o quadro das ciências humanas
com as características que predominam atualmente.
As idéias biodeterminantes contrastavam com o ideário liberal, o que,
segundo Carrara (p. 117), em fins do século XIX motivou juristas e filósofos do
direito, em detrimento do biodeterminismo e em favor da organização sócio-
política liberal, a colocarem no centro da discussão a concepção de livre-
arbítrio. Esses estudiosos defendiam um entendimento do Homem como
produto da cultura, como um ser que se aperfeiçoa através da cultura,
afastando-se da natureza e conquistando a liberdade, sendo capaz de
escolhas, uma vez que não se mais limitado às leis da natureza. O Homem
torna-se observado como único entre os seres da natureza capaz de “nadar
contra as correntes”
82
da biologia. Nisso as instituições jurídicas teriam papel
fundamental, uma vez que a elas caberia a função de garantir o convívio social,
a função de garantir aquilo que foi produzido pelos homens — as leis do mundo
dos homens —, administrando e limitando a luta pela vida.
É nessa perspectiva que Tobias Barreto, jurista e filósofo brasileiro, se
ocupa do combate às elaborações da antropologia criminal. Carrara destaca
que Tobias Barreto, inspirando-se na filosofia do direito alemã, especialmente
81
Hoje, além de outras concepções, com posicionamento diverso, pode-se recorrer à vertente crítica da
criminologia, forma de pensamento que entende que a criminalidade não é uma qualidade ontológica dos
comportamentos de determinados sujeitos. A esse respeito, consulte-se Tânia Maria D.Pereira, O guarda
espera tempo bom: a relação de custódia e o ofício dos inspetores penitenciários, Tese de Doutorado,
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006 (original
inédito).
82
Segundo Carrara (p. 117), essa era a expressão utilizada à época.
230
de R. Von Ihering, publicou livro intitulado Menores e loucos em direito criminal
e foi estudioso que não aceitou explicações em bases positivistas sobre os
fenômenos que investigava.
Outros intelectuais, no entanto, recorrerão às concepções da nascente
sociologia (cujos fundamentos positivistas eram presentes), buscando articular
a uma concepção de Homem sem qualquer recurso às idéias metafísicas a
salvaguarda dos fundamentos das instituições liberais, entre eles Silvio Romero
que se inspirou na sociologia de H. Spencer, e Clóvis Bevilaqua, cujos
trabalhos são especialmente baseados em Gabriel Tarde. Além disso, Carrara
salienta que entre esses intelectuais houve representantes de um subgrupo
composto por adeptos de uma espécie de sociodeterminismo. Eram
intelectuais e juristas que compunham um subgrupo em defesa da eficácia da
intervenção penal, desde que acompanhada de programas corretivos,
disciplinares e moralizadores (p. 118). Esse subgrupo e os adeptos do seu
pensamento lutavam em favor da manutenção do sistema jurídico penal
clássico e, conseqüentemente, em prol dos chamados ”direitos universais do
cidadão”. Lutavam para que os tribunais não se transformassem em espécie de
“laboratórios de antropologia e psicologia criminais”, e nem as prisões em
instituições-casas semelhantes às casas de tratamento e cura. Tratava-se de
luta em função de problema relacionado tanto com as autoridades e os demais
profissionais que tinham envolvimento com os aspectos citados quanto com as
garantias legais consideradas conquistas dos indivíduos diante do Estado.
As polêmicas e embates no meio científico prosseguiram acerca das
idéias do criminoso nato, idéias que ao longo do tempo tornaram-se cada vez
mais combatidas e observadas como fora das possibilidades e/ou dos padrões
231
de comprovação científica, sendo dessa maneira paulatinamente aproximadas
do conceito de degeneração. Essa concepção, quando surgiu, também gerou
muita polêmica, especialmente no meio psiquiátrico mas apesar disso, teve
grande repercussão no meio científico, tanto assim que Carrara destaca que no
pensamento de Freud autor ao qual acreditamos poder nos referir como o
maior expoente na área psicanalítica encontramos antigas figuras da
degeneração incorporadas ao perfil de suas elaborações sobre as neuroses.
Em âmbito nacional, Heitor Carrilho, especialista em crimes cometidos
por portadores de transtornos mentais e primeiro diretor do Manicômio
Judiciário do Rio de Janeiro, em artigo que discute a responsabilidade penal
das personalidades-psicopatas, publicado em 1951, refere-se a essas
personalidades como sendo as mesmas que anteriormente recebiam a
denominação de degeneradas mentais.
Enfim, com o passar do tempo houve a interpenetração da idéia do
criminoso nato com a idéia da degeneração, o que fez com que a figura do
criminólogo ou do antropólogo criminal se tornasse prescindível aos tribunais.
Diferentemente, a presença médica permaneceu com algumas funções:
a) o médico-legista: responsável por autópsias, exames de corpo delito etc.;
b) o médico perito em psiquiatria: vinculado à responsabilidade penal e aos
exames de averiguação de periculosidade a psiquiatria forense consolidou-
se, preenchendo o papel que vinha sendo reivindicado pelos antropólogos.
Diversos acontecimentos, sobretudo delitos cometidos por portadores de
transtornos psiquiátricos, ou, como eram chamados por degenerados
mentais”, foram justificativas, nas primeiras décadas do século passado, para
construção de manicômios judiciários nos estados do Brasil ou, na sua
232
impossibilidade imediata, para construção de pavilhões destinados
especificamente aos considerados loucos-criminosos nas casas existentes de
assistência pública aos alienados mentais. Essa foi a Lei 1132, de
22/12/1903, amplamente influenciada por Teixeira Brandão e Juliano Moreira, a
qual, como no início explicitamos, instituiu a Seção Lombroso do Hospício
Nacional.
Não obstante, um crime cometido, em 1919, por um taquígrafo do
Senado, o qual matou a mulher de um senador da República figura da alta
sociedade carioca —, associado a outro acontecimento de grande repercussão
à época, que foi uma séria rebelião ocorrida em janeiro de 1920 na Seção
Lombroso do Hospício Nacional, foram os episódios mais proximamente
responsáveis pelo êxito da campanha de construção de um manicômio
judiciário na cidade do Rio de Janeiro, então capital do País. Assim sendo, em
21 de abril de 1920 foi lançada, nos fundos da Casa de Correção, na rua Frei
Caneca, a pedra fundamental do primeiro asilo criminal brasileiro, o qual seria
inaugurado no ano seguinte, no dia 30 de maio hoje Hospital de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho. Essa foi a primeira instituição do
gênero na América Latina, e esteve a princípio sob a direção do médico
psiquiatra Heitor Pereira Carrilho, inaugurando a história de um local que
consegue, conforme mencionamos no início desta seção, recorrendo a
Carrara, “articular duas das realidades mais deprimentes das sociedades
modernas o asilo de alienados e a prisão e, dois dos fantasmas mais
trágicos que nos ‘perseguem’ a todos — o criminoso e o louco” (p. 26).
Posteriormente, na década de 1950, foi inaugurado um outro hospital
denominado Heitor Carrilho, mas desta vez em Niterói, após reforma do antigo
233
Hospital psiquiátrico que funcionava ao lado de uma casa de detenção, na Rua
São João nº 370. Este hospital, que recebeu o nome em homenagem ao
psiquiatra forense e professor da disciplina de psiquiatria da faculdade de
medicina da Universidade Federal Fluminense, teve a finalidade de “separar os
doentes mentais comuns daqueles que haviam cometido atos contra a
sociedade, em virtude do próprio estado mental” (D’ELIA, 2001).
Dada a ampliação do contingente de pacientes, esse Hospital de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Niterói foi construído em outra área da
região com dimensões e condições melhores, e hoje está localizado próximo
ao Centro de Saúde Antônio Carlos da Silva. Todavia, com a fusão dos estados
da Guanabara e do Rio de Janeiro, passando este último a ser Capital, onde
existia um Hospital de Custódia e Psiquiatria com o mesmo nome (Heitor
Carrilho), houve a proposta de mudança do nome do Manicômio de Niterói para
Hospital Henrique Roxo ou seja, não permanecer com o mesmo nome do
Hospital do Rio de Janeiro.
83
Esse fato aconteceu, em 1981,
84
como
homenagem a um professor de psiquiatria da Faculdade de Medicina da
Universidade do Brasil e substituto de Juliano Moreira.
Por fim, além do Hospital Henrique Roxo, contamos com uma terceira
Instituição, o Hospital Psiquiátrico Penal Roberto Medeiros, situado à Estrada
General Emílio Maurell Filho 1.100, Bangu, Rio de Janeiro, criada
83
O Manicômio Judiciário de Niterói — Hospital Heitor Carrilho — foi inaugurado em 1967, tendo como
diretor o Sr. Médico Manoel Martins Tavares.
84
Segundo dissertação de mestrado de autoria de Célia Maria de Abreu Santos, intitulada História da
Divisão de Serviço Social do sistema penal do estado do Rio de Janeiro: de sua criação até 1985.
234
inicialmente para atender aos presos acometidos por transtornos psiquiátricos,
em caráter de emergência.
85
Inaugurado em 30/12/1977, assim como os outros hospitais destinados
aos presos, o Hospital Roberto Medeiros funciona em regime de cumprimento
de pena fechado. Com capacidade de 150 leitos, e apesar de ser destinado a
Internados de ambos os sexos, abriga um reduzido número de mulheres em
comparação com o número de Internados do sexo masculino.
86
Em 2005, pelo decreto 38.073 de 2/8/2005, atendendo à proposta da
Divisão de Assistência e Prevenção em Dependência Química, foi criada a
Unidade de Internação e Tratamento em Dependência Química do Hospital
Roberto Medeiros, transformando-se essa Unidade do Sistema Prisional em
Centro de Tratamento de Dependência Química Roberto Medeiros.
87
e
88
85
Esse Hospital, apesar de inicialmente destinar-se à emergência psiquiátrica dos encarcerados, também
recebia Internados por Medida de Segurança, ou seja, caracterizava-se (e caracteriza-se) como os antigos
Manicômios Judiciários.
86
O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho costuma funcionar com cerca de 200
Internados, sendo 10% do sexo feminino; o Hospital Henrique Roxo tem capacidade para 150 Internados
do sexo masculino, mas funciona com cerca de 130 Internados; o Hospital Roberto Medeiros, com
capacidade para 150 Internados, funciona comumente com cerca de 120 Internados de ambos os sexos,
sendo, em média, 10% do sexo feminino possibilidade das mulheres serem transferidas para o
Hospital Heitor Carrilho e 90% do sexo masculino, porém, aproximadamente, 50% dos Internados do
sexo masculino são dependentes químicos.
Observação: não é possível maior precisão nos dados devido à mobilidade da população
institucionalizada especialmente os dados do Hospital Roberto Medeiros que lida também com
portadores de dependência química.
Além do que dissemos, cabe mencionar que os hospitais do Sistema Penitenciário funcionam em
regime fechado.
Esses dados foram obtidos em conversas com os profissionais nas visitas que realizamos para
conhecimento do local e efetivação das entrevistas, no segundo semestre de 2006.
87
No momento em que estivemos na Coordenação de Serviço Social da Secretaria de Administração
Penitenciária, solicitando autorização para pesquisa, tivemos informação de que a referida Unidade
permanecia como Hospital Psiquiátrico Penal e tinha Internados com Medida de Segurança. Dessa
maneira, ao chegarmos ao local constatamos que há realmente as duas realidades — o tratamento
“anterior” e, especificamente, o tratamento de dependência química —, pois apenas parcela dos antigos
Internados fora transferido para os outros dois hospitais — Heitor Carrilho e Henrique Roxo.
88
Segundo dados extraídos da dissertação de mestrado de Simone F. Messias, Ética e direitos humanos:
desafios do Serviço Social no Manicômio Judiciário do estado do Rio grande do Sul. PUC/RS, 2005
(original inédito), apenas 17(dezessete) estados brasileiros possuem Hospitais de Custódia e tratamento
Psiquiátrico, o eles: Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Pará,
Paraíba, Pernambuco, Páraná, Rio de janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
Sergipe e São Paulo.
235
3.2.2 Considerações acerca do Serviço Social no Sistema Penal do estado
do Rio de Janeiro: a inserção do “pessoal do social”
89
No estado do Rio de Janeiro, a origem do Serviço Social no Sistema
Penitenciário ocorreu na década de 1950, por meio da Associação de Serviços
Sociais, criada em 22 de março de 1951. Essa Associação teve à sua frente o
Sr. Victorio Caneppa, major do Exército que visitou estabelecimentos penais na
Europa e nos Estados Unidos que contavam com o trabalho de Assistentes
Sociais, e que introduziu experiência similar na realidade brasileira. Ao retornar
ao País, com o suporte da Igreja católica, assumindo o cargo estatal de Diretor
da Penitenciária Central, posteriormente denominada Penitenciária Lemos de
Brito, mobilizou um grupo de voluntários para exercer atividades de assistência
social, inicialmente em caráter experimental, para avaliar as necessidades
desse serviço no Sistema Penitenciário. Esse grupo era composto por um
presidente: representante da Igreja católica, monsenhor João Batista da Motta
e Albuquerque, secretário: estudante de Serviço Social, Srª Sílvia Ludolf,
tesoureiro: Assistente Social, Srª Lea Correa Leal.
Como podemos verificar, a relação do Estado com a Igreja católica
ratifica o que discutimos no item dedicado ao percurso histórico dessa
profissão Serviço Social, no início deste capítulo. Acreditamos ter deixado
claro no início do capítulo que, mesmo que coubesse definição prioritariamente
estatal, como em outras regiões da América Latina, as bases para a
organização do Serviço Social no Brasil foram definidas, prioritariamente, por
segmentos femininos da classe dominante, com o respaldo da hierarquia da
Igreja católica. Esses segmentos femininos engrossaram a militância católica,
89
Referência que comumente é feita aos profissionais do Serviço Social no Sistema Prisional.
Experiência vivida pela autora desta tese no primeiro dia em que foi ao encontro da equipe do Hospital
Heitor Carrilho, pois foi abordada por um Internado no tio do referido Hospital que lhe indagou se ela
ia conversar com a “Drª tal do Social?”.
236
desenvolvendo ações para a recuperação da influência da Igreja na sociedade,
entre elas a prestação da assistência social. Esse aspecto é de extremo
significado face às questões que cercavam a emergente classe trabalhadora
urbano-industrial brasileira.
A esse respeito podemos observar o comentário de Goldman:
A intermediação da Igreja na política penitenciária se faz de
forma nítida, ao mesmo tempo em que, de maneira oficiosa, o
Serviço Social se atrela ao controle direto do Estado
representado pelo Diretor (1989, p. 122).
Em fevereiro de 1954 é aprovado o Regime Penitenciário, pelo Decreto
35076, art. 16, que instituía “Assistência Social nos estabelecimentos
penais, aos sentenciados, aos egressos definitivos das prisões, aos liberados
condicionalmente, às famílias dos mesmos e das vítimas”. Com isso cria-se o
Centro de Serviço Social uma seção de Serviço Social vinculada ao Serviço
de Recuperação Social.
O Serviço de Recuperação Social coordenava as atividades
assistenciais e dividia-se da seguinte maneira: Seção de Disciplina, Seção de
Assistência Jurídica e Serviço Social.
O médico Victor Messano, funcionário do quadro efetivo do estado,
chefiava o Serviço de Recuperação Social. O Centro de Serviço Social, uma
das Seções que eram subordinadas ao médico, contava com Assistentes
Sociais contratadas que, por não serem funcionárias do quadro efetivo, não
podiam ocupar a chefia da sua área. A Seção de Serviço Social tinha quatro
Assistentes sociais que desenvolviam atividades, em uma política nitidamente
assistencialista.
Conforme relato de uma delas, a Assistente Social Maria de Lourdes C.
Lima:
237
O Serviço Social na história adquiriu marcos de
assistencialismo, principalmente na época em que os recursos
financeiros eram mais vultuosos [...]. Havia distribuições de
bolsas de alimentos aos familiares, festas de Natal fartas de
presentes aos Internados e aos familiares, promoviam-se
shows na comunidade livre para arrecadar dinheiro, e assim
por diante [...]. Tanto entre a clientela quanto junto aos
funcionários, o Serviço Social adquiriu uma imagem
marcadamente assistencial e, para o leigo, fazer Serviço Social
era a mesma coisa que prestar ajuda material ao Internado (ap.
SANTOS, 1987, p. 44).
Santos (id., ibid.), ao analisar esse comentário, destaca o vínculo que,
no seu entender, ele tem com a política populista de Vargas — ou seja, salienta
uma conexão entre populismo, política social e assistencialismo como meio de
conseguir adesão das massas populares.
Pereira (2004, p. 43-44), discutindo o fato de seções com funções tão
diversificadas como aquelas do Serviço de Recuperação Social serem
subordinadas a um profissional da área médica, levanta argumentos hipotéticos
acerca do Serviço Social: como argumento primeiro, o fato de existir
entendimento à época de subordinação da intervenção do Assistente Social a
outras áreas profissionais, a exemplo do médico, do advogado, do professor
etc. Para favorecer nossa compreensão a autora cita Gordon Hamilton e
demais autores norte-americanos, que entendiam as organizações de
assistência à sociedade divididas em primárias e secundárias.
[...] nas organizações primárias, isto é, nas Agências de
Serviço Social, tem-se considerado melhor a classificação
segundo os tipos de serviço dentro da comunidade: de família,
de menores e de orientação juvenil; nas organizações
secundárias, o papel do Serviço Social, em relação aos
objetivos da Medicina, do Direito, da Educação e outros mais,
deve ser definido segundo um ponto de vista do trabalho em
colaboração (Hamilton, ap. PEREIRA 2004, p. 44).
A prisão, na visão explicitada, não era uma organização primária, não
era uma “agência de Serviço Social”. Se a finalidade primária do Serviço Social
238
era fazer cumprir a sentença judicial de pena de prisão, nessa visão, o Serviço
Social se colocaria “em colaboração”.
Como segundo argumento, Pereira (id., ibid.) levanta a hipótese da
vinculação do Serviço Social ao “Serviço de Recuperação Social” pelo fato da
criminologia estar hegemonicamente vinculada ao pensamento que relaciona o
crime ao desvio de conduta, uma vez que vincula o crime a características
criminógenas individuais.
O termo “tratamento” se vincula, pois, ao diagnóstico das
condutas desviantes “doentias”, em que se percebia a
necessidade de o Estado, através da sua organização
prisional, executar a punição, com enfoque no tratamento do
criminoso, visando devolvê-lo à sociedade como não-criminoso
[...].
As Regras Mínimas de Tratamento dos Reclusos,
90
nas
suas regras 57, 58 e 59, sustentam o dever da instituição
prisional de utilizar toda assistência educacional, moral e
espiritual no tratamento do preso, de sorte que, ao voltar ao
convívio social, ‘esteja apto a obedecer às leis’. Portanto, os
desvios cometidos pelo infrator das leis deveriam ser tratados,
no sentido dos fatores endógenos da personalidade. A figura
do profissional médico chefiando os serviços auxiliares [...]
concretude à concepção de tratamento para a recuperação
social do condenado (ibid., p. 45).
Até então, todo aparato de execução penal não era objeto de política
pública. Havia poucas unidades prisionais no Distrito Federal, que funcionavam
de maneira autônoma sob orientação da direção do estabelecimento prisional.
Especialmente, com o desenvolvimentismo, com suas idéias de
expansão do País para o interior e a conseqüente construção de Brasília, para
onde foi transferida a capital em 1960, surge o novo estado da Guanabara, o
que altera a arquitetura político-administrativa deste local. Com isso,
Secretarias Estaduais são criadas e distribuídas por diferentes áreas, seguindo
90
Após a Declaração dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, é a primeira legislação que, por
meio de acordo celebrado em Genebra no ano de 1955, pelos países integrantes da ONU, fixa regras para
o tratamento de reclusos.
239
o novo critério de administração: Saúde, Educação, Trabalho, Fazenda,
Cultura, Segurança, Justiça etc. Esta última área recebeu a incumbência de
implementar ações relativas à Superintendência do Sistema Penal SUSIPE,
91
órgão administrativo recém-criado, responsável pela gestão dos
estabelecimentos penais do estado da Guanabara.
A criação da Superintendência do Sistema Penal SUSIPE deu
origem, pouco mais tarde, à Divisão Cultural e de Serviços Assistenciais, entre
eles o Serviço Social. Foi um momento de certa importância para a profissão,
uma vez que a direção da Divisão foi exercida, inicialmente, e por diversas
outras vezes, por profissionais da área — Assistentes Sociais.
Em 1962, a estrutura administrativa da SUSIPE foi modificada,
tendo sido criada a Divisão Cultural e os Serviços Assistenciais,
com as seguintes finalidades: “planejamento, elaboração e
supervisão dos programas de trabalho cultural, jurídico,
religioso e de serviço social em todos os estabelecimentos
penais do Estado através de seus serviços. Esta Divisão foi
dirigida por um Assistente Social [...]” (SANTOS, 1987, p. 45).
Se anteriormente mencionamos o significado da criação da Divisão
Cultural e de Serviços Assistenciais face à trajetória do Serviço Social no
campo da execução penal, uma vez que o exercício da direção por um
Assistente Social possibilitou que esse profissional experimentasse posição no
planejamento e na supervisão de programas em nível de macroatuação junto a
todos os estabelecimentos penais, por outro lado não é possível deixarmos de
destacar que
Havia, no entanto, nomeações de outros funcionários, como
guardas de presídios, tidos como “de confiança” e, na ótica dos
diretores, capacitados para fazer “serviço social ou assistência
social”.
O caráter assistencialista da intervenção profissional contribuía
para forjar uma imagem em que requisitos como boa vontade,
91
Decreto-lei nº 3.752 de 14/3/1960, que criou o Estado da Guanabara.
240
bondade, disponibilidade e boa comunicação eram essenciais
para chefiar aquelas seções de assistência social. Ser portador
de uma formação profissional em Serviço Social, portanto, não
era requisito institucional prioritário (PEREIRA, 2004, p. 47).
O governo de João Goulart, após a renúncia do presidente Jânio
Quadros, que sucedera a JK, pode ser observado, como explicitamos no
capítulo anterior, como um governo dirigido ao desenvolvimento nacional por
meio de reformas econômicas e sociais. Porém, com o golpe militar de abril de
1964, dias após a assinatura de decretos de nacionalização de refinarias e
reforma agrária, este governo foi interrompido sem que tivesse implementado
as reformas propostas, e a história brasileira passou a contar com mais uma
interferência dos militares nos rumos políticos do País. Dessa vez, porém, com
uma ditadura militar que golpeou brutalmente os movimentos políticos,
sindicais e socioculturais, obstruindo os canais de participação popular e
suprimindo direitos ou seja, prejudicando seriamente um patrimônio que foi
conquistado à custa de anos de lutas sociais.
Esse contexto também gerou modificações na Superintendência do
Sistema Penal SUSIPE —, sendo sua estrutura administrativa alterada e
extinta a Divisão Cultural e de Serviços Assistenciais. Com isso, o avanço
organizativo que os Assistentes Sociais haviam experimentado declinou. O
Serviço Social voltou a atuar de forma isolada nas unidades, sem coordenação
central, sem programa comum definido por tal coordenação. Além disso, no
sentido administrativo o Serviço Social também teve perda hierárquica, pois foi
rebaixado do status de serviço para a condição de seção Seção de
Assistência Social, vinculada diretamente a cada Direção de Unidade. E
permaneceu desse modo até 1972, quando foi criada a Divisão Assistencial,
dirigida por um advogado de formação presbiteriana, cujo objetivo precípuo era
241
a coordenação da assistência religiosa aos Internados. Nesse período houve
uma significativa ampliação do credenciamento de agentes religiosos
evangélicos nas unidades penais. Não obstante sua competência formal, essa
Divisão nunca coordenou a ação dos Assistentes Sociais” (GOLDMAN, 1989,
p. 124).
Em 1973, retratando o quadro político do País, deu-se a transferência da
Superintendência do Sistema Penal SUSIPE da Secretaria de Justiça
para a Secretaria de Segurança Pública, o que significa que a prisão passa a
ser considerada no âmbito da Segurança e não no âmbito da Justiça. A Lei de
Segurança Nacional e sua ideologia atingem grande parte da vida social dos
brasileiros e todos os setores da política de repressão em que se encontra o
Sistema Penitenciário.
Dessa maneira, nesse período os funcionários foram para a Secretaria
de Segurança Pública sob a direção de oficiais graduados da Polícia Militar. Foi
também nesse período que se deu o encaminhamento dos presos políticos
para as prisões do Sistema Penitenciário. Mais detalhadamente, foi o início
desse processo, pois se tratou do período de chegada dos presos políticos na
Penitenciária Cândido Mendes, localizada na Ilha Grande.
A esse respeito, é importante a observação de Goldman:
Entende-se não ser coincidência, mas sim uma estratégia do
poder, a desarticulação e o retrocesso do Serviço Social. Os
dezessete Assistentes Sociais que atuavam nas sete unidades
prisionais são desarticulados e neutralizados exatamente no
período mais severo da repressão. Justamente nessa fase é
que uma clientela nova passa a integrar o efetivo penitenciário:
os presos políticos (ibid., p. 125).
O Serviço Social passa então a lidar com uma população um tanto
diferente daquela que habitualmente atendia e a enfrentar questões também
242
bastante “singulares”, uma vez que, se tradicionalmente lidava com Internados
originários das camadas mais pobres e de perfil cultural e político empobrecido,
pois esse é o perfil populacional comumente penalizado pela lei, passou a lidar
também com Internados oriundos das camadas médias ou médias-altas da
sociedade e com subjetividades que denotavam participação cultural e política
efetiva na vida nacional. Ademais, Internados que sofriam forte esquema de
suspeição, o que também repercutia nos profissionais na medida em que
naturalmente tinham que se relacionar com os presos. Cabe ainda
mencionarmos que
Para esses presos “especiais” foi desenvolvido sofisticado e
violento esquema específico de repressão. A ação policial
assume uma forma de violência característica. Por exemplo: a
coluna dorsal e os membros inferiores são os alvos prediletos
dos policiais, que assim provocam paralisia, hemiplegia nos
presos, que via de regra, eram condenados a longas penas.
Isto dificultava a vida não só do preso, mas de toda a
administração penitenciária [...].
O Serviço Social na época envidava esforços para
tentar os recursos mínimos indispensáveis para minorar as
dificuldades dessa população. Por outro lado, procurava
mostrar aos policiais a desumanidade da repressão. Os
resultados, porém, foram insignificantes em ambos os sentidos
(id., ibid.).
Em março de 1975 ocorreu a fusão do estado da Guanabara com o
estado do Rio de Janeiro. Isso fez com que a SUSIPE retornasse para a
Secretaria de Justiça com uma nova denominação Departamento do
Sistema Penal do Rio de Janeiro DESIPE —, incorporando as seis unidades
prisionais do antigo estado do Rio: quatro em Niterói, uma em Magé e outra em
Campos. Esse fato representou um acréscimo de aproximadamente 1.000
presos aos cerca de 8.000 já existentes no estado da Guanabara.
Pode-se considerar que o retorno à Secretaria de Justiça foi uma
mudança consoante com o período de “abertura controlada” na sociedade
243
brasileira, ou seja, com o período em que a repressão, apesar de timidamente,
inicia um processo de declínio, mostrando sinais de recuo pelo desgaste do
poder ditatorial face às constantes denúncias de violação dos direitos
humanos. Além disso, foram esse retorno e a decorrente reestruturação da
Secretaria de Justiça que originaram a Divisão de Serviço Social, em 18 de
agosto de 1975, com o objetivo de coordenar tecnicamente a ação dos
profissionais de Serviço Social nas unidades prisionais e ser um órgão de
assessoria técnica à Direção Geral do DESIPE Departamento do Sistema
Penal do Rio de Janeiro — e às Direções das prisões.
O Departamento do Sistema Penal do Rio de Janeiro DESIPE —,
além de sua função precípua de manter presa a pessoa que cometeu delito,
que responda a inquérito criminal ou que tenha pena definida, destacou
como objetivo complementar a “ressocialização” do preso por meio do
“tratamento penitenciário”. Dessa maneira, com base em Goldman (1989, p.
126), podemos afirmar que, nessa Instituição, punir e “ressocializar”
evidenciam-se como uma contradição, presente não na vida dos Internados,
mas também no âmbito de ação dos funcionários, na ambigüidade das suas
percepções, de suas concepções e suas ações no campo prisional.
A criação da Divisão de Serviço Social, em 1975, ocorreu em um
período em que o Serviço Social vinha refletindo e desvendando a sua origem,
a sua dimensão política, as demandas tradicionalmente a ele dirigidas, o que
não significou um Movimento linear e homogêneo, como discutimos na primeira
parte deste capítulo, mas um processo que repercutiu de maneira e intensidade
diversas nas diferentes áreas dessa profissão. Segundo Pereira (2004, p. 60),
em linhas gerais, essa Divisão de Serviço Social ou, melhor, a organização
244
técnica e a mobilização que ela possibilitou no sentido da capacitação
profissional, fez com que Assistentes Sociais que atuavam no Sistema Prisional
participassem de eventos com o apoio da política de recursos humanos da
Secretaria do Estado de Justiça, visando ao aperfeiçoamento e à reciclagem
profissionais. Basicamente, esses eventos restringiam-se aos temas mais
comuns nas discussões profissionais à época, tais como a distinção entre
ações de cunho assistencialista e ações claramente profissionais a
promoção da orientação psicossocial do Internado e da sua família era
considerada uma ação de cunho não- assistencialista —, funções de micro- e
de macro-atuação do Serviço Social, as características do campo de atuação
(prisional) e a possibilidade de implantação da metodologia do Serviço Social
etc. No entanto, mesmo que possamos avaliá-los como bastante limitados,
correspondiam em média às possibilidades daquela época, e foram encontros
que favoreceram que alguns profissionais despertassem mais tarde para a
necessidade de compreensão da relação entre a sociedade contemporânea, a
produção da criminalidade e a punição. Assim, houve profissionais que
investiram na busca desse entendimento, ampliando conhecimentos,
observando com maior profundidade a relação entre o trabalho que
desenvolviam e a sociedade em que o desenvolviam, percebendo com espírito
mais crítico fenômenos como a exclusão social e a penalização das
populações empobrecidas.
A criação da Divisão de Serviço Social marcou importância face à
vinculação, pela primeira vez, da ação desse profissional a um programa geral
do Serviço Social na Instituição. Isso favoreceu certa uniformidade na definição
de atribuições e no exercício de atividades referentes ao Serviço Social e, em
245
conseqüência, rumou na direção de uma melhor coordenação técnica para o
alcance dos objetivos profissionais pretendidos.
Como viemos explanando, a Divisão de Serviço Social abre um período
que evidencia a importância da capacitação profissional para os Assistentes
Sociais que atuam no Sistema Prisional. Assim, em 1976 foi realizado o
primeiro curso sobre Serviço Social no Sistema Penitenciário e, em 1978, a
Divisão de Serviço Social responsabiliza-se pelo treinamento dos agentes
religiosos (Portaria 266 de 17/2/1978). Dada a impossibilidade de continuar
arcando com os custos de cursos para a capacitação dos seus profissionais,
por falta de dotação orçamentária, a Divisão passou a realizar grupos de
estudos e a promover debates e palestras. Com isso, procurou rever a
documentação, elaborar rotinas e orientar projetos do Serviço Social.
A partir de 1981 foram adotadas supervisões dos Assistentes Sociais por
áreas e uma Comissão Especial com o objetivo de rever as ações do Serviço
Social em todas as unidades prisionais da Secretaria de Estado.
Em 1983, foi implementada a supervisão grupal e individual dos
Assistentes Sociais por área. No mesmo ano foi reorganizada a Coordenação
de Estágio e outra vez revista as atribuições do Serviço Social, incluindo-se o
atendimento de plantão aos familiares dos Internados no sistema penitenciário.
Com o surgimento da Lei de Execuções Penais (LEP) em 1984 (lei
7210/1984), o Serviço Social mostrou-se relevante frente à política
penitenciária do estado: “Os profissionais estão capacitados para pesquisar,
elaborar, executar políticas sociais, planos, programas e projetos assistenciais,
terapêuticos, promocionais, educativos-preventivos junto a uma rede de
relações que constituem a vida prisional”.
246
Ademais, as atribuições definidas no Regulamento do Sistema Penal do
estado do Rio de Janeiro RPERJ, em março de 1986 (Cap. II seção II- Da
Assistência, art. 22), rezam que: “objetivando preservar-lhe a condição de ser
humano, tanto quanto prevenir o crime e lhes orientar o retorno à convivência
em sociedade, o DESIPE propiciará aos presos provisórios, aos condenados e
aos internados, assistência: material, à saúde, à defesa legal, educacional, de
Serviço Social e religiosa. Tal assistência estende-se ao egresso e aos filhos
das presas”.
De modo geral, avalia-se que a Divisão de Serviço Social foi
fundamental para o agrupamento dos profissionais em busca de alternativas
conseqüentes que garantam a execução dos objetivos da LEP, bem como
tenham em conta as recomendações do Código de Ética Profissional do
Assistente Social e a Lei de Regulamentação Profissional do Serviço Social.
Assim, destacando ainda a integração à Superintendência de Saúde em
2002, que ampliou significativamente seu quadro profissional, e a promoção,
em 2003, de algumas atividades de capacitação profissional que trouxeram
saldo de qualidade para profissionais e estagiários Fórum de debates sobre
especificidades do trabalho do Assistente Social no Sistema Penitenciário e
Supervisões temáticas com Assistentes Sociais e Estagiários de Serviço Social
—, cabe mencionarmos que atualmente a Divisão de Serviço Social tornou-se
Coordenação da Subsecretaria Adjunta de Tratamento Penitenciário da
Secretaria de Estado de Administração Penitenciária.
92
92
As duas últimas páginas foram elaboradas com dados do Relatório de Gestão do Quadriênio 2003-2006
e outros documentos de circulação institucional cedidos pela Coordenação de Serviço Social da
Subsecretaria Adjunta de Tratamento Penitenciário da Secretaria de Estado de Administração
Penitenciária.
247
3.2.3 Os Princípios do Código de Ética Profissional vigente e a questão da
sua materialização no trabalho cotidiano dos Assistentes Sociais dos
Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de
Janeiro
Como afirmamos nesta tese, no Serviço Social brasileiro um
Projeto Profissional cujo rumo implicou rompimento com o histórico
conservadorismo da profissão. Isto não significa a erradicação do
conservadorismo, sua superação e a do reacionarismo, mas a existência de um
projeto resultante de posicionamentos críticos que emergiram a partir do
Movimento de Reconceituação, desdobraram-se e, paulatinamente, foram
conquistando possibilidade de expressão no meio profissional e fora dele, ou
seja, na direção de setores mais progressistas da sociedade.
Esse Projeto Ético-Político do Serviço Social referenda princípios
democráticos e “progressistas” —, portanto, dissonantes do ideário neoliberal,
o qual não vem na atual conjuntura brasileira se defrontando com expressivas
resistências. São princípios incompatíveis com posicionamentos profissionais
funcionais à ordem estabelecida, submetidos à gica mercantil, mesmo que
sob novos parâmetros de contribuição para reprodução capitalista/neoliberal.
Esse Projeto do Serviço Social, não obstante polêmicas a esse respeito, é
comumente mencionado como hegemônico na profissão
93
e expressa
determinados princípios, valores, concepções teóricas, finalidades, objetivos e
indicações operacionais que podem ser observados em grande parte nas
referências contidas no atual Código Profissional.
94
93
Entendemos que, como em qualquer outra categoria profissional, os profissionais do Serviço Social têm
diferentes projetos (ético-políticos) que objetivam a direção social na profissão. Isso corresponde, em
certa medida, aos diferentes segmentos em luta no espaço societário, aos diferentes projetos ideopolíticos
existentes na sociedade.
