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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE
Escola Nacional de Ciências EstatísticasENCE
Curso de Mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais
Estatísticas públicas: tempos e significados
(o espaço da sociologia das estatísticas)
por
HERBERTH DUARTE DOS SANTOS
Dissertação apresentada no Curso de
Mestrado em Estudos Populacionais e
Pesquisas Sociais; área de
concentração: População, Sociedade e
Território; Escola Nacional de Ciências
Estatísticas – ENCE/IBGE, como
requisito à obtenção do Título de Mestre.
Orientador:
Prof. Dr. Nelson de Castro Senra
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1
Introdução
A afirmação fundamental do raciocínio desse estudo encontra-se implícita no
título e subtítulo e consiste em declarar que as estatísticas oficiais fazem parte de um
laborioso processo de construção social da “realidade”. Esta afirmação remonta ao
que Pierre Bourdieu chamou de “Paradoxo do Sociólogo
1
” e levanta questões que têm
relação com o campo de estudo da sociologia do conhecimento
2
. Conhece-se o mundo
social por construção ou constatação? Como o mundo social é percebido e qual é a
teoria do conhecimento que explica o fato de se perceber o mundo como organizado?
(BOURDIEU, 1883)
Nos dias atuais, ouve-se falar de estatísticas públicas com muita freqüência. Os
jornais noticiam, de forma intermitente, índices e mais índices estatísticos. Exige-se, a
cada dia, que os institutos de estatística produzam mais e mais informações. Quer-se
saber mais sobre o meio ambiente, os rumos da economia, a violência, as famílias, o uso
do tempo, a pobreza, a fome, a obesidade etc. Não só os governos as querem para
administrar mais e melhor, como os cidadãos as querem para um maior controle da
realidade social, econômica, ambiental etc., assim como as querem para maior controle
das atividades do governo.
Na academia, as ciências, sobretudo, as humanas, utilizam-se, com freqüência,
de estatísticas públicas para suas análises. Não raro, ouve-se, aqui e ali, alguém se
referindo às qualidades ou aos problemas de um país, região, localidade ou grupo, a
partir de índices estatísticos. Provavelmente, algum dia, todos já se situaram no mundo a
partir de alguma média ou classe estatística. Nesse sentido, pode-se mesmo afirmar que
muito do que se sabe sobre o mundo seria impossível conhecer sem a “mágica” da
agregação estatística.
Assim, continuamente, as estatísticas vêm sendo usadas como expressões da
realidade, como imagens ordenadas dentro de um mundo cada dia mais fragmentado. A
partir das informações estatísticas, é possível isolar, pelo menos no papel, ou, mais
1
BOURDIEU (1983).
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2
recentemente, no computador, os diferentes grupos e fenômenos que constituem a vida
em sociedade. Assim, fala-se no número de brancos e pretos, ricos e pobres, homens e
mulheres, jovens e velhos etc. À primeira vista, tudo isso é muito evidente. Age-se
como se a produção de estatísticas não passasse de uma simples constatação dos fatos.
Mas, neste estudo, ao se afirmar que as estatísticas oficiais fazem parte de um
laborioso processo de construção social da “realidade”, admite-se uma posição inversa.
Assume-se a proposição de que a realidade é sempre conhecida por um processo de
construção, não de constatação. Isso, por sua vez, sugere a oposição de dois termos que
são correntes na linguagem diária, mas que apresentam atrás de si uma longa história de
investigação filosófica, a saber: realidade e conhecimento
3
.
Admite-se, então, que a realidade não é algo dado, que se faz conhecer pelo
simples contato. Ao contrário, nesta perspectiva, a realidade aparece como algo que
sobrepõe e ultrapassa os sentidos humanos, que existe de forma tão extensa e complexa
que nunca se consegue conhecê-la em sua extensão, conhecendo-a sempre de forma
segmentada, contingente e parcial. A realidade, sem aspas, aparece, pois, como algo que
o conhecimento humano pode apenas tangenciar, como uma “verdade” que está sempre
por ser conhecida.
Toma-se normalmente como realidade todo aquele conhecimento que se tem
sobre o real, aquilo que se acredita ser verdadeiro, plausível, objetivo; enquanto, na
perspectiva aqui adotada, a “realidade” é sempre relacional, diz respeito a grupos
específicos e a pontos de vista construídos no decorrer da história dos homens e das
idéias. Pensando de forma geral, pode-se ter como exemplo disto: as diferentes formas
de apreensão da “realidade” propiciada pelo conhecimento das religiões, das ciências,
das artes, dos costumes etc.
A princípio, aceitar essas proposições pode parecer um suicídio do intelecto, um
tiro no pé do pesquisador que se propõe à análise da realidade. Certamente não é essa a
intenção desse autor. Não se trata de dizer que os fenômenos estudados pelas ciências
não são reais, ou que estes não possuem características específicas.
2
BERGER e LUCKMANN (1985).
3
Sobre isso ver DUARTE (1986) e BERGER e LUCKMANN (1985).
3
Ao contrário, significa reconhecer que os seres humanos, valendo-se de sua
consciência reflexiva - e isso é especialmente verdade em relação às ciências -
constroem conceitos, classificações e teorias que tornam a realidade inteligível, passível
de ser compreendida e oportunamente modificada.
Contudo, admite-se que esses conceitos, classificações e teorias acabam por
representar, não a realidade em si, mas uma realidade construída, guardando relação
com determinados pontos de vista, delineados em momentos históricos específicos. A
epistemologia de qualquer ciência vai demonstrar seus vários paradigmas e suas várias
verdades.
Nesse sentido, a proposição central deste estudo apóia-se nas assertivas da
sociologia da ciência ou, antes dela, da própria sociologia do conhecimento, que, em
suas formulações mais recentes, entende que todo conhecimento humano desenvolve-se,
transmite-se e mantém-se em situações sociais. Diante disso, a sociologia tem que
procurar compreender o processo pelo qual isto se realiza, de tal maneira que uma
“realidade” admitida como certa, solidifica-se para todo o conjunto da “sociedade”. Em
outras palavras, deve-se buscar entender e analisar como se dá a construção social da
“realidade” (BERGER e LUCKMANN, 1985).
Embora não seja um campo estabelecido de investigação, pode-se dizer que a
análise presente nesta Dissertação encontra-se entrelaçada pelo que se convencionou
denominar sociologia das estatísticas oficiais ou, simplesmente, sociologia das
estatísticas
4
. Um primeiro e fundamental exercício, nesse sentido, é esclarecer o que se
entende por estatísticas oficiais. Nas palavras de Schwartzman (1997, p. 9): Estatística
pública”, ou “estatística oficial”, refere-se à informação estatística produzida pelas
agências estatísticas do governo – órgãos de recenseamento, departamentos de
estatística e instituições semelhantes”.
A atividade de produção das estatísticas oficiais, como se verá no decorrer desta
Dissertação, se encontra, por suas exigências, regras de funcionamento e finalidades, em
uma posição original, combinando as normas do universo da ciência com as do Estado
4
Sobre isso ver STARR (1987).
4
moderno e racional. A subordinação das estatísticas a essas duas autoridades lhe confere
um aspecto muito particular.
Isto posto, faz todo sentido falar, não de uma sociologia da ciência estatística ou
uma sociologia do conhecimento, mas, sim, de uma sociologia das estatísticas, uma
sociologia que tem as estatísticas, com suas especificidades, como objeto de estudo.
Organização do trabalho:
Como sugere o título, o itinerário deste estudo encontra-se dividido em duas
partes que guardam relação entre si: quer-se falar dos diferentes significados nos
diferentes tempos.
A utilização dos termos no plural tem sua razão de ser. A idéia que o termo
“Tempos” quer induzir é a de divisão, separação, mudança histórica; o mesmo em
relação ao termo “significados”. Busca-se, pois, analisar como a percepção da realidade
propiciada pelo conhecimento estatístico é, ao longo de diferentes períodos históricos,
socialmente elaborada e quais implicações derivam disso.
Para tanto, torna-se necessário, primeiro, conhecer a “Natureza das Estatísticas”,
tema do Primeiro Capítulo, que se encontra subdividido em três tópicos. Num primeiro
tópico, busca-se, a partir da história da evolução do pensar quantitativo no ocidente e da
passagem pelos diferentes paradigmas científicos, mostrar como a incorporação da
quantificação no cotidiano das pessoas está relacionada a um processo cultural, a uma
gigantesca mudança de mentalidade. Em seguida, já sob a luz da “objetivação”, analisa-
se o processo de produção estatística, tendo como foco sua dimensão técnico-científica.
Em um segundo tópico, intitulado “ciência do Estado”, busca-se mostrar
quando, como e qual tipo de relação se estabeleceu entre as estatísticas e os Estados. O
conceito de governamentabilidade, cunhado por Foucault (1984), ocupa papel de
destaque na análise que apresenta, também, o contexto e a evolução histórica das
estatísticas até que estas adquirissem um significado moderno.
5
No terceiro tópico, discute-se o poder das estatísticas. A partir das comparações
feitas por Desrosieres (1996) entre a forma de produzir estatística com as duas grandes
maneiras de explorar e interpretar o social (paradigma galileano e paradigma indiciário)
e das noções de disciplina e regulação apresentadas por Foucault (1993, 1988) são
analisados os pólos do poder das estatísticas. Ainda nesse tópico, discute-se a natureza
deste poder, onde é de fundamental importância a idéia de poder simbólico elaborada
por Bourdieu (2004).
O Segundo Capítulo, também subdividido em três partes, trata das Instituições
Estatísticas. Valendo-se de literatura especializada, com destaque ao livro de Senra
(2005), analisa-se, num primeiro momento, o contexto e as deliberações dos congressos
internacionais de estatística, que marcaram o século XIX por seu esforço de
especialização e amadurecimento das instituições e métodos de produção de informação
estatística.
Num segundo momento, apresentam-se e analisam-se a instituições estatísticas a
partir do conceito de Centro de cálculo (LATOUR, 2000) e das idéias que estão
relacionadas a ele, que, por sua vez, são imprescindíveis à compreensão das mudanças
relacionadas às “Eras estatísticas”, assunto que será tratado no capítulo 3.
Ainda no Capítulo 2, discutem-se as idéias de credibilidade, legitimidade e
controvérsias em estatísticas públicas. Enfoca-se o caráter semântico das estatísticas, os
principais dilemas enfrentados pelas instituições estatísticas e a necessidade de uma
atitude sempre reflexiva em relação à produção e uso da informação estatística.
No 3º e último capítulo, analisa-se, a partir das noções de demanda e oferta, as
diferentes fases que compõem o que foi aqui denominado de Eras estatísticas. A
intenção é mostrar, a luz do que foi discutido nos capítulos anteriores, como a produção
de estatísticas oficiais está intimamente relacionada a uma dada visão de Estado e da
organização social e, mais que isso, como essas diferentes perspectivas da realidade
influenciam a produção e o significado das estatísticas públicas. Por fim, analisa-se o
tempo presente, as mudanças recentes, a crise do Estado-nação, a globalização, a
diluição das fronteiras, a emergência do social etc., tendo como conseqüência a
6
multiplicação dos campos de interesse por estatísticas públicas e trazendo novos e
difíceis desafios às instituições produtoras.
7
CAPÍTULO 1
A NATUREZA DAS ESTATÍSTICAS
8
onde vedes coisas ideais, eu vejo coisas humanas, ah!, somente coisas
demasiado humanas!”
Friedrich Nietzsche
9
1.1-O pensar quantitativo e a razão científica: os elementos
necessários ao conhecimento estatístico
A singular realização do ocidente consistiu em
unir a matemática e a mensuração e em impor-lhes
a tarefa de dar sentido a uma realidade
sensorialmente perceptível, a qual os ocidentais,
numa desabalada demonstração de fé, presumiram
ser temporal e espacialmente uniforme e, portanto,
passível de tal exame (C
ROSBY, 1999, p.29)
É certo que, nem sempre, os números -ou melhor, a quantificação-
ocuparam o espaço que ocupam hoje no entendimento dos homens sobre a
realidade. Mas ainda assim, não seria errado afirmar que, para além das idéias de
bem e mal
5
, a cultura cristã capitalista ocidental tem boa parte de sua genealogia
influenciada pela idéias de mais e de menos, vale dizer: pela racionalidade
6
potencializada pela quantificação.
Como mostra Alfred W. Crosby (1999), durante o intervalo histórico que
vai de meados do século XII ao século XVI, o mundo ocidental experimentou uma
profunda transformação de mentalidade, num processo complexo onde se
abandonou explicações de mundo assentadas em princípios estritamente
qualitativos, fortemente influenciados pela religião, em favor de outros, de ordem
quantitativa, influenciados, sobretudo, pelas descobertas e progresso científico.
Claro que isso não se deu ao acaso. Para que fosse possível unir os
conhecimentos matemáticos à mensuração da realidade, foram necessários séculos
5
Sobre isso, ver NIETZSCHE (1988).
6
Nesse sentido, são esclarecedoras as palavras de Max Weber, para quem “nem o incremento da
população e nem a afluência de metais preciosos provocaram (...) o capitalismo ocidental.(...).
Decididamente, o capitalismo surgiu através da empresa permanente e racional, da contabilidade racional,
da técnica racional e do Direito Racional. A tudo isso se deve ainda adicionar a ideologia racional, a
racionalização da vida e a ética racional da economia”. (1980, p. 169).
10
de intensos debates, julgamentos, fogueiras, revoluções e recuos, mas que, ao fim e
ao cabo, propiciaram ao ocidente entrar no que chamamos de “modernidade”
7
.
Durante o “modelo venerável”, como o autor chama o senso-comum da
época, as explicações relacionadas ao tempo, ao espaço e à matemática estavam
sujeitas a uma interpretação que passava ao largo das necessidades de exatidão e
precisão, tão elementares à ciência moderna. Até mesmo os números sofriam com
o simbolismo religioso, o que atravancava o desenvolvimento rápido da
matemática e de suas aplicações à realidade
8
.
No entanto, o fortalecimento do comércio e o subseqüente aparecimento da
burguesia impeliam à quantificação. Era preciso valer-se dos conhecimentos
abstratos da matemática para tornar possíveis a mensuração e a compreensão
daquela realidade mais imediata, com efeito, a realidade das transações comercias
e financeiras. Afinal, a utilização do dinheiro, nessa época, ganhava força em toda
a Europa. A Inglaterra, por exemplo, onde existiam apenas dez casas da moeda no
ano de 900, já contava com setenta no ano 1000. As cidades, e mais tarde as
nações, começaram a emitir moeda. A cunhagem ocidental
9
substituiu a não-
ocidental como tipo mais comum de dinheiro. (CROSBY, 1999, p.76).
Enfim, o dinheiro, os empréstimos, os juros e a inflação, tudo isso exigia
uma contabilidade
10
extremamente racional e lógica que, por sua vez, exigiam
teorias robustas, capazes de dar um sentido lógico a essas novas relações que aos
7
Tem-se claro que a modernidade européia se deve a fatores diversos, donde se pode destacar o
racionalismo, o avanço das ciências naturais, o iluminismo e, por fim, as revoluções políticas e
econômicas ocorridas na França e na Inglaterra.
8
Os números eram também escritos em algarismos romanos, o que dificultava o registro de grandes
“quantidades” e impossibilitava a realização de contas.
9
A busca por metais precisos desencadearia o Mercantilismo e as grandes navegações dos séculos XVI e
XVII, sob a égide do Absolutismo.
10
É preciso ter claro que o desenvolvimento de técnicas voltadas aos registros contábeis contribuiu
decisivamente para a formação de um novo paradigma no ocidente, originando as técnicas para o registro
e cálculo necessários à produção das estatísticas econômicas. Nesse sentido, assevera Crosby: “nos
últimos sete séculos, a contabilidade contribuiu mais para moldar as percepções das mentes mais
brilhantes do que qualquer inovação isolada da filosofia ou da ciência. Enquanto um punhado de pessoas
ponderava sobre as palavras de René Descartes e Immanuel Kant, milhões de outras, de inclinação
agitada e industriosa, escreviam anotações em livros bem organizados e, depois, racionalizavam o mundo
para compatibilizá-lo em seus livros”. (1999, p.206)
11
poucos se estabeleciam. Nascia, assim, uma demanda jamais vista por
explicadores, adaptadores e formuladores de novas sínteses. Em contrapartida,
surgiam as Universidades, onde parte significativa desses conhecimentos foram
produzidos, sistematizados e disseminados
11
.
Contudo, o que mais significativamente marcou essa transformação de
mentalidade foi a necessidade imposta pelo capitalismo nascente de racionalizar a
vida. Em outras palavras, era preciso criar mecanismos capazes de disciplinar os
homens, em seu trabalho e mesmo no lazer. A divisão do dia em 24 horas
constituiu um grande avanço nesse sentido. As horas são uma abstração: uma
unidade de medida criada exclusivamente para a mensuração do tempo. Contínuas,
elas marcam e medem o trabalho, a produção e a vida. E, como melhor explica o
autor:
(...) durante gerações, o relógio da cidade foi o único mecanismo
complexo que centenas de milhares de pessoas viam todos os dias e
ouviam repetidamente a cada dia e noite. Ele lhes ensinou que o tempo,
invisível, inaudível e ininterrupto, era composto de quantidades. Como
o dinheiro, ele lhes ensinou a quantificação. (C
ORSBY, 1999, p.90)
No que diz respeito à mensuração do espaço, especificamente quanto ao
território (que a princípio era o suporte necessário à agregação estatística), as
transformações talvez tenham sido mais lentas que as que estão relacionadas ao
tempo, mas não menos importantes. A formulação de mapas que, no Modelo
Venerável, obedecia simplesmente à lógica religiosa, sofrem então fortes
influências da geometria. Os cartógrafos passaram a tirar a medida da área e da
forma, além da direção e da distância. Teorias, como a de Nicolau Copérnico
12
(1473-1543), exerceram fortíssima influência sobre a percepção de mundo da
época. Assim, assevera Crosby:
11
Dentro das universidades, surge a necessidade de organizar os livros segundo uma seqüência lógica que
permitisse uma consulta fácil e rápida. Surge, assim, a organização por ordem alfabética de títulos e, um
pouco mais tarde, o sofisticado índice analítico.
12
A Nicolau Copérnico atribui-se, dentre outras coisas, a concepção heliocêntrica do Sistema Solar, que
rebaixou a terra e elevou o sol ao centro do Universo, em contraposição à concepção ptolomaica (de
Ptolomeu), que situava a Terra no centro desse sistema, revolucionando, assim, a idéia que o homem da
época fazia de si mesmo: feito à imagem e semelhança de Deus e, portanto, centro do Universo.
12
(...) no fim do século XVI, a versão do espaço do Modelo Venerável
estava abalada. Os conservadores ainda acamparam em seus destroços
por várias gerações, mas era inevitável passar para a alternativa. A
alternativa que Isaac Newton definiu como “o espaço absoluto”, que,
por sua própria natureza, sem relação com qualquer coisa externa,
permanece sempre idêntico imóvel, isto é, uniformemente mensurável:
o espaço da física clássica. (1999, p.110)
Quanto à matemática, instrumento de toda essa transformação, as mudanças
se deram de forma lenta e gradual. Uma das mudanças mais importantes ocorridas
nesse campo foi a substituição dos algarismos romanos pelos indo-arábicos, o que
permitiu a manipulação de dados de grande vulto e também a realização de contas.
Há, ainda, no campo da matemática, o incremento da tábua de calcular e o
surgimento das notações operacionais
13
, dos números fracionados e das letras que
simbolizavam incógnitas e variáveis, de grande importância para o
aperfeiçoamento e registro dos cálculos matemáticos. Enfim, em detrimento do
Modelo Venerável, os números foram aos poucos perdendo seus significados
místicos e, assim, sendo usados com mais liberdade para fins, especificamente,
quantitativos.
Todos os fatores e sua evolução, citados anteriormente, só poderiam ocorrer
mediante a visualização - a escrita, o registrado, o palpável. Sem isso, todas essas
descobertas e inovações se perderiam no tempo e no espaço. Está-se mesmo
falando de algo próximo ao que Bruno Latour chama de “móveis-imutáveis”, ou
seja, encontrar meios de tornar a realidade, em suas mais diversas e complexas
formações, em algo que pode ser medido/mensurado e depois visualizado onde
quer que seja (eis a pretensão da agregação estatística).
Nas palavras de Latour, tornar essas realidades distantes e complexas em
móveis-imutáveis é querer que elas se tornem “[...] móveis para que possam ser
transportadas, [...] estáveis para que possam ser movimentadas sem distorção e [...]
combináveis a fim de que [...] possam ser acumuladas, agregadas e embaralhadas
[...]”. (Latour apud Nanci, E et al, 2000, p.33). Para tanto, é preciso transformar
esses aspectos da realidade em informação. Nesse sentido, é preciso entender que:
13
A informação não é um signo, e sim uma relação estabelecida entre
dois lugares, o primeiro, que se torna uma periferia e o segundo, que se
torna um centro, sob a condição de que entre os dois circule um veículo
que denominamos muitas vezes forma, mas que, para insistir em seu
aspecto material, eu chamo inscrição. (L
ATOUR, 1996, p. 41)
Esse esforço de transformar a realidade em inscrição, ao fim desse período
1250-1600, pode ser percebido, seja: no relógio que marca, mede e organiza a
vida; nos mapas que em escala visível reproduzem o mundo; nos livros, após a
invenção da imprensa
14
; nas notações musicais
15
que fazem visíveis os sons; na
pintura em perspectiva, luz e visão por excelência; na contabilidade por partidas
dobradas
16
, que traz as transações comerciais para o mundo do mensurável e
visível; e, séculos mais tarde, nas estatísticas numéricas
17
, que trazem aspectos da
realidade distante e complexa à mesa de discussão.
Não obstante, é preciso perceber que as vantagens do avanço da apreciação
quantitativa da realidade, que parecem óbvias, não foram necessariamente
evidentes em seus primórdios. Como lembra Crosby:
Os relógios das cidades eram absurdamente dispendiosos, além de
notoriamente inexatos, atrasando ou adiantando vários minutos por
hora e, muitas vezes, parando por completo. As primeiras cartas
13
Os sinais de mais(+), menos(-), igual(=) e também de multiplicação(x) e divisão(/).
14
A imprensa - denominação única e arbitrária de um conjunto de invenções - aumentou o prestígio da
visualização e acelerou a difusão da quantificação. A demanda aumentada de livros havia criado, em
torno das Universidades, as papelarias (editoras, poderíamos chamá-las), nas quais os calígrafos, usando
a nova escrita gótica, copiavam maiores quantidades de livros, com mais rapidez do que nunca. (C
ROSBY,
1999, 214)
15
Segundo Max Weber (apud CROSBY, 1999, p.137), as condições específicas do desenvolvimento
musical do Ocidente implicam, antes de mais nada, a invenção da notação moderna. Uma notação como a
nossa é de importância mais fundamental para a existência da música que possuímos do que é a ortografia
para nossas formações artísticas lingüísticas.
16
Segundo Crosby, a importância imediata da escrituração por partidas dobradas foi que ela permitiu aos
negociantes europeus, através de registros dispostos de maneira precisa e clara, escriturados em termos de
quantidades, chegar à compreensão e, através dela, ao controle da cansativa multiplicidade de detalhes de
sua vida econômica. O relógio mecânico lhes permitira medir o tempo e a contabilidade por partidas
dobradas permitiu-lhes detê-lo – pelo menos no papel (1999, p.195).
17
Ao contrário do que se possa pensar, as estatísticas não nasceram robustas, se quer nascem da utilização
prática dos conhecimentos matemáticos. Essa maturidade exigiria ainda alguns séculos, numa
demonstração clara de que a natureza das estatísticas está vinculada necessariamente a duas autoridades: a
ciência e o Estado.
14
marítimas, que eram esboços a mão livre de linhas costeiras, mal
dignos do esforço de desenho ou de consulta de um marinheiro prático,
não passavam, na época e ainda por muito tempo, de suplementos às
tradicionais orientações verbais ou escritas da navegação (os livros dos
pilotos ou “rutters” [roteiros] em inglês), que incluíam informações
não apenas sobre as localizações e as distâncias, mas também sobre
ancoradouros, profundidades, marés, fundos lamacentos, arenosos ou
cascalhosos, os locais e momentos em que seria possível deparar com
piratas, e assim por diante. A mudança para a mensuração e o método
quantitativo, em seus estágios iniciais, não foi tão imaculadamente
racional quanto nós, que a consideramos por intermédio de séculos
sucessivos de costumeira quantificação, podemos supor. Essa mudança
foi parte de algo subliminar – uma mudança gigantesca de mentalité.
(1999, p.130).
Enfim, as bases da ciência moderna aos poucos foram sendo postas.
Fundaram-se, de um lado, com Francis Bacon (1561- 1626), o método
experimental e o empirismo. Nas palavras dele:
(..) resta-nos um único e simples método para alcançar os nossos
intentos: levar os homens aos próprios fatos particulares e às suas
séries e ordens, a fim de que eles, por si mesmos, se sintam obrigados a
renunciar às suas noções e comecem a habituar-se ao trato direto das
coisas (B
ACON, 1984, p.20).
Como explica Senra, no empirismo (método indutivo):
A experiência sensível, externa ou interna, é vista como critério de
validação do conhecimento (das afirmações científicas). Para os
empiristas toda pesquisa experimental compreende três momentos: o da
acumulação dos fatos (o maior número possível de fatos), o da
classificação dos fatos (a serem postos em conjuntos metódicos e
sistemáticos), o da determinação dos fatos (por fim, a extração de uma
interpretação). Há, assim, uma espécie de ditadura dos fatos, cuja
obtenção dominaria o ambiente de pesquisa: isso será muito criticado,
mas que, não obstante, será usado por muitos pesquisadores
experimentados. (S
ENRA, 2005, p.40)
O método proposto por Bacon conquista corações e mentes. Ele segue sendo
referenciado por várias gerações como o profeta dos homens práticos (GAY, 1995).
Por outro lado, surge o racionalismo (método dedutivo), fruto da dúvida
radical proposta por René Descartes (1596-1650), que questiona o princípio da
autoridade como fonte de conhecimento, colocando em suspenso as verdades
15
adquiridas pelas vias da tradição, da revelação e do bom senso, e elevando a razão,
informada pelas regras do método, à condição de guia supremo.
Em contrapartida, o racionalismo cartesiano inaugura uma perspectiva que,
ancorada na subjetividade, interpreta o mundo desde o ponto de vista do
indivíduo
18
. A partir de então, as teorias políticas e econômicas terão nesse núcleo
egocêntrico o pressuposto básico de seus sistemas explicativos
19
.
Tudo isso se materializava com as descobertas
20
de Galileu Galilei (1564-
1642) que, “(...) com sua atuação, advogou libertar os homens da autoridade, das
autoridades que detinham os saberes (parados na tradição, demasiado subjetivos);
mais que isso, advogou aos homens autonomia, a completa e indiscutível
independência na busca e alcance dos saberes”. (SENRA, 2005, p.35)
E não se pode esquecer, é claro, de sir Isaac Newton (1642 - 1727),
fundador da mecânica clássica que, mediante a aplicação rigorosa dos métodos
científicos, revolucionou o entendimento da relação entre os corpos
21
(Mecânica),
o que teve repercussão em todos os campos da ciência, já que ele eliminava, assim
como fez Galileu, a dependência da ação divina para o entendimento do mundo.
18
O “penso, logo existo” exprime a descoberta de uma verdade indubitável, a partir da qual Descartes
construirá seu sistema filosófico.
19
Vide, por exemplo, as teorias contratualistas de Thomas Hobbes e de John Locke, assim como a
doutrina econômica de Adam Smith. No Capítulo 3 será demonstrado a importância desse
“egocentrismo” racionalista para a formação do ideário liberal, assim como sua substituição pelas
doutrinas positivistas.
20
Destacam-se entre as descobertas de Galileu Galilei: a Luneta Astronômica, com a qual descobriu,
entre outras coisas, os desníveis da Lua, os satélites de Júpiter, as manchas solares e, principalmente, os
planetas ainda não conhecidos; a balança hidrostática; e o compasso geométrico e militar. Descobriu que
a massa não influi na velocidade da queda e foi ele também o primeiro a contestar as idéias de Aristóteles.
21
Newton, que nasceu em dezembro do mesmo ano em que falecera Galileu Galilei (1642), tem, entre
suas principais realizações, a descoberta e formulação da lei da gravitação universal e a descrição do
fenômeno de dispersão da luz. Foi ele também que formulou as primeiras leis do cálculo infinitesimal e
diferencial; quem descreveu, a partir de sua obra principal, as três primeiras leis do movimento - a
Inércia. Descobriu que a força (F) é igual a massa(m) vezes a aceleração(a) e ainda anunciou a lei da
ação e reação. Finalmente, foi ele também o primeiro a dividir a luz branca em várias cores, a partir de
um prisma, no seu estudo das cores e da luz.
16
Entre tantos outros, esses são os que mais se destacaram na formação desse novo e
robusto paradigma, daí ele ser denominado de galileano ou galilaico-newtoniano
22
.
Como se pode esperar, a produção de estatísticas não fugia aos métodos e
paradigmas que aos poucos se fixavam. Quando a Sociedade de Estatística de
Londres foi fundada, em 1834, por exemplo, também declarou seus propósitos
segundo o verdadeiro estilo baconiano: “Buscar, organizar e publicar fatos
destinados a ilustrar a condição e as perspectivas da sociedade”. (GAY, 1995,
p.452). O buscar os fatos lhes parecia muito fácil. Como bons empiristas, tomavam
os fatos como já existindo, restando apenas o esforço de colhê-los, o que não só
significava que se poderia produzir estatísticas sobre tudo, como também que fazê-
lo seria uma tarefa extremamente simples; desconhecia-se que as estatísticas são
construções, guardando sistemática acumulação de conhecimento, exigindo uma
continuidade institucional sempre crescente (SENRA, 1998, p. 5).
Ao contrário, no que podemos denominar como a proto-história das estatísticas,
elas sequer estavam associadas aos números. Dispensavam a exatidão e serviam para
assuntos pontuais e imediatos, tendo como principais fontes de informação os registros
administrativos. Como explica Desrosieres:
No começo era a lista. Símbolo da atividade do Estado, e encontrada
nos mais antigos vestígios escritos, chineses, sumérios ou egípcios. O
estado (com e minúsculo) é a ferramenta básica do Estado (com E
maiúsculo). A estatística antiga é uma contagem feita por meio dessas
listas. Os registros paroquiais, antepassados do registro civil, são listas
de batizados, casamentos e óbitos, que editos reais do século XVI
tornaram obrigatórias. Já no século XVII, os “aritméticos políticos”
ingleses Graunt e Petty contam os casos registrados, transformam essas
listas em números e agregados úteis para o Príncipe e para os
comerciantes espertos. A atividade administrativa de registro de
acontecimentos singulares foi prolongada por, ou desviada para, a
22
A legitimidade da ciência junto à população não se devia tanto a suas teorias, na maioria das vezes
desconhecidas por parte da população, mas sim a suas aplicações práticas. Descobriram-se nessa época,
vários mecanismos que auxiliavam os sentidos humanos: os sistemas de abastecimento de água para as
cidades; controle mais fácil das epidemias, tão comuns na época; sem falar nos avanços na área da
engenharia, arquitetura e medicina. Os reis também tinham grande interesse em utilizar os novos
conhecimentos, dada sua aplicação no campo militar. O telescópio, por exemplo, permitia ver o
deslocamento das tropas inimigas. Mais tarde, desenvolveram-se armas mais precisas e práticas. Aos
poucos, surgiram também as máquinas que substituiriam adiante parte do trabalho humano e a
organização e divisão do trabalho vigentes, dando origem à Revolução Industrial do século XVIII.
17
produção de uma informação, um número que resumia uma lista.
Nascia a estatística. (1996, p.6)
Ora, como se pode imaginar, a utilização de números na composição das
estatísticas não se deu ao acaso. Afinal, os números (a matemática) estavam na
essência daqueles avanços das ciências. Como se entendia, para se conhecer a
“verdadeira verdade”, vale dizer, conhecê-la com objetividade, era preciso obtê-la
através dos números, o que demandou números também aos conhecimentos a
respeito da sociedade.
Willian Petty, cuja teoria foi de singular importância ao conhecimento
estatístico, em seu prefácio à Aritmética Política, contrastava seu estilo,
influenciado pelo empirismo baconiano, à literatura econômica da época, do tipo
descritiva, histórica ou filosófica, afirmando que:
(...) ao invés de usar apenas palavras comparativas, e superlativas e
argumentos intelectuais, tratei (como exemplo da aritmética política
que há tempos é meu fito) de exprimir-me em termos de número, peso
e medida; de usar apenas argumentos baseados nos sentidos e de
considerar somente as causas que têm fundamento visível na natureza,
deixando à consideração de outros as que dependem das mentes, das
opiniões, dos apetites e das paixões mutáveis de determinados homens
(...) (1983, p.111).
Como sugeria Petty, o quantificar “a economia” ocorreu de forma mais fácil
e natural, já que a essência de parte, tanto das relações quanto das teorias
econômicas, se assentam na quantificação. Porém, o quantificar o social exigia
condições especiais. A saída, segundo Senra:
Veio de Émile Durkheim (1858-1917), na linha de Auguste Comte
(1798-1857), ao dizer que o social é externo ao indivíduo, ou seja, o
fenômeno social como o fenômeno natural (físico) é independente da
consciência humana e assim sendo é verificável através da experiência
e da observação. Dito de outra forma, o social poderia e deveria ser
visto como coisa, e, se não fosse coisa, deveria ser coisificado, ou seja,
ser reduzido a fatores visíveis, observáveis, independentes e separados
do sujeito (cuja subjetividade ficava, dessa forma, isolada e
controlada). (2005, p.37).
18
A sociologia de Durkheim via, na estatística, um instrumento promissor ao
desenvolvimento de teorias que explicassem os comportamentos sociais, no que
pese, ele próprio, ter desenvolvido seu estudo sobre o suicídio embasado em dados
estatísticos
(DURKHEIM, 1982)
. Segundo Durkheim, os cientistas sociais deveriam
investigar possíveis relações de causa e efeito e regularidades com vistas à
descoberta de leis ou mesmo de “regras para o futuro”, observando fenômenos
rigorosamente definidos. Em suas palavras:
Existem certas correntes de opinião que nos impelem com intensidade
desigual, segundo as épocas e os países, ao casamento, por exemplo, ao
suicídio ou então a uma natalidade mais ou menos forte, etc. Tais
correntes são evidentemente fatos sociais. Á primeira vista, parecem
inseparáveis das formas que tomam nos casos particulares. Mas a
estatística oferece-nos o meio de isolá-las. São, com efeito, expressas -
e não sem exatidão- pelas taxas de nascimento, nupicialidade,
suicídios, isto é, pelo algarismo que se obtém dividindo-se o total
médio anual dos casamentos, dos nascimentos, das mortes voluntárias
pelo total médio dos homens em idade de casar, de procriar, de se
suicidar. (D
URKHEIM, 1985, p. 7)
Dito isso, notam-se dois aspectos de grande importância ao conhecimento
estatístico.
Primeiro, que só se pode fazer estatísticas sobre “coisas”: aquilo que pode
ser medido, mensurado, enumerado e que se tem por exterior ao indivíduo.
Entretanto, demandam-se normalmente estatísticas relacionadas a não-coisas, por
exemplo, desejam-se estatísticas em relação à criminalidade, cor/raça, educação,
pobreza, crescimento, analfabetismo. Isso quando não se introduzem novos
conceitos que requerem estatísticas, por exemplo: analfabetismo funcional,
empregabilidade
23
, dentre outros. “Assim, torna-se necessário fazer com que tantas
e tais não-coisas, expressando leituras (sócio) políticas da realidade, sejam
atentamente coisificadas, expressando leituras (técnico) científicas da realidade,
passando assim, do plano do desejável ao plano do possível.” (SENRA, 1998, p.51).
23
O conceito de Empregabilidade, tal qual o conceito de vulnerabilidade, embora represente correntes e
pontos de vista diametralmente opostos, segue o mesmo princípio e tem sido usado, com freqüência, para
“simbolizar” determinados pontos de vista através de probabilidades criadas a partir de cruzamentos de
dados estatísticos. Passamos assim, da produção à tradução das estatísticas, o que será discutido, com
mais cuidado, no item 1.3 deste Capítulo.
19
Tudo isso, não sem implicações na ordem do saber e poder das estatísticas, como
será demonstrado no item 1.3 desse Capítulo.
Segundo, a partir dos casos singulares (leia-se das individualidades), a
agregação estatística visa a substituir a dispersão e heterogeneidade do mundo por
resumos e classes de equivalência. Em outras palavras, as estatísticas se sustentam
com base nas regularidades
24
.
Destarte, amparados pelo paradigma galileano, tinha-se a nítida impressão
de que a ciência havia dado sua cartada final e de que a realidade, melhor dizendo,
a verdadeira realidade podia ser posta a ferros. Negavam-se as verdades advindas
dos desígnios divinos e festejavam-se aquelas conhecidas através da aplicação
rigorosa dos métodos e da razão. Construía-se o campo da razão científica, que se
vangloriava por sua objetividade e seus instrumentos auto-corretivos. Assim, tinha-
se a completa e absoluta certeza da objetividade das ciências naturais, protocolo
que devia ser seguido por qualquer ciência que almejasse aquele status. Nesse
sentido, confira-se o esforço dos positivistas com as ciências sociais.
Mesmo com a sociologia compreensiva de Max Weber (1864-1920), que
reclamava um estatuto científico específico às ciências sociais, nem assim se
afastaram as fortes amarras daquele paradigma, que seguiu pairando sobre as
pesquisas como um espectro onisciente e onipresente, sempre limitante (SENRA,
2005, p. 37).
