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Rosane Azevedo de Araujo
A CIDADE SOU EU?
O Urbanismo do Século XXI
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Urbanismo PROURB da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal do Rio de Janeiro / UFRJ.
Orientadora: Profa. Dra. Denise B. Pinheiro
Machado
Rio de Janeiro
2007
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2
A663
Araujo, Rosane Azevedo de,
A Cidade sou eu? : o urbanismo do século XXI/ Rosane
Azevedo de Araujo. Rio de Janeiro: UFRJ/FAU, 2007.
232 f. : il. 30 cm.
Orientadora: Denise B. Pinheiro Machado.
Tese (doutorado) UFRJ/PROURB/Programa de Pós-
Graduação em Urbanismo, 2007.
Referências bibliográficas: p.210-222.
1. Urbanismo. 2. Arquitetura. I. Machado, Denise B.
Pinheiro. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-
Graduação em Urbanismo. III. Título.
CDD 711
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A CIDADE SOU EU?
O Urbanismo do Século XXI
Rosane Azevedo de Araujo
Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo / PROURB
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo / FAU da Universidade Federal do Rio de Janeiro /
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção de Grau de Doutor em Urbanismo.
Defendida e aprovada em 13 de novembro de 2007 por:
____________________________________________
Profa. Dra. Denise B. Pinheiro Machado Orientadora
PROURB-FAU-UFRJ
____________________________________________
Profa. Dra. Lúcia Maria Sá Antunes Costa
PROURB-FAU-UFRJ
____________________________________________
Profa. Dra. Rosângela Lunardelli Cavallazzi
PROURB-FAU-UFRJ
____________________________________________
Profa. Dra. Ana Clara Torres Ribeiro
IPPUR-FAU-UFRJ
____________________________________________
Prof. Dr. Aristides Ledesma Alonso
UERJ-FACHA
Rio de Janeiro
2007
4
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra.Denise B. Pinheiro Machado, pela orientação e acolhida generosas. Por suscitar
e incentivar o espírito de investigação e pesquisa. Por sua incansável determinação em
transformar, cada vez mais, o PROURB num pólo de excelência em Urbanismo.
Ao Dr. MD Magno, autor da teoria que possibilitou a elaboração desta tese, e que nos serve
de ferramenta para entendimento do mundo contemporâneo.
À profa. Dra.Rachel Coutinho Marques da Silva, pelas excelentes aulas de cidade
contemporânea, pelo contato produtivo e acolhedor no decorrer do curso, e por ter participado
da banca de qualificação desta tese.
À profa. Dra. Lúcia Maria Antunes Costa, pelas preciosas contribuições diretas e indiretas
a esta tese, por ter participado da banca de qualificação, e por apoiar descobertas de novos
conhecimentos nos alunos e pesquisadores.
A todos os professores e funcionários do PROURB, que formam esta comunidade de estudo e
pesquisa, da qual tenho satisfação de fazer parte.
À profa. Dra. Adriana Ítalo, in memoriam, por ter delicadamente se disponibilizado a ser
interlocutora desta tese, pela participação na banca de qualificação, e por seu auxílio como
especialista em filosofia. Pela lembrança da voz grave, o olhar atento e o sorriso esclarecedor.
Ao prof. Dr. Aristides Alonso, porto amigo, colaborador e interlocutor desta e de outras teses.
Ao prof. Dr. Potiguara Mendes da Silveira Jr., que, com sua amizade incansável, muito me
incentivou a cumprir prazos e cronograma desta tese.
Ao prof. Dr. Pedro Daluz Moreira, pela inesgotável gentileza na parceria deste curso, pela
interlocução e companheirismo nas questões urbanísticas.
À profa. Dra. Nelma Medeiros e profa. Patrícia Netto pela colaboração e interlocução nesta
tese.
Ao grupo Novamente, pela escuta de minhas questões da tese.
Ao Dr. Sérgio Lamarão, pela revisão de textos.
Ao Sr. Octávio Fernandes de Araujo, meu pai, por tudo e pelos incentivo e apoio
permanentes.
Ao Sr. Carlos Fernandes de Araujo, por sua compreensão quanto a minha necessidade de
concentração para finalizar esta tese.
A José Augusto Dantas, pelo estímulo.
À Isadora e Manoela Azevedo de Araujo Dantas, pelo incentivo, e por compreenderem que os
verdadeiros vínculos são construídos a cada dia.
5
Porque Liberdade não é a de ser qualquer e outra Pessoa, mas a de ser essa
única e absoluta cidade, essa absoluticidade que mais ninguém o é como
eu o sou, embora nela aprisionado: cidadela da singularidade, UniCidade.
(MD MAGNO, 2006)
6
RESUMO
ARAUJO, Rosane Azevedo de. A Cidade Sou Eu?: O Urbanismo do Século XXI. Rio de
Janeiro, 2007. Tese (Doutorado em Urbanismo) Programa de Pós-Graduação em
Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2007.
Atualmente, existem tantos novos conceitos de Cidade quanto novos parâmetros para analisá-
los. Dadas a permeabilidade e a diluição das fronteiras decorrentes da difusão tecnológica
ocorrida nas últimas décadas, podemos afirmar que todo cidadão é agora um cosmopolita, e
que o urbanismo se tornou o Orbanismo, pois, potencialmente, o mundo é nossa cidade. Este
trabalho toma as articulações teóricas da Nova Psicanálise e aplica ao Urbanismo no intuito
de desenvolver a hipótese de que não distância que permita circunscrever separadamente
Eu e Cidade, pois o processo de explosão semântica e conceitual da idéia de cidade é
correlato ao de descentralização e fragmentação da noção de eu. O trabalho resenha conceitos
de cidade trazidos por vários autores da segunda metade do séc. XX; apresenta algumas
variações do conceito de Eu desde Descartes até sua confluência na noção de Rede; e aplica
os raciocínios de pólo, foco e franja para concluir apontando um conceito de cidade
abrangido, em ultima instância, pelo conceito de Eu = Pessoa da Nova Psicanálise. A cidade
que cada um é é co-extensiva a seu modo urbano de inserção no mundo.
7
ABSTRACT
ARAUJO, Rosane Azevedo de. The City is Me?: The Twenty First Century Urbanism. Rio
de Janeiro, 2007. Thesis (Doctorate in Urbanism) Programa de Pós-Graduação em
Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2007.
We have nowadays as many new concepts of City as many parameters to analyse them. Given
the permeability and the dissolution of boundaries due to the technological diffusion of the
last decades, we can say that every citizen is now a cosmopolitan, and that Urbanism became
Orbanism. This can be said because the world is potentially our city. The present thesis
applies some conceptions of New Psychoanalysis to Urbanism in order to develop the
hypothesis: there is no longer a distance between Me and the City. The semantical and the
conceptual explosions of the city‘s idea correspond to the decentralization and fragmentation
of the notion of Me. This thesis reports the city‘s conceptions of many authors; displays some
variations of the conception of Me since Descartes until its confluence to the notion of
Network; and applies the reasoning of pole, focus and fringe to point towards a conception of
City embraced by New Psychoanalysis proposition ―Me = Person‖. The city each one is is
co-extensive to one‘s own urban way of insertion in the world.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, 11
1 SOBRE CONCEITO, 27
1.1 O conceito de Cidade, 32
1.2 A cidade, 34
2 RECONCEITUANDO A CIDADE, 37
2.1 A cidade informacional, 39
2.2 A videocidade, 44
2.3 A metápole, 45
2.4 As megacidades, 46
2.5 A cidade global, 47
2.6 A cibercidade, 47
2.7 A e-topia, 48
2.8 A cidade nodal, 51
2.9 A cidade dos Bits, 53
2.10 A ecstacity, 66
2.11 Outros conceitos de cidade, 72
3 O URBANISMO EM ESTADO FLUIDO, 75
3.1 Breve introdução à topologia, 77
3.2 Uma forma que cria sua mutação permanente, 80
3.3 O Orbanismo do século XXI, 85
4 RECONCEITUANDO EU, 89
4.1 René Descartes, 90
4.1.1 Filosofia cartesiana e a questão do fundamento, 90
4.1.2 Sujeito como fundamento: Eu-substância, 91
4.1.3 Sujeito como consciência em primeira pessoa, 93
4.1.4 Sujeito da reflexão, 94
4.1.5 O Eu cartesiano: Eu-sujeito, 95
4.2 Emmanuel Kant, 96
4.2.1 A revolução copernicana e o projeto crítico, 97
9
4.2.2 O sujeito transcendental kantiano, 98
4.3 Sigmund Freud, 100
4.3.1 Freud e a psicanálise, 100
4.3.2 Inconsciente e consciência: a tópica freudiana, 103
4.3.3 Eu: das Ich, 108
4.4 O pensamento sistêmico de Ludwig von Bertalanffy, 109
4.5 O pensamento sistêmico de Maturana e Varela: o conceito de autopoiesis, 117
4.5.1 Unidade, clausura e acoplamento, 118
4.5.2 O conhecimento humano, 126
4.6 O rizoma de Gilles Deleuze e Félix Guattari, 129
4.7 A ecologia cognitiva de Pierre Lévy, 131
4.7.1 Os engates do espaço-tempo, 133
4.7.2 Virtualizações, 139
4.8 Redes complexas, 146
4.8.1 Redes aleatórias, 147
4.8.2 Redes sem escala, 149
4.9 Quadro Resumido, 152
4.10 Considerações, 154
5 O CONCEITO DE PESSOA SEGUNDO A NOVA PSICANÁLISE, 159
5.1 A equivalência Eu = Pessoa, 161
5.2 Pessoa = Formações Primárias + Formações Secundárias + Formação Originária, 167
5.2.1 Formações Primárias, 167
5.2.2 Formações Secundárias, 170
5.2.3 Formação Originária, 172
5.3 Pessoas são IdioFormações do nosso caso, 174
5.3.1 Haver, 175
5.3.2 A Pessoa existe na ordem do Ser e na ordem do Haver, 177
5.4 Pessoa é Pólo com Foco, Franja e Fundo, 179
5.5 Definições negativas de Eu = Pessoa, 183
6 A CIDADE SOU EU, 189
6.1 A cidade sou eu: pólo, foco, franja, 193
6.2 O pólo urbano em foco e franja, 196
7 CONCLUSÃO, 203
REFERÊNCIAS, 210
ANEXO 1 - Pequeno glossário de alguns conceitos da Nova Psicanálise, 223
ANEXO 2 - Breve explanação do conceito de Pessoa e do Personalismo, 231
INTRODUÇÃO
que definir um ―novo urbanismo‖, que não se fundará na fantasia gêmea
da ordem e da onipotência. O novo urbanismo colocará em cena a incerteza
(...) Um urbanismo capaz de reinventar o espaço psicológico (...) Dado que
está fora de controle, o urbano vai converter-se em um novo campo para a
imaginação. Este urbanismo redefinido não será apenas uma profissão, mas
uma maneira de pensar, cuja ideologia consistirá na aceitação do que existe.
(KOOLHAAS, 2002: 6)
Este trabalho tem como objetivo apresentar um novo conceito de cidade. Ao tomar
como tema a hipótese A cidade sou eu, partimos da polissemia do conceito de cidade, que é
hoje evidenciada por vários autores. Portanto, não fazemos senão nos filiar às várias posições
teóricas que decidiram enfrentar o desafio de repensar o Urbanismo de modo coerente com o
risco, a incerteza, mas igualmente com as potencialidades que caracterizam nossa época.
Para tanto, aplicaremos uma teoria psicanalítica ao Urbanismo para definir esse novo
conceito de cidade. Como sabemos, os campos de conhecimento não são concebidos sob
fronteiras
1
, e mais, a prática de fazer passagem do método de uma disciplina para outro
metabase é antiga e representa uma história de sucesso na produção intelectual
2
. O que nos
interessa é que, contemporaneamente, dada a permeabilidade dos saberes, é possível fazer a
psicanálise explicar o urbanismo e fazer com que o urbanismo explique nossa época.
Incluímos em nosso trabalho resultados das pesquisas de diversos pensadores do
campo do urbanismo (ou que contribuem indiretamente para ele) tanto para mostrar o
deslizamento conceitual sofrido pela cidade, quanto para evidenciar que compartilhamos do
estado inquiridor que configura a atualidade. Quando incluímos pensadores dos campos da
filosofia, biologia, ciência da computação, psicanálise, física, etc., tivemos a intenção de tanto
mostrar o deslizamento também sofrido pelo conceito de Eu, e apresentar formas de
1
Vide o pensamento sistêmico de Bertalanffy, resumido no cap. 4 abaixo. De um lado, explorou o uso
generalizado de procedimentos de isomorfismo e, no limite, evidenciou a analogia como instrumento heurístico
constitutivo de qualquer conhecimento.
2
A revolução científica no século XVIII foi decorrente da junção entre a física (descritiva) e a matemática
(pura). Justamente este cruzamento das duas disciplinas proporcionou a revolução científica com o poder de
performance nunca antes visto.
raciocínios mais complexos, quanto deixar claro que compartilhamos da perplexidade
característica de uma postura reflexiva, que nos parece resumir o estado geral do pensamento
contemporâneo.
O que há de fundamentalmente comum a tais investigações, incluindo a nossa, é o fato
de serem herdeiras da mesma virada de pensamento ocorrida no séc. XX, o qual tornou
possível as tecnologias da comunicação em base micro-eletrônica
3
. Quem se alinha ao
trinômio cidade / sociedade / tecnologia formula o urbanismo a partir de noções e referenciais
informação, comunicação, rede, complexidade, digitalização e seus sucedâneos tecnológicos
de grande e pequena escala que foram possíveis graças às conquistas das gerações de
pesquisadores e pensadores que, a partir dos anos 1930, ampliaram o problema do
conhecimento com base na idéia de que conhecer é construir, mas que doravante é entendida e
praticada a partir da indeterminação, da indecidibilidade, e da complexidade. Esta é uma
linhagem plenamente reconhecida por Manuel Castells, que diz:
No cerne da mudança tecnológica que liberou o poder das redes estava a
transformação da informação e das tecnologias da comunicação baseadas na
revolução micro-eletrônica que teve lugar nos anos 1940 e 1950. Essa
transformação constituiu a fundação de um novo paradigma tecnológico,
consolidado nos anos 1970, principalmente nos Estados Unidos, e
rapidamente difundido através do mundo, conduzindo ao que caracterizei, de
modo descritivo, como a era da informação‖ (CASTELLS (ed.), 2004: 6).
Entendemos que o conceito de cidade, como qualquer conceito, é um produto
historicamente construído. É uma ferramenta conceitual que sofre pressões de reformulação a
cada momento em que grandes transformações estruturam uma nova época. Entendemos
também que um ―novo urbanismo‖ deve levar em consideração a complexidade e a
3
É como conceitua Manuel Castells ao buscar definir o que de específico na sociedade informacional e do
conhecimento que contemporaneamente constituímos. Para o autor, ―informação‖ e ―conhecimento são
características das sociedades humanas que variam conforme o espaço, o tempo e as culturas, sem que seja
possível distinguir, com as características citadas, o que de novo em nossa época. Donde, o entendimento de
que ―o que é de fato novo, tanto tecnológica quanto socialmente, é uma sociedade construída em torno das
tecnologias de informação em base micro-eletrônica, às quais acrescento as tecnologias biológicas baseadas na
engenharia genética, pois também se referem à decodificação e recodificação da informação na matéria viva‖
(CASTELLS (ed.), 2004: 7).
indeterminação. Seguindo esta linhagem, queremos considerar as inflexões que, da geometria
como construto artificial ao computador como pensamento material, permitem compreender
que os vinte e cinco séculos que qualificaram a arquitetura como um saber e uma técnica da
permanência estão cedendo passo a uma arquitetura materialmente líquida (SOLÁ-
MORALES, 2002: 126), compatível com a proposição A cidade sou eu.
O mundo passou por uma transformação no séc. XX que demonstrou não apenas a
ineficácia de qualquer vontade de verdade ou fundamento, como também, e sobretudo, o
aspecto ‗fluido‘, ‗líquido‘, comunicacional, não-linear, artificial do conhecimento e do mundo
por ele transformado. Os efeitos no campo do urbanismo são palpáveis. A noção de projeto
urbano, por exemplo, marcou uma ruptura com as práticas de planejamento urbano comuns do
pós-guerra (VIVIANNE, 1998: 62). Buscou-se redefinir a população habitante, restituindo-lhe
o papel de agente e dando lugar ao componente cultural ineliminável que molda os espaços e
suas representações sociais (CHRISTELLE, 1998: 109, 111).
A postura teórica e política deixa de ser o planejar, a partir de objetivos que incluem
exigências (funções, densidade, gabarito) e meios prévios de atingi-los, lançando-se ao como
lidar com situações aqui e agora para as quais não parâmetros confiáveis para além de sua
reelaboração permanente. Nesse sentido, a formulação da idéia de ‗projeto urbano‘ a partir do
final dos anos 1970, e os debates que suscitou, coincidem com um momento cultural do
Ocidente em que se tomava consciência dos liames de interdependência que vinculavam os
acontecimentos naturais, as intervenções humanas, as motivações psicológicas e culturais,
com base nos aportes de conhecimentos oriundos da biologia, da ecologia, da cibernética, da
antropologia, da física (VIVIANNE, 1998: 98). No final dos anos 90 e início do novo século,
as conseqüências desse entendimento começam a se fazer sentir.
É sintomático que autores como François Ascher assimilem ao urbanismo as
referências trazidas pelas ciências da complexidade, com suas noções de indeterminação e
imprevisibilidade, e pela cibernética, com a idéia de feedback (ASCHER, 2001). É
sintomático que autores como William Mitchell, Manuel Castells ou Saskia Sassen abordem o
problema da cidade a partir das tecnologias digitais, do espaço dos fluxos, dos mercados
eletrônicos e dos ―centros‖ transterritoriais constituídos via telemática. É, por fim, sintomático
que essas e outras concepções contemporâneas de cidade sejam unânimes em constatar a
relatividade das noções de centralidade (política, administrativa, financeira, territorial) e sua
impostação geográfica; de organização (política, administrativa, financeira, territorial) e sua
funcionalidade vertical; de planejamento e sua implementação causal a priori. Em seu lugar,
optam por análises que levam em conta a incerteza, o risco, a imprevisibilidade, a
indeterminação, e a multiplicidade em um mundo globalizado. A postura torna-se reflexiva,
no sentido de incluir a revisão constante das práticas sociais à luz das informações que
concernem essas próprias práticas, num exame permanente das escolhas possíveis,
reexaminado-as em função do que se começa a produzir
4
.
No cerne dos estudos que cruzam cidade, arquitetura, meio-ambiente, sociedade e
tecnologia reside um questionamento do que seja artificialidade como construção e natureza
como coisa dada; do que seja sociedade e cultura como produção humana e mundo físico ao
qual, sem se confundir com ele, o homem se integra e transforma. Vários autores
contemporâneos diagnosticaram que não há, com efeito, distinção de natureza entre o dado
4
Um pequeno exemplo desta situação, é a notícia que lemos em 28 de setembro de 2007: ―Nova Zelândia usa
wiki para criação de lei pelo cidadão‖ ou ―Wiki da polícia permite que você escreva a lei‖ onde o departamento
de polícia da Nova Zelândia, para criar uma nova lei de polícia que substituirá a lei existente que data de 1958,
está utilizando como um de seus expedientes para elaborar a lei, a ferramenta wiki, onde os cidadãos podem
editar partes do projeto de lei sugerido ou incluir um totalmente novo -. Para o encarregado de criar a nova lei, o
superintendente de polícia do país, Hamish McCardle, isto talvez seja a extrema democracia. (Esta ferramenta
―wiki‖ lembra a wikipedia, onde, em tese, as pessoas podem editar, via Internet, textos diversos, que ficam
registrados e são acrescidos ou modificados por qualquer outra pessoa. Esta mídia é facilmente editada pelos
usuários, com ferramentas de linkagem, inserção de conteúdo multimídia, sendo que a resultante é um texto
completo sobre determinado assunto, que, antes de ficar on line, passa por uma fiscalização e aprovação dos
resultados)
Ver texto original em http://futuro.vc/2007/09/28/nova-zelandia-usa-wiki-para-criacao-de-lei-pelos-cidadaos ou
http://www.stuff.co.nz/4215797a10.html
e o construído, o espontâneo e o industrial, o natural e o cultural
5
. Interessa aqui destacar o
aspecto articulatório que constitui qualquer artefato do mundo, seja ele recortado como um
dado físico, biológico, cultural ou tecnológico. Lidamos com formações
6
, isto é, sistemas de
informação (universo, vida, sociedade, ecossistemas, etc.) que se expressam com linguagem
própria, mas que podem ser transcritos um no outro, desde que tenhamos as ferramentas
cognitivas adequadas. As formações variam enormemente em termos de composição,
estrutura, comportamento e função, e exigem protocolos distintos de abordagem e
manipulação; as formações resistem mais ou menos à transformação e ao acoplamento com
outras; mas guardam uma conectividade e tradutibilidade de base que, em última instância,
restam exclusivamente na dependência de haver conhecimento compatível para realizar a
conexão e a transformação de um arranjo informacional qualquer em outro.
O estado atual das discussões do urbanismo, no qual inserimos a hipótese A cidade sou
eu, alinha-se, assim, às palavras de Gaston Bachelard:
Temos agora menos necessidade de descobrir coisas do que descobrir idéias.
A experiência se divide. A simplicidade muda de campo. O que é simples é
o maciço, o uniforme. O que é composto é o elemento. A forma elementar se
revela polimorfa e cambiante no momento mesmo em que a forma maciça
tende para o amorfo. E de repente a unidade cintila.
O que é preciso sacrificar? Nossas grosseiras seguranças pragmáticas, ou
bem os novos conhecimentos aleatórios e inúteis? Nada de hesitações: é
preciso passar para o lado em que se pensa a mais, em que se experimenta o
mais artificialmente, em que as idéias são o menos viscosas, em que a razão
gosta de estar em perigo. Se, numa experiência, não pomos em jogo nossa
razão, essa experiência não vale a pena ser tentada (BACHELARD, 1972:
8).
5
Este entendimento foi explicitado por vários autores: Na obra Modernização reflexiva, Ulrich Beck, Anthony
Giddens e Scott Lash, em uníssono, afirmam que o que é ‗natural‘ está tão intricadamente confundido com o que
é ‗social‘ que os seres humanos não sabem mais o que é ‗natureza‘ e que ―nada mais pode ser afirmado como
tal‖ (BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony e LASH, Scott . Modernização reflexiva. São Paulo: Editora UNESP,
1995, p. 8). Segundo Manuel Castells, estamos num estágio em que, após termos suplantado a natureza a ponto
de nos obrigar a preservá-la artificialmente como uma forma cultural, a cultura passa a referir-se sobretudo à
própria cultura (CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede, op. cit., p. 505). A idéia de ‗artifício espontâneo‘ e
‗artifício industrial‘, proposta pelo teórico e psicanalista MD Magno, é outro testemunho do abandono da
oposição entre o que é natural‘ e ‗artificial‘, em prol de uma visão topológica e homogeneízante dos fatos do
mundo como artifício. Sobre este tema, ver ARAUJO, Rosane. O urbanismo em estado fluido in A Cidade pelo
avesso, 2006. Viana & Mosley. Org. Rachel C. M. da Silva
6
Estamos utilizando um conceito da Nova Psicanálise, que esclarecemos no capítulo 5.
O Urbanismo é elaborado a partir de diversos campos do pensamento que são
aplicados à consideração da cidade. Seus desenvolvimentos e aplicações são sempre, ou quase
sempre, tributários de campos como a filosofia, a sociologia, a antropologia, etc. Para
exemplificar, podemos citar Joseph Rykwert, para quem os urbanistas se dividem em dois
grupos: os ―cronistas dos grandes movimentos da história‖ aqueles que trabalham na linha
de Hegel de Karl Marx a Joseph Alois Schumpeter, até Francis Fukuyama e Jean
Baudrillard; e os ―paladinos do livre mercado‖ (2004: 10-11). Em cada autor, podemos, em
última instância, localizar sua fonte de inspiração e doutrina. Mesmo aqueles ―paladinos do
livre mercado‖ conhecem muito bem suas fontes doutrinárias.
Em diversos autores contemporâneos, encontramos a preocupação com re-situar as
cidades no novo contexto mundial. Rem Koolhaas, em seu artigo ―o que aconteceu com o
urbanismo?‖ (2002), diz que a noção de cidade sofreu uma distorção sem precedentes e que a
urbanização generalizada modificou e tornou irreconhecível a condição urbana. Solà-Morales
(2002) leva a noção de cidade para além de seus prédios e arquiteturas e afirma que,
atualmente, lidamos com cidades que mudaram radicalmente em relação aos tempos pré-
industriais e da cidade grande baseada nos projetos de racionalização enquanto unidade
produtiva. Hoje, a megalópolis, com que Jean Gottman se preocupava na década de 1960, e as
cidades globais, de que Saskia Sassen trata nos anos 1990, têm características tão diferentes
que a contribuição feita pela arquitetura nestes agregados desconcentrados e altamente
conectados está sendo repensada em termos completamente novos. Isto, tanto em relação aos
parâmetros mediante os quais a arquitetura clássica entendia a atividade arquitetônica, quanto
em relação aos princípios e métodos com que a arquitetura moderna procurou repensar as
relações entre uma nova arquitetura e uma nova cidade.
A cidade não se deixa reduzir à grande utopia modernista. Os ideais dos
pensamentos tayloristas e fordistas aplicados à cidade, resultando numa economia de escala,
programas a longo prazo, projetos de interesse comum e coletivo, repetição e separação das
funções urbanas, zoneamentos rígidos e massificação das soluções entre outros, já foram
devidamente criticados. Ascher
7
fez questão, inclusive, de contrapor a cada uma dessas
concepções o que seria mais de acordo com nossa época, anunciando um neo-urbanismo com
características reflexivas, de performance, com flexibilidade, multifuncional, com soluções de
equipamentos e serviços individualizados e uma economia da variedade.
O tempo não é mais mensurável somente sob o ponto de vista histórico, cumulativo.
Vivemos uma configuração temporal imbricada. Acrescente-se a este raciocínio que a
contração do espaço e do tempo depende da velocidade, a qual não é acessível a todos da
mesma forma, de modo que o tempo não é igual para todos. Do mesmo modo, o conceito de
espaço se transformou. Utilizamos diariamente um espaço não euclidiano: o espaço de
diversas práticas compartilhadas por cidadãos passa a estar também na eletrônica.
O espaço é um conceito que, como tal, é produzido de acordo com os sintomas de uma
época. Ao longo da história do homem, este conceito se modifica e modifica a visão de
mundo
8
. A concepção de arquitetura e urbanismo está estreitamente vinculada à concepção de
espaço. O espaço como suporte material de práticas sociais, adquiriu a característica de poder
7
ASCHER, François. Les nouveaux principes de l‟urbanisme: la fin des villes n‟est pas à l‟ordre du jour. Paris:
L‘Aube, 2001.
8
A definição de espaço sofre contínua modificação ao longo da história e, por muito tempo, com uma forte
influência das nossas filosofias e religiões dualistas, que sempre insistiram em cindir a realidade em matéria e
espírito. A imagem medieval de mundo pode ser entendida pela explicitação do espaço físico do corpo e o
espaço imaterial da alma, onde ―a arquitetura do primeiro era definida pelo plano geométrico dos planetas e das
estrelas‖ e a do segundo era ―definida pela geografia tríplice do Paraíso, Inferno e Purgatório. A partir do final
do séc. XVII nossa visão fisicalista vai sedimentando a concepção materialista da realidade e ―ao longo dos três
últimos séculos, a realidade passou a ser vista, cada vez mais, como o mundo físico apenas‖. Deste modo, no
final do século XVIII, o monismo estava instalado e pela ―primeira vez na história, a humanidade havia
produzido uma imagem do mundo puramente fisicalista, um quadro em que mente / espírito / alma não tinham
lugar algum‖. No século passado temos a concepção relativística do espaço de Albert Einstein, onde espaço e
tempo ―se entretecem num múltiplo quadridimensional, com o tempo se tornando, de fato, mais uma dimensão
do espaço‖. Ainda na segunda metade do séc. XX, os físicos inventam a noção de hiperespaço de onze
dimensões. Dentro desta conceituação de hiperespaço, em última análise não nada senão espaço. O universo
de onze dimensões porta quatro grandes dimensões, sendo três de espaço e uma de tempo e ―sete microscópicas
dimensões de espaço, todas enroscadas em alguma minúscula e complexa forma geométrica‖. Atualmente,
estamos nos deparando com o espaço digital ciberespaço. Quando interagimos no ciberespaço nossa
localização não pode mais ser definida por coordenadas do espaço físico (Wertheim, 2001: 28, 113, 114, 29
e155).
se transformar continuamente através da flexibilidade de sua utilização, da simultaneidade de
seus usos e significados, da justaposição de informações. Esta maleabilidade de
transformação, efemeridade e transitoriedade confere um caráter fluido, movente,
indiferenciante para o espaço urbano contemporâneo.
Se considerarmos, também, como dado para o entendimento da questão, a utilização
plena do espaço virtual que é ao mesmo tempo público e privado, local e global, atópico e de
outra geometria, podemos dizer que a cidade como o local de troca, de comunicação, de
interação, de moradia, de trabalho está potencialmente em qualquer lugar. Os espaços e suas
funcionalidades estão disseminados por toda parte. Esta subversão dos usos dos espaços e esta
multiplicação das possibilidades de conexão constituem uma nova realidade. Isto, sem
entrarmos no mérito do já banalizado conceito de cidade virtual que tem sido tema de
revista
9
, livro
10
e que designa tanto a Netrópolis a maior metrópole do mundo: a rede que
une computadores de todo o globo, quanto as cidades com base na World Wide Web que
funcionam como ferramenta política para diferentes objetivos urbanos: marketing urbano
global, incentivo ao turismo e negócios, comunicação entre cidadãos e governo local,
comércio, etc.
11
Algumas dessas articulações vêm sendo trabalhadas algum tempo. Na década de
1960, McLuhan afirmava que
o espaço urbano é igualmente irrelevante para o telefone, o telégrafo, o rádio
e a televisão. O que os urbanistas chamam de ‗escala humana‘, ao discutir os
espaços urbanos, está desligado dessas formas elétricas. As extensões
elétricas de nós mesmos simplesmente contornam o espaço e o tempo,
criando problemas sem precedentes de organização e envolvimentos
humanos (2003: 125).
9
La Ville Virtuelle III: espace public/ espace privé. Magazine Électronique n. 22: juin 2005. Edição da revista
do Centro de Arte Contemporânea de Montreal. http://www.ciac.ca/magazine
10
Lançado pela Agencia Estado quando aconteceu o encontro em Istambul - 1996 da ―II Conferência das Nações
Unidas sobre Assentamentos Humanos, Habitat II‖.
11
Stephen Grahan e Simon Mervin. Rumo a Cidade em Tempo Real in Telecommunications and the city:
Electronic Spaces, Urban Spaces apud http://www.eesc.sc.usp.br/nomads/tics_arq_urb/cidtempo.doc
O autor vai mais longe ao definir que os homens passaram a ser nômades e informados
e envolvidos num processo social total como nunca e que com a eletricidade temos a
―extensão do nosso sistema nervoso central globalmente, inter-relacionando instantaneamente
toda a experiência humana‖ (idem, p. 401).
É fato que vivemos uma época de habitantes de entorno eletrônico. Nossas ações no
espaço sico estão associadas as nossas ações no ciberespaço. As edificações estão incorpo-
rando sistemas nervosos artificiais, sensores, telas e equipamentos controlados por
computador. Diversos sistemas eletrônicos têm um papel cada vez mais importante na
resposta da necessidade de seus moradores. Os satélites de comunicação geoestacionários e os
sistemas globais dos satélites LEO (low earth orbit sistema que cobre a Terra
uniformemente) cobrem grandes extensões de terra e mar, transformando a superfície do
planeta em um lugar inteligente de cobertura total. Essa proliferação de espaços inteligentes
produzirá um novo tipo de tecido urbano e reformará radicalmente nossas cidades
(MITCHELL, 2001: 74).
Nossa suposição é que, para um entendimento amplo, capaz de considerar as
diferentes contribuições das novas conceituações de cidade e sua arqui-tectonia, é necessário
um deslocamento radical para conceitos de base mais próximos de uma topologia do que de
uma geometria euclidiana (com a idealidade e rigidez das formas e as oposições do sistema
dentro / fora, esquerdo / direito, etc.). Quando projetamos e construímos um edifício ou uma
avenida, temos obrigatoriamente que estar subditos à lógica euclidiana, para que aquela
estrutura permaneça de pé e em funcionamento. Por outro lado, quando queremos entender o
funcionamento da sociedade em rede ou da cidade digital ou da cidade informacional, temos
obrigatoriamente que estar subditos à lógica da topologia, para que aquela estrutura ganhe
sentido e permaneça em funcionamento.
O espaço topológico
12
suspende a rígida lógica dualista e idealista do espaço
euclidiano, pois estuda concretamente os aspectos qualitativos das formas espaciais ou de suas
leis de conexão. Essa nova mentalidade, em matemática e alhures, abriu, no c. XX, um rico
campo de investigação, aplicação e metaforização, ao disponibilizar raciocínios cada vez mais
abstratos (no sentido de amplos, refinados e inclusivos) de unilateralidade
13
, inclusão e
transformação. Esta indicação foi feita com muita clareza por Virilio, quando se referiu a
uma nova visão de mundo, do tempo, da imediatez, da ubiqüidade e da instantaneidade e que
isto se expressa na arquitetura com fim da ortogonalidade e com a ―topologização‖ da vida
(2001: 7). Deste modo, podemos utilizar o raciocínio topológico como nossa referência
conceitual de espaço e base para o entendimento cada vez mais complexo dos conceitos de
cidade
14
que, daqui por diante não deverão se restringir mais à geografia ou à geometria
euclidiana.
A topologia é adequada para o desenvolvimento do presente estudo porque obedece a
um raciocínio lógico no qual a unilateralidade vem substituir a bilateralidade, dissolver a
oposição euclidiana e, portanto, incluir a flexibilidade e a mudança sem as rupturas que
ocorrem na prática do dia a dia. Ora, isto é um início para o entendimento da relativização dos
usos e funções tão evidentes na cidade contemporânea. Possibilita, assim, o entendimento da
permeabilidade entre conceitos considerados antagônicos ou diferentes e que atualmente
estão relativizados em decorrência do uso do espaço, da utilização das tecnologias, da
inclusão da velocidade como fator determinante da distância, da hipermobilidade de bens,
pessoas e informações, da ubiqüidade gerada pela comunicação à distância em tempo real ou
não. Entre diversos outros conceitos, podemos destacar: espaço público e privado, dentro e
12
Este tema será desenvolvido no capítulo 3.
13
Importante ratificar que ―unilateralidade‖ aqui é entendida a partir da inclusão dos supostos lados constituintes
num único, devido a dissolução de oposições e acolhimento indiferenciado.
14
Vide os diversos conceitos de cidade onde seus autores não usam mais como referência principal a geometria
euclidiana ou a geografia. Ex.: Cidade Informacional de Manuel Castells, Cidade Global de Saskia Sassen,
Videocidade e Cidade Instantânea de Paul Virilio, Cidade de Controle de Michael Hardt, Cidade Digital de
William Micthell, Cibercidade de Pierre Lévy, entre inúmeros outros.
fora, perto e longe, global e local, moradia e trabalho, real e virtual, pessoa e cidade. Há,
portanto, multifuncionalidade, polimorfismo, passagem e reversibilidade nas formas urbanas.
É caminho, também, para demonstrar que não existe ―fora‖ neste raciocínio e que ―eu‖ e
―cidade‖ são partes do mesmo conceito.
A reformulação contemporânea do conceito de cidade reconhece o valor heurístico de
se trabalhar com construções conceituais dentro da perspectiva de que não hierarquia
entre o objeto de estudo como real e sua abordagem como „representação‟. Em outras
palavras, entre os fatos e suas descrições, não há mais distância do que entre o que se conhece
e o que se constrói. Para colocar a questão nos termos estritos do urbanismo: o real da cidade
que se tenta alcançar é uma prática desse real, uma prática da cidade ou ainda ―a
representação é ativa: ela não apenas ‗diz‘ a cidade, ela ‗faz‘ a cidade‖
15
.
É incontestável que, para expressar nossa realidade, não podemos mais recorrer ao
conceito de cidade tal como historicamente entendida. Basta ver a quantidade enorme de
neologismos utilizados pelos autores contemporâneos Ecstacity, cidade nodal, cidade
informacional, cidade dos bits, e-topia, metápole, etc. , como tentativa de situar a cidade
dentro das modificações vigentes. Mas é evidente que o processo de explosão semântica e
conceitual da idéia de cidade é correlato ao processo de descentralização e fragmentação da
noção de ―Eu‖, de ―ser‖ urbano. Do mesmo modo, basta ver, também, a quantidade de novos
termos utilizados por autores contemporâneos pós-orgânico, pós-humano, pós-biológico,
ciborgue, etc. para situar a noção de homem.
15
A primeira frase é de Bernard Lepetit e sua citação é praticamente literal. Ele a afirma no contexto de seus
estudos sobre a cidade do Antigo Regime: ―Para qualificar a cidade da época moderna, por muito tempo nos
contentamos com uma simples gradação de vocabulário: a cidade pré-industrial precedia a cidade industrial. A
definição implícita era bem negativa e excessivamente carregada de pressupostos. Portanto, parece necessário
substituí-la por um conceito de ‗cidade do Antigo Regime‘ (...). Para isso, é preciso integrar as representações
antigas da cidade. De fato, o real da cidade do Antigo Regime que se tenta alcançar é como para qualquer outra
cidade uma prática desse real, uma prática da cidade. E essa prática, por sua vez, integra um certo mero de
representações‖. A segunda frase é de Marcel Roncayolo. Ambas as citações são do artigo ―Os espelhos da
cidade: um debate sobre o discurso dos antigos geógrafos‖ (LEPETIT, 2001: 266-7 e 268).
Dadas as enormes transformações em todos os campos, associadas às facilitações
geradas pelas técnicas, num ambiente planetário que funciona em rede, para definirmos a
cidade, devemos definir o que seja a Pessoa. Sob a perspectiva topológica, como veremos no
decorrer deste trabalho, os lugares constituídos se confundem com as pessoas. Quando
pensados mediante sua qualidade de rede de interações, os lugares se deslocam com o
deslocamento das pessoas. Por exemplo, onde fica a sede do governo americano? Se
pensarmos exclusivamente na ―Casa branca‖, com certeza estaremos nos equivocando, que
ela está onde o presidente dos Estados Unidos, com sua rede política, estiver. Quando ele
(pessoa física e jurídica) se desloca, o centro de poder se desloca com ele, todas as conexões
de poder se deslocam junto. Isto se aplica, em diferentes escalas, a qualquer pessoa. Outro
bom exemplo desta situação, dado por Manuel Castells, é o teletrabalho móvel como modelo
de trabalho que está se instalando. Esse modelo considera o trabalhador como nômade, que
executa seu trabalho através de contato com o escritório, via telefone celular, internet, fax,
enquanto está em viagem, em visita a clientes ou em seu percurso corriqueiro, estabelecendo,
assim, o conceito do ―escritório em movimento‖ (CASTELLS, 2003: 192). É o escritório
(considerado um lugar, espaço físico localizável geograficamente) que se movimenta com o
deslocamento do trabalhador. Isto abre a perspectiva de que podemos pensar que,
contemporaneamente, os lugares podem se deslocar com os deslocamentos das pessoas.
Neste raciocínio não excluídos, todos são incluídos. No caso de um cidadão com
enorme precariedade de condições de subsistência, podemos dizer que a cidade dele é pobre
de todo tipo de recurso. O morador da favela da Rocinha, situada geograficamente no bairro
de São Conrado, da cidade do Rio de Janeiro, seguramente não participa da mesma cidade dos
habitantes do nobre bairro de São Conrado. Ele está geograficamente lá, no entanto ele não
tem o alcance urbano de sua ―vizinhança‖. Acreditamos, pois, poder afirmar, e isto vale para
qualquer pessoa, que, em se tratando de diferentes escalas, qualquer um está excluído da
cidade que se define pelo outro.
Partindo de que o conceito de cidade, de urbano, saiu dos lugares geométricos e
geográficos, e de que é preciso definir a pessoa para definir a cidade que ela é e vice-versa,
buscaremos, para o esclarecimento do ―Eu‖ em questão e do conceito de ―Pessoa‖, e também
para explicitar os elementos constitutivos de nossa hipótese, entendê-los segundo a teoria de
base psicanalítica denominada Nova Psicanálise.
Em suma, existe correlação entre o entendimento de ―cidade‖ e o de ―cidadão‖, assim,
é preciso definir a pessoa para definir a cidade. Temos uma inseparabilidade entre o ser
humano e mundo, inseparabilidade, portanto entre eu e cidade. É uma dinâmica onde não é
possível compreender estes elementos isoladamente: construímos o mundo que nos constrói
num tempo comum. Nossa trajetória de vida nos faz construir nosso conhecimento de mundo.
O que pretendemos elaborar ao longo deste trabalho é a idéia de que qualquer cidadão,
qualquer Pessoa, pode dizer A Cidade Sou Eu.
Partimos, pois, do duplo objetivo de aprofundar o estudo do Urbanismo e desenvolver
o potencial inovador de reflexão com vistas à análise de um novo conceito de cidade, que
atualmente ganha uma configuração cada vez mais nítida. Nosso Projeto será desenvolvido
obedecendo a seguinte estrutura:
Capítulo 1 que nosso trabalho tem como objetivo elaborar um novo conceito de
cidade, este capítulo visa: definir o que é um conceito; mostrar como emergiu e se sedimentou
o conceito de cidade; e fazer a defesa epistemológica do direito de propor um conceito, pois
estamos supondo que não há separação entre realidade e representação simbólica;
Capítulo 2 Discorreremos sobre os diferentes neologismos trazidos por autores
contemporâneos e suas definições, buscando mostrar que o conceito de cidade está em
questão e em processo de relativização e desmaterialização;
Capítulo 3 Breve explanação das modificações conceituais de cidade e do momento
em que seu entendimento passa por uma grande relativização. Transposição e analogia do
termo de ―arquitetura fluida‖, proposta por Solà-Morales, para o urbanismo mediante o
raciocínio da Cinta de Moebius. Apresentamos elementos que indicam a passagem do estado
sólido do urbanismo para o estado fluido e utiliza-se este raciocínio para a introdução do tema
A Cidade Sou Eu. Neste capítulo fazemos um breve histórico sobre topologia, objetivando
introduzir o assunto. Reafirma-se a proposta de tratar não mais do Urbanismo, mas sim de um
Orbanismo do século XXI;
Capítulo 4 Expomos sucintamente o pensamento de alguns autores das áreas da
filosofia, biologia, psicanálise, ciência computacional e física com o objetivo de explicitar os
diferentes tratamentos e o deslizamento do conceito de Eu, sujeito ou indivíduo. Os
pensamentos sistêmico, em rede e rizomático, são apresentados para evidenciar formas
organizadas de articulações descentralizadas, imprecisas e aleatórias, para análise das
situações de mundo;
Capítulo 5 Apresentação de alguns conceitos da teoria Nova Psicanálise, que serve
de suporte para esta tese, para explicar o conceito de Eu = Pessoa, que sustenta a hipótese A
Cidade Sou Eu. Na seqüência, a equivalência Eu = Pessoa será tomada como ferramenta
heurística de leitura da cidade e da definição de Eu;
Capítulo 6 Explicitação da hipotese ―A Cidade Sou Eu‖ mediante a articulação dos
conceitos de eu e cidade. Utilizamos também os conceitos de pólo, foco e franja para o
entendimento de urbano.
Conclusão síntese das principais idéias e considerações finais.
Referências Bibliografia utilizada para a construção deste trabalho.
Anexo 1 Glossário de alguns conceitos da Nova Psicanálise, que podem auxiliar o
entendimento do capítulo 5.
Anexo 2 Breve explanação do conceito de Pessoa e do Personalismo, com o objetivo
de esclarecer que o conceito de Pessoa que utilizamos é diferente daquele trazido pelo
Personalismo.
Estrutura Geral da Tese
Em termos gerais, a estrutura geral desta tese segue o seguinte esquema:
1 SOBRE CONCEITO
Temos que pensar com os conceitos, pois, na maioria das vezes, pensamos
que pensamos com as coisas, mas é falso. (MAGNO, 2005: 195)
Conceituar é atividade intrínseca a todo trabalho de descrever, classificar e fazer
previsões sobre objetos cognoscíveis. Esta é, sem dúvida, uma definição muito geral, podendo
incluir qualquer sinal ou procedimento semântico, referido a qualquer objeto, concreto ou
abstrato, particular ou universal (ABBAGNANO, 2003).
São tantos os conceitos quanto o são as situações cognitivas que envolvem algum tipo
de nomeação mormente mediante o aparato sintático e semântico de uma língua que
abstrai, formaliza, discerne, distingue, separa e, às vezes, opõe, significações para fins
compreensivos e explicativos. Automóvel, cometa, D/deus(es), Estado, homem, vermelho,
tristeza, Universo, entropia, quadrado da hipotenusa, mamíferos, raiz de 2, número pi,
infinito, unicórnio, velocidade, classe social, cidade, território, espaço, tempo (espaço-tempo),
identidade, valor, desejo, razão, terceiro excluído, renascimento, estes são alguns dos
inúmeros conceitos que utilizamos como atividade cognitiva básica de estar no mundo e
proceder a sua descrição, classificação, compreensão, explicação, ordenação, transformação,
conservação, projeção, produção, modelização ou simulação.
Um conceito é usualmente indicado por um nome disponível no léxico de uma língua.
Assim, quando digo ―casa‖ essa palavra repertoria um conjunto mais ou menos definido de
imagens e casos reconhecíveis em um determinado rol de significações. O conceito, porém,
não se reduz ao léxico, pois diversos nomes podem exprimir um mesmo conceito, do mesmo
modo que diversos conceitos podem ser expressos pelo mesmo nome, ou ainda, um vocábulo
novo pode ser criado para recortar com mais nitidez o raciocínio que se deseja explicitar.
Nessa perspectiva, ―habitação‖, ―moradia‖, ―residência‖ ou ―lar‖ podem ser tomados
como equivalentes a ―casa‖, assim como o nome ―casa‖ pode significar, antropológica e
historicamente, o espaço doméstico nas sociedades tradicionais
16
, o oikos entendido como
unidade sócio-econômica na cidade suméria (BOUZON, 1998: 21), ou um espaço de
representação social moralmente crivado, característico da sociedade brasileira como herança
do período colonial, e construído na tensão opositiva em relação à ―rua‖ (DA MATTA, 2003),
ou ainda a casa‖ tornada ―rua‖ pela diversidade social que habita e transforma o espaço
urbano, relativizando a diferença entre público (rua) e privado (casa) (SANTOS, 1985).
Mas o conceito não é apenas uma entidade abstrata identificável pela presença de um
vocábulo, novo ou remanejado
17
. Sendo um objeto do pensamento que opera graças à
linguagem e a outros signos, o conceito possui uma função mediadora que organiza a ordem
interna do discurso, sendo, por isso, um fato de compreensibilidade mais geral, passível de
sofrer restrições progressivas no sentido de sua definição epistêmica. Um conceito tampouco
é identificável com as coisas, ainda que guarde relações de co-pertinência com a realidade.
Não tropeço no conceito de ‗casa‘, que se distingue da casa que posso ver ser demolida. Vale
dizer, conceitos têm a propriedade particular de ser entidades abstratas produzidas pelo
entendimento humano e que se afastam de produtos da imaginação, percepções ou afecções,
todos estados mentais que podem vir a suscitar o trabalho conceitual, mas que não lhe são
diretamente correspondentes.
ainda a questão da validade dos conceitos, ou seja, a discussão acerca de seu
caráter de verdadeiro ou falso, à medida que, construindo coerente e sistematicamente
explicações sobre o mundo, um discurso conceitualmente organizado opera por exclusão das
afirmações ou princípios que lhe são contrários. Ficam, assim, distribuídos os valores de
verdadeiro a afirmação ou princípio incluído e falso a afirmação ou princípio excluído.
16
É o caso do estudo feito por Jean-Pierre Vernant sobre o espaço religioso e social grego a partir do pareamento
dos deuses Hestia, protetora e símbolo da casa e dos significados correlatos de fixidez, imutabilidade e
permanência, e Hermes, também ligado à habitação dos homens, mas no sentido de ser um mensageiro e, por
isso mesmo, invocar, ao contrário de Hestia, movimento, passagem, mutação e transição (cf. VERNANT, 1990:
151-191).
17
Seguimos os argumentos de (FAROUKI, 1996), sobretudo o primeiro capítulo, dedicado à discussão do que é
conceito (sua natureza e tipologia) e conhecimento, com sua exigência constitutiva de compreensão e explicação.
Desde os gregos, operamos com essa regra, conhecida como ―regra do terceiro excluído‖:
dada uma afirmação A e sua contrária B, elas não podem ser simultaneamente verdadeiras.
Mas algo se passa quando nos deparamos com a gama infinita de explicações
coerentes e sistemáticas que a humanidade tem sido capaz de forjar. A título de exemplo,
consideremos a questão da origem e funcionamento do cosmo. Ela pode ser explicada pela
partenogênese da Deusa Mãe Nammu, que gerou An (Céu) e Ki (Terra), segundo o mito
sumério (ELIADE, 1978: 80); ou pelo princípio pré-socrático do Ilimitado, que origem a
todas as coisas, fonte de onde os seres extraem sua proveniência e onde realizam sua
dissolução
18
; ou pela iniciativa de Olorum que, segundo os Yorubas, começou a criação do
mundo, confiando seu acabamento e governo a um deus inferior (ELIADE, 1978: 75); ou pelo
ato criador de Yahwé, divindade suprema dos hebreus, que manifesta seu poder aos homens
mediante trovão, relâmpago, fumaça, tempestade, fogo ou arco-íris (ELIADE, 1978: 127-
128); ou pelo princípio da mutação, que se realiza no jogo de alternância entre yin e yang,
entendidos como os fatores constitutivos de toda realidade (JULLIEN, 1997: 30), ou ainda
pela teoria gravitacional newtoniana, ampliada e superada pela teoria da relatividade geral
einsteiniana.
O que essa variedade de testemunhos nos mostra, do ponto de vista do trabalho
conceitual? A insuficiência do princípio do terceiro excluído e a correlata necessidade de
suspendê-lo, como postura e exercício metodológicos. Explicações ―míticas‖, ―científicas‖,
―religiosas‖, ―racionais‖, ―filosóficas‖, ―sapienciais‖, apesar de suas diferentes
especificidades, funcionaram séculos ou milênios a fio nas mais diversas culturas,
demonstrando que, do ponto de vista do valor, todas são equivalentes, restando a discutir, se e
quando for o caso, sua força de autoridade e seu poder de performance no que concerne aos
18
Esse princípio foi formulado por Anaximandro (c. final do séc. VII início da segunda metade do séc. VI a.
C.), natural da cidade de Mileto, amigo e discípulo de Tales. Cf. REALI, 2004, v. 1: 19-21.
problemas que lhes podem ser colocados e para os quais podem haver, ou não,
encaminhamentos possíveis.
Uma vez colocada a possibilidade de suspensão dos juízos de validação como postura
metodológica prévia, podemos agora escolher um conjunto conceitual em detrimento de
outro. Isso significa operar conceitualmente: empresto validade em sentido amplo: valor de
verdade, crença, ideologia, eficácia, adequação, oportunidade a um determinado conjunto e
excluo circunstancialmente outros. Procedo à fixação, relação e hierarquização de unidades de
sentido, resultando daí universos mais ou menos autônomos de significação. Em resumo, o
conceito não é uma entidade simples, mas um complexo funcional no qual cada doutrina ou
conhecimento dispõe os elementos como julga mais adequado, verdadeiro ou eficaz. Este
universo não pode deixar de produzir algum tipo de clausura, à medida que obedece a regras
de coerência interna, que asseguram o necessário liame entre as noções, distinguindo-se de
outros procedimentos de conhecimento.
Todavia, o jogo de comparação, escolha e exclusão entre conceitos é dinâmico. A
própria plasticidade da linguagem e da competência cognitiva humanas encarrega-se de criar
pontos de passagem e tradução entre conceitos, facilitando sua apresentação, explicação e
transmissão. Além disso, campos conceituais que são dedicados a explorar a
convertibilidade de saberes e a transitividade de campos de conhecimento, criando um
universo de problematização conceitual que facilita justamente a produção de equivalências
conceituais de valor epistêmico
19
. Como exemplo, temos o livro organizado por Lepetit, onde,
para apresentar a transferência dos modelos de auto-organização (procedentes da física, da
química, da biologia e da inteligência artificial) para os estudos urbanos, conta com a
contribuição de demógrafos, arqueólogos, economistas, ecologistas, geógrafos, historiadores,
entre outros. Nesta mesma obra, o organizador estabelece a seguinte distinção entre o passado
19
É o caso, por exemplo, do pensamento sistêmico e seus desdobramentos e contigüidades, como a cibernética,
as teorias da auto-organização e da complexidade.
imediato e o presente: ―Em contraste com o tempo monótono da mecânica clássica e do
urbanismo funcionalista, o tempo das teorias da auto-organização caracteriza-se tanto pelo
rumo inesperado de algumas de suas evoluções quanto pela complexidade‖ (LEPETIT, 2001:
137).
No campo das pesquisas sociais e, mais especificamente, no do urbanismo, também
nos deparamos com um processo ativo de questionamento conceitual. Problematizam-se
definições tradicionais cidade medieval, cidade renascentista, cidade pré-industrial, cidade
industrial comprometidas com uma diacronia cômoda e, muitas vezes, alheia à pluralidade
das representações sociais que se cruzam na construção e vivência da cidade. Parte-se do
pressuposto de que ―a representação é ativa‖, e ―não apenas ‗diz‘ a cidade‖, mas ‗faz‘ a
cidade‖ (LEPETIT, 2001: 268), o que transforma essa última em uma espécie de espaço
mediador e mobilizador do equipamento mental de uma época, suas crenças, técnicas,
instituições, ordenações sociais, etc. Buscam-se, portanto, recortes que possibilitem destacar a
polissemia e ‗polifonia da cidade, apostando no ganho epistemológico do estudo de tais
noções como esclarecedor para a própria reflexão acerca das condições contemporâneas de
modificação do urbano.
Nesse sentido, importa destacar o estado atual de indagação acerca das possibilidades
de entendimento do espaço urbano contemporâneo, dada a relativização dos parâmetros de
sua definição, parâmetros acumulados ao longo de milênios de construção e representação da
cidade. Associado a isso, vamos vincular a esta indagação, o fato de que qualquer
entendimento é resultante da rede que informa e forma uma determinada compreensão da
realidade. Desse modo, pretendemos desenvolver raciocínios inclusivos que considerem a
multiplicidade de possibilidades que qualquer realidade oferece. Posto isto, como entender
cidade hoje? Como apreender a pluralidade de suas representações? O que mudou?
1.1 O conceito de Cidade
Como Magritte, teremos de dizer, diante do nosso corpus de definições, isto
não é uma cidade, mas sua apreensão. (LEPETIT, 2001: 246)
Pensemos um pouco sobre a idéia de cidade. É quase impossível imaginar a história da
ocupação humana do planeta desvencilhada do processo de urbanização, já tradicionalmente
considerado como equivalente à civilização. Acostumamo-nos a conceber o espaço urbano a
partir de seus marcos mais imediatamente visíveis e tradicionalmente estabelecidos que, com
um pouco de fôlego histórico, vemos remontar ao período neolítico: o solo sulcado, o
aglomerado de habitações criando laços de proximidade física, a paliçada, o tempo social
regulado pelo ritmo cíclico do trabalho agrícola, regrado, por sua vez, por regularidades
ecológicas de difícil relativização... E, finalmente, os grupos humanos, dispersos pelo planeta,
gerando crianças e as criando, mediante as mais variadas estratégias sociais que domesticam o
polimorfismo, politropismo e polivalência sexuais que tornam a espécie humana tão
estranhamente criativa.
