Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
AS RAÍZES HISTÓRICAS DA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER
RANIERI CARLI DE OLIVEIRA
Rio de Janeiro
2008
1
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
RANIERI CARLI DE OLIVEIRA
AS RAÍZES HISTÓRICAS DA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER
Tese apresentada ao programa de pós-graduação em
serviço social na Universidade Federal do Rio de
Janeiro para a obtenção parcial do título de doutor
em serviço social.
Orientação: profº José Paulo Netto
Rio de Janeiro
2008
2
ads:
RANIERI CARLI DE OLIVEIRA
AS RAÍZES HISTÓRICAS DA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER
Banca examinadora:
__________________________________________
Profº José Paulo Netto (orientador)
__________________________________________
Profª Virgínia Fontes
__________________________________________
Profº Celso Frederico
__________________________________________
Profº Carlos Montaño
_________________________________________
Prof º Carlos Nelson Coutinho
3
Dedicado aos meus professores
Cristina Dias e Mário Henrique
4
AGRADECIMENTOS
Um espaço de ser reservado para os devidos agradecimentos às pessoas que
incentivaram a realização do presente estudo:
À minha família: aos meus pais José Teodoro e Maria A. Carli de Oliveira, às
minhas irmãs Michele e Daniele Carli, à adorável Rafaela, ao futuro tricolor Giovani e à
companheira Capitu.
Ao meu orientador José Paulo Netto, pela ajuda de enorme valia a mim
dispensada, e aos professores que generosamente compõem minha banca examinadora.
Virgínia Fontes, Celso Frederico, Carlos Montaão e Carlos Nelson Coutinho.
Às grandes amizades que fiz na UFRJ, Sônia Ramos, Marcos Botelho, Cezar
Henrique Maranhão, Yolanda Guerra, Paulo Roberto Tavares, Rodrigo Castelo Branco,
Valéria Rosa.
Guardo um lugar para os especiais Fátima Masson, uma das pessoas mais lindas
que passaram por mim; Adrianyce Angélica e Daniela Souza, as minhas pequenas
notáveis, a quem devo uma bela amizade; e Henrique Wellen, Fernando Leitão e Arthur
Sampaio, companheiros de toda e qualquer hora.
Diga-se que coube a Henrique Wellen a ingrata tarefa de revisar o presente texto,
que meu bom amigo aceitou de prontidão. Agradeço-lhe o empenho em não permitir que
uma série de erros constasse aqui.
Aos eternos amigos de longa data Fernando Velloso, Rodrigo Marcelino e
Leandro Longo. São mais de dez anos de boa amizade.
Enfim, aos meus pais intelectuais, a quem decretei moratória pela impagável
dívida de gratidão, Cristina Dias e Mário Henrique, pessoas da mais alta generosidade e que
são o marco divisor da minha vida intelectual.
5
RESUMO:
Este trabalho tem por objetivo uma análise da obra de Max Weber.
Especificamente, a intenção é encontrar os elementos no pensamento weberiano que
correspondam à criação de uma alternativa conservadora a Marx. A hipótese aqui elaborada
é a de que Weber incumbiu-se da tarefa de conceber uma opção burguesa ao materialismo
histórico-dialético. O percurso que tomaremos irá enquadrar a sociologia de Weber dentro
do processo de decadência ideológica da burguesia, que, por sua vez, veio na esteira do
nascimento da filosofia irracionalista.
6
ABSTRACT:
This work has for objective an analysis of the writings of Max Weber.
Specifically, the intention is to find the elements in the weberian thought that correspond to
the creation of a bourgeois alternative to Marx. The hypothesis elaborated here is that
Weber charged himself the task to conceive a conservative option to the historical-dialectic
materialism. The path that we take will get the sociology of Weber inside the process of
ideological decay of the bourgeoisie, which, in its turn, is in the mat of the birth of the
irracionalist philosophy.
7
RÉSUMÉ:
Ce travail a pour l'objectif une analyse de l’oeuvre de Max Weber.
Spécifiquement, l'intention est de trouver les éléments dans la pensée weberienne qui
correspondent a la création d'une alternative bourgeoise a Marx. L'hypothèse a élaboré
voici est quelle dite que Weber s'est chargé pour concevoir une option conservatrice au
matérialisme historique-dialetic. Le chemin que nous prenons obtiendra la sociologie de
Weber a l'intérieur du processus de l'affaiblissement idéologique de la bougeoisie, qui, à
son tour, est dans la natte de la naissance de la philosophie irracionaliste.
8
Eu sou membro da classe burguesa. Sinto-me
como um burguês e fui educado para
compartilhar de suas preocupações e ideais.
Max Weber
9
SUMÁRIO
Introdução 11
1. O problema do irracionalismo 16
1.1 Ascensão e declínio da razão burguesa 17
1.2 A herança cultural e o irracionalismo contra Marx 37
2. O nascimento da sociologia 49
2.1 O “positivismo domesticado” 50
2.2 O nascimento da sociologia na Alemanha 62
3. Max Weber: uma alternativa conservadora a Marx 78
3.1 O período imperialista do capital e a situação ale 79
3.1.1 O projeto de uma Alemanha imperialista 79
3.1.2 Democracia de massas e cesarismo bonapartista 85
3.2 Uma teoria relativista do conhecimento 98
3.2.1 Relativismo dos valores e sociologia compreensiva 98
3.2.2 A história entre o relativismo e a objetividade possível 131
3.2.3 O estatuto da verdade na ciência social 143
3.3 Gênese do capitalismo e teleologia da história 150
3.3.1 A modernidade do capitalismo 150
3.3.2 O lugar da ética protestante 169
3.3.3 O carisma frente à burocracia desencantada 190
3.3.4 O desencantamento do mundo: religião, ciência e ética 199
Conclusão: a presença de Weber na trajetória de Lukács 217
Bibliografia 258
10
Introdução
11
Este trabalho apresenta como objeto a obra de Max Weber. O seu objetivo
principal é compreendê-la enquanto uma reação conservadora ao surgimento da teoria
social de Marx, situando-a dentro do quadro geral daquilo que Lukács denominou de
decadência ideológica da burguesia.
Comentadores diversos (de Gabriel Cohn a Wright Mills) sustentam a tese de que
Marx e Weber seriam autores complementares; o próprio Weber apresenta tal sugestão nas
páginas que encerram A ética protestante e o espírito do capitalismo. Situaremos o debate a
partir do pólo oposto: a nosso ver, são inconciliáveis os pontos de vista de que partem.
Acreditamos que a autêntica aproximação da obra de Weber deve ter como princípios
norteadores estas palavras de Nogueira:
Procurou-se fazer de Weber a outra face de Marx, defendendo-se a idéia de que
entre o materialismo histórico-dialético e a “sociologia compreensiva” weberiana
existiriam elos capazes de permitir a fusão das duas perspectivas: as investigações
weberianas sobre a política e as religiões passaram a ser vistas como o
complemento e, mais ainda, como a alternativa teórica para as análises marxistas
da história, da economia capitalista e da transição para o socialismo. Nem mesmo
se fez questão de saber se os específicos universos metodológicos dos dois
pensadores eram passíveis de tal unificação: simplesmente se ignorou que cada
um destes universos está fundado em bases ontológicas e epistemológicas
excludentes (1977: 135, 136).
As bases teóricas de que partem Marx e Weber são mutuamente excludentes. Não
se harmonizam os seus respectivos universos metodológicos. Não se deve ignorar que os
terrenos em que se fundam a sociologia compreensiva e a ontologia materialista não são
passíveis de unificação.
A tentativa de Johannes Weiss em conciliar os dois pensadores é a que mais
chama atenção. Sua intenção é salvar Weber das críticas que provinham do leste europeu (e
não é casual que a presença da leitura lukacsiana ocupe um espaço ínfimo na sua recensão).
Arrola-se um número de citações esparsas e descontextualizadas em que Marx e Weber
parecem dizer o mesmo; surge daí um Marx individualista “o ‘individualismo’ da teoria
da ação poderia, em princípio, valer também para a argumentação de Marx” (Weiss, 1997:
188); ou o improvável de um Weber materialista “[Weber] atribuía em muitos casos
grande importância (causal) a condicionamentos e ‘interesses’ econômicos” (idem: 199).
Ao cabo deste nosso texto, pretendemos desmistificar a idéia de que seria possível
encontrar em Weber um autor dialético-materialista. O ato de complementar Marx com a
12
sociologia compreensiva de Weber não resulta em algo distinto de um ecletismo estéril.
Vale para Weiss a última frase da citação de Nogueira reproduzida acima: simplesmente
se ignorou que cada um destes universos está fundado em bases ontológicas e
epistemológicas excludentes”.
Neste trabalho, a idéia é levar a cabo a sugestão dada por Lukács em A destruição
da razão. Aqui, o marxista húngaro declara que Weber es entre os pensadores burgueses
que procuraram uma “nova e ‘mais refinada’ forma de combater o materialismo histórico”
(1968: 488). Na tradição lukacsiana, Mészáros reafirma essa assertiva com outros termos:
“como Nietzsche outro ‘homem para todas as estações’ —, Weber articulou seu
pensamento tendo em mente o socialismo como principal adversário” (2004: 216). Não
nenhum excesso quando se diz que Weber concebeu seu arcabouço metodológico, sua
explicação da gênese do capital, sua noção de cientificidade, etc, colocando no horizonte
antagônico a dialética materialista, procurando opor-se a ela em cada uma de suas
intervenções teóricas, elegendo-a como “principal adversário”; o sociólogo age nas
fronteiras de sua classe, dos condicionamentos históricos das lutas de seu tempo.
Em vista de tais condicionamentos, percorreremos alguns dos caminhos por ele
traçados, chamando a atenção para as contradições e os limites que aparecem em seu
pensamento.
Para tanto, é preciso remeter às origens da dissolução da dialética hegeliana.
Portanto, 1) vamos estudar o modo pelo qual o irracionalismo combate o pensamento
revolucionário burguês personificado em Hegel; nessa época, a reação era contra o “espírito
sempre em movimento” da Fenomenologia do espírito. Em seguida, neste mesmo primeiro
capítulo, tomaremos o momento da filosofia irracionalista, a partir de 1848, quando a teoria
social de Marx passa a receber as suas críticas.
Como se sabe, a Alemanha foi o palco clássico para o desenvolvimento da
filosofia irracionalista; e os motivos são estes anunciados por Netto:
O drama alemão da ausência da unidade nacional, agudizado na segunda metade
do século XIX pelo sucedâneo de unificação sob o coturno prussiano de
Bismarck, tornou a cultura alemã extremamente vulnerável à fase de decadência
ideológica da burguesia, iniciada em 1848. Esta vulnerabilidade, muito mais
intensa que em todos os países da Europa Ocidental, responde pelo caráter
“exemplar” do irracionalismo alemão (1978: 42, 43).
13
A tardia formação de um Estado nacional, a ausência da revolução democrático-
burguesa, um imperialismo sem colônias são os eventos históricos que fizeram da cultura
germânica vulnerável ao assalto irracionalista. Com efeito, todos esses elementos
transformaram a Alemanha no solo fértil para o florescimento da filosofia de Schelling e
seus sucessores.
Então, 2) o problema a ser debatido no capítulo seguinte é a constituição da
sociologia nos limites da decadência ideológica da burguesia; o nascimento das ciências
particulares é uma necessidade para o pensamento da ordem em sua luta contra a teoria
social marxista: era imperativo cuidar das relações sociais sem que se fizesse referência à
economia; essa é a circunstância histórica à qual a concepção da sociologia responderá.
Sairemos do território alemão durante algumas páginas, ao tratarmos do
positivismo francês de Condorcet a Durkheim —, para cumprir o retorno com uma
análise da constituição da sociologia alemã. Será tempo para se resgatar o leque de questões
colocado pelo positivismo, desde quando essa escola filosófica estava atrelada ao
racionalismo iluminista até sua necessária guinada rumo à decadência ideológica; enquanto
que paralelamente na Alemanha a sociologia se institui a seu próprio modo, respondendo às
suas próprias circunstâncias concretas, com as obras de Ferdinand Toennies e de Georg
Simmel em primeiro lugar.
Enfim, 3) a sociologia de Max Weber será estudada à parte. Vamos ter a
oportunidade para compor uma crítica imanente aos textos do sociólogo, sob o respaldo das
explanações de vários de seus intérpretes, de alguns de seus interlocutores de então.
Propriamente aqui estaremos defendendo a nossa hipótese de estudo, confrontando-nos
com os textos weberianos a fim de elucidar em que medida contém neles uma alternativa
burguesa a Marx.
Dividimos analiticamente este capítulo em três temas intercalados; tendo-os como
pretexto, vamos sobrevoar a obra do sociólogo. Em termos gerais, são eles: para lhe
concedermos calço no solo da história, veremos qual a posição de Weber frente à situação
particular da burguesia alemã na época imperialista; depois, será discutida a teoria do
conhecimento que concebe como alternativa à razão dialética; ao término, debateremos sua
tese acerca do nascimento do capitalismo e sua concepção de história.
14
À guisa de conclusão, vamos rastrear em seus contornos mais amplos a presença
de Weber na obra de Lukács. Observaremos as influências weberianas em Lukács desde a
sua juventude neokantiana até a definitiva crítica de A destruição da razão.
É ocioso dizer que as questões abordadas não esgotarão o mote. Autores
importantes como Dilthey e Rickert serão figuras ofuscadas pela presença de Weber.
Mesmo o nosso principal assunto, isto é, a própria elaboração weberiana, não terá
absolutamente todos os aspectos levados em conta.
Acreditamos na importância do embate com um autor tão fecundo quanto Weber.
Por certo, faz-se necessário um estudo marxista de seu pensamento; na atual conjuntura,
Weber freqüenta com grande constância as referências dos autores pós-modernos. Dos
clássicos da sociologia, aquele que mais se enquadra no caldo cultural da pós-modernidade
é precisamente Weber. Carece a literatura marxista brasileira de análises da obra weberiana
que incorporem as investigações de Lukács em A destruição da razão
1
. Este trabalho
pretende esboçar esta análise, ciente de que se trata de uma etapa somente e que, para o seu
complemento, outras muitas devem ser percorridas.
1
O único texto brasileiro de que temos notícia que aborda especificamente Weber a partir de Lukács é
Nogueira (1977).
15
1. O problema do irracionalismo
16
1.1. Ascensão e declínio da razão burguesa
Não se pode iniciar a discussão acerca da dissolução da razão sem antes pôr em
bons termos em que consiste o irracionalismo. O que Lukács chama de irracionalismo
possui um significado bem determinado: “toda crise importante do pensamento filosófico,
como luta socialmente condicionada que é entre o que nasce e o que morre, provoca do
lado da reação tendências que poderíamos designar com o termo moderno de
‘irracionalismo’” (1968: 84). De uma maneira ainda mais concreta:
[O irracionalismo] é uma simples forma de reação (empregando aqui a palavra
reação no duplo sentido do secundário e do retrógrado) ao desenvolvimento
dialético do pensamento humano. Sua história depende, portanto, do
desenvolvimento da ciência e da filosofia, a cujas novas colocações reage de tal
modo, que converte o problema mesmo em solução, proclamando a suposta
impossibilidade de princípio de resolver o problema como uma forma superior de
compreender o mundo (Lukács, idem: 83).
Característico da reação frente à racionalidade dialética é a limitação da ciência ao
mero entendimento, ao saber imediato. Trata-se efetivamente da negação da própria
racionalidade.
Lukács encontra na filosofia de Schelling o primeiro instante do movimento de
destruição da razão moderna. sabemos que o irracionalismo é sempre uma reação. Com
Schelling não é diferente; sua filosofia reage especialmente ao progresso que em Hegel.
Vejamos de perto o que significa o progresso hegeliano. Hegel sintetiza melhor do que
qualquer outro pensador burguês as principais determinações da racionalidade dialética. Em
seu sistema categorial, a razão possui um “duplo aspecto, o de uma racionalidade objetiva
imanente ao desenvolvimento da realidade (que se apresenta sob a forma da unidade dos
contrários), e aquele das categorias capazes de apreender subjetivamente essa racionalidade
objetiva” (Coutinho, 1972: 14). Ainda que mistificada, uma ontologia no sistema
hegeliano: a apreensão das categorias constitutivas do ser social é possível à razão.
A ontologia hegeliana obtém sua plena elucidação na polêmica que o dialético
trava com seu grande antecessor, Kant. Lembrem-se de que o autor de Crítica da razão
pura sugeria que “pode-se dizer a priori muitas coisas sobre os fenômenos no que concerne
à sua forma, mas não se pode dizer o mínimo sobre a coisa em si mesma que quiçá subjaz a
esses fenômenos” (Kant, 1999: 87). Para Kant, é incognoscível a coisa em si, a
17
substancialidade dos fenômenos; a razão é obstada em seu processo de apreensão da
essência do mundo fenomênico. A existência da substancialidade racional é reconhecida,
mas é a priori declarada inapreensível. Disse Lênin que Kant oscila entre o materialismo,
ao distinguir a coisa em si, e o idealismo, ao negar a possibilidade de sua captura (cf. 1959:
214).
Dentro dos limites do idealismo, Hegel supera Kant. Na filosofia kantiana,
segundo Hegel, “a razãoo deve elevar-se acima da representação sensível e deve tomar
o fenômeno tal como está” (Hegel, 1968: 175).
Em uma evidente referência a Crítica da razão pura, Hegel afirma na
Fenomenologia do espírito que a coisa em si (ou, na expressão hegeliana, o ser do interior)
é incognoscível “não porque a razão seja míope ou limitada” senão porque ela está neste
instante condicionada pela simples percepção; Hegel diz que caso se excluísse do
movimento do espírito o interior essencial, “somente restaria ater-se ao fenômeno, isto é:
tomar por verdadeiro algo que sabemos não ser verdadeiro” (2002: 117). Por isso, deve-se
transcender a simples percepção e caminhar com o auxílio de mediações cada vez mais
concretas em direção às leis do “mundo supra-sensível” que determinam o sensível
fenomênico. A abstração vazia do meramente sensível termina ao se determinar nela o
conteúdo do ser. Assim, traduz-se alei como imagem constante do fenômeno instável. O
mundo supra-sensível é, portanto, um tranqüilo reino das leis” (Hegel, idem: 119).
Vê-se a olhos nus a razão dialética nessa fórmula que recebeu de Lênin a
qualificação de “notavelmente materialista” (1973: 143) embora, como ressalva Lukács
na Ontologia do ser social, a “tranqüilidade” atribuída às leis faça parecer erroneamente
que a essência não esteja em eterno processo de mutação (cf. 1981: 371, 372). De qualquer
maneira, o ser dos fenômenos é cognoscível na letra de Hegel.
Em reação à racionalidade da dialética hegeliana, Schelling elabora o conceito que
seria, de acordo com Lukács, a primeira manifestação conceitual do irracionalismo
moderno: a intuição intelectual. Com ele, o filósofo alemão hipertrofia o entendimento, a
espontaneidade do saber, transformando o intuitivo em momento privilegiado da captação
do real
2
. Hegel diria que, com sua aceitação acrítica da “certeza sensível”, a intuição
2
Aqui está uma verdadeira apologia da imediaticidade do conhecimento em uma obra da juventude do
filósofo: “quanto mais afastado de mim está o mundo, quanto mais intermediários eu coloco entre ele e mim,
tanto mais é limitada a minha intuição dele, tanto mais é impossível aquele abandono ao mundo, aquela
aproximação mútua, aquele sucumbir em luta de ambos os lados (o princípio da beleza)” (Schelling, 1973:
18
intelectiva de Schelling conduz a uma observação e a uma descrição carentes-de-
pensamento” (2002: 184). Em suas Lições sobre a história da filosofia, Hegel afirma que a
ciência detém mais concretude que a intuição espontânea (cf. 1996: 43). A filosofia que se
ergue sobre esta última cancela o conhecimento em sua trajetória rumo às categorias mais
concretas. Não obstante, ouve-se da própria voz de Hegel uma eficaz censura a esta
modalidade de destruição da razão:
O entendimento tabulador guarda para si a necessidade e o conceito do conteúdo:
[tudo] o que constitui o concreto, a efetividade e o movimento vivo da coisa que
classifica. Ou melhor: não é que guarde para si, mas o desconhece; pois se tivesse
essa perspicácia, bem que a mostraria. Na verdade, nem sequer conhece sua
necessidade, aliás renunciaria a seu esquematizar, ou o tomaria como uma
indicação-do-conteúdo. De fato, tal procedimento fornece uma indicação-do-
conteúdo, e não o conteúdo mesmo (2002: 58).
Esta é uma bela passagem contra o empirismo e a favor de uma autêntica
impostação ontológica. A referência é o método da “tábula rasa” de Locke, mas vale para
qualquer espécie de imediatismo. Não o conteúdo, mas apenas a sua indicação encontramos
no “entendimento tabulador” apresentado pelo saber imediato; com este método não se
distingue entre a essência e a aparência dos fenômenos. A tabulação chã assume a
imediaticidade como dado e prescinde de qualquer conceitualização generalizante; e, ao
assumi-la como dado, retira-a do movimento vivo da história, de que, em realidade, se
comporta como manifestação necessária.
Na Ciência da lógica, é com estas palavras que Hegel abre o capítulo da doutrina
da essência, reclamando para a teoria do conhecimento a tarefa de superar a simples
indicação do conteúdo:
A verdade do ser é a essência. O ser é o imediato. que o saber quer conhecer o
verdadeiro, o que o ser é em si e por si, não se detém no imediato e suas
determinações, senão penetra através dele, supondo que detrás deste ser exista
algo mais que o ser mesmo e que este fundo constitui a verdade do ser (1968:
339).
Por meio de tal procedimento, não a indicação do conteúdo que teremos ao fim,
mas a captura efetiva deste conteúdo mesmo. O imediato não é a “verdade do ser”; a sua
verdade está por “detrás” do aparente cotidiano.
180). A intuição implica a “aproximação mútua” entre o sujeito cognoscente e o objeto.
19
Às vezes, certa severidade transparecia na crítica de Hegel às modalidades de
destruição da razão. Aos historiadores que se imaginavam passivos diante do objeto de
estudo, Hegel lembrava que “a mesmo o historiador mediano e medíocre, que talvez
acredite e simule ser apenas receptivo, que está apenas entregando-se aos dados, não é
passivo em sua maneira de pensar” (2001: 55). Em defesa da razão, Hegel rotulava de
medíocres os autores que concebiam seu método como a vulgar entrega aos dados e se
propunham fazer um retrato mediano da realidade concreta; que se satisfaziam em
reproduzir passivamente a empiria e se proibiam qualquer abstração racional. Tomam por
verdadeiro algo que não o é.
Hegelo estava na defesa da razão contra o mero entendimento. Entre outros
durante o período clássico da filosofia, também Schiller era autêntico racionalista
embora saibamos que a situação alemã não permitisse que tal racionalidade fosse
apresentada senão sob um invólucro místico. Assim como em Hegel, o concreto real em
Schiller não integra imediatamente o conceito de verdade: “quem não se atrever para além
da realidade nunca irá conquistar a verdade” (2002: 57); quem não se atrever para além da
aparência imediata dos fenômenos não conquistará a sua autêntica substancialidade. O que
o filósofo denomina de “fundamento sólido do conhecimento” transcende a realidade
imediata, “o rculo familiar dos fenômenos e da presença viva dos objetos”. Por meio
desta “via transcendental” chega-se ao “absoluto e permanente” da humanidade, ao
conceito puro de homem, que se situa para além das “manifestações individuais e
mutáveis” da empiria (cf. Schiller: idem, 56, 57).
A intuição intelectual de Schelling não se atrevia para além do círculo familiar
dos fenômenos e da presença viva dos objetos. Nos seus escritos iniciais, Schelling fazia
uso da intuição apenas como um instrumento para resolver os problemas internos à sua
própria dialética; o Schelling juvenil é um avanço neste caminho que leva do idealismo
subjetivo de Kant ao objetivo de Hegel. Em sua maturidade, contudo, Schelling acentua os
elementos irracionalistas de sua filosofia. Aos poucos, “o irracionalismo puramente
metodológico da intuição intelectual vai convertendo-se na concepção intrínseca do
universo da mística irracionalista” (Lukács, 1968: 130). Nesta época, o filósofo adere à
reação prussiana de Guilherme IV e combate ativamente na cátedra da universidade de
Berlim o progresso contido no hegelianismo. Nesse sentido, a polêmica entre os filósofos
20
não é uma simples questão epistemológica; é, sobretudo, a colisão entre o novo da
revolução burguesa e o velho da aristocracia reacionária.
Por situar-se a favor da burguesia revolucionária, Hegel sentia-se à vontade para
desvendar as autênticas determinações do real, uma vez que o exato conhecimento das
relações sociais era uma necessidade histórica para a auto-afirmação da burguesia em luta
contra a nobreza, a qual, por sua vez, recebia a defesa de Schelling. O ponto de vista
revolucionário permitiu a Hegel afirmar a história em processo: não é difícil ver que o
nosso tempo é um tempo de nascimento e trânsito para uma nova época. O espírito rompeu
com o mundo de seu ser-aí e de seu representar, que até hoje durou; está a ponto de
submergi-lo no passado, e se entrega à tarefa de sua transformação” (2002: 31). O espírito
entregou-se à tarefa de romper com o mundo que até então durava. Reflete-se na
Fenomenologia do espírito a sociedade burguesa que nasce sobre os escombros do antigo
regime.
Sendo favorável ao “espírito que se move para frente”, Hegel pôde ademais
visualizar a totalidade da vida social enquanto uma unidade de contrários, expondo-a na
famosa dialética do senhor e do escravo
3
.
As aquisições verdadeiramente científicas do pensamento hegeliano não cessam
por aí. A partir de suas leituras da economia clássica, Hegel compreendeu a centralidade
do trabalho na vida social: “o movimento, que faz surgir a forma de seu saber de si, é o
trabalho que o espírito executa como história efetiva” (2002: 540). A história efetiva é fruto
do trabalho do espírito. E mais, o dialético concedeu uma generalização filosófica ao
trabalho econômico que não consta na teoria de Smith. Muito embora percebesse o trabalho
enquanto uma atividade fundamentalmente social, Adam Smith caía vez ou outra naquelas
“pobres ficções das robinsonadasdenunciadas por Marx, tomando como ponto de partida
o indivíduo burguês. Em contraposição, o relevo teórico que Hegel atribuía à categoria da
totalidade para a apreensão do real serviu de antídoto para as tais robinsonadas: “o trabalho
do indivíduo para [prover a] suas necessidades, é tanto satisfação das necessidades alheias
quanto das próprias; e o indivíduo obtém a satisfação de suas necessidades mediante o
3
“O senhor se relaciona mediatamente com o escravo por meio do ser independente, pois justamente ali o
escravo está retido; essa é sua cadeia, da qual não podia abstrair-se na luta, e por isso se mostrou dependente,
por ter sua dependência na coisidade. O senhor, porém, é a potência sobre esse ser, pois mostrou na luta que
tal ser só vale para ele como um negativo” (Hegel, 2002: 147, 148).
21
trabalho dos outros” (Hegel, 2002: 251). É a universalidade da divisão social do trabalho
que Hegel toma de As riquezas das nações, subtraindo as robinsonadas que lá constam.
Pois é justamente o trabalho a mediação que, no contexto da teoria hegeliana,
conduz o abstrato ao concreto, a abstração intuitiva ao concreto saturado de determinações;
é a objetivação progressiva das figuras do espírito.
A tudo isso, refutava Schelling. O filósofo reconhecia com limpidez o
pertencimento de classe de Hegel (e o seu próprio, certamente); sabia que a dialética
hegeliana estava ao serviço revolucionário da “camada dos industriais e comerciantes”.
Contudo, Schelling via neste fato um rebaixamento, uma aviltação da filosofia, que,
segundo presumia, encerrava em si uma natureza aristocrática. O irracionalista utiliza as
seguintes palavras em seu comentário sobre a difusão do sistema hegeliano entre as classes
burguesas, logo depois de expor um texto de Hegel que julga ser uma “versão vulgar” das
idéias do dialético:
Com tal apresentação é dada a nota mais profunda da afabilidade a esse sistema;
por ela se pode ajuizar em que camadas da sociedade ele [o sistema hegeliano]
tinha de afirmar-se por mais tempo. Pois é simples observar como certas idéias
sempre surgem primeiro nas classes elevadas, a saber, nas eruditas ou em geral de
cultura superior; se, em seguida, perderam sua legitimidade junto a estas,
mergulham nesse ínterim nas camadas inferiores da sociedade e ainda se mantêm,
nestas, quando nas superiores não se fala mais delas. Assim é fácil perceber,
igualmente, que essa nova religião derivada da filosofia hegeliana encontrou seus
adeptos principais no assim chamado grande público, entre industriais, servidores
de comércio e outros membros dessa classe da sociedade que, de resto, em outra
referência, é muito respeitável; entre esse público sequioso de ilustração ela
passará também os últimos estágios de sua vida. Pode-se bem admitir que essa
vasta popularização (Breittreten) de seus pensamentos deu ao próprio Hegel o
mínimo de prazer (1994: 160).