A saída, ao contrário do que se poderia esperar, nascem da própria
física. Trata-se da virada da física quântica, tendo como próceres homens como
Albert Einstein (1879-1975) que, ao anunciarem o desconcertante princípio da
incerteza e o da relatividade absoluta, estremeceram as bases e certezas do
paradigma até então absoluto. Diante disso, passa-se a perceber que:
A desejada e desejável objetividade, tanto nas ciências naturais quanto
nas ciências sociais, é resultante de uma construção. A objetividade é
alcançada como um laborioso processo de objetivação, sendo apenas
uma objetividade objetivada. Os números continuam sendo relevantes
como expressão de um saber, como uma linguagem de representação
24
Ora, tenha-se presente que essas partes, por serem diferentes e heterogêneas, não são agregáveis, em si
mesmas, a menos que se lhes marque algum aspecto comum, por meio de algum princípio de
equivalência. Dessa forma, serão observados e registrados os aspectos individuais que previamente
configuram os aglomerados organizados. (S
ENRA, 2005, p. 95).
20
do conhecimento, mas, percebe-se melhor seu sentido, tanto mais se
percebe estarem sujeitos às incertezas, às inseguranças, às indecisões
humanas; desvela-se a importância do pesquisador, que fica longe de
ser um autômato. Então, par a par com a inegável importância das
pesquisas quantitativas, as pesquisas qualitativas recuperam
importância e dignidade, a exigirem criatividade, disciplina, modéstia e
também ousadia; publicidade das escolhas, dos métodos, dos processos.
(S
ENRA, 2005, p. 39)
A idéia de objetivação
25
é de grande importância ao entendimento acerca
das estatísticas. Afinal, em detrimento do empirismo puro e simples, que achava
que os fatos falavam por si sós, percebe-se que a comensurabilidade não é uma
propriedade inerente às coisas, mas uma qualidade que lhes é atribuída pelo
observador. Em outras palavras, passa-se a perceber que os “fatos” que a
agregação estatística exibe são previamente feitos, quer dizer, construídos, “ao
passo que os ‘dados’ jamais são ‘dados’, e sim obtidos com muito custo”.
(DESROSIERES, 1996, p.2).
Até aqui, tem-se tratado de dois aspectos que são estruturais e também
estruturantes na produção estatística, a saber: o pensar quantitativo e a razão
científica. Cabe, a partir de agora - pondo em perspectiva o objeto de estudo -,
descrever e analisar o processo de produção estatística, tendo como foco sua
dimensão técnico (científica), no intuito de perceber suas singularidades,
potencialidades e limitações. Afinal, como lembra Besson (1995, p.18) “não se
pode entender nada sobre as estatísticas sem antes conhecer seu modo de
produção”.
Como se viu, o princípio da incerteza permitiu às ciências, até mesmo
à mais exata delas, aceitar seu olhar sempre contingente e relativo, sem com isso
estar-se diminuindo enquanto ciência, contrapondo, assim, objetividade e
objetivação e inaugurando uma nova forma de se fazer e olhar as ciências. Nesse
sentido, ter as estatísticas como construções não significa, de forma alguma, dizer
que elas se dêem ao acaso. Ao contrário, significa reconhecer que a produção de
25
Por objetivação, pode-se entender o esforço controlado de se conter a subjetividade, o que só pode se
dar, se reconhecermos que ela sempre está presente. Segundo Mirian Goldenberg (2002, p. 45), trata-se
de um esforço porque não é possível realizá-lo plenamente, mas é essencial conservar-se esta meta, para
que o objeto construído não se torne um objeto inventado.
21
estatística, assim como a produção cientifica, parte de um olhar sobre a realidade,
não um olhar qualquer, mas um olhar que se vale de métodos, portanto
disciplinado, mas ainda assim, um olhar
26
.
Contudo, há aspectos que lhes são próprios e que as diferem
significativamente das ciências, sejam elas exatas ou humanas. Um desses
aspectos, talvez o mais relevante, é sua íntima relação com os Estados, o que será
tratado no item 1.2 deste Capítulo.
Aqui, dedicar-se-á exclusivamente aos aspectos que estão ligados à sua
forma de produzir conhecimento e ao tipo de conhecimento produzido. Nesse
sentido, pode-se destacar que, diferentemente das ciências onde de forma geral
27
a
observação da realidade se dá com base na validação ou não de hipóteses pré-
construídas
28
, na produção de estatísticas oficias evitam-se hipóteses, já que a
intenção é um conhecimento geral, uma primeira aproximação com a realidade,
limitada, por certo, mas, sem dúvida alguma, muito importante.
Vejam-se os exemplos citados anteriormente: a invenção do relógio, dos
mapas e da contabilidade racional que é algo ainda mais próximo das estatísticas.
A intenção em si não é capturar o tempo, o espaço e nem mesmo o dinheiro, mas
sim captá-los e apreendê-los a fim de usar esses conhecimentos, seja para
disciplinar a vida, viajar ou negociar de forma segura.
A quantificação tornou possível ver o mundo através dos mapas (pela
mudança de escalas) e saber quantos somos, em quantas casas moramos etc.
(mediante a utilização dos números - as estatísticas).
Destarte, é preciso perceber que a informação estatística, na linha de Latour
(2000, p. 23), é “(...) uma relação muito prática entre dois lugares, o primeiro dos
quais se negocia o que se deve retirar do segundo, a fim de mantê-lo sob sua vista
26
Perceber como exótico aquilo que nos é natural, sempre é um bom exercício ao pensamento. No caso
desse trabalho, deve-se parte das reflexões aqui apresentadas, a esse exercício feito Odile Journet (1995).
27
Talvez com exceção da observação participante, em antropologia, pelo menos em seus estágios iniciais.
28
Sejam essas hipóteses casuísticas, expressas em relações causais ou em outro tipo de relação
(simétrica ou assimétrica, por exemplo). S
obre isso ver G
IL (1999).
22
e agir à distância sobre ele”. Nesse sentido, pode-se dizer que as estatísticas criam,
no “papel”, uma imagem do mundo, ou melhor dizendo, “uma imagem que nomeia
o mundo, revelando-o et pour cause permitindo pensá-lo e dizê-lo; perde-se a
totalidade e a variedade do mundo, num primeiro momento, mas, ganha-se, logo
depois, em conhecimento e em compreensão, pela síntese analítica
(...)”(SENRA,1998, p.? ) .
Antes de prosseguir, deve-se fazer uma breve reflexão sobre os números
29
.
Muito foi dito até agora sobre o pensar quantitativo e a razão científica. Insistiu-se
continuamente na importância dos números nesse processo, mas, faça-se algo mais,
vejam-se os números por eles mesmos: sua objetividade construída, em seu aspecto
sempre imaterial e abstrato.
Prossiga-se pensando na utilização diária dos números, em seu poder de
guardar e falar sobre realidades, de fazer visualizar e mesmo sentir situações. Ao
final desse esforço, verificar-se-á que os números estão no próprio observador, em
seu entendimento sobre as coisas, graças a séculos consecutivos de contato diário
com a quantificação.
Daí, a ilusão da exatidão e da objetividade, razão por que se procede como
se as quantidades fossem inerentes “às coisas” e não uma propriedade que lhes é
atribuída pelo observador. Vale dizer: deixa-se de perceber, pelo uso rotineiro da
29
A reflexão de Nietzsche sobre os números pode contribuir para esta análise. Para ele, invenção das leis
dos números se deu com base no erro, predominante já nos primórdios, segundo o qual existem coisas
iguais (mas realmente não há nada igual), ou pelo menos existem coisas (mas não existe nenhuma
“coisa”). A hipótese da pluralidade pressupõe sempre que existe algo que ocorre várias vezes: mas
precisamente aí já vigora o erro, aí já simulamos seres, unidades, que não existem.- Nossas sensações de
espaço e tempo são falsas, porque, examinadas consistentemente, levam a contradições lógicas. Em todas
as constatações científicas, calculamos inevitavelmente com algumas grandezas falsas: mas, sendo tais
grandezas no mínimo constantes, por exemplo, nossa sensação de tempo e espaço, os resultados da
ciência adquirem perfeito rigor e segurança nas suas relações mútuas; podemos continuar a construir em
cima delas- até o fim derradeiro em que a hipótese fundamentalmente errônea, os erros constantes, entram
em contradição com os resultados, por exemplo, na teoria atômica. Então ainda nos sentimos obrigados a
supor uma “coisa” ou “substrato” material que é movido, enquanto todo o procedimento científico
perseguiu justamente a tarefa de dissolver em movimentos tudo o que tem natureza de coisa (de matéria):
também aí nossa sensação distingue entre o que se move e o que é movido, e não saímos desse círculo,
porque a crença nas coisa está ligada a nosso ser desde tempos imemoriais. – Quando Kant diz que “o
intelecto não cria suas leis a partir da natureza, mas prescreve a ela”, isso é plenamente verdadeiro no
tocante ao conceito de natureza, que somos obrigados a associar a ela (natureza = mundo como
representação, isto é, como erro), mas que é a soma de muitos erros da razão.- A um mundo que não seja
23
quantificação, que a “quantidade” é uma qualidade (objetivada) que se atribui às
coisas.
Isso se reproduz nas estatísticas, porém, com alguns agravantes. Nas
experiências diárias, ou mesmo em experimentos feitos em laboratórios, onde se
quer o peso, o volume, a quantidade, pode-se manipular com alguma facilidade o
objeto sujeito a quantificação, por meio de uma balança, por exemplo.
Para se produzir estatísticas, ao contrário, tem-se que construir meios de se
apreender essa realidade, deveras complexa e distante, o que não quer dizer,
absolutamente, que a investigação estatística se processe às cegas. Na verdade,
sabe-se muito bem que aspecto da realidade se quer conhecer. Em outros termos,
buscam-se, na minúcia dos casos singulares (nas individualidades), elementos
sabidamente regulares, que podem ser enumerados e agregados, no afã de se
tornarem múltiplos organizados, ou seja, estatísticas.
Contudo, ao transformar o singular em geral, através de processos de
agregação, a estatística rompe com as individualidades, construindo coletividades.
Numa acepção mais clara:
As estatísticas, expressões coletivas que são, não voltam às unidades
que as formaram, assim, só têm valor para quem queira agir no e sobre
aquele coletivo, de início idealizado, depois revelado e desvelado.
Ademais, no interior daquele coletivo, as individualidades superadas
são refeitas, vale dizer, tem-se agora individualidades individualizadas,
ou seja, individualizações, em que cada um se vê em face do outro.
Então, a ordem criada no papel, em referência às estatísticas, reflui ao
mundo, e nele realiza muito, pese os limites estreitos de seus
significados; as estatísticas não podem tudo, mas podem muito; e são
valiosas se bem entendidas e bem usadas, tendo-as pelo que são,
imagens da realidade construída. (S
ENRA, 1998, p.?).
De forma geral, essas individualidades formadoras das estatísticas são
apreendidas através dos registros administrativos (por exemplo, o registro civil) e,
com mais freqüência, através de questionários padronizados - sempre com amparo
nossa representação, as leis dos números são inteiramente inaplicáveis: elas valem apenas no mundo dos
homens.(2000, p.29-30).
24
de outras ciências-, onde inúmeros investigadores, delegados à essa função pelas
centrais estatísticas, recolhem informações junto a “população alvo” da pesquisa.
Há aqui outra singularidade da produção estatística. Afinal, o delegar o
olhar não faz parte do cotidiano de pesquisa das ciências em geral. E como lembra
Latour (2000, p.39), esse processo de delegação do olhar só se realiza com
estabilidade se os observadores delegados ao longe perderem seu privilégio - o
relativismo – a fim de que observador central possa elaborar seu panóptico - a
relatividade – e encontrar-se presente ao mesmo tempo em todos os lugares.
Em outras palavras, para que a inscrição (informação) recolhida pelo
pesquisador delegado tenha os atributos dos móveis-imutáveis, é preciso afastar ao
limite sua subjetividade. Melhor seria se ele não a tivesse. O mesmo deve
acontecer em relação ao questionário, que deve ser suficientemente claro e
objetivo a todos os entrevistados. Entretanto isso se revela como impossível.
Volta-se, assim, à idéia de objetivação e de mensuração das coisas e, por
conseguinte, também das não-coisas. Logo, de um lado, torna-se claro que a
estabilidade da informação estatística depende, e muito, da clareza e publicidade
das perguntas, ou seja: o significado da pergunta e o significado da resposta não
podem ser diferentes
30
. Por outro lado ratifica-se a idéia das estatísticas como
construções que necessitam de sistemática acumulação de conhecimento,
coordenação, controle e método.
Depois de acumulados os registros e/ou questionários, processam-se a
enumeração e agregação, passando-se das inscrições de primeira ordem (os
registros individuais) a outras de sucessivas ordens, sempre reduzindo e facilitando
o olhar sobre a realidade. Ao fim, as estatísticas são ofertadas, melhor dizendo,
ganham o mundo, sofrem diversas traduções (são resignificadas), e tornando-se,
com efeito, instrumentos do saber e do poder.
30
Notadamente, perguntas relacionadas a assuntos onde se tem um consenso estabelecido, como por
exemplo, sexo e idade, apresentam mais substância e estabilidade que aquelas que exibem diferentes
significações, tal como a dificuldade de se mensurar cor/raça.
25
1.2 - A ciência do Estado: a gênese das estatísticas modernas.
Até aqui abordarm-se alguns dos aspectos da dimensão técnico-científica das
estatísticas. A partir de agora, dedicar-se-á à sua dimensão sócio-política
31
, mais
precisamente ao tipo de relação que se estabeleceu entre as estatísticas e os Estados.
É preciso registrar que a intenção aquio é fazer um estudo detalhado da história
das estatísticas e sua relação com os Estados, mas, antes, apontar alguns traços que
marcam certas singularidades e conexões, no intuito de, com isso, poder melhor
caracterizar essa relação.
A expressão estatística vem do alemão Statistik e foi fixada pelo professor
Gottfried Achenwall (1719-72), na cidade Göttingen, em 1749. Era, a essa época,
considerada como a ciência do Estado ou como a ciência que se referia ao Estado
(SENRA, 1998, p.10). Isso não quer dizer, absolutamente, que as estatísticas
nasceram no século XVII. Ao contrário, podem ser localizados censos de população
na Grécia e Roma antigas. Especificadamente, podem ser encontradas referências a
censos ainda mais antigos
32
, no início da própria história da cristandade
33
, como
testemunha o contexto do nascimento de Jesus Cristo.
Os Censos, então, serviam para fins de vigilância, alistamento militar e avaliação
dos impostos. Os grandes impérios, sobretudo aqueles que apresentavam uma estrutura
31
É preciso ter claro que a dimensão sócio política das estatísticas não se esgota, ou melhor, não se limita
à relação Estatística vis-à-vis Estado, como será melhor demonstrado no item 1.3 deste capítulo.
32
O registro de informações estatísticas perde-se no tempo. Confúcio relatou levantamentos feitos na
China, há mais de 2000 anos antes da era cristã. No antigo Egito, os faraós fizeram uso sistemático de
informações de caráter estatístico, conforme evidenciaram pesquisas arqueológicas. Desses registros
também se utilizaram as civilizações pré-colombianas dos maias, astecas e incas. É conhecido de todos os
cristãos o recenseamento dos judeus, ordenado pelo Imperador Augusto. Os balancetes do império
romano, o inventário das posses de Carlos Magno, o Doomsday Book, registro que Guilherme, o
Conquistador, invasor normando da Inglaterra, no século XI, mandou levantar das propriedades rurais dos
conquistados anglo-saxões para se inteirar de suas riquezas, são alguns exemplos anteriores à emergência
da estatística descritiva no século XI, na Itália. (M
EMÓRIA, 2004, p.11)
33
Segundo o evangelho de São Lucas: “Naqueles dias, apareceu um edito de César Augusto, ordenando o
recenseamento de todo o mundo habitado. Esse recenseamento foi o primeiro enquanto Quirino era
governador da Síria. E todos iam se alistar, cada um na própria cidade. Também José subiu da cidade de
Nazaré, na Galiléia, para a Judéia, na cidade de Davi, chamada Belém, por ser de casa e da família de
Davi, para se inscrever com Maria, sua mulher, que estava grávida. Enquanto lá estavam, completaram-se
os dias para o parto, e ela deu à luz o seu filho primogênito, envolveu-o com faixas e reclinou-o numa
manjedoura, porque não havia um lugar para eles na sala” (L
UCAS apud SENRA, 1996, p. 89)
26
administrativa mais elaborada, faziam recenseamentos tendo como finalidade conhecer
a quantidade de homens disponíveis para a guerra e saber de suas riquezas para fins de
tributação
34
. Havia, como é fácil notar, uma relação estreita entre os recenseamentos e
as necessidades mais imediatas da administração do império. Não havia nenhuma
difusão pública ou uso científico daqueles conhecimentos.
Neste período, que pode ser denominado como proto-história das estatísticas, os
recenseamentos da população encontravam diversos obstáculos que tornavam sua
realização inconcebível, seja materialmente, seja filosoficamente. Como explica Martin:
Entre os obstáculos materiais existia certamente a necessidade de dispor de
uma organização complexa e de uma estrutura administrativa incontestada e
ativa. Existia igualmente o temor, no seio da população, de ser recenseada
com fins militares e fiscais. Entre os obstáculos filosóficos, ou antes
religiosos, havia, ao menos no mundo cristão ou hebraico, a atitude ambígua
e mesmo contraditória afirmada na Bíblia: enumerar a população era uma
atitude sacrílega por visar questionar o “segredo da Vida e da Criação”, mas,
ao mesmo tempo, Deus poderia ordenar os recenseamentos. Por exemplo, os
diversos escritos sagrados relatam frequentemente sob formas contraditórias
os recenseamentos feitos na Antiguidade: um recenseamento pode ser
descrito como Ordenado por Deus, enquanto, segundo outra fonte, trata-se
de algo vindo de Satã (2001, p.15).
Nesse período, os recenseamentos apresentavam uma vertente moral e,
muitas vezes, policial. O Censo era claramente um instrumento de poder estatal e
controle social. Como explica Starr (1987), o termo censo vem do latim e, em Roma,
se referia a um registro dos cidadãos adultos (homens) e de suas propriedades para
propósito de tributação, distribuição de obrigação militares e determinação de status
político. O Censor Romano era também encarregado pelo controle de
comportamento, daí a associação etimológica do censor com a condição de censura.
Tomando-se o exemplo dos censos da Roma antiga, pode-se notar, como
demonstram os trechos a seguir, a diversidade de atribuições e a autoridade dada aos
34
Contudo, como adverte Senra (2005), isso não se deu de forma fácil: naquela época, sabia-se pouco,
quase nada, das noções de renda e de riqueza, sabia-se menos ainda da noção de fato gerador dos tributos.
Foi preciso ainda muito tempo para que essas noções fossem aprimoradas e se consolidassem, afinal, para
tanto, fazia-se necessário um conhecimento elaborado acerca da vida econômica daquelas comunidades,
fato este que só viria acontecer séculos mais tarde.
27
censores romanos, daí os motivos da resistência e repulsa popular aos
recenseamentos. Como explica Cânfora:
Censura, Censores (Censores): durante a república a censura é um dos mais
altos cargos juntamente com a pretura e o consulado. O censo é um magistrado
encarregado de proceder ao census (que teria sido implantado por Sérvio
Túlio, o rei de origem humilde ao qual se atribuem muitas medidas
reformistas): recenseamento dos cidadãos e do seu patrimônio para capitular
obrigações e tributos. A avaliação da condição patrimonial era feita com base
no equipamento que o cidadão teria condições de adquirir em caso de guerra.
A censura foi instituída, segundo a tradição, em 443 a.C., provavelmente para
aliviar o encargo dos cônsules. A partir de 403 (ou 367, com as Leges Liciniae
Sextiae) a censura passou a ser acessível também aos plebeus. Perdeu
importância com Sila e Clódio; foi considerada magistratura “obsoleta” no fim
da república. Dois eram os censores, eleitos a cada cindo anos (desde 434/433
o cargo durava 18 meses) pelos comícios centuriados. O poder dos censores
foi regulado de acordo com a lex centuriata de censoria potestate. Eles se
valem do ius edicendi (promulgar editos); ius contionis (convocar a contio);
ius coercitionis. Suas funções específicas são: a) determinar o census,
assistidos por curatores tribuum e iuratores (formula censendi; lex censui
censendo); b) vigiar os costumes (regimen morum): têm o direito de
interrogar o cidadão sobre a vida pública e privada. Uma das punições podia
consistir em retirar o cidadão da tribo com a conseqüente perda dos direitos
políticos, ou da classe dos cavaleiros ou do Senado; ou fazer um cidadão
passar de uma tribo urbana para uma rural (que era de menor importância). A
essa função está ligada a revisão do álbum dos senadores. Contra a notação
censória não tinha eficácia a proucatio (apelo ao povo); c) estabelecer os
impostos (uectigalia e ultro tributa), em geral administrar o erário
(determinação das despesas e das receitas, jurisdição dos litígios entre o
particular e o Estado); d) jurisdição administrativa (entre os quais: limites entre
a propriedade pública e/ou sagrada e a privada; construções indevidas em solo
público; aquedutos e água pública; locação de bens estatais, empreita de
impostos). [Grifos no original] (C
ÂNFORA apud SENRA, 2004, p. 52-53)
Certamente, a concepção moderna das estatísticas guarda estreita relação com a
gênese do Estado Moderno e com o início modernidade em geral. Mas é na concepção
moderna de governo, melhor dizendo, na racionalização das práticas de governo, que
ela encontra abrigo.
Afinal, embora existam por todo esse tempo e tenham desde sempre mantido
uma íntima relação com o poder dos Estados
35
, as estatísticas só vieram a ser
35
Nesse sentido, são esclarecedoras as palavras de Anthony Giddens. Segundo ele, há um sentido
fundamental em que podemos afirmar que todos os Estados foram, em alguma medida, “sociedades da
informação”, já que a geração do poder de Estado supõe um sistema de reprodução reflexivamente
monitorado, envolvendo a reunião regularizada, armazenamento e controle da informação voltados para
28
entendidas como um instrumento de racionalidade governamental, como a expressão
de uma tecnologia de governo, no fim do século XVI e início do XVII, quando, ao
poucos, foi se constituindo uma nova forma de olhar o Estado, dentro de uma nova
perspectiva de governo, naquilo que Michael Foucault, lançando mão de um
neologismo
36
, chamou de governamentabilidade
37
.
Antes de prosseguir, pela posição central que irá ocupar nesta análise, convém
explicitar o que vem a ser governamentabilidade. Nas palavras de Foucault, pode-se
entender como tal:
Primeiro: um conjunto constituído pelas instituições, procedimentos,
análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa forma
tão específica, quanto complexa de poder, que tem por alvo principal a
população, por forma dominante de saber a economia política e por
instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança.
Segundo: a tendência, na linha de força que, em todo ocidente, não
cessou de conduzir, desde longa data, à proeminência desse tipo e
poder que se pode chamar “governo”, sobre todos os outros: soberania,
disciplina; provocando, de um lado, o desenvolvimento de toda uma
série de aparelhos específicos de governo e, de outro lado, o
desenvolvimento de toda uma série de saberes.
Terceiro: por governabilidade, creio que é possível entender o
processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de
justiça da Idade Média, tornado nos séculos XV e XVI Estado
administrativo, foi pouco a pouco “governamentalizado” (F
OUCAULT,
1984, p.289).
Trata-se de um conceito (ou idéia) que tem o objetivo específico de caracterizar
o processo que deu início a uma concepção moderna de governo. Como se verá, nesse
processo, coube às estatísticas papel de destaque, como motor e instrumento para uma
arte racional de governar.
fins administrativos. Porém, no Estado-Nação, com seu alto grau de unidade administrativa, isso ocorre
em um nível muito mais elevado (2001, p.199).
36
Senra (1996, p.89) explica, a título de curiosidade, que a palavra “gouvernement como ação de
governar entra na língua francesa em 1190, ao passo que a palavra “gouvernemental” / “aux”, como
governamental, aquilo que trata do governo – de onde claramente Foucault derivou o neologismo
“gouvernementalitê” – só entra na língua francesa em 1801
37
Registre-se que o que antes denominamos de proto-história das estatísticas não fará parte desta análise,
já que a intenção, aqui, pauta-se, sobretudo, pela apreensão das estatísticas em seu sentido moderno.
29
Está-se diante de um momento chave na compreensão acerca das estatísticas.
Afinal, é só a partir desse novo olhar sobre o governo, quando melhor se percebe seu
poder, que as estatísticas ganham significado e contornos políticos. Nesse sentido, pode-
se mesmo afirmar que é esse o instante em que se inaugura um tempo de história das
estatísticas, pois é possível compreender melhor as razões da demanda (organizada
segundo uma orientação racional de governo), e é quando, também, começa-se a pensar
e estruturar melhor a oferta.
Isto posto, vejam-se alguns aspectos do desenrolar desse processo julgado
capital para o entendimento sobre a relação Estado vis-à-vis estatística.
1.2.1- O que, quem e como governar.
Resultado de uma profunda transformação de mentalidade, a problemática que
dá origem à “questão do governo” tem início na convergência de dois processos
distintos: a instauração dos grandes Estados territoriais, administrativos e coloniais - em
detrimento da estrutura feudal -; e o processo iniciado pela Reforma (protestante) e em
seguida pela Contra-Reforma, que questionam o modo com o qual se quer ser
espiritualmente dirigido. Como explica Foucault, “é no encontro desses dois
movimentos que se coloca, com intensidade particular no século XVI, o problema de
como ser governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo, com que método,
etc.” (1984, p.278).
Antes disso, dentro do quadro e lógica da soberania, a questão do governo era
posta de lado, já que a intenção última do Estado, ou melhor, do governo do
príncipe, era a defesa do poder e do principado. Maquiavel (1469-1527), em “O
Príncipe”, publicado em 1513, referindo-se à questão do Estado, demonstram bem a
importância que devia ser dada à idéia de governo. Nas palavras dele: “a forma de
governo é de importância bem pequena, embora gente semi-educada pense o
contrário. O grande objetivo da política deveria ser a duração, que sobreleva todo o
resto, por ser bem mais valiosa que a liberdade.” (MAQUIAVEL apud NIETZSCHE,
2000, p. 224).
30
Nessa época, a estatística é vista como o espelho do príncipe. Tratava-se, na
verdade, de uma descrição sintética de seu reino, bens, instituições, homens e
território. “O olhar era descritivo, mas também apologético: o retrato do reino era
também o retrato do soberano, de sua potência e de sua grandeza” (MARTIN, 2000, p.
18)).
Contudo, na segunda metade do século XVI e início do XVII, dentro do
movimento que vai do absolutismo ao Estado-Nação, surge uma vasta literatura
sobre a problemática do governo em geral, que questiona, sobretudo, a concepção de
governo exposta em “O Príncipe” de Maquiavel. Um dos pontos cruciais
encontrados nessa literatura e que marca, com efeito, a distinção desse novo olhar
sobre o governo, é a noção de que existem várias instâncias de governo, dentre as
quais a do príncipe governando seu Estado é apenas uma modalidade. Tem-se assim:
o governo de si mesmo, que diz respeito a moral; a arte de governar
adequadamente uma família, que diz respeito à economia; a ciência de
bem governar o Estado, que diz respeito à política.(...) Por outro lado,
todos estes governos estão dentro do Estado ou da sociedade. Portanto,
pluralidade de formas de governo e imanência das práticas de governo
com relação ao Estado; multiplicidade e imanência que se opõem
radicalmente à singularidade transcendente do príncipe de Maquiavel.
(F
OUCAULT,1984, p.280)
Essa nova concepção de governo postula uma continuidade essencial entre as
diferentes ordens de governo. Enquanto a doutrina do príncipe ou a teoria jurídica do
soberano procura, incessantemente, marcar uma descontinuidade entre o poder do
príncipe e as outras formas de poder, as teorias da arte de governar procuram
estabelecer uma continuidade, ascendente e descendente.
(F
OUCAULT, op.cit, p.281).
Aos poucos, passau-se a perceber que mais que, manter, reforçar e proteger o
principado - corolário e objetivo supremo do príncipe de Maquiavel -, o grande desafio
do Estadista é o governo da economia
38
, que, em seu sentido moderno, passou a ser a
38
A grande questão que se colocava era: “como introduzir a economia - isto é, a maneira de gerir
corretamente os indivíduos, os bens, as riquezas no interior da família - ao nível da gestão de um Estado?
A introdução da economia no exercício político será o papel essencial do governo (...) Governar um
Estado significará portanto estabelecer a economia ao nível geral do Estado, isto é, ter em relação aos
habitantes, às riquezas, aos comportamentos individuais e coletivos, uma forma de vigilância, de controle
tão atento quanto ao do pai de família.”(
FOUCAULT, 1984, p.280).
31
própria essência do governo, transferindo-se da gestão da casa à gestão das populações,
sem perder o foco nas famílias.
Abandonou-se, pois, uma percepção de que se governa o território e os homens,
numa acepção quase jurídica de governo passando-se a perceber que se governa coisas;
e como explica o autor:
Estas coisas, de que o governo deve se encarregar, são os homens, mas
em suas relações com coisas que são as riquezas, os recursos, os meios
de subsistência, o território em suas fronteiras, com suas qualidades,
clima, seca, fertilidade, etc; os homens em suas relações com outras
coisas que são seus costumes, os hábitos, as formas de agir ou de
pensar, etc; finalmente, os homens em suas relações com outras coisas
ainda que podem ser o acidentes ou as desgraças como a fome, a
epidemia, a morte, etc .(F
OUCAULT, ibidem, p.282)
Governar, portanto, após o abandono da idéia de soberania, de defesa do poder e
do principado como a intenção última do governo, é dispor de maneira correta as coisas,
a fim de um objetivo
39
, o que implica, em primeiro lugar:
uma pluralidade de fins específicos, como por exemplo fazer com que
se produza a maior riqueza possível, que se forneça às pessoas meios
de subsistência suficientes, e mesmo na maior quantidade possível, que
a população possa se multiplicar e etc. Portanto, uma série de
finalidades específicas que são o próprio objetivo do governo. E para
atingir estas finalidades deve-se dispor das coisas. E esta palavra
dispor é importante, na medida em que, para a soberania, o que
permitia atingir sua finalidade, isto é, a obediência à lei, era a própria
lei; lei e soberania estavam indissoluvelmente ligadas. Ao contrário, no
caso da teoria de governo não se trata de impor uma lei aos homens,
mas de dispor das coisas, isto é, utilizar mais táticas do que leis, ou
utilizar ao máximo as leis como táticas. Fazer, por vários meios, com
que determinados fins possam ser atingidos. Isto assinala uma ruptura
importante: enquanto a finalidade da soberania é ela mesma, e seus
instrumentos têm a forma de lei, a finalidade do governo está nas
coisas que ele dirige, deve ser procurada na perfeição, na intensificação
dos processos que ele dirige e os instrumentos do governo, em vez de
serem constituídos de leis, são táticas diversas (F
OUCAULT, op.cit,
p.284)
39
Ora, esse(s) objetivo(s) referidos, é o que, com efeito, vai distinguir as funções e atribuições do Estado
capitalista no decorrer da história, o que permitirá, também, distinguir uma e outra Era Estatística, o que
será visto com detalhes no Capítulo 3.
32
Toda essa teoria da arte de governar, elaborada em contraposição ao “Príncipe”
de Maquiavel, gradualmente se materializava. Como bem aponta Foucault, pode-se
situar as conexões dessa arte de governar na realidade em vários momentos:
(...) em primeiro lugar, a teoria da arte de governar esteve ligada desde
o século XVI ao desenvolvimento do aparelho administrativo da
monarquia territorial: aparecimento dos aparelhos do governo: em
segundo lugar, esteve ligada a um conjunto de análises e de saberes que
se desenvolveram a partir do final do século XVI e que adquiriram toda
a sua importância no século XVII: essencialmente o conhecimento do
Estado, em seus diversos elementos, dimensões e nos fatores de sua
força, aquilo que foi denominado estatística, isto é, ciência do Estado;
em terceiro lugar, esta arte de governar não pode deixar de ser
relacionada com o mercantilismo e o cameralismo. (F
OUCAULT, 1984,
p.285).
Teve-se assim, ao final do século XVI e início do XVII, como bem explica
Senra, a “invenção política das estatísticas” (SENRA, 1996). Afinal, está-se falando de
um procedimento realizado pelo Estado que permitiu aos governantes conhecer aspectos
essenciais da população (mais tarde da economia etc.), e, nesse sentido, possibilitou a
ação ou intervenção racional em uma dada realidade. Em outros termos, as estatísticas
“constroem” os espaços públicos que o estadista deve conhecer e sobre eles agir.
Nesse sentido, é interessante perceber que a perspectiva da população; quer
dizer, das realidades dos fenômenos próprios à população, revelados pelas estatísticas,
permitiu eliminar definitivamente o modelo da família, passando-se a centrar a noção de
economia em outra coisa. Como melhor explica Foucault,
as estatísticas vão revelar pouco a pouco que a população tem uma
regularidade própria: números de mortos, de doentes, regularidade de
acidentes, etc.; a estatística revela também que a população têm
características próprias, e que são irredutíveis aos da família: as
grandes epidemias, a mortalidade endêmica, a espiral do trabalho e da
riqueza, etc.; revela finalmente que através de seus deslocamentos, de
sua atividade, a população produz efeitos específicos. (F
OUCAULT,
1984, p.285)
O problema da população torna-se, assim, o fim último ao qual se deve
governar, em detrimento do modelo que tinha a gestão da família como suporte ao bom
governo. A família torna-se, assim, um segmento, melhor dizendo, um instrumento
privilegiado, já que, quando se quer obter alguma coisa da população – quanto aos
33
comportamentos sexuais, à demografia, ao consumo etc. -, é pela família que se deve
passar.
(FOUCAULT, 1984, p.289)
Havia, contudo, nos tempos do mercantilismo, um paradoxo entre a
racionalidade de governo e os instrumentos que ele produzia: enquanto um estava
orientado para a era moderna, leia-se, tendência à racionalidade, o outro recorria à
tradição. Como explica Foucault, o mercantilismo:
foi a primeira sanção desta arte de governar ao nível tanto das práticas
políticas quanto dos conhecimentos sobre o Estado; neste sentido, podemos
dizer que o mercantilismo representa um primeiro limiar de racionalidade
nesta arte de governar(...) O Mercantilismo é a primeira racionalização do
exercício do poder como prática de governo; é com ele que se começa a
construir um saber sobre o Estado que pôde ser utilizável como tática de
governo. Entretanto, o mercantilismo foi bloqueado, freado, porque se dava
como objetivo essencialmente a força do soberano: o que fazer não tanto para
que o país seja rico, mas para que o soberano possa dispor das riquezas,
constituir exércitos para fazer política. E quais são os instrumentos que o
mercantilismo produz? Leis, ordens, regulamentos, isto é, as armas
tradicionais da soberania. O mercantilismo, assim, procurava introduzir as
possibilidades oferecidas por uma arte refletida de governar no interior de uma
estrutura institucional e mental da soberania, que ao mesmo tempo a
bloqueava. (1984, p.286-287)
Todavia, já nesse tempo, a produção de estatísticas ganhava novos contornos,
que caracterizam uma importante ruptura, uma descontinuidade no sentido que a
tradição pré-moderna atribuía às estatísticas.
Como se pode concluir das explicações de Starr (1987), o censo de população
moderno difere do pré-moderno ou antigo em pontos cruciais:
Primeiro, porque um censo moderno é uma enumeração de uma
população inteira em uma nação ou em uma de suas subdivisões
geográficas, enquanto os censos pré-modernos foram frequentemente
limitados a grupos específicos, tais como: homens, grupos de idades,
classes particulares etc.
Segundo, enquanto um censo moderno registra e conta os indivíduos e
provê dados a nível “individual”, os censos pré-modernos, e isso vai até
34
o início do século XIX, tinham a casa como unidade de enumeração,
como informação mínima.
Terceiro, um censo moderno é uma enumeração em um momento fixo,
ou seja, há uma data de referência, um corte temporal. Já os censos pré-
modernos eram, frequentemente, um registro contínuo.
Quarto, enquanto as informações dos censos pré-modernos configuravam
segredo de Estado, espera-se que as informações dos censos modernos
sejam públicas. Essa é uma transformação marcante, que irá ganhar um
forte impulso no seio do liberalismo, com a democracia liberal
40
.
Quinto, e, na perspectiva de Starr, a mais significante das distinções, é
que há hoje uma separação entre as agências responsáveis pela produção
estatística e aquelas responsáveis pela avaliação de impostos e execução
da lei. Antes, tudo isso cabia a um único segmento da administração.
Enquanto o censo moderno tem como função primária manifesta a
produção de informação quantitativa, sua versão pré-moderna tinha como
função explicita manter as pessoas debaixo de vigilância
41
e controle do
Estado.
Claro, todas essas características não surgiram agrupadas. Foi preciso muito
tempo até que isso viesse a acontecer. O legado do censo pré-moderno aparecia como
40
Como explica Starr (1983), o tratamento de informação sobre os indivíduos e as populações, no censo
moderno – pelo menos nas democracias liberais - inverte o padrão dos censos pré-modernos, uma vez
que, no censo pré-moderno, o Estado obtinha informações sobre as pessoas e a população e as mantinha
secreta. É esperado, idealmente, que o censo moderno assegure o anonimato para as pessoas e publicidade
para os fatos sobre a população. Atrás desse segredo, conforme explica o autor, há uma mudança
profunda de tradição. O censo moderno presume uma relação cooperativa entre o Estado e seus cidadãos
em lugar de uma relação coercitiva. Sendo assim, é preciso destacar que o aparecimento dos censos
modernos envolveu não só a expansão de funções estatísticas mas, também, a separação da idéia que
relacionava o censo com vigilância e controle, pondo, em seu lugar, uma nova compreensão dos
propósitos dos censos e, de forma ainda mais geral, da relação entre o Estado e as pessoas.
41
Conforme explica Starr (1983), a separação/distinção dos censos com a atividade de vigilância não é
simplesmente uma dicotomia teórica ou realização histórica. É uma distinção que, pelo menos, os
governos democráticos têm que reafirmar continuamente como uma realidade institucional para
assegurarem a confiança pública necessária para levar a cabo investigações estatísticas seguras. Nesse
sentido, o autor lembra ainda que o uso de censos e pesquisas para a vigilância contínua se tornou uma
preocupação política. Estudos sobre os sistemas estatísticos chinês e soviéticos enfatizam as ligações
35
uma assombração aqueles que tentavam modificá-lo. Era muito difícil, e ainda hoje
existe esse questionamento, convencer a população da intenção última das investigações
estatísticas.