94
o inúmeras as polêmicas acerca da hegemonia desse Projeto. Contudo, apesar da ofensiva neoliberal
vir intensificando dificuldades face às possibilidades de seu encaminhamento/efetivação, entendemos que
248
Apesar de tratar-se apenas de um dos elementos que compõem o
Projeto Ético-Político do Serviço Social, o Código de Ética Profissional destaca-
se como uma de suas maiores expressões, haja vista caber-lhe relação direta
com o trabalho cotidiano do Assistente Social. Esse aspecto nos fez, após
explicitarmos os motivos de selecionarmos nosso campo de pesquisa, abordá-
lo aqui como tema, priorizando seus Princípios, por meio de entrevistas
realizadas com profissionais dos Hospitais de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro.
Dessa maneira, após tecermos comentário sobre os Princípios do
Código de Ética Profissional vigente, passaremos ao conteúdo das entrevistas
realizadas, observando a materialização de tais Princípios no trabalho cotidiano
desses profissionais ou seja, observando se em seu cotidiano profissional,
os Assistentes Sociais demonstram objetivar tais orientações ou se essas, por
exemplo, significam apenas um conteúdo formalista, uma prescrição descolada
da realidade concreta “ser”, obscurecida pela lógica do “dever ser”, ou ainda
um plano idealista que sustentaria uma ética da intencionalidade, cujo critério
decisivo restringe-se à intenção do ato.
O digo de Ética Profissional do Assistente Social, datado de 1993,
firmou importantes princípios norteadores da prática profissional. Trata-se de
um instrumento que respaldo ao conhecimento, às decisões e às atitudes
profissionais, uma vez que assegura referência ético-políticas (também teórico-
a categoria profissional contou(a) com forças sociais internas e externas para sua
construção/encaminhamento.
Mesmo não podendo ser confundido com direção social majoritária no Serviço Social, o atual
Projeto Ético-político norteia parcela importante de seus profissionais no campo acadêmico (o que é mais
perceptível nas instituições públicas de ensino) e direção sociopolítica às Entidades representativas da
profissão. Todavia, para que se possa discutir essa questão de maneira substancial, consideramos
necessários estudos qualificados que apreciem o trabalho cotidiano do Assistente Social isso poderia
trazer à baila também discussões elucidativas sobre as possibilidades e os limites da relação entre o
campo acadêmico e o de intervenção do Assistente Social.
249
metodológica) e normas para o exercício profissional. Referência e normas que
condensam os valores fundamentais dos compromissos prioritários assumidos
pelo Serviço Social nas últimas décadas. Ou seja, neste instrumento estão
fundamentos teórico-filosóficos, valores e diretrizes que se alinham aos
compromissos democráticos face aos direitos humanos e sociais e são
consoantes com os avanços possibilitados pela Constituição brasileira de 1988
e com a idéia de que os valores emergem da vida social, mais especificamente
da práxis, na sua forma privilegiada o trabalho. Portanto, uma perspectiva
ética no campo profissional que transcende posicionamentos corporativos, uma
perspectiva de ética profissional que transcende o limite definido apenas pelos
interesses da categoria profissional. Todavia, nisso temos orientações que
colidem com aquelas que vêm sendo propagadas e efetivadas pela ordem
econômica capitalista/neoliberal. Esse fato realça importância de apreciarmos a
viabilidade de materialização de tais Princípios no cotidiano profissional,
especialmente se ainda considerarmos a tensão, hoje bastante acirrada, que
se estabelece entre as condições objetivas que incidem sobre o trabalho dos
profissionais do Serviço Social e o compromisso destes com a qualidade dos
serviços prestados à população.
Diferentemente da maior parte do percurso histórico da profissão, o
Serviço Social brasileiro hoje tem como orientação para a ação profissional
Princípios-valores não-convenientes aos interesses do capital, mas sim a
qualidade dos serviços profissionais desempenhados e prestados em
correspondência às necessidades da população. Desse modo, o avanço
teórico e político-organizativo do Serviço Social torna evidente que em si essas
250
orientações não asseguram o curso definido pela categoria profissional,
tampouco toma tais orientações numa perspectiva descontextualizada.
Diante do exposto, ressalte-se também que, com base em Iamamoto
(1998b), o Assistente Social é um trabalhador assalariado que, nos limites das
instituições empregadoras, tem relativa autonomia na execução do seu
trabalho, o qual se situa, prioritariamente, no exercício de funções de controle
social e difusão de ideologias oficiais junto às classes trabalhadoras. Esse
sentido, contudo, pode ser redirecionado, voltando-se para a efetivação de
direitos sociais, para a construção da cultura do público, para o exercício
democrático, haja vista o caráter contraditório das relações sociais na
sociedade capitalista, evidência do caráter político do trabalho desse
profissional. Com base ainda em Iamamoto, podemos também concluir que a
dimensão ético-política pode minorar a alienação do trabalho assalariado, para
quem o realiza, permitindo que um profissional como o Assistente Social, por
exemplo, possa se afirmar como sujeito que luta por atribuir direção social
(emancipadora) ao seu trabalho (ibid., p. 14).
Os Princípios que aqui traremos resultam da depuração das conquistas
asseguradas no digo de 1986, e expressam valores que permeiam todo o
Código vigente, um conjunto de valores que perpassa tudo o que foi exposto
nesse documento. o onze Princípios que se articulam e se embasam na
ontologia do Ser Social que tem no trabalho seu fundamento ou, nos termos de
Lukács (1978), para quem o trabalho é uma base dinâmico-estruturante, como
explicitamos no Capítulo 1. Os Princípios Fundamentais estão no atual Código
Profissional, cujo valor central é a liberdade, compreendida como liberdade do
indivíduo social — diferentemente das interpretações que a situam nos limites e
251
nas possibilidades definidos pelo âmbito do “individual absoluto/isolado” ou,
melhor dizendo, do individualismo, que, como sabemos, tem uma concepção
abstrata de indivíduo, uma vez que o situa isolado, independentemente das
relações sociais.
95
No Código a liberdade é compreendida como uma
prerrogativa do indivíduo que pressupõe a sociedade e que tem a ver com a
discussão da justiça social e da exigência democrática. O Código não se limita
à perspectiva de liberdade formal, não sendo uma proposição meramente
enquadrada nos parâmetros da gica liberal, ou que se reduza à socialização
da política, mas que considera também a socialização econômica, ou seja, a
riqueza socialmente produzida.
96
Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das
demandas políticas a ela inerentes autonomia, emancipação e plena
expansão dos indivíduos sociais . Este é o Princípio que abre o Código de
Ética Profissional do Assistente Social e que foi aqui comentado, cabendo
destacar, todavia, quão complexa torna-se tal orientação tendo em vista as
condições objetivas de trabalho para o assalariado, como o Assistente Social,
que lida com política social no quadro atual de recrudescimento do capitalismo,
com conseqüente estímulo à competitividade, ao individualismo, à desproteção
social, ao “privatismo” etc.
Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do
autoritarismo. Recorrendo à História recente, podemos dizer que o Brasil,
tendo passado por duas décadas de ditadura militar, sofre seqüelas de
evidente autoritarismo e discriminação em sua “mentalidade coletiva”, em sua
95
Negar o mito do indivíduo absoluto” não significa negar a existência do singular ou do individual,
porém captar este em relação social, conforme abordamos no Capítulo 2.
96
o obstante grande polêmica em torno do tema ética e economia (política), objetivamos contribuir
para esclarecer essa relação, por meio das considerações desenvolvidas no Capítulo 2.
252
cultura política e no funcionamento do Estado. Isso traz sérias repercussões
em diversas esferas da vida social: no plano doméstico, no plano institucional
etc. enfim, em áreas que podem exigir intervenção profissional em defesa
dos direitos humanos, um posicionamento que, recusando o arbítrio, deve se
colocar criticamente em prol do humanismo. Isso inclui posicionamento
contrário às formas de degradação das condições de vida dado o acirramento
da “questão social”, com suas múltiplas expressões.
97
Ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa
primordial de toda a sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis,
políticos e sociais das classes trabalhadoras. Os Assistentes Sociais são
trabalhadores historicamente envolvidos com as políticas sociais, uma vez que
surgem em função das expressões da “questão social”. Dessa maneira, lidam
com programas, projetos e atividades institucionais no âmbito dos direitos
sociais, podendo firmar valores e projetos profissionais consoantes com
projetos societários que sirvam para ultrapassar os parâmetros definidos pela
lógica que estabelece contradição entre nero e particular, indivíduo e
sociedade e se alinhe a uma ética que favoreça a superação de tal contradição.
Logicamente, essa ética compreende cidadania direitos/deveres, ou seja,
participação do cidadão na sociedade como possibilidade que supere os
limites definidos pelas relações sociais capitalistas. Todavia, isso não significa
apenas podermos visualizar projetos coletivos de médio ou de longo prazos,
uma vez que é também e, prioritariamente, no cotidiano do exercício
profissional, em meio às tensões e aos conflitos decorrentes da árdua tarefa de
busca de universalização de direitos frente à ininterrupta exacerbação da lógica
97
Quanto à temática ética e direitos humanos é interessante consultar a obra de Marlise Vinagre e Tania
M.ª D. Pereira. Ética e direitos humanos: curso de capacitação ética para agentes multiplicadores. 2ª ed.
Conselho Federal de Serviço Social- CFSS, 2008.
253
do lucro, que cabe ao Assistente Social competência teórica, política e ética
para pôr em prática esse e os demais Princípios do Código.
98
Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização
da participação política e da riqueza socialmente produzida.
Habitualmente a referência que observamos acerca da democracia é
restrita ao âmbito da política, uma vez que é a possibilidade considerada viável
no âmbito da sociedade regida pela lógica liberal burguesa. Contudo, o
Princípio em questão indica concepção de maior abrangência, pois, além da
socialização da participação política, destaca a socialização da riqueza
socialmente produzida, uma vez que torna clara a participação dos
trabalhadores na produção da riqueza do País e a sua necessária participação
no usufruto dessa riqueza — que toca na concepção de liberdade, justiça
social, ética, economia, política, conforme dissemos anteriormente.
Na sua intervenção cotidiana, na medida em que o Assistente Social não
sujeita, tampouco tutela aquele com quem esta trabalhando o usuário dos
serviços institucionais —, ao contrário, procura fortalecer a participação desse
usuário na estrutura decisória institucional, levá-lo a perceber-se como sujeito
de direitos, uma vez que esmerar-se profissionalmente para socializar
informações acerca de direitos sociais e serviços favorecerá a efetivação desse
Princípio.
Posicionamento em favor da eqüidade e justiça social, que
assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos
programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática. Este
Princípio não se refere à idéia abstrata de justiça ou de igualdade assentadas
98
Cabe observarmos que a sociedade capitalista consegue, em certa medida, garantir direitos políticos e
civis, porém é tênue sua possibilidade de garantia e ampliação de direitos sociais. A esse respeito, é
importante considerarmos o comentário do Princípio seguinte.
254
na legalidade, como comumente são colocadas. Refere-se ao compromisso
com a universalidade de direitos, o que obviamente, tem a ver com o que
expusemos anteriormente sobre produção e usufruto da riqueza socialmente
produzida, bem como com o reconhecimento das e o respeito às diferenças..
É imprescindível frisarmos que, ao trabalhar por universalidade de
direitos, o profissional do Serviço Social estará, além da ineliminável
intervenção qualificada na esfera do atendimento institucional, engajado de
modo competente (considerada a participação do usuário) na luta em prol de
políticas públicas que visem a possibilitar o efetivo acesso da população aos
serviços sociais e, portanto, à democratização dos mesmos, o que apontaria na
direção da eqüidade e da justiça social.
Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito,
incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos
socialmente discriminados e à discussão das diferenças. Conforme explica
Agnes Heller (1989, p. 43), o preconceito é categoria presente na nossa
experiência cotidiana e está alinhado com os argumentos destituídos de
conteúdo lógico, racional. Os preconceitos são concepções sem sustentação
científica, fixadas na experiência, concepções ultrageneralizadoras, repetitivas
e simplificadoras. São idéias e correspondentes comportamentos que trazem
prejuízo tanto para quem pode sofrer com as atitudes e ações dos
preconceituosos como para os próprios preconceituosos, haja vista as
restrições impostas por aspectos como a ignorância, o irracionalismo, entre
outros, característicos desse tipo de comportamento. Esses aspectos, além de
poderem penalizar o outro, dificultam significativamente a vida do próprio
sujeito portador, uma vez que obscurecem a sua capacidade de observação
255
crítica da realidade, de discernimento, de superação do senso comum, de
escolha.
Se pretendermos considerar o direito à liberdade e o fortalecimento da
democracia, temos que ter clara compreensão do necessário respeito à
diversidade.
Dessa maneira, é tarefa do Assistente Social estimular à participação os
grupos socialmente discriminados e esclarecer e debater as diferenças.
Garantia do pluralismo, através do respeito às correntes
profissionais democráticas existentes e suas expressões teóricas, e
compromisso com o constante aprimoramento intelectual. É evidente
neste Princípio a especificação de respeito às correntes profissionais desde
que democráticas. Além disso, pluralismo expressão destacada no presente
Princípio — não significa “ecletismo”, ou seja, a aceitação da junção sem
critério de diferentes vertentes teórico-filosóficas, ou “neutralidade”: a idéia de
equivalência de expressões teórico-filosóficas diversas. Significa a existência
de diferenças teórico-filosóficas e operacionais que precisam ser respeitadas,
sem que isso seja confundido com ausência de explicitação de posição teórico-
filosófica assumida e/ou falta de debate, uma vez que o posicionamento claro,
a honestidade teórica e o debate são, como sabemos, ingredientes
indispensáveis para o aprimoramento intelectual. Significa que, apesar de optar
por determinada direção social, o entendimento da diversidade como
horizonte dos profissionais, há a captação de direção social como possibilidade
(de escolha), como uma direção que deverá ser opção da categoria por
considerar que esta decifra melhor a realidade e, por conseguinte, favorece ao
256
profissional responder às demandas que se colocam no cotidiano do seu
trabalho institucional.
Frisamos também que o Assistente Social realiza trabalho onde
conhecimentos acumulados e atributos profissionais são recursos
fundamentais para o êxito ou não da atividade. Ou seja, ao longo de sua
formação, a capacidade adquirida de expressão oral e escrita, de estabelecer
relacionamento profissional com indivíduos e grupos no espaço institucional de
modo democrático para realização de programas sociais, a possibilidade de
leitura crítica da realidade com ações correspondentes — tecnicamente e ético-
políticamente qualificadas —, ou seja, sua competência profissional, expressa
de modo singular e que depende de constante aprimoramento, é fator
indispensável para o bom andamento e o bom êxito do trabalho e, portanto, um
compromisso prioritário para o desempenho profissional individual e coletivo.
Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de
construção de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de
classe, etnia e gênero. Estruturalmente, a dinâmica da sociedade burguesa é
marcada por conflitos determinados pelos antagonismos das classes
fundamentais, porém outras formas de conflito que a esses se articulam, os
quais se mostram nas relações interpessoais e intergrupais que permeiam a
sociedade e que também mereceram atenção do Serviço Social, a exemplo
das questões de gênero e etnia. Dessa maneira, o atual Código vincula-se,
como o anterior, aos interesses da classe trabalhadora, preconiza contribuição
no sentido profissional para a construção de uma nova ordem societária, mas
considera, além da essencial dominação ou exploração de classe, outras
formas de exploração ou dominação, como as de gênero e etnia.
257
Articulação com os movimentos de outras categorias profissionais
que partilhem dos princípios deste Código e com a luta geral dos
trabalhadores. Logicamente, finalidades colocadas neste Código, tais como a
luta em prol das políticas sociais, da democratização dos serviços sociais, não
são de interesse apenas de um segmento profissional, mas uma questão que
se relaciona com os trabalhadores, com todos aqueles que tenham dimensão
crítica do significado da relação entre o indivíduo e a sociedade. Além disso, os
Assistentes Sociais devem ter clareza de que a articulação com profissionais
que compartilhem dos Princípios deste Código possibilita somar forças em prol
de projetos interventivos substanciais alinhados com as reais necessidades
da sociedade —, que mostrem compromisso ético-político consoante com os
rumos da emancipação dos indivíduos.
Compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população
e com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência
profissional. Como explicitamos no início desta seção do presente trabalho,
diferentemente de quase todo percurso histórico do Serviço Social, hoje essa
profissão tem como norteadores de sua ação Princípios que não privilegiam
valores compatíveis com os interesses do capital, mas sim com a boa
qualidade dos serviços profissionais desempenhados e prestados à população,
ou seja, em consonância com suas reais necessidades. Isso decorreu das
conquistas asseguradas no Código anterior e que expressam valores que
permeiam todo o Código vigente. Ademais, a perspectiva de aprimoramento
intelectual e a competência profissional são evidenciadas como compromisso
profissional e distintas da idéia de mero treinamento técnico para intervenção
em um determinado campo com a máxima eficácia operativa, haja vista trazer
258
como requisito o intelectual que, qualificado para operar em uma área
determinada, compreende o sentido social da operação e a significância da
área no conjunto da problemática social (NETTO, 1996,125-6).
Exercício do Serviço Social sem ser discriminado, nem discriminar,
por questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião,
nacionalidade, opção sexual, idade e condição física. Este Princípio
assegura direito ao próprio profissional e dever desse profissional no que se
refere aos usuários dos serviços e aos demais profissionais.
A valorização da aceitação, o reconhecimento da diferença e o respeito
a ela, sobressaem neste Princípio que finda esta parte da explanação, uma vez
que se trata do 11º, ou seja, o último Princípio do Código. Cabe, assim,
frisarmos que esse Princípio encerra um fundamento essencial, pois enfatiza o
respeito ao outro, exatamente com àquele que nos permite ser quem somos,
pois é através do outro, “do diferente”, que se tornam possíveis a construção e
o alcance da nossa identidade.
Assim sendo, dando seqüência ao que nos cabe desenvolver no
Capítulo 3, após considerações sobre a origem dos referidos Hospitais de
Custódia, sobre o Serviço Social no Sistema Prisional e sobre os Princípios do
Código de Ética dos Assistentes Sociais, para a discussão seguinte acerca da
materialização desses Princípios no cotidiano do exercício profissional,
partiremos, fundamentalmente, da percepção dos Assistentes Sociais
entrevistados. Todavia, consideramos necessário destacar que, se para o
desenvolvimento do tema a materialização dos Princípios Fundamentais do
Código de Ética vigente no cotidiano do exercício profissional —, partiremos,
fundamentalmente — por meio das entrevistas realizadas —, da percepção dos
259
Assistentes Sociais dos Hospitais de Custódia, isso não significa a exclusão de
outros recursos também relevantes para o alcance deste objetivo, tais como a
pesquisa bibliografia, a observação realizada nos diversos momentos em que
visitamos os Hospitais (o que incluiu diálogo informal com diferente
trabalhadores destes Hospitais) e o saber que acumulamos em decorrência de
anos de trabalho como Assistente Social e professora de Serviço Social.
Dessa maneira, concluídos os argumentos preliminares, e iniciando as
considerações acerca da materialização dos Princípios do Código no cotidiano
do exercício profissional dos Assistentes Sociais dos Hospitais de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro, destacamos que, como
explicitado no item 3.2, após contato inicial com a chefia da Coordenação de
Serviço Social da Subsecretaria Adjunta de Tratamento Penitenciário da
Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, para expor os objetivos
desta pesquisa e solicitar autorização para sua realização e reunião com
Assistentes Sociais dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, tanto
na Coordenação de Serviço Social quanto nos próprios locais de trabalho com
a mesma finalidade, obtivemos o entendimento e a concordância de
praticamente todos os profissionais da equipe (intraprofissional) quanto à
realização da presente investigação, e retornamos várias vezes aos Hospitais
para melhor conhecê-los, conhecer a direção institucional, suas equipes e
viabilizar a realização das entrevistas.
Os três Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico
99
contam com
nove Assistentes Sociais, respectivamente: quatro no Hospital Heitor Carrilho,
três no Hospital Henrique Roxo e dois no Hospital Roberto Medeiros. Desses
99
Todos os dados os quais nos referimos foram coletados em períodos de observação nas Instituições e
entrevistas com os profissionais no segundo semestre de 2006.
260
profissionais, apenas um não quis participar da pesquisa. No Hospital Henrique
Roxo, um dos profissionais estava sendo substituído por licença médica, e o
profissional substituto, vindo de outro campo do sistema prisional, foi
entrevistado. No Hospital Roberto Medeiros um Assistente Social não foi
entrevistado por encontrar-se em licença médica, sem substituto. Além disso,
cabe mencionar que dois Assistentes Sociais que haviam saído pouco antes
dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico e encontravam-se lotados
em outras áreas do sistema prisional ofereceram-se para participar da pesquisa
e foram entrevistados. Dessa maneira, não obstante a falta de dois
profissionais, um por licença médica e outro por negar-se à entrevista, o
número de entrevistados representará o universo dos profissionais da área
investigada. Ou seja, realizamos entrevistas com nove Assistentes Sociais dos
Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro,
no decorrer do segundo semestre de 2006. E, com exceção de dois dos
entrevistados que optaram por serem entrevistados em domicílio, as outras
entrevistas foram realizadas nas próprias dependências dos Hospitais.
As entrevistas obedeceram a marcação de local, data e horário
previamente definidos com os Assistentes Sociais, foram baseadas em roteiro
preestabelecido e gravadas em fitas cassete, possibilitando ao entrevistado
não apenas responder às perguntas, mas tecer comentários, se isto lhe
conviesse, o que visava a facilitar nosso entendimento acerca do seu
posicionamento. Além disso, desde o primeiro contato com os profissionais
deixamos claros nosso objetivo e nosso compromisso quanto ao sigilo
obtivemos autorização escrita dos profissionais entrevistados para utilização
dos dados. Assim, seriam utilizados apenas dados gerais do interesse da
261
temática da tese, ou seja, do trabalho científico realizado, salvaguardando
aspectos relativos à identificação pessoal. Daí, a exposição de tabelas, gráficos
ou trechos das transcrições das entrevistas é feita de um modo que não
possibilite identificação, especialmente se considerarmos o reduzido número de
profissionais entrevistados.
100
Assim sendo, a partir desse momento, para considerarmos os dados
empíricos coletados através das entrevistas, iniciaremos pelos obtidos por meio
das perguntas referentes ao perfil do profissional e a sua formação (trata-se do
primeiro bloco de perguntas), para após discutirmos as questões relativas ao
exercício profissional e ao Serviço Social (em um segundo bloco de perguntas).
Isso porque, dessa maneira, reproduzimos a lógica que presidiu o roteiro de
perguntas aos entrevistados.
101
Como já foi mencionado, entrevistamos nove Assistentes Sociais dos
Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, dos quais dois haviam sido
recém-transferidos do local e lotados em outras unidades do Sistema
Penitenciário. Desses profissionais sobressai a faixa etária entre 45 e 50 anos,
todos do sexo feminino; todos professam uma religião, com pais com nível de
instrução concentrado no grau completo a maioria não ultrapassa o
grau completo.
100
Houve prejuízo de dados — exposição e/ou análise — face à possibilidade de quebra de sigilo.
101
Ao final deste item constam tabelas e gráficos referentes aos dados dos entrevistados aqui
considerados — Assistentes Sociais dos três Hospitais de Custódia e tratamento Psiquiátrico do Estado do
Rio de Janeiro —, respectivamente: Tabela 1- Idade, sexo, estado civil; Tabela 2 Religião, cor, área
residencial; Tabela 3 Formação Profissional; Tabela 4 Identificação da corrente teórico-metodológica
hegemônica na Instituição que se graduou, identificação do Código de Ética vigente quando concluiu o
curso de Serviço Social; Tabela 5 Verificação da realização de atividade laborativa durante o curso de
Serviço Social; Tabela 6 tipo de titulação além da graduação na Faculdade de Serviço Social; Gráfico 1
Grau de instrução de familiares próximos; Gráfico 2 Última titulação, exceto graduação no Serviço
Social. Para assegurar o sigilo dos entrevistados, os dados expostos em tabelas de várias colunas paralelas
devem ser lidos verticalmente, pois as colunas são independentes, ou seja, não há necessariamente relação
entre os dados de cada coluna se lidas horizontalmente, exceto tabelas nº 5 e nº 8. Além disso, destacamos
que a ordem alfabética que orienta a apresentação destes dados não corresponde à ordem numérica
atribuída às respostas dos entrevistados.
262
A religião é um dos fatores que determinam o modo de as pessoas
conceberem a vida, a sociedade e de se posicionarem profissionalmente;
portanto, um elemento que pode mesclar de modo significativo a percepção
ético-política dos entrevistados. Em linhas gerais, a hipótese é de que com o
idealismo religioso ou, melhor, com o quadro sociocultural permeado pela
religião os entrevistados tendam para vertentes teórico-filosóficas que
fundamentem concepções ético-políticas idealistas desconectadas da
realidade concreta —, o que poderá ser observado no final do trabalho.
Esse item porém, não receberá atenção especial aqui, por tratar-se de um
tema complexo que merece aprofundamento, ou seja, uma pesquisa
específica.
102
O grau de instrução dos pais parece situar os entrevistados em
acordo com as famílias das camadas médias e/ou pobres da população urbana
brasileira, uma vez que, décadas atrás, a formação universitária não era
compatível com pais dessas camadas populacionais mesmo nessas áreas do
País (Gráfico 1). Além disso, é necessário considerar as dificuldades e/ou
menores possibilidades que devem ter encontrado aqueles que pretenderam
realizar sua graduação na Faculdade de Serviço Social com qualidade. Ou
seja, aqueles que buscaram no vestibular acesso às universidades mais
qualificadas para o ensino e que pretenderam acesso à literatura específica ou
complementar, bem como mais alternativas para aprimoramento técnico e
cultural. Cabe considerarmos que o pertencimento a uma família cujo nível de
instrução é baixo tende a ser um empecilho tanto para formação superior em
102
A esse respeito, pode-se consultar o texto de Pedro Simões intitulado: Religião na prática do Serviço
Social. In: Praia Vermelha, Estudos de política social. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-
Graduação da Escola de Serviço Social – PPGESS. Rio de Janeiro, 2004, nº 10, p. 126-148.
263
termos materiais e/ou financeiros quanto no que se refere às possibilidades
subjetivas e/ou intelectuais.
Os demais itens selecionados para traçar o perfil dos Assistentes Sociais
entrevistados mostram-se de modo diverso, conforme se poderá ver nas
tabelas e gráficos que se seguem — ou seja, não há homogeneidade ou
características marcantes que justifiquem um destaque por bloco.
Os profissionais entrevistados se formaram em instituições públicas e
privadas em períodos diversos que vão de meados da década de 1960 ao final
da década de 1990 (Tabela 3), e não podemos, por exemplo, relacionar ao
profissional que concluiu o curso mais tempo ou que se formou em
instituição privada a não-identificação do Código vigente à época da conclusão
do seu curso ou a demonstração de concepção ético-política (mais)
conservadora, o que endossa a tese de fragilidade das análises assentadas em
argumentações monocausais.
Ademais, sabemos que apenas os profissionais formados após meados
dos anos de 1980 tiveram a chance de contar com as alternativas abertas pela
Proposta de Reforma Curricular realizada pela ABESS, atual ABEPSS, iniciada
em 1982. A influência dessa proposta pode ser considerada a partir desse
período, e de modo ainda bastante incipiente nas faculdades públicas do Rio
de Janeiro e Belo Horizonte e na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Sendo assim, esse aspecto só pode ter influência sobre dois ou três dos
profissionais entrevistados.
Quase metade dos profissionais conseguiu identificar o Código de Ética
Profissional vigente quando concluiu o curso, o que não significa
necessariamente compreensão histórica deste documento. Cabe observar,
264
inclusive, que apenas três dos entrevistados se graduaram na década de 1990,
ou seja, se graduaram em período em que a consolidação da renovação do
currículo de Serviço Social havia se dado. Considere-se aqui o avanço obtido
com os cursos de pós-graduação e as publicações daí decorrentes, e também
a importância do vulto que tomaram as discussões em torno da ética na
sociedade brasileira e na profissão do Assistente Social.
A maioria dos entrevistados identificou a corrente teórico-metodológica
hegemônica na instituição onde se graduou, o que representa captar diferenças
teóricas e político-ideológicas nos rumos da formação profissional (Tabela 4).
Demonstração de avanço quanto ao entendimento constante no Serviço Social
de homogeneidade teórica e político-ideológica na profissão, apesar de não
observarmos, paralelamente, nenhuma discussão acerca do pluralismo no
Serviço Social, o que, como mencionamos é um dos Princípios do Código de
Ética Profissional. Além disso, um dos profissionais, apesar de afirmar saber a
corrente hegemônica da instituição onde concluíra o seu curso de graduação,
não a indicou. Disse que a instituição de ensino mostrara aos alunos todas as
correntes teóricas, mas o entrevistado não as nomeou. Disse apenas que
tomou conhecimento e optou por uma delas ou seja, ele optou pela
fenomenologia —, parecendo-nos querer afirmar, com isso, que a posição da
instituição deva ser possibilitar o conhecimento, sem direção social no seu
projeto de ensino do Serviço Social, como se houvesse projeto pedagógico
neutro. Consideramos haver semelhança com a discussão acerca do
pluralismo no Código, uma vez que o profissional traz a idéia da possibilidade
de caracterizar as vertentes que orientam o exercício profissional como
tendências com suposta paridade na história do Serviço Social. Isso tende à
265
compreensão equivocada de que a definição de um campo de estudo ou de
orientação teórico-filosófico se dá por mera questão de gosto.
Seis dos profissionais entrevistados não se limitaram ao curso de
graduação em Serviço Social; dois concluíram outra faculdade relacionada à
área jurídica; e três realizaram especialização lato sensu, mas apenas um
deles realizou pós-graduação stricto sensu, buscando especialização pela
segunda vez dentro da própria área de sua graduação, tendo concluído o
mestrado em Serviço Social em instituição particular, e na ocasião da
entrevista cursava doutorado em uma instituição pública (Gráfico 2).
Observando-se adiante a Tabela 5, podemos concluir que os
entrevistados não exerciam atividade profissional no Sistema Penitenciário à
época da realização da graduação em Serviço Social. Isso evidencia que não
realizavam o curso visando a processo de ascensão funcional, por concurso
interno por exemplo. Recurso que, por vezes, foi utilizado na esfera estatal e
que pode gerar implicações desfavoráveis para o exercício profissional,
103
a
exemplo das situações de aguardo de concurso em desvio de função, as quais,
comumente, suscitam ambigüidade de posicionamento nos profissionais e
dificuldades na fiscalização do exercício profissional pelas Entidades da
categoria competentes, especificamente os Conselhos Profissionais Regionais
e Federal .
103
Nossa referência não é ao mérito legal da questão.
266
Tabela 3 Formação profissional dos Assistentes Sociais dos Hospitais de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro
Obs: Não há relação entre os dados expostos em cada coluna, se lidas
horizontalmente.
Ordem
Instituição
Privada ou
Pública
Horário do
curso
Ano de
conclusão
A
Privada Diurno 1967
B
Pública Diurno 1981
C
Privada Diurno 1981
D
Pública Diurno 1983
E
Privada Diurno 1984
F
Pública Diurno 1985
G
Privada Noturno 1990
H
Privada Noturno 1992
I
Pública Noturno 1998
Fonte- dados da pesquisa realizada, no 2º semestre de 2006, para confecção desta
tese de doutorado por Valeria L. Forti.
Tabela 4 Identificação da corrente teórico-metodológica hegemônica nas
instituições em que os Assistentes Sociais dos Hospitais de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro concluíram a graduação em Serviço
Social e identificação do Código de Ética Profissional do Assistente Social vigente
no período da conclusão do curso.
Obs: Não há relação entre os dados expostos em cada coluna, se lidas
horizontalmente.
Ordem
Ident.corrente
teórica/metod.
Identificação do Cód.
Ética
A Funcionalismo Não identificou
B Funcionalismo Não identificou
C Funcionalismo Não identificou
D Funcionalismo identificou
E Conservadora
104
Não identificou
F Marxismo Não Identificou
G Marxismo Identificou
H Não revelou
hegem.
105
Identificou
I Não indicou Identificou
104
Expressão do entrevistado.
105
O profissional correspondente à letra H da tabela, apesar de afirmar identificar a corrente teórico-
metodológica hegemônica pela qual concluiu seu curso, não a citou.
267
Fonte- dados da pesquisa realizada por Valeria L. Forti, no 2º semestre de 2006,
para confecção desta tese de doutorado.
Tabela 5 – Assistentes Sociais dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico
do Estado do Rio de Janeiro
Trabalhavam no período da realização do curso de graduação em Serviço Social
Obs: Há relação entre os dados expostos em cada coluna, se lidas horizontalmente.
Ordem
Resposta Tipo de trabalho
A Sim Bancária
B Sim Bolsa-trabalho na Universidade
C Sim Professora primária
D Sim Técnica de enfermagem
E Não
F Não
G Não
H Não
I Não
Fonte- dados da pesquisa realizada por Valeria L. Forti, no 2º semestre de 2006,
para confecção desta tese de doutorado.
268
Gráficos 1 e 2 referentes aos Assistentes Sociais dos Hospitais de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro.
0
4
0
6
2
0
3
3
2
0
0
1
0
0
3
0
0
3
0 1 2 3 4 5 6
1º incompleto
1º completo
2º completo
3º incompleto
3º completo
pós-graduação
Gráfico 1
- Grau de instrução de familiares próximos
Cônjuge
Mãe
Pai
Cônjuge
0 0 2 1 3 3
Mãe
4 2 3 0 0 0
Pai
0 6 3 0 0 0
1º incompleto 1º completo 2º completo incompleto completo pós-graduação
Fonte- dados da pesquisa realizada por Valeria L. Forti, no 2º semestre de 2006,
para confecção desta tese de doutorado.
Gráfico 2
- Última titulação
3
1
2
3
Especialização Lato Sensu
Mestrado
Faculdade em outra área
Apenas graduação em S.S.
Fonte- dados da pesquisa realizada por Valeria L. Forti, no 2º semestre de 2006,
para confecção desta tese de doutorado.
269
Tabela 6 – Dados referentes aos Assistentes Sociais dos Hospitais de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro.
Tabela 6 Tipo de titulação concluída, além da graduação em Serviço Social
Ordem Tipo da Titulação
A Graduação em Direito
B Graduação em Direito
C Especialização lato sensu em Saúde Pública
D Especialização lato sensu em Política Pública e Governo
E Especialização lato sensu em Terapia Familiar
F Mestrado em Serviço Social
Obs: 1.Quatro dessas titulações foram obtidas em instituições privadas, e
duas delas em instituições públicas. Obs: 2 Além dos cursos concluídos e
ora citados, dois desses profissionais estavam com cursos em andamento.
Um deles cursava doutorado e o outro cursava faculdade de enfermagem.
Fonte- dados da pesquisa realizada por Valeria L. Forti, no 2º semestre de 2006,
para confecção desta tese de doutorado.
Como foi explicitado anteriormente, indagamos aspectos diretamente
vinculados ao exercício profissional e ao Serviço Social em um segundo bloco
de perguntas aos entrevistados. Dessa maneira, a partir daqui discutiremos
estes aspectos, ou seja, abordaremos questões relativas ao exercício
profissional e ao Serviço Social. Por conseguinte, após um breve comentário
dos dados que serão expostos por meio de gráfico e tabelas, a título de
organização, iremos numerar as questões, partindo do número 2.1, ou seja,
uma representação do segundo bloco (nº- 2) e da sua primeira pergunta (nº-
1).
106
106
Ao término desta exposição, constam gráficos e tabelas referentes aos dados dos entrevistados aqui
considerados Assistentes Sociais dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico —,
respectivamente: Gráfico 3 Tempo de trabalho como Assistente Social; Tabela 7 Tempo de trabalho
em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico; Tabela 8 – Participação em entidade da categoria.