O repúdio que o filósofo nutria pela burguesia revolucionária fica patente em
meio à ironia com que trata esse “público sequioso de ilustração”. Segundo ele, as idéias de
Hegel perderam a legitimação entre as classes de cultura superior” e agora se encontram
difundidas nas “camadas inferiores da sociedade”, os industriais, comerciantes e adjacentes;
tornaram-se a “nova religião” das classes revolucionárias. Ali as idéias hegelianas teriam
encontrado popularidade e ali permanecerão até o seu perecimento, até “os últimos estágios
de sua vida”.
22
Não interessava a Schelling encobertar a divisão entre classes; ao contrário,
justificava-a. O ponto de vista reacionário possibilitava a Schelling vislumbrar as
determinações classistas da realidade social, ainda que fosse para conferir a ela um caráter
orgânico; qualquer transformação seria ilegítima, contrária à vontade absoluta, um
sacrilégio perante o Deus absoluto. É uma postura similar a de Thomas Malthus que, em
sua luta contra o progresso burguês de Ricardo, via a divisão classista da sociedade como
“inevitável e de grande utilidade”. Schelling e Malthus advogam a favor do estado de
coisas que manteria intactos aqueles que Malthus chamaria de homens apaixonados pelo
acúmulo, os aristocratas fundiários.
A defesa insofismável da nobreza não deve passar despercebida. Dissemos que,
para Schelling, o aspecto aristocrático é intrínseco ao conhecimento: “a filosofia tem, de
fato, algo que conforme a sua natureza sempre permanecerá ininteligível à grande
multidão” (Schelling, 1994: 162). Com efeito, no conceito de intuição intelectual de
Schelling, Lukács vislumbra esse aspecto marcante do irracionalismo: a teoria
aristocrática do conhecimento. Ao novo irracionalismo se incorpora, assim, um motivo
gnosiológico tomado da maioria das concepções religiosas do mundo, sob uma forma
burguesa e laica: o conhecimento da divindade está reservado aos eleitos por Deus”
(Lukács, 1968: 120). A um grupo seleto de “espíritos sublimados” segundo a usual
expressão de Nietzsche caberia o dom do conhecimento intuitivo. Como não poderia
deixar de ser, este é um golpe fortemente desferido contra Hegel, para quem “a forma
inteligível da ciência é o caminho para ela, a todos aberto e igual para todos” (Hegel, 2002:
32).
Em geral, complementa-se quase que inevitavelmente a teoria aristocrática do
conhecimento com a noção de genialidade (que seria herdada posteriormente pela
intervenção de Nietzsche). Comentando a sua própria elaboração filosófica, Schelling
aponta que em três esferas do conhecimento “o mais alto espírito manifesta-se por si
mesmo”; são elas: a arte, a religião e a filosofia. O resultado desta manifestação é onio
da arte, o gênio da religião, o gênio da filosofia” (Schelling, 1994: 129). A filosofia é
ininteligível para a multidão porque se destina ao gênio e exclusivamente a ele. Apenas ao
gênio caberia a privativa revelação do mais alto espírito, de Deus. A filosofia é o revelar-se
à genialidade. Com efeito, as questões políticas subjazem à apologia da genialidade que se
23
em Schelling. O enaltecimento da mística religiosa está atrelado à tomada de partido da
Restauração; em seus estudos sobre O jovem Hegel, Lukács confirma: “o aristocratismo na
gnosiologia quer criar um abismo insolúvel entre os ‘eleitos’ e a plebe, análogo ao que
política da Restauração estabelece no terreno da política” (1975: 600). Isto é, na teoria do
conhecimento, a genialidade sobrevoaria a plebe à maneira da aristocracia na política da
Restauração.
Não é casual que a genialidade também sobrevoe a história. A exacerbação da
intuição, a única mediação entre a genialidade e o absoluto, conduz Schelling a uma
concepção profundamente anti-histórica da vida social. A genialidade não é um fenômeno
determinado historicamente, que possui lastro nas determinações do real. Concebendo
gênios supra-históricos, Schelling exagera de tal forma os traços de continuidade que
qualquer interrupção (a revolução francesa, por exemplo) não passa de um momento
perturbador (cf. Lukács, 1975: 610).
No ensaio que, segundo Lukács, marca o início da maturidade de Schelling, está
delineada essa noção irracionalista de história. Em Filosofia e Religião, de 1804, Schelling
designa: “os verdadeiros mistérios da filosofia têm por principal, senão por único objeto,
aquele do nascimento eterno das coisas e suas relações com Deus” (1946: 178, 179). Quem
fala em “nascimento eterno das coisas” cancela a possibilidade de se captar a
processualidade histórica. Schelling termina por cair em uma espécie de relativismo vazio
de conteúdo quando afirma que o Absoluto não é possível de ser determinado
historicamente porque “assim se obtém um conhecimento condicionado, e um
conhecimento condicionado do incondicionado é impossível” (idem: 181). É uma relação
direta entre o singular (a intuição) e o universal (o Absoluto) sem que se tenha a mediação
das particularidades (o conhecimento condicionado). No mesmo sentido: “o absolutamente
ideal, que plaina eternamente para além de toda realidade, que não abandona jamais sua
eternidade: é... Deus” (Schelling, idem: 189). O Deus absoluto que plaina acima do real ou
“a alma que não tem relação com o tempo” são as saídas irracionalistas encontradas para
recusar o devir do homem, a sucessão dos fatos na história
4
.
4
Schelling esclarece que o conhecimento do Absoluto é uma relação direta com o indivíduo, sem as
mediações das particularidades: “comoo se pode atribuir à intuição um valor universal, semelhante àquele
de uma figura geométrica, por ser peculiar a cada alma, como a luz é peculiar a cada olho, encontra-se aqui
em presença de uma revelação puramente individual e, portanto, também universalmente válida como é a luz
para o sentido empírico da visão” (1946: 185, 186). Tais palavras exibem vários dos fatores que viemos
analisando nas páginas anteriores: o relativismo mistificador, a união entre a revelação e a filosofia e a
24
Em Hegel, o espírito necessariamente passa pelo “calvário da história” por meio
do trabalho que executa. Em Schelling, o Deus absoluto não “abandona jamais a
eternidade” para macular-se no processo histórico.
Lançando mão de uma analogia estética, Schelling ilustra de forma cabal o que é
história sob o ponto de vista da Restauração prussiana:
A história é um poema épico, emanado do espírito de Deus. Suas duas partes
principais são: aquela que representa a saída da humanidade de seu Centro e sua
progressão até o ponto mais distante, e aquela que representa seu retorno ao
Centro a partir deste ponto. Pode-se comparar a primeira parte com a Ilíada, a
outra com a Odisséia (1946: 212, 213).
Um afastamento de Deus e o seu retorno são a história. Com esta idéia
mistificada, Schelling é levado a abstrair a concretude do mundo real, à maneira de
Berkeley: “se o mundo sensível existe somente nos espíritos que o contemplam, o retorno
das almas à sua origem e sua separação do concreto significam a dissolução do mundo
sensível e seu desaparecimento no mundo dos espíritos” (Schelling, 1946: 218). Não se
esqueçam de que tudo isso é feito em nome da intuição como meio privilegiado de
conhecimento imediato do Absoluto: “a época da fé meramente histórica passou quando foi
dada a possibilidade do conhecimento direto” (Schelling, 1950: 152).
Este foi o momento instituidor do irracionalismo moderno. A filosofia de
Schelling é o primeiro passo importante no ataque às conquistas da racionalidade dialética,
figuradas em Hegel durante o período anterior a 1848.
Porém, o movimento irracionalista não se reduz a Schelling. Deste primeiro
desbravador, o irracionalismo progrediu até se tornar a ideologia hegemônica dentro do
pensamento da ordem. Lukács demarca que o segundo passo de relevância rumo à
desintegração da razão é Arthur Schopenhauer. A importância do autor de O mundo como
vontade e representação é a inovação quanto a seu ponto de vista de classe: enquanto
Schelling punha-se nas trincheiras da aristocracia feudal, Schopenhauer lida com armas
puramente burguesas em sua luta contra a racionalidade hegeliana.
A principal de tais armas é o indivíduo auto-suficiente:
Desde Maquiavel e Rabelais, passando pelas teorias econômicas de Adam Smith e
Ricardo, até a ‘astúcia da razão’ de Hegel, vemos como os sistemas de
revelação do Absoluto mediante o intuitivo.
25
pensamento burguês expressam todos este mesmo individualismo sob formas
distintas, historicamente condicionadas. Porém, ao chegar a Schopenhauer
infla-se o indivíduo para convertê-lo em um fim em si mesmo absoluto. As
atividades do indivíduo aparecem desligadas de sua base social e voltam-se
exclusivamente para dentro, cultivando-se as próprias peculiaridades e veleidades
privadas como valores absolutos. Certo é que, como o próprio Schopenhauer
revela-nos com evidência irrevocável, esta independência existe na imaginação
do indivíduo burguês decadente (Lukács, 1968: 166).
Em categorias hegelianas, Schopenhauer exalta o bourgeois recluso em seus
interesses privados em detrimento do citoyen partícipe do devir da humanidade. O
indivíduo burguês é um fim absoluto em si mesmo.
O uso de armas puramente burguesas faz de Schopenhauer um “pioneiro”; sua
filosofia abre caminhos que serão pedra angular do irracionalismo posterior, após 1848,
quando o solo burguês estará planificado para o desenvolvimento do irracional de puro
sangue, quando haverá “a base social para um irracionalismo erigido sobre o ser social
burguês” (Lukács, 1968: 161). Não é sem motivo que a influência de Schopenhauer em
âmbito internacional justamente se dê depois de 1848.
Dizia Schopenhauer que “tudo o que o mundo encerra ou pode encerrar está nesta
dependência necessária perante o sujeito, e apenas existe para o sujeito. O mundo é
portanto representação (2004: 05). O mundo está em função do sujeito. A submissão da
objetividade real às projeções subjetivas não é um revés de pouca estatura contra o
racionalismo. Hegel sempre se opôs à arbitrariedade subjetivista. A Ciência da lógica
escreveu no capítulo sobre a doutrina do ser que “o dever moral é um dever ser dirigido
contra a vontade particular, contra o desejo egoísta e o interesse arbitrário” (Hegel, 1968:
120). Recordemos que, para Hegel, a liberdade meramente individual significava nada além
que acometimentos fortuitos: “é corrente confundir-se a liberdade com a arbitrariedade:
mas a arbitrariedade é uma liberdade irracional, e não é a vontade razoável, mas sim
impulsos acidentais, exteriores motivos sensíveis, que presidem às preferências e às
decisões arbitrárias” (1999: 123). Mesmo porque, de acordo com a dialética hegeliana, o
singular não está em oposição ao universal (como quer Schopenhauer); as duas categorias
formam senão uma unidade de diversos
5
.
5
“Quando se diz que a filosofia tem por missão conhecer a essência, o fundamental nisto consiste
precisamente em que esta essência não é algo externo àquilo de que é a essência... Tampouco a lei reside fora
do indivíduo, senão que forma o verdadeiro ser deste. A essência de meu espírito está, pois, em meu espírito
26
Pode-se argumentar que, na filosofia clássica alemã, a apologia ao indivíduo
burguês também obteve lugar; era, no entanto, a apologia do indivíduo burguês
revolucionário diante das amarras do antigo regime algo muito distante de
Schopenhauer. em Kant essa dinâmica é muito clara: “o movimento, enquanto ação do
sujeito (não enquanto determinação de um objeto), conseqüentemente a síntese do múltiplo
no espaço..., produz pela primeira vez o conceito de sucessão” (Kant, 1999: 132). A
sucessão histórica está a cargo do sujeito; não é uma propriedade imanente ao objeto. Kant
admite a existência de uma objetividade em si, porém, liberta o indivíduo burguês das
determinações desta materialidade: “nem as leis existem nos fenômenos, mas só
relativamente no sujeito ao qual os fenômenos inerem na medida em que possui
entendimento, nem os fenômenos existem em si, mas relativamente aquele mesmo ente
na medida em que possui sentidos” (idem: 136).
Ao contrário de Schopenhauer, Kant abriga todas as ilusões historicamente
legítimas da revolução burguesa. O indivíduo possuiria o livre-arbítrio para buscar a
prosperidade: “faze aquilo através do que te tornarás digno de ser feliz(Kant, 1999: 480).
O humanismo burguês de Kant conecta esta busca pessoal pela prosperidade a um “ideal do
bem supremo”. O livre-arbítrio é movido e restrito por uma moral genérica que o faz agir
para o bem do próximo: “conduzidos por tais princípios [da moralidade universal], os
próprios entes racionais seriam os autores de seu próprio bem-estar duradouro ao mesmo
tempo em que seriam os autores do bem-estar do próximo” (Kant, idem: 480, 481).
A defesa do burguês revolucionário é clara em Kant; todavia, foi Fichte que a
levou às radicais implicações com sua Doutrina da ciência. Em primeiro plano, o aspecto
revolucionário da “nova doutrina” não se oculta: “toda ciência é fundamento de ação; uma
ciência vazia, sem nenhuma referência à prática, não há” (Fichte, 1973: 173). Inexiste um
saber neutro, desinteressado; a ciência é sempre instrumento para a ação prática. Não
consta em Fichte o homem de Schopenhauer recluso em si mesmo e ausente da prática. O
conhecimento precede e alimenta a política. Fichte não se desvencilha dos imperativos
colocados pelo espírito do tempo. A união entre saber e prática é um fenômeno
inquestionável para o iluminista alemão: “ora, o cognoscente, o eu, não se encontra apenas
conhecendo..., mas também como agindo, atuando” (idem: 166).
mesmo, não fora dele; é meu ser essencial, minha substância mesma, pois de outro modo careceria eu de
essência” (Hegel, 1996: 73, 74).
27
O rumo que orienta o agir do cognoscente é bem claro para o filósofo; conexa à
ação prática, a liberdade é a categoria que marca a ciência: doutrina-da-ciência é
conhecimento completamente livre, que tem a si mesmo em seu poder” (Fichte, 1973: 166).
A filosofia de Fichte é saber e ão, ambos livres das determinações de leis de quaisquer
espécies. O agir do cognoscente é completamente livre.
O autor de A doutrina da ciência gastou boa parte de seus escritos para conceber
uma teoria da liberdade. Com a revolução francesa em pleno vigor, era eminente que se
teorizasse acerca do assunto, que se dessem respostas ao problema. Segundo Fichte,
liberdade significa: não natureza acima da vontade, esta é sua única criadora possível”
(1973: 167). A vontade racional é livre criadora, ausente de qualquer condicionante. A
natureza é apenas o receptor passível das ações humanas, da vontade do sujeito: “a vontade
princípio absolutamente criador, que engendra puramente a partir de si mesmo um
mundo particular e uma esfera própria do ser. A natureza mera matéria passiva, sem
nenhum impulso (Fichte, idem: 168). As causalidades naturais são um cenário inerte; são
meros receptáculos da nova vida; não se movem a não ser com o impulso instituidor da
razão: “sua conformidade [da natureza] à lei, seu impulso ao desenvolvimento são mortos
para carregar a nova vida e o espírito da liberdade” (idem: 168).
Desenvolve-se daí uma teoria da ética. Na medida em que a razão é livre criadora,
o eticamente humano implica engendrar o novo. A reprodução do imediatamente dado vai
contra o conceito de ética elaborado por Fichte: lei moral, portanto, é a imagem de um
supra-sensível, puramente espiritual, ou seja, de algo que não é, mas deve, apenas, vir a ser,
por obra do iniciador absoluto do ser, a vontade” (1973: 169). Ética é o vir a ser, o devir
dinâmico e processual, o impulso para o futuro; é o supra-sensível que se projeta para além
do sensível imediato, do “estado do mundo”.
Fichte ergue à filosofia todas as aspirações do indivíduo burguês que, à época,
fazia a história transformar-se; era um autêntico iluminista. Fervoroso adepto da revolução
francesa, o filósofo compartilhava as esperanças da fase heróica da burguesia, quando a
razão burguesa detinha o progresso libertário na luta contra as relações feudais.
Cada um à sua maneira, os filósofos do período clássico procuravam apropriar-se
do homem concreto à luz da razão, à luz do “espírito que se move para frente”, de acordo
com a expressão da Fenomenologia do espírito. Em seu tempo, o bourgeois de
28
Schopenhauer é um importante momento de dissolução da tentativa de apreender a
objetividade social levada a termo pela filosofia clássica. Com Schopenhauer, o
pensamento burguês começa a perder o heroísmo da etapa revolucionária de Hegel e seus
antecessores.
A leitura que Schopenhauer promove de Hegel é um caso à parte na filosofia. A
polêmica que se trava é geralmente muito áspera. O irracionalista batizava Hegel de
“conhecido charlatão” (Schopenhauer, 1967: 183). E, segundo acreditava Schopenhauer, se
o leitor confronta-se com a obra hegeliana em busca de respostas, o que obtém é “uma
terminologia dura, oca, confusa, em períodos intercalados de tal extensão que o leitor, se
não dormiu já à metade do caminho, se encontra no final em estado de sonolência do que de
ilustração..., ou inclusive suspeita de que tudo é muito parecido com quimeras” (idem:
183). A ironia de Schopenhauer não obscurece o que está em jogo: a burguesia desfaz-se de
seu passado revolucionário.
Mas a relevância de Schopenhauer não se deve a sua aspereza no trato com o
pensamento hegeliano. Além de inovar utilizando elementos puramente burgueses, o
filósofo representa uma outra contribuição original ao irracionalismo por ter concebido uma
nova forma de defesa do capital, a apologia indireta, como constata Lukács (cf. 1968: 167).
Um apologista direto apresenta as relações burguesas como o resultado cabal da evolução
humana, como a ordenação social irretocável; esta é a atitude que um Jean-Baptiste Say
toma frente à propriedade burguesa, compreendendo-a na forma do “mais poderoso
encorajamento à multiplicação das riquezas” (1983: 133). Oportunamente, Say não se
esquece de desvencilhar-se dos “inconvenientes ao capitalfazendo notar que a explicação
das origens da propriedade privada é um assunto que não cabe à ciência econômica e sim à
especulação filosófica. Em seu turno, o apologista indireto “assinala toscamente os lados
negativos do capitalismo, suas atrocidades, porém apresentando-os não como propriedades
do capitalismo, senão como qualidades inerentes à existência humana em geral, à vida
mesma, sem mais” (Lukács, 1968: 167).
Conforme Lukács, Schopenhauer inaugura esta última expressão da apologia ao
capital. Daí provém o seu pessimismo: elevando as misérias do capital à condição humana,
o filósofo abstém-se então de qualquer luta. Afinal, uma luta contra as contradições
intrínsecas à alma do homem está fadada ao fracasso; não haveria batalha conseqüente
29
contra a natureza mesma do homem. Por isso, “a vida oscila, como um pêndulo, da direita
para esquerda, do sofrimento para o aborrecimento: estes são os dois elementos de que ela é
feita” (Schopenhauer: 2004: 327). O que Schopenhauer intitula as dores do mundoo são
nada além do que as dores de um mundo historicamente situado, do mundo particular
burguês.
Diante de um mundo dolente, cabe ao indivíduo encasular-se em si mesmo. A
autarquia do indivíduo auto-suficiente, que se expressa na obra de Schopenhauer, é um
específico reflexo do período da Restauração prussiana. Depois de tantas mudanças pelos
continentes (revolução francesa, as guerras napoleônicas, as guerras de independência,
etc.), a miséria alemã permanecia intocada; uma revolução democrático-burguesa estava
distante dos horizontes da Alemanha submetida aos mandos de Guilherme IV. Atendo-se
aos limites da nação germânica contrária a uma visão de amplitude cosmopolita comum
a Kant, Fichte, Schiller, Hegel, Goethe, Hölderlin —, não é difícil de concluir que qualquer
ação transformadora seria inútil (cf. Lukács, 1968: 171).
Contudo, uma diferença substancial entre Schopenhauer e a filosofia partidária
da Restauração. Lukács a identifica:
Ressalta claramente aqui o que de coincidente e de divergente entre
Schopenhauer e a filosofia irracionalista do período da Restauração. Uma e outra
tratam de educar seus partidários na passividade social. Mas por caminhos
distintos. A segunda, glorificando como obra de Deus o ‘crescimento orgânico’ da
sociedade, é dizer, proclamando a legitimidade exclusiva da ordem absolutista-
feudal e condenando como satânico, como inorgânica, como fruto do ‘artifício’,
toda transformação revolucionária, enquanto que naquele, em Schopenhauer, o
irracionalismo da sociedade e da história aparece como um absurdo puro e a
aspiração de tomar parte na vida social, e não digamos o empenho em transformá-
la, se revela como uma ausência tal de visão do que é o mundo, que raia o
criminal (1968: 173).
A educação para a passividade é feita com cartilhas diferentes. Schopenhauer não
deseja justificar a miséria alemã utilizando-se da suposta legitimidade absolutista; a sua
intenção é demonstrar o caráter “humano” dessa miséria, cujo absurdo é inerente à alma do
homem e contra o qual não se pode lutar.
Não haveria em um burguês laico como Schopenhauer a defesa da mística
religiosa. Em seu tempo, Schopenhauer nunca pretendeu defender a mística do catolicismo
como fizera Schelling; o seu ponto de vista é de uma burguesia secularizada. Isso explica
30
porque a crise da religião não levou Schopenhauer a defendê-la, mas senão encontrar para
ela um substituto. Lukács argumenta que o filósofo irracionalista constata a falência dos
mitos tradicionais ligados à religião; entretanto, para não abstrair desse movimento uma
concessão ao materialismo, apresenta o “Nada” como substituto para a religiosidade, para
aqueles que não mais se apegam às crenças tradicionais e procuram uma “nova religião”.
Em face da crise das religiões, cria-se um suplente: o “Nada” absoluto, uma espécie de
Cosmos. Eliminando a idéia de Deus de uma “maneira decente”, isto é, antimaterialista,
Schopenhauer cria a religiosidade sem Deus.
Trata-se do que Lukács chama de ateísmo religioso. Suprime-se a religião
elevando-se o Absoluto à condição de novo objeto de deificação. A abordagem aqui dada
ao colapso religioso o é outra coisa além de uma saída irracionalista para um problema
objetivo.
Desse ateísmo religioso procede a admiração de Schopenhauer não pelo
catolicismo de seu tempo e sim pelas religiões orientais e pelo cristianismo primitivo, cujos
preceitos visavam atingir uma “piedade cósmica”. Vejamos a moral hindu, segundo
Schopenhauer:
Despojar-se de suas riquezas, abandonar qualquer habitação, deixar os seus, viver
no isolamento mais profundo, afundado numa contemplação silenciosa, infligir-se
uma penitência voluntária no meio de lentos e terríveis suplícios, em vista de uma
mortificação completa da vontade, levada finalmente à morte pela fome...,
precipitando-se da rocha sagrada do alto do Himalaia, ou fazendo-se enterrar
vivo... Preceitos observados durante tanto tempo por um povo que conta milhões
de indivíduos, impondo sacrifícios tão pesados, não pode ser uma fantasia
inventada por capricho, mas devem ter a sua raiz na própria essência humana
(2004: 407).
Ao levarmos uma vida ascética, como demanda a moral hindu, não encontramos
no fim o Nirvana hinduísta; o que nos espera em seu lugar é o nada, é o precipitar-se do
alto do Himalaia. Para os resignados, “para aqueles que se converteram e aboliram a
Vontade, [o que resta] é o nosso mundo atual, este mundo tão real com seus sóis e todas as
suas vias lácteas, que é o nada” (2004: 431). A crua realidade do mundo atual é o nada.
Assim termina o texto de O mundo como vontade e representação, pondo o nada no espaço
antes ocupado por Deus.
31
Certamente, não era intenção de Kierkegaard suprimir a idéia de Deus. Neste
sentido, o filósofo dinamarquês estava muito mais próximo de Schelling do que qualquer
outro irracionalista de sua geração; foi aluno direto de Schelling, tendo ido a Alemanha
para acompanhar seus cursos na Universidade de Berlim. Da influência de Schelling,
Kierkegaard retirou a religiosidade resoluta, a luta pela salvação no plano da teoria do
sentimento religioso então em crise.
As teses do discípulo de Schelling formam um novo passo rumo à dissolução da
razão dialética; abarcam elementos que constam tanto em Schelling quanto em
Schopenhauer, mas que recebem uma coloração inédita em sua pena. Com Kierkegaard,
Lukács encerra a trinca de ouros do primeiro movimento irracionalista.
Como todos irracionalistas de sua época, Kierkegaard combate a dialética de
Hegel. Contudo, a sua luta contra o hegelianismo não é feita à maneira de Schopenhauer,
com uma tentativa de negar à dialeticidade qualquer eficiência na apreensão do real; senão,
procura opor ao sistema de Hegel uma outra dialética pretensamente superior, de caráter
subjetivista (cf. Lukács, 1968: 208). É uma dialética centrada no “eu”, costumava dizer
Kierkegaard.
Essa dialética retrata a sociedade burguesa em vias de consolidar-se. As armas
puramente burguesas de Schopenhauer também fazem parte da munição de Kierkegaard; o
arbítrio do “eu” ocupa posição central. Durante o período clássico da filosofia alemã, não
apenas Hegel preocupava-se em não perder de vista a categoria da totalidade; vejam que
Schiller temia que o homem que nascia da revolução francesa culminasse na arbitrariedade,
no relativismo elogiado posteriormente por Kierkegaard: “não desconheço as vantagens que
a estirpe de nossos dias, vista como uma unidade na balança da razão, pode afirmar em face
das melhores dos tempos que nos precederam; mas é forçoso que ela empreenda a luta com
fileiras cerradas, para que se meça o todo com o todo” (2002: 36). A razão moderna realiza
as suas vantagens somente se mensurada como um todo, uma unidade na balança da razão,
como fileiras cerradas. O indivíduo tomado isoladamente não atende às exigências da
racionalidade: “que indivíduo moderno apresentar-se-ia para lutar, homem a homem, contra
um ateniense pelo prêmio da humanidade?” (Schiller, idem: 36). O motivo pelo qual o
ateniense está fadado a vencer o embate contra o indivíduo moderno é esclarecido por
Schiller: “porque aquele recebia suas forças da natureza, que tudo une, enquanto este as
32
recebe do entendimento, que tudo separa” (idem: 36). O que pode parecer uma queda na
reação por parte de Schiller é, em verdade, uma defesa dos princípios iluministas da razão
totalizante contra o mero entendimento, o que desponta como uma posição muito diversa
daquela tomada por Kierkegaard diante das circunstâncias.
Nas mãos de Kierkegaard, a dialética é despojada de todo elemento processual, de
todo movimento. O “eu” vive permeado pelas contradições entre o possível e o impossível,
a necessidade e a liberdade, o finito e o infinito. Essas contradições não formam antinomias
sem resolução. A síntese para cada um dos pares de contradições é a em Deus: “Deus
pode a todo instante. Esta é a santidade da fé, que resolve as contradições” (Kierkegaard,
1963: 100). A santidade da fé, a crença no Deus cristão resolve os antagonismos
experimentados pelo “eu”.
José Paulo Netto explica:
Esta relação [com o processo de desintegração do hegelianismo] é visível no
comportamento de Kierkegaardpensador cuja integridade moral fazia com que
professasse um fundo sentimento (romântico) anticapitalista para com a
herança de Hegel: diante dela, a reflexão burguesa ou recusa em bloco a dialética,
como faz Schopenhauer, ou se propõe a construção de uma pseudodialética
subjetivista. Kierkegaard, que se debatia com uma problemática ainda próxima à
de Hegel (o que se nota, por exemplo, na sua obsessão pela conexão relativo x
absoluto), assume inteiramente a segunda via: elabora a sua dialética qualitativa,
retira da subjetividade concreta a possibilidade de encontrar sentido na história
(que é dado a um Deus, espectador inacessível) e postula uma ética da
intencionalidade, que pode conduzir ao solipsismo moral que legitima o
niilismo (1978: 48).
Nada pode a subjetividade concreta. O sentido verdadeiro da história não lhe é
aberto porque “o critério [da verdade] é este: a Deus tudo é possível. Verdade de sempre e
então de todo instante” (Kierkegaard, 1963: 97).