As investigações estatísticas realizadas durante os séculos XVI e XVII já se
constituíam, sem dúvida, técnicas de Estado, instrumentos de gestão e administração.
Contudo, ainda não estavam ligadas a preocupações de ordem imediatamente científica
(economia, demografia), nem a uma visão mais abrangente de governo e Estado.
Foi com o liberalismo, no final do século XVIII e início do XIX, que surgiu a
idéia de sociedade, em detrimento da razão de Estado, que tinha predominado como
aspecto totalizador por todo esse tempo. Demandou-se estatística como nunca, pois se
percebe melhor seu poder. Como melhor explica Senra:
foi com a idéia de sociedade, no seio do liberalismo, que se pôde
constituir uma efetiva tecnologia de governo, centrada na população,
tendo-se a Economia Política como teoria, bem assim, o mercado como
prática, tornando-se viável debater os limites do exercício de governo.
Procura-se formalizar os objetivos de governo, geralmente muito
abstratos, tais como ordem, eficiência, segurança, dentre outros, dito de
outra forma, procura-se materializar os processos e as atividades a
serem objeto da ação governamental, estabelecendo-se um domínio de
governo, claro, sempre perpassando a população, em si mesma e em
suas relações sócio-econômicas.(S
ENRA, 1998, p. 62)
O governo passou a ser, então, pensado fora do quadro jurídico da soberania
e a família, como modelo de governo, desapareceu e passou a ser um instrumento da
população. A regulação da população, em seus fenômenos revelados pelas
estatísticas, aparece como objetivo final do governo. Iniciou-se a constituição de
uma economia política. Nesse momento, deu-se a passagem de uma “arte de
governo” para uma “ciência política”, ou seja, de um “regime dominado pela
estrutura da soberania” para um “regime dominado pelas técnicas de governo”.
Foi também esse o contexto em que se realizaram os primeiros Congressos
Internacionais de Estatística, tendo à frente homens como Adolphe Quetelet e Ernest
Engel. Começou-se a pensar o programa, o profissional e as instituições competentes. E
históricas entre as estatísticas e a inteligência de Estado. Tais sistemas não garantiram a confidência dos
fatos sobre presos nem a publicidade para fatos sobre as populações.
36
nisso tudo começaram a aparecer (ou a se pensar) os métodos e a idéia de que quem faz
as estatísticas bem pode ser chamado de Estatístico, que seria o cientista daquela
produção. Tudo isso será visto com detalhes no Capítulo 2 dessa dissertação.
O tempo seguiu, e, ao poucos, a era moderna viu surgir, predominantemente, na
França, na Alemanha e na Inglaterra, três formas muito características de
“empreendimento estatístico” que, para além dos censos, passaram a produzir
estatísticas oriundas de outras fontes
42
.
Na França, como explica Martin, desde muito cedo, o recenseamento da
população passou a ser percebido como instrumento do governo:
“ele deveria permitir o estabelecimento de necessidades alimentares dos
súditos do rei, manter os registros dos sujeitos a taxas e impostos (gabela,
talha), construir estatísticas de “fogos” para estabelecer a repartição
geográfica dessas taxas e impostos, constituir listas de homens aptos para a
guerra ou fazer o inventário da subsistência (notadamente após as crises
alimentares)” (M
ARTIN, 2001, p.16 ).
Como é possível deduzir, tratava-se de uma contagem exaustiva. Por vezes,
somavam-se às pesquisas da população outros campos de investigação, cobrindo boa
parte da visão que se tinha das atividades econômicas da época. Nesse tempo, surgiram
as “enquêtes” de Jean-Baptiste Colbert (superintendente de finanças de Luís XIV).
Produziram-se, também, agregados estatísticos a partir de registros administrativos
43
,
obtidos em diferentes segmentos da administração.
Mais tarde, como explica Desrosieres (1996), surge na França, às margens da
estatística administrativa exaustiva oriunda dos censos e dos registros administrativos,
uma forma de pesquisa direta: a monografia local. Como explica o autor:
42
Como alternativa aos censos havia como fonte de informações básicas (individuais), os registros
administrativos, que eram de difícil utilização por estarem em papel e, sobremodo, por estarem guardados
em "n" lugares diferentes.
43
Foi de suma importância, o reconhecimento por parte da Igreja Católica Romana, da necessidade dos
registros de batismo, casamentos e óbitos, tornados compulsórios a partir do Concílio de Trento (1545-
1563) (
MEMÓRIA, 2004). Sobre os registros administrativos, Senra (2205) explica “que na França, os
registros de nascimento foram criados, em 1539, por édito de Francisco I (rei de 1515 a 1547), e os de
37
As questões de higiene, delinqüência e pobreza muitas vezes são discutidas e
tratadas devido a iniciativas particulares de reformadores sociais, médicos,
juristas, engenheiros ou professores. Na França, Frédéric Lê Play simboliza
essa corrente que é católica e tende a se hostil ao Estado, em particular ao
Estado republicano oriundo da Revolução de 1789. A monografia trata de
“casos típicos” considerados exemplares. Seu cerne é um levantamento do
orçamento de receitas e despesas de uma família operaria. Mas esses
orçamentos familiares não são agregados, adicionados, a exemplo do que fará
o economista alemão Engel, autor de célebres leis de consumo. A monografia
serve para ilustrar um discurso que é, ao mesmo tempo, conservador e social,
hostil ao salariato mercantil capitalista e ao sufrágio universal, mas favorável à
proteção das condições de vida das famílias operárias contra os males do
capitalismo. Essa tradição da pesquisa sociológica de campo, contraponto do
recenseamento exaustivo, se perpetuará fora da estatística oficial. Ela ressalta a
coerência interna de uma constelação de traços registrados em um caso
singular, tratado como exemplo. Ignorando as amostragens, a estatística do
século XIX atribuía, ao menos em princípio, um peso comparável ao
recenseamento e à monografia. (D
ESROSIERES, 1996, p. 8)
Em contrapartida, na Inglaterra, a partir da segunda metade do século XVII,
surgiu a aritmética política, tendo como fundadores homens como John Graunt
44
e
William Petty
45
. Tratava-se de um cálculo repousado sobre uma coleta de informações
reduzida ao mínimo
46
, normalmente obtidas através dos registros administrativos
47
. Esse
casamento e falecimento, em 1579, por édito de Henrique III (rei de 1574 a 1589), no âmbito das disputas
religiosas entre católicos e reformadores (huguenotes; os protestantes luteranos e calvinistas)”.
44
John Graunt (1620–1674) era um próspero negociante londrino de tecidos. Em 1662, publicou um
pequeno livro intitulado Natural and Political Observations Mentioned in a Following Index and Made
upon the Bills of Mortality. Sua análise foi baseada sobre razões e proporções de fatos vitais, nos quais ele
observou uma regularidade estatística num grande número de dados. Por seu trabalho, foi eleito Fellow of
the Royal Society (F. R. S.), sociedade científica fundada em 1660, por Carlos II. Os dados usados por
Graunt compreendiam uma serie anual de 1604 a 1660, coletados nas paróquias de Londres, de onde ele
tirou as seguintes conclusões: que havia maior nascimento de crianças do sexo masculino, mas havia
distribuição aproximadamente igual de ambos os sexos na população geral; alta mortalidade nos
primeiros anos de vida; maior mortalidade nas zonas urbanas em relação às zonas rurais. (
MEMÓRIA,
2004, p. 12-13)
45
Foi William Petty (1623–1683), contemporâneo e continuador de Graunt, quem denominou de
Aritmética Política à nova arte de raciocinar por meio de dados sobre fatos relacionados com o governo.
Em 1683, ele publicou sua obra Five Essays on Political Arithmetic e sugeriu que fosse criada uma
repartição de registro de estatísticas vitais, mas isso só se consolidou no século XIX, com o Dr. William
Farr (1807–1883), contribuidor original da estatística médica. Note-se que a denominação posterior de
estatística acabou por incluir a Estatística Descritiva e a Aritmética Política. (
MEMÓRIA, 2004, p.13 -14)
46
Segundo Martin (2001, p.19), os aritméticos políticos interessavam-se tanto pelos problemas
econômicos quanto pelos demográficos. Mais concretamente, tratava-se, por exemplo, de estabelecer
tabelas de mortalidade pelo cálculo de seguros ou de rendas vitalícias (ligadas ao desenvolvimento dos
empréstimos de Estado e de tontines), de estimar a população geral da Inglaterra ou do país de Gales pelo
cálculo (e não pelo recenseamento). O aparecimento de técnicas matemáticas para o estudo da proporção
de mortes e nascimentos numa população fazia parte de uma revolução cultural da relação entre eventos
até então percebidos como mágicos (astrologia) ou teológicos. Imaginar que a morte pudesse seguir leis
matemáticas, estatísticas ou probabilísticas solicitava importantes mudanças nas representações das
causas da vida e da morte pelos indivíduos.
38
cálculo
48
visava a permitir a substituição dos recenseamentos e outros levantamentos
exaustivos que, na concepção liberal nascente, eram dificilmente conceptíveis
49
. O
nascimento da estatística inglesa é assim descrito por Desrosieres:
Não são teóricos universitários que edificam uma descrição global e lógica do
Estado em geral, mas sim pessoas de origens diversas que forjam saberes
práticos dentro de suas atividades e que as propõe ao “governo”. (..,) Assim se
esboça um papel social novo: o do especialista de competência específica que
propõe técnicas aos governantes, procurando convencê-los de que, para
realizar seus desígnios, eles devem recorrer a ele. Eles oferecem uma
linguagem precisamente articulada, enquanto que os estatísticos alemães,
identificando-se ao Estado, propõem uma linguagem geral e abrangente.
(D
ESROSIERES apud SCHWARTZMAN, 1996 p. 2)
Em sua origem, a estatística alemã, resumia-se a uma descrição sintética das
várias características do Estado. Frequentemente expressa em termos literários, a
estatística alemã descrevia o clima, a geografia, as atividades econômicas, os recursos
naturais, a demografia e os poderes políticos. Tratava-se de uma abordagem fortemente
47
Segundo Senra (2005, p. 60), são exemplos desses registros na Inglaterra e na França o grande cadastro
das instituições inglesas, o famoso Livro do Julgamento (Domesday Book), na Inglaterra, criado por édito
de Guilherme, o Conquistador (Rei de 1066 a 1087), em 1086, e também, desde 1664, os levantamentos
periódicos idealizados e implantados por Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), famoso ministro das
finanças de Luís XIV, mandados realizar pelos intendentes provinciais; por eles alcançavam-se
informações minuciosas sobre as condições de utilização das terras e das pessoas, usando-as, não apenas
para tributar, mas, sobretudo, para introduzir melhorias na produção. Tanto valor dava-se à época aos
números que, com visão de futuro, Charles Castel (1658-1743), Abade da Abadia de Saint-Pierre, teve
espaço público para advogar a criação de um órgão central voltado à aquisição ou produção dos mesmos.
48
Contemporâneo desse período em que as idéias da ciência estatística tiveram inicio, desenvolveu-se o
cálculo de probabilidades, mas independentemente dessas idéias, vindo entretanto a influenciá-las
posteriormente. O cálculo de probabilidades originou-se da correspondência entre dois grandes
matemáticos do século 17: Blaise Pascal (1623–1662) e Pierre de Fermat (1601–1665), para solucionar
problemas relacionados com jogos de azar, em moda nos salões da França, sustentados pelo lazer de uma
aristocracia. Desses problemas, os mais célebres foram propostos a Pascal em 1654, pelo nobre francês
Chevalier de Méré, jogador de grande experiência e perspicácia. A teoria das probabilidades, destaca-se
também, a contribuição de Marquês Laplace (1749-1827) e Carl Friedrich Gauss (1777–1855). A idéia de
distribuição normal, expressa na famosa curva de Gauss, será muito usada como parâmetro para a análise
da distribuição de dados estatísticos. (
MEMÓRIA, 2004, p. 14)
49
Segundo Martin (2001, p.19), parecia, de fato, inconcebível exercer uma curiosidade muito grande
sobre uma população apegada à sua liberdade e a seus direitos individuais. Em 1753, por exemplo, um
projeto de recenseamento, criticado como a ruína completa das últimas liberdades dos ingleses, foi
rejeitado pelo Parlamento. Entre essas liberdades ultrajadas, está a das “classes possuidoras” que viam
nos recenseamentos um procedimento para conduzí-las a expor seus bens aos olhos de todos. No início do
século XIX, muitos ainda lamentavam a existência de registros paroquiais e boletins de mortalidade, cuja
existência era, no entanto, obrigatória desde 1758. De fato, o estado civil só foi generalizado e laicizado
em 1836.
39
empírica, às vezes explicativa, cuja intenção não era analítica, mas sim, descritiva. Em
seu nascimento, a abordagem estatística alemã, como explica Desrosieres:
“apresenta ao príncipe ou ao funcionário responsável, um quadro para a
organização das informações multiformes disponíveis sobre um estado, ou
seja, uma nomenclatura dotada de uma lógica de inspiração aristotélica. Essa
forma foi codificada, por volta de 1660, por Cornring (1606 – 1681). Ela foi
transmitida mais tarde, ao longo de todo o século XVIII, pela universidade
de Gottingen e sua “escola estatística”, notadamente por Achenwall (1719 –
1772), reconhecido como criador da palavra “estatística”, e depois por seu
sucessor na cadeira de estatística. Schlözer (1735 – 1809). Este último, autor
de um “Tratado de Estatística” traduzido para o francês em 1804 por
Donnant (que tornará conhecido esse modo de pensar alemão dentro da
França no início do século XIX), foi o primeiro dessa corrente a recomendar
a utilização de números precisos em vez de indicações expressas em termos
literários, sem no entanto o fazer com freqüência ele próprio. Uma
formulação de Schlözer é significativa da tendência predominantemente
estruturalista e sincrônica da estatística alemã: ‘A estatística é a história
imóvel, a história é a estatística em marcha’” (D
ESROSIERES apud
S
CHWARTZMAN, 1996, p. 1)
O tempo seguiu inexorável e, aos poucos, na fusão dessas diferentes formas de
empreendimento estatístico, foi-se configurando um significado, um sentido moderno
das estatísticas: relacionando saber e poder, agindo nos pólos da disciplina e regulação
(como será visto a seguir) e fazendo-se essencial ao exercício racional do governo.
Como explica Martin:
Progressivamente, durante os séculos XVII e XIX, a abordagem francesa
(centrada nos recenseamentos e nas descrições do país com fins
administrativos e contábeis), a abordagem alemã (centrada numa abordagem
descritiva e analítica, raramente quantificada) e a abordagem inglesa
(centrada na aritmética e na análise matemática de dados quantitativos) vão
se encontrar e dar nascimento à estatística tal como nós a conhecemos hoje,
isto é, ao mesmo tempo “ciência da contagem dos constituintes da
sociedade” e “ciência do cálculo em vista da análise das contagens”.
(M
ARTINE, 2001, p.21)
Como se pode perceber, o desenvolvimento das estatísticas se deu a reboque em
relação à gênese e ulterior desenvolvimento do Estado moderno. Não se pode esquecer,
contudo, da importância das ciências nesse projeto de modernidade. Afinal, os
vitorianos, instigados a coletar todos os fatos possíveis, ainda influenciados pelas idéias
de Bacon, tinham a crença na objetividade e poder das estatísticas.
40
Multiplicavam-se como nunca os campos de investigação. A idéia de um
conhecimento quantificado dos fatos da sociedade, permitindo melhor conhecê-los e,
eventualmente, modificá-los, era muito promissora. Aos poucos, essa idéia saía dos
limites estreitos dos administradores do Estado e ganhava também os cientistas.
Segundo Martine:
o triunfo do “espírito de cálculo” durante o século das Luzes teve como
resultado reforçar o interesse que os sábios e eruditos traziam à
abordagem científica quantitativa inglesa, e o progresso das ciências
matemáticas (cálculo das probabilidades) permitiu aos aritméticos
políticos alcançar respostas a seus questionamentos. A Matemática
social de Condorcet, as Quaestiones calculi politici de Leibniz, o Essai
de politique et de morale calculée, do francês d’Harcanville, o Essai
d’arithmétique morale de Buffon, a obra Die Göttliche Ordnung
(L’Ordre Divin, 1741) do pastor alemão Süszmilch, ou ainda os Essais
d’arithmétique politique de Lagrange constituem exemplos do interesse
de muitos cientistas europeus pela abordagem quantitativa aparentada
com a aritmética inglesa: todos têm por objeto resolver pelo cálculo as
dificuldades da gestão dos Estados. Mais ainda, a Enciclopédia de
Diderot e d’Alembert que define a “Aritmética política” como aquela
que tem por finalidade “pesquisas úteis à arte de governar os
povos”.(M
ARTINE, op.cit, p.20)
Passou-se a produzir estatística sobre uma variedade de coisas: preço,
produção agrícola, animais etc. Produzia-se, também, o que Quetelet chamou de
“estatísticas morais”, que são aquelas relativas a suicídios, delinqüência, divórcio,
dentre outras. A propósito, acrescenta Martine:
a preocupação com o social, entendida aqui no sentido amplo, isto é,
no sentido médico, policial, socioeconômico e das condições de vida
dos menos favorecidos, e por vezes dos temores que são ligados a eles,
se encontra também em outras pesquisas estatísticas feitas durante o
século XIX. Citemos rapidamente as pesquisas do ministro da instrução
pública Guizot, sobre o estado moral da instrução primária (1830), as
de Frédéric Le Play sobre o orçamento das famílias operárias (a partir
de 1829), outras sobre o consumo nas grandes cidades (1847), sobre os
surdos-mudos (1823) e cegos (1831), os alienados e seus asilos (1841-
1860)... é também possível pensar na coleta dos dados antropométricos
pelos sábios da Société Anthropologique de Paris, e notadamente Paul
Broca durante a segunda metade do século XIX. (M
ARTINE, ibidem,
p.29)
41
O prestígio das estatísticas era tanto, e sua relação com a idéia de um bom
governo parecia tão obvia, que, em seu sexto relatório (de 1840), o Conselho da
Sociedade de Estatística de Londres (fundada em 1834) afirmava:
(...) as estatísticas, em seu próprio nome, são definidas como as
observações necessárias para as ciências morais ou sociais, para a
ciência do estatístico, a quem o estadista e o legislador devem recorrer
em busca dos princípios segundo os quais legislar e governar”. Para
“avaliar a condição de qualquer população, e apreciar devidamente as
causas e meios de sua modificação, a ‘geografia física’ do país
ocupado por ela forma o primeiro e indispensável corpo de
informações”. Em suma, a ciência do estatístico “é a ciência das artes
da vida civil”.(G
AY, 1995, p.452).
Assim, a estatística colocava-se definitivamente como a ciência do Estado ou
como a ciência que se referia ao Estado. Nesse sentido, é preciso perceber que, ao
adquirir essa função política (função de criar os espaços públicos que se deve governar),
as estatísticas se fixam definitivamente como elemento estrutural do poder dos estados.
Tudo isso fica mais claro quando se vislumbra a história de uma
governamentabilidade, ou seja, quando se percebe em que medida as transformações
do Estado capitalista influenciaram a produção de estatísticas oficiais, o que será tratado
no Capítulo 3.
Por agora, basta perceber que há um sentido fundamental que faz das
estatísticas um instrumento necessário para se pensar a constituição do Estado moderno
e também de uma arte moderna de governar. Deve-se notar, também, que, ao trazer a
tona a perspectiva da população, a estatística permitiu uma profunda transformação na
ordem do saber e do poder sobre o social.
E nesse sentido, é preciso perceber, ainda, que as estatísticas, ao dizer o social
(através da perspectiva da população, construindo espaços antes impensáveis), acaba
por exercer um tipo de poder muito característico, que rompe e transcende esse seu
poder mais imediato de descrever e informar o Estado.
1.3 - Disciplina e regulação: os dois pólos do poder das estatísticas.
42
... numa sociedade como a nossa – mas, afinal de contas,
em qualquer sociedade – múltiplas relações de poder
perpassam, caracterizam, constituem o corpo social; elas
não podem dissociar-se, nem estabelecer-se nem
funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma
circulação, um funcionamento do discurso verdadeiro.
(Foucault, 1999, p. 28).
Como foi visto, no final do século XVII, teve início uma dominação racional,
sempre crescente, sobre a população, o que Foucault viria a chamar de bio-política das
populações. Agia-se, de um lado, sobre o todo, o múltiplo, através da regulação da
população (natalidade, mortalidade, migração etc.) e, de outro, sobre o singular, o
indivíduo, com as disciplinas do corpo (uma anátomo-política do corpo humano). Esses
mecanismos de poder se intercambiavam, num investimento político total que agia
sobre todo o corpo social
50
.
As estatísticas participam desse processo de forma muito especial, pois se
encontram, ao mesmo tempo, no detalhe necessário à disciplina e nas totalizações
indispensáveis à regulação das populações. Nesse sentido, a comparação feita por
Desrosieres entre o modo de produzir estatística com as duas grandes maneiras de
explorar e interpretar o social, o paradigma Galileano e o paradigma do indício, parece
oportuna:
O primeiro se inspira nas ciências da natureza, na física e na
astronomia de Galileu. É o que move a ciência moderna, conquistadora
do universal, baseada em formalizações matemáticas ou em
totalizações estatísticas. O segundo paradigma, o do indício, busca, ao
contrário, o detalhe pouco visível, o vestígio quase apagado, o sintoma
revelador de uma realidade oculta. É o exemplo por acaso, do ato falho
para Freud, das impressões digitais para o detetive, da prega obscura de
um vestido para o especialista em pintura. A estatística, com suas
adições e seus meios, poderia parecer totalmente enquadrada no
paradigma galileano, que é o da generalidade e dos grandes números.
Contudo, é uma aparência enganadora. Como Sherlock Holmes, o
estatístico constrói indícios a partir de suas pesquisas ou de seus
registros para descrever a inflação, a produção ou o desemprego. Ela
vai e vem continuamente entre informações individuais e informações
“agregadas”, que espelham uma realidade mais ampla. Assim como o
geógrafo que, modificando a escala do seu mapa, passa do
levantamento cadastral elementar à representação de um continente, o
estatístico passa do orçamento de receitas e despesas de uma família ao
50
Esse bio-poder foi um elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser
garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um
ajustamento dos fenômenos da população aos processos econômicos (F
OUCAULT, 1988, p. 132).
43
quadro do consumo de um país quando escolhe o sistema de referência
de sua pesquisa. Ao ajustar o foco de seus instrumentos de observação,
o geógrafo e o estatístico parecem capazes de passear do menor ao
maior, do detalhe de Sherlock Holmes ao mundo completo e sem falhas
de Galileu. (D
ESROSIERES, 1996, p. 3)
A disciplina, em um primeiro momento,
processa a ordem do mundo,
transformando as multidões confusas e, por isso, inúteis ou perigosas, em
multiplicidades organizadas
. Saindo do singular ao geral constroem
espaços fixos e
rígidos, mas que estabelecem ligações operatórias. A relação com a produção de
estatísticas é direta. Como explica Foucault:
A constituição de “quadros” foi um dos grandes problemas da
tecnologia científica, política e econômica do século XVIII; arrumar
jardins de plantas e de animais, e constituir ao mesmo tempo
classificações racionais dos seres vivos; observar, controlar, regularizar
a circulação de mercadorias e da moeda e estabelecer assim um quadro
econômico que possa valer como princípio de enriquecimento;
inspecionar os homens, constatar sua presença ou ausência, e constituir
um registro geral e permanente das forças armadas; repartir os doentes,
dividir com cuidado o espaço hospitalar e fazer uma classificação
sistemática das doenças: outras tantas operações conjuntas em que os
dois constituintes – distribuição e análise, controle e inteligibilidade-
são solidários. O quadro, no século XVIII, é ao mesmo tempo uma
técnica de poder e um processo de saber. Trata-se de organizar o
múltiplo, de se obter um instrumento para percorre-lo e domina-lo;
trata-se de lhe impor uma ordem. (F
OUCAULT, 1987, p.135)
É certo que, ao organizar o múltiplo, através dos processos de agregação, a
disciplina constrói os espaços necessários à regulação. Como se viu, esses “espaços
públicos” constituídos pelo olhar disciplinar (estatístico) se tornam, ao longo dos
séculos XVIII e XIX, essenciais ao exercício do “bom governo”, isto é, um governo
adequado da economia que, nessa época, estava intimamente ligada à regulação da
população.
Nesse sentido, é preciso lembrar que regular a população significa, sobretudo,
ajustar a acumulação dos homens à do capital, articular o crescimento dos grupos
humanos à expansão das forças produtivas e à repartição diferencial dos lucros.
Contudo, não se pode perder de vista que as táticas disciplinares consistem num
poder de transformação sobre o indivíduo. O poder disciplinar organiza o espaço,
44
controla o tempo, vigia e “(...) registra, continuamente, registra e registra, modelando o
indivíduo numa grande quantidade de documentos de natureza administrativa,
produzindo um saber com vistas a um melhor exercício do poder” (SENRA, 1998, p.16).
O poder disciplinar é exercido sobre o indivíduo, alvo de uma vigilância que,
longe de ser repressiva, é, ao mesmo tempo, global e individualizante. As
estatísticas, como se verá, por sua forma característica de produzir conhecimento,
constroem um espaço analítico que dá sustentação à ação sobre esses dois pólos: o
da regulação (sobre a população) e o da disciplina (sobre o indivíduo).
Trata-se de um processo complexo, onde se passa da constituição de um saber
sobre o indivíduo a um saber sobre o todo, voltando-se depois a um poder de
transformação sobre o indivíduo, seu corpo.
Nesse período, as agregações estatísticas derivam, sobretudo, dos registros
administrativos. A agregação se dá com base em classificações que são suporte à
administração. Para se realizar a agregação, é preciso disciplinar: organizar os
indivíduos num espaço delimitado, quadriculado (cada indivíduo no seu lugar e, em
cada lugar, um indivíduo), hierarquizado, distribuído e dividido com rigor. É importante
distribuir os indivíduos num espaço onde se possa isolá-los e localizá-los.
O objetivo é conhecer a totalidade dos bens, homens, serviços, recursos naturais
etc. Tem-se um controle exaustivo e total sobre as atividades. Mas, no que pese a
quantidade de registros, eles não são vistos pela ótica disciplinar com as mesmas
funções, como esclarece Foucault:
Na ordem da economia, permite a medida das quantidades e a análise
dos movimentos. Sob a forma da taxionomia, tem por função
caracterizar (e em conseqüência reduzir as singularidades individuais)
e construir classes (portanto excluir as considerações de número). Mas
sob a forma de repartição disciplinar, a colocação em quadro tem por
função, ao contrário, tratar a multiplicidade por si mesma, distribuí-la e
dela tirar o maior número possível de efeitos. Enquanto a taxionomia
natural se situa sobre o eixo que vai do caráter à categoria, a tática
disciplinar se situa sobre o eixo que liga o singular e o múltiplo. Ela
permite ao mesmo tempo a caracterização do indivíduo como
indivíduo, e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada. Ela é a
condição primeira para o controle e o uso de um conjunto de elementos
distintos: a base para uma microfísica de um poder e de um poder que
poderíamos chamar “celular”.(F
OUCAULT, 1987, p.136).
45
Em outros termos, as estatísticas, ao tempo que constroem os coletivos úteis à
regulação, fazem com que
as individualidades que os formaram desapareçam. Fazem
com que os indivíduos, dentro dos coletivos construídos, se vejam uns em face dos
outros, mas não mais em suas individualidades, e sim como individualidades
individualizadas, ou seja, individualizações. Assim, todos passam a se ver e a
enxergar o mundo segundo a ótica da disciplina. A propósito, assevera o autor:
na disciplina, os elementos são intercambiáveis, pois cada um se define
pelo lugar que ocupa na série, e pela distância que o separa dos outros.
A unidade não é portanto nem o território (unidade de dominação),
nem o local (unidade de residência), mas a posição na fila:o lugar que
alguém ocupa numa classificação, o pondo em que se cruzam um linha
e uma coluna, o intervalo numa série de intervalos que se pode
percorrer sucessivamente. A disciplina, a arte de dispor em fila, e da
técnica para a transformação dos arranjos. Ela individualiza os corpos
por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz
circular numa rede de relações (F
OUCAULT, 1987, p.133)
As estatísticas, aqui vistas como uma tática disciplinar, por sua forma
característica de produzir conhecimento, constroem, como se afirmou, um espaço
analítico com dois pólos. Primeiro, ao fazer com que desapareçam as individualidades
que as formaram, enquadrando os indivíduos em suas classificações, codificações e
hierarquias, criam uma imagem do mundo, melhor dizendo, uma imagem que nomeia o
mundo (no pólo da disciplina). Contudo, em um segundo momento, através da
organização dos múltiplos, antes confusos, dá aos governantes a capacidade de uma
gestão racional da economia (dentro do pólo da regulação).
Em outras palavras, diz-se que esses espaços públicos constituídos pelas
estatísticas são, na verdade, espaços mistos
51
, reais, porque regem a disposição de
pessoas, atividades, políticas públicas etc., e, também, “ideais”, porque projetam, sobre
a organização, caracterizações, estimativas e hierarquias. Daí o sentido da pergunta
provocativa de Ian Hacking: “Quem é que teve mais influência sobre a consciência de
51
Claro, esses dois pólos se interagem, sobretudo quando se tem uma demanda mais elaborada, uma
oferta mais consciente. Um olhar histórico da relação Estado vis-à-vis estatística, que é assunto do
Capítulo 3, nos permite entender melhor a interação entre esses pólos. Por agora, basta perceber a
diferença entre os dois.
46
classe, Marx ou os autores dos relatórios oficiais que criam as classificações dentro das
quais as pessoas passaram a se reconhecer?” (HACKING apud SENRA, 1998, p. 46).
Não há como negar a influência das estatísticas sobre esses dois pólos, o que
leva a pensar o tipo de “percepção social” que ela cria e como isso pode influenciar
condutas e comportamentos. Afinal, como assevera Foucault (1987, p.172), o indivíduo
é, sem dúvida, o átomo fictício de uma representação “ideológica” da sociedade; mas é
também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama
“disciplina”.
Antes de prosseguir, cabe uma reflexão sobre o conceito ou idéia do que seja
poder. Como se sabe, o conceito de poder foi elaborado e trabalhado por diversos
autores das ciências humanas e também da filosofia. É recorrente nessa literatura
encontrar o poder expresso em termos negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”,
“censura”, “esconde”, etc. Mas, na linha da disciplina, como adverte Foucault, o poder
produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O
indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter, originam nessa produção” (FOUCAULT,
1987, p. 172). Tem-se, assim, um novo olhar sobre o poder, pois, como explica
Giddens:
O poder, para Foucault, era declaradamente avesso ao espectro que, tal
como aparecia na teoria marxista, assombrava e concomitantemente era
procurado – ou seja, uma expressão nociva da dominação de classe
capaz de ser transgredida pelo movimento progressista da história. O
poder, afirmava Foucault, não era inerentemente repressivo, não era
apenas a capacidade de dizer não. Se o poder fosse apenas isso,
perguntou Foucault, nós realmente obedeceríamos a ele de forma tão
consciente? O poder exercia sua força porque não atuava simplesmente
como um peso opressivo, um fardo a ser suportado. O poder era
realmente o meio pelo qual todas as coisas aconteciam, a produção das
coisas, do conhecimento, das formas de discurso e do prazer. (1998, p.
317)
Assim, também explica Senra:
(...) o poder é apresentado como uma estratégia essencialmente
criativa, possuindo uma positividade, cujos efeitos são atribuíveis a
manobras, a táticas, a técnicas. O poder não se situa em nenhum lugar
exclusivo ou privilegiado, sendo essencialmente difuso, ou seja, está
em todos os lugares, não possuindo uma centralidade global, é antes e
47
acima de tudo relacional, perpassando tanto os dominantes quando os
dominados. Por demais, o poder é exercido através de discursos que
produzem a verdade, de modo a legitimá-lo, onde as estatísticas têm
um papel argumentativo especialmente marcante, na medida em que se
oferecem como uma linguagem capaz de facilitar as relações humanas
(S
ENRA, 1998, p.15).
Como argumenta Senra, as estatísticas se encaixam bem nessa noção de poder,
pois exercem seu poder de forma sutil, sem uma imposição aberta. Isso significa dizer
que as estatísticas, mais que exercer um poder, o exercem de forma muito específica,
pois o fazem na ordem do simbólico, ou seja, elas exercem um poder à medida que
constroem uma concepção homogênea (uma verdade) sobre as coisas que enumeram e
anunciam, o que acaba tornando possível uma concordância entre as inteligências.
Para melhor compreender essa afirmação, um primeiro e fundamental exercício
é entender que as formas de classificação, que são essenciais à agregação estatística
desde Durkheim, deixam de ser entendidas como formas universais (transcendentais),
para se tornarem formas sociais, quer dizer, arbitrárias (relativas a um grupo em
particular) e socialmente determinadas (BOURDIEU, 2004, p. 8). Isso equivale a dizer
que, ao elaborar o social, a cada tempo, as estatísticas necessariamente são influenciadas
por um conjunto de fatores, não podendo jamais ser objetivas no sentido clássico. Nesse
sentido, é preciso entender que
(...) o campo das estatísticas, tal como qualquer campo do mundo
social, sendo definido por um conjunto de tensões e de disputas em
torno da conquista do monopólio da “fala legítima” – no caso, da “cifra
legítima” - consiste igualmente num espaço de busca e conquista de
poder. Mais propriamente, do poder específico de fazer crer e fazer ver
uma dada visão de mundo, a ser por todos compartilhada. Afinal, uma
vez que a codificação torna as coisas simples, claras e comunicáveis,
ela possibilita uma espécie de consenso controlado sobre o sentido:
tem-se certeza de dar o mesmo sentido às mesmas palavras
(M
ENDONÇA, 2000, p. 188).
Como se sabe, as categorias e classificações utilizadas para a elaboração das
estatísticas oficiais necessitam, por força da própria natureza do processo de agregação,
48
ser concepções pré-construídas
52
, pois, como se sabe, o estatístico não escolhe seus
índices. “A realidade lhe aparece então pré-moldada pelas categorias já existentes na
representação ou na prática individual, social e administrativa. Levado pelas exigências
da observação, o estatístico vai cristalizar, enrijecer e, finalmente, devolver à sociedade
uma versão conceituada de suas pré-noções” (BESSON, 1995, p. 52).
Contudo, sabe-se que, mudando as escolhas, as convenções, ou mesmo somente
os procedimentos (estatísticos e contábeis), modificam-se as condições de registro
estatístico. Daí a máxima de que as estatísticas não provêm da denotação, mas da
conotação, pois é o contexto, o contorno, que determina seu sentido. Afinal, trata-se de
um olhar que é inevitavelmente subjetivo, seletivo, parcial e contingente.
Depois de coletadas as informações, processa-se a classificação do
observado. E classificar significa, antes e acima de tudo, ter uma ordem dada, um
modelo conceitual capaz de explicar as relações ali expostas, transformando os
dados estatísticos em informação estatística. E essas teorias e modelos conceituais,
como se sabe, também não escapam ao arbitrário. Segundo Barreto:
são as definições – que relacionam à informação à produção de conhecimento
no indivíduo –, as que melhor explicam a natureza do fenômeno, em termos
finalistas, associando-se ao desenvolvimento e à liberdade do indivíduo, de
seu grupo de convivência e da sociedade como um todo (1994, p.3).
Deixando de ser uma medida de organização em si, a informação torna-se,
assim, um instrumento capaz de modificar a consciência do homem e de seu grupo.
E quando é adequadamente assimilada, a informação produz conhecimento,
modificando o estoque mental de informações do indivíduo. Assim, “de agente
mediador na produção de conhecimento, a informação qualifica-se, em forma e
substância, como estruturas significantes, com a competência de gerar conhecimento
para o indivíduo e seu grupo” (B
ARRETO, 1994, p.3).
52
Ao mesmo tempo, as dificuldades de codificar - que constituem o cotidiano dos cientistas sociais e
estatísticos - obrigam a refletir sobre esses “inclassificáveis” de nossas sociedades, esses seres
“bastardos” sob a ótica dominante. E descobre-se, assim, ao contrário, que o que se deixa codificar
facilmente é o que já foi objeto de uma codificação prévia, jurídica ou quase jurídica.
(MENDONÇA, 2000,
p. 188)
49
Tem-se, assim, três momentos muito bem definidos na produção estatística. Em
um primeiro, buscam-se nas práticas sociais, administrativas e jurídicas, as categorias
necessárias à agregação. Num segundo momento, dá-se a observação: observa-se parte
da realidade, aquela que naquele momento lhe parece mais importante ou aquela que se
é capaz de observar. Muitas vezes essa parte observada é tomada como o todo, naquilo
que se pode chamar de fetichismo
53
das estatísticas. Num terceiro momento, processa-se
a classificação do observado, tudo sob a luz de teorias, orientações a políticas públicas
etc.
Dito isso, não se pode esquecer que a codificação está intimamente ligada à
disciplina e à normalização das práticas. Cada categoria pressupõe um conjunto
particular de normalidade: o desempregado pressupõe uma norma de emprego; as
minorias pressupõem uma norma de maioria universalizada, embora não explicitada;
a divisão em classes pressupõe cortes, diferenças, status e, conseqüentemente,
alguma ordem de normalidade (POPKEWITZ e LINDBLAD, 2001). Essas categorias e
classificações, impostas pela codificação, são, com efeito, grandes fontes detentoras
de poder simbólico; são, como explica Bourdieu:
(...) enormes depósitos de pré-construções naturalizadas, portanto,
ignoradas como tal, que funcionam como instrumentos inconscientes
de construção. Poderia tomar o exemplo das taxionomias profissionais,
quer se trate de nomes de profissões em uso na vida quotidiana, quer se
53
Para Freud, o “fetichismo” residia no fato de, não se podendo apoderar do Outro como objeto de desejo
na sua totalidade singular de pessoa, o indivíduo somente se apoderava do descontínuo, tornando-se o
Outro, assim, um paradigma das diferentes partes de seu corpo (LAPLANCHE, J. e PONTALIS, D.
Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.189). Conquanto com finalidades
distintas, porém guardando uma idéia equivalente, MARX assim definia o “fetiche” – da mercadoria, no
caso: “(...) a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho, na qual ele se representa,
não têm que ver absolutamente nada com sua natureza física e com as relações materiais que daí se
originaram. Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui
assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos
de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem
dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no
mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana. Isso eu chamo o fetichismo que adere
aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como mercadorias, e que, por isso é inseparável da
produção de mercadorias. Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias provém, como a análise
precedente já demonstrou, do caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias. (...) os trabalhos
privados só atuam, de fato, como membros do trabalho social total por meio das relações que a troca
estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio dos mesmos, entre produtores. Por isso, aos últimos
aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como relações
diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas entre
pessoas e relações sociais entre as coisas” (MARX, K. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, livro
primeiro, v. I, t. 1, capítulo I, 1983, p. 71.)
50
trate da CSP [catégories socioprofessionnelles], do INSEE [Institut
National de Statistique et d’Edtudes Economiques], belo exemplo de
concptualização burocrática, de universal burocrático, como poderia
tomar, mais geralmente, o exemplo de todas as classificações (classe
etárias, jovens/velhos; classes sexuais, homens/mulheres, etc.que,
como se sabe, não escapam ao arbitrário) que os sociólogos empregam
sem nelas pensarem quanto baste, porque são categorias sociais do
entendimento que é comum a toda uma sociedade (...). (2004, p.39).
Antes de prosseguir, recorde-se o que foi dito sobre o fetichismo das
estatísticas. Disse-se que, muitas vezes, as estatísticas são tomadas como uma fotografia
da realidade, substituindo-se, assim, a parte pelo todo. Falou-se ainda que essa parte da
realidade, observada pelo olhar estatístico, é aquela que naquele momento lhe parece
mais importante (dimensão sócio-política) ou aquela que se é capaz de observar
(dimensão técnico-científica). O fetichismo das estatísticas nasce, justamente, da
confusão do índice com a realidade. Ações, políticas e discursos de verdade são
elaborados a partir dessa confusão. Como melhor explica Besson:
A retórica estatística está carregada dessas sinédoques, pelas quais a
parte substitui o todo. No discurso cotidiano, todo mundo sabe decifrar
as figuras de estilo correntes: se falo em aumentar o número de
“cabeças” do meu rebanho, não significa que irei colocar cabeças de
gado no pasto. E ninguém pensará que essa é minha intenção. Se peço a
“mão de uma moça, quero-a por inteiro. Em compensação, quando o
número de mortes nas estradas durante o fim-de-semana da Páscoa é
identificado com a insegurança nas estradas, a figura de estilo se torna
figura de pensamento e até mesmo figura de ação: se glorificará o fato
de ter melhorado a segurança nas estradas dado que o número de
mortes não aumentou! Da mesma forma, a alta dos índices de preços é
um figura da inflação e o aumento do PIB uma figura do crescimento
(B
ESSON, 1995, p. 41).
É preciso recordar também o que foi dito sobre a enumeração das coisas e
por conseguinte também das não-coisas. Disse-se que, a princípio, só se pode fazer
estatísticas sobre “coisas”, aquilo que pode ser medido, mensurado e que se tem por
exterior ao indivíduo. Mas normalmente demandam-se estatísticas sobre não-coisas, o
que torna imperativo fazer com que tantas e tais não-coisas, expressando leituras sócio-
políticas da realidade, sejam atentamente “coisificadas”, expressando leituras técnico-
científicas da realidade. Isso significa dizer que os indicadores que a agregação
estatística exibe têm natureza dupla: provêm ao mesmo tempo do empírico (observação)
e do normativo (objetivos visados) (B
ESSON, 1995, p. 38).
51
É exatamente no fetichismo das estatísticas e nesse esforço de “coisificação” que
se encontra, com efeito, o poder exercido pela disciplina, o poder simbólico das
estatísticas. Afinal, é esse o instante em que o mundo, antes confuso, agora sob a
influência da disciplina, da normatização das práticas, é reconstruído, dele surgindo as
estatísticas. A partir delas, decisões serão tomadas, categorias feitas e refeitas.
Indivíduos, antes confusos na dispersão do mundo, agora encontram, nas
individualizações construídas, seu lugar em uma dada hierarquia social.
Dito isso, percebe-se melhor o poder das estatísticas. Afinal, em semelhança
com o que Bourdieu definiu como característica daqueles que detêm o poder simbólico,
ao dizer o mundo, através de suas classificações e categorias, as estatísticas:
“(...) têm o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer crer, de
confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o
mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o
equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao
efeito especifico da mobilização” (B
OURDIEU, 2004, p.14).
O poder simbólico, como entende esse autor é:
um poder de construção da realidade que tente estabelecer uma ordem
gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo
social) supõe aquilo que Durkheim chama de conformismo lógico, quer
dizer, uma concepção homogênea do tempo, do número, da causa, o que
torna possível a concordância entre as inteligências. (B
OURDIEU, 2004, p.9)
Nesse sentido, como um primeiro exemplo, é interessante notar a influência da
estatística, não só no desenvolvimento como na própria construção da sociologia.
Afinal, como lembra Martin (2001, p. 31), ao participar da objetivação da sociedade,
contribuindo com a idéia de que a sociedade não se confunde com o Estado, a estatística
está, decididamente, associada à construção da sociologia. Segundo Giddens:
(...) desde que passou a ser elaborada, cientistas sociais consideravam
que elas ofereciam um material que poderia ser usado para demonstrar
graficamente as características da organização e mudança sociais. As
origens das pesquisas sociais empíricas nas ciências sociais estão
intimamente ligadas ao uso de estatísticas oficiais com um índice dos
processos de atividade social.(...) Mas elas não “correspondem”
apenas a um dado universo de objetos e eventos sociais, elas são
constitutivas disso. O poder administrativo gerado pelo Estado-
52
nação não poderia existir sem a base de informação que são os
meios de sua autoregulação reflexiva. (2001, p. 201)
Afinal, a estatística, tal qual a ciência social, está sempre exposta a receber, do
mundo social que ela estuda, os problemas que levanta a respeito dele: “cada
sociedade, em cada momento, elabora um corpo de problemas sociais tidos por
legítimos, dignos de serem discutidos, públicos, por vezes oficializados e, de certo
modo, garantidos pelo Estado(Bourdieu, op.cit, p. 35).
Em outras palavras, as ciências sociais, desde suas tenras origens, ao utilizarem
as estatísticas oficiais (suas classificações e os problemas que levantam), sem nelas
pesarem o bastante, acabaram se tornando um “aspecto constitutivo dessa enorme
expansão do monitoramento reflexivo da reprodução social, que é uma parte integral do
Estado” (Giddens, 2001, p. 202).
E, como adverte Giddens (op.cit, p.202): “embora seja possível manter-se fora
desse poder e sujeitá-lo à análise crítica, é preciso reconhecer que um dos aspectos do
Estado Moderno – e das organizações modernas em geral – é um estudo sistemático e
uma utilização de materiais relevantes para sua própria reprodução”.
Trata-se de uma armadilha difícil de ser desfeita, sobretudo para aqueles que
insistem em supervalorizar a dimensão técnico-científica das estatísticas, em detrimento
de sua dimensão sócio-política. Diante disso, fica claro que, para entender o poder das
estatísticas, é preciso, antes, contrapor a idéia de objetividade à de objetivação,
supervalorizando, assim, sua dimensão (sócio) política, pois, como explica Bourdieu:
(...) para se não ser objeto dos problemas que se tomam para objeto, é
preciso fazer a história social da emergência desses problemas, da sua
constituição progressiva, quer dizer, do trabalho coletivo -
freqüentemente realizado na concorrência e na luta - o qual foi
necessário para dar a conhecer e fazer reconhecer estes problemas
como problemas legítimos, confessáveis, publicáveis, públicos,
oficiais: podemos pensar nos problemas de família, do divórcio, da
delinqüência, da droga, do trabalho feminino, etc.Em todos os casos,
descobrir-se-á que o problema, aceite como evidente pelo positivismo
vulgar (que é a primeira tendência de qualquer investigador), foi
socialmente produzido, num trabalho coletivo de construção da
realidade social e por meio desse trabalho; e foi preciso que houvesse
reuniões, comissões, associações, ligas de defesa, movimentos,
manifestações, petições, requerimentos, deliberações, votos, tomadas
53
de posição, projetos, programas, resoluções, etc. Para aquilo que era e
poderia ter continuado a ser um problema privado, particular, singular,
se tornasse num problema social, num problema público que se pode
falar publicamente- pense-se no aborto, ou na homossexualidade- ou
mesmo num problema oficial, objeto de tomadas de posições oficiais, e
até mesmo de leis ou decretos (2004, p.37).
Nesse sentido, um exemplo interessante é a “percepção social” que se tem da
pobreza. Afinal, o que é ser pobre? Como se mensurar quantos pobres existem em um
determinado país?
Como lembra Castel, a pobreza tem sido uma presença constante na história do
homem, mas o seu significado tem-se modificado através dos tempos (CASTEL apud
SCHWARTZMAN, 1996, 15).
As diversas significações – produto de intenções conscientes – dadas à pobreza
estão vinculadas a fatores diversos: orientação de Estado, tipo de formação do Estado-
Nação; soberania; autonomia; e, principalmente, a luta político-ideológica que se trava a
cada momento.
A pobreza é, sem dúvida, um problema antigo. Contudo, só vai se tornar um
problema “social”, digno de ser estudado, discutido e combatido, em meados do século
XVII e início do XVIII, como esclarece Peter Gay:
(...) a época vitoriana não inventou a pobreza. Havia tempos
imemoriais que era essa a condição da grande maioria, tanto na Grã-
Bretanha como em outros lugares. De vez em quando, as vozes dos
descontentes, pedindo mais, perturbavam a paz; rebeliões por comida e,
depois, agitações políticas deixavam os ricos preocupados e levavam
alguns a ação. No final do século XVIII, os humanitaristas haviam
feito tentativas ocasionais de analisar o destino das ordens inferiores e
descobrir como melhora-lo. A Sociedade pela Melhoria das Condições
dos Pobres, fundada em 1796, anunciou que, “transformaria em ciência
as pesquisas sobre tudo o que diz respeito aos pobres e à promoção de
sua felicidade”. No ano seguinte, sir Frederick Morton Eden publicou
um estudo de três volumes sobre os pobres. Mas por muitos anos as
tentativas de entender e de aliviar os necessitados não passaram de
empreendimentos quixotescos. No século XIX, poucos entre os pobres
questionavam a suposição fundamental de que a massa da população
britânica não tinha escolha a não ser resignar-se a seu destino, tanto no
terreno econômico como no religioso (G
AY, 1995, p. 464).
54
A revolução industrial complicaria ainda mais a questão. Trazendo grande
parte da população rural às cidades, acabou por “estimular” as taxas de
crescimento populacional. Manchester, por exemplo, que em 1801 era uma cidade
de 70 mil habitantes, duplicou sua população nos trinta anos seguintes
(GAY, 1995,
p. 464). Essa grande aglomeração urbana, somada a uma distribuição desigual da
riqueza produzida, gerava um contingente cada vez maior de pessoas em situação
considerada de pobreza.
Nesse sentido, é preciso lembrar que identificar os pobres significa, em certa
medida, entender as causas da pobreza. Era esse o debate que já se travava desde aquela
época. A maior parte da discussão se concentrava em ter os pobres como vítimas ou
culpados de sua condição, como melhor Oliveira e Mendonça:
A identificação das causas da pobreza privilegia ora comportamentos
morais (os pobres como culpados) ora fatores socioeconômicos (os
pobres como vítimas). E demonstra, acima de tudo, que a representação
social da pobreza, tanto quanto a natureza e extensão das medidas que
para ela se dirigem são produto da luta político-ideológica que se trava
num determinado momento e da correlação de forças que a sustenta.
(O
LIVEIRA E MENDONÇA, 2001, p. 91).
O explorador social inglês Charles Booth (1840-1916) dedicou sua vida a
mensurar, entender e militar para a melhoria na condição de vida dos pobres. Tentava
comprovar, a partir de seus estudos, que os pobres eram, na verdade, vítimas daquelas
condições sociais impostas pelo capitalismo nascente. Através de suas pesquisas,
contrastava várias das pesquisas realizadas naquele período, como explica Gay:
Booth compôs sua vasta fotografia apenas com um punhado de
assistentes, num esquema de trabalho que teria esgotado qualquer um
que não fosse fanático pela verdade. Construiu seus procedimentos
básicos trabalhando a partir dos números e categorias do censo de
1881, adequadamente refinados com suas próprias classificações de
níveis de renda. Para completar os dados apresentados nos
questionários, ele e seus colaboradores lançaram mão das ricas
informações que os inspetores escolares locais haviam reunido em
entrevistas extensas, de estatísticas dos órgãos oficiais de assistência e
dos arquivos da polícia. (G
AY, 1995, p. 473)
55
Os desdobramentos da Revolução Industrial tornavam cada vez mais clara e
rígida a relação entre o desemprego e a pobreza. Afinal, a cada dia, aumentava o
número de pobres e tornava-se evidente que a condição de sobrevivência nas cidades
era o emprego
54
. Porém, com a Segunda Revolução Industrial, na metade do século
XIX, onde o que predomina é o livre contrato de trabalho (desprovido de quaisquer
mecanismos de proteção social), a relação pobreza/desemprego fica abalada, já que
parte dos trabalhadores passam também a encontrar-se em situação de pobreza.
Segundo Schwartzman:
Se você não trabalhasse, mas quisesse fazê-lo, você não era pobre, mas
desempregado. Flutuações econômicas criavam desemprego, e a crise
de 1929 produziu milhões de desempregados nos Estados Unidos e na
Europa. Diferente da pobreza, o desemprego era entendido como um
subproduto cíclico da economia moderna, e mecanismos deveriam ser
criados para reduzi-lo, ou compensar suas conseqüências. Todo mundo,
em princípio, deveria ter um emprego estável, e alguma ação era
necessário quando isso não acontecia. Políticas anti-cíclicas, de um
lado, e compensação pelo emprego, do outro, foram marcos do
capitalismo do Estado do Bem-Estar Social do pós-1929. O
desemprego tinha que ser medido através de estatísticas adequadas,
mas não deveria ser confundido com a pobreza. Estar desempregado
era um atributo de trabalhadores industriais, não de uma pessoa fora do
sistema produtivo – donas-de-casa, idosos, mendigos, o
lumpenproletariat” (1996, p. 18).
Durante o Welfare State, sobretudo nos países ricos, onde havia uma garantia de
trabalho e dos direitos sociais universalistas, a pobreza, como um problema social,
praticamente desaparece.
Contudo, as décadas de 1970 e 1980, mais uma vez, se familiarizam com a fome
endêmica, com a imagem clássica da criança exótica morrendo de inanição, vista após o
jantar em toda TV do ocidente (HOBSBAWM. 1995, p. 225). Assim, problemas como
pobreza e desigualdade voltam a fazer parte da agenda pública, nos países centrais e,
sobretudo, nos periféricos. Assumem agora nova forma, devido ao modelo de
globalização e de Estado, hoje hegemônico no capitalismo mundial. É claro que há
54
Não se pode perder de vista, contudo, que os primeiros estudos estatísticos sobre a pobreza estão
associados à Inglaterra do século XIX, enquanto a emergência das estatísticas de desemprego estão
associadas ao New Deal, quase um século mais tarde.
56
diferenças significativas entre os mais diversos países, no grau e aprofundamento dessas
questões. Contudo, como sugere Schwartzman:
A inclusão da temática da pobreza na agenda de organizações
internacionais tem levado a uma busca quase impossível por uma
definição “objetiva” de pobreza, que sirva de base para comparações
internacionais e medição de progresso através do tempo. Que dados
utilizar? A renda declarada pela população em uma pesquisa ou
recenseamento nacional é um dado obviamente inadequado, não apenas
devido a declarações falseadas para menos, mas também devido a
problemas incontornáveis de taxas de câmbio e dos diferentes pesos de
rendimentos não monetários em diferentes regiões e culturas. Outra
alternativa é medir as condições de nutrição e saúde da população, mas
a informação sistemática sobre essas questões é difícil de obter e não
existem definições consensuais de seu significado exceto em condições
extremas. Outra possibilidade é tentar definir uma cesta mínima de
produtos considerados essenciais à sobrevivência, e usar o acesso a
essa cesta como uma linha divisória. Hábitos de consumo diferentes,
diferente disponibilidade de produtos de primeira necessidade e, para
comparação internacionais, taxas de câmbio flutuantes, tornam essas
avaliações extremamente inconfiáveis e instáveis.(2001, p. 18)
Tem-se, assim, a busca por uma representação da pobreza que, em sintonia com
a ideologia neoliberal, passou a ser associada predominantemente à pobreza absoluta e à
insuficiência de renda do indivíduo para o atendimento de mínimos sociais necessários à
sobrevivência. Deslocou-se, dessa forma, da produção, pondo em seu lugar o “império
do consumidor” e seu respectivo potencial de compra (MENDONÇA E OLIVEIRA, 2001, p.
91). Dependendo da forma com que a pobreza é abordada: o número de pobres no
Brasil, por exemplo, pode variar de 8 a 64 milhões, para uma população de 157 milhões
(S
CHWARTZMAN, 2001, p.19).
Essas variações e instabilidades devem ser diminuídas ao máximo, para que as
instituições produtoras não caiam no descrédito e percam sua confiabilidade, o que será
tratado no Capítulo 2.
Por agora, basta notar, através do exemplo da pobreza, o olhar sempre contigente
e relativo das estatísticas e seu poder simbólico. Afinal, ao apresentar os agregados que
identificam e separam os pobres dos não-pobres, as estatísticas acabam sugerindo as
causas da pobreza, o que se pode chamar de “causalidade prática”. Prática, porque em
cima de uma materiabilidade constitui-se uma relação causal.
57
Essas significações criam identidades que circulam num campo de produção
e reprodução cultural. Essas identidades emergem no interior de relações específicas
de poder e são produto da “marcação”, tanto das regularidades quanto das
diferenças. Dizer e marcar o que é a normalidade, e daí o que é o desvio, tem, não
dúvidas, implicações, tanto no pólo da disciplina (pense-se o governo de si mesmo),
quanto no pólo da regulação (governo do Estado).
Contudo, não se pode perder de vista que essas significações - indispensáveis
à agregação estatística - são produzidas em espaços históricos e institucionais
específicos. Afinal, a produção de estatísticas tem-se constituído num aspecto
indispensável à governamentabilidade durante toda a evolução histórica da
sociedade disciplinar.
Dito isso, e revelados os pólos e a natureza do poder das estatísticas, pode-se
concluir que há uma íntima relação entre a evolução técnico/histórica do Estado
Capitalista e o processo de produção de estatísticas, incluindo-se, aí, as significações
dadas às classificações e categorias usadas, a cada tempo, para a agregação
estatística, o que será assunto do Capítulo 3 desta Dissertação.
58
CAPÍTULO 2
AS INSTITUIÇÕES ESTATÍSTICAS
59
A produção de informações permite, pois, resolver de modo prático, por
operações de seleção, extração, redução, a contradição entre a presença num
lugar e a ausência desse lugar. Impossível compreendê-las sem se interessar pelas
instituições que permitem o estabelecimento dessas relações de dominação, e sem
os veículos materiais que permitem o transporte e o carregamento.
(LATOUR, 1985, p. 24)
60
2.1. O contexto e as deliberações dos Congressos Internacionais de
Estatística.
Do deslumbrante Palácio de Cristal em Londres (1851) à
sublime Torre Eiffel em Paris (1889): entre a transparência do
vidro e a maleabilidade do ferro, desvela-se, muito mais do que
um ensaio de combinação dos materiais, a própria exhibitio
universal da civilização burguesa – didática em sua nova
taxionomia dos produtos do trabalho humano, magnífica em
seu mosaico ilusionista de curiosidades nacionais, insuperável
na construção de santuários destinados ao fetiche-mercadoria
(H
ARDMAN,1991, p.49).
No seio do liberalismo e sob a luz da ideologia articulada à imagem da “riqueza
das nações”, tem lugar, em Londres, no ano 1851, a 1ª Exposição Universal. Tratava-se
de um evento voltado para a exaltação da burguesia e de suas conquistas no plano
técnico-científico, bem como de sua capacidade industriosa. Encontravam-se ali
expostos, como afirma Hardman (1991, p.50), “o ideal obsessivo do saber enciclopédico
e o não menos conhecido europocentrismo, garbosamente fantasiado de cosmopolitismo
liberal e altruísta”.
Cada país apresentava, nas Exposições Universais, seu passado, presente e
potencialidades futuras. Para tanto, valiam-se de diversos recursos didáticos: edificavam
pavilhões temáticos variados, onde era possível, através da observação de maquinarias,
quadros etc., dimensionar o poder de cada nação e, também, sua posição em uma dada
hierarquia universal.
Dentre os recursos didáticos utilizados para representação de cada país,
destacou-se o uso de estatísticas para a elaboração de corografias
55
, quadros, gráficos e
cartogramas. E, como lembra Senra (2005), não raro, os países promotores faziam
55
Senra (2005, p.80), a título de ilustração, lembra da “corografia mandada fazer pelo Governo Imperial
para a Exposição Universal de 1889, em Paris, sob o títuloO Brasil”, por E. Levasseur, com a
colaboração, dentre outros, do Barão do Rio Branco, do Visconde de Ourém, de Eduardo Prado, pode ser
admirada e apreciada em recente reedição. E, mais, a corografia elaborada no contexto da recém criada
Diretoria Geral de Estatística, e enviada pelo Governo Imperial para a Exposição Universal de 1873, em
Viena, foi laureada, para gáudio da neófita atividade estatística; à época, Francisco Adolfo de Varnhagem
(1816-1876), então Barão e logo depois Visconde de Porto Seguro (que em 1872 estivera no Congresso
61
construir, dentre seus pavilhões temáticos, um pavilhão exclusivamente dedicado às
estatísticas
56
.
Como se pode observar na Tabela 1, era elevado o número de exibidores e de
visitantes presentes em cada uma dessas exposições, o que demonstra a importância
econômica e sócio-cultural dessas “festas da modernidade” (HARDMAN, 1991).
Tabela 1
Exposições Universais (1851- 1915)
Data Local Números de expositores Números de visitantes
(em milhões)
1851
1855
1862
1867
1873
1876
1878
1889
1893
1900
1904
1915
Londres
Paris
Londres
Paris
Viena
Filadélfia
Paris
Paris
Chicago
Paris
Saint-Louis
San Francisco
13937
20839
28653
43217
25760
60000
52835
61722
-----
83000
-----
30000
6,0
5,2
6,2
6,8
7,3
9,9
16,0
32,3
27,5
48,1
19,7
18,9
Fonte: Hardman (1991, p. 50).
Estatístico de São Petersburgo, como delegado do Governo Imperial do Brasil), era representante
brasileiro junto à Corte d’Áustria.” (2005, p.80)
56
Ainda a título de ilustração, Senra (2005, p.80) explica que: “em 1922, ao ensejo dos festejos do
centenário da independência, na exposição promovida no Rio de Janeiro, havia um pavilhão estatístico
centrado no censo de 1920, então, recém realizado e divulgado. Este prédio ainda existe, nele estando
instalado o Centro Cultural da Saúde, próximo ao Aeroporto Santos Dumont, em frente ao Museu
Histórico Nacional. Uma medalha, feita para a ocasião, era dada aos visitantes ilustres; de um lado, tinha
a efígie de Epitácio Pessoa, então Presidente da República, com os números da população em 1889 e em
1920, e o nome da Diretoria Geral de Estatística (então vinculada ao Ministério da Agricultura, Indústria
e Comércio); de outro lado, tem o quadro ‘O grito do Ipiranga’, de Pedro Américo, e mais as datas 1822 e
1922. O IBGE a tem em seu acervo histórico”.
62
Todavia, não se pode perder de vista, pela exaltação da idéia de universalidade,
que uma das características fundamentais das Exposições Universais era a celebração
das efemeridades nacionais e internacionais. Como sugere Hardman (1991), as
exposições universais fizeram renascer o nacionalismo
57
, que aparecia revigorado pela
expansão planetária dos impérios Europeus e sob novos contornos, já que, agora,
encontrava-se entrelaçado com a idéia de um convívio fraterno entre os povos que, nas
Exposições se apresentavam sob um olhar de “universal”. Nas palavras do autor:
Tornava-se visível e táctil o conceito de mercado mundial. Nutria-se, assim,
a fé iluminista na unidade humana. Desenhavam-se os contornos materiais,
as fantasias retóricas e os passes de mágica do ideário em torno do
espetáculo moderno de massas. A indústria cultural ainda engatinhava e já
prometia demais: no mínimo, auxiliaria no fomento de uma perspectiva
universalista da história, com centro gravitacional na Europa. Daí a vocação
abrangente daqueles certames, resumindo tradição e novidade, técnicas
rudimentares e experimentais, dentro do espírito enciclopédico de classificar
todas as coisas do mundo, espécie de utopia ansiosa em não perder nada de
vista (H
ARDMAN, 1991, p. 56-57).
Embora o esforço estivesse concentrado em uma “pacífica” e abrangente
comparação universal, as estatísticas apresentadas por cada país, quando vistas juntas,
mostravam-se muito diferentes e inadequadas a qualquer comparação. Fazia-se
necessário, então, promover encontros internacionais onde se poderia discutir um
programa estatístico comum a todos os países.
Na ânsia de responder positivamente a essas necessidades e sob a orientação de
Adolphe Quetelet (1796-1874), desde 1841, Presidente da Comissão Central de
Estatística da Bélgica, teve início em Bruxelas, no ano de 1853, uma série de nove
Congressos Internacionais de Estatística, como está apresentado na Tabela 2. A
observação das decisões emanadas desses congressos permite elucidar as condições e os
57
Como lembra Hardman (1991, p.60), as datas não eram inocentes, estavam ali para serem celebradas.
Assim é que a pioneira The Gret Exhibition of the Works of Industry of all Nations, realizada em Londres,
inaugurou-se significativamente no Primeiro de Maio de 1851, data que, antes de ser apropriada pelo
movimento operário internacional, fazia parte do antigo calendário festivo religioso, marcando o início do
ano de trabalho. Por outro lado, a Exposição da Filadélfia, em 1876, comemorou oficialmente a passagem
do centenário da independência norte-americana. Já, a de 1889, em Paris, os cem anos da Revolução
Francesa. Em 1893, na cidade de Chicago, a World’s Columbian Exposition assinalava o quarto século da
viagem de Cristóvão Colombo à América. Na de Paris de 1900, era o próprio fin de siècle objeto de
celebração. Em 1904, o centenário de compra da Lousiana à França napoleônica pelos EUA. Em 1915,
63
dilemas que foram preciso transpor e outros que ainda hoje perpassam a produção de
estatísticas oficiais.
Tabela 2
1º Bruxelas – 1853 [Plenária] 8º São Petersburgo – 1872 [Plenária]
2º Paris – 1855 [Plenária] Viena – 1873 [Com. Permanente]
3º Viena – 1857 [Plenária] Estocolmo – 1874 [Com. Permanente]
4º Londres – 1860 [Plenária] Budapeste – 1876 [Com. Permanente]
5º Berlim – 1863 [Plenária] 9º Budapeste – 1876 [Plenária]
6º Florença – 1867 [Plenária] Paris – 1878 [Com. Permanente]
7º Haia – 1869 [Plenária]
Fonte: Senra (2005, p. 81)
No primeiro congresso, realizado em Bruxelas em 1853, a questão que se
colocava com mais peso era a necessidade de formalizar a elaboração de estatísticas
oficias, sendo preciso, para isso, a criação de uma comissão ou agência (ainda não se
falava em instituições estatísticas) capaz de centralizar essa produção.
Nesse sentido, faz-se necessário lembrar que, nessa época e na maioria dos
países, as estatísticas eram produzidas de forma descentralizada, sendo produto,
sobretudo, dos dados (registros administrativos) coletados por diversos segmentos da
administração pública. Havia a alternativa dos Censos, mas estes eram tidos, por muitos,
como precários, insuficientes e caros, o que tornava os registros administrativos
matéria-prima obrigatória para a elaboração das estatísticas públicas [esse quadro só
viria mudar na segunda metade do século XX, quando se inicia a produção de registros
individuais (estatísticos) a partir das pesquisas amostrais].
finalmente, a abertura definitiva do canal do Panamá, sonho secular da burguesia mundial, servia de
leitmotiv para a Exposição de San Francisco.
64
A história dos Censos realizados na primeira metade do século XIX demonstra
bem as dificuldades, limitações e os desafios que os Congressos Internacionais de
Estatística teriam que enfrentar. Como explica Gay:
A ignorância cerceava a própria busca de informações. No começo do
século, os censos decenais, realizados por um número cada vez maior de
países, deram aos cientistas sociais a menos confiável das ajudas. Durante
décadas, os censos americanos, iniciados em 1800, e sua contrapartida
inglesa, de 1801, foram demasiadamente primitivos, demasiadamente
erráticos para servir qualquer dos propósitos anunciados. O Censo
americano de 1840, por exemplo, foi uma mixórdia e um escândalo. À parte
das sórdidas brigas pelo contrato de impressão, as disputas mesquinhas de
políticos e a paranóica resistência popular em responder as perguntas
intrometidas, os resultados distorcidos eram a conseqüência inevitável das
instruções vagas e da ingenuidade estatística. (...) Os estatísticos
contemporâneos sabiam, para seu desconforto, que os fatos podiam ser
manipulados ou mesmo fabricados. Não se sentiram ofendidos coma ácida
observação atribuída a Disraeli – “há três tipos de mentira: mentira, mentira
deslavada e estatística” (1995, p. 454).
Assim, tornavam-se objeto de discussão e deliberação nos congressos, não só os
métodos de pesquisa e as distorções nas classificações e nomenclaturas presentes em
cada país, como, também, a própria legitimidade das estatísticas. Tudo isso pode ser
visto nesses trechos da segunda seção: “Organisation de la statistique”, do capítulo
Partie théorique et statistique générale”, do volume preparado pelo economista
prussiano Ernest Engel (1821-1896):
O alvo pretendido ao se organizar o Congresso foi especialmente o de
promover a unificação das estatísticas oficiais que os governos publicam,
promovendo resultados comparáveis. Os trabalhos específicos [particuliers]
serão mais fáceis, quando se tiver estabelecido bases gerais que os associem,
e que se tenha adotado, em diferentes países, nomenclaturas e tabelas
uniformes: essa espécie de língua universal, simplificando os trabalhos, lhes
asseguraria mais importância e solidez.
Para dar unidade aos trabalhos oficiais, é preciso relacioná-los a um centro
comum; é preciso que os principais funcionários, encarregados da
apresentação [rédaction] dos diferentes segmentos da estatística geral,
possam se ver e se entender conjuntamente, aceitando as mesmas divisões,
adotando, após detido exame, os mesmos nomes e os mesmos números para
representar os mesmos objetos, não deixando nenhuma lacuna nas tabelas
gerais, e evitando, de outro lado, as duplicidades. O meio mais seguro de se
chegar à unidade desejada parece ser a criação, em cada Estado, de uma
comissão central de estatística, ou de uma instituição análoga, formada pelos
representantes das principais administrações públicas, aos quais se somariam
algumas pessoas que, por seus estudos e conhecimentos especiais, possam
iluminar a prática e resolver as dificuldades essencialmente científicas [qui
appartiennent essentiellement à la science]. [C
ONGRÈS, apud SENRA, 1998,
p. 42].
65
A criação dessa “organização centralizadora” - comissão e/ou agência -, capaz
de adotar padrões comparáveis às estatísticas produzidas nos mais diversos países,
perpassa, como se pode notar, a idéia de um programa estatístico comum, o que supõe,
dentre outras coisas, uma uniformidade na demanda.
Desejava-se a adoção de um programa estatístico comum, porque ele poderia
garantir, não só o acesso a resultados comparáveis, como, também, um nível maior de
estabilidade na produção, o que contribuiria muito para uma melhor assimilação e
“aceitação” dos resultados.
Falava-se, na verdade, em coordenação, já que essa “Instituição” responsável
pela elaboração das estatísticas tinha, para além dos Censos, realizados de forma muito
precária na época, que se valer dos registros administrativos produzidos por diversos
segmentos da administração pública.
Contudo, a expressão, ou mesmo a idéia de coordenação, só veio aparecer como
preocupação central no 6º Congresso Internacional de Estatística, realizado no ano de
1867, em Florença - os demais congressos realizados nesse intervalo apenas reiteraram
as declarações presentes no primeiro, ou trataram de questões que aqui não se fazem
relevantes.
A idéia de coordenação, como pode ser visto nos trechos citados a seguir, está
fortemente ligada a um entendimento da complexidade e diversidade das fontes
individuais de informação:
É preciso haver no topo do trabalho estatístico: a) Um Conselho de pessoas
que tenham autoridade na matéria, não somente por suas posições
hierárquicas, mas também por suas competências pessoais; um Conselho
que delibere sobre aspectos científicos e aspectos práticos, que possa
deliberar sobre o método de coleta dos fatos e sobre o plano a seguir por
parte dos pesquisadores, coordená-los e resumi-los e sobre a forma de lhes
dar publicação; b) Uma Diretoria ou una Agência [Bureau], qualquer que
seja o nome que se lhe dê, para onde se leve todos os trabalhos estatísticos e
que seja encarregado de sua apresentação [rédaction]. [...] Eis então qual
seria a organização da Estatística oficial...: 1) Uma Agência [Bureau] de
Estatística deveria ser organizada em cada Estado, para recolher, coordenar e
publicar as estatísticas sobre todos os segmentos da administração pública e
sobre todas as manifestações que interessam à vida física, econômica e
moral do país, tanto quanto à ciência. 2) A Agência [Bureau], do mesmo
66
modo que a Estatística em geral, deveria ser posta sob a alta dependência da
Presidência do Conselho de Ministros e formar uma Direção geral
autônoma, cujo chefe teria responsabilidade com direito a chancela [droit de
signature] sobre tudo que não se referisse ao orçamento, à execução de
novas estatísticas [de relevés statistiques nouveaux], as despesas e
publicações extraordinárias e as designações para funções fixas. 3) O
Conselho de Ministros seria chamado por seu Presidente a se pronunciar
sobre todas as questões relativas à competência do Diretor-Geral. [...] 10) O
cuidado de coletar, reunir, revisar, coordenar e publicar os fatos e os
trabalhos estatísticos, tanto quanto o papel de relator geral de todos os
trabalhos competiria ao Diretor-Geral. Nenhuma estatística seria publicada
por qualquer ministério ou agência [bureau] governamental: tudo deveria
partir da Direção-Geral de Estatística (C
ONGRÈS apud SENRA, 1998, p.43).
Anuncio-se, assim, a necessidade de um aprimoramento técnico-científico na
produção das estatísticas. Falou-se num conselho formado por pessoas de comprovada
competência em matéria estatística, aqueles que adiante seriam tomados por estatísticos,
ou seja, o cientista daquela produção.
Entretanto, como argumenta Senra (2005), são muitos os saberes e as disciplinas
necessárias para a elaboração das estatísticas (sociologia, demografia, geografia,
economia etc.), o que faz com que o profissional dessa produção seja, não um
estatístico, economista, sociólogo, antropólogo, demógrafo etc, mas alguém que, para
além dos conhecimentos específicos de cada uma dessas áreas, conheça a natureza e o
modo de produção das estatísticas: os chamados estaticistas.
Outro aspecto a ser notado é a subordinação de toda estrutura da administração
pública responsável pela produção de dados administrativos a uma agência central, esta,
sim, responsável pela elaboração das estatísticas. Essa deliberação pode ser interpretada
como o reconhecimento explícito da dimensão (sócio) política das estatísticas, na
medida em que propõe uma estrutura complexa de coordenação, cuidando de resguardar
plena independência no que tange à dimensão (técnico) científica das estatísticas, sem
deixar de reconhecer a natureza de seus registros primários (registros administrativos)
(SENRA, 2005).
Embora sejam claros os avanços, a dimensão (sócio) política das estatísticas
estava longe de ser compreendida. Naquela época, muitos advogavam as idéias de
Bacon e as estatísticas ainda eram vistas como o espelho ou retrato da realidade.
67
Foi no 7º Congresso Internacional de Estatística, realizado em La Haye, no ano
de 1869, que apareceu, pela primeira vez, a idéia das estatísticas como uma constatação
dos fatos. Os outros dois últimos Congressos Internacionais de Estatística, realizados
em Saint-Petersbourg (1872) e em Budapeste (1876), apenas reiteraram as declarações
anteriores.
O Congresso, considerando que para a constatação dos fatos, para a exatidão
e a perfeição das informações [renseignements] estatísticas, o trabalho dos
funcionários, dos administradores provinciais e comunais é da mais alta
importância, então, importa, sobretudo, aos governantes assegurar-se da
capacidade e do zelo de seus funcionários, e de prover os meios de
estabelecer um elo direto e contínuo entre esses empregados e a agência
[bureau] central ou a administração central de estatística, de modo que é
essencial que eles recebam prontamente as instruções e as tabelas ou
modelos em todas as matérias que concernem às estatísticas (C
ONGRÈS apud
SENRA, 1998, p. 44).
A idéia de “constatação dos fatos” está diretamente relacionada ao entendimento
da complexidade do processo de produção estatística. Afinal, como foi dito no Capítulo
1, os fatos que a agregação estatística exibe não se encontram em “seixos de verdade”,
sendo preciso apenas colhê-los. Ficava, assim, cada vez mais evidente a necessidade do
aprimoramento das técnicas e métodos de pesquisa, bem como a qualificação técnico-
profissional daqueles funcionários responsáveis pela produção estatística.