270
Como se pode ver no Gráfico 3, apresentado adiante, a maior parte dos
entrevistados encontra-se na faixa de 21 a 25 anos de tempo de trabalho como
Assistente Social. Nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico não
evidente prevalência quanto ao tempo de trabalho dos profissionais, entretanto
certa “tônica” nesse sentido em torno de 1 ou 3 anos, o que torna possível
pensarmos em uma média aproximada de 2 anos de tempo de trabalho na
Instituição (ver Tabela 7).
Por outro lado, apenas um Assistente Social estava participando de
atividades em entidade da categoria profissional, mas três haviam participado,
sendo que apenas um dos entrevistados dois anos antes efetivamente ou
seja, menos de cinco anos antes. Todavia, cabe observar-se que quatro dos
entrevistados tiveram proximidade com entidade da categoria profissional
um número expressivo, que representa quase metade do total, isto é, 44% dos
Assistentes Sociais dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (ver
Tabela 8).
2.1- Quando indagados acerca da razão de terem ido trabalhar no
Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, chamou-nos atenção em
grande parte das respostas dadas pelos profissionais o modo como se deram
suas lotações nessa Instituição. Desse modo, prosseguindo na explanação a
respeito dos dados obtidos com a pesquisa empírica, seguem abaixo as
respostas dos entrevistados a tal indagação.
1- Entrou no Sistema Penitenciário por concurso público, por necessidade de
sobrevivência; sua lotação foi no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico sem qualquer
opção.
271
2- Trabalhava no Sistema Penitenciário muitos anos como Assistente Social e quis
vir para o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico por causa dos comentários que ouvia
sobre a Reforma Psiquiátrica, pois tinha curiosidade sobre esse tipo de trabalho.
3- Não foi opção, fui concursada e colocada aqui. Questão de sobrevivência.
4- Não houve opção, foi concurso. Não pude escolher. Eu fui colocada aqui.
5- trabalhava no Sistema Penal e vim para cá, para o Hospital, substituir a
Assistente Social que se encontra em licença médica.
6- Fiz concurso público para o Sistema Prisional, sendo inicialmente lotada em
determinado Programa e após fui transferida para uma unidade prisional comum, que o
Programa deixou de contar com Assistente Social. Porém, quando cheguei à unidade prisional
encontrei um ofício determinando que me dirigisse para este Hospital, sem qualquer
justificativa, sem qualquer treinamento.
7- Fui lotada, não escolhi trabalhar no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico.
8- Fiz o concurso, pois havia trabalhado no Sistema Penitenciário e eu pretendia
retornar. Logo que cheguei fui lotada no Hospital por necessidade de profissional nesse local.
Até me assustei, pois tinha tido experiência muito ruim com psiquiatria, em um tempo bastante
sombrio “do choque elétrico”. Enfim, não tive escolha.
9- Havia encaminhado currículo para a Coordenação de Serviço Social e fui convidada
para trabalhar no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico como prestadora de serviço.
272
Gráfico 3- Dados referentes aos Assistentes Sociais dos Hospitais de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro.
3
1
0
4
1
5 a 10 anos 11 a 15 anos 16 a 20 anos 21 a 25 anos 26 ou mais
Tempo de trabalho
Gráfico 3 - Tempo de trabalho como Assistente Social
nº de profissionais por tempo de trabalho
Fonte- dados da pesquisa realizada por Valeria L. Forti, no 2º semestre de 2006,
para confecção desta tese de doutorado.
273
Tabela 7- Dados referentes aos Assistentes Sociais dos Hospitais de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro.
Tabela 7 Tempo de trabalho dos Assistentes Sociais nos Hospitais de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro
107
Ordem
Tempo
A 1 ano
B 6 anos
C 5 anos
D 3 anos
E Menos do que 1 ano
F Menos do que 1 ano
G 6 anos
H 3 anos
I 1 ano
Fonte- dados da pesquisa realizada por Valeria L. Forti, no 2º semestre de 2006,
para confecção desta tese de doutorado.
Tabela 8- Dados referentes aos Assistentes Sociais dos Hospitais de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro.
Tabela 8 Participa(ou) de alguma entidade da categoria profissional dos
Assistentes Sociais
Obs: Há relação entre os dados expostos nas duas colunas, se lidas
horizontalmente.
Ordem
Resposta Tempo
A Sim Participa há 1 ano
B Sim Participou há 10 anos
C Sim Participou há 2 anos
D Sim Participou há 5 anos
E Não
F Não
G Não
H Não
I Não
Fonte- dados da pesquisa realizada por Valeria L. Forti, no 2º semestre de 2006,
para confecção desta tese de doutorado.
107
É importante destacar que: a) mesmo com pouco tempo de trabalho no Hospital de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico profissionais que m muitos anos de experiência (de trabalho) em outras
áreas do Sistema Penal; b) muitos dos profissionais trabalharam aproximadamente seis anos nos Hospitais
de Custódia como estagiários, sendo efetivados apenas após esse período e mediante exaustiva luta
(informação obtida em entrevista com profissionais do Serviço Social); c) profissionais que atuam
diretamente com os Internados, como o Assistente Social, que se encontravam sob contrato de prestação
de serviço (terceirizados) havia três anos ou mais.
274
Fundamentalmente, é a necessidade de vender sua força de trabalho
para garantir sua sobrevivência que conduz o chamado trabalhador livre aos
postos de trabalho na nossa forma de sociedade. Isso, naturalmente, não é o
que se espera como imagem do trabalho como atividade livre e criativa, vital
para a existência e ao aprimoramento do ser humano, mas com isso se capta a
alienação nessa atividade. Com efeito, é na contradição que se institui nessa
organização social que se objetiva o trabalho concreto, necessário às reais
necessidades sociais. Como explica Iamamoto (2007, p. 218), no processo de
compra e venda da sua força de trabalho especializada, o Assistente Social
entrega ao empregador o valor de uso específico da sua força de trabalho
qualificada, o que implicará transformação de uma matéria sobre a qual incidirá
essa força de trabalho e à qual ele tem acesso por mediação de seu
empregador. Cabe observar que os Assistentes Sociais são profissionais
assalariados (públicos ou privados), segundo parâmetros institucionais e
trabalhistas que regulam as relações de trabalho e as condições de trabalho e
permitem aos empregadores definir exigências, requisições, estabelecer certas
funções e atribuições.
Todavia, as atividades desenvolvidas sofrem outro decisivo
vetor de demandas: as necessidades sociais dos sujeitos, que
condicionadas pelas lutas sociais e pelas relações de poder, se
transformam em demandas profissionais, reelaboradas na
óptica dos empregadores no embate com os interesses dos
cidadãos e cidadãs que recebem os serviços profissionais
(IAMAMOTO, 2007, p. 219).
Não obstante, tratando-se de trabalhador qualificado, particularmente de
trabalhador especializado e com nível universitário, vinculado ao quadro
funcional de instituição pública, salvaguardados o conhecimento qualificado de
sua função e os limites impostos pelas instituições empregadoras, pode-se
275
falar em certa autonomia desse trabalhador, considerando-se que ele pode,
desde que munido de conhecimentos essenciais, optar por atribuir determinada
direção social ao seu trabalho. Ou seja, desde que munido de conhecimento
suficiente e qualificado que lhe possibilite o exercício profissional
intervenção com conteúdo teórico e direção social, portanto clareza das razões,
decisões e das conseqüências da ação e, por isso, comprometimento ético.
Diante disso, é valioso lembrar o que aprendemos com o pensamento
marxiano: apesar de Sujeitos da História, a História não é mero produto da
nossa vontade, uma vez que nossas escolhas ocorrem em condições
determinadas.
Voltando nosso foco para o ponto central deste trabalho, parece-nos que
o planejamento de uma atividade em resposta à necessidade social sob a
responsabilidade do Estado, como esta que aqui é tratada que deve contar
com profissional para lidar com questão delicada e que por isso requer
capacitação mais específica —, deve definir finalidades, objetivos e metas de
maneira clara, possibilitando o conhecimento daqueles que supostamente
estarão envolvidos em tal questão.
Pelo que pudemos observar, os profissionais não receberam o mínimo
de esclarecimento quanto à Instituição, tampouco quanto à unidade em que
trabalhariam; não houve qualquer tipo de recepção, treinamento,
acompanhamento ou supervisão para que pudessem alicerçar, nem mesmo no
início, o seu trabalho. A nosso ver, esse fato, que evidencia o momento da
lotação dos profissionais é demonstrativo da maneira como o Estado vem
dispensando atenção a esse segmento de usuários que está sob sua
responsabilidade. Além disso, sem nos aprofundarmos no modo como o
276
Estado lida com certos segmentos de trabalhadores que ele próprio emprega,
fique claro que, no nosso entender, neste caso demonstração de falta de
zelo, de desrespeito com a “coisa pública”. A falta de respeito com esses
trabalhadores, que são servidores públicos, evidencia-se já na demora em
contratar alguns deles, recém-concursados, os quais se sujeitam a trabalhar
durante anos como se fossem estagiários, como nos informou um profissional
entrevistado em conversa à parte. Há evidente desrespeito também no tipo de
recepção e na não-capacitação desses trabalhadores para o exercício da suas
funções institucionais. Contudo, esses trabalhadores também, mesmo que
inconscientemente, parecem compactuar, em certo grau, com essa lógica do
desprestígio da “coisa pública”, na medida em que aceitam esses fatos, sem
buscarem expressar, mesmo que no limite possível, um posicionamento
profissional contrário. Logicamente, não podemos desconhecer as implicações
relativas ao vínculo empregatício, mas em período algum contestação
desses profissionais e expressão com fundamentação crítica e significativa
nesse sentido. Tal postura soa, mesmo que de maneira escamoteada, à
presença da antiga cultura” do Serviço Social em que a sociedade burguesa é
tida como inquestionável (ou apenas superficialmente criticável), pois regida
por leis invariáveis, semelhantes àquelas que regem os fenômenos da natureza
e, em conseqüência, inquestionáveis também se tornam todos os aspectos
inerentes a essa formação social, suas instituições e demais esferas da vida
social. Dessa maneira, se no campo profissional há manifestações particulares,
não são tão distantes daquelas do dia-dia em geral, pois são manifestações na
esfera valorativa; se voltarmos a atenção para o cotidiano não-profissional, as
críticas dirigidas a essa sociedade tendem a cair no universo da moralização —
277
“O mal está na própria natureza humana, não adianta lutar, pois não haverá
mudança”; “Sempre foi assim”; “Há coisas piores”; “No Brasil não tem jeito”; “O
que é público não certo, não funciona, pois não tem patrão” etc. No campo
profissional, como sugerimos inicialmente, as críticas à sociedade burguesa
também são comumente moralizantes e tendem a esvaziar-se de conteúdo
estrutural os problemas são situados em plano restrito, portanto, tornam-se
dificuldades individuais e subjetivas, no máximo referem-se a aspectos
focalizados de grupos particulares —, despolitizando as questões e, em
decorrência, naturalizando a ordem social, suas instituições e suas relações,
suscitando a lógica do fatalismo e da impotência do Sujeito.
ainda o profissional terceirizado diretamente envolvido no trabalho
junto ao usuário da instituição, como verificável na resposta 9. Esse aspecto
pode implicar sérios problemas para a qualidade dos serviços prestados pela
instituição ao usuário, o que não só ratifica o que dissemos, como significa
prejuízos aos direitos do trabalhador e fere legislação internacional, tal como
“as Regras Mínimas de Tratamento de Reclusos” (ONU, 1955) regra nº 46: “[...]
os membros do pessoal devem desempenhar funções em tempo integral na
qualidade de funcionários penitenciários e devem ter estatuto de funcionários
de Estado.
108
2.2 - Perguntados quanto aos objetivos profissionais nesse campo de
trabalho, os entrevistados responderam:
1- Não indicou objetivo.
2- Conhecer os direitos dos indivíduos que têm transtornos mentais que estão
internados para reinseri-los na vida em sociedade.
3- Entender melhor o Movimento da Reforma Psiquiátrica.
108
A respeito da terceirização no Sistema Prisional, consultar Tania D. Pereira, “O guarda espera um
tempo bom”: a relação de custódia e o ofício dos inspetores penitenciários, 2006, (original inédito).
278
4- Não indicou objetivo.
5- Na questão do trabalho, pretendemos que as pessoas tenham acesso aos direitos
sociais. Com relação aos pacientes, trabalhar a questão do resgate dos vínculos familiares
para que sejam desinternados e se reinsiram na sociedade.
6- Garantia de direitos.
7- Conhecer como atuar com Medida de Segurança.
8- Conhecer o que é Medida de Segurança, como funciona, pois nunca tive
capacitação e/ou supervisão nesse sentido.
9- Ressocialização dos Internados e ajudar os familiares nessa vivência, que é muito
difícil. Nessa situação de terem os parentes presos, que eles dizem ser muito difícil.
2.3- Quanto ao objeto de estudo/intervenção do Serviço Social nesse
campo, responderam:
1- Não respondeu.
2- As famílias dos Internados.
3- São as relações existentes entre a pessoa que tem o transtorno mental e a
prisão em que está institucionalizada.
4- A política social e o acesso aos direitos sociais.
5- Não identifico. Assistencialista todos somos, queiramos ou não acabamos
ajudando o paciente de modo bem imediatista.
6- As famílias dos Internados.
7- Os pacientes e suas famílias.
8- Partindo da discussão da questão social e suas expressões, aqui é a
criminalidade com a especificidade da doença mental. A criminalização da pobreza é outra
expressão, pois o é o fato de existir uma agressão em uma residência de elite que será
caracterizada como delito; o agressor será levado para uma clínica particular e o caso
provavelmente não tomará os rumos policiais, diferente da ocorrência em área pobre em que
ele será criminalizado.
9- Participar da ressocialização.
Como se pode perceber nas respostas acerca do objeto e dos objetivos
profissionais, não referência dos entrevistados a vínculo com qualquer
279
programa de trabalho individual, menos ainda a coletivo que permita certa
direção às atividades por eles desenvolvidas. Dessa maneira, dois dos
profissionais não definem os objetivos e outros dois têm como objetivo o
conhecimento da legislação específica da área Medida de Segurança.
Assistente Social que pretenda conhecimento sobre o Movimento de Reforma
Psiquiátrica, outro que objetive a ressocialização do Internado e quem
queira favorecer o acesso dos Internados aos direitos sociais, bem como a
desinternação dos mesmos mediante o restabelecimento dos vínculos com a
família. Ou seja, não o estabelecimento de um objetivo mais geral, de algo
construído pela equipe profissional, definido por meio da elaboração de um
programa de trabalho. É um campo de trabalho cuja finalidade consciente da
ação dos seus profissionais não se mostra clara; e, no caso de sua evidência,
aparece como algo definido individualmente. Cabe observar que em uma
Instituição desse gênero é evidente a importância do parecer de profissionais
de diferentes competências, até porque não se trata de local com um tipo de
Internado pouco complexo, que exija cuidado superficial. Portanto, causa-nos
espécie a idéia de prescindir do trabalho em equipe, talvez pudéssemos
considerá-la certa dificuldade de compartilhar, certa impregnação do valor
individualista e/ou certa arrogância intelectual por parte dos entrevistados?
A citada falta de clareza nos remete ao Capítulo 1 desta tese para
lembrarmos que, para concretização de algo por meio do trabalho, é inerente
ao ser humano a projeção, a definição de finalidade consciente, a teleologia.
Pois, diferentemente dos demais animais, o Homem antecipa na sua mente o
produto que ele realizará, mediante o seu trabalho. Como já citamos, o trabalho
é propulsor da socialização, pois suscita as relações sociais e seu
280
desenvolvimento linguagem, valores, divisão do trabalho. Sendo assim, não
nos parece apropriada a “atitude individualista” assumida por alguns
profissionais. Trata-se de uma atitude que, não compartilhando da definição e
da formulação das coisas, inviabiliza a troca de conhecimentos, informações,
avaliações e propósitos e/ou finalidades, o que tipifica e qualifica o trabalho em
equipe e o aprimoramento de seus componentes. Logicamente,
compreendemos que isso é, em escala menor, conseqüência do modo de
inserção desses profissionais no local de trabalho e/ou das condições de
trabalho na Instituição. Todavia, não eximimos de responsabilidade esses
profissionais diante do fato, pois que provavelmente também têm concepções
internalizadas que asseguram esse tipo de postura profissional individualista —
ou seja, concepções que podem dificultar ou até mesmo inviabilizar o
investimento dos profissionais em busca do desenvolvimento contínuo e
qualificado de avaliações e propostas coletivas de trabalho.
Passemos agora ao que foi dito no item anterior sobre a lotação dos
profissionais sem qualquer possibilidade de escolha, orientação ou
treinamento. Pelo que pudemos saber, não é constante a possibilidade de
capacitação e supervisão, o que deve ter levado alguns profissionais a
buscarem certos conhecimentos no próprio campo de trabalho, como as
referências feitas à Medida de Segurança e à Reforma Psiquiátrica, por
exemplo. Aspectos interessantes também foram as idéias de reinserção e
ressocialização dos Internados trazidas pelos Assistentes Sociais.
A reinserção do Internado na sociedade como objetivo profissional leva-
nos a questionar quanto a estudo que sustente tal objetivo, que constate a
inserção (satisfatória) desse Internado na sociedade antes da sua
281
institucionalização, permitindo supor uma repetição ou seja, a reinserção. E
se essa pessoa realmente estava satisfatoriamente inserida na sociedade, por
que cometeu delito e se tornou Interna do Hospital de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro?
No que diz respeito à ressocialização, o que seria?
Parece-nos uma concepção que comporta um sentido moral, a idéia de
que o Internado estaria ali devido a uma socialização incompleta ou
inadequada, provavelmente por não ter internalizado os valores necessários,
os valores aceitos pela ordem social vigente. No entanto, sem entrar no mérito
conservador dessa concepção, de uso corrente entre os diferentes segmentos
profissionais do Sistema Penal — a qual se mostra aceita, sem qualquer crítica,
como se a ordem vigente fosse inconteste, ineliminável —, cabe-nos indagar:
como isso seria realizado? Em quanto tempo? Seria o Hospital de Custódia
local para a concretização desse tipo de objetivo, ou um local inadequado, uma
vez que marcado pela violação dos direitos sociais? Se o Hospital de Custódia
não faz parte da sociedade, como pode ressocializar seus Internados? O
aparato institucional fechado não é produção da própria sociedade? Em que
medida ser internado no Hospital de Custódia significa estar fora da
sociedade?
Ademais, com base no que discutimos no Capítulo 1, Ontologia do Ser
Social e a Ética, há que ter clareza que, para que possamos concretizar algo, é
imprescindível conhecermos aquilo com o que estamos tratando
conhecermos a devida porção do que será trabalhado. Ou seja, projetamos,
temos finalidade consciente, mas para isso temos um objeto a ser trabalhado e
dele temos de ter conhecimento, pelo menos da parte necessária, para que
282
possamos processar alguma transformação e obter um produto humanizado ou
alcançarmos algo no âmbito da teleologia secundária, relativa às
transformações no âmbito das relações sociais. Se não for desse modo,
qualquer iniciativa torna-se inviável, pois não ultrapassaremos a abstração, a
dimensão conceitual, o plano ideal que “soluciona” as questões no “obscuro”
mundo das idéias.
Apreciando como os entrevistados captam o objeto de
estudo/intervenção do Serviço Social no Hospital de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico verificamos certa dificuldade ao analisarmos o conteúdo das
respostas. entrevistado que não consegue identificar o objeto de
estudo/intervenção do Serviço Social, e também, e de modo expressivo, a
identificação do Internado e/ou da sua família como representação desse
objeto. Isto reflete um entendimento de que as situações a serem trabalhadas
pelo Serviço Social resultam do plano das relações interpessoais, no âmbito
psicossocial e não fundamentalmente no campo das determinações e dos
condicionamentos estruturais.
Dois dos entrevistados fizeram referência à questão social, mas apenas
um Assistente Social relacionou-a com seu campo de trabalho (ver resposta
8). Além disso, é com muita clareza que no conteúdo dessa explanação
encontramos relação com o fenômeno da criminalização da pobreza, tão
presente na sociedade contemporânea, como vimos no Capítulo 2. Temos aqui
um dos pontos mais importantes de discussão deste trabalho, uma vez que os
Hospitais cujos profissionais foram entrevistados têm como público-alvo de
atendimento uma população vista como uma ameaça à sociedade, mas e
talvez principalmente por isso com direito a tratamento de saúde por se
283
tratar de portadores de transtornos psiquiátricos que cometeram delitos.
Observe-se, todavia, que essas pessoas, oriundas das camadas populares,
quando chegam a esse tipo de instituição pública já passaram por longo
processo de abandono de seu transtorno mental. Em conversas com
profissionais da Instituição soubemos que grande parte dos Internados sofreu
as conseqüências da ausência de políticas sociais, tais como: saúde, educação
ignorância associando a doença mental a mitos e mbolos religiosos —,
emprego etc. Diante disso cabe-nos retomar argumentos discutidos em seções
dedicadas às discussões sobre ética e economia e criminalização da pobreza e
indagar se não estaria o ponto nodal da discussão. Pois, se tivéssemos uma
organização social em que a política servisse para organizar a sociedade e não
para atender outros interesses considerados prioritários, provavelmente
teríamos uma política pública suficiente e qualificada. Ou seja, seque essas
pessoas portadoras de transtorno mental se tivessem sido respeitadas e
acompanhadas como cidadãs teriam cometido delito ou se não criminalizadas
no primeiro delito mas tratadas teriam se tornado Internas dos Hospitais
aqui focalizados? A propósito, é cabível a existência dessas Instituições?
Seriam mesmo Instituições necessárias? Caso a resposta seja afirmativa, será
que elas atendem, e será que tais pessoas seriam responsabilizadas pelos
mesmos delitos? Ou ainda: essas Instituições atenderiam nas mesmas
condições que se observam atualmente?. Estas são questões essenciais sobre
as quais devemos refletir, principalmente neste momento em que a chamada
“violência urbana” se coloca como um tema central. Parece-nos claro, até para
o mais comum dos cidadãos, que os discursos inflamados e/ou apelativos que
284
mostram solução simples para o problema da violência não vão além de
sonhos ou campanhas eleitoreiras.
Prosseguindo no nosso ângulo de análise, considerando objeto e
objetivo do Serviço Social na área investigada, percebemos certa dificuldade
dos profissionais na formulação das respostas, dificuldades de apreensão e de
definição dos mesmos, especialmente do objeto de estudo/intervenção. Esse
fato pode, em parte, ser atribuído à ausência da devida orientação no momento
da lotação dos profissionais na Instituição e à falta de reuniões sistemáticas de
estudo em que se discutam temas específicos da profissão, reuniões que, a
nosso ver, deveriam ocorrer por iniciativa dos próprios profissionais e/ou dos
estagiários do Serviço Social dos Hospitais. Será que as reuniões de estudo
não ocorrem sistematicamente por não serem consideradas atividade de
trabalho?
2.4- Perguntados se têm ou tiveram estagiário(s) (há menos do que três
anos) sob supervisão:
Cinco responderam que tinham estagiário(s) ou tiveram em período
inferior a três anos. Outros três entrevistados, apesar de destacarem a
necessidade e a relevância da supervisão para a formação de novos
profissionais de Serviço Social, não deixaram de salientar o preparo especial
do Assistente Social para realizar esse tipo de atividade. Um deles, inclusive,
referiu-se a essa atividade como um período em que o profissional tem a
possibilidade de retornar aos estudos, como se pode apreciar no primeiro dos
trechos de entrevista que serão reproduzidos a seguir:
1- Proporciona a você a oportunidade de voltar a estudar, repensar sua
prática; quando você tem que orientar um aluno [...], sempre pensa melhor sobre suas atitudes.
285
2- Acho que o é o fato de ser formada em Serviço Social que te
capacidade de supervisionar alguém, acho que para isso é preciso preparo. [...]. Não adianta
ser excelente profissional na prática se não tiver arcabouço teórico com que possa trabalhar
com o estagiário.
3- A teoria não é separada da prática [...] tem que ter tempo para se engajar
junto com o aluno para conhecer, atualizar [...], porque existem muitas coisas que os alunos
trazem que já esquecemos.
Partindo desses pequenos flashes da realidade, podemos vislumbrar
quanto o cotidiano profissional pode mostrar-se obscurecido pelos atos
repetitivos, objeto de pouca reflexão. Vimos argumentos em que os
profissionais situam o conhecimento equivocadamente, embora valorizem o
processo de supervisão, uma vez que desempenham diferentes funções ora no
trabalho de Assistente Social na Instituição com o usuário, ora no trabalho com
o estagiário. Parece que a necessidade do conhecimento qualificado que
viabilize o trabalho criativo e a exigência de compromisso com o constante
aprimoramento profissional aflorem apenas em razão do contato com o campo
acadêmico, e não por exigência dos desafios diários inerentes à realidade
profissional o próprio cotidiano do exercício profissional institucionalizado do
Serviço Social. Principalmente em se tratando de terras brasileiras, em tempos
neoliberais, e de um campo de trabalho como o que focalizamos, motivos
evidentes da necessidade e da exigência de compromisso com constante
aprimoramento profissional .
O Assistente Social é um intelectual com intervenção na realidade social,
habilitado a operar em área particular, mas para isso precisa decifrá-la com
competência, o que significa entender que o particular é parte da totalidade.
Assim, cabe exercitar todo tempo sua capacidade de captar criticamente essa
realidade que é contraditória e dinâmica, o que pressupõe busca constante de
286
sustentação teórica, política e ética. Essa é a condição do seu trabalho
profissional e requisito para supervisão dos estagiários, contudo aspecto
inerente de suas atribuições parte das atribuições profissionais e função
complementar da formação acadêmica, mas diferente da função do orientador
da disciplina de estágio da Faculdade de Serviço Social, uma vez que esse
cumpre função específica de professor.
É interessante observar que, no intuito de valorizar a formação do aluno,
o trecho da entrevista destacado no 2 mostra o equívoco do profissional ao
referir-se à necessidade de preparo especial para prestar supervisão ao
estagiário e também ao falar da possibilidade de haver excelente profissional
na prática sem arcabouço teórico que permita acompanhar o estagiário: “Não
adianta ser excelente profissional na prática se não tiver arcabouço teórico com
que possa trabalhar com o estagiário”. Claro está que o entrevistado não
valoriza isso, mas, ao expressar tal idéia, ele a expõe à consideração e,
mesmo que seja de modo desatento, afirma essa concepção recorrente e
infundada da cisão entre teoria e prática.
Entre os cinco Assistentes Sociais que têm ou tiveram estagiários (por
menos do que três anos), três mantêm ou mantiveram contato com as
instituições de ensino dos alunos. Entretanto, todos os cinco profissionais
enfatizaram a importância desse contato, e alguns relataram experiências
positivas.
Os dois Assistentes Sociais que não tiveram contato com a instituição de
ensino dos estagiários mencionaram que a mesma os procurariam em breve.
287
Por fim, é interessante destacar parte dos argumentos expressos sobre
o tema por um dos entrevistados, que está entre os profissionais que têm
estagiários:
4- Acho que o estagiário é obrigação da gente, porque esse campo sociojurídico é uma
espécie de “caixa-preta”. Não oxigenação com o mundo externo. A presença da
universidade aqui é muito importante para que se “publicize” o trabalho que é feito, o que é
essa “caixa-preta”, que lugar é esse da coerção, da repressão e do tratamento — essa “mistura
brava” que é esse campo.
Esse profissional, como se observa, além de encarar a supervisão como
dever profissional traz à baila a contradição posta no seu campo de atuação
profissional — coerção, repressão e tratamento e a relevância no estágio de
favorecer a percepção crítica do estagiário e a “democratização” da Instituição
(dando oportunidade, quiçá, à formulação de trabalhos científicos).
2.5- Quanto ao desenvolvimento de projeto(s) de Serviço Social:
Três entrevistados afirmaram o desenvolvimento de projetos de Serviço
Social. Todavia, dois deles referiram-se ao mesmo projeto, pois um dos
profissionais passou a desenvolver um projeto em substituição ao outro
profissional quando este saiu de determinado Hospital de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico por ter sido transferido para outra unidade. Além disso,
apesar de três entrevistados afirmarem o desenvolvimento de projetos
específicos da área profissional, apenas um deles tinha um projeto escrito, cujo
objetivo é “possibilitar a participação das famílias no processo de reinserção
social dos Internados”. Os outros profissionais se referem a projetos, mas não
tinham documentação a esse respeito.
O Assistente Social responsável pelo projeto documentado explicou-nos
que realiza trabalho com grupos de parentes dos Internados, visando à troca
288
de experiências e informações. A partir daí os familiares que quiserem e/ou
necessitarem são atendidos individualmente para orientações e
encaminhamentos.
Os outros dois Assistentes Sociais vinculados ao mesmo projeto de
Serviço Social relacionam suas atividades aos Internados que estão em vias de
deixar o Hospital e que, por isso, residem em uma casa próxima ao Hospital de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico, que pode ser considerada uma “moradia
de transição”, ou, melhor dizendo, um local em que a pessoa pode adquirir
hábitos cotidianos iguais àqueles de uma pessoa que não está
institucionalizada, um preparo para a vida “extramuros”. O Assistente Social e
outros profissionais trabalham no sentido de viabilizarem meios que favoreçam
que os usuários desses Hospitais de Custódia saiam para o convívio em
sociedade. No caso do Serviço Social, o trabalho de busca dos familiares,
tendo em vista o restabelecimento das relações entre os membros da família e
o Internado. Pelo que nos foi relatado, trata-se de um trabalho bastante árduo,
pois, se o Internado tem características que tornam difícil a sua aceitação,
imagine-se como fica a situação do Internado desse Hospital diante do fato de
grande parte dos delitos cometidos serem contra pessoas da própria família
fato que normalmente acontece em razão de serem essas as pessoas com
quem o Internado convivia proximamente. Acrescente-se a isso o fato de esses
familiares serem pessoas pertencentes a um segmento populacional pobre
que, além de poucos recursos financeiros, tem pouco acesso à instrução e, em
conseqüência, ao conhecimento científico, o que tende a dificultar ainda mais
uma percepção mais racionalizada, mais elaborada, distante do senso comum,
sobre a condição psíquica do Internado —, também trabalho no sentido de
289
prover aos Internados a documentação necessária para a vida em sociedade,
caso não estejam com a documentação atualizada e visando à aproximação
dos Internados da rede pública de saúde.
Diante do que viemos expondo, pode-se observar que não há uma
orientação que defina a direção do trabalho do Serviço Social no Hospital de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado Rio de Janeiro. Não
planejamento de organização hierárquica superior ou setor
articulador/coordenador do Serviço Social que trace diretrizes para a
construção de projetos comuns ou coletivos, projetos cuja emersão vise a
assegurar interesses e propostas profissionais em articulação com projetos
societários ou propostas comuns defendidas pela equipe profissional. Com
relação a isso, à medida que consideramos pertinente a formulação de projetos
por profissionais, por trabalhadores assalariados Assistentes Sociais que
desenvolvem suas ações na arena sócio-institucional e compõem uma
categoria que possui um Projeto Ético-Político Profissional, cabe
complementarmos com o pensamento de Iamamoto que explicita que
Trilhar da análise da profissão ao seu efetivo exercício supõe
articular projeto de profissão e trabalho assalariado; ou o
exercício da profissão nas condições concretas de sua
realização mediada pelo estatuto assalariado e por projeções
coletivas profissionais integradas ao horizonte coletivo das
classes trabalhadoras na luta pela conquista e ampliação de
direitos como estratégia contra-hegemônica.
Em outros termos, a operacionalização do projeto
profissional supõe o reconhecimento da arena sócio-histórica
que circunscreve o trabalho do assistente social na atualidade,
estabelecendo limites e possibilidades à plena realização
daquele projeto (2007, p. 230).
290
Com exceção de um projeto que foi citado, não projeto de Serviço
Social documentado.
109
Isso inviabiliza a avaliação do trabalho realizado pelos
profissionais da área. Como avaliar metas, objetivos, finalidades de trabalho, se
não há projeto a ser considerado? Como realizaremos avaliação do trabalho do
Serviço Social com alguma objetividade se não podemos contar com um
projeto específico e documentado, com definição do que se pretende alcançar,
a razão disso e como se pretende fazê-lo? Por que não documentar nossa
pretensão por meio da intervenção profissional?
Se retomássemos de modo direto o que foi discutido no Capítulo I,
caberia destacar que trabalho é atividade consciente que pressupõe projeção,
isto é, finalidade consciente. Portanto, como avaliar o trabalho, a realização
profissional sem o conhecimento da sua finalidade?
É importante considerarmos que realizar atividades sem avaliação
contínua e sem possibilitar controle social não pode ser confundido com
autonomia profissional. Autonomia profissional significa a possibilidade relativa
que o profissional, na condição de trabalhador assalariado, tem de imprimir
direção às suas ações, logicamente considerando limites impostos por
condições que independem da sua vontade, como os limites postos pelas
instituições empregadoras. A ausência de avaliação e a falta de controle
tendem a desqualificar o trabalho profissional e o serviço prestado à população.
Podem, inclusive, encobrir a existência de falhas graves no atendimento ao
usuário da Instituição. À equipe de Serviço Social, principalmente aquela que
109
Não desconsideramos nas atividades realizadas pelos diferentes profissionais aqui entrevistados a
existência de modo implícito de certas concepções, valores e intenções, mas não apreciamos esse fato
como suficiente para caracterização de um projeto profissional. Isso porque, no nosso entender, qualquer
projeto profissional mesmo que se trate de projeto de intervenção e tenha elaboração individual
pressupõe finalidade consciente e não pode ser tomado como algo meramente individual, independente da
categoria profissional e/ou da equipe de trabalho etc..
291
realiza seu trabalho em Instituição pública, cabe assegurar a avaliação
sistemática do seu trabalho, que para isso, necessita ser devidamente
elaborado e documentado a elaboração de programas e projetos é
fundamental para a exposição da finalidade, dos objetivos e da metodologia do
trabalho profissional. Estes elementos são essenciais à ação profissional e a
sua avaliação. A utilização devida da documentação nos referimos à
documentação necessária ao registro e planejamento do trabalho em geral
também pode propiciar um conhecimento do espaço institucional, do seu
histórico, de suas possibilidades e dificuldades e de indicativos para outros
estudos que poderão ser aprofundados pelo Serviço Social e demais áreas
profissionais interessadas, tais como estudos sobre os usuários dos serviços
institucionais, sobre a rede de serviços públicos necessários ao atendimento
dos que estão ou estiveram na Instituição e seus familiares, trabalhos
preventivos mais urgentes etc.
Longe de poder limitar-se a uma mera atividade administrativa, a
documentação em Serviço Social pode salvaguardar dados importantes que
subsidiem as necessárias análise e intervenção desse profissional na
realidade.
Diante do exposto, temos que considerar dois aspectos: um que se
refere mais diretamente ao profissional, que é o que abordaremos primeiro; e
outro, que diz respeito, mais especificamente, à documentação. Considerando
o que discutimos sobre o capitalismo e sua crise contemporânea no Capítulo 2,
sabemos que os trabalhadores aqui entrevistados, assim como os demais, vêm
sofrendo as ingerências dessa crise; todavia, sabemos também que não
configuram um bloco homogêneo, pois entre eles encontramos peculiaridades
292
e diferentes formas de experiência. Assim, sem que tenhamos o mínimo intuito
de esgotar aqui as referências ao trabalhador ora entrevistado nesta tese,
mencionaremos algumas de suas particularidades, quais sejam: 1- o próprio
local de trabalho, o qual traz exigências significativas ao trabalhador, haja
vista tratar-se de “Instituição Total” destinada aos considerados loucos-
infratores que, como afirmou um dos entrevistados, são duplamente ansiosos,
seja pelo comprometimento mental seja pelo fato da custódia; 2- o fato de
serem trabalhadores com profissão cujo exercício se dirige fundamentalmente
às necessidades da própria classe trabalhadora,
110
e que lidam com política
social nesse momento em que o Estado está sendo frontalmente atrofiado e/ou
alterado Estado Mínimo, Estado Penal e/ou Estado complementar para o
mercado etc. —; 3- a necessidade de esses trabalhadores recorrerem à
jornada dupla de trabalho para garantirem sua sobrevivência o que nos foi
dito informalmente por quase todos os entrevistados (essa questão não fazia
parte do roteiro de entrevista). Chegou a ser mencionada, pelos entrevistados
uma divisão de horário que comporta mais de um outro trabalho ou seja,
uma exaustão para assegurar um montante salarial avaliado como “o possível”
para a sobrevivência. Tais aspectos dificultam sobremaneira a possibilidade de
exercício profissional qualificado, uma vez que evidência de sobrecarga no
cotidiano desse profissional. Há, portanto, tendência à realização de um
exercício profissional com rapidez e superficialidade, irrefletido e, portanto,
empobrecido por sérias dificuldades de investimento em estudos e/ou
discussões coletivas.