Com esta concepção mística de dialética, o sentido da história é dado a Deus.
Ao homem compete a passividade diante do fatalismo. Vê-se o quanto Kierkegaard e
Schopenhauer compartilham de respostas comuns em face das questões colocadas na pauta
da realidade, embora neste último o haja a apologia ao cristianismo que se encontra
naquele primeiro. Em ambos, o humanismo da filosofia clássica alemã é reduzido a uma
contemplação inerte da sucessão dos fatos. Fugindo ao humanismo concreto de Hegel,
Schiller e Goethe, Kierkegaard encontra reduto no indivíduo burguês: “a filosofia de
33
Kierkegaard anula a história e a sociedade, para deixar margem, assim, a esta existência do
indivíduo artificialmente isolado, a única [existência] que segundo esta filosofia obtém
verdadeiro significado” (Lukács, 1968: 213). Vimos que esse refúgio foi procurado também
por Schopenhauer. E, também como o seu contemporâneo, Kierkegaard conclui que a ação
humana transformadora é vã.
Não é um fenômeno excêntrico o retraimento na subjetividade em períodos de
decadência ideológica: de Jeremy Bentham a Schopenhauer, a ética pequeno-burguesa é
generalizada na forma da única ética de validez para a conduta humana. Entretanto, a nova
postura apresentada por Kierkegaard é “o matiz do desespero individual, do desespero
como afirmação exaltada e signo da verdadeira individualidade” (Lukács, 1968: 235).
Observem que o filósofo dinamarquês publica a sua obra derradeira Tratado sobre o
desespero humano no atribulado” ano de 1849, fazendo observar em seu prefácio que a
inquietação subjetiva é o verdadeiro comportamento para com a vida, para com a nossa
realidade pessoal.
O indivíduo burguês de Fichte era aquele que impulsionava o mundo ao
movimento, ao devir futuro, cujos valores éticos demandavam a construção prática do real;
o de Kierkegaard, é homem que cuida zelosamente de suas angústias e faz delas o
verdadeiro comportamento vital, cujos valores éticos demandam o retraimento na
desesperada particularidade cotidiana.
O ser do homem, segundo Kierkegaard, “é o ácido, é a gangrena do desespero, a
súplica cuja ponta, dirigida ao interior, afunda-nos cada vez mais no sentido da
autodestruição impotente” (1963: 67). Reitera-se: ao homem compete a impotência diante
do fatalismo da autodestruição.
Não é à toa que esse tom irracionalista seria recuperado posteriormente pelo
existencialismo, pois se chega facilmente a uma assertiva compartilhada tanto por
Kierkegaard quanto por Heidegger: o homem é ontologicamente um desesperado. Dentro
da tradição iniciada pelo filósofo dinamarquês, o primeiro Sartre diria: logramos sufocar
ou dissimular nossa angústia? Certo é que o poderíamos suprimi-la, porque somos
angústia” (1997: 89). Ou ainda, lidando com as categorias de Hegel: “a realidade humana,
por natureza, é consciência infeliz, sem qualquer possibilidade de superar o estado de
infelicidade” (Sartre, idem: 141).
34
Na exposição dessa ontologia, Kierkegaard convenciona atrelar ao desespero a
idéia de eternidade, isto é, atribui ao desespero a qualidade eterna: “o desespero é uma
categoria do espírito, suspensa na eternidade, e por conseqüência um pouco de eternidade
entra em sua dialética” (Kierkegaard, 1963: 76). Na Ciência da lógica, Hegel condiciona
que quando todas as condições de uma coisa estão presentes, então ela entra na
existência” (1968: 419). A angústia do homem de Kierkegaard prescinde de prévias
condições para vir à tona; o desespero porta em si um quê de eterno, a despeito de
pressupostos históricos. Por isso, o homem está para sempre em “estado crítico”, sem que
se tenha como cessá-lo. O ser do homem de todos os tempos é a inquietação. Não é mera
semelhança a coincidência com a idéia de Schelling a propósito de um Absoluto que plaina
acima do tempo. Em ambos os casos, são conceitos “suspensos na eternidade”, anti-
históricos.
São todos os homens que estão sempre em estado crítico. O desespero não é
eterno como universal: “não um que esteja isento de desespero, que não tenha no
fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê
de desconhecido ou que ele nem ousa conhecer, receio de uma eventualidade exterior ou
receio de si mesmo” (Kierkegaard, 1963: 71). De causa desconhecida, o desespero abraça
todos.
A distinção entre essência e aparência é própria da peculiar dialética com a qual
Kierkegaard pretende substituir a dialética hegeliana. Ainda queo o saibam, os homens
são em essência desesperados. A aparência harmônica esconderia por trás de si a essência
angustiada, universal e eternamente angustiada do ser do homem. O indivíduo portaria o
desespero de modo semelhante ao qual porta uma doença no seu organismo sem percebê-la
na epiderme.
Pode-se inferir qual seria o motivo do desespero que assola o indivíduo burguês
refletido em sua forma fetichizada por Kierkegaard: as crises que apareciam precisamente
naquele instante com força revolucionária. A solução para o desalento é apresentada pelo
próprio filósofo decadente: é “morrer” para o mundo; é privar-se resolutamente da vida
social. “[O desespero] é o mau, não o remédio. Esta é sua dialética. Como na terminologia
cristã, a morte exprime a mais nociva miséria intelectual, sendo a sua cura morrer, morrer
para o mundo” (Kierkegaard, 1963: 49). A salvaguarda diante da desesperança é a reclusão
35
em torno de seus interesses meramente particulares, ou seja, a morte para o mundo exterior.
A situação ameaçadora exige dos pensadores da ordem a reclusão no Grande Hotel Abismo
(segundo a irônica imagem concebida por Lukács ao estudar Schopenhauer em A
destruição da razão), no qual desfrutam das mordomias de uma torre de marfim ao passo
que assistem com vista privilegiada ao romper das crises.
Com Kierkegaard fecha-se o primeiro ciclo dos irracionalistas. Vimos que essa
geração pioneira tinha como principal alvo o hegelianismo; lutavam contra o progresso do
pensamento revolucionário burguês tão bem caracterizado no autor da Fenomenologia do
espírito. Os seus discípulos lidam com uma realidade distinta: não mais a revolução
propriamente burguesa é o problema a ser resolvido; aparece na história mundial um novo
sujeito que porta as condições de transformação da vida social. Verifica-se então uma
mudança qualitativa: entre a geração de Schelling, Schopenhauer e Kierkegaard e a geração
posterior do irracionalismo constam o surgimento da classe trabalhadora, o processo
revolucionário de 1848 e a teoria social marxiana.
1.2. A herança cultural e o irracionalismo contra Marx
A constituição do proletariado enquanto classe para si é um processo que se
confirma no ano de 1848, com a primeira insurreição operária contra o poder burguês
instaurado. Como diz Lukács, a despeito do movimento cartista, das sublevações
esporádicas na França do tempo da monarquia burguesa”, da sublevação dos tecelões
alemães em 1844, é pela primeira vez que ocorre na cena política da história mundial uma
batalha decisiva entre o proletário e o burguês como uma massa armada, decidida na luta
final (cf. 1999a: 190).
Trata-se da dissolução do Terceiro Estado em pólos antagônicos e conflitantes.
Foi-se a época em que a burguesia representava a totalidade dos interesses progressistas.
Exemplo ilustre de tal representação eram as palavras do político revolucionário Emmanuel
Sieyès proferidas no fragor da revolução francesa: “o Terceiro Estado abrange, pois, tudo o
que pertence à nação. E tudo o que não é Terceiro Estado não pode ser olhado como
pertencente à nação. Quem é o Terceiro Estado? Tudo” (2001: 05). Vale lembrar que o
próprio Sieyès definia o Terceiro Estado como os homens que atuam para a manutenção da
36
sociedade na agricultura, nas indústrias e no comércio isto é, a burguesia e o
proletariado.
Marx analisou com o habitual senso dialético a revolução do ano parisiense de
1848. O desenlace inicia-se com a revolução de fevereiro, com a qual a burguesia e o
proletariado juntos rompem com a monarquia de Luís Felipe. Com a instauração da
república liberal, o choque entre as duas classes antes unidas assume o primeiro plano na
vida social da França. No decorrer de um curto tempo, o caráter burguês da república
evidencia-se. Daí a resolução:
Os trabalhadores não tinham opção: morrer-se de fome ou começar a luta.
Contestaram em 22 de junho com aquela formidável insurreição que culminou na
primeira grande batalha entre as duas classes que dividem a sociedade moderna.
Foi uma luta pela conservação ou pelo aniquilamento da ordem burguesa. O véu
que envolvia a república caiu (Marx, 2005: 149).
No dia 26 do mês, a revolução proletária estava interrompida; a república foi
restabelecida. Contra os insurrectos, todas as camadas da burguesia aliaram-se; “quando se
viram diante da revolução ‘vermelha’, os moderados liberais e os conservadores uniram-se”
(Hobsbaum, 1996: 41).
Pela primeira vez na história, a classe burguesa foi impelida a defender o seu
poder. As barricadas de junho demarcam este novo período: se antes era travada a luta
pela obtenção do poder frente à aristocracia feudal, agora as forças são direcionadas à
manutenção do estado de coisas em face da nova classe revolucionária. A afirmação
hegeliana de que o espírito move-se sempre para frente torna-se ameaçadora não apenas
para a aristocracia de Schelling, mas também para a burguesia de Schopenhauer (cujas
antecipações se generalizam a partir de agora). Essa passagem da revolução para a
conservação determina para a burguesia a gradual modificação em seu pensamento. Marx
foi o primeiro a constatá-la:
Soou o dobre de finados da ciência econômica burguesa. Não interessava mais
saber se este ou aquele teorema era verdadeiro ou não; mas importava saber o que,
para o capital, era útil ou prejudicial, conveniente ou inconveniente, o que
contrariava ou não a ordenação policial. Os pesquisadores desinteressados foram
substituídos por espadachins mercenários, a investigação científica imparcial
cedeu seu lugar à consciência deformada e às intenções perversas da apologética
(2002: 24).
37
O pensamento burguês torna-se comprometido com a conservação do estado de
coisas. As palavras de Marx são claras: não é mais interessante discernir se esta ou aquela
tese é verdadeira ou não; importam agora as conveniências do capital. A pesquisa
desinteressada, a busca pela verdade é substituída pela “consciência deformada da
apologética”.
O que Marx afirma acerca da economia é comum a toda ideologia burguesa. Não é
mais possível reviver a tradição de teóricos sociais então formada. Não Kant, Fichte,
Schiller e Hegel são estranhos ao pensamento da ordem constituída, como também a
economia clássica de Smith e Ricardo e sua teoria do valor-trabalho.
A burguesia constata o que Marx diz de forma clara em O dezoito brumário de Luís
Bonaparte: “a burguesia tinha uma noção exata do fato de que todas as armas que forjara
contra o feudalismo voltavam seu gume contra ela, que todos os meios de cultura que criara
rebelavam-se contra sua própria civilização, que todos os deuses que inventara a tinham
abandonado” (1974: 366). Marx está a falar da herança cultural da tradição progressista
burguesa. Com o aparecimento do novo sujeito revolucionário no plano político mundial,
cabe a ele a auto-afirmação na luta de classes, expondo as contradições inerentes ao capital.
Assim, a cientificidade o conhecimento da essência da realidade passa a ser possível
somente a partir do ponto de vista do proletário. A razão dialética, que foi desenvolvida por
um burguês revolucionário como Hegel, é apropriada pela nova classe transformadora, pela
teoria social marxiana.
É irônico reler a profecia sarcástica de Schelling que dizia que as idéias de Hegel se
difundiram entre os burgueses e ficariam até “os últimos estágios de sua vida”. Schelling
não contava com o fato de que o movimento do real faria com que a burguesia mudasse de
posição qualitativa. As idéias racionalistas da filosofia clássica alemã não poderiam
permanecer em meio à burguesia, agora conservadora. Ao inverso do que predisse
Schelling, o pensamento hegeliano não se conservou no seio da ideologia burguesa até os
últimos estágios de sua vida.
É Marx quem passa a fazer a distinção tão cara a Hegel entre a essência dos
fenômenos e sua aparência enganosa
6
. Durante O capital, Marx estudava a expressão do
6
A distinção entre essência e aparência possui seu modelo clássico na teoria do fetichismo da mercadoria: as
mercadorias que nos circundam na sociedade burguesa aparecem enganosamente como coisas, ainda que, em
sua essência verdadeira, sejam trabalho objetivado. De 1848 em frente, ponto de vista do trabalho pôde
extrair conseqüências radicais desta descoberta, mesmo que outros autores tenham se aproximado dela.
38
valor da força de trabalho em sua forma manifesta, o salário; esta última categoria mascara
a apropriação do valor excedente pelo capital, como se a relação entre operário e burguês
proviesse de uma troca entre equivalentes: o trabalho de uma jornada pelo montante
manifesto no salário, ao invés do valor da força de trabalho por seu valor de reprodução e
por mais valor adicionado. O valor do trabalho e o salário são, portanto, “categorias que
correspondem a formas aparentes de relações essenciais” (Marx, 2002: 617); são
manifestações necessárias que velam a verdadeira substancialidade das relações de
produção. Daí Marx retira a postura metodológica a ser adotada: “à forma aparente, ‘valor e
preço do trabalho’ ou ‘salário’, em contraste com a relação essencial que ela dissimula, o
valor e o preço da força de trabalho, podemos aplicar o que é válido para todas as formas
aparentes e seu fundo oculto” (2002: 622). Em face das aparências e de seu núcleo
fundamental, resta o enunciado: as primeiras aparecem direta e espontaneamente como
formas correntes de pensamento; o segundo é descoberto pela ciência” (Marx, idem:
622).
A essência humana por trás da superfície coisificada do capital é a condição que
Marx impõe à sua ciência: “o capital o é uma coisa, mas uma relação social entre
pessoas, efetivada através de coisas” (2002: 882). O pensamento burguês em geral não mais
promove a distinção entre essência e aparência, o que possui como resultado a captura da
realidade em sua forma fetichizada, fenomênica o mais eficiente método para se
reproduzir no plano ideal as relações capitalistas.
Isso é o que Marx reconhece na historia alemã. Quando as relações capitalistas lá se
desenvolveram, não era possível que a economia política da Alemanha produzisse
qualquer “contribuição original” para a teoria social dado que a luta de classes havia,
naquele momento, realçado seus antagonismos na Inglaterra e na França. No instante em
que se desenvolve capitalista, a Alemanha não possuía as circunstâncias objetivas para
produzir um pensador burguês à altura de Smith ou Ricardo. Com efeito, Marx sublinha
que “o desenvolvimento peculiar da sociedade alemã impossibilitava qualquer contribuição
Pensadores burgueses como John Stuart Mill deram continuidade à teoria do valor-trabalho da economia
clássica; logo no início de seus Princípios de economia política, que data precisamente de 1848, Mill escreve
que o pressuposto de toda produção é a interação do homem com a natureza. Enquanto seus contemporâneos
estavam alocando o valor na esfera da circulação, Mill reafirma a centralidade do trabalho. Por esta razão,
Marx coloca-o entre os “ciosos da dignidade catedrática de sua ciência” e escreve a favor de Mill: “se homens
como J. St. Mill merecem críticas pela contradição entre seus velhos dogmas econômicos e suas tendências
modernas, seria absolutamente injusto confundi-los com a classe dos economistas vulgares” (2002: 710).
39
original para a economia burguesa, embora não impedisse sua crítica”. E acrescenta: “e se
esta crítica representa a voz de uma classe, pode ser da classe cuja missão histórica é
derrubar o modo de produção capitalista e abolir, finalmente, todas as classes: o
proletariado” (2002: 25).
O desenvolvimento aberto das lutas de classes não impede a sua crítica; pelo
contrário, facilita-a. Retornemos à assertiva de que o desdobramento dialético de Hegel,
Smith e Ricardo foi então promovida pelo materialismo histórico de Marx e Engels. Este
último esclarece o caráter totalizante da herança da tradição: “o materialismo moderno...
corresponde à incorporação... de todo o conjunto de pensamentos, que nos provêm de
milênios de progressos no campo da filosofia e das ciências naturais e da história mesma
destes dois milênios” (Engels, 1979: 118).
Marx e Engels passaram a ser verdadeiros defensores dessa tradição em face de
seus vulgarizadores, como demonstra essa famosa passagem escrita por Marx:
Critiquei a dialética hegeliana, no que ela tem de mistificação, quase 30 anos,
quando estava em plena moda. Ao tempo em que elaborava o primeiro volume de
O capital, era costume dos epígonos impertinentes, arrogantes e medíocres que
pontificavam nos meios cultos alemães, comprazerem-se em tratar Hegel tal qual
o bravo Moses Mendelssohn, contemporâneo de Lessing, tratara Spinoza, isto é,
como um “cão morto”. Confessei-me, então, abertamente discípulo daquele
grande pensador, e, no capítulo sobre a teoria do valor, joguei várias vezes, com
seus modos de expressão peculiares. A mistificação por que passa a dialética nas
mãos de Hegel não o impediu de ser o primeiro a representar suas formas gerais
de movimento, de maneira ampla e consciente (2002: 28, 29).
Em seguida, Marx expõe que a herança da tradição burguesa pelo proletário não
deve ser, de modo algum, passiva e sim transformadora: “em Hegel, a dialética está de
cabeça para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima a fim de descobrir a substância
racional dentro do invólucro místico” (idem: 29).
A substancialidade racional do grande pensamento burguês é necessariamente
mantida pelo proletário, enquanto que seu invólucro místico é descartado. Quanto a Hegel,
Engels não poderia ter sido mais preciso quando afirmou que “se não houvesse existido
anteriormente a filosofia clássica alemã, particularmente a de Hegel, o socialismo científico
alemão, o único socialismo científico que até hoje existiu, não teria sido jamais fundado”
(1977: 19). Ao estudar as Lições sobre a filosofia da história, Lênin dirá que “há na obra de
Hegel os germens do materialismo histórico” (1973: 296). E tendo frente aos olhos a
40
Ciência da lógica, di que “o materialismo histórico [é] uma das aplicações e um dos
desenvolvimentos das idéias seminais que existem em gérmen em Hegel” (idem: 180).
Embora exagere os traços de continuidade entre Hegel e Marx, o que o revolucionário russo
pretende é afirmar a importância científica das aquisições hegelianas, mantidas por Marx.
Do que decorre a exatidão do trecho seguinte: “não se pode compreender totalmente O
Capital de Marx e em particular seu capítulo inicial sem ter estudado bastante e sem ter
compreendido toda a Lógica de Hegel. Por isso, nenhum marxista compreendeu Marx
meio século” (Lênin, idem: 170).
Ainda Engels elaborou uma de suas mais célebres análises ao escrever novamente
a propósito do legado clássico em sua obra Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica
alemã:
na classe operária perdura, sem decair, o senso teórico alemão. Aqui, nada
que possa extirpá-lo; aqui, não margem para preocupação de arrivismo e de
lucro e de proteção vinda de cima; ao contrário, quanto mais audazes e intrépidos
são os avanços da ciência, melhor se harmonizam com os interesses e as
aspirações dos operários. A nova tendência, que descobriu na história da evolução
do trabalho a chave que permite compreender a história da sociedade, dirigiu-se
preferentemente, desde o primeiro momento, à classe operária e encontrou nela o
acolhimento que não procurava e não esperava na ciência oficial. O movimento
operário alemão é o herdeiro da filosofia clássica alemã (1963: 207).
Repete-se: o movimento operário alemão é o herdeiro da filosofia clássica alemã.
As condições materiais do proletário permitem e, até mesmo, determinam o acolhimento do
senso teórico abandonado pela decadência. Não é um simples apego aos velhos cânones. A
ponte que existe entre a criação de uma nova cultura e a grande herança não é outra coisa
senão uma superação com continuidade. que se retirar da dialética o invólucro místico
com o qual Hegel a vestiu, disse Marx algumas linhas acima
7
.
O legado da humanidade, absorvido criticamente pelo movimento socialista,
enquadra-se na totalidade da ideologia proletária neste sentido exposto por Lukács: “a
7
Lukács está inteiramente correto ao evitar que se tome o materialismo histórico-dialético como uma simples
inversão do idealismo hegeliano: “é uma simplificação falaciosa da história a suposição de que bastava, de
certo modo, mudar os signos, para retirar da dialética idealista de Hegel a dialética materialista de Marx. Nada
disso. Entre Hegel e Marx medeia um salto qualitativo, de alcance histórico-universal. Com Marx nasce uma
concepção de mundo qualitativamente nova e uma nova dialética, distintas de todo o anterior. E este tipo de
relações entre Hegel e Marx traz como conseqüência que a dialética materialista tivesse que transformar a
fundo e elaborar criticamente, tanto ao conteúdo quanto à forma, inclusive aqueles elementos progressistas da
dialética hegeliana em que Marx pôde apoiar-se” (1968: 441).
41
contínua solicitação da verdadeira e grande herança do passado é, ao mesmo tempo, um
apelo ao proletariado, um incentivo e uma solicitação das grandes tarefas que o esperam”
(1968a: 36).
Haja vista que a teoria social de Marx tenha sido legatária da grande cultura
burguesa, o irracionalismo da fase imperialista do capital volta suas armas contra ela. Se a
trindade formada por Schelling, Schopenhauer e Kierkegaard mirava no que existe de
progresso em Hegel, a filosofia irracionalista pós-1848 terá como alvo a ideologia do novo
sujeito revolucionário. E Lukács demarca: este novo período no irracionalismo inicia-se
com Nietzsche (cf. 1968: 06).
A filosofia de Nietzsche é a representante máxima desse período de decadência,
consciente de si mesma, em que o perigo das “massas embrutecidas” ameaça a civilização
dos “homens de espíritos sublimados”. É a mais importante das primeiras reações ao
comunismo. De acordo com Lukács, o papel histórico que vem cumprir a filosofia do autor
de A gaia ciência é demonstrar para certa camada da intelectualidade burguesa que se pode
seguir portando ares de insurrecto sem, contudo, romper com a sua posição de classe,
“abrigando o agradável sentimento de ser rebelde” (1968: 256). Por isso, ao contrário de
seus antecessores, Nietzsche não exclui de seu vocabulário o termo revolução, embora
tenha assistido aos dois meses da Comuna em Paris; trata-se, no entanto, de uma
“revolução” que, de uma vez, mantém intocados os privilégios da burguesia parasitária e
dirige-se contra a ameaça às genialidades da nobre cultura ocidental contida no movimento
comunista.
Face à preservação da genialidade defendida com vigor pela primeira
geração do irracionalismo moderno —, Nietzsche lança-se em luta contra a ideologia
proletária:
Os socialistas pretendem estabelecer o bem-estar para o maior número de homens
possíveis. Se a tria duradoura desse bem-estar, o Estado perfeito, fosse
realmente alcançada, o bem-estar destruiria o terreno de onde nasce a grande
inteligência e geralmente a individualidade potente: quero dizer a fonte de
energia. A humanidade estaria inerte para ainda produzir o gênio uma vez que
esse Estado estivesse realizado (1988: 180).
Com o socialismo, teríamos o fim do Estado imperfeito, este atual Estado
burguês, que estabelece o bem-estar para algumas castas privilegiadas e não para todos os
42
homens possíveis. É deste Estado que nasce o gênio e o socialismo viria apagar as
condições que possibilitam o seu nascimento.
É curioso perceber como o pensamento da ordem fala em nome da humanidade
para defender as classes dominantes diante do perigo revolucionário. Que se pense no
economista Alfred Marshall que, no mesmo período de Nietzsche, dizia existir “uma
poderosa razão para temer-se que a propriedade coletiva dos meios de produção amorteça
as energias da Humanidade e detenha o progresso econômico” (1985: 195). Por isso,
Marshall receitava um certo cavalheirismo econômico” para que o capital freasse o
movimento revolucionário
8
.
Com todas as suas enormes diferenças, Nietzsche e Marshall são exemplos de se
salvaguardar não o gênero humano e sim o homem burguês. Estamos na época posterior a
Comuna de Paris. Por este motivo, não é estranho que coincidam as opiniões de autores
díspares como Nietzsche e Marshall, haja vista que “a ameaça representada pelo
proletariado e pelo espectro do comunismo aproximaria tão bem as expectativas liberal-
apologéticas das reacionário-irracionalistas que, ao final de algumas décadas, quase não se
notariam as diferenças entre suas manifestações” (Pinassi, 2005: 55). Nietzsche não faz
esconder a sua opinião em meio a subterfúgios; a sua escolha não poderia ser mais límpida:
o que deve ser preservado a todo custo é o instinto de dominação, que estaria sob ultimato
face ao avanço comunista.
em Nietzsche uma repulsa a qualquer forma de governo que não seja
aristocrático, que não esteja baseado na escravidão; e daí provém a sua aversão ao caráter
burguês, prosaico da vida moderna. A modernidade não deteria a “coloração de nobreza”
dos antigos. Com efeito, Nietzsche credita à ausência do gosto aristocrático nas atuais
“linhagens superiores” o princípio motor do socialismo: “aos industriais e grandes
negociantes faltaram provavelmente, até agora, todas as formas e insígnias da raça mais
elevada, que tornam interessantes as pessoas; tivessem eles no olhar e nos gestos a nobreza
da aristocracia de berço, talvez não existisse socialismo das massas” (2002: 84). É possível
que exista o socialismo porque as classes superiores não portam “as insígnias da raça mais
elevada”.
8
“O mal pode ser atenuado em muitos outros sentidos por uma compreensão mais ampla das possibilidades
sociais de uma sorte de cavalheirismo econômico. Uma devoção ao bem público por parte dos ricos pode
fazer muito... em bom serviço para os pobres” (Marshall, 1985: 303).
43
A aristocracia seria formada por indivíduos, que por natureza teriam a nobreza de
espírito, nascidos e educados para produzir a “alta civilização”, sustentada pelo trabalho das
“massas embrutecidas”, daqueles homens que apenas cultivariam o “instinto de rebanho”.
Tais idéias ficam claras a todo instante em que Nietzsche escreve a propósito do
Estado. A sua concepção de filosofia política foi essencialmente exposta no capítulo VIII
de Humano, demasiado humano. Logo no § 439, está escrito que “uma civilização superior
não pode nascer onde não haja duas castas distintas da sociedade; aquela dos trabalhadores
e aquela dos ociosos capazes de um lazer verdadeiro; ou em termos mais fortes, a casta do
trabalho forçado e a casta do trabalho livre” (Nietzsche, 1988: 268). Em seguida, continua-
se a apologia à aristocracia: “a vantagem que os homens e mulheres de sangue nobre
possuem sobre os outros e o que lhes concede um direito indiscutível a uma estima
superior, são duas artes que a hereditariedade engendra: a arte de saber comandar e a de
dominar orgulhosamente” (idem: 269). Em face desses aspectos que pesam a favor do
Estado aristocrático, as idéias socialistas apenas poderiam atuar para sua degeneração: “o
socialismo pode servir para ensinar [entre os semicultos] de modo brutal e impositivo o
perigo de todos os acúmulos de poder no Estado, incutindo neste sentido uma desconfiança
contra o próprio Estado” (Nietzsche, idem: 473).
Diz Lukács que a insatisfação de Nietzsche com o mundo contemporâneo e o seu
elogio a Antiguidade significam, em verdade, a tomada de posição a favor do
imperialismo. A aparente contradição entre um anticapitalismo romântico e a defesa da
expansão do império capitalista dissolve-se rapidamente. O capital da etapa imperialista
não seria desaprovado por um reacionário tão consciente como Nietzsche: afinal, é a fase
da sujeição dos fracos pelo império dos mais fortes. O desejo era que esta sujeição
imperialista fosse qualitativamente ampliada a ponto de criar o solo em que a coloração
de nobreza da Antiguidade voltasse à tona. Em um ensaio em que discute a estética de
Nietzsche, Lukács formula assim a relação paradoxal do irracionalista com o estágio
monopolista do capital: “Nietzsche critica o desenvolvimento capitalista... de dois lados: do
lado de um passado protocapitalista e do lado de uma utopia do desenvolvimento
imperialista futuro” (1957: 342, 343). Nietzsche considera que as relações capitalistas ainda
não chegaram à nobre perfeição da Antiguidade; para que cheguem a este alvo, o
imperialismo deve ser intensificado. Se até o presente a sociedade burguesa permanece a
44
portar o prosaísmo que lhe causa aversão, o único recurso seria acentuar, aguçar a “vontade
de potência” dos senhores sobre as massas embrutecidas. É a paradoxal crítica à sociedade
burguesa a favor da drástica intensificação de suas relações de exploração e dominação.