Os congressos internacionais de estatística, ao revelarem as dificuldades e
potencialidades do saber estatístico, acabaram por revelar também a existência da
dimensão (sócio) política das estatísticas, que, par a par com sua dimensão (técnico)
científica, definem o cotidiano das instituições estatísticas.
Aos poucos, os estaticistas da época passaram a perceber que a elaboração das
estatísticas depende, e muito, de teorias e que estas, por sua vez, poderiam ser
comprovadas, rejeitadas ou mesmo refeitas a partir das descobertas estatísticas.
Um bom exemplo disso pode ser atribuído às descobertas de Adolphe Quetelet.
Quetelet era matemático de formação e alcançou, primeiro, proeminência como físico e
astrônomo e obteve fama internacional com sua física social. Dentre suas descobertas,
68
destaca-se a construção de uma entidade estatística artificial, o homem médio
58
. Como
explica GAY (1995, p.460):
Quetelet era determinista. Numa avalanche de artigos e monografias fáceis
de ler, ele apresenta suas descobertas estatísticas como demonstração de que
decisões pessoais aparentemente idiossincráticas estavam sujeitas a leis
gerais, leis que o estatístico poderia descobrir. Décadas antes de Durkheim,
Quetelet mergulhou a bibliografia na sociologia. Depois que o físico social
tivesse reunido suficientes informações sólidas, seria possível mostrar a
probabilidade de uma “escolha” individual entre abraçar uma vida de crimes
ou cometer suicídio, entre se viciar em bebidas ou permanecer abstêmio.
Mas esse determinismo, protestou Quetelet um pouco na defensiva, não o
tornava fatalista. O tipo de conhecimento coletivo que ele desejava propagar
“amplia, ao invés de reduzir, a esfera de liberdade da alma humana”. (...)
(1995, p. 461)
Adolphe Quetelet, teórico, animador e organizador dos congressos, morreu no
ano 1874, dois anos antes do último Congresso, realizado em Budapeste. “Sem sua
alma, não por acaso, os Congressos de Estatística se esgotam (sua comissão permanente
ainda vive por mais dois anos, mas tamm sucumbe ao desânimo)” (S
ENRA, 2005, p.
86).
Houve, não há dúvidas, avanços importantes no que tange ao entendimento das
estatísticas e, é claro, também em relação à sua produção. Os Congressos contribuíram
de forma muito significativa no que diz respeito à dimensão (técnico) científica das
estatísticas. Contudo, o entendimento da dimensão (sócio) política das estatísticas
sucumbiu ao vazio. Ademais, sabe-se que muito pouco do que foi discutido e deliberado
nos congressos tornou-se “verdade” nas agências nacionais. Como explica Senra:
O fato é que os Congressos de Estatística nunca conseguiram equacionar a
polêmica controvérsia da representação. A representação aos congressos
deveria ser pública e oficial, era essa a intenção, justo a fonte da polêmica.
Assim, em que medida os participantes efetivamente representavam seus
58
O grande “achado” do argumento unificador do discurso probabilista e das observações estatísticas
deve-se a Quetelet, cuja construção trouxe em seu bojo, de um lado, o aspecto aleatório e imprevisível
dos comportamentos individuais e, de outro, a regularidade e a previsibilidade da “soma” estatística
desses mesmos atos individuais, através da noção de “homem médio” (M
ENDONÇA, 2000, p. 184).
Lambert Adolfhe Jaques Quetelet (1796-1874) também é considerado o pai da antropometria científica,
por ter aplicado, em 1841, métodos estatísticos nos estudos dos seres humanos, adotando a análise
científica, mostrou a aplicabilidade da Teoria da Curva Normal de Gauss para estudar fenômenos
biológicos, tornando possível, então, a distribuição das medidas em forma de sino, e, assim, estudar-se as
medidas antropométricas. Em 1871, a partir de seus achados, ele criou o que conhecemos hoje por IMC
(Índice de Massa Corporal) (PETROSKI, 1999; ROEBUCK, 1975).
69
países?, em que medida poderiam deliberar e assumir inequívocos
compromissos?, em que medida, ao retornarem, com as pastas recheadas de
resoluções, conseguiam implementá-las? Em medida nenhuma, sem meias
palavras, ou seja, as representações, embora oficiais, eram frágeis,
ocasionais, burocráticas, não raro ignorando o cotidiano da elaboração
estatística, donde a reduzida aplicação das resoluções. Ademais de serem as
resoluções bastante genéricas, até para poder-se alcançar consenso, o que
dificultava as aplicações práticas. Para agravar a situação, os governos
nacionais tremiam diante da possível existência de estatísticas comparáveis
internacionalmente (marcando suas fraquezas relativas).
(2005, p. 86)
Senra (2005, p. 86) explica ainda que, no ano de 1885, cientistas de nomeada
reputação, muitos egressos dos congressos, reuniram-se em Paris para festejar o 25º
aniversário da Société Statistique e, pouco depois, em Londres, para festejar o 50º
aniversário da Royal Statistical Society. Dessa reunião londrina surgiu o International
Statistical Institute, que ainda existe até hoje.
O International Statistical Institute guarda diferenças significativas quando
comparado aos congressos internacionais de estatística. Enquanto os congressos tiveram
que conviver com a “polêmica” da representação (o que lhes trouxe muitas
dificuldades), o International Statistical Institute já nasceu como uma instituição
independente e autônoma. Isso significa dizer que sua representação era individual e
livre de compromissos com o fazer de cada país, podendo se dedicar exclusivamente ao
saber-fazer (métodos estatísticos), tendo, assim, dado uma grande contribuição ao
avanço da ciência estatística.
Ao contrário dos congressos, o novo Instituto dedicou pouca atenção ao
cotidiano processual da elaboração das estatísticas. Criou, assim, um enorme vazio em
relação à dimensão (sócio) política das estatística, o que ainda hoje ronda as discussões
internacionais a cerca das instituições produtoras de Estatística.
O surgimento dos institutos nacionais de estatística não tardou a acontecer, mas
esses ainda padeceram, por muito tempo, do desafio de ter que se valer de registros
administrativos para a elaboração das estatísticas. Desafio pouco nobre, já que os
registros encontravam-se em pilhas e mais pilhas de documentos oriundos de diversos
segmentos da administração. Era, como é fácil imaginar, tudo muito lento e trabalhoso,
70
já que não podiam contar com as facilidades hoje oferecidas pelos meios eletrônicos e
informacionais.
Muitas vezes, os próprios órgãos detentores dos registros administrativos
encarregavam-se de produzir os agregados estatísticos, o que liberava as instituições
estatísticas de uma onerosa tarefa. Contudo, logo percebem que “(...) não basta haver
estatísticas, é preciso que elas falem entre si, tema a tema, no tempo e no espaço, e para
isso deve haver um centro de referência, donde volta-se a perceber a importância das
instituições estatísticas
59
, em que pese, eventualmente, deterem um frágil saber-fazer”
(SENRA, 2005, p.87).
Tudo isso mudou radicalmente na segunda metade do século XX, quando as
instituições estatísticas se tornaram, efetivamente, centros de cálculo. Passou-se a fazer
pesquisa no amparo das ciências, superando-se a necessidade, quase que a obrigação, de
fazer estatística a partir dos registros administrativos, habilitando-se a criar, elas
próprias, a partir de procedimentos e métodos específicos, os registros individuais,
melhor dizendo, os registros estatísticos. Estatísticos, porque não servem a outra coisa, a
não ser à elaboração de estatísticas. Como explica Senra:
Pela primeira vez, conseguem elaborar registros individuais, não mais
apenas de tempos em tempos, quando da feitura dos censos, mas
continuamente, com regularidade. Isso se deu através das técnicas amostrais,
aprimoradas e simplificadas, assimiláveis ao cotidiano das instituições
estatísticas. Liberam-se das amarras dos registros administrativos, bem
assim, do primado dos censos, que, contudo, seguem sendo feitos; enfim,
ganham liberdade para conformarem e fortalecerem as estatísticas nacionais
(sob olhar nacional). O planejamento e a contabilidade nacionais completam
as mudanças, e as instituições estatísticas se consolidam; vivem sua época de
ouro (2005, p. 88).
Como centros de cálculo, as Instituições Estatísticas evoluíram muito - como
será visto no item 2.2 deste Capítulo. Com novos procedimentos e técnicas, multiplicou-
se sua capacidade de dizer realidades. É esse o contexto em que a legitimidade do saber-
fazer dos institutos se consolidou, juntamente com a busca descontrolada pela apreensão
de todos os “fatos”.
59
Percebe-se a necessidade de coordenação, de parceria, de cooperação. O Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística - IBGE foi criado em 1936, com esse espírito de coordenação (S
ENRA, 2005)
71
Nunca, como a partir da segunda metade do século XX, as estatísticas foram tão
importantes para a governamentabilidade: participando de forma intensiva para a
elaboração de políticas públicas; controle da economia, da população etc. Fazendo, ou
sustentando discursos de verdade, as estatísticas, amparadas pela razão científica,
passaram, a partir daí, a se inserir definitivamente num campo de produção e
reprodução cultural. Contudo, esse é um campo de análise que tem escapado aos
estaticistas, desde os congressos internacionais de estatística.
Hoje, organismos internacionais, tais como a ONU (Organização das Nações
Unidas), Instituto Internacional de Estatística, o Statistical Office, o Eurostat (Agência
Estatística da União Européia), bem como os organismos temáticos, como a OIT
(Organização Internacional do Trabalho), a OMS (Organização Mundial da Saúde), a
FAO (Organização para a Alimentação e a Agricultura), o FMI (Fundo Monetário
Nacional) etc., contribuem muito com avanços técnicos metodológicos necessários às
instituições estatísticas, cooperando, assim, para a melhoria no que tange à dimensão
(técnico) científica das estatísticas. Contudo, esses organismos e instituições pouco têm
contribuído no que se refere ao entendimento dos aspectos relacionados à dimensão
(sócio) política das estatísticas, de que são cúmplices.
Enfim, embora sejam evidentes e significativos os avanços, é importante
reconhecer que eles não foram iguais nas duas dimensões. Ao contrário, enquanto a
dimensão (técnico) científica foi o tempo todo objeto de estudo, pesquisa, debates, a
dimensão (sócio) política tem vivido o vazio da indiferença. Esse vazio tem colaborado
para um entendimento equivocado das estatísticas. Exalta-se a objetividade e ofusca-se
o entendimento das estatísticas como construções, guardando limitações e exercendo
um poder muito específico sobre a interpretação que se tem da realidade.
72
2.2 - As Instituições Estatísticas como Centros de Cálculo
(...) se os cientistas olhassem para a Terra, para as economias, para
os órgãos ou as estrelas, não veriam absolutamente nada. Essa
“evidência”, se assim podemos chamá-la, é muitas vezes utilizada
para criticar o empirismo e para provar que os pesquisadores vêem
com os olhos do espírito (...) O espírito do sábio jamais deixa de
estar presente em seus olhos e em suas mãos. Mas o que ele vê de
fato muda. Ele não olha as estrelas, mas a imagem em cores
artificiais que o computador recompõe a partir de uma imagem
ótica; não vê as economias, mas as estatísticas do INSEE (...)
(L
ATOUR, 1985, p.17)
Uma das preocupações da sociologia da ciência e da ciência da informação é
entender os mecanismos e a lógica de como se processa e desenvolve o conhecimento.
A princípio, o conhecimento pode ser pensado de forma isolada: uma lei da biologia, da
física, química, sociologia etc. Mas sabe-se que não se produz conhecimento sem aquilo
que o filósofo francês Bruno Latour (1985) chama de “ciclos de acumulação e
capitalização”, onde toda informação é acumulada, revista, refeita etc., gerando mais e
mais conhecimento.
Esses ciclos de acumulação e capitalização ocorrem em locais específicos, onde
é possível, graças à própria natureza do conhecimento ali acumulado, conservá-los,
acelerá-los, deles tirando o máximo possível de proveito. Esses locais são o que Latour
chama de Centros de Cálculo.
Não se trata de uma idéia de fácil apreensão. Para que se possa entender o que de
fato é um centro de cálculo, é preciso, antes, compreender alguns conceitos e idéias
correlatas, a saber: a natureza do conhecimento, a relação centro versus periferia, os
ciclos de acumulação e as redes de saber.
Um primeiro e essencial exercício, nesse sentido, é combater a idéia da “grande
divisão”. Para Latour, é necessário entender que as divisões como as que separam, por
exemplo, a razão e a emoção, o saber e o saber-fazer, a ciência e as demais práticas
sociais, o centro e a periferia, etc., são, todas elas, fronteiras artificiais, elaboradas
idealmente. Segundo o autor, a identificação dessas diferenças encontra-se, não na
73
origem do conhecimento - no mundo real, sendo causa das redes e ciclos de
acumulação, mas, sim, imbricadas neles, como efeito dessas redes e ciclos.
Segundo Latour, as redes de saber e os ciclos de acumulação só podem existir
com base no que ele chama de “mobilização do mundo”. Nas palavras dele: “[...] é
preciso poder transportar qualquer estado do mundo para certos lugares [...]; todos
precisam ser reunidos em algum lugar e serem encaminhados para esse recenseamento
universal [...]” (LATOUR, 1985, p.21).
A mobilização do mundo consiste exatamente na transformação da realidade,
deveras complexa e distante, em inscrições – informações - móveis e estáveis, naquilo
que Latour denominou móveis-imutáveis. Pode-se pensar, como exemplo, no que foi
dito no primeiro Capítulo desta Dissertação sobre a quantificação e sobre o poder dos
números de dizer realidades.
Daí, a relação Centro versus Periferia. No Centro, negociam-se o que se deve
retirar de outro lugar (que se torna periferia), a fim de mantê-lo sob sua vista e de longe
poder controlá-lo. Contudo, não se pode esquecer que a inscrição retirada da periferia
não é a realidade, mas, sim, uma imagem que a nomeia, revelando-a et pour cause,
permitindo pensá-la e dizê-la. Nesse sentido, como lembra Latour, é necessário entender
que:
“o controle intelectual, o domínio erudito, não se exerce diretamente sobre
os fenômenos –galáxias, vírus, economia, paisagens- mas sim sobre as
inscrições que lhes servem de veículo, sob a condição de circular
continuamente, e nos dois sentidos, através de redes de transformações –
laboratórios, instrumentos, expedições coleções.” (1985, p.32).
No centro de cálculo, acumulam-se cada vez mais e mais inscrições
(informações). Essas inscrições inserem-se num processo de produção de conhecimento.
Elas falam entre si, são comparadas, embaralhadas e refeitas. Delas surgem novas
demandas e, daí, novas inscrições, num ciclo de acumulação e capitalização
potencialmente infinito. Como explica o mesmo autor:
A partir do momento em que uma inscrição aproveita as vantagens do
inscrito, do calculado, do plano, do desdobrável, do acumulável, do que se
pode examinar com o olhar, ela se torna comensurável com todas as outras,
74
vindas de domínios da realidade até então completamente estranhos. A perda
considerável de cada inscrição isolada, em relação ao que ela representa, se
paga ao cêntuplo com a mais-valia de informações que lhe proporciona essa
compatibilidade com todas as outras inscrições (Latour, 1985, p.29).
A materialidade, melhor dizendo, a inteligibilidade dos móveis-imutáveis só
pode existir dentro da rede de saber que ele cria. Assim, a circulação de conhecimento
se dá nos dois sentidos. Afinal, esse conhecimento, que parte de um olhar sobre o
mundo, também age sobre o mundo, circulando em redes e instituições que estão
ligadas a situações práticas.
Assim, para se compreender o que é um centro de cálculo, torna-se necessário
“(...) apreender o conjunto da rede de transformações que liga cada inscrição ao mundo,
e que liga em seguida cada inscrição a todas as que se tornaram comensuráveis a ela
seja pela gravura, o desenho, o cálculo ou, mais recentemente, pela digitalização”
(LATOUR, 1985, p.34).
As estatísticas são um excelente exemplo de móveis-imutáveis. Como
inscrições, são capazes de dizer várias e complexas realidades. Num primeiro momento,
isso era muito precário, dada a natureza dos registros administrativos. Depois, com o
advento das pesquisas amostrais, todo o trabalho ficou mais fácil e os ciclos de
acumulação e capitalização, bem como as redes de saber, se ampliaram.
Mais e mais estatísticas vão sendo elaboradas. Campos antes impensáveis da
realidade vão sendo revelados, sempre reduzindo e classificando, operando cortes
nítidos, classes claras, na busca de mobilidade e estabilidade. O que torna as estatísticas
importantes, ou melhor, imprescindíveis, não só aos governos, mas também aos
governados. Como exemplifica Latour:
A dificuldade da tarefa de dominar a Terra ou o céu quase se equipara à de
dominar a situação econômica de um país. Não existe telescópio que a
mostre, não há coleção para ser feita, expedição para colocá-la no mapa.
Também no caso da economia, a história de uma ciência é a história dos
meios inteligentes usados para transformar tudo o que se faz, se vende e se
compra em algo que possa ser mobilizado, reunido, arquivado, codificado,
recalculado e mostrado. Esse meio consiste em fazer pesquisa, espalhar
pesquisadores pelo país, todos com o mesmo questionário predeterminado
para ser preenchido, fazendo a todos os empresários as mesmas perguntas
sobre suas empresas, suas perdas e ganhos, suas previsões sobre a futura
saúde e economia. A seguir, reunidas todas as respostas, podem ser
75
preenchidas outras tabelas que resumem, organizam, simplificam e
classificam as empresas de uma nação. Alguém que olhe para os gráficos
finais estará, de algum modo, contemplando a situação econômica.
Evidentemente, (...) surgirão controvérsias sobre a precisão desses gráficos e
sobre quem deve ser considerado o porta-voz da economia. Mas como
também sabemos, a controvérsia será realimentada com outros gráficos,
acelerando o ciclo de acumulação. Os agentes alfandegários têm estatísticas
que poderão ser acrescentadas aos questionários; agentes fiscais, sindicatos,
geógrafos, jornalistas, todos produzem enorme quantidade de registros,
pesquisas de opinião e gráficos. Aqueles que ficam nas agências de
estatísticas podem combinar, reorganizar, sobrepor e recalcular esses
números, que vão dar num “produto nacional bruto” ou numa “balança de
pagamentos”, exatamente como outros, em agências diferentes, vão dar em
“ilha Sacalina”, “taxionomia de mamíferos”, “jazidas petrolíferas” ou “novo
sistema planetário” (1989, p.369).
É interessante perceber que a estabilidade e a mobilidade da informação
estatística estão relacionadas, sobretudo, com a sua dimensão (técnico) científica.
Porém, como “construções” da realidade, as estatísticas estão sempre sujeitas a críticas e
controvérsias.
As críticas e controvérsias que possam vir a existir também fazem parte das
redes de saber que compõem o processo de produção de estatística e, assim, acabam, de
alguma forma, contribuindo para a aceleração dos ciclos de acumulação e capitalização.
Os centros de cálculo estatístico têm ampliado, nas últimas décadas, sua
capacidade de cada vez mais acumular e controlar as inscrições (informação estatística).
Esse aprimoramento técnico (científico) tem agregado novas possibilidades de
interpretar e dizer realidades. Como exemplifica Latour:
O ideal seria reter o máximo possível de elementos e ainda ser capaz de
controlá-los. A estatística é um bom exemplo de instrumento que,
simultaneamente, resolve os dois problemas. Por exemplo, se apresento ao
diretor do censo o aumento médio da população do lugar, ele ficará
interessado, mas também decepcionado, porque nesse processo terá perdido
a dispersão (a mesma média poderia ter sido obtida por umas poucas
famílias com oito filhos ou por grande quantidade de famílias com dois
filhos e meio). A simplificação terá sido tal que o diretor só disporá de uma
versão empobrecida do censo. Se for inventado um novo cálculo que,
mesmo passando pelas várias simplificações, mantenha tanto a média como
a dispersão dos dados, então parte do problema estará resolvida. A invenção
da variância é um desses dispositivos que continuam resolvendo os
importantes problemas das inscrições: mobilidade, permutabilidade e
fidedignidade. O mesmo se diga da invenção da amostragem. O que é a
amostra mínima que permite representar o maior número de características?
A estatística, como indicam o nome e a história, é a ciência por excelência
dos porta-vozes e dos estadistas
(2000, p. 385).
76
Como centros de cálculo, agora mais poderosos, pouca atenção os institutos
nacionais de estatísticas têm dedicado à sua dimensão sócio-política. De forma inversa,
como nunca, as estatísticas foram tão importantes na construção de uma imagem da
realidade, abrangendo, não mais apenas a perspectiva da população, como também a
economia, o meio ambiente, o social etc.
Entretanto, nos dias de hoje, embora sejam poucos os investimentos nesse
debate, a “mágica das estatísticas”, enquanto tecnologia de governo, não ocorre mais
sem hesitações e reflexividade. Há nas contribuições das estatísticas para a política e a
ciência modernas um reconhecimento de que os números não são simples espelhos da
realidade, mas refletem pressupostos e teorias sobre a natureza da sociedade.
Nas democracias, cada vez mais as pessoas percebem que as estatísticas
intervêm nos processos de governo, moldando a maneira de ‘ver’ as possibilidades de
ação, de inovação e mesmo a ‘visão’ que se tem do mundo.
Assim, muitas vezes juntas ou em contradição, a dimensão sócio (política) e a
dimensão (técnico) científica, constroem as fontes de legitimidade, confiabilidade e
controvérsia das estatísticas públicas. A este tema se dirigirá o tópico a seguir.
77
2.3 – Legitimidade, credibilidade e controvérsias em estatísticas
públicas.
A partir dos congressos internacionais de estatísticas, do surgimento e
fortalecimento dos organismos internacionais, da ampliação da produção e uso de
estatísticas pelos governos (na lógica da governamentabilidade) e do alargamento da
participação da sociedade junto às estruturas do Estado
60
(com a democracia liberal), a
legitimidade e credibilidade das estatísticas ficaram, cada vez mais, sujeitas a análises e,
a partir daí, a controvérsias.
Como se viu nas discussões e deliberações dos congressos internacionais de
estatística, havia uma relação direta entre a criação de um programa estatístico comum
(com classificações e codificações homogêneas) e a conquista da legitimidade e
credibilidade das estatísticas. Os estaticistas da época acreditavam que um consenso
entre os diversos países poderia creditar, às estatísticas o status e a credibilidade que
almejavam.
Na verdade, apostavam que o aperfeiçoamento das técnicas e métodos de
pesquisa pudesse levar à padronização da produção estatística, tendo como
conseqüência uma maior estabilidade e consistência dos dados. Isto, em partes, é
verdade e pode ser comprovado pela história da produção de estatísticas econômicas.
Contudo, eles desconheciam as estatísticas como construções e negligenciaram sua
dimensão (sócio) política, o que, por certo, atravancou o desenvolvimento de uma
concepção mais abrangente das estatísticas.
60
Antes disso, dentro da lógica do absolutismo, se a legitimidade e credibilidade das estatísticas não
pudessem ser asseguradas pela validade dos métodos e procedimentos contábeis, estas poderiam ser
garantidas através do poder do Estado. Como sugere William Petty, em seu prefácio à Aritmética Política:
(...) as observações ou posições expressas em número, peso e medida, sobre as quais apoio o discurso que
se segue, ou são verdadeiras, ou não aparentemente falsas, e se não forem verdadeiras de maneira certa e
evidente poderão sê-lo pelo poder soberano, Nam id certum est quod certum reddi potest [Pois é certo
aquilo que se pode converter em certo], e se forem falsas, não o serão a tal ponto que se destrua a
argumentação para a qual são invocadas; na pior das hipóteses são suficientes como suposições para
indicar a direção daquele conhecimento que almejo. (...) [P
ETTY, 1983: 111. Grifo no original].
78
Nesse tópico, será visto, a partir da análise de literatura especializada, quais são,
na atualidade, as fontes de legitimidade e credibilidade das estatísticas públicas e,
também, quais as controvérsias que as circundam.
A padronização da produção de estatísticas, como foi visto, está ligada à
discussão em torno da legitimidade e credibilidade das estatísticas desde os congressos
internacionais de estatística. Mas, como mostra Simon Schwartzman, ainda hoje, a
padronização representa um dos maiores desafios das instituições estatísticas:
(...) Instituições estatísticas internacionais, tais como a comissão de
Estatística das Nações Unidas, Eurostat e outros órgãos regionais, dedicam a
maior parte de seus esforços à busca de padrões para unificar e tornar
compatíveis os dados produzidos por diferentes países. As agências
estatísticas nacionais querem que seus dados sejam aceitos dentro de seus
próprios países e pela comunidade internacional, e reagem sempre que os
números ou indicadores discordantes são apresentados por outras
instituições nacionais ou organizações internacionais. Os jornais reclamam e
falam de “confusão” sempre que diferentes números aparecem. Os governos,
naturalmente, não ficam satisfeitos quando os números que utilizam para
estabelecer suas metas e avaliar seus resultados são confrontados com
informação divergente. A padronização conceptual e empírica é sempre um
processo muito complicado, caro e incerto. A ironia disso é que, no final das
contas, todas as partes envolvidas estão comprometidas com a noção de que
eles estão falando sobre a mesma “realidade” que já estava lá desde o
começo, fazendo com que fique muito difícil de explicar porque então custa
tanto chegar até ela (S
CHWARTZMAN, 1996, p. 3)
Para esse autor, seria de se esperar dessa confluência de interesses que as
estatísticas públicas fossem naturalmente evoluir na direção de uma unificação em
termos de padrões bem estabelecidos, deixando pouco espaço para controvérsias e
disputas. Contudo, como foi dito no Capítulo 1, as estatísticas sustentam ou representam
discursos de verdade, discursos estes que servem de apoio à tomada de decisões e que
influenciam, e muito, a forma com que as pessoas se vêem e vêem o mundo.
Assim entendidas (observando-se sua dimensão sócio-política), não é de se
estranhar que haja tanta resistência à padronização das estatísticas. Afinal, essa
padronização pressupõe, dentre outras coisas, uma uniformidade na demanda, o que
significa dizer que essa padronização sugere uma uniformidade de interesses em torno
da informação estatística.
79
Ora, sendo a agenda de órgãos públicos de estatística estabelecida a partir da
combinação de demandas de governo, requisições sociais, conceitos desenvolvidos por
economistas, demógrafos, sociólogos etc., é razoável esperar que haja conflitos em
torno do que será pesquisado, qual metodologia e conceitos a serem utilizados etc. Esses
conflitos tornam-se mais evidentes na medida em que as estatísticas formam uma
determinação importante da política social como, por exemplo, estabelecer para onde o
dinheiro vai e, também, os limites das categorias para definir os problemas políticos e
organizar “fatos” que permitam chegar a soluções.
Nesse sentido, Schwartzman aponta um elenco de razões possíveis para se
resistir a padronização:
Na sua forma simples, a questão envolvida é a de quem irá obter os recursos
ou os contratos para realizar o trabalho. Se os números produzidos por uma
Instituição são adotados por todos, essa instituição irá conseguir os recursos
e o apoio para continuar seu trabalho, enquanto outras irão se eclipsar. Mas
as conseqüências podem ser muito mais extensas, uma vez que, por
exemplo, diferentes estimativas de distribuição de renda poderiam levar as
diferentes políticas de investimento e de alocação de recursos por parte dos
governos. As razões pelas quais os conflitos não permanecem irresolvidos
para sempre são as mesmas que explicam porque outros conflitos sociais no
final acabam sendo superados: a longo prazo, os ganhos coletivos de
sistemas estabilizados tendem a ser maiores do que os benefícios privados
obtidos através de conflitos alimentados por um longo tempo. Conceitos
estatísticos e dispositivos técnicos desempenham importantes papéis no
processo de estabilização da interação social, um “papel moral” que não é
imediatamente visível a partir de seus aspectos técnicos, enganosamente
simples. (S
CHWARTZMAN, 1996, p. 4)
Inseridas nas redes de saber e sendo um instrumento de poder, as estatísticas
públicas aparecem, a cada tempo, revestidas de novos conceitos e significações. Essas
mudanças, contudo, são atribuídas mais a um aperfeiçoamento técnico-metodológico
das instituições estatísticas do que a mudanças na ordem da demanda, o que, sem
dúvida, é um equívoco.
Certamente, essas transformações são produto de mudanças teóricas e
metodológicas de organizações complexas (com verbas limitadas), mas representam,
sobretudo, interesses sociais, políticos e econômicos, muitas vezes expressos numa
concepção que se tem das funções e atribuições do Estado (como se verá no Capítulo 3).
80
O esforço dos estaticistas, na busca por legitimidade e credibilidade, consiste em
manter as informações estatísticas cada vez mais estáveis, incontroversas e
tecnicamente bem fundamentadas, o que certamente é muito importante.
Assim, os institutos nacionais de estatística investem muito numa imagem que
inspire credibilidade. Eles evitam que suas estatísticas sejam vinculadas a qualquer
objetivo que não seja a “constatação” dos fatos e buscam, no cotidiano das pesquisas, a
maior independência técnica e política possível dos governos.
É muito importante para a credibilidade de um instituto nacional de estatística
que ele não tenha sua imagem associada a grupos de interesses e ideologias. Guizzardi
(2004) cita, como exemplo, o que houve com a Fundação Getúlio Vargas, na época do
regime militar, quando essa instituição esteve envolvida numa discussão (que acabou
por chegar até a mídia) sobre o falseamento dos índices oficiais de inflação, naquela
época calculados por ela.
A vinculação dos institutos de pesquisa a quaisquer interesses que não sejam a
busca por uma informação sólida, plausível e tecnicamente bem fundamentada, pode
levá-los ao descrédito. É difícil que estatísticas de desemprego ou queda no salário
apresentadas por sindicatos dos trabalhadores sejam aceitas pelos empresários e o
mesmo quando são os empresários que apresentam as estatísticas. Normalmente,
embora haja exceções, acredita-se mais nas estatísticas apresentadas por Institutos
públicos de estatística, vinculados diretamente aos Estados.
É preciso entender, nesse sentido, que os institutos nacionais de estatísticas
servem primeiramente aos Estados, tendo os governos uma importância de segunda
ordem. A estabilidade da produção estatística depende, e muito, dessa independência em
relação aos governos [Seltzer (1994) fala de interdependência ou integração e Fellegi
fala em “objetividade não-política”].
Ainda sobre a importância da credibilidade das Instituições Estatísticas para que
as informações estatísticas sejam tidas como confiáveis, Schwartzman (1996)
argumenta que há uma relação direta entre a cultura política de cada país e a
credibilidade de suas instituições públicas. Nas palavras dele: “(...) instituições públicas
81
na Alemanha ou França são tidas como confiáveis, enquanto instituições semelhantes
nos Estados Unidos ou no Brasil nunca podem contar com sua credibilidade como coisa
garantida” (Schwartzman, 1996, p. 5).
De forma geral, as estatísticas são aceitas ou interpretadas como confiáveis e
legítimas desde que as instituições que a produziram apresentem um forte perfil
científico e técnico. Contudo, como lembra Schwartzman:
Isso é um paradoxo curioso, uma vez que as ciências empíricas são
dominadas por controvérsias e descobertas provisórias, experimentais,
probabilísticas e mesmo contraditórias, aos invés de o ser por uma lógica
sólida, evidências e demonstrações, como muitas vezes se propala. A coisa
se torna ainda mais complicada pelo fato de que a produção de estatísticas
públicas não é limitada a uma única disciplina, ou seja, àquela do estatístico.
As equipes dos órgãos de estatística são compostas por economistas,
cientistas sociais, analistas de programas, estatísticos, e matemáticos, cada
uma com sua própria cultura profissional, inclinações e preferências. Além
de suas diferenças de origem, esses diferentes grupos mantêm ligações com
suas comunidades profissionais, e disputas por espaço precedência
profissional tendem a ocorrer. Ajuda quando se pode argumentar que uma
disciplina é central, e responsável por manter a coerência e a integridade do
todo. A introdução de contas nacionais e a elaboração de matrizes input-
output na maior parte dos institutos de estatística deu aos economistas um
papel proeminente, pareceu oferecer uma lógica para o sistema como um
todo e o ligou a outra imagem importante, aquela do planejamento
econômico. À medida que a força da imagística do planejamento diminuía,
esse argumento perdeu muito de sal força, sendo substituído pela busca de
outro referencial disciplinar, aquele da própria estatística como uma
disciplina abrangente que tudo cobre. (S
CHWARTZMAN, 1996, p.7)
Como argumenta Schwartzman, há um paradoxo na super-valorização da
dimensão técnico-científica das estatísticas. Mesmo as estatísticas econômicas
(consideradas as mais sólidas e robustas), que são amparadas pelo marco referencial da
economia política e/ou da teoria econômica, não conseguem subverter à máxima de que
as estatísticas são construções. Afinal, como se sabe, os esquemas teóricos e conceituais
da economia política e/ou da teoria econômica tamm não escapam ao arbitrário e
servem a uma dada interpretação da realidade econômica e da organização social.
Para Feijó (2002), a credibilidade é o ativo mais importante de uma instituição
produtora de estatística. A partir de idéias encontradas na literatura econômica, a autora
analisa a idéia de credibilidade das estatísticas sob dois aspectos: um referente aos
fundamentos teóricos aos quais a informação estatística está associada; e outro referente
82
à qualidade da produção da estatística propriamente dita. A credibilidade ou a “imagem
da qualidade”, para Feijó, está associada à confiança dos agentes econômicos nas
estatísticas produzidas.
Para essa mesma autora, um requisito importante para dar credibilidade a uma
estatística, ou, em outros termos, para “influir na sua aceitação como medida de
referência a tomada de decisões”, é a interpretação que se pode extrair a partir de um
modelo teórico (implícito ou explícito). Como exemplifica Feijó:
Assim, os agregados macroeconômicos, por exemplo, são a referência para a
descrição econômica, e têm como base teórica o modelo de demanda
agregada Keynesiano. Outro exemplo, tomado por base a teoria
microeconômica, são os índices de preço que têm como referência teoria do
consumidor. Não estamos sugerindo que toda estatística seja uma ideal de
conceitos teóricos abstratos, mas somente que tão maior é a aceitação de
uma estatística, quanto mais consolidada a teoria a qual se refere
(2002,
p.5)
.
Próximo ao que foi dito por Schwartzman, Feijó tamm levanta a necessidade
do órgão produtor de estatística apresentar qualidades, tais como credibilidade e
reputação. Contudo, Feijó faz uma distinção entre credibilidade e reputação e leva à
discussão da credibilidade das estatísticas não apenas para a produção (estabilidade,
consistência etc.), mas, também para o debate teórico que sustenta as estatísticas. Nas
palavras da autora:
Há várias implicações práticas desta distinção entre credibilidade e
reputação para produtores oficiais. A principal é que ao reconhecê-la,
delineia-se mais claramente a responsabilidade dos produtores de estatística
na busca pela imagem de qualidade. Esta busca deve observar tanto os
conceitos teóricos (aspecto da credibilidade) como os procedimentos a
serem seguidos na produção da informação (a observação das ‘boas práticas’
que constroem a reputação). Assim o produtor oficial não deve criar
conceitos, mas estar em contanto com os avanços no âmbito da teoria para
saber interpretar os avanços do debate teórico à luz da produção de
informação. Da mesma forma, seguindo normas de boas práticas, o produtor
oficial deve orientar o uso da informação que produz, ou seja, dar
transparência à forma como a estatística é produzida, mas não deve
influenciar a decisão sobre seu uso (Feijó, 2002. p.5)
Senra (1998, 2004), Besson (1995) e Desrosieres (1996) sustentam a afirmação
de que a legitimidade e credibilidade das estatísticas estão vinculadas ao entendimento
83
da natureza da informação estatística. Para esses autores, para além da competência e
capacidade técnica dos institutos de estatística, é preciso que os usuários, melhor
dizendo, os demandantes, conheçam as potencialidades e limites da informação
estatística. Segundo Desrosieres (1996, p.2):O uso democrático da informação
estatística implica a possibilidade de abrir as “caixas pretas” nas quais costuma estar
encerrada. Seu conteúdo deve ser apresentado em público e eventualmente discutido”.
Besson (1995) insiste que credibilidade e legitimidade das estatísticas estão
inscritas na sua correta apreensão, ou seja, é preciso tomá-las pelo que são: construções
da realidade. Para esse autor, boa parte das controvérsias em torno da informação
estatística reside na confusão entre a experiência individual e os agregados que dão
origem às médias e outras informações sobre o global. Como resume o autor: “A
pertinência eventual das estatísticas é portanto um pertinência de nível: dados de um
certo nível dão sentido a esse nível. Toda uma parte da discussão sobre as estatísticas é
alimentada pelas mudanças ou por deslizamentos de níveis, voluntários ou não”
(BESSON, 1995, p. 36)
Não se pode, a título de se apreender a dimensão (sócio) política das estatísticas,
deixar de valorizar sua dimensão técnico científica. A legitimidade e credibilidade das
estatísticas estão vinculadas a fatores de ordem técnica e a outros de ordem sócio
cultural. Nesse sentido, como explica Desrosieres, a utilidade das estatísticas:
(...) só será verificada se essas construções se sustentarem, se puderem ser
transportadas e combinadas sem alterações fortes demais, e aceitas como
referência comum pelo conjunto da sociedade. Essa condição muitas vezes é
chamada de “confiabilidade”. Deve ser entendida não como uma semelhança
fiel à realidade, mas como uma consistência e uma robustez suficientes para
suportar transportes e combinações sem sofrer danos. Essa “confiabilidade”
é inextricavelmente técnica e social. Supõe longas cadeias de registros,
cálculos e formalizações que, consideradas em conjunto, suscitam ou não a
confiança da sociedade (D
ESROSIERES, 1996, p. 8).
É preciso perceber, também, que a cada momento histórico as condições que
sustentam a credibilidade e legitimidade das estatísticas se alteram. Pode-se tomar como
exemplo o uso da amostragem como técnica de pesquisa. Durante bastante tempo,
embora já fossem conhecidas às técnicas amostrais, as estatísticas eram feitas a partir de
uma prática administrativa exaustiva e territorial. Para os estaticistas da época, a
84
“confiabilidade”, ou seja, a legitimidade da estatística estava ligada à sua exaustividade.