110
Consultamos Edison J. Biondi; Jorge Luiz F. dos Santos; TaniaKolker; Márcia L. de Carvalho. Projeto
de apoio à reinserção social dos pacientes internados em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico
do Rio de Janeiro: SEAP/SUPS, 2004.
293
A esse respeito, cabe destacar a questão da sobreimplicação, com base
em texto intitulado Sobreimplicação: práticas de esvaziamento político?, de
Coimbra e Nascimento (s/d), cujos autores esclarecem que o acúmulo de
tarefas e a produção de urgências, impondo e “naturalizando” a necessidade
de respostas rápidas e tecnicamente competentes, tendem à afirmação do
ativismo, atendendo à lógica capitalista contemporânea, pela qual o tempo
torna-se cada vez mais comprimido e há a exigência da flexibilização das
tarefas. Daí a importância de se dar relevo ao conceito de sobreimplicação, que
é derivado do sobretrabalho, ou seja, da crença no sobretrabalho, do ativismo
da prática que impede a análise do exercício profissional. Sobreimplicado
representa, por assim dizer, excessivamente implicado com o que se está
fazendo dada a sobrecarga de atividades. Significa estar implicado ao ponto de
obscurecer-se, embotar-se profissionalmente no exercício das tarefas, perder,
de modo significativo, a possibilidade de refletir, de escolher conscientemente,
de pensar criticamente, atribuindo significado, ou seja, apreender as diferentes
dimensões e nexos da realidade com a qual se está lidando. No entanto, se
parece contraditório, isso muitas vezes pode gerar certa sensação de prazer
e/ou orgulho profissional, como se o acúmulo de trabalho fosse representação
direta de utilidade, de importância ou de prestígio profissional portanto, algo
estimulado e até internalizado inconscientemente, haja vista a ideologia
reinante.
Quanto à documentação, o segundo aspecto que ora abordamos, cabe
partirmos, com base em Marconsin (1999), da compreensão de que no trabalho
social a técnica tem uma teoria subjacente que não é neutra, ou seja, contém
uma direção política. Portanto, sendo a documentação um instrumental técnico,
294
também terá a direção política que for dada à ação social em seu todo. Poderá,
por exemplo, ser um roteiro destinado ao preenchimento de dados para o
controle com fins meramente burocratizantes ou para cumprir outra finalidade.
Poderá ser documento com destinação diferente, um roteiro cujos dados, após
analisados pelos Assistentes Sociais, transmitam informações úteis à
população usuária dos programas institucionais e dos projetos do Serviço
Social.
Enfim, é relevante observarmos que a documentação não tem função
dirigida a um fim determinado a priori, como, por exemplo, os interesses
institucionais. Porém, é instrumental-técnico imprescindível face à dimensão
investigativa da profissão e à necessária atitude de acompanhamento, reflexão
e avaliação contínuos do trabalho profissional realizado.
2.6- Indagados quanto à existência de programa de trabalho institucional
e seus objetivos, as respostas foram:
Um profissional não soube informar. Três disseram o existir programa
institucional e cinco responderam afirmativamente, da seguinte maneira:
1- Sim, mas não comentou ou destacou os objetivos do programa.
2- Sim, Programa de Pesquisa de Qualidade: um programa que objetiva levantar
necessidades e interesses das famílias dos Internados.
3- Sim, mas não conheço o programa institucional, apesar de saber que existe.
4- Sim, Programa de Atuação das Miniequipes, Programa de Recepção dos
Pacientes, Programa de Atribuições do Hospital.
5- Sim, um projeto institucional denominado Projeto Terapêutico, o qual foi
reelaborado inúmeras vezes e encaminhado ao Ministério da Saúde na tentativa de obtenção
de recursos para sua execução. Porém, até hoje a verba não chegou.
Como se pode verificar, não existe discussão acerca do programa
institucional, sua finalidade e seus objetivos, fato que tem repercussão no
295
desenvolvimento das atividades dos entrevistados. No nosso entender, esse
fato concorre para a parca requisição do constante aprimoramento do trabalho
profissional, uma vez que não exigência de explicitação e discussão de
projetos componentes do programa, suas atividades, seus objetivos e suas
metas etc., tampouco possibilidades efetivamente racionais de avaliação
permanente do trabalho realizado.
Segundo Delgado (1992), os Hospitais aqui tratados, antigos
Manicômios Judiciários, atendem a funções diversas e muito pouco à função
de tratamento. Cabe observarmos, inclusive, que a irresponsabilidade diante do
ato cometido pelo portador de transtorno mental e infrator é dificilmente aceita
pelos membros da Justiça e pela opinião pública. Isso faz com que sejam
criadas formas de punição escamoteadas, que poderiam ser caracterizadas
como formas mascaradas de tratamentos obrigatórios, o que tende a
transformar a Medida de Segurança em detenções mais longas do que as
próprias penas que corresponderiam aos crimes praticados. Mencionamos
essa questão por considerá-la pertinente diante do que acabamos de expor, ou
seja, a falta de discussão e/ou de programas institucionais dirigidos aos
usuários dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico.
Seria o tratamento, de fato, a função precípua dessa Instituição blica?
Os profissionais têm clareza teórica dos seus objetivos profissionais e dos
objetivos da Instituição? O que significam os termos ressocialização e
reinserção social, mencionados, às vezes, pelos entrevistados em alguns
outros momentos como objetivos profissionais: seriam tratamentos para
reformar o Internado
111
melhorá-lo, tratá-lo, educá-lo de modo a tornar
111
Concepção que focaliza responsabilidade do delito unicamente no sujeito, diferentemente da
criminologia crítica.
296
possível a sua volta à sociedade? Esses termos são tratamentos que têm a ver
com punição, com promoção humana ou com tratamento de saúde? Seriam
estas possibilidades compatíveis e poderiam ocorrer concomitantemente?
Seriam palavrório para encobrir as verdadeiras intenções da Instituição ou do
profissional? Ou, com base nas indagações de Thompsom (1983),
ressocialização, reeducação e reinserção seriam termos que servem como
“fraseologias” que cegam as pessoas quanto à violência dos métodos
institucionais empregados, dificultando o surgimento de movimentos de
resistência contra eles? Qual o verdadeiro objetivo institucional?
2.7 As considerações dos Assistentes Sociais ao serem indagados
acerca da consonância dos objetivos institucionais com os objetivos do Serviço
Social (no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, especificamente no
projeto que desenvolviam e com relação ao Projeto Ético-Político do Serviço
Social) foram:
1- Sim, consonância, mas os objetivos institucionais são mais amplos, abrangem
várias disciplinas [...]. Não deve haver contradição entre os dois objetivos [o do Serviço e o da
Instituição].
2- Não consonância, os objetivos não são coerentes, nem sei se vão ser, dentro
nessa sociedade em que vivemos [...]. Como cidadão e profissional, penso desse modo: a
pessoa comete o delito por uma falha da sociedade, da comunidade. Geralmente essa pessoa
foi abandonada pela família ou o tinha o remédio; comumente é o caso de pouco respaldo
familiar para permanecer no tratamento. Esses são os relatos que temos [...]. Tem uma falha
atrás [...]. Aí o doente acaba cometendo o delito e, quando comete por falha que está fora dele,
é julgado e considerado inimputável [...] e o meu questionamento: como a sociedade o
coloca num lugar que é uma prisão? Poderia colocá-lo em um tratamento...
3- Não, temos um regulamento, outras ligações impedem que possamos atuar em
projetos que firam a segurança. A prioridade aqui é a segurança, a prioridade é a segurança no
Sistema Judicial. Além disso, a descontinuidade é uma tônica e isso desmotiva. Quando você
297
está trabalhando com uma família, com um paciente, construindo um processo profissional e há
um desentendimento com algum funcionário, paciente ou detento, você pode ser transferido
sem explicação, quebrando o trabalho que está sendo desenvolvido. [...].
diferenças nas políticas sociais dos governos.
112
governos em que o Serviço
Social tem mais liberdade. Existem políticas mais voltadas para os direitos humanos.
4- Não, o funciona harmonicamente [...]. Em alguns momentos isso acontece, mas
isso é uma questão conjuntural, não caminha sempre junto não [...].
5- Não.
6- Sim, na Instituição tenta-se construir uma rede de atendimento para encaminhar o
paciente para a rede pública de assistência específica.
7- Não, os objetivos [da Instituição] priorizam o tratamento médico sem ter em conta os
outros profissionais [...]. Eu já falei [...] que o objetivo do Serviço Social é a garantia dos direitos
de qualquer cidadão.
8- Não, acho que nós [Assistentes Sociais] trabalhamos basicamente com a
contradição, não há consonância. O projeto institucional é um projeto que responde a um
mandato da sociedade, que é segregar, punir e não o verbo tratar. Acredito que é muito mais
punição do que tratamento no dia-a-dia. Do ponto de vista do Projeto Ético-Político, acho que,
se internalizamos os Princípios do Código de Ética, trabalhamos na contracorrente disso. Por
exemplo, muitos conflitos que tive no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico X com as
equipes inter- e intraprofissional ocorreram pela tranca.
113
Caso haja um Internado que
responda mal a um guarda, a um enfermeiro ou que seja malcriado por sentir-se oprimido, ou
que é mal- educado por ignorância mesmo, no meu entender isso, não é justificativa para
colocá-lo na tranca. O que quero dizer é que colocar uma pessoa numa cela fechada, quente,
por punição é no mínimo um equívoco. Temos outros recursos profissionais e pessoais para
lidar com falta de educação, não cabe agir dessa forma, a qual é a punição da punição. O
Internado está segregado da sociedade e se segrega a pessoa mais ainda por dez ou
quinze dias numa cela, em função de malcriação...
112
As diferenças são naturais, mas, pelo que pudemos entender, o entrevistado pretende referir-se à
descontinuidade que comumente ocorre nos programas dos setores públicos, o que traz muitas vezes
sérios prejuízos aos usuários dos serviços. Particularmente, quando trabalhamos como Assistente Social
por quase duas décadas em Secretaria do Estado vivenciamos essa experiência.
113
O termo será explicado adiante na própria explanação do entrevistado.
298
9- Sim, inclusive comentamos com os estagiários essa parceria que temos com a
Instituição. [...]. Nosso trabalho pode ser desenvolvido porque encontramos esse apoio.
Como mencionamos, não projetos do Serviço Social que partam de
propostas conjuntas, menos ainda coletivas. Tampouco documentação que
torne possível uma avaliação contínua das metas, dos objetivos e das
finalidades. Não programa institucional que alicerce o planejamento das
atividades realizadas e seja um elemento estratégico para o trabalho da equipe
profissional.
Pelo que pudemos apreender, cabe citar, indo um pouco adiante, a
inexistência de uma política penitenciária para alicerçar os programas, os
projetos e as atividades institucionais. Ou, em outros termos, conforme Pereira
(2006), há evidência de uma “política de não ter política”.
Acreditamos que esses fatores constituem limites para a definição e a
discussão dos objetivos aqui tratados, fazendo com que, em geral, os
entrevistados não exponham argumentos claros. Não aparecem comentários
específicos acerca dos objetivos do projeto de trabalho e, no que se refere ao
atual Projeto Ético-Político do Serviço Social, apenas um Assistente Social (o
de 8) teceu comentário deixando evidente que, no seu entender, sérias
dificuldades de respeitar aos Princípios do Código Ética Profissional na
Instituição. Quanto aos objetivos institucionais, alguns aspectos devem ser
destacados: profissionais que parecem considerar que o Serviço Social e a
Segurança estariam naturalmente em posições opostas, uma vez que não
observa no Serviço Social nenhum vínculo com controle, o que não
corresponde à realidade, pois a história dessa profissão mostra-nos uma
299
realidade diferente.
114
Mostra que é uma profissão cujas ações se dirigiram, a
princípio, fundamentalmente para o campo político-ideológico, exercendo
funções de controle social junto às classes trabalhadoras, no intuito de difundir
a ideologia oficial. Esse fato veio ser modificado mais tarde, a partir de
meados de 1960, como discutimos aqui, ao tratarmos do Movimento de
Reconceituação do Serviço Social (e seus desdobramentos) e o rumo histórico
tomado por essa profissão. Desse modo, essa leitura do Serviço Social denota
um equívoco face à sua história e denuncia uma certa compreensão da
sociedade ou, melhor, significa uma idealização que repercute na intervenção
profissional (ver respostas nº 2 e 3). Além disso, a referência feita à
transferência do profissional sem justificativa, e sem que haja qualquer
preparação dos Internados que estão sendo acompanhados pelo profissional, é
situação a ser analisada à luz do Código de Ética Profissional, pois nele está
prevista (ver resposta 3). Houve expressão de um profissional que limita os
objetivos do Serviço Social à atividade de encaminhamento, o que parece
favorecer avaliação de consonância entre os objetivos do Serviço Social e os
objetivos da Instituição (resposta 6). também entrevistado que acredita
que não deve existir conflito entre objetivos profissionais e objetivos
institucionais, evidenciando sua concepção da possibilidade de funcionamento
harmônico entre eles. Nosso questionamento é: estariam sendo levados em
conta os Princípios Fundamentais do Código de Ética Profissional?
Retomando a expressão do entrevistado:
114
A esse respeito, consulte-se Cleier Marconsin e Valeria L. Forti. Instituição policial e Serviço Social:
interseções e divergências. In: VIII ENPESS. Juiz de Fora- MG, 2002.
300
Sim, há consonância, mas os objetivos institucionais são mais amplos, abrangem
várias disciplinas [...]. Não deve haver contradição entre os dois objetivos [o do Serviço e o da
Instituição].
Por fim, além de salientarmos que entre essas respostas temos
ratificada a afirmação de Paulo Delgado (1992), exposta no item anterior,
quanto ao fato de a função institucional voltar-se basicamente para a punição e
não para o tratamento, é interessante notar como a última resposta (a de 9)
diferencia-se das demais:
Sim [há consonância], inclusive comentamos com os estagiários essa parceria que
temos com a Instituição. [...]. Nosso trabalho pode ser desenvolvido porque encontramos esse
apoio.
2.8 Os Assistentes Sociais, avaliando as condições de trabalho nos
Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, responderam:
1- Trata-se de um Hospital com estrutura possível de desenvolvermos trabalhos, mas o
profissional tem que querer trabalhar [...], dedicar-se, fazer projeto, ir por conta própria ao
campo e, por exemplo, fazer entrevistas, filmagens, assistir aos pacientes.
2- Acho que esse é um Hospital de equívocos [...] não tem uma rotina de tratamento.
[...]. Outra coisa, [...] alguns pacientes chegam tão mal que não é possível encontrarmos a
família. Isso é com o Serviço Social, teríamos que pesquisar [...]. Ele [o sujeito] foi preso em
uma delegacia, e a família às vezes nem sabe que ele está preso. Como poderemos localizar a
família via computador ou pesquisa via Internet? Não temos nada informatizado. Hoje não
temos nem telefone na sala. Computador, nunca tivemos. Ficaria mais fácil até mandar e-mail
para o CAPS —
115
Centro de Atenção Psicossocial —, solicitando busca de determinado
atendimento.
Não temos viatura para visita domiciliar, às vezes utilizamos nosso próprio carro para
ver isso.
115
Desde os anos de 1980 a Reforma Psiquiátrica no Brasil, traz o Centro de Atenção Psicossocial como
uma alternativa para substituição gradativa aos hospitais psiquiátricos. Além dessa alternativa, outras
propostas do Movimento Antimanicomial, como lares abrigados, centros de convivência, residências
terapêuticas, entre outras.
301
Quando temos que ir a uma audiência importante, como por exemplo, uma audiência
de desinternação, um fato que lastimamos é quando ocorre a ida de um Internado no carro do
SOE Serviço de Operações Especiais —, a mesma viatura que conduz os presos comuns
para as audiências.
116
Estamos com a ambulância quebrada anos. Tudo dificulta a ação do
Serviço Social: fazer uma visita domiciliar, levar o paciente para uma saída. Havia saídas
terapêuticas que eram realizadas pelos terapeutas ocupacionais. Não são passeios apenas,
servem para os pacientes crônicos observarem como está a vida lá fora, mas hoje em dia o
tem mais [...]. O paciente tem ficado incomunicável mesmo [...]. Há meses, uns quatro ou cinco
meses não temos nem telefone. As condições de trabalho são muito precárias [...]. Remédios
não poderiam faltar, mas faltaram em alguns períodos. [...]. As mulheres não têm garantia de
assistência médica, não podem ir ao hospital para exames, como por exemplo, exames
ginecológicos, não têm o direito de transitarem, portanto o Estado tem de garantir os exames,
mas não faz. [...]. Nós nos sentimos até coniventes com essa situação. Mas a quem nos
queixar? A Coordenação [de Serviço Social], também tem essas limitações? Aqui o Internado
não tem voz, nem tem que ter, é para segregar mesmo, para separar [evidência da segregação
institucional]. Se nós temos tanta dificuldade, parece que eles [os Internados] são punidos duas
vezes: uma por estarem presos, outra por terem transtorno mental.
3- Precárias, faltam condições de trabalho. Não há viatura para contato com os
familiares dos Internados. No âmbito administrativo, o material de escritório é trazido de casa: o
governo não pagou, não tem, acabou. Antigamente, se podia mandar carta, aerograma, mas
como fazer hoje? Tirar do próprio bolso para todos? Não é possível. Quando é uma
emergência até se faz isso.
4- Hoje acho que algumas mudanças que estão possibilitando melhor trabalho, em
algumas propostas. O espaço físico é complicado. Nossa antiga sala era boa, mas foi tomada
por outro serviço e essa nova não atende às necessidades das nossas atividades. Não há mais
linha telefônica, o que dificulta nosso contato com o lado de fora da Instituição e os pacientes
ficam o tempo todo querendo telefonar. O espaço para realizarmos atendimentos individuais
está complicado. A visita não tem espaço sico, ficam uns do lado dos outros apertados, sem
116
Fomos informados que isso não é permitido, sendo desobediência de norma institucional. Os
Internados dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico devem ser conduzidos para audiência em
ambulâncias.
302
privacidade. O que nos alegam é que isso acontece em função do número reduzido de agentes
penitenciários [...]. Estão sendo feitas obras para melhorias nas enfermarias dos Internados. O
material de higiene dos Internados às vezes é fornecido por doações de instituições religiosas,
pois o Hospital não garante esse material.
Os pacientes crônicos deveriam ter uma assistência clínica mais estruturada, mais
regular. Apesar de hoje contarmos com um Hospital Central no Sistema Penitenciário nos
vemos em dificuldades para conseguir cuidados para esses Internados, quando se trata de
determinados atendimentos especializados. No Posto de Saúde, eles têm direito como
qualquer cidadão, mas dificuldade de atendimento; talvez seja por certo medo dos
profissionais do Posto de atenderem os Internados dos Hospitais de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico.
5- As instituições prisionais não nos oferecem nenhuma segurança. Na verdade, todos
aqui estamos sujeitos a qualquer tipo de violência, não se sabe de onde partirá. E no caso do
Hospital Psiquiátrico ainda mais, pois você não sabe a reação do paciente; por mais medicado
que ele esteja, por mais “cronificada” que esteja a doença, nunca sabemos. O ser humano é
imprevisível, imagine uma pessoa que não tem controle mental, a qual não tem lucidez
estabilizada, fica difícil. Todo dia, quando saímos daqui, é como se tivéssemos matado aquele
leão e conseguíssemos ir em frente.
6- É um ambiente organizado, limpo. A direção atual está tentando proporcionar
melhorias. [...]. Acho que temos condições de trabalho, sim. A sala do Serviço Social? É
pequena, é apertada, o temos individualidade no atendimento, pois se houver outro
profissional atendendo não privacidade. Porém, há outros espaços. Pode-se buscar outra
sala.
Temos um computador, um computador lerdo é verdade, mas a unidade possui Internet
temos que nos locomover, não há xerox e Internet à mão. O telefone foi cortado, não é questão
do Hospital. É uma questão política mesmo [...], você precisa ter acesso à família e o telefone
está mudo. Ficamos de um lado para outro com as pastas penduradas, no meio do corredor
telefonando. O paciente vê o telefone e diz: “Ah!, queria tanto contato com a minha família”, e o
telefone completamente mudo. Então, tem essas dificuldades, a falta de cuidados de uma
forma geral [...]. Não temos viaturas. As visitas domiciliares não podem ser feitas. [...]. Temos
303
que olhar no planejamento. Claro, todo mundo tem que olhar no planejamento. Mas o dia-a-dia
é tão sufocante que você tem que estar muito atento para fugir desse cotidiano e conseguir se
organizar a esse ponto, se organizar compatibilizando a necessidade com a possibilidade de
um planejamento apertado. O cotidiano do trabalho no Sistema Penitenciário já é envolvente, já
traz questões extremamente envolventes. Trabalhar com paciente psiquiátrico preso,
custodiado, é trabalhar com pessoa muito ansiosa. Se no Sistema o preso comum já é ansioso,
com o transtorno psiquiátrico isso é duplicado, o que nos envolve demais, desgasta o
profissional, envolve o profissional, e se o profissional não tomar cuidado...
[...] As condições não são como gostaríamos que fossem, encaminhamos os
Internados para a enfermagem para cortar as unhas, por exemplo, e pouco adianta. [...] Pouco
adianta, eles continuam com os pés no chão na semana seguinte [...]. O paciente não tem
sabonete, pasta de dente, escova de dente como deveria ser um hábito. Vários têm porque a
família traz, outros porque levamos. O Serviço Social sempre tem o sabonete, a pasta, mas
porque trazemos. Eu compro sempre e deixo lá [...].
A odontologia veio perguntar se não conseguiríamos escovas de dentes. Por que o
Serviço Social deveria conseguir essas escovas? Esse assunto deveria ser encaminhado pela
odontologia à direção. Indagaram se não fazíamos palestras. Respondemos que sim, mas
dependia do tipo de palestra. Sobre escovação, logicamente, não fazíamos. Explicamos que
poderíamos até auxiliar na motivação dos Internados a participarem de evento nesse sentido.
O Serviço Social pode se engajar numa palestra promovida pela odontologia ou por outro setor,
mas não é nossa competência o tipo de atividade que a odontologia parece pretender.
7- Não temos como manter o sigilo profissional, o qual está no nosso Código de Ética.
Na nossa sala são três Assistentes Sociais e dois estagiários e ficamos juntos, a questão do
sigilo torna-se impossível. Além disso, faltam condições práticas, pois não telefone na sala,
não temos computador nem fax. Às vezes, temos que buscar informações de pacientes em
outras cidades ou em outros estados, como podemos entrar em contato? Temos que nos dirigir
ao outro prédio, pedir para usar o telefone da direção e isso prejudica o nosso trabalho.
8- Do ponto de vista da cultura institucional, um viés muito forte de segregação e
punição. Aporque os agentes de segurança, todos eles, vêm de experiências de cadeia sem
nenhum preparo, nem para ingressarem na cadeia. Cabe imaginarmos para lidarem com
304
pessoas que têm transtorno mental. Olham como indisciplina, por exemplo, a manifestação de
um paciente surtado que está batendo em todo mundo e que precisa ser contido, sim, mas do
ponto de vista psiquiátrico.
Quanto às condições materiais, temos uma sala para quatro profissionais e dois
estagiários, o que significa inexistência de sigilo. Isso é sério, especialmente nos dias de visita,
quando a sala vira “uma doideira”. É situação para fechar o ambiente, pois contraria a Lei de
Regulamentação da Profissão e o próprio Código de Ética. Acho que nos Hospitais de Custódia
e Tratamento Psiquiátrico pouco compromisso com a questão da capacitação profissional.
Se compararmos, os Assistentes Sociais da cadeia buscam mais, se envolvem mais com esse
aspecto.
Acredito também que os Assistentes Sociais dos Hospitais de Custódia trabalham
muito, necessitam ter mais de um emprego para sobreviverem. Bem, mas não sei se é isso,
talvez os colegas não prezem tanto a capacitação, e ela é também a própria condição do
nosso trabalho e, por isso mesmo é um dos Princípios do nosso Código de Ética.
9- De modo geral podemos dizer que somos privilegiados, temos uma sala, local para
fazer nosso trabalho com grupos de familiares [...], somos privilegiados aqui.
O teor dessa explanação permite-nos inferir que, em linhas gerais, são
difíceis as condições de trabalho para os Assistentes Sociais na Instituição,
com evidente exceção para o último entrevistado (nº 9). Além disso,
aspectos como o sentimento de angústia do profissional pela ameaça sofrida
devido à falta de segurança no local de trabalho; ausência de capacitação dos
agentes de segurança para lidar com os usuários da Instituição; e espaços
físicos evidentemente impróprios para o atendimento dos usuários e seus
familiares, segundo os fundamentos, os Princípios e os artigos do Código de
Ética da Profissão.
Cabe apreciar a falta de recursos mínimos necessários para realização
das atividades profissionais, tais como: material de escritório, telefone, viatura,
pessoal de segurança capacitado, material de higiene, tratamento clínico e
305
medicamentoso. Temos que considerar que aqueles Internados provavelmente
chegaram ao delito pela falta de acompanhamento médico e de medicamentos.
Como podem essas pessoas ainda sob a guarda do Estado, após cometerem o
delito o qual deve ter ocorrido pela ausência de política pública e serem
consideradas inimputáveis serem outra vez deixadas sem a devida
assistência?
Resta-nos indagar se o entendimento translocado de que bastaria a
equipe profissional no quadro funcional da Instituição para que o produto do
trabalho desses profissionais fosse concretizado. É como se esse produto
dependesse única e exclusivamente da contratação do aspecto formal e
da intenção e/ou da boa vontade do profissional. É interessante observar que
é comum não haver correspondência entre o investimento no quadro funcional
e a provisão dos meios necessários para viabilizar resultados ou seja, o
alcance de objetivos e finalidades em acordo com programas institucionais bem
definidos, claros e explicitados para o corpo profissional e para a população
usuária dos serviços institucionais.
117
O entrevistado 6, ao referir-se à
solicitação do profissional da odontologia levanta um aspecto importante ou,
melhor, exemplifica em parte o que dissemos, ao trazer à baila o fato de uma
instituição em que não nem condições mínimas de higiene, inclusive oral
sabonete, pasta e escovas de dentes —, investir em profissionais da área
odontológica para o seu quadro funcional.
Enfim, temos que observar que são bastante complexas as condições
com que se pretende lidar; a questão é tão delicada que supõe normalmente
um trabalho de médio e longo prazos, um trabalho sistemático, aprofundado e
117
Em página anterior fizemos referência à possível inexistência de política penitenciária para respaldar o
trabalho institucional. Parece-nos que especialmente no item 2.8, especialmente, esse argumento ganha
reforço.
306
qualificado, esse é o caso dos Hospitais de Custódia, com expressiva
repercussão no trabalho do Serviço Social. Além disso, destaca-se ainda a
visível diferença na última resposta dada, a resposta 9. Provavelmente, isso
acontece (ao longo da entrevista) em decorrência de vários fatores, os quais
não cabe aqui comentar, dado o compromisso de sigilo. Poderemos apenas
fazer referência ao fato de considerarmos que, em grande parte, o profissional
limita sua análise à unidade em que trabalha e à sua relação profissional com a
direção da unidade, esvaziando seu foco de análise do nexo de conjunto e, por
conseguinte, não se aproximando de uma percepção de totalidade. Pelo que
pudemos saber, essa direção de unidade vem realizando no local um trabalho
administrativamente competente.
2.9- Considerações dos Assistentes Sociais entrevistados acerca da
interferência das condições de trabalho da Instituição no seu exercício
cotidiano de trabalho nesse espaço Institucional.
1- Sim, interferência. Se o temos uma sala com luz, cadeiras e mesa, o mínimo
de material, como realizar nosso trabalho? Como trabalhar se faltar papel, caneta ou
computador? Não é muito pedir por essas coisas, mas, avaliando a realidade da Secretaria,
ainda existe falta de estrutura.
2- Sim, totalmente. Quando há um agente de segurança mais agressivo, nosso
trabalho fica mais difícil. Caso faltem remédios, como podemos atender psicóticos, se o
estão medicados? Não conseguimos conversar com os pacientes, tampouco é possível
chegarmos aos familiares para prestar qualquer apoio. As famílias geralmente não m
condições de vir nesse período da visita, até o dinheiro da passagem para eles é muito difícil.
Nós não temos meios para facilitar [a vinda dos familiares].
A população interna nos Hospitais o difere daquela dos presídios em geral. É uma
população pobre e negra, geralmente. Agora, os dependentes químicos têm outra
característica. Têm outra condição financeira, inclusive. E como se criou um pólo [para atendê-
los], quando percebemos que se trata de dependente químico vai direto para lá, pois aqui não
307
é local possível de tratá-lo. Agora, quando o paciente é dependente químico e portador de
transtorno mental, a situação fica bastante complicada, até mesmo para trabalharmos.
3- Sim. Poderíamos ter um resultado bem melhor se tivéssemos melhores condições
de trabalho.
4- Sim. Se tivéssemos melhores condições [de trabalho] faria um trabalho melhor.
5- Sim. Não temos estrutura nenhuma para trabalhar. [...]. Tenho percebido boa
vontade da direção atual da unidade em superar, mas é muito difícil assegurar um suporte. Não
temos material suficiente. Para fazer visita domiciliar não temos veículo adequado. Temos
muita necessidade de [realizar] visita domiciliar. Inclusive, hoje, com a questão da violência,
não podemos utilizar viatura oficial. E mesmo sem carro oficial, como entrar com segurança
numa comunidade, numa área favelada? Como você sabe, a maioria de nossa clientela,
aqueles que estão aqui internados, mora em áreas difíceis.
De um tempo para cá, estamos trabalhando aqui com a porta aberta. Não podemos
mais fechar a porta em decorrência de algumas reações que certos pacientes tiveram. Estamos
muito preocupados com o que possa acontecer. Enfim, não temos estrutura nenhuma para
trabalhar.
6- Sim. Eu gostaria de ter mais instrumentos de trabalho, uma viatura à disposição,
alguém para dar andamento a vários documentos. Se tivesse quem digitasse o que faço,
adiantaria muito o meu serviço. Eu penso, executo, eu faço tudo. O Assistente Social aqui tem
que fazer tudo. o tem funcionário administrativo no Serviço Social. funcionário
administrativo na unidade, funcionário do Hospital. Quando elaboro um relatório, tenho que
digitá-lo; se penso em fazer um novo formulário, tenho que pensar, organizar, digitar. Os
arquivos, os documentos, enfim, tudo é organizado por nós, pelos Assistentes Sociais. Você se
preocupa e se ocupa com essas coisas todas e ainda tem que atender ao paciente, às famílias,
realizar contatos com as instituições. Não a quem você se dirigir e solicitar: “procure o
telefone disso ou daquilo”. É você quem vai procurar por tudo. Se houvesse funcionário, o
Assistente Social usaria devidamente a sua capacidade. Não se desgastaria com atividades
burocráticas, deixando de realizar projetos.
7- Sim. Quanto à questão do sigilo, muitas vezes estamos atendendo alguém e temos
que pedir que nosso colega saia da sala para que se torne possível tocarmos em certos
308
assuntos. pacientes de outros estados que gostaríamos de ter contato com os familiares e
não podemos, pois não disponibilidade de telefone. casos em que necessitamos
conversar com o defensor ou com um familiar sobre o andamento de um processo de um dos
Internados e não podemos. Observamos que esse processo talvez pudesse ter outro
encaminhamento e não tem como. A questão da segurança, eu também acho que atrapalha.
Tem poucos agentes penitenciários, na verdade poucos em todo o Sistema Penitenciário.
Eu levei a estagiária para conhecer o local onde as mulheres [Internas] ficam, são limpos, com
segurança apenas na porta. A estagiária gostou de conhecer o local, solicitou conhecer o local
onde ficam os homens. No entanto, para levá-la a precisamos da agente que nos
segurança, precisamos de um agente que fique à nossa disposição ou pelo menos no corredor,
e não temos agente que fique à disposição ou que fique no corredor quando estamos na sala
atendendo. De jeito nenhum esse agente ficaria perto, quando estivéssemos atendendo, mas
deveria ficar próximo. Outro dia, houve uma tentativa de estupro de uma de nossas colegas,
não era uma Assistente Social.
118
Acho que, se não devesse ter um agente sempre ali próximo
da sala, caberia um sistema de alarme, algo que favorecesse nossa segurança, e isso não tem,
o que atrapalha.
8- Sim. falei sobre a questão da cultura institucional, da segregação e da punição,
que têm implicação direta nas condições de trabalho. As condições materiais também ferem
até o próprio Código de Ética, no aspecto do sigilo profissional, por exemplo. O que se vive no
Hospital de Custódia é uma política pública que não posso nem chamar de frágil, mas de algo
distorcido, equivocado, um “tipo de não-política”.
9- Sim. Só ajudam e contribuem. Temos telefone, quando precisamos de aerograma ou
selo, podemos contar com isso, pois temos uma direção parceira mesmo. Não sentimos
dificuldade de realizar o nosso trabalho. Viatura é mais difícil. Até porque não utilizamos carro
oficial para visita domiciliar. É perigoso irmos para determinadas comunidades com carro
oficial. Caso haja necessidade de visita, utilizamos carro particular, dos próprios técnicos.
2.10- Indagados acerca dos serviços prestados pela Instituição aos
usuários, os entrevistados responderam:
118
Diferente de outras áreas do Sistema Prisional, não possibilidade de Visita Íntima, ou seja, prática
sexual com parceiros externos como um direito assegurado institucionalmente. Isso não seria um aspecto
preponderante a ser considerado face ao tratamento de pessoas portadoras de transtornos mentais?
309
1- De todos os locais em que trabalhei, este foi onde vi maior integração entre os
membros da equipe técnica. Há organização desde a recepção até o atendimento ao
Internado. Existem serviços como arteterapia, programação de eventos, passeios, mas não
veículos para isso.
2- É péssimo. A comida não é boa. [...]. Sobre o Sistema Penitenciário todo, quando
chegava um preso de delegacia ele vinha verde, imundo, sujo. Não tinha família e aí ficava sem
sabonete, sem pasta de dente ... e a higiene, como fica? Os nossos Internados têm grande
dificuldade de manter o asseio. [...]. Fizemos campanhas de doação para que os Internados
recebam sabonete, pasta de dente. quem traga, mas na verdade não vejo o benefício.
épocas em que não tem lençol, não tem colchão. “Ah, eles estragam”, dizem. Eles têm que ter
condições de tratamento. Eles estão aqui para isso, para serem tratados, e se tratam com o
quê? Não seria com condições dignas? E onde estão essas condições? E quem vai gritar por
eles? E, o que é o pior, nem falemos de condições materiais. Vamos pensar na assistência
jurídica, isso é muito falha. A Defensoria Pública vem aqui uma vez por semana, quando
vem. um defensor para várias unidades, o que nos leva a compreender as dificuldades
desses defensores. É uma luta dura, a angustiante. É defender aquele que não tem voz.
Você tem que se libertar disso, se ficar pensando... O próprio Judiciário é muito lento, as
decisões são muito lentas [...] você perde um exame [...], a saída do paciente demora quatro ou
cinco meses, muito lento só para sair daqui.