A apologia indireta aqui se expressa sob a forma de um romantismo radical, que
consiste em uma luta pela “transmutação de todos os valores”, contra a democracia liberal e
contra os movimentos progressistas; é “a apologética indireta do imperialismo, disfarçada
com o manto demagógico muito eficaz da pseudo-revolução” (Lukács, 1968: 259). A
transmutação de todos os valores é a pseudo-revolução que nos traria o imperialismo
aguçado de que se falou no parágrafo acima. O super-homem defendido por Nietzsche teria
as condições ideais para nascer no período do pleno império de valores transmutados.
Vimos que a luta contra o socialismo é abordada enquanto uma questão ideológica
e, com ela, estampa-se novamente a repulsa de Nietzsche ao prosaísmo da modernidade;
bastaria aos “senhores atuais” um pouco de nobreza de sangue para que as massas não
fossem arrastadas pela corrente comunista. Isto é, se o capital demonstrasse a decisão
necessária — o “cavalheirismo econômico”, diria Alfred Marshall —, as classes
trabalhadoras terminariam por sucumbir à força do império.
A qualificação do homem como um “monstro animal” ou uma “superbesta” é
consoante com o caráter reacionário de suas teses filosóficas. Sendo uma fera indomável, o
homem se prostra diante da mão de ferro imperialista. É fato que Nietzsche não procura
qualquer tipo de moral universalista. Pelo contrário, o filósofo estava de todo ciente da
existência de uma moral dos “oprimidos escravizados” e a esta combatia ferozmente. Além
do que, frisa Lukács, inclusive a morte de Deus anunciada por Nietzsche põe-se a serviço
dessa mesma espécie de batalha aristocrática: com o fim dos imperativos e juízos
religiosos, tudo passa a ser lícito; o “homem forte” está liberto para tornar-se “a camada
tiranicamente dominadora do futuro, frente à horda” (Lukács, 1968: 294). De forma
simétrica a Schopenhauer, Nietzsche converte a crise da religião em um novo tipo de
religiosidade, dessa vez amoral e reacionária.
em sua filosofia um outro dos vários pontos de contato entre os inauguradores
do irracionalismo moderno: a ineficiência de toda luta contra a realidade dada. Schelling
foi o pioneiro na elaboração filosófica desta conduta ética; Schopenhauer e Kierkegaard
conferiam outros elementos desse quilate ao procedimento irracionalista o primeiro
45
abolindo a vontade e o segundo morrendo para o mundo. Nietzsche elabora a sua
interpretação do processo da história sob a famigerada terminologia do “eterno retorno”: o
devir caminha em ciclo e o nascimento de algo novo é impossível. Assim é exposto:
“homem! Tua vida inteira, como uma ampulheta, será sempre desvirada outra vez e sempre
se escoará outra vez —, um grande minuto de tempo no intervalo, até que todas as
condições, a partir das quais viestes a ser, se reúnam outra vez no curso circular do mundo”
(Nietzsche, 1999: 442). A história dos homens seria um curso circular; a linha que a
história perfaz desenha uma circunferência. É ocioso assinalar que se impinge nessas
palavras a falência das tentativas revolucionárias; se a história é um eterno retorno, todas as
tentativas de transformá-la caem no vácuo. Assim como em Schelling, Kierkegaard e
Schopenhauer, resta a resignação pessimista diante dos fatos.
No que concerne à teoria do conhecimento, pode-se pressupor que Nietzsche não
seja menos irracionalista que a trindade inaugural. Entretanto, o filósofo imperialista
introduz dados novos ao método do irracionalismo, de acordo com Lukács:
A posição especial de Nietzsche faz-se determinada pelo fato de que... introduz na
teoria do conhecimento o novo método agnóstico, indo porém, ao mesmo tempo,
por este caminho, muito mais além que seus contemporâneos: antecipa-se ao
momento em que o agnosticismo se converterá em mitos e provas, ao fazê-lo,
de um desenvolvimento tão audaz na criação de mitos, que a trajetória geral da
burguesia só alcançará um extremo um pouco parecido ao final da primeira guerra
mundial imperialista, por exemplo com os mitos de Spengler (1968: 313).
A filosofia de Nietzsche continua a posição assumida por seus antecessores: o
movimento do real é inapreensível. O original, segundo se leu com Lukács, é a criação de
mitos no tratamento dado à história. A história é interpretada mediante mitos alegóricos que
são concebidos por Nietzsche a respaldar o seu agnosticismo uma mitologia que
prescinde de qualquer lastro no real. Ao estilo das escrituras blicas, tudo se converte em
alegorias. Dá-me uma parábola e eu te explicarei a história. É de uso constante na filosofia
de Nietzsche a alegorização mitológica do real como, por exemplo, as lutas de classes
traduzidas pela parábola da ave de rapina e dos cordeiros a primeira devora os segundos
não porque é senão porque age por instinto; e uma ação instintiva estaria para além do
bem e do mal. Dessa forma, a representação das lutas históricas recebe a marca do
animalesco, cuja característica decisiva é a naturalização da exploração capitalista.
46
Assim, Nietzsche funda o irracionalismo do período imperialista, tempo em que o
adversário passa a ser a classe trabalhadora. O regresso à razão dialética está fora de
questão para o pensamento burguês. Pelo contrário, após 1848, o nível de abstração
filosófica (que implica minimamente a apreensão das contradições reais) decai
vertiginosamente; “os irracionalistas posteriores a 1848 carecem de verdadeira formação
filosófica e tendem a perder os mínimos escrúpulos científicos na condução dos debates”
(Netto, 1978: 49).
Nietzsche é o primeiro de tais autores que, em nome da ordem, declinaram dos
“escrúpulos científicos”, conforme constatou Netto. A trincheira formada por Schelling,
Schopenhauer e Kierkegaard foi expandida em grande escala pelo autor de O nascimento
da tragédia. Com ele, o irracionalismo ganha configurações originais porque está
respondendo a questões qualitativamente novas. Essa expansão contou igualmente com a
contribuição de Spengler, Heidegger, Jaspers e inúmeros outros perfilados por Lukács em
A destruição da razão. Não caberia aqui analisá-los em pormenor. A chegada a Nietzsche
mostra o modo pelo qual o irracionalismo volta-se contra o movimento socialista,
servindo-se dos expedientes mais reacionários em defesa dos avanços imperialistas do
capital.
Cabe dizer que o irracionalismo filosófico não foi a única contra-ofensiva do
pensamento burguês frente ao surgimento na política mundial do novo sujeito
revolucionário e da teoria social que o representa. Da crise revolucionária de 1848, teremos
ainda a constituição das ciências particulares, notadamente a sociologia. Também elas
serão um recurso no embate à teoria social marxiana e a seus portadores materiais, as
classes trabalhadoras. Sobre isso falaremos adiante.
47
2. O nascimento da sociologia
2.1. O “positivismo domesticado”
Vimos que o pensamento burguês decai do alto de um Hegel para seus
vulgarizadores. Em meio a este trajeto descendente, Lukács encontrará o nascimento da
sociologia:
Após o surgimento da economia marxista, seria impossível ignorar a luta de
classes como fato fundamental do desenvolvimento social, sempre que as relações
sociais fossem estudadas a partir da economia. Para fugir desta necessidade,
surgiu a sociologia como ciência autônoma; quanto mais ela elaborou seu método,
48
tão mais formalista se tornou, tanto mais substituiu, à investigação das reais
conexões causais na vida social, análises formalistas e vazios raciocínios
analógicos (1968a: 65).
Em A destruição da razão, Lukács diz que ao se criar “a sociologia como
disciplina à parte, encerra-se nela o estudo dos problemas da sociedade prescindindo de sua
base econômica; a suposta independência dos problemas sociais em face dos econômicos é,
com efeito, o ponto de partida metodológico da sociologia” (1968: 471).
A avaliação lukacsiana é correta para a caracterização da gênese das ciências
particulares, mas não de seu desenvolvimento ulterior. Nem sempre a sociologia esteve do
lado da reação, haja vista a influência que posteriormente Marx exerceu sobre um grande
número de sociólogos. Na Ontologia do ser social, Lukács não descarta as possibilidades
contidas nas pesquisas das ciências sociais que se recorde a sua admiração pelos
trabalhos de um sociólogo como Wright Mills. Naquele texto, o filósofo húngaro escreve
que “a divisão social do trabalho faz nascer, em termos sempre mais diferenciados, ciências
diversas para poder dominar o específico do ser social, do mesmo modo que é possível
dominar o intercâmbio orgânico com a natureza por meio das ciências naturais” (1981:
543). No entanto, nada disso obscurece a correção de sua tese acerca do nascimento da
sociologia: a autonomia concedida às ciências da sociedade é uma reação conservadora
ao aparecimento do novo sujeito revolucionário e de sua ideologia, a teoria social
marxiana.
As ciências sociais nascem da crise de 1848 ancoradas em um “positivismo
domesticado”, conforme Netto
9
. É preciso que se afirme que nem sempre o positivismo foi
de espécie domesticada. No século XVIII, “o positivismo foi militante e revolucionário.
Então, o apelo aos fatos importava num ataque direto às concepções religiosas e metafísicas
que constituíam o suporte ideológico do ancien régime (Marcuse, 1978: 310).
9
“A herança teórico-cultural emancipadora é incompatível, a partir de então [1848], com a perspectiva de
classe da burguesia eis o impasse que sinaliza a crise cultural que igualmente tem por marco o ano de
1848. A sua solução histórica deu-se em duas direções: de uma parte, com a teoria social de Marx, os
componentes emancipatórios são criticamente reelaborados numa perspectiva de classe proletária (justamente
a relação de continuidade e de ruptura que Marx mantém com suas ‘fontes’); de outra, com o pensamento da
ordem dividido entre um inofensivo, ainda que aparentemente ‘radical’, anticapitalismo romântico (articulado
especialmente numa constelação irracionalista) e um positivismo domesticado (prisioneiro de um
racionalismo formal), em cujo berço nascem as ciências sociais” (Netto, 2004: 60).
49
Com a obra de Condorcet, o positivismo detém cores revolucionárias; Condorcet
parte de noções positivistas para efetuar uma crítica revolucionária a seu presente histórico.
O filósofo iluminista recorre ao método naturalista para explicar as relações humanas com
uma intenção muito específica: conceder cientificidade ao tratamento dos fenômenos
sociais, livrando-o da interferência dos “interesses e paixões”, aos quais atribui um sentido
de classe da maneira explicada por Löwy:
Este ideal de ciência neutra, tão imune aos “interesses e paixões” quanto a física
ou a matemática, estará no coração da problemática positivista durante dois
séculos. Mas, ainda em Condorcet uma significação utópico-crítica: seu
objetivo confesso é o de emancipar o conhecimento social dos “interesses e
paixões” das classes dominantes. O cientificismo positivista é aqui um
instrumento de luta contra o obscurantismo clerical, as doutrinas teológicas, os
argumento de autoridade, os axiomas a priori da Igreja, os dogmas imutáveis da
doutrina social e política feudal (2003: 20).
Pelo exposto por Löwy, fica claro que o recurso ao cientificismo positivista em
Condorcet não é uma justificação da ordem, como será a partir da geração de Comte e
Spencer; ao contrário, é um instrumento de luta.
O tom revolucionário do positivismo do enciclopedista patenteia-se com uma
análise de sua obra Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Por
exemplo, logo depois de dizer que, no que concerne ao passado histórico, a filosofia não faz
nada além do que agrupá-lo em “quadras de seu progresso”, Condorcet acresce que resta
ainda um quadro a ser feito: “aquele de nossas esperanças, dos progressos que estão
reservados às gerações futuras e que a constância das leis da natureza parece lhes
assegurar” (1988: 86). Vê-se a recorrência à idéia da lei natural a reger a evolução humana;
porém, Condorcet não se abstém de crer na racionalidade da vida social, na razão iluminista
não é de se estranhar, aliás, que o filósofo se propusesse a expor “os erros gerais que
mais ou menos retardaram ou suspenderam a marcha da razão” (idem: 87).
O Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano é
constituído de nove estágios que descreveriam a história da humanidade até o tempo de
Condorcet; fecha-se o texto com um décimo e último quadro que diz respeito às “gerações
futuras” — como está dito no parágrafo acima —, sendo este um resultado da superação do
estado de coisas da nona etapa (que perfaz a história de Descartes até a instauração da
república francesa).
50
Este quadro que remete ao futuro é possível de ser descrito porque, segundo
Condorcet, se podem predizer os fenômenos dos quais se conhecem as leis
10
. E, tendo como
base o conhecimento daquilo que nomeou “leis naturais do progresso humano”, Condorcet
desenha o quadro futuro de nossa evolução em três amplos aspectos: teríamos “a destruição
da desigualdade entre as nações; os progressos da igualdade em um mesmo povo; enfim, o
aperfeiçoamento real do homem” (1988: 266). Nesta derradeira fase, “a estupidez e a
miséria não serão mais que acidentes” (Condorcet, idem: 266).
Não como exagerar o aspecto revolucionário do texto deste partidário da
revolução francesa. A obra de Condorcet faz com que se evite a fácil e errônea oposição
entre o racionalismo e o positivismo. Típico iluminista, Condorcet conferia ao
esclarecimento, às “luzes”, um papel de suma importância na emancipação do homem e,
por isso, a luta contra as mistificações do catolicismo é a mais constante no decorrer do
Esboço; o quadro futuro que delineia é produzido por indivíduos esclarecidos, cientes dos
fundamentos da natureza humana. Assim, positivismo e racionalismo coincidem na obra
desse importante filósofo, a despeito de sua confiança utópica na razão burguesa.
Um tema recorrente nas obras dos iluministas aparece também em Condorcet, a
saber, o ensino público. Não se espere uma atitude aristocrática de um iluminista quanto à
difusão dos saberes: Condorcet não pretendia guardar para si as “verdades” da razão; as
luzes deveriam ser generalizadas para todos os segmentos sociais. Em 1791, publicou as
Cinco memórias sobre a instrução pública. No primeiro e principal capítulo, Condorcet
intervém no debate a favor da igualdade de educação para todas as classes. O desequilíbrio
entre as camadas sociais no que diz respeito à cultura é considerado por ele “uma das
maiores fontes da tirania”. Diz o filósofo, a instrução pública igualitária fará com que os
talentos e as luzes sejam patrimônio comum de todos os homens (cf. 1994: 15). O
monopólio do conhecimento é nocivo ao bem público: “as luzes não podem ser
concentradas nem em uma casta hereditária, nem em uma corporação exclusiva. Não se
devem existir mais as doutrinas secretas ou sagradas que põem um intervalo imenso entre
duas porções de um mesmo povo” (Condorcet, idem: 16).
10
“O único fundamento do conhecimento nas ciências naturais é esta idéia que as leis gerais, conhecidas ou
ignoradas, que regem os fenômenos do universo, são necessárias e constantes; e por que este princípio seria
menos verdadeiro para o desenvolvimento das faculdades intelectuais e morais do homem do que em outras
operações da natureza?” (Condorcet, 1988: 265).
51
O cientificismo positivista está presente neste debate. Segundo Condorcet, a lei da
natureza fez dos homens todos iguais; o que os separou em diversas classes foi a educação
desigual. A instrução igualitária conduziria a uma igualdade de gostos, habilidades,
sentimentos e idéias. Registra-se o fato de que, de acordo com as idéias de Condorcet, a paz
entre as classes se dará mediante a comunhão de uma moral universal; mesmo que seja feita
a distinção entre classes dominantes e subalternas, nas Cinco memórias sobre a instrução
pública não há referências a propósito de algo como a distribuição planificada do excedente
produzido. Resolve-se o problema com a universalização dos valores de uma moral baseada
nas luzes da razão.
Apenas a generalização do conhecimento poderá corrigir o fato de que “um
número extremamente pequeno de indivíduos recebe em sua infância uma instrução que
lhes permite desenvolver todas as faculdades naturais” (Condorcet, 1994: 21). Com a
instrução fundada nas “verdades eternas das luzes”, todas as crianças estarão imunizadas
contra o erro e o preconceito (cf. Condorcet, idem: 73).
Condorcet propõe-se uma intervenção prática no debate público sobre a direção
do conhecimento. Entre as cátedras destinadas à educação das crianças, consta a “aritmética
política” (cf. 1994: 89). É a preocupação característica dos iluministas com a formação de
quadros dirigentes para a administração do bem público. Em uma postura similar a dos
filósofos revolucionários que vimos na Alemanha (Fichte, Schiller, Hegel), Condorcet não
se engana com uma pretensa “neutralidade” perante as contradições sociais. Eis em termos
gerais a sua contribuição para a edificação da nova sociedade:
Uma constituição verdadeiramente livre, em que todas as classes da sociedade
desfrutam os mesmos direitos, não pode subsistir se a ignorância de uma parte dos
cidadãos não lhes permite conhecer a natureza e os seus limites, se os obriga a
pronunciar-se sobre o que eles não sabem, a escolher quando não podem julgar;
uma tal constituição se destruirá ela-mesma depois de algumas tormentas e se
degenerá em uma dessas formas de governo que não conseguem conservar a paz
em meio ao povo ignorante e corrompido (1994: 32).
Era o objetivo do empenho de Condorcet a generalização da razão burguesa, das
luzes, do conhecimento. O “único soberano dos povos livres”, isto é, a “verdade”, faria com
que os homens espalhassem por todo o mundo a sua “bondade e irresistível força”. “Assim,
esta revolução não é a de um governo, senão a das opiniões e das vontades; não é o trono de
52
um déspota que ela subverte, mas do erro e da servidão voluntários” (Condorcet, 1994:
194).
A época heróica da consolidação da sociedade burguesa permitia que Condorcet
nutrisse a esperança otimista-utópica com relação aos desenvolvimentos futuros.
Nesse sentido, ao término do Esboço de um quadro histórico dos progressos do
espírito humano está escrito que, apesar de todas as adversidades trazidas pela batalha a
favor da razão, é “a contemplação deste quadro que [o seu autor] recebe o prêmio por seus
esforços em benefício do progresso da razão, pela defesa da liberdade” (Condorcet, 1988:
296).
Ao lado de Condorcet, Saint-Simon figura entre os positivistas revolucionários;
no início de sua atividade literária e política, era um ideólogo característico do Terceiro
Estado e, assim como seu contemporâneo, lutava contra as “classes ociosas” a favor dos
“trabalhadores” (que, para o Saint-Simon de então, abrangiam tanto o operário quanto o
burguês).
A crítica que Saint-Simon endereça à aristocracia baseava-se nos princípios
positivistas já vistos em Condorcet: a “classe ociosa” significa um entrave para o avanço do
conhecimento humano; “os príncipes, os oficiais superiores da Coroa, os bispos, os
marechais, os prefeitos e os proprietários ociosos não contribuem diretamente para o
progresso das ciências, das artes e dos ofícios” (Saint-Simon, 2002: 60). As camadas
aristocráticas obstam o progresso revolucionário dos saberes positivos; por isso, fazem
vigorar apenas “teorias conjunturais” em detrimento do verdadeiro conhecimento humano.
Para que fossem desfeitos estes equívocos, era imperativo que os métodos das “ciências da
observação” entrassem no âmbito da discussão política: “até aqui, o método das ciências da
observação não foi introduzido nas questões políticas; cada um trouxe a elas seu modo de
ver as coisas, de raciocinar, de julgar, e daqui provém que não tenha havido nem precisão
nas resoluções, nem generalidade nos resultados” (Saint-Simon, 1975: 60). Reina a
arbitrariedade na política uma vez que a ciência positiva ainda não é de uso dos soberanos.
Mas, o socialista utópico informa que “chegou o tempo que deve cessar esta infância da
ciência, e certamente é desejável que cesse: que das obscuridades da política nascem os
transtornos da ordem social” (idem: 61).
53
Também do mesmo modo efetuado por Condorcet, Saint-Simon traçava etapas de
desenvolvimento do espírito humano tendo como certo que “a marcha do espírito humano é
una e inalterável e não varia segundo os tempos ou os lugares” (1975: 121). Saint-Simon
vislumbra uma época das sociedades pós-revolucionárias em que, destituídas do poder as
aristocracias, “a calma renasce depois de tanta agitação, as trocas desejadas no princípio
pela parte do povo operam-se sem infortúnio, e a nação por fim esta ordem social a
qual havia esperado chegar, sem convulsões e sem revoltas” (idem: 124). É um ideal de
sociedade a se alcançar. Essa ainda não era a época de Saint-Simon; o revolucionário
depositava todas suas forças para que tal estado de coisas passasse a vigorar na Europa,
com a generalização das benesses da revolução burguesa: “a idade de ouro do gênero
humano não está atrás de nós, está adiante, está na perfeição da ordem social; nossos pais
não a viram; nossos filhos chegaram a ela um dia: a nós corresponde preparar-lhes o
caminho” (idem: 163).
Bastante claro nestas menções é a conjugação entre teoria e prática deste
positivismo revolucionário; não se pretendia uma teoria purificada das intervenções
políticas, da “arte”, como diria o “domesticado” Durkheim. A noção de cientificidade do
positivismo iluminista não apartava em esferas excludentes a teoria e a práxis.
Diversamente dos seus herdeiros do pós-1848, Condorcet e Saint-Simon eram autênticos
revolucionários.
Quando escreveu Para a reorganização da sociedade européia, em 1814, Saint-
Simon ainda investia sua crença na burguesia contra os poderes aristocráticos; naquela
obra, por exemplo, a monarquia parlamentar da Inglaterra é eleita como “a melhor
constituição possível” (1975: 71); com o desenvolvimento das contradições do capital,
porém, Saint-Simon assume o ponto de vista do proletariado. O utópico francês percebe
aos poucos que a burguesia estava longe de instaurar o “reino da razão” e que, pelo
contrário, substituía a dominação política aristocrática por outra forma de dominação; a
seus olhos, o Terceiro Estado cindia-se em classes antagônicas. Essa transição faz com que
Saint-Simon produza um dos primeiros documentos que atestam em gérmen a formação
dos trabalhadores em classe para-si. É o Novo cristianismo, de 1825. Como o título indica,
a obra está carregada de uma religiosidade utópica. Entretanto, é nela que Marx reconhece a
mudança: “não se deve esquecer que, na última obra, o Nouveau Christianisme, Saint-
54
Simon surge diretamente como porta-voz da classe trabalhadora e declara que a
emancipação dela é o objetivo final de seus esforços” (1981: 693).
Nesse livro bem considerado por Marx, ao anunciar a sua doutrina, Saint-Simon
noticia que a nova religião estará atrelada às classes subalternas, que o novo cristianismo
“dirigirá todas as instituições, qualquer que seja sua natureza, ao acréscimo do bem-estar da
classe mais pobre” (1981: 12). As instituições da nova piedade religiosa terão como fim o
bem-estar das classes trabalhadoras. Esta é a sua finalidade: todos os esforços das
instituições da igreja estarão reservados à promoção da saúde econômica e moral das
camadas pobres.
A evangelização guiada pelos novos preceitos cristãos terá uma missão muito
específica:
A sociedade deve ser organizada segundo o princípio da moral cristã; todas as
classes devem concorrer, com todo seu poder, para o melhoramento moral e
material da classe mais numerosa; todas as instituições sociais devem concorrer, o
mais enérgica e diretamente possível, para esta grande meta religiosa (Saint-
Simon, idem: 68).
A “grande meta religiosa” é organizar toda a sociedade em benefício dos
trabalhadores, “a classe mais numerosa”.
Com o bem-estar dos trabalhadores, os antagonismos de classe estariam
resolvidos. Os homens estariam em condições morais e econômicas para se tratar enquanto
“irmãos”. Sendo todos filhos de Cristo, não haveria porque a desigualdade moral e material
entre os homens. O novo cristianismo “deduzirá as instituições temporais, assim como as
instituições espirituais, do princípio todos homens devem tratar-se como irmãos em suas
relações recíprocas(Saint-Simon, 1981: 12). Sem as distinções classistas, o mundo torna-
se uma irmandade.
A sociedade sem classes esboçada por Saint-Simon em Novo Cristianismo é
revestida por um invólucro de piedade religiosa: os homens doutrinados por este novo
evangelho serão todos irmãos; é dever dos novos fiéis o tratamento recíproco como irmãos.
É indicativo o fato de que se exponha nos moldes de uma religião este documento
que concerne aos primeiros momentos de consciência do trabalhador acerca de seus
próprios interesses. Apenas no período que culmina em 1848 estarão postas as condições
55
históricas para que a ideologia do operariado perca o seu caráter utópico e eleva-se à
ciência com Marx e Engels.
Isso não quer dizer que o papel de Saint-Simon seja diminuto. Engels era um
veraz entusiasta de suas grandes aquisições racionalistas:
O conceber a Revolução Francesa como uma luta de classes entre a nobreza, a
burguesia e os desprotegidos, era um descobrimento verdadeiramente genial para
o ano de 1802. Em 1816, Saint-Simon declara que a política é a ciência da
produção e prediz a total absorção da política pela economia. E aqui não se faz
mais do que apontar a consciência de que a situação econômica é a base das
instituições políticas, proclama-se já, claramente, a futura transformação do
governo político sobre os homens numa gestão administrativa sobre as coisas e no
governo direto sobre os processos de produção que não é nem mais nem menos do
que a idéia da abolição do Estado que tanto ruído levanta hoje (1979: 225, 226).
As idéias do socialista utópico acerca da política irão fecundar a teoria marxiana;
Marx foi convencido por Saint-Simon de que o Estado era uma objetivação do ser social
especificamente cindido em classes; tanto para Marx quanto para Saint-Simon, o Estado
significa a dominação do homem sobre o homem. Em uma sociedade sem os antagonismos
classistas, será substituída a dominação estritamente política pela dominação sobre os
eventos da vida sócio-econômica, a “gestão administrativa sobre as coisas” de que fala
Engels. Desse modo, a influência de Saint-Simon foi de suma importância para que Marx
elaborasse a sua teoria negativa do Estado
11
.
A geração desses autores fazia confluir positivismo e revolução. Ainda que
utópica, a filosofia de Condorcet e Saint-Simon projetava um novo tipo de sociabilidade
para além de seu presente histórico. Nesse sentido, o positivismo não é nada domesticado.
Quem irá domesticá-lo será a geração posterior, em especial Comte e, um pouco depois,
Spencer. Se, historicamente, Condorcet e Saint-Simon estavam aptos a falar em revolução,
o mesmo não pode ser dito para o pensamento burguês na época de Comte e Spencer. E,
por intermédio destes autores, nascerá a sociologia, uma espécie de física a estudar os
11
Sob nosso parecer, a influência da filosofia política de Saint-Simon sobre Marx possui um ponto positivo e
outro negativo; de um lado, a partir de Saint-Simon, Marx corretamente via o Estado como o “coletivo
ilusório”, como o instrumento de dominação de classes; porém, Marx elaborou não só uma teoria negativa do
Estado, mas também da política em geral. A política é para Marx uma objetivação do ser social
particularmente cindindo em classes. Assim sendo, em uma sociedade emancipada, a política não teria razão
de ser. O que significa que o consta em meio às teses de Marx o caráter catártico universal da práxis
política, isto é, a política enquanto o debate público acerca do destino do gênero humano. Este seria, a nosso
ver, o lado negativo da influência da Saint-Simon.
56
fenômenos do reino social. A concepção da sociologia deu-se com a dissolução do
socialismo utópico francês (em Comte) e a escola ricardiana de economia na Inglaterra (em
Spencer), precisamente no contexto histórico em que surgia para a política mundial a classe
trabalhadora.
Lukács está com a razão quando diz que, nestes primeiros passos da sociologia, há
uma preocupação em manter um caráter universal na explicação da sociedade; mas, como
bons positivistas, o fundamento desta universalidade não está na economia e sim nas
ciências naturais (cf. Lukács, 1968: 471). Aqui, em verdade, as ciências da natureza são
alçadas a paradigma da explicação sociológica de um modo distante daquele que se nos
socialistas utópicos. Lukács explica como: “a fundamentação científico-natural, sobretudo
biológica, não tarda em transformar-se, consoante com a trajetória geral político-econômica
da burguesia, em uma ideologia e uma metodologia inimigas do progresso e, em muitos
aspectos, francamente reacionário” (idem: 472).
A cientificidade naturalista deixa de ser instrumento de luta contra um dado
estado de coisas para se tornar uma metodologia “inimiga do progresso” e, às vezes,
“reacionária”.
Sob este prisma, o percurso traçado por Comte é modelar. Atentem para as datas.