A amostragem era vista como uma “acrobacia de geômetra”, que não era cabível na
estatística oficial. (DESROSIERES, 1996)
Há ainda outros fatores, relacionados mais especificadamente à natureza dos
dados estatísticos, que podem suscitar ou não credibilidade. Simon Schwartzman aponta
alguns exemplos onde é a disputa de interesses em torno da informação estatística que
gera controvérsias. Nas palavras do autor:
Sempre que os dados afetam interesses específicos (como os índices de
preço ao consumidor, quando utilizados para corrigir salários ou pensões
pela inflação, ou números relativos à população e que afetem a distribuição
de receitas derivadas de impostos, subsídios ou rateios eleitorais), eles
tendem a ser questionados; se o setor afetado é limitado, o questionamento é
provavelmente menos ameaçador do que quando toda sociedade é afetada.
Pesquisas avulsas tendem a ser questionadas com mais freqüência que os
resultados de práticas estatísticas permanentes e continuadas; dados a
respeito de práticas ilegais ou “ocultas”, tais como evasão fiscal, jogos de
apostas e transações econômicas “informais” também tendem a ser
desacreditadas. Às vezes, a desconfiança se volta contra quem fornece a
informação, outras vezes é a independência do órgão estatístico que é
questionada, e algumas vezes sua competência técnica. (S
CHWARTZMAN,
1996, p. 6)
É preciso notar que não há uma distinção maior entre os fatores que geram
credibilidade e legitimidade. Muitos dos fatores que geram ou não uma delas também
influem de forma direta na outra.
Senra (1998, 2005) advoga que é preciso, na verdade, um ingente esforço de
coordenação para que as instituições estatísticas alcancem a legitimidade e credibilidade
que precisam. Afirma que é necessário que o instituto nacional de estatística, através de
uma adequada coordenação de interesses e possibilidades, saiba responder de forma
substantiva à demanda que lhe é imposta, através de uma boa política de oferta e uma
capacitação da demanda.
Vale observar, nesse sentido, que um adequado conhecimento acerca da natureza
das estatísticas pelos demandantes possibilita um reconhecimento das possibilidades,
potencialidades e limitações das estatísticas. Assim, a coordenação de interesses
díspares vis-à-vis as possibilidades, torna possível ao instituto de estatística equacionar
85
o dilema de servir a interesses sócio (políticos) sem, com isso, deixar de apresentar um
forte perfil técnico científico. Nas palavras de Senra:
Vale observar que a saudável conquista tanto da credibilidade quanto da
legitimidade passa necessariamente por pendular-se entre a dimensão (sócio)
política e a dimensão (técnico) científica inerentes as estatísticas. Os
produtores, evitando mesmo a mais tênue dependência (sócio) política.
Almejando ao máximo a mais completa independência (técnico) científica,
incorrem no risco de serem tomados como meros fabricantes de números,
não sendo assim tomados em merecida importância, possuidores que são de
uma raríssima arte de calcular, encetando uma tarefa absolutamente
estratégica na arte de governar. Assim, os produtores melhor fariam se
promovessem a redação dialética da interdependência, superando o receio da
dependência (sócio) política e o anseio da independência (técnico) científica
(1998, p. 56).
Por fim, é importante que se diga, no intuito de se apreender a natureza das
estatísticas, que o processo de legitimação da informação estatística e, por conseguinte,
dos instituições estatísticas, produz novos significados. Tais significados servem para
integrar os significados já ligados a processos institucionais díspares (pode-se pensar
nas tipologias/classificações e no movimento que vai da disciplina à regulação). A
função da legitimação consiste em tornar objetivamente acessíveis e subjetivamente
plausíveis as observações (objetivações) de “primeira ordem” que foram
institucionalizadas, o que tem diversos desdobramentos.
Afinal, à medida que um olhar sobre a pobreza (por exemplo) se torna legítimo,
crível e aceito como medida para aquele “problema” social, o processo de legitimação
das estatísticas e das instituições produtoras se desdobra para a aceitação de um olhar
sobre a realidade, no caso, sobre aquele problema social.
Reveladas a natureza das estatísticas e as principais características das
Instituições produtoras, passa-se a agora, no Capítulo 3, a análise das “Eras
Estatísticas”.
86
CAPÍTULO 3
AS ERAS ESTATÍSTICAS
87
A análise do Estado é uma forma de conhecer a sociedade. Se é verdade que a
sociedade funda o Estado, também é inegável que o Estado é constitutivo daquela.
As forças que predominam na sociedade, em dada época, podem não só influenciar
a organização do Estado como incutir-lhe tendências que influenciam o jogo das
forças sociais e o conjunto da sociedade. (...) Sob vários aspectos, a análise do
Estado é uma forma privilegiada de conhecer a sociedade (...)
Octávio Ianni
3.1 - Uma introdução:
Até aqui muito foi visto sobre as estatísticas. Insistiu-se continuamente na idéia
de que as estatísticas públicas participam de um laborioso processo de construção social
da realidade. Afirmou-se, repetidas vezes, que a história das estatísticas está
intimamente ligada a mudanças em relação às ciências e o Estado. A partir de agora, a
relação Estado vis-à-vis estatística será o foco de análise.
Quer-se mostrar não apenas quais elementos caracterizam essa relação, mas,
também, como isso é delineado historicamente; atribuindo, a cada tempo, novos e
diferentes significados às estatísticas públicas
61
. Apresentando-as ou usando-as como
base para discursos e/ou práticas discursivas cuja “vontade de verdade” possibilita
determinadas interpretações da realidade e justifica intervenções sobre ela.
Isto posto, faz-se necessário lembrar o que foi dito sobre os pólos do poder das
estatísticas. Falou-se que as estatísticas, por sua forma característica de produzir
conhecimento, constroem um espaço analítico que dá sustentação à ação sobre dois
61
Afinal, como afiança Desrosieres, a evolução conjunta do papel do estado e de suas tecnologias
cognitivas mais materiais proporcionam um fio condutor para ler a história da estatística. Ali
encontramos, por exemplo, uma distinção crucial entre as atividades do Estado que visam a tratar casos
singulares (tribunais, por exemplo) e as que organizam políticas gerais, válidas para toda coletividade. A
estatística sempre esteve a cavalo entre essas duas vertentes da atividade do estado, combinando
continuamente o paradigma galileano, a identificação do caso singular e a totalização nacional. O vai e
vem e a tensão entre tratamentos particulares e tratamentos gerais constituem o motor político e cognitivo
da construção da estatística, cuja matéria prima básica fornecem (
DESROSIERES, 1996, p. 6)
88
pólos, que se relacionam com a idéia de disciplina e regulação. Estabelecer a história
das estatísticas a partir de sua relação com o Estado pode parecer, à primeira vista,
privilegiar a idéia de regulação, em detrimento da idéia de disciplina.
Contudo, é preciso recordar que as técnicas (pode-se pensar, de forma ainda
mais geral, na história das idéias e seus desdobramentos práticos) apresentam uma
relação estreita com as práticas sociais, uma vez que, normalmente, umas estão na
origem ou na finalidade das outras. Exemplos disso não faltam. A materialidade dos
interesses do modo de produção capitalista, por exemplo, deve-se muito ao
aparecimento/aperfeiçoamento das técnicas de produção, circulação e informação que
por sua vez, estão intimamente vinculadas a determinadas idéias e práticas sociais.
Marx e Foucault, cada um ao seu modo, dão exemplos dessa idéia. O primeiro se
refere a organização do trabalho dentro da fábrica e à necessidade da “produção
conjunta, simultânea e indivisa”. Pode-se pensar ainda na afirmação de Marx de que “o
pensamento humano funda-se na atividade humana e nas relações sociais produzidas
por esta atividade”, ou ainda nos conceitos gêmeos de infra-estrutura e super-estrutura.
Foucault, ao estudar a constituição da sociedade disciplinar, quando desenvolve, por
exemplo, seu conceito de “vigilância hierarquizada” ou mesmo as idéias aqui já
trabalhadas de disciplina e regulação. Há, assim, na análise desses autores, uma relação
dialética entre as práticas sociais e o aparecimento/desenvolvimento das técnicas
instrumentais. Veja-se isso nesta explicação de Foucault:
Se a decolagem do Ocidente começou com processos que permitiram a
acumulação do capital, pode-se dizer, talvez, que os métodos para gerir a
acumulação dos homens permitiram uma decolagem política em relação a
formas de poder tradicionais, rituais, dispendiosas, violentas e que logo caídas
em desuso, foram substituídas por uma tecnologia minuciosa e calculada de
sujeição. Na verdade os dois processos, acumulação de homens e acumulação
de capital não podem ser separados de um aparelho de produção capaz ao
mesmo tempo de mantê-los e de utilizá-los; inversamente, as técnicas que
tornam útil a multiplicidade cumulativa de homens aceleram o movimento de
acumulação do capital. A um nível menos geral, as mutações tecnológicas do
aparelho de produção, a divisão do trabalho, e a elaboração das maneiras de
proceder disciplinares mantiveram um conjunto de relações muito próximas.
Cada uma das duas tornou possível a outra, e necessária; cada uma das duas
serviu de modelo para a outra (F
OUCAULT, 1993, p. 193-194).
89
Esta mesma lógica de interpretação serve à análise do desenvolvimento histórico
das estatísticas modernas. Nesse sentido, é importante destacar que tomar as mudanças
do Estado capitalista como elemento principal do desenvolvimento das estatísticas
públicas, de certa forma privilegiando o pólo da regulação, não significa, de modo
algum, negligenciar processos relacionados à disciplina, tais como: as mudanças em
relação à estrutura da sociedade; a visão que a “sociedade”, a cada época, faz de si
mesma; os problemas que ela elege como principais, legítimos e oficias; e, ainda, as
diferentes categorias (e seus diferentes significados) usadas e validadas, a cada tempo,
pela “mágica” da agregação estatística.
Ao contrário, valer-se dos diferentes períodos histórico/técnico do Estado
capitalista, como elemento de análise, representa, antes e acima de tudo, um esforço
para perceber de que forma e em que medida as estatísticas, a cada tempo, colaboraram
com a construção social de uma “imagem” da realidade (o que está intimamente
relacionado com a especificidade da reflexividade moderna, como será visto a seguir).
E, mais que isso, é preciso que se diga que não se trata apenas de uma opção teórica.
Afinal, como foi demonstrado nos capítulos anteriores, o Estado
62
moderno, com a
racionalização da idéia de governo e com seu alto grau de unidade administrativa, para
além de produtor, tem-se constituído como o maior demandante e usuário de estatísticas
públicas.
Pretende-se, pois, constituir um quadro que permita relacionar cada um dos
diferentes períodos histórico/técnico do capitalismo com as diferentes fases que
compõem o que será aqui denominado de Eras estatísticas.
Para tanto, será considerado: a demanda por estatísticas públicas (aqui, é
importante destacar o Estado como maior demandante de estatísticas); o modo de
produção (quais as relações existem entre a visão que se tem das funções e atribuições
do Estado e a produção estatística); a natureza dos dados produzidos; os avanços das
62
Como se verá no item 3.5, os dias atuais parecem apontar para uma tendência inversa, seja pela
transferência de boa parte das responsabilidades sociais de outrora à sociedade civil, seja pela crescente
difusão pública nos meios de comunicação de massa que as estatísticas têm hoje, sobretudo na forma de
indicadores sintéticos.
90
ciências (uma visão geral das mudanças em relação aos quadros conceituais que dão
suporte às análises estatísticas) e, por fim, a dinâmica da oferta.
O ponto de partida do estudo histórico-sociológico das estatísticas não pode ser
fixado arbitrariamente, através de um seccionamento ao acaso do continuum histórico.
Não é essa a intenção desta análise, e nem poderia ser, já que se está tomando as
estatísticas como construções sociais, que guardam estreita relação com a história e
“evolução” das sociedades humanas, “sociedades” no sentido amplo das várias
formações econômico-sociais conhecidas. Sendo assim, e desde já, declarando o
interrese pelas estatísticas em seu sentido moderno, parece razoável tomar o advento da
governamentabilidade
63
, materializado no liberalismo, como ponto de partida desta
análise.
Por certo, falar em uma concepção moderna de estatística leva a alguns
questionamentos, tais como: Afinal, o que marca a ruptura que precede e dá sentido a
uma concepção moderna das estatísticas? Quais diferenças caracterizam essa ruptura?
Onde se pode encontrar, na realidade empírica, índices tangíveis dessa ruptura? Na
modernidade, qual é, de fato, o significado atribuído às estatísticas?
Muitos desses questionamentos encontram resposta no Capítulo 1, mas eles
acabam sugerindo outros tantos. Afinal, falar de estatística moderna é, obviamente,
relacioná-la à condição moderna
64
. Mas que condição é essa? Quais são as relações
possíveis?
63
Como foi demonstrado no Capítulo 1, a partir do advento de uma nova concepção de governo, dentro
do movimento que vai do absolutismo ao Estado-Nação, as estatísticas passaram a estabelecer uma
relação muito prática entre saber e poder, contribuindo, assim, de forma muito distinta para a
governamentabilidade da sociedade disciplinar. Foi dito, também, que é esse o instante em que se tem
início um tempo de história das estatísticas. Isso porque, é só a partir de uma “racionalidade” das
condutas do Estado, pautadas numa determinada visão de governo, que se pode pensar num
desenvolvimento contínuo da relação Estado vis-à-vis estatísticas (pode-se conhecer as razões da
demanda) e é quando, também, começa-se a organizar melhor a oferta, sob a influência das discussões e
deliberações dos congressos internacionais de estatística. Afinal, antes disso, dentro do que foi
denominado de proto-história das estatísticas, os interesses que impulsionavam as investigações
estatísticas eram, em muitos casos, segmentados, místicos, parciais, confusos e, muitas vezes, secretos.
64
Pensar a modernidade leva, necessariamente, ao estudo dos clássicos do pensamento moderno. Trata-se
de uma tarefa difícil, complexa mesmo. Uma análise consistente e com essa envergadura pode ser
encontrada em Habermas (2000) e Rouanet (1987).
91
Não são precisos muitos exemplos para que se possa perceber a ruptura que dá
sentido a idéia de modernidade. Para se caracterizar a modernidade, basta tomar apenas
algumas de suas dimensões, tal como definida, por exemplo, por Max Weber.
Na perspectiva desse autor, a modernidade, resultado do processo de
racionalização que ocorreu no Ocidente desde o final do século XVIII, é composta por
dois blocos, a saber: a modernidade cultural e a modernidade social. A modernidade
cultural se caracteriza pela dessacralização das visões de mundo tradicionais e sua
substituição por esferas axiológicas diferenciadas (a ciência, a moral e a arte), regidas
pela razão e sujeitas à ação consciente do homem. A modernidade social se caracteriza
pelo surgimento de complexos institucionais autonomizados (o Estado e a economia)
(ROUANET, 1987).
Seguindo esse mesmo esquema, torna-se possível destacar uma variedade de
exemplos de “formas sociais” modernas que simplesmente não existiam em períodos
precedentes, quais sejam: o sistema político do Estado-nação; a noção que se tem hoje
de economia; a transformação em mercadoria de produtos e trabalho assalariado; as
ciências modernas etc. Outros tantos exemplos de formas sociais modernas, como é o
caso das estatísticas, embora já existissem antes mesmo da era moderna
65
, mantêm, na
modernidade, apenas uma continuidade especiosa em relação a suas versões pré-
modernas, como foi visto no Capítulo 1.
Uma outra característica que revela a descontinuidade que separa as instituições
sociais modernas das ordens sociais tradicionais, e que é de especial interesse nesse
estudo, é a idéia de uma especificidade da “reflexividade moderna”, elaborada por
Giddens (1991). A partir da idéia de “monitoramento reflexivo da ação”, o autor explica
que os seres humanos, modernos ou não, são dotados de uma consciência reflexiva
inata, o que tem relação com a monitoração do comportamento e seus contextos.
65
A cidade é um outro exemplo interessante dessa relação. Como explica Giddens, os modernos
assentamentos urbanos frequentemente incorporam os locais das cidades tradicionais e isto faz parecer
que meramente expandiram-se a partir delas. Na verdade, o urbanismo moderno é ordenado segundo
princípios completamente diferentes dos que estabeleceram a cidade pré-moderna em relação ao campo
em períodos anteriores (1991, p. 16). Voltando ao tema das estatísticas e tomando emprestado o exemplo
das cidades, pode-se dizer que as estatísticas modernas estão para sua versão pré-moderna, assim como os
modernos assentamentos urbanos estão para as cidades tradicionais. Ou seja, há uma sobreposição de
92
Contudo, como explica Giddens, enquanto as culturas tradicionais exercitam
essa reflexividade a partir de um olhar sobre o passado, a tradição, louvando de
diferentes formas (rituais ou não), símbolos cujos significados atribuem valor moral ao
presente e delineiam a perspectiva da ação futura. Na modernidade, inaugura-se uma
reflexividade, cuja base está na própria origem do sistema, de forma que o
conhecimento e a ação estão constantemente refratados entre si.
Assim, a especificidade da reflexividade da vida social moderna “consiste no
fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de
informação renovada sobre as próprias práticas, alterando assim, constitutivamente seu
caráter” (GIDDENS, 1991, p.45).
A razão científica, com sua capacidade de um conhecimento formalizado sobre a
realidade, é, certamente, um dos mais importantes componentes propulsores desse
caráter específico da reflexividade moderna. Nesse sentido, o alargamento da produção
e os diferentes usos das estatísticas oficiais na modernidade são excelentes exemplos
dessa proposição.
Não por acaso, o próprio Giddens toma a produção de estatísticas oficiais como
exemplo da monitoração reflexiva da modernidade. Nas palavras do autor:
(...) desde seu início, o cotejo das estatísticas oficiais é constitutivo do poder
do Estado e também de muitos outros modos de organização social. O
controle administrativo coordenado obtido pelos governos modernos é
inseparável da monitoração rotineira dos “dados oficiais” na qual se
empenham todos os Estados contemporâneos.(G
IDDENS,1991, p.48)
Isto posto, veja-se o que diferencia e caracteriza uma e outra Era estatística.
valores e significados sob o mesmo termo, assim como, no caso das cidades, há uma sobreposição de
valores e significados sobre o mesmo espaço físico.
93
3.2 - 1ª Era Estatística – O Estado Liberal
Segundo o historiador Eric Hobsbawm, a história da ascensão do liberalismo, nos
anos que antecedem às revoluções na Europa do século XVIII, até o seu colapso, com a
Primeira Guerra Mundial, o limiar da Revolução Socialista e o abismo econômico das
primeiras décadas do século XX estão compreendidos no período histórico que ele
denominou de “O Longo século XIX” (que vai da década de 1780 a 1914). Na síntese
desse autor, a civilização (ocidental) do século XIX pode ser definida como:
capitalista na economia; liberal na estrutura legal e constitucional; burguesa na
imagem de sua classe hegemônica característica; exultante com o avanço da
ciência, do conhecimento e da educação e também com o progresso material e
moral; e profundamente convencida da centralidade da Europa, berço das
revoluções da ciência, das artes, da política e da indústria e cuja economia
prevalecera na maior parte do mundo, que seus soldados haviam conquistado e
subjugado; uma Europa cujas populações (incluindo-se o vasto e crescente
fluxo de imigrantes europeus e seus descendentes) haviam crescido até somar
um terço da raça humana; e cujos maiores Estados constituíam o sistema da
política mundial
. (HOBSBAWM, 1995, p. 16)
Do ponto de vista estritamente factual, pode-se dizer que o Estado liberal surgiu
através de um processo gradual de erosão do poder absoluto do rei e, em momentos de
crise mais conspícuos, de uma ruptura revolucionária (como no caso da Inglaterra do
século XVII e da França no quartel final do século XVIII).
Em termos teóricos, sabe-se que o Estado liberal emergiu como resultado da
vitória político-ideológica das idéias liberais, - elaboradas na Europa entre os séculos
XVII e XIX –. Idéias essas que desafiavam a razão de Estado do período mercantilista,
materializado no absolutismo. Característica dessas idéias é a defesa, no plano
econômico, do livre mercado
66
e no plano político, dos governos constitucionais
67
.
66
No campo econômico, o liberalismo tem, entre seus protagonistas principais, nomes como Adam Smith
(1723-1790), Thomas Malthus (1766-1834) e David Ricardo (1772-1823). Smith, em sua obra principal,
“Uma investigação sobre a natureza e causas da riqueza das nações”, publicada em 1776, propõe um
modelo econômico baseado no jogo livre da oferta e da procura, o laissez-faire. Em sua interpretação, a
riqueza está no trabalho humano, que deve ser dirigido pela livre iniciativa dos empreendedores. A crítica
severa às intervenções do Estado na economia e a defesa da idéia de auto-regulação do mercado,
simbolizada pela “mão invisível”, constituem os fundamentos principais de sua obra. Maltthus ficou
conhecido por seus estudos sobre a população, sobretudo, por insistir no descompasso entre as taxas de
94
Esquematicamente, pode-se dizer, ainda, que o Estado liberal surgiu como
resultado da luta travada pela nova ordem burguesa que, calcada nas concepções
doutrinárias do Liberalismo/Iluminismo, conquistava e tentava assegurar,
simultaneamente, quatro objetivos: (a) no campo político, controlar, submeter e, em
seguida reduzir os poderes do absolutismo monárquico; (b) no campo social, superar e
banir os privilégios corporativos da Idade Média que beneficiavam a nobreza, o clero e
as corporações de ofício; (c) no campo econômico, assegurar o livre mercado, o que
implicava a liberdade de produzir e comerciar, sem a interferência do poder político; e,
finalmente, (d) no campo jurídico, garantir a estabilidade das normas legais e do Direito,
livres do poder regulador do absolutismo, sem as quais o mercado não poderia
prosperar.
No campo científico, par a par e de certa forma em contradição com o triunfo do
liberalismo europeu ao longo do século XIX, deu-se o triunfo do cientificismo, que
reconhece uma só natureza material, que engloba e explica o mundo dos valores e o
mundo dos fatos.
Como se sabe, as doutrinas liberais fundaram-se sob as bases do racionalismo
abstrato, tomando dele emprestado a crença na personalidade soberana e abstrata do
crescimento da população e a dos meios de subsistência. Segundo ele, enquanto a primeira crescia em
progressão geométrica, a segunda crescia em progressão aritmética, o que conduziria, cedo ou tarde, à
“catástrofe”. Contudo, não era preciso uma intervenção do Estado, ao contrário, políticas de assistência
aos pobres eram condenadas por esse autor, já que, em sua perspectiva, era preciso deixar que a própria
“natureza”, por seus próprios meios, se encarregasse de banir o excedente da população. Nas palavras
dele: “Um homem que nasce em um mundo já ocupado não tem direito a reclamar parcela alguma de
alimento. No grande banquete da Natureza não há lugar pra ele. A natureza intima-o a sair e não tarda em
executar essa intimação”. Já Ricardo, em sua obra principal “Princípios de política econômica e
tributação” publicado em 1817, dedica-se ao problema preponderante de sua época, o conflito entre os
interesses da indústria e os da agricultura e formula a famosa lei das “vantagens comparativas”.
67
Considerado o pai do liberalismo civil, o inglês John Locke (1632 - 1704), em sua obra principal, “Dois
tratados sobre o governo” (1690), formula a teoria dos direitos naturais, segundo a qual os indivíduos
possuem, por natureza, direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à propriedade. E a sociedade civil –
formada livremente pelos homens - existe para preservar e consolidar esses direitos, agora sob o amparo
da lei. Como sintetiza Bobbio: "Locke passou para a História, - justamente como o teórico da monarquia
constitucional - um sistema político baseado, ao mesmo tempo, na dupla distinção entre as duas partes do
poder, o parlamento e o rei, e entre as duas funções do Estado, a legislativa e a executiva, bem como na
correspondência quase perfeita entre essas duas distinções - o poder legislativo emana do povo
representado no parlamento; o poder executivo é delegado ao rei pelo parlamento". Adiante, na França,
Montesquieu escreve “Do espírito das Leis” (1751), em que defende a separação dos poderes (executivo,
legislativo e judiciário), princípio incorporado às futuras constituições liberais. Tudo isso recebe mais
tarde a contribuição crítica de Stuart Mill.
95
indivíduo
68
. O egocentrismo e a centralidade da idéia de uma natureza do indivíduo são
pressupostos fundamentais das teorias do liberalismo. Contudo, como explica Ribeiro,
pouco a pouco:
(...) o liberalismo começou a sofrer transformação, numa tentativa de conciliar
sua estrutura racional apriorística com o empirismo, que ensinava que todo
conhecimento se reduz aos dados da experiência sensível, e com o
materialismo, segundo o qual a matéria e suas leis são tudo o que existe ou a
explicação de tudo, no encontro de fundamentos da filosofia científica que se
esboçava (R
IBEIRO, 1998, p. 12 ).
Assim, o pensamento político-social e as ciências do século XIX voltavam-se
para o empirismo, agora fortemente influenciado pelas idéias positivistas
69
, reduzindo a
autoridade do racionalismo que, contudo, não deixou de existir, muitas vezes
coexistindo com o empirismo, sustentando sempre a primazia da razão e da capacidade
de pensar, em relação ao sentimento e à vontade.
É um tempo de extraordinária produção científica
70
, sobretudo, após o advento
68
Segundo Ribeiro (1998, p.12), o liberalismo afirmava que o desenvolvimento moral, cultural,
econômico e político da sociedade só seria alcançado pelo livre desenvolvimento do espírito e das
faculdades do indivíduo. Assim, o valor da personalidade era considerado anterior a todas as condições
históricas, políticas, sociais e culturais, impondo, a priori, o imperativo categórico do respeito à liberdade
e à igualdade inata nos indivíduos.
69
Nesse ponto, faz-se necessária uma distinção. Como explica Habermas (1987, p. 95): o positivismo
retoma, antes de mais nada, os parâmetros das escolas empiristas, a saber: todo conhecimento deve
certificar-se de sua validade junto à certeza sensível de uma observação sistemática que propicie
intersubjetividade. Quando se tem em vista apenas a realidade, a percepção pode reclamar evidência. A
observação é, em conseqüência, “a única base possível dos conhecimentos realmente atingíveis,
sabidamente adaptados a nossas reais necessidades”. A experiência sensível determina o acesso ao mundo
dos fatos. Uma ciência que faz asserções sobre o real é sempre uma ciência experimental. Contudo,
continua o autor, o positivismo não considera a certeza do conhecimento como exclusividade garantida
por meio do embasamento empírico; igualmente importante, ao lado da certeza sensível, é a certeza
metódica(...).
70
Como explica Senra, a esse tempo, vive-se um desenvolvimento espetacular da ciência, nas mais
diferentes áreas do saber humano; cabendo destacar os avanços na ciência Estatística, buscando-se a
compreensão das regularidades e das diversidades das populações; um raciocínio estatístico, mais e mais
foi se consolidando, contribuindo sobremaneira para um significativo avanço nas demais ciências.
Entretanto, no que concerne à produção das estatísticas, os avanços da Ciência Estatística a par a
consolidação de um método de pesquisa, só se farão sentir realmente quando da consolidação das
agências nacionais de estatística, ao tempo do providencialismo; não obstante, o extraordinário
movimento de codificação sócio-jurídica, á frente o code civil napoleônico em 1804, e mais, a magnífica
idéia de cultura nacional assentada na concepção liberal do indivíduo, muito influenciaram a produção
das estatísticas (SENRA, 1998, p.63)
96
das idéias positivistas que, como explica Ribeiro, dominaram o pensamento típico do
século XIX, como método e como doutrina:
Como método, embasado na certeza rigorosa dos fatos de experiência como
fundamento da construção teórica; como doutrina, apresentando-se como
revelação da própria ciência, ou seja, não apenas regra por meio do qual a
ciência chega a descobrir e prever (isto é, saber para prever e agir), mas
conteúdo natural de ordem geral que ela mostra junto aos fatos particulares,
como caráter universal da realidade, como significado geral da mecânica e
da dinâmica do universo (R
IBEIRO, 1998, p. 13 ).
O positivismo, no plano teórico, cuidava de se preocupar não mais com o porquê
das coisas, mas, sim, indagar-lhes sobre a sua essência. Desprezava-se, assim, a procura
pela determinação das causas, dando preferência à procura das leis, isto é, das relações
constantes que existem entre os fenômenos. “Substituía-se o método a priori pelo
método a posteriori”. (RIBEIRO, 1998, p.13)
A produção e uso de estatísticas oficiais, desde muito cedo, foram incorporadas
e incorporaram o ideário positivista. Participando de forma substantiva na formulação
de leis gerais, de fórmulas capazes de dizer e explicar fatos aparentemente particulares
e, ainda, em muitos casos, apontar tendências, ou mesmo predizer o futuro, as
estatísticas se tornariam muito importantes às pesquisas pautadas no positivismo.
Não obstante, no plano prático, a produção de estatísticas oficiais foi se
dissociando das necessidades administrativas e gestionárias mais imediatas, bem como
das preocupações contábeis e financeiras dos administradores reais ocupados em gerir o
cotidiano e por vezes a urgência (crises, guerras, fomes). O século XIX viu surgir uma
estatística mais regular (o que dava relativa independência em relação às demandas
pontuais e urgentes das administrações) e mais centralizada, já que começavam a
esboçar as primeiras instituições (agências) estatísticas
71
.
71
Segundo Martin (2001, p.23), foi durante a segunda metade do século XVIII e nas primeiras décadas do
século XIX que emergiram os organismos oficiais encarregados de realizar as pesquisas estatísticas, de
reunir as informações estatísticas e de assegurar suas difusão junto aos governantes e ao público. Em
1756, a Alemanha e a Inglaterra criaram o primeiro organismo oficial de estatística. Na França, em 1784,
Necker propôs a criação de um Bureau central de pesquisa e ensino, “encarregado de recolher todas as
informações de ordem econômica, social e demográfica”. Um pouco antes de 1800, François de
Neufchâteau lançou as premissas de um serviço desenvolvido de estatística (sobretudo com a criação de
uma cadeira de estatística no Collège de France). Seu projeto se concretizou sem ele em 1800: o novo
97
Como foi visto no Capítulo 2, esse foi o tempo das exposições universais e dos
congressos internacionais de estatística. Organizou-se minimamente a oferta, começou-
se a pensar as bases, os desafios e os rumos que as instituições estatísticas deveriam
recorrer e perseguir.
A marcha das estruturas destinadas à produção e à centralização das informações
estatísticas foi lenta e gradual, contudo, irreversível. A autonomização crescente dos
organismos encarregados da produção e da análise das estatísticas permitiu também que,
progressivamente, as estatísticas alcançassem uma maior difusão pública. Como explica
Martin (2001, p. 23), pouco a pouco, o público foi associado e informado: desde então
as estatísticas deixam de constituir um “espelho” para o príncipe e seus administradores,
mas como ainda era vista naqueles tempos, um espelho da nação para a nação, ou um
espelho da sociedade para a sociedade
72
. Reconheceu-se, então, a singular importância
das estatísticas. E foi só a partir deste reconhecimento que, por exemplo, na França, os
recenseamentos passaram a ser regidos por leis após a Revolução.
Contudo, é preciso ter claro que as estatísticas só vieram a ser pensadas sob um
olhar nacional, se tornando realmente independentes em relação às demandas pontuais,
no seio do providencialismo, como será visto no tópico a seguir.
ministro do interior, Lucien Bonaparte, criou o Bureau de Statistique, ligado ao seu ministério. Ainda
segundo o autor: As administrações da Primeira República e depois do Império fizeram prova de uma
verdadeira vontade de se prover de um aparelho estatístico capaz de assegurar periodicamente as coletas
de informações, tanto de natureza econômica quanto demográfica e social. (M
ARTIN, 2001, p. 23).
72
Segundo Martin (2001, p. 24), pode-se tomar como exemplo de revistas regulares com publicações
voltadas a informações estatísticas: a Feuille du cultivateur a partir de 1790, a Bibliothèque Commerciale
e Annales de statistique a partir de 1801, os Archives générales de médecine desde 1823, como diversas
obras de síntese (Annuaire politique et économique em 1799, Statistique élémentaire de la France em
1805, Description topographique et statistique de la France em 1810). (...) Ao lado dessas publicações
especializadas, outras revistas, cuja finalidade principal não era a informação estatística abriram suas
páginas a esta: é o caso do Journal des Arts et des Sciences, do Magasin encyclopédique ou de Décade.
Um exemplo célebre é o de Sébastien Bottin, que lançou uma empresa de almanaques departamentais por
volta de 1800: o sucesso de sua empresa fez de seu patronímico um nome comum. A Société Statistique
de Paris publicou igualmente um jornal que ofereceu uma tribuna aos pesquisadores e administradores tão
diversos quanto Émile Cheysson, aluno de Le Play, e muitos membros da família Bertillon, responsável
pelo Bureau des Statistiques da cidade de Paris. Eles publicaram, sobretudo, dados relativos às causas dos
óbitos e às condições sanitárias.
98
Como explica Desrosieres (1996), durante o século XIX, a ligação entre a
estatística e o tratamento administrativo local de casos individuais ainda era direta.
Nessa época, vivia-se o que autor chamou de ação administrativa.
Elaborava-se a informação estatística através da compilação de listas
administrativas, por censos exaustivos, porém raros e abrangendo poucas variáveis e
através de monografias locais
73
. Como é possível perceber, produzia-se uma estatística
calcada na visão que se tinha das funções e atribuições do Estado. Agia-se sobre o local,
produzindo-se, para tanto, informações estatísticas exaustivas a nível local. Como
explica Desrosieres:
O Estado “administrativo” edita leis gerais, normas, códigos. Essas normas são
aplicadas, quer dizer, transformadas em decisões singulares por agentes locais.
Estes têm um grau de apreciação das circunstâncias particulares. Em casos não
previstos, suas decisões podem criar jurisprudência e, assim transformar a lei.
A incerteza relativa à faculdade de interpretar a lei e adaptá-la à circunstâncias.
A informação estatística, baseada em recapitulações de atos administrativos, só
pode ser exaustiva ou monográfica. A estatística é uma forma de contabilidade
das atividades do Estado. Assim, as primeiras estatísticas criminais francesas,
criadas em 1825, são chamadas por muito tempo de “contas gerais da justiça”.
A idéia de medir a criminalidade na sociedade só aparece muito mais tarde.
(D
ESROSIERES, 1996, p. 11-12)
Havia também uma forte demanda por estatísticas econômicas, mas ainda não
sabiam produzi-las. Pensavam o econômico através da população (teoria valor-trabalho,
o que, em Foucault, aparece na idéia de homem-máquina), e se tinha mesmo o que se
chama hoje de demografia (Foucault a enfatiza com a idéia de homem-espécie).
Houve, nos termos de Martin, uma “verdadeira febre estatística” durante a
73
Como explica Desrosieres (1996, p.7): Antes de fornecer tabelas e cifras, os recenseamentos da
população do início do século XIX são, em primeiro lugar, listas de famílias e dos indivíduos que as
compunham, As tabelas eram construídas conforme as divisões administrativas do território. O censo era
um mapa das populações. Na década de 1830, a Inglaterra foi subdividida entre repartições locais
encarregados de fazer o registro civil, gerenciar a assistências aos pobres e acompanhar, em caso de
epidemia, a mobilidade e a mortalidade, quase rua a rua. Esses escritórios foram coroados pelo General
Register Office, dirigidos pelo médico William Farr. A legitimidade dessa estatística radica numa ação
local de prevenção e assistência. O território era o suporte da agregação estatística. O perigo do contágio
epidêmico justificava a intervenção pública, que era primeiramente local.
99
segunda metade do século XVIII e início do século XIX. Produziu-se estatística sobre
uma infinidade de coisas. Havia uma necessidade, pode-se dizer enciclopédica, de
classificar e contar todas as coisas do mundo. Exemplos disso não faltam, em 1801,
por exemplo, Chaptal, Ministro do Interior, sucessor de Lucien Bonaperte e, portanto,
tutor do Bureau de Statistique:
solicitou aos prefeitos que lhe enviassem, trimestre por trimestre, um quadro
recapitulado da situação de seus departamentos (meteorologia, população,
mendicância, crimes, processos, preços, grãos, contribuições), além de todas as
informações relativas “às alegrias e tristezas dos habitantes do departamento e
a seus costumes”. Esses dados permanentes e regulares constituem as famosas
“estatísticas dos prefeitos”, considerados hoje pelos estatísticos como o
primeiro recenseamento geral verdadeiro da população (M
ARTIN, 2001, p. 23).
Mas no que pese os meritórios esforços, as estatísticas continuaram precárias, em
face das dificuldades, tanto teóricas quando materiais. Produziu-se estatística sobre uma
vasta gama de assuntos, mas não se obteve coesão. Buscaram-se os fatos pelos fatos, se
tinha pouca, quase nenhuma, visão sobre o geral, o nacional.
O Estado liberal tentou não intervir na economia, nos problemas sociais, mas, com
o tempo, foi ficando evidente que o liberalismo, embora representasse um
extraordinário avanço em relação ao absolutismo, era extremamente limitado como
solução política para os tempos que estavam por vir.
A sociedade da “livre concorrência” encontrava-se, desde sua origem, estruturada
de forma inteiramente hierárquica, o que, somado à não intervenção do Estado e aos
graves problemas sociais, acabava provocando uma situação insustentável.
O antagonismo representado por essa desigualdade de cunho político, econômico
e social, se acentuou em meados do século XIX. O operário assalariado só dispunha do
esforço de seu trabalho e tinha que aceitar necessariamente as condições impostas pelo
empregador (soldo e horário). O “princípio liberal” proibia toda intromissão do Estado
e, assim sendo, toda legislação de proteção ao trabalhador.