Homens e mulheres tornados socialmente ―máquinas ventrílocas‖
20
das regras de
parentesco, esses inúmeros princípios de regulagem da reprodução sexual/social da espécie
que articulam a ordem e a desordem social e cósmica, unindo, separando, punindo,
condenando, coibindo, aterrorizando, seduzindo e criando mitos para as pessoas em suas
inserções sociais mais ou menos compulsórias, embora longe de terem, por definitivo, a
palavra final sobre a experiência humana. Paisagens sociais, físicas e geográficas onde se
desenrolaram, por longo período, atividades de proteção, defesa e nutrição.
Seguindo historiadores como Lewis Mumford, podemos, de acordo com os parâmetros
clássicos, estabelecer sinteticamente um percurso no qual o conceito de cidade tem sua
origem nas referências herdadas da aldeia neolítica, associada com nascimento e lugar, sangue
20
Tomamos a expressão, bem como o raciocínio que lhe é subjacente, de GODELIER, 2004:341-344.
e solo. Os componentes das aldeias foram recompostos de modo mais complexo e
incorporados pela nova unidade urbana. cerca de 5.000 anos a.C. algumas aldeias
transformaram-se em cidades; os produtores de alimentos começaram a produzir excedente
a fim de manter a população de especialistas: artesãos, mercadores, pescadores, guerreiros,
sacerdotes.
Com a ascensão da cidade, muitas funções, antes dispersas e desorganizadas, foram
reunidas dentro de uma área limitada, contribuindo para uma considerável expansão
tecnológica (o cálculo matemático, a escrita, a observação astronômica, o calendário são
alguns exemplos). A cidade torna-se uma estrutura equipada para armazenar e transmitir os
bens da civilização, numa quantidade máxima de facilidades num mínimo de espaço. Esta
concentração expandiu as capacidades humanas em todas as direções. A cidade mobilizou o
potencial humano, efetuou o domínio sobre os transportes e sobre a comunicação entre longas
distâncias no espaço e no tempo, possibilitou enorme inventividade e desenvolvimento
acelerado na área da engenharia, além do aumento exacerbado da produtividade agrícola.
A partir daí estabeleceram-se referências que organizam o modo tradicional de
conceber a cidade, presentes em várias experiências históricas: concepção física e geográfica
do espaço, reiterando raciocínios de fixação, delimitação, pertencimento e exclusão;
preponderância da forma física da cidade, convertida na materialidade das ruas, casas, recinto
religioso, recinto administrativo, recinto das oficinas, mercado; cidade como local de ponto de
encontro, local de proteção, local da troca, local da interação cultural, local da criatividade e
evolução técnica, ―receptáculo especial destinado a armazenar e transmitir mensagens‖
(MUMFORD, 1991: 114), local de transmissão da herança cultural.
As características principais da cidade como símbolo estético já estavam configuradas,
mesmo que de forma rudimentar, na cidadela, por volta de 2.500 a.C (MUMFORD, 1991:
104). Sua forma variou no tempo e no espaço, mas a perenidade de algumas soluções
surpreende. A rua, o quarteirão de casas, o mercado, o recinto religioso e administrativo, o
recinto das oficinas são símbolos visíveis aos quais ainda estamos habituados a pensar como
possibilidade de conceber a cidade.
1.2 A cidade
Que é a cidade? Como foi que começou a existir? Que processos promove?
Que funções desempenha? Que finalidades preenche? Não definição que
se aplique sozinha a todas as suas manifestações nem descrição isolada que
cubra todas as suas transformações, desde o núcleo social embrionário até as
complexas formas da sua maturidade e a desintegração corporal da sua
velhice. (MUMFORD, 1961, p.9)
Ora, considerar a cidade é considerar o conceito de cidade, no sentido de uma
ferramenta conceitual historicamente construída, cujas sucessivas elaborações sofrem o
impacto das transformações que a própria história impõe aos agentes sociais de um
determinado espaço-tempo, que, de retorno, vivenciam a exigência de elaborar
conceitualmente uma reflexão consentânea com os problemas de sua época. Por sua vez a
cidade que hoje se transforma graças ao fluxo de capital e informação, acelerado pelas novas
tecnologias, pode ser problematizada como e-topia, metápole ou cibercidade, vocábulos
forjados que crivam a questão da relativização dos parâmetros tradicionais identificadores do
urbano, como o espaço físico e geográfico e tempo cronológico. Dada a contingencialidade de
ser nossa a era da ―sociedade em rede‖, da ―cidade global‖, da ―metápole‖, da cidade dos
―bits‖, da ―e-topia‖, da cidade ―digital‖ ou ―instantânea‖, é nosso interesse contribuir para o
debate, ampliando suas condições de análise com a proposição A cidade sou eu.
Pensar a cidade contemporânea implica a elaboração de um problema e sua
formulação conceitual. Trabalhamos com construções conceituais dentro da perspectiva de
que não hierarquia entre o objeto de estudo como real e sua abordagem como
‗representação‘. Em outras palavras, entre os fatos e suas descrições, não há mais distância do
que entre o que se conhece e o que se constrói. Para colocar a questão nos termos estritos do
urbanismo, retomamos a citação de Lepetit: o real da cidade que se tenta alcançar é uma
prática desse real, uma prática da cidade (um modo de lidar com a cidade) (LEPETIT, 2001:
266-267). Ou ainda, podemos lembrar a afirmação de Castells de que ―não há separação entre
‗realidade‘ e representação simbólica‖
21
. Nossa tese A Cidade Sou Eu é a formulação
conceitual de que não há distância/diferença entre realidade e representação simbólica. Se
quisermos transpor para estes termos, ―a cidade que uma pessoa é‖ são as suas representações
simbólicas. Uma pessoa-cidade é um conjunto de representações simbólicas.
Assim, por exemplo, com o conceito de território, Solà-Morales recorta não apenas a
problemática do ―sistema de espaços habitados, com sua determinação topográfica, histórica e
social; mas também [território] como ponto de partida, lugar de encontro da atividade
formativa, que é ao mesmo tempo a arquitetura e a cidade em qualquer sentido que possamos
dar a esses termos‖ (SOLÀ-MORALES, 2002: 24). Partindo da problemática conceitualmente
elaborada como território, o autor vai buscar também o que as ciências sociais, a geografia, a
economia, a antropologia e a sociologia urbanas têm a oferecer como ―proposições‖ acerca da
cidade e da arquitetura contemporâneas (SOLÀ-MORALES, 2002: 25-27).
Assim também A cidade sou eu recorta, como construção conceitual, um campo de
articulação e de análise. Para fazê-lo, estabelecerá uma grade de relações conceituais cuja
inteligibilidade depende do próprio espaço que cria. Mas, se consistisse apenas nisso, restaria
um monólogo sem sentido, exercício, aliás, impossível, pois, se articulamos, o fazemos
inseridos num contexto, visando dialogar com ele. O contexto do qual partimos é
necessariamente co-participante da formulação do próprio problema apresentado. A
21
No contexto em que foi enunciado, Castells nos lembrava que ―em todas as sociedades, a humanidade tem
existido em um ambiente simbólico e atuado por meio dele‖. O que estava em questão era uma certa
desmistificação da suposta oposição entre o real e o virtual. O que era esclarecedor na época em ele escreveu era
o fato de que ―a realidade, como é vivida, sempre foi virtual porque sempre é percebida por intermédio de
símbolos formadores da prática com algum sentido que escapa à sua rigorosa definição semântica (...) Todas as
realidades são comunicadas por intermédio de símbolos. E na comunicação interativa humana,
independentemente do meio, todos os símbolos são, de certa forma, deslocados em relação ao sentido semântico
que lhes são atribuídos. De certo modo, toda realidade é percebida de maneira virtual(CASTELLS, 1999a:
395. Grifo nosso.)
proposição A cidade sou eu ganha todo seu sentido dentro dos estudos do urbanismo, que é
seu interlocutor privilegiado, pois partimos do estado atual de perquirição acerca da cidade
contemporânea. Do mesmo modo que os demais autores, buscamos ferramentas que sejam
eficazes para dar conta de uma problemática que, não sendo inédita, configura-se, contudo,
altamente indeterminada e sem parâmetros imediatamente visíveis, pois estes parâmetros
foram devidamente desconstruídos pelo próprio processo (de relativização do conceito de
cidade), que exige, agora, nova consideração, para estabelecermos novas ferramentas
conceituais.
2 RECONCEITUANDO A CIDADE
Megalópolis, metrópolis, posmetrópolis, cyburbia, exópolis, cidade global e
um enorme et cetera de neologismos formados a partir dos termos clássicos
greco-latinos de polis, urbs, e civitas, parecem ter aberto o caminho para a
proposição permanente de novas palavras que permitam denominar uma
realidade que se entende que já não é igual à da cidade histórica (SOLÀ-
MORALES, 2002: 24).
A noção de limite desapareceu com a urbanização quase ilimitada: não podemos mais
ver uma cidade, nem entrar ou sair dela. Ela se tornou ―anóptica‖. Isso se deve, de um lado, à
presença material de uma cidade infinitamente extensível, e, de outro, ao desaparecimento
concomitante das marcas de identificação que repousam na oposição cidade/não cidade
(CAUQUELIN, 1996: 34).
O lugar, sob a perspectiva da utilização plena das tecnologias, dissolveu-se como
invólucro. A comunicação realiza-se num espaço de características abstratas, que não
requerem mais a presença física. As comunicações telefônicas são responsáveis por um elo e
construíram uma espécie de envoltório virtual (CAUQUELIN, 1996: 34), do qual agora
participam todas as formas de comunicação à distância.
Qualquer ser humano, de qualquer ponto do planeta, pode participar, como membro
ativo, da cidade mundial. O urbano define-se também pelo fato de o indivíduo ser articulado a
uma rede de inter-relacionamentos eletrônicos.
A cidade não se reduz mais a seus suportes geo-métricos e quantitativos, e tampouco
às competências cognitivas desenvolvidas sobre as capacidades de verbalização da espécie
humana. O alcance das realizações, conjeturas, implementações tecnológicas, programas de
pesquisa etc. eliminou qualquer possibilidade de indexar a noção de cidade a um critério
qualquer de fronteira (física, mental, cultural, étnica, lingüística, financeira ou tecnológica).
Mais do que isso, o deslocamento da noção de cidade acompanha e é acompanhado pelo
deslocamento sobre aquilo que talvez constitua seu esteio fundamental: a idéia de que existiria
uma realidade humana, de base carbono
22
, destinada a perpetuar o esquema e a série casal-
heterossexual-familiar-reprodutor-cultural-urbano-geográfico.
Em outras palavras, se no período neolítico vimos a implantação de um conceito de
cidade tomando como referência o sedentarismo, a geografia, o solo, o tempo cronológico, a
domesticação do homem, o reconhecimento da consangüinidade e, conseqüentemente, os
laços de família, de casal heterossexual reprodutor, assistimos atualmente ao estabelecimento
de conceitos de cidade nos quais esta base inicial está bastante desconfigurada e relativizada,
bem como de outros conceitos que chegam mesmo a desconsiderar esses dados iniciais.
Assim, a cidade passa a ser definida a partir de diferentes parâmetros, tais como finanças,
capacidade informacional e de conexão planetária, nós e redes, densidade demográfica,
virtualização, experiência sensorial, etc. Por outro lado, contemporaneamente, podemos
contrapor a cada uma das referências de base relacionadas no início deste parágrafo, um modo
de vida diferenciado: a mobilidade exacerbada da vida contemporânea devolve ao homem um
certo nomadismo, acrescente-se a isto a possibilidade de procriação sem a necessidade da
relação sexual, a comunicação à distância, a relativização do tempo cronológico e da
geografia devido ao uso de tecnologias, os novos parâmetros de relações familiares com
parceiros do mesmo sexo, etc. O fato é que o conceito de cidade tal como foi historicamente
entendido não expressa mais nossa realidade. Basta ver a grande quantidade de neologismos
utilizados por autores contemporâneos na tentativa de situar as cidades de acordo com as
modificações vigentes.
O campo do urbanismo e a conceituação de cidade estão, portanto, em questão. A
definição de cidade foi amplamente relativizada, vários conceitos foram apresentados,
procurando, cada um deles, não apenas apreender melhor as especificidades ocasionadas pela
interação indissociável entre espaço, tecnologia e sociedade, como também incorporar, de
22
O carbono está presente em todo organismo vivo. O corpo humano contém grande quantidade de compostos
de carbono. Por conta disso, identifica-se a base carbono como constituinte do corpo humano.
forma mais adequada, os novos atores, os novos tipos de relações sociais e os novos usos e
funções que surgiram para a cidade.
Destacaremos a seguir alguns conceitos contemporâneos de cidade, com o duplo
objetivo de apresentar, simplificadamente, o entendimento de cada autor a respeito da cidade
contemporânea e as definições genéricas que elaboraram sobre elas. Evidentemente, alguns
conceitos sobrepõem-se, outros são excludentes, outros inclusivos, outros ainda mais
particularizados. A escolha foi aleatória, mas não ingênua, posto que interesse em
identificar cidades conceituadas de modos distintos daqueles que estamos habituados a pensar
O segundo objetivo é explicitar a enorme preocupação e mobilização, presentes no nosso
campo do urbanismo, para propor conceitos consoantes com as transformações em curso. É
nessa corrente que pretendemos nos alinhar com este trabalho. Dentro deste panorama,
podemos destacar algumas definições para a cidade contemporânea.
2.1 A cidade informacional
Em seu livro La ciudad informacional: tecnologías de la información, reestructuración
económica y el proceso urbano-regional (1995), o sociólogo Manuel Castells apresenta a tese
de que um processo geral de transformação do espaço ocorrendo em todas as sociedades à
medida que, de modo crescente, estas se articulam num sistema global. O espaço de fluxos,
forma de articulação espacial do poder e da riqueza do mundo de hoje, ocupa o centro desta
transformação. É nesse contexto que ele concebe o advento da cidade informacional, a forma
social e espacial de cidade da nossa sociedade, do mesmo modo que a cidade industrial
constituiu a forma urbana do tipo de sociedade hoje em crise. Trata-se de uma cidade feita
tanto do potencial de produtividade quanto da capacidade de destruição, tanto das proezas
tecnológicas quanto das misérias sociais de nosso tempo.
Para Castells, a dinâmica espacial das atividades de informação expressa um novo e
complexo modelo organizacional e tecnológico, caracterizado, simultaneamente, pela
persistente centralização das atividades de alto nível nos centros financeiros das áreas
metropolitanas maiores e pela descentralização dos escritórios de processamento de dados
para áreas menores e, principalmente, para fora das principais áreas metropolitanas.
Este complexo desenvolvimento territorial não é dominado pela centralização nem
pela descentralização. Nele, o crucial é a relação entre os dois processos justamente estes
processos binários de centralização e descentralização simultâneas, associados, ambos, às
mesmas dinâmicas sócio-econômicas que explica a complexidade da nova forma social e
espacial que é a cidade informacional. O fundamental em todos esses espaços é seu nível de
inter-relação por meio dos fluxos comunicacionais, nos quais as conexões da rede intra-
organizacional constituem as conexões definidoras da nova lógica espacial. Assim, o espaço
das organizações na economia informacional é cada vez mais um espaço de fluxos.
O espaço de fluxos implica uma lógica organizacional que é a-espacial. Mesmo que as
organizações estejam localizadas em lugares específicos e seus componentes sejam
dependentes do espaço geográfico, a lógica organizacional decorre essencialmente do espaço
de fluxos que caracteriza as redes de informação. Os fluxos são estruturados para constituir a
dimensão espacial fundamental dos complexos em grande escala do processamento da
informação.
Essa característica influencia diretamente a configuração que as cidades assumem
hoje, visto que os interesses tanto de uma elite local empresarial, quanto de uma classe
operária residente local, ou mesmo de um mercado local, estarão constantemente
subordinados à necessidade de a organização estar conectada simultaneamente aos mercados
financeiros, aos grupos profissionais, às alianças estratégicas no mundo da economia e ao
potencial para instalar e atualizar a tecnologia necessária, todos dependentes das interações no
espaço dos fluxos.
A reestruturação do capitalismo constituiu uma força-chave na remodelação das
cidades e regiões no final dos anos 70 e durante os anos 80 do século XX, quando a produção
e o uso das então Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (NTIC) se juntaram
para forjar as relações entre estas tecnologias e as novas formas e processos espaciais. Essa
junção modificou profundamente o sistema sócio-econômico emergente, dando lugar à
complexa geração de um novo processo urbano-regional, como efeito sócio-espacial dos dois
macro-processos fundamentais em todas as sociedades capitalistas avançadas a
reestruturação e o desenvolvimento informacional. Para Castells, a interação entre tecnologia,
sociedade e espaço é responsável pela geração de um novo processo urbano-regional, que
serve de base material às nossas vidas nesta era da primazia da informação.
O modelo espacial específico das indústrias de tecnologias da informação então
emergentes resultou de duas características fundamentais: o caráter distintivo de sua matéria-
prima a informação e a singularidade de seu produto os equipamentos orientados para
processos com aplicações em todo o espectro da atividade humana. Outros fatores a busca
de lucro, por exemplo também determinaram seu comportamento espacial, mas o que se
evidenciou foi o significado tecnológico mediante o qual o lucro pode ser obtido. Este
significado tecnológico passa a ser o atrativo das novas indústrias que, cada vez mais, se
afastam da linha em que as velhas indústrias se situavam. A tecnologia passa a servir como
mediadora na relação entre a racionalidade econômica contida na empresa e os atributos de
dado espaço, o que vai determinar os modelos de localização e a estrutura espacial daí
resultante.
A produção de tecnologias da informação torna-se então, de fato, uma ponta de lança
para a formação de um novo espaço hierárquico de produção que se estende por todo o
mundo, divide países e diferencia localizações com as conexões necessárias à gica
econômica e funcional do processo mantida pelas novas formas de comunicação. Este novo
espaço é representado por uma geometria variável que depende unicamente do sobe-e-desce
das empresas, regiões e países no escalão tecnológico.
A relação entre tecnologia e trabalho é decisiva na forma assumida pela dinâmica
urbana. Essa nova relação, estabelecida entre estes dois tópicos e situada na base da
transformação da estrutura social urbana, foi chamada de ―dual‖. Na nova configuração sócio-
espacial desta cidade dual, as novas tecnologias, embora não constituam o fator causal, são
extremamente importantes em virtude de seu papel instrumental no processo de reestruturação
do trabalho. Duas cidades são típicas para o entendimento desta estrutura: Nova Iorque e Los
Angeles.
Estas duas cidades norte-americanas continham, no final da cada de 80, a maior
parte do crescimento dos empregos altamente remunerados, e, ao mesmo tempo, eram
habitadas, majoritariamente, por minorias étnicas incapazes de conseguir estes empregos.
Portanto, a dualidade manifestava-se na coexistência espacial de um grande setor profissional
e executivo de classe média com uma crescente subclasse urbana. A cidade dual exemplifica
bem o emergente e contraditório desenvolvimento da nova economia informacional e a confli-
tuosa apropriação da cidade central por grupos sociais que, embora constituindo mundos à
parte em termos de estilos de vida e posição estrutural na sociedade, compartilham do mesmo
espaço.
A cidade dual foi sempre um tema clássico da sociologia urbana. O contraste entre
opulência e pobreza num espaço compartilhado sempre interessou os estudiosos. Entretanto, o
que se via no final da década de 80 era uma nova forma de dualismo urbano, conectada
especificamente ao processo de reestruturação e expansão da economia informal. O que
estava em questão era, sobretudo, o desmantelamento de relações capital-trabalho institucio-
nalizadas durante o longo processo de formação da sociedade industrial. E mais, a transição
de processos de produção industrial para o informacional coincidiu com a ascensão da
produção flexível, que, sob as condições históricas daquele momento, parecia tender a
igualar-se às relações capital-trabalho desinstitucionalizadas. Ocorriam, portanto, processos
simultâneos de crescimento e declínio de indústrias e empresas, que se davam com maior
intensidade nos pontos nodais da geografia econômica, especialmente em grandes áreas
metropolitanas, onde estava concentrada a maior parte das atividades intensivas de
conhecimento.
Segundo Castells, uma importante tendência social então se destacava: o surgimento
histórico do espaço de fluxos superando o significado do espaço de lugares. Seu efeito nocivo
é a produção de uma geometria negativa que nega o sentido produtivo específico de qualquer
lugar fora de sua posição numa rede cuja forma muda constantemente em resposta a
mensagens de sinais invisíveis e códigos desconhecidos. Isso é resultado da separação entre
fluxos funcionais e lugares historicamente determinados como duas esferas distintas da
experiência humana. As pessoas vivem em lugares e o poder estabelece a sua dominação
mediante fluxos. Entre fluxos ahistóricos e identidades irredutíveis de comunidades locais, as
cidades e as regiões desaparecem como lugares com significação social.
A emergência do espaço de fluxos questiona o significado das cidades e do bem-estar
em nossas sociedades, mas, quem sabe, não será possível surgir daí uma nova estrutura sócio-
espacial, composta de comunidades locais que controlem e dêem forma a uma rede de espaços
produtivos? Assim, este é o voto de Castells, nosso tempo histórico e nosso espaço social
poderão convergir para a integração de conhecimento e significado numa nova cidade não
mais dual ou global, mas informacional.
2.2 A videocidade
Em seu livro O espaço crítico e as perspectivas do tempo real (1993), o urbanista Paul
Virilio desenvolve o conceito de videocidade, ou cidade sem portas, que é aquela em que o
espaço urbano perde sua realidade geopolítica em benefício único de sistemas instantâneos de
deportação, cuja intensidade tecnológica perturba incessantemente as estruturas sociais e
promove uma concentração ―pós-urbana‖ e transnacional. Nossa época seria a do
desenvolvimento das técnicas (audiovisuais) de persistência retiniana, em que passamos da
estética do aparecimento progressivo de uma imagem estável (analógica) à estética do
desaparecimento de uma imagem instável (digital).
À emergência de formas e volumes destinados a persistir na duração de seu suporte
material (pedra, madeira, terracota, tela, papéis, etc.), sucedem imagens cuja persistência é
somente retiniana e cuja duração é a do ―tempo de sensibilização‖, que escapa à nossa
consciência imediata. Assim, na interface da tela, tudo se mostra no imediatismo de uma
transmissão instantânea. Portanto, depois das distâncias de espaço e de tempo, é a distância-
velocidade que vem abolir a noção de dimensão física.
A representação da cidade contemporânea não é mais determinada pelo cerimonial da
abertura das portas, o ritual das procissões, dos desfiles, a sucessão das ruas e avenidas. A
arquitetura urbana deve, a partir de agora, relacionar-se com a abertura de um espaço-tempo
tecnológico. Unidade de lugar sem unidade de tempo, a cidade desaparece na heterogeneidade
do regime de temporalidade das tecnologias avançadas. A forma urbana não é mais expressa
por uma demarcação qualquer, uma linha divisória entre aqui e além, e sim pela programação
de um ―horário‖ no qual a entrada indica apenas um protocolo audiovisual, em que o público
e os índices de audiência renovam a acolhida e a recepção do público.
2.3 A metápole
François Ascher desenvolve o conceito de metápole, ou metapolis, no livro Metapolis:
acerca do futuro da cidade (1998). Para o professor do Instituto Francês de Urbanismo,
metápole é um conjunto de espaços em que a totalidade, ou parte, dos habitantes, das
atividades econômicas ou dos territórios está integrada ao funcionamento cotidiano de uma
metrópole ou de um conjunto de grandes cidades. Com uma bacia comum de emprego, de
residência e atividades, a metápole é composta por espaços heterogêneos e não necessaria-
mente contíguos, e compreende algumas centenas de milhares de habitantes. Apresentando-se
sob formas muito variadas, a metápole constitui-se a partir de metrópoles pré-existentes muito
diferentes e integra um conjunto heterogêneo de espaços novos e diversos.
A metápole engloba as zonas metropolitanas em sentido estrito e, além disso, os novos
espaços surgidos com a metropolização. São as vastas regiões urbanas que aglomeram cidades
de todos os tamanhos, nas quais as zonas urbanas e as zonas rurais se interpenetram. Ou seja,
metropolização e metápoles constituem o quadro no qual as forças econômicas, sociais,
políticas e culturais atuam e atuarão, de forma durável. É certo que estas forças influenciam as
dinâmicas metropolitanas e a evolução das metápoles, mas é o próprio desenrolar da
urbanização que configura um contexto do qual elas não podem escapar e, por isso, representa
uma espécie de limite à influência dessas forças econômicas.
Metápole é um espaço de mobilidade, no qual as relações de proximidade em grande
parte se dissolvem, pois ela está conectada a múltiplas redes nacionais e internacionais e, por
vezes, mantém com territórios distantes relações mais intensas do que com sua zona
envolvente próxima, que já não desempenha um papel de retaguarda territorial.
2.4 As megacidades
Manuel Castells aborda as megacidades no livro A Sociedade em Rede (1999a).
Segundo ele, as megacidades podem ser definidas como aglomerações de grandes dimensões,
que concentram o essencial do dinamismo econômico, tecnológico, social e cultural dos
países. Conectadas entrem si numa escala global, elas estendem-se no espaço e formam
verdadeiras nebulosas urbanas, nas quais campo, cidade, criatividade e problemas sociais
integram-se ao mesmo tempo. São centros de dinamismo econômico, tecnológico e social em
seus países e em escala global.
Forma espacial presente nos diferentes contextos geográficos e sociais da nova
economia global e da sociedade informacional emergente, as megacidades são definidas não
apenas por seu tamanho aglomerações com mais de dez milhões de pessoas , mas também
por constituírem os nós da economia global e concentrarem as funções superiores direcionais,
produtivas e administrativas de todo o planeta. Elas encerram também o controle da mídia, a
verdadeira política do poder e a capacidade simbólica de criar e difundir mensagens.
Nem todas as megacidades são centros influentes da economia global, muito embora
conectem igualmente enormes segmentos da população humana a esse sistema global.
Também funcionam como ímãs para suas hinterlândias isto é, o país inteiro ou a região onde
se localizam e devem ser vistas como uma função de seu poder gravitacional em direção às
principais regiões do mundo. Elas articulam a economia global, ligam as redes informacionais
e concentram o poder mundial. O fato de estarem física e socialmente conectadas com o globo
e desconectadas do local é que as torna uma nova forma urbana. Em outras palavras, elas
estão externamente conectadas a redes globais e a determinados segmentos de seus países,
mas internamente atuam como se estivessem realmente desconectadas das populações locais.
2.5 A cidade global
A especialista em planejamento urbano Saskia Sassen elabora o seu conceito de
cidade global no livro As cidades na economia mundial (1998). Partindo do pressuposto de
que, na era econômica atual, existem duas características distintas a integração dos sistemas
e a dispersão geográfica das atividades econômicas , a autora afirma que esta situação
contribuiu significativamente para o papel estratégico desempenhado pelas grandes cidades.
As cidades não se tornaram obsoletas. Ao contrário, além de continuarem concentrando
funções de comando, receberam duas outras funções: 1) são locais de produção pós-industrial
para as principais indústrias, para o setor financeiro e para os serviços especializados; e 2) são
mercados multinacionais, nos quais empresas e governos podem adquirir instrumentos
financeiros e serviços especializados.
Desse modo, as cidades globais funcionam em rede, são centros do comércio mundial
e atividades bancárias e pontos de comando, mercados globais e locais de produção para a
economia da informação. Lugares-chave para os serviços avançados e para as
telecomunicações necessárias à implementação e ao gerenciamento das operações econômicas
globais, elas constituem nós de circulação de recursos e tendem também a concentrar as
matrizes das empresas, sobretudo daquelas que operam em mais de um país.
2.6 A cibercidade
23
O conceito de cibercidade foi desenvolvido pelo filósofo da cultura virtual
contemporânea Pierre Lévy, em seu livro Cibercultura (1999). A relação entre a cidade e o
ciberespaço -se mediante as articulações entre o funcionamento urbano e as formas de
inteligência coletiva que se desenvolvem no ciberespaço. Trata-se de dois espaços
qualitativamente diferentes território e inteligência coletiva, essa última tendo como suporte
23
Este conceito é desenvolvido de modo mais amplo no item ―A ecologia cognitiva de Pierre Lévy‖, cap.4.
o ciberespaço que se articulam de tal modo que não eliminação ou substituição das
formas territoriais por um funcionamento ciberespacial, mas sim uma compensação da inércia
e rigidez do primeiro pela articulação realizada em tempo real no segundo. Isso permite que
as questões urbanas sejam elaboradas através da comunicação interativa e coletiva,
possibilitando a colocação simultânea de competências, recursos e idéias.
O projeto do ciberespaço relacionado à inteligência coletiva visa possibilitar, num
sentido mais abrangente, a consciência do que os grupos humanos fazem em conjunto e lhes
dar suporte para a solução dos problemas conforme uma lógica inclusiva. A perspectiva é que
todos tenham acesso aos processos de inteligência coletiva, ao ciberespaço, em uma rede
capaz de acolher manifestações individuais e sociais de elaboração dos problemas da cidade,
de participação dos cidadãos afetados diretamente nas diversas deliberações, de livre acesso
aos saberes etc. Em suma, esta articulação possibilita a utilização do virtual para habitar
melhor o território, estabelecendo uma democracia eletrônica.
Importante verificar que com esses conceitos diferenciados de cidade, começamos a
ter simultaneamente a reconceituação do que seja cidadão, pessoa ou habitante desse espaço.
No caso do Lévy, a cibercidade caracteriza o ciberespaço, que é o espaço dos que habitam
todos os meios dos quais interagem. Deste modo, vemos que o habitante da cibercidade tem,
entre outras características, a possibilidade de ubiqüidade, e a constatação de que seu corpo
não se restringe a sua configuração corpórea.
2.7 A e-topia
Este conceito foi elaborado por William Mitchell, decano da Escola de Arquitetura e
Planejamento Urbano do Massachusetts Institute of Techonology, no livro do mesmo nome
(2001). As e-topias são cidades econômicas e ecológicas que funcionam de maneira mais
inteligente do que os modelos urbanos familiares e que, contemporaneamente, os estão
substituindo. Seus princípios de desenho seguiriam cinco pontos básicos:
(1) a desmaterialização, que consiste na substituição de um serviço físico por um
virtual (por exemplo, o sistema eletrônico de banco em casa). Existe um benefício análogo
quando se separa a informação de seu tradicional substrato material, pois uma mensagem por
correio eletrônico que se na tela não consome papel. Se não produzimos um objeto
material, e se utilizamos em seu lugar um equivalente desmaterializado, este nunca se conver-
terá em um resíduo que precisará ser tratado.
(2) a desmobilização, cuja idéia se relaciona com a eficiência incomensuravelmente
maior de se movimentar bits do que pessoas e mercadorias. A libertação fica patente na
redução dos percentuais de consumo de combustíveis, na menor contaminação, na menor
necessidade de espaço para infra-estruturas de transporte, nos cortes na fabricação e nos
gastos de manutenção de veículos e na redução do tempo empregado em viagens.
(3) a personalização em massa, que tem a ver com o fato de que se as máquinas da era
industrial trouxeram as economias de estandardização, repetição e produção em massa, as
máquinas inteligentes da era da informática podem garantir economias muito distintas de
adaptação inteligente e de personalização automatizada. Pode-se usar silício e informática em
grande escala para possibilitar o abastecimento personalizado automático do que seja
estritamente necessário em um contexto particular. Por exemplo, um sistema personalizado de
jornais eletrônicos, impressos em casa, poderia ter o perfil dos interesses do usuário e ser
utilizado para selecionar e imprimir os artigos e anúncios com mais probabilidade de ser
lidos.
(4) o funcionamento inteligente, que se refere à atribuição de uma maior inteligência
aos mecanismos e sistemas que necessitam deste recurso, permitindo, assim, a redução do
desperdício. Por exemplo, um sistema elementar permite acender e apagar as luzes e
aparelhos de uma casa. Um sistema ligeiramente mais sofisticado troca alguns interruptores
por temporizadores, mas caso se pretenda uma eficácia ainda maior, é necessário um sistema
que conheça a forma de vida do usuário, que descubra as pautas dinâmicas de variação das
tarifas elétricas e que faça funcionar, de forma ótima, a iluminação, a calefação, o ar
condicionado e os eletrodomésticos, seguindo um modelo de previsão mantido e atualizado
permanentemente.
(5) a transformação suave, que se relaciona à possibilidade de serem criados bairros e
cidades completamente novos, organizados no intuito de tirar proveito das novas
oportunidades de desmaterialização, desmobilização, personalização em massa e
funcionamento inteligente. Nas zonas mais desenvolvidas, a tarefa primordial será a de
adaptar os edifícios e espaços públicos existentes para satisfazerem necessidades muito
diferentes das que orientaram sua construção original. A nova infra-estrutura será mais mode-
rada e menos nociva em seus efeitos físicos. Em muitos casos, a integração poderá acontecer
de forma quase invisível. O espaço servido eletronicamente para o trabalho na informação não
terá que estar concentrado em grandes áreas contíguas, como nas áreas industriais e
comerciais das cidades atuais, e, ao contrário das instalações industriais, o afetará negativa-
mente a qualidade das zonas de entorno.
Segundo Mitchell, estas seriam as características das novas cidades inteligentes. No
século XXI, a condição da urbanidade civilizada pode basear-se menos na acumulação de
objetos e mais no fluxo de informação, menos na centralidade geográfica e mais na
conectividade eletrônica, menos no aumento de consumo de recursos escassos e mais em sua
gestão inteligente. Poderemos adaptar os lugares existentes às novas necessidades, sem
precisar demolir as estruturas físicas e construir novas. Os lugares físicos e os virtuais
funcionarão de forma interdependente e, em geral, se complementarão mutuamente dentro de
um modelo de vida urbana em transformação, ao invés de substituirmos uns pelos outros
conforme os modelos existentes.
É evidente que esta transformação engloba o conceito de cidadão que passa a
participar de múltiplas comunidades, dispersas, superpostas, através de distintos meios
eletrônicos navegando em lugares públicos virtuais, participando em reunião preparadas
eletronicamente em lugares remotos . O autor afirma que, atualmente, somos habitantes de
entornos eletrônicos, em lugar de mero usuários de artefatos informacionais.
2.8 A cidade nodal
O conceito de cidade nodal tal como concebido por Kok-Meng Tan
24
, professor na
Universidade Nacional de Singapura tem como base a transformação urbana dos últimos 30
anos em Singapura, mas também pode servir de modelo de desenvolvimento para muitas
cidades asiáticas, norte-americanas e européias.
O autor parte da consideração da condição urbana como um onde se cruzam uma
rede rápida de transporte de massa e uma rede de fluxos econômicos globais. Este nó
encontra-se freqüentemente integrado a estações de metrô e monitorado por um sistema
eletrônico de segurança. Esta cidade nodal forma-se através da alta concentração de funções
urbanas em um espaço delimitado, e poderia ser considerada também como uma cidade
dentro da cidade, pois os ocupantes podem trabalhar, viver e divertir-se nela, sem sair para o
lado de fora durante todo o dia.
Esse modelo tem sido utilizado em cidades anfitriãs que desejam atrair o capital global
e se firmar como cidades globais, pois estes nós relacionam-se com o processo de
globalização de pelo menos três modos: por representarem um ícone dos fluxos globais este
aglomerado de funções urbanas configura um símbolo emblemático das cidades globais; por
24
Teoría de la ciudad nodal. In (SOLÀ-MORALES e XAVIER COSTA, 2005: 172-187).
exercerem uma estrutura de apoio aos fluxos globais, na medida em que a cidade nodal conta
com uma infra-estrutura informacional e acolhe os serviços e funções que os atores e
empresas globais necessitam para a manutenção de suas atividades; por atuarem como suporte
dos fluxos globais na cidade que ocupam.
As cidades nodais também podem ser classificadas de acordo com o tempo de sua
consolidação. Assim, na cidade nodal instantânea o funcionamento e a utilização são
marcados por uma inauguração do espaço físico que a configura, enquanto na cidade nodal
gradual o amadurecimento transcorre em um longo período de tempo, durante o qual a cidade
se expande e se consolida.
A cidade nodal apresenta, entre outras, as seguintes características:
a) constituição de um de transportes: espaço físico constituído sobre um de
transporte rápido de massas;
b) implantação de edifícios altos, cujos pavimentos encontram-se distribuídos acima e
abaixo do nível do solo;
c) estabelecimento de grandes densidades, através da sobreposição vertical;
d) simulação de urbanidade no interior do espaço, trazendo para dentro deste a
diversidade urbana e a organização de eventos transitórios que ocorrem num espaço comum;
e) utilização total das superfícies, mediante a ocupação dos espaços com sua cultura
comercial de informações eletrônicas e visuais que seduzem o olhar;
f) criação de uma extensão horizontal por contigüidade e continuidade entre os
espaços não contíguos através do estabelecimento de conexões físicas, macro conectores, que
estendem horizontalmente a comunicação, e de micro conectores e conectores híbridos, que
enlaçam o entorno, abaixo e acima das ruas, permitindo a comunicação entre os espaços
contíguos e não contíguos;
g) elaboração de respostas para o entorno urbano criação de janelas urbanas, através
de plataformas ao ar livre, espécie de espaço público, que tem, entre outras finalidades, a de
incorporar a vista do entorno urbano para dentro do nó.
h) constituição de uma rede, entendida enquanto sistema interconectado de nós sem
centro e sem periferia, composta de coisas materiais e não materiais, e comportando pessoas,
mercadorias, serviços, informação etc.
A cidade nodal é um objeto global num espaço local, e sua cultura é voltada para o
consumo de modo geral. Para manter-se enquanto nó, sua performance inclui um organismo
auto-regulador capaz de absorver rapidamente as mudanças e especulações do momento.
Deve estar sintonizada com qualquer tendência cultural ou política e acompanhar os
movimentos sociais ad hoc. Sua permanência depende diretamente da sua capacidade de
adaptação e ajuste às forças mutantes da cidade contemporânea. Em suma, Kok-Meng Tan
considera-a como a cidade que pode sustentar os aspectos de uma nova urbanidade.
2.9 Cidade dos Bits
William Mitchell, no trabalho de conceituação da Cidade dos Bits (1995), parte do
pressuposto de que o desenvolvimento de uma infra-estrutura global capaz de conectar todo o
mundo reconfigura, de uma vez por todas, as antigas relações entre espaço e tempo,
revolucionando definitivamente nossas vidas. Ademais, ele identifica nas cidades
contemporâneas uma nova dimensão, invisível e imaterial, relacionada às redes
informacionais das novas tecnologias de comunicação (MITCHELL, 1995: 5). Ainda que
possamos apontar o início deste processo no século XIX, como o surgimento do telégrafo em
1837 e do telefone em 1876, foi no século XX, marcadamente a partir da década de 60, que se
assistiu à introdução das chamadas tecnologias digitais
25
e com elas, da rede mundial de
25
Com a revolução digital, as redes de fios, cabos e microondas das telecomunicações analógicas dão lugar a
uma ampla estrutura de redes de fibra ótica. Nesse contexto de aceleradas transformações experimentadas
computadores. Desde então, revolução e tecnologia têm sido palavras-chave na compreensão
da contemporaneidade, e não seria diferente para o contexto das cidades.
A realidade de dispersão geográfica e mobilidade virtual em que vivemos é
impulsionada, por um lado, pelo surgimento das redes de comunicação e, por outro, pela
miniaturização dos componentes eletrônicos e pela produção eficaz de tecnologias móveis.
Acesso remoto e telepresença tornam-se fenômenos basilares em um mundo que descentraliza
a produção, outrora confinada à estrutura das linhas de montagem da brica tipicamente
fordista. Multiplicam-se as possibilidades de consumo e entretenimento, desvinculando-os da
necessidade de deslocamento físico, e perpetua-se o trabalho, hoje associado à emblemática
figura do laptop. Neste contexto de mudanças, Mitchell imagina a arquitetura e o urbanismo
associados à comoditização de bits e ao domínio do software sobre a dimensão material da
forma. Novas necessidades emergem nestes espaços híbridos, colocando o desafio de se
imaginar e criar ambientes digitalmente mediados, adequados aos estilos de vida e
comunidades, ao mesmo tempo exigidos, possibilitados e engendrados pela
contemporaneidade.
Apresentando os argumentos dessa obra de Mitchell, verificamos que a rede mundial
de computadores, associada a uma espécie de ágora eletrônica, desempenha hoje um papel tão
fundamental quanto o protótipo grego de espaço público, com sua localização centralmente
delimitada, desempenhou na vida e nos diagramas urbanos da polis grega. Isso acontece
porque, na rede, nossas ações são organizadas por outros princípios, claramente diferentes
daqueles que estão em jogo nos espaços das cidades tradicionais.
através das novas modalidades disponíveis para a interação humana, baseadas na supressão das distâncias
geográficas e dos limites temporais surge o termo Information Superhighways (Supervias da Informação),
indicando a possibilidade de convergência das diferentes redes de dados que conhecemos separadamente,
responsáveis por operar o rádio, a tv, a telefonia, etc., em uma única grande rede. Assim, o termo infobahn
denota, no contexto do livro, as Supervias da Informação e a Internet, que começava a se estabelecer
globalmente na época em que o livro foi escrito.
Com efeito, as cidades tradicionais nos propõem o deslocamento geográfico como
condição da interação com outras pessoas: sair é sempre um ato inserido em uma vasta rede
de relações através das quais nós representamos um papel, seja através do lugar aonde vamos
(diferentes espaços são freqüentados, em geral, por atores característicos, tendo sempre seus
roteiros e costumes implícitos) ou de como nos comportamos (as roupas que usamos, a
linguagem que empregamos etc). A rede mundial de computadores, por sua vez, subverte e
desloca muitos destes pressupostos, redefinindo nossas noções de comunidade, de vida urbana
e de espaços compartilhados.
Mitchell aborda estas diferenças em sete pares de oposições. Os três primeiros
espacial/anti-espacial, corpórea/incorpórea e concentrada/fragmentada tematizam as
redefinições possíveis das noções de espaço, subjetividade e identidade na rede. Afinal, neste
ambiente nenhum lugar específico e todos os lugares ao mesmo tempo , a identidade
confunde-se com o endereço eletrônico e com os pseudônimos que assumimos, enquanto a
localização geográfica torna-se indiferente e imprecisa. Assim, o que importa não é onde você
está, mas seu código de acesso, que pode ser usado em qualquer computador em qualquer
lugar do planeta.
Ocorre, então, uma quebra das codificações geográficas, segundo as quais os lugares
que freqüentamos determinam quem somos, o que, por sua vez, determina os espaços que
podemos freqüentar. Nesse sentido, nossa corporeidade e nosso poder de ação, outrora
limitados biologicamente, dispersam-se em identidades fragmentadas, fluidas, formadas por
associações que são criadas e assumidas por nós através de pseudônimos, perfis, ou através de
software conhecidos como agentes
26
.
26
Agentes são softwares intermediários programados para realizar tarefas. Comumente, eles assumem afazeres
tipicamente humanos, como indicar um produto a partir de dados relacionados a um histórico de compras
anteriores, escrever um e-mail ou mesmo sugerir correções ortográficas e gramaticais (cf. MITCHELL, 1995:
13).
Os quatro últimos pares sincrônico/assincrônico, banda estreita/banda larga,
voyeurismo/engajamento, contíguo/conectado delineiam novos tipos de interação entre os
espaços reais e os virtuais. Primeiramente, tem-se a quebra da unidade espaço-temporal na
rede, configurando uma situação diversa da sincronicidade experimentada no modelo face-a-
face. Tal fato traz uma série de implicações do ponto de vista das cidades, cujo estilo
considera, tradicionalmente, um espaço e uma hora determinados para qualquer evento, seja
para o almoço, para o trabalho, para o transporte coletivo, para uma peça de teatro ou mesmo
para um programa na televisão. Isso faz com que cada cidade, dada a sua configuração
espacial, tenha um ritmo próprio, diário, semanal ou sazonal. No entanto, na rede, as pessoas
se comunicam de maneira contínua e assíncrona, pois cada uma escolhe pessoalmente o
melhor momento para se conectar. Assim, se o valor de uma propriedade no espaço urbano
era dado por sua localização, o valor de uma conexão é dado pela largura de banda, o que
inevitavelmente suscita discussões sobre acesso e novas formas de exclusão.
O aumento do poder de processamento e transmissão de dados, combinado a novos
dispositivos de inputs e outputs (próteses, luvas inteligentes, etc.), permite e promete
ampliar a experiência da telepresença, forjando realidades imersivas e multimodais que
envolvam engajamento físico, extrapolando os limites da tela do computador e do estímulo
meramente visual e voyeurista. A promessa de que deixaremos de ser espectadores para nos
tornarmos participantes e habitantes destes novos mundos traz implícita a possibilidade de
dissolução da distinção entre real e virtual (MITCHELL, 1995: 20). Isso ocorre porque os
lugares no ciberespaço constituem trechos de códigos que estão sendo executados por algum
servidor e que adquirem arquitetura própria ao passarem da dimensão plana do texto ao bi-
dimensional ou tridimensional. Nesse sentido, o ciberespaço assim como o espaço urbano,
marcado por fronteiras delimitadas e pelo controle do acesso (seja a países ou propriedades)
possui lugares públicos (como as ruas) e privados (mediados por senhas infotécnicas). Ele nos
propõe as conexões lógicas da clicagem (lincagem) no lugar da contigüidade espacial de
caminhos traçados fisicamente
Assim, a rede é, sobretudo, um convite ao planejamento e à construção da Cidade de
Bits (capital do século XXI). E, para o autor, o estabelecimento desta nova cidade se coloca
como um desafio que promete revolucionar noções canonizadas e reconstruir o discurso
empregado pelos arquitetos desde a época clássica. Segundo ele,
Esta será uma cidade desenraizada de qualquer ponto localizável sobre a
superfície da Terra, modelada por limitações de conectividade e largura de
banda ao invés de acessibilidade e dos valores do solo, amplamente
assíncrona em seu funcionamento e habitada por sujeitos fragmentados e
imateriais que existem como coleções de pseudônimos virtuais e agentes.
Seus lugares serão construídos virtualmente por softwares e não fisicamente
com paus e pedras, e eles se conectarão por linkagens lógicas e não por meio
de portas, corredores e ruas. (MITCHELL, 1995: 24)
Esta nova cidade é marcada por um novo grau de conexão com seus habitantes. Uma
vez que o corpo humano se torna obsoleto, requisitando constantemente dispositivos de
upgrade, ele se torna também projetável e programável, assim como os ambientes que
freqüenta. Neste contexto, o sujeito humanista encarnado na figura do homem vitruviano de
Leonardo da Vinci, para quem as cidades do Renascimento foram construídas parece dar
lugar a um novo tipo de habitante, próprio das cidades na era digital, eletrônica. E o papel
sugerido pelo autor para estes novos ambientes bridos é o de hospedar cidadãos ciborgues,
pessoas que se tornaram lugares de interseção entre os espaços concretos e o ciberespaço
27
.
Considerando os diversos níveis de interação entre formas maquínicas e humanas da
telepresença a construções eletrosomáticas sofisticadas , o autor afirma que somos todos
ciborgues
28
, e sugere a reteorização do corpo no espaço como um bom ponto de partida para o
trabalho dos arquitetos e urbanistas que planejarão estas novas cidades (MITCHELL, 1995:
29).
27
Tal distinção é abordada por Mitchell a partir da ficção científica ―O Passageiro do Futuro(The Lawnmower
Man, 1992), em que o protagonista Jobe Smith tem seu corpo inserido em uma estrutura giratória semelhante à
do homem vitruviano de Leonardo da Vinci, enquanto seu avatar viaja pela rede.
28
O termo vem da expressão ―organismo cibernético‖ e é usado no contexto do livro para se referir a corpos
artificiais, aumentados e animados pela inteligência humana.
Mitchell tematiza o ciborgue a partir de seis relações fundamentais: sistema
nervoso/corpo em rede, olhos/televisão, ouvidos/telefonia, músculos/acionadores
mãos/telemanipuladores e cérebro/inteligência artificial. A primeira delas considera a
conversão do corpo em uma construção que abrange diversos domínios da existência. Uma
das situações proposta pelo autor é a conexão dos diversos produtos eletrônicos que usamos
ou carregamos (câmeras portáteis, celulares, pagers, palms, walkman, marca-passos e outros
dispositivos médicos) em um único corpo, móvel e em rede (wireless bodynet), que o permita
funcionar como um sistema integrado por exonervos e conectado à rede mundial de
comunicações digitais (MITCHELL, 1995: 29).
Esses pequenos organismos começaram a surgir na década de 90 e foram se tornando
cada vez menores: de portáteis, tornaram-se vestíveis, tomando o contorno de nossos corpos.
A previsão de Mitchell é de que este processo se aprofunde: luvas, lentes de contato, roupas
que abriguem circuitos, chips implantados etc. Assim, a interface destes pequenos órgãos
eletrônicos com nossos músculos e nosso sistema sensório possibilitaria o trânsito de bits na
lacuna que outrora separava silício e carbono.
É nessa perspectiva que os ciborgues se tornam seres modulares e reconfiguráveis,
para os quais as fronteiras entre interioridade e exterioridade, entre eu e outro, encontram-se
desestabilizadas (MITCHELL, 1995: 31). Essa desestabilização tem lugar porque, ao se
ligarem ao mundo exterior, estes dispositivos estendem nosso sistema nervoso às infinitas
conexões da rede. E uma vez que rompemos os limites de nossa pele, estamos também ligados
à arquitetura, o que significa que alguns destes nossos órgãos eletrônicos podem ser
construídos no ambiente que nos rodeia. Assim, o ato de residir em um lugar ganha um novo
significado, o qual, de acordo com Mitchell,
teria menos a ver com estacionar seus ossos em um espaço definido
arquiteturalmente e mais com conectar seu sistema nervoso aos órgãos
eletrônicos disponíveis a seu redor. Seu quarto e sua casa se tornarão parte
de você, e você se tornará parte deles (MITCHELL, 1995: 30).
O autor prevê ainda que, no futuro, a conexão destes órgãos eletrônicos com a rede
eliminará inclusive a necessidade de estarmos próximos a eles ou de possuí-los. Assim, com a
dissolução das fronteiras do corpo, talvez a metafísica se veja obrigada a reformular a divisão
corpo/mente (body/mind) em uma possível articulação mente/rede (mind/network)
(MITCHELL, 1995: 31).
Acompanhando a mutação de nossos corpos, os espaços que nos abrigam se
transformam. Com a substituição dos sistemas de circulação pelos sistemas de
telecomunicação, os tipos de construção tradicionais se dissipam no solvente das informações
digitais, e do resíduo destes fragmentos recombinantes originam-se espaços mutantes.
Os prédios se diferiam uns dos outros pelos seus diferentes usos e o inventário destes
usos representava a estrutura social e suas divisões. Sob esta condição, a organização interna
de um prédio suas partes, as relações estabelecidas entre elas pelo sistema de circulação, e
as evidentes hierarquias de poder e controle refletia a estrutura de uma instituição e
diagramava fisicamente suas atividades características. Atualmente as instituições não se
sustentam mais apenas através de sua dimensão física. Elas dependem igualmente de seus
sistemas de telecomunicação e de seus programas computacionais. Esta dimensão digital e
virtual tem suplantado a fisicalidade e diminuído as demandas por espaço concreto: o estoque
de bits substitui o armazenamento em bibliotecas e a linkagem substitui a acessibilidade,
dissolvendo o imperativo da circulação nos projetos arquitetônicos. Assim, telas ocupam o
lugar de portas e as interfaces substituem as fachadas e as faces públicas das instituições.
Um outro exemplo de lugar privilegiado para a identificação das transformações em
curso diz respeito aos negócios ligados à informação. Se a produção de documentos em papel
(livros, jornais, revistas etc.) é realizada, tradicionalmente, de maneira centralizada e em larga
escala, a cadeia de distribuição coloca-se como um problema para a circulação da informação
inserida. Ela exige lugares específicos para cada uma das etapas envolvidas neste processo
o escritório dos editores, os locais de impressão, armazenamento, venda e por fim, de
leitura. Localizados, de modo geral, em pontos apropriados das cidades, eles desempenham
papéis importantes na distinção dos espaços do tecido urbano. No entanto, ao separarmos a
informação de seus suportes materiais característicos, armazenamento e transporte tornam-se
desnecessários
29
, podemos transformar as livrarias e lojas de vídeos e cd´s em lojas de bits
(bitstores), de produtos imateriais.
De maneira semelhante, este processo de dissolução e digitalização promete
transformar as prateleiras das bibliotecas em servidores de banco de dados, num procedimento
que é uma versão expandida, ainda que bem lenta, de um processo que a informática conhece
como um servidor banco de dados: solicitações são enviadas e, em resposta, itens
armazenados são devolvidos. Teoricamente, as interfaces dos computadores pessoais também
funcionam de maneira semelhante: ícones na tela funcionam como portas nas ruas, fazendo
visíveis os pontos de acesso. Clicar em um ícone (ação comparada a bater em uma porta)
coloca o usuário em um espaço de onde os arquivos podem ser requisitados. Em resposta,
softwares devolvem dados armazenados em disco, exibindo-os na tela para manipulação.
Já para as galerias e museus, a previsão de Mitchell é que estes se transformem, dando
origem a museus virtuais. No entanto, se os antigos museus foram projetados para apresentar
coleções imutáveis em seqüências ordenadas e fixas, os modernos se caracterizam mais por
oferecerem espaços flexíveis para a instalação de shows temporários. Nos museus virtuais, as
imagens substituem objetos concretos e a seqüência temporal exibida em uma tela
desempenha o papel de uma seqüência espacial distribuída em um espaço de circulação.
Assim, extensas galerias se tornam desnecessárias e lidar com um público, mesmo que
29
Neste sentido, o autor cita uma iniciativa pioneira tomada pela Blockbuster e pela IBM em 1993: transmitir
vídeos armazenados em um servidor central para as lojas, onde os consumidores acessariam tal base e
escolheriam seus vídeos, gravados em cd´s instantaneamente. Mesmo as livrarias poderiam seguir tal modelo,
imprimindo na hora os materiais solicitados, o que permitiria que produtores, vendedores e consumidores
poupassem gastos e acessassem potencialmente mais opções. No entanto, Mitchell previa que, naturalmente,
os consumidores poderiam fazer isso em casa: para o autor, o download de livros, revistas, jornais, vídeos e
músicas poderia ser, inclusive, integrado a uma cadeia de reciclagem, especialmente dos papéis e cartuchos de
impressão.
grande, torna-se fácil, uma vez que o que importa não é o tamanho da galeria, mas a largura
de banda.
Mitchell considera que, à medida que a expansão das redes atingisse largura de banda
suficiente e se tornasse uma tecnologia disponível em casa, a expansão deste mercado
consumidor justificaria investimentos que tornariam os produtos interativos não uma exceção,
e sim, a mais nova regra. Performances ao vivo poderiam ser veiculadas em uma espécie de
―auditório virtual‖, com botões capazes de enviar aplausos ou outras respostas codificadas.
Eventos esportivos veiculados em 3D poderiam oferecer ao espectador a oportunidade de
selecionar um ângulo em particular, enquanto os jogos que tradicionalmente reúnem os
atletas em espaços físicos delimitados separados dos espectadores, como no futebol ou nas
quadras de tênis passariam a envolver inúmeros participantes em rede. O mesmo raciocínio
se estende para diversos outros setores.
No setor de ensino e no de medicina, as redes criam rapidamente novas práticas e
novos modos de compartilhar conhecimento, forçando mudanças nos espaços e possibilitando
a emergência de estruturas de ensinos virtuais, e o cuidado médico especializado para
populações geograficamente dispersas, pois o médico não precisará mais estar na mesma sala
ou sequer no mesmo continente que o paciente. No prisional, as mudanças ficam por conta do
surgimento de dispositivos eletrônicos de monitoramento, de modo que muitas das funções
das prisões tradicionais podem ser realizadas sem o confinamento físico, sem paredes ou
celas. Um exemplo é o Electronic Supervision Program, que permite a prisão domiciliar de
criminosos americanos, colocando-os sob o monitoramento de tornozeleiras equipadas com
transponderes conectados a aparelhos de modem telefônicos. Ao se afastarem mais que do
que uma distância pré-fixada das proximidades deste aparelho, uma central é
automaticamente alertada.