3- É regular [...]. Aqui a família se sente tranqüila porque trata-se de determinação
judicial, tem de ser cumprida. Agora na rede pública conseguir atendimento para a saúde...,
percebemos que as pessoas estão apodrecendo na espera.
4- Até se tenta fazer o melhor, mas as dificuldades existem em nível do próprio Estado.
A saúde está num processo de sucateamento, isso aqui reflete a política estatal. A falta de
medicamentos acontece apenas aqui. Se não temos medicação, caso haja uma crise
psiquiátrica, procuramos lidar da melhor forma possível com a situação. A equipe se desdobra
em acompanhamento para evitar maiores problemas. Outra coisa é quando o Internado passa
mal e não tem atendimento, não tem a especialidade para atendê-lo. o tem vaga no hospital
municipal e nem em outro hospital qualquer da rede pública que possa atendê-lo.
310
5- É ruim, muito ruim. Os Assistentes Sociais não têm condição de trabalhar com
qualidade e os Internados também não tem condições de sobreviverem com dignidade. Falta
tudo aqui. Material de higiene pessoal, os Internados vivem de assistencialismo. O Serviço
Social consegue roupas. Fazemos campanhas de arrecadação de sabonete, chinelo, papel
higiênico, porque eles [os Internados] o têm. É uma coisa assim muito “imediatista”, acabou,
acabou. situações pessoais também. amigos que doam. Tenho amigos religiosos que
doam roupas, um deles tem um táxi e traz as roupas até aqui. Os profissionais acabam fazendo
esse assistencialismo.
6- Os profissionais sempre estão disponíveis para o atendimento aos pacientes e à
família [...] dentro do Hospital o atendimento à família e ao paciente, prestamos atenção.
7- É muito precário. A maioria que está aqui é de baixa renda. São pessoas que estão
sem família muito tempo. Não têm ninguém que traga produtos de higiene ou uma coisa
diferente para comerem, quase todos passam por isso. A comida, tem épocas que está pior, os
Internados reclamam muito. Sabão em é coisa que não tem muitos anos, isso faz com
que as roupas sejam lavadas apenas com água. Todos nós sabemos que existem pacientes
aqui doentes não apenas psiquiátricos, existem outras enfermidades. Não desconhecemos que
diabetes, HIV e essa roupa é lavada apenas com água muito tempo. Quem tem família,
pode lavar sua roupa separadamente com o sabão que ela traz, se trouxer; mas, quem não
tem, sua roupa é jogada na máquina e sai àquela coisa cinza-escura. Essa parte de higiene
aqui é horrível. Fui outro dia [...] com um dos nossos pacientes dentro da área masculina, o
cheiro é horrível [...], vovai se aproximando e aquele cheiro vai aumentando. Quer dizer:
não há higiene.
Sinto falta de uma escola aqui. Não projeto educacional para os Internados. Os
pacientes poderiam aprender a ler, estudar, dar continuidade aos seus estudos. Poderia não
ser uma escola tradicional, mas um grupo de estudo, um grupo de leitura. Mas não tem nada.
Isso faz com que as pessoas fiquem muito ansiosas aqui dentro. o atividade esportiva
também não. Há banho de sol, em que um ou outro Internado pega a bola e brinca um
pouquinho, mas sem qualquer orientação esportiva.
Quanto ao lazer, no trabalho em equipe nós discutimos qual o Internado tem condição
de sair, tentamos realizar o trabalho de saída terapêutica assistida. Apesar de esse tipo de
311
trabalho ser muito produtivo, não temos transporte para levar os pacientes para os passeios.
Ficamos cheios de projetos: vamos juntar fulano, beltrano, seis ou sete pacientes e levá-los ao
cinema ou ao parque, levá-los para conhecerem alguma coisa, irem ao museu, ao zoológico...
que no final não conseguimos levá-los para lugar algum. Eles ficam muito ansiosos,
principalmente depois que a saída terapêutica é autorizada pelo juiz. Os Internados ficam aqui
no Hospital... uns estão aqui 20 ou 30 anos e não sabem como o mundo está fora, não
têm idéia de como está o Rio de Janeiro, e estão autorizados a sair, sem poderem fazê-lo.
As famílias dos Internados depois de muitos anos, realmente perdem o contato com
eles. Os Internados são pessoas que mataram, comumente, parentes a mãe, o filho, o
marido etc. Por isso, é difícil a família aceitar que voltem, é difícil querer manter contato com
essas pessoas. E nós, muitas vezes, não podemos fazer nada, por falta de meios, coisas
básicas. Como sair com essas pessoas para providenciar documentação? Gostaríamos de sair
com o paciente, resgatar algo, não temos como. É dificílimo conseguirmos fazer uma visita
domiciliar. Nunca consegui fazer uma aqui. Acho que nenhum dos Assistentes Sociais
conseguiu também. Por qual motivo? Por conta de falta de transporte.
8- Acho que os serviços de custódia e guarda pelos quais o Estado é responsável são
péssimos. A hospedagem, a comida e a higiene são péssimas.
Os ambientes dos profissionais da direção, do pessoal administrativos e dos técnicos
são limpos, uma firma de limpeza terceirizada responsável por isso. Porém as celas, pelo
que sabemos, são entregues para os Internados limparem, sem que haja material de limpeza.
São lavadas com água e pronto.
Outra coisa que é muito ruim são as atividades cotidianas. o atividades musicais
nem atividades de ginástica. Deveriam existir recursos para trabalharem o corpo, pois o
pessoas portadoras de transtorno mental que utilizam remédios que enrijecem a musculatura.
Isso é observável na própria expressão facial do doente, apesar de ser utilizado outro tipo de
remédio para tirar um pouco essa seqüela. Dessa maneira, trabalhar o corpo dessas pessoas é
muito importante, mas não existe esse recurso no Hospital.
Os funcionários que trabalham com esse tipo de usuário têm que ser capacitados para
uma boa escuta. Ter uma boa escuta é fundamental para entendermos os problemas dos
pacientes nesse ambiente. Isso é importante, significa não termos preconceito com aqueles
312
determinados fulanos. Mas isso não acontece, nem todos os funcionários m uma boa escuta.
Quanto aos serviços, nem sempre são serviços; ás vezes, não são serviços se empenhando
com objetivos profissionais que ultrapassem a mera burocracia, o que a Vara de Execuções
exige. Agora, dentro disso tudo, uma coisa muito séria para observarmos, que é a
contradição do sujeito excluído a tal ponto por diversos motivos que chega à inclusão às
avessas, o que é dramático. O sujeito chega ao Hospital de Custódia, por exemplo, e diz que
nunca fez um exame de tal natureza, mas sofre daquela doença muitos anos, pode ser no
ouvido ou no pulmão ou outro tipo qualquer. vai se tratar quando chega no Sistema Penal.
É uma inclusão às avessas. Aliás, a prisão hoje tem essa função.
9- Eu avalio de forma positiva. Observo que os Internados nessa Instituição são
respeitados. Trata-se de um Hospital com menor número de Internados do que a sua
capacidade de atendimento. Isso possibilita qualidade no atendimento do usuário. Até porque
nós nos dividimos em miniequipes e os Internados são atendidos por essas miniequipes em
grupinhos menores. Então, pela atenção que eles têm aqui, avalio como positivo.
2.11 Quanto à avaliação dos serviços prestados pelo Serviço Social, os
entrevistados responderam:
1- São serviços importantes e de ordem prática que não podem ser feitos, na maioria
das vezes, por causa da falta de pessoal, da falta de estrutura e recursos externos.
2- É um serviço muito fragilizado [...] não tem autonomia, não tem verba específica do
Serviço Social [...] tudo temos que pedir muito, tudo é muito difícil.
Trabalhamos o paciente visando ao retorno dele. Fazer o seu tratamento e voltar. Esse
retorno é muito difícil [...]. Por mais que você acredite nisso, principalmente quando ele não tem
apoio familiar [...]. Às vezes a gente discute: mas ele está bem, o que vai ficar fazendo aqui?
Para onde ele vai, se não tem o apoio da família? Temos urgência de lugares que abriguem
aqueles que podem ser desinternados e não contam com familiares casas do tipo
residências terapêuticas.
3- Precário, poderia ser melhor, bem melhor se houvesse condições melhores para o
trabalho.
313
4- O Serviço Social lida com questões práticas, questões concretas, e isso complica,
porque não cabe ao Serviço Social dar conta de questões que a Instituição não é capaz, mas
que muitas vezes chegam até ele [o Serviço Social].
5- Temos muita dificuldade para desenvolver aquele trabalho teórico que aprendemos
na faculdade. A equipe interdisciplinar do Hospital tem dificuldade de entender qual é o papel
do Serviço Social. Para eles, temos que arranjar uma roupinha, um calçado, permitir
telefonemas. Ajudar. Essa é a nossa função: ajudar. Não estamos nos desvinculando da ajuda,
mas gostaríamos que entendessem que não ajudamos, queremos que o paciente cresça,
seja promovido socialmente, seja reintegrado. O papel do Serviço Social ainda é deturpado,
por mais que a gente tente mostrar que a finalidade do Serviço Social não é assistir [...].
Temos essa dificuldade ainda.
6- Trabalhamos muito na informação sobre o paciente, possibilidades e tempos de
acompanhamento. Chamo constantemente o profissional da psicologia para atendimento,
oriento para que possam agendar atendimento com o médico. Estamos cobrando muito da
Defensoria Pública para prestar um atendimento eficaz aos Internados. Estamos trabalhando
em muitas frentes. O que é possível temos feito.
7- Encontramos dificuldades de contato com as famílias dos pacientes. Pedimos
aerogramas e a agora não chegaram. Cortaram nossos telefones e os seguranças só
permitem o uso do telefone com o Assistente Social do lado, junto do paciente. O contato do
paciente com a família fica difícil. E fica difícil porque não somos telefonistas para parar o
serviço e darmos telefonema com os pacientes, esse não é o nosso papel. Sem aerograma,
sem telefone, sem viatura é dificílimo tentar resgatar os laços familiares e ajudar a pessoa a
reencontrar seus laços com a sociedade, não temos como fazer isso aqui. Falta transporte,
atividade de lazer, esporte... falta muita coisa.
8- Apesar dos limites impostos pelas difíceis condições de trabalho, possibilidades
muito ricas no cotidiano do Assistente Social no Hospital de Custódia, dependerá muito do
engajamento desse profissional, do seu compromisso em não se deixar incorrer na rotinização.
uma distinção de que gosto muito, aquela que mostra que podemos ser responsáveis
tecnicamente sem que estejamos com isso garantindo responsabilidade ética. Podemos ser um
excelente burocrata e tecnicamente ter vencido todas as etapas do processo, mas não
314
necessariamente estar desse jeito comprometidos com o fim da ação. Não podemos ficar
cegos diante da finalidade da ação, nos importando com o produto institucional do meio. Todos
os processos estão respondidos, as gavetas não estão cheias de processos ou papéis, tudo foi
para o seu devido lugar. Porém, se a princípio pode parecer, isso não garante
responsabilidade ética, pode ser necessário para garantia de direitos, o que o deixa de ser
fundamental, mas não garante responsabilidade ética. Para tanto, torna-se necessário
comprometimento maior, comprometimento com a finalidade de todo o processo, com a
finalidade de toda a ação. Essa colocação é de um autor muito interessante, de que gosto
muito.
9- Avalio de forma positiva, porque não encontro dificuldade para desenvolver meu
trabalho.
Como comentamos, os Hospitais de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico não contam com planejamento devidamente documentado e
fundamentado em propostas coletivas e/ou das equipes de trabalho cujos
objetivos sejam claros, norteiem a ação e sejam permanentemente avaliados.
Isso, no nosso entender, é significativamente responsável pelas expressões
avaliativas que, mesmo que tragam aspectos interessantes, são genéricas e
pouco estruturadas acerca dos serviços prestados na Instituição (o que inclui o
trabalho do Serviço Social). Não permitem que os profissionais consigam
identificar claramente entre discurso e realidade vivenciada. São argumentos
que não se baseiam em pesquisas, estudos científicos, levantamentos de
dados, projetos executados pelo Serviço Social, programas institucionais, suas
metas ou seus objetivos e que, por vezes, não conseguem estabelecer
diferença entre o que é dado institucional e o que é do universo profissional.
Trata-se de avaliações limitadas que não captam criticamente a realidade com
suas determinações e suas mediações, e que são produtos e produzem
315
práticas correspondentes. É relevante acrescentarmos que, sem
conhecimento/avaliação, não podemos projetar.
Quanto a isso, é importante a afirmação de Iamamoto:
Sem considerar essa dinâmica histórica, ao se falar em
projetos societário e profissional pode-se cair na armadilha de
um discurso que proclama valores radicalmente humanistas,
mas não é capaz de elucidar as bases concretas de sua
objetivação histórica (2007, p. 229).
Nessas apreciações genéricas, a maioria dos entrevistados, não
obstante constatarem as precárias condições de trabalho e, em conseqüência,
de atendimento aos usuários da Instituição, a atrofia e/ou distorções das
políticas públicas, a precariedade das condições de vida e de trabalho dos
familiares dos Internados — ou, melhor, da maior parte dos trabalhadores
brasileiros — sobretudo dos que pertencem às camadas populares, parece não
captar que essas são questões que, mesmo que não exclusivamente, também
fazem parte da sua intervenção profissional, e não elementos que se põem
para dificultá-la. Isso pareceu ser demonstrado em trechos que situam essas
questões como “externas”, “independentes” que, se melhores se tornassem,
sem que para isso coubesse qualquer interferência do Serviço Social,
facilitariam o trabalho profissional do Assistente Social.
A realidade social não é propriedade nem responsabilidade única de
qualquer profissional.Todavia, sabemos que é nessa realidade que o
Assistente Social também trabalha, e o seu âmbito de ação não pode ser
apreendido como obstáculo. Não estamos diante de um obstáculo, mas sim de
objeto de investigação, de análise e de intervenção profissionais, com sua
dinâmica e suas contradições, suas possibilidades e seus limites. Pode-se até
concluir pela inviabilidade da ação profissional em dada área dessa realidade
316
em determinada contingência. Todavia, tal posição necessita ser
profundamente analisada até que possamos responsavelmente assumi-la.
119
Dessa maneira, destacaremos também alguns pontos acerca dos três
últimos itens tratados, os quais, por apresentarem estreita relação, agrupamos,
procurando evitar a repetição de comentários:
Quanto ao item 2.9, referente à interferência das condições de trabalho
da Instituição no exercício profissional cotidiano do Assistente Social:
2.9.1 É interessante observarmos o destaque dado pelo entrevistado de
2 no trecho relativo à interferência da ação do agente de segurança no
trabalho institucional, assim como a interferência causada pela falta de
medicamentos.
Cabe destacar também a caracterização da população do Hospital, que
apresenta traços comuns aos da população carcerária em geral pobres e
negros —, excetuando-se os Internados que são dependentes químicos.
2.9.2 A questão da criminalização da pobreza, discutida no Capítulo 2
mostra-se de inúmeras formas no decorrer das entrevistas, a exemplo das
condições institucionais que aqui são evidenciadas e a vulnerabilidade da
população pobre à punição, o que ganha maior ênfase com o que foi dito
anteriormente acerca da política do Hospital de Custódia de voltar-se mais
para a punição do que para o tratamento (Delgado, 1992). carência de
política pública, e os parcos recursos sociais com que contamos ainda o de
difícil acesso para os que deles necessitam, devido a um clima beligerante que
se instituiu entre o poder público e o chamado “poder paralelo”, o qual por mais
que se negue, mesmo oficialmente (seja o clima de guerra, seja a existência
119
Ao nos referirmos a esse entendimento de obstáculo no campo profissional, um aspecto a ser
considerado é a qualidade da formação profissional, no sentido de favorecer possibilidades de apreensão e
intervenção em nível teórico, técnico e ético.
317
desse poder), sabemos que existe. Observemos a seguir o que expõe o
entrevistado no trecho citado na resposta 5 ao destacar a impossibilidade de
utilização de viatura oficial para realizar visita domiciliar:
Temos muita necessidade de [realizar] visita domiciliar. Inclusive, hoje, com a questão
da violência, não podemos utilizar viatura oficial. E mesmo sem carro oficial, como entrar com
segurança numa comunidade, numa área favelada ? Como você sabe, a maioria de nossa
clientela, aqueles que estão aqui internados, mora em áreas difíceis.
Além disso, não é difícil inferirmos que os pobres, em nosso País, estão
mais vulneráveis aos aparatos do Sistema de Justiça Criminal. São eles que
têm menor acesso aos recursos necessários à sobrevivência e que, cada vez
menos, têm acesso às políticas públicas, seja devido à atrofia do Estado, seja
por causa dos conflitos impostos pelos agentes dos poderes “não-oficiais” — os
quais, apesar de em última instância poderem ser também conseqüências da
ausência dessas políticas, acabam produzindo questões que exacerbam as
dificuldades de acesso a tais políticas. Assim, a população pobre se tornou
gradativamente mais estigmatizada como um contingente populacional
potencialmente criminoso, por residir em áreas suspeitas, ter uma “aparência
suspeita”, como foi abordado em Capítulo 2 referente à criminalização da
pobreza. Tudo isso se agrava se acrescentarmos o transtorno mental, que é o
caso das pessoas encaminhadas aos Hospitais de Custódia, como se não
bastasse a significativa parcela de estigma social que esse tipo de complicação
de saúde por si só já carrega.
2.9.3- Além de espaço físico inadequado ameaçar ou até violar um
preceito do Código de Ética Profissional (ver respostas 7 e 8), falta de
recurso humano concorrendo para prejuízo dos serviços prestados aos
usuários. A falta de planejamento estatal, para dar suporte às ações
318
profissionais torna-se evidente na explanação de 8, quando se refere a uma
política pública de tal forma desestruturada e frágil, que pode ser apreendida
como “um tipo de não- política”.
É relevante o trecho da entrevista de 6 em que o Assistente Social
revela certa “polivalência” profissional:
Quando elaboro um relatório, tenho que digitá-lo; se penso em fazer um novo
formulário, tenho que pensar, organizar, digitar. Os arquivos, os documentos, enfim, tudo é
organizado por nós, pelos Assistentes Sociais. Vose preocupa e se ocupa com essas coisas
todas e ainda tem que atender ao paciente, às famílias, realizar contatos com as instituições.
É importante considerarmos que, na medida em que o Assistente Social
se ocupa com atividades impróprias, deixa de executar suas atribuições, dando
com isso a possibilidade de outro(s) profissional(ais) o fazer, assumir seu
espaço profissional, bem como a chance de que as pessoas em geral possam
ter uma imagem distorcida do seu papel na sociedade. Isso traz prejuízos não
só à profissão como aos serviços que poderiam ser usufruídos pelos usuários.
2.9.4 O profissional citado no trecho 9 fecha seu foco de análise no
seu campo de intervenção profissional, o que parece limitar sua possibilidade
de avaliação. Destaque-se ainda a sua consideração acerca da utilização de
carro particular para a realização de visita domiciliar pela equipe profissional,
sem qualquer comentário crítico a esse respeito.
2.10 Quanto aos serviços prestados pela Instituição aos usuários,
destacamos:
2.10.1 No trecho de 2, é bastante significativo o questionamento do
profissional acerca da responsabilização dos Internados sobre a falta de
colchões e lençóis. Colocar nos pacientes que sofrem com a ação a
responsabilidade das falhas do Estado e do desrespeito aos doentes é, no
319
mínimo, um exagero. Consideramos bastante interessante como o profissional
utilizou o problema para indagar sobre a finalidade da Instituição e os meios
para se alcançá-la.
época em que não tem lençol, não tem colchão. “Ah, eles estragam”, dizem. Eles
[Internados] têm que ter condições de tratamento. Eles estão aqui para isso, para serem
tratados, e se tratam com o quê? Não seria com condições dignas? E onde estão essas
condições? E quem vai gritar por eles?
Cabe notar ainda a explicação dada pelo mesmo profissional para a
fragilidade da assistência jurídica prestada pelo Estado aos Internados,
assistência da qual eles tanto dependem, não pela questão financeira, mas
pela impossibilidade de vida fora dos muros institucionais, e alguns pelo próprio
tipo de doença que apresentam.
2.10.2 O quadro traçado pelo capitalismo contemporâneo, de ideologia
neoliberal, com expropriação de direitos, atrofia do Estado e dos serviços
públicos, mostra-se claramente em vários momentos das entrevistas. Aqui
serão citados apenas dois trechos que consideramos emblemáticos. O primeiro
refere-se ao trecho de nº 3, em que o profissional diz que os familiares sentem-
se mais tranqüilos em deixar seus parentes nos Hospitais de Custódia do que
nos hospitais da rede pública de saúde. Fato que nos leva à consideração do
atual nível de degradação da nossa rede pública de saúde.
[...]. Aqui a família se sente tranqüila porque trata-se de determinação judicial, tem de
ser cumprida. Agora na rede pública conseguir atendimento para a saúde..., percebemos que
as pessoas estão apodrecendo na espera.
Observe-se trecho da exposição de nº 8, que aborda a inclusão às
avessas”, ou seja, a possibilidade de a pessoa usufruir de determinados bens
sociais, somente após, com seu encarceramento, ser afastada do convívio
social.
320
Agora, dentro disso tudo, há uma coisa muito séria para observarmos, que é a
contradição do sujeito excluído a tal ponto por diversos motivos que chega à inclusão às
avessas, o que é dramático. O sujeito chega ao Hospital de Custódia, por exemplo, e diz que
nunca fez um exame de tal natureza, mas sofre daquela doença muitos anos, pode ser no
ouvido ou no pulmão ou outro tipo qualquer. vai se tratar quando chega no Sistema Penal.
É uma inclusão às avessas. Aliás, a prisão hoje tem essa função...
Isso reflete o grau de desigualdade social a que se chegou, dadas as
ingerências econômicas postas pela crise contemporânea do capital e sua
repercussão em nosso País. Sabe-se, a exemplo do que foi discutido no
Capítulo 2, que o Sistema Penitenciário vem cumprindo função complementar
para o mercado, ou seja, além de certa oferta de trabalho, contando, inclusive,
com terceirização, existe a inclusão dos sobrantes [do mercado], e neste caso
presente, poderíamos falar também da inclusão daqueles que são totalmente
inaceitáveis pelo mercado ou, recorrendo à expressão de um dos
entrevistados, os “nadas” [para o mercado].
2.10.3 Há certas explanações que quase nos impedem de caracterizar a
Instituição aqui tratada como voltada para o tratamento da saúde. O trecho da
entrevistada de 7 é uma expressão disso. O fato de que alguém está sob a
guarda do Estado para ser tratada e não tem sequer o mínimo de asseio básico
é inaceitável. Como se pretende qualquer tipo de melhora na saúde de um ser
humano que não dispõe de meios mínimos de prover a higiene de seu corpo e
que não vê respeitado o ambiente físico em que se encontra?
A maioria que está aqui é de baixa renda. São pessoas que estão sem família há muito
tempo. Não têm ninguém que traga produtos de higiene ou uma coisa diferente para comerem,
quase todos passam por isso. A comida, tem épocas que está pior, os Internados reclamam
muito. Sabão em é coisa que não tem muitos anos, isso faz com que as roupas sejam
lavadas apenas com água. Todos nós sabemos que existem pacientes aqui doentes não
321
apenas psiquiátricos, existem outras enfermidades. Não desconhecemos que há diabetes, HIV
e essa roupa é lavada apenas com água muito tempo. Quem tem família, pode lavar sua
roupa separadamente com o sabão que ela traz, se trouxer; mas, quem não tem, sua roupa é
jogada na quina e sai àquela coisa cinza-escura. Essa parte de higiene aqui é horrível. Fui
outro dia [...] com um dos nossos pacientes dentro da área masculina, o cheiro lá é horrível [...],
você vai se aproximando e aquele cheiro vai aumentando. Quer dizer: não há higiene....
Como pensar em trabalho com um portador de transtorno mental que
não é objeto de cuidado e de respeito?
120
Existem na Instituição, conforme relato do profissional entrevistado,
pessoas que 20 anos ou mais não têm qualquer contato com o mundo
externo, por mera falta de viatura, apesar da autorização do juiz para que
saiam. Isso é aceitável em uma Instituição cujo objetivo é tratar pessoas que
estão privadas de liberdade porque cometeram delito e são portadoras de
transtorno mental?
Será que essas pessoas são realmente observadas como ameaças para
a sociedade e, por isso, receberiam tratamento para que obtivessem condição
de convívio desinstitucionalizado?
Desse modo, com base nos relatos que vimos, podemos afirmar trabalho
no sentido de tratamento?
Diante disso, cabe esclarecermos que faz parte das Regras Mínimas
para o Tratamento dos Reclusos (ONU, 1955) como se pode verificar em sua
regra 57, o indicativo de não agravamento do sofrimento do indivíduo
encarcerado: o sistema prisional não deve agravar o sofrimento do indivíduo,
estado inerente à perda da liberdade e da autonomia.
121
Na legislação
120
É importante citar que, segundo consideração do Departamento Penitenciário DEPEN —, o Rio de
Janeiro é modelo de saúde prisional no País. Dado obtido, em 20/09/08, pelo site
www.agenciabrasil.gov.br/notícias/2007/07/07.
121
Grifo nosso.
322
brasileira, a Lei de Execução Penal, de 1984, que tem seu conteúdo baseado
nas “Regras Mínimas”, mas com outra forma de abordagem, evidencia o direito
dos presos à assistência e o dever do Estado de promover tal assistência em
diversas dimensões: na saúde, nas necessidades materiais, sociais, religiosas,
educacionais, jurídicas, conforme Pereira (2006, p. 270).
2.10.4 A avaliação feita pelo profissional no 9 é relevante no sentido
de destacar que, diferentemente da maioria dos locais do Sistema
Penitenciário, os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico não têm
superlotação; ao contrário, às vezes nem chegam a preencher toda a sua
capacidade. No entanto, de modo geral, esse fato, como se pode verificar pelos
relatos, não é suficiente para assegurar condições satisfatórias de higiene e
acolhimento em suas dependências, tampouco, tratamento de qualidade aos
Internados.
Sem que haja qualquer demérito quanto ao esforço da equipe intra- ou
interprofissional profissional no sentido do atendimento qualificado aos
Internados, no que diz respeito à explanação de 9, cabe considerarmos
também que o Serviço Social é um setor que conta com dois profissionais para
atender em média 120/130 Internados (o Hospital tem capacidade para maior
número), sendo que no período da entrevista apenas um Assistente Social
estava em exercício, uma vez que o outro se encontrava em licença médica.
Isso gera questionamento quanto à viabilidade concreta de atendimento
adequado aos usuários da Instituição e quanto à avaliação feita pelo
entrevistado.
2.11 Em relação aos serviços prestados especificamente pelo Serviço
Social, destacamos das respostas dadas pelos entrevistados:
323
2.11.1 Como já mencionamos, a inexistência de planejamento
impossibilita o acompanhamento sistemático do trabalho profissional por meio
de avaliações permanentes. Não é possível avaliar profissionalmente sem um
projeto que norteie a ação, sem metas e objetivos ou seja, sem parâmetros
para serem considerados nessa avaliação. Isso tende a produzir argumentos
genéricos, distantes da realidade, confusos ou, no mínimo, pouco coerentes.
Assim, sem que estejamos nos dedicando aqui ao cruzamento de dados ou à
comparação de informações, observamos, por vezes, situações em que
aspectos desse gênero se impõem. Um exemplo disso é o trecho de entrevista
de 01, em que o entrevistado em situação anterior (item 2.8), havia feito
referência à Instituição como um local com estrutura para o desenvolvimento
de trabalho do Serviço Social, bastando para isso investimento profissional, ou
seja, dedicação do Assistente Social. Segundo esse entrevistado, o profissional
deveria ir a campo, ter iniciativa, assistir ao usuário. No entanto, ao avaliar o
serviço prestado pelo Serviço Social aos usuários, esse mesmo entrevistado
respondeu limitando-o a serviços de ordem prática que, na maioria das vezes,
não podem ser realizados por falta de recursos de várias ordens. Ou seja, teve
posição bastante diferente da anterior, e restringiu seriamente a ão
profissional.
2.11.2 por meio de muito estudo é possível nos aproximarmos do
real. É necessário grande esforço, um expressivo investimento intelectual em
busca de decifrarmos a realidade social. Porém, essa é uma posição
imprescindível para aqueles que pretendem apreendê-la em suas
determinações e em seus nexos para intervir profissionalmente de maneira
qualificada, criativa e sem imediatismo. Fique claro que a expressão “sem
324
imediatismo” não significa aqui qualquer demérito às necessidades imediatas
dos usuários do Serviço Social e ao atendimento profissional dessas
necessidades a prestação de serviços concretos, consideradas as
características da maioria da população que procura o Plantão do Serviço
Social, é um exemplo importante desse tipo de atendimento. Ao contrário, não
estamos negando esse atendimento, defendemos a eficiência profissional em
favor fundamentalmente da população usuária dos serviços institucionais e não
de outros interesses, como aqueles que atendem a necessidade de prestígio
pessoal/profissional ou os interesses meramente mercantis, por exemplo.
Todavia, considerar a pertinência do atendimento das necessidades imediatas
dos usuários difere da idéia de que esse atendimento esteja no horizonte
profissional como seu “ponto-limite”.
Prosseguindo no nosso ângulo de raciocínio, é com a busca do
desvendamento da realidade social, no constante exercício investigativo, no
exercício para formulação de juízos críticos acerca da questão social” que se
pode alcançar a complexidade que significa atuar como Assistente Social na
sociedade brasileira, especialmente nas atuais condições políticas e
econômicas e por se tratar de um local em que o alto nível de exigência é
evidente, como se observa na área sociojurídica e, ainda mais, nos Hospitais
de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, onde se acrescentam os problemas
relativos à política da saúde, da necessidade de lidar com o transtorno mental.
Por conseguinte, causam-nos espécie as expressões dos entrevistados que
têm as dificuldades no seu trabalho como algo, por assim dizer, inesperado ou
como um obstáculo a suas ações. Não estamos com essa afirmação
subestimando o trabalho desses profissionais longe disso, e até ao
325
contrário. O que queremos dizer é que não é possível esperar que a situação
fosse diferente na medida em que temos alguma consciência crítica do mundo
em que vivemos, da sociedade que participamos. No nosso entender, cabe ao
Assistente Social lidar com a questão numa perspectiva investigativa,
posicionando-se como profissional. Portanto, como sujeito que tem
compromisso científico de compreensão intelectual da realidade que lhe
permita formas interventivas qualificadas, que visem a alterar o quadro
encontrado, objetivando seu trabalho e nele imprimindo finalidade consciente,
rumos e valores escolhidos, e não se restringindo a uma relação empobrecida,
pouco refletida, superficial e rotineira com a realidade. Podemos configurar a
relação entre causalidade e teleologia.
O que viemos dizendo complementa-se com o fato de o Serviço Social
não ter planejamento de trabalho, tornando-se com isso vulnerável, pois, além
do que foi dito quanto à ausência de metas e objetivos, não tem também
definição clara quanto à rotina de trabalho (o que inviabiliza inclusive a imagem
de trabalho de equipe). Este fato tende a fazer com que solicitações de todos
os gêneros sejam encaminhadas a esse setor e dificilmente sejam entendidas
como fora de sua alçada, gerando desgaste profissional e desrespeito aos
usuários, uma vez que dificulta que atividades pertinentes possam ser
projetadas para a população que procura o serviço.
Quanto ao que discutimos neste item, é importante apreciar os trechos
de entrevista de números 4, 5 e 7.
- O Serviço Social lida com questões práticas, questões concretas, e isso complica,
porque não cabe ao serviço Social dar conta de questões que a Instituição não é capaz, mas
que muitas vezes chegam até ele [o Serviço Social].
326
- [...] a equipe interdisciplinar do Hospital tem dificuldade de entender qual é o papel do
Serviço Social. Para eles, temos que arranjar uma roupinha, um calçado, permitir telefonemas.
Ajudar. Essa é a nossa função: ajudar. Não estamos nos desvinculando da ajuda, mas
gostaríamos que entendessem que não ajudamos [...]. O papel do Serviço Social ainda é
deturpado por mais que a gente tente mostrar que a finalidade do Serviço Social [...]. Temos
essa dificuldade ainda.
- Encontramos dificuldades de contato com as famílias dos pacientes. Pedimos
aerogramas e a agora não chegaram. Cortaram nossos telefones e os seguranças só
permitem o uso do telefone com o Assistente Social do lado, junto do paciente. O contato do
paciente com a família fica difícil. E fica difícil porque não somos telefonistas para parar o
serviço e darmos telefonema com os pacientes, esse não é o nosso papel. Sem aerograma,
sem telefone, sem viatura é dificílimo tentar resgatar os laços familiares [...]. Falta transporte,
atividade de lazer, esporte... falta muita coisa.
2.11.3 Em trecho da entrevista de 5, além de outra vez nos
depararmos com a cisão entre teoria e prática, ou seja, a idéia que relaciona a
teoria ao campo acadêmico, apreende-se com nitidez o referencial
funcionalista. O profissional explicita seu objetivo de promover e reintegrar o
paciente da Instituição, assumindo finalidades psicossociais e parâmetros
funcionais, sem questionamentos da ordem vigente.
Temos muita dificuldade para desenvolver aquele trabalho teórico que aprendemos na
faculdade. A equipe interdisciplinar do Hospital tem dificuldade de entender qual é o papel do
Serviço Social. Para eles, temos que arranjar uma roupinha, um calçado, permitir telefonemas.
Ajudar. Essa é a nossa função: ajudar. Não estamos nos desvinculando da ajuda, mas
gostaríamos que entendessem que não ajudamos, queremos que o paciente cresça, seja
promovido socialmente, seja reintegrado. O papel do Serviço Social ainda é deturpado, por
mais que a gente tente mostrar que a finalidade do Serviço Social não é assistir [...]. Temos
essa dificuldade ainda.
327
2.11.4 O trecho de entrevista 8 destaca a importância do
compromisso profissional com a não-rotinização e a finalidade da ação. Sem
desconsiderar as difíceis condições de trabalho, avalia os Hospitais de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico como um campo rico para o trabalho do
Assistente Social. E, utilizando-se de explicação de certo autor, salienta o
significado da responsabilidade ética.
Apesar dos limites impostos pelas difíceis condições de trabalho, possibilidades
muito ricas no cotidiano do Assistente Social no Hospital de Custódia, dependerá muito do
engajamento desse profissional, do seu compromisso em não se deixar incorrer na rotinização.
uma distinção de que gosto muito, aquela que mostra que podemos ser responsáveis
tecnicamente sem que estejamos com isso garantindo responsabilidade ética. Podemos ser um
excelente burocrata e tecnicamente ter vencido todas as etapas do processo, mas não
necessariamente estar desse jeito comprometidos com o fim da ação. Não podemos ficar
cegos diante da finalidade da ação, nos importando com o produto institucional do meio. Todos
os processos estão respondidos, as gavetas não estão cheias de processos ou papéis, tudo foi
para o seu devido lugar. Porém, se a princípio pode parecer, isso não garante
responsabilidade ética, pode ser necessário para garantia de direitos, o que o deixa de ser
fundamental, mas não garante responsabilidade ética. Para tanto, torna-se necessário
comprometimento maior, comprometimento com a finalidade de todo o processo, com a
finalidade de toda a ação. Essa colocação é de um autor muito interessante, de que gosto
muito.
Essa expressão do entrevistado nos leva a considerar a relevante
possibilidade que tem o profissional de redirecionar o sentido do seu trabalho,
atribuindo-lhe direção social, neutralizando a alienação muitas vezes presente
nessa atividade, particularmente quando se trata de trabalho assalariado para
quem o realiza. Todavia, esteja claro que para imprimir significado ético-político
é imprescindível que o sujeito tenha consciência da finalidade da ação.