Contudo, a multiplicação dos problemas sociais (as doenças e acidentes de
trabalho, a insalubridade dos ambientes urbanos, a falência de tradicionais instituições
camponesas e a miséria), resultado do descontrolado crescimento da indústria, acabou
100
estimulando as associações operárias, que se subdividiam em associações políticas,
trabalhistas e assistenciais, com a finalidade não só de procurar garantir melhores
condições de vida e de trabalho, como, também, organizar e defender, uma forte
mudança da realidade (o maior expoente disso é o Manifesto do Partido Comunista, de
Karl Marx, publicado em 1847, onde se conclamava a união dos trabalhadores em prol
de uma revolução socialista
74
).
Foi assim que, na segunda metade dos 1800, na França, os trabalhadores saíram às
ruas para lutar em barricadas
75
, enquanto na Inglaterra as mulheres exigiam direitos
políticos e sociais. A violência começou a explodir sob formas até então desconhecidas
e os densos e infectos aglomerados urbanos possibilitaram, não apenas a veloz
disseminação de epidemias, como o aumento da visibilidade da conduta de seus
habitantes.
Visto como obstáculo ao bom desempenho nas fábricas, o alcoolismo era
apontado como vício de caráter moral. A prostituição e o infanticídio se intensificavam
devido às próprias condições de vida de operárias, que se debatiam na pobreza, no
abandono e na impossibilidade de assegurar uma vida digna
76
.
Não por acaso, foram empreendidas, no século XIX, as chamadas estatísticas
morais. Buscava-se conhecer a dimensão dos problemas sociais, tais como suicídio,
prostituição, homicídios, alcoolismo etc. Um bom exemplo disso foi a pesquisa sobre a
prostituição parisiense, de Alexandre Parent-Duchâtelet, membro do conselho de
salubridade da cidade de Paris. Como explica Martin:
74
Um pouco mais tarde, em 1863, é criada a Associação Internacional dos Trabalhadores, dirigida por
Marx, que foi também autor do seu manifesto inaugural e de seus estatutos.
75
Em 1870, o proletariado parisiense estabelece a Comuna de Paris.
76
As contradições do sistema capitalista e as mudanças que ele provocava traziam consigo questões que
urgiam ser respondidas. A “ciência da sociedade”, nos dizeres positivistas, nascia dessa demanda. A
sociologia buscava responder e explicar essas transformações. Destacam-se entre os clássicos do
pensamento sociológico: Marx, Durkheim e Weber. Cada qual à sua maneira e com seu método, eles
explicaram a gênese e as principais transformações do sistema capitalista e, também, as mudanças que ele
produzia na sociedade. Não raro, eles próprios e seus sucessores valiam-se de estatísticas em seus
estudos. A estatística alimentou as ciências sociais do século XIX, mas foi também, inversamente
alimentada pela capacidade de especialização, os saberes sobre o social, a elaboração de categorias e a
fabricação de cálculos estatísticos. (M
ARTIN, 2001, p. 30).
101
A pesquisa, feita entre 1827 e 1835, publicada postumamente em 1836 sob o
título De la prostitution dans la ville de Paris, considerée sous le rapport de
l’hygiène publique, de la morale et de l’administration18, apresenta uma
dimensão etnográfica e uma forte dimensão estatística: estatísticas
comparativas da população das prostitutas em Paris e em outros departamentos
franceses; estatísticas sobre as profissões exercidas pelos pais e testemunhas
do ato do nascimento das filhas, seu grau de instrução, as causas de seu estado
de prostituídas, a cor dos cabelos e dos olhos, sua constituição física (2001, p.
24).
A derrocada do liberalismo se acentuou com a Primeira Guerra Mundial. O
capitalismo se viu encurralado com a revolução Russa e com as idéias socialistas, que
ganhavam força em toda a Europa. A grande depressão do final da década de 1920 e o
fascismo, primeiro em sua forma original italiana, depois na forma alemã do nacional-
socialismo, inspiraram e subsidiaram as forças antiliberais de direita, o que acabou
desencadeando, mais tarde, a Segunda Guerra Mundial.
Como conseqüência da decadência do liberalismo, o mundo capitalista assistiu
atônito à derrocada dos governos constitucionais e de suas assembléias legislativas. O
pluralismo perdia espaço para o radicalismo de direita e nascia um tempo marcado pela
intolerância e violência. Há índices tangíveis desse processo. Como exemplifica
Hobsbawm:
Em 1918-20, assembléias legislativas foram dissolvidas ou se tornaram
ineficazes em dois Estados europeus, na década de 1920 em seis, na de 1930 em
nove, enquanto a ocupação alemã destruía o poder constitucional em outros
cinco durante a Segunda Guerra Mundial. Em suma, os únicos países europeus
com instituições políticas adequadamente democráticas que funcionaram sem
interrupção durante todo o período entreguerras foram a Grã-bretanha, a
Finlândia (minimamente), O Estado Livre Irlandês, a Suécia e a Suíça (1995, p.
115)
Em síntese, a Era da catástrofe, que engloba a revolução socialista, a primeira e
segunda guerra mundial, o abismo econômico do mundo capitalista do início do século
XX e o fim dos impérios Europeus marcou, também, e em conseqüência de tudo isso, o
total esgotamento do modelo liberal.
Em face disso, os anos posteriores à Segunda Grande Guerra Mundial seriam
marcados por uma reviravolta do sistema capitalista, que, revigorado e profundamente
102
reformado, passaria a viver sua Era de Ouro, caracterizada por um crescimento
econômico e desenvolvimento social nunca antes visto na história da humanidade. São
símbolos dessa transformação a importância central dadas ao planejamento e à
intervenção, onde as estatísticas ocuparam papel de destaque. Este tema será tratado no
tópico a seguir.
103
3.3 - 2ª Era estatística: O Estado providencial
O tempo histórico do Estado providencial, ou Estado de Bem-Estar Social,
tem início nos primeiros anos que sucederam a grande depressão, mas sua consolidação
coincidiu com o período histórico que Eric Hobsbawm denominou de Era de Ouro do
Capitalismo, que vai do fim da Segunda Grande Guerra Mundial a meados dos anos de
1970 e início dos de 1980.
Sua emergência nos anos que sucedem a Segunda Guerra Mundial, como um
Estado de novo tipo (talvez o correto seja dizer um governo de um novo tipo, fazendo
referência à idéia de uma história da governamentabilidade) se fez sentir nas novas
relações sociais que se estabeleceram entre Estado, mercado e comunidade, tendo como
conseqüência uma profunda transformação do papel do Estado em diversos aspectos da
vida econômica, social e política.
Os profundos abalos sofridos pelas economias capitalistas, em suas estruturas
produtivas, financeiras e comerciais, provocadas pela grande depressão (1929-1923)
induziram grandes transformações no delineamento das políticas econômicas dos
sistemas capitalistas. O período de recuperação que se delineou nos anos 1930 foi
interropido pela guerra, fazendo com que a maioria dos Estados Nacionais Europeus só
se enveredassem num processo de recuperação nos últimos anos da década de 1940.
Contudo, o desenlace do ideário liberal já se confirmava desde as primeiras
décadas do século XX. O panfleto “O fim do laissez-faire”, de Keynes, publicado em
1926, três anos antes da grande crise, já anunciava o óbito do liberalismo. Algo em
comum surgia no seio dos debates teóricos de então: as políticas econômicas de corte
liberal, até então predominantes, já não eram vistas como adequadas para permitir o
pleno desenvolvimento do processo econômico, bem como as políticas de “laissez-
faire”, que asseguravam os mecanismos de livre mercado, não davam conta dos
objetivos macro-econômicos de crescimento estável, abrindo espaço para um vasto
campo teórico sobre o papel do Estado nas economias capitalistas.
104
Uma nova concepção teórica do Estado foi sintetizada a partir dos prognósticos
de Keynes, distinta tanto do arranjo liberal, como do chamado socialismo de Estado. O
pensamento Keynesiano representou o elemento que faltava para legitimar e organizar a
nova política econômica. A prática de uma política anti-cíclica, enquadrando e
reforçando a lógica de mercado, dava ao Estado a capacidade de racionalizar a
economia em seu conjunto e orientá-la no sentido do Bem-Estar Geral.
A importância do Keynesianismo transcendeu o espaço da política econômica,
constituindo-se em um referencial inovador para a organização do Estado e das
sociedades capitalistas. O caráter dessa socialização e os meios institucionais requeridos
para seu funcionamento tiveram o suporte público do Estado, que deveria ser capaz de
determinar o valor agregado imprescindível ao aumento da produção, além da taxa de
remuneração das aplicações, sem que, no entanto, se tornasse necessária a apropriação
dos meios de produção privados pelo Estado
77
.
Aos poucos, o planejamento econômico tornou-se parte do cotidiano das
administrações dos países capitalistas avançados. A adoção de políticas de bem-estar
social, já durante e, especialmente após a Segunda Guerra Mundial deram origem ao
que se tornou conhecido como Welfare State, o que o sociólogo Boaventura de Sousa
Santos chama de Estado providencial.
Deu-se início a uma fase ímpar do sistema capitalista, que seguia numa
marcha progressiva de desenvolvimento, associada à diminuição da pobreza e das
desigualdades e na consolidação da democracia. Conforme analisa Santos, nesse
período:
(...) o Estado é, ele próprio, um agente ativo das transformações sociais
ocorridas na comunidade e no mercado e, ao mesmo tempo, transforma-se
constantemente para se adaptar a essas transformações. A sua articulação cada
vez mais compactada com o mercado evidencia-se na progressiva
regulamentação dos mercados, nas ligações dos aparelhos do Estado aos
grandes monopólios na condução de guerras e de outras formas de luta política
pelo controle imperialista dos mercados, na crescente intervenção do Estado na
regulação e institucionalização dos conflitos entre capital e o trabalho. Por
77
Uma das premissas principais do Modelo Keynesiano de desenvolvimento é a defesa da intervenção do
Estado na economia através de instrumentos de política econômica, como elemento de coordenação de
expectativas, contrabalançando as tendências do mercado (F
EIJÓ, 2002, p.3).
105
outro lado, o adensamento da articulação do Estado com a comunidade está
bem patente na legislação social, no aumento da participação do Estado na
gestão do espaço e nas formas de consumo coletivo, na saúde e na educação,
nos transportes e na habitação, enfim, na criação do Estado-Providência.
(S
ANTOS, 2005, p. 85)
Entretanto, não se pode perder de vista, conforme assevera Claus Offe, que:
o Estado de Bem Estar Social ou Welfare State não representou,
absolutamente, uma mudança estrutural na sociedade capitalista. Não se
dirige primordialmente àquelas classes e grupos que são as vítimas mais
óbvias do processo capitalista de industrialização: nem cuida das velhas
necessidades da sociedade. Em lugar disso, tenta compensar novos
problemas que são subprodutos do crescimento industrial em uma
economia privada (O
FFE, 1979, p. 212)
Embora não possa estar associado a uma mudança estrutural na sociedade
capitalista, certamente, o Welfare State foi mais do que um simples incremento de
políticas sociais no mundo capitalista. Ele representou, tamm, um esforço de
reconstrução econômica, moral e política. Nesse sentido, são elucidativas as seguintes
palavras de Esping-Anderson:
Economicamente, ele significou um abandono da ortodoxia de pura lógica do
mercado, em favor da exigência de extensão da segurança do emprego e dos
ganhos como os direitos de cidadania; moralmente, a defesa das idéias de
justiça social, solidariedade e universalismo. Politicamente, o Welfare State foi
parte de um projeto de construção nacional, a democracia liberal contra o
duplo perigo do fascismo e do bolchevismo (1995, p. 73).
É preciso recordar, nesse sentido, que o Welfare State emergiu como
concepção básica do Estado e da política estatal Keynesiana, na maior parte dos países
do Ocidente, embora em momentos diferenciados e com práticas específicas. Sua
conseqüência foi um “boom” sem precedentes, que beneficiou a maior parte das
economias capitalistas, ao mesmo tempo em que provocou uma radical transformação
106
no processo de acumulação e no conflito de classe, se afastando das formas radicais em
nível político.
O compromisso estabelecido pressupunha, por parte da classe trabalhadora, a
aceitação da lógica do lucro e da existência do mercado como eixos norteadores da
alocação de recursos do sistema de trocas internacionais e das mudanças tecnológicas.
Do mesmo modo, significou a garantia, por parte do capital, da defesa dos padrões
mínimos de vida, dos direitos sindicais, democráticos e sociais, tendo como requisitos o
pleno emprego e a renda real, tudo isso através da mediação do Estado.
Houve mudanças significativas em relação o que se entendia ser o papel do
“governo” nos Estados capitalistas. Pode-se mesmo dizer, nesse sentido, que a idéia que
se fazia do “governo” foi deliberadamente reformada. Tais mudanças não se deram ao
acaso: muitos ainda mantinham vivas as experiências do entreguerras, sobretudo, a da
grande depressão; temiam a ameaça do “comunismo”, que fazia fronteiras para oeste
sobre ruínas de economias capitalistas que não funcionavam e ainda lamentavam as
cicatrizes deixadas abertas pelas guerras e o radicalismo de direita. Como exemplifica
Hobsbawm:
Não foram mudanças pequenas. Elas levaram um estadista americano de férreas
credencias capitalistas – Averrel Harriman – a dizer a seus compatriotas, em
1946: “As pessoas desde país não têm mais medo de palavras como
‘planejamento’ [...] as pessoas aceitaram o fato de que o governo tem de planejar
tanto quanto os indivíduos desde país”. Elas fizeram um defensor do liberalismo
econômico e admirador da economia americana, Jean Monnet (1888-1979),
tornar-se apaixonado defensor do planejamento econômico francês.
Transformaram Lionel (Lord) Robbins, um economista adepto do livre mercado
que antes defendia a ortodoxia contra Keynes, e dirigira um seminário em
conjunto com Hayek na London School of Economics, num diretor da semi-
socialista economia de guerra britânica. Durante mais ou menos trinta anos
houve consenso entre os pensadores e formuladores de decisões “ocidentais”,
notadamente nos EUA, acerca do que outros países do lado não comunista
podiam fazer, ou melhor, o que não podiam. Todos queriam um mundo de
produção e comercio externo crescentes, pleno emprego, industrialização e
modernização, e estavam preparados para consegui-lo, se necessário, por meio de
um sistemático controle governamental e administração de economias mistas, e
da cooperação com movimentos trabalhistas organizados, contanto que não
fossem comunistas. A Era de Ouro do capitalismo teria sido impossível sem esse
consenso de que a economia de empresa privada (“livre empresa” era o nome
perfeito) precisava ser salva de si mesma para sobreviver (1995, p. 268).
107
O planejamento se tornou a essência
78
dos governos nos “Anos de Ouro” do
capitalismo, que, livre da ortodoxia liberal, pôde, de forma arquitetada, intervir tanto na
economia, quanto nos problemas sociais que o modo de produção capitalista,
inevitavelmente, produziria. Os Estados de economia-mista, como define Hobsbawm,
multiplicaram os campos de ação do Estado em comparação com o Estado
administrativo dos tempos do liberalismo. Como explica o autor:
O século XX multiplicou as ocasiões em que se tornava essencial aos
governos governar. O tipo de Estado que se limitava a prover regras básicas
para o comércio e a sociedade civil, e oferecer polícia, prisões e forças
armadas para manter afastado o perigo interno e externo, o “Estado-guarda-
noturno” das piadas políticas; tornou-se tão obsoleto quando o “guarda
noturno” que inspirou a metáfora (1995, p. 268).
É nesse contexto de intensas mudanças em relação à forma de governar, leia-se,
do surgimento de uma nova mentalidade de governo, e, nesse sentido, é certo pensar,
numa história da governamentabilidade, que se processou, também, a passagem da 1ª
para a 2ª Era estatística. Afinal, vale lembrar, planejar significa, antes e acima de tudo,
conhecer. Para tanto, demandou-se estatística como nunca.
Contudo, como explica Senra (1998), só foi possível às instituições estatísticas
responderem positivamente a essa demanda pela conjugação de três fatores inéditos:
Primeiro, um fator de ordem política, qual seja, os Estados assumem
abertamente suas muitas estruturas especializadas, querendo-se fortes
por todos os meios ao seu alcance, com o objetivo declarado de
promoverem um sólido crescimento econômico; agem pela via do
Planejamento Nacional, uma não-coisa razoavelmente fácil de ser
compreendido, porquanto amparado em teorias próprias devidamente
assentadas. Depois, dois fatores de ordem técnica, a saber, primeiro, a
existência de um corpo teórico avançado, a Contabilidade Nacional,
bem estruturado, capaz de coisificar muito proximamente o
planejamento; segundo, o avanço nas técnicas amostrais que viabilizava
a produção de registros estatísticos independentemente das pesquisas
censitárias, dando vida contínua às agências nacionais de estatística
(1998, p. 65-66).
78
Senra explica que, ao fim da Segunda Guerra, mesmo os países vencedores estavam destruídos (à
exceção dos Estados Unidos), mais ainda os países derrotados. Urgia fazê-los renascer. Para tanto, urgia
revelar os recursos disponíveis, bem como promover os planejamentos de reconstrução nacional cuja
distinta e especial matéria-prima são as estatísticas”
108
Enquanto o Estado liberal produzia uma estatística exaustiva, visando
procedimentos administrativos a nível local, o Estado providencial produzia estatística a
partir de técnicas amostrais, ignorando especificidades locais, visando às generalizações
que serviam a políticas sociais pensadas como um sistema coerente e nacional. Como
explica Desrosieres:
Na amostragem, a singularidade específica do indivíduo desaparece,
substituído pelo espécime tirado ao acaso de uma urna que se supõe
uniforme. A homologia dos dois procedimentos, administrativo e estatístico,
é impressionante. As leis sociais são aplicadas uniformemente em todo o
território nacional. Os cidadãos são equivalentes, assim como são
equivalentes as bolas que uma urna probabilística contém. Pensada como um
todo, a sociedade da sociologia solidarista de Durkheim agora dispõe de um
equipamento institucional, as leis sociais, e de um equipamento cognitivo, o
método das amostragens. Essas duas tecnologias são implementadas
paralelamente. Experimentais e parciais entre 1900 e 1940, estendem-se
maciçamente após a Segunda Guerra Mundial (D
ESROSIERES, 1996, p. 10)
Na verdade, já se conhecia e discutia o método da amostragem desde os
encontros internacionais de estatística. Quem primeiro advogou seu uso foi Andres
Nicolas Kiaer (1838–1919), com seu método de representatividade, na reunião do
Instituto Internacional de Estatística em 1895, em Berna, Suíça. Kiaer defendeu sua
idéia nas várias reuniões do Instituto Internacional de Estatística, realizadas em São
Petersburgo (1897), Budapest (1901), e em Berlim (1903)
79
.
Contudo, como foi visto no Capítulo 2, a legitimidade da estatística é, para além
de técnica, inextricavelmente social. Na época do liberalismo, pouco crédito era dado às
técnicas amostrais. Afinal, àquela época, a legitimidade da estatística estava na sua
exaustão e no detalhe dos casos particulares que ela revelava.
Com a falência do liberalismo, ao poucos, abriu-se espaço às pesquisas
amostrais. Começaram a surgir pesquisas usando a amostragem empírica para descrever
a situação dos trabalhadores e aposentados. Discutiu-se com mais afinco as técnicas e a
implementação de pesquisas pautadas na amostragem.
109
Pouco a pouco, a amostragem permitiu que os institutos de estatísticas
produzissem cada vez mais estatísticas
80
, não só em relação as variáveis ou ao tempo,
mas também em relação ao espaço. Os institutos, então tiveram vida e trabalho
contínuos e ganharam importância e financiamento. O planejamento nacional, nos
tempos do providencialismo, representava a síntese do projeto econômico e político de
um país e as contas nacionais
81
a expressão prática desse projeto.
É importante destacar, nesse sentido, que a partir do momento que os Institutos
de Estatística passaram a produzir registros estatísticos a partir das pesquisas amostrais,
houve o abandono, quase completo, dos registros administrativos como fontes
individuais para a elaboração de estatísticas. Tem-se a essa época, aquilo que Alain
Desrosieres chama de ação estatística. Nesse sentido, o autor sugere um interessante
paralelo. Nas palavras dele:
O Estado “estatístico” integra implicitamente as idéias de Quetelet sobre
o homem médio, as de Durkheim sobre fatos sociais versus fatos
individuais, as de Keynes sobre a especificidade das dinâmicas
macroeconômicas. O Estado-providência atua “em média”, cobre riscos,
assegura um perequação estatística e atuarial entre os indivíduos.
Esforça-se em reduzir desigualdades sociais, descritas por estatísticas
provenientes de pesquisas por amostragem. O ministro keynesiano
ajusta uma oferta global e uma demanda global recorrendo a modelos
macroeconômicos baseados nas tabelas da contabilidade nacional. A
79
Sobre isso, ver Memória (2004)
80
No Brasil, um exemplo dessas atividades é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad –,
implantada progressivamente a partir de 1967, para a obtenção de informações básicas necessárias para o
estudo do desenvolvimento socioeconômico do País. A Pnad teve início no segundo trimestre de 1967,
sendo os resultados apresentados com periodicidade trimestral até o primeiro trimestre de 1970. A partir
de 1971, os levantamentos passaram a ser anuais, com realização no último trimestre. A pesquisa foi
interrompida para a realização dos censos demográficos de 1970, 1980, 1991 e 2000. Na década de 70, os
principais temas investigados, além das características gerais da população, da educação, do trabalho, do
rendimento e da habitação, foram migração e fecundidade. Em 1974/1975, foi efetuada uma pesquisa
especial denominada Estudo Nacional da Despesa Familiar, que, além dos temas anteriores, investigou
dados sobre consumo alimentar e orçamentos familiares.
81
Como explica Feijó (2002, p. 3), o primeiro sistema de contas nacionais foi elaborado por
colaboradores de Keynes, em particular Richard Stone e James Mead, que trabalharam com ele durante a
Segunda Guerra. Assim, o surgimento do sistema de Contas Nacionais teve suas origens no modelo
Keynesiano e, não por acaso, Keynes necessitou de um modelo contábil para a economia para consolidar
suas idéias na prática. Ainda segundo Feijó, recuperar historicamente esta abordagem lança luz sobre o
fato de que uma agenda de produção de estatísticas oficiais deve ser definida num contexto econômico e
social e deve atender prioritariamente às necessidades de gestão de políticas públicas, em particular de
política econômica.
110
incerteza relativa aos riscos, probabilizados ou não. No primeiro caso,
ela é dominada recorrendo-se às propriedades da “lei dos grandes
números”. Esta permite que se supere a contingência e a
imprevisibilidade das situações individuais, assegurando uma
estabilidade e uma consistência a agregados estatísticos que podem,
assim, ser pensados e gerenciados pelo Estado. A Estatística do Estado
“administrativo” não podia aceitar a idéia de probabilidade, essencial,
no entanto, para o Estado “estatístico” (Desrosieres, 1996.p.12)
Surgiu uma estatística mais regular, mais independente em relação aos governos,
estreitamente ligada a uma determinada visão de Estado e, reconhecidamente, pública. É
interessante perceber como a forma da ação do Estado e dos procedimentos estatísticos
evoluíram de maneira paralela. Por um lado, a proteção social passou a ser regida por
leis nacionais: são políticas de cunho universalista, cobrem todo o território e são
baseadas em um principio atuarial de cobertura estatística dos riscos. Por outro lado, a
descrição estatística do mundo social não proveio mais apenas da contagem exaustiva
de casos individuais. Recorre-se à pesquisa por amostragem numa amostra aleatória
representativa no plano nacional (DESROSIERES, 1996).
O surgimento das contas nacionais, com o desenvolvimento progressivo de
pesquisas voltadas a mensurar o “mundo da economia”, num tempo de intervenções; e a
centralização do processo de pesquisa, num Estado centralizado e forte, são alguns dos
elementos que corroboram com a relação que aqui se está propondo entre Estado e
estatística. Ainda segundo Desrosieres:
Pode-se relatar de maneira comparável o desenvolvimento conjunto, entre 1930 e
1960, das políticas macroeconômicas Keynesianas e dos sistemas de
contabilidade nacional. Desde sua origem, esta última se coloca acima e fora das
empresas industriais e comerciais, singulares, locais e identificadas por seus
nomes e atividades específicas. Os agentes econômicos dos Tableaux
Economiques (quadros econômicos globais) e os setores dos quadros de relações
Interindustriais de Leontieff substituem as enumerações e descrições da
estatística industrial do século XIX. Durante o período de crescimento, de 1950 a
1970, a política econômica é pensada do ponto de vista de um ator central que
regula o jogo do mercado por meio de intervenções corretivas ou de fomento. A
contabilidade nacional ajusta-se bem a essa concepção de ação pública.
(D
ESROSIERES, 1996.p.10)
Foi nesse tempo, como foi visto no Capítulo 2, que as instituições estatísticas se
consolidaram como centros de cálculo, ampliam de forma significativa, através da
111
amostragem e outras técnicas estatísticas, sua capacidade de dizer diversas e complexas
realidades.Vivem, enfim, também sua era de ouro.
Contudo, esse quadro de grande crescimento econômico e arrefecimento das
desigualdades sociais - vividos durante os anos que sucederam a 2ª Guerra Mundial até
a crise do petróleo em 1973 - viria mudar em um curto espaço de tempo. Toda uma
concepção de Estado, estimulada pelo sonho do Welfare State, é colocada em cheque
pelo retorno das idéias liberais, pela globalização financeira e comercial e, sobretudo,
por mais uma crise do capitalismo mundial. Nasce um novo “tempo” e, com ele, uma
nova Era estatística. A essa mudança se dirigirá o tópico a seguir.
112
3. 4 - 3ª Era estatística – O Estado Neoliberal
Nos primeiros anos da década de 1970, a “Era de Ouro” entra em crise, assisti-
se, no mundo desenvolvido, a um quadro de diminuição do crescimento, queda dos
investimentos no setor produtivo, aceleração geral dos preços e endividamento dos
governos – o que representou, em última instância, tanto a crise da ordem social do
Welfare State quanto a falência do modelo fordista de acumulação capitalista.
Estava em jogo nesta crise não apenas o padrão de crescimento econômico e de
Bem-Estar Social, mas também a estrutura de organização das relações sociais gerada
por este padrão. O equilíbrio entre Estado, mercado e comunidade, entre acumulação e
consenso político, se decompõem, as limitações impostas pela crise às políticas do
“Welfare State” levam ao abandono dos compromissos econômicos e políticos que
regulavam seu funcionamento.
A crise que se inicia nos anos de 1970, ao reduzir o crescimento, põe em cheque
as bases políticas sobre as quais repousam as práticas redistributivas estatais. Os
conflitos distributivos voltam à cena política, restringindo as margens de negociação,
levando à ruptura do compromisso que deu sustentação ao Welfare State. Trata-se deste
modo, de uma crise de legitimação, expressa no esgotamento daquela forma particular
de regulação estatal baseada em políticas sociais e econômicas de corte Keynesiano.
Como resposta política a crise capitalista e servindo de contraponto econômico e
ideológico à predominância da intervenção estatal da Era de Ouro, os teóricos do
“neoliberalismo”, que desde 1947, nas reuniões da Sociedade de Mont Pèlerin
82
, vinham
discutindo como combater a política econômica keynesiana e o padrão de proteção
social do Welfare State, passam a resgatar e disseminar as idéias liberais de outrora, que
encontravam-se agora reformuladas aos novos tempos.
Aos poucos, as doutrinas neoliberais saiam dos limites estreitos do debate
acadêmico e faziam fronteiras. Foi assim que, em 1979, na Inglaterra, assistiu-se à
82
Seus principais expoentes eram Friedrich Hayek, Milton Friedman e outros (ANDERSON, 1995).
113
adaptação do discurso neoliberal à realidade política nacional com Margaret Thatcher;
em 1980, nos Estados Unidos, com Ronald Reagan, e, a partir daí, um crescente
processo de difusão do ideário neoliberal pelo mundo. Como explica Fiori:
Foi no início da década de 1980 que a sra. Margaret Thatcher pronunciou
sua célebre frase “ There is no alternative”. Naquele momento, seu
governo e o governo americano da administração Reagan tomavam as
primeiras decisões e iniciavam as políticas desregulacionistas que
derrubaram as fronteiras econômicas, integraram os mercados e
permitiram o avanço da globalização financeira. Mas foi, sobretudo, na
década de 1990 e nos países da periferia capitalista, que passaram a ser
chamados - nos meios financeiros – de “mercados emergentes”, que a
frase da sra. Thatcher se transformou num verdadeiro álibe, repetido pelos
seus governantes, pela sua imprensa e por uma parcela significativa de
seus intelectuais. A justificativa utilizada, em última instância, por todos
que aderiram ou se submeteram ao programa de reformas e políticas
neoliberais impostas, segundo eles, pela inexorabilidade tecnológica e
econômica da globalização. (2001, p. 107)
Assim, o clima ideológico e político do ocidente nos anos de 1980 trouxe
consigo um duplo movimento: por um lado uma supersticiosa exaltação do mercado e
de outro, a satanização do Estado, julgado o principal responsável por todas as
desgraças e infortúnios que, de diferentes maneiras, afetaram a sociedade capitalista
(BORÓN, 1995).
Uma espécie de operação ideológica pela qual a falência dos serviços públicos é
mobilizada como prova de verdade de um discurso que opera com oposições
simplificadoras, imagens dicotômicas entre o “público” e o “privado”, onde ao público
atribuiu-se a ineficiência, a corrupção e o desperdício enquanto a “iniciativa privada”
aparece sublimada como a esfera da eficiência, da probidade e da austeridade (TELLES,
1997).
Em contradição com as bases de sustentação do Welfare State, os teóricos do
neoliberalismo defendem a tese que o Estado não tem que interferir na realidade social a
título de compensar os problemas sociais gerados pelo processo de acumulação
capitalista e nem garantir bem-estar a sociedade; ao contrário, defendem a privatização
do bem-estar e, quando muito, admitem benefícios seletivos ao invés de universais.
114
De acordo dom Perry Anderson (1995) e Atílio Borón (1995), os defensores do
Estado neoliberal argumentam que este, ao invés de um gerente interventor na realidade
social (em especial na realidade econômica), deve ser uma agente fiscalizador e
regulador. De acordo com essa orientação, a ideologia neoliberal procede como se as
políticas compensatórias e de regulação do estado sobre o mercado fossem as geradoras
da crise econômica, donde surge a necessidade de desmontá-lo em benefício da
restauração do mercado. Nos países avançados, as propostas neoliberais consistiram na
redução do papel do Estado, no enfraquecimento dos sindicatos e na flexibilização do
mercado de trabalho.
Essa desestatização implica em que o Estado deve diminuir ao mínimo sua área
de atuação junto a realidade social, restringindo-se apenas aos serviços considerados
essenciais nas áreas de segurança pública, garantia da propriedade privada e assistência
a uma parte restrita da sociedade. Assisti-se assim, a questão da focalização e
implementação de políticas sociais setorizadas sem um projeto para a sociedade que as
articule e imprima um sentido político ao seu conjunto.
Bóron (1995) fala em vitória ideológica, já outros autores, como Ignácio
Ramonet (1998), sintetizam essa idéia em expressões como “pensamento único”
83
,
tentando descrever a sensação que os neoliberais querem apregoar. Como melhor
explica Fiori:
Religiões e ideologias, modismos culturais e acadêmicos já ocuparam
posições parecidas no passado. Mas é provável que nenhuma idéia secular
tenha alcançado, até hoje, uma hegemonia tão extensa e aplastante,
sobretudo depois da queda do Muro de Berlim e da derrota do mundo
socialista. Para tomar um ponto de comparação, O Keynesianismo, por
exemplo, foi um consenso amplo entre economistas e governantes do mundo
83
O que é pensamento único? A tradução, em termos ideológicos com pretensão universal, dos interesses
de um conjunto de forças econômicas, especialmente as do capitalismo internacional. Foi, por assim
dizer, formulado e definido a partir de 1944, por ocasião dos acordos de Bretton-Woods. Suas principais
fontes são as grandes instituições econômicas e monetárias - Banco Mundial, Fundo Monetário
Internacional, Organização de cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), Organização
Mundial do Comércio, Comissão Européia, Bundesbank, Banque de France etc. – que, por meio de
financiamentos, arregimentam a serviço de suas idéias, em todo o planeta, inúmeros centros de pesquisa
das universidades, das fundações. Estes, por sua vez, depuram e espalham a boa palavra, que é retomada e
reproduzida pelos principais órgãos de informação econômica e, especialmente, pelas “bíblias” dos
investidores e dos investidores de bolsas – The Wall Street Journal, The finacial Times, The
Economist. Far Eastern Economic Review, a agência Reuter etc. - propriedade, muitas vezes, dos grandes
grupos industriais ou financeiros. (R
AMONET, 1998, p. 57)
115
capitalista depois da Segunda Guerra Mundial. Mas, fora da academia e dos
gabinetes oficiais, nunca teve o sucesso desta nova versão da teoria
econômica neoclássica, nem tampouco se transformou em equilíbrio
ideológico da imprensa mundial, ou em assunto diário do homem comum. O
novo liberalismo ou “pensamento único”, apesar de conter forte conteúdo
econômico, e indiscutíveis pretensões a cientificidade acadêmica, foi muito
além de tudo isso, não apenas do ponto de vista territorial e sociológico, mas
sobretudo porque conseguiu se transformar num mix de projeto político-
econômico de curto prazo e utopia histórica de longo prazo. E, o que é mais
surpreendente, uma utopia ou crença quase religiosa, difundida igualmente,
nos anos 90, entre os países ricos e pobres” (F
IORI, 2001, p. 75)
A cruzada “privatista”, como define Bóron (1995), aparece como resposta
prática à aceitação ideológica da ineficiência do Estado propagada pelos neoliberais. A
diminuição dos investimentos públicos, o sucateamento dos órgãos e serviços prestados
pelo estado e a transferências de muitos deles a iniciativa privada foram algumas das
conseqüências desta conquista.
Nesse sentido, Santos (2005) refere-se a esse período de neoliberalismo como
capitalismo desorganizado, dando ênfase a perplexidade que as mudanças
implementadas possam causar, sobretudo, quando observadas a sombra do período
anterior. Como explica o autor:
O impacto das transformações no mercado e na comunidade sobre o
princípio do Estado tem sido enorme, embora se deva salientar que as
transformações do Estado ocorrem, em parte, segundo uma lógica
autônoma, própria do Estado. O Estado nacional parece ter perdido em
parte a capacidade e em parte a vontade política para continuar a regular
as esferas da produção (privatizações, desregulação da economia) e da
reprodução social (retração das políticas sociais, crise do Estado
providência); a transnacionalização da economia e o capital político que
ela transporta transformam o Estado numa unidade de análise
relativamente obsoleta, não só nos países periféricos e semiperiféricos,
como quase sempre sucedeu, mas também, crescentemente, nos países
centrais; esta fraqueza externa do Estado é, no entanto, compensada
pelo aumento do autoritarismo do Estado, que é produzido em parte
pela própria congestão institucional da burocracia do Estado e em parte,
e um tanto paradoxalmente, pelas próprias políticas do Estado no
sentido de devolver a sociedade civil competências e funções que
assumiu no segundo período e que agora parece estrutural e
irremediavelmente incapaz de exercer e desempenhar (2005, p. 88-89).
O Estado que nos tempos do Welfare State se queria forte, capaz de antecipar e
planejar a economia e a vida social, agora se quer mínimo. O sucateamento dos órgãos e
116
serviços públicos, seja pela falta de recursos financeiros, seja pela perda de recursos
humanos torna-se uma realidade.
Em face de tudo isso, a produção de estatísticas públicas foi seriamente afetada.
Nos primeiros instantes, as agências nacionais de estatística perderam muito sua
capacidade de trabalho. Como explica Senra:
Nesse tempo, a elaboração das estatísticas pelas instituições
estatísticas pública e oficial, muito sofreu com a crise fiscal dos
Estados, parte que são de suas estruturas. Sofreram, sendo ameaçadas,
num primeiro instante, quando se confundiu Estado menor com
Estado mínimo; então, pensou-se e falou-se e, não raro, ali e alhures,
agiu-se no sentido de acabar-se (ou reduzir-se fortemente) a
elaboração das estatísticas em caráter público; sua longa trajetória na
construção do Governo do Estado era ignorada, e, mais, era relevada
sua inevitável localização ao contexto dos Estados. (...) (S
ENRA,
p.128-129)
Enfraquecidas, as agências nacionais de estatística acabam não conseguindo
responder a crescente demanda por estatísticas, abrindo assim, um bom mercado a
indústria privada de estatísticas. Contudo, o convívio entre as estatísticas públicas e
privadas não foi tão tortuoso como, de início, se pode imaginar. Mais e mais, esse
convívio foi deixando evidente a necessidade da produção pública de estatísticas.
Há motivos suficientes para essa afirmação, nesse sentido, pode-se destacar: a
confiabilidade e legitimidade conquistada em décadas, em alguns casos, séculos de
intenso trabalho e pesquisa, seja porque há campos de pesquisa que fogem ao interesse
privado ou, como lembra Senra (1998), porque as bases de trabalho, as chamadas bases
estatísticas, elaboradas pelos institutos nacionais de estatística e essenciais para o
desenho de amostras e para a realização de trabalhos de campo, usadas com muita
freqüência pela indústria privada de estatística, exigem muito trabalho e são sempre
caríssimas.
A reforma do Estado implementada pelos governos neoliberais fez surgir uma
nova concepção de governo e com isso, uma nova demanda estatística. O Estado-Nação,
fragilizado, afasta-se da gestão da economia, mas lhe sobra a regulação e a fiscalização.
Organismos internacionais, tais como Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco
Mundial e a Organização Mundial do Comercio (OMC) passam a controlar e ditar as
117
regras gerais da política econômica. Precisam saber da inflação, do crescimento, da
produtividade e etc., para tanto, demandam muita estatística, o que acabou resgatando a
dignidade e importância dos institutos nacionais de estatística.
Junto com a crise capitalista das décadas de 1970 e 1980 reaparecem os graves
problemas sociais, mas esses, não são, como ao tempo do providencialismo, vistos e
combatidos a luz de um olhar universalista dos direitos sociais. São agora combatidos
com políticas sociais paternalistas que se dirigem à “clientelas” específicas. Assim, mais
e mais é preciso isolar, detalhar, controlar, mais e mais exigi-se estatísticas.