No setor bancário, o dinheiro também se converte em informação, circulando
infinitamente no ciberespaço e permitindo que os bancos ganhem, assim, suas extensões neste
espaço virtual. Dado que o processo de transferência de dados dos caixas eletrônicos para os
bancos não depende de conexão física ou espacial, mas eletrônica, eles rapidamente se
dispersaram para os lugares onde as pessoas realmente precisam de dinheiro: supermercados,
shoppings, aeroportos etc. Isso acarreta a desintegração dos centros bancários tradicionais,
pois não é mais necessário ir a um local específico para realizar transações
30
.
Um outro setor diretamente afetado por esse conjunto de inovações foi o do mercado
financeiro, que assistiu ao desenvolvimento do comércio organizado de ações, contratos
futuros e de opções paralelamente aos espaços, que se tornavam cada vez mais elaborados e
especializados para a realização de negócios. As transações passam a ser feitas de computador
a computador, e não mais entre pessoas co-presentes no mesmo espaço físico. Ordens de
compra e venda são inseridas em sistemas eletrônicos que discriminam os lances, notificam os
negociantes e transferem valores entre contas bancárias em poucos segundos. Assim, os
mercados se globalizam, corretores têm seus trabalhos substituídos por algoritmos
computacionais e as redes de computadores tornam-se os novos espaços para estas transações
virtuais.
O desenvolvimento do shopping virtual dissolve a necessidade de viajar até aos
espaços em que tradicionalmente se concentravam os vendedores e os estoques de produtos.
Assim, as vitrines das ruas são substituídas por telas de computadores e, neste contexto, o que
importa é o contato eletrônico entre os atores envolvidos na negociação. Desda forma, os
espaços físicos são preteridos em detrimento de redes de computadores, associadas a
armazéns com localização estratégica para facilitar a distribuição dos produtos. Além disso,
30
O autor especula inclusive a possibilidade de uma sociedade sem dinheiro, em que as transações bancárias
seriam realizadas em rede. Cheques, cartões de crédito e débito e até terminais bancários pessoais, associados a
laptops ou a palms com conexões sem fio poderiam se tornar possíveis, atuando como carteiras eletrônicas (cf.
Idem, p. 82).
mesmo onde as tradicionais estruturas físicas resistem, elas se tornam cada vez mais
tecnologizadas: terminais para pagamentos eletrônicos, códigos de barra, sistemas de
comunicação via satélite para conectar lojas dispersas e caminhões que transportam produtos,
além de sofisticados mecanismos eletrônicos de controle de estoque e atualização de preços
em tempo real, capazes de inserir, nos displays das diversas lojas, o valor correto de um
produto em apenas alguns segundos.
Os espaços destinados ao trabalho também se transformam. Escritórios podem ser
deslocados dos centros comerciais para localizações mais baratas, nos subúrbios das cidades,
de onde os trabalhadores manteriam contato eletrônico com os pequenos mas ainda assim
visíveis escritórios centrais. Os escritórios satélites poderiam ser transferidos para
localidades onde os custos com mão-de-obra fossem mais baixos. Assim, a localização dos
serviços e os padrões de mobilidade em direção ao trabalho se alteram: trabalhadores
poderiam ir de bicicleta a um desses escritórios satélites nos subúrbios das cidades ou a
centros de telecommuting (que permitem o trabalho à distância a partir de uma infra-estrutura
de comunicação), ao invés de se deslocarem de carro ou transporte coletivo aos escritórios
centrais.
As companhias de seguro e outros negócios que se ocupam de produtos imateriais e
tomam ordens para serem executadas depois poderiam ser facilmente substituídos pela
comunicação em rede. Grande parte deste trabalho informacional poderia ser transferida para
as casas dos trabalhadores, em subúrbios ou mesmo em áreas rurais distantes.
As residências também se transformam. A sala de estar surge como o lugar onde as
atividades digitais se estabelecem no mundo físico: trabalho, notícias, entretenimento,
educação, transações bancárias e compras se tornam disponíveis em casa através de
dispositivos eletrônicos. De maneira geral, estes dispositivos atuam como mediadores do
fluxo de informações para dentro e para fora das casas (e lembram a velha caixa de correio,
com a diferença de que agora não é mais preciso ir até a porta para pegar as correspondências:
elas estarão em qualquer lugar onde os cabos podem chegar, e o autor admite que as conexões
podem inclusive se tornar sem fio).
Assim, progressivamente, as casas se tornarão lugares com endereços eletrônicos além
de seus endereços tradicionais. E as funções dos vários espaços no interior de uma casa serão
estabelecidas, em grande parte, através da instalação destes diferentes tipos de dispositivos e à
medida que as redes e os aparelhos eletrônicos de informação fornecerem uma gama mais
extensa de serviços, existirão menos ocasiões para se sair de casa.
Este tipo de análise, de qualquer forma, revela somente uma parte da história. As
conseqüências das transformações apontadas nos espaços urbanos a partir do impacto da
inserção das tecnologias de comunicação incidem também e profundamente sobre nossos
modos de vida. É uma vez mais Mitchell que afirma:
A eficiente entrega de bits em casa irá, além disso, colocar em colapso
muitas das separações espaciais e temporais que temos, muito tempo,
admitidas como certas. Muitas de nossas tarefas diárias e passatempos
deixarão de se ligar a lugares específicos, alocados para sua execução
lugares de trabalho para as horas de trabalho, teatros para apresentações e
serão, de agora em diante, multiplicados e sobrepostos; nos veremos capazes
de trocar rapidamente de uma atividade para outra permanecendo no mesmo
lugar, e assim, usaremos o mesmo local de muitas maneiras diferentes. E não
será mais tarefa fácil distinguir entre o tempo de trabalho e o tempo de lazer
ou entre o espaço da produção e o espaço do consumo. Zonas ambíguas e
concorrentes certamente emergirão (MITCHELL, 1995: 100-101).
As instabilidades e ambigüidades no uso dos espaços desafiam igualmente as formas
de representação e distinção sociais em curso. Em muitas sociedades, existem espaços
separados para diferentes sexos e faixas etárias (arquiteturalmente definidos para crianças,
adolescentes, adultos e aposentados). Em escala urbana, as diferenças sociais são tornadas
claras pela presença de domínios diversos, facilmente identificados: habitações populares,
prisões, conventos, orfanatos, hospitais, residências oficiais para os políticos e para os líderes
religiosos. No entanto, tais categorias confundem-se quando os espaços passam a depender de
softwares e do fluxo de bits. Por isso, Mitchell acredita que haverá uma profunda
significância ideológica nas recombinações arquiteturais que se seguem à dissolução
eletrônica dos tradicionais espaços construídos e de seus modelos espaciais e temporais
(MITCHELL, 1995: 103).
Por conseguinte, as redes de comunicação requerem e engendram estes novos espaços.
Prédios e seus compartimentos agora não se relacionam apenas ao espaço urbano, mas ao
ciberespaço. Progressivamente, eles devem funcionar como as interfaces, possibilitando o
trânsito de bits. Equipados com sensores e com um determinado poder de processamento,
além de sofisticadas capacidades de comunicação interna, devem ser reconfiguráveis e
programáveis para diferentes usos. Mitchell sugere, por exemplo, que no lugar da tradicional
sala de estar tenhamos apenas ―espaços residenciais‖, que podem ser programados para o
trabalho, educação ou entretenimento. No lugar das escolas e hospitais centralizados,
podemos ter sistemas específicos que podem ser instalados em diferentes lugares seja em
um assento em um avião ou em comunidades rurais distantes. Os parques, por exemplo, se
transformarão em redes de simulações disponíveis e reprogramáveis. Desse modo,
cômodos e prédios serão vistos a partir de agora como lugares onde bits
encontram o corpo onde a informação digital é traduzida em informação
visual, auditiva, táctil ou em qualquer outra forma perceptível, e,
reciprocamente, onde as ações do corpo são percebidas e convertidas em
informação digital (MITCHELL, 1995:105).
A tarefa de construir estes lugares reprogramáveis não envolverá apenas a colocação
de fios nas paredes. Com o desenvolvimento das tecnologias, dispositivos computacionais
miniaturizados desaparecerão na estrutura das construções e sensores estarão presentes por
toda parte. ―No fim das contas, as edificações se tornarão interfaces computacionais e as
interfaces computacionais se transformarão em edificações (MITCHELL, 1995: 105).
A corrida por reivindicar e habitar este novo espaço está aberta. Para o autor, estamos
entrando em uma era na qual corpos eletronicamente aumentados vivem em pontos de
interseção entre os mundos físico e virtual. Esta nova condição é marcada pela ocupação e
interação proporcionadas pela telepresença, pelas formas mutantes da arquitetura que
emergem da fragmentação e recombinação, induzidas pelas telecomunicações, dos tipos
tradicionais e pela emergência das cidades virtuais, que correspondem, complementam e em
alguns casos, competem com os espaços urbanos concretos. A empreitada que se coloca para
o século XXI é projetar a bitsphere um ambiente mundial, eletronicamente mediado, no
qual as redes estão em qualquer lugar, e no qual a maioria das ferramentas disponíveis, da
escala global à nanométrica, possui algum grau de inteligência e alguma capacidade
comunicativa corporificadas. E este novo ambiente ―irá se sobrepor e eventualmente suceder
os cenários agrícolas e industriais que a humanidade vem habitando tanto tempo‖
(MITCHELL, 1995: 167).
2.10 A Ecstacity
O arquiteto Nigel Coats, professor da Royal College of Art de Londres, postula uma
nova maneira de olhar a arquitetura, na qual arquitetura e cidade são relativas a uma
experiência. Ecstacity (COATES, 2003) é um livro de arquitetura, sobre uma cidade, que tem
como proposta o redimensionamento dos termos ‗arquitetura‘ e ‗cidade‘, onde mais do que
apresentar um projeto de cidade pretende nos fazer experimentá-la a experiência viria antes
da estilística formal ou qualidades funcionais das construções. Nela, a arquitetura ou sua
versão mais ampla é o veículo para uma estrutura mais solta e aberta que estimula o espaço
em cada um de nós.
A originalidade começa na confecção do livro com seus textos fragmentados,
formatados na horizontal e vertical, e em diferentes línguas que se misturam a gráficos, a
croquis, a fotografias inusitadas superpostas a esquemas, desenhos, e glossários em ordem
decrescente. A falta de hierarquia de conteúdo possibilita que o próprio leitor decida por onde
começar sua leitura e, como este livro é um guia para Ecstacity, tem-se a impressão de que
estamos perambulando por diferentes espaços.
A valorização da relação entre experiência (inusitada, cotidiana, histórica, atual, futura
e imprevisível) e arquitetura (planejada, projetada, funcional) se destaca da concepção de
Nigel Coates sobre a Ecstacity. O que se pretende é que a arquitetura esteja aberta e promova
a experiência, numa relação em que produz e é afetada por aquilo que acontece. Dessa
concepção surge o desafio de pensar como a localidade, a identidade, a liberdade, a
diversidade e a segurança podem morar juntas.
Neste contexto a cidade não é mais pensada simplesmente a partir da acumulação de
construções e serviços; é pensada como um complexo de mundos entrelaçados, de
sinalizações na estrada à telefones celulares, da Internet à redes de vigilância. É um
microcosmo cultural que exporta e importa dados, move dinheiro, troca culturas e idéias.
Com o objetivo de colocar em primeiro plano o lado sensual das cidades, os seis
capítulos do livro Ecstacity servem como um guia para experimentar uma cidade e no
envolvimento do leitor com os textos, ele próprio (leitor) se constitui como guia desse livro
explorado como se fosse uma cidade.
Ecstacity é um lugar imaginário, que utiliza fragmentos de sete cidades ao redor do
mundo Londres, Bombaim, Tóquio, Nova York, Rio de Janeiro, Roma e Cairo. Este
conceito de cidade é fundamentalmente global, multicultural e multidimensional. A planta
resultante dessa fusão mostra a mistura e a contigüidade de ruas de cidades geograficamente
muito distantes, assim como a vizinhança inusitada de símbolos arquitetônicos, do mesmo
modo que a praia de Copacabana banha lugares inesperados. As sete cidades se unem e se
reúnem num processo constante de competição e síntese, onde o ponto central é a sua E-
lasticidade. O espaço informacional e o espaço sico estão constantemente se materializando
um no outro.
Para Coats, a Ecstacity longe de ser uma ficção científica, é ―uma leitura do mundo em
que estamos agora‖ (COATES, 2003: 25). Através de algumas perguntas tais como Onde
fica Ecstacity?―Qual é a sensação de estar lá?‖, ―Onde a cidade começa e termina?‖, ―Como
você mapeia o desejo?‖, ―O espaço equivale ao dinheiro?‖, ―Existe um corpo sob a cidade?‖
, ele inicia seu guia e define:
ECSTACITY: metade real e metade imaginária, Ecstacity se edifica sobre a
globalização de cidades existentes... ela compartilha o mundo de
informações no qual vivemos com uma arquitetura fluida de híbridos...
reveste a vida cotidiana de combinações de escala, história e emoção,
substituindo o poder institucional pelo terreno comum da identidade e do
desejo... Aqui, cada um das suas seis seções
31
emoldura uma interface de
experiências com a cidade... elas convergem para fazer a pergunta: ‗o que
acontecerá a seguir à cidade?‘ (COATES, 2003: 11).
Ecstacity relaciona-se a uma experiência onde as pessoas são o ponto de partida. Suas
atividades interpenetram-se e entrelaçam-se no tecido geral da cidade. São seus habitantes, e
não as construções, que conferem sentido a ela. Os ambientes criados permitem,
supostamente, às pessoas projetar suas próprias fantasias neles. Seu contexto não está em
tradições históricas locais, mas em um contexto global mais amplo que inclui o cinema, a
ficção e a arquitetura de entretenimento. O mundo escuro e brilhante das boates, um lugar
onde você pode ser qualquer um e qualquer coisa parece poder acontecer é uma das
referências favoritas de Coates, que traduz a cidade contemporânea como caótica e perigosa,
mas também bonita e excitante.
Na Ecstacity, os espaços em que vivemos, trabalham e se desdobram um sobre o
outro, batendo um no outro, realizando um tipo lento de cópula espacial que assegura que
nenhum espaço é supremo ou auto-suficiente.
Longe da necessidade de que a cidade nos pacifique com um vocabulário de ordem e
estabilidade, busca-se ativar qualidades viscerais no ambiente. É por isso que, no fluxo e
refluxo, a Ecstacity constrói uma ligação entre as experiências da cidade física e as
31
Alusão aos seis capítulos do livro.
experiências proto-arquitetônicas que ela contém. Ela responde a uma necessidade comum de
contrastes, realidades, histórias e emoções, diz Coates.
Esta mistura de estruturas de cidades existentes no planeta é uma alusão a fusão global
das cidades. Três elementos essenciais são inter-relacionados: a geografia (enquanto mapa,
infra-estrutura, matrix), os eventos (pela perambulação, eventos que vagueiam sem rumo na
cidade, para sobreviver) e o corpo (ou corpos). Os instrumentos são os sentidos e seus
amplificadores cibernéticos. Além de unir o material das cidades mundiais, utiliza idéias de
vanguarda dos urbanistas, buscando possibilitar projetos para estilos de vida diferenciados,
imprevisíveis e com espaço e tempo particularizados.
Ao considerar a inter-relação entre a experiência e a infra-estrutura física da cidade, o
autor sugere que a cidade pode assumir certas características humanas, e, do mesmo modo, os
humanos podem assumir certas características urbanas. A chave disso está na idéia de que o
corpo é a raiz da sensação de espaço em Ecstacity ‗não um corpo idealizado, mas o seu
corpo e o meu... invisivelmente o seu corpo leva consigo a própria arquitetura inicial...
desafiando e correspondendo ao mundo ao qual você pertence... é o nosso espaço mais
íntimo...‘ (COATES, 2003: 185). Assim, de certo modo, não pode mais existir a diferença
tradicional entre o mundo dos objetos e os espaços que eles povoam; a distinção italiana entre
mobile (móveis) e immobile (construções), aquilo que se move e aquilo que é fixo. Pode-se
chamá-los, todos eles, de ammobil.
O meio urbano em Ecstacity é neurológico, interativo e responsivo e, mais do que
qualquer outra cidade, mantém uma interface biológica com seus habitantes. Para
experimentar isso é preciso despir-se, diz Coates. Despindo-se das camadas protetoras,
descobre-se como confrontar a cidade de modo a abrir a mente e o corpo, tornando possível
habitar a cidade como um campo psico-sensual. Uma cidade é imersiva, e o primeiro espaço é
o corpo, depois a rua, o carro, os braços de alguém.
Descobrir esta arquitetura requer um salto da leitura racional da cidade para explorá-la
intuitivamente, deixar-se vagar nela e experimentar sua condição sensual, seu cheiro, suas
sensações e suas aberrações, é o que pode habilitar alguém a explorar sua condição visceral. É
preciso deixar que a cidade nos afete, nos capture.
As construções funcionam como se estivessem dentro do próprio corpo. Elas
conhecem os mecanismos do corpo e, por sua vez, os mecanismos do corpo conhecem os
dela. Do mesmo modo que o corpo, as construções têm uma alternância entre desejo e ação, e
estão cientes com a mesma intensidade da aparência do mundo exterior e da interioridade.
O estilo de vida dos residentes de Ecstacity joga constantemente com relações que
conectam o real e o imaginado, o abjeto e o artificial. Desse modo, uma construção não é
apenas uma idéia, uma metamorfose capturada em um momento. Ela realmente se transforma.
A identidade funcional dos habitantes é levada tão longe, que eles mimetizam as
próprias cidades às quais servem. Dentro destes territórios amenos e repetitivos, alguns
lugares convertem-se em condições especializadas e suficientemente poderosas para irradiar
suas identidades na infinidade do mundo em volta deles. Sua periclitante coleção de terminais,
rampas, passagens, lojas, capelas, templos, salões de jogos e cinemas constituem uma
simulação fractal da Ecstacity.
Os limites das identidades estão sendo drasticamente alargados, adicionando quem se
era a quem se é e será. Todo o seu passado, sua história, está sendo adicionado ao seu
presente. Não se leva consigo apenas desejos e necessidades em sua forma mais geral, mas
sim aquilo que se é na totalidade.
Enquanto as construções e anúncios conspiram para irradiar mensagens idealizadas de
estilos de vida, na cidade as pessoas fazem as coisas por sua própria conta. Elas são os
anúncios. Atualmente você não apenas escolhe seu estilo de vida, você o inventa. As chances
são altas de você fazer seu próprio anúncio, e estrelar regularmente neles.
Agora o sexo, ou uma ilusão eufemística a ele, parece desempenhar uma parte em
tudo, indo dos anúncios à arquitetura. Ao olhar de perto a cidade incluindo o seu
movimento, imaginação e espírito voluptuoso , vemos que ela quer salientar uma ética de
civilidade e humanidade, de lucro e acessibilidade. A cidade está constantemente tentando
afetar seus habitantes, ao ponto de, na Ecstacity, o flerte ser celebrado como uma qualidade
que faz a cidade se movimentar.
A Ecstacity freqüentemente faz seus habitantes se sentirem como se tivessem passado
de um território ao outro, de um evento para dentro do outro. Estar em duas situações de uma
vez é o que melhor caracteriza esta relação. Ao hibridizar os eventos dinâmicos de uma
construção, a construção torna-se mais subjetiva que objetiva, podendo causar a impressão de
que se está em dois lugares ou duas condições ao mesmo tempo, e que a estabilidade de um
único centro foi perturbada. Os espaços confluem territórios divididos de modo a conduzi-los
para além de suas fachadas, e a descobrir sistemas caóticos de multicamadas, causando um
colapso nos limites convencionais.
Devido à falta de restrição institucional, um evento pode deslizar para o outro. Se está
sempre em duas situações de uma vez só, ou pelo menos, cada uma delas contém o caminho
da outra. O trabalho e a diversão não são mais coisas distintas; Os ecsta-cidadãos trabalham e
se divertem ao mesmo tempo, mesmo quando estão dormindo.
Diferentes modos de ocupação são enquadrados por diferentes tipos de espaço que são
mesclados em conjunto, hibridizados, em uma única forma. Quando juntos não nenhum
motivo pelo qual eles não devam se fundir de modo a gerar um organismo espacial coerente
que contenha esta dinâmica. São espaços se combinando e mais do que isso, copulando,
disparando uma relação erótica com as pessoas que estão dentro e em volta deles.
Para além do alcance das forças institucionais, existe uma forte possibilidade da
ocorrência de mutações espaciais íntimas. Por toda cidade as construções e os eventos estão
mudando a cidade não funciona como um relógio. um frisson decorrente da
sobreposição de culturas, que se encontram num perpétuo estado de amplificação de suas
identidades e em constante negociação.
Como Einstein demonstrou, matéria e energia são intercambiáveis, mas a maior parte
dos arquitetos parece o ter ainda levado isso em consideração. As construções precisam se
transformar e atingir um modo de dimensão que faça a passagem da matéria à energia, do
dado às sensações.
O autor argumenta que estamos chegando ao ponto em que a arquitetura pode ir um
degrau além. Como parte de uma campanha por uma dinâmica íntima, estamos aprendendo a
exagerar o fator prazer. A arquitetura pode expandir sua própria ontologia de modo a abarcar
o campo inteiro da percepção, não no plano dos cortes 2-D, nem nas qualidades formais da
arquitetura enquanto objeto, mas como um campo em si mesmo. é chegada a hora de
orquestrar espaços de modo que eles reflitam a multiplicidade da própria vida, na qual os dois
principais meios são o corpo e a cidade.
Apesar do mapeamento impresso que é restritivo, a Ecstacity oferece-se como
paradigma dinâmico, capaz de acolher cada um de seus multi-variados habitantes que podem
agir tanto como estimuladores quanto responsivos. Uma cidade camaleônica, onde
transformação, movimentos, experiência sensorial e elasticidade misturam-se, indiferenciando
E-cidadão e cidade.
2.11 Outros conceitos de cidade
Além dos conceitos examinados acima, vários outros poderiam ainda ser apresentados.
O de cidade do controle, por exemplo, concebido por Michael Hardt e Antonio Negri
(HARDT, NEGRI, 2001: 318) como a cidade que concentra os serviços de produção
especializados, os serviços financeiros e a centralização da administração, do planejamento e
do controle da produção.
A cidade digital é aquela habitada pelos tele-trabalhadores e pelas tele-comunidades
que usam informação e comunicação tecnológica para trabalhar e se comunicar à distância.
Esta cidade é provida de cabos de fibra ótica que possibilitam uma enorme velocidade na
Internet. Por ser formada por um sistema de espaços virtuais interconectados pela expansão da
supervia da informação, ela não pode ser definida pelos parâmetros convencionais
administrativos ou geográficos comumente usados para identificar os limites físicos da
cidade. Como exemplos da composição da cidade digital, podemos citar as comunidades que
são aespaciais e de natureza imateriais: grupos de discussões virtuais interativos, rede
bancária 24 horas, rede digital de fornecimento de trabalho e informação à distância etc.
A cidade 24/7/365 designa cidades mundiais como Londres, onde as atividades
sociais, culturais e econômicas acontecem 24 horas por dia, sete dias da semana, 365 dias por
ano. Numa cidade como essa, não há horas off, nenhum dia fixo para descanso e não há turnos
sazonais ou ciclos de utilização.
a cidade instantânea é a que se constitui no encontro temporário de pessoas em um
lugar particular, em um determinado momento e para um evento de interesse comum.
Exemplos de cidades instantâneas incluem milhares de delegados que expõem para o rum
do Mundo Econômico em Davos, Suíça, todos anos, ou a concentração de milhares de
pessoas no Rock In Rio, a ―Cidade do Rock‖. Se considerarmos um espaço tecnológico, que
não é geográfico, mas um espaço de tempo de transmissão, temos esta cidade no espaço de
tempo da concentração correspondente à transmissão eletrônica de um grande evento. Trata-
se de uma cidade do instante, quando, por exemplo, um bilhão de pessoas estão reunidas em
torno da transmissão da final da Copa do Mundo de Futebol. Cidades instantâneas têm tempo-
limite e espaço-específico de acontecimento, estabelecidos através de variadas formas. Assim
sendo, podem variar enormemente; umas podem ser exclusivas e insulares, outras inclusivas e
abertas;
Cidade sustentável é aquela considerada economicamente vibrante, socialmente justa e
ecologicamente viável. O termo inclui comumente as noções de justiça e igualdade e requer
que as demandas do presente sejam atendidas sem comprometer as futuras gerações de
suprirem suas próprias necessidades. Em contraposição, a cidade da distopia alude ao
amontoado incontrolável de pobreza urbana, caos social, crime, poluição, população sem-teto,
mendicância e outras formas de privação. Seria equivalente ao submundo da cidade global,
onde a subeducação, a sublocação e as precárias condições de vida e trabalho agravam a
situação de marginalidade, em contraste com a fortuna crescente de poucos.
Em suma, são tantos os conceitos quanto os entendimentos e visões do mundo
contemporâneo. Cada um deles tenta dar conta das especificidades geradas pela mudança de
paradigma de um conceito que, certamente, não se restringe à geografia, à geometria ou ao
tempo cronológico e que, em definitivo, está em questão. Momento propício para
apresentarmos nossa tese.
3 O URBANISMO EM ESTADO FLUIDO
Antes mesmo de falar da arquitetura, pensemos em construir uma visão do
mundo, do tempo, da imediatez, da ubiqüidade, da instantaneidade (...)
que dar dinamismo a arquitetura, fluidos e não sólidos. que entender que
o sólido, como estado, se acabou como a massa, agora estamos na era da
dinâmica dos fluidos... (VIRILIO, 2001: 7)
32
Utilizamos no título deste capítulo a mesma referência feita por Solà-Morales para a
arquitetura contemporânea. Esta analogia deve-se à constatação de que os mesmos princípios
norteadores do texto modelo, no qual encontramos a afirmação de que ―uma arquitetura
líquida (...) será aquela que substitua a firmeza pela fluidez e a primazia do espaço pela
primazia do tempo‖ (SOLÀ-MORALES, 2002: 127), podem ser aplicados ao urbanismo.
Aliás, se reconhece a ―necessidade de planejamento local para lidar com a fluidez espacial
sem precedentes que temos hoje para levar a cabo atividades diárias em qualquer lugar e a
qualquer hora‖ (HORAN apud CASTELLS, 2001: 195)
33
. Esta fluidez, em contraponto ao
princípio vitruviano de permanência, indica a necessidade de enorme maleabilidade dos
planejadores do espaço, para considerar a inclusão de novas articulações que possam
estabelecer como dado a mobilidade universal que está se instalando.
Devido às facilidades geradas pelas cnicas, os deslocamentos multiplicam-se,
prolongam-se, representando uma forma relativa de autonomia dos habitantes em relação às
suas ações no espaço urbano. Isso permite que eles organizem sua existência segundo
temporalidades e espacialidades mais pessoais. De modo comparativo, podemos dizer que,
assim como na revolução agrícola do neolítico foram estabelecidas novas relações entre
pessoas e lugares de produção, e na Revolução Industrial, entre pessoas e máquinas, no
mundo digital global estabeleceremos ―relações entre pessoas e informação‖. Isso certamente
―possibilitará novas construções sociais e modelos urbanos‖ (MITCHELL, 2001:19).
32
Grifo do autor.
33
Grifo nosso.
As referências que sustentam o conceito de cidade estão sendo colocadas em questão,
sem que seja possível uma definição de cidade a partir da hegemonia de qualquer um de seus
elementos constituintes. A organização da produção, consumo, reprodução, transmissão,
experiência e poder, enfim, em todas as esferas em que as atividades humanas estão
concernidas, está subvertida pelos códigos forjados pelas Novas Tecnologias da Informação e
Comunicação. Na década de 1960, McLuhan já anunciava a mudança de paradigma ao dizer
que ―na era da eletricidade, o homem volta, psíquica e socialmente, ao estado nômade (...). É
um estado global, que ignora e substitui a forma da cidade que tende a se tornar obsoleta‖
(MCLUHAN
, 1964: 385-386).
A localização espacial geográfica (cidades, empresas, governos, moradia) está
relativizada pelo espaço de fluxos, que impõe uma lógica que suspende a prioridade da
contigüidade física na dinâmica das trocas. As cidades globais, por exemplo, desempenham
papel ativo de centralidade na economia mundial. Todavia, não mais uma relação imediata
entre essa ―centralidade‖ e entidades geográficas como ―centro‖ ou ―bairro‖ financeiro, pois a
conectividade eletrônica permite que a rede de transações circule independente da localização
física de empresas e praças de negócio. Por isso, a cidade como metápole é fundamentalmente
um ―espaço de mobilidade‖, onde as hierarquias das trocas são dinâmicas. O que vale é a sua
capacidade de gerar conhecimento e processar informação, e destes serem compartilhados em
redes
34
.
O mesmo ato tecnológico que relativiza proximidades espaciais e estabelece novos
vínculos mais intangíveis também subverte o regime da temporalidade, fazendo desaparecer a
uniformidade e a homogeneidade supostamente existentes entre o deslocamento físico e o
tempo do relógio. O grau de acessibilidade tecnológica dilui a sucessão temporal, desfazendo
34
Para François Ascher, as sociedades ocidentais começam a sair do industrialismo, ingressando numa economia
cognitiva, cujos fundamentos são a produção, a apropriação da venda e o uso de conhecimento, de informação e
de procedimentos, num processo que privilegia conhecimento e tecnologia o que exige capital e pessoal
qualificado, venha de onde vier , relegando a produção material a um segundo plano (cf. ASCHER, 2001).
a relação de proporção entre o espaço percorrido e a cronometria do antes e depois.
Desse modo, após o entendimento dos conceitos de ―tempo intemporal
35
e de tempo
local
36
, poderíamos pensar que o tempo é casuístico, onde poderia ser definido caso a
caso, de acordo com um exame minucioso do grau de acessibilidade da pessoa em questão.
Um mesmo espaço abriga superposições temporais diferentes, no mesmo instante se
presentificam espaços distintos, as diversas temporalidades da vida urbana não são mais
separadas com nitidez, pois muitas atividades podem se desenvolver ao mesmo tempo, tudo
numa mesma realidade imbricada: eis a cidade contemporânea.
3.1 Breve introdução à Topologia
A ‗topologização‘ da vida (VIRILIO, 2001:7).
No século XVIII, o matemático suíço Leonhard Euler (1707-1783), dedicando-se ao
estudo dos poliedros, deu uma contribuição decisiva à constituição do ramo das matemáticas
que viria a ser conhecido como topologia (foi nomeado como tal em 1836, mas essa
denominação passou a ser plenamente utilizada no século XX) (PONT, 1974: 2). Euler
insere-se numa tradição matemática que, remontando a Leibniz, especulava acerca da
exigência e possibilidade de uma geometria que exprimisse diretamente relações de lugar, do
mesmo modo que a álgebra exprimia magnitudes. Esses são, aliás, os termos com que
Leibniz, em carta a Huygens, escrita em 1679, fazia o seguinte comentário:
[A]pós todos os progressos que fiz nessas matérias, ainda não estou
satisfeito com a álgebra, pelo fato de que ela não fornece nem as vias mais
curtas, nem as mais belas construções em geometria. Esta é a razão pela qual
creio nos ser necessária ainda uma outra análise propriamente geométrica ou
35
O uso das tecnologias propicia a existência de um tempo intemporal sem referência cronológica. O espaço de
fluxos dissolve o tempo, eliminando a seqüência dos eventos e tornando-os simultâneos. Cria assim, um tempo
não diferenciado, que possibilita um presente eterno. Passado, presente e futuro e as modalidades escrita, oral e
audiovisual da comunicação interagem numa mesma informação multimediada. O tempo é transformado pela
simultaneidade e pela intemporalidade (cf. CASTELLS, 1999a: 457- 492).
36
Segundo Castells, reportando-se a um ensaio de Barbara Adam sobre tempo e teoria social, existe uma
tendência para adoção de um conceito contextual do tempo humano: o tempo é local (CASTELLS, 1999a: 458).
linear, que nos exprima diretamente situm, como a álgebra exprime
magnitudinem (PONT, 1974: 2).
Em busca dessa nova álgebra ou nova geometria, Leibniz utiliza a expressão analysis
situs que ficaria consagrada até o século XX , mesmo que, provavelmente, jamais tivesse
tido conhecimento da ciência assim batizada (PONT, 1974: 2).
A partir de Euler, o problema propriamente topológico das situações recíprocas dos
lugares começa a se delinear com mais clareza e a insistência quanto à natureza do problema é
visível nos matemáticos que, na seqüência, dele se ocuparam. Para Euler,
além dessa parte da geometria que trata das grandezas e que foi por muito
tempo cultivada com bastante zelo, outra, desconhecida até hoje, de que
Leibniz fez a primeira menção e que chamou de geometria de posição.
Segundo ele, essa parte da geometria se ocupa em determinar a posição e a
buscar as propriedades que resultam dessa posição. Nesse trabalho, não é
necessário nem grandezas, nem calculá-las
37
(PONT, 1974: 14-15).
Quase um século depois, o então jovem matemático alemão Johann Benedikt Listing
(1808-1882), escrevendo a um amigo, fala pela primeira vez em ―topologia‖, para designar
um campo de investigação matemática que não se enquadrava mais nas leis de composição da
geometria conhecida. Diz Listing:
Leibniz definia essa ciência como o estudo da coneo e das leis da
situação recíproca dos corpos no espaço, independentemente das relações de
grandeza, que dependem da geometria; ele lhe deu o nome de analysis situs.
Como entretanto o termo geometria não pode decentemente caracterizar uma
ciência da qual as noções de medida e extensão são excluídas; como, além
disso, já atribuíram a denominação de geometria de posição a uma outra
disciplina e, como finalmente nossa ciência não existe ainda, me servirei de
um nome, me parecendo conveniente, de topologia. (PONT, 1974: 42).
37
Seus estudos com poliedros o levaram a demonstrar, mediante o chamado número de Euler, que, não obstante
as deformações que um sólido possa sofrer, a relação entre faces, arestas e vértices permanece constante e
interdependente. A história da topologia, ou analysis situs, está diretamente ligada à investigação das exceções
ao enunciado de Euler (problema das superfícies curvas, espaços de n dimensões), ligando-se ao quadro
matemático mais amplo do século XIX, quando investigações sobre a natureza do número e a estrutura do
continuum numérico resultaram não só em definições rigorosas para números negativos, complexos e irracionais,
mas também na construção de uma base lógica para números reais e na fundação da teoria do números infinitos.
Tudo isso veio a contribuir decisivamente para o desenvolvimento da geometria não-euclidiana de base
riemanniana (cf. NAGEL & NEWMAN, 2003).
Mais adiante, ele afirma: ―Uma definição de topologia poderia ser: estudo das leis
qualitativas das relações de lugar, ciência suscetível, tenho disso convicção profunda, de um
método exato de pesquisa‖ (PONT, 1974: 42).
Porém, quem concebeu, de modo conseqüente, a noção de espaço topológico e
forneceu-lhe uma teoria autônoma foi Bernhard Riemann (1826-1866) (BOURBAKI, 1984:
175). Refletindo sobre os fundamentos da geometria, Riemann indica que
sob esse nome [analysis situs], empregado por Leibniz, ainda que talvez num
sentido um pouco diferente, pode-se designar a parte da teoria das grandezas
contínuas que estuda essas grandezas não como independentes de sua
posição e mensuráveis umas por meio das outras, mas fazendo abstração de
toda idéia de medida e estudando somente suas relações de posição e de
inclusão (BOURBAKI, 1984: 176).
Podemos então dizer, de modo simplificado, que a transformação topológica de uma
figura é uma transformação que se faz sem ruptura: encher uma câmara de ar é deformá-la
topologicamente (pelo menos no período que precede o estouro); esticar um fio elástico,
qualquer que seja sua forma final, é produzir uma deformação topológica. Diz-se, de maneira
bem-humorada, ―que um topólogo é um matemático que não sabe distinguir uma bóia salva-
vidas de uma xícara de café‖ (PONT, 1974:1).
A piada não é sem razão, pois com a topologia afastamo-nos do modelo fornecido pelo
espaço euclidiano e passamos a trabalhar na perspectiva das posições e das propriedades que
daí resultam, sem levar em consideração a exigência euclidiana das determinações das
grandezas e do cálculo das quantidades, da idealidade e rigidez das formas e das bipolaridades
do sistema (dentro/fora, esquerdo/direito etc.) que permanecem intransponíveis, salvo se o
agredirmos em suas leis de composição (MAGNO, 2004: 55-80)
38
.
Ora, o espaço topológico suspende a rígida lógica dualista e idealista do espaço
euclidiano, pois estuda concretamente os aspectos qualitativos das formas espaciais ou de suas
38
O ensino de MD Magno considera a questão topológica desde a década de 1970, orientando-se pelos rumos
então impressos por seu mestre Jacques Lacan. (Cf. MAGNO, 1986: 24-48).
leis de conexão, atento à posição mútua das formas, a ordem de suas partes, sua correlação e
composição. Essa nova mentalidade, em matemática e alhures, abriu, no século XX, um rico
campo de investigação, aplicação e metaforização, ao disponibilizar raciocínios cada vez mais
abstratos no sentido de amplos, refinados e inclusivos, e não no sentido retrogressivo da
idealidade euclidiana de unilateralidade, afinidade, inclusão, transformação e passagem
39
.
3.2 Uma forma que cria sua mutação permanente
Frederick Kiesler entendeu muito bem para ele, em algum lugar, a Banda
de Moebius e a garrafa de Klein eram o modelo da arquitetura do futuro- (...)
Wright se inspirou nele para o museu Guggenheim. Wright também se
dedicou a dissolver as superfícies regradas. (VIRILIO: 2001,7)
Dos três conceitos clássicos definidores da arquitetura
40
utilidade, firmeza e
formosura , a firmeza é aquele que mais claramente expressa as características materiais
desse campo de produção e estudo (SOLÀ-MORALES, 2002: 125). Trata-se da consistência
física, da estabilidade e permanência que desafiam o tempo e constroem espaços concretos e
palpáveis.
As leis que regem esse espaço tangível e sua tectonia estão em conformidade com a
força gravitacional e com a lógica euclidiana plana e tridimensional. Por muito tempo,
estabilidade e permanência foram noções chaves especificadoras do campo da arquitetura,
assinalando sua ―condição material, fisicamente consistente, construtivamente sólida e
delimitadora do espaço‖ (SOLÀ-MORALES, 2002: 126), que fez da arquitetura, durante 25
séculos, ―um saber e uma técnica ligados à permanência‖ (SOLÀ-MORALES, 2002: 126).
A reversão desses princípios está na base da reflexão contemporânea sobre a cidade,
suas definições e funções. Daí a importância, para o nosso trabalho, da proposta de Ignasi
Solà-Morales de uma arquitetura líquida ou fluida, compatível com a funcionalidade da cinta
39
Como dão testemunho, por exemplo, o trabalho do matemático Auguste Ferdinad Möbius, e de artistas como
Escher e Magritte.
40
O autor se refere aos princípios vitruvianos da utilitas (comodidade/utilidade), da firmitas (firmeza) e da
venustas (formosura).
de Moebius. Vejamos em que consiste essa proposta e como, a partir daí, articulamos a idéia
do urbanismo em estado fluido.
Mudança e transformação são características fundamentais da cultura contemporânea.
Logo, uma arquitetura materialmente líquida está preocupada em dar configuração, não à
estabilidade, e sim à fluidez movente da realidade. Sua atenção volta-se, prioritariamente,
para as
formas fluidas, cambiantes, capazes de incorporar, de fazer fisicamente
corpo, não com o estável, mas com o mutável, não buscando uma definição
fixa e permanente do espaço, mas dando forma física ao tempo, a uma
experiência de durabilidade na mudança que é completamente distinta do
desafio do tempo que caracterizou o modo clássico de operação(SOLÀ-
MORALES, 2002: 126).
Uma arquitetura líquida representa um sistema que não se reduz a uma configuração,
mas onde ―espaço e tempo estão simultaneamente presentes como categorias abertas,
múltiplas, não redutíveis, organizadoras desta abertura e multiplicidade‖ (SOLÀ-MORALES,
2002: 130). Assim, transpondo este raciocínio para o urbanismo, o urbano constitui-se hoje
mediante a multiplicidade da experiência dos espaços e dos tempos, fundando-se na
continuidade e na comunicação entre as coisas. Espaços fixos dilatam-se pela co-habitação de
múltiplas funcionalidades; tempos cronometráveis transformam-se em fluxos, com seus
ritmos diferenciados e compartilhados. Daí a exigência de categorias de análise inclusivas,
que contemplem a mutação, a continuidade e a diversidade em seu dinamismo.
Em suma, entendemos as formas fluidas e cambiantes no urbanismo no sentido do
espaço que, na condição de suporte material de práticas sociais, pode se transformar
continuamente através da flexibilidade de sua utilização, da simultaneidade de seus usos e
significados, da justaposição de informações. Esta maleabilidade de transformação,
efemeridade e transitoriedade é que confere ao espaço urbano contemporâneo seu caráter
fluido, movente e indiferenciante.
Ora, a metáfora da cinta de Moebius interessa-nos exatamente por permitir construir
raciocínios gicos compatíveis com esta exigência. Quando comparamos esse objeto
matemático e suas propriedades com aqueles construídos pela lógica da geometria euclidiana
ficam evidentes, por analogia, as características de mutação, mobilidade e fluxo, típicas da
cidade contemporânea.
Uma cinta, ou cinta de Moebius, é um objeto matemático concebido a partir de
ferramentas conceituais da topologia. Suas características escapam às determinações do
espaço geométrico euclidiano. Neste último estamos rigidamente situados em regime de
bilateralidade e oposição (externo x interno; sentido direito x sentido esquerdo), sem
comunicação ou passagem entre pontos situáveis nas faces opostas de uma superfície assim
construída. Manipulando concretamente um cilindro
41
, por exemplo, vemos que se trata de
uma superfície bilátera, onde não continuidade ou passagem entre as duas faces (interna x
externa), salvo se, por exemplo, agredíssemos essa superfície mediante um furo, o que
imediatamente desfiguraria o objeto matemático.
Um objeto topológico como a cinta de Moebius obedece a outro princípio lógico, no
qual a unilateralidade vem substituir a bilateralidade, dissolvendo a oposição euclidiana entre
as faces. Como isso acontece? Podemos construir concretamente uma cinta de Moebius (ver
desenho abaixo) tomando uma faixa que, ao invés de ser fechada para se obter um cilindro
euclidiano, sofre uma torção de 180 graus. Obtemos um objeto que tem apenas uma superfície
ou face, que percorremos de modo contínuo. Sobre essa superfície unilátera, podemos
arbitrariamente marcar um ponto e, acompanhando seu percurso, observar que, antes de
concluí-lo, voltando ao ponto de partida, ele ―vira pelo avesso‖. O raciocínio que nos interessa
é: temos uma superfície unilátera que comporta a inscrição de posições que se transformam
41
Usamos esse recurso para fins didáticos, mas estamos cientes de que, na geometria euclidiana, trabalhamos, ao
contrário, com a idealidade do espaço e toda exemplificação concreta é sempre uma cópia imperfeita do modelo
ideal matematicamente concebido.
reciprocamente uma na outra, em continuidade, de tal modo que as opositividades
desaparecem.
Cinta de Moebius
42
A proposta do urbanismo em estado fluido considera, em analogia com a cinta de
Moebius, a equivocação dos usos e funções tão evidentes na cidade contemporânea. Portanto,
ela pode incluir a flexibilidade ou mudança sem rupturas que ocorre na prática do dia a dia,
evidenciados pelos conceitos que tratamos no capítulo anterior e no início deste. Possibilita
assim, o entendimento da permeabilidade entre conceitos considerados antagônicos ou
diferentes e que, atualmente, estão relativizados em decorrência do uso do espaço, da
utilização das tecnologias, da inclusão da velocidade como fator determinante da distância, da
hipermobilidade de bens, pessoas e informações, da ubiqüidade gerada pela comunicação à
distância, em tempo real ou não. Entre tantos outros, podemos destacar os seguintes
conceitos: espaço público e privado, dentro e fora, perto e longe, global e local, moradia e
trabalho, real e virtual, pessoa e cidade. Por conseguinte, as formas urbanas encerram
multifuncionalidade, polimorfismo, passagem e reversibilidade.
A noção da ―sociedade em rede‖ é um bom exemplo disso. A cidade contemporânea
pode ser considerada o espaço topológico, eletronicamente construído, que se reconfigura à
medida que a tecnologia introduz, assimila e modifica formas e funções (novas e antigas),
num alcance virtualmente infinito. Os nós que compõem a rede que a cidade é têm seu
42
Desenho retirado de MAGNO, MD. A Psicanálise, Novamente. Rio de Janeiro: Novamente, 2004. p. 60.
desempenho aferido em conformidade com sua capacidade, maior ou menor, de absorver
informação relevante, processando-a de modo eficiente. Uma vez redundantes e sem uso,
aqueles nós podem ser deletados ou absorvidos em novos nós. O importante é o poder de
performance da rede, que tende a se reconfigurar em função da dinâmica de seus nós
constituintes, que só existem e funcionam como seus componentes. Logo, ―a rede é a unidade,
não o nó‖ (CASTELLS, 2004: 3).
Sabemos que a noção de ―rede‖ não se restringe ao mundo do século XXI. As
organizações humanas dependem de e se desenham mediante as redes de troca e comunicação
que são capazes de criar. Para François Ascher, por exemplo, o crescimento das cidades foi o
correlato histórico do desenvolvimento dos meios e técnicas de transportes e de estocagem de
bens, necessários ao abastecimento de populações cada vez mais numerosas, de informações
necessárias à organização e divisão dos trabalhos e das trocas, e de pessoas, ocupadas com
técnicas de construção, gestão urbana dos fluxos e proventos, proteção e controle (ASCHER,
2001; CASTELLS, 2001: 7). Consideradas as tecnologias disponíveis em cada época e lugar,
a conectividade que cada grupo humano foi capaz de criar trouxe maior ou menor poder de
deslocamento, acesso a recursos materiais e conhecimento, que transcendiam os limites de
cada localidade delimitada.
O salto qualitativo que acontece na segunda metade do século XX liberou a
conectividade dos limites materiais, graças a tecnologias com poder de liquefação suficiente
para instalar um regime de comunicação altamente flexível, adaptável e auto-reconfigurável
(CASTELLS, 2001: 5). A natureza topológica da comunicação eletrônica é plenamente
exibida pela capacidade contemporânea de fluxo contínuo de informação interativa e em
várias direções. Constituímos hoje uma sociedade em rede cuja especificidade é a extensão
―da mente e corpo humanos em redes de interação feitas por tecnologias de comunicação
baseadas na microeletrônica e operadas mediante softwares (CASTELLS, 2001: 7), às quais,
acrescentadas as tecnologias da engenharia genética, disponibilizam um complexo sistema de
decodificação e recodificação da matéria viva.
Do mesmo modo, conexões sem fio e dispositivos de acesso portáteis criam um
campo contínuo de presença que pode se estender através de prédios, outdoors, tanto em
lugares públicos como em privados‖ (MITCHELL apud CASTELLS, 2004 : 11). Isso denota
também o caráter assincrônico da comunicação, pois não é necessária coincidência de tempo
ou de espaço para que ela se estabeleça. Um exemplo dessa situação é o teletrabalho móvel
como modelo de trabalho que está se instalando. Esse modelo considera o trabalhador como
nômade, uma vez que ele excuta seu trabalho através de contato com seu escritório, via
telefone celular, internet, fax, enquanto está em deslocamento, ao mesmo tempo em que está
em viagens, visita a clientes ou em seu percurso corriqueiro, criando a situação do escritório
em movimento‖ (CASTELLS, 2001: 192). Este exemplo é particularmente interessante
porque mostra o caráter qualitativo das transformações, onde nitidamente temos uma situação
em que o deslocamento dos lugares, das funções, ocorre simultaneamente ao deslocamento
das pessoas. Isto nos remete a uma reflexão mais detalhada deste fenômeno contemporâneo
no qual as pessoas se confundem com os lugares, onde não distância entre habitat e
habitante - este é um raciocínio importante para o entendimento do nosso trabalho -, onde
cada um se definirá caso a caso segundo conexões e articulações em questão a cada momento.
3.3 O Orbanismo do século XXI
No mundo contemporâneo, ser urbano é ser conectado (ARAUJO, 2001: 113), não
somente no sentido informacional, mas no sentido lato de todas as possibilidades e usos de
conexões disponíveis. Nesse contexto, ao invés de cidadão ou citadino, o mais apropriado é
retomar o antigo conceito de cosmopolita, ―cidadão do mundo‖ (ARAUJO, 2001: 113). Os
acontecimentos das trocas materiais, pessoais, mentais e financeiras, do estabelecimento de
vínculos sociais, de inserção social, política e econômica se darão mediante a interface gerada
pela disponibilidade mental, social, pessoal e dos equipamentos disponíveis. Como a cidade é
o local destes acontecimentos, podemos dizer que ela estará onde o cosmopolita estiver.
Assim, o urbanismo do século XXI se transmutaria em orbanismo
43
, no qual, uma vez que
não teríamos mais como referência fronteiras ou limitações, estaríamos tratando como cidade
não só o mundo, mas também o universo conhecido e por conhecer (ARAUJO, 2001: 114).
Alguns autores, em diferentes campos do conhecimento, apontam para esta direção.
Por exemplo, Derrick De Kerckhove, diretor do Instituto McLuhan de Tecnologia e professor
da universidade de Toronto, afirma que no contexto informacional em que vivemos a arqui-
tetura e o planejamento urbano começarão a ser pensados em termos da acessibilidade de
comunicação, e não apenas em termos de infra-estruturas viárias e hídricas (KERCKHOVE,
1997). Para dar sentido ao que quer dizer, ele produz uma nova terminologia e afirma que o
trabalho do cyberteto
44
é criar caminhos confiáveis e ambientes proveitosos no cyberespaço e
entre o cyberespaço e o espaço real (KERCKHOVE, 2000:70). Podemos acrescentar que
estamos então falando da cybertetura, que é a concepção de uma arquitetura na qual as
ferramentas e questões em jogo estão imersas no novo ambiente tecnológico e digital que
estamos começando a habitar. Não é o mundo que está se globalizando, somos nós. A
cibercultura implica ―ver através‖ da matéria, do espaço e do tempo com nossas técnicas
informacionais. A tecnologia nos possibilita ter acesso físico e deslocamento a regiões
distantes, criando uma situação em que estamos contidos na esfera global. Quando pensamos
globalmente, comunicamo-nos e fazemos trocas a partir do lugar que ocupamos, contamos a
43
Urbe = cidade; Orbe = globo, mundo, universo.
44
Do mesmo modo que, etimologicamente, o termo arquiteto vem do grego arche, ―primeiro‖ ou ―origem‖, e
tékton, ―carpinteiro‖ ou ―construtor‖, substituindo-se arche por kyber, ―leme‖, ―timão‖, ―governo‖, ―direção‖,
mantém-se o elemento construtor, mas adiciona-se o novo campo da navegação interativa à função daquele que
seria não mais o arquiteto, e sim o cyberteto.
esfera global internamente: ―contemos a Terra nas nossas mentes e redes‖ (KERCKHOVE,
1997: 193).
Ignasi de Solà-Morales sustenta a tese de que nossa civilização abandonou a
estabilidade do passado e assumiu o dinamismo das energias que configuram nosso entorno.
Assim, nossa cultura prioriza a troca, a transformação e os processos estabelecidos pelo
tempo, o que modifica o modo de ser das coisas e nos faz passar a considerar formas fluidas.
Como mencionamos, isso significa que a substituição da firmeza pela fluidez e a primazia
do espaço pela primazia do tempo constituirá uma arquitetura líquida, como um sistema de
acontecimentos em que espaço e tempo estão simultaneamente presentes como categorias
abertas e múltiplas. Esta arquitetura líquida, fluida, é o resultado de uma dobra sobre si
mesma, uma sorte do interior de uma cinta de Moebius onde não é possível escapar da forma
que cria sua mesma flutuação permanente‖ (SOLÀ-MORALES, 2002:134).
Esses e outros conceitos utilizados no urbanismo contemporâneo buscam dar conta das
questões surgidas atualmente. Queiramos ou não, o ponto de vista e as referências estão
mudando. É preciso, pois, situar o que seja cidade dentro da nova perspectiva que se instalou
no mundo.
Segundo Manuel Castells, estamos num estágio em que a cultura após termos
suplantado a natureza a ponto de sermos obrigados a preservá-la artificialmente, como uma
forma cultural passa a referir-se, sobretudo, à própria cultura. Nesse sentido, depois que
alcançamos um estágio de sabedoria e organização social que nos leva a viver um mundo
predominantemente social, a história estaria começando, e não terminando, como quiseram
alguns autores do final do século XX. Estamos, sim, no início de uma nova era, cuja
―tecnologia central, a tecnologia da comunicação, está relacionada ao coração da
especificidade da espécie humana: consciência, comunicação com significação‖ (CASTELLS,
2004: 6).
Podemos, portanto, especular que estamos imersos num contexto comparativamente
novo de existência. Uma nova humanidade está por ser construída e ela representará,
conseqüentemente, uma nova sociedade e uma concepção inédita de cidade. Um novo
mapeamento, não mais geográfico, está constituindo as cidades e as bases de relacionamento e
troca que estão em curso. Assim, utilizando as indicações de Rem Koolhaas de que o novo
urbanismo deve colocar em cena a ―incerteza‖ e ser capaz de reinventar o ―espaço
psicológico‖, nosso trabalho de pesquisa propõe um recorte intencional, no qual a abordagem
desloca-se das questões geométricas, geográficas e infra-estruturais urbanas para uma
abordagem mais ampla, generalizante por um lado e particularizada por outro, do conceito de
cidade.
Nosso entendimento é que as conexões das pessoas recortam o mundo e a cidade que
ela é. Portanto, é cabível a equivalência Cidade = Eu. Contudo, para estabelecer esta
equivalência, é necessário apresentar um conceito de Eu compatível com esta afirmação. Este
será o objetivo do capítulo 5. Mas, antes de entrarmos diretamente no conceito de ―eu‖ que
interessa a esta tese, buscaremos mostrar, no capítulo 4, o entendimento do conceito de ―eu‖
para Descartes, Kant e Freud, bem como a Teoria Geral dos Sistemas de Bertalanffy, o
sistema autopoiético de Maturana e Varela, o pensamento rizomático de Deleuze e Gattari, a
ecologia cognitiva de Lévy e as redes complexas de Barabási e outros.
4 RECONCEITUANDO EU
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar.
(PESSOA, 1983: 67 [Saudação a Walt Whitman])
Cada forma de pensar traduz uma certa época. Entretanto, assim como Rossi apontou
que ―A forma da cidade é sempre a forma de um tempo da cidade, e existem muitos tempos
na forma da cidade.‖(ROSSI, 1995:57), numa mesma época coexistem várias visões e
entendimentos de mundo, de homem, de vida. E isso é particularmente verdadeiro numa
época de mudanças como a nossa, em que assistimos à constante reformulação do próprio
entendimento do que seja humano
45
, bem como a novas formas de ser, existir, viver e pensar.
Neste capítulo falaremos sobre a instalação da noção moderna de sujeito
46
(século
XVII), entendida como fundamento da ação e do conhecimento, e a identificação desta noção
com a de ―eu que durou três séculos. Isto significa que durante este período temos a
sedimentação do pensamento moderno e de todos os corolários advindos deste raciocínio,
como por exemplo: a idéia de eu como centro de referência; a idéia de identidade; a idéia de
conhecimento como relação entre sujeito e objeto; a separação entre sujeito e objeto, etc.
Mostraremos, também, a disjunção da identidade do conceito de eu ao de sujeito, que
acontece com Freud no final do culo XIX, e a dissolução do conceito de sujeito e
transformação do conceito de eu, que passa a ser efeito da complexidade da determinação
inconsciente.