Em 1826, com o Curso de filosofia positiva, Comte propunha-se a descrever as leis do
progresso humano em seus três estágios, o teológico, o metafísico e o científico; portanto,
levam-se em consideração alguns aspectos de mudança societária. No ano chave de 1848,
as contradições de classe brotam a olhos nus e, em seu Discurso preliminar sobre o
conjunto do positivismo, Comte denomina a sua filosofia de “doutrina regeneradora” em
face da “grande crise do Ocidente”. Até que, em 1852, o sociólogo ambiciona compor um
Catecismo positivista para harmonizar as lutas de classe (as “hostilidades mútuas”, como
diz a sua introdução). Vê-se como a física social de Comte caminha para a franca reação na
medida em que ganham vulto os antagonismos da sociedade burguesa.
Este movimento significa a passagem do racionalismo, que presume a crítica do
real, para um racionalismo puramente formal, que implica a aceitação acrítica do dado,
mistificando-o de múltiplas maneiras (tomando a imediaticidade empírica como o autêntico
objeto da ciência, parcelando a vida social em compartimentos diferenciados, negando à
crítica um papel científico, etc.).
57
Quando Durkheim inicia a sua intervenção intelectual o movimento proletário
havia produzido o “assalto ao céu” na Paris de 1871; o capital está em sua fase monopolista
e a reificação da cotidianidade burguesa avança a passos largos. Por isso, em Durkheim a
sociologia o fala mais em antagonismos. Notem que mesmo o Comte da última fase
supunha a divisão classista da sociedade, uma vez que pretendia a catequização dos
trabalhadores; é evidente, ao supor uma classe trabalhadora a ser catequizada, supõe-se
necessariamente a existência de classes sociais. Mas Durkheim exclui a idéia de luta de
classes das doutrinas positivistas e o “reino social” passa a ser considerado solidariamente
homogêneo a partir de uma moral constituída por uma coletividade coesa.
A ordem passa a ser, de fato, uma necessidade metodológica. Para a apreensão do
fato social, tomam-se as relações sociais como algo imutável, fixo. Afinal, não se observa o
que está em movimento.
Lembrem-se de que Marx não precisou mais do que uma nota de página em O
capital para dar conta do positivismo posterior a Comte; é oportuno que esta crítica refira-
se precisamente ao caráter imutável atribuído às relações: “August Comte e sua escola
poderiam ter demonstrado a eterna necessidade dos senhores feudais do mesmo modo que o
fizeram em relação aos senhores do capital” (2002: 386). A partir das palavras de Marx
pode-se inferir a arbitrariedade contida nas teorias da sociologia positivista: a sociedade
burguesa é transformada em “a sociedade” assim como poderia ser feito com qualquer
outra forma social.
Com a invocação do método das ciências da natureza, Durkheim consegue
explicar o porquê do aparecimento extemporâneo da sociologia entre as ciências: “a ciência
só aparece quando o espírito, abstraindo toda a preocupação prática, aborda as coisas com o
único fim de ter representações delas” (1975: 104). Para que se tenha o comportamento
científico “é preciso ter chegado à noção de leis”. E o sociólogo conclui: “ora, sabe-se com
que lentidão a noção de lei natural se constituiu e se propagou progressivamente às
diferentes esferas da natureza”. Com lentidão, a idéia de lei natural aportava na sociologia
com a obra da escola positivista “e foi isto que fez com que a sociologia pudesse
aparecer num momento tardio da evolução científica” (Durkheim, idem: 105).
58
Entretanto, não é apenas a noção de lei natural que faltava aos estudiosos da
sociedade; estava ausente ainda o reconhecimento do reino social enquanto um dos reinos
da natureza:
séculos que o espírito está habituado a conceber um tal abismo entre o mundo
físico e aquilo que se chama o mundo humano que, durante muito tempo, se
recusaria a admitir que os princípios, mesmos fundamentais, de um fossem
também os do outro. Daí a tendência geral em colocar os homens e as sociedades
fora da natureza, a fazer das ciências da vida humana, quer individual quer social,
ciências à parte, sem semelhanças com as ciências físicas, mesmo as mais
avançadas... Para triunfar desse obstáculo, seria preciso perder o preconceito
dualista; e o único meio para isso consistia em adquirir um sentimento vivo da
unidade do saber humano (Durkheim, 1975: 105).
O “preconceito dualista” seria daqueles que viam o ser social com uma legalidade
distinta do ser natural. Durkheim “supera” tal dualidade fazendo concordar com Menger
que, à mesma época, dizia: “todas as coisas são regidas pela lei da causa e do efeito” (1983:
243).
Nesse mesmo sentido, na tentativa de equiparar os métodos naturais com os
sociais, uma alternativa é posta por Durkheim: “deve-se então escolher: ou bem as coisas
sociais são incompatíveis com a ciência, ou bem elas são governadas pela mesma lei que as
outras partes do universo” (1966: 38).
Podemos inferir qual é a escolha do sociólogo:
Como este princípio, segundo o qual todos os fenômenos do universo estão
diretamente vinculados uns aos outros, foi posto à prova em demais domínios
da natureza e não foi jamais apresentado como falso, é fortemente verossímil que
seja válido também para as sociedades humanas, as quais fazem parte da natureza
(Durkheim, 1966: 38).
Se assim não for, Durkheim adverte que a ciência poderá se tornar uma espécie de
“arte”, isto é, uma doutrina normativa feita para a ação. “A arte, em efeito, consiste em
agir; é então arrastada pela urgência... A verdadeira ciência não sofre tanto da precipitação”
(1966: 32). A arte pretende a correção; a sociologia, o entendimento descritivo. Esta é a
oposição entre dever ser e ser que marca com ferro e fogo o nascimento da sociologia (e
que inexiste para a geração de Condorcet e Saint-Simon). Pois, no mais fiel cânone da
decadência ideológica da burguesia, Durkheim estabelece que o método científico difere-se
59
da arte por “aplicar-se a um certo objeto em vista de conhecê-lo sem nenhuma preocupação
utilitária” (idem: 34).
Advogando a favor da “ciência”, Durkheim acusa as teorias que se ligam ao
socialismo. O marxismo não é ciência, que não se atém ao ser. O socialismo ocupa-se
menos com o que é ou foi do que com o que deve ser” (Durkheim, 1993: 36). O socialismo
nasceria da paixão, dos preconceitos, da vontade de ingerência na prática e não da
observação desprovida de preocupações utilitárias; pretende a fundação de uma nova ordem
social, o que não seria tarefa da ciência: “o socialismo não é uma ciência, uma sociologia
em miniatura, é um grito de dor e, por vezes de cólera, lançado pelos homens que mais
vivamente sentem nosso mal-estar coletivo” (Durkheim, idem: 37).
Essa distinção entre arte e ciência é essencial para Durkheim; na verdade, sendo
um ideólogo da Terceira República, trata-se de um problema de primeiro plano
12
. No ensaio
A sociologia em França no século XIX, Durkheim deixa implícita a sua postura. Para
justificar a suposta desafetação exigida pela ciência sociológica, ele constata sem peias: “a
verdade é que, a partir do momento em que a tempestade revolucionária passou, constitui-
se, como que por encanto, a noção de ciência social” (1975: 106). Oencanto” não é senão
o apartamento das lutas de classe no plano teórico, igualado por Durkheim à ruptura com os
preconceitos e com “qualquer preocupação utilitária”. E isto é o que Durkheim anuncia:
para se chegar à descoberta das leis sociológicas, é “preciso praticar um método positivo,
isto é, substituir os procedimentos sumários da dialética ideológica pela observação
paciente dos fatos” (idem: 118).
Resta, acima de tudo, um verdadeiro tratado da decadência ideológica por parte de
Durkheim ao preconizar aos seus seguidores a “observação paciente dos fatos”:
Podemos certamente concluir, não sem razão, que a vida que... se desenvolveu
[em meados do século XIX] é muito agitada e não deixa de ter lamentáveis
desperdícios de forças. Mas, enfim, é a vida. Que ela se discipline e se
regularmente, que os ânimos assim despertos, em vez de se consumirem sem
método, se agrupem e se organizem, que cada um meta mãos a uma tarefa
definida, e é-nos permitido esperar que este movimento figurará na história das
idéias em geral e da sociologia em particular (1975: 122).
12
um momento privilegiado em que o sociólogo expõe a sua condição de ideólogo da Terceira República
em face do Segundo Império; assinalando que a última grande contribuição à sociologia foi produzida em
1942 por Comte, tendo a ciência social hibernado por um longo tempo para ser resgata por ele mesmo,
Durkheim sugere: “como a maior parte desse tempo corresponde ao Segundo Império, poderíamos ser levados
a crer que foi o despotismo imperial que levantou obstáculos ao progresso da ciência” (1975: 111).
60
estamos a léguas de Condorcet e Saint-Simon. Para nenhum destes autores a
atividade revolucionária era um lamentável desperdício de forças”. Com Durkheim o
positivismo perde por completo o seu aspecto racionalista, crítico, para se transformar na
domesticada aceitação do estado de coisas posto; para tanto, era necessária a disciplina
metódica sem as agitações dos “ânimos mais despertos”.
2.2. O nascimento da sociologia na Alemanha
Em terras alemãs, os eventos ganharam um rumo particular. Como a burguesia
toma o poder político baixo ao coturno prussiano de Bismarck, “a sociologia alemã nasce,
pois, dentro dos marcos da apologética derivada desta transição” (Lukács, 1968: 474). Isso
implica que está posta para a sociologia alemã uma série de tarefas distintas daquelas que
se observam na França e na Inglaterra. Lukács diz que a apologia ao Estado prussiano fazia
com que os problemas da vida social fossem identificados como meras questões jurídicas
de Estado; bastava a intervenção do Estado (diga-se, de Bismarck) para que se decidisse o
assunto.
Esta era a idéia do historiador e político Heinrich Treitschke, que predominava
nos primórdios da sociologia alemã (cf. Lukács, 1968: 474). Efetivamente, Treitschke
defendia que “o Estado demanda obediência: suas leis devem ser mantidas, forçosamente
ou não. É um passo adiante quando a silenciosa obediência dos cidadãos torna-se um
consenso racional interno, mas este consenso não é absolutamente necessário” (s/d: 12). O
consenso liberal não é necessário; basta a intercessão do Estado. Um pouco depois no texto,
o ideólogo de Bismarck assevera que “o Estado diz: para mim, é indiferente o que pensas
sobre o assunto, mas deves obedecer” (Treitschke, idem: 13). Exige-se, portanto, a
obediência servil ao Estado imperialista. Treitschke estava longe de ser um liberal
democrata.
Tudo se submetia ao Estado prussiano: esta era a idéia hegemônica naqueles anos,
conforme os estudos de Lukács. Por esta razão, a sociologia ficava momentaneamente sem
objeto na Alemanha. O que poderia ser enfocado pela sociologia, na verdade, resolvia-se
lançando mão da teoria do direito e da política.
61
A situação muda de figura quando o florescimento das lutas de classes entre
burguesia e operariado; “nesta nova situação, um grupo de economistas alemães
(Brentano, Schmoller, Wagner e outros) trata de estender os domínios da economia
nacional até convertê-la em uma ciência da sociedade” (Lukács, 1968: 474). O operariado
torna-se força ativa no palco político da Alemanha; organiza-se no partido social-
democrata. Essa nova objetividade histórica é a demanda à qual a sociologia virá a
conceder respostas. A ciência burguesa volta seu foco para o movimento do trabalho; reage
a ele. Para que o fiquemos no purificado plano das idéias e, assim, mistificarmos todo o
processo, deve-se dar a devida atenção às particularidades históricas da Alemanha de então:
uma sociologia fazia-se necessária para dar conta da questão social”, tratando-a
empiricamente, autonomamente, sem se reportar às contradições econômicas, como designa
o método das ciências vulgares.
O positivismo não influencia esta sociologia produzida na Alemanha, pelo menos
não em sua versão clássica comteana. Dada a herança de Kant entre os teóricos alemães,
quando aspectos positivistas transpõem os limites da fronteira com a França, eles são
filtrados por um subjetivismo kantiano. O pensamento alemão sempre manteve uma atitude
de reserva ao positivismo clássico. E, no momento em que nasce a sociologia, os mandarins
alemães estão parcialmente imunizados contra a cientificidade naturalista da escola de
Comte, Spencer e Durkheim. Produz-se, na verdade, um positivismo peculiar à Alemanha,
de tipo neokantiano, que geralmente mantém a rígida separação entre ser e dever ser e a
fragmentação entre as disciplinas, ainda que não conceba as sociedades enquanto um todo
orgânico.
Lukács estabelece a obra de Ferdinand Toennies enquanto o grande momento da
nascente sociologia alemã. Em 1887, Toennies publica Comunidade e sociedade. Essa é
uma amostra de como a sociologia alemã elabora o positivismo à sua maneira. O sociólogo
distingue entre comunidade e sociedade fundamentando-se em categorias das ciências
naturais: a primeira seria um corpo cujos membros estariam agregados de forma
homogênea, enquanto a segunda seria uma formação mecânica, o que pressupõe a
existência plural de centros de força (cf. Toennies, 1947: 19). A sociedade viria substituir
cronologicamente a comunidade; é a leitura que Toennies fazia do surgimento da sociedade
burguesa à época de Comunidade e sociedade.
62
Não é ocioso lembrar que, concomitantemente, Durkheim estabelecia distinção
similar no livro Divisão do trabalho social, também se valendo dos usuais paralelos com as
ciências da natureza.
A particularidade de Toennies reside no fato de que a sua recepção de Marx não é
de rejeição. As teorias de O capital sobre a transição da simples cooperação à grande
indústria são qualificadas como “magistral análise” (Toennies, 1947: 97). Por certo, Marx
servia até certo ponto para a crítica romântica e reformadora que o sociólogo pretendia
fazer ao capital. Para Toennies, a sociedade é uma “construção artificial” que dista
longinquamente da “unidade perfeita” de uma autêntica comunidade; o romantismo está
posto nestes termos: “comunidade é a vida em comum duradoura e autêntica; sociedade é
uma vida em comum passageira e aparente” (Toennies, idem: 21). A fim de enaltecer o
“espírito de união” perdido com o advento da sociedade, o sociólogo recorria a Marx, muito
embora subtraísse o aspecto revolucionário da crítica marxiana à economia política.
A aceitação de um certo Marx particulariza Toennies em respeito a seus
contemporâneos. Toennies até mesmo retém a teoria do valor-trabalho: “coisas são
consideradas iguais na medida em que cada objeto ou cada quantidade de objeto detém uma
certa quantidade de trabalho necessário” (1947: 70). O autor de Comunidade e sociedade
chega a defender Marx diante das críticas da escola austríaca de economia (cf. Toennies,
idem: 115, 116). Apesar de delimitar o valor-trabalho à sociedade burguesa (quando em
verdade corresponde à totalidade extensiva da história), não como não notar uma
coragem em Toennies no instante em que afirma o trabalho como medida do valor, em
plena vigência do estágio monopolista do capital. Enquanto seus contemporâneos estão
apartando da teoria os inconvenientes ao capital, é possível de se ler na obra de Toennies
que a produção de valores está a cargo da classe trabalhadora; trata-se de um verdadeiro
triunfo da objetividade, embora Lukács não lhe dê o devido crédito
13
.
Dada a sua condição de classe, pode-se supor que Toennies não leve às últimas
conseqüências a constatação de que a classe produtora é o operariado. A sua crítica ao
13
Lukács comenta que Toennies entendia como similares as versões de Marx, Ricardo e Rodbertus para a
teoria do valor-trabalho (cf. 1968: 478). Isso é verdade, mas, sob nossa ótica, esse fato não reduz a
importância do movimento de Toennies no sentido de apreender as contradições da realidade burguesa; a
confusão de Marx com Ricardo e Rodbertus não suprime dos seus textos a teoria valor-trabalho; ela continua
lá. Entretanto, Lukács prefere desmerecer a enaltecer a tentativa de Toennies em se apropriar de elementos da
teoria marxista. A destruição da razão foi escrita em um momento conturbado, em plena guerra fria, e uma
concessão desse porte às ciências burguesas talvez fosse impensável.
63
capital retira suas armas da cultura; é uma crítica à hostilidade da economia capitalista às
formas elevadas de objetivação (arte, filosofia).
Ao longo de Comunidade e sociedade, Toennies presta tratamentos diferentes às
duas formas societárias: ao analisar a comunidade, o sociólogo privilegia os aspectos
culturais, instituições como o matrimônio, a família, a autoridade política, a nobreza de
sangue, a honra, etc; quando o assunto é a sociedade, põe-se a discorrer sobre a economia, a
divisão do trabalho, a produção de valores, a mercantilização da vida social, o dinheiro, o
lucro, a desapropriação dos meios de produção dos trabalhadores, a mais-valia, etc. Parece
que o momento econômico vem a nascer com a sociedade burguesa. Não são extraídas
maiores determinações da relação de exploração entre o senhor feudal e o servo da gleba;
não se leva em conta a economia quando se aborda a comunidade e não se considera a
cultura na análise da sociedade. Toennies não é neutro na escolha do método: de um lado,
fazem-se um elogio à cultura comunitária e, de outro, um ato de repúdio à economia da
sociedade.
No livro de 1887, o aspecto contraditório da sociedade é ressalvado para se
reafirmar a “unidade perfeita”, o “consenso”, a “reciprocidade de relações” da antiga
comunidade. Biógrafo de Hobbes, Toennies retira do iluminista inglês a noção de que em
sociedade o homem é o lobo do homem; de que os indivíduos agem conforme seus
interesses mais particulares, mais imediatos na formação societária. Enquanto que em
sociedade, cada qual está para si somente e em estado de tensão contra todos os demais”
(Toennies, 1947: 65), em comunidade, “consenso e concordância são também uma mesma
coisa: vontade comunal em suas formas elementares; como consenso em cada uma de suas
relações e efeitos, como concordância em sua força e natureza total” (Toennies, idem: 41).
em Princípios de sociologia, de 1931, Toennies fala não em “sociedade” mas
sim em sociedade burguesa; afinal, como diria Aristóteles, o sociólogo o nome certo à
coisa. Apesar de proporcionar algumas novidades em face de outros textos, nos Princípios
de sociologia, o elemento romântico não se perde na caracterização da burguesia:
De todos os elementos favorecidos, em conexão parcial com os subsistentes do
estamento senhorial, forma-se uma “classe” dominante, que se diferencia do
estamento senhorial por não ser fechada por natureza, senão aberta, e por que se
destaca menos da grande massa do povo por signos exteriores como nome, título e
tradições (Toennies, 1946: 109).
64
Entre todos os aspectos que poderiam diferenciar a burguesia dos senhores
feudais, Toennies optou pelo prosaísmo da classe dominante moderna. Os burgueses não
detêm o nome, o título e as tradições que os diferenciariam da grande massa proletária. A
burguesia não porta a “coloração de nobreza”; ela é passível de se confundir com a massa
do povo. Ainda que Toennies não caia na franca reação, é indubitável que um reacionário
convicto como Nietzsche corroboraria com boa parte de tais idéias esboçadas pelo
sociólogo.
A maneira de Toennies conduzir a crítica à burguesia é cheia de particularidades
(que não foram deixadas de lado na maturidade dos Princípios de sociologia). O seu
método termina por conceber as formações sociais de modo supra-histórico: nas tipologias
da sociedade não se compactuam elementos que pertencem às comunidades e vice-versa. O
sociólogo compõe assim dois imensos blocos históricos, opostos rigidamente, a saber, o
capitalismo e o pré-capitalismo.
Lukács analisa os resultados que decorrem deste tipo de destruição da razão:
Esta exaltação anti-histórica de conceitos derivados, por sua origem, da análise
concreta de formações sociais concretas, não dilui estes conceitos..., senão que
reforça, ao mesmo tempo, seu caráter anticapitalista romântico. A “comunidade”
se converte assim na categoria que abarca o campo de todo o pré-capitalista, na
glorificação dos estados “orgânicos” primitivos e, ao mesmo tempo, na consigna
contra a ação mecanizadora e anticultural do capitalismo (1968: 483).
De um lado, a comunidade a abarcar o todo do passado pré-capitalista a
despeito das particularidades sócio-históricas; de outro, a sociedade, que representa a
emergência da sociabilidade burguesa. É uma antinomia lógica em que A não detém
determinações de B. Os dois conceitos estão opostos entre si, sem mediações; o se
tomam em conta aspectos de transição histórica entre as duas modalidades societárias; onde
se inicia uma delas, termina a outra.
Toennies era um romântico resignado; olhava para a história passada com
saudades no mesmo instante em que acreditava que a sociedade burguesa e a substituição
das comunidades eram inevitáveis:
Nesse aspecto, foi influenciado por Marx. Não dúvida, em sua mente, de que o
capitalismo era a principal força que levaria da comunidade à sociedade, do
comunismo primitivo ao socialismo moderno. A agricultura, a guilda da cidade
pequena, as tradições legais comunais e mesmo a própria família tinham de ser
sacrificadas para que houvesse mercados de âmbito mundial, padrões racionais de
65
organização social, produção em massa e um exército de trabalhadores sem raízes
a ser explorados nas fábricas. Não tinha a menor dúvida sobre isso e não podia
tolerar frases “idealistas” destinadas a disfarçar essas realidades (Ringer, 2000:
163).
É verdade que Toennies qualificava como idealismos “condenados ao fracasso”
quaisquer empenhos em reconstruir as relações comunitárias do modo como estavam postas
no antigo regime. A restauração da “unidade perfeita” conduziria a uma outra modalidade
de cooperação distinta das medievais e antigas.
uma importante passagem dos Princípios de sociologia em que Toennies
clarifica a sua posição em face das lutas de classes entre burguesia e proletariado; declara
que não se retorna para o passado, muito embora lamente o espírito cooperativo perdido na
modernidade. Por isso, põe-se a favor da luta pelo “novo”; põe-se ao lado do “novo e
jovem” representado pelos trabalhadores e contra o velho burguês, sob a condição que o
novo oriente-se para a constituição de um re-atualizado espírito de unidade, de cooperação.
Toennies realmente não leva às últimas conseqüências a constatação de que a produção de
valores está a cargo da classe trabalhadora. Escutemos de sua própria voz:
O novo e o jovem [os trabalhadores] constituem precisamente um esforço em
direção à comunidade, representando concretamente a tendência, condenada
sempre ao fracasso, de restabelecer circunstâncias passadas e mortas; porém
também representam mais freqüentemente e com melhores perspectivas de êxito
uma tendência em direção ao estabelecimento de uma nova base econômica que
quer diferenciar-se por princípio da capitalista e societária mesmo quando
tenha igualmente necessidade do capital. Neste sentido, são de grande
importância, antes de tudo, as tão reiteradamente mencionadas organizações
cooperativas, as quais partem nada menos que do princípio que faz da produção
de valores de uso um objeto imediato do trabalho societário; é dizer, de um
princípio que afirma a guerra ao valor de troca, cuja generalização devem-se os
enormes êxitos do capitalismo, e que trata de conciliar..., pelo menos, o capital e o
trabalho, procurando que o próprio trabalho domine e tome em suas mãos o
capital em forma de instrumentos que lhe são necessários (Toennies, 1946: 342,
343).
O repúdio ao prosaísmo burguês levou Toennies a aliar-se ao operariado, o que
era indicado pela sua apropriação da teoria do valor-trabalho. Entretanto, o intento não era a
revolução. Toennies pretendia a reforma, a conciliação entre trabalho e capital. A
restauração da “unidade perfeita” da comunidade não implica a volta ao passado, senão a
66
reforma do presente rumo à constituição de cooperativas; nelas, as características mais
lesivas da divisão capitalista do trabalho seriam abrandadas.
Não existe, portanto, nenhum paradoxo entre a tomada de partido favorável à
classe trabalhadora e a crítica de caráter romântico à sociedade burguesa; era um
romantismo que se desvinculava da restauração reacionária. O novo e o jovem da luta
proletária significam o estabelecimento contemporâneo da comunhão corrompida pela
sociedade burguesa. Toennies resigna-se com a instauração da sociedade burguesa e
procura amenizá-la com as reformas que não transbordem para além das fronteiras do
capital.
Os problemas aumentam quando Toennies associa às formas societárias duas
noções de “vontade” o que Ringer chamará de “dicotomia fundamental” da obra de
Toennies (cf. Ringer, 2000: 160). Toennies pretende estabelecer a seguinte diferença: uma
espécie de “vontade essencial” fez vir ao mundo as comunidades e toda a sua coesão
interna, enquanto que uma “vontade arbitrária” produziu a sociedade desagregadora (cf.
Toennies. 1947: 119). De acordo com o sociólogo, “a comunidade parte da unidade perfeita
da vontade humana” (1947: 25). Toennies hipertrofia a subjetividade criadora e atribui a
ela o papel instituidor da dinâmica social. O sujeito torna-se uma entidade supra-histórica
que funda as formações societárias com a sua vontade
14
.
O contraditório de sua resignação romântica é realçado tendo em vista que
Toennies dava um grande relevo à “vontade subjetiva”. Se bastasse que os indivíduos
desejem a restauração do sentimento comunitário, não haveria por que a resignação.
Todavia, o estudo do movimento do capital ensinou a Toennies que vontade não é
onisciente ou onipotente; foi obrigado a constatar que a dinâmica social é muito mais
abrangente do que os indivíduos isoladamente, do que as vontades e os interesses
particulares do sujeito. Ainda que quisesse, a “vontade essencial” por si só não traria de
volta o espírito comunitário; não foi por outra razão que Toennies engajou-se na luta
política pelas reformas que conciliassem capital e trabalho.
14
“O sujeito de ambas [a vontade arbitrária e a essencial] põe em movimento o corpo (de outra sorte
representável como desprovido de movimento) por meio de um impulso exterior. Este sujeito é uma
abstração. É o ‘eu’ humano, concebido como desprendido de todas qualidades e como essencialmente
cognoscente, como se representando as conseqüências (prováveis ou seguras) de possíveis efeitos que partam
dele mesmo e medindo-as por um resultado final, cujas idéias se fixam como norma para separar esses
possíveis efeitos, ordená-los e dispô-los para que se convertam em realidade no futuro” (Toennies: 1947:
121). O sujeito de Toennies é a descrição de um ente divino, onipotente e onisciente.
67
Toennies exerceria uma grande influência no desenvolvimento da sociologia
alemã. A sua crítica romântica ao capitalismo circunscreveu o terreno em que os sociólogos
posteriores caminharam.
É o caso de Simmel, por exemplo. Simmel representou um outro momento basilar
desta sociologia em estado nascente na Alemanha. A sua preocupação central girava em
torno da metodologia sociológica; elaborando um método para dar conta da sociedade,
Simmel chegou a conclusões extremamente formalistas, vazias de concretude histórica:
“em grupos sociais, que por seus fins e por toda sua significação são os mais diversos que
se possam imaginar, encontramos as mesmas relações formais dos indivíduos entre si”
(Simmel, 1983: 62). Não importam as diferenças históricas, as particularidades de cada
totalidade intensiva; as relações humanas capturam-se em sua silhueta apenas,
prescindindo-se do seu conteúdo substancial.
Ringer explica como Simmel projetava o seu próprio ideal de ciência:
A sua idéia era que fenômenos como dominação (ou supra-ordenação) e
subordinação, estruturas como as da associação voluntária e padrões
característicos da vida social, como polidez, a diferenciação e o conflito de classe
podem ser descritos e analisados de maneira puramente formal, isto é, sem
referência aos propósitos e interesses particulares dos relacionamentos (2000:
166).
Isso quer dizer que, ao se analisar as relações de dominação, se pode circunscrever
o fenômeno sem se ater às diversidades entre a dominação do burguês sobre o proletário, do
senhor feudal sobre o servo da gleba, do cidadão antigo sobre o escravo, etc. Vê-se como
esse método carente-de-pensamento é útil para se apagar as determinações históricas.
Adorno chama a atenção para o que brota do método formalista: “não são as
teses do formalismo sociológico, as de Simmel, por exemplo, que são falsas em si, mas sim
os atos do pensamento que as arrancam da empiria, as hipostasiam e posteriormente lhes
conferem conteúdo ilustrativo” (1983: 213). Arrancam-se as formas do empírico e trata-
lhes como “polaridades abstratas”, segundo o próprio Adorno. É a antiga discussão que
levou Schelling a negar a cientificidade à razão, elevando assim o saber imediato à
condição de ciência. Simmel pretende “formalizar” as relações sócio-históricas,
catalogando os seus traços mais abstratos. Supomos que Hegel tivesse qualificado essa
metodologia de simples “conhecimento tabulador”.
68
Uma clara exposição das falhas da tabulação rasa de Simmel aparece quando o
sociólogo aborda a “questão social”:
A pobreza é um fenômeno sociológico único: um número de indivíduos que, em
face de um destino puramente individual, ocupa uma posição orgânica específica
no interior do todo; mas esta posição não é determinada por seus destinos e por
sua condição, mas, acima de tudo, pelo fato de que os outros indivíduos,
associações, comunidades tratam de retificar esta condição. Assim, não é a
falta de meios que faz de qualquer pessoa um pobre. Sociologicamente falando, a
pessoa pobre é o indivíduo que recebe assistência dada sua falta de meios (1998:
101, 102).