Com as tímidas políticas nacionais, ao poucos, foi-se perdendo a referência do
planejamento nacional como articulador da demanda por estatísticas. A contabilidade
nacional segue sendo feita, mas sem a ordenação do planejamento, perde muito do seu
significado.
O mundo não era mais o mesmo. Em poucos anos, a globalização, as mudanças
tecnológicas, as mudanças no mundo do trabalho, a crise do Estado-nação, a crise
social, a formação de cúpulas, blocos e grupos internacionais etc., viriam a produzir um
novo universo de relações sociais.
Nesse contexto, surge uma demanda que não é mais monopólio do Estado, uma
demanda que serve a interesses que se encontram fora das esferas governamentais.
Nesse instante, ainda dentro de uma concepção neoliberal de governo e de Estado, tem
início a gestação de uma nova Era estatística, a esse tema se dirigirá o tópico a seguir.
118
3.5 - O limiar de uma 4ª Era estatística – A crise do Estado-nação e a
radicalização da modernidade.
A crise do Estado-Nação, como entidade soberana, estava anunciada desde os
primeiros anos dos governos neoliberais. Tratava-se, desde o início, de uma crise de
legitimidade, uma vez que o Estado já não encontrava condições de cumprir as
promessas de bem estar, segurança social e estabilidade econômica.
Com a globalização, estreitaram-se, ainda mais, as margens de manobra dos
estados nacionais. A “multilaterização” das instituições de poder e a descentralização da
autoridade para governos regionais e locais ocasionaram o surgimento de nova lógica de
exercício do poder. Pode-se mesmo dizer, nesse sentido, que o que ocorreu foi uma
verdadeira transformação nas formas de governo e gestão.
Contudo, é equivocado falar no “fim do Estado-nação”. Não se trata disso, o
Estado-nação continua vivo e o interesse nacional ainda é o critério fundamental para
explicar as relações internacionais no mundo globalizado. O Estado, sob vários
aspectos, perde seu monopólio, mas continua a ter um importante papel na criação e
institucionalização, não só do sistema econômico, mas, tamm, da organização social.
Conforme sintetiza Ianni:
A originalidade dos estudos sobre a crise do estado-nação está em que
desvendam aspectos não só econômicos e políticos, mas também sociais,
culturais, demográficos, religiosos, lingüísticos e outros do nacionalismo.
Demonstram, mas uma vez, que a nação é um processo histórico, uma
realidade que se transforma de modo contraditório, em geral sob a influência
de grupos e classes, ou blocos de poder, dominantes; nem sempre
contemplando reivindicações de setores sociais subalternos, subordinados ou
tutelados. Mesmo nas sociedades industrializadas, centrais e dominantes,
subsistem desigualdades de todos os tipos, quando se mesclam diversidades
e antagonismos, alimentando tensões e intolerâncias, estereótipos e
preconceitos. Simultaneamente, os estudos demonstram que o estado-nação
está sendo seriamente desafiado pelos processos e pelas estruturas que
constituem o globalismo. A sociedade nacional como um todo, e em suas
partes, passa a ser influenciada pelas injunções e tendências que se
manifestam com a regionalização e a globalização. Os mais remotos
acontecimentos podem repercutir nas condições de vida e trabalho de
indivíduos, famílias, grupos sociais, classes sociais, coletividades ou povos.
É o que ocorre com a adoção das novas técnicas de produção e trabalho, os
desenvolvimentos da nova divisão transnacional do trabalho e produção, as
combinações de fordismo, toyotismo e terceirização. A globalização da
mídia impressa e eletrônica, juntamente com o marketing, o consumismo e a
cultura de massa, tudo isso penetra e recobre as realidades nacionais,
119
povoando o imaginário de muitos e modificando as relações que os
indivíduos, grupos, classes, coletividades e povos guardam consigo mesmo e
com os outros, com o seu passado e o seu futuro (1996, p. 129-130)
Em face destas transformações, vai se configurando um mundo novo. Muda-se
muito os domínios e as formas de governo, bem como o papel da sociedade e do
mercado frente ao Estado nacional. Como conseqüência dessas mudanças, altera-se,
também, a demanda e a oferta de estatísticas públicas.
3.5.1 - Novas demandas e os desafios futuros.
Ao contrário das demais, as transformações que anunciam a 4ª Era estatística
não estão relacionadas apenas às mudanças em relação às demandas do Estado. Nesta
fase, o Estado continua ocupando um papel importantíssimo na definição do programa
estatístico, mas perde muito de sua centralidade.
Resultado do processo de globalização, a oposição que separava o global, o
nacional e o local como esferas independentes e autônomas, aos poucos, vai se diluindo.
O poder de governar não é mais exclusividade do estado nacional. Governa-se a nível
global quando se dita regras para o comércio, poluição, metas de inflação etc., e
governa-se a nível local quando se tem que enfrentar os problemas sociais gerados pela
globalização e a má distribuição de renda.
De uma perspectiva cultural, essa diluição das fronteiras se dá de forma mais
aparente. Até bem pouco tempo, era muito fácil aceitar a idéia de que a cultura e o
espaço encontravam-se intimamente articulados a um território fisicamente
determinado. Dentro das fronteiras geográficas e políticas do Estado-nação estavam
circunscritos a identidade e as manifestações culturais de um povo.
Contudo, como explica Ortiz (1997), a globalização das sociedades e a
mundialização da cultura romperam com essa integridade espacial, diluindo as
fronteiras e tornando necessário pensar o mundo através de perspectivas mais amplas.
120
A partir da idéia de “desterritorialização”, o autor quer falar, não do fim das
fronteiras, mas da diluição dessas através da criação de novos contornos. A intenção é
mostrar como a mundialização da cultura criou um “tipo” de territorialidade que não
está mais vinculada a um entorno físico determinado.
O mercado global, por exemplo, situa-se acima das fronteiras geográficas do
estado-nação. O empresário transnacional não considera o mercado mundial com sendo
apenas o resultado da adição de mercados nacionais. Como explica o autor:
Os administradores globais sabem que não podem vender seus produtos para
“todos” (essa afirmação é apenas um enunciado retórico). Importa, portanto,
distinguir, em escala planetária, camadas padronizadas de consumidores.
Feixes desterrritorializados – situados em Tóquio, Buenos Aires ou Londres,
isso é secundário – podem então ser agrupados por idade, sexo, renda,
modos de vida, etc. Dentro desta perspectiva o mundo não seria um todo
compacto, unidimensional, mas uma amálgama de camadas diferenciadas
entre si. Claro, todas partem da matriz modernidade-mundo, mas
qualitativamente distintas umas das outras (1997, p. 273).
Esse processo de desterritorialização tem implicações também no contexto do
Estado-nação. O Estado, como suas fronteiras territoriais, segue sendo a referência da
identificação cultural de um “povo”, mas a modernidade-mundo multiplica esses
referentes identitários, retirando do Estado-nação a primazia de defini-los (ORTIZ,
1997).
Alteram-se, assim, de forma significativa, os referenciais que delineavam e
explicavam a organização no mundo contemporâneo. Instaura-se, nessa confusão de
paradigmas, uma espécie de crise de sentido, trazendo uma sensação de que não se pode
obter conhecimento sistemático sobre a organização da vida em sociedade.
Cria-se, então, um paradoxo curioso, uma vez que a produção de informação
84
é
um traço característico da contemporaneidade. A ordenação e reordenação reflexiva das
84
Segundo Ramonet, em 30 anos, o mundo produziu mais informação do que durante os 5 mil anos
precedentes. Um único exemplar do New York Times contém mais informação do que poderia adquirir,
durante toda sua vida, uma pessoa do século XVII. Todo o dia, por exemplo, cerca de 20 milhões de
palavras de informação técnica são impressas nos diversos suportes (revistas, livros, relatórios, disquetes.
CD Rom). Um leitor capaz de ler mil palavras por minuto, oito horas por dia, gastaria um mês e meio
para ler a produção de um só dia; e no final desse período, teria acumulado um atraso de cinco anos e
meio de leitura. (1998, p. 65)
121
relações sociais, à luz da renovação contínua de conhecimento, deveriam causar uma
sensação oposta. Contudo, como explica Giddens (1991), como todas as tendências de
desenvolvimento, a radicalização da modernidade apresenta traços dialéticos, o que
acaba provocando características opostas.
Assim, a confiança no conhecimento de especialistas e nos sistemas peritos está
entre as condições essenciais para a sensação de continuidade e segurança em um
mundo de incertezas e riscos tão evidentes. Nesse contexto, a informação estatística tem
importância especial.
Vistas a partir de sua capacidade de ordenamento, de normalização das práticas,
de construção de classes claras e cortes nítidos, as estatísticas subvertem a lógica de um
mundo desordenado, tornando-se essenciais para dar sentido às ações no mundo
contemporâneo.
Assim, seja do ponto de vista das empresas privadas ou dos governos dos
Estados, a produção de informação estatística torna-se fundamental. Como explica
Gracioso e Jannuzzi:
A informação estatística é um insumo fundamental para planejamento e
formulação de políticas estratégicas no mundo contemporâneo. No ambiente
de incertezas e de rápidas transformações que caracterizam o momento
atual, não há como uma organização privada ou pública antecipar de modo
consistente os cenários futuros, estabelecer metas realistas, definir planos de
contingência, ou, enfim, tomar decisões em bases mais técnicas, em
qualquer escala, sem o emprego e a análise das estatísticas econômicas,
sociais e demográficas disponíveis para domínios geográficos de atuação da
organização. As estatísticas públicas permitem às empresas fazer estimativas
conjunturais de expansão ou contração de consumo, descobrir oportunidades
locacionais para instalação ou exploração comercial, avaliar as taxas de
crescimento de mercados. No setor público e na sociedade civil, esferas de
poder de interesse particular nesse projeto, a informação estatística constitui,
ademais de recurso básico e estratégico para a elaboração de diagnósticos
sociais e econômicos ou dimensionamento do público-alvo de planos e
políticas, um instrumento de controle societal do Estado (G
RACIOSO e
JANNUZZI, 2002, p. 92).
122
Mas não se trata apenas disso. Além de influir em decisões da esfera pública, de
empresas privadas e nos encaminhamentos de entidades da sociedade civil organizada,
as estatísticas têm influenciado muito a conduta individual das pessoas.
Como foi visto no início deste Capítulo, um dos traços que diferenciam
modernidade e tradição é a idéia de uma especificidade da reflexividade moderna. O
que caracteriza essa reflexividade é a possibilidade de mudança de comportamento à luz
informação sempre renovada, onde às estatísticas coube papel de destaque.
Isto é especialmente evidente quando se pensa a partir do pólo da regulação.
Mas, como foi visto no Capítulo 1, o poder das estatísticas não se resume a isso. Na
atualidade, cada vez mais o poder das estatísticas tem agido sobre o pólo da disciplina.
Influenciando a maneira como as pessoas se vêem e enxergam o mundo, as estatísticas
contribuem de forma distinta para a reflexividade moderna. Mais e mais, as pessoas
transformam ou dirigem suas ações a partir de conhecimentos estatísticos. Como
exemplifica Giddens:
Tampouco fica a reflexividade das estatísticas oficiais confinada à esfera do
Estado. Qualquer pessoa num país ocidental que decide se casar hoje em dia,
por exemplo, sabe que a taxa divórcios é alta (e pode também, embora de
maneira imperfeita ou parcial, conhecer uma pouco mais sobre demografia
do casamento de da família). O conhecimento da alta taxa de divórcios pode
afetar a própria decisão de se casar, bem como decisões sobre considerações
relacionadas – o regime das propriedades etc. A consciência dos níveis de
divorcio, além disso, é normalmente muito mais do que simplesmente a
consciência de um fato bruto. Ele é teorizado pelo agente leigo de maneiras
impregnadas pelo pensamento sociológico. Desta forma, virtualmente todos
que consideram o casamento têm alguma idéia de como as instituições
familiares vêm mudando, mudanças na posição social relativa e no poder do
homem e da mulher, alterações nos costumes sexuais etc. – tudo isso
entrando nos processos de mudança ulterior que reflexivamente informa. O
casamento e a família não seriam o que são hoje se não fossem inteiramente
“sociologizados” e “psicologizados” (1991, p.49)
Como foi dito no início desse tópico, com o advento do neoliberalismo, o Estado
perdeu muito do seu papel de ordenador central da vida econômica e social. Nesse
123
contexto de descentralização, não só o mercado, como a sociedade civil organizada,
ganharam espaço no pólo da regulação. Houve, ainda, o reconhecimento de esferas de
poder a nível global e a necessidade de fortalecimento dos governos a nível local.
Assim, a noção de regulação expandiu-se além do governo central dos Estados, criando
uma nova e complexa demanda por estatísticas públicas.
Não obstante, no pólo disciplina, há agora, também uma demanda renovada. Não
basta mais saber apenas do emprego e desemprego, da pobreza, da inflação, dos
salários, do consumo etc. Quer-se saber muito mais sobre o social. A comunidade,
dividida em classes, fortalecida pelas negociações classistas do tempo do
providencialismo, encontra-se agora diante de uma nova realidade. Como exemplifica
Santos (2005), fazendo um paralelo entre o providencialismo e neoliberalismo:
A rematerialização da comunidade, obtida no período anterior através do
fortalecimento das práticas de classe, parece enfraquecer de novo, pelo menos
na forma adquirida anteriormente. As classes trabalhadoras continuam a
diferenciar-se internamente em estratos e frações cada vez mais distintas, tanto
em termos da sua base material como da sua lógica de vida; a classe dos
serviços atinge proporções sem precedentes; as organizações operárias deixam
de poder contar com a lealdade garantida de seus membros (cujo número,
aliás, diminuiu) e perdem o poder negocial face ao capital e ao Estado; as
práticas de classe deixam de se traduzir em políticas de classe e os partidos de
esquerda vêem-se forçados a atenuar o conteúdo ideológico dos seus
programas e a abstractizar o seu apelo eleitoral; em paralelo com uma certa
descentralização das práticas de classe e das políticas de distribuição de
recursos em que se tinham cristalizados (de que é máximo exemplo o Estado
providência), surgem novas práticas de mobilização social, os novos
movimentos sociais orientados para reivindicações pós-materialistas (a
ecologia, o antinuclear, o pacifismo); ao mesmo tempo, a descoberta feita dos
dois períodos anteriores de que o capitalismo produz classes é agora
complementada pela descoberta de que também produz a diferença sexual e a
diferença racial (daí o sexismo e os movimentos feministas, daí também o
racismo e os movimentos anti-racistas) Como diz Habermas, “as políticas de
distribuição cedem lugar às políticas sobre as gramáticas das formas de vida”
(S
ANTOS, 2005, p. 88)
D
essas gramáticas das formas de vida, da qual fala Habermas, surge uma
demanda estatística cada vez mais volumosa e específica. As agências estatísticas
continuam a ofertar as estatísticas de emprego e desemprego, previdência, saúde, mas,
como alerta Senra (2001), talvez, sejam necessários [agora] novas concepções
metodológicas, conceituais e processuais.
124
Estabelece-se, assim, aquilo que Alain Desrosieres chamou de “ação
descentralizada”. Como reitera o autor, nesse momento:
(...) os lugares de ação, de decisão e, portanto, de produção e uso da
informação são cada vez mais numerosos e estão interligados de modos
variados. Além disso, também se multiplicam as esferas consideradas de
responsabilidade coletiva: meio ambiente, bioética, crianças maltratadas,
dependência de drogas, prevenção da AIDS e outras doenças novas, proteção
das minorias culturais e lingüísticas, igualdade entre homens e mulheres,
segurança dos equipamentos domésticos e industriais, normas de qualidade dos
bens de consumo. Em todos esses casos, são elaboradas e negociadas
simultaneamente modalidades de julgamento e de formalização estatística
desses problemas, distribuições de responsabilidades entre os diversos atores,
modos de avaliar a posteriori as ações públicas e de transformá-las em função
dessas avaliações. Informações são produzidas e utilizadas em todos os elos
dessa cadeia circular composta de descrição, ação e avaliação (D
ESROSIERES,
1996, p.13 )
A inserção desses novos temas está intimamente relacionada à complexidade e
reflexividade da vida social contemporânea. Aí, um enorme campo de oportunidades e
mesmo de ativismos se oferecem à investigação.
É recorrente encontrar referência às demandas provenientes de ONG´S que tem
interesse em temas específicos como meio ambiente
85
(sob a ótica do desenvolvimento
sustentável), saúde, violência, juventude, idosos, índios, negros, excluídos etc.
Os municípios e os Estados Federados, cada vez mais, tentam pautar suas
condutas com base em informações estatísticas. Suas responsabilidades, em face da
crise social, se ampliaram de forma substantiva. É preciso saber das potencialidades,
dos problemas, e, mais que isso, é preciso isolar, localizar, definir onde, como e com
quem serão gastos os recursos públicos. A amostragem, feita nacionalmente, não pode
ser fragmentada, daí a necessidade de estatísticas representativas a nível local.
Amplia-se o campo de investigação na área de segurança pública, em face do
crime organizado, do tráfico internacional de drogas, da prostituição etc.
As novas tecnologias e a nova divisão transnacional do trabalho exigem novas
abordagens. Não obstante, volta-se a demandar estatísticas comparáveis. Os blocos
125
econômicos, cada vez mais, subsidiam a idéia de um Estado em rede
86
. Querem
informação estatística, não mais só da França ou da Inglaterra, mas da União Européia,
onde Institutos transnacionais são criados com essa missão.
Há, ainda, os grandes debates relacionados a gênero, que requerem cada vez
mais estatísticas relacionadas ao homem e a mulher. Não obstante, se faz necessário
estatísticas voltadas à orientação sexual da população, sobretudo, com a aprovação, em
alguns países, da união civil de homossexuais.
Esses são apenas alguns, da imensa variedade de temas a que se demandam
estatísticas. Responder positivamente essa demanda, cada dia mais, se torna um
imperativo às Instituições estatísticas. Contudo, são muitos os dilemas e os obstáculos
que as Instituições estatísticas têm que superar para que possam dar conta dessa
demanda.
O primeiro deles é conseguir traduzir essa demanda que extremamente complexa
e difusa. Não se trata de uma tarefa fácil, como foi visto, os programas estatísticos
sempre estiveram a reboque das alterações nas demandas do Estado. Será preciso criar
canais de comunicação cada vez mais sofisticados com a sociedade. Muitas vezes, será
preciso antecipar essas demandas, criando grupos de trabalho capazes de discutir os
aspectos mais importantes da contemporaneidade
87
: os principais desafios, onde se
concentram as maiores pressões, as tendências gerais de governo etc.
85
Sobre a demanda por estatísticas ambientais, ver BOLLIGER e SCANDAR (2002)
86
No volume 3 de sua trilogia, CASTELLS (1999) ao analisar a união Européia em face da globalização,
aponta para a formação do que ele chamou de Estado em rede. Nas palavras dele, o Estado em rede é um
Estado caracterizado pelo compartilhamento de autoridade (ou seja, em última instância, a capacidade de
impor violência legítima) em uma rede. Rede, por definição, tem nós, e não centro. Nós podem ser de
tamanhos diferentes e estar ligados por relações assimétricas na rede, de tal forma que o Estado em rede
não impede a existência de desigualdades políticas entre seus membros. Na verdade, todas as instituições
governamentais não são iguais na rede européia. Não apenas os governos nacionais ainda concentram
muita capacidade de tomada de decisão, como também há importantes diferenças de poder entre os
Estado-nação, embora a hierarquia de poder variem em diferentes dimensões: a Alemanha representa o
poder econômico hegemônico, mas a Grã-Bretenha e a França detêm poder militar muito maior e
capacidade tecnológica pelo menos igual. Entretanto, não obstante essas assimetrias, os váriosnós do
Estado em rede europeu são interdependentes, de forma que nenhum nó, nem o mais poderoso, pode
ignorar os outros, nem mesmo os menores, no processo decisório. Essa é a diferença entre uma rede
política e uma estrutura política centralizada (1999, p. 406 - 407)
87
Um interessante trabalho sobre os desafios futuros que os institutos de estatísticas terão que enfrentar
pode ser encontrado em FELLEGI (1999).
126
Traduzida a demanda, há o obstáculo do saber-fazer. Aspectos técnicos
metodológicos são essências nesse momento. É preciso muita cautela, sob risco de se
perder a credibilidade. É preciso falar com as ciências, buscar conceitos cristalizados,
definições claras e, mais que isso, é preciso estar consciente dos limites desses conceitos
e definições. O campo semântico das estatísticas deve ser delineado no momento da
produção. Como explica Senra:
Isso põe as agências estatísticas diante de um dilema: de um lado, deixar-se
envolver pelas demandas flutuantes, o que pode ameaçar sua credibilidade;
de outro lado, voltar-lhes as costas, pura e simplesmente, o que pode
ameaçar sua legitimidade. Ora, credibilidade e legitimidade não são
indissociáveis, ao contrário, são as duas faces da integridade das agências de
estatística, aquela sendo sua dimensão interna, técnica e científica, e esta sua
dimensão externa, social e política. Será preciso ajustá-las, e a saída estará
em algum ponto médio entre a credibilidade, pautada na independência
proveniente da ciência e da pesquisa, e a legitimidade, pautada na
dependência proveniente da sociedade (aí presente o Estado e, ai de nós!,
também presente o Governo) (S
ENRA, 2001, p. 59)
Passado essas fases, depois de se ter organizado um programa, entra-se no
mundo da produção e oferta de estatísticas públicas. E para se responder positivamente
essa nova demanda (ou parte dela), muita coisa tem que ser feita.
Como lembra Senra (2001), em muitos casos será necessário mudar as pesquisas
existentes, alterando-se conceitos e/ou processos; em outros, será necessário mudar o
enfoque de análise dos resultados
88
, lançando sobre eles “um novo olhar”; e ainda
assim, será necessário que as agências realizem novas pesquisas
89
. Essas novas
pesquisas, alerta o autor, devem estar assentadas em uma base conceitual sólida e
robusta, devem, também, ter bases processuais precisas e ainda serem geradas de modo
permanente e sistemático. Há, ainda, na perspectiva de Senra, a necessidade de
descentralização, sem perder de vista a coordenação central.
88
Góes (1996), lembra que, na área dos estudos sócio-demográficos, as possibilidades do acesso e uso de
microdados (dados referidos a cada unidade informante) abrairam novos caminhos para a compreensão da
dinâmica social.
89
Guizzardi (2004), Senra (1996) e Jannuzzi (2002) alertam para a importância do registro administrativo
como fonte para a produção de estatísticas. Retirados do cotidiano da administração pública, se bem
tratados e agregados, podem conter informações importantes. Claro, eles apresentam limitações. Trazem
sempre a marca da burocracia do Estado, dos assuntos que interessam ao Estado, sua coleta não é para
fins estatísticos, portanto, pode conter erros de toda ordem, além de falseamentos e negligências.
127
Uma mudança recente e muito importante na oferta de estatísticas públicas é a
disseminação de indicadores sociais. Com ele, aumentou-se de forma significativa o
campo semântico das estatísticas. Como nunca, o processo de transformar uma visão
sócio-política da realidade em uma visão técnico-científica foi tão aparente. Conforme
conceitua Jannuzzi:
um indicador é uma medida em geral quantitativa, dotada de significado
social substantivo, usado para substituir, quantificar ou operacionalizar um
conceito social abstrato, de interesse teórico (para pesquisa acadêmica) ou
programático (para a formulação de políticas). É um recurso metodológico,
empiricamente referido, que informa algo sobre um aspecto da realidade
social ou sobre mudanças que estão se processando na mesma (J
ANNUZZI,
2001, p.15).
Ainda de acordo com esse autor, as estatísticas públicas – dados censitários,
estatísticas amostrais e registros administrativos – constituem-se na matéria prima para
a construção de indicadores sociais. O que diferencia a estatística pública do indicador
social é o conteúdo informacional presente, isto é, o “valor contextual” da informação
disponível neste último (JANNUZZI, op.cit, p.15).
Os indicadores sociais são uma resposta à demanda por estatísticas analíticas,
muitas vezes usadas como “fixadores” de direitos. De fácil compreensão, eles são
suporte naturais para debates políticos e acadêmicos e, pelo mesmo motivo, são usados
como muita freqüência pela imprensa, sobretudo, a televisiva.
Muitas vezes, os indicadores sociais são elaborados por analistas fora dos
institutos oficiais de estatística, o que por certo, traz alguns prejuízos, já que, sendo
traduções de segunda ordem, podem ser (re)significados de forma equivocada. Melhor
seria se os próprios institutos os fizessem, dando limites claros para sua interpretação e
utilização
90
. Talvez, o melhor mesmo seria se fossem feitos de forma coletiva, juntando
o conhecimento acadêmico com o saber – fazer dos institutos, tendo em vista as
diferentes demandas da sociedade.
Um lado interessante da oferta, e que é fruto da revolução tecnológica das
últimas décadas, é a digitalização. Traduzidas em bytes, cada vez mais se pode ofertar
128
estatística, seja através da internet, cd ou dvd. Encorajando os usuários a trabalhar
grandes massas de dados, programas tais como o Statistical Analysis System (SAS) ou
o Statistical Package fo Social Siences (SPSS) tem revolucionado o uso das estatísticas
para avaliações e pesquisas. Há, ainda, os programas voltados ao georeferenciamento,
capazes de demonstrar geograficamente dados estatísticos.
Multiplicando-se os campos de análise, cada vez mais as estatísticas revelam os
mundos, mais e mais se expandem seus campos semânticos, bem como, cada vez mais,
elas se inserem num campo de produção e reprodução cultural de signos e imagens que
norteiam a realidade, influenciando, rotineiramente, através da regulação e/ou da
disciplina, a vida de milhões de pessoas.
Há, assim, evidências suficientes para comprovar que se vive hoje no limiar de
uma 4ª Era estatística, se não, nela própria. No que tange a demanda – agora mais
complexa, abrangente e plural - isso é claro. Quanto à oferta, embora o esforço seja
tímido - talvez o certo seja dizer, cauteloso- é possível perceber que há mudanças
estruturais em curso, pelo menos no que diz respeito às potencialidades. Ainda é preciso
tempo para se avaliar essas transformações.
Por fim, fica a necessidade, cada vez maior, de se ter uma atitude sempre
reflexiva em relação a produção e uso da informação estatística, aonde, à sociologia das
estatísticas, reserva-se um papel importante. A esse tema, se dirigirá as Considerações
Finais dessa Dissertação.
90
Em Jannuzzi (2002), pode-se ter uma boa noção das potencialidades e limites para um uso adequado
dos indicadores sociais.
129
Considerações Finais:
Aproxima-se o ponto final desta dissertação. As argumentações aqui
desenvolvidas procuraram orientar uma visão diferenciada das estatísticas. Subvertendo
a prática, buscou-se ter as estatísticas como objeto de estudo e, contrariando a intuição,
tentou-se mostrar como o conhecimento estatístico é socialmente elaborado e quais
implicações derivam disso. Resta, agora, fazer os apontamentos finais.
Como se viu, a quantificação está intimamente relacionada à racionalização da
vida desde tempos imemoriais. Sobre um mundo quantificado, leia-se, disciplinado,
edificou-se, uma cultura da quantificação. As estatísticas modernas surgiram
exatamente dessa necessidade de racionalização das práticas.
Dentro das estruturas de governo foi se descobrindo esferas diferenciadas de
poder, que não diziam mais respeito apenas à manutenção do poder do príncipe e seu
principado. Descobriu-se, através da agregação estatística, que a população tem
características e dinâmicas próprias.
As estatísticas, então, passaram a criar os espaços públicos sobre os quais os
governantes deviam conhecer e sobre eles, agir
91
. Agia-se no pólo da regulação.
Formalizou-se uma “arte de governar” que, sob a ótica da governamentabilidade, passou
a conceber a economia e a sociedade como esferas passíveis de intervenção.
Não obstante, através de suas classes, médias e de noções como a de risco, razão
e causalidade, as estatísticas serviram para fazer uma espécie de “organização
epistemológica” dos indivíduos. Exercendo, assim, seu poder no pólo da disciplina.
Uma forma de poder bem mais disseminada, eficaz e difusa que o da regulação.
Através de suas médias, classes e categorias, as estatísticas disciplinam e
ordenam o mundo. No vai e vem entre casos particulares e generalizações nacionais, as
estatísticas constroem espaços privilegiados que dão sustentação a ação sobre os dois
pólos. Dada sua natureza simbólica, o poder das estatísticas age através da normalização
das subjetividades, criando categorias e integrando um sistema de razão sobre o qual se
passa a ver e agir sobre mundo.
91
Mais que isso, as estatísticas contribuíram com a idéia de que a sociedade não se confunde com o
Estado, fazendo-se fundamental, ao início dos estudos da sociologia.
130
Contudo, como se tentou demonstrar, as estatísticas, embora sejam revertidas de
um saber e sintaxe que se querem universais, são compostas a partir de disposições e
categorias delineadas em situações históricas específicas. Daí a possibilidade de se lhes
marcar “tempos” e diante de cada tempo, compreender como novos e diferentes
significados lhes foram atribuídos. Daí também a necessidade de uma atitude sempre
reflexiva diante da produção e uso das estatísticas públicas.
Toma-se o exemplo das estatísticas sociais, como se poderia tomar,
praticamente, todas as áreas de que se produz estatísticas. Todos sabem que a definição
de “social” é muito vaga, em contrapartida, todos reconhecem a necessidade de
desbravá-lo.
Nesse sentido, são várias as questões e os obstáculos que se apresentam à
análise, afinal: Onde começa e termina o social?
Onde termina a juventude? Onde
começa a velhice? O que é ser pobre? etc.
Responder a qualquer uma dessas perguntas é algo extremamente difícil. Em
nenhum outro campo da realidade há tanta complexidade e antagonismos como no
“campo do social”. Como se viu, a cada tempo histórico/técnico do capitalismo há
demandas específicas, bem como há um modo diferenciado de se olhar a realidade.
Por certo, os limites que definem, por exemplo, o que é ser velho hoje, é bem
diferente do era ser velho a tempos atrás. As rápidas mudanças que estão se
processando, faz com que, a cada dia mais, se diluam os limites que marcavam essas
categorias.
Não obstante, é preciso lembrar que a teoria do conhecimento e a teoria política
são inseparáveis (B
OURDIEU, 1883). Toda teoria política encerra, pelo menos
implicitamente, uma teoria da percepção do mundo social. Isso permitiu separar, por
exemplo, os diferentes significados atribuídos a pobreza, assim como definir uma e
outra Era estatística.
Ora, se analisado tema a tema, conceito a conceito se descobrirá que é possível
produzir estatísticas de perspectivas muito variadas. Descobrir-se-á, também, que essas
escolhas são fruto de determinados pontos de vista, delineados em momentos históricos
específicos.
Isto posto, e tendo em vista os pólos e a natureza do poder das estatísticas, faz-se
necessário pensar que tipo de estatística se quer, que realidades se quer retratar e sobre
131
qual enfoque se fará isso. Daí as perspectivas opostas sobre o mesmo tema. Isto não
diminui a importância das estatísticas. Elas são imprescindíveis a contemporaneidade.
Contudo, será preciso, cada vez mais observá-las em sua dimensão sócio-política.
Para essa atitude reflexiva, a sociologia das estatísticas contribui de forma
especial. A formalização dos estudos e conceitos nesse campo de conhecimento pode
fornecer material necessário para estudos empíricos complexos.
Pode-se, por exemplo, fazer a história social da emergência de cada um dos
problemas a que as estatísticas se dirigem. Sua constituição progressiva, quando e em
quais circunstâncias esses problemas se tornaram “problemas sociais”, dignos de serem
discutidos, teorizados e mais que isso, qual a origem da demanda estatística por esses
problemas. Sobre qual perspectiva eles são analisados, porque esta e não aquela
perspectiva, a diferenças entre os países etc.
Pode-se medir o impacto das transformações de determinadas abordagens
estatísticas sobre as políticas públicas. Pode-se estudar o saber-fazer dos Institutos, em
sua dimensão técnico científica, mas também em sua dimensão sócio política.
A partir das idéias de fetichismo, poder simbólico, causalidade prática,
normalização das práticas, sistema de razão etc., pode-se investigar tema a tema,
conceito a conceito, de que forma, e em que medida, determinadas “verdades” reveladas
pelo olhar estatístico influenciam a forma com que as pessoas se vêem e enxergam o
mundo e quais as conseqüências disso nos pólos da disciplina e regulação.
Um campo enorme de oportunidades se coloca a investigação. Um espaço da
sociologia das estatísticas, reconhecida como disciplina especial, com objeto e
perspectivas próprias o qual esse autor dedica essa contribuição.
132
Referências Bibliográficas:
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Rio de Janeiro
2006
Dissertação apresentada no Curso de Mestrado em
Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais; Área de
concentração: População, Sociedade e Território;
Escola Nacional de Ciências Estatísticas –
ENCE/IBGE, como requisito à obtenção do Título de
Mestre.
Orientador: Prof. Nelson de Castro Senra
__________________________________
Prof.Dr. Nelson de Castro Senra
__________________________________
Prof. Dra.Maria Nélida González de Gomez
___________________________________
Prof. Dr. Paulo de Martino Jannuzzi
Rio de Janeiro
2006
Resumo:
Embora não seja um campo estabelecido de investigação, pode-se dizer que a
análise presente nesta dissertação encontra-se entrelaçada pelo que se convencionou
denominar de sociologia das estatísticas oficiais ou, simplesmente, sociologia das
estatísticas. A intenção é mostrar que a representação estatística da sociedade, em seus
fenômenos populacionais, sociais, econômicos etc., longe de ser apenas um “dado” ou
um número que representa determinada realidade, é uma construção social. Advoga-se,
pois, que as estatísticas oficiais fazem parte de um laborioso processo de construção
social da “realidade”, exercendo um tipo de poder muito característico. Assim, as
estatísticas são apresentadas como um campo de produção e reprodução cultural,
integrando um sistema de razão e fazendo-se essencial aos governos. As instituições
estatísticas são analisadas a partir de sua trajetória histórica. Discute-se as
especificidades da produção estatística, seus principais atores e a busca pela
legitimidade e credibilidade em face das controvérsias e limitações. A relação entre as
Estatísticas e os Estados é apresentada a partir da idéia de governamentabilidade. A
intenção é mostrar como essa relação foi delineada historicamente, atribuindo, a cada
período técnico/histórico do capitalismo, novos e diferentes significados as estatísticas
públicas. Por fim, apresentam-se as possibilidades e potencialidades da sociologia das
estatísticas como um campo de estudo especial.
Palavras-chaves: Sociologia das estatísticas, Estado, Ciência, poder,
governamentabilidade e Eras estatísticas.
III
Abstract:
Although it is not an established field of investigation, it can be said that the
analysis presented in this dissertation is interlaced by what was conventionally named
sociology of the official statistics or, simply, sociology of statistics. The intention is to
show that the society’s statistical representation, in its populational, social, and
economical phenomena, far from being just a datum or a number that represents certain
reality, is a social construction. It is advocated, thus, that the official statistics are part of
a laborious process of social construction of the “reality”, exerting a very characteristic
type of power. Thereby, the statistics are presented as a field of cultural production and
reproduction, integrating a system of reason and making itself essential for the
governments. The statistic institutions are analyzed from its historical course. It is
discussed that the specificities of the statistic production, its main actors and the search
for legitimacy and credibility in face of the controversies and limitations. The relation
between Statistics and States is presented from the idea of governmentability. The
intention is to show how this relation was historically delineated, attributing to each
technical/historical period of the capitalism, new and different meanings to the public
statistics. Finally, the possibilities and potentialities of the sociology of the statistics are
presented as a special field of study.
Key words: Sociology of the statistics, State, Science, power, governmentability,
statistic Ages.
IV
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS .............................................................................. I
RESUMO ................................................................................................ III
ABSTRACT ............................................................................................ IV
INTRODUÇÃO ...................................................................................... 01
1- A NATUREZA DAS ESTATÍSTICAS ............................................ 06
1.1 -
O PENSAR QUANTITATIVO E A RAZÃO CIENTÍFICA: OS
ELEMENTOS NECESSÁRIOS AO CONHECIMENTO ESTATÍSTICO ........ 07
1.2 - A CIÊNCIA DO ESTADO .................................................................... 23
1.2.1- O que, quem e como governar ? ............................................................ 27
1.3 - DISCIPLINA E REGULAÇÃO: OS DOIS PÓLOS DO PODER DAS
ESTATÍSTICAS ........................................................................................ 39
2- AS INSTITUIÇÕES ESTATÍSTICAS ............................................. 54
2.1 - O CONTEXTO E AS DELIBERAÇÕES DOS CONGRESSOS
INTERNACIONAIS DE ESTATÍSTICA ................................................................
55
2.2 -
AS INSTITUIÇÕES ESTATÍSTICAS COMO CENTROS DE CÁLCULO
.................................................................................................................... 67
2.3 -
A DIFÍCIL ARTE DE CALCULAR: LEGITIMIDADE, CREDIBILIDADE
E CONTROVÉRSIAS EM ESTATÍSTICAS PÚBLICAS
........................................................................................................................................ 72
3- AS ERAS ESTATÍSTICAS ................................................................ 81
3.1- UMA INTRODUÇÃO ........................................................................................ 82
3.2- 1ª ERA ESTATÍSTICA - O ESTADO LIBERAL .......................................... 88
3.3- 2ª ERA ESTATÍSTICA - O ESTADO PROVIDENCIAL ............................ 97
3.4- 3ª ERA ESTATÍSTICA - O ESTADO NEOLIBERAL .............................. 105
3.5 – O LIMIAR DE UMA 4ª ERA ESTATÍSTICA – A CRISE DO ESTADO-
NAÇÃO E A RADICALIZAÇÃO DA MODERNIDADE .................................. 111
3.5.1 - Novas demandas e os desafios futuros .............................................. 112
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................ ................................... 122
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................ 125