A partir daí, veremos: alguns pensamentos que apresentam raciocínios que são
acentrados e sem pontos de referências fixos; a dissolução de qualquer suposta separação
entre sujeito e objeto; que o conhecimento é produzido por várias instâncias e não é garantido
por nenhuma instância divina ou por um sujeito; raciocínios inclusivos, relativizantes, que
45
Contemporaneamente existem diversos conceitos utilizados para traduzir a noção de homem, que inclui todo o
tipo de técnica como sua extensão: homem pós-orgânico; homem biônico, homem máquina, homem pós-
humano, cyborg, homem pós-biológico.
46
Sujeito é uma categoria filosófica que significa fundamento idéia de lugar, centro, centro de referência.
levam em consideração o risco, a incerteza, etc. Ora, tudo isto não fica circunscrito a um
conceito específico, pois ao articularmos este conceito, dos modernos aos contemporâneos,
articulamos um certo modo de entendimento de mundo, que não é sem conseqüências (muito
pelo contrário) para todos os campos de pensamento.
É necessário ressaltar que não há neste capítulo a pretensão de aprofundar nos
pensamentos dos autores em questão, posto que este não é nosso foco, e sim um percurso de
passagem, quase que um fichamento genérico das questões. Nosso objetivo específico é
mostrar certa relativização do conceito de eu, assim como alguns raciocínios que apresentam
uma forma de pensar ampliada e complexa que, quando aplicada ao urbano, nos auxilia a
entender a complexidade do conceito de cidade hoje, e a necessidade de formulações
conceituais cada vez mais consentâneas com a nossa época.
4.1 - René Descartes
4.1.1 Filosofia cartesiana e a questão do fundamento
O filósofo e matemático René Descartes (1596-1650) é reconhecido como o principal
autor do racionalismo moderno. Sua contribuição à filosofia é essencial pelo esforço em
estabelecer as bases verdadeiras do conhecimento, pela introdução do conceito de
subjetividade, fonte para o pensamento filosófico, político e jurídico da modernidade. Como
matemático, concebeu o sistema de coordenadas, determinante para o desenvolvimento do
cálculo moderno. Concebeu uma filosofia em que mente e corpo são realidades distintas: a
mente como ―coisa pensante‖ (res cogitans) e a matéria como ―coisa extensa‖ (res extensa).
A filosofia procura quais são os princípios, ou o Princípio que está na base de tudo. E
este princípio, seja ele qual for, vai conter os meios de explicação de tudo o que acontece.
Vale dizer que, para além dos acontecimentos, para explicá-los, procura-se o princípio que os
funda, de modo universal e a priori. Este fundamento, este ―para além‖, é pensado pela
filosofia segundo o sintagma ser‖, a partir das exigências de unidade, identidade,
permanência, ou seja, a partir da separação entre o acidental e o substancial, entre o provisório
e o permanente.
Sem método não conhecimento verdadeiro, e a tarefa principal da filosofia
cartesiana é ordenar o ato de conhecer, encontrar seu fundamento e, portanto, sua validade.
Três pontos resumem este método: a) a suposta suspensão de todas as certezas e saberes; b) a
busca por um princípio absolutamente certo; c) a apreensão do sujeito como princípio certo.
Assim, o caso singular que torna a filosofia de Descartes inovadora é justamente a
radicalização da questão do fundamento, na medida em que pergunta pela validade do próprio
fundamento, e a proposição do sujeito como princípio. O sujeito, concebido como autor e
centro de todos os atos válidos de conhecimento, de toda atividade pensante, é supostamente o
princípio indubitável da filosofia, critério a partir do qual outras verdades podem ser
constituídas.
4.1.2 Sujeito como fundamento: Eu-substância
O método de Descartes necessita de um fundamento, de um ponto de partida
indubitável
47
. Descartes encontra este fundamento na certeza do ―Eu penso‖. Descoberta do
cogito que resiste à dúvida e torna-se a primeira experiência de certeza.
O pressuposto substancialista, de origem aristotélica, é indispensável para a
demonstração do cogito, solução de continuidade com o aparelho lógico-lingüístico
aristotélico e condição sine qua non para a emergência do conceito de sujeito, tal como foi
consagrado pela modernidade. Da mesma maneira, os três elementos conceituais do cogito a
dúvida hiperbólica, a consciência e a reflexividade da consciência também são crivados pelo
pensamento aristotélico. A força suspensiva da dúvida hiperbólica cede diante do pressuposto
47
―Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais
exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz
para encontrar somente uma coisa certa e indubitável‖. (DESCARTES, 1979: 91)
da existência do pensamento; os atos de pensamento convertem-se em atos de um sujeito: ―Eu
penso‖; e a operação reflexiva deixa de ser exposição para circunscrever um suposto ―si‖,
essência última do pensamento.
Em Aristóteles, a categoria de substância
48
tem duas significações: substrato (sub) dos
fenômenos que seria, no nível do ser, a realidade última; e unidade permanente desse
substrato (stare) que suporta todas as características de uma coisa. Para toda mudança é
preciso supor ―alguma coisa‖ que não muda, por relação à qual a mudança seja identificada
hypokeimenon (substrato) em grego, subjectu (lançado sob) em latim. Assim, temos um
princípio de permanência que sobrepõe exigências físicas, lógicas e metafísicas. O que é real
para Aristóteles é feito de substâncias, sujeitos de toda e qualquer predicação, justamente
porque são suportes dos atributos ou qualidades. Desde Aristóteles nota-se a assimilação
progressiva dos vários sentidos do termo sujeito, convertendo-se em referência necessária
para distintos domínios. Na gramática, por exemplo, tem-se a relação sujeito/verbo. na
lógica, sujeito é a instância sobre a qual a função de predicação aplica-se, ao passo que na
filosofia sujeito é o ser dotado de qualidades, a essência ou o fundamento do que é.
Com Descartes o sujeito substancializado expresso no cogito é sujeito do
conhecimento, res cogitans
49
. Entre as conseqüências dessa identificação, destaca-se a
necessidade de se atribuir ao sujeito anterioridade lógica e ontológica em relação ao objeto,
marco conceitual do idealismo moderno. Do hypokeimenon grego ao subjectu moderno, a
―substância cuja essência ou natureza é pensar‖
50
individualiza-se em um Eu (ego),
48
Substância é um conceito de ampla utilização na filosofia. Remonta aos primeiros filósofos gregos, mas
permaneceu como conceito fundamental para a filosofia até os tempos atuais. Exprime relações de atribuição no
sentido de estabelecer um predicado a algo ou alguém. Para Aristóteles, substância é uma ―categoria do ser‖, ou
seja, é predicado ou classe distinta que define aspectos essenciais do ser.
49
―Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso [...] nada
sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa.‖ (Descartes, 1973: 94).
50
(DESCARTES, 1979a, p. 94). Convém notar que este ―Eu‖ não é de modo algum sinônimo ou equivalente de
uma existência corporal, pois o princípio de distinção entre as substâncias, pensante e extensa, é sustentado até o
fim por Descartes para o caso do cogito.
convertido em critério ontológico, identificado ao sujeito dos atos de pensar, autor desses
pensamentos.
Segundo Descartes, um pensamento é uma propriedade, logo há uma substância a qual
essa propriedade pertence: ―eu‖. O que supostamente permite a Descartes usar o pronome
―eu‖ não é apenas uma conveniência gramatical, mas também a dupla crença de que todo ato
de pensamento supõe um sujeito e que todo sujeito existe substancialmente como tal.
4.1.3 Sujeito como consciência em primeira pessoa
Descartes anuncia o individualismo moderno
51
quando afirma seu primeiro princípio
―Eu sou, eu existo‖. Não se trata de indivíduos particulares, mas especificamente do sujeito
pensante, considerado como única realidade certa. Portanto, o individualismo cartesiano se
expressa na proposição do cogito, definido como ato de pensamento realizado por um
indivíduo, ego cogitans, radicalmente independente, separado de outras existências, como o
corpo, outras mentes ou outros indivíduos. Além disso, todos os pensamentos desse sujeito
são essencialmente determinados por propriedades desta substância pensante, além de serem
imediatamente acessíveis somente ao sujeito destes pensamentos. A subjetividade que se
afirma é aquela do indivíduo pensante, entendido como substância independente, indivisível e
irredutível.
No entanto, a noção de sujeito só surgirá de forma completa quando este indivíduo for
pensado como capaz de ser ―consciente de seus pensamentos‖. Este passo implica a aceitação
de dois pressupostos. A primeira suposição defende que a referência a si é sempre exercida
em primeira pessoa e que o ―Eu‖ é considerado como instância ou unidade mental
homogênea, capaz de transparência imediata para si mesmo. A segunda pressuposição afirma
51
Para Beyssade, o individualismo é uma exigência para o sistema de pensamento cartesiano: ―Descartes, arauto
do individualismo moderno, é filósofo do ego, da egoticidade, senão mesmo do egoísmo. Seu primeiro princípio
não diz cogito, mas ego sum, ego existo, ‗eu sou, eu existo‘. Em um rebaixamento geral de tudo o que não é eu, a
afirmação solitária e tranqüila do eu como primeiro princípio faz sua modernidade‖ (BEYSSADE, 1999: 47- 48).
a identidade entre pensamento e consciência. Da conjunção entre estes dois pressupostos
surge o conceito de consciência de si. O cogito cartesiano exprime o estado de consciência
daquele que diz ―Eu penso‖, estado que, para Descartes é, necessariamente, ato de um ser
consciente pensar algo sobre si mesmo na primeira pessoa.
O enunciado indubitável ―Eu penso‖ é a consciência que alguém tem de ser sujeito de
seus atos de consciência, ou seja, ser consciente de algo é ser consciente de que se é
consciente de algo. Devemos relacionar todas as idéias que temos das coisas a esse ―Eu‖ que
pensa e que ―tem‖ em si essas idéias, na tentativa de provar a existência daquele que
experimenta em ―si‖ essas idéias.
4.1.4 Sujeito da reflexão
A intenção cartesiana é tornar a reflexão operação própria da consciência, capaz de
estabelecer sua unidade como sujeito. O ato de reflexão sobre a consciência não é distinto da
própria consciência que ele constata nem, portanto, do próprio pensamento. A idéia que
orienta esta descrição é que a reflexão consiste no movimento que faz coincidir o pensamento
com o sujeito do pensamento, pois a reflexão é a consciência do próprio ato de pensar. Para
Descartes, é impossível conceber o pensamento sem a presença do sujeito como autor das
representações mentais.
O sujeito cartesiano substancializado em sua existência, conteudizado como primeira
pessoa determina que a reflexão seja uma operação de auto-referência, pois a reflexividade
do pensamento constitui o pensamento como sua própria referência. Este movimento circular
define, a partir de então, a operação de reflexão.
4.1.5 O Eu cartesiano: Eu-sujeito
O racionalismo cartesiano combinou-se com o substancialismo aristotélico para dar
origem à noção moderna de sujeito, entendido como fundamento da ação e do conhecimento.
Assim, em Descartes, a constituição moderna do sujeito é a chave para equacionar questões
fundamentais para a modernidade, como a unidade do homem e sua autonomia. Mas este
sujeito, aparentemente abstrato e desvinculado da corporalidade e da experiência, torna-se
concreto e ganha conteúdo quando é identificado ao ―Eu‖ individual. Este individualismo
radical e substancialista, enquanto afirmação da substância pensante (res cogitans) em
primeira pessoa (ego cogitans), caracterizou o idealismo moderno.
Para a filosofia cartesiana, a noção de Eu é convocada para dar realidade à nova
concepção de subjetividade que surge. Com isso, observamos a sobreposição da noção de Eu
àquela de sujeito. A interpretação substancialista do pensamento (res cogitans) vincula-se à
afirmação da individualidade dessa substância pensante: ―Eu‖ torna-se substância individual
inteiramente isolada de outras substâncias ou eus.
Vemos aqui a tese do Eu- pensante e do Eu-substância. É preciso, porém, atribuir a
este Eu outras determinações e este segundo momento corresponde à interpretação da
substância como individualidade: Eu- indivíduo. Além de ser uma substância individual, o Eu,
para ser reconhecido como sujeito e autor de suas idéias, adquire uma identidade, pois o Eu
substancial é supostamente idêntico a si mesmo. Esta operação de reflexão supõe haver na
auto-referência a possibilidade de fundar uma identidade absoluta e permanente do Eu: o Eu-
reflexivo leva ao Eu-idêntico a si mesmo, transparente a si em sua existência pensante. Estas
determinações progressivas que o conceito de Eu em Descartes envolve são os passos, nem
sempre explicítos, que possibilitaram a emergência do conceito de sujeito na modernidade.
4.2 Emmanuel Kant
O filósofo alemão Emmanuel Kant (1724-1804) foi a principal referência para a
filosofia e o pensamento ocidental a partir do século XVIII. Representante destacado do
Iluminismo
52
, seu projeto seguiu as linhas traçadas por Descartes com sua teoria do
conhecimento e sua ambição de fundamentação. A filosofia kantiana começa com a questão
sobre a possibilidade da ciência, com vistas a estabelecer para a filosofia o mesmo estatuto
científico que a geometria de Euclides e a física de Newton tiveram. Para isso, propõe um
novo modo de pensar em filosofia, análogo àquele que garantiu à matemática e à física seu
status de ciência, capaz de ―determinar algo a priori através de conceitos‖
53
.
Essa questão desdobra-se em três momentos: a) estabelecer a existência de princípios
a priori, que estão na base da matemática pura e da ciência pura da natureza, a física; b)
mostrar que estes princípios a priori são as condições de possibilidade (necessárias e
universais) de todo e qualquer conhecimento; e c) mostrar que essas condições são referidas e
condicionadas pela unidade subjetiva da consciência (sujeito transcendental) que possibilita o
conhecimento dos objetos em geral. Dessa forma, a modernidade assume contornos mais
definidos com a filosofia kantiana, ao radicalizar o princípio cartesiano da subjetividade,
consolidando o valor fundamental atribuído ao conceito de sujeito. A posição idealista
54
será
assimilada e desenvolvida por Kant, resultando no seu idealismo transcendental.
52
Kant oferece uma caracterização concisa de seu século na resposta a questão ‗o que são as luzes?‘:
―Esclarecimento [<Aufklärung>] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A
menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o
próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de
decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso
de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [<Aufklärung>]‖. Cf. Neto, J.J.M. Apostila de
História Filosofia Moderna Disponível em:
< http://www.colegiolondrinense.com.br/filosofiadisciplina/KantIluminismo.doc> Acesso em 5/11/07.
53
―Devia pensar que o exemplo da matemática e da física que, por efeito de uma revolução súbita, se
converteram no que hoje são, seria suficientemente notável para nos levar a meditar na importância da alteração
de método que lhes foi tão proveitosa e para, pelo menos nesse ponto, tentar imitá-las, tanto quanto o permite a
sua analogia, como conhecimentos racionais, com a metafísica‖ (KANT, 1989: 19).
54
Posição filosófica que afirma somente a existência da razão subjetiva, e o que se considera como realidade
depende exclusivamente das condições subjetivas.
4.2.1 A revolução copernicana e o projeto crítico
Kant compara seu projeto filosófico à inversão realizada por Copérnico em
astronomia, quando faz girar a Terra em torno do Sol. Há dois sentidos para esta analogia. Em
um primeiro sentido, no contexto de uma teoria do conhecimento, revolução significa
entender o processo de conhecimento, não mais a partir da natureza do objeto, mas do poder
de conhecer do sujeito. Para Kant, trata-se de excluir qualquer referência ao realismo
aristotélico, segundo o qual o conhecimento resulta da correspondência do pensamento à
natureza das coisas. Para Aristóteles, os conceitos reproduzem a estrutura inerente do próprio
objeto
55
e o conhecimento deve partir da realidade dada das coisas para estabelecer definições
universais. Por isso, o conceito é definido como representação das coisas (CASSIRER, 1977:
18).
O primeiro passo para a inversão moderna a respeito dessa concepção, como já vimos,
foi dado por Descartes. As representações são antes de tudo atos mentais de um sujeito. A
prioridade do sujeito em relação ao objeto é, pois, o traço marcante da filosofia moderna. No
entanto, a filosofia cartesiana ainda avalia o conhecimento humano em referência ao modelo
de conhecimento realizado por um pensamento absoluto, divino
56
, um modelo considerado
teocêntrico.
A modernidade do pensamento kantiano propõe que o conhecimento seja
representação estritamente humana e subjetiva, independente de qualquer ordem (divina)
prévia a ele, pois possui organização própria que lhe garante legitimidade em todas as esferas
de sua existência, cognitiva, moral ou política. A revolução copernicana anunciada por Kant
resulta, portanto, na autonomização do sujeito, possível somente se ele toma a si mesmo
55
Em Aristóteles, o conceito de substância tem valor central em sua filosofia, em particular em sua teoria do
conhecimento. Seu objetivo era superar a dualidade entre o sensível e o inteligível, conjugando estas duas
dimensões no próprio conceito de substância.
56
Nesse sentido, é notório o quanto é importante a prova da existência de Deus para a filosofia cartesiana como
garantia última do conhecimento. De modo mais geral, a respeito do século XVII, Cassirer comenta: ―Para os
grandes sistemas metafísicos seiscentistas, para Descartes e Malebranche, para Spinoza e Leibniz, a razão é a
região das ‗verdades eternas‘, essas verdades que são comuns ao espírito humano e ao espírito divino. O que
conhecemos e do que nos apercebemos à luz da razão é ‗em Deus‘‖ (CASSIRER, 1992: 32).
como lei de suas operações. Assim, o ponto fundamental desse novo modelo, chamado
antropocêntrico, é a consideração da estrutura da mente como fonte das condições necessárias
ao conhecimento, passo ausente na concepção cartesiana. Em Descartes a subjetividade não é
compreendida como atividade que constitui o objeto que conhece; de modo diverso, trata-se
de pensar o sujeito como coisa (res cogitans): Eu penso‖ é ―Eu-substância‖. Para Kant, a
questão será propriamente aquela sobre a subjetividade‖, pois considera o próprio sujeito
como condição de possibilidade do conhecimento em geral.
Vimos, com Descartes, que o sujeito é o nome moderno do projeto filosófico; sua
função é de ser o fundamento capaz de alavancar a filosofia e subsumir todas as outras regiões
da atividade humana, inclusive, e sobretudo, a ciência moderna. Mas é apenas com Kant que o
sujeito assume de fato essa função ambiciosa, pois cabe a ele legislar sobre as esferas teórica e
prática, ou seja, estabelecer limites para a razão humana e arbitrar sobre seu uso legítimo e
ilegítimo. Trata-se de subordinar a ciência à filosofia que se situa no plano dos
conhecimentos a priori e necessários, de acordo com Kant para a validação de qualquer tipo
de conhecimento.
4.2.2 O sujeito transcendental kantiano
Kant irá analisar as estruturas básicas do conhecimento segundo a equivalência entre
julgar e conhecer, mas será também a partir do juízo que irá conceber o conceito de sujeito
transcendental. De modo geral, o juízo é definido, desde Aristóteles, como função lógica que
atribui e relaciona um predicado a um sujeito, determinando, por exemplo, qual qualidade
pertence a um objeto. Nesse sentido, a estrutura básica do juízo é entendida a partir da forma
gramatical proposta na relação sujeito-predicado. Contudo, a pergunta contida na ―revolução
copernicana‖ se o próprio sujeito pode determinar o conhecimento sem a subordinação à
experiência (daí, os juízos a priori) um salto significativo em relação à lógica clássica e
às teorias do conhecimento precedentes. Segundo Kant, para julgar é necessário um conjunto
de conceitos ―instalados‖
57
no sujeito que realiza o ato de juízo e, por isso, é o sujeito quem
determina as condições da predicação, ou seja, determina tudo o que podemos dizer sobre o
mundo.
Mas a que sujeito Kant se refere? Na verdade, o sujeito kantiano pretende ser o
conjunto de regras pelas quais os fenômenos podem ser conhecidos
58
. Neste caso, trata-se do
sujeito do conhecimento. Este projeto fundamentalmente moderno procura demonstrar que o
sujeito do conhecimento é a capacidade a priori de conhecer, é o sujeito transcendental.
Como, porém, situar o sujeito kantiano diante de seu predecessor, o cogito? Para Kant,
o sujeito transcendental é distinto do sujeito substancial de Descartes (res cogitans). Uma
primeira distinção diz respeito ao aspecto formal do sujeito kantiano. Trata-se da consciência
como uma função gica unificadora, um sujeito formal que pode ser apreendido em sua
atividade.
Uma segunda diferença relaciona-se à própria idéia de objetividade. O sujeito
transcendental, em Kant, é o próprio fiador da objetividade, função atribuída a Deus na
filosofia de Descartes. A idéia cartesiana fundamental, segundo a qual toda relação com a
realidade envolve a representação do sujeito, será radicalizada por Kant, para quem o
conhecimento é estritamente produção do sujeito.
Trata-se nos dois casos, cartesiano e kantiano, de: 1) pensar o conhecimento como
relação entre sujeito e objeto; 2) situar o sujeito como princípio do conhecimento - Kant
dispensa justificativas acerca do papel constitutivo do sujeito, este é um dado originário, um
57
―Com efeito, a própria experiência é uma forma de conhecimento que exige concurso do entendimento, cuja
regra devo pressupor em mim antes de me serem dados os objetos, por conseqüência, a priori e essa regra é
expressa em conceitos a priori, pelos quais têm de se regular necessariamente todos os objetos da experiência e
com os quais devem concordar‖ (KANT, 1989: 20).
58
―Com efeito, a própria experiência é uma forma de conhecimento que exige concurso do entendimento, cuja
regra devo pressupor em mim antes de me serem dados os objetos, por conseqüência, a priori e essa regra é
expressa em conceitos a priori, pelos quais têm de se regular necessariamente todos os objetos da experiência e
com os quais devem concordar‖ (KANT, 1989: 20).
100
factum da razão humana; 3) sobrepor dois conceitos distintos, como aquele de consciência e
subjetividade; 4) atribuir à reflexividade da consciência a capacidade de fundar um si
reconhecido como unidade e identidade subjetiva - em Kant, a consciência, como unidade a
priori, garantiria a identidade do sujeito transcendental, que não pode mudar para garantir a
regularidade da experiência e, portanto, sua possibilidade.
Dessa forma, Kant não recusa a premissa cartesiana do ―Eu penso‖, mas procura
validá-la, transformando-a em condição formal de toda experiência. Em outros termos, o
sujeito, em sua função legitimadora, não precisa ser um ente, o que significa conferir a essa
figura do ―Eu penso‖ um estatuto transcendental. Assim, a dualidade cartesiana sujeito-objeto
é ―interiorizada‖ e cada um dos termos torna-se pólo de uma única relação, constituída pelo
sujeito transcendental.
O sujeito kantiano define-se pelos seguintes aspectos: 1) formal, porque é entendido
como uma estrutura vazia, uma forma pura, sem conteúdos; 2) a priori, porque é anterior à
experiência; 3) transcendental, porque é condição de toda e qualquer experiência possível; 4)
objetivo, porque trata-se de uma condição comum e universal a todos os indivíduos humanos;
5) reflexivo, porque é capaz de examinar e julgar sua própria atividade; 6) situa-se entre
planos heterogêneos, o empírico e o transcendental, o teórico e o prático; e 7) autônomo,
porque é capaz de determinar-se em conformidade com uma lei própria.
4.3 Sigmund Freud
4.3.1 Freud e a Psicanálise
Em uma carta a Binswanger, Freud (1856-1939) falava sobre algo que havia iniciado e
que ocuparia a humanidade durante longo tempo. Essa novidade, afirmada por Freud,
significou uma revolução desconcertante que repercutiu em diversos campos de pensamento,
situando a psicanálise como referência indispensável para os demais saberes. A mutação
101
trazida pela psicanálise soube propor uma reflexão nova que considera a plenitude da
experiência própria ao inconsciente, ―inconsciente‖ entendido como conceito que pede uma
teoria apropriada: a psicanálise. Ainda que os processos que Freud considerou não fossem
desconhecidos antes dele, a psicanálise renovou não somente as formulações sobre o
inconsciente, como também estabeleceu um novo paradigma
59
para o estudo da mente.
Em termos gerais, o princípio de subjetividade é superado pela psicanálise. Recusa-se
a crença de que o eu seja algo estável e substancial que permaneça idêntico a si mesmo ao
longo da diversidade de suas experiências o eu é, antes, o efeito da complexidade da
determinação inconsciente. Com a psicanálise, não é possível defender a idéia do homem
como base e sustentação (fundamento) do conhecimento e de si mesmo. Não mais
conhecimento entendido como domínio de objetos por um sujeito soberano ou autônomo.
Para a psicanálise freudiana, não se trata mais de subjetividade, nem particular, de
cada indivíduo, nem da subjetividade transcendental, universal, do homem. A experiência
engendrada pelo inconsciente derroga raciocínios que afirmem qualquer centramento ou
ponto de referência fixo. A crença em fundamentos é destronada, o eu, racional e metódico, é
deslocado, não mais pertencendo a nenhuma subjetividade, psicológica ou transcendental. As
grandes divisões binárias e as exclusões que caracterizaram os pensamentos pregressos são
substituídas. Para além da dualidade natureza-cultura, Freud coloca o problema do mal-estar
na civilização como origem dessa crença dualista. A distinção mente-corpo perde sentido com
a proposição do conceito ―limítrofe‖ de pulsão, ao mesmo tempo em que o estudo dos
processos de identificação desfaz a oposição entre individualidade e coletividade, e a
interioridade subjetiva torna-se mito diante da afirmação da realidade psíquica.
59
―Sua significação original foi puramente terapêutica: visava a criar um método novo e eficiente para tratar
doenças neuróticas. Vinculações que não podiam ser previstas no começo fizeram, porém, com que a psicanálise
se ampliasse para muito além de seu objetivo original. Ela terminou por reivindicar ter estabelecido nossa
completa visão da vida mental sobre nova base e, portanto, ser de importância para todo o campo do
conhecimento que se funde na psicologia‖ (FREUD, 1924, v.XIX: 266).
102
A oposição de Freud a todo idealismo filosófico é bem conhecida
60
. Sua tese mínima,
aquela com a qual ele começa a psicanálise, nega a primazia da consciência o no
campo do conhecimento, mas igualmente no da própria consciência , e sustenta que, no
psiquismo, o eu é apenas uma instância, parte ou efeito do inconsciente. O século XIX
apresentou formas diferentes de crítica à idéia de um lugar privilegiado para o eu
61
. No
entanto, a posição da psicanálise não apenas acarreta a revisão da idéia do homem como
centro do mundo, como também contesta a própria idéia de que o mundo tenha um centro ou
unidade. Assim, não o privilegiamento do eu, mas um certo modo de pensar por
fundamentos, característico do pensamento ocidental, é colocado em xeque
62
.
O termo psicanálise foi utilizado pela primeira vez por Freud em um artigo de 1896
63
e recebeu sucessivas definições. Uma das mais conhecidas está no verbete Psicanálise, escrito
pelo próprio Freud para uma enciclopédia:
Psicanálise é o nome de (1) um procedimento para a investigação de
processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2)
um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios
neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo
dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina
científica (FREUD, 1922,v. XVIII: 287) .
60
―A idéia dos filósofos sobre aquilo que é mental não era a da psicanálise. A maioria esmagadora deles
como mental apenas os fenômenos da consciência. (...) O que, então, um filósofo pode dizer perante uma teoria
que, como a psicanálise, assevera que, contrariamente, aquilo que é mental é em si próprio inconsciente, e que
ser consciente constitui apenas uma qualidade, capaz ou não de advir a um ato mental específico e cuja retirada
talvez possa não alterar esse ato sob nenhum outro aspecto? (...) Mal se apercebem de que existem coisas como
obsessões e delírios, e eles se veriam em situação muito embaraçosa caso lhes pedissem para explicá-las com
base em suas próprias premissas filosóficas. Também os analistas se recusam a dizer o que é o inconsciente,
contudo podem indicar o domínio de fenômenos cuja observação os obrigou a presumir sua existência. Os
filósofos, que ignoram outro tipo de observação que não seja a auto-observação, não podem acompanhá-los
nesse domínio‖ (FREUD, 1924,v. XIX: 268-269).
61
A afirmação de que o comportamento do homem é determinado por condições históricas e econômicas que
nem mesmo conhece está presente em alguns pensamentos. A teoria da evolução de Darwin situa o homem
como organismo determinado pelas condições biológicas, ambientais e evolutivas.
62
Contemporaneamente ao surgimento da psicanálise, esforços semelhantes ocorreram no campo da física.
Noções como identidade, não-contradição, determinismo, localidade, temporalidade, unidade ontológica,
conservação de energia foram problematizadas pela teoria da relatividade. O desenvolvimento tecnológico
compartilha, por outras vias, do mesmo pressuposto.
63
―Em algumas passagens de um livro posteriormente publicado pelo Dr. J. Breuer e por mim (Estudos sobre a
Histeria [1895d], pude elucidar e ilustrar, partindo das observações clínicas, o sentido em que se deve entender
esse processo psíquico de ‗defesa‘ ou ‗recalcamento‘. também ali algumas informações sobre o trabalhoso
mas totalmente confiável método da psicanálise, usado por mim no curso daquelas investigações
investigações que também constituem uma técnica terapêutica‖ (FREUD, 1896,v. III:154).
103
Em diversas ocasiões Freud definiu o que chamou de ―pedras angulares‖
64
da teoria
psicanalítica. Assim, ao concluir a Interpretação dos sonhos, chega a estes três pontos
cruciais para a psicanálise: a existência de processos inconscientes, a primazia do desejo na
vida psíquica e o amplo alcance do processo de recalque. Apesar da extensão da obra
freudiana e das inúmeras mudanças conceituais, observamos a permanência destas três
referências básicas, gerando critérios próprios de abordagem da mente. Assim, temos o
reconhecimento do inconsciente, não apenas no sentido qualitativo, mas também no sentido
tópico; o conceito de recalque e a dinâmica psíquica que implica; o conceito de pulsão,
condição para considerar a sexualidade como o campo privilegiado das relações humanas,
regido pela economia psíquica. Estas referências organizam um corpus teórico denominado
de metapsicologia
65
, que situa a psicanálise como algo mais que uma simples terapêutica de
neuroses. Estas conclusões conduziram-no a uma nova ordem de investigações e são passos
decisivos para a consolidação da psicanálise como uma nova teoria da mente.
4.3.2 Inconsciente e consciência: a tópica freudiana
O pensamento freudiano não seguiu as vias estabelecidas pela filosofia, nem aceitou,
parcial ou integralmente, a discussão sobre a subjetividade. Conceitos como eu, consciência e
sujeito são considerados pela psicanálise como noções absolutamente distintas e, até mesmo,
suspeitas. A psicanálise freudiana distancia-se de qualquer dialética entre sujeito e objeto o
termo ―sujeito‖ nem sequer consta do vocabulário freudiano, enquanto o objeto é destituído
de qualquer conteúdo subjetivo e desfigurado de suas significações filosóficas.
64
“As Pedras Angulares da Teoria Psicanalítica. A pressuposição de existirem processos mentais
inconscientes, o reconhecimento da teoria da resistência e repressão, a apreciação da importância da sexualidade
(...) constituem o principal tema da psicanálise e os fundamentos de sua teoria. Aquele que não possa aceitá-los a
todos não deve considerar-se a si mesmo como psicanalista‖ [FREUD, 1922, v. XVIII: 300].
65
Termo introduzido por Freud para caracterizar o modelo teórico proposto pela psicanálise com suas
referências tópica, dinâmica e econômica: ―Proponho que, quando tivermos conseguido descrever um processo
psíquico em seus aspectos dinâmico, topográfico e econômico, passemos a nos referir a isso como uma
apresentação metapsicológica(FREUD, 1915, v. XIV: 208) (grifo do autor).
104
Freud declarou a psicanálise como a terceira ferida narcísica
66
imposta à
―humanidade‖. Essa afirmação condensa os desenvolvimentos teóricos cruciais da psicanálise
a respeito do inconsciente e delimita, de forma precisa, as referências a qualquer reflexão a
respeito. Para a psicanálise, não há mais lugar para concepções filosóficas, religiosas,
antropológicas etc. sobre o homem, pensado a partir de atributos próprios e exclusivos. Não
se trata de uma questão central nem de um pressuposto preservado, pois, pela via do
pensamento psicanalítico, não se chega a nenhum humanismo. A interdependência entre o
humanismo e o conceito de subjetividade não é acidental, pois é sabido que o pensamento
moderno ergueu-se sob uma forte base humanista que situa a natureza humana ou a condição
de humanidade como fundamento último.
Freud causou mais reação aos pensadores de sua época não por afirmar o inconsciente
(outros o tinham feito), mas por mostrar que sua determinação radical
67
excluía a
possibilidade de delimitá-lo através de qualquer ismo. O que se costuma chamar de ―virada
teórica‖ de Freud, na cada de 1920
68
, ocorreu com a introdução do conceito da pulsão de
morte. Com isso, o inconsciente passa a ser regido por uma determinação que extrapola
qualquer condição até então estabelecida, pois a experiência engendrada pelo inconsciente
não se funda nem se regula por nenhuma condição subjetiva a priori. Quando Freud formulou
sua teoria do inconsciente, perturbou o ponto mais sensível do pensamento filosófico mas
66
―Se novamente voltamos os olhos para as diversas resistências à psicanálise antes enumeradas, evidencia-se
que apenas uma sua minoria pertence ao tipo que habitualmente surge contra a maior parte de inovações
científicas de qualquer importância considerável. A maioria delas se deve ao fato de que poderosos sentimentos
humanos são feridos pelo tema geral da teoria. A teoria darwiniana de descendência defrontou-se com a mesma
sorte, de vez que pôs abaixo a barreira arrogantemente erguida entre os homens e os animais. Chamei a atenção
para essa analogia em um trabalho anterior, no qual demonstrava como a visão psicanalítica da relação do ego
consciente com um inconsciente irresistível constituía um golpe severo para o amor-próprio humano. Descrevi-o
como sendo o golpe psicológico ao narcisismo dos homens, e o comparei com o golpe biológico desfechado pela
teoria da descendência e o golpe cosmológico, mais antigo, a ele dirigido pela descoberta de Copérnico‖
(FREUD, 1924, v. XIX: 274).
67
Não podemos esquecer que Freud começou por colocar um determinismo radical para o Inconsciente, como é
o caso na Interpretação de Sonhos, cap.V, C, onde diz que ‗tudo é inequivocamente determinado e nada é
deixado à decisão arbitrária‘. A crença na possibilidade de desvendar os sonhos exigia que ele supusesse
determinação radical, absoluta e inequívoca.‖ (MAGNO, 1990: 10)
68
O texto Além do princípio do prazer é o base e o ponto de partida dessa virada.
105
também religioso, moral e psicológico ao pôr em questão a idéia do homem como sujeito,
cuja unidade seria assegurada pela consciência.
Vimos que essa categoria de sujeito-humano-individual-consciente-de-si, é o
entrecruzamento de crenças e noções que serviram de base para uma longa tradição de
pensamento. Segundo estes pressupostos, o sujeito é aquele que realiza a unidade diante da
diversidade de experiências, é aquele que incorpora a unidade dos atos morais, a unidade das
aspirações religiosas, a unidade de práticas políticas, a unidade geo-política dos grupos
humanos etc. Não é por acaso que a tradição apresenta a consciência como a faculdade ou
função de unificação ou síntese. Para isso, foi preciso engatar noções como sujeito,
consciência, indivíduo.
Embora não tenha sido feita inicialmente por Freud, a ―divisão do psíquico em o que é
consciente e o que é inconsciente‖
69
é considerada por ele como ―premisssa fundamental‖ e
usada para definir a metapsicologia como teoria da mente (FREUD, 1923, v. XIX: 25). A
metapsicologia freudiana é a sua teoria que nos conduz para além da consciência, elaborada
com o objetivo de pesquisar e explicar os movimentos da vida mental, consciente e
inconsciente. A teoria psicanalítica foi desenvolvida por Freud como um meio de considerar a
existência de lacunas nos atos conscientes. Ele introduziu o inconsciente para dar conta
justamente de tais lacunas. Essa tese é reafirmada no início do seu texto clássico, O
Inconsciente
70
.
No entanto, é um equívoco pensar que a psicanálise, ao propor a idéia de inconsciente,
negou a existência da consciência, pois existe no psiquismo um sistema específico para a
consciência, aquele chamado percepção consciente. Freud considera a consciência como um
69
Sobre o emprego filosófico do termo ―inconsciente‖ ver ABBAGNANO (2003: 550).
70
Nosso direito de supor a existência de algo mental inconsciente, e de empregar tal suposição visando às
finalidades do trabalho científico, tem sido vastamente contestado. A isso podemos responder que nossa
suposição a respeito do inconsciente é necessária e legítima, e que dispomos de numerosas provas de sua
existência. Ela é necessária porque os dados da consciência apresentam um número muito grande de lacunas;
tanto nas pessoas sadias como nas doentes ocorrem com freqüência atos psíquicos que podem ser explicados
pela pressuposição de outros atos, para os quais, não obstante, a consciência não oferece qualquer prova.‖
(FREUD, 1915, v. XIV: 192) (grifo do autor).
106
fato que desempenha uma função específica no psiquismo, determinando, quantitativa e
qualitativamente, as percepções externas e internas. Outro ponto é a crítica à concepção
filosófica da consciência. Neste caso, Freud é implacável: ―Devemos aprender a nos
emancipar da importância do sistema de ‗ser consciente‘‖ (FREUD, 1914, v. XIV: 221).
O alvo dessa crítica é o modelo da consciência como unidade centrada. Contra esta
concepção, Freud propõe um ―aparelho‖ que envolve sistemas distintos e com princípios de
funcionamento diversos. Na chamada primeira tópica
71
, este sistema compreende o
inconsciente, o pré-consciente e a consciência. Na segunda tópica, este aparelho compreende
o Id, o Ego e o Superego (isso, o eu e o supereu). Este aparelho não é uma unidade centrada,
mas um conjunto de instâncias constituídas pelo jogo do recalque. O descentramento dessa
tópica é tal que é impossível pensar a existência de um sujeito. O eu, que era unicamente
referido à consciência, converte-se em parte inconsciente. Por isso, a consciência é incapaz de
ver a diferença entre sistemas, dado que é apenas um sistema entre outros, cujo conjunto está
submetido à dinâmica
72
inconsciente. Eis uma pica sem centro
73
, em que as instâncias o
possuem unidade e só se constituem na relação com outras instâncias.
Freud atribui ao psiquismo uma causalidade por relações, no qual primazia das
relações e não sujeitos ou indivíduos originários como causa última, que funcionariam como
suportes ou substratum. Chamou este tipo de causalidade de sobredeterminação. Este tipo de
determinação pensada por Freud vai além das individualidades, recusa fundamentos
permanentes, pois a experiência do inconsciente é aquela que se dá na ausência de centro.
Desde a psicanálise, o inconsciente é pensado segundo outra lógica. As chamadas
formações do inconsciente são exemplares de uma lógica em que a relação precede e
71
Primeira e segunda tópicas o modelos conceituais concebidos de acordo com a hipótese de que o psiquismo
exerce diferentes funções.
72
―Buscamos não apenas descrever e classificar fenômenos, mas entendê-los como sinais de uma ação recíproca
de forças na mente, como manifestação de intenções com finalidade, trabalhando concorrentemente ou em
oposição recíproca. Interessa-nos uma visão dinâmica dos fenômenos mentais (FREUD, 1916, v. XV: 86).
73
O psicanalista MD Magno leva ao limite a idéia freudiana de tópica sem centro ao utilizar raciocínios
provenientes da música e da arquitetura para exemplificar o projeto da psicanálise como um pensamento
atectônico.
107
determina os termos. Trata-se, portanto, de uma lógica relacional, que torna insustentável
qualquer abordagem substancialista da mente (ou do corpo). Essa gica relacional também
explode com o modelo clássico da contradição. Daí a conhecida afirmação de Freud de que
não nesse sistema [inconsciente] lugar para negação (FREUD, 1915, v. XIV: 213). Assim,
as chamadas formações do inconsciente (atos falhos, chistes, sonhos e sintoma) organizam-se
segundo um princípio distinto da relação de causa e efeito, do princípio de contradição e da
noção euclidiana de espaço.
Desde O chiste e suas relações com o inconsciente, Freud faz o inventário dos
exemplos cotidianos de como funciona este princípio articulatório do inconsciente. Entre os
recursos à disposição, encontram-se a simetrização dos enunciados, na qual proposições
verdadeiras e falsas tornam-se equivalentes; a reversibilidade do sentido se expressa nas
flutuações contínuas dos sentidos das palavras, podendo envolver significados opostos ou
antitético. Temos, pois, uma produção que se organiza a partir da possibilidade de transiência
entre significados, idéias, afetos e, sobretudo, transiência entre as instâncias mentais. Como
dissemos, o psiquismo apresenta-se sob a forma de um sistema modular integrado por uma
complexidade de funções que estão interligadas dinamicamente sem nenhuma regulação
central.
Centralizar é relacionar o mundo a um si (mesmo) que faz aparecer a dimensão da
interioridade, acessível à consciência através da auto-reflexividade: consciência de si. E faz
aparecer também um mundo exterior, reproduzido por essa interioridade. Assim, a
determinação de um centro, acompanhada de um raciocínio de interioridade/exterioridade,
define este centro como um si mesmo. Mas a consciência, assim entendida, seria uma natureza
compacta e fechada à existência relacional, um eu indiviso, portanto individual, que encontra
na noção (fisiológica) de corpo a garantia de sua indivisibilidade. A representação do corpo
como essa garantia de individualidade e unidade atende, de forma renovada, às exigências do
108
pensamento substancialista que sempre pressupõe uma realidade subjacente, hypokeimenon,
como garantia do pensamento. Temos uma concepção psicológica do corpo, definido como
suporte de todo o conjunto de sistemas, aparelhos e órgãos que respondem pelas diversas
funções mentais. Dessa equiparação entre indivíduo e corpo resulta a definição do indivíduo
como unidade indivisível e integrada, sede das funções físiológicas e mentais. Na psicanálise,
esta relação se modifica de tal modo que se torna impossível falar em indivíduo ou considerar
o corpo como unidade psicológica.
Desde Freud, a consciência é destituída de qualquer processo de auto-reflexão, pois
ela não pode coincidir com a totalidade da mente. Sua única possibilidade é estabelecer uma
referência a si através de alguma associação ou conexão, sempre complexa, de idéias que
seria capaz de expressá-la.
4.3.3 Eu: das Ich
O eu não é a instância regente da consciência, tampouco a consciência é a qualidade
fundamental do eu. Atento a este deslocamento, Freud utiliza a ambigüidade da palavra alemã
Ich, incluindo em seu campo todas as significações atribuídas a este termo, para nomear o que
chamamos eu. Ao proceder assim, Freud pretendeu alargar o campo conceitual para este
termo de uso comum. Em termos gerais, o eu é definido como uma massa ideacional, em
parte consciente e em parte inconsciente, um pólo formado por idéias.
Esse duplo pertencimento a processos conscientes e inconscientes permite ao eu uma
função mediadora. A concepção modular, adotada por Freud na segunda tópica para
representar a mente, atribui ao eu o papel de mediador, organizador ou gerenciador dos
conflitos. Além disso, por pertencer ao sistema percepção-consciência, o eu desempenha a
função de ligação com o mundo e com os chamados estados internos e é capaz também de
controlar a ação motora. É curioso notar que as inúmeras funções atribuídas ao eu podem ser
109
classificadas em dois grandes grupos antinômicos: funções reguladoras e funções defensivas.
Esta dupla condição não permite pensar o eu como instância autonôma, pois estará sempre
fragmentado em suas funções.
Freud considera que o eu não é originário: ―Posso ressaltar que estamos destinados a
supor que uma unidade comparável ao eu não pode existir no indivíduo desde o começo; o eu
tem de ser desenvolvido‖ (FREUD, 1914, v. XIV: 93). pelo menos duas idéias envolvidas
nessa tese. A primeira diz respeito ao aspecto complexo do eu. Trata-se de uma função
constituída pela convergência múltipla de formações, ou seja, o eu faz parte e é constituído
por um campo de existência necessariamente relacional. Assim, qualquer individualidade que
se possa destacar será precária, pois não é possível inferir nenhuma unidade. A segunda idéia
afirma que o eu é o resultado de um processo de diferenciação progressiva. Este processo se
chamado por Freud de narcisismo e terá o corpo como ponto de partida desse processo: ―O
ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de
superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície‖ (FREUD, 1923, v. XIX: 40). Esta
afirmação retira definitivamente o conceito de eu do campo idealista-subjetivo.
4.4 O pensamento sistêmico de Ludwig von Bertalanffy
Ludwig von Bertalanffy (1901-1972) é biólogo de formação, tendo estudado na
Universidade de Viena, onde se doutorou em 1926, lecionando até 1949, quando emigrou
para o Canadá. Em 1967, escrevendo a introdução à coletânea de seus artigos que foi
publicada sob o título Teoria Geral de Sistemas, Bertalanffy constata a popularidade do termo
―sistema‖ que, àquela altura, havia invadido o apenas diversos campos científicos como
também a gíria e os meios de comunicação de massa (BERTALANFFY, 1973: 17).
A idéia de sistema tornara-se noção corrente para especificar toda forma de
organização (empresas, escolas, processos de engenharia de produção e automação, seres
110
vivos, sociedades etc.), cujo comportamento se descrevia como interação mútua ou
interdependência entre suas partes componentes. A característica fundamental dessa relação
era a produção de uma totalidade cujas propriedades e performance eram irredutíveis aos
elementos tomados isoladamente. Um sistema qualquer seria, portanto, uma entidade
complexa, identificável por um conjunto de relações interativas particulares em que a
resultante global da operação excede as razões locais de seus componentes. Ou seja, a
totalidade, como ―sistema‖, depende primariamente dessa dinâmica interativa, mas nenhum
de seus elementos, tomados individualmente, a explica. Qualquer mudança na componente
individual produz transformações a que o sistema não ficará imune; do mesmo modo, o
comportamento das partes difere quando estudado isoladamente e quando tratado no todo.
O espaço urbano permite várias aplicações da idéia de sistema. Da malha viária aos
serviços públicos, passando pela própria idéia de projeto urbano, o aspecto ―sistêmico‖ dessas
realidades evidencia-se na interdependência que guardam entre si, gerando sempre efeitos
mais complexos do que quando os tomamos isoladamente.
Em que o pensamento sistêmico contribui para a compreensão desse processo? De um
lado, permite considerar a cidade a partir da lógica de uma totalidade dinâmica, que o é em
função da interatividade e da comunicação que se estabelecem entre seus elementos
constituintes, gerando efeitos que os ultrapassam exponencialmente
74
. Porém, o que mais nos
interessa é explorar o pensamento sistêmico como uma ferramenta conceitual capaz de
expressar aspectos do processo de explosão do ―Eu‖ a que nos referimos, processo que está
74
A aproximação matemática não é gratuita. Como veremos na seqüência, a Teoria Geral dos Sistemas
enfatizou, desde suas primeiras formulações na década de 1940, as características formais dos sistemas, com
suas variáveis e parâmetros e, nesse sentido, seus elementos concretos constituintes são uma aplicação especial,
consoante os vários domínios, da aspiração à identidade formal das leis dos sistemas. Daí a utilidade da
formalização matemática na construção de modelos de análise com capacidade para construir transversalidades
entre diversos campos da ciência. O próprio Bertalanffy utiliza a lei matemática da exponencialidade como uma
explicação para o crescimento dos sistemas, dando como exemplo o crescimento individual de certas bactérias e
células, o crescimento irrestrito de populações vegetais e animais ou o crescimento ilimitado da população (Lei
de Malthus) (cf. BERTALANFFY, 1973: 90-93).
111
em curso desde o século passado e que se mostra, hoje, uma linha de análise promissora para
a compreensão do urbanismo contemporâneo.
A operação fundamental do pensamento sistêmico, tal como formulado pela TGS
(como chamaremos doravante a Teoria Geral de Sistemas), reside menos na operação de
identificação da ―entidade‖ sistêmica do que na compreensão dela como processo global, isto
é, um todo que é mais complexo que suas partes consideradas isoladamente e irredutível a
elas, podendo se subdividir ou até se hierarquizar em subsistemas ou ser, ele mesmo, um
subsistema de um outro mais complexo. O importante é manter a lógica segundo a qual ―o
todo é mais que a soma das partes‖, pois ―as características constitutivas não são explicáveis a
partir das partes isoladas. As características do complexo, portanto, comparadas às dos
elementos, parecem ‗novas‘ ou ‗emergentes‘‖ (BERTALANFFY, 1973: 83).
Na seqüência, vamos apresentar, em linhas gerais, um pouco da história do conceito de
sistema segundo o desenvolvimento conceitual da TGS. Os detalhes epistemológicos e
conceituais poderão parecer, à primeira vista, estranhos à nossa temática. Mas eles o
necessários, pois revelam aspectos do conceito de sistema que são fundamentais, segundo
nossa tese, para acompanhar o processo de descentralização e fragmentação da noção de ―Eu‖
que supomos correlato ao processo de explosão semântica e conceitual da idéia de cidade,
bem como de complexificação de suas funções. Além disso, a vocação epistemológica que o
conceito de sistema possui de operar na transversalidade de saberes oferece-nos respaldo
epistêmico para a construção e a demonstração de que ―A cidade sou Eu‖, fornecendo
subsídios para o entendimento da ―Pessoa‖ que pode suportar, em contrapartida, a experiência
contemporânea da cidade.
Em dois artigos de seu Teoria Geral de Sistemas, Bertalanffy recapitula o panorama
conceitual que encontrou quando iniciou seus estudos em biologia e cuja crítica, por ele
formulada desde seus primeiros textos na década de 1930, constitui o cerne da TGS. Dois
112
enfoques prevaleciam: o mecanicismo e o vitalismo. De um lado, isso significava, para a
pesquisa em biologia, considerar o organismo vivo como um agregado de partes e processos
parciais analiticamente redutíveis e explicáveis em séries causais isoláveis, sendo os
problemas relativos à sua organização considerados secundários ou mesmo desprezíveis. Essa
era a abordagem mecanicista.
De outro lado, tinham lugar, paralelamente, as tentativas de prover um quadro teórico
harmonizador da dinâmica do organismo, que eram dependentes de um certo vitalismo ainda
em voga, princípio influente na ciência ao longo do século XIX. As teorias de cunho vitalista
defendiam um ―princípio‖ ou ―força‖ vital que explicava a especificidade, se não mesmo
excepcionalidade, do ser vivo em face da matéria inanimada submissa às leis da corrupção e
dissolução. Deveria haver um ―princípio de conservação‖ qualquer, responsável pelo
equilíbrio harmonioso do corpo vivo. Em última instância, a existência de todo ser vivo
(célula ou organismo) testemunhava a tendência natural, permanente e imanente da vida em
agir, nele se realizando como sua finalidade necessária e exigência perene. Desse quadro
epistêmico resultava uma concepção mecanicista cujo escopo era a redução do ―fenômeno
vital‖ a suas entidades mínimas e a seus processos parciais isolados
75
, submetendo o
funcionamento físico-químico do ser vivo às mesmas leis da matéria inanimada, mas sem
eliminar necessariamente a ―força vital‖ que justificava seu desenvolvimento e especificidade.
Indo contra a corrente, Bertalanffy passou a sustentar uma visão ―que acentuasse a
consideração do organismo como totalidade ou sistema e visse o principal objetivo das
ciências biológicas na descoberta dos princípios de organização em seus vários níveis
(BERTALANFFY, 1973: 29). Este ponto de vista, que chamou de ―organísmico‖, reconhecia
a necessidade de se estudar não somente partes e processos isoladamente e privilegiava os
problemas ―encontrados na organização e na ordem que os unifica, resultante da interação
75
Nas palavras de Bertalanffy, ―o organismo se resolvia em células, suas atividades em processos fisiológicos e
finalmente físico-químicos, o comportamento reduzia-se a reflexos incondicionados e condicionados, o substrato
da hereditariedade resolvia-se em genes com caráter de partículas, e assim por diante‖ (1973: 53).
113
dinâmica das partes, tornando o comportamento das partes diferente quando estudado
isoladamente, e quando tratado no todo‖ (BERTALANFFY, 1973: 53).
O segundo aspecto importante da noção de sistema, e dele decorrente, foi a aposta nos
raciocínios de isomorfismo (modelizáveis matematicamente ou não) como estratégia teórico-
metodológica de abordagem dos sistemas. Isso significa que a lógica sistêmica da TGS com
sua ênfase nos problemas de ordem, organização, totalidade, diferenciação etc. não apenas
evidenciava a semelhança estrutural dos modelos, suas relações de equivalência e a isomorfia
de seus conceitos e leis, como também encorajava sua transferência de um campo de
conhecimento para outro, ou a criação de novos modelos teóricos onde se carecessem deles.
Algumas considerações podem ser feitas. Em primeiro lugar, destacamos o valor
heurístico da noção de sistema que, partindo da problemática biológica do ―organismo‖,
logrou uma formulação abstrata e abrangente de uma ―dinâmica de interação‖, doravante
aplicável como modelo em diversos campos, guardadas as especificidades conceituais de cada
um deles. Em segundo lugar, e operacionalizando tal abstração e abrangência, a própria noção
de sistema tornou-se solidária com raciocínios que viabilizavam o transporte generalizado
dessa ―dinâmica de interação‖ e sua aplicação onde quer que fosse distinguível uma totalidade
se expressando na produção exponencial de efeitos resultantes da interação entre suas partes
(não tomadas isoladamente, mas sim em relações de interdependência). Nesse sentido, o
pensamento sistêmico de Bertalanffy, de um lado, explorou o uso generalizado de
procedimentos de isomorfismo e, no limite, evidenciou a analogia como instrumento
heurístico constitutivo de qualquer conhecimento
76
. Por outro lado, contribuiu para chamar a
atenção para o alto preço que pagamos pela manutenção da irredutibilidade das fronteiras e
dos raciocínios de separação, como testemunham, ainda hoje, a compartimentação dos saberes
e seu costumeiro enclausuramento.
76
Isso não elimina a preocupação do matemático Norbert Wiener, ‗pai‘ da cibernética, que afirmava que o preço
da metáfora aqui indiferentemente tomada como analogia é a eterna vigilância. Apud LEWONTIN, 2002: 10.
114
Basta lembrar que o conceito de cidade, quando reduzido a seu recorte físico e
geográfico, exclui outras possibilidades de entendimento do urbano, que se enriquece e se
complexifica quando concebido como espaço político, como rede ou como mobilidade de
bens, informação e pessoas. Colocar a cidade em perspectiva histórica é um exercício
epistêmico de relativização de fronteiras disciplinares, pois as formas das cidades refletem a
lógica das sociedades que as abrigam: cidades antigas concebidas sob a pressão da religião e
do controle e proteção militares; cidades medievais com muralhas e corporações organizadas
em torno de praças, cocheiras, bebedouros, e expressando solidariedades e dependências
características do mundo feudal; cidades modernas, caracterizadas por vínculos sociais
especializados, baseados na racionalização e funcionalidade; a cidade contemporânea,
articulando-se, por exemplo, na perspectiva da deslocalização, no sentido de que os locais de
residência, trabalho, lazer e a lógica que presidia sua escolha estão mudando, perdendo os
constrangimentos espaço-temporais tradicionais e entrando na gica reflexiva, com as
escolhas condicionadas pelo grau de mobilidade e comunicabilidade e conduzindo ao
sentimento de ubiqüidade e multitemporalidade (ASCHER, 2001).
Ora, a TGS revelou-se uma proposta científica bastante criativa, pois, perguntando
pelas ―leis gerais dos sistemas que se aplicam a qualquer sistema de certo tipo,
independentemente das propriedades particulares do sistema e dos elementos em questão‖
(BERTALLANFY, 1973: 61), estimulou a introdução de novas categorias de pensamento,
novos modelos conceituais, de caráter interdisciplinar, resultando em uma maior integração
das ciências, mediante a busca de princípios que possibilitassem a transversalidade de saberes.