328
de ficar claro, ainda, que o trabalho do Assistente Social não é uma
“prática isolada”, sem conexão com a vida em sociedade, mas vinculado a uma
“trama social que cria sua necessidade e condiciona seus efeitos na sociedade”
(IAMAMOTO, 2007, p. 27).
2.12 Quanto à indagação aos entrevistados sobre a Política de
Saúde/Reforma Psiquiátrica:
Não se observou qualquer análise sobre política de saúde que não
focalizasse exclusivamente a esfera psiquiátrica. Com exceção de um
entrevistado que fez a ressalva de, talvez pelo fato de ter pouco conhecimento
da legislação na área da reforma Psiquiátrica, avaliá-la em parte,
considerando-a como avanço parcial pois, a seu ver, o movimento
antimanicomial tende a colocar em desamparo pessoas que não têm para onde
ir após passarem longo tempo internadas e perderem os vínculos familiares —,
todos os demais profissionais demonstraram aprovação à Reforma e seus
avanços no tratamento psiquiátrico. Não deixaram, contudo, de destacar a
fragilidade dessa política, traduzida em grande parte nos minguados recursos
com que podem contar para sua execução.
Apesar de reconhecermos a relevância da Reforma Psiquiátrica, mesmo
não se tratando de algo dado, mas sim de uma política de luta, ou seja, um
movimento em prol de conquistas e de avanços nessa área, não podemos
deixar de observar quanto ainda é trabalhoso, por exemplo, o momento de
desinternação em um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, haja
vista a insipiência da rede pública de atendimento. Além do mais, que levar
em conta, que se trata de Instituições que lidam com pessoas cujo estigma
social é muito forte, não apenas por serem pessoas portadoras de transtornos
329
mentais, mas também por serem fundamentalmente oriundas das camadas
populares e que cometeram delitos, às vezes no seio da própria família. São
pessoas que costumam perder os vínculos familiares, por passarem longo
tempo internadas, ou que, em conseqüência do crime, tornam-se rejeitadas
pelos familiares, particularmente se o delito foi cometido contra algum parente.
2.13- Indagados sobre a Lei de Execução Penal (LEP), os
entrevistados:
Não realizaram análises minuciosas sobre a LEP, mas destacaram
pontos importantes. Um dos entrevistados mencionou que, pelo fato de
trabalhar em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, parece lidar
unicamente com paciente psiquiátrico e esquecer que aquela pessoa cometeu
delito (fato que não é incomum entre os membros da equipe técnico-
profissional desses Hospitais; normalmente se importam mais com aspectos
referentes à Reforma Psiquiátrica e se esquecem da LEP). Outro entrevistado
frisou a falta de política penitenciária e mencionou que as condições físicas no
Sistema Penal exemplificam desrespeito à Lei. Houve entrevistado que citou
a falta de individualização na aplicação de penas no Sistema.
Enfim, a Lei de Execução Penal, datada de 1984, mesmo que
promulgada antes da Constituição de 1988, significou considerável avanço no
âmbito da política penitenciária. Entretanto, a mera existência da lei não é
suficiente para materializar tal avanço no cotidiano dos custodiados, não basta
para nos permitir visualizar sua concretização no dia-a-dia dos Hospitais de
Custódia, por exemplo. A esse respeito, como disse um dos profissionais
entrevistados, “o problema não é a falta da lei, mas sim a falta de sua
execução”.
330
Dessa maneira, é possível observar, apenas com o que tivemos
oportunidade de apreciar em respostas anteriores, que o que foi assegurado
aos presos nessa Lei, a exemplo da assistência à saúde, à educação ou a
possibilidade de trabalho, não são aspectos que vêm sendo garantidos, nem a
própria assistência social, vem sendo devidamente respeitada.
2.14 Quanto aos comentários dos entrevistados sobre a atual conjuntura
político-econômica e o Serviço Social brasileiro, o trabalho da Instituição e do
Serviço Social na Instituição, os principais pontos das explanações dos
profissionais estão reunidos na síntese a seguir.
Estamos diante de uma política econômica que vem gerando sérias
necessidades sociais, pois exclui a população dos direitos sociais. Uma política
que contempla o consumo e concomitantemente inviabiliza direitos,
fomentando, em conseqüência, a violência.
A Instituição (Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico) sofre as
repercussões dessa política que prioriza o consumo em detrimento das
políticas públicas. Trata-se de instituição pública vinculada ao Sistema
Prisional, ou seja, instituição criada para lidar com a denominada questão da
violência/criminalidade, ou seja, instituição que lida diretamente com o
aprisionamento e também com a política de saúde. Além disso, necessita da
rede pública de assistência para realizar trabalho com os Internados no sentido
de viabilizar seu retorno ao convívio com a sociedade.
A intensificação da pobreza e a precarização das condições de vida e
trabalho das camadas populares em nosso País, traços que marcam o
percurso da ideologia neoliberal em terras brasileiras, são exemplificadas pelos
familiares dos Internados dos Hospitais de Custódia, quando podem estar
331
presentes na Instituição
122
e, em especial, quando são entrevistados pelo
Serviço Social. Quanto a isso, é oportuno lembrar frase de um dos
profissionais entrevistados: “é possível ver o reflexo de toda a sociedade aqui
no microcosmo do Hospital de Custódia”.
O sentimento de prejuízo do trabalho em função da necessidade de
dupla jornada para manter a sobrevivência, aliado ao “preço” de realizar
atividade profissional em Instituição destinada à população pobre motivo
potencial para ser criminalizada e estigmatizada, como já discutimos, em
geral avaliada como improdutiva para o capitalismo e estigmatizada pela
sociedade por temê-la (louco-infrator) também é verificado pelos entrevistados.
o entendimento de que a contratação do trabalhador terceirizado
tende a contribuir para a fragmentação da equipe do Serviço Social e também
de outras áreas, bem como para a desqualificação do trabalho dos
profissionais e a conseqüente desqualificação na prestação dos serviços
institucionais aos usuários.
É necessário frisar ainda que a atual conjuntura foi apontada como razão
prioritária para que as pessoas tenham chegado ao grau de acirramento de
transtorno mental a que chegaram. Tal acirramento decorre da ausência de
atendimento ou da devida assistência à saúde, ou, melhor dizendo, da
possibilidade de acesso à política pública, haja vista a atrofia do Estado para
atender às necessidades sociais.
123
Por fim, temos que mencionar que houve profissionais que destacaram a
atual degradação das condições físicas das unidades do Sistema Penitenciário
122
Segundo relato dos Assistentes Sociais entrevistados, as visitas aos Internados ou entrevistas com a
equipe profissional às vezes tornam-se difíceis ou até impossíveis, pela própria dificuldade de acesso à
Instituição, devido à falta de dinheiro para o transporte.
123
Conforme José P. Netto, em Crise do socialismo e ofensiva neoliberal (1993), trata-se do Estado
mínimo para o trabalho e máximo para o capital.
332
e a desqualificação de suas condições de atendimento.
124
Desse modo, e pelo
que até aqui discutimos, é relevante avaliarmos cuidadosamente, diante da
atual diretriz de desregulamentação do trabalho, a suficiência de trabalhadores
concursados no Sistema Penitenciário as suas condições de trabalho e a
sua possibilidade de capacitação dada especificidade do trabalho —, a
presença de trabalhadores em desvio de função e de trabalhadores
terceirizados.
2.15 Quanto à indagação sobre a Lei de Regulamentação da Profissão
facilitar o trabalho profissional dos Assistentes Sociais, as respostas foram:
1- Sim. A existência da Lei concede legitimidade à profissão, possibilitando que o
público saiba quem é o profissional, o objetivo da profissão, o que o profissional se propõe
defender.
2- Sim. Porque nosso Código de Ética fez uma opção, de que trabalhássemos a
garantia de direitos. Temos no digo Princípios que orientam que possamos trabalhar isso na
nossa profissão [...].
3- Não respondeu.
4- Não respondeu.
5- Sim. O fato de a profissão ser regulamentada, ter normas, regras e corpo próprio
facilita o trabalho [...].
6- Sim. A regulamentação respalda muito nosso trabalho cotidiano frente às
instituições, aos outros profissionais, acho muito importante. Considero que depois do último
Código, tudo se tornou mais transparente. Eu tinha uma dificuldade muito grande de lidar com
aspectos do Código de Ética, era como se fossem umas questões um pouco nubladas. Hoje se
tornaram bem mais claras. Não sei se pela divulgação, pela participação mais intensa das
124
Um dos entrevistados, comentando a atual política penitenciária, disse tratar-se fundamentalmente da
construção de penitenciárias, da abertura de vagas para presos (nisso podemos observar o que discutido
por Wacquant [2001b] acerca do Estado penal). Uma política de segregação, que não considera nem o
espaço sico institucional para atividades com os Internados. o edificações erguidas sem previsão
arquitetônica para o lazer, para o trabalho com os Internados e um único pátio Interno descoberto para
visitação. São penitenciárias com celas para 75 presos, com camas triliches e o último a ocupar a cama
provavelmente baterá com a cabeça no teto. Imaginemos um banheiro para comportar 75 presos. As salas
destinadas aos membros da equipe profissional são pequeníssimas, ou, utilizando os termos do
profissional entrevistado, verdadeiros “cafofos”.
333
pessoas do CRESS, por maior engajamento das pessoas em geral com essas questões. Sei
que mais divulgação e isso contribuiu para que os profissionais atentem para esse
instrumento de trabalho. Trabalhamos com os dois, o Código e a Lei. Fica estampada na sala
de trabalho a nossa regulamentação, acho muito bom.
7- Sim. É importante que a profissão seja regulamentada até para garantir os direitos e
os deveres do profissional. No Serviço Social ainda mais, pois há profissionais que querem que
façamos o que não nos cabe. Em vez de falarmos não, falamos: uma lei que define o que
devo ou não fazer.
8- Sim. Não facilita, mas possibilita argumentar. É respaldo necessário para que
possamos lutar, ter argumento legal para colocar limite em certas situações. É uma tábua de
salvação, até apontei isso em um trabalho que escrevi, no sentido de dizer: “escuta gente, tem
lei, não é possível fazer como queremos e entendemos, uma lei que define isso”. Considero
que, como funcionários públicos, deveríamos nos respaldar nisso [...].
9- Sim. Todo profissional tem que ter uma norma, um regulamento a seguir. Caso seja
diferente, fica tudo solto, cada um faz o que quer [...]. Acho que tem que ter uma ordem a ser
seguida. Isso contribui, organiza nosso trabalho. É de extrema necessidade que haja
regulamento, toda profissão tem que ter.
Observamos certa distorção nas respostas entre a Lei de
Regulamentação e o Código de Ética Profissional. Ambos são documentos
citados, muitas vezes, como sendo a mesma coisa.
indicação pertinente quanto ao favorecimento da Lei de
Regulamentação no que se refere ao exercício profissional do Assistente
Social, uma vez que possibilita delimitar seu âmbito de ação. Contudo, não
comentário esclarecedor sobre o fato de a Lei assegurar competências e
atribuições profissionais, tampouco qualquer comentário e sua conseqüente
análise acerca de qualquer dessas competências ou atribuições. Não foi citado
objetivamente por nenhum dos entrevistados o período de vigência da Lei de
Regulamentação, o obstante sua identificação com o atual Código de Ética.
334
A Lei (8.662) teve vigência a partir de 1993 e alterou o nome dos órgãos de
fiscalização do exercício profissional, respectivamente: Conselho Federal de
Serviço Social (CFESS) e Conselho Regional de Serviço Social (CRESS)
após a Lei 3. 852/1957 vigorar por 36 anos. Ou seja, alguns profissionais
desconhecem, outros indicam, mas não comentam, numa nítida demonstração
de que conhecem superficialmente a Lei de Regulamentação da Profissão.
poucos comentários que demonstram profundidade acerca do conteúdo do
documento ora tratado, mas observa-se certa identificação da Lei de
Regulamentação com o movimento dos órgãos da categoria profissional que se
dedicaram a propagar os Princípios que norteiam o Código de Ética do Serviço
Social — referendado pelo seu atual Projeto Ético-Político Profissional.
2.16 Os entrevistados identificam como objeto de estudo/intervenção do
Serviço Social (brasileiro):
1- Não soube responder.
2- O social, tudo [...]. E eu não vejo isso nos outros profissionais, eles vêem o trabalho
micro e pronto.
3- O ser humano.
4- A questão social e como a política social está funcionando.
5- O sujeito com o qual se precisa trabalhar.
6- Possibilitar o acesso à informação, aos direitos sociais, aos serviços públicos, o
objetivo mais amplo do trabalho pautado numa ética.
7- As questões sociais geradas pela conjuntura, pelo processo histórico que
atravessamos.
8- São as condições materiais, afetivas e de consciência decorrentes da questão
social. São as condições de vida material, o tipo de consciência que aflora das condições em
que se vive no cotidiano que está nos impondo consumo ao lado de uma enorme fragilidade
de políticas públicas, por exemplo.
3
35
Penso que as Casas Bahia estão presentes nos lares da maioria dos pobres, mas se
precisarem de um médico para socorrer uma criança com diarréia ou amigdalite não terão a
quem recorrer. Tudo está condicionado ao pagamento de prestações intermináveis com juros
imensos embutidos. O “cara” é cidadão-consumidor, mas caso surja uma emergência em casa,
não tem direito ao atendimento emergencial público, pegará senha e esperará não sei quantas
semanas, não sei quanto tempo para fazer um exame. E se for portador de hipertensão e
precisar de um exame cardiológico....?
9-Dependerá da instituição. Por exemplo, aqui no Hospital estamos voltados para os
Internados [...], o acesso deles às informações, buscar o que a família necessita nesse
momento.
Como dissemos, não podemos concretizar algo sem conhecermos o
objeto com o qual iremos lidar, sem conhecermos a porção necessária do que
será trabalhado, afinal de contas pretendemos por em ato nossa finalidade. Ou
seja, projetamos, temos finalidade consciente, mas para isso temos um objeto
a ser trabalhado e dele temos que ter conhecimento, pelo menos da parte
necessária, o suficiente para que possamos processar alguma transformação e
obter um produto humanizado ou alcançarmos algo no âmbito da teleologia
secundária, isto é, relativa às transformações no âmbito das relações sociais.
Se considerarmos válida essa premissa, conforme os argumentos do
Capítulo 1, as respostas aqui fornecidas pelos entrevistados podem ser um dos
meios de análise da consistência do trabalho profissional, da qualidade do
serviço prestado aos usuários da Instituição.
Excetuando-se o entrevistado de 1, que não respondeu, o outro, o de
6, que em sua resposta mais indicou um objetivo, e os entrevistados de
números 4, 7 e 8, os demais compreendem o objeto de estudo/intervenção do
Serviço Social fora de uma perspectiva histórica, ou, melhor dizendo, não o
compreendem em seus nexos, suas determinações e condicionamentos
336
socioestruturais. Tal concepção (histórica) é consoante com o atual Projeto
Profissional e não restringe os fenômenos a serem trabalhados pelos
Assistentes Sociais aos parâmetros interpessoais, ao âmbito psicossocial.
Partindo do pensamento de Iamamoto (2007, p. 26) segundo o qual
situar o Serviço Social na História é distinto de uma história do Serviço Social
restrita aos muros da profissão, cabe destacarmos que um reduzido percentual
de entrevistados menciona a “questão social” como objeto de
estudo/intervenção do Serviço Social. É pequena a parcela dos Assistentes
Sociais entrevistados que apreende as situações com que lidam
cotidianamente como ntese de múltiplas determinações, que detecta os
nexos dessas situações com a totalidade, com o contexto político-econômico
do País/do capitalismo contemporâneo no mundo, assim como orientação, por
exemplo, desde 1997, pela entidade responsável pelo ensino do Serviço
Social, nas Diretrizes Gerais para esse Curso.
125
Observa-se, fundamentalmente, uma restrição do objeto de
estudo/intervenção à esfera do sujeito, das relações interpessoais, do plano
psicossocial, uma vez que se desconsidera que o Serviço Social lida com
“algo” indissociável do desenvolvimento capitalista — ou seja, lida com as
expressões da questão social” dele constitutiva e que em suas diferentes
fases o capitalismo produz outras expressões da “questão social”.
Diferentemente das sociedades nas quais a desigualdade, a privação, a
pobreza, a doença, a violência enfim, a miséria (material e humana) ou a
escassez de modo geral e suas decorrências se explicavam pelo parco
desenvolvimento das forças produtivas, na sociedade burguesa, cujas forças
125
Consulte-se em Caderno ABESS. São Paulo, Cortez, nº 7, 1997, p. 60.
337
produtivas garantem produção crescentemente socializada, tornam-se
resultado da contradição posta por esse modo socializado da produção face à
sua apropriação privada, ou seja, pelo modo de sociabilidade que se
estabeleceu sob a direção do capital.
Como discutimos no Capítulo 2, vivemos mais uma das crises do
capitalismo e com isso verificamos o que se pode traduzir como
particularidades históricas das expressões da “questão social”, manifestações
(atuais) da intensificação da exploração do trabalho. Conseqüências da
composição da “globalização com o neoliberalismo”, ou seja, como nos
explicitou Ruy Braga (1996), um movimento do capital no sentido da sua
restauração, que, por meio do ataque ao Estado e às políticas sociais, vem
transformando direitos conquistados pela classe trabalhadora em serviços
prestados pelo mercado ou em filantropia para os pobres, aqueles que não
podem ser captados pelo mercado. Esse fato interfere diretamente no campo
de ação dos profissionais aqui entrevistados, com repercussões nas suas
condições de trabalho (e, por conseguinte, nas suas condições de vida) e nas
condições dos usuários (e de seus familiares) da Instituição. Isso porque, além
de contribuir para debilitar o sistema de proteção social do nosso País, o qual
merecia ser observado pela sua fragilidade, interfere nas características da
profissão (Serviço Social), diminuindo postos de trabalho, desqualificando suas
condições e dirigindo parte dos profissionais para as chamadas entidades não-
governamentais, para prejuízo das políticas públicas.
Portanto, pode-se dizer, em linhas gerais, que esse é um movimento do
capital que desencadeou forte processo de ataque ao Estado e à classe
trabalhadora, preconizando “ondas privatistas”, “Estado Mínimo” para o
338
trabalho desregulamentações do trabalho em prol do mercado, ataque às
conquistas dos trabalhadores, interferindo na identidade de classe, na
consciência de classe, na organização sindical, nos direitos trabalhistas e
sociais e na utilização de novas tecnologias e métodos de produção e de
gestão do trabalho. Esse contexto é delineado pelo recrudescimento do
imanente processo de mundialização do capital, o qual, contando
principalmente com o alargamento das operações do capital financeiro
especulativo, pretende, cada vez mais, o domínio de todo o mundo pelo
capitalismo.
A esse respeito, Iamamoto esclarece que
A mundialização financeira, em suas refrações no País,
impulsiona a generalização das relações mercantis às mais
recônditas esferas e dimensões da vida social, que afetam
transversalmente a divisão do trabalho, as relações entre
classes e a organização da produção e distribuição de bens e
serviços. [...]. O resultado tem sido uma nítida regressão aos
direitos sociais e políticas públicas correspondentes, atingindo
as condições e relações sociais, que presidem a realização do
trabalho profissional (2007, p. 21).
2.17 Sobre o atual Projeto Ético-Político do Serviço Social (brasileiro), os
entrevistados consideram:
1- [...] Quando perguntado sobre isso tenho dúvida, porque não sei exatamente o que é
esse Projeto Ético-Político. É um projeto voltado para o ano de 1993, quando a situação
política apresentava-se de determinada forma, a qual com certeza não é a mesma atualmente.
Se eu for indagada se continuo pensando como no século passado, direi que não.
Sigo minha consciência. Como acho justo eu atuo, assistencial, assistencialista ou não.
Na medida em que o caso se apresenta, precisa de quê? Sabonete? Pasta de dente?
Escova de dente? —, buscarei o recurso, é o mínimo que o usuário pode ter para se
apresentar com dignidade [...]. Se isso é uma prática assistencialista, eu farei, embora outros
considerem que não seja esse o nosso papel. [...]. Outra questão que o é responsabilidade
do Serviço Social, é comunicar um óbito , mas não quer dizer que não possamos fazê-lo [...].
339
Se a família acostumou-se a estabelecer relação entre o profissional do Serviço Social e o
Internado, como pode esse mesmo profissional delegar a outra pessoa notícia tão nefasta?
Não acho isso justo. [...]. O médico e o enfermeiro não gostam de fazer isso. Antes que algum
agente administrativo possa chegar friamente e falar, até de modo desrespeitoso, prefiro fazê-
lo [...].
Agora, também vou esclarecer, orientar, conscientizar, trazer filmes, organizar
discussões, palestras para que essa pessoa possa entender o por que está naquela situação e
o que ela deve fazer para poder transformar o pequeno mundo em que vive [...].
2- Não comentou.
3- Não tenho conhecimento profundo. Prefiro não me posicionar.
4- Temos princípios que têm que ser respeitados, principalmente no que se refere à
defesa dos interesses da população que atendemos. Mas isso em alguns momentos entra em
conflito com a instituição em que se trabalha. O Serviço Social tem projeto, mas esse projeto
está inserido em um contexto maior, nem sempre condições concretas no dia-a-dia de o
efetivarmos. Quando depende das relações que estabelecemos profissionalmente é mais fácil
a garantia, mas quando se refere ao funcionamento do espaço de trabalho, da política
institucional, é mais complicado, pois há o problema dessa política possibilitar isso ou não.
5- Não comentou.
6- O Projeto Ético-Político está dentro do referencial em que me formei. [...] Nunca lutei
muito, nem estou à frente das passeatas, existem pessoas que entendem que o Projeto deve
ser trabalhado desse jeito. Mas considero que seja um Projeto que facilite o trabalho
profissional, que o habilite a enfrentar a situação de hoje em dia. Estar regulamentado, a
regulamentação dentro desse referencial é um momento de resistência com as coisas que
estão postas na atual conjuntura.
7- Não acompanho muito essas discussões, não me sinto apta a falar sobre o tema.
8- Considero que o Projeto não seja hegemônico do ponto de vista da categoria
profissional. Pode ser algo produzido por um coletivo que não foi amplo podemos dizer, um
Projeto produzido por militantes” dessa categoria. Não é um Projeto abraçado pela categoria,
mas também não é seu grande desconhecido. A categoria ouviu falar dele, porém acredito
que não daria conta de como e por que surge; tampouco, caso seja indagada, sobre como vem
340
sendo construído. Por que surgiu o Código de 1986? O que continha esse Código? Por que
surgiu o Código de 1993? Que relação existe entre os dois digos e o Projeto Ético-Político?
Qual entendimento de sociedade está presente? Por que os Princípios do atual Código? Por
que esses Princípios substituem o Postulado da Dignidade da Pessoa Humana, o da
Perfectibilidade e o da Sociabilidade Essencial da Pessoa Humana, os quais eram Postulados
Fundamentais do Serviço Social?
Tínhamos três Postulados Fundamentais que se abriam em sete Princípios de
relacionamento. Isso foi substituído; será que isso é claramente discutido na formação dos
alunos em todas as faculdades, em todas as faculdades privadas do País?
9- Observo que historicamente o Serviço Social avançou muito. É clara a importância
que a nossa profissão tem [...]. Vejo [o Projeto] como de grande importância no nosso trabalho.
Detendo-nos nos aspectos que consideramos fundamentais, cabe-nos
destacar que, com exceção dos argumentos contidos na resposta nº 8,
algumas respostas expressam claramente que os entrevistados o costumam
discutir o tema. Outras respostas, apesar dos argumentos acerca do Projeto,
dada a fragilidade desses argumentos, também demonstram ausência de
discussão no cotidiano desses profissionais.
Os comentários do entrevistado de 8 acerca da hegemonia do Projeto
Ético-Político do Serviço Social são relevantes e merecem apreciação tanto por
causa do que foi exposto no parágrafo anterior quanto em função da pretensão
ou consolidação de hegemonia desse Projeto. Ou seja, da possibilidade do seu
direcionamento tanto no âmbito acadêmico quanto no trabalho institucional
cotidiano e na sua orientação para a formação dos futuros Assistentes Sociais.
Não é um Projeto abraçado pela categoria, mas também não é seu grande
desconhecido. A categoria ouviu falar dele, porém acredito que não daria conta de como e
por que surge; tampouco, caso seja indagada, sobre como vem sendo construído. Por que
surgiu o digo de 1986? O que continha esse Código? Por que surgiu o Código de 1993?
Que relação existe entre os dois Códigos e o Projeto Ético-Político? Qual entendimento de
341
sociedade está presente? [...]. Tínhamos três Postulados Fundamentais que se abriam em sete
Princípios de relacionamento. Isso foi substituído; será que isso é claramente discutido na
formação dos alunos em todas as faculdades, em todas as faculdades privadas do País?
Naturalmente, a hegemonia desse Projeto pressupõe a sua discussão
substancial e a possibilidade de que tal discussão possa difundir-se entre a
categoria profissional. Pois, longe de limitar-se a determinados espaços
profissionais, trata-se de uma discussão que deve abranger o mais possível o
corpo profissional, uma vez que por meio da compreensão dos valores, da
direção social desse Projeto é que se pode supor adesão profissional a ele.
Estamos falando de adesão consciente, de opção por esse Projeto em
detrimento dos outros projetos em disputa na profissão, de um compromisso
com esse Projeto que, logicamente, não se restringe à dimensão discursiva.
Não como estabelecer relação entre projetos, ou seja, identificar valores,
direções sociais entre projetos societários, profissionais e individuais, sem que
consigamos decifrar suas finalidades e as conexões entre eles. Sem identificar
as forças sociais (societárias e profissionais) reais que constituem os diferentes
projetos, sejam eles societários ou profissionais, não os identificaremos
verdadeiramente, não seremos capazes de compreender a sua dinâmica
histórica e poderemos cair, conforme cita Iamamoto (2007, p. 229), “na
armadilha de um discurso que proclama valores radicalmente humanistas mas
não é capaz de elucidar as bases de sua objetivação histórica”. Portanto,
somente desenvolvendo juízo crítico acerca da realidade social é que
poderemos apreender a construção desses projetos (nessa realidade), buscar
captá-los prospectivamente e, com certa propriedade, aderir aos mesmos ou
refutá-los e, em conseqüência, investir em sua concretização sem esquecer de
considerar também a introdução de novos projetos.
342
Com base em Netto (1999), podemos dizer que os projetos profissionais
apresentam a auto-imagem de uma profissão, os valores que a legitimam, os
objetivos, as funções, os requisitos teóricos, práticos e institucionais para o seu
exercício, bem como prescrevem as normas para o comportamento dos
profissionais, seja na relação destes com os usuários dos seus serviços seja na
relação com outras profissões ou com as instituições, públicas ou privadas, e o
Estado, historicamente responsável jurídico pelos estatutos profissionais. Ou
seja, os profissionais podem encontrar nos projetos profissionais a finalidade,
os fundamentos e o modo prioritário selecionados para legitimá-la e exercê-la.
Como dissemos na primeira seção deste Capítulo, em que abordamos o
percurso da ética na profissão, a retomada da democracia política no País
possibilitou que os Assistentes Sociais experimentassem significativos
avanços, tanto no plano intelectual quanto em nível organizativo, sendo a
hegemonia da perspectiva modernizadora nessa profissão colocada em
questão. Isso fez reacender o veio de inspiração crítica e progressista do
Movimento de Reconceituação do Serviço Social.
[...] é somente quando a crise da autocracia burguesa se
evidencia, com a reinserção da classe operária na cena política
brasileira desatando uma nova dinâmica na resistência
democrática, que a perspectiva da intenção de ruptura pode
transcender a fronteira das discussões em pequenos círculos
acadêmicos e polarizar atenções de segmentos profissionais
ponderáveis. Seu insulamento deveu-se basicamente às
constrições políticas postas pelo ciclo autocrático; a
ultrapassagem destas constrições permitiu-lhe desbordar os
limites a que se viu confinada. Cabe notar, en passant, que o
seu futuro está hipotecado ao alargamento e ao
aprofundamento da democracia na sociedade e no Estado
brasileiro (NETTO, 1991, p. 248).
Desse modo, tivemos a elaboração do Código de Ética de 1986, um
marco na busca do rompimento com o conservadorismo. Nesse código, é
343
visível o declínio das referências éticas desconectadas da História, seja pela
perspectiva alinhada aos valores da religiosa, seja pelos pressupostos da
“neutralidade”.
A relevância desse Código é evidente, por se tratar de um documento
que pode ser considerado um “divisor de águas” na história da ética
profissional do Serviço Social. É expressão do rumo em direção ao rompimento
com o conservadorismo na profissão, entretanto partícipe dos problemas e
equívocos intrínsecos aos desdobramentos históricos do Movimento da década
de 1960, e representante de sua vertente de inspiração mais crítica.
Em seu último Código de Ética, datado de 1993, o Serviço Social
garantiu e buscou ampliar as conquistas profissionais impressas no código
anterior. Ou seja, revisou o código profissional de 1986, objetivando o seu
refinamento, a depuração das suas referências para o exercício profissional, e
realizou alterações mantendo o seu nexo.
Por conseguinte, esse último Código de Ética, o de 1993, representa a
direção dos compromissos assumidos pelo Serviço Social nas últimas décadas
do seu percurso histórico. No nosso entender, expressão destacada desse
Projeto, pois orientação para a ação e a formação profissionais. Nos Princípios
que o fundamentam pode-se observar claramente uma perspectiva crítica à
ordem econômica e social estabelecida e a defesa dos direitos dos
trabalhadores.
É possível afirmar, então, que o Código de 1993 firmou importantes
valores e diretrizes para o exercício profissional, que se colocam de modo
divergente daqueles que, atualmente, vêm sendo propagados e efetivados em
alinhamento com a ordem econômica internacional/nacional. Com isso
344
concluímos que, na atualidade, a perspectiva hegemonicamente expressa no
Código de Ética do Serviço Social, diferentemente do que é marcante na maior
parte da história dessa profissão, contrapõe-se aos interesses e valores
prevalecentes na ordem do capital. Daí o porquê da sua relevância histórica e a
necessidade de estudos que captem sua real referência no cotidiano
profissional.
Esse Código é o próximo item considerado pelos entrevistados (seus
Princípios Fundamentais e a possibilidade destes se materializarem no
cotidiano do exercício profissional).
2.18 Sobre o atual Código de Ética profissional dos Assistentes Sociais,
os entrevistados teceram as seguintes considerações:
1- Essa pergunta complementa a anterior. O Código trata da necessidade de se
respeitarem diversas linhas de pensamento e atuação. Estou um pouco afastado da teoria, não
saberia dizer exatamente o que é o Código. Porém, acho que devemos, cada vez mais, ser
democráticos. E isso não vejo acontecer na prática, embora esteja no Código que devemos ser
abertos, democráticos, respeitosos.
Observo no boletim do Conselho Regional ações voltadas para a questão dos
homossexuais. penso: o que o Serviço Social tem com isso? Claro que sim, a questão da
etnia, da opção [sexual]. Considero um avanço para execução, para prática, algo que não
existia [...]. Acho que temos que avançar na questão da democratização, da igualdade, mas
tem-se que garantir o acesso aos direitos, e em muitos casos isso não acontece [...].
2- Concordo com o Código, acho coerente com a opção que o Serviço Social fez pela
transformação social [...], mas não há direcionamento disso dentro das instituições [...]. A gente
tenta. Não estou falando de Congressos, estou falando no dia-a-dia, da nossa prática. [...]. As
soluções são individuais [...] As violações aqui são grandes, [...] cadê a indignação? Ficamos
como, com saídas individuais ou sem respostas? E assim caminha a humanidade...
3- Pelo que vivi, acho que avançou bem. Sinto-me amparado. Se vai acontecer, se
realmente valerá?... Algumas vezes precisamos utilizar o Código e foi muito interessante.
345
4- Acho que o Código tenta garantir conquistas e uma ação comprometida. Hoje chego
no trabalho e, caso me peçam coisas descabidas, tenho garantias no Código, nos seus
Princípios. que o profissional tem que pensar em acordo com o Código de Ética, pois não
adianta o Código se você não entende aqueles Princípios como importantes se não
entender, o profissional nem vai abrir o Código, não vai fazer nada em acordo com o que está
ali.
5- Para ser bem franca, não tenho grande conhecimento do Código. Minhas leituras
sobre o Código têm sido en passant. Não li suficientemente para discutir.
6- É um instrumento em que estão postos os fundamentos, os direitos, os deveres
profissionais. É um instrumento bom para respaldar o trabalho profissional, sendo uma lei, uma
boa regulamentação.
7- Gosto muito do Código, mas sou relapsa, deveria trabalhar com ele ao lado. [...]. Eu
deveria usar mais. Considero bom, foi um avanço. Eu peguei o anterior e acho que tivemos
avanços. Deveria usar mais.
8- Acho que temos um respaldo interessante no digo. Não participei do momento de
elaboração em 1993, desse movimento da categoria, eu estava encalacrada em uma chefia
durante 40 horas semanais. alguns pontos do Código que deviam ser revistos, mas, em
linhas gerais, gosto muito.
9- Acho que é importante. Temos que ter esse respaldo, esse embasamento. Vejo
como importante que se tenha um.
Como disse o entrevistado de 1, a atual pergunta complementa a
anterior, e com isso observa-se inexistência de discussão substancial sobre o
tema aqui tratado, o qual se vincula diretamente com o Projeto Ético-Político.
Apesar do levantamento de alguns aspectos relevantes pelos profissionais, a
exemplo da tensão entre interesses individuais e Princípios do Código,
abordado no 4, não são abordadas questões relativas aos fundamentos
desse documento, tampouco se relaciona historicamente esse documento, sua
concepção de Homem, de sociedade e de ética no exercício profissional nos
Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Como certa exceção a isso,
346
podemos ver o pronunciamento do profissional de 2, referindo-se à falta de
trabalho de equipe entre esses profissionais, à falta de indignação frente às
constantes violações na Instituição, provavelmente sublinhando a importância
de um projeto coletivo.
Em geral, o Código foi citado, mas não comentado nem analisado como
um instrumento profissional. Esse documento, pelos comentários feitos, não foi
considerado objetivamente um recurso para a qualificação do trabalho
cotidiano dos profissionais entrevistados.
2.19.1- Indagados sobre como consideravam os Princípios do atual
Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais, se destacariam algum
desses Princípios e qual seria a justificativa para fazê-lo, os entrevistados
responderam:
1- Não lembro dos Princípios. Destaco a questão da liberdade, do respeito, da
autonomia, do acesso aos direitos. (Não justificou).
2- Acho que se esses Princípios forem concretizados, estaremos em um mundo
diferente do atual. Na conjuntura em que vivemos, esses Princípios são cotidianamente
violados. Temos que estar muito dispostos para não permitir que isso aconteça, na nossa vida
pessoal e no nosso trabalho. Destaco a liberdade. De todos, aqui ele [o Internado] é
fundamental, ele cometeu um delito e perdeu a liberdade [...]. Como ele perde a liberdade e
perde também o direito ao remédio, à higiene, o tem voz, torna-se um nada. Sim, ele se
transforma em um nada, é com “nadas” que trabalhamos aqui. Fora isso, os Internados m o
transtorno mental, o que, para a sociedade é coisa muito complicada de entender. Temos que
dar voz a quem não tem [...]. Quando ele fala Doutora não tenho mais que ficar aqui”, como
fazer? Não estou falando em questões relativas à família, mas à Justiça que não resolve a
situação do sujeito, não resolve o processo para que ele possa sair, para que ele volte a ser
cidadão e deixe de ser todo controlado. Aqui tudo é controlado. O horário de comer, por
exemplo, o do jantar é às 16 horas. É, temos que dar voz a quem não tem...
3- Não respondeu.
347
4- O Código de Ética existe na medida em que o profissional segue seus Princípios.
Se o houver noção da importância do comprometimento ético-político, não adianta, será
inútil. O profissional não pautará suas ações, o fazer dele sobre aqueles Princípios.