Dois aspectos logo saltam aos olhos nesta formulação “sociológica”. Em primeiro
plano, Simmel confere aos indivíduos a responsabilidade por estar nas classes subalternas.
A objetividade das causalidades históricas é transformada em um mero acaso, um “destino
puramente individual”. Em segundo, o formalismo da conceituação é gritante. Simmel
entende que, “sociologicamente falando”, pobres são aqueles que recebem a assistência
alheia. Reduz-se a questão operária a um de seus aspectos mais superficiais. Seriam
“pobres” os indivíduos que estivessem sob a tutela de alguma ajuda; excluem-se os outros
que não recebem o auxílio de associações e comunidades, ainda que estejam na mesma
condição concreta. Esta é a maneira como a sociologia recém-nascida é chamada para tratar
da “questão social”: catalogando suas feições imediatas, encobrindo convenientemente o
seu núcleo contraditório.
Simmel constrói este conceito de pobreza para fugir à caracterização “puramente
individualista” do fato. Simmel não pretende abordar a questão partindo do seguinte
conceito: “são pobres os que não detêm os meios para satisfazer os próprios fins” (1998:
91). Se fosse este o ponto de partida conceitual, diz Simmel que se chegaria a um outro
resultado porque, “efetivamente, cada ambiente, cada classe social possui suas necessidades
típicas; a impossibilidade de satisfazê-las significa pobreza” (idem: 92). Ou seja, um alto
burguês que carece dos presuntos de Parma seria pobre em sua classe; para suprir as
necessidades de sua classe, ele não possuiria os meios para a sua devida satisfação. “Daqui
se retira o fato banal que em todas as civilizações desenvolvidas pessoas que são pobres
em sua classe e que não seriam pobres em uma classe inferior” (Simmel, idem: 92). Aquele
burguês faminto pelos presuntos de Parma não seria pobre em meio à pequena burguesia,
69
menos ainda entre os proletários, os quais, sob o ponto de vista burguês, não iriam tão
longe assim em suas necessidades.
Percebe-se o quanto Simmel significa uma redução mesmo frente a um autor
como Toennies, o qual jamais pretendeu superar os limites de uma mera sociologia. Em
Toennies é possível de se vislumbrar uma preocupação em discernir certas determinações
concretas do real (e é o que indica a sua acolhida da teoria do valor-trabalho). Em Simmel a
realidade concreta é despida de substancialidade; aqui, os problemas sócio-históricos são
resolvidos à luz de “conceitos sociológicos” sempre tão distantes de uma autêntica
ontologia; esta distância em Simmel é maior do que em Toennies. A teoria do valor-
trabalho é sumariamente descartada por Simmel, que considera a equalização dos trabalhos
individuais em dispêndio de energia humana genérica “qualquer coisa de bastante
impalpável, bastante abstrata e vazia, tanto quanto a teoria segundo a qual, todo homem
sendo homem, todos seriam de mesmo valor, qualificados pelos mesmos direitos e deveres”
(Simmel, 1999: 530). Assim, está aberto o caminho para a assimilação do utilitarismo
domesticado que não encontra lugar em Toennies: “o valor do trabalho não se mede por seu
quantum, mas pela utilidade de seu resultado!” (Simmel, idem: 540). Sendo a utilidade do
resultado a medida do valor, Simmel conclui: “o trabalho mais nobre, sutil e intelectual
significaria justamente um acréscimo de trabalho, uma acumulação e condensação de
mesmo ‘trabalho’ geral, enquanto o trabalho primitivo e o qualificado representaria uma
considerável diluição e um potencial inferior” (idem: 541).
Não é a pauperização das classes trabalhadoras que é subtraída em sua
concretude histórica. O formalismo abstrato é visível no tratamento teórico que Simmel
presta a certas categorias da sociedade burguesa o dinheiro, por exemplo. Vamos a ele
adiantando momentaneamente os resultados: o dinheiro em Simmel possui significado em
si mesmo, destacado das relações práticas, da troca de mercadorias. O sociólogo entende
que o dinheiro perdeu o seu uso prático, desprendeu-se da cotidianidade e passou a receber
um valor cultural em si mesmo.
Sigamos com atenção a marcha de seus passos. Para exemplificar esse
desprendimento dos valores culturais diante do cotidiano, Simmel faz o paralelo com o
tema de sua predileção, a arte. O sociólogo reproduz a antinomia kantiana entre a utilidade
70
prática e o prazer desinteressado do estético
15
; com isso, pode sustentar a valorização
cultural enquanto uma característica plenamente desvinculada da prática: “pode-se dizer
que um similar sentimento de prazer, destacado da realidade de sua causa primeira, torna-se
enfim uma forma de nossa consciência, independente dos primeiros conteúdos que
suscitaram o seu desenvolvimento” (Simmel, 1999: 42). A absoluta oposição entre a arte e
a vida cotidiana seguramente não incomoda Simmel, um autor que convive
harmoniosamente com as antinomias extremas, com as “polaridades abstratas”, afirmou
Adorno. Ausente de todo pragmatismo, o valor estético passou a ser uma “forma de nossa
consciência”. Desconexa da prática, a valorização torna-se um fenômeno integrado àquilo
que Simmel chamou de “constelação psíquica do sujeito”. Na medida em que “evoluiu a
espécie”, os objetos foram aos poucos perdendo a sua utilidade cotidiana para integrar a
nossa “constelação psíquica”.
Da descrição do comportamento estético, Simmel abstrai o modelo de qualquer
valorização cultural: “a objetivação do valor nasce da relação de distância criada entre a
origem subjetivo-imediata da valorização do objeto e nosso sentimento provisório em face
dele” (1999: 43). Então, o valor cultural atribuído pelo indivíduo ao objeto de seudesejo
de prazer” pressupõe a distância da utilidade cotidiana. A essa fórmula abstratamente
universal Simmel limita todas as relações do homem com seu objeto de desejo; sejam
relações morais, afetivas, religiosas, estéticas: em todas, o sujeito valoriza o objeto longe de
qualquer caráter pragmático.
O valor econômico não escapa à fórmula abstrata, purificada de qualquer
concretude: “o valor econômico efetivo não é jamais um valor em si, mas, por essência e
por definição, é uma certa quantidade de valor; esta quantidade não pode ser estabelecida
senão ao medirem-se duas intensidades de desejos uma em relação à outra” (Simmel, 1999:
70). Não existe um valor dos objetos em si; conforme a Filosofia do dinheiro, ele é sempre
relativo às veleidades de cada arbítrio.
Assim os valores econômicos tornam-se “forma de nossa consciência”. Para a
filosofia decadente, “é extremamente importante esta redução do processo econômico a isto
que se passa realmente, quer dizer, na psiquê de todo sujeito econômico” (Simmel, 1999:
15
Kant opunha: “pode-se dizer que, entre todos estes modos de complacência, única e exclusivamente o do
gosto pelo belo é uma complacência desinteressada e livre, pois nenhum interesse, quer o dos sentidos, quer o
da razão, arranca aplauso” (2005: 55).
71
56). Resume-se a objetividade dos processos econômicos a formas psíquicas. As interações
que se passam “realmente” possuiriam lugar no psiquismo dos agentes econômicos. A
relação de troca entre valores, que Simmel entende ser o sacrifício de um valor para a
obtenção de outro, é uma dinâmica que, aos seus olhos, tem conseqüências exclusivamente
psicológicas:
Os processos subjetivos de troca entre sacrifício e ganho que se desenvolvem no
interior da psiquê individual não representam em nada, com relação à troca
intersubjetiva, uma forma puramente secundária ou refletida; é exatamente o
inverso: é a troca entre a cessão e a aquisição, desenrolando-se no interior do
indivíduo, que representa a condição fundamental e constitui por assim dizer a
essência e a substância de toda troca entre duas partes (Simmel, 1999: 55).
Carência e satisfação são meros aspectos formais de nossa psicologia. Diz-se na
citação que a essência da relação econômica desenvolve-se no interior do indivíduo.
Simmel participa da geração de autores burgueses para os quais as antigas antecipações de
Schopenhauer fizeram-se generalizar. É a época do irracionalismo de puro sangue burguês.
Tudo o que se pode chamar de mundo está submetido à vontade e à representação do
sujeito, ao desejo de satisfação do indivíduo burguês.
Também o dinheiro torna-se uma forma de nossa “constelação psíquica”. Simmel
insere o dinheiro nessa “corrente cultural” de desagregação entre a utilidade pragmática e a
valorização simbólica. O dinheiro é a forma característica “de substitutivos e símbolos, que
não possuem nenhum parentesco de conteúdo com o que representam” (Simmel, 1999:
157). O dinheiro é um dos substitutivos que perderam a filiação com os objetos por eles
simbolizados. Diz Simmel, isso é o que acontece quando “as operações com os valores
realizam-se por meio de um símbolo que perde cada vez mais qualquer relação material
com as realidades últimas de seu próprio domínio e não é outra coisa que um puro símbolo”
(idem: 157). O dinheiro teria se transformado em puro signo cultural, à parte da
materialidade das mercadorias. A obtenção de dinheiro passou a ser o mero acúmulo pelo
acúmulo, a simples aquisição de um bem simbólico, de um status. O dinheiro não é mais o
substituto, senão o objeto de desejo ele mesmo.
Simmel considera uma vantagem do tempo presente o desprendimento do
dinheiro frente às relações materiais, a sua evolução rumo à pura forma cultural, sem
alianças com a objetividade que um dia representou. O dinheiro evoluiria para uma posição
72
semelhante apenas na idade moderna, período em que a faculdade psíquica de abstrair
elevou-se a níveis jamais vistos: “o incremento das capacidades intelectuais de abstração
caracteriza a época em que o dinheiro, cada vez mais, torna-se puro símbolo, indiferente a
seu próprio valor” (Simmel, 1999: 157).
Na modernidade, “seguramente este valor do dinheiro deve também possuir um
substrato, mas o que é decisivo aqui é que o substrato não é mais a fonte deste valor, é que,
ao contrário, o substrato tornou-se inteiramente secundário” (Simmel, 1999: 233). Sem
nomeá–lo, o sociólogo fala do trabalho, o substrato do valor das mercadorias. Acredita
Simmel que a fonte do valor do dinheiro não seria o consumo da força de trabalho no
processo produtivo. Tendo o dinheiro se tornado puro signo, sem calço no real, o trabalho
veio a ser um mero pano de fundo frente ao protagonismo da cultura. Face ao valor
autonomizado das relações práticas, o conteúdo do trabalho não significa muita coisa: “se
sua natureza e seu ser em si importam ainda um pouco, isso se deve a razões técnicas
externas ao sentimento do valor” (Simmel, idem: 233).
O que acontece com o dinheiro descreve para Simmel a inversão dos papéis entre
os meios e os fins. A ação teleológica de aquisição de mercadorias foi invertida: o dinheiro,
a “instituição social” que seria o instrumento de obtenção é transformada em fim, em
objetivo a ser alcançado. O dinheiro converteu-se de intermediário em finalidade. Deste
modo é exposta por Simmel “a polaridade inerente ao dinheiro: ser por natureza o meio
absoluto e tornar-se concomitantemente, para a psicologia da maior parte das pessoas, o fim
absoluto, sendo feito, de modo notável, um símbolo em que os grandes reguladores da vida
prática encontram-se fixos” (1999: 275).
Convertendo-se em fim para a “psicologia da maioria das pessoas”, o dinheiro
assumiria a seguinte característica pintada por Simmel com animado expressionismo:
[O dinheiro] tem justamente relações significativas, psicologicamente, com a idéia
de Deus... A essência profunda do pensamento divino é de unir todas as
diversidades e contradições do mundo... A idéia de que tudo que é estranho e
inconciliável para o ser unifica-se e compensa-se no pensamento divino, realiza
esta paz, esta segurança, esta riqueza afetiva universal ligada à representação de
Deus e ao sentimento de sua presença. Indubitavelmente, em seu domínio, os
sentimentos suscitados pelo dinheiro possuem uma analogia com aqueles últimos.
Ao passo que se torna cada vez mais a expressão absolutamente suficiente e o
paralelo de todos valores, o dinheiro eleva-se a uma altura abstrata para além da
vasta multiplicidade de objetos, converte-se no centro em que as coisas mais
opostas, mais estranhas, mais distantes encontram seu ponto em comum e entram
73
em contato; assim o dinheiro concede esta elevação para além do particular, esta
confiança em seu ser todo-poderoso como aquela de um princípio supremo (1999:
281).
Enfim, as categorias da sociedade burguesa são refletidas em sua feição
fetichizada por Simmel. A natureza reificada do cotidiano burguês é aceita como um dado
da realidade e, a partir dela, compõem-se fórmulas sociológicas.
De forma geral, este é o trato formalista dado a uma categoria da sociedade
burguesa. A concretude da história não é sequer considerada. No prefácio a Filosofia do
dinheiro, ao expor a sua metodologia, Simmel assume a clara postura anti-histórica ao
delimitar que “a gênese do dinheiro não é o ponto aqui em causa: ela pertence à história,
não à filosofia” (1999: 14). Isso nos relembra um apologista direto como Say que dizia não
estudar as origens históricas da propriedade privada porque não era o objeto da economia
política. O que Simmel escreveu é uma variante do mesmo método. Retiram-se os
inconvenientes ao capital na pesquisa das categorias da economia burguesa, seja o dinheiro
ou a propriedade privada.
Mas Simmel não era um Say, não era um apologista direto do capital; não
considerou a sociedade burguesa enquanto o ordenamento perfeito para a natureza humana.
Nos seus livros, as relações capitalistas recebiam uma advocacia que possuía outras
mediações. À semelhança de Toennies, Simmel via como nocivo o desenvolvimento do
capital para os bens culturais. A hostilidade do capital à arte e à filosofia, a mercantilização
dos bens culturais, etc, foram em seu conjunto um processo que Simmel denominou de
“tragédia da cultura”: “o caráter fetichista que Marx confere aos objetos econômicos à
época da produção de mercadorias constitui apenas um caso especial, modificado, deste
destino geral de nossos conteúdos culturais” (Simmel, 2005: 98). Similar ao ocorrido com o
dinheiro, os bens culturais adquirem autonomia frente a seus criadores: esse é modo pelo
qual Simmel tenta exprimir o processo de reificação da cotidianidade no período
imperialista do capital.
Entretanto, Simmel infla de tal maneira a “tragédia da cultura” que termina por
conceder a ela o dom da inevitabilidade. Segundo Simmel, o elemento trágico diz respeito à
autonomia que os produtos da alma assumem, transformando-se em uma esfera impessoal
74
diante de seus criadores. Porém, essa “situação trágica” não seria uma peculiaridade do
capitalismo; seria, ao contrário, imanente à própria cultura.
Uma vez que este caminho como caminho cultural é condicionado pela
autonomização e objetivação dos conteúdos da alma, surge a situação trágica de a
cultura já abrigar em si, em seus primeiros momentos de existência, aquelas
formas de seu conteúdo estão determinadas, por meio de uma inevitabilidade
imanente, a desviar, dificultar e tornar perplexo e conflitante o caminho da alma
em si como algo inconcluso para si mesma, como algo perfeito que
corresponde a sua essência interior (Simmel, 2005: 105).
Desde os primeiros momentos, a cultura em geral abriga em si a faculdade de
desviar dos criadores os produtos espirituais. A apologia indireta está no fato de que
Simmel percebe a tendência do capital em reificar a cultura, mas lhe imputa uma
“inevitabilidade imanente”, como está dito na citação acima. É a cultura supra-histórica (e
não a cultura burguesa) que abriga em si mesma as formas que a autonomizam perante o
sujeito. Com isso, Simmel consegue estender para toda e qualquer época a reificação do
capital. Não é estranho que um autor que pretenda apenas se ater à tabulação faça eternizar
as contradições do capital imperialista. Simmel é coerente ao não conseguir dar concretude
à sua crítica à sociedade moderna; do ponto de vista do seu método formalista, toma-se o
aparente pelo substancial, ou sequer se discerne a real existência da substancialidade dos
fenômenos.
Sabemos que a apologia indireta ao capital é o instrumento para se realçar alguns
aspectos negativos da sociedade burguesa sem que se culmine em uma crítica racional. Os
decadentes posteriores a 1848 quase sempre fizeram concordar a apologia indireta ao
capital e a repulsa ao socialismo. No caso de Simmel, a repulsa ao socialismo salvaguarda o
elemento mais característico emergido da divisão capitalista do trabalho: o indivíduo
burguês. Diz o sociólogo: “quando se considera o indivíduo em si e em seu todo, ele possui
qualidades muito superiores àquelas que introduz na unidade coletiva” (2006: 48). Frente à
emotividade, simplicidade e radicalidade dos movimentos de massa, o indivíduo deteria a
“superioridade” atribuída por Simmel. A segunda parte da Filosofia do dinheiro é um
elogio à “liberdade pessoal” da economia monetária” contra os movimentos coletivos.
Portanto, não se deve esperar que surja da letra de Simmel uma crítica transformadora ao
capital, que seja radical no sentido marxista (que tome o homem como raiz do próprio
homem); ainda que vislumbre a chamada “tragédia da cultura” na sociedade moderna,
75
Simmel trata de eternizá-la para que não traga conseqüências revolucionárias; pretende
assim resguardar o indivíduo burguês tanto em face da “tragédia da cultura”, quanto dos
movimentos transformadores.
Toennies e Simmel foram de grande importância para a constituição da sociologia
em terras alemãs; no pensamento alemão, eles estão no gérmen da criação do “ponto de
vista sociológico”, necessário para parcelar o real, para tratar da sociedade enquanto objeto
autônomo, subtraindo do ser social o caráter histórico, para responder ao surgimento da
teoria social marxiana e do novo sujeito revolucionário. A crítica resignada de ambos faria
sucessores diversos em meio aos pensadores burgueses de gerações posteriores.
Agora, deve-se dizer que nem Toennies e sequer Simmel foram os momentos de
maior relevância para a consolidação da sociologia na Alemanha. A intervenção de Max
Weber significa a mais influente obra não apenas da sociologia alemã, mas de toda a
sociologia em seu conjunto. Weber acatou vários elementos do pensamento burguês do
período da decadência ideológica e os re-elaborou de forma peculiar. No próximo capítulo,
veremos quais são os principais componentes do pensamento deste autor.
76
3. Max Weber: uma alternativa conservadora a Marx
3.1. O período imperialista do capital e a situação ale
3.1.1. O projeto de uma Alemanha imperialista
A obra de Max Weber é uma reação conservadora às revoluções proletárias e ao
surgimento da teoria social marxiana; por sua voz falava a burguesia da Alemanha durante
o período guilhermino, de uma modernização rápida sem que se tivesse feito a revolução
democrático-burguesa, de um imperialismo sem colônias. Quando a burguesia alemã
constitui-se como força internacional, a divisão imperialista do mundo estava feita. No
77
fim do século XIX, Treitschke declarava na universidade de Berlim que “na partilha do
mundo não-europeu entre os poderes europeus, a Alemanha sempre foi de longe o pior
deles e à questão se também nos tornaremos uma potência ultramarinha concerne a nossa
existência como grande Estado” (s/d: 17). Weber é então uma tentativa de se dar respostas a
essa situação; é um homem de seu tempo, de sua classe.
Por certo, são uma peça de polêmica as suas vinculações políticas. quem
defenda que o sociólogo fosse um liberal, inclusive sendo chamado de “um liberal na
situação limite” (Mommsen, 1981: 21). De fato, em Weber uma certa apologia à
democracia liberal burguesa, o que talvez entraria em contradição com seu endosso ao
imperialismo alemão. Porém, Lukács desfaz essa aparente contradição expondo a posição
ocupada pelas idéias democráticas no quadro geral do pensamento weberiano. Segundo o
pensador húngaro, Weber acreditava que a democracia era só uma transição necessária para
o imperialismo:
Este sociólogo [Weber] compartilha com os demais imperialistas alemães da idéia
da missão política universal (colonizadora) dos ‘povos senhoriais’. Mas se
distingue deles quando, não idealiza, senão que ao contrário, critica violenta e
apaixonadamente o estado de coisas vigentes na Alemanha sob o regime do
pseudoparlamentarismo. Entende que a Alemanha mesmo a Inglaterra ou a
França somente pode chegar a ser um ‘povo senhorial’ no amparo da
democracia. Para ele, é dizer, para que as ambições imperialistas da Alemanha
sejam realizadas, deve proceder-se à democratização do país e aprofundá-la todo o
necessário para alcançar aquela meta (Lukács, 1968: 492).
Explicam-se, desse modo, as passagens dos textos de Weber em que são
sustentadas as teses do liberalismo burguês. Trata-se da crítica à miséria alemã, ao
pseudoparlamentarismo de que Lukács fala acima. O objetivo último das críticas era a
realização das “ambições imperialistas” da nação alemã.
O próprio Weber fez questão de anotar em um artigo de 1906 que os ideais de
democracia e liberdade apenas perduram em nações que constituem impérios: “esses ideais
[de democracia e liberdade] subsistem onde a vontade resoluta de uma nação se opõe
constantemente a deixar-se conduzir como um rebanho de ovelhas” (2005a: 104).
Democracia e liberdade são exclusivas dos povos senhoriais, das nações que não se deixam
conduzir como ovelhas; são ideais privativos dos povos com “vontade de potência”. As
78
nações que se deixam levar como rebanho de ovelhas não podem erguer-se à democracia e
à liberdade.
A preservação e expansão de um Estado nacional poderoso em um mundo de
intensa competição econômica e de disputas imperialistas aparecem para Weber como uma
conseqüência historicamente necessária da fundação do Reich (cf. Mommsen, 1984: 69).
Isso é bem claro em seu discurso inaugural na universidade de Freiburg, de 1895, publicado
sob o título de Estado nacional e política econômica. Para legitimar a sua “vontade de
potência”, Weber lança mão de um vocabulário darwinista inspirado em Nietzsche e
estranho à maior parte de sua obra posterior: “o que eu pretendo é ilustrar o papel exercido
pelas diferenças físicas e psicológicas das raças entre as nacionalidades na luta econômica
pela existência” (1994a: 02). A intensidade desta luta pela sobrevivência é exposta sem
ambigüidades: “na luta econômica pela vida, não paz para se obter” (Weber, idem: 14).
A burguesia monopolista não sustenta as ilusões humanistas do iluminismo, do “ideal do
bem supremo” de Kant. Ao contrário, o sentimento nacionalista e o imperialismo
guilhermino são conjugados por Weber: “nós não temos a paz e a felicidade humana a
oferecer aos nossos descendentes, mas a eterna luta para preservar e expandir a qualidade
de nossas espécies nacionais” (idem: 16).
Weber continuidade ao projeto da Alemanha imperialista daquela geração de
filósofos que assiste ao nascimento da fase monopolista do capital. Contemporâneo de
Nietzsche, Treitschke sentenciava que “não compreenderam os povos Arianos os que
clamam pelo nonsense da perpétua paz; os povos Arianos são, antes de tudo, bravos. Eles
têm sido homens o suficiente para defender com a espada o que conquistaram com o
espírito” (s/d: 24). E repete-se o tom bélico do imperialismo germânico: “a verdadeira
energia do nosso orgulho nacional deve transformar-se conosco em uma segunda natureza,
portanto assim rejeitamos involuntariamente tudo de estrangeiro à natureza dos Alemães”
(Treitschke, idem: 61).
Este vocabulário comum a Nietzsche e Treitschke não permaneceria na letra de
Weber ao longo de sua obra madura; mas a coisa em si que subjaz à forma nunca foi
submetida a qualquer mudança. Quando o irracionalismo clássico havia sido apagado de
seu pensamento e o positivismo neokantiano assumia o seu lugar, Weber julgou assim as
possibilidades de expansão do capitalismo imperialista em Economia e sociedade: “a
79
reanimação universal do capitalismo ‘imperialista’, que desde sempre constitui a forma
normal que política reage aos interesses capitalistas, e junto com ele a forte tendência à
expansão política, não é, portanto, nenhum produto casual” (1999: 170); desde sempre, a
normalidade das relações entre política e economia capitalista é o imperialismo e, assim
sendo, é fácil que se conclua que “para o futuro previsível cabe prognosticar-lhe um
desenvolvimento favorável” (Weber, 1999: 170). Com os instintos raciais ou conceitos
típicos, o imperialismo capitalista é sempre a regra em Weber.
É uma norma nada fortuita que os Estados lancem-se à constituição de impérios. O
prognóstico expedido por Weber é de que esta norma se desenvolverá favoravelmente no
futuro previsível. As idéias por ele representadas indicam com máxima transparência a
postura política que sua classe assumia então.
Com efeito, o nosso sociólogo não estava sozinho ao projetar uma Alemanha
imperialista; era o programa de toda uma geração de pensadores burgueses. Lembrem-se de
que, em 1917, Spengler escrevia:
Quero convencer os meus leitores de que o Imperialismo é símbolo típico do final.
Produz petrificações como os impérios egípcios, chinês, romano, ou como os
mundos da Índia e do Islã, petrificações que ainda perduram por séculos e mesmo
milênios, passando das mãos de um conquistador às de outro, corpos mortos,
amorfos, desanimados, matéria gasta de uma grande história. O Imperialismo é
civilização pura. Assumir essa forma de existência é o destino inevitável do
Ocidente (1973: 51).
O imperialismo é a civilização pura. Spengler defende a inevitabilidade do
imperialismo ocidental; é fatal que os ocidentais cheguem à pureza do império. Ao longo
de A decadência do Ocidente surge ainda mais explícito: “o Terceiro Império é o ideal
germânico, um eterno amanhã ao qual devotaram a sua vida todos os grandes homens,
desde Joaquim de Flores até Nietzsche e Ibsen setas do anelo, lançadas à riba, como diz
Zaratrusta” (Spengler, 1973: 218). Agora não é somente o imperialismo ocidental; o
almejado império do terceiro reich seria o projeto pelo qual lutaram com empenho as
grandes almas germânicas
16
.
16
Poucos escritores souberam tipificar os anseios daquela burguesia com o poder evocativo de Thomas Mann.
Em Doutor Fausto, ao ser deflagrada a primeira guerra mundial, o narrador Serenus Zeitblom diz:
“demasiado tempo decorrera desde que nos tínhamos convertido numa grande potência. Essa situação
virara costumeira e não trazia a esperada felicidade. A sensação de que ela não nos fizera mais cativantes e
piorara antes do que melhorara a nossa relação para com o resto do mundo acossava, confessada ou não, os
nossos espíritos. Uma nova erupção parecia urgente, a que nos conduzisse à hegemonia mundial, sucesso esse
80
Segundo Mommsen, Weber fazia notar que “aquele que não acreditava no futuro
da burguesia devia duvidar do futuro alemão” (Mommsen, 1984: 85). A constituição de
uma política imperialista era assim a tarefa da burguesia e somente dela; o problema para
Weber consistia em discernir até que ponto a sua classe estava à altura da tarefa: “é
perigoso, e incompatível com os interesses da nação, que uma classe economicamente
decadente exerça o controle político” (Weber, 1994a: 21). Esta é uma clara referência à
aristocracia feudal, a classe economicamente decadente, cuja dominação significava um
obstáculo para o projeto burguês de expansão; no entanto, Weber acrescenta: “porém, é
mais perigoso quando as classes que caminham na direção do poder econômico, e então
esperam assumir o controle político, ainda não possuem a maturidade política para dirigir o
estado” (idem: 21).
A debilidade da dominação burguesa era também a preocupação. Os grandes
proprietários rurais da Prússia (os junkers) estavam perdendo o poder com a crescente
industrialização; mas a burguesia chegava ao poder percorrendo o caminho que Gramsci
denominou de revolução passiva, pelo alto da via prussiana, sem romper com todas as
tradições do antigo regime. Quer dizer que a burguesia alemã não forjou o seu próprio
Estado a partir de uma revolução pela via clássica; ao contrário, fez conciliações com o
passado; caminhava na “direção do poder”, sem maturar a sua própria política de
dominação.
As conciliações com o passado faziam com que Werner Sombart recriminasse as
estreitas ambições da burguesia alemã; dizia que o ideal mais elevado da burguesia alemã
era se tornar junker, adquirir o título nobiliário e, com ele, adquirir também os valores
aristocráticos e os “ares de nobreza”; por este motivo, para desgosto de Sombart, a
aristocracia fundiária era rejuvenescida pela fusão sempre renovada com os burgueses
enriquecidos (cf. Mommsen, 1973: 64).