Por fim, chamou a atenção para algo que a comunidade científica e acadêmica em geral
costuma confortavelmente esquecer, a saber, o desperdício do esforço teórico em diferentes
campos, pelo fato de princípios idênticos terem sido descobertos ―várias vezes porque os
115
pesquisadores que trabalhavam em um campo ignoravam que a estrutura exigida estava
bem desenvolvida em outro campo‖ (BERTALLANFY, 1973: 56-57)
77
.
Nosso trabalho compartilha a idéia de transversalidade de saberes da TGS. Com efeito,
estamos transportando ao campo do urbanismo uma problematização que, não tendo
emergido, pode contribuir para elucidar e enriquecer seu patrimônio cognitivo, ao explorar as
possibilidades da hipótese ―A cidade sou eu‖. De alguma maneira, e esperamos poder
demonstrá-lo, há isomorfismo entre a idéia contemporânea de cidade com as transformações
tecnológicas, cognitivas, epistêmicas, sociais, econômicas, políticas, que dão visibilidade à
sua explosão polissêmica e um novo conceito de Eu, desvencilhado dos raciocínios
individualizantes, centralizantes e disjuntivos que caracterizaram sua emergência e
consolidação no Ocidente, desde os gregos. Em termos da TGS, ―Eu‖ é operação sistêmica,
que dinamicamente totaliza seria inadequado falar ―centraliza‖ um complexo
estruturante e funcional, aberto à possibilidade de troca e transformação.
A abertura do sistema, em oposição à sua constituição como sistema fechado, é outra
característica fundamental da TGS. Ao refletir sobre a natureza dos sistemas, partindo dos
parâmetros que encontrava no estudo dos organismos vivos, Bertalanffy propôs o modelo
hipotético dos ―sistemas abertos‖, em contraposição aos ―sistemas fechados‖. Essa distinção é
assim definida pelo autor em artigo inaugural sobre o tema, datado de 1940: ―Dizemos que
um sistema é ‗fechado‘ se nenhum material entra nele ou sai. É chamado ‗aberto‘ se
importação ou exportação de matéria‖ (BERTALLANFY, 1973: 167). Ao fazer tal distinção,
o autor tinha em mente os processos da física tradicional, isolados do ambiente e
caracterizados pelo equilíbrio cinético reversível, oferecendo como exemplo as reações físico-
77
Isso, sem falar do puro e simples recalcamento de uma teoria pelo conforto conceitual de pensar com os
recursos das que já estão bem instaladas e não se querer aventurar a apostar no menos conhecido. Exemplar disso
é o heliocentrismo, que esperou quase dois milênios para reentrar na cena filosófica com Nicolau Copérnico no
século XVI, de onde havia sido expulso, pelo abandono da tese de Aristarco de Samos (séc. IV a. C.) de um
universo centrado no sol. Para maiores informações desse pormenor da história da astronomia, ver SINGH,
2006: 28-43.
116
químicas que podem acontecer em recipiente fechado com um determinado número de
reagentes. Estes são considerados sistemas fechados ao exterior, e contêm sempre
componentes idênticos (BERTALLANFY, 1973: 167 e 63-64). Em contraste, os sistemas
abertos, de que o organismo foi exemplo principal para Bertalanffy, apresentam estados
estáveis, numa contínua transformação de componentes materiais e de energia, pois o
organismo responde a alterações do meio, auto-regulando-se dinamicamente. Para isso, pode
lançar mão de vários caminhos, desde que a finalidade sua adaptação e seu equilíbrio
restaurados mediante transformação seja alcançada.
Em resumo, um sistema aberto uma máquina, uma bactéria, um ser humano, as
comunidades humanas, uma cidade, uma empresa, uma escola, uma fábrica, uma família
exibe as seguintes características:
1) O todo é maior do que a soma de suas partes e possui propriedades que ultrapassam
exponencialmente aquelas partes tomadas isoladamente: uma cidade, por exemplo, é
uma totalidade sistêmica que preside à soma dos serviços, informações, pessoas e bens
que a constituem; do mesmo modo, ―eu‖ é uma totalidade sistêmica que preside à
soma dos componentes biológicos, culturais, lingüísticos, psíquicos, que o constituem;
2) Há interdependência e interatividade entre as partes componentes de um sistema,
incluindo troca e influência recíproca com o entorno. Entre o que o sistema é (suas
propriedades e componentes) e o que ele não é (o entorno), é erigida uma nova noção
de fronteira, mais maleável, propensa à cambialidade, com porosidade suficiente para
derrubar a velha ―muralha‖ que circundava a cidade e servia de invólucro consciencial
a ―Eu‖, revelando-os dinâmicos e mutáveis;
3) Sistemas formam subsistemas e podem, por sua vez, ser subsistemas de sistemas mais
complexos, havendo interação entre eles em cadeia hierárquica: o sistema de
117
transportes de uma cidade pode ser considerado subsistema integrante de sua malha
viária que, por sua vez, integra a rede de deslocamentos rodoviários de um país.
4) Sistemas funcionam com auto-regulação e controle, transformando-se mediante sua
capacidade intrínseca de permanente regeneração e adaptação ao longo do processo de
troca com o ambiente, compensando as eventuais perdas causadas pela tendência
entrópica que também lhes é intrínseca: o tecido urbano é sempre renovável, na
medida diretamente proporcional às trocas que realiza, do mesmo modo que a noção
sistêmica de ―Eu‖, que inclui fronteira com porosidade.
5) Sistemas podem alcançar seus objetivos mediante várias maneiras diferentes. Este
princípio é conhecido como eqüifinalidade.
Nem tudo é aprioristicamente sistema. Em outras palavras, a aplicação do conceito de
sistema cria um recorte compatível como realidade sistêmica que será conhecida. O problema
passa a ser dispor de critérios que indiquem a operação mediante a qual um sistema se
reproduz e se diferencia. Que o sistema assim procede foi a herança mais geral do pensamento
sistêmico da geração de Bertalanffy. Coube a Humberto Maturana e Francisco Varela propor
um como. É o que veremos a seguir.
4.5 - O pensamento sistêmico de Maturana e Varela: o conceito de autopoiesis
O conceito de autopoiesis foi proposto pelos biólogos chilenos Humberto Maturana
(1928 - ) e Francisco Varela (1946-2001), cujo trabalho teórico é bastante conhecido pela
comunidade internacional dedicada ao estudo dos sistemas em geral. Nosso objetivo aqui é
mostrar como o avanço das reflexões conceituais na teoria sistêmica oferece mais ferramentas
para explorar o processo de descentralização e fragmentação do ―Eu‖, concebendo-o cada vez
mais como rede de interações, sem ponto fixo de comando e inteligibilidade. Além disso, um
118
raciocínio extraído desses autores é fundamental para nossa tese, o de circularidade, a partir
do qual temos que considerar a inseparabilidade entre o ser humano e o mundo (entre eu e
cidade, portanto). Não como compreendê-los isoladamente; ambos fazem parte de uma
mesma dinâmica: construímos o mundo que nos constrói durante esse tempo em comum.
Vamos nos apropriar do conceito de autopoiesis, oriundo do campo da biologia, para
explorar suas possibilidades propedêuticas no campo do urbanismo, no sentido que esse
último recebe em nosso trabalho: a concepção da cidade como comensurável com a rede que
uma Pessoa é. Essa rede é de abrangência infinita em seus componentes e na complexidade de
suas conexões, e funciona com possibilidade radical de relativização de quaisquer
informações, podendo considerá-las indiferenciadamente. Esse esforço epistêmico é
compatível com paradigmas de conhecimento desenvolvidos desde a segunda metade do
século XX que consideraram a comunicação, a informação, o questionamento sobre a
natureza das transformações, sua não-linearidade e imprevisibilidade; que não recuaram
diante das passagens improváveis entre modelos de conhecimento e campos de saber
aparentemente distantes; que problematizaram, diluindo, tornando ambíguo ou mesmo
descartando, diferenças irredutíveis entre natureza, vida e artefato, como o testemunham, por
exemplo, a cibernética, as diversas teorias da auto-organização, da emergência, da
complexidade e do caos, e os estudos sobre o inconsciente que levaram em conta essas
diretrizes epistêmicas, como é o caso da Nova Psicanálise
78
.
4.5.1 Unidade, clausura e acoplamento
O paradigma dos sistemas autopoiéticos veio a público em 1973 com o livro De
máquinas y seres vivos
79
, que enunciava o eixo estruturador dessa proposta epistemológica:
78
Para citar alguns exemplos, ver DUMOUCHEL & DUPUY, 1983; PRIGOGINE e STENGERS, 1991;
JOHNSON, 2003; BARABÁSI, 2003; MAGNO, 2006a e 2007a.
79
Revisado e publicado nos anos 1980 com o título Autopoiesis and cognition: the realization of the living.
Dordrecht: D. Reidel Publishing Company, c1980. Cf. também DUMOUCHEL & DUPUY, 1983: 141-146.
119
onde quer que haja circulação de ―informação‖ e ―sentido‖ para um ―ser autopoiético‖, ele os
processa a partir do ―interior‖, pois é um sistema operacionalmente fechado (DUMOUCHEL
& DUPUY, 1983: 141). O ser autopoiético corresponde a uma rede de processos de produção,
transformação e destruição cujos componentes reproduzem permanentemente, por suas
interações, a própria rede que os produziu. Daí resulta ―uma unidade espacialmente definida,
limitada por uma fronteira que ela própria é capaz de engendrar‖ (DUMOUCHEL &
DUPUY, 1983: 142). Em outras palavras, os sistemas autopoiéticos engendram a organização
que os define como unidade e que permite distingui-los do ambiente, recortando o sistema de
algo que não se confunde com ele.
Afirmamos no final do item anterior que o pensamento sistêmico, na formulação da
TGS, concebeu a idéia de sistema a partir da dinâmica das relações com o entorno, daí a
classificação ―aberto‖ e ―fechado‖ que qualifica um sistema consoante suas propriedades de
interação e transformação. É como se a diferenciação dentro/fora fosse um dado fundamental
para entender a dinâmica do sistema e sua relação com o entorno. Parecia ser suficiente
conceber que fronteiras delimitadoras de um sistema, uma vez que inputs ou troca de
informações, que transformam a dinâmica dos estados do sistema, conservando-o enquanto
tal.
Ora, assistimos com Maturana e Varela a uma segunda inflexão no pensamento
sistêmico, pois a idéia de autopoiesis ignora a oposição ―sistema aberto‖ x ―sistema fechado‖
em prol de uma noção de ordem e organização que postula a ―clausura‖ e o ―fechamento‖
como índices imanentes a qualquer relação, abstraindo, a partir do domínio do vivo, as
condições gerais de haver espaço transacional que gera transformação com conservação da
autopoiesis. Em outras palavras, só há relações e seus termos são imanentes ao próprio
sistema autopoiético, que é, no mesmo ato, produtor e produto
80
, distinguindo-se de alguma
80
Como afirmam os autores, a organização dos sistemas autopoiéticos é tal que ―seu único produto são eles
mesmos. Donde se conclui que não separação entre produtor e produto. O ser e o fazer de uma unidade
120
maneira daquilo que o sistema não é, de um entorno que não se confunde com ele, entorno
que é, ao mesmo tempo, condição sine qua non da dinâmica de interatividade. A rede possui
fronteiras que integram e resultam da própria organização autopoiética. Daí a circularidade
entre, de um lado, ―uma rede de transformações dinâmicas, que produz seus próprios
componentes e é a condição de possibilidade de uma fronteira‖, e, de outro, ―uma fronteira,
que é a condição de possibilidade para a operação da rede de transformações que a produziu
como uma unidade‖(MATURANA & VARELA, 2001: 54).
Sistema e fronteira são tornados operacionalmente equivalentes, renunciando ao
conforto da opção distintiva prévia entre sistema ―aberto‖ e sistema ―fechado‖. Este novo
paradigma sistêmico assim procede concebendo uma invariante que classifica e permite
reconhecer um tipo especial de sistema: aqueles organizados autopoieticamente. É esta
organização que explica haver troca e transformação estrutural que, por sua vez, retroage
permanentemente sobre o próprio sistema, modificando-o e, no mesmo ato, confirmando-o
como autopoiético. Algo se passa na dinâmica do sistema que não se deixa explicar pelo mero
fato de haver input, isto é, de haver distinguivelmente um sistema, um entorno que não se
confunde com ele, troca de informação, modificação na dinâmica dos estados do sistema, e a
possibilidade de se observar e mapear esse processo. O sistema se transforma, por razão
endógena ou competência intrínseca, para além da causalidade externa computada como
contato e acoplamento entre duas unidades distintas.
Consideremos, por exemplo, os engarrafamentos urbanos. Nas circunstâncias de fluxo
máximo sem obstrução, basta um obstáculo irrisório para que o sistema paralise.
Imediatamente pensamos: deve ter havido um acidente. Porém, continuando o trajeto em
direção a nosso destino, constatamos que ―nada‖ aconteceu. Estamos tão viciados num
raciocínio de causalidade externa e anterior ao sistema no caso, o tráfego urbano que
autopoiética são inseparáveis, e isso constitui seu modo específico de organização‖ (MATURANA & VARELA,
2001: 57).
121
dificilmente concebemos situações que, atingindo um ponto de mutação imprevisível, se
transformam, sem aparentemente exibir razões identificáveis e linearmente explicáveis. É fato
que, muitas vezes, existem causas particularizáveis, mas elas são tão dependentes da rede que
as produz como evento que é praticamente impossível lhes atribuir algum valor explicativo
privilegiado. A causa pontual não explica ―nada‖, pois qualquer outra serviria como razão ou
teria produzido o mesmo efeito (DUMOUCHEL & DUPUY, 1983: 144).
Consideremos também as redes digitais, que permitem vincular experiências pessoais
e culturais as mais diversas através do planeta. As comunidades que aí se formam obedecem à
dinâmica autopoiética e auto-organizadora, pois se definem segundo o próprio espaço de
interações que as delimita enquanto particularidade na rede. Ora, o espaço urbano se modifica
em função disso. A cidade que a Pessoa é se conforma qualitativamente aos nós e conexões
que dinamicamente a configuram. Assim, meus vizinhos são os amigos com quem interajo na
internet, não importa a distância geográfica, o bairro físico ou o condomínio ou rua que
responde pelo endereço de minha residência fixa. Essa vizinhança se auto-organiza segundo
interesses dispersos que encontram correspondência e conectividade no aleatório da rede, mas
que, uma vez em contato, organizam paisagens interativas onde negócios, afetos, interesses
musicais, estudo, sexo, opiniões, críticas, comentários e todo tipo de troca de informações
podem vir a resultar em uma unidade autopoiética reconhecível. É importante lembrar que,
quaisquer que sejam os elementos interativos da rede, não equivalência direta entre a
referência geopolítica e as redes auto-organizadas que a atravessam e relativizam enquanto
fronteira física e politicamente reconhecível.
Apresentaremos na seqüência três raciocínios básicos de definição de sistemas
autopoiéticos, que são a unidade, a clausura e o acoplamento. A partir de cada um deles,
vamos explorar aspectos da organização autopoiética que contribuem para construir a idéia da
cidade como resultante da rede de interações que uma Pessoa é.
122
Comecemos com o princípio da unidade. Há uma organização que caracteriza o ser
autopoiético, isto é, um tipo de relação que, se e quando ocorre, permite identificá-lo como
tal. Nesse caso, o que permite distinguir um sistema autopoiético é o fato de este produzir a si
próprio de modo contínuo, donde a organização que o define ser chamada de organização
autopoiética. Vale destacar aqui que poiesis é um vocábulo da língua grega e significa
―produção‖. Assim, o princípio de autopoiesis significa o que há de comum a todos os
sistemas nos quais os meios que os permitem continuar sua existência ou se produzir são, ao
mesmo tempo, os meios que os definem enquanto tais, recortando-os inclusive espacialmente.
Sabemos que uma cidade, física e geograficamente falando, é resultante, entre outras coisas,
de uma série de ações de planejamento, como leis que definem zonas de loteamento,
iniciativas públicas de revitalização de determinados bairros ou urbanização de outros,
políticas de descentralização e distribuição de serviços etc.
No entanto, convivem com essa ação planificadora comunidades (virtuais ou não) que
se formam de modo não planejado, nas calçadas das ruas, nas festas e casas noturnas, em
bares ou na praia (muitas vezes com evidente marcação física de seus limites). São unidades
autopoiéticas no sentido de que se produzem por movimento próprio e contínuo de
aglutinação e dispersão, de onde resultam características suficientemente particulares para que
se os defina como um ―sistema‖ que difere do entorno. Assim, a cidade que eu sou se forma e
transforma na e pela rede interativa que me é, tecida no fluxo dos interesses de vinculação e
dispersão que me definem de maneira ad hoc. Em perspectiva autopoiética, isso significa
considerar Eu uma resultante existencial de organização e estabilidade que se molda no
processo de sua própria produção e transformação as comunidades que freqüento, os
vínculos que estabeleço (com a variação qualitativa implícita), os espaços em que circulo
(virtuais ou não) , sendo sua fronteira uma função de sua competência mutante.
123
Daí o princípio da clausura. Toda clausura é operacional, no sentido da dinâmica
endodeterminada das transações que ocorrem entre um sistema e seu meio, à medida que é a
estrutura do sistema isto é, o número, a natureza e as propriedades dos componentes
concretos que, por suas opções de modificação e variação, materializam a cada instante a
organização autopoiética que determina quais respostas o sistema está apto a fornecer à
perturbação provocada pelo entorno. Multidões humanas reunidas em eventos populares,
como shows, por exemplo, exibem dinâmica endodeterminada, pois modificações em seu
comportamento podem ser desencadeadas por ruído ou perturbação inespecíficos. O sistema
se modifica, gerando, como efeitos, novos estados (o arrefecimento dos ânimos ou, ao
contrário, sua exacerbação).
Do ponto de vista do sistema, o processo de transformação é ―cego‖, pois não há como
especificar previamente sejam os efeitos que o meio é capaz de ativar, sejam as alterações que
o sistema é capaz de produzir. Conseqüentemente, é a posteriori que acompanhamos
alterações, mutações e adaptações. E se (ou houve) modificação e o sistema continua
identificável em sua independência operacional é porque, então, a organização autopoiética
foi e continua sendo conservada. Em resumo, a invariância é a autopoiesis, isto é, a
organização; a operacionalidade, sua estrutura endodeterminada; a clausura, uma função auto-
referencial que cria abertura.
É por isso que Maturana e Varela propõem o princípio do acoplamento, a saber, a
transação recorrente e, muitas vezes estável, entre sistema e meio segundo a congruência que
se estabelece entre eles, uma vez que a clausura do sistema é auto-referencial. Nesse sentido,
há um fator historial não desprezível no processo, que gera outro nível de circularidade: sendo
o acoplamento estrutural seletivo, em função da exigência de comensurabilidade entre sistema
e entorno, sua repetição acaba condicionando, ao longo do tempo, critérios de seletividade,
pela recorrência das ―escolhas‖ recíprocas entre sistema e meio.
124
Assim, a cada momento, o acoplamento é uma presentificação possível das
alternativas que atuaram na produção e na conservação das relações sistêmicas entre unidades
autopoiéticas. Tal como nosso sistema imunológico, que se modifica mediante alguma
pressão desencadeada pelo entorno (a exposição a um vírus e a imunidade que se desenvolve
a partir daí), a cidade que uma Pessoa é resulta do jogo de permanência e instabilidade
ritmado pela repetição das transações que a movimentam. Isso cria padrões culturais, hábitos
comportamentais, ries estáveis de interesses. Mas a condição estrutural endodeterminante,
que é fator dinamizador permanente, lança a transação num espaço de imprevisibilidade,
produzindo-se diferenças no tempo. Aqui, o processo também é ―cego‖, pois não direção
predeterminada que encaminhe sua resultante de variação e diversidade. Se há invariância, ela
é, como dissemos, a própria organização autopoiética que, em sua função necessária de
conservação, atua como uma espécie de baliza ontológica mínima no interior da qual sistemas
se produzem.
A idéia de autopoiesis contribuiu para a reflexão sobre novas concepções de mundo,
sistema, observador e ―Eu‖. A perspectiva autodeterminada do sistema como coerência
interna complexa e diversificada que produz, enquanto rede de interações, seus próprios
limites e fronteiras, por capacidade imanente de organização, implica pelo menos dois
avanços epistemológicos. Em primeiro lugar, reforça o abandono da lógica causal e linear, de
resto um exercício exigido pela teoria sistêmica de modo geral. Como input ou clausura
operacional, estamos lidando com processos dinâmicos que produzem efeitos que ultrapassam
a inteligibilidade restrita de seus componentes tomados isoladamente. Mais que isso, estamos
lidando com sistemas que exibem comportamento imprevisível como resultante da
plasticidade de sua estrutura, dada sua organização autopoiética, isto é, sua competência
imanente de, ao mesmo tempo, realizar e especificar a si próprio (MATURANA & VARELA,
2001: 56).
125
Em segundo lugar, o paradigma autopoiético significa mais um golpe no hábito
representacionista, que concebe a realidade como uma (re)apresentação de conteúdos mentais
ou empíricos a um sujeito (do conhecimento) que os apreende por razão inata ou aprendida,
como se existisse mundo fora da nossa experiência, como se pudéssemos separar sujeito-
objeto. Ao contrário, autopoiesis significa construir o mundo, fazê-lo emergir junto com e em
razão da especificação recíproca que se estabelece entre uma unidade e seu universo
(ambiente ou meio). Assim, as ações de uma pessoa transformam o mundo que ela habita (ou
melhor, o mundo que ela é); de retorno, o mundo transformado retroage, transformando
igualmente seus atores, sem que seja possível identificar causalidade linear ou hierarquias
prévias nesse processo que acontece em circularidade.
Isso nos remete a outro princípio de base desta teoria, segundo o qual ―todo ato de
conhecer faz surgir um mundo‖, ou seja, ―todo fazer é um conhecer e todo conhecer é um
fazer‖ (MATURANA E VARELA, 2001: 31-32). Com essa proposição, Maturana e Varela
insistem sobre o encadeamento existente entre ação e experiência, entre uma particularidade
de ser e como o mundo nos parece ser. Em outras palavras, a minha experiência de mundo
produz o mundo que eu conheço e meu conhecimento do mundo é resultante do que dele
experimento. Não é possível saber onde passa o marco separador entre o que experimentamos
como mundo, com todas as suas regularidades e aleatoriedades, como agimos no mundo e
somos afetados por ele, e o conhecimento que daí emerge. A proposição ―A cidade sou eu‖ é
compatível com essa afirmação. Se vida é autopoiesis e autopoiesis é conhecimento, então o
mesmo princípio estará presente, da célula à linguagem, passando por toda a complexidade de
nossos domínios comportamentais, neuronais, sociais e lingüísticos, incluindo a cidade que
sou.
126
4.5.2 O conhecimento humano
O conhecimento possui um caráter necessariamente reflexivo, quando incluímos a
complexidade humana de expressá-lo mediante linguagem, instrumento com o qual se exibe a
circularidade entre viver, conhecer e agir. A rede de interações lingüísticas facilitada pelo
aparecimento da linguagem que, ao mesmo tempo, continuamente a renova cria
recursividade infinita, fazendo surgir um mundo na correlação direta da capacidade reflexiva
proporcionada pela mesma linguagem, em um círculo cognitivo que caracteriza nosso ser,
num processo cuja realização está imersa no modo autônomo do ser vivo‖ (MATURANA E
VARELA, 2001: 264). Os comentários que se seguem devem ser considerados como um
detalhamento da noção de autopoiesis, que julgamos importante por conferir o escopo
epistêmico devido a esse conceito e sua pertinência às reflexões sobre a cidade
contemporânea.
uma característica-chave na linguagem que a torna elemento decisivo do
conhecimento, vida e ação humanas: ela torna possível a ―descrever a si mesmo‖, incluindo
sua situação circunstancial (MATURANA E VARELA, 2001: 232). A linguagem não apenas
permite descrever e organizar acontecimentos, situações, relações, sentimentos, numa
abrangência semântica até o momento incomparável no mundo vivo. O fundamental é que ela
lança o homem na situação de ―observador‖, pois ―as descrições podem ser feitas tratando
outras descrições como se fossem objetos ou elementos do domínio de interações‖
(MATURANA E VARELA, 2001: 233). Assim, descrever a descrição suscita conhecimento
simultâneo do conhecer e do conhecido: alguém descreve (observador) descrições de
descrições (domínio de interações) que retroagem sobre o observador como parte
indistinguível de si mesmo
81
.
81
É como na litografia do artista gráfico holandês M. C. Escher, que mostramos no final do capítulo 6 deste
trabalho, onde vemos um jovem que olha uma gravura em que ele próprio aparece, olhando uma gravura em que
ele próprio aparece, olhando uma gravura em que ele próprio aparece...
81
127
Assim, o que falamos, como falamos, nos comportamos, imaginamos, sentimos,
pensamos, estabelecemos relações com outras pessoas (família, amigos, colegas de profissão
etc.), com nossos animais de estimação ou outros domínios comportamentais (outros seres
vivos), esses exemplos ou quaisquer outros que envolvam a presença humana, constituem
interações lingüísticas recorrentes que permeiam toda nossa existência. Ora, porque essas
interações são acoplamentos, não é possível não incluir recursivamente o fato de saber que
sabemos e que fazemos descrições, ou seja, não é possível saber sem saber que se sabe ou
descrever sem saber que se está descrevendo. Portanto, a linguagem traz como correlato a
consciência ou a reflexão do ato sobre ele mesmo, na medida em que ―somos observadores e
existimos num domínio semântico criado pelo nosso modo lingüístico de operar‖
(MATURANA E VARELA, 2001: 233). E não como conhecer e refletir sobre o
conhecimento fora da linguagem.
Somos seres biológicos, o que implica situar a emergência de linguagem na espécie
humana como resultante de uma história evolutiva que, no limite, envolve todo o sistema vivo
no planeta. Porém, numa perspectiva mais focalizada, isso implica igualmente situar tal
emergência como decorrência da complexificação (cujo processo é historicamente impossível
de acompanhar) de comportamentos, gestos e hábitos selecionados e repetidos no convívio
social e nele transformados, adaptados e conservados, até o momento em que emergiu a auto-
referência linguisticamente construída e socialmente partilhada e reconhecida. Assim, Eu é
descrição recursiva contínua, que nos permite conservar nossa coerência operacional
lingüística e nossa adaptação ao domínio da linguagem(MATURANA E VARELA, 2001:
254. Grifo nosso).
Por isso, somos também algo mais do que seres apenas biológicos. A dinâmica social
incrementada na e pela história evolutiva do vivo lançou-nos e lança-nos numa rede de
acoplamentos sociais e lingüísticos responsável pela emergência do fenômeno da consciência.
128
Nessa perspectiva, não faz sentido falar de consciência como momento inaugural da
identidade humana, à maneira cartesiana de uma consciência substancialista, única e, como
sujeito, geradora de um mundo que se apresenta à sua indagação e em relação ao qual ela
(consciência) se coloca em posição transcendente. Também não se trata de considerar a
consciência como operação transcendental logicamente anterior ao conhecimento, como sua
condição universal e necessária, à maneira kantiana. Não é ―algo‖ que está dentro do crânio
ou flui do cérebro. É uma estabilidade operacional, criada e mantida recursivamente na
linguagem, partilhando por isso de sua plasticidade infinita.
A partir da contribuição de Maturana e Varela, podemos concluir que o conceito de
autopoiesis, originado de uma reflexão epistemológica no campo da biologia, contribui para
reconsiderarmos o que possa ser ―Eu‖, deslocando-o das tradições do sujeito substancialista
ou transcendental, das oposições entre representação e mundo, que são posições epistêmicas
que organizam nossa existência e nosso modo de conhecer como se tudo estivesse distribuído
em um ―dentro‖ e um ―fora‖ prévios, um interno‖ e um ―externo‖ definitivos e
irreconciliáveis, em um ―sim‖ e um ―não‖ irreversíveis, incomunicáveis e mutuamente
excludentes, em partes isoladas e sem interação e sem conexão com o todo, em obediência a
uma lógica linear e previsível. Ao contrário, à luz da organização autopoiética, ―Eu‖ é pura
operação recursiva, cuja recorrência estabiliza e cria coerências comunicacionais nos diversos
acoplamentos sociais e lingüísticos que dele participam e dos quais é resultante. Portanto, ―A
cidade sou eu‖ é uma afirmação que encontra respaldo conceitual por habitarmos o universo
necessariamente recursivo da linguagem. Se essa afirmação, então ela denota uma ação e
um conhecimento. Legitimá-la já é uma outra estória.
129
4.6 O Rizoma de Gilles Deleuze e Félix Guattari
Os filósofos franceses Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992),
comentando a experiência de escreverem juntos o livro O Anti-Édipo, avançam questões que
ganharão consistência teórica e prática no conceito de rizoma:
Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era
muita gente. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais próximo e o
mais distante. Distribuímos hábeis pseudônimos para dissimular. Por que
preservamos nossos nomes? Por hábito, exclusivamente por hábito. Para
passarmos despercebidos. Para tornar imperceptível, não a nós mesmos, mas
o que nos faz agir, experimentar ou pensar. E, finalmente, porque é
agradável falar como todo mundo e dizer o sol nasce, quando todo mundo
sabe que essa é apenas uma maneira de falar. Não chegar ao ponto em que
não se diz mais EU, mas ao ponto em que não tem qualquer importância
dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá
os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados (DELEUZE &
GUATTARI, 1995: 11).
A mudança de entendimento do que seja EU contida na afirmação ―Não somos mais
nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados‖ é evidenciada
no escopo filosófico da obra Mil Platôs (1980), através da definição dos conceitos de
multiplicidade e de rizoma, tal como delineado por Deleuze e Guattari. Neste trabalho, os
autores afirmam ―o projeto é ‗construtivista‘. É uma teoria das multiplicidades por elas
mesmas, no ponto em que o múltiplo passa ao estado de substantivo‖(DELEUZE &
GUATTARI, 1995: 8). O entendimento central é que as multiplicidades são a realidade e, não
estão em questão a unidade, qualquer totalidade, e nenhuma idéia de sujeito. O interesse é
pelas circunstâncias de uma coisa, onde os conceitos devem explicitar o acontecimento e não
a essência. O que interessa é dizer ―em que casos, onde e quando, como‖, em quais
circunstâncias algo se realiza (DELEUZE, 1992: 37-38).
A partir deste entendimento não se distingue sujeito e objeto. Os autores utilizam
como exemplo um livro, onde não é possível determinar nenhum sujeito ou objeto, se
levarmos em consideração toda a enorme gama de correlações e conexões externas presentes
130
na sua elaboração, o livro passa a ser considerado uma espécie de agenciamento e, portanto,
inatribuível.
Não se trata mais de raciocinar em termos de subordinação hierárquica, cujo modelo é
a árvore e o processo de arborescência, com sua base fixa dando origem a múltiplos ramos.
Neste universo, a organização e dinâmica das práticas e saberes, como uma raiz que cresce e
se desenvolve verticalmente, são pontos e nós individuais de uma estrutura, que se relacionam
numa razão de reciprocidade necessária, binariedade e opositividade. O longe é longe, o perto
é perto, o fora não é reversível com o dentro, público e privado são claramente discerníveis e
mutuamente excludentes. Em regime rizomático, ao contrário, qualquer ponto pode ligar-se a
qualquer outro, qualquer elemento pode afetar ou incidir em qualquer outro, sem ordem ou
valor prévios, sem coordenação centralizada e fixa, num mapa aberto, ―conectável em todas
as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações
constantemente‖. ‖(DELEUZE & GUATTARI, 1995: 22)
A idéia de rizoma nos permite apreender a realidade contemporânea como múltipla e
descentrada, arranjo aberto e infinito de fragmentos autônomos interligáveis em rede e sem
ponto fixo de convergência. É o que indica a metáfora do rizoma: oriundo da botânica, onde
significa o caule subterrâneo que cresce e se ramifica em direção horizontal
82
.
Algumas características do rizoma:
- Princípios de conexão e de heterogeneidade - é a generalização da possibilidade de
conexão onde ―qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-
lo (DELEUZE & GUATTARI, 1995: 15).
- Princípio de multiplicidade o múltiplo é tratado como substantivo. Aqui nos
deparamos com a inexistência de qualquer unidade, não há sujeito nem objeto, mas somente
determinações, grandezas,e dimensões que quando crescem mudam de natureza. As
82
Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.
131
multiplicidades são definidas pelo fora: ―pela linha de fuga ou de desterritoralização‖
(DELEUZE & GUATTARI, 1995: 17).
- Princípio de ruptura a-significante um rizoma pode ser rompido, quebrado em
qualquer lugar, do mesmo modo pode ser retomado a partir de qualquer de suas linhas. As
linhas de segmentaridade estratificam, territorializam, organizam, mas também
desterritorializam. Linhas segmentares transformam-se em linhas de fuga ocasionando a
ruptura no rizoma e estas linhas frequentemente rementem umas às outras.
- Princípio de cartografia e de decalcomania um rizoma não pode ser explicado por
nenhum modelo estrutural ou gerativo. Fazer rizoma é construir um mapa aberto com
múltiplas entradas e passível de receber quaisquer modificações constantemente.
Como ferramenta cognitiva, o rizoma é útil para pensarmos o espaço urbano como
malha complexa de relações sociais, políticas, cognitivas, tecnológicas em estado ‗fluido‘.
Seu ritmo é o da multiplicidade e conectividade. Sua dinâmica é a da reticulação. Seu sentido
está dado pelos movimentos de desterritorialização e pelos processos de reterritorialização,
em devir constante, denotando o caráter nômade e plástico do rizoma. Tal conceito permite-
nos uma aproximação plural à realidade contemporânea, como instância diversa, múltipla e
descentrada, arranjo aberto de fragmentos autômatos interligáveis em rede e sem um ponto
fixo de convergência.
4.7 A ecologia cognitiva de Pierre Lévy
Pierre Lévy (1956-) é um dos autores mais representativos de um pensamento crítico
sobre a cultura digital. As novas tecnologias e suas implicações culturais mais amplas estão
no cerne de seu trabalho desde a década de 1980, recaindo seu investimento conceitual nas
transformações cognitivas da disseminação da tecnologia digital. Não lhe passaram
132
desapercebidas as injunções históricas do salto tecnológico que vivenciamos, o que lhe
permitiu criar esquemas de inteligibilidade do percurso humano na relação com seu próprio
fazer tecnológico, ao mesmo tempo que concebia uma noção de ―humano‖ e seus avatares
culturais (estéticos, políticos, econômicos, éticos, urbanos etc.) na perspectiva de ―um modo
de ser do humano, que é técnico‖ (LÉVY, 1999: 16).
Seus textos deram ênfase às maneiras pelas quais as novas tecnologias estão
modificando profundamente a cultura, considerando a informatização digital como sintoma de
uma ―mutação antropológica‖, comparável apenas àquela do Neolítico (LÉVY, 1993: 16)
83
.
A
amplitude dessa mutação extravasa a lógica ―técnica‖ da digitalização e da informatização,
pois ―afeta não apenas a informação e a comunicação, mas também os corpos, o
funcionamento econômico, os quadros coletivos da sensibilidade ou o exercício da
inteligência‖ (LÉVY, 1996: 11), convergindo ―para a constituição de um novo meio de
comunicação, de pensamento e de trabalho para as sociedades humanas‖ (LÉVY, 2003: 11).
Desde sua obra pioneira, La machine univers: création, cognition et culture
informatique, Lévy tem como marca registrada do seu trabalho a chamada de atenção quanto
à necessidade de novos paradigmas de pensamento mais eficazes no tratamento dessa
―mudança inédita‖ (LÉVY, 1987: 7) trazida na década de 1980. Daí a pergunta: ―em que se
transforma a cultura quando a comunicação, o ensino, o saber e a maior parte das atividades
cognitivas são mediadas por dispositivos de tratamento automático da informação?‖ (LÉVY,
1987: 7). E acrescentamos, por interesse de nosso trabalho: em que se transforma a cidade
quando a cultura é assim transformada? Em que se transforma ―Eu‖, quando tais dispositivos
empurram no sentido da pulverização do sujeito, da dessubstancialização do corpo, da
desterritorialização, da relativização generalizada dos espaços e fronteiras?
83
Ver também LÉVY, 2003:15.
133
O objetivo desse item é exatamente discutir essas questões. Utilizaremos como chave
de leitura duas propostas de discussão das tecnologias intelectuais exploradas em Tecnologias
da inteligência e A inteligência coletiva, com o apoio de outros textos, como Cibercultura e O
que é o virtual? Estamos nos referindo ao que o autor chamou de três pólos do espírito, que
são a oralidade primária, a escrita e a informática, e os quatro espaços antropológicos que são
a Terra, o Território, a Mercadoria e o Saber.
Nossa intenção é mostrar como a cidade constitui uma expressão de mutações e
ajustes cognitivos e sociais ao longo da história, exigindo ser pensada hoje, como foi em
circunstâncias históricas passadas, em consonância com o novo panorama da cultura digital.
E, em contrapartida, esperamos demonstrar como as mutações tecnológicas acompanháveis
ao longo da história humana, segundo o percurso proposto por Lévy incidiram sobre modos
diferentes de se conceber ―Eu‖, do indivíduo fixado em um território, que é sua casa, aldeia,
língua nativa ou cidade geográfica e fisicamente delimitada, à virtualidade ou aceleração da
―heterogênese‖ do humano, seu ―devir outro‖ (LÉVY, 1996: 12), positivada na diversidade de
planos de materialização, existência e sentido do fazer humano que a convergência das novas
tecnologias propicia. Lembramos, por fim, a advertência do autor: não se trata de estabelecer
eras cronológicas sucessivas e causalmente encadeadas, ou estratos cronológicos evolutivos e
cumulativos. A cada tempo e lugar os três pólos do espírito ou os quatro espaços
antropológicos estão presentes, com intensidades e velocidades variáveis (LÉVY, 1993: 126;
2003:125-130).
4.7.1 Os engates do espaço-tempo
Oralidade primária e terra: primeiro tempo do espírito e espaço antropológico que
expressam a primazia da memória social e individual enquanto suporte de inscrição e
gravação das informações que tecem a rede cognitiva de um grupo humano qualquer e
134
constroem um espaço comum de significações. A oralidade primária é o modo de organização
de uma memória ―encarnada‖ em ritos, gestos, danças, narrativas e outras habilidades que
permitem que os membros de uma comunidade possam observar, escutar, repetir ou imitar os
conteúdos que dão inteireza ao grupo, fornecendo ao mesmo tempo sua identidade (LÉVY,
1993: 84; 2003:131).
Por sua vez, terra é o espaço-narração ou espaço-memória (LÉVY, 2003: 150),
constantemente reelaborado por essas estratégias sociais. Corresponde ao espaço de
proximidades e exclusões que se molda conforme os liames identitários que conectam os
indivíduos entre si e estes com o cosmos: consangüinidade, comunidade de afazeres, crenças,
antepassados míticos, divindades totêmicas. Mas não se trata apenas isso. As relações
estabelecidas com o ambiente e o espaço físicos montanhas, rios, árvores, rochedos,
animais, estrelas, fenômenos geológicos e meteorológicos, bem como as percepções de
temperatura, pressão, umidade, calor participam das significações que repetem, em seu
ritmo cíclico, as balizas de fixação, estabilização, organização e continuidade das
comunidades humanas. Junto com elas ainda trabalham para essa estabilidade e continuidade
comportamentos gregários, de coesão e organização sociais que os humanos partilham com
uma série de outras espécies animais.
Esse último argumento está ausente das considerações de Lévy, pelo menos como
indicação explícita. Enquanto o autor fala da Terra como ―um cosmo em que os seres
humanos estão em comunicação com animais, plantas, paisagens, lugares e espíritos‖ (LÉVY,
2003:115), preferimos especificar, ampliando, o escopo dessa ―comunicação‖, indicando mais
indícios de sua configuração e dinâmica, ao destacar alguns elementos propriamente
ecológicos e etológicos que entram na composição das redes de significação que constituem
essa comunicação. Isso não escapou a estudiosos da cidade como Lewis Mumford. Em termos
de emergência histórica da cidade, trata-se de considerar certas analogias entre cultura
135
humana e etologia animal, como é o caso ―do tipo mais primitivo de aglomeração humana
permanente, a pequena povoação ou aldeia‖, que se presta à função de ―isolamento defensivo‖
(MUMFORD, 1991: 11-12)
84
e que pode, sob essa perspectiva, ser considerada verdadeiro
nicho de proteção, reprodução e nutrição, guardando similaridade com estratégias animais de
provimento das mesmas funções de proteção, acasalamento, reprodução e cuidados com a
prole. São espaços sociais humanos que entrelaçam diversas significações, entre elas esses
vestígios etológicos remanejados pela cultura, análogos, em sua funcionalidade, a
comportamentos animais gregários de defesa e proteção diante de predadores, de formação de
grupos familiares para proteção dos filhotes, de reconhecimento e proteção dos congêneres e
ataque a indivíduos estranhos ao grupo.
Em suma, estamos às voltas com um espaço-tempo oralidade primária, Terra no
qual os hipertextos são próximos, as significações cerradas e a velocidade de metamorfose
baixa. Usamos a metáfora do hipertexto segundo as indicações de Lévy: universos de sentido
construídos e remodelados no interior de um processo de comunicação qualquer, em suas
várias escalas, mas também processos sociotécnicos e quaisquer outros fenômenos ou esferas
de realidade ―em que significações estejam em jogo‖ (LÉVY, 1993: 25 e 70-73). Para ele, a
operação básica de atribuição de sentido é a associação ou a conexão de um texto a outro. Por
sua vez, entende-se por texto o ―tricô‖ de coisas, verbos e nomes cosidos pela linguagem e
seus desdobramentos simbólicos e culturais. Assim, ―hipertexto‖ é a condição inicial de
84
Como lembra o autor, ―certa tendência para fixar-se e repousar, para retornar a um ponto favorável que oferece
abrigo e boa alimentação, existe em muitas espécies animais‖, não excluída a espécie humana. O autor detalha a
comparação: ―Muitas criaturas, inclusive os peixes, reúnem-se em rebanhos e cardumes para a reprodução e o
cuidado de seus filhos. Entre os pássaros, às vezes verifica-se uma ligação ao mesmo ninho, estação após
estação, e entre as espécies nômades existe o hábito da fixação comunal em áreas protegidas como ilhas e
pântanos, por ocasião da reprodução. Os grupos de reprodução de dimensões maiores, ajuntando correntes
diversas, introduzem possibilidade de variação genética que não existem nos pequenos grupos humanos, onde o
casamento é restrito. Esses viveiros de reprodução e nutrição constituem, evidentemente, protótipos do tipo mais
primitivo de aglomeração humana permanente, a pequena povoação ou aldeia. Um dos aspectos da cidade
primitiva, o seu senso de isolamento defensivo conjugado com sua superficial pretensão de „territorialidade‟
tem esse remoto antecedente na evolução animal(MUMFORD, 1991:11-12. Grifo nosso).
136
qualquer lugar de sentido que quisermos indicar ou isolar na rede de significações que nos
constitui, em modos de ser, escalas e perspectivas sempre mais ou menos indefinidas.
Quando lidamos, portanto, com a polarização constituída pela oralidade primária ou
pela Terra como espaço antropológico hegemonicamente estruturante, estamos operando em
uma rede cujas potencialidades de transformação estão represadas ou obstruídas pela própria
natureza pouco maleável e repetitiva dos elementos e da dinâmica que a constituem. Trata-se
de coletivos humanos dependentes da oralidade e da memória social encarnada em pessoas
vivas, e cujos saberes aí disponíveis são dificilmente indissociáveis das práticas, ritos e
narrativas específicas que constroem seus espaços identitários. Em sua funcionalidade, são
ainda bastante dependentes de estratégias de aliança e separação que mobilizam forças
cósmicas, fenômenos físicos, repertório de gestos, expressões, comportamentos que
asseguram o grupo e o espaço social por ele construído enquanto mundo fechado, centro e
máquina de centralização de significações. É inclusive um nomadismo demarcado
fisicamente, que acompanha as trilhas de migração de rebanhos, a salubridade, as
possibilidades de alimentação segundo sítios favoráveis, a dinâmica ecológica das estações do
ano (LÉVY, 2003:149-150) .
A escrita, segundo tempo do espírito, é co-extensiva ao território e à mercadoria
outros espaços antropológicos estruturantes, além da Terra. A escrita é uma das tecnologias
intelectuais mais expressivas da ecologia cognitiva humana, tendo arrastado consigo milênios
de hegemonia organizadora dos poderes e saberes das civilizações. Em uma analogia forte de
significações, a escrita é correlata da agricultura enquanto tecnologia de sedentarização,
fixação e separação. A escrita desterritorializa a fala, separando-a do corpo vivo e, ao
reinscrevê-la em um suporte inerte, a sedentariza, (LÉVY, 2003:142). Mas, no mesmo ato,
produz outros deslocamentos, pois sua velocidade se acelera, ganha o ritmo histórico do
arquivamento e do controle das informações, doravante submetido ao jogo infinito dos
137
poderes de estabelecer a significação ―verdadeira‖ ou a autoridade que decide sobre a origem
e a destinação dos homens, prática que se costuma chamar de interpretação e que passa a
ocupar lugar preponderante no processo de comunicação.
O que outrora eram estratégias de designação de pertencimento e concomitante
exclusão corpos marcados, repertório de gestos, expressões, comportamentos fortemente
assegurados pela ecologia do convívio físico direto são transferidos para o texto escrito e a
rede potencialmente infinita de comentários, debates e interpretações que ele propicia. Como
afirma Lévy, ―a leitura leva a conflitos, funda escolas rivais, fornece sua autoridade a
pretensos retornos à origem, como tantas vezes aconteceu na Europa após o triunfo da
impressão‖ (LÉVY, 1993:90). Assim, não dependente da mediação humana no contexto da
narrativa característica da oralidade, a escrita permite um outro nível de deslocamento entre o
estoque de informações identitárias que a memória social é e os indivíduos e grupos por ela
moldados, pois doravante o saber está disponível para ser arquivado, consultado, comparado,
à medida que diferido no espaço e no tempo.
Por isso, pode-se dizer que a história no sentido linear e cumulativo, tributário da
lógica da origem e finalidade e da proliferação das ―versões‖ de verdade como resultantes de
relações de poder é ―um efeito da escrita‖ (LÉVY, 1993: 94-95). Seus símbolos mais
eloqüentes são a domesticação de animais e sementes, a cidade como espaço de domesticação
social dos homens, incluindo a divisão social do trabalho, e o Estado como autoridade policial
desse processo. Solos sulcados, muros erguidos, estelas gravadas, impostos anotados,
calendários estabelecidos são alguns dos exemplos de fixação no espaço e de demanda de
perenidade no tempo. A Terra, assim esquadrinhada e quadriculada, converte-se em
Território, e podemos agora perguntar a cada indivíduo tornado habitante de algum lugar
geográfico, social ou psíquico qual seu endereço? O que você é?, o que vale responder por
identidades de tipo territorial, como a família, a casa, o domínio, a cidade, a província, o país,
138
a língua nativa, a profissão, a posição social ou institucional, o diploma universitário, a
patente, a propriedade, o sexo anatômico e sua transposição em gênero lingüístico e cultural, a
idade, ―tudo o que organiza um espaço por meio de fronteiras, escalas e níveis‖ (LÉVY, 2003:
132), cristalizando pertencimentos e exclusões.
Comparativamente, vemos uma maneira de enunciar a noção de sujeito moderno,
que não é senão um território psíquico e cognitivo. Interioridade de um cogito, escorada na
suposição de posse de um atributo que, pertencendo-lhe por natureza, não pode dele ser
separado sem romper-lhe a unidade substancial: o pensamento. Eu sou, eu existo, fórmula
conhecida das Meditações cartesianas, que tivemos ocasião de considerar, é o correlato
consciencial de todas as operações de clausura a que aludimos acima. A partir de ―meus
pensamentos‖, espécie de caixa translúcida e auto-reiterativa, confirmo ser um suporte
permanente, uma coisa, uma substância que ―duvida, que concebe, que afirma, que nega, que
quer, que não quer, que imagina também e que sente‖ (DESCARTES, 1979a: 95). Toda idéia
de subjetividade por esgarçada, desterritorializada, pulverizada, diferida e diferenciante que
seja guarda o vestígio cartesiano dessa operação de clausura, carregando consigo a marca do
que se é.
Encerrando esse item, é preciso considerar um processo relativamente recente que
imprimiu mais velocidade ao tecido espaço-temporal social e cognitivo, além da Terra e do
Território. Estamos falando do que Pierre Lévy chamou de ―Espaço das mercadorias‖, cujo
princípio organizador é o fluxo: fluxo de energias, matérias-primas, mercadorias, capitais,
mão-de-obra, informações, e que não é senão o movimento de desterritorialização que o
capitalismo traz, transformando ―inelutavelmente em mercadoria tudo o que consegue incluir
em seu circuito‖ (LÉVY, 2003: 119). Com a mercadoria, as identidades são
desterritorializadas, pois o processo generalizado de mercantilização desloca sociabilidades e
certificações identitárias, que se redefinem pelo circuito de fabricação, circulação e consumo
139
de coisas, informações e imagens (LÉVY, 2003: 119). Superando em velocidade os espaços
anteriores, a nova ordenação do fluxo não suprime o Território, mas subverte-o e subordina-o
aos mecanismos de produção e circulação. A riqueza é medida pelo controle do fluxo, e não
somente pela exploração das fronteiras.
Esse ―espaço midiático‖ (LÉVY, 2003: 144) multiplica, fragmentando, os suportes
disponíveis de gravação, arquivamento e transmissão de informação. Som, imagem, textos,
são infinitamente reproduzidos por livros, imprensa, fotos, discos, cinema, rádio, cassete,
televisão, fax, celulares: ―homens, coisas, técnicas, capitais, signos e saberes renovam-se e
giram continuamente nos circuitos da mercadoria‖ (LÉVY, 2003: 151), em redes de
comunicação, transporte, distribuição e produção de bens. A cidade, por exemplo, constitui-se
como rede que torna ininteligível a antiga distinção territorial cidade campo. Em seu lugar,
temos o urbano, ―cidade cujo centro está em toda parte e a circunferência em parte alguma‖
(LÉVY, 2003: 152).
4.7.2 Virtualizações
Na seqüência do esquema explicativo que foi exposto, Pierre Lévy considera um
terceiro tempo do espírito, que chama de rede digital ou pólo informático-midiático, e um
quarto espaço antropológico, que denomina espaço do saber. Ambos se situam no âmbito das
transformações sociais e cognitivas propiciadas pelas novas tecnologias de base digital.
Ambos pertencem ao processo mais geral de constituição e ampliação, via redes digitais, de
―um ciberespaço mundial no qual todo elemento de informação encontra-se em contato
virtual com todos e com cada um‖ (LÉVY, 2003: 11), em um processo progressivo de
convergência e minimalismo de funções. Por isso, vamos considerar a rede digital e o espaço
do saber sob a perspectiva da virtualização, isto é, da dinâmica mais ampla da mutação (de
identidades), do deslocamento (dos centros de gravidade das referências), da problematização
140
permanente (de soluções dadas em direção à fluidificação de qualquer distinção instituída),
da indeterminação, da interatividade, da desterritorialização, características das novas
tecnologias digitais. Se foi possível explorar os ―engates de espaço-tempo‖ que delinearam a
dinâmica de fixação, fronteirização, exclusão e não-passagem condicionantes da performance
de pessoas, coletividades e processos de comunicação, nós nos voltaremos agora para aquelas
dinâmicas que, sob a lógica da virtualização, promovem na cultura uma espécie de desengate
do espaço físico ou geográfico ordinário e da temporalidade do relógio e do calendário
(LÉVY, 1996: 21), fazendo com que o espaço-tempo clássico escape a seus lugares comuns
―realistas‖, a unidade de lugar dando vez à sincronicidade e a interconexão substituindo a
unidade de tempo.
Comecemos pela idéia de ciberespaço, que acolhe esses raciocínios de relativização
espaço-temporais, conduzindo, na obra de Lévy, à cibercultura e à cibercidade. é
conhecimento comum a etimologia do prefixo ciber, que nos chegou do remanejamento
moderno do substantivo grego kubernetes, que significa piloto, timoneiro e, figurativamente,
diretor, chefe, governador, reapropriado na cunhagem da palavra cibernética, que designou
um campo de investigação moldado e disseminado no imediato pós-segunda guerra. Em obra
homônima, seu autor, o matemático Norbert Wiener (1894-1964), lançava a cibernética em
1948 como uma nova ciência que visava à compreensão da unidade essencial dos fenômenos
naturais e artificiais através do estudo dos processos de comunicação e controle nos seres
vivos, nas máquinas e nos processos sociais. Na herança cibernética, o escritor William
Gibson cunhou a palavra ciberespaço, que designou, em seu romance de ficção-científica
Neuromancer (1984), o universo das redes digitais onipresentes, ao qual os humanos se
conectavam diretamente via sistema nervoso, o que lhes permitia visualizar dados e
programas e trabalhar sobre eles, desafiando o universo real. O termo disseminou-se muito
rapidamente entre os usuários das redes digitais.
141
Pierre Lévy dá a sua própria definição de ciberespaço: ―espaço de comunicação aberto
pela interconexão mundial de computadores e das memórias dos computadores‖, com ênfase
na tecnologia digital, por esta condicionar a informação em seu caráter ―plástico, fluido,
calculável com precisão e tratável em tempo real, hipertextual, interativo e, resumindo,
virtual‖, que é ―a marca distintiva do ciberespaço‖ (LÉVY, 1999: 92, 93). A rede assim
constituída inclui não apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também,
e sobretudo, o universo de informações que ela abriga, indissociavelmente conectado à
performance social e cognitiva dos humanos que a alimentam e nela navegam.
Uma cultura assim condicionada torna-se cibercultura, isto é, ambiente sociotécnico e
cognitivo não-universalizante cuja funcionalidade é hegemonicamente presidida pelas
técnicas materiais e intelectuais, por práticas, comportamentos, atitudes, saberes, modos de
pensamento, valores que se desenvolvem em relação de co-pertinência e co-determinação
com o ciberespaço (LÉVY, 1999: 17).
Dissemos não-universalizante‖
85
. Em que sentido? Retomemos as características dos
regimes cognitivos anteriores, para, por contraste, esclarecer o aspecto não-universalizante da
cibercultura.
Oralidade, Escrita, Terra, Território e Mercadoria correspondem a tecnologias
intelectuais e espaços antropológicos que provêm unidades de sentido mais ou menos estáveis
e estabilizantes. Se sou membro de uma tribo ou de uma comunidade fechada e auto-
centralizadora, estou restrito a e identificado compulsoriamente por seu repertório religioso,
social, técnico, por seus padrões institucionais e de comportamento, que transcendem a ordem
em que estou inserido, orientando-a de ―fora‖ ou de ―cima‖. As oportunidades de troca intra e
intergrupos tendem a cumprir um circuito determinado pela própria fronteira tribal,
disciplinada pelos costumes imemoriais, pelos deuses, pela magia. Desde o final do século
85
Seguimos a problematização proposta por LÉVY, 1999: 111-121 e 247-250.
142
XIX que as pesquisas etnográficas descrevem sociedades que funcionam com base em
princípios de reciprocidade e redistribuição um toma--dá-cá sistemático e organizado de
objetos valiosos, transportados muitas vezes a grandes distâncias que cosem solidariedades
sociais e religiosas em uma rede de obrigações recíprocas, a qual, por sua vez, pune e
marginaliza aqueles que infringem seus códigos de honra e generosidade (POLANYI, 1980:
59-69)
Se sou usuário da escrita, sobretudo após a invenção da imprensa, navego em
hipertextos mais abstratos, removíveis de seus contextos de emergência e remanejados
segundo estratégias de poder e de conhecimento que se sustentam e se alimentam da própria
atividade hermenêutica infinita que os assegura enquanto unidades produtoras de saber
distintas, assentadas em autoridades em luta de hegemonia, a quem se atribui poderes de
permissão, sanção, gestão e controle da vida dos indivíduos e das coletividades. A cada
geração mais nós e links são acrescidos a essas bibliotecas hipertextuais, asseverando as
territorialidades e proliferando o jogo rivalitário do estabelecimento da versão ―correta‖,
―verdadeira‖, ―válida para todos‖, ―objetiva‖, dos saberes, comportamentos e valores.