Alguns Princípios são fundamentais, como o respeito ao usuário. Caso se entenda que
[o usuário] tem direitos, procuraremos fazer com que tenha acesso a esses direitos. Meu
princípio é consoante com o Código de Ética, mas o posso dizer que todos [os profissionais]
são assim. Não é o Código que fará as pessoas [profissionais] pensarem diferente. A pessoa
[profissional] tem uma intenção, uma visão de sociedade e uma maneira de ver o trabalho que
pode ou não ser consoante com o Código. Quantas coisas erradas os profissionais podem
fazer por interesses pessoais, para conseguirem coisas? Esses profissionais até podem
aparentemente defender pontos do Código, mas no dia-a-dia podem não ter postura ética
perante aos funcionários, aos pacientes, aos colegas, pois podem se vender ou, melhor,
envolverem-se em estórias de acordo com seus interesses pessoais.
5- Não tenho como discutir.
6- São Princípios nos quais o profissional pode pautar sua atuação [...], assegurar o
trabalho dentro de uma ética. Destaco o resgate da cidadania, o acesso aos serviços públicos,
essa construção de rede é muito importante para o dia-a-dia [...].
7- Acho que o Princípios cabíveis para nos orientar na prática. São coerentes e
devem ser seguidos. Não destaco nenhum deles.
8- Como já disse, o digo — e seus Princípios — permite um respaldo à ação
profissional interessante. Acho aquele Princípio que fala sobre a garantia de acesso aos
direitos o mais importante no campo em que trabalho. Outro é o grande Princípio referente ao
valor da liberdade. Até outro dia um preso me escreveu uma coisa que considerei tão bonita
que decidi anotar. Conversamos sobre o que se faz em uma cela 168 horas por semana.
falamos: como a pessoa se ocupa? Ele escreveu para mim que sua mãe sempre, quando tem
condição de visitá-lo, leva um livro. Ela traz livros e, ao lê-los, após meia hora, ele sai junto com
os personagens. Olha aí a questão da liberdade. Não é uma coisa linda?! A liberdade como
valor central, um Princípio do Código. Em livros que li sobre campos de concentração, falava-
se muito sobre liberdade, sobre os atos da vida que são atos de liberdade, de quem está
cerceado por todos os lados. Nesses espaços institucionais, trabalho muito o valor da
348
liberdade, a possibilidade de se encontrar um espaço de liberdade... se não for assim,
podemos endoidar de vez.
9- Acho que toda profissão tem normas a serem seguidas e nós, Assistentes Sociais,
temos que, da melhor maneira possível, atuar segundo esses Princípios. Não destaco qualquer
Princípio.
Como dissemos no início desta parte do trabalho, os Princípios
Fundamentais do Código de Ética Profissional têm como valor central a
liberdade captada como liberdade do indivíduo social, diferentemente das
interpretações que a situam nos limites e possibilidades definidos pelo âmbito
do “individual absoluto/isolado” ou seja, do individualismo, que, como
sabemos, é uma concepção abstrata de indivíduo, uma vez que o situa fora
das relações sociais. No Código, a compreensão de liberdade é a do indivíduo
que pressupõe a sociedade e que se relaciona com a discussão da justiça
social e da exigência democrática. O Código não se limita à perspectiva de
liberdade meramente formal, nem se reduz ao entendimento da socialização da
política de modo desvinculado da riqueza produzida socialmente, ou, como
discutimos no Capítulo 2, seção 2.3 sobre Ética e Economia, como se não
fosse necessário para focalizar a ética se levar em conta a política e a
economia.
Dessa maneira, é importante observar em que medida a referência feita
à liberdade se mostra nesta perspectiva pelos entrevistados, que se trata do
Princípio mais citado. Estudos e pesquisas referentes aos usuários dos
serviços talvez favorecessem a identificação e divulgação objetiva desse fato.
Além disso, observa-se muitas vezes que certo investimento dos
profissionais no sentido de favorecer o acesso dos Internados dos Hospitais
aos direitos sociais, e essa necessidade (Princípio) é constantemente
349
mencionada por eles. Contudo, raramente isso aparece ao lado de alguma
crítica da ordem social constituída, o que mostra discrepância entre a lógica do
Código Profissional e seus fundamentos seus Princípios Fundamentais. O
que pretendemos deixar claro é que, apesar de os entrevistados mencionarem
categorias presentes no Código de Ética, essas categorias podem não ter o
mesmo significado do Código, podem não assegurar o conteúdo dos Princípios
Fundamentais, como vimos no início dessa parte do trabalho.
É importante o destaque dado pelo profissional de 4 à defesa de
Princípios do Código no discurso e a possibilidade de negação desses mesmos
Princípios na ação profissional. A relação entre o individual e o coletivo aparece
aqui novamente, evidenciando que os valores do Código têm que ser
internalizados pelo sujeito (profissional) para que possam ser materializados,
impressos no cotidiano do exercício profissional.
[...] Não é o Código que faas pessoas [profissionais] pensarem diferente. A pessoa
[profissional] tem uma intenção, uma visão de sociedade e uma maneira de ver o trabalho que
pode ou não ser consoante com o Código. Quantas coisas erradas os profissionais podem
fazer por interesses pessoais, para conseguirem coisas? Esses profissionais até podem
aparentemente defender pontos do Código, mas no dia-a-dia podem não ter postura ética
perante aos funcionários, aos pacientes, aos colegas, pois podem se vender ou, melhor,
envolverem-se em estórias de acordo com seus interesses pessoais.
O entrevistado de 9 refere-se aos Princípios do Código de Ética como
normas, o que, a nosso ver, traz uma conotação de regra, de prescrição,
retirando-lhes a riqueza de conteúdo como possibilidade crítica e reflexiva.
Acho que toda profissão tem normas a serem seguidas e s, Assistentes Sociais,
temos que, da melhor maneira possível [...].
350
Ao observarmos o que disse o entrevistado de nº 2, apesar de, em
princípio, concordarmos, nos cabe acrescentar que, se por um lado para que
os Princípios do Código possam ser concretizados plenamente necessidade
de superação do nosso tipo de organização social, por outro “se estivéssemos
no mundo diferente” ao qual o entrevistado se refere, não haveria por que
construir esse Código — com seus Princípios —, uma vez que o Código
corresponde a uma determinada realidade. Esse documento é uma construção
histórica, sua existência decorre de necessidades definidas por certo segmento
profissional, em certo país, em uma conjuntura específica. Com isso,
necessitamos da orientação desse documento, do respaldo de seus Princípios,
do seu referendo para agirmos aqui e neste momento histórico, com vistas aos
nossos objetivos e nossas finalidades profissionais.
126
Ou, se preferirmos, com
base no que argumentamos no Capítulo 1, seção Ontologia do Ser Social e a
Ética, temos que ter clareza do Projeto Ético-Político, dos Princípios do Código
que são a sua expressão e, dessa maneira, captar a realidade social como
matéria que pretendemos contribuir para alterar, tendo no Projeto Profissional a
direção para alcançarmos a finalidade definida pelos profissionais e demais
sujeitos envolvidos.
Como discutido no Capítulo 1, o mundo dos homens é material e
objetivo, mas tal afirmação não suprime a distinção existente entre as esferas
social e natural, pois sabemos que, apesar de a causalidade posta tornar-se
para a vida humana tão concreta quanto o mundo natural, ambas não têm o
mesmo significado. A causalidade posta torna-se uma objetividade nova, é algo
que toma tamanha força e independência em relação à consciência que a
126
Isso significa entender que esse documento, pela sua importância histórica, deve ser respeitado, mas
isso o exclui sua constante análise, pois, como qualquer outro, é passível de alteração, desde que
devidamente avaliada como necessária pela categoria e pelas entidades representativas competentes.
351
produziu que Lukács denomina “segunda natureza”. Para esse pensador, como
já explicamos, à medida que o produto humanizado se converte em ente
distinto do sujeito que o criou e adquire certa autonomia passa a ter vida
própria e afeta o sujeito que o criou por meio de ação de retorno, influenciando-
o em sua autoconstrução. Ademais, como o ente adquire certa autonomia, se o
sujeito pretende controle sobre ele, poderá conseguir caso aja
conscientemente em função da sua pretensão. Esse aspecto é importantíssimo
para considerarmos qualquer pretensão de interferência no âmbito societário
também, uma vez que a sociedade é uma causalidade posta que denota
materialidade e certa autonomia, configurando uma forma de segunda
natureza. Portanto, se pretendemos alterações nas relações sociais, forma de
pôr teleológico denominado teleologia secundária, o sujeito tem que ter
consciência, ou seja, há a pressuposição de ação consciente do sujeito.
Desse modo, para que se torne possível objetivar o que estabelecem os
Princípios do Código no cotidiano do exercício profissional, é proeminente
decifrar a realidade social para que então se possa projetar e pressupor ões
profissionais, visando às relações institucionais e/ou sociais.
2.20 Indagados quanto à utilização do Código de Ética para a orientação
do exercício profissional cotidiano, os profissionais responderam:
1- Sim. Utilizo para fundamentar o que escrevo ou exerço no Serviço Social. Por
exemplo, quando trabalhei no Hospital YX, exista um funcionário que quis interferir no trabalho
do Serviço Social. Nos dias de visita, aproveitávamos para atender às famílias, para aproximá-
las dos dicos, para realizar algumas orientações e esclarecimentos. Buscávamos fazer um
elo entre as famílias e a equipe profissional. Certo dia, veio esse funcionário da Segurança,
dizendo que a partir daquele momento estaríamos proibidos de nos aproximação das famílias,
porque elas ficavam no pátio em frente à salinha do Serviço Social e vinham conversar com os
352
Assistentes Sociais. Segundo ele, isso não poderia mais acontecer. Desse modo, questionei: “o
quê? Como? Quem é o senhor para dizer o que devemos fazer?” Ele disse também que não
poderíamos ter acesso aos pacientes que estavam na enfermaria do Hospital. Como não
teríamos acesso aos pacientes que estavam na enfermaria!? O argumento utilizado foi o de
sempre: tratava-se de questão de segurança. Ele levou essa questão ao diretor solicitando que
corroborasse sua atitude. O diretor pediu nosso pronunciamento por escrito. Peguei o Código
de Ética e respondi com respaldo nesse documento, em umas três folhas [...]. Como até hoje,
não permito que ninguém diga o que deve ser feito. É claro que respeito regras institucionais —
os horários, por exemplo. Entendo a questão da segurança; afinal, trata-se da minha
segurança também, mas desde que haja coerência. Dizer que eu não posso reunir grupos, por
que não? Do meu trabalho e da minha técnica entendo eu [...]. É comum profissionais de
outras áreas quererem dizer o que o Serviço Social deve fazer ou deixar de fazer.
2- Não utilizo. [...] Porque a gente tem que ter condições de trabalho dignas para ter
sigilo profissional.
3- Sim, utilizo.
4- Sim. Utilizo alguns princípios que nele estão contidos e que refletem o que eu penso
também. [...]. Há questões em que eu concordo que devem ser daquele jeito. Por exemplo, o
fato de o profissional garantir os direitos e os deveres no seu compromisso com o trabalho. O
Código foi elaborado com base nas experiências das pessoas, mas o que eu acho é muito em
função da minha vivência, do que acredito. [...]. Agora, existem questões para as quais
necessitamos estar instrumentalizados — portanto, pautados no Código de Ética. Para a
defesa dos direitos, para o cumprimento de nossos deveres e para garantia da boa relação
com os usuários, temos que usar o Código de Ética como referência.
5- Não utilizo.
6- Sim. Utilizo porque o Código traz várias coisas simplificadas e que traduzem o
referencial teórico que estudamos. Acho-o importante por isso. É uma peça importante no dia-
a-dia, por resumir esse referencial.
7- Não. Dificilmente eu pego o Código, geralmente acontece quando preciso estudar
para alguma prova. Está abandonado mesmo.
353
8- Sim. Veja bem: com os estagiários, aponto quando algo está contrariando o Código
de Ética “isso que está acontecendo nessa cadeia deveríamos denunciar, está escrito aqui”.
Porém, todo dia estaríamos denunciando no CRESS situações que contrariam o Código.
Uma vez, conversando com X, Presidente do Conselho, eu disse acerca deste espaço
institucional: o que mais me perturba é saber que todo dia teria que estar no Conselho dando
entrada em processo, na Comissão de Direitos Humanos da ALERJ e da OAB, porque tudo é
violação, o cotidiano é uma violação de direitos o tempo todo. Então, falamos todo o tempo
com os estagiários, porque o pessoal com quem eu trabalho é interessante, está atento a isso.
Eu não vejo saída, um movimento maior. Qual é o espaço que temos na mídia? Qual é o
espaço que temos para falar de outra coisa que o seja a questão criminal, criminal, criminal?
Falar de outras coisas que toquem mais na raiz de tudo isso? o temos espaço. Nem na
própria Instituição temos espaço, conseguimos ser ouvidos [...].
9- Sim. Essa parte teórica fica embutida. Foi um aprendizado que em nossa atuação,
não tem como desvincular. Toda a nossa prática é pautada nas teorias que nos foram
passadas quando acadêmicos, nossa atuação tem esse embasamento teórico [...]. Ele nos
acompanha em toda atuação.
A maioria dos entrevistados alegou utilizar o Código para orientar seu
cotidiano profissional. Todavia, considerando as condições de trabalho, a
qualidade dos serviços prestados aos usuários e os demais comentários aqui
constantes, particularmente os que se referem ao Projeto Ético-Político e aos
próprios Princípios do Código de Ética, cabe considerarmos que tal alegação
deve ser tomada com restrições.
Apenas dois dos profissionais entrevistados fizeram comentários
objetivando a relação do Código com seu cotidiano de trabalho, aqueles
citados nos números 1 e 8. Além disso, a tensão entre projeto coletivo e
posicionamento individual merece discussão com os nossos profissionais, uma
vez que o respeito aos Princípios e/ou aos artigos do Código de Ética aparece,
354
às vezes, como algo submetido ao julgo pessoal. Observemos comentário
contido na resposta nº 4.
Utilizo alguns princípios que nele estão contidos e que refletem o que eu penso
também. [...]. questões em que eu concordo que devem ser daquele jeito. Por exemplo, o
fato de o profissional garantir os direitos e os deveres no seu compromisso com o trabalho. O
Código foi elaborado com base nas experiências das pessoas, mas o que eu acho é muito em
função da minha vivência, do que acredito. [...].
Prosseguindo em nosso comentário e reforçando o que discutimos até
aqui, destacamos que esse Código traz fundamentos consoantes com os
desdobramentos de inspiração mais crítica do Movimento de Reconceituação
no Serviço Social, e constitui um digo de Ética Profissional avançado.
Contudo, sua possibilidade de proximidade com o cotidiano profissional
existe para quem queira compreendê-lo, situá-lo na história da profissão, captar
seus fundamentos, seus valores, sua finalidade. Isso quer dizer ter condição de
entendê-lo e utilizá-lo como um recurso profissional tanto para qualificar a
formação e os serviços prestados quanto como um instrumento de luta que
contribua para superação desse modelo de sociedade em que vivemos.
2.21 Quanto à materialização dos Princípios do Código de Ética do
Assistente Social no cotidiano do exercício profissional dos entrevistados, eles
consideram, justificam e/ou exemplificam:
1- Sim, os Princípios se materializam, acredito nisso. É uma questão pessoal. Questão
ética minha. Tem que ser assim. Mesmo com dificuldades, porque elas existem, mas não quer
dizer que se deixe de fazer. Você faz dentro do que se permite. Se você não consegue ter na
prática 100%, conseguirá 10%. Começa levando esclarecimento [...], porque se ele [o usuário]
não tiver esse conhecimento, como terá acesso [aos direitos]?
2- Não materializam. Se tivéssemos o nosso Código de Ética [...], sendo posto em
prática a todo momento, seríamos uma sociedade não-capitalista. O capitalismo não vai
355
permitir, vai garantir direito para quem? É o direito de quem tem o poder de decisão. Ainda
mais o País em que vivemos, que é País dependente e que tem uma problemática social
complicada [...]. A base do sistema capitalista viola o Código [...].
3- Sim, materializam, desde que se saiba citá-los na hora certa e dentro de um fato.
Porque as pessoas começam a respeitar e, se tivermos do lado alguém que se sente inseguro
com o que faz [...], torna aquilo algo em que possa se amparar [...].
Defender sua idéia quando existe um obstáculo, como por exemplo, sua diretora
pretende atuação diferente da sua e você, para defender sua posição não vai desacatá-la, mas
por meio do Código de Ética você pode argumentar e melhorar essa situação.
4- Sim, mas os Princípios serão materializados apenas se os profissionais estiverem
consoantes com esses Princípios. Não sei se tudo o que penso está no Código, mas tenho
princípios que estão lá. Não vou fazer o que na minha visão é incorreto. uma inter-relação.
Tem que ter um Código, uma direção. Em uma profissão tem que ter direção, não pode ser
cada pessoa [cada profissional] pela sua cabeça, mas as pessoas agem em acordo com o que
pensam. A não ser que cheguem terceiros e digam que está errado. Acho que o Código deve
existir, não saiu do nada, saiu em função da visão de um conjunto de pessoas que pensam a
profissão e a sociedade. É fruto de processo de discussão que vem de vivências e experiências
dessas pessoas.
5- Não é possível. Não todos os artigos e cláusulas que o Código tem, mas coloco em
prática em relação à convivência diária com os colegas e procuro ter atitudes que considero,
pelo que aprendi na faculdade, em seminários e com o tempo de trabalho: respeito aos outros,
às nossas limitações, evitar agressões ao colega ou às outras categorias profissionais. Isso
não quer dizer que eu esteja obedecendo rigorosamente ao que está determinado.
6- Sim, materializam. Posso exemplificar com a minha chegada a esta unidade quando
encontrei um agente penitenciário da época que fui diretora de determinada Unidade Prisional.
Esse agente lembrou do meu nome, me cumprimentou chamando-me pelo nome. Achei
estranho, pois me lembro da fisionomia, mas não dele. Ele falou: “você me mandou para a
delegacia, eu bati em uma presa e vo não segurou”. Senti certo orgulho disso, não me
lembrava do caso. Não gostaria de ter prejudicado essa pessoa como funcionário; sou
funcionária também, não quero prejudicar outro funcionário. Então, me constrangeu pensar
356
nisso: “será que prejudiquei esse funcionário?” Mas fiquei feliz pela atitude que tomei, atitude
da qual nem me lembrava. Acho que isso está no nosso Código de Ética, essa luta, essa
denúncia, não permitir abusos, [...] ser intransigente nessa luta. Eu me senti feliz hoje.
7- Sim, materializam. [...] a equipe do Serviço Social é desunida [...], isso desagrega....
Se fôssemos mais unidos, teríamos mais força para ajudar os usuários [...]. O Código de Ética
foi baseado no dia-a-dia do profissional, não é uma teoria, é para ajudar no cotidiano, se vai ser
usado de maneira positiva ou negativa depende do profissional. Acho sempre que é possível
utilizar e nos embasar nele para tomarmos determinados procedimentos. Em alguns momentos
ele se materializa, em outros não.
8- Sim, se materializam. No Sistema Penitenciário destaco o trabalho no Hospital de
Custódia X; com todos os limites impostos pelas políticas públicas, a Reforma Psiquiátrica foi
um sacode”. O trabalho de saídas terapêuticas no Hospital X e o processo de desinternação
são exemplos de luta. A conquista de direitos com as idas aos Centros de Atenção, aos Caps.
Conforme íamos aos lugares, aos municípios em que residiam os Internados do Hospital,
estávamos também indicando que eles tinham determinados direitos, assim como ditavam as
diretrizes da Reforma Psiquiátrica.[...].
Com o processo de desinternação o tratamento prossegue através do ambulatório.
Caps muito interessantes: o de Bangu é muito interessante, o de Nova Iguaçu é bastante
cheio. Um Centro de Atenção muito legal é o de Santo Antônio de Pádua; chama-se Ilha da
Convivência, e lá foi aberta a primeira Residência Terapêutica da região [...].
9- Acho que se materializam. São fundamentais. Não sei trabalhar de outra maneira.
Observação: Os entrevistados consideram que o que eles responderam
aqui ocorre com os Assistentes Sociais de outras áreas de trabalho. Ou seja,
indagados quanto à possibilidade de materialização dos Princípios do Código
de Ética Profissional no cotidiano do seu exercício de trabalho na Instituição, os
Assistentes Sociais entrevistados entenderam que seus argumentos abrangem
a realidade vivenciada pelos profissionais de outros campos de trabalho do
Serviço Social.
357
Como se pode observar, quase todos os entrevistados consideraram
que os Princípios do Código são materializados no cotidiano do exercício
profissional, mas há ressalvas nesse sentido, entre as quais destacaremos
algumas. Por exemplo, o entrevistado de nº 1 afirmou que “isso se realiza dentro do
que se permite”; o profissional de 2 disse que isso ocorre desde que saibamos
citá-los na hora certa [...], [uma vez que], por meio do Código de Ética, pode[-se] argumentar e
melhorar a situação”; para o entrevistado de 4 [...] os Princípios serão materializados
apenas se os profissionais estiverem consoantes com esses Princípios”; o profissional de
7 menciona que se materializarão se o Código for utilizado de maneira
positiva no cotidiano pelo profissional, uma vez que foi baseado nesse dia-a-dia
e não é uma teoria”; o entrevistado de 8 realça a importância da Reforma
Psiquiátrica.
Na primeira e na segunda considerações, os entrevistados de números
1 e 2 têm perspectivas que parecem limitar-se à ordenação capitalista da vida
como algo insuprimível. As idéias aparecem aí como “fazer o permitido” para se
ter acesso aos direitos sem se chegar ao conflito de posições, ou seja, por
meio do Código se alcançar apenas a melhora dentro do instituído. Ao
fazermos tal comentário não estamos, obviamente, defendendo contrariamente
qualquer tipo de “bravata” ou coisa semelhante, mas não observamos nessas
expressões profissionais questionamentos, tampouco indícios de negação em
direção à superação do instituído. Captamos a partir disso, a presença em
nossa cultura profissional da conjugação do ideário neotomista e funcionalista.
Ou seja, como dissemos no Capítulo 3 em que argumentamos sobre o
percurso histórico do Serviço Social e a ética, trata-se de uma profissão que
evidentemente teve significativos avanços, mas que ainda guarda ou “retoma”,
358
como grande parte das outras áreas profissionais, elementos originais e
conservadores. Assim, não obstante históricos avanços e conquistas
profissionais, é comum observar, equivocadamente, a existência de valores
diferentes e alguns valores que acompanham o Serviço Social desde sua
origem conjugados, fundidos e tratados de modo basicamente pessoal, como
se fossem os valores do Código de Ética, e, desse modo, metamorfoseados
em “princípios universalistas”, configurados em um tipo de concepção de bem
comum, “desenhando” uma forma de sociedade sem classes; daí a idéia de
“soluções sem conflitos, harmoniosas”.
127
A consideração feita pelo entrevistado de 4 chama nossa atenção
para a imprescindibilidade da adesão e do comprometimento profissionais com
os valores e Princípios do Código, ou seja, com o fato de não ser suficiente a
existência de um documento, de uma norma, de um código ou de uma lei para
que algo se cumpra, se efetive, não represente “letra morta” ou se torne um
documento formal, cuja gica do “deve ser” encubra a relevância dos
elementos materiais, transformando, por exemplo, a ética em prescrição
desvinculada da realidade (do ser).
Na resposta de 7, apesar de apreciarmos a pretensão do entrevistado
em realçar o trabalho institucional, não podemos deixar de destacar que
simultaneamente deparamo-nos com o “velho” equívoco da cisão entre a teoria
e a prática. Ora, se o Código de Ética Profissional, como se tem ciência, não é
em si uma teoria, como o entrevistado explicitou, é elaboração que comporta
fundamentos teóricos, assim como comporta esses fundamentos também
qualquer ação que possa ser qualificada como profissional.
127
Por vezes, há significativos equívocos teórico-filosóficos; categorias como as da tradição marxista, por
exemplo, podem ser confundidas ou fundidas com diferentes e até antagônicas idéias e ideais.
359
Na resposta de número 8 deparamo-nos com depoimento interessante
que chama atenção para possibilidades de avanços que certos movimentos
podem trazer mesmo em se tratando de locais com características áridas,
repressivas, controladoras, como os que aqui tratamos.
Não obstante a maior parte dos entrevistados afirmar a materialização
dos Princípios do Código de Ética do Assistente Social no cotidiano do seu
exercício profissional, as ingerências da atual conjuntura social, as condições
de trabalho (observadas e descritas) da Instituição investigada, os argumentos
dos entrevistados e a qualidade dos serviços prestados aos seus usuários leva-
nos a conclusão diferente. Apenas captamos a presença residual de elementos
consoantes com os Princípios do Código no cotidiano de trabalho desses
profissionais quando são relatadas certas atividades por eles realizadas
128
e/ou
questionamentos no sentido (democratizante) da ampliação das políticas
públicas e a descrição de denúncias das condições impostas aos Internados
nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Sabemos do peso da
indignação ética como elemento propulsor em direção à materialização dos
Princípios do Código, mas também não desconhecemos que apenas a
indignação não efetiva os Princípios a indignação é necessária mas não é
suficiente. Mesmo que a questão dos direitos sociais e a questão da liberdade
sejam por diversas vezes alvos das referências e discussões dos profissionais
entrevistados e a liberdade esteja em seara do Ser Social, pois, possibilidade
adquirida por superação do condicionamento natural, viabilizando escolha entre
alternativas concretas, consideramos que sejam categorias cujas referências e
discussões — rara exceção — não vislumbram além do pensamento liberal. Ou
128
Como, por exemplo, os passeios ou saídas terapêuticas,os quais o vêm mais ocorrendo pela falta de
viaturas.
360
seja, são perspectivas profissionais fundamentalmente restritas ao parâmetro
da cidadania liberal, não tocando, por conseguinte, de maneira substancial no
conteúdo do Código de Ética, nem na finalidade, na direção social atribuída ao
atual Projeto Ético-Político do Serviço Social.
Para que se possa vislumbrar a materialização desses Princípios é
imprescindível compreendê-los, o que pressupõe o exercício de
desvendamento da realidade social e da conjuntura social que fez com que, na
história da profissão, fossem erigidos. Ou seja, captar criticamente a realidade
social e a profissão, o que possibilitará apreensão do rumo social do Projeto
Ético-Político do Serviço Social, cuja expressão se destaca nesses Princípios
do Código. Isso viabilizará romper com posicionamentos dicotomizados”, que
separam a teoria da prática ou do rumo ideológico e político que se pretende
assumido na ação, evitando inclusive que se formem posturas equivocadas, a
exemplo das teoricistas, praticistas ou politicistas. Assim, pode-se romper com
posicionamentos idealizados que não captam que, para que algo seja
concretizado, é inevitável um sujeito que o projete e o objetive. E que entenda
que o trabalho é a atividade cuja finalidade consciente permite projeção e
objetivação desse algo, desde que haja conhecimento necessário, suficiente e
qualificado pelo sujeito que o efetuará supõe avaliação de possibilidades e
limites.
A esse respeito, é importante a compreensão de que é imprescindível o
investimento dos Assistentes Sociais para um conhecimento qualificado. Pelo
nosso ângulo de análise, o trabalho que cabe a esse profissional não é
paliativo, reiterativo ou burocrático. Ao contrário, cabe ao profissional a
atividade de um intelectual crítico que investe de maneira competente em favor
361
de desvendar a realidade para alterá-la.
129
Por conseguinte, com base em
Vasconcelos (2002), acrescentamos, que a superação da miséria teórica pode
contribuir para a superação da miséria econômica, social e política, uma vez
que se torna indispensável para que possamos desenvolver ações profissionais
consistentes e conseqüentes.
Trazendo à baila parte do que disse o profissional citado na resposta de
2, ao negar a possibilidade de materialização dos Princípios do Código de
Ética do Assistente Social na sociedade capitalista, temos claro que as
diretrizes desse Código colidem com a violação de direitos e a amplitude da
problemática social na formação social brasileira. Ressaltamos contudo que,
não obstante essa tensão ser hoje intensificada diante dos compromissos
assumidos por essa profissão e a realidade traçada pelo recrudescimento do
imanente processo de mundialização do capital, tal afirmação pode significar,
de modo absoluto, a nosso ver, “imobilismo” e “fatalismo”.
Não materializam. Se tivéssemos o nosso Código de Ética [...], sendo posto em prática
a todo momento, seríamos uma sociedade não-capitalista. O capitalismo não vai permitir, vai
garantir direito para quem? É o direito de quem tem o poder de decisão [...].
Logicamente, não encontraremos nessa formação social esses
Princípios efetivados plenamente. Aliás, há no horizonte das finalidades do
Código o comprometimento com a superação dessa sociedade, isso foi
discutido e evidenciado, e desde a construção do Código. Tampouco, cabe a
reprodução do que Tonet (2002) nos alertou a não fazer no plano ético: não
cometer o engano de tomar a ética abstratamente, posto que essa abstração,
129
Não aqui intuito, como foi dito, de polêmica acerca da categoria trabalho e o Serviço Social.
Todavia, avaliamos como oportuno destacar a seguinte consideração, extraída da obra de Netto e Braz
(2007) acerca da práxis: a práxis envolve o trabalho que é a sua atividade modelar, mas não é a sua única,
uma vez que a práxis inclui todas as objetivações humanas, desde formas voltadas para o controle e a
exploração da natureza até as formas voltadas para influir no comportamento e na ação dos homens.
362
segundo o autor, apenas serve para a desumanização da vida e o caminho
para isso é a fratura entre a realidade objetiva e os valores, como quem
pretenda fazer com a ideologização em favor da sociedade capitalista para que
essa funcione sem perder sua natureza essencial. Nesse sentido, temos que
estar alertas para não nos embrenharmos pelos caminhos das idealizações
relacionadas às intenções, das avaliações éticas que se sustentam na
intencionalidade, no plano ideal, no qual a intenção do ato constitui critério
decisivo. Cabe, sim, se considerar que os Princípios do Código referendam
certos valores, norteiam a ação dos profissionais, “iluminam” em prol de
perspectivas profissionais, refira-se à formação de profissionais ou à
possibilidade de atuação profissional, desde que considerados os limites, os
desafios e os obstáculos a serem enfrentados e superados, uma vez que os
Assistentes Sociais têm relativa autonomia na execução do seu trabalho nos
limites impostos pela conjuntura social e as instituições empregadoras são
trabalhadores assalariados. Isto significa chance de escolha, de imprimir
sentido, direção valorativa às suas ações, mas para isso são necessárias
condições básicas de trabalho e preparo profissional contínuo. Condições
objetivas e subjetivas nas quais decisões e alternativas de ação profissional
são tomadas decisões e ões dos sujeitos são tomadas em situações
concretas. Ou seja, ao profissional cabe investir em busca de conhecimentos
teóricos e metodológicos (incluindo ético-políticos) como requisito intelectual
que o qualifique para operações particulares, compreendendo a conexão que
elas têm com a totalidade. Isso significa preparo e aprimoramento profissional
diante da matéria que se visa a modificar, transformar por meio do trabalho.
363
Daí inferirmos que não é pertinente a garantia dos Princípios do Código
de Ética expressão destacada do atual Projeto Ético-Político do Serviço
Social por meio de formas ideais, verbais ou intencionais, como se o
pensamento e o discurso, o discurso humanista e/ou indignado fossem
suficientes como garantia ou como se a intenção do ato constituísse um critério
decisivo. Tampouco há pertinência em observar o Código como documento
formal, prescritivo, desvinculado da realidade. Diferentemente dessas
perspectivas, o Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais é uma
elaboração profissional avançada que não prescinde do exercício profissional e
pode ser observado como um instrumento de luta em favor de Princípios
dissonantes da atual lógica mercantil, que vem expropriando direitos daqueles
que vivem do seu próprio trabalho, uma contribuição de profissionais em prol
da superação da sociedade em que vivemos.
364
Considerações Finais
A indagação sobre a realidade é comumente considerada como o
fundamento originário da filosofia. A busca da verdade, visando à superação
das explicações mágicas e das meras opiniões, foi o movimento que constituiu
a filosofia. Ou seja, a filosofia se constituiu como um conhecimento racional
acerca do mundo e das causas de sua forma, de suas repetições,
transformações, origem e término.
No contexto da pólis, da Cidade-Estado grega, a filosofia surgiu como
forma de diálogo racional em busca da verdade. Todavia, de início, a filosofia
dirigia-se à Natureza; só mais tarde, em decorrência de mudanças econômicas,
sociais e políticas operadas na Cidade-Estado, é que paulatinamente a filosofia
foi voltando seu alvo de discussão para outros pontos que se tornaram
preocupações da vida na cidade, tais como: as instituições, os valores, a ética,
a política.
Como dissemos, a filosofia foi o caminho traçado pelo não-conformismo
com os limites das explicações mágicas e/ou avaliadas como inconsistentes,
ou seja, um caminho que suscitou e ainda suscita meios racionais de suplantar
tais explicações. Constitui um movimento em prol de respostas verdadeiras, da
busca da verdade (alétheia), um movimento de superação das explicações
mágicas e das meras opiniões (dóxa), as quais são instáveis, mutáveis,
efêmeras. se encontra a Ontologia, parte inicial deste trabalho, pois seu
alicerce teórico, e cujo conteúdo pode ser entendido como: ”o estudo ou
conhecimento do Ser, dos entes ou das coisas tais como são em si mesmas,
real e verdadeiramente” (CHAUÍ, 1995, 210).
365
Um modo de compreensão que, como nos propusemos demonstrar,
ruma avesso aos padrões limitados pela superficialidade, pela inconsistência,
pois considera ser possível um investimento racional que possibilite o alcance
de conhecimento substancial sobre as coisas. Portanto, estudo ou
conhecimento que não se restringe às explicações que têm como resposta
meras elaborações subjetivas, desconectadas da realidade criação da idéia
ou “construção teórica” —, como se fosse impossível captar qualquer
legalidade nas coisas, como se não existissem formas reiterativas e estruturais
próprias do Ser, cujo conhecimento fosse permitido.
O pensamento marxiano inaugura a captação da realidade como
movimento e investe no desvendamento de sua legalidade, entendendo o real
concreto como instância possível de ser pensada e interpretada pelo Ser Social
e não algo restrito à criação da idéia. Dessa maneira, o sentido ontológico do
pensamento de Marx leva-nos ao entendimento do conteúdo crítico da filosofia,
ou, melhor dizendo, permite-nos compreender que é pela sua superação como
mera interpretação do mundo ou como disciplina particular especialidade
como independência das demais que podemos partir para a análise crítica
da sociedade em que vivemos, apreendendo a lógica que constitui a sociedade
predominantemente mercantil. E isso, como explica Guerra (2004, p. 21-22),
ocorre devido ao fato de essa corrente do pensamento não se limitar à
constatação dos fatos sociais, mas captá-los como sinais para serem
conhecidos e processualmente desvendados pelos sujeitos sociais, um
processo que também pode até contar com a transformação desses fatos pelos
sujeitos.
366
Além disso, como podemos observar, mais especificamente, na segunda
parte do Capítulo 1, esse pensamento considerando outros autores desse
mesmo campo teórico abriu para a crítica ao singular absoluto, ou seja,
trouxe ao entendimento de que a constituição individual emerge das relações
sociais (o indivíduo social), o que assegura determinada fundamentação acerca
da Ontologia do Ser Social e possibilidades para se alicerçar a discussão no
campo da ética, da maneira como fizemos subseqüentemente. Daí inferirmos
que o Ser Social é algo qualitativamente novo e com contínua possibilidade de
aperfeiçoamento, sem que isso signifique a erradicação de suas bases
originárias. É um Ser cujas instâncias ontológicas se articulam, uma vez que
não há vida sem esfera inorgânica, tampouco Ser Social sem vida ou seja,
Ser Social sem esfera orgânica. Todavia, a reprodução do Ser Social é um
processo que eleva o mundo dos homens a patamares superiores de
sociabilidade, deixando seu desdobramento concreto de ser gradualmente
influenciado por categorias das esferas ontológicas inferiores e passando, cada
vez mais, a constituir-se de categorias puramente sociais.