Ademais, o operariado ganhava força com a atuação do partido social-democrata.
As leis anti-socialistas de Bismarck não tardaram a naufragar em face do vigor das
que, na realidade, não se podia conseguir mediante um trabalho moral, executado em casa... Estávamos
persuadidos que a hora secular da Alemanha acabava de soar, que a História mantinha acima de nós suas
mãos protetoras, que, após a Espanha, a França, a Inglaterra, chegara nossa vez de imprimirmos nosso cunho
ao mundo e de sermos seus governantes. Tínhamos a convicção firme de que o século XX pertencia a nós e
que, depois de uma era burguesa inaugurada uns cento e vinte anos atrás, o mundo devia renovar-se sob o
signo germânico, signo de um socialismo militarista ainda não claramente definido” (2000: 422, 423).
81
reivindicações proletárias (o que ocorreu em 1890) e a revolução vermelha punha-se no
horizonte da política alemã.
A opinião de Weber quanto à revolução comunista nunca foi omitida. Sob este
aspecto, a sua linguagem manteve integralmente a atitude sincera de Nietzsche: nunca foi
usado nenhum subterfúgio estilístico para esconder a aversão ao avanço do movimento
comunista. Aliás, para que se ilustre a sua sinceridade cristalina no que concerne ao perigo
comunista, reparem que, caso fosse perpetrada uma tentativa revolucionária, Weber
contava com a lealdade do exército alemão, que era formado por camponeses e pequenos
burgueses, “para os quais teria sido um verdadeiro prazer dar uma bofetada nos operários
ou em qualquer um que tivesse a idéia de fazer semelhantes revoluções” (Weber, 1993:
124). Não houve conceito típico que encobrisse a vontade de potência da burguesia
guilhermina, que falava pela voz de Weber.
Depois do estopim da revolução na Baviera em 1918, Weber teria declarado
segundo menciona a biografia escrita por sua viúva: “o decisivo, agora, é saber se o bando
de loucos de Liebknecht será reprimido” (2003: 741). Mas Weber acreditava que a
revolução do “bando de loucos” seria efetivamente reprimida o que de fato veio a
acontecer. No decorrer dos acontecimentos, mostrava-se intacta a sua crença nas qualidades
germânicas. De novo, é citada por Marianne a opinião de Max Weber sobre o futuro do país
após a guerra perdida e a revolução comunista: “por mais duro e terrível que seja,
superaremos isso também. Pois eu acredito na indestrutibilidade desta Alemanha e nunca
antes havia considerado, como considero agora nestes dias sombrios da desgraça da
Alemanha, que ser alemão é uma dádiva dos céus(idem: 746, 747). Apesar das desgraças
da guerra perdida e da revolução proletária, nascer alemão permanecia sendo uma dádiva
com que os céus presentearam-no.
O proletário não poderia gerir o Estado por um motivo muito simples, segundo
Weber: esta classe não possuía a nietzschiana vontade de potência; de acordo com as suas
palavras na referida conferência de Freiburg, os operários são muito mais “inofensivos” do
que parecem. No mundo de hostis disputas imperialistas, a docilidade não consta entre as
virtudes. Para Weber, cabe à burguesia ocupar o seu “devido lugar” e dirigir a nação
germânica com o vigor necessário (cf. Mayer, 1985: 39).
82
Weber avaliava os anos de Bismarck como maléficos para a educação política da
classe dirigente; afinal, submetia-se tudo ao tacão de ferro do chanceler. “[Bismarck]
deixou atrás de si uma nação sem qualquer sofisticação política, bem abaixo do nível que, a
este respeito, tinha alcançado vinte anos antes (isto é, em 1870)” (Weber, 1974: 20). Agora
a burguesia assumia o seu “devido lugar” sem aquele amadurecimento exigido pela missão,
sobre o qual já falamos. Sendo incompatível com os “interesses da nação” a permanência
da aristocracia feudal no controle político, era ainda mais perigoso que a burguesia
ascendesse a este poder ainda sem a “sofisticação política” dita por Weber, porque a
debilidade da dominação burguesa era uma porta de entrada para a revolução comunista;
era de se recear que aumentassem as possibilidades de conquista do poder pela classe
trabalhadora se fosse débil a gerência burguesa do Estado.
Era um teste desafiador ter que enfrentar tanto os vizinhos imperialistas quanto um
proletário organizado em seu próprio terreno. Spengler não foi inocente ao afirmar que “a
dialética destrói a cultura” (1973: 213). Uma frase sucinta como esta significa uma
autêntica tomada de posição contra-revolucionária. A opinião insuspeita de Marianne
Weber testemunha a insegurança da burguesia durante este período: “os social-democratas,
como partido daqueles que não tinham nada a perder senão seu trabalho, e ‘nada a perder
senão seus grilhões’, fizeram tremer os fundamentos de uma ordem jurídica e de
proprietários que consagrava essa situação” (2003: 154). E Fritz Ringer fala
especificamente da reação da academia alemã: naquela época, a enorme parte dos
“professores e eruditos alemães aprovavam a tradicional estratificação de sua sociedade,
toleravam os aspectos poucos liberais do regime político vigente e compartilhavam o medo
e a hostilidade com que as classes dominantes enfrentavam o movimento social-democrata”
(2000: 130). Para a inteligência burguesa alemã, a hostilidade ao movimento operário
justificava os elementos poucos liberais do Estado e a divisão da sociedade entre classes
antagônicas.
3.1.2. Democracia de massas e cesarismo bonapartista
Nietzsche foi modelar quando escreveu a propósito do perigo das “massas
embrutecidas”. Era o sentimento típico da burguesia daquela época. Weber experimentava
o mesmo risco: “o perigo político da democracia de massas reside, em primeiro lugar, na
83
possibilidade de uma forte preponderância de elementos emocionais na política” (1999:
579). Frente ao problema da política irracional de uma democracia massificada, a solução
weberiana assemelhava-se a de Nietzsche. Isto é, a política deveria ser feita por um grupo
restrito de burgueses, que Nietzsche chamaria de aristocracia senhorial. Diz Weber: “a
cabeça clara e fria... tende a predominar nas decisões responsáveis, na medida em que 1) é
pequeno o número daqueles que participam nas considerações prévias e 2) está claramente
definida a responsabilidade de cada um deles, e reconhecida pelos liderados” (idem: 579).
Restringe-se a prática política a um número reduzido de líderes responsáveis e
assim se resolve a ameaça que provém das “massas embrutecidas”, das classes proletárias.
É uma solução inteiramente aristocrática para que se evite “o grande colapso que se
costuma chamar de revolução” (Weber, 1999: 559). Leia-se o último parágrafo de
Economia e sociedade:
Para defender-se contra golpes, sabotagem e outros desvios, que acontecem em
todos os países na Alemanha, com freqüência menor do que nos outros —,
todo governo, mesmo o mais democrático e mais socialista, teria que aplicar a lei
de emergência, para não correr o risco de enfrentar as mesmas conseqüências que,
em seu tempo, enfrentou a Rússia. Mas as orgulhosas tradições dos povos
politicamente maduros e infensas à covardia conseguiram sempre de novo
confirmar-se, mantendo a cabeça fria e, apesar de combater a violência pela
violência, procurando em seguida, de maneira puramente objetiva, dissolver a
tensão manifesta naquele desvio, sobretudo restabelecendo imediatamente as
garantias da ordem liberal e não se deixando desconcertar, em suas decisões
políticas, por incidentes deste tipo (Weber, 1999: 580).
Estranha-se que um autor que desejava construir uma muralha chinesa entre a
prática e a teoria tenha dado uma receita de governo como esta, justo no desfecho de
Economia e sociedade, uma obra de “vocação científica”. São citados também os governos
socialistas, mas o decorrer do parágrafo deixa claro que Weber trata das democracias
liberais burguesas. Os “golpes”, “incidentes”, “desvios” e “sabotagens” são outros nomes
com os quais o sociólogo designa a revolução proletária, um “colapso” como aquele que
enfrentou a Rússia. Percebe-se a altivez com que Weber declara-se pertencer às
“orgulhosas tradições dos povos politicamente maduros” que não cedem à covardia; a
dominação burguesa não se deveria desconcertar com a eminência de um colapso. Ainda
que tenha de usar a violência contra violência no primeiro instante, os governos
posteriormente saberão dissolver a covardia” dos revolucionários com métodos
84
“puramente objetivos”. As similitudes com Nietzsche são mais visíveis do que pensam os
weberianos, do que pensa Öelze (2000), por exemplo; frente à democracia das massas, a
atitude dos dois é a mesma: preservar a política de uma minoria seleta diante das massas
irracionais, instintivas.
Nas guerras imperialistas, das camadas sociais, as massas eram as que menos
tinham a perder, segundo a opinião de Weber. Os monarcas poderiam perder seu trono; os
republicanos perderiam seus generais vitoriosos; a burguesia teria grandes perdas
econômicas. As classes proletárias estavam em situação oposta. Aos olhos de Weber, as
massas sentiam subjetivamente que não perderiam nenhuma coisa palpável exceto, no
caso extremo, a perda da própria vida, um perigo cuja avaliação e influência representam
precisamente em sua imaginação um fator muito incerto que, em geral, facilmente pode ser
reduzido a zero por uma influência emocional” (Weber, 1999: 172). As classes subalternas
não possuem nada a perder, exceto a própria vida. O receio de morte durante a guerra
poderia ser facilmente reduzido a zero com uma competente manipulação ideológica em
nome do Estado nacional. Bem influenciadas emocionalmente, as massas trabalhadoras
caminhariam docemente para as trincheiras sem temer a perda da vida, como o rebanho que
se destina ao matadouro. Para dizer o óbvio, uma opinião deste timbre poderia ser
emitida por alguém que defendesse os interesses das classes dirigentes. Nietzsche
certificaria que tudo depende da potência decisória dos senhores.
Também Nietzsche ecoava nas palavras de Simmel quando este dizia que as
características componentes dos movimentos de massa o a simplicidade, a radicalidade e
a emoção. O sociólogo registrava que as massas “são sempre dominadas por uma idéia, de
preferência a mais simples possível” (Simmel, 2006: 50). Por isso, Simmel completava, “é
compreensível que, em geral, nos períodos em que as grandes massas o postas em
movimento, os partidos radicais ganhem tanta força, enquanto que os partidos mediadores,
que insistem no direito dos dois lados, se enfraqueçam” (idem: 50, 51). Da mesma forma
que Nietzsche e Weber, Simmel reduz a racionalidade política à questão numérica: quanto
menos pessoas estiverem a cargo da gerência da nação, menor a chance de se ter os
acometimentos emotivos típicos das coletividades.
Alfred Weber não escapa aos ensinamentos do mestre Nietzsche: “a cultura
representada pelas classes superiores começou a vacilar. As massas e as suas atitudes mais
85
simples tornaram-se decisivas” (s/d: 511). Este é, segundo ele, o “maior retrocesso que a
história da humanidade enfrentou. Porque as massas, no que respeita ao esclarecimento da
consciência, encontram-se muito mais aquém e num nível muito mais inferior ao das
classes superiores” (idem: 511).
As massas proletárias causavam exatamente a mesma impressão em Ortega y
Gasset. Em 1926, o espanhol de formação alemã relatava: “como as massas, por definição,
não devem nem podem dirigir sua própria existência, e menos reger a sociedade, quer
dizer-se que a Europa sofre agora a mais grave crise que a povos, nações, culturas, cabe
padecer” (1971: 49). O filósofo repartia o mundo em duas castas de homens: “as que
exigem muito de si e acumulam sobre si mesmos dificuldades e deveres, e as que não
exigem de si nada de especial, mas que para elas viver é ser em cada instante o que são,
sem esforço de perfeição em si mesmas, bóias que vão à deriva” (idem: 52). Os homens
“que o à deriva” colocavam em perigo os acúmulos de séculos de civilização criados
pelos homens que “exigem muito de si”.
O autor de A rebelião das massas pintou um quadro impressionista ao tratar
desses homens que vão à deriva: “no nosso [destino], o ingrediente terrível é posto pela
atropelante e violenta sublevação moral das massas, imponente, indomável e equívoca
como todo destino” (1971: 59); não economiza nas cores para exibir o seu forte desprezo
pelo objeto de seu estudo: “o homem-massa é, com efeito, um primitivo que pelos
bastidores deslizou no velho cenário da civilização” (Ortega y Gasset, idem: 110).
Embora diga que as massas não são necessariamente operárias, o filósofo
espanhol tende a analisar o “homem-massa” que se organiza para a política revolucionária,
isto é, o operário; não declara que está falando do movimento do trabalho mas é disso que
se trata. Ortega y Gasset extraía complicações políticas da organização das massas em torno
de seus próprios interesses: hoje assistimos ao triunfo de uma hiper-democracia em que a
massa atua diretamente sem lei, por meio de pressões materiais, impondo suas aspirações e
seus gostos” (1971: 54). A “hiper-democracia” das massas organizadas era um problema
para quem, com uma sinceridade tão límpida quanto a de Nietzsche, sentenciava: “continuo
crendo, cada dia com mais enérgica convicção, que a sociedade humana é aristocrática
sempre, queira ou não, por sua própria essência” (idem: 58).
86
Assim como Nietzsche, Ortega y Gasset atribuía grande peso ao nivelamento
jurídico da democracia liberal no tocante à massificação da cultura européia. Conforme o
filósofo espanhol, a equalização formal da democracia produziu um fator psicológico
funesto para a aristocracia ao pôr em pé de igualdade o soldado raso e o capitão.
Nota-se como a organização do operariado é o motivo oportuno para que se
coloquem sob suspeita as instituições liberais burguesas. Para se livrar da intervenção da
política revolucionária, Ortega y Gasset propunha uma espécie de expurgação: “a vida
criadora supõe um regime de alta higiene, de grande decoro, de constantes estímulos, que
excitam a consciência da dignidade” (1971: 164). Em uma hiper-democracia, a criação vital
está suja; é preciso que se limpe a vida social para o bem do “grande decoro”. Os alvos
desse “regime de alta higiene” seriam as classes trabalhadoras que, agora organizadas,
maculam a casta política aristocrática.
A crítica romântica à sociedade burguesa poderia chegar a resultados
profundamente reacionários. Nem sempre a recusa ao caráter prosaico da modernidade
culmina na reação. Vimos que Toennies era um romântico e, ao mesmo tempo, um
reformista. No caso de Ortega y Gasset, é preferível que se voz ao próprio filósofo:
“costumamos, sem mais reflexão, maldizer da escravidão, não advertindo o maravilhoso
progresso que representou quando foi inventada” (1971: 211). Conforme o filósofo, a
genialidade que concebeu a escravidão precisa ser lembrada como um grande artífice do
gênero humano: “porque antes o que se fazia era matar os vencidos. Foi um gênio benfeitor
da humanidade o primeiro que ideou, em vez de matar os prisioneiros, conservar-lhes a
vida e aproveitar o seu labor” (idem: 211). Pouco poderia ser mais reacionário do que um
elogio à escravidão. A crítica romântica ao capital nem sempre é reacionária, porém, quanto
a Ortega y Gasset, a equação entre o romântico e o reacionário é visivelmente levada a
termo.
Para desgosto de parte da inteligência burguesa daquela época, os operários não
eram escravos, o regime burguês não era escravocrata. Sob os parâmetros da democracia
liberal burguesa no período entre guerras, os partidos comunistas conquistavam espaço e os
direitos característicos da “hiper-democracia” de que fala Ortega y Gasset. Diante do
avanço do movimento comunista, da ameaça revolucionária, restava rogar aos céus a
passividade benevolente da classe trabalhadora: nas horas difíceis que chegam para nosso
87
continente, é possível que, subitamente angustiadas, [as massas] tenham um momento a boa
vontade de aceitar, em certas matérias especialmente angustiosas, a direção de minorias
superiores” (Ortega y Gasset, 1971: 97).
A recusa do prosaísmo da realidade burguesa também era profundamente
alimentada por Spengler; e, diferente de Toennies e similar a Ortega y Gasset, as suas
opiniões culminavam em uma forma de aristocratismo reacionário: nobreza é sempre o
símbolo vivo do tempo; o clero é o símbolo do espaço. O destino e a causalidade sagrada, a
História e a Natureza, o ‘quando’ e o ‘como’, a raça e o idioma, a vida sexual e a vida
sensual tudo isso encontra nesse binômio a sua expressão máxima” (Spengler, 1973:
383). É a aberta e crua apologia ao “símbolo vivo do tempo”, a raça de nobres, e ao
“símbolo do espaço”, a casta clerical. Atribuindo semelhantes características à nobreza e ao
clero, Spengler não poderia senão lamentar a derrocada do antigo regime. Pode-se ler em A
decadência do ocidente que a revolução francesa teria sido uma “fase transitória” entre a
ruína de uma aristocracia e a ascensão de outra. No período de transição, enquanto a nova
aristocracia dirigente não havia se constituído, apareceram “poderes informes” que não se
respaldavam nas tradições dos séculos. Durante a época revolucionária, “em vez de um
governo estribado na grande tradição e experiência, tornava-se inevitável um regime
fundado no azar, e cujo porvir não se achava assegurado pelas qualidades de uma minoria
lentamente educada” (Spengler, idem: 404).
Não pensem que o aristocratismo reacionário de Spengler não implique uma
determinada postura política frente às massas. A decadência do ocidente, que, para
Spengler, possui origens na queda da Antiguidade grega, obtém resultados cabais com a
massificação da cultura moderna. Desde o fim da alta civilização antiga até a história
contemporânea, o homem ocidental apenas decaiu. A cultura de massa representaria a
última gota d’água neste processo de debilitação civilizatória. Este é o julgamento de A
decadência do ocidente:
A massa é o absolutamente informe. Persegue com seu ódio qualquer espécie de
forma, quaisquer diferenças hierárquicas, a propriedade organizada, o saber
disciplinado. É o novo nomadismo das metrópoles, para o qual os escravos e os
bárbaros na Antiguidade, tanto como os sudras na Índia, e tudo quanto for homem
constituem, sem distinção, um quê flutuante, totalmente desprendido das suas
origens, desdenhoso, no que se refere ao passado, e desprovido de futuro. Assim,
o quarto Estado [a massa] torna-se expressão da História que se transforma em
algo obrigatório. A massa é o fim, é o nada radical (1973: 388).
88
O filósofo da vida não é nem um pouco sutil na consideração a propósito das
massas operárias. Elas perseguiriam com ódio as formas da sociedade burguesa, isto é, a
propriedade organizada e o saber disciplinado. Diante da ausência de forma das massas, até
mesmo os escravos e rbaros da Antiguidade estariam em certo grau de superioridade. O
pessimismo niilista de Spengler é notório: a civilização está em ruínas. A massificação é o
fim, é o nada radical para o mundo burguês. Por isso, Spengler sente a nostalgia de um
tempo que não viveu, a Antiguidade escravocrata da Grécia.
Ademais, pertencia ao ideário de Spengler a crença de que toda formação sócio-
histórica se constituiria de uma casta aristocrática dirigente e de um corpo de plebeus a
serem dirigidos: “cada corrente de existência consiste em uma minoria de líderes e em uma
imensa maioria de pessoas conduzidas” (1973: 434). O filósofo da vida não apresenta
grandes novidades com relação a seus contemporâneos ao defender a inevitabilidade da
política aristocrática. Spengler acreditava que cabia ao indivíduo escolher à qual camada
social pertenceria. O “destino econômico” da vida dos indivíduos seria determinado por
esta alternativa. O homem estaria livre para optar se participaria ou não da força
aristocrática, conforme as características de sua personalidade: “do destino do indivíduo
da parte econômica do destino da sua vida — depende a questão de saber se ele, em virtude
da categoria íntima da sua personalidade, representará uma parcela dessa força ou não
passará de massa entregue a ela” (Spengler, idem: 434).
Autores tão díspares aceitavam as idéias aristocráticas de Nietzsche no embate
contra o proletário organizado. A defesa da política de poucos líderes talvez seja uma das
poucas afinidades entre Weber e o último Scheler, por exemplo. O autor de A posição do
homem no cosmos descreveu os aspectos do radioso tempo que seria para ele um “acaso
feliz e misericordioso”: este instante fortuito ocorreria quando “o trem dos movimentos
humanos de massa”, um trem que se descarrilou e segue rumo próprio, “acaba por se ver
em uma direção, na qual a massa consegue ao menos tolerar o gênio — e isto para não falar
de conseguir fazer com que seus interesses e suas paixões acolham as idéias e valores do
gênio, a fim de se deixar frutificar por elas” (Scheler, 2003: 65). Neste feliz acaso
misericordioso, a massa toleraria o império do nio e, quem sabe, adotaria os valores da
genialidade como se fossem seus. Mas são momentos escassos de “grandeza histórica”;
89
“curtos e raros são os períodos de florescência da cultura na história do homem. Curta e
rara é a beleza em sua delicadeza e vulnerabilidade (Scheler, idem: 63).
Lembrem-se de que um filósofo da Restauração como Schelling repugnava-se
diante deste “público sequioso por ilustração” que era a burguesia revolucionária. As
“classes elevadas”, que defendiam a legitimidade da ordem, eram os aristocratas fundiários.
Não foi por outro motivo que Schelling pôs-se no embate contra a racionalidade de Hegel.
Nos anos que decorrem depois de 1848, a coisa muda integralmente de figura. Para todos
os autores que examinamos acima, desde Nietzsche, o público sequioso por ilustração passa
a ser o proletariado revolucionário, enquanto que as genialidades estão sendo produzidas no
seio da ordem burguesa. Não foi por outro motivo que se puseram no embate contra a
racionalidade de Marx. Houve ocasião em que a burguesia estava sequiosa por ilustração;
hoje, é no berço burguês que nascem os gênios ilustrados.
Não se esqueçam de que os autores nomeados viram a Comuna de Paris. Nos
manuscritos de A guerra civil em França, Marx analisou a forma política assumida pela
revolução parisiense e escreveu que os dirigentes retinham-se mutuamente, “o que choca o
burguês, que possui uma necessidade imensa de ídolos políticos e de ‘grandes homens’... A
Comuna é uma assembléia de átomos equivalentes, cada um sob a vigília do outro, em que
nenhum tem a autoridade suprema sobre os outros (Marx, 1972: 205, 206). Carente de
ídolos políticos, a organização comunal surpreende o burguês. Logo, é preciso defender a
política dos poucos eleitos contra a equivalência dos átomos”; é preciso que se defendam
as genialidades face ao “proletário delinqüente que, em toda pessoa bem vestida, um
inimigo, um representante das classes exploradoras que se pode roubar com boa
consciência” (Simmel, 1998: 44).
Estas são as reações da burguesia com o crescimento da organização política da
classe trabalhadora. Nietzsche e seus sucessores refletem no plano da teoria os desafios em
que a sua classe estava envolvida.
A situação histórica assim posta, Max Weber engaja-se em um grupo de
reformadores sociais ligado à igreja, o Congresso Protestante Social. No quinto encontro do
grupo, em 1894, depois de ouvir o teólogo Naumann, que pretendia catequizar o povo
alemão por meio de uma espécie de humanismo cristão, Weber proferiu um discurso nos
termos citados por Marianne:
90
Não estamos nos engajando em política social para criar a felicidade humana... O
discurso da noite passada do pastor Naumann refletiu uma infinita aspiração pela
felicidade humana e estou seguro de que todos nos comovemos. Mas nossa atitude
pessimista nos leva, e a mim em particular, a um ponto de vista que me parece de
importância incomparavelmente maior. Creio que devemos abandonar a criação
de um sentimento positivo de felicidade no curso de qualquer legislação social.
Desejamos alguma coisa a mais e podemos desejar alguma coisa a mais.
Queremos cultivar e apoiar o que nos parece valioso no homem: sua
responsabilidade pessoal, seu impulso básico para coisas superiores, para valores
intelectuais e morais da humanidade, mesmo quando esse impulso nos confronte
em sua forma mais primitiva. Até onde está em nosso poder, desejamos dispor as
condições externas não com vistas ao bem-estar do povo, mas de modo tal a
preservar face á inevitável luta pela existência, com seus sofrimentos aquelas
qualidades físicas e espirituais que gostaríamos de sustentar para a nação (2003:
166).
Estas palavras em muito se parecem com aquelas da palestra de Freiburg; elas
caracterizam bem a avaliação que Weber detinha acerca da relação entre a política e as
classes subalternas: deve-se abandonar, no âmbito da legislação social, o empenho positivo
a favor da “felicidade humana”. O humanismo cristão de Naumann soa patético,
“comovente” aos ouvidos de Weber, mas pouco prático no que concerne à política
imperialista. Não se pretende o “bem-estar do povo”, mas a “preservação das qualidades
físicas e espirituais” da nação germânica. Afastam-se as massas proletárias do jogo político
em prol do sustento das qualidades do homem alemão tarefa a ser cumprida por uma
casta aristocrática de políticos.
Pratica-se a política imperialista, ainda que essa prática faça com que os homens se
confrontem com os “impulsos básicos”, os instintos mais primitivos da espécie, disse
Weber. Esse anti-humanismo respalda-se inclusive na peculiar noção de democracia que
Weber acalentava. Uma democracia que, em verdade, era um cesarismo bonapartista (cf.
Lukács, 1968: 493), muito distante do liberalismo que lhe imputam alguns comentadores.
Marianne Weber cita uma reveladora conversa entre o sociólogo e o general Ludendorff em
que Weber afirma: “em uma democracia, o povo escolhe um chefe em quem confia. Então
o eleito diz: ‘agora, calem a boca e me obedeçam. O povo e os partidos não são mais
livres para interferir nos assuntos do chefe’” (2003: 765). No momento em que o general
demonstra o seu apreço por tal noção de democracia, Weber teria acrescentado: “mais tarde
o povo julgará. Se o chefe cometeu erros, que vá para a forca” (idem: 765).
91
Esta passagem é geralmente omitida pelos intérpretes que defendem a existência
de um Weber liberal democrata. É inegável a presença de um forte viés irracionalista, de
uma crença desmesurada nas lideranças carismáticas. A história demonstra que, em
períodos de grave crise, a burguesia deposita todas as esperanças na personalidade
salvadora de um chefe carismático (O dezoito brumário de Marx narra um desses
momentos). Naquela época crítica da Alemanha, seria necessário alguém da “estatura
gigante” de Bismarck. Apesar de todas as ressalvas que lhe fazia, Weber considerava o
chanceler de ferro como o dirigente padrão para a Alemanha: “um gênio aparece no
máximo uma vez em vários séculos. Mas poderíamos agradecer ao destino se nosso
governo estivesse agora, e se estiver no futuro, nas mãos de políticos de tal calibre” (1974:
15). Dever-se-ia agradecer ao destino se o governo da raça germânica estivesse sob a
liderança do calibre de um “gênio” similar a Bismarck.
A defesa desta modalidade de democracia vem de um autor que considerava o
povo alemão excessivamente prosaico (e não como não encontrar novamente a presença
de Nietzsche na postura aqui assumida). Com bastante pesar, Weber disse em O caráter
nacional e os “Junkers” que “a Alemanha é uma nação de plebeus. Ou, se isto parecer mais
agradável, é uma nação de pessoas comuns” (1979: 445). Robert Michels enunciaria um
juízo semelhante pouco tempo depois: “é o povo alemão que experimenta com maior
intensidade a necessidade de ter alguém que lhe indique o caminho e dite a palavra de
ordem” (s/d: 30). Weber corroboraria inteiramente com a afirmação de seu ex-aluno. Sendo
uma nação plebéia por natureza, a “vontade de potência” seria engendrada entre os
alemães por meio de um líder pleno de carisma como aquele chefe do qual Weber fala na
conversa com o general Ludendorff. Caberia a um chefe tanto retirar o povo da inércia
plebéia quanto responder aos anseios imperialistas que perfaziam o destino da espécie
germânica.
Obviamente, não se destinava à publicação a conversa de Weber com Ludendorff.