Se sou usuário das dias de massa, acesso rádio, televisão, cinema, imprensa,
produção fonográfica (nos antigos formatos de lp‘s e cd‘s), livros, vou a shows de rock, peças
de teatro, jogos de futebol ou assisto à sua transmissão pela tv, em um movimento que me
conecta ao fluxo por algum denominador comum de grande escala, que arrebanha milhões de
pessoas pela lógica do best seller, da maior audiência, do espetáculo do ano, do filme
ganhador do Oscar, do ídolo do futebol ou dos palcos do cenário pop nacional e internacional.
Rebanhos humanos seqüestrados pela concentração dos media, em duplo sentido: pela
monopolização dos meios técnicos e industriais dos mass media por poucos grupos
econômicos, fenômeno evidente sobretudo a partir dos anos 1970 e 1980, e por seu reverso,
isto é, pela disponibilidade e acesso precários a alternativas, porque simplesmente não havia
143
como ter contato parciário, anônimo e em rede com outros pólos produtores e usuários de
informação.
O contato telefônico dependia da fixação física de um aparelho instalado em
residências e lugares públicos, aos poucos liberado com a mobilidade dos celulares, que até o
final dos anos 1990 transmitiam apenas voz; a rádio que se escutava (escutava-se rádio!) era
geograficamente local e seus programas muitas vezes colocavam os usuários em contato uns
com os outros através de cartas, no que eram seguidos por jornais e revistas, que usavam
também caixa postal; tirar fotografias envolvia a operação de comprar o filme em separado e
depois revelar as fotos em lugar especializado; a televisão aberta e a cabo, esta última ainda
pouco disponível e com custos proibitivos, era programa doméstico coletivo familiar em
horários mais ou menos estabelecidos e com um cardápio estandardizado; jornais e revistas,
nacionais e internacionais, circulavam em papel e, muitas vezes, com difícil acesso, quando
extrapolavam o circuito local, donde também a distinção entre o mainstream, o oficial, o
popular, o mais ―vendido‖, e o underground, o ―sujo‖, o ―alternativo‖, o ―subversivo‖.
A cibercultura pulverizou todos esses pólos de concentração, totalização e
universalização, desfazendo fronteiras ou relativizando-as até à indiscernibilidade, ao colocar
tudo e todos em conexão e interatividade, de modo ilimitado e não filtrado, numa paisagem
contínua, sem os relevos do mainstream x underground, e na qual passou-se a consumir, um
pouco indistintamente, tanto o produto ―profissional‖ quanto o ―amador‖, tanto o ―oficial‖
quanto o ―pirata‖ (ANDERSON, 2006).
É fato que vivemos hoje um cotidiano que se modificou significativamente em relação
àquele que se concebia na década de 1990, quando foram publicados os textos que estamos
considerando. Na ocasião, lidava-se com o cenário da popularização do uso doméstico dos
computadores; da internet (discada); do acesso de dados à distância, sua transferência,
compartilhamento e construção por tutoriais on line, conferências eletrônicas e groupwares;
144
do correio eletrônico; dos CD ROM‘s e DVD‘s como suportes ampliados e móveis de
gravação e arquivamento de informações (texto, imagem, som).
Hoje, temos dispositivos ainda mais dinâmicos e fragmentados, que aceleraram a
virtualização, como o acesso à internet com banda larga ou com tecnologia sem fio (wireless);
acesso on line a filmes em versão integral, por sua vez graváveis domesticamente em DVD-R,
liberando espaço de armazenamento no computador e a veiculação do conteúdo em qualquer
ambiente que tenha computador ou televisão e DVD; os iPods e pendrives mais simples, que
carregam texto, som e imagem (fotografia e vídeo), além de gravar som, acessáveis no próprio
dispositivo ou por qualquer computador com entrada USB e software compatível; a
popularização de programas de compartilhamento de música (mp3), texto e imagem; celulares
que são máquinas fotográficas e filmadoras digitais, sendo também minicomputadores que
transmitem som, texto e imagem, além de acessar a internet; dispositivos mais recentes
disponíveis no mercado, que fusionam a função telefone celular com um iPod de tela
widescreen e acesso à internet com navegação e e-mail, utilizando como interface nova uma
tela de multitoque e um novo programa que permite ao usuário usar o dispositivo apenas com
os dedos
86
; programas de mensagem instantânea e convívio virtual, como o Orkut; espaços
virtuais de compartilhamento de vídeos como o You Tube, em que são veiculados
indistintamente arquivos da indústria de entretenimento das últimas décadas; aulas, palestras,
conferências, não necessariamente vinculadas a programas oficiais universitários; produções
do usuário em geral, anônimas ou não.
Esses são alguns exemplos que nos permitem ampliar exponencialmente o alcance dos
argumentos de Lévy, seguindo a lógica da virtualização. Confirmam-se certas intuições do
autor, como, por exemplo, a afirmação segundo a qual ―a cibercultura reúne de forma caótica
todas as heresias‖, pois, contrariamente às separações pregressas, ―suas fronteiras são
86
Trata-se do iPhone, lançado em janeiro de 2007 pela Apple.
Cf. http://latam.apple.com/pr/articulo/?id=1361&r=br.
145
imprecisas, móveis e provisórias‖
(LÉVY, 1999: 238). Seus espaços comuns são ocupados
por qualquer um, que produz, dissemina ou investiga o que lhe interessa, cabendo-lhe
exclusivamente a iniciativa, em regime de alta parcialidade e em dinâmica de rede, como é o
caso dos fotologs, blogs, You Tube ou mecanismos de busca com filtros de navegação, como
o Google Acadêmico. Enfim, a interconexão e a interatividade infinitizadas apontam para o
fim dos monopólios da expressão pública; a crescente variedade dos modos de expressão; a
disponibilidade progressiva de instrumentos de filtragem e navegação convivendo com a
pulverização da informação que anula toda hierarquia prévia; o desenvolvimento de
comunidades virtuais e contatos interpessoais independentemente de barreiras físicas e
geográficas; a relativização de freios políticos, econômicos e tecnológicos à expressão
mundial da diversidade cultural e à troca de informações, de que são testemunhas os diversos
programas de compartilhamento de arquivos que driblam permanentemente a força
mercadológica da propriedade intelectual (LÉVY, 1999: 239-241).
À luz dessa dinâmica, potencializam-se certos conceitos, expressões e idéias lançadas
por Lévy. Podemos finalmente considerar aquele que nos interessa mais de perto, o conceito
de cibercidade, animado pelos processos mais gerais de dessubjetivação, dessubstancialização
e desterritorialização a que aludimos.
A idéia central da proposta da cibercidade é pensar as possibilidades de articulação
entre dois espaços qualitativamente diferentes que são o território e a inteligência coletiva,
essa última tendo como suporte o ciberespaço. Vimos o quão distintos esses espaços são física
e topologicamente: o território é adscrito a um centro e seus limites, organizado por sistemas
de proximidade física ou geográfica; o ciberespaço é co-presença de um ponto na rede
relativamente a qualquer outro, deslocando-se em velocidades altíssimas. Além disso, do
ponto de vista dos processos sociais, o território é espaço de separações e hierarquias, ao
passo que o ciberespaço funciona na transversalidade das relações e na fluidez dos contatos.
146
Não se trata, portanto, de eliminar ou substituir uma forma (o território) em prol de outra (o
funcionamento ciberespacial), e sim ―compensar, no que for possível, a lentidão, a inércia, a
rigidez indelével do território por sua exposição em tempo real no ciberespaço‖ (LÉVY,
1999: 195).
A cibercidade seria resultante dos processos de inteligência coletiva aplicados ao
território, otimizando seus recursos pela plasticidade do ciberespaço, construindo
efetivamente um espaço cosmopolita ou policosmo, espaço das metamorfoses das relações e
do surgimento das maneiras de ser, que facilitaria a expressão de singularidades, a confecção
de laços sociais pela aprendizagem recíproca e a livre navegação dos saberes (LÉVY, 1999:
196). Os sujeitos do espaço-tempo clássico não apareceriam mais ―como figurinos sólidos
postos sobre territórios bem recortados, mas como distribuições nômades correndo sobre um
espaço de fluxos‖ (LÉVY, 2003: 137). Em outras palavras, a cibercidade é o espaço de
habitação dos ―imigrantes da subjetividade‖ (LÉVY, 2003: 14), que habitam, portanto, todos
os meios com os quais interagem.
4.8 Redes Complexas
Vários autores têm se dedicado a estudar o fenômeno das redes (network). As
descobertas neste campo nos surpreendem, pois nem sempre seguem o raciocínio linear.
Albert-László Barabási, professor de física na Universidade de Notre Dame, é um pesquisador
que tem se dedicado a demonstrar o que são redes, como se formam e se desenvolvem. Seu
livro linked, relacionado nas referências deste trabalho, tem um subtítulo esclarecedor: como
tudo está conectado a tudo e suas conseqüências para o trabalho, a ciência e a vida do dia-a-
dia. As descobertas inovadoras são tantas que ele indica como propulsoras de uma nova
revolução científica (BARABÁSI, 2003). A emergência da complexidade
87
tem-nos colocado
87
De modo geral, o termo complexidade refere-se ao limiar a partir do qual não é mais possível colocar os
elementos de um sistema em relação uns com os outros, tornando impossível explicar seu comportamento
147
diante de uma nova realidade, em cujo cerne está a compreensão de que vivemos em um
mundo pequeno e interconectado, no qual sistemas tão diferentes quanto a economia, a célula,
as malhas postal e rodoviária, o tráfego aéreo, a linguagem e a Internet apresentam
comportamentos semelhantes, podendo ser utilizados para explicar um ao outro. Na verdade,
isso é possível porque esses diferentes sistemas possuem uma organização comum: a das
redes.
Podemos considerar que ―as redes estão em toda parte‖: desde o cérebro como rede de
células nervosas conectadas por axônios, passando pelas sociedades rede constituída por
pessoas vinculadas por laços de amizade, familiares, profissionais, etc.-, até a linguagem, que
é uma rede composta por palavras conectadas por padrões sintáticos
88
.
As redes complexas são definidas por possuírem um número de conexões muito
elevado, por não apresentarem padrão previsível na sua estrutura, e cada pode portar uma
quantidade diferente de links.
4.8.1 Redes aleatórias
A teoria das Redes Aleatórias admite um sistema resultante democrático, onde
supostamente a maioria dos nós existentes possui uma quantidade muito parecida de
conexões, e o número de links extremamente fora da média são raros.
Dentro da teoria das redes aleatórias temos a formulação dos clusters, que são redes
densamente interconectadas, formadas a partir da adição progressiva de links e a junção de
nós que formam um enorme aglomerado, caracterizado pelo fato de que cada tem em
média um link.
observável a partir de sua decomposição ou de suas regras internas de funcionamento. A respeito da inserção de
tal lógica no pensamento científico, vale considerar aqui a proposta do sociólogo francês Edgar Morin, que
associa a complexidade a uma série de eventos e descobertas do final do século XIX que, colocados em questão
no século XX, provocaram uma verdadeira revolução científica ao abalarem séculos de racionalismo e
determinismo baseados na certeza do experimento científico em prol de uma concepção de mundo que considera
a imprevisibilidade, a indeterminação, o caos e a auto-organização ( MORIN, 2006).
88
Revista Scientific American ano 2, 2003, número 13, página 64. Artigo: Redes sem escala. Autores: Albert-
László Barabási e Eric Bonabeau
148
Tomemos como exemplo a hipótese do ―mundo pequeno‖ desenvolvida por Stanley
Milgram, psicólogo social de Harvard, que articulou a idéia de que uma pessoa pode ser
ligada a qualquer outra no mundo através de, no máximo, cinco links. Através de um estudo
89
,
ele encontrou um valor relativamente pequeno para a distância existente entre quaisquer duas
pessoas no espaço de estudo selecionado: em média, 5,5 pessoas. Apesar deste trabalho ficado
inconclusivo devido ao pouco número de cartas que chegaram ao destino final, o interesse
despertado por tal idéia vem do fato de que mesmo grandes dimensões podem ser conectadas
por um número muito pequeno de links.
Um outro exemplo muito utilizado dentro da rede social é o seguinte: se você conhece
aproximadamente mil pessoas, que conhecem também cerca de mil pessoas (utilizando
didaticamente a hipótese de que são desconhecidas entre si) - você estará distante a apenas
dois apertos de mãos de um milhão de pessoas, e a apenas três apertos de mãos de um bilhão.
Seguindo este raciocínio, a população toda do planeta estará separada de você por quatro
apertos de mão. Assim, vivemos em um small world, em que duas pessoas podem ser
facilmente ligadas a despeito dos quase seis bilhões de nós da rede que as circunscreve.
Entretanto o padrão das redes aleatórias não se aplica a muitas das situações que são
evidenciadas na prática do dia a dia. Por exemplo, vemos que no caso de uma cidade, muitas
vezes o seu comércio se concentra preferencialmente em determinadas ruas, em detrimento de
outras, não guardando nenhuma correspondência de uma resultante democrática para com
todas as ruas da cidade. Estas situações seguem outro padrão, o das redes sem escala.
89
―Em 1967(...) enviou centenas de cartas a pessoas em Nebraska, pedindo a elas que reenviassem a
correspondência a conhecidos que pudessem fazê-la chegar mais perto de um destinatário alvo: um corretor de
valores em Boston. Para seguir o rastro de cada um dos diferentes caminhos, Milgram pediu aos participantes
que lhe enviassem de volta um cartão quando encaminhassem a carta a outra pessoa. Milgram descobriu que as
cartas que acabaram chegando ao destino haviam passado por uma média de seis pessoas a base do conhecido
conceito de ―seis degraus de separação‖ entre todas as pessoas.‖(BARABASI, A &BONABEAU,Eric, 2003:71).
149
4.8.2 Redes sem escala
Albert-László Barabási, Réka Albert e Hawoong Jeong, da universidade de Notre Dame,
tendo em vista inicialmente o funcionamento das redes aleatórias, em 1998 entraram num
projeto de mapeamento da World Wide Web. Ao contrários das expectativas, o resultado desta
pesquisas mostrou um modelo diferenciado, onde um número muito pequeno de ginas na
Web concentra um enorme número de conexões e um número muito grande de páginas,
aproximadamente 80% tinha menos de quatro links.
Esta desproporção é a característica da estrutura das redes sem escala, que também
explica muitas situações de nossa vida cotidiana, onde os nós mais conectados têm a
tendência de serem os mais procurados. Assim, as Redes sem Escala apresentam um modelo
onde um número pequeno de nós concentra uma enorme quantidade de conexões com outros
nós e um número muito grande de nós tem poucas conexões. Este modelo introduz um novo
elemento: os conectores ou hubs - nós com uma quantidade excepcional de links que estão
presentes em diversos sistemas.
A topologia das redes sem escala também determina duas outras de suas características:
a resistência contra falhas e a suscetibilidade a ataques. Ao contrário do que acontece em uma
rede aleatória, as redes sem escala não se desintegram facilmente quando um determinado
número de nós, diferente para cada rede considerada, é retirado de sua estrutura. Ao contrário,
elas exibem uma incrível capacidade de readaptação e reorganização, o que as torna
extremamente robustas. Os hubs são os responsáveis por esta manutenção da conectividade,
uma vez que a probabilidade de uma falha atingir um dos numerosos pequenos nós é bem
maior do que para algum dos poucos hubs. No entanto, o preço que se paga por essa robustez
é a extrema vulnerabilidade a ataques coordenados. Por mais que não seja uma tarefa fácil, a
ação de desabilitar vários de seus hubs de maneira simultânea teria um efeito destruidor para
150
uma rede sem escala, comparável ao fechamento simultâneo dos principais aeroportos de um
país ou à interdição simultânea das principais ruas e avenidas de uma cidade.
Estes e outros estudos relacionados às redes trazem nova compreensão dos fenômenos
ao nosso redor. Podemos conjeturar que nosso universo interconectado não é aleatório,
mediano e muito menos democrático. No entanto, se os avanços na compreensão da topologia
das redes é grande, ainda há muito a se investigar sobre os mecanismos internos e as
dinâmicas que tomam lugar nessas estruturas tão peculiares. Para o urbanismo, essas novas
perspectivas podem trazer progressos para a compreensão dos diferentes processos e
mecanismos que se interconectam, dando uma nova compreensão ao entendimento das
articulações que estão em jogo ao considerarmos o conceito de cidade.
Por enquanto, os desenvolvimentos supracitados permitem aplicações que ajudam a
compreender a dinâmica do cotidiano das pessoas e dos centros urbanos. Uma delas seria a
possibilidade de se classificar os cidadãos contemporâneos segundo o grau de conexão que
cada um porta. Considerando as redes urbanas interpenetradas pelo espaço informacional,
podemos relativizar os vínculos sociais quanto ao pertencimento geográfico a uma mesma
cidade. Sob esta perspectiva, na rede de nossa sociedade teríamos aqueles cidadãos com um
número excepcional de links incluindo conexões com muitas pessoas em diferentes lugares
do mundo enquanto a maioria dos cidadãos possui apenas alguns poucos links. Esta
organização está presente também na rede de conexões que cada pessoa porta, o que se traduz
não apenas em termos de vínculos sociais ou de conexões geográficas, mas também em
situações diversas. Assim, algumas poucas pessoas são tipos sociais largamente influentes
têm mais conhecidos, mais contatos profissionais, mais oportunidades, mais informação,
diversos gostos, interesses e possibilidades de consumo etc. , ao passo que a maioria das
pessoas possuiria apenas um número razoável destas conexões.
151
As redes sem escala o parte integrante de nossa realidade, e atuam de maneira
determinante em diversas esferas de nossas vidas urbanas. Elas expressam nosso
relacionamento com o espaço das cidades e com as diversas redes que o compõem, sejam elas
sociais, informacionais, afetivas, ecológicas, políticas, de transporte e deslocamento etc.
Dessa maneira, nós nos constituímos como as cidades que atravessamos diariamente, como
conjuntos de fluxos, relações de poderes e forças. Assim como a cidade, também somos redes
de formações, campos de força constantemente colocados em jogo, à medida que nos
conectamos com os espaços, de maneira imbricada e interdependente. São essas situações
relacionais que borram os limites e dissolvem as fronteiras que nos separam da cidade.
152
DESCARTES (1596-1650)
França
Eu substância individual isolada
de outras substâncias ou eus.
Eu-substância = Eu-indivíduo = Eu-
pensante: sujeito e autor de suas
idéias
Suposto idêntico a si mesmo:
identidade absoluta e permanente do
Eu.
Sobreposição da noção de Eu com a
de Sujeito: Sujeito substancial.
Conhecimento é relação entre
sujeito e objeto.
SUJEITO OBJETO. Processo
de conhecimento a partir da natureza
do objeto.
Avalia o conhecimento humano em
referência ao modelo de
conhecimento realizado por um
pensamento absoluto e divino:
modelo teocêntrico.
Mente e corpo são realidades
distintas: a mente como coisa
pensante (res cogitans) e a matéria
como coisa extensa(res extensa).
KANT (1724-1804)
Prússia/Alemanha
Autonomização do sujeito Sujeito
como lei de suas operações.
Sujeito kantiano conjunto de
regras pelas quais os fenômenos
podem ser conhecidos.
A unidade subjetiva da consciência
(sujeito transcendental) é que
possibilita o conhecimento dos objetos
em geral.
Sujeito do conhecimento é a
capacidade a priori de conhecer
Sujeito Transcendental
Conhecimento é relação entre
sujeito e objeto.
SUJEITO OBJETO. Processo
de conhecimento, a partir do poder de
conhecer do sujeito. A estrutura da
mente é a fonte das condições
necessárias ao conhecimento.
O conhecimento é representação
estritamente humana e subjetiva,
independente de qualquer ordem
divina: modelo antropocêntrico.
FREUD (1856-1939)
Áustria
Eu tem o papel de mediador dos
conflitos. Desempenha a função de
ligação com o mundo e com os
chamados estados internos.
Eu não é algo estável e substancial
que permaneça idêntico a si mesmo
ao longo da diversidade de suas
experiências.
Eu é efeito da complexidade da
determinação Inconsciente.
Descentramento da consciência
Freud propõe um aparelho que
envolve sistemas distintos e com
princípios de funcionamento diversos:
o isso, o eu e o supereu.
Homem não é mais fundamento do
conhecimento e de si mesmo. Não se
trata mais de subjetividade, nem
particular, de cada indivíduo, nem a
subjetividade transcendental,
universal do homem.
Não há mais conhecimento
entendido como domínio de objetos
por um sujeito soberano ou
autônomo.
A experiência engendrada pelo
inconsciente derroga raciocínios que
afirmem qualquer centramento ou
ponto de referência fixo.
A distinção mente-corpo perde
sentido coma proposição do conceito
limítrofe de pulsão.
Ludwig von Bertalanffy (1901-
1972) Austria
Eu é operação sistêmica, que
dinamicamente totaliza um complexo
estruturante e funcional, aberto à
possibilidade de troca e
transformação.
Eu é uma totalidade sistêmica
que preside à soma dos componentes
biológicos, culturais, lingüísticos,
psíquicos, que o constituem;
Cidade totalidade sistêmica que
preside à soma dos serviços,
informações, pessoas e bens que a
constituem.
Sistema toda forma de
organização cujo comportamento se
descreve a partir da interdependência
entre suas partes componentes (malha
viária, seres vivos, sociedades, etc).
Sistemas podem ser abertos ou
fechados e são delimitados por
fronteiras.
Teoria Geral de Sistemas
conjunto de relações interativas
particulares onde a resultante global
da operação excede as razões locais
de seus componentes.
Analogia como instrumento
heurístico constitutivo de qualquer
conhecimento.
Funcionam com auto-regulação e
controle, transformando-se mediante
sua capacidade intrínseca de
permanente regeneração e adaptação
ao longo do processo de troca com o
ambiente.
4.9 QUADRO RESUMIDO
153
Humberto Maturana e Francisco
Varela (1928 -; 1946-2001) Chile
Eu resultante existencial de
organização e estabilidade que se
molda no processo de sua própria
produção e transformação as
comunidades que freqüento, os
vínculos que estabeeço,os espaços
que circulo-, sua fronteira sendo uma
função de sua competência mutante.
Eu é pura operação recursiva,
cuja recorrência estabiliza e cria
coerências comunicacionais nos
diversos acoplamentos sociais e
lingüísticos que dele participam e dos
quais ele é resultante.
Autopoiése: rede de processos de
produção, transformação e
destruição, cujos componentes
reproduzem permanentemente, por
suas interações, a própria rede que os
produziu.
Sistema autopoiético produção
de si próprio de modo contínuo.
Só há relações e seus termos são
imanentes ao próprio sistema
autopoiético, que é, no mesmo ato,
produtor e produto.
Fronteiras que integram e resultam
da própria organização autopoiética.
Circularidade: inseparabilidade
entre o ser humano e o mundo (entre
eu e cidade, portanto).
Gilles Deleuze e Félix Guattari
(1925-1995; 1930-1992) França
Rizoma: teoria das multiplicidades.
Sistema a-centrado, não hierárquico e
não significante, que se define
unicamente pela circulação de
estados de um ponto a outro
qualquer. Opção pelo nomadismo;
renúncia à ontologia, ao fundamento,
ao fim e ao começo; a escolha do
estar entre.
Multiplicidades prescindem de
qualquer unidade, totalidade ou
dualismo, sem sujeito nem objeto, a-
centrada. Definem-se pelo fora,
mudam de natureza ao se conectarem
às outras.
Princípio de conexão qualquer
ponto de um rizoma pode ser
conectado a qualquer outro.
Heterogeneidade as conexões se
dão entre modos de codificação muito
diversos.
Ruptura a-significante um rizoma
pode ser rompido ou quebrado em
um lugar qualquer, e retomado
segundo alguma de suas linhas ou
mesmo de uma outra linha. Processo
de desterritorialização e
reterritorialização.
Fazer rizoma é construir um mapa a
partir da experimentação ancorada
no real. Mapa aberto, construído,
desmontável, reversível e conectável
em todas as suas dimensões, com
múltiplas entradas e saídas, suscetível
de receber modificações
constantemente. Questão de
performance e não de competência.
Pierre Lévy (1956-) Tunísia
Informatização digital mutação
antropológica: afeta a informação, a
comunicação, os corpos, o
funcionamento econômico, os quadros
coletivos da sensibilidade, o exercício
da inteligência.
Três pólos do espírito: a oralidade
primária, a escrita e a informática,
Quatro espaços antropológicos: a
Terra, o Território, a Mercadoria e o
Saber.
Oralidade primária / Terra
hipertextos próximos, significações
cerradas e velocidade de metamorfose
baixa.
A escrita correlata da agricultura
enquanto tecnologia de sedentarização,
fixação e separação. Desterritorializa a
fala, separando-a do corpo vivo, e a
sedentariza, por reinscrevê-la em um
suporte inerte.
Espaço das mercadorias princípio
organizador é o fluxo: de energias,
matérias-primas, mercadorias, capitais,
mão-de-obra, informações.
Terceiro tempo do espírito rede
digital ou pólo informático-midiático.
Espaço do saber. Transformações
sociais e cognitivas propiciadas pelas
novas tecnologias de base digital.
Ciberespaço mundial no qual todo
elemento de informação encontra-se em
contato virtual com todos e com cada
um. Cibercultura pulverizou os
pólos de concentração, totalização e
universalização. Colocou tudo e todos
em conexão e interatividade.
Cibercidade espaço de habitação
dos imigrantes da subjetividade que
habitam, portanto, todos os meios com
os quais interagem.
Albert-László Barabási (1967-)
România
Diferentes Sistemas (a cidade, a
economia, a célula, a malha
rodoviária, o tráfego aéreo, a
linguagem e a Internet) organizados
por redes, apresentam
comportamentos semelhantes,
podendo ser utilizados para explicar
um ao outro.
Redes Complexas modelam
grandes sistemas, muitas conexões
cuja estrutura não segue um padrão
regular, uma vez que cada nó possui
um número diferente de links.
Redes Aleatórias aborda a
complexidade a partir da
aleatoriedade. Universo democrático
em que predominam as médias.
Redes sem escala sistemas que
apresentam uma quantidade enorme
de nós com poucas conexões, e alguns
poucos nós (hubs), que são pólos de
irradiação e convergência, com uma
quantidade enorme de conexões com
outros nós. Resisência contra falhas e
vulnerabilidade a ataques
coordenados.
Nosso universo interconectado não é
aleatório, mediano e muito menos
democrático.
Assim como a cidade, também
somos redes de formações, campos de
força colocados em jogo
constantemente à medida que nos
conectamos com os espaços, de
maneira imbricada e interdependente.
Estas situações relacionais que
borram os limites e dissolvem as
fronteiras que nos separam da cidade.
154
4.10 - Considerações
Apresentamos alguns entendimentos do conceito de ―eu‖, tanto a partir do
entendimento do conceito de sujeito, quanto de algumas formas de articulações de
pensamento.
Deste modo vimos em Descartes a noção moderna de sujeito, e o entendimento de um
sujeito corporificado identificado a um Eu individual. Com essa sobreposição da noção de Eu
com a de sujeito, e a configuração de um sujeito concebido como autor e centro de comando
dos atos e pensamentos de alguém, temos o individualismo que caracterizou o idealismo
moderno.
Até Kant, ao explicar o conhecimento, fazia-se a suposição de que o sujeito buscava
no próprio objeto o entendimento deste último, o objeto era considerado como uma substância
em (REALE & ANTISERI, 2004: 352). Kant, de modo inovador, inverteu esta relação
entre sujeito e objeto, e afirmou que o objeto é constituído pelo sujeito, que ―das coisas não
conhecemos a priori a não ser o que nós mesmos nelas colocamos, e portanto o fundamento
dos juízos sintéticos a priori é o próprio sujeito com as leis de sua sensibilidade e de seu
intelecto‖ (REALE & ANTISERI, 2004: 352). É grande a importância desse deslocamento,
pois dele decorre o entendimento da autonomização do sujeito e, conseqüentemente, da
concepção de sujeito transcendental kantiano. Nesta situação, o sujeito toma a si mesmo como
lei de suas operações, e é ele que produz o entendimento do objeto. Mas, o que mais nos
interessa é que, até esta época, estamos tratando especificamente de sujeito e objeto
discerníveis e separados.
Como vimos, em Freud uma completa revolução de todo o entendimento de Eu
construído até ali. Recusa-se a crença de que o eu seja algo estável e substancial que
permaneça idêntico a si mesmo ao longo da diversidade de suas experiências o eu é, antes, o
efeito da complexidade da determinação inconsciente. Para a psicanálise freudiana não se
155
trata mais de subjetividade, nem particular, de cada indivíduo, nem a subjetividade
transcendental, universal do homem. A experiência engendrada pelo inconsciente derroga
raciocínios que afirmem qualquer centramento ou ponto de referência fixo. A crença em
fundamentos é destronada, o eu, racional e metódico, é deslocado e não pertence mais a
nenhuma subjetividade, psicológica ou transcendental. A posição da psicanálise não acarreta
apenas a revisão da idéia do homem como centro do mundo; ela contesta a própria idéia de
que o mundo tenha um centro ou unidade. Assim, não o privilégio do eu, mas um certo
modo de pensar por fundamentos, característico do pensamento ocidental, é colocado em
xeque
90
.
Na continuidade do alargamento, descentramento, e dissolução do conceito de ―eu‖
temos a contribuição de outros autores contemporâneos. Com a TGS temos a introdução
daquilo que hoje é banalizado pelo entendimento das redes, que é a interdependência, a
interação e as propriedades de organização em modo sistêmico e relacional. Este raciocínio é
particularizado pelo entendimento de autopoiesis, onde o conceito de circularidade torna
indistinguível produtor e produto; não separação entre sujeito e objeto, donde podemos
pensar conceitualmente a inseparabilidade entre cidade e eu.
O conceito de rizoma nos permite apreender a realidade contemporânea como múltipla
e descentrada, arranjo aberto e infinito de fragmentos autônomos interligáveis em rede e sem
ponto fixo de origem e convergência, onde a Multiplicidade nos remete a compreensão da
enorme quantidade de fatores que nos afetam e nos constituem enquanto vivos. Já o hipertexto
e a inteligência coletiva de Lévy nos situam diretamente no ambiente informacional das redes
virtuais que vêm sendo analisadas e caracterizadas pelas suas configurações que podem fugir
a qualquer previsibilidade.
90
Contemporaneamente ao surgimento da psicanálise, esforços semelhantes ocorreram no campo da física.
Noções como identidade, não-contradição, determinismo, localidade, temporalidade, unidade ontológica,
conservação de energia foram problematizadas pela teoria da relatividade. O desenvolvimento tecnológico por
outras vias compartilha do mesmo pressuposto.
156
Nosso objetivo é entender que, assim como o ―ser‖ urbano passou por profundas
modificações em um processo crescente de desmaterialização desde a cidade medieval,
onde a muralha deixou de ser não apenas o marco divisório entre cidade e o espaço que não
lhe pertence, como também sua segurança conceitual, definindo-lhe o ―próprio ser‖
(LEPETIT, 2001: 252), e do advento da cidade industrial, no século XIX, à cidade
contemporânea com a desmaterialização das fronteiras que, substituindo a muralha, foram
forjando a definição do urbano em uma perspectiva cada vez maior de comunicação e
mobilidade de bens, informações e pessoas (ASCHER, 2001) , do mesmo modo o ser
―urbano‖ que, como habitante, interagiu com esse espaço urbano progressivamente
desmaterializado, também experimentou, no mesmo processo e concomitante a ele, a
vertigem de descentralização e multipertencimento, sendo levado a deixar para trás o lugar de
sujeito indiviso e permanente, espécie de coordenador-chefe de suas ações.
Nossa intenção, neste capítulo, foi fornecer dados que possibilitassem acompanhar o
processo de descentralização e fragmentação da noção de ―Eu‖. De outro modo, no segundo
capítulo procuramos mostrar o processo de explosão semântica e conceitual da idéia de
cidade. Posto isto, cabe perguntar: o estado fluido do espaço urbano ainda daria abrigo a
algum ―sujeito‖ ou ―indivíduo‖, habitantes da cidade planejada, previamente normatizada e
cartesianamente setorializada consoante funções específicas e não reversíveis entre si?
Provavelmente não conseguimos mais nos imaginar na pele do cidadão ocupando posições
estanques na família, no lazer, no trabalho, no turismo das estações do ano, alguém que
depende exclusivamente da comunicação cabeada, do guia rodoviário ou do jornal impresso.
Contudo, esse mundo, num passado próximo quando nos colocávamos como sujeitos
autônomos e coordenadores centrais de nossas ações, acompanhando, da mesma maneira, os
acontecimentos do mundo, na política, na economia ou nas artes forneceu significação a
milhões de pessoas no planeta. Conceituados como indivíduos, carregávamos a auto-imagem
157
de sermos um ponto indiviso, unidade mínima e irredutível sustentada na figuração corporal,
cuja individualidade nos é aparentemente assegurada, de modo inquestionável, pela imagem
especular. Átomos do tecido social, numericamente distintos e valorizados um a um, no
âmago dessa existência provavelmente nos sentimos um dia intocados e protegidos dos
avanços da esfera pública, e ao mesmo tempo prontos a celebrar as conquistas sociais como
vitória do indivíduo.
Nada muito diferente se passa quando nos concebemos sujeitos, na boa e velha
tradição ocidental. Dos antigos aos modernos, construímos a idéia de subjetividade a partir da
idéia de subsistência de si e de uma consciência unificadora disso, que afirma sua identidade
no tempo, suporte essencialmente imutável provido de características tão somente acidentais e
cambiáveis percepções, gostos ou afetos. Garantida por ato divino ou não, o fato é que,
durante séculos, fomos orientados pela noção de sujeito como substância apta a existir por si,
suporte de atribuição de qualidades, substrato, sub-jectum, fundamento, mediante a qual
construímos a auto-imagem de ocuparmos posição central de base, espécie de cabine de
comando central de nossos atos e pensamentos
91
.
No próximo capítulo, pretendemos apresentar o conceito de Eu = Pessoa como o Pólo
de formações que o constitui, transformando-se em rede que hoje já não é mais possível de ser
descrita em termos limitados de relações de horizontalidade (eu tu) ou de verticalidade
(transcendente absoluto de rosto definido), incluindo os corolários que daí se seguem.
Pretendemos mostrar a pertinência, adequação e funcionalidade da proposição A cidade sou
eu para as discussões contemporâneas travadas no urbanismo. Para isso, utilizamos uma teoria
de suporte capaz de nos fornecer a ferramenta heurística para construir a tese A cidade sou eu
e nos autorizar a pensar, mediante as propriedades da Pessoa, o que seja Eu habitante desse
espaço urbano informacional, videótico e videófilo, non stop, globalizado, controlado, digital,
91
Cf. verbetes ―indivíduo‖, ―substância‖ e ―sujeito‖ em ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São
Paulo: Martins Fontes, 2003 e FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola,
2001.
158
instantâneo, e-tópico e distópico, em síntese, a equivalência Eu = Pessoa, construída nos
termos da Nova Psicanálise, base conceitual para essa reflexão, conceituação e demonstração.
Isso é o que veremos a seguir.
159
5 O CONCEITO DE PESSOA SEGUNDO A NOVA PSICANÁLISE
Chegamos ao ponto que particularmente interessa a este trabalho. Com o objetivo de
demonstrar a pertinência e adequação da proposição A cidade sou eu para as discussões
contemporâneas travadas no urbanismo, vamos especificar o conceito de Eu que base e
sustentação à nossa tese e que foi formulado de modo original pela teoria NovaMente ou
Nova Psicanálise
92
, desenvolvida, a partir dos anos 1970, pelo psicanalista brasileiro MD
Magno. Nossa intenção não é apresentar o arcabouço desta teoria para tanto, diversos
livros publicados
93
e várias dissertações de mestrado, teses de doutorado e trabalhos de pós-
doutorado defendidos -, e sim tomar pontualmente algumas características do conceito de Eu
trazido por este aparelho teórico-clínico. É redundante afirmar que a apresentação de parte de
uma teoria envolve uma redução. Desse modo, para um entendimento mais abrangente,
sugerimos que se pesquise diretamente na obra original.
Como vimos, a noção a que correntemente nos referimos como Eu, sujeito, indivíduo
ou mesmo subjetividade é uma herança da matriz greco-judaico-cristã. Originalmente
hipokeimenon em grego e subjectum em latim, o sujeito denotaria algo subjacente, que
―estaria por trás‖. De outra forma, sujeito também é a noção desenvolvida a partir da
gramática aquele de quem se fala, que tem atributos e predicados e que pode perfeitamente
ser uma coisa. Assim, acabamos por absorver acriticamente esta noção, que nos é imposta
cotidianamente de maneiras diversas, seja através da crença na separação entre corpo e alma
(o subjectum como um homenzinho que se exprime dentro de nós), seja na prática da língua
(herança do grego e do latim) com sua função reflexiva, com seus sujeitos gramaticais e com
92
Teoria criada pelo psicanalista MD Magno na linhagem de Freud e Lacan, é uma reedificação da psicanálise
com base nos mais importantes achados desses dois mestres, e tem se mostrado compatível com a situação atual
do mundo e com teorias científicas contemporâneas.
93
MD Magno organizou 22 seminários no Rio de Janeiro entre 1976 e 1998, proferiu um conjunto de oito
―Conferências Introdutórias à Nova Psicanálise‖, realizadas em 1999, e desde 2000, vem ministrando palestras
na forma de Falatório, nas quais trata da elaboração do campo da Nova Psicanálise. Alem dessas iniciativas,
MD Magno desenvolve, mais de 40 anos, atividades de ensino, trabalho analítico, oficinas clínicas, palestras,
intervenções públicas, vídeos, atividades bissextas em música, pintura e literatura. A maioria dos Seminários e
Falatórios está publicada, conforme a bibliografia desta tese atesta.
160
sua distinção entre sujeito e objeto. Mas, por outro lado, também vimos que algum tempo
vários autores abandonaram a noção de sujeito, e estão trazendo raciocínios cada vez mais
acentrados, relativizantes, relacionais, sistêmicos e sem distinção entre sujeito e objeto. Deste
modo, se por hábito, ou por causa da gramática, ou da língua, ainda nos referimos como se
estivéssemos no século XVII, cada vez mais o funcionamento das práticas de existência no
mundo contemporâneo se distanciam de quaisquer das características dessa época e, os
pensamentos considerados de ―ponta‖ partem desta nova configuração e, como vimos,
estão criando diversos novos conceitos para dar conta da nova realidade. Por este motivo, para
definir nosso conceito de cidade, fomos buscar um conceito de eu compatível com as
transformações em curso.
Nesta teoria, a noção de sujeito é repensada e preterida, dando lugar a uma nova
proposição que se afasta tanto da noção de indivíduo quanto das concepções correntes a partir
das quais se aborda o sujeito. Propõe-se, em seu lugar, o termo Pessoa
94
―processo sem
sujeito, no sentido de sem nenhum centro de enunciação‖
95
em sinal de afastamento em
relação às denominações usuais, carregadas fortemente por conotações cristalizadas durante
séculos na tradição da filosofia cristã. Mas, esta não é a única diferença conceitual, se fosse,
poderíamos nos utilizar de outros conceitos de outros campos que já se configuram assim. Por
este motivo, pretendemos, no decorrer deste capítulo, mostrar mais algumas características
desse conceito de pessoa trazido pela Nova Psicanálise que nos autorizam a encaminhar a tese
A Cidade sou Eu.
Para o desenvolvimento que interessa a este trabalho, vamos destacar que, segundo a
Nova Psicanálise, o conceito de Eu equivale ao de Pessoa e pode ser definido
96
pelos
94
É importante nos remetermos ao primeiro capítulo deste trabalho, na página 15, onde afirmamos que ―diversos
conceitos podem ser expressos pelo mesmo nome‖. Assim esclarecemos que, apesar do termo pessoa‖ ser
carregado de uma série de significações pregressas, aqui ele ganha uma conceituação original.
95
MAGNO, MD [2004a] Falatório 21 de agosto de 2004. Parágrafo132 (no prelo).
96
Definições retiradas de MAGNO, MD [2004a]. Falatório de 14 e 21 de agosto de 2004, no prelo; MAGNO,
MD, 2007: 109, 190-195; MAGNO, MD [2007a]. Falatório de 2007, A Rebelião dos Anjos, no prelo.
161
seguintes atributos (que desenvolveremos mais adiante): 1 - pela conjunção das Formações
Primárias + Formações Secundárias + Formação Originária, que nas suas articulações
constituem uma rede; 2 - é um Pólo com Foco, Franja e Fundo; 3 - Pessoas são Idioformações
do caso humano; e 4 - Pessoa existe na ordem do Ser e na ordem do Haver. Nossa
intenção é articular os itens acima de modo a possibilitar um determinado entendimento deste
conceito.
5.1 A equivalência Eu = Pessoa
O conceito de Pessoa, tal como trazido pelo Personalismo
97
, abrange um rol de
significações que vão desde a noção etimológica básica de ―máscara‖ até a noção mais ampla
de homem (no sentido de humanidade), passando por indivíduo, sujeito, relação, comunidade,
diferenciação, sob a égide da abertura para a relação, que constitui a singularidade da Pessoa.
Ao explorar o conceito de Pessoa, tornando-o equivalente ao de Eu, MD Magno faz um
deslocamento radical, conferindo um entendimento original a este conceito, apostando na
maior inteligibilidade que isso pode trazer para o manejo das discussões contemporâneas, na
qual a questão da cidade está imersa. O que se tem em mira é a criação de um espaço
conceitual compatível com a perspectiva contemporânea da informação, da rede, da
conectividade e dos fluxos, mais próximo do que o campo psicanalítico concebe como sendo
a movimentação atectônica do inconsciente ou do psiquismo. O próprio autor chamava
atenção para o fato em 1992, em seu Seminário Pedagogia Freudiana:
Eu diria mesmo que o discurso de Freud, em função de sua época, das
coletas teóricas que fez, é inteiramente tectônico. É uma arquitetura com
chão, com força de gravidade regrando os arcobotantes, as cúpulas, e
sobretudo organizando as fundações num terreno até mesmo pouco regrado
pelo próprio discurso dele, tomado de empréstimo de uma arqueologia um
pouco antiga. É como se o sistema freudiano fosse um aparelho geocêntrico:
tudo se encaminha gravitacionalmente para a base, para o centro de um
planeta (MAGNO, 1993: 3).
97
Vide Anexo 2.
162
A reformulação que a psicanálise sofre com Jacques Lacan entre as décadas de 1950 e
de 1970 é vista por MD Magno como um deslocamento desse geocentrismo para um
heliocentrismo, à medida que Lacan devolveu movimento às forças psíquicas, ainda que
dando foco lingüístico à elipse de seu sistema heliocêntrico. Ele prossegue:
(...) quer me parecer necessário e urgente montar um aparelho absolutamente
atectônico, nem geocêntrico, nem heliocêntrico, mas que pudesse e o
golpe pode deixar de ser kepleriano e passar a ser einsteiniano, se quiserem
como metáfora passar a ser centrado num relativismo radical das energias
que sustentam o grande sistema do universo pensante da psicanálise
(MAGNO, 1993: 4).
Ora, um dos aspectos da atectonia da psicanálise é o modo como concebe o que seja
Eu equivalente à Pessoa. De um lado, reconhece que os esforços da psicanálise pregressa em
abstrair a velha noção freudiana de Ego, partindo para a concepção mais abstraente de Sujeito,
não mais se sustentam. Diante da idéia contemporânea de informação pólo tradutor das
formações
98
que se apresentam em qualquer ordem, seja ela digital, analógica, mecânica,
computacional, quântica, mas também linguageira, artística, poética fica provável que a
idéia de Sujeito não conta da rede e dos fluxos de (in)formação. Não aí, como se
acreditou ao longo do século XX, um afastamento definitivo em relação ao Ego lastreado nas
aparências figurativas do corpo. Muito pelo contrário: como a configuração humana é um
corpo que, quando abre a boca, focaliza, pensamos tratar-se de um Sujeito. Mas onde? Isso é
apenas ―uma expansão sem lugar definido‖ (MAGNO, 2005: 95). Por outro lado, a formação
contemporânea enquanto sociedade em rede, informacional, videótica e videófila, non stop,
globalizada, controlada, digital, instantânea, e-tópica e distópica etc., que pode ser abordada
como rede em expansão sem centro ou lugar definido é compatível com o conceito de
Pessoa que permitirá operar o deslocamento necessário para a construção da idéia de que A
cidade sou eu.
98
O termo ―formação(ões)‖ nesta teoria é um conceito específico que desenvolveremos adiante, neste mesmo
capítulo.
163
Em primeiro lugar, cremos que os usos correntes da noção de Pessoa podem criar uma
―interface amigável‖, situando melhor o deslocamento que se quer realizar. Assim, quando
consideramos uma Pessoa, ―esquecemos de que aquilo é mero carrefour, mera confluência de
uma quantidade enorme de coisas, inclusive da corporeidade que ali está, com seus cacoetes e
particularidades biológicas‖ (MAGNO, 2005: 97), rede em aberto que perdemos de vista
quando a limitamos a um escopo que individualiza ou subjetiviza. Ao mesmo tempo, a noção
de Pessoa ao carregar o peso dos raciocínios de individuação, subjetivação, subjetividade,
sujeito, identificação etc. permite considerar o outro lado da moeda. Pois
posso me dar conta dessa suposta subjetividade quando existem
fechamentos que eliminam qualquer possibilidade agoraqui de comunicação.
Então chamamos de subjetividade o que é, na verdade, particularidade de um
conjunto fechado de formações (MAGNO, 2005: 97).
Em outras palavras, toda operação de individuação ou subjetivação é um rebaixamento
das possibilidades mais amplas da idéia de Pessoa, e indica uma operação de recalque, isto é,
de exclusão e não-conexão. Ainda sob um outro ponto de vista, a noção de Pessoa permite
certos deslocamentos, num vetor particularmente apropriado a nosso trabalho de
demonstração de que A cidade sou eu. O compromisso conceitual existente entre Pessoa e
comunidade, pelo vetor de abertura para a relação que o conceito tradicionalmente
comporta
99
, faz da equivalência Eu = Pessoa, que é rede aberta de (in)formações, uma boa
ferramenta de entendimento do que possa ser a cidade (finalmente) transformada em universo
civilizado, isto é, oikouméne
100
.
Assim, entendemos por Eu = Pessoa o conjunto infinito de formações e interesses com
competência de conexão (a outras formações e interesses), constituindo a rede ou malha que
nos afeta e locomove, hoje em dia cada vez mais qualificada no sentido de comportamentos e
99
Ver Anexo 2.
100
Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa (2001), a etimologia da palavra
ecumenismo provém do grego oikoumenikós,ê,ón, que significa ―do ou aberto para o mundo inteiro‖, através do
latim oecumenìcus,a,um, que significa ―universal, de todo orbe‖. O aspecto ―ecumênico‖ de Eu = Pessoa foi
desenvolvido por MD Magno no Falatório de2004.
164
atitudes que levem em conta (disponibilidade para) mobilidade, conectividade e comunicação.
Alguns exemplos podem nos ajudar.
Pensemos na rede profissional que constitui os personagens e fragmentos de
personagens que vestimos no cotidiano. No escritório, na visita a clientes, nos relatórios que
precisamos apresentar, nas conferências para as quais se é escalado na última hora, nas
atividades em equipe, na sala de aula, no balcão, a todo momento somos requisitados a
integrar novas informações e a nos desfazer de anteriores, de modo a dar fluxo e velocidade às
ações e tarefas de que estamos incumbidos.
O teórico da comunicação Marshall McLuhan já apontava na década de 1960 o
aspecto do ―tudoagora‖ do mundo na ―era da eletricidade‖. Com a idéia de ―Aldeia Global‖,
ele insistia no fato de que os homens encontravam-se, doravante, entrelaçados uns aos outros
pelo sistema de circuitos elétricos, o qual fazia as informações ―despencarem sobre nós,
instantânea e continuamente‖, de tal modo que ―a comunicação instantânea garante que todos
os fatores ambientais e de experiência coexistem num estado de ativa interação
(McLUHAN, c1969: 91) (grifo nosso).
Assim, a ―era da eletricidade‖ fez com que
reconhecêssemos, de uma vez por todas, o grau de interação presente entre os nossos artefatos
culturalmente construídos e os apetrechos ―naturais‖ de que somos constituídos
espontaneamente. Por isso, McLuhan pôde falar da tecnologia eletrônica como extensão de
nosso sistema nervoso central, ampliando globalmente os efeitos dessa extensão, como algo
que afeta todo o complexo psíquico e social do planeta (McLUHAN, 2000).
Com os novos suportes de gravação, transmissão e processamento de informação, o
mundo desse início de século XXI está ampliando em notável velocidade as intuições de
McLuhan. Ao mesmo tempo, o tratamento que alguns conceitos m recebido destaca
aspectos novos da idéia do artefato cultural como extensão do homem e nos ajuda a entender
165
a equivalência Eu = Pessoa. É o caso, por exemplo, da idéia de hipertexto, tal como
trabalhada por Pierre Lévy (LÉVY, 1993: 28-42). Um hipertexto é, tecnicamente falando,
um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser palavras,
páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos, seqüências sonoras,
documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens de
informação não são ligados linearmente, como em uma corda com nós, mas
cada um deles, ou a maioria, estende suas conexões em estrela, de modo
reticular. Navegar em um hipertexto significa, portanto, desenhar um
percurso em uma rede que pode ser tão complicada quanto possível. Porque
cada nó pode, por sua vez, conter uma rede inteira (LÉVY, 1993: 33).
Em outras palavras, estamos tratando Eu como rede que se comporta como hipertexto,
sem fronteira entre capacidade auditiva/visual e manipulação de documentos sonoros/escritos,
envolvendo ―corpo‖, palavras, imagens, traços de memória, afetos e sensações, e sendo
também determinado pela rede social, política, cultural, estética etc. que constitui esse Eu e no
qual ele está dinamicamente inserido. Como o próprio Lévy reconhece, ―o hipertexto é talvez
uma metáfora válida para todas as esferas da realidade em que significações estejam em jogo‖
(LÉVY, 1993: 25).
Podemos, contudo, dar ainda mais um passo. Consideremos uma atividade como
―escrever‖. Temos o texto na tela do monitor; o software utilizado; a velocidade do
processador; as anotações escritas em papel; livros abertos em consulta; memória de
informações armazenadas; teclado e mãos escrevendo; o vento que entra pela janela e o
quadro que ela desenha; a sede e o copo d‘água; o carro que passa; a cigarra que canta no final
da tarde; o ícone e/ou sinal sonoro que avisa a entrada do e-mail na caixa de mensagem; o
fluxo de palavras e frases conexas e desconexas que invadem a atenção focalizada; intenções
e desejos de significação que ficam, sem que nos demos conta (!), monitorando e invadindo
nossa atividade de reflexão, processamento e escrita... Onde está Eu?
O estado de interação ativa (McLuhan) ou hipertexto (Lévy) que constitui a rede Eu =
Pessoa revela-se, ao fim e ao cabo, um processamento sem sujeito, sem ―ator‖ da
comunicação (para utilizar os termos de Lévy), sem centro de controle ou dono. Essa rede
166
acontece à revelia do que volitivamente sabemos, sentimos, lembramos, esquecemos,
escutamos, vemos ou controlamos, pois é a versatilidade do campo em que nos movemos que
nos transforma, a cada vez e a cada caso, em Pessoas versáteis, isto é, com jeito em e para
uma dada atividade. Eu = Pessoa é indiferenciadamente todas as possibilidades de rede, em
sua materialização (orgânica, digital, mecânica, analógica, quântica) e organização
(horizontal, vertical, reticular), num conjunto que se abre ao infinito, suspendendo espaço e
tempo. Pelo viés psicanalítico, podemos acrescentar que Eu = Pessoa é também o conjunto de
formações investidas por interesse de exacerbar e extrapolar os limites que lhe são dados ou
impostos, ou seja, com disponibilidade de serem afetados por Hiperdeterminação
101
. O vetor
abstrativo da tecnologia nos mostra isso:
O que tem feito a chamada ciência, que opera mediante a técnica? O que faz
ela, ou o conhecimento de modo geral, senão tentar inventar chaves que dão
entrada para arquivos que estão fechados? Seja da estrutura do átomo, ou das
formações cerebrais humanas, ou das estrelas, etc., trata-se de inventar
chaves para invadir os arquivos. Cientistas são hackers: querem invadir o
que Deus teria fechado (...) conhecer é a invenção de chaves, gazuas, com
que invadir arquivos trancados (MAGNO, 2003: 79-80).
Por conseguinte, lidar com Eu = Pessoa envolve considerar uma rede infinita de
formações, em que acontecem passagens (arquivos trancados que se abrem). Mas também,
como vetor oposto, lidar com Eu = Pessoa envolve considerar uma rede infinita, na qual
formações enclausuradas têm o resto (da rede) excluído de si, disputando poderes de
hegemonia e de mando centralizado (rede paralisada por fechamentos de arquivos).
Essa equivalência, considerada a partir do entendimento do conceito de Pessoa, como
veremos a seguir, permitirá estabelecer este conceito de Eu como parâmetro para o
entendimento do conceito de cidade.
101
Hiperdeterminação é um conceito específico da Nova Psicanálise, que veremos mais adiante. Para
entendimento deste ponto do texto, podemos adiantar que ―para a Nova Psicanálise o que conta, antes de mais
nada, é que nossa mente produz articulação e prótese como resultado do empuxo pulsional e da
HiperDeterminação (...) é a HiperDeterminação que possibilita a criação em qualquer nível em que ela
compareça‖ (ALONSO, 2005: 143–159).
167
5.2 Pessoa = Formações Primárias + Formações Secundárias + Formação Originária
A proposta de trabalhar com formações
102
como constituindo a rede que é Eu = Pessoa
pode nos fornecer um critério de discernimento do que como constitutivo do mundo que
habitamos, podendo ser abordável mediante características como quantidade, materialidade,
complexidade, composição, emergência, ou, em poucas palavras, como porosidade e como
capacidade vinculatória que disponibilizam maior ou menor conectividade entre formações.
Assim uma formação é, pelas relações que estabelece, sempre relacional. E essas relações
podem ser de exclusão, reciprocidade, alternância e/ou complementaridade. Dependendo da
abordagem ou do entendimento, destacamos mais ou menos uma ou várias dessas
características. Portanto, considerando que tudo que se apresenta como formação, faremos
pequenas e precárias distinções, de modo que possamos pensar modos de organização
reconhecíveis. Tal abstração permite-nos um passo a mais e isso é que nos interessa:
considerar toda e qualquer formação como ―informação‖ disponível para conexão com outras,
o que nos remete imediatamente à idéia de formação como informação vinculável.
Para um entendimento amplo dos modos de organização das Formações em Primárias,
Secundárias e Originária, vamos esclarecer como são pensadas estas distinções dentro da
teoria da Nova Psicanálise.
5.2.1 Formações Primárias
Entendemos por formação primária
103
toda formação ou conjunto de formações que
associamos intuitivamente à idéia de ―natureza‖, e que corresponde às formações dadas ou
102
Trata-se do conceito de Formações do Haver. Nome dado a qualquer emergência do Haver: qualquer
configuração, qualquer coalescência, qualquer coisa ou espécie, pensamento ou ressonância que compareça é
denominado ―formação‖. Exemplos de formações: o cosmos, uma planta, um pensamento, uma equação, um
corpo, um computador etc. Formação nomeia então toda e qualquer conjuntura ou composição destacável,
descritível, ou polarizável dentro do Haver. O conceito de Haver é apresentado neste capítulo, mais adiante.
103
Uma exposição sintética do que seja a ordem das formações em seu nível Primário, Secundário e Originário
encontra-se em MAGNO, MD. A Psicanálise, Novamente, conferência 4: ―O recalque‖.