A base para a estruturação desse Ser qualitativamente novo Ser
Social foi o trabalho; uma atividade cujo surgimento ocorreu após certo
nível de desenvolvimento do processo de reprodução do ser orgânico. É
atividade que não se restringe ao condicionamento biológico, à reação
adaptativa ou à submissão ao meio ambiente, pois conta com a consciência.
Melhor dizendo, o trabalho é a transformação consciente do mundo natural que
possibilita a existência do produto humanizado, algo que antes de ser
367
concretizado estava previamente idealizado, existia para o sujeito-
trabalhador.
130
A busca de satisfação da carência humana material pôs em movimento
o complexo do trabalho, mas os homens nesse processo desenvolveram novas
e diversas necessidades, capacidades e qualidades o Homem transforma a
matéria natural visando à satisfação de suas necessidades e, nesse processo,
também se produz, conquista a sua humanidade, produzindo as relações
sociais e engendrando a História . Pelo que expusemos, podemos nos referir
ao trabalho como atividade relacionada à consciência. Portanto, uma atividade
da esfera social e que significa a possibilidade histórico-social do Ser Social,
pois constitui uma resposta às suas inúmeras carências em face das condições
objetivas do meio natural.
A História só se torna possível porque os Homens ligam-se ao trabalho e
aos resultados obtidos pelas gerações anteriores, ou seja, não começamos
sempre de um suposto “ponto zero”, conhecimento acumulado que nos
permite avançar rumo à ampliação e à complexidade de nossas
necessidades/respostas materiais e espirituais. Assim sendo, podemos cada
vez mais observar categorias próprias do mundo humano, em que se incluem,
por exemplo, questões que são centrais nesse trabalho de doutoramento, ou
seja, a questão dos valores e a questão do dever ser. Aliás, a razão de não
caber referência à natureza inorgânica ou à natureza orgânica face à questão
dos valores ou do dever ser. As questões dos valores e do dever ser e,
130
Como discorremos anteriormente nesta tese, há também a teleologia secundária, ou seja, aquela
referente ao plano das relações sociais. Por conseguinte, relacionada às transformações neste plano. Daí a
importância de ser destacado que a reprodução do Ser Social é um processo que eleva o mundo dos
homens a patamares superiores de sociabilidade, tornando-o, cada vez mais, constituído de categorias
puramente sociais.
368
portanto, a ética referem-se à dimensão inerente à sociabilidade, cujo
parâmetro de reprodução não é a adaptação ao ambiente.
Todavia, a valorização de um objeto, diferentemente do que muitas
vezes se propaga, não é algo restrito à subjetividade, uma vez que pressupõe
a práxis, a ação dos homens em busca da satisfação de suas necessidades,
em busca de respostas para suas carências em determinadas condições sócio-
históricas. Temos que observar que o trabalho pressupõe escolhas entre
alternativas, entre elementos reais e suas utilidades, e pressupõe fim
consciente. É atividade que objetiva posições teleológicas e, na medida em que
origem ao produto, suscita o valor. É processo historicamente aberto e
ininterrupto que, apesar de desencadear nexos sociais cada vez mais
complexos e, por isso, poder parecer distante daquilo que lhe deu origem, a
aparência não elimina sua gênese ontológica.
Paralelamente à pressuposição de atos individuais, o trabalho suscita
intercâmbio, cooperação e sociabilidade entre os Homens. Com o
desenvolvimento da sociabilidade, as tensões entre as esferas particular e
genérica tendem a se mostrar mais nítidas, fazendo emergir mediações sociais
para operarem no cotidiano. É nesse espaço que podemos captar a origem de
aspectos como a moral, a ética ou o direito. Aspectos estes que consideramos,
sem nos determos em distinções, que a função social primordial repouse no
espaço aberto pela contradição entre o nero e o particular, possibilitando ao
Homem escolher entre valores, sejam aqueles voltados para as necessidades
humano-genéricas, sejam aqueles referentes aos interesses apenas
particulares de indivíduos ou grupos sociais. Além disso, cabe frisar que a ética
369
pode atuar no interior da contradição entre o genérico e o particular visando à
superação do que é incompatível com o humano-genérico.
A sociedade burguesa possibilitou ao Homem reconhecer-se como
autor/ator da sua própria História. A expansão do mercado e o conseqüente
avanço científico possibilitaram ao indivíduo cientificar-se de que é parte do
gênero humano, de que ele e a sociedade não são formas contrárias, e sim
facetas da mesma realidade. No entanto, é essa mesma sociedade que erigiu a
forma de sociabilidade burguesa e a correspondente individualidade burguesa.
A mercantilização da vida social característica nessa sociedade uma
“arquitetura social” cuja riqueza social o é reconhecida por sua capacidade
de satisfação das necessidades de todos, e sim pelo valor de troca desenha
a contradição entre o particular e o genérico, entre o indivíduo e o cidadão,
entre o individual e o societário. É sociedade regida pelo valor de troca e com
“cimento ideológico” próprio, tendo concepções adequadas à lógica capitalista,
como, por exemplo, idéias que supervalorizam as iniciativas individuais, idéias
“privatistas” ou relativas à competição, à produtividade, enfim perspectivas que
sirvam à valorização do capital.
Decorrente de conflitos entre as forças produtivas e as relações feudais,
erigiu-se o modo de produção capitalista com o ineditismo de constituir-se pela
supremacia do valor de troca, de constituir-se pelo mercado, tornando
mercadoria a própria força de trabalho.
Na seqüência de um longo processo histórico, que inclui particularmente
as transformações operadas nos últimos trinta anos oriundas da crise
contemporânea do capital, na economia capitalista tomou fôlego à política
neoliberal, uma forma de capitalismo ainda mais dura, que se pretende livre de
370
regras. Nesse processo o Brasil entrou tardiamente, comparado aos outros
países da América Latina, uma vez que, como explanamos no Capítulo 2, a
ditadura militar por que passou esse País lançou mão de mecanismos capazes
de utilizar o período expansivo do capitalismo internacional em favor da
economia nacional, retardando seu ciclo recessivo. Assim sendo, ocorrerá
evidência da política neoliberal em terras brasileiras na década de 1990.
Apenas no final dos anos de 1970 a estratégia utilizada pelo governo
militar para retardar o ciclo recessivo na economia brasileira perdeeficiência,
e não mais conseguirá retardar a recessão econômica brasileira. Esse fato, em
associação com a redemocratização política do País, dificultou a penetração do
neoliberalismo mesmo no decorrer da década seguinte, os anos de 1980.
Todavia, a hegemonia neoliberal evidenciou-se no Brasil, com significativas
questões e complexos desafios para o desenvolvimento econômico do País, a
partir do governo Collor. A denominada globalização econômica e a política
neoliberal, fenômenos de um mesmo processo, trouxeram a financeirização da
economia e a precarização das relações de trabalho. Isto se faz presente no
cotidiano dos brasileiros, em aspectos como: o aumento do desemprego ou a
constante ameaça dele, gerando instabilidade para a classe trabalhadora,
subemprego e novas formas de contratação por projeto, por hora, entre
outros —; atrofia e/ou conversão do Estado
131
e, em conseqüência, maior
fragilização das políticas sociais e crescimento do chamado Terceiro Setor,
possibilitando que práticas voluntárias sejam tomadas até como possibilidade
de “substituição” do trabalho profissional; ampliação da violência urbana, o que
vem produzindo a configuração de outros inúmeros fenômenos associados, a
131
Como explanado, o Estado vem se tornando mínimo para os trabalhadores e convertendo-se em
complemento do mercado, tornando-se uma espécie de “Estado Penal ou Policial”, em vez de
manter/priorizar funções de proteção social.
371
exemplo da criminalização da pobreza, como discutimos no Capítulo 2, e assim
por diante.
Consideramos, inclusive, que a ausência ou a debilidade de política
social são, em grande parte, as responsáveis pela necessidade de existência
de instituições como as que aqui focalizamos. Pelo que pudemos captar com a
realização do presente trabalho, os Internados comumente chegam às
Instituições de Custódia e Tratamento Psiquiátrico em limiar agudo de sua
doença, devido especialmente à ignorância dos familiares (particularmente,
com relação à doença),
132
em geral de baixo nível de escolaridade e, por
conseguinte, de informação,
133
e devido à precária ou inexistente rede de
assistência médica a que podem ter acesso.
Dessa maneira, pode-se dizer que discutimos a possibilidade de
materialização de certos princípios no cotidiano do trabalho institucional de
profissional que lida com política social. Ou seja, um profissional que na
execução de políticas sociais, lida com pessoas que, apesar do direito de
usufruírem dessas políticas ao longo de suas vidas, provavelmente (ou, em
grande parte) chegaram à institucionalização por ineficiência ou mesmo por
ausência de tais políticas e, pelo que apreendemos por meio da nossa
pesquisa, não se pode dizer que passaram, por se encontrarem
institucionalizadas, a condições muito diferentes.
As implicações disso para os Internados e seus familiares são claras.
Entretanto, não podemos desconsiderar que abordamos questões que recaem
132
Segundo conversas com alguns entrevistados, comumente a família faz referência à observação de
comportamento estranho do Internado há muito tempo. Entretanto, as razões de tal comportamento são as
mais diversas possíveis, menos o transtorno psíquico. Além disso, destacamos que em conversa informal
com psiquiatra de um dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, diretor da Instituição à época
que realizamos as entrevistas, tivemos sua concordância acerca da idéia de que a ausência ou a debilidade
de políticas sociais são, em grande parte, as responsáveis pelo delito cometido pelos Internados e, em
conseqüência, pela existência de instituições deste gênero.
133
Cabe lembrar quanto a desinformação leva à mitificação da doença mental.
372
também sobre os trabalhadores das Instituições aqui focalizadas. O trabalho
com a custódia de pessoas, as condições de trabalho observadas, o convívio
com as dificuldades e necessidades dos Internados, entre outros fatores, nos
parecem elementos suficientes para que se possa supor o sofrimento desses
trabalhadores.
134
Retomando a explanação sobre os Internados, citamos que grande parte
deles são pessoas que, pelo que pudemos captar, se tivessem sido
devidamente assistidas, não chegariam a cometer delito, uma vez que não
teriam chegado ao ápice da doença, pois seu transtorno psíquico
provavelmente estaria sob controle. Aliás, à própria existência da Instituição ou
pelo menos ao seu atual perfil, cabem significativos questionamentos, se
partirmos apenas do que acabamos de argumentar.
Diante do exposto, é relevante lembrar que muito tempo os sistemas
de saúde e de educação fundamental públicos vêm se mostrando seriamente
prejudicados. Também muitas polêmicas suscitam as demais políticas de
Estado destinadas à infância e à adolescência, a exemplo daquelas que se
destinam ao trabalho com meninos que estão vivendo pelas ruas da cidade do
Rio de Janeiro. Além disso, como discutimos no Capítulo 2, em uma sociedade
cuja produção do valor para o engrandecimento ilimitado do capital tornou-se
finalidade precípua, em vez da satisfação das reais necessidades humanas,
não é difícil entender — o que não significa aceitar — que sua gica se
assente na atrofia e/ou conversão do Estado com a restrição das políticas
sociais. Lógica essa que, como argumentamos ao abordar o tema Ética e
Economia, submete as questões societárias aos ditames dos interesses
134
Este é um fato relevante que, por razões óbvias, não será aprofundado aqui. Contudo, destacamos a
significância de estudo(s) nesse sentido.
373
econômicos, subvertendo o papel que cabe à política na organização da vida
em sociedade. Isso também se relaciona ao que foi discutido acerca do
fenômeno da criminalização da pobreza, uma vez que, se cada vez mais
desresponsabilizarmos o Estado das políticas sociais, tenderemos a nos
deparar com o desenvolvimento do que Wacquant (2001) chamou de Estado
Penal em resposta aos problemas decorrentes da desregulamentação da
economia, da “flexibilização” do trabalho e da conseqüente ampliação da
desigualdade social e/ou da pauperização de contingentes da população do
nosso País. O autor deixa claro em sua obra quanto se vem tentando substituir
as políticas sociais por meio da ampliação do aparato judiciário e policial. Isso
significa a possibilidade de visualizarmos o menor acesso aos direitos sociais
acarretando a ampliação acentuada do que se costuma chamar de “exclusão
social”. No caso presente, como pontuamos, podemos pensar na ausência
e/ou na precariedade do atendimento psiquiátrico tendo como conseqüência a
ação violenta da pessoa portadora de transtorno mental
135
fato que,
considerada a classe social, provavelmente leva essa pessoa para a
institucionalização em condições em parte descritas neste trabalho para
cumprimento de Medida de Segurança, sem definição do tempo para sua
saída. Pois, mesmo que preestabelecida por um período entre um a três anos,
a possibilidade de renovação da Medida de Segurança, mediante laudo médico
de Verificação de Periculosidade, pode torná-la semelhante a algo
inconstitucional ou seja, a uma sanção em caráter perpétuo —, sem que
aquele que ficará institucionalizado para cumpri-la possa defender-se, uma vez
135
No Jornal Práxis do Conselho Regional de Serviço Social R., 39, Nov. Dez. de 2006, p. 4, a
Presidente do Conselho Federal de Serviço Social à época, Assistente Social Elisabete Borgianni,
destacou, em entrevista, o equívoco que significa desconsiderarmos a saúde mental como “questão
social”. A Assistente Social afirmou que isso pode contribuir para reforçar desvios e violar direitos.
374
que o vai a julgamento, não é tomado como réu e seu processo não se
encerra por não ser considerado imputável.
No que se refere ao Projeto Ético-Político do Serviço Social brasileiro,
como vimos no Capítulo 3, é um produto e a expressão de um amplo
movimento que conecta aspectos próprios da profissão aos aspectos de âmbito
societário, possibilitando um processo de renovação crítica no Serviço Social.
Nos termos de Iamamoto, cabe observar, quanto a esse Projeto,
historicamente datado, que
Foi no contexto de ascensão dos movimentos das classes
sociais, das lutas em torno da elaboração e aprovação da
Carta Constitucional de 1988 e pela defesa do Estado de
Direito, que a categoria dos assistentes sociais foi sendo
questionada pela prática política de diferentes segmentos da
sociedade civil e não ficou a reboque desses acontecimentos.
[...]. Tal processo condiciona, fundamentalmente, o horizonte
de preocupações emergentes no âmbito do Serviço Social
brasileiro, exigindo novas respostas profissionais (2007, p.
223).
Esse Projeto que significa uma conquista profissional visando à
superação do tradicional conservadorismo no Serviço Social, geralmente
chamado de Projeto Ético-Político, traz desde o nascedouro a marca do desafio
face aos seus supostos, uma vez que distintos da lógica neoliberal. Entretanto,
a viabilidade de encaminhamento/efetivação de seus compromissos e objetivos
atualmente vem sendo frontalmente desafiada. Quanto a isso, é suficiente
observarmos questões referentes à formação profissional, que a passos largos
se depara com o “empresariamento” das instituições de ensino, bem como
pensarmos acerca das dificuldades de trabalho daqueles profissionais que no
campo das políticas sociais se vêem pressionados à absorção de fundamentos
teórico-políticos e rumos operacionais compatíveis com os interesses
mercantis.
375
Isso reforça o que discutimos, esse Projeto requer fundamentos
teóricos
136
e exercício profissional qualificados —
137
e forças políticas que
possam adensar o trabalho desenvolvido pela categoria dos Assistentes
Sociais na direção apontada pelo seu Projeto Ético-Político. Ou seja, quanto ao
Projeto não cabem os limites da abstração, do idealismo, do mero discurso
desprovido de conteúdo teórico e prático ou, como bem colocou Iamamoto
(2007), “a armadilha do discurso que proclama valores radicalmente
humanistas mas não é capaz de elucidar as bases concretas de sua
objetivação histórica”. Daí a necessidade de considerarmos o exercício
profissional cotidiano, como já explicitamos, ao tratar do espaço institucional do
Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, focalizando esse Projeto por
meio dos Princípios que fundamentam o Código Profissional. Ou seja,
destacando a orientação desses Princípios face ao trabalho cotidiano do
Assistente Social e a orientação propalada em nossa sociedade pelo projeto
neoliberal. É necessário não se perder de vista que a orientação dos Princípios
do Código ruma na contramão da ideologia neoliberal. Dessa maneira, só
podemos ir na direção da materialização dos Princípios Fundamentais com
competência profissional que nos possibilite trabalhar a partir das contradições
postas na realidade social, o que requer muito estudo, conhecimento apurado
da realidade, d a relevância do sentido ontológico, uma vez que o
conhecimento de que tratamos aqui requer captação crítica da lógica que
caracteriza a sociedade em que vivemos.
136
Daí nosso destaque à importância da formação profissional e ao contínuo (ininterrupto) exercício de
busca de fundamentos teóricos visando à competência profissional.
137
A respeito do Projeto Ético-Político do Serviço Social, é importante consultar: José Paulo Netto. Das
ameaças à crise. In: Revista Inscrita. Nº 10, Nov. 2007, p.37- 40; Marcelo Braz. A hegemonia em xeque –
Projeto Ético-Político do Serviço Social e seus elementos constitutivos. In: Revista Inscrita. Nº 10, Nov.
2007, p. 5 – 10.
376
Assim sendo, não obstante a maior parte dos profissionais entrevistados
afirmar que põe em prática os Princípios do digo Profissional no seu
cotidiano profissional, não houve discussão abalizada sobre o Projeto Ético-
Político e, por conseguinte, sobre o significado histórico do atual Código e seus
Princípios Fundamentais. Esse fato, conseqüentemente, gera insuficiência na
efetivação desse documento como instrumento norteador da ação. Cabe
lembrar que conhecendo pelo menos uma porção suficiente do real é
que podemos nos utilizar de meios para modificar a realidade. Dessa maneira,
analogamente, temos que ser capazes de colher as necessárias determinações
da realidade, termos conhecimento e potencial teleológico, senão não
possibilidade de realizarmos em ato nossa finalidade, como discutimos no
Capítulo 1 desta tese. O trabalho pressupõe teleologia,
138
finalidade consciente
da ação; portanto, como seria possível realizarmos uma ação sendo orientados
por algo que desconhecemos, algo cujos fundamentos, e cujos valores, ou
seja, cuja direção social que nos está sendo apontada não compreendemos?
Mencionamos também que, não obstante afirmarmos, no Capítulo 3, o
amadurecimento teórico e ético alcançado pelo Serviço Social, de modo geral,
isso não significa necessária correspondência por cada equipe de trabalho ou
profissional do Serviço Social em particular.
Ademais as ingerências da realidade socioeconômica e política definem
condições de trabalho (inclusive possibilidade de capacitação profissional)
139
e
serviços prestados para os usuários na Instituição investigada que nos
permitem afirmar discordância da consideração feita pela maioria dos
entrevistados colocar em ato os Princípios do digo Profissional no seu
138
Como já comentamos, aqui se faz referência especial à teleologia secundária.
139
Logicamente, que não se pretende com isso desresponsabilizar o sujeito, ou seja, colocá-lo como um
ser sem alternativas diante da estrutura.
377
cotidiano de trabalho. Qualquer ação profissional que se pretenda rumo à
materialização (possibilidade de realização em ato de finalidade) dos Princípios
Fundamentais do Código colocando em prática esses Princípios começa
por um processo de profundo desvendamento da realidade social para que
possa partir das contradições a essa realidade inerentes, e isso demanda
investimento em estudo, em capacitação profissional preocupação que não
observamos como tônica no decorrer de nossas entrevistas.
Diante disso, mais uma vez cabe lembrar, parafraseando Vasconcelos
(2002), que a superação da miséria teórica pode contribuir para quem visa à
superação da miséria econômica, social e política, uma vez que é
imprescindível para o desenvolvimento de ações profissionais consistentes.
Destacamos ainda que, assim como no campo aqui investigado, outros
profissionais podem estar avaliando equivocadamente a materialização dos
Princípios e/ou do atual Projeto Profissional em seu cotidiano de trabalho.
Os Princípios do Código destoam das diretrizes traçadas pelos ditames
econômicos e a ideologia hegemonicamente posta em nossa realidade. É óbvia
a amplitude que toma a “questão social” com o atual recrudescimento do
imanente processo de mundialização do capital, e as significativas
repercussões no plano profissional para uma profissão, como o Serviço Social,
que se dirige basicamente ao contingente mais empobrecido da população, em
um país de “capitalismo periférico” como o Brasil. Entretanto, isso não pode
tornar-se tradução de “imobilismo”, “fatalismo” ou de “avaliações profissionais
equivocadas”, mas sim o entendimento de que essa realidade, por mais árida
que possa parecer, não é inquestionável, refratária às ações profissionais
qualificadas, insuperável, tampouco representação do “fim da História” e de
378
que o atual Código Profissional é fruto de um processo de renovação crítica na
profissão e produzido em resposta a essa realidade.
A produção capitalista é uma relação social que engendra organização
social e sociabilidade próprias, e muitas vezes nos parece algo insuperável,
haja vista mostrar-se como um processo amplo e solidificado por reverberar por
todas as dimensões da vida.
Dessa maneira, não obstante os dilemas, os desafios e os limites que
isso nos impõe, é na realidade social que trabalhamos, no campo concreto da
vida em sociedade e das relações sociais, que temos nosso âmbito de ação
profissional. Portanto, é o conhecimento apurado da realidade social que nos
favorecerá competência profissional, a possibilidade concreta do exercício
profissional daí a relevância de estudos nos campos aqui tratados, entre
eles: ontologia/ Ser Social, ética/economia/política.
No decorrer das entrevistas houve muitas referências ao trabalho
profissional visando aos direitos sociais dos usuários da Instituição. Todavia,
pouco se observa de “concreto” nesse sentido. Além das discussões e dos
exemplos das Saídas Terapêuticas, raras foram as experiências recorrentes.
Os profissionais têm clareza das precárias condições de trabalho,
140
mas não
há relato de qualquer movimento organizado no sentido de mudar esse quadro,
tampouco parece existir troca de experiência a esse respeito. o observamos
discussões ou exemplos de luta dos profissionais entrevistados (envolvendo
usuários e/ou familiares, equipe intra- e/ou interprofissionais etc.) acerca de
aspectos referentes à Lei de Execuções Penais, à Lei Orgânica da Assistência
140
Capacitação profissional é um dos meios necessários para o atendimento qualificado do usuário.
Portanto, podemos até considerar a capacitação profissional/aprimoramento intelectual (constante) como
parte das condições de trabalho. Daí a sua importância, o que a torna até conteúdo do Código de Ética
Profissional, ou seja, parte dos Princípios Fundamentais desse Código.
379
ou a aspectos referentes aos movimentos no campo da saúde e/ou da
psiquiatria, por exemplo.
Não se observam ações profissionais planejadas e “coletivizadas” rumo
à ampliação e/ou à garantia das políticas sociais e da democratização das
relações institucionais. Não se coloca em questão de maneira substancial
profissional as condições de trabalho e atendimento, considerando-se a
própria lógica legal, ou seja, questionando-se o cumprimento da Lei de
Execuções Penais, por exemplo. Dito isso, temos o suficiente para trazermos à
baila algumas indagações: a) por que o Internado do Hospital de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico deve se submeter ao tratamento médico (psiquiátrico)
sem que tenha tido qualquer possibilidade de interferência na escolha do
terapeuta ou consulta prévia com esse profissional?; b) cabe um tratamento
médico-psiquiátrico ser compulsório?; c) por que esse Internado não tem o
direito à Visita Íntima, uma vez que esta poderia ser favorável ao seu
tratamento?; d) por que esse Internado não tem o direito ao trabalho e à
conseqüente diminuição do seu período de permanência na Instituição em
função dos dias trabalhados, assim como ocorre com outros custodiados que
cumprem pena privativa de liberdade e não Medida de Segurança?; qual é a
finalidade de o Internado cumprir Medida de Segurança?; qual o tipo de
tratamento que este Hospital oferece? qual é o significado do Serviço Social
face aos aspectos levantados?
Enfim, os aspectos ora levantados, relacionados a outros que foram
evidenciados e discutidos ao longo desta tese, em especial, na seção que
dedicamos à análise das entrevistas, ratificam nossa tese central de que os
Princípios Fundamentais do Código de Ética Profissional só se materializam no
380
plano das situações concretas, no exercício cotidiano profissional. Dessa
maneira, quanto à hegemonia do Projeto Profissional é relevante lembrarmos,
ou, melhor, estarmos atentos ao fato de que o discurso não é suficiente para
sua efetivação e que esse Projeto necessita, prioritariamente, para ser
apreciado, de amplo conhecimento do exercício profissional cotidiano, pois a
abstração no campo ético “não o se opõe à desumanização da vida,
como é funcional a ela”, conforme esclarece Tonet (2002). Trata-se de uma
forma de abstração que favorece a reprodução da ordem do capital,
obscurecendo suas contradições internas e permitindo que essa ordem
funcione sem perder sua natureza essencial. Sendo assim, destacando a
dissonância das diretrizes desse Projeto do Serviço Social com o que vem
sendo preconizado e efetivado pelo atual ordenamento econômico, salientamos
que o desenvolvimento desse Projeto não se limita às deficiências da lógica do
“dever ser”, pois tal lógica não nos permitiria ir além do formalismo. Ou seja,
com ela desconsideraríamos os elementos materiais, transformando a ética em
um conteúdo prescritivo desvinculado da realidade concreta (do ser), como nos
permite fundamentar o tema discutido no Capítulo 1 Ontologia. Ou, ainda, que
o desenvolvimento desse Projeto não é compatível com perspectivas idealistas,
como bem exemplifica a perspectiva que situa a ética no plano da
intencionalidade, aquela que a situa como algo no qual a intenção do ato
constitui o critério decisivo.
141
141
Considerando que o cabe ao pesquisador apenas a constatação dos fatos sociais, mas o seu
desvendamento e também a responsabilidade de contribuir, caso necessário, para sua alteração. Ou seja,
compreendendo que os fatos sociais que surgiram no decorrer da realização deste trabalho são sinais que
merecem, além da busca do seu desvendamento, ões (dos diferentes sujeitos envolvidos) que visem a
contribuir para alterá-los, realizamos curso de capacitação profissional com os Assistentes Sociais e
Estagiários de Serviço Social dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio de
janeiro. Este curso foi promovido pela autora desta tese, profª Valeria L. Forti, coordenado por ela e sua
orientadora de tese, profª Yolanda D. Guerra, e realizado no Conselho Regional de Serviço Social – 7ª R.,
nos dias 26 e 27 de agosto e 4, 5 e 30 de setembro, sendo este último dia destinado à entrega de trabalho
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professoras de Serviço Social: Fátima Grave (UFRJ) atual Presidente do Conselho Regional- R.
Tema: Projetos societários e o projeto profissional, Yolanda D. Guerra (UFRJ) – Tema: Gênese e
instrumentalidade do Serviço Social, Valeria L. Forti (Uerj) Tema: Os códigos de ética profissional no
percurso histórico do Serviço Social brasileiro e o atual Projeto Profissional, Marlise Vinagre (UFRJ)
Tema: Adensando o debate sobre os códigos de ética dos Assistentes Sociais brasileiros ou seja, uma
continuidade do tema desenvolvido pela profª Valeria, por meio de exercícios em sala de aula e dinâmica
de grupo, Cleier Marconsin (Uerj) Direitos Sociais e o atual Projeto Ético-Político do Serviço Social
brasileiro, Larissa D. Pereira (UFF) Política Social e o atual Projeto Ético-Político do Serviço Social
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391
Anexo - Roteiro para as entrevistas com Assistentes
Sociais dos Hospitais de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico do Estado do Rio de Janeiro.
Obs: as entrevistas foram gravadas em fitas cassete e o presente documento
preenchido pelo entrevistador (autora desta tese) visando à tabulação e análise
dos dados.
A- Entrevista/nº__,Data_______,Duração______,Local_______________
Entrevistado_____,Entrevistador_________,Instituição_____________
Obs: os três últimos itens serão preenchidos por siglas previamente definidas.
1º Bloco de perguntas:
Dados de identidade/ Formação profissional
I – Dados de identificação:
1.1 – Idade:_______
1.2 - Sexo: [...] feminino [...] masculino
1.3 - Estado civil: [...] solteiro [...]casado (inclui viver com companheiro)
[...] separado/divorciado [...] viúvo
1.4 - Religião: [...] tem [...] não tem
1.5 - Se tiver, qual? [...] católica [...] espírita [...] evangélica [...] budista
[...] outras especificar por extenso ____________________
1.6 – Qual a sua cor?______________________________
1.7- Área de residência: município ______________,
bairro________________
II - Formação profissional:
2.1- Nome da Instituição de ensino onde cursou Serviço Social:
_______________________________________________________________
2.2 - Curso: [...] noturno [...] diurno; [...] público [...] privado
2.2.1 – Identificou na Instituição onde concluiu o curso de Serviço Social
alguma corrente teórico-metodológica hegemônica orientando a formação
profissional? [...] sim [...] não. Caso afirmativo, especificar
_______________________________________________________________
2.3 trabalhava no período de realização do curso de Serviço Social: [...] sim
[...] não.
2.3.1 Caso afirmativo, especificar em que (e onde) trabalhava:
_______________________________________________________________
2.4 – Ano da conclusão do curso:_______________(com quatro dígitos)
2.4.1 – Código de ética vigente ____________________
2.5 – Grau de instrução do pai: [...]1º grau completo [...] 1º grau incompleto
[...] 2º grau completo [...] 2º grau incompleto
[...] 3º grau completo [...] 3º grau incompleto
[...] curso de especialização
2.5.1 – instrução da mãe: [...]1º grau completo [...] 1º grau incompleto
[...] 2º grau completo [...] 2º grau incompleto
[...] 3º grau completo [...] 3º grau incompleto
[...] curso de especialização
2.5.2 – cônjuge/companheiro [...]1º grau completo [...] 1º grau incompleto
[...] 2º grau complet
o [...] 2º grau incompleto
[...] 3º grau completo [...] 3º grau incompleto
[...] curso de especialização
2.6 – Última titulação do entrevistado:
392
[...] faculdade de Serviço Social [...] especialização lato senso [...] mestrado
[...] doutorado [...] pós-doutorado [...]
2.6.1 – Ano de conclusão do curso: ___________(com quatro dígitos)
2.6.2 – Instituição pública [...] Instituição privada [...]
2.6.2.1 – Qual a área?____________________________
2.6.3 - Curso em andamento: [...] sim [...] não
2.6.3.1- início do curso: neste semestre [...] segundo semestre [...] além do
segundo semestre [...]
2.6.3.1.1 – Qual a área?____________________________
2.6.3.2 Caso afirmativo, qual? especialização [...] mestrado [...] doutorado [...]
pós-doutorado [...]
2.6.3.3 – Instituição pública [...] Instituição privada [...]
2.6.3.4 – Qual a área?_____________________________
2º Bloco de perguntas:
III – Exercício profissional/Serviço Social:
3.1 – Tempo de trabalho como assistente Social:
[...] menos do que 1 ano [...] 1 ano [...] 2 anos
[...] 3 anos [...] 4 anos [...] 5 anos [...] 6 anos
[...] 7 anos [...] 8 anos [...] 9 anos [...] 10 anos
[...] de 11 a 15 anos [...] de 16 a 20 anos
[...] de 21 a 25 anos [...] de 26 a 30 anos
[...] mais do que 30 anos
3.2 - Participa(ou) de algum órgão da categoria? sim [...] não [...]
3.2.1 Caso afirmativo, quanto tempo atrás: (marcar com X sobre) 1, 2, 3,
4, 5, anos, mais do que 5 anos ou participo atualmente [...]
3.3 – Tempo de trabalho na atual Instituição:
[...] menos do que 1 ano [...] 1 ano [...] 2 anos
[...] 3 anos [...] 4 anos [...] 5 anos [...] 6 anos
[...] 7 anos [...] 8 anos [...] 9 anos [...] 10 anos
[...] de 11 a 15 anos [...] de 16 a 20 anos
[...] de 21 a 25 anos [...] de 26 a 30 anos
[...] mais do que 30 anos
3.3.1– Por que veio trabalhar neste campo?
3.3.2 - O que você pretende como Assistente Social neste campo, ressalte
objetivos:________________________________________________________
3.3.3– Qual o objeto de estudo/intervenção do Serviço Social neste
campo?_________________________________________________________
3.4- Você tem ou teve (menos do que 3anos) estagiário(s) sob sua supervisão?
sim [...] não [...]
3.4.1– O que vo considera acerca do trabalho como
supervisora?_____________________________________________________
3.5– Tem (tinha) contato com a(s) instituição(ões) de ensino do(s)
estagiário(s)?
sim [...] não [...]
3.5.1– Por quê?__________________________________________________
3.6 – Você desenvolve projeto(s) de Serviço Social? sim [...] não [...]
3.6.1- Caso afirmativo, descreva-o(s) ressaltando os objetivos:_____________
3.6.1.1 – Esse(s) projeto(s) está(ão) documentado(s)? sim [...] não [...]
3.6.1.2 – A Instituição possui programa de trabalho documentado? sim [...] não
[...]
393
3.6.1.2.1 – Caso afirmativo, comente-o(s) ressaltando os objetivos:__________
3.6.2.2 Os objetivos Institucionais são consoantes com os objetivos do
Serviço Social (na Instituição, no seu projeto de trabalho, e com o Projeto Ético-
Político)?_______________________________________________________
Por quê? Como?_________________________________________________
3.7- Como você avalia as condições de trabalho nesta Instituição?__________
3.7.1 Você considera que as condições de trabalho da Instituição interfiram
no seu exercício profissional? sim [...] não [...]
3.7.1.1 - Por quê?________________________________________________
3.7.1.2 - Como?__________________________________________________
3.8 Como você avalia os serviços prestados pela Instituição aos
usuários?_______________________________________________________
3.8.1 – Especificamente, o prestado pelo Serviço Social?__________________
3.9. - Você teria algum comentário a fazer sobre a atual política de saúde/
reforma psiquiátrica?______________________________________________
3.9.1 - Você teria algum comentário a fazer sobre a atual política penitenciária/
LEP?___________________________________________________________
3.9.2 - Você teria algum comentário a fazer sobre a atual conjuntura e o
Serviço Social?___________________________________________________
3.9.2.1 Especificamente, sobre a atual conjuntura e o trabalho desta
Instituição e/ou o trabalho do Serviço Social nesta Instituição, teria o que
comentar?_______________________________________________________
3.9.3 Você considera que a Lei de regulamentação da profissão facilite o
trabalho dos Assistentes Sociais? sim [...] não [...]
3.9.3.1 - Por quê? Como?__________________________________________
3.9.4 – O que você considera sobre o atual Projeto Ético-Político do Serviço
Social?_________________________________________________________
3.9.4.1 – O que você considera sobre o atual Código de Ética profissional dos
Assistentes Sociais?_______________________________________________
3.9.4.2 – O que você considera sobre os Princípios do atual Código de
Ética?__________________________________________________________
3.9.4.2.1 – Você destacaria algum desses princípios? sim [...] não [...]
3.9.4.2.2 – Em caso afirmativo, qual?__________________________________
3.9.4.2.2.1 - Por quê?______________________________________________
3.9.4.2.3 – Você utiliza comumente o Código de Ética para orientar o cotidiano
do seu exercício profissional? Sim [...] Não [...]
3.9.4.2.3.1 – Por quê?_____________________________________________
3.9.4.2.3.2 - Como, exemplifique?____________________________________
3.9.4.2.4 – Esses Princípios se materializam no cotidiano do seu exercício
profissional? sim [...] não [...]
3.9.4.2.4.1 - Por quê?______________________________________________
3.9.4.2.4.2 - Como, exemplifique?____________________________________
3.9.4.2.5 – Você considera que isso seja comum aos Assistentes Sociais de
outras áreas de trabalho? sim [...] não [...]
3.9.4.2.5.1 - Por quê? _____________________________________________
4. Tem alguma observação para acrescentar?__________________________
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