Graças a Marianne Weber temos acesso a ela. Em 1919, Max Weber publica um pequeno
opúsculo sobre O presidente do Reich e as idéias que ali constam não contradizem as
defendidas em diálogos privados. Está exposta a crítica à miséria alemã, ao
pseudoparlamentarismo do reich, a favor da criação de um espírito nacional que concedesse
sustento popular às decisões do líder. Weber toma partido contra as eleições indiretas: “o
92
primeiro presidente do reich foi eleito pela assembléia nacional. No futuro, o presidente do
Reich deve ser eleito direto absolutamente pelo povo (1994a: 304). É necessário expandir
as instituições democráticas: “para nós, é essencial criar o líder do Estado que deite
inquestionavelmente sobre o desejo da totalidade do povo, sem a intervenção de
intermediários” (Weber, idem: 304). Desse modo, a vontade de potência do chefe estaria
em conformidade com o espírito da nação. Este presidente eleito diretamente pela vontade
popular “como o líder do executivo, da assistência oficial, detentor do veto de suspensão,
do poder de dissolver o parlamento e de consulta popular, é o paladino da genuína
democracia, que não implica o auto-abandono a facções senão a sujeição a líderes que se
escolhem” (Weber, idem: 308). Lukács disse em citação no início deste capítulo que Weber
acreditava que a Alemanha somente pode chegar a ser um “povo senhorial” no amparo da
democracia. As instituições democráticas retirariam o povo da inércia plebéia, dariam
respaldo às decisões do chefe nacional e seriam o caminho seguro para a constituição da
potência alemã porque, de outra forma, “o edifício inteiro do Reich estaria a perigo de
colapsar sempre que existisse uma crise no parlamento” (Weber, idem: 307).
Weber procurava persuadir os outros da justeza de suas idéias alegando para si o
ponto de vista da raison d’état. Por sobre as classes e os interesses particulares estaria o
interesse do grande Estado alemão. Em Parlamentarismo e governo numa Alemanha
reconstruída: “os interesses vitais da nação colocam-se, é claro, acima da democracia e do
parlamentarismo” (Weber, 1974: 11). Nota-se que o nosso autor fala como se fosse óbvia a
tomada de partido a favor do Estado quando estivesse sendo ameaçado por qualquer força
externa. Abre-se mão da democracia liberal no instante em que estiverem em jogo os
“interesses vitais da nação”. Isso quer dizer que todas essas idéias sobre as quais viemos
dissertando não diriam respeito a um projeto burguês; elas estão acima das particularidades
classistas; são referentes a uma abstrata raison d’état. Nunca se ouviria de um liberal que as
instituições democráticas burguesas estão hierarquicamente abaixo dos “interesses vitais da
nação”.
Aliás, o que se dizer a propósito da raison d’état de Weber. Ela soa gritante à
medida que se discutem a manutenção e a prosperidade do Estado. Á guisa de ilustração,
vejamos do que se trata a sua “russofobia”, doença da qual, segundo Jacob Peter Mayer,
Weber convalescia (cf. Mayer, 1985: 32). Era o temor das hordas russas, invasoras em
93
potencial do território alemão. Durante a primeira guerra mundial, o confronto entre
alemães e russos era acompanhada com atenção. O receio de Weber era que o Partido
Social-Democrata Alemão “traísse” a nação, apoiando uma eventual incursão russa em
terras germânicas. Em face disto, Weber não escondeu seu alarme:
Quando temos em nossas fronteiras uma tropa formada pela canalha bárbara do
mundo, negros e gurkas indianos enlouquecidos de ódio, sede de vingança e
cobiça prontos para devastar nosso país, a social-democracia alemã venha talvez a
prestar-se a acompanhar a vertigem da plutocracia da Duma russa atual e trair
moralmente o Exército alemão que protege nossa nação de povos selvagens
(2005a: 214).
O tal ponto de vista da raison d’état levou Weber a produzir verdadeiras pérolas
do preconceito mais intolerante. Estão prontos para devastar a Alemanha a “canalha
bárbara”, os “negros” e “indianos enlouquecidos”. Aluno de Weber, Carl Schmitt
reproduziu algumas delas ao dizer que “duas grandes massas que se opõe à tradição e à
educação européia ocidental, duas grandes torrentes agitando as suas ondas”, são elas: o
“proletário consciente e as massas russas”; frente a isso, o ideólogo de Hitler expõe: “do
ponto de vista da cultura da Europa ocidental, ambas são bárbaras” (Schmitt, 1996: 38). O
caldo cultural em que foi gerada essa russofobia é pico produto da fase imperialista do
capital. É preciso recordar que Treitschke, membro seleto da geração anterior a de Weber,
chamou a atenção para o fato de que “povos sub-germânicos” como os russos começaram a
acordar para a auto-afirmação contra a Alemanha (cf. s/d: 58). A “canalha bárbara” dos
russos, prestes a iniciar a ruína do país com sede de vingança e cobiça, amedrontava a
burguesia alemã. Em defesa do Estado alemão, Weber permitiu-se o que ele mesmo teria
qualificado como “irracionalidades”.
Treitschke havia escrito que as guerras imperialistas apresentavam a “horrorosa
perspectiva de que a Inglaterra e a Rússia dividiriam o mundo entre elas” (s/d: 17). Em
1916, na carta aberta à imprensa que se intitulou Entre duas leis, Weber reportava-se a esta
idéia; imaginava que os alemães do futuro atribuiriam à sua geração a responsabilidade de
ter permitido que o “poder mundial” fosse dividido pela Inglaterra e pela Rússia: “é por
este motivo que nós, e não eles [os futuros alemães], temos o infausto dever e a obrigação
com a história e com o futuro de resistir à inundação do mundo inteiro por aquelas duas
potências” (1994a: 76). Se a Alemanha recusar este destino mítico que a história lhe
94
designou, Weber pensava que seria inevitável transformar-se em um Estado de “modelo
suíço”, pequeno e débil politicamente, “talvez com cortes provinciais bem dispostas para as
artes” (idem: 76). O alerta emitido por Weber incitava o “espírito alemão” a constituir-se
enquanto potência: a existência de uma grande potência como a Alemanha, porém, é um
obstáculo no caminho de outros Machtstaaten, sobretudo da Rússia com seus camponeses,
famintos por terra, face à ausência de cultura e aos interesses da igreja oficial e
burocracia russas” (idem: 77). Compreendam que a Inglaterra não é tão preocupante; afinal,
os ingleses são burgueses, ocidentais e civilizados. A nação inglesa também é um povo
senhorial. os bárbaros russos merecem toda cautela. De novo, Treitschke acreditava que
a Rússia tinha desenvolvido uma “megalomania” cujo anseio é surgir na cena ocidental
como “conquistadora e reguladora” (s/d: 86). E Weber preconizava a destruição da Áustria
e, depois, da própria Alemanha “ao menos que a rota expansionista da Rússia pudesse ser
revertida para alguma outra direção” (1994a: 77).
Weber não se continha ao falar do projeto de um império alemão; termos
carregados de misticismo eram abundantemente usados:é o destino e nenhuma parcela de
embuste pacifista alterará o fato. É igualmente claro que, mesmo se quiséssemos, não
poderíamos retroceder, não sem desgraça, da opção feita quando criamos o Reich, nem dos
deveres que assumimos quando o criamos” (1994a: 77).
Quanto à temível Rússia, era melhor que permanecesse no regime czarista. Para os
alemães, “é claro: o regime czarista, miserável como é, ameaçado em sua existência por
qualquer guerrazinha que eventualmente surgisse, é um vizinho ‘agradável’” (Weber,
2005a: 185). Dizia Weber em 1906. Sob um regime frágil, sob a mão vacilante do czar, a
Rússia é um vizinho agradável aos alemães. No entanto, “se a Rússia tivesse um regime
verdadeiramente constitucional, tornar-se-ia um vizinho bem mais poderoso, sendo que
então seria mais sensível ao instinto das massas, seria também um vizinho menos tranqüilo”
(Weber, idem: 185). Sob um regime liberal burguês, os russos tornam-se um vizinho
inconveniente. Sabemos que Weber entendia que uma nação somente poderia se converter
em um povo senhorial no amparo das instituições democráticas. Com a Rússia não haveria
porque ser diferente. Em face disso, é preferível para os alemães que o czar mantenha-se no
poder, ainda que Weber acreditasse na inevitabilidade da guerra entre as duas nações: “mas
95
não adianta querer enganar-se a si próprio: essa Rússia virá, de uma forma ou de outra”
(idem: 185).
Com uma certa ingenuidade, Mayer exagera nas matizes com que desenha o
quadro: “é surpreendente que uma das inteligências mais racionais que a humanidade
produziu nunca tenha conseguido analisar objetivamente seus próprios preconceitos
políticos” (1985: 32). E adiante arremata o seu exagerado painel: “essa incapacidade de
enxergar seus próprios preconceitos, como sua crença na idéia do Estado-potência e sua
russofobia, são ainda mais surpreendentes quando consideramos que Weber tanto almejava
a objetividade” (Mayer, idem: 32). Mayer não atenta para o fato de que Weber vivenciou
com grande paixão os problemas de sua época; não assistiu desinteressadamente à sucessão
dos eventos diante de seus olhos. O nosso sociólogo era levado pelos anseios peculiares à
Alemanha guilhermina: antes de almejar a “objetividade”, o primordial era ambicionar o
império que fizesse manter e expandir as “qualidades da espécie germânica”.
De tudo isso, abstrai-se a posição de classe de Weber, o que não passa de uma
pequena amostra dos sentimentos generalizados na burguesia alemã da virada do século
XIX. Nicola de Feo resumiu em linhas gerais aquilo que pretendíamos expor neste item que
ora se encerra:
Todo o labor teórico de Weber durante os vinte primeiros anos do século atual
[XX], no Círculo de Política Social (Verein für Sozialpolitik), no Arquivo de
Política Social (Archiv für Sozialpolitik) e finalmente na Sociedade Alemã de
Sociologia (Deutsche Gesellschaft für Soziologie), ademais de sua intensa
atividade como periodista político e colaborador da imprensa conservadora alemã,
durante a guerra mundial, foi dedicada principalmente à luta anti-socialista, à
crítica, ao rechaço e àmistificação” do marxismo e do leninismo e, em geral, da
ideologia revolucionária da classe trabalhadora, seguindo a moda “intelectual”
daquela burguesia liberal que havia identificado as razões da cultura e da ciência
com a conservação progressiva da ordem capitalista burguesa (1972: 37).
Essas passagens da obra weberiana servem para dar a verdadeira dimensão de seu
comprometimento com o projeto burguês de nação alemã. Nas palavras que se seguem,
veremos como se refletiram no plano teórico as condicionantes históricas de seu tempo. Se
no âmbito sócio-econômico o antagonismo frente às classes trabalhadoras estava
objetivamente dado, no terreno da ciência social, a intenção era produzir uma alternativa
burguesa a Marx.
96
3.2. Uma teoria relativista do conhecimento
3.2.1. Relativismo dos valores e sociologia compreensiva
Para a criação de uma alternativa burguesa a Marx, uma das primeiras tarefas é
fugir ao condicionamento das decisões individuais pelas circunstâncias postas. Nessa fuga,
Weber deixou em seu rastro uma dúzia de contradições; tais incoerências vêm à superfície
quando a defesa das escolhas puramente subjetivas está entre os expedientes utilizados. Por
exemplo, Carvalho alega que Weber é um “pensador da liberdade” sustentando a hipótese
de que, para o sociólogo alemão, “a vida social seria composta de um politeísmo de valores
em combate mútuo, cabendo a cada homem escolher e assumir qual caminho quer trilhar”
(2005: 21). A categoria da liberdade é aqui entendida em sua feição liberal burguesa; diria
Hegel, é a liberdade arbitrária do bourgeois. No entanto, mesmo a liberdade sendo limitada
a seu aspecto prosaico, razões para se alegar o contrário do que sustenta Carvalho. Uma
vez ou outra, Weber deixa transparecer em suas teorias um certo determinismo
incondicional; não obstante, é um determinismo férreo que competiria bem à letra de um
“positivista domesticado”:
Atualmente a ordem econômica capitalista é um imenso cosmos em que o
indivíduo nasce dentro e que para ele, ao menos enquanto indivíduo, se
como um fato, uma crosta que ele não pode alterar e dentro da qual tem que viver.
Esse cosmos impõe ao indivíduo, preso nas redes do mercado, as normas de ação
econômica. O fabricante que insistir em transgredir essas normas é
indefectivelmente eliminado, do mesmo modo que o operário que a elas não possa
ou não queira adaptar é posto no olho da rua como desempregado (Weber, 2004b:
47, 48).
Não se lê nada acerca do politeísmo de valores; deve-se resolutamente optar pelos
valores burgueses “como um fato”. O capitalismo é anterior, exterior e coercitivo em face
do indivíduo. Quem conhece a teoria de Durkheim sobre a relação entre o fato social e as
consciências individuais notou certa semelhança. Entretanto, a ressalva de que não
alteração das normas do capital para o indivíduo “ao menos enquanto indivíduo” indica
com toda a sua brevidade que Weber reconhecia: 1) a individualidade é um resultado
histórico e 2) as alterações só são possíveis com a atuação das coletividades. Apenas com
estes dois pressupostos pode-se entender inteiramente a idéia de que a dinâmica capitalista
é uma crosta inalterável para o indivíduo “ao menos enquanto indivíduo” ainda que isso
97
não passe de uma breve indicação que por conveniência não recebe maiores atenções do
nosso autor.
No ensaio A bolsa, de 1894, apresenta-se a questão sob um enfoque diverso.
Weber não concorda que o homem tenha sido sempre livre e avulso para escolher as trilhas
de sua vida: “o homem nunca foi capaz de desafiar, sozinho, a natureza. Para, pura e
simplesmente, subsistir, ele depende e dependeu sempre da associação com outros
indivíduos, tal como a criança depende do seio materno” (2004: 58). A subsistência do
homem depende da associação com os demais; o homem sozinho não se basta a si mesmo.
que se associar comunitariamente: e esta comunidade, que lhe era indispensável, tão
pouco a escolheu ele, a partir de uma decisão livre, como a criança escolhe a respectiva
mãe. Ele recebeu-a em dote no curso da vida, nasceu no seio desta comunidade” (Weber,
idem: 58). Não existe nenhum politeísmo de valores. E, mesmo que exista, o homem não é
livre para decidir à qual comunidade deseja associar-se.
Weber fala do homem primitivo, das comunidades primitivas. Possivelmente o
homem burguês causa-lhe impressão diferente. Talvez o politeísmo de valores tenha
surgido apenas no capitalismo moderno ocidental. Porém, não é esse o resultado a que
Weber atinge em A bolsa. De outra forma, o homem moderno também está vinculado à
comunidade: “nos nossos dias, o indivíduo não produz os bens que ele próprio quer
consumir, mas aqueles que, segundo sua previsão, outros irão utilizar, além de que cada
indivíduo não consome os produtos do seu próprio trabalho, mas os do trabalho alheio”
(Weber, 2004: 59). O homem deixou de estar associado às comunidades primitivas, mas
está inevitavelmente em associação, de acordo com a atual divisão do trabalho. O indivíduo
não produz os bens que consome; são consumidos por outros, de quem ele depende para
subsistir. A decisão não é livre, incondicionada. Similar ao primitivo, o moderno não se
basta a si mesmo. Para exprimir esta dependência mútua, Weber utilizou uma imagem que
não seria desaprovada por qualquer positivista domesticado: “a organização atual amarra
cada indivíduo a uma infinidade de outros indivíduos por incontáveis fios. Cada um procura
as suas conveniências, puxando pelos fios da rede para chegar ao lugar que julgar ser o seu”
(idem 81); o indivíduo pode até julgar que seja livre para alocar-se no espaço que imaginou
escolher; o fato é que a abstrata organização atual” amarra-o pelos fios da rede, arrasta-o
sob imperiosa coerção: “mas, mesmo que ele seja um gigante e reúna nas suas mãos muitos
98
dos fios, o mais certo é que os outros o arrastem para onde exista um lugar vago à sua
espera” (Weber, idem: 81).
A correta perspectiva da totalidade conduz Weber a subsumir inteiramente o fator
subjetivo à organização econômica. Os argumentos do positivismo domesticado são
empregados por Weber para persuadir os seus leitores do perigo que seria imaginar que a
bolsa de valores “não passaria de uma associação de conspiradores vivendo da burla e da
gatunice, à custa do honesto povo trabalhador, a qual deveria ser, assim, na melhor das
hipóteses, destruída e, sobretudo, poderia sê-lo” (2004: 57, 58). Ou seja, o positivismo
domesticado é útil para preservar as instituições burguesas.
Mesmo se abstrairmos as contradições do pensamento weberiano e tomarmos a
questão do “politeísmo de valores” em face do qual o indivíduo deve traçar seu caminho,
ainda resta o que se interrogar. O fato é que Weber não expõe como se constituem esses
valores. Por certo, eles não brotaram por geração espontânea. Para fugir ao primado
ontológico das práticas sociais, Weber poderia ter recorrido à metafísica medieval
afirmando à maneira de Nicolau de Cusa que de Deus emanam todas as coisas. Como tal
resposta não possui respaldo na modernidade laica, no “mundo desencantado”, o
expediente oportuno é não colocar o assunto em pauta. Este beco sem saída é evidente em
um trecho de A ciência como vocação em que Weber propõe: “segundo nosso ponto de
vista último, um é o demônio e o outro é o Deus, e o indivíduo tem de decidir qual é para
ele o Deus e qual é o demônio. E o mesmo acontece em todas as ordens da vida” (1979:
175). Diante da mesma citação, Mészáros cobra do neokantiano:
Quanto aos fundamentos a partir dos quais o próprio indivíduo poderia tomar sua
decisão, essa questão foi a priori declarada fora de propósito; assim como na
mitologia indiana, onde se supunha que o elefante carregasse o mundo em suas
costas permanecendo de sobre as costas da tartaruga cósmica, e não se
esperava que ninguém fizesse perguntas sobre a base de sustentação da própria
tartaruga (2004: 212).
Existe o politeísmo de deuses e demônios pelos quais os indivíduos devem optar;
porém, Weber não nos nenhuma informação a propósito de onde nasceram tais
espiritualidades. Em um passe de mágica, elas estão dadas no imediato da vida social e é
isso que importa ao sociólogo. Tanto para Weber quanto para a mitologia indiana, as
espiritualidades são um fato. O processo da história que as engendrou não se releva.
99
A pretensão de Weber é a relativização dos valores, o que implica o lhes
conceder o calço do real como critério de verdade; não importa qual é o Deus ou o
demônio, qualquer um é legítimo, nenhum é em si a escolha autêntica.
A queda no relativismo não é novidade no pensamento burguês. Não é Weber o
inaugurador dessa modalidade de destruição da razão. Sabemos que Schelling recorreu a
este expediente em sua luta contra a racionalidade dialética de Hegel. Mas é Nietzsche que
funda o relativismo especificamente burguês com sua visão agnóstica da vida social: “a
força do conhecimento não está no seu grau de verdade, mas na sua antiguidade, no seu
grau de incorporação, em seu caráter de condição de vida” (2001: 137). Um conhecimento
vale não por sua verdade mas por sua natureza tradicional; não importa se for uma
superstição religiosa, a força do conhecimento reside no poder de perdurar pelos séculos.
Percebam o quanto Nietzsche é influenciado por Schopenhauer que, como tivemos a
oportunidade de mencionar no primeiro capítulo, assegurava em O mundo como vontade e
representação que a moral hindu estava sendo observada durante muito tempo por milhares
de pessoas e, frente a isso, não poderia ser uma fantasia; dada a sua antiguidade, os
preceitos da moral hindu deveriam pertencer à raiz da essência humana. Schopenhauer é a
fonte em que bebe o relativismo agnóstico de Nietzsche.
O agnosticismo de Nietzsche é tema constante de sua filosofia: “quais são, afinal,
as verdades do homem? São os erros irrefutáveis do homem” (Nietzsche, 2001: 185).
Pensando assim, Nietzsche receia da cientificidade da razão:
Na ciência as convicções não têm direito de cidadania, é o que se diz com boas
razões: apenas quando elas decidem rebaixar-se à modéstia de uma hipótese, de
um ponto de vista experimental e provisório, de uma ficção reguladora, pode lhes
ser concedida a entrada e até mesmo um certo valor no reino do conhecimento
(2001: 235).
A razão deixa o espaço vazio a ser preenchido pela modéstia de simples hipóteses.
Nietzsche então considerava sob a forma de hipóteses inocentes as idéias que
reivindicavam o direito de cidadania científica. Um fato paradoxal não pode passar
despercebido: é interessante notar a maneira pela qual o filósofo da vontade de potência
reclama para si a inocência das hipóteses, quando, em verdade, a sua obra foi uma
manifestação extremamente reacionária contra a ameaça à “civilização superior” contida no
movimento das massas embrutecidas”. A mais importante das primeiras amostras
100
reacionárias e visceralmente raivosas da burguesia parasitária contra o movimento
comunista deseja ser compreendida por seu autor enquanto somente uma em meio a
inúmeras outras modestas e inocentes hipóteses.
Parte do movimento neokantiano herda de Nietzsche esse relativismo raso,
também colocando sob suspeita a racionalidade do conhecimento humano. Simmel, por
exemplo, tece elogios à crítica de Nietzsche à moral cristã e à sua pretensão de verdade:
“Nietzsche comprovou numa esfera mais abrangente, que a nossa moral, que consideramos
pura e simplesmente a moral, é apenas uma moral, ao lado da qual ainda outros tipos de
moral são possíveis” (2005a: 152).
A crítica ao estatuto de verdade da moral cristã feita por Nietzsche e louvada por
Simmel é uma tentativa de negar veracidade não apenas para o cristianismo, mas para todas
concepções de mundo, rebaixando-as a “ficções reguladoras”.
Baseando-se nessa concepção diametralmente relativista, Simmel produz uma
sociologia desprovida de conteúdo histórico, como vimos no capítulo anterior. Em perfeita
coerência com seu irracionalismo relativista, Simmel nega a dialética histórica: “toda
história, toda descrição de uma situação social, é um exercício de conhecimento
psicológico” (1983: 74). O devir histórico acontece “realmente” na “constelação psíquica”
dos indivíduos particulares. Em outro lugar: “é sem dúvida exata a teoria epistemológica
segundo a qual todo conhecimento é um processo puramente subjetivo, desenrolando-se
exclusivamente em mim e por mim determinado” (Simmel, 1999: 411). Assistimos
novamente ao que já havia nos mostrado a anterior análise da Filosofia do dinheiro: a
objetividade das relações sociais reduz-se ao psiquismo de seus agentes.
É uma situação modelar de queda no puro formalismo das tipologias vazias de
determinações. Remoto o tempo heróico de Hegel, Simmel faz parte do período em que a
captura das leis históricas está impossibilitada para a cultura burguesa e o relativismo é uma
das soluções encontradas para realizar a dissolução da razão dialética. Em sua crítica à
vulgarização sociológica de Simmel, Lukács reserva duras palavras a esse método: “o
ceticismo relativista moderno vem precisamente minar o conhecimento científico objetivo,
abrindo espaço, queiram ou não seus iniciadores, ao mais desenfreado obscurantismo
reacionário, à mística niilista da decadência imperialista” (1968: 360). A despeito da
vontade pessoal de Simmel, Lukács argumenta que o seu “ceticismo relativista” é uma via
101
que pode caminhar em direção ao “desenfreado obscurantismo reacionário”. E adiante no
mesmo parágrafo de A destruição da razão: “a rigor, este relativismo desintegrador não é
senão a autodefesa da filosofia imperialista contra o materialismo dialético” (Lukács, 1968:
360).
De Nietzsche, também Weber retira o seu “relativismo desintegrador”, assim
como o fizeram Simmel, Spengler e outros que se puseram no flanco contrário ao do
materialismo histórico-dialético. Contudo, certas particularidades. Weber recupera de
um outro autor alemão o elemento que daria chão à sua teoria do conhecimento: Dilthey e o
método compreensivo. Vamos concisamente a ele. Como se sabe, Dilthey propõe-se a
delimitar os métodos das ciências do espírito, de um lado, e das naturais, de outro, a fim de
cancelar as generalizações do modelo positivista de cientificidade. A proposição a que
chega é conhecida:
Os fatos da sociedade nos são compreensíveis desde dentro, podemos revivê-los,
até certo grau, à base da percepção de nossos próprios estados, e acompanhamos a
representação do mundo histórico com amor e ódio, com apaixonada alegria, com
todo o fogo de nossos afetos. A natureza é muda para nós... A natureza nos é
estranha porque é algo exterior, nada íntimo. A sociedade é nosso mundo
(Dilthey, 1949: 49).
Dado o comprometimento com a realidade sócio-histórica, ao sujeito da ciência
fica impossibilitada a explicação externa ao objeto, tratando-o como coisa de modo análogo
às ciências da natureza. A natureza não nos é íntima e a sociedade é nosso mundo. Por isso,
em um pólo, explica-se a natureza e, em outro, compreende-se a sociedade. A compreensão
da história dá-se mediante vivências que o intérprete constrói a partir de sua própria visão
de mundo. Chegaríamos facilmente ao relativismo se pensássemos com Dilthey que toda
visão de mundo é subjetivamente determinada e, portanto, relativa. Ainda que Dilthey
busque alguma objetividade (o que Lukács em A destruição da razão chamaria de pseudo-
objetividade), a sua noção de interpretação da história é fundada no sujeito particular e em
sua concepção de mundo relativa.
Gabriel Cohn menciona alguns comentadores (Aron, Glockner) que viam em
Dilthey uma aversão ao relativismo. Mas, diante das mesmas tendências que ora
encontramos no pensamento do historicista alemão, Cohn remata: “se aceitarmos a
interpretação segundo a qual uma das preocupações de Dilthey era repelir o relativismo,
102
então é forçoso reconhecer que ele falhou nesse intento” (1979: 20). Foi uma tentativa
frustrada de Dilthey a superação do relativismo, caso realmente tenha sido este o seu
projeto. Cohn está munido de uma boa quantidade de argumentos que comprovam o
relativismo reducionista de Dilthey: “a própria noção de ‘visão de mundo’ acabou levando
Dilthey a assumir plenamente uma posição relativista. ‘Toda visão do mundo é
historicamente condicionada, portanto relativa e limitada’, escreveu ele no seu último
ensaio, em 1911” (idem: 23).
Os estreitos limites produzidos pelo relativismo burguês ficam explícitos quando
Dilthey define o que entende por natureza humana: da reflexão acerca da vida nasce a
experiência vital... Como a natureza humana é sempre a mesma, também os aspectos da
experiência vital são comuns a todos” (1974: 42). Formalmente, a experiência vital de um
indígena e a de um burguês não se modificam; formalmente, o xa e o biólogo moderno
pesquisam a natureza, não importa que o primeiro esteja colhendo ervas para rituais
mágicos e o segundo tenha decifrado o genoma; o mero exame da natureza é uma
experiência que lhes é comum. Tomados os aspectos formais da experiência vital, conclui-
se que o caráter humano é sempre o mesmo. É eternizada a “experiência vital” dos homens.
Dinâmica idêntica a de Simmel, o “ceticismo relativista” leva Dilthey à recusa da
processualidade histórica; cancela-se o devir da história em nome de um “relativismo
mistificador”, como expressou Lukács. Trata-se daquele formalismo vazio de conteúdo do
qual Weber seria continuador.
Em geral, o processo de decadência ideológica na Alemanha adequou o seu
relativismo a uma certa filosofia de Kant. A filosofia do período pós-1848 apagou as
oscilações rumo ao materialismo do autor de Crítica da razão prática e reteve apenas as
suas tendências idealistas subjetivas; é precisamente esta a sutil e conveniente diferença
entre o kantismo e o neokantismo sutil diferença ainda que signifique uma enorme
mudança qualitativa. Isso quer dizer que nenhuma referência à coisa-em-si é feita, ainda
que fosse a incognoscível” kantiana. Na Pequena ontologia, Lukács escreveu que “Kant
admitia um ser em si embora incognoscível; a aspiração máxima do neokantismo e
igualmente do positivismo e do neopositivismo será eliminar completamente o ser da esfera
da consciência” (1990: 255). Esta absorção de um kantismo purificado das tendências
103
materialistas explica a generalização da relatividade do conhecimento entre neokantianos
como Simmel e Weber.
Sem dúvida, por atribuir o caráter incognoscível ao ser em si, Kant comporta
elementos de viés agnóstico. Vejam que o filósofo parte do princípio de que é autêntica a
noção aristotélica de verdade: “a definição nominal da verdade, a saber, que consiste na
concordância do conhecimento com o seu objeto, é aqui concedida e pressuposta (Kant,
1999: 95). É uma formulação inteiramente materialista: a verdade do conhecimento está na
sua adequação ao objeto estudado; diria Engels, a inadequação do conhecimento ao objeto
é a “falsa consciência”. No entanto, ainda que parta de um pressuposto materialista, Kant
deixa de lado o seu ponto de partida e ocupa-se apenas da lógica interna ao entendimento. É
certo que avise: “embora um conhecimento possa ser inteiramente conforme a forma
lógica, isto é, não se contradiga a si mesmo, pode ainda estar sempre em contradição com o
objeto” (Kant, idem: 96). Seguir os preceitos da lógica não significa que o conhecimento
esteja verdadeiramente adequado ao objeto. É uma outra elaboração materialista coerente
com