168
espontâneas, que chamaremos de artifício espontâneo
104
. Trata-se do que, como ―natureza‖ ou
artifício espontâneo, podemos arrolar no orgânico/inorgânico; vivo/não vivo; formações do
Universo conhecido ou por conhecer, em ordem macro ou subatômica; formações do planeta
que habitamos, em seu design mineral, vegetal ou animal; na ordem dos organismos vivos (aí
incluído o homem), sua constituição genética e dispositivos associados de conexão ecológica
etc.
No nível de nossa ―corporeidade‖, por exemplo, são da ordem do Primário o conjunto
de formações envolvidas nas regulações vitais que mantêm a homeostase ou homeodinâmica
do organismo, artifícios designados para resolver automaticamente, sem que se requeira razão
específica, os problemas básicos da vida, como encontrar, incorporar e transformar energia
(processo de metabolismo com componentes químicos e mecânicos), manter o equilíbrio
químico do interior compatível com o processo vital, manter a estrutura do organismo
reparando sua deterioração e defendendo-se de agentes externos de doença e danos físicos etc.
Essa ―arquitetura biótica‖ é a constituição autossomática, isto é, é o Autossoma
105
das
formações primárias. Nos seres vivos, ela se apresenta imediatamente articulada a
―programas‖ ou ―modelos‖ de comportamento, nisso que a biologia, desde Darwin, pesquisa
como sendo a etologia das espécies
106
. Portanto, o corpo humano, em nível primário, além de
104
A idéia de ‗artifício espontâneo‘ e ‗artifício industrial‘, proposta pelo psicanalista MD Magno, indica um
abandono da oposição entre o que é ‗natural‘ e ‗artificial‘, em prol de uma visão topológica e homogeneízante
dos fatos do mundo como artifício nesta teoria o princípio de artificialidade se torna genérico. Interessa aqui
destacar o aspecto articulatório que constitui qualquer artefato do mundo, seja ele recortado como um dado
físico, biológico, cultural ou tecnológico. Lidamos com formações que são articulações, isto é, sistemas de
informação (universo, vida, sociedade, ecossistemas, etc.) que se expressam com linguagem própria, mas que
podem ser transcritas uma na outra, desde que tenhamos as ferramentas cognitivas adequadas. Dadas as
contingências do aparecimento da matéria e da vida, podemos considerar o artifício espontâneo como sendo as
formações que encontramos dadas, que constituem o universo à nossa volta, das galáxias às partículas
subatômicas, da evolução da vida em nosso planeta às suas manifestações particulares, sistemicamente
organizadas, em grau maior e menor de complexidade, sejam colônias de bactérias, colméias ou bandos
organizados de primatas. O artifício industrial, por sua vez, corresponde ao plano criativo e transformador do
fazer humano, que cria sociedade, artefato, conhecimento e tecnologia como informação que se acopla, e
transcreve as informações constituintes dos artifícios espontâneos.
105
Do grego sôma, atos, significando corpo e, aqui em nosso caso, indicando a constituição de base das
formações dadas ou espontâneas como ―corpo (= soma) próprio (= auto)‖.
106
Foi o biólogo Konrad Lorenz que, no século XX, contribuiu definitivamente para sistematizar a etologia
moderna, pesquisando os mecanismos subjacentes ao disparadores seletivos de comportamento, alocando o
169
constituir-se como autossoma, têm inscrito um Etossoma, maneira de referir-se ao
componente comportamental embutido no vivo, que o determina, em escala de maior ou
menor complexidade, com maior ou menor elasticidade, a cumprir tarefas destinadas a
assegurar sua sobrevivência como indivíduo e como espécie.
No nível das disposições ou abertura para vinculação primária da espécie humana, por
exemplo, somos afetados por um conjunto de formações que, desde cedo, se estabelecem do
ponto de vista sensorial e perceptivo, através das quais a criança e com quem ela interage
constroem laços bastante fortes. São comportamentos de proximidade, contato, interações ou
expedientes imitativos ou não que criam padrões comportamentais, sem que
necessariamente se possa identificar o conteúdo de informação trocado mediante os possíveis
sinais emitidos pelo conjunto interativo. Assim, mímicas, gestos, toques, apertos, pressões
manuais, odores, sabores, vocalizações que uma relação de maternagem estabelece, por
exemplo (VIEIRA, 1983) são constitutivos de nossa rede de (in)formações, que nos marcam
sintomaticamente, que carregamos para o resto da vida e que integram portanto nossas
performances cotidianas.
Assim, se fôssemos darwinistas ―ortodoxos‖, ficaríamos satisfeitos em discernir o
nível primário de organização do que como estritamente da ordem da matéria viva, com
seus componentes genéticos, morfológicos, etológicos etc., e privilegiaríamos esse nível da
análise na abordagem das relações humanas, em nível biológico, social, lingüístico, urbano...
Se fôssemos físicos apaixonados pela possibilidade de discernir a estrutura mínima da
matéria, viva ou não, dedicaríamos nosso tempo às pesquisas no campo da mecânica quântica,
entendimento deste etograma à sua possibilidade de inscrição genética e seu entendimento na perspectiva
filogenética da espécie, portanto de sua evolução, a partir dos achados da teoria sintética da evolução. Lorenz
parte de uma base incipiente de investigação, que definiu, em 1910, o conceito de impressão, imprinting, isto é, a
idéia de um modelo comportamental que se imprimirá na espécie em algum momento, por exemplo, nos
experimentos com aves que deixam o ninho logo após a eclosão. O conceito de imprinting tentou cercar a
verificação empírica de uma determinada cola do filhote recém-nascido na sua imediata relação com as
figurações à sua volta, mormente a presença materna. A movimentação dessa figura na imediata proximidade
necessariamente dispararia, num período de tempo que se chamou ―período crítico‖, uma série de
comportamentos fundamentais para sua ulterior sobrevivência e vida adulta, sobretudo em sua performance
sexual (LORENZ, 1995)
170
atentos à possibilidade de juntar de modo coerente os resultados dessas pesquisas com
especulações cosmológicas acerca da ―origem‖ do Universo. Mas não é o caso.
A abordagem que trazemos da constituição do que seja Eu = Pessoa como rede de
(in)formações inclui o dado físico e/ou biológico como elemento constitutivo do Pólo
107
da
rede sintomática que nos determina, coerente com a postulação de uma zona franjal que é
infinita na sua perscrutabilidade e discernibilidade. Essa postura diz-nos, portanto, que é
preciso considerar como um dado de análise das relações entre formações, o nível primário de
sua organização, que participa, como arquitetura biótica e programa de comportamento, das
decisões que criaram cultura, instituições, cidades, poderes constituídos etc. Ao considerar,
caso a caso e a cada vez, o grau de comprometimento do Primário na performance do homem,
essa postura também nos ajuda a lidar com os dados novos de pesquisa que, na biotecnologia,
nas neurociências, nas ciências da computação, estão nos mostrando possibilidades de
mutação dessa mesma arquitetura biótica e desse programa comportamental.
Nossa atenção volta-se, então, para essa segunda ordem de articulação e intervenção
que constitui o espaço que habitamos: a arte ou techné que transforma o Primário,
retroalimentando-se, no mesmo ato, de suas próprias criações.
5.2.2 Formações Secundárias
Entendemos por formação secundária a formação ou conjunto de formações
fabricadas graças à competência articulatória da mente, capaz de se movimentar e criar para
além do dado espontâneo ou ―natural‖. Trata-se, em outras palavras, da capacidade
articulatória da espécie humana, que inclui sua performance lingüística, suas realizações
históricas, artísticas, institucionais, tecnológicas etc. Se, por um lado, isso significa maior
flexibilidade em relação às determinações primárias (lembremos, por exemplo, da idéia de
107
Sobre a idéia de pólo, zona focal e zona franjal aplicados ao nosso tema, ver item 5.4 deste capítulo.
171
que nossas técnicas são extensões do corpo), por outro, as relações de vinculação que nos são
dadas em nível secundário tendem a funcionar como se fossem imprintings, para usar o velho
termo da etologia. Afinal, a marca que a cultura nos imprime é tão forte que é como se
funcionássemos com um novo programa de comportamento que vai se acoplando ao primeiro
ou primário.
Chamamos de neo-etologia a esse funcionamento sintomático executado segundo os
programas de comportamento da cultura. Consideremos, por exemplo, o aprendizado de uma
língua e a dificuldade de transitar entre a língua materna e outra aprendida na idade adulta.
Não apenas podemos conjeturar quanto ao envolvimento de nossas competências primárias na
execução dessa tarefa em termos de funcionamento cerebral, por exemplo , como também
precisamos contabilizar as inibições e dificuldades inerentes à situação de estarmos
instalados sintomaticamente numa língua. Uma maneira secundária de contornarmos o
problema é inventando o dinheiro. Assim, quando viajamos, podemos até ter dificuldades de
nos expressarmos na língua local, mas, se temos dinheiro, encontramos um ―tradutor‖ que
fará as trocas necessárias, neutralizando momentaneamente a situação de inadimplência
inicial. Do mesmo modo, a tecnologia opera como um ―atravessador‖ cada vez mais neutro e
invisível no sentido de criar condições para transitarmos na rede sintomática que constitui o
espaço que habitamos. Aparelhinhos tecnológicos de comunicação e transmissão de
informação (texto, som, imagens), ligados ao trabalho, ao lazer, à vida doméstica, estão
criando novos hábitos de vida, transformando a cidade que é o espaço constituído por essa
rede de (in)formações.
172
5.2.3 Formação Originária
A formação originária é a estrutura de base do funcionamento mental da espécie
108
.
Usando como parâmetro o espaço topológico, entende-se que a performance mental pode ser
para qualquer lado porque só há um lado, e tudo que pensamos, criamos, destruímos,
desejamos, realizamos inscreve-se nessa ―cinta de Moebius‖ que é a Mente. Deste modo a
formação originária está diretamente relacionada a esta competência mental em poder
potencialmente avessar o que quer que se apresente, sempre em regime unilátero. Este
mecanismo de possibilidade de avessamento do que quer que compareça, tomado como
modelo de funcionamento mental da nossa espécie, é denominado pela Nova Psicanálise de
Revirão.
Estamos, portanto, no cerne do entendimento psicanalítico das questões relativas a Eu
= Pessoa. Por que? Porque esse pensamento considera que a singularidade da Pessoa
consiste exatamente no seu poder de ser afetada por motivações que podem extrapolar e
exceder os limites que desenham uma determinada relação e, assim fazendo, inaugurar uma
nova situação. Em termos topológicos, diríamos que para toda situação que se apresenta,
podemos requerer o seu avesso e, como numa cinta de Moebius, acompanhar a transformação
nessa superfície unilátera. Descobrirei que ―mudei‖ de lugar, ―mudei‖ de sinal (+/-), mas
continuo na mesma superfície. Desse modo, o ―outro lado‖ da questão, como se diz
popularmente, é sempre uma relação qualitativa de posição: em cada situação, encontro uma
dualidade, uma alternativa. Esta capacidade de avessar o que quer que compareça denota que
nosso psiquismo é estruturado como um espelho. Assim, de acordo com o funcionamento da
nossa mente, o que quer que a gente pense ou imagine, pode ser pensado e imaginado o seu
avesso ou seu enantiomorfo.
108
Interessa acrescentar que, para a Nova Psicanálise, este modo de funcionamento decorrente da Formação
Originária não é específico da nossa espécie. Existe homologia entre o funcionamento mental da espécie e o
funcionamento do Haver. Poderíamos mesmo afirmar que o modo de funcionamento é um só, ou seja,
replicação na mente da Pessoa da estrutura do funcionamento do próprio Haver. O conceito de Haver será
desenvolvido mais adiante.
173
Exacerbando o questionamento, posso perguntar pelo avesso de todas as situações,
pois minha mente não se fixa definitivamente em determinadas configurações. Deste modo, se
porto uma ―corporeidade‖ capaz de regulagens vitais, porto também a movimentação psíquica
de reverter a repetição dessa regulagem e, invento uma bugiganga tecnológica que refrigera o
ar segundo o meu gosto‖. Entre o dado primário da regulagem de temperatura, e o dado
secundário da invenção tecnológica Primário e Secundário no sentido em que colocamos
acima postula-se um terceiro lugar, de neutralização, que viabiliza a invenção e a criação,
que chamamos de originário.
É por termos originariamente disponibilidade para relação que efetuamos
circunstancialmente conexões. Mas é por ser pulsional- no sentido trazido por Freud-, que
essa disponibilidade ou abertura para relação torna-se absoluta. Qualquer formação pode ser
avessada para qualquer lado: fronteira pode ser avessada em fluxo; reprodução sexuada pode
ser avessada em produção biotecnológica; crescimento pode ser avessado em destruição.
Isso fica evidente na história da humanidade, diante da permanente produção de meios
e artifícios para reverter um determinado contexto dado: se não sabemos voar, inventamos o
avião; se estamos inconformados com o escuro, inventamos o fogo e a luz elétrica; se ficamos
doentes, inventamos remédios para reverter a condição física. Todos esses supostos
impedimentos são considerados impossíveis modais, isto é, são passíveis de reversibilidade.
Por mais difícil que possa nos parecer, o avessamento de uma dada situação, é uma questão de
tempo, de investimento, e de conhecimento a ser adquirido
109
. O que Eu = Pessoa ganha com
isso? A possibilidade de mutação de seu mal-estar mediante a invenção e a criação: a
quantidade e a qualidade das formações disponíveis para serem acessadas aumentam, as
alternativas se multiplicam, as saídas para os problemas aparecem, a rede sintomática se
enriquece.
109
Imaginemos o que representava para a humanidade, somente um século atrás, a idéia da possibilidade do
homem visitar a lua (!).
174
A única impossibilidade absoluta é avessar a experiência de que Hei
110
. Em outras
palavras, é absolutamente impossível, por mais que queiramos, ter como experiência estar
fora desta havência. O absoluto da relação é a exasperação por desejar ―sair‖ e isso ser
impossível
111
. Em termos bem simples, não temos como experiência fundamental nada
diferente desta havência estamos vivos. Nem mesmo morrendo, pois a morte não se
configura como uma experiência. A experiência de estar ―não vivo‖ é impossível.
5.3 - Pessoas são IdioFormações do nosso caso
A capacidade de pôr este aparelho do Revirão em funcionamento e esta ocorrência
se constata toda vez em que surge uma nova articulação que escapou das configurações
corriqueiras de mundo é denominada Hiperdeterminação. Vale dizer, hiperdeterminação é a
determinação de última instância capaz de indiferenciar
112
e suspender as determinações
dadas e inaugurar uma nova situação e uma nova articulação. Esta possibilidade está
disponível para qualquer um de nós, pois parte-se da suposição de que portamos este Revirão
como modelo que funcionamento da nossa mente.
Para a Nova Psicanálise, esta característica vai definir um conceito de espécie.
Segundo o qual, o que nos qualifica enquanto espécie é o fato de portar esse Originário, o fato
de portarmos este modelo de funcionamento mental. Esta é a espécie Hiperdeterminada, isto
é, com uma determinação de última instância, que é o fato de ter inscrito a possibilidade de
Revirão. A esta espécie, a Nova Psicanálise dá o nome de Idioformação.
110
Hei, 1ª pessoa do verbo Haver, presente. Vide ―Haver‖ neste mesmo capítulo.
111
Retornaremos a este ponto, mais adiante, no item Haver.
112
Importante esclarecer que,indiferença‖ nesta teoria é um termo bastante específico, que não significa
desinteresse, descaso. Ao contrário, estamos no regime do hiperinteresse, onde ―Indiferença é eqüiprobabilidade
eventual e equivalência moral‖ os eventos têm a mesma probabilidade e são moralmente equivalentes. (MD
MAGNO, 2007:191).
175
Esta espécie é denominada de Idioformação, independente das bases de sua
constituição corporal, isto é, independente de que sua constituição primária seja base carbono
(como a nossa) ou outra qualquer. Dito de outra forma, o conceito de Idioformação é definido
para qualquer espécie que portar o Revirão. Ou ainda, IdioFormação é ―qualquer formação
sintomatizada primária e secundariamente, mas que tem a eventual disponibilidade de ser
comovida pela HiperDeterminação (ALONSO, 2005: 79) (grifo do autor).
Este conceito expande a compreensão da espécie humana para uma categoria mais
ampla, na qual o reconhecimento de pertencimento a uma espécie não se dá pela configuração
corpórea (e caem todas as distinções de cor, origem, corpo com cabeça tronco e membros,
base bio-química de constituição etc.) nem pela habitação em determinado planeta (aí inclui a
possibilidade de outros seres, de outra galáxia etc.), mas sim pelo fato de portar o Revirão
como possibilidade de funcionamento mental. Assim, as ―Idioformações são formações que
eventualmente existam no Haver e sejam co-movíveis por Hiperdeterminação‖ (MAGNO,
2007: 109). A partir desta formulação de extrapolação do nível biótico, circunscreve-se o
termo Pessoa, definido como as Idioformações do nosso caso‖ (MAGNO, 2007: 109), do
caso humano, portadoras desta base de carbono que freqüentamos.
5.3.1 Haver
Após as descrições do que sejam as Formações, é conveniente termos um
entendimento geral do contexto dessas articulações. Para isso, é necessário descrevermos um
conceito central da Nova Psicanálise que é o conceito de Haver. A abrangência e a abstração
desse conceito têm vocação cosmológica, por ser extensão conceitual neutra do que ,
pesquisado por diversas vias e em diversos campos, e que vêm buscando compreender sua
estrutura e funcionamento de base, seja pela via algorítmica, quântica, orgânica, complexa ou
outra. Porém, como conceito psicanalítico, o conceito de Haver mantém-se vinculado à
176
postulação freudiana de experiência traumática do impacto de estar no mundo e do
concomitante reconhecimento, irredutível a qualquer aparelho de descrição, da
impossibilidade de sua evasão, ainda que se a deseje.
O Haver inclui tudo o que quer que haja ou venha a haver, tenhamos conhecimento
dele ou não: é tudo o que Há. Desse modo, é redundante dizer que estamos nos referindo a
qualquer nível de havência dita natural ou artificial, sólida, líquida ou gasosa, real, virtual,
concreta ou abstrata, matéria ou energia. Este conceito engloba tudo o que está disponível e
que possa comparecer: animado/não animado; orgânico/inorgânico; vivo/não vivo; físico e/ou
químico, em ordem macro ou subatômica; formações do Universo conhecido ou por conhecer;
formações do planeta que habitamos, em seu design mineral, vegetal ou animal; na ordem dos
organismos vivos (aí incluído o homem), sua construtura genética e dispositivos associados
de conexão ecológica; a pletora de artefatos culturais produzidos e por produzir; as
determinações operantes, de ordem histórica, cultural, política, material, estética, da
civilização a um relato individual. A abrangência é total, de modo que tudo o que é
formação do Haver e não há nada fora disso.
Uma outra abordagem é a experiência bruta, traumática, de cada um e de todos de
Haver, de estarmos aqui, agora, presentes. O fato é que não um entendimento universal
deste acontecimento, do que estamos fazendo aqui, e não possibilidade de evasão, de
escapatória, desta havência. Nem mesmo através da morte é possível alguma experiência
diferente desta, porque não estaremos presentes ao nosso falecimento. Por mais que
desejássemos sair, passar para outro lado, é impossível, ―há, estamos dentro do Haver e é
impossível passar a não-Haver, não temos como fazer isso‖
113
.
Nossa espécie tem inventado diversos expedientes de tentativa de entendimento do
que seja este evento, mas não nada que possa ser dito deste lugar. Quando nos lembramos
113
MD MAGNO [2007a] Falatório de 10 de março de 2007, inédito, parágrafo 4.
177
disso, rememoramos nossa inarredável solidão, ficamos numa posição de indiferença radical,
que a Nova Psicanálise denomina de Cais Absoluto
114
. Este lugar (esta experiência), também
denominado de Real, é o lugar da solidão absoluta, do horror fundamental gerado pela
consciência dessa posição indizível, pois vivemos num presente contínuo e condenados à vida
eterna. Fora desta posição, estamos no regime da sobredeterminação o termo é usado por
Freud, significando que tudo é sobredeterminado e que são muitas as determinações que
levam a vida da gente para certos lados (MAGNO, 2004: 49)
-, imersos na ordem do Ser, da
nossa rotina, da produção de mundo, das idéias, da articulação, da construção do dia a dia, das
mais diversas tentativas de criação de expedientes e articulações de existência no mundo.
5.3.2 Pessoa existe na ordem do Ser e há na ordem do Haver
A Pessoa é constituída pelo Haver e pelo Ser. Mais precisamente, é um personagem na
lida diária com o Ser na sua existência cotidiana no mundo-, e porta a experiência
traumática de Haver porta a experiência extrema de que Há, com a possibilidade de
exasperação do Cais Absoluto. Tal distinção aponta que o Haver é uma experiência radical na
qual se está ―absolutamente presente, mas em abismo, infinitude, eternidade, e mesmo em
angústia, em exasperação total
115
‖. Deste lugar não nada a ser dito, é pura experiência,
puro trauma e o silêncio absoluto porque índizível e, quando tentamos discursar (já estamos
fora deste lugar) é uma tradução, ou melhor uma redução que jamais dará conta da
114
―Esse lugar neutro nos deixa à vontade e o chamo, tomando um termo de Fernando Pessoa em sua Ode
Marítima, de Cais Absoluto, porque, assentado, nos confins desta Pólis Total que é o Haver e à beira desse
oceano de Coisalguma, que é o não-Haver, podemos indiferenciar o que se passa no seio da Pólis do Haver. Se
podemos nos colocar neste lugar paralém do conjunto enorme de determinações ‗internas‘ do Haver que,
emprestando-lhes a resistência que as mantém, forcejam as formações para que se constituam e se mantenham,
podemos invocar a hiperdeterminação justamente para carregar, com este termo, a ambigüidade que a coisa
oferece, pois parece que algo, forçosa e forçadamente determina para mais ainda do que as sobredeterminações
‗internas‘ das formações. É exatamente este o lugar desde onde tudo se re-considera com indiferença: o Cais
Absoluto onde se a relação entre Haver e não-Haver, a relação de hiperdeterminação. Não podemos nele
permanecer, mas podemos invocá-lo como referência. E com esta referência, na indiferenciação das
‗internalidades‘ opositivas do Haver, temos condição de passar a conceber, se não mesmo perceber, o que para
nós não estava presente para o entendimento de nossa história pelo menos isto‖ (MAGNO, 2004: 105) (Grifo
do autor) .
115
MAGNO [2006a]. Falatório de 08 de julho de 2006, no prelo.
178
radicalidade dessa experiência. Por outro lado, como é impossível permanecer neste lugar de
vinculação absoluta, vinculações menores e diversas fazem a Pessoa. Nesse sentido, se
consideramos a nossa existência no Mundo, este Eu nas suas implicações no Mundo, a Pessoa
está no regime do Ser, da falação, da criação, está existindo. Neste contexto, esta teoria
iguala Ser = Ter isto é, ―Eu sou o que tenho‖, ou melhor, ―Eu sou o conjunto das minhas
propriedades‖
116
. Quando estamos no regime do Ser, existimos com nossas propriedades e
nossas relações no mundo. Também é neste lugar, na ordem do Ser, que temos a
possibilidade de equivocação dado o movimento mental do Revirão; é aí, neste lugar, que
estamos no regime da produção de mundo. Em suma é na ordem do Ser que todos os
acontecimentos de mundo se dão.
Deste modo, Pessoas são formações que existem na ordem do Ser e portanto
constituindo e produzindo Mundo, e o comovíveis pelo Haver, pela Hiperdeterminação,
pelo trauma radical de estar havendo sem nenhuma alternativa de um ―fora‖, de um não-
Haver, por mais que isto insista em ser desejado.
Após essas considerações, podemos avançar no entendimento de que Eu = Pessoa é o
conjunto de formações primárias e secundárias, movidas originariamente pela vontade de
não-Haver, a qual, sendo absolutamente impossível, empurra-nos para encontrar saídas,
portas, passagens, conexões, para nossas sintomáticas, fazendo com que potencialmente a
rede que constitui Eu = Pessoa se diversifique e enriqueça, minorando o mal-estar, mas nunca
dando cabo dele.
Partindo da consideração das formações em jogo (primárias, secundárias, originária),
temos uma grande distinção do conceito de Eu, pois ele assimila a articulação da rede, do
hipertexto, da multiplicidade, mas não se reduz a esses conceitos. Verificamos, pois, que
Pessoas são formações compostas dos dados tidos tradicionalmente como naturais, mais os
116
MAGNO [2007a]: Falatório de 28 de abril de 2007, no prelo.
179
culturais, que, por sua vez, são acrescidos de uma performance mental específica por portar a
lógica do Revirão, a disponibilidade para a Hiperdeterminação. Este conceito explode
qualquer configuração fechada e cria um campo de abrangência que coloca a Pessoa sempre
em processo, não sendo possível, por conseguinte, excetuando por recortes e fechamentos,
determinar a extensão de uma Pessoa.
5.4 - Pessoa é Pólo com Foco, Franja e Fundo
Em termos gerais, o conceito de Pessoa aponta para a rede formada por um imenso e
complexo aglomerado de formações resistentes à sua própria transformação ou mudança que
formam Pólos, configurados como formação e como resistência‖ (MAGNO, 2007: 113).
Esses Pólos são portadores de duas características principais: Foco e Franja. Assim, em uma
grande formação configurada como Pólo, temos uma zona focal, que podemos definir a partir
de sua força maior, e a franja, que não se sabe onde termina. Por isso, toda vez que
recortarmos uma formação qualquer, estaremos excluindo dela o que desconhecemos,
mutilando assim sua franja.
Dessa forma, a noção de Pessoa envolve relações intrincadas que colocam em jogo
poderes e campos de força
117
. Como o pólo não possui fronteiras delimitadas, torna-se
impossível esquadrinhar toda a sua configuração. Assim, o que percebemos com mais nitidez
são os focos (MAGNO, 2007: 113-117), e tudo o que desconhecemos mas que, ainda assim,
atuam plenamente nesta rede de relações é situado como franja. No entanto, à medida que a
franja é reconhecida, o foco se amplia, de modo que se torna impossível precisar onde Eu
termina.
117
Cf. MAGNO [2006a]: no prelo. Item 8. Segundo o autor: Pessoa é um pólo distinto com foco e franja,
podendo ser plural, e que comparece dentro de uma rede conjecturável como infinita. = cruzamento de
linhas (conexões) numa rede. Pólo = destacamento de um ponto de concentração em cima de um ou vários s
de uma rede. Foco = visualização do pólo. Franja = entorno com todas as conexões que tendem ao infinito.
Polarizar um nó é tomá-lo como pólo, o qual, podemos considerá-lo focalmente ou franjalmente.
Num pólo plural, podemos ter uma pessoa, que é composta de várias pessoas que conseguimos focalizar.
Um pólo distinto, trata-se de um lo com ipseidade caráter único de uma formação do Haver que a distingue
de todas as outras formações, é o Princípio da Diferença.
180
Portanto, pode-se afirmar que a tarefa desempenhada por nós diariamente em nossas
diversas formas de interações consiste em lidar em uma região focal e sua franjalidade. Ao
pólo com seu foco e sua franja, adiciona-se ainda, o Fundo, do qual o foco e a franja são
substancialmente constituídos, ainda que, no nível das aparências, se mostrem como diversos
(MAGNO, 2007: 195). O conceito de fundo sustenta a suposição de que o Haver é
homogêneo e de que, nele, as diferenças emergem por processos de descontinuidade, que
tornam as formações com que nos deparamos cotidianamente aparentemente distintas
118
.
Estruturalmente, trata-se de um pólo distinto com foco e franja que comparece em uma
rede conjecturável como infinita. Como está situado numa rede, todo pólo tem implicações
infinitas, para todos os lados, com as outras conexões desta mesma rede, que é cheia de
cruzamentos que chamamos de nós.
As composições das Pessoas passam pelas suas relações específicas com determinados
espaços físicos, geográficos, com outras Pessoas, com seus familiares, amigos, com seus
campos de interesse, com suas atividades profissionais, pessoais e amorosas, etc. Estas
conexões é que compõem a Pessoa. Existe uma polarização com foco e franja. Por
exemplo, apesar de residir em determinada cidade, geograficamente falando, seguramente
somente partes, pedaços daquele espaço físico que compõe a tal cidade é que encerram
alguma significação para cada residente. São os espaços a partir dos quais elas traçam
relações de continuidade e reconhecimento: os caminhos que percorrem cotidianamente, as
118
Cabe ressaltar aqui que a noção de fundo é preponderantemente conjectural, uma vez que tudo o que
comparece se apresenta de maneira polarizada e fractalizada, o que torna impossível comprovar esta
homogeneidade primordial. Uma boa metáfora para a compreensão deste conceito é noção de matéria escura, na
física, que supõe um campo homogêneo em que adensamentos ocorridos em certas regiões provocariam o
surgimento de determinadas formações. Assim, fundo, foco e franja são, substancialmente, a mesma coisa. Mas
mesmo que acreditemos que, em última instância, esta homogeneidade primordial, não deixaremos de levar
em conta as diferenças que comparecem aqui e agora. Como exemplo, Magno sugere que pensemos em um pano
preto com desenhos luminescentes: veremos os desenhos, mas o fundo está e os desenhos são constituídos
deste mesmo fundo. Assim, os focos e franjas que emergem da homogeneidade do fundo não eliminam a
presença deste elemento primordial. Mas para a realidade de nossa observação, no momento em que
distinguimos as formações, veremos os desenhos e o pano de fundo, as estrelas e o céu, ainda que tudo seja
constituído da mesma coisa. Desta forma, consideramos que a rede está estabelecida sobre diferenças e nunca vai
se apresentar como neutralidade. Portanto, conceitualmente, se dissermos que foco e fundo são a mesma
substância, está certo, mas se dissermos que foco e fundo são a mesma aparência, está errado. (MAGNO, 2007:
194-195).
181
lojas, restaurantes e espaços de diversão que usualmente freqüentam etc. é que estruturam as
amarras fundamentais que fazem parte da rede que constitui uma Pessoa. Nesse sentido, a
Pessoa se refere à rede à qual se conecta, no sentido de que o que são formações se
referindo a outras formações e, dentro deste raciocínio, não faz nenhum sentido falar de um
mim ou si mesmo, mas são formações falando de formações. (MAGNO, 2007: 129).
A concepção de Pessoa, enquanto multifacetada, implica substituirmos a noção de
fronteira por intricadas relações de força e poderes, que apesar de resistentes, são, ainda
assim, mutáveis. Logo, as focalizações podem se deslocar e o fazem com freqüência. Dessa
forma, a emergência de nossos diversos personagens
119
não é, senão, uma mudança de foco
que comumente associamos a uma mudança de personalidade. Acrescente-se a isso que uma
Pessoa tem a disponibilidade à Hiperdeterminação e ao Revirão, o que lhe permite incluir em
suas formações o avesso daquilo que se supõe objetivamente dado, e consequentemente o
novo, a criação.
Eu equivalente a Pessoa é uma formação complexa, composta de formações Primárias,
Secundárias e Originária, que se com-sideram
120
, de modo que a alteração de uma delas
modifica inevitavelmente a resultante da sideração. Assim, a Pessoa é uma rede dinâmica
caracterizada por intricadas interações entre formações sintomáticas, por um lado, e a
possibilidade de Revirão, por outro de modo que é possível pensá-la como resultante
variável, considerada a cada caso e a cada momento. Acrescentemos também que a franja de
uma Pessoa tende ao infinito na extensão do espaço e na direção do tempo (MAGNO, 2007:
187). Neste sentido, estabelece-se uma diferença radical entre a noção filosófica de indivíduo
como elemento indivisível e basilar da sociedade e a noção de Pessoa, que tenderia, ao
119
Neste sentido, os termos persona, máscara em latim e personne, que também significa ninguém em francês,
vêm a calhar ( MAGNO, 2007: 139).
120
Nesta perspectiva, reconhece-se que formações e que elas se com-sideram, ou seja, que sideração entre
elas. A palavra siderar tem origem latina, de modo que cum-siderare é siderar junto. Sidus, por sua vez, é o
siderar dos astros, que não são impulsionados por nenhuma força localizada, mas que sideram sozinhos, movidos
por forças de atração e repulsão (MAGNO 2003: 64).
182
contrário, para a abrangência.
121
A possibilidade de espraiamento do foco significa, em última
instância, a possibilidade de expansão por acesso à Hiperdeterminação
122
.
A dissolução do hábito de pensar em termos de fronteiras irredutíveis é imprescindível
a esta abordagem do conceito de Pessoa, uma vez que ele envolve também a idéia de
Conhecimento (MAGNO, 2003: 59-66 e MAGNO, 2007: 141-145), ―[i]sto porque a Pessoa é
constituída também de seus saberes, que são precários e mudam com o tempo‖ (MAGNO,
2007: 141). Tal perspectiva reforça o abandono da distinção clássica entre sujeito e objeto em
detrimento da com-sideração (ou transa) entre formações, de modo que conhecer não é ato de
um sujeito. Trata-se, de se incluir nessa relação, nessa sideração entre formações, que resulta
em conhecimento. Nessa perspectiva, o conhecimento surge de um encontro, da transa entre
formações, de modo que ―temos apenas as transas e os seus transadores‖ ( MAGNO, 2007:
150), que podem ser as Pessoas consideradas simplesmente enquanto formações em jogo.
É nesse sentido que também posso afirmar A Cidade sou Eu, pois o que quer que
possamos identificar ou discernir se passa nesta relação de sideração entre as formações. Isto
implica uma quebra radical das supostas fronteiras que delimitariam essas duas instâncias, de
modo que a idéia de cidade é abrangida pelo conceito de Eu. Assim, em nosso cotidiano, não
somos os sujeitos agentes que fazem escolhas conscientes em um ambiente passivo que
simplesmente nos rodeia. cidade enquanto formações que constituem de certo modo
uma Pessoa, isto é, enquanto Eu. A Pessoa é uma formação utente
123
, que é o mesmo que
utilizador‖. ―E uma Pessoa que usa não é senão uma Pessoa em uso, isto é, que está sendo
121
Retomando a noção de singularidade e a noção de limite na matemática (que é assintótica, sendo que se trata
de tender para e nunca de chegar efetivamente a), tomemos a função f(x)=1/x. Se x tende a infinito, f(x) tende a
0. Por outro lado, se x tende a 0, f(x) tende a infinito. Quando o limite é levado cada vez mais próximo de
infinito, a divisão apontada resultará numa série de minúsculos fragmentos com valor extremamente pequeno,
que sustentariam a noção de indivíduo. No caso do valor de x se aproximando de zero nos dá uma resultante que
tende ao infinitamente grande, onde se pode situar a Pessoa como abrangência (MAGNO, 2007: 189).
122
que explicamos que, para a Pessoa, a disponibilidade à Hiperdeterminação, ao Revirão, possibilita a
inclusão do avesso daquilo que se supõe objetivamente dado, do novo, da criação, tudo isto gera um processo de
expansão da Pessoa.
123
Utens, utentis, em latim; particípio presente do verbo utor, uteris, uti, usus sum: usar de, servir-se de.‖
MAGNO, 2007: 151.
183
usada, ou seja, em exercício‖ (MAGNO, 2007: 151). Assim, uma vez dissolvida a dicotomia
que colocaria uma separação entre sujeito e objeto, entendemos que não fronteiras entre
conjuntos de poderes e forças que colocam em relação à geografia ou a um dado território e
seus habitantes.
5.5 Definições negativas de Eu = Pessoa
Iniciamos nossa argumentação afirmando que, nesta teoria, Eu é equivalente a Pessoa,
salientando a polissemia dessa noção. Podemos agora reorganizar esse campo semântico,
procedendo por definições negativas com as quais esperamos esclarecer um pouco mais nossa
perspectiva de leitura do problema da cidade contemporânea. Vamos apresentar essas
definições em breves tópicos.
Pessoa não é indivíduo. Em acepção técnica, a noção de indivíduo está relacionada a uma
unidade reconhecível e determinada que, em linguagem filosófica (MORA, 2001: 378), se
distingue numericamente dos demais indivíduos da mesma espécie (ex. ―qualquer homem‖,
―qualquer árvore‖) pelas suas características individuantes; é o composto matéria-forma
constitutivo do mundo físico que nasce, cresce e morre, unidade numericamente identificável
e quantificável e materialmente indivisível. Em termos mais simples, a noção de indivíduo é
comumente associada ao ser humano considerado isoladamente, a corpo (animado ou não),
considerado a partir da clausura que se atribui, resultante, por sua vez, de um ato de
discreção, quer dizer, um ato de separação. É como se separássemos algum ―pedaço‖ ou
formação e chamássemos de indivíduo mediante essa separação.
No caso da Pessoa, quando falamos de indivíduo ou individualismo, o que comanda a
assimilação é a Pessoa física. Ora, o corpo humano, como índice de individuação mediante
uma operação de discreção ou separação, é somente um conjunto de formações que integram
Eu = Pessoa, quando rebaixamos a idéia de Pessoa a esse nível individual, fazendo foco
184
mediante a idéia problemática de ―corpo‖ ou ―indivíduo‖. Lançando-o na rede de formações,
dissolvemos o raciocínio de individuação por corporeidade. Temos, arrolados numa discreção
corporal qualquer, uma pletora de formações da ordem da gestualidade, da sintaxe, do trejeito,
da semântica, da modulação (de voz, tom, timbre, cor, gesto) e todas as outras formações que
são excluídas no ato da fala. Assim, o franjal de qualquer indivíduo suspende a discreção
quando levado em conta. A nomeação do individual ocorre sempre depois da separação que,
por sua vez, ocorre sempre depois de um ato de recalque. Novamente a postura de
indiferenciação promovida pela idéia mcluhiana do meio como mensagem e a da técnica
como extensão do homem ajudam-nos a pensar. Afinal,
o ouvido não tem preferência particular por um ponto de vista. Nós somos
envolvidos pelo som. Este forma uma rede sem costura em torno de nós. (...)
Enquanto o espaço visual é um continuum organizado de uma espécie
uniformemente interligada, o mundo auditivo é um mundo de relações
simultâneas‖.(MCLUHAN, 1969: 139) [Grifo do autor].
Quando falamos de indivíduo ou individualismo, o que comanda a assimilação é a
pessoa física considerada como unidade. Há aí um recorte que exclui do conceito de indivíduo
as trocas obrigatórias e interações que este mantém no mundo. Mesmo sem irmos pela via de
McLuhan, tratando as tecnologias como extensões do nosso corpo e permanecendo na
imediatez das nossas necessidades biológicas, perguntamos: onde termina o corpo humano? O
oxigênio que está na atmosfera faz parte do meu corpo? Meu corpo existe sem o oxigênio?
Ora, o corpo humano como índice de individuação é somente um conjunto de formações que
integram Eu = Pessoa. Desse modo, as acepções de indivíduo podem estar contidas na Pessoa,
mas uma Pessoa não se reduz a um indivíduo.
Pessoa não é sujeito. Aqui, mais uma vez, o que comanda é o viés filosófico ocidental,
pois a noção de sujeito, dos antigos aos modernos, ficou indelevelmente associada às
propriedades de subsistir em si, saber que está subsistindo, sendo idêntico a si mesmo no
tempo, em que pese suas variações modais ou acidentais. Se essa subsistência (como
permanência) é garantida por um ato superior divino ou não, fato é que a noção de sujeito
185
como substância apta a existir por si, suporte de atribuição de qualidades, substrato, sub-
jectum, fundamento, coisa pensante existente que se reconhece em si também opera por um
ato de discreção, focando na oposição entre mente conhecedora e objeto a ser conhecido e
elegendo-a a qualidade fundamental do sujeito como posição central de base ou sub-posição
(como o nome mesmo diz), espécie de cabine de comando central dos atos de alguém. É a
partir dessa atribuição de um centro de enunciação de pensamento e ação, fortemente
ancorado na capacidade humana de fala articulada gramaticalmente na ordenação frasal
sujeito-verbo-predicado, que pode se sustentar a idéia de sujeito.
Ora, não se trata de negar recortes, operações de fechamento, exclusão e recalque na
rede de formações que constitui Eu = Pessoa. Trata-se, simplesmente, de reconhecer que
algumas formações são tomadas privilegiadamente como interface expressiva das comoções e
afetações de uma clausura para onde convergem discreções de várias ordens. O poder e a
riqueza dessa interface podem ser de tal monta que outras formações a nomeiam sujeito de
alguma coisa como foco que é tão somente efeito de operações de recalque e dos hábitos que
daí decorrem. Modificada a relação de forças, essa impressão de unidade dissolve-se. Aliás,
tem sido esse o vetor dissoluto e dissolvente do binômio capital/tecnologia nos dias atuais.
A internet é exemplo princeps: os bate-papos dissolvem sexo como anatomia, gênero e
cronologia; o comércio eletrônico dissolve fronteiras geográficas, sem falar nos conteúdos os
mais variados disponíveis on line.
Por outro lado, considerando o sujeito gramatical, sob o ponto de vista da língua,
temos muitas vezes a definição de sujeito associada a uma cor, um objeto inanimado, uma
localização geográfica etc., o que demonstra que sujeito pode ser muita coisa.
Pessoa não é permanência que se reconhece como tal no tempo produzindo, como efeito,
a crença de que somos sede definitiva de alguma coisa. Temos mais um cruzamento que
precisa ser esclarecido. Permanência não é senão a duração, aqui e agora, das formações em
186
jogo, em função da resistência a terem sua clausura desfeita ou relativizada. Mais do que isso:
todo e qualquer cálculo de permanência está na dependência dos artifícios e suportes de
gravação de informação, seja a memória organicamente constituída ou suas extensões
tecnológicas. Quando esquecemos disso, nos advém a impressão de identificação Pessoal
como sede (seríamos sede responsável de eventos, pensamentos, ações, escolhas, atitudes,
princípios morais, memórias, lembranças e impressões instransponíveis e incompartilháveis
etc.).
Ora, máquinas digitais, discos rígidos de computadores, fotografias, músicas, imagens de
telescópios, processadores de informação, e-mails, blogs, filmes, ambiente de trabalho,
espaços de lazer, transas financeiras, comerciais, eróticas ou parentais, gostos, habilidades
lingüísticas, preferências estéticas visuais, tácteis, acústicas ou quaisquer outras são alguns
exemplos ou aspectos da rede de formações que acessamos em suas bases de gravação, que
constituem também, num determinado espaço-tempo e numa determinada correlação de
forças, uma Pessoa.
Como vimos, na Nova Psicanálise, o conceito de Pessoa rompe com delimitações e
fronteiras, sejam elas individuais, corporais, físicas, geográficas, sejam mentais, intelectuais
ou psíquicas. Do mesmo modo, não faz distinção ou separação sujeito/objeto. O que temos
são as interações das formações em questão a cada momento, o que denota um processo sem
centro de enunciação.
Para a Nova Psicanálise, o que quer que compareça como extensão, como ligação com
determinada Pessoa é prótese (dessa) Pessoa
124
. Deste modo, são próteses as roupas, o avião,
os aparelhos, as ruas e bairros, as idéias, as construções, um texto, um pensamento, as
aglomerações urbanas, a galáxia, etc., tudo isto é protético. Essas próteses podem ser
124
Sobre este tema, ver MAGNO, MD. Falatório 2004. Economia Fundamental. Metamorfoses da Pulsão,
(seção de 28/08/2004) no prelo.
187
espontâneas naturais , ou industriais
125
. O que quer que exista extensivo ao corpo de uma
Pessoa é prótese (dessa) Pessoa. A idéia de corpo ganha outra dimensão, pois como vimos,
não se restringe a uma anatomia que está dentro da pele. O corpo, neste caso, abrange desde
os componentes que garantem a sobrevivência através das trocas fisiológicas mais diretas,
como, por exemplo, o oxigênio da atmosfera, passando por tudo o que tenhamos contato
direto ou indireto, consciente ou inconsciente, até a consideração da enorme e indeterminada
zona franjal que constitui a Pessoa. Pessoa incorpora (faz corpo) tudo aquilo a que se vincula
e a que é vinculada, por isto está sempre em processo. Estes raciocínios nos auxiliam o
entendimento de que ―há um corpo focal e corpo franjal para qualquer instância pessoal‖
126
.
Vários elementos físicos e geográficos participam da constituição de uma Pessoa, ou
mesmo diferentes culturas podem participar ativamente da estruturação de uma Pessoa. Ela é
composta de tudo e todos que integram, interagem, têm significação, interferem, pressionam,
afetam e articulam a rede que a constitui. Deste modo, como Pessoa, constituímos e somos
constituídos por esta rede que inclui lugares da cidade geográfica em que residimos, e toda a
geografia ou território que produzem alguma significação na nossa história.
Qualquer manifestação ou conhecimento de determinada Pessoa estará submetido aos
entendimentos e visões decorrentes da rede que ela é. Na linha deste mesmo raciocínio
podemos perguntar, por exemplo: Existe mundo sem Eu? Antes de Eu existir e após a minha
morte cadê o mundo? Claro que posso conjecturar que tudo estava e certamente
permanecerá após o meu perecimento, mas que experiência tive ou terei disso? ―Aliás, são os
outros que morrem‖
127
no que descompareço, acabo, o posso nem mesmo ter a
experiência de morte. Do mesmo modo, toda a civilização, big bang, urbanização do planeta,
evolução da espécie, etc., que se deu antes do meu nascimento e que me constitui enquanto
125
Aqui segue-se o mesmo raciocínio de artifício espontâneo e industrial, esclarecido na nota 12 deste capítulo.
126
MAGNO, MD. Falatório 2004. Economia Fundamental. Metamorfoses da Pulsão, (seção de 28/08/2004) no
prelo.
127
―D‘ailleurs, ce sont les autres qui meurent‖. Epitáfio de Marcel Duchamp.
188
DNA, memória celular, lugar na evolução civilizatória, me foi dado pronto‖, inteiro, de uma
única vez quando me foi dada existência. O mundo, incluindo tudo, passado, presente e
futuro, existe para quem está vivo, presente.
Podemos a mesmo imaginar que há mundo para outras pessoas, mas, o Haver,
enquanto experiência, não há sem esta Pessoa que se chama Eu
128
.
Cada Pessoa é resultante de uma quantidade enorme de todas as afetações que
constituem sua história, dos lugares que marcaram, dos seus gostos e prazeres específicos, das
suas repulsas, das tragédias e dramas encenados pela sua vida, das facilitações tecnológicas,
das dificuldades e facilidades financeiras, das suas (in)competências, da sua corporeidade com
todas as significações entendidas, e tudo o mais que possamos elencar para definir o que
compõe uma vida em rede. Por tudo isso, cada Pessoa é única. Sob essa perspectiva, posso
afirmar A cidade sou Eu, pois existirão tantas cidades quantas Pessoas, e é precisamente isto
que pretendemos mostrar no próximo capítulo.
128
Cf. MAGNO, MD.Seção do Falatório realizado em março de 2006, no prelo.
189
6 A CIDADE SOU EU
―A‖ cidade não existe. Entretanto, a noção de cidade sofre uma distorção
sem precedentes; insistir em sua natureza primordial, seja através de
desenhos, regras ou invenções, conduz irrevogavelmente da nostalgia à
irrelevância (...) Para assegurar sua sobrevivência, o urbanismo terá que
imaginar uma nova idéia do novo (...) Temos que imaginar mil e um
conceitos alternativos de cidade, temos que correr riscos desproporcionados,
temos que nos atrever a ser profundamente acríticos, devemos agüentar a
adversidade e perdoar a direita e a esquerda (KOOLHAAS, 2002: 3).
O entendimento do que seja cidade e sua arqui-tectonia não poderia ficar imune à
topologia. É evidente que a macrofísica urbana continua dependendo da aplicação da lógica
euclidiana plana e tridimensional, sem a qual não temos ruas, prédios, casas, jardins,
transportes, sistema viário, fronteiras, muros, aduanas, urbano/rural, espaço-tempo geo-
calculados. Do mesmo modo, e compatível com essa cidade de emergência neolítica,
continuamos convivendo com a sintomática pregressa do parentesco, da reprodução sexuada
dos corpos, das subjetividades e identitarismos, das instituições sociais, jurídicas e políticas
tradicionais, tudo isso regido pela gica bilateralizante e excludente da mentalidade
euclidiana que encontra muita dificuldade em operar no regime da condensação no foco e
dispersão na franja, na polarização, transformação e passagem entre pólos.
Mas também é evidente que a cidade não se reduz mais a seus suportes geo-métricos e
quantitativos, nem às habilidades cognitivas esteadas nas competências verbalizantes da
espécie humana. O raio de alcance das realizações, conjeturas, implementações tecnológicas,
programas de pesquisa etc. explodiu toda possibilidade de sustentar a noção de cidade num
critério qualquer de fronteira física, mental, cultural, étnica, lingüística, financeira,
tecnológica. Mais do que isso, o deslocamento da noção de cidade é simultâneo ao
deslocamento sobre o que talvez seja seu esteio fundamental: o formato humano de base
190
carbono, instituído pelo design casal-heterossexual-familiar-reprodutor-cultural-urbano-
geográfico
129
.
Ao partirmos da polissemia do conceito de cidade, que se encontra hoje sob fogo
cerrado, não fazemos senão nos filiar às posições teóricas que decidiram enfrentar o desafio
de repensar o problema de modo coerente com o risco e a incerteza, mas igualmente com as
potencialidades que caracterizam nossa época. Afirmar A cidade sou eu é, pois, incluir essas
potencialidades e transformações já em curso.
Quando incorporamos o conceito de Cidade ao conceito de Eu em nossa hipótese A
Cidade Sou Eu, assim procedemos ancorados nas seguintes articulações:
- O conceitos de Cidade e de Eu como qualquer conceito, aliás são produtos
historicamente construídos;
- O conceito de Cidade, nesta tese, não se restringe à geografia, à geometria
euclidiana, à história, ao espaço físico constituído mediante fronteiras que o circunscrevem,
ou ao tempo cronológico;
- O conceito de Eu o se restringe a sujeito, indivíduo, corpo anatômico, primeira
pessoa do verbo, mim ou você;
- O conceito de Eu, aqui utilizado, é aquele trazido pela Nova Psicanálise e remete às
formações primárias e secundárias, afetadas pelo Originário, que formam uma rede e
constituem um pólo com foco e franja
130
. Tomando como base o que vimos, essa Pessoa é
129
Temos em mente o que afirmou Lewis Mumford [1961]. Para ele, no processo de domesticação geral que
marca o Neolítico, o acontecimento ―mais importante talvez tenha sido a domesticação do próprio homem, que
constitui em si mesma uma prova de crescente interesse pela sexualidade e reprodução‖. Contudo, extravasando
os limites dessa domesticação, do ponto de vista da reprodução e da nutrição, o advento da cidade estruturou-se
na mesma lógica do parentesco, da dominação (masculina) e da manutenção das instituições sociais que
emergiram no Neolítico. Nesse processo, articulam-se três características do modo de existir humano que se
encontram agora em deterioração: a reprodução sexuada, o parentesco e o território (p. 18).
Para a consideração do ―modo de existência da espécie humana‖ como definição para cultura, ver três textos de
MD Magno: [1999], esp. Conferência 5: ―Poder de cura e avatares do falicismo‖; [1995], esp. a seção ―A
extradição do incesto‖; [1994], esp. seções 4 e 5, respectivamente ―AMÃE... AMÉM‖ e ―Os cinco impérios‖.
São igualmente importantes as considerações de Manuel Castells [1996, v. 2], que seguem direção semelhante às
conclusões de Magno, esp. cap. 4: ―O fim do patriarcalismo: movimentos sociais, família e sexualidade na era da
informação‖.
130
Conforme visto no capítulo 5, acima.
191
composta por uma rede conjeturável como infinita e inclui, entre outras formações, partes de
aglomerações urbanas que interagem nessa rede.
- Neste conceito de Eu, não nenhum centro de enunciação, não separação entre
sujeito e objeto, o que temos são formações que se consideram umas às outras.
- O conceito de Cidade é de base topológica. Quando pensadas como rede de
interações, as cidades se deslocam com o deslocamento das pessoas.
- Na hipótese A Cidade Sou Eu uma Pessoa que faz esta afirmação e ela é a
referência que se afirma como cidade. Isso significa que o que está sendo dito passa
necessariamente por uma experiência (da) Pessoa. Neste caso, são formações que interagem e
resultam num determinado conhecimento sobre Eu = cidade. Mesmo que qualquer um possa
afirmar-se enquanto cidade, é sempre um acontecimento único, singular, que pode ser
enunciado um a um.
- Utilizamos a idéia da Nova Psicanálise de pólo com foco e franja, pois ela nos parece
compatível com a movimentação tecnológica e os vetores cada vez mais abstraentes que
vemos comparecer a cada dia em nosso cotidiano. Das pesquisas em robótica à investigação
do mundo quântico, da internet à inteligência artificial e à nanotecnologia, a rede de
significaçõesnão está acoplada apenas aos aparelhos biológicos e culturais tradicionais a
que estamos habituados.
Por conseguinte, vetorizar o problema desde o Eu conceituado pela Nova Psicanálise é
dar emergência a um conceito de Cidade que extravasa, em suas possibilidades inclusivas, os
contornos do formato homem, de competência biológica e cultural. A cidade de que falamos
acolhe todas as emergências da formação humana, inclusive e sobretudo as tecnológicas, que,
secretadas por essa formação, parecem ameaçar-lhe a existência, mas que, por outro lado,
podem prover-lhe saltos qualitativos mentais inauditos. Ela acolhe todas as informações, do
quântico ao digital (e sua promissora conexão), do mecânico ao analógico, com todas as
192
potencialidades do habitar que aí se encerram (no triplo sentido de encerrar: que estão
contidas, que vão acabar e que vão surgir). Acolhe todas as composições e recomposições
culturais que estão acontecendo no seio do território da cidade. Ela, enfim, é Eu como rede de
formações, computáveis, conjeturáveis, mesmo que inabordáveis (aqui e agora).
Ora, afirmar A cidade sou eu é integrar definitivamente ao urbanismo os efeitos da
mentalidade topológica. As transformações emergentes no repertório já conhecido das
tecnologias da comunicação e informação, da radical relativização dos parâmetros de
mobilidade, comunicação e vizinhança, com o colapso das fronteiras tradicionais fazem a
cidade funcionar em regime de atectonia. É o estado atual da rede de formações no mundo
que está constituindo Eu = Pessoa como lugar
131
. Ou seja, Eu = Pessoa como rede faz o lugar
e não o contrário.
Os lugares, antes geométricos de competência euclidiana, tornaram-se lugares
topológicos, exigindo, a cada vez e a cada situs, consideração e análise apropriadas, pois não
(mais) distinção entre a rede que a Pessoa é e o espaço forjado à medida das formações e
transformações que o compõem sintomaticamente. Habitar é constituir a cada momento, como
secreção sintomática, a rede que constitui a Pessoa, fazendo o espaço coincidir com a
materialidade sintomática que o qualifica e quantifica.
Aplicando o conceito de Eu = Pessoa tal como trazido pela Nova Psicanálise, não
distância que permita circunscrever separadamente Eu e Cidade. Não existe uma cidade a
priori, externa a nós, na qual nos inserimos. De maneira semelhante, não estamos fora de uma
cidade que consideramos enquanto tal. Ao contrário, o pólo que me constitui, com sua
focalização e sua extensão franjal, coincide parcialmente com a cidade.
131
Este raciocínio foi desenvolvido em MAGNO, MD Falatório 2004. Economia Fundamental. Metamorfoses
da Pulsão.Seção de 23/10/2004 (no prelo). Ver também, de forma exemplificada, CASTELLS, 2001:192,
quando este autor refere-se ao ―escritório em movimento‖, apresentado neste trabalho no item 3.2.
193
Se entendermos os pólos como distintos, devemos tratá-los como ipseidade
132
, termo
que se refere ao princípio da diferença, ao caráter único de uma formação do Haver que a faz
diferir de todas as outras. Neste sentido, ―minha singularidade é o mundo que eu sou
133
‖. E a
cidade que eu sou, não é a cidade geográfica em que moro, mas a cidade que mora em mim.
Não somos somente um corpo, uma coisa, um endereço, mas uma cidade-eu, repleta de
fragmentos os mais diversos geográficos, pessoais, locais, virtuais, afetivos, sensoriais,
genéticos, históricos etc.
A cidade se configura de acordo com a rede que sou e, a cada mudança desta rede,
muda a cidade que, de retorno, também me transforma. posso dar testemunho e enunciar
enquanto me configuro dentro do próprio processo, enquanto sou o processo. Então: a cidade
sou eu.
6.1 A cidade sou eu: pólo, foco, franja
Queremos reafirmar que, como pólo, foco e franja, o espaço em que se move Eu =
Pessoa de onde partimos para afirmar A cidade sou eu é o espaço constituído por todas as
formações acessáveis aqui e agora, configurando e desconfigurando o espaço e o tempo
(passado, presente, futuro). Igualmente, a comunicação que se como rede de formações Eu
= Pessoa é a comunicação estabelecida como rede de formações conectadas, acessáveis aqui e
agora, de modo consciente ou não. Assim, as imagens do planeta Marte, ou da galáxia mais
longínqua de que se tem notícia, que os satélites acessam são minhas imagens e me
configuram como rede conectada ao Universo. As experiências com células-tronco e sua
incrível capacidade plástica e indiferenciante são minhas experiências: a plasticidade e a
indiferenciação me são como qualidades. Mas também o espaço tecnológico que inclui essa
132
Segundo MAGNO, MD- Falatório 2006. AmaZonas: A Psicanálise de A a Z. Seção de 25/3/2006. Ipseidade é
o caráter único de uma formação do Haver que a distingue de todas as outras formações. Ou seja, é o Princípio
da Diferença. Um pólo é distinto quando reconhecemos a diferença. Por exemplo, sabemos que tal pessoa não é
tal outra.
133
MAGNO [2006a]: no prelo.
194
informação e que por causa dela se transformou, constituem a rede em que me movimento e
que me é.
A malha ou rede de formações que constituem Eu = Pessoa exige um modo de
abordagem que, preservando sua dinâmica de integração e transformação, permita igualmente
procedimentos de distinção, diferenciação e separação. É nesse sentido que trabalhamos com
a idéia de foco e franja, ou de zona focal e zona franjal, constituídas sobre pólos de
organização dessa rede
134
.
Consideremos a representação gráfica que se segue, composta por círculos de Euler.
Do ponto de vista das formações de qualquer ordem em jogo numa determinada
situação, uma zona focal e uma grande zona franjal, em interseção ou não, num espaço-
tempo, num conjunto que é infinito para todos os lados. Toda focalização está integrada numa
região franjal praticamente impossível de ser determinada, e isso vale para o espaço aqui e
agora, para o tempo passado, presente e futuro. Não há condições de juízo, recorte ou
operação que não sejam a partir de uma zona focal, o que, contudo, não elimina ao
contrário, o exige como constitutivo da própria dinâmica da rede a interferência da zona
franjal.
Em termos de cidade, a situação não é diferente. Desta vez, é McLuhan que volta a
nos ajudar. Para ele, o que distingue o sistema ferroviário de um complexo elétrico é que o
primeiro necessita de estações, trilhos e grandes centros urbanos, enquanto o segundo, porque
134
A idéia de zona focal e zona franjal bem como a representação gráfica que reproduzimos encontra-se em
MAGNO, 2003: 420-423.
195
descentraliza, permite a qualquer lugar ser um centro, e prescinde de grandes aglomerações
(MCLUHAN, 2000). Ou seja, consoante com a rede de formações que constitui a cidade que
Eu sou, a dinâmica entre os pólos de organização de minhas referências também se modifica.
McLuhan via na eletricidade um enorme poder de implosão dos cinturões impostos pelo
mundo mecanizado dos tijolos de fábricas e casas geometricamente consideradas, apostando
na expansão da franja por via eletrônica.
Ele estava com razão. Afinal, é possível viver recluso nas montanhas ou numa bela
ilha, e de qualquer desses lugares acessar, em tempo real, informações via satélite, com
internet, telefone celular ou tv, numa relação qualitativa e quantitativa bastante diferente da de
um habitante de centro urbano que não dispõe de tais recursos. Do mesmo modo, posso
habitar uma grande metrópole e desgostar da idéia de usar carro para resolver as necessidades
cotidianas (ir à padaria, por exemplo), pois minhas formações que mapeiam distâncias e os
gostos que lhes estão associados incluem velhos hábitos adquiridos na infância passada no
interior, onde se fazia tudo a pé.
Quaisquer que sejam os exemplos, o raciocínio que está em jogo é a operação de
separação e eventualmente exclusão que a zona focal implica, pois é impossível não
operarmos focalmente, o que significa, numa dada circunstância, excluir da zona focal assim
constituída todo o resto. Mas, a cada vez, na lembrança de que a atenção flutuante para o que
permanece inacessível aqui e agora (zona franjal) e a operação ad hoc que recorta situações
concretas (zona focal) não são mutuamente excludentes. Se é fato que o foco de uma situação
nos (impressão de haver) condições de juízos específicos, em que operamos por
condensação, diferenciação e até exclusão, não podemos deixar de incluir as ramificações ou
a rede de que o foco é apenas um efeito localizado e imediatamente relativizável, uma vez re-
inserido no escopo maior da rede como conjunto foco-franja. Computamos, então, na idéia da
cidade que Eu sou, seus efeitos locais e reconhecíveis aqui e agora por focalização, mas não
196
dispensamos a dispersividade de (in)formações que não acessamos e que, nem por isso, são
menos atuantes na determinação do design dessa cidade.
6.2 O pólo urbano em foco e franja
Lewis Mumford abre sua obra, hoje clássica, A cidade na história, resumindo um
percurso que começa com ―uma cidade que era simbolicamente um mundo‖ e termina com
―um mundo que se tornou (...) uma cidade‖ (MUMFORD, 1991:3). Em sua análise do papel
da cidade como ―ímã, recipiente e transformador na cultura moderna‖ (MUMFORD, 1991:
570), ele prenunciava o que vemos ocorrer atualmente, para além da migração do homem para
a cidade: a disseminação da cultura urbana em todo o planeta, independente de qualquer
situação geográfica, cultural, econômica ou política.
Muitos autores ratificam esse raciocínio. Para Octavio Ianni, por exemplo, a partir da
universalização do capitalismo, no final do século XX, ―verifica-se uma simultânea
generalização do modo urbano de vida, da sociabilidade urbana, de padrões e valores culturais
urbanos, (...) invadindo meios rurais, modos de vida agrários. (...) O mundo agrário se altera,
modifica, dilui‖ (IANNI, 1997: 80). Duas décadas antes, Henri Lefebvre sustentava a hipótese
da urbanização completa da sociedade (LEFEBVRE [1970]: 15)
135
, na qual a sociedade
urbana é a sociedade pós- industrial, uma sociedade planetária, ―que resulta da urbanização
completa, hoje virtual, amanhã real‖ (LEFEBVRE [1970]: 15). O urbano, na definição de
Lefebvre, é cumulativo de todos os conteúdos, seres da natureza, resultados da indústria,
técnicas e riquezas, obras da cultura, compreendidas maneiras de viver, situações,
modulações ou rupturas do cotidiano‖ (LEFEBVRE [1970]: 112)
136
. Neste mesmo trabalho,
ele propõe que não se diga mais ―a cidade‖ e sim, o urbano (LEFEBVRE [1970]: 50)
137
.
135
Grifo do autor
136
Grifo do autor
137
Grifo do autor.
197
O que nos interessa nas manifestações acima é a evidência do fenômeno urbano como
paradigmático para pensarmos o campo do urbanismo. Assim sendo, cidade é o modo urbano
de habitar / ocupar o planeta. O conceito de cidade abrange, hoje, todas as relações de
habitação no mundo, com ou sem cidade (geograficamente falando) ao lado. Conforme
apresentamos, os autores são unânimes em demonstrar que a cidade extrapolou o espaço
físico-geográfico e tornou-se abrangente. Este modo de habitar o mundo acabou com as
fronteiras. Existem focos urbanos mais ou menos densos que não coincidem necessariamente
com o tamanho geográfico. As variáveis foram deslocadas, não adianta pensar em área
geográfica. Podemos determinar onde começa e termina o foco e franja de uma cidade, se
considerarmos todo o tipo de trocas, intercâmbios, interações comerciais, culturais,
financeiras das quais ela participa e depende?
O conceito de cultura urbana é que gere o planeta, ou seja, o modo urbano de habitar é
hegemônico no mundo. Por tudo isso, é que defendemos no capítulo 3 a utilização da palavra
Orbanismo. Pois, nos parece mais adequada para expressar a dimensão das questões que estão
sendo consideradas ao tratarmos do urbano, principalmente no contexto deste trabalho. Se
quiséssemos articular esta questão, em antigos termos, poderíamos afirmar que não existe
mais modo rural. Ele esdeterminado pelo modo urbano de viver. Em suma: do ponto de
vista urbano lhe falta tanto, o seu ficit é de tanto, pois ele está na franja. O que podemos
analisar é em que grau de inserção a Pessoa está, mas já sabendo que todos estão inseridos.
A partir deste entendimento, vamos abordar o fenômeno urbano através do conceito de
polarização, tal como trazido pela Nova Psicanálise. Vale dizer que trabalharemos com as
idéias de ―zona focal‖ e de ―zona franjal‖ (MAGNO, 2003: 421). O pólo
138
é urbano, variando
seus graus de acordo com a localização mais ou menos próxima do foco. A franja definirá, de
acordo com a distância do foco, os diferentes graus de urbanização (cf. figura abaixo).
138
Segundo HOUAISS & VILLAR (2001: 2.254), pólo significa:1.aquilo que orienta, dirige; 2. área em torno de
que gravita ou onde ocorre determinada atividade importante ou se centra um interesse; 3. centro.
198
Partindo desse princípio, e considerando que a cultura urbana se estabeleceu como
paradigmática em todo o planeta, o máximo que podemos distinguir são os diferentes graus de
urbanização que encontraremos nas situações/regiões que estudarmos.
POLARIZAÇÃO / POLO URBANO
ZONA FOCAL
ZONA FRANJAL
FORTES CONEXÕES
Deste modo, se estabelecermos que o pólo urbano será definido por diferentes e fortes
conexões
139
entre formações culturais, mentais, políticas, financeiras, intelectuais,
comerciais, residenciais, profissionais, geográficas, informacionais (de base eletrônica ou
não), etc. , o grau de urbanização dependerá do grau de aproximação da zona focal do pólo
existente. No contexto deste trabalho, esse grau refere-se ao conceito de Eu como Pessoa tal
como concebido pela Nova Psicanálise, compatível com o conceito de Rede, com Foco e
Franja, e composta de uma pletora de formações primárias, formações secundárias mais a
formação originária, que se situam não apenas no corpo de um indivíduo, mas em qualquer
parte do Haver
140
.
Neste sentido, cada Pessoa é a própria constituição que vai situá-la como um certo
grau de urbanização. Por sua vez, o grau de urbanização (de) uma Pessoa não coincide com o
grau de urbanização do espaço geométrico dito urbano que ela freqüenta. Assim sendo, este
139
Neste trabalho, o termo conexão é entendido em sentido amplo: informacional, mental, cultural, político,
sintomático, situacional, financeiro, intelectual, geográfico, ato ou efeito de conectar, ligação social, ligação
profissional, ligação de interesses, ligação de amizades, acessos, sistema de comunicação e telecomunicação,
meio de transporte, meio de comunicação, vínculo, o que une de um ponto a outro os diversos setores da vida de
um indivíduo etc.
140
MAGNO, MD Falatório 2004. Economia Fundamental. Metamorfoses da Pulsão. Seção (113) de
28/08/2007, no prelo.
199
espaço geométrico funciona como apenas mais uma de suas conexões. Seguindo este
raciocínio, podemos especular que, no conceito clássico de cidade, afirmava-se que as cidades
continham pessoas, ou que pessoa e cidade estabeleciam uma relação de sujeito e objeto, ou
que existia uma fronteira que definia onde terminava uma pessoa e começava uma cidade.
Agora, utilizando os conceitos que apresentamos, podemos afirmar que não há fronteira
distinguível que delimite uma pessoa que é composta de formações que se consideram e que
incluem, entre inúmeras outras formações, espaços físicos e geográficos.
Assim, nessa transa de formações, formam-se cidades singulares segundo trajetórias
específicas, que apesar de dificilmente detectáveis cada um em sua própria angústia, em sua
solidão, em sua havência o transmitidas pela inscrição das ações das Pessoas no mundo.
Muda, portanto, a referência para o entendimento da cidade: a cidade (de) uma Pessoa não
será igual à (de) nenhuma outra. Por mais semelhantes ou coincidentes que sejam em algumas
formações, a cidade que uma pessoa é sempre dependerá da resultante de um conjunto enorme
de formações, cada uma com seus vetores próprios. As pessoas podem, sim, compartilhar
algumas ou várias formações: neste caso, podemos dizer que são partes de pessoas que
constituem cidades semelhantes.
Esta via de entendimento inclui e acolhe toda e qualquer Pessoa, a partir das suas
diferenças intrínsecas. Assim, a cidade que eu sou as conexões, a visão de mundo, os
sintomas que filtram as informações que me constituem, o aproveitamento do espaço que eu
produzo, minha condição material e a capacidade de otimização desta condição, minhas
(in)competências, minhas preferências por freqüentar determinados lugares, as memórias
afetivas associadas aos percursos rotineiros, as significações estabelecidas em determinados
locais, a geografia desenhada pela minha necessidade específica de deslocamento diário, a
minha ignorância com relação a espaços que nunca fui etc., enfim toda a gama de articulações
que faz parte da minha história específica e que me constitui - não é a cidade que você é.
200
A cidade (Pessoa) neste contexto é definida pelo conjunto de formações materiais,
geográficas, mentais, intelectuais, informacionais, históricas etc. que constituem a morada de
uma cidadania. A cidade são injunções tópicas que constituem uma Pessoa, ou seja, suas
afinidades seletivas conectadas à rede que a constitui.
As conexões entre formações de cada um é que recortam o mundo, e cada Pessoa é
resultado da confluência das diferentes formações e articulações que a constituem como a
cidade que ela é. Portanto, A cidade sou eu.
Nas próximas páginas mostramos, a título de ilustração, a litografia do artista gráfico
holandês M. C. Escher (1898-1972), intitulada ―Galeria de Arte‖
141
(1956), onde vemos um
jovem em pé, no canto esquerdo, numa galeria, olhando um quadro, onde se uma cidade
litorânea, com um barco, em primeiro plano, e, mais acima à esquerda, algumas casas ao
longo de um cais. O quarteirão de casas continua, à direita, até uma casa de esquina, cuja
entrada conduz a uma galeria de arte, onde uma exposição de quadros e um jovem, em pé,
a observar um dos quadros em que se vê um barco.... De tal modo que o observador (o jovem)
faz parte do mesmo quadro que observa, assim como o quadro é apenas uma visão do
observador. A litografia poderia ter a seguinte descrição: um jovem olha uma gravura em que
ele próprio aparece olhando uma gravura em que ele próprio aparece olhando uma gravura em
que ele próprio aparece..., ou: há uma gravura que representa o olhar de um jovem para o qual
uma gravura que representa o olhar de um jovem para o qual... É uma metáfora gráfica do
que tomamos como a inseparabilidade entre Pessoa e Cidade.
141
Cf. ERNST, Bruno. El efecto Droste y Galería de Grabados de Escher em
http://juegosdeingenio.org/archivo/718, e B. de Smit e H. W. Lenstra Jr. ―The mathematical structure of Escher‘s
Print Gallery‖ em Notices of The Artful Mathematics, v. 50, nº 4, 2003, disponível em
http://escherdroste.math.leidenuniv.nl/.
201
202
A pessoa num museu olha um quadro, no quadro tem uma cidade, que tem um museu que tem
a pessoa que olha o quadro... Existe delimitação entre Pessoa e Cidade?
203
7 CONCLUSÃO
Sei que ouço uns murmúrios no sangue a cada vez que um poço se me abre sem
fundo e eu vejo uma cidade, (...) se a arte é um calabouço, essa visão é uma lição de
liberdade. (TOLENTINO, 2006: 33)
Nosso objetivo foi propor um conceito de cidade. Entendemos que o conceito proposto
requer uma mudança de visão que propicia um entendimento mais amplo e preciso,
principalmente porque estamos considerando a articulação deste conceito sob o ponto de vista
da estrutura da nossa mente, segundo a concepção da teoria da Nova Psicanálise. Isto é, um
conceito de cidade e de eu compatíveis com nosso modo de funcionamento mental e com as
configurações hegemônicas do mundo contemporâneo.
Diferentes autores que apresentamos são unânimes em mostrar que a cidade estrapolou
o espaço físico, ela tornou-se abrangente. Cidade é o modo de ocupação do mundo, por isso
podemos falar em cidade informacional, cidade global, ecstacity, cidade de bits, etc. Do
mesmo modo vários autores mostram que o modo de ocupação do mundo é urbano (assim,
cidade é o modo urbano de ocupação). Mostram a generalização do modo urbano de vida, a
ponto de sugerir que não se refira mais ao termo cidade e sim, o urbano
142
. O modo urbano de
habitar é o modo contemporâneo (com ou sem cidade geográfica ao lado), e o que temos são
focos urbanos mais ou menos densos. Não existe um modo de vida ―fora‖ do modo urbano,
dada esta amplitude, podemos passar a falar em Orbanismo, pois nossas considerações
abrangem o mundo e o universo como formações dessa Pessoa-cidade.
A cidade, o mundo ou qualquer espaço, interessa para nós e, teremos
conhecimento, enquanto habitável por pessoas. Tudo que está (civilização, etc.) é
subproduto da existência desta espécie. Deste modo, a partir do que posso descrever a
existência dessa cidade, desse pensamento urbano? A partir da pessoa. A pessoa é produtora e
consumidora do urbano, e o urbano é aquilo que constitui o conjunto de formações dessa
142
Referência feita no capítulo 6 deste trabalho.
204
pessoa. Neste raciocínio, não possibilidade de separação entre pessoa e cidade, porque
fazem parte de um mesmo processo o modo urbano de vida. O que podemos analisar é o
grau de inserção de cada pessoa, de acordo com o foco e a franja que a constitui.
Quando uma pessoa se desloca, carrega suas conexões, seus recursos, suas
competências. Cada pessoa-cidade é resultante da enorme quantidade de variáveis que mudam
de acordo com a configuração das formações de cada um em cada situação. A cidade que cada
pessoa é, é resultante de um conjunto enorme de formações. Por mais que algumas pessoas
possam compartilhar algumas formações em comum, a resultante de todas as formações que
constituem uma pessoa nunca será igual a de outra. O título de nossa tese é uma afirmação
universal: qualquer pessoa, contemporaneamente, pode dizer: A cidade sou eu.
Para desenvolvermos esta tese, definimos inicialmente o que significa conceito, que
não é identificável com as coisas, ainda que guarde relações de co-pertinência com a
realidade. Sob o ponto de vista epistemológico reconhecemos que todas as explicações de
mundo são equivalentes, restando a discutir, se e quando for o caso, sua força de autoridade e
seu poder de performance no que concerne aos problemas que lhes podem ser colocados.
Vimos a implantação de um conceito de cidade, no período neolítico, que tomava
como referência o sedentarismo, a geografia, o solo, o tempo cronológico, a domesticação do
homem, o reconhecimento da consangüinidade e, conseqüentemente, os laços de família, de
casal heterossexual reprodutor. Atualmente, assistimos ao estabelecimento de conceitos de
cidade, nos quais esta base inicial foi desconsiderada ou está bastante desconfigurada e
relativizada. Assim, a cidade passa a ser definida a partir de diferentes parâmetros, tais como
finanças, capacidade informacional e de conexão planetária, nós e redes, densidade
demográfica, grau de virtualização, experiência sensorial, etc. Sofrendo estas modificações, o
campo do urbanismo passa a considerar o caráter fluido do espaço urbano contemporâneo,
205
que inclui a maleabilidade de transformação, a efemeridade e transitoriedade nos seus usos e
funções, a flexibilidade de sua utilização, a simultaneidade de seus usos e significados e a
justaposição de informações - caracterizando um urbanismo em estado fluido.
Dadas as transformações tecnológicas que atualmente nos permitem comunicar,
interagir, escolher, trabalhar, estar presentes em tempo real e à distância, criando ―um campo
contínuo de presença‖ (MITCHELL apud CASTELLS, 2004: 11), somos multiplicados.
O entendimento do que seja Eu foi relativizado e ampliado e, segundo a teoria da
Nova Psicanálise, este conceito não porta distinção entre sujeito e objeto, é um pólo com foco
e franja, resultante da conjunção de formações que se articulam. Portanto, é composto de tudo
e todos que integram, interagem, têm significação, interferem, pressionam, afetam, dos
lugares que marcaram, da geografia que freqüenta, dos gostos e prazeres específicos, das
repulsas, das tragédias e dramas encenados pela sua vida, das facilitações tecnológicas, das
dificuldades e facilidades financeiras, das (in)competências, da idéias, da corporeidade que
porta - com todas as significações entendidas, e tudo o mais que possamos elencar para
definirmos o que compõe a vida em rede de uma Pessoa. Por tudo isso, cada Pessoa é única, e
sempre será a resultante aqui e agora de todos os seus recursos, fatores e características da sua
história.
Os critérios a serem utilizados na avaliação do que seja ―cidade‖, ficam cada vez mais
dependentes da pessoa enquanto interação, localização, acesso e funcionalidade dos recursos
de que se serve ao habitar
143
. A inutilidade de separar o conceito de pessoa e o de cidade
advém justamente da co-extensão entre o que se é, o que se tem, o que se acessa e do que se
dispõe. Portanto, qualquer cidade poderá ser analisada a partir da Pessoa em questão.
Assim, quando pensamos no processo de expansão do corpo e da mente humanos
mediante a tecnologia, fica mais fácil conceber que a cidade como rede é pertinente à rede que
143
Segundo dicinário HOUAISS, p.1502, habitar = estar presente, povoar, ocupar.
206
uma pessoa é. Com a ―explosão de máquinas portáteis, que fornecem comunicação ubíqua
sem fio e capacidade computacional‖, pessoas, organizações e espaços interagem em qualquer
lugar ou tempo, ―enquanto simultaneamente dependem de infra-estrutura de suporte que
gerencie os recursos materiais em uma rede de distribuição de informações‖ (CASTELLS,
2004: 6). Ao mesmo tempo, com a nanotecnologia e a convergência entre microeletrônica e
processos e materiais biológicos,
as fronteiras entre vida humana e vida maquínica ficam borradas, de tal
modo que as redes estendem sua interação, do eu interior [ = inner self] ao
conjunto da atividade humana, transcendendo barreiras de tempo e espaço
(CASTELLS, 2004: 6).
Se a tecnologia testemunha a extensão e a interação de redes que constituem o tecido
urbano em suas diversidade, borrando a fronteira entre o humano, o maquínico e digital, A
cidade sou eu significa que a rede de formações constitutivas de uma singularidade (= Eu)
constitui a cidade que se é. Somos as conexões atuais e virtuais que nos configuram como
múltiplos espaços e tempos habitados. Da mesma maneira que o tecido e o espaço urbanos
são retalhados pela justaposição de valores e experiências díspares de seus atores sociais,
somos resultado de vinculações que, de modo mais ou menos intenso, nos conformam como a
cidade que somos.
Não distância alguma entre a cidade ―que habito‖ e a cidade ―que sou‖. A cidade
que cada um é, é co-extensiva a seu modo urbano de inserção no mundo. Se a vida, a
sociabilidade e a cultura urbanas se generalizaram, alterando, mediante tecnologias cada vez
mais intangíveis, os diversos ambientes e práticas sociais, podemos dizer que a ―cidade‖
expandida encontrou a ―pessoa‖ que se supunha habitá-la, revelando que, na verdade, habitar
é ser. Em outras palavras, a cidade de cimento, concreto e tijolo que se liqüefez mediante as
tecnologias/espaços de fluxos/etc., encontrou a pessoa, antes contida na cidade e que foi
transformada pelo mesmo processo de liqüefação.
207
Trata-se de considerar cidade e eu como as duas faces do único modo de vida
possível, segundo o vetor predominante, contemporâneo: o modo de vida urbano. Cidade e eu
compõem o percurso uniface de uma cinta de Moebius, no qual desaparecem as diferenças
entre o conceito de espaço que se habita e o conceito de espaço que se é, pois somos a cidade
que resulta do conjunto infinito de conexões disponíveis, aqui e agora identificáveis e
manipuláveis.
A cidade sou eu reside no fato de a sociedade em rede constituir-nos como seres
urbanos sem alternativa de acesso a um ―fora‖ que nos permitisse, por oposição, que nos
situássemos em relação ao não-urbano.
A cidade sou eu reside no fato de a convergência cidade-tecnologia-sociedade ter
tornado indiscerníveis a informação e seu meio de acesso, o entorno social-ambiental e seus
recursos de conexão e comunicação, sem acesso a um ―fora‖ que possibilitasse ver separados
o habitat e o habitante.
Nossa tese A Cidade Sou Eu é a formulação conceitual de que não
distância/diferença entre realidade e representação simbólica. Se quisermos transpor para
estes termos, ―a cidade que uma pessoa é são as suas representações simbólicas. Uma
pessoa-cidade é também um conjunto de representações simbólicas.
que se pensar a cidade a partir desta perspectiva, colocada não como um plano
determinado que me é exterior, no qual devo pedir licença para entrar, seguindo regras criadas
por outrem nos contextos de suas cidades específicas. Trata-se de uma transformação no
modo de considerar a própria cidade geográfica, a partir da qual a estrutura material que nos
rodeia deve considerar a cidade que cada um é.
Acreditamos que a proposição A cidade sou eu encontra fortes pontos de sustentação.
Passando em revista o que apresentamos, poderíamos assim concluir em defesa de nossa
tese:
208
1. espaço e, ousaríamos dizer, exigência de crescimento conceitual dentro das
discussões travadas no urbanismo quanto à cidade contemporânea: o momento é
propício devido à própria movimentação tecnológica que está redesenhando o conceito
de cidade;
2. Modelos explicativos da cidade contemporânea, que incluam interfaces de discussão
com outros campos de pensamento, podem oferecer propostas compatíveis com a
realidade dessa cidade, que não tem mais muros nítidos e funciona na passagem,
isso é, funciona integrando informação dos mais variados níveis;
3. A identificação da cidade a Eu = Pessoa é interessante e produtiva, pois explica o
dado relacional dessa cidade a partir da transformação de seus habitantes em partes da
rede que a constitui;
4. A apresentação de um conceito de cidade igualando Eu = Pessoa é eficaz, pois
apresenta uma forma de entendimento das transformações pelas quais o pensamento
contemporâneo está articulando os conceitos de espaço, de lugar, de rede, de função e
de pessoa;
5. A retomada do conceito de Pessoa e sua identificação a Eu pode ter efeitos
esclarecedores e pedagógicos: lança mão de raciocínios e termos que estão na ordem
do dia, explicando-lhes, contudo, não somente na região de que todos têm notícia (o
que é indivíduo, sujeito, etc.), mas nas situações em que as significações usuais se
esgotam.
6. A busca de um ponto o mais recuado possível para examinar um problema pode ser
útil, pois costumamos ―voltar‖ com nova visão e com novo encaminhamento. Assim,
supomos estar ganhando em circunspecção ao aplicar ao urbanismo uma teoria que
prima pelos raciocínios abstrativos, ao mesmo tempo em que trabalha concretamente,
com as formações.
209
7. Estamos tratando do Orbanismo, porque consideramos que o escopo das questões
relativas a proposição A cidade sou eu não tem limitações, e não está circunscrito a
nenhuma determinação prévia de espaço. Do mesmo modo, não há condições de
contemporaneamente traçar uma linha divisória entre urbano e não urbano, posto que
não existe nenhuma fronteira que possa designar um ―fora‖ do modo de vida urbano.
O acesso e a interação entre formações que compõe a pessoa não têm limites prévios,
principalmente porque Pessoa é um processo em expansão.
8. Mas isso não basta. Eu = Pessoa é a definição da cidade porque não mais
distância entre quem habita o lugar (o homem), o lugar (a cidade) e as maneiras de
habitá-lo (as relações de poder e as técnicas disponíveis).
9. Nosso entendimento é que, como o conceito de cidade, de urbano, de civilização saiu
dos lugares geométricos e geográficos, é preciso definir a Pessoa para definir a (sua)
cidade. Portanto, qualquer cidadão, qualquer pessoa pode dizer A Cidade Sou Eu.
Nosso objetivo foi propor um conceito. Entretanto, gostaríamos de encaminhar
questões que nos permitirão procurar dar um passo à frente ao presente trabalho e que
pretendemos desenvolver na próxima pesquisa: Como elaborar a gestão política e
administrativa a partir deste entendimento de cidade? Como pensar a prática do dia a dia nesta
cidade totalmente inclusiva? Como gerenciar os conflitos e consensos a partir do
entendimento deste conceito de cidade? Como criar mecanismos de uma administração ad
hoc? Quais habilidades são necessárias para a atuação do orbanista? Este assunto é da maior
importância e a ele daremos continuidade futuramente.
210
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223
ANEXO 1
GLOSSÁRIO DA NOVA PSICANÁLISE
(Organizado por: Paula de Oliveira Carvalho e Nívia Bittencourt)
ALEI ―Haver desejo de não-Haver‖ ou ―Haver quer não-Haver‖ ou ―Haver tesão de não-
Haver‖ e estenografa-se A Ã. É a máquina fundamental da clínica, que Freud chamou de
Pulsão (de Morte), indicando o desejo de alcançar o Gozo Absoluto: extinguir-se, sumir
radicalmente, seja no nível micro (homem), seja no macro (Haver).
Arreligião (psicanalítica) É derivada apenas da experiência de rememoração do Originário,
sem compromisso com quaisquer formações religiosas ou filosóficas anteriores. O prefixo A
indica que a psicanálise não é Religião e ao mesmo tempo que é A Religião, rival radical, pois
abolidora e substituta de qualquer religião.
Arte Tomando o radical ART no sentido etimológico de processo puro e simples de
articulação, a Arte se generaliza para toda e qualquer operação de criação, de invenção, que
resulte na produção do novo, para além das formações já dadas.
Artifício Tudo que é artifício. Tudo se construiu por algum artifício, por uma
articulação. Apresenta-se em dois níveis: Artifício Espontâneo e Artifício Industrial. Ver
Artifício Espontâneo e Artifício Industrial.
Artifício Espontâneo Designa o modo de construção, mais resistente, das formações já
dadas, presentes no Haver desde sempre. Inclui o que se chama de Natureza. Ver Artifício e
Artifício Industrial.
Artifício Industrial Designa o modo de construção, mais maleável, das formações
produzidas pelas Idioformações - que podem forçar a reversão do espontâneo, do já dado. Ver
Artifício e Artifício Espontâneo.
Ato Poético Ato criativo, em que há a intervenção da Hiperdeterminação. Ver Criação.
Binário Referido à gica da dualidade entre formações de pólos opostos. dois binários:
(a) o binário simples ou ―interno‖ (entre formações modais do Haver que se opõem); e (b) o
binário ao quadrado ou ―externo‖, elevado à segunda potência, (2
2
), quando a massa
homogênea do que há se opõe ao não-Haver desejado.
Bipolaridade Dualismo presente em toda e qualquer afetação psíquica, fazendo parte do
Pathos humano. A bipolaridade funciona em qualquer situação e não apenas nas ditas
nosologias. Ver Patologia.
Cais Absoluto Lugar extremo do Haver, onde o conjunto pleno do que opõe-se ao que
não-há. Lugar de máxima afetação e angústia, pois o não-Haver é requerido pelo Haver,
mesmo não havendo. Lugar ao qual todos se vinculam absolutamente (e não entre si), lugar de
Hiperdeterminação, de Vínculo Absoluto. (Metáfora poética retirada de Fernando Pessoa).
224
Castração Metáfora corporal de ordem mítica, indicando a impossibilidade de Haver passar
a não-Haver. Ver Simetria, Quebra de.
Catoptria (Princípio de) Do grego kátoptron: ‗luz‘, ‗espelho‘, ‗refletor‘. Princípio de
funcionamento dos espelhos produtores de reflexão, no sentido de absoluta reversão,
enantiose ou Revirão. Emana da neutralidade do Haver e do psiquismo. Ver Revirão.
Causa O movimento do Haver em direção a não-Haver produz o excesso em vazio (pois
não-Haver não há), que funciona, em seguida, como Causa do movimento pulsional.
Cinco Impérios São os cinco tipos de performances culturais que a NovaMente extrai de
sua experiência e de suas bases conceituais como produção da espécie humana, numa
escalada progressiva em termos de aquisições simbólicas. São herdeiros das vinculações
primária e secundária, cuja estada constitui a passagem por um creodo (‗caminho
necessário‘), no encaminhamento para o Originário. Nada obriga a este caminho não há
imperativo mas para ele estamos disponíveis: 1°) Império d’Amãe: Devido à descendência
carnal de nossa existência como animais diferenciados, de início a referência de ‗Eu‘ eram as
mães. Pessoas de ambos os sexos viviam e se deslocavam centradas nas mães, que serviam de
referência na organização do espaço e do movimento, enquanto nomeadoras dos indivíduos e
organizadoras dos grupos. A ordem de filiação estava estritamente vinculada ao Primário. )
Império d’Opai: Saber quem é a mãe pode ser fácil, bastando verificar e atestar o nascimento.
Bem mais difícil era saber a quem atribuir a paternidade, antes do teste de DNA. Neste
Império está a invenção do Pai do filho da mãe, bem como de um Pai-do-céu, que é pai de
certo povo dileto. A referência agora é à passagem do Primário ao Secundário. 3°) Império
d’Ofilho: A invenção de Jesus Cristo como filho de um Pai que não é mais apenas o pai de
certo povo, mas sim de todos os que ouvem a Sua palavra. Estamos situados atualmente neste
Império, onde a referência é estrita ao Secundário. 4°) Império d’Oespírito: Surgiria quando
dispensarmos a palavra como mediadora da relação com Deus, assim como a idéia de
paternidade, reconhecendo que o regime Secundário dá sustentação às manifestações
culturais que efetivamos na transcrição do Primário, se estiver referido ao Originário. se
tomaria as maquinações culturais de modo cada vez mais abstrato e generalizado. assim,
todos, genericamente, sem menor discriminação por mãe, pai ou palavra assentada, poderiam
ser absolutamente ―irmãos‖, embora diferentes, ou mesmo contraditórios. Constatam-se várias
‗lufadas‘ parciais ou regionais do ‗vento‘ deste Quarto Império. Nele estamos adentrando,
mas ainda mal preparados e aderidos ao Terceiro Império. O efeito primeiro dessas aderências
é a recrudescência de nacionalismos, de regionalismos, de confissões religiosas, de crendices
e magias reentonadas, e de velhas moralidades reentronizadas. Mas se tivermos sorte,
acabaremos por tomar assentamento neste novo estádio. A referência seria então à passagem
do Secundário ao Originário. 5°) Império do Amém: É ainda impensável, pois sem
experimentar efetivamente o Quarto Império, talvez nem saibamos conjeturar direito o que
virá depois. No Quinto Império há que bendizer quase tudo, ou mesmo tudo (em latim
valetudo significa saúde) mas sustentando ao mesmo tempo um juízo acirrado e rigoroso,
para além da aderência patológica e patética às nossas formações sintomáticas tão
particulares, isoladas e ociosas. Sua estrita referência é ao Originário. (Alusão aos ‗Cinco
Impérios‘, de Fernando Pessoa). Ver Creodo Antrópico.
Clínica Geral Clínica do mal-estar em geral no Haver, abrangendo toda e qualquer
manifestação cultural, de qualquer campo (arte, filosofia e ciência). Pode ser chamada
também de Clínica da Cultura. Inclui a chamada clínica de consultório.
225
Com-sideração Modo de abordagem das formações para produção de conhecimento, sem
dispensar a referência à Hiperdeterminação. Afetação recíproca entre formações, que
estabelecem transas e transes em vários níveis, decorrentes da catoptria do Haver.
Comunicação O ápice da comunicação ocorre no silêncio absoluto, na impossibilidade de
dizer a experiência de Haver, mas vinculado absolutamente à ele. Nesse Vínculo Absoluto se
fundamenta toda e qualquer comunicação, decorrente de transas e transes entre formações,
herdeiras de vinculações aos regimes Primário e Secundário. Sua teoria mais genérica é a
Transformática.
Conhecimento Aplicação de uma formação (mais ou menos complexa) como tradutora de
outra formação. Resultado necessário de transas entre as formações, mesmo que não exista ali
nenhuma Idioformação. Tudo que se diz é da ordem do conhecimento.
Consistente (Sexo consistente) Resulta da sexuação, como modalização polarizada do sexo
singular. É pura perversão, correspondendo ao chamado sexo masculino, cuja lógica está
referida à seguinte fórmula: ―Existe pelo menos um que nega a função fálica para que todo x
seja função fálica‖.
Criação Criar é ultrapassar o que está dado, reverter o que parecia irreversível. A partir
da indiferenciação interna no Haver, sob o empuxo da Hiperdeterminação, o indiscernível se
discerne e o achado de algo novo é acolhido pela primeira vez. Ver Arte.
Criatividade Simples re-combinatória de formações, sem recurso à HiperDeterminação.
Contrapõe-se a Criação.
Cultura Em sentido genérico e abrangente, é o modo de existência da espécie humana. Em
um de seus sentidos específicos, é vista como Neo-etologia.
Denegação (Princípio de) Modo de negar o que já tinha sido afirmado, e que, portanto, não
se pode eliminar. Elaborado a partir do Princípio de Afirmação de Freud, que diz que só se
pode negar o que se afirmou antes.
Denegação Projetiva (Princípio de) Processo de projetar a denegação construída.
Parcialização de um reviramento, ou seja, não revirar determinado ponto e fazer daquilo
denegação e projeção. Ver Denegação (Princípio de).
Desistente (Sexo desistente) O não-Haver enquanto quarto sexo, na suposição de um gozo
absoluto, que não há de fato. Trata-se do sexo impossível de freqüentar como lugar onde ―não
há função fálica‖.
Enantiose ou enantiomorfismo Possibilidade de reversão ao avesso absoluto, a partir da
razão catóptrica ou razão enante-homórfica.
Estética Designa um tipo de sensibilidade, de estesia, que não se restringe ao campo do
sensível. A estética é pensada em toda e qualquer prática do homem, uma vez que o fenômeno
estético está presente em toda formação.
226
Excesso Só há excesso. Não existe falta. Em virtude do excesso, o Secundário é
―ïnventado‖ por nós, ou melhor, secretado mediante nós, em decorrência da pressão do
Originário.
Falanjo Terceiro Sexo, resultante da transa do Falo com o Anjo. Seu gozo se por
escrito, em produção de sentido. Na verdade, em termos de surgimento na estrutura, ele vem
primeiro e é hierarquicamente superior aos outros dois sexos, homem e mulher. Denominação
do que posteriormente veio a se chamar Sexo Resistente, que se modaliza nos sexos
Consistente e Inconsistente. Ver Sexuação.
Fantasia Primordial A fantasia primordial do Haver, como a nossa, é Haver desejo de não-
Haver, na alucinação de um objeto impossível, que não há. Alucinado como lugar, destino,
pelo próprio movimento da plerocinese.
Fixação Inscrição que predispõe a certos limiares de sensibilidade, no sentido estético,
como resultado da marcação de formações do Haver, que, por si só são resistentes à passagem
da pulsão, portanto, são fixantes, produzem fixações. Toda e qualquer parada da energia
pulsional neutra gera fixação, que pode se inscrever com uma qualidade positiva ou negativa,
na dependência da experiência ter sido prazerosa ou desprazerosa. As fixações constituem
forças de recalcamento na competência de reviramento, mas não dependem de recalques.
Formação Toda e qualquer conjuntura destacável, desenhável, dentro do Haver, seja qual
for a forma ou a materialidade de seus elementos ou dela mesma. O próprio Haver em sua
plenitude é uma formação (aliás, de última instância), assim como o é o Revirão que se supõe
funcionar no Haver.
Formação do Haver O que quer que se organize, o que quer que se forme, espontânea ou
industrialmente, como modalização decorrente da fractalidade do Haver, seja da ordem de um
ser vivo, de uma formação psíquica, qualquer coisa. As formações do Haver se movimentam
no empuxo d‘ALEI, como ressonância ou metáfora da impossibilidade última de Haver passar
a não-Haver. Ver ALEI.
Haver (A) O conjunto aberto de tudo que e que pode vir a haver. Inclui o chamado
Universo.
HiperDeterminação Empuxo do não-Haver que, como o nome diz, é tão exterior ao Haver
que nem há, mas nele se inscreve e se re-inscreve na espécie humana, como Causa.
Exasperação da diferença entre a homogeneidade do Haver como Um e o não-Haver. Aplica-
se sobre o aparelho de Revirão, para suspender as determinações primárias e as
sobredeterminações secundárias.
Hiper-Recalque Um regime do recalque responsável pela produção de psicose. Resulta em
hipóstase da lei, com retroação do enunciado legal, do regime secundário ao primário.
Corresponde ao terceiro grau de reificação, com forças intensivas extremamente poderosas.
Homogeneidade O Haver, em sua totalidade, é homogêneo no seu seio. O que dá a
impressão de heterogeneidade são as fechaduras das formações, que impedem as transas
dentro do Haver.
227
IdioFormação Uma (qualquer) formação que tenha disponível para si (mesmo que não
aplicada hic et nunc) a Hiperdeterminação. O Haver e o Homem são exemplos de
Idioformações.
IdioFormação (Princípio de) Idios: ‗mesmo‘. O universo tem uma formação em reflexão,
espelho, catoptria e, em última instância, produz algo que repete a sua reflexão. Repete-se a si
mesmo. Ver Catoptria (Princípio de).
Imanência O fato de haver formações coloca uma imanência da qual não se sai nunca. A
transcendência é colocada de direito, mas não há de fato.
Inconsistente (Sexo inconsistente) - Resulta da sexuação, como modalização polarizada do
sexo singular. É pura sedução, correspondendo ao chamado sexo feminino, cuja gica está
referida à seguinte fórmula: ―Não existe nenhum que diga não à função fálica, logo, não-todo
x é função fálica.‖
Indiferenciação (Indiferença) Neutralização. Resultado da equivalência entre dois pólos
opostos, com superação da dualidade, revelando um terceiro lugar que sofre o empuxo da
HiperDeterminação. Estado neutro do Real.
Insistência- Aquilo que é condição sine qua non de qualquer criação, que vige na essência do
recalcado e a neurose tenta apagar. A insistência sem recalque se mostra na perversão.
Maneiro Denominação dada por NovaMente ao Maneirismo: estilo artístico radicalmente
diverso tanto do clássico quanto do barroco, e que não é uma mistura dos dois. Posição
tipicamente dialética, reflexiva, terceira, em Revirão. A obra de arte, enquanto tal, é maneira.
Morte ‗A Morte não há‘, porque não há o gozo da morte. É impossível para qualquer um ter
experiência de morte, sua ou de outro. O que existe são experiências de perda, castração.
Nada Estado do Haver em neutralidade, sem diferença interna, o puro fundo de indiferença
que revela a homogeneidade das formações do Haver. Equivale ao Chi, dos chineses.
não-Haver (Ã) Avesso radical do Haver. Designa o gozo absoluto requerido pela pulsão, o
Impossível. É conjecturado, de direito, pela catoptria do Haver, mas de fato, ele não há. As
IdioFormações, por sua constituição íntima, não podem não conjecturar o não-Haver em
última instância, como Causa de desejo.
Neo-Etologia Formação sintomática que resulta de Recalque Secundário, imitando o modo
de formação do recalque primário. O que é proibido se comporta como se fosse impossível. A
cultura pode criar uma nova etologia, que imita as formações etológicas espontâneas do nível
Primário, por excesso de crença nos modelos de comportamento dados.
NovaMente (ou Nova Psicanálise) Aparelho clínico de simulação da suspensão dos
recalques, criado em 1986, por MD Magno, na linhagem de Freud e Lacan. Trata-se de uma
reedificação da psicanálise com base nos mais importantes achados desses dois mestres. Tem
se mostrado à altura de orientar uma leitura da situação atual do mundo, sobretudo em seus
aspectos de conhecimento. Coaduna-se com as teorias contemporâneas da cosmologia e da
física, e demonstrou antecipá-las em diversos pontos cruciais.
228
Novo Renascimento Desenvolvimento de uma forma de inscrição capaz de reformatar toda
a cultura, do mesmo modo que a imprensa (página) e a perspectiva (quadro) renascentista
reformataram a era medieval. Ambiente de uma racionalidade nova, passível de mudar as
formas de conhecimento, de concepção de mecanismos de mundo e de manipulação do
conhecimento produzido.
Originário (OR) (Nível ou Regime) (Recalque) Fundamenta-se na axiomatização da
ALEI. Designa a dissimetria radical do Haver e do psiquismo, decorrente da impossibilidade
do Haver passar a não-Haver.
Patologia Todos existimos dentro do Pathos, que não é doença (nosologia), e sim o que nos
afeta. E o que nos afeta primordialmente é a secção, de onde nossa sexualidade deriva.
Pessoa IdioFormação do caso humano. Situada em determinado pólo, apresenta foco e
franja e, em sua extensão máxima, abrange o Haver por inteiro. Ver IdioFormação e Haver.
Ponto Bífido Ponto neutro, com possibilidade (não de se orientar, mas) de ser direcionado
ora para um lado ora para outro.
Primário (Nível ou Regime) (Recalque) Conjunto de formações que o Haver oferece
espontaneamente. As formações materiais existentes no Haver. No primário de nosso corpo
dois níveis: autossoma (constituição biótica) e etossoma (conjunto dos comportamentos
inerentes ao autossoma).
Prótese Invenção resultante de invocação da Hiperdeterminação. Pode ser psíquica, verbal,
tecnológica, etc. Imita nossa originariedade, pois a prótese fundamental é o Originário. Ver
Originário.
Pulsão Conceito fundamental da Nova Psicanálise que segue a última instância elaborada
por Freud, a Pulsão de Morte. Inscreve-se no movimento da libido como tesão e estrutura-se
como Revirão. O próprio movimento do que como modo de funcionamento do Haver.
Deste conceito se deduzem todos os outros: recalque, inconsciente, repetição, transferência,
narcisismo, etc.
Real Ponto absolutamente neutro, indiferente, que não passagem para o não-Haver,
porque ele não há. Comparece no Haver como marca do não-Haver, como inscrição do
impossível. Ver Cais Absoluto.
Recalque Conceito que estrutura o pensamento psicanalítico. O que incide sobre as
formações, embargando o movimento pleno da pulsão. O que quer que emperre o Revirão é
fundação de Recalque. O que quer que não esteja comparecendo aqui e agora é da ordem do
Recalque. Ver Recalque (Regimes ou Registros do).
Recalque (Níveis ou Regimes de) 1°) Primário Regime das formações materiais que o
Haver oferece espontaneamente, recalcantes do Revirão. No Primário de nosso corpo dois
níveis: autossoma (constituição biótica) e etossoma (conjunto dos comportamentos inerentes
ao autossoma). ) Secundário Regime secretado pelas Idioformações como imitação do
modo de produção do Primário. Inclui o que se chama de simbólico e de cultura. 3°)
Originário Quebra de Simetria no Haver e no psiquismo, dada pela impossibilidade de o
229
Haver passar a não-Haver. Competência que têm as Idioformações de reviramento radical do
que quer que se apresente. Fundamenta-se na axiomatização da ALEI.
Reificação Processo progressivo/regressivo entre níveis, variando em três graus segundo
sua intensidade. Primeiro grau (analogia): reificação branda que se no Secundário, por
imitar o modo de construção do que estava no Primário, não sendo necessariamente
recalcante. Segundo grau (metáfora): recalcamento. Terceiro grau (hipóstase): reificação do
Secundário sobre o Primário, hiper-recalque, onde o que é proibido é tomado como
impossível.
Renascimento Maneirista Estamos por ver surgir um grande Renascimento Maneirista (e
não Classicista), um Novo Renascimento, uma Nova Razão ou um Novo Iluminismo.
Caracteriza-se pela capacidade de referência à Hiperdeterminação. Ver Maneiro e Projeto
Pró-Moderno.
Resistência O Haver é resistência em estado puro, originária, pois não passa a não-Haver.
Abaixo disso temos inúmeros níveis de resistência. As formações do Haver, às vezes, não
resistem, perecem. Tudo que há se inclui na política, no jogo das resistências. A Nova
Psicanálise supõe a vida como pura resistência à pulsão pelo não-Haver.
Resistente (Sexo resistente) - O sexo absolutamente singular, análogo ao sexo do Haver
como expressão da pulsão de morte, puro tesão que se escreve por força d´ALEI: ―existe
função fálica, ela pode ser negada, mas não toda.‖ Se modaliza em sexos Consistente e
Inconsistente.
Revirão Máquina lógica tomada como exemplar dos movimentos do psiquismo e do Haver.
Decorre d‘ALEI e se presentifica para as Idioformações na possibilidade que têm de pensar,
querer e mesmo produzir o avesso de tudo que lhes é apresentado.
Secundário (Nível ou Regime) (Recalque) Regime produzido pelas Idioformações
enquanto referidas ao Primário (etossoma e autossoma), mas empuxadas pelo Originário, que
é sua competência de reviramento radical do que quer que se lhes apresente. Inclui o que se
chama de simbólico e cultura.
Sexuação Modos gicos de estabelecimento de gozo. Concerne às modalidades de gozo
decorrentes do Tesão do Haver pelo não-Haver. São quatro sexos: O Quarto sexo, é o Sexo
Desistente, ou Sexo da Morte, que quer eliminar o Tesão completamente, mas não comparece
por impossibilidade de entrar em funcionamento. O Terceiro Sexo é o Sexo Resistente que se
põe como Um, o sexo do Haver, que simplesmente indica qual é o movimento do Tesão, sua
afirmação diante da não existência da eliminação do Tesão. Quando o Haver se fractaliza
diante da não havência do não-Haver, este Terceiro Sexo se modaliza em duas polaridades:
Sexo Consistente, que imita o Um do sexo resistente e faz uma universalização; e Sexo
Inconsistente, cujo modo de atingimento de gozo é na infinitização, sem designar fronteiras.
Simetria Aquilo que é desejado pelo Haver e pelo psiquismo, por imposição da catoptria,
de acordo com ALEI: Haver desejo de não-Haver.
Simetria, Quebra de A fractalização do Haver diante de um espelho absoluto, por desejar
seu avesso catóptrico e não conseguir atingi-lo. Ocorre pelo fato de não-Haver ser impossível.
Inclui o que Freud chamou de castração e indicou como recalque originário (Urverdrangung).
230
Sobredeterminação Imensa gama de elementos, de formações que determinam a vida da
gente. Podem ser de nível Primário ou Secundário.
Terceiro Sexo Ver Sexuação.
Transcendência Suposição de que há algo para além de nós.
Um Tomar o Haver como um todo. Experiência radical de solidão absoluta e de
reconhecimento de que há Um. Chegar a experiência de Haver diante de um não-Haver
radical põe a experiência da totalidade como Um. Lugar onde todas as diferenças se
suspendem. Ver Homem com‘Um.
231
ANEXO 2
BREVE EXPLANAÇÃO DO CONCEITO DE PESSOA E DO PERSONALISMO
A origem etimológica da palavra pessoa não está totalmente esclarecida. Sabemos que
inclui a derivação grega de prósôpon, que era a máscara que os atores colocavam sobre o
rosto, indicando as características e trejeitos de seu personagem. Vem do latim persona,
vocábulo de muitas acepções, entre elas, a máscara do ator, o ator ou o papel representado
144
.
A formulação do conceito de Pessoa se no pensamento cristão, sobretudo entre os
séculos II-IV, a partir das questões teológicas envolvendo o estatuto pessoal do Deus uno e
trino, e dos sentidos da encarnação divina. Ao longo da reflexão teológica da época, foram se
estendendo o uso e significação do vocábulo persona que guardava acepções jurídicas e
populares
145
, que passa a designar homem, sem distinção de raça, condição social,
econômica e jurídica, gênero, idade, etc., ampliação que se deveu à própria sintomática de
base cristã e sua formulação da idéia de fraternidade universal a partir da filiação divina.
Surge daí uma das características do conceito de Pessoa, muito acentuada nas concepções
filosóficas simpáticas ao termo, no séc. XX, a saber a afirmação da primazia da Pessoa sobre
todo o resto da realidade ou a afirmação de sua irredutibilidade face aos níveis inferiores da
existência, em função de sua vocação para a transcendência.
Com o processo de secularização da cultura e do pensamento que acontece no
Iluminismo (séc. XVIII), o conceito de Pessoa o apenas vai se afastando da tutela teológica
e eclesiástica em que se havia forjado, como também, nesse processo, vai explicitando outros
conteúdos de definição oriundos do pensamento filosófico clássico e sua remodelação feita
pelos modernos. Assim, por exemplo, aspectos diversos da noção de substância como
144
Cf. Novissimo Diccionário Latim-Portuguez, de F. R. dos Santos Saraiva. ed. Rio de Janeiro, Livraria
Garnier, 1927.
145
Em Cícero (106-43 a.C.), escritor, jurista e político da República romana, persona é equivalente a prósopon
no sentido de aquele que se e que, portanto, faz rosto. Cf. Dicionário de Pensamento Contemporâneo,
dirigido por Mariano M. Villa. São Paulo: Paulus: 2000, verbete Personalismo cristão.
232
essência, subsistência, substrato ou sujeito (pensante, fenomênico ou transcendental), bem
como de indivíduo com identidade numérica, foram utilizadas, desde a Antigüidade tardia,
passando pela Idade Média e chegando aos Tempos Modernos, para designar o conceito de
Pessoa. Atesta-se, então, uma certa ambigüidade de base no conceito tal como ele nos chega
hoje, pois de seu design participaram tanto a tradição judaico-cristã do deus pessoal (uno e/ou
trino) quanto a tradição filosófica da substância, com seus sub-conceitos. No séc. XX, apenas
para dar uma idéia, a reflexão filosófica que se ocupou do tema da Pessoa, isto é, o
Personalismo, incluiu tradições de pensamento como o neo-tomismo, o marxismo e o
existencialismo, aos quais ligaram-se concepções de inspiração cristã (protestante e católica),
judaica, gnóstica, metafísica, etc. Percorrendo essas vertentes encontraremos na discussão
acerca da Pessoa (definições, características, práxis) os seguintes temas comuns: a
singularidade única da pessoa humana sobre o pano de fundo da indistinção (da natureza
humana genérica); seu caráter de sujeito racional e livre; sujeito que é intersubjetividade, e
não solidão e fechamento em si mesmo, pois existe como eu na relação com tu; donde,
Pessoa ser algo relacional e comunitário. Somam-se ainda as questões da existência, da
corporeidade, da historicidade, tudo isso carregando a marca da impossibilidade de se esgotar
o que seja Pessoa, em função de sua característica única, que a designa como singlaridade: ser
abertura para a relação
146
seja no sentido da intersubjetividade, seja no sentido da
transcendência absoluta.
146
―Quem pretender construir em torno da pessoa um ‗aparato de pensamento e ação que funcione como um
distribuidor automático de soluções e de palavras de ordem‘ reduziu a objeto aquilo que por princípio é
inobjetivável, não-inventariável, e não se deixa reduzir a uma definição, por ser a originalidade criadora, a
novidade pessoal e histórica e, em suma, as perspectivas abertas, o que nos indica a presença e a vocação dessa
experiência superior que o pessoal implica. Esta abertura inesgotável faz com que nem sequer se possa falar, a
rigor, de personalismo, como se se tratasse de escola, e sim de correntes personalistas, de personalismos, pois
são muito diversas as perspectivas das quais se pode abordar a realidade pessoal, embora se finalmente a
convergência de todos eles nessa afirmação da pessoa como um prius ontológico e moral. [O personalismo] é
filosofia aberta tanto às outras orientações filosóficas que ‗iluminam de diferentes direções amplas províncias do
mesmo país‘ (como o marxismo, o existencialismo e muitas outras), como ao próprio devir histórico, pois
combina a fidelidade a certo absoluto humano com experiência histórica progressiva‘‖. In: Dicionário de
Pensamento Contemporâneo, op. cit., verbete Personalismo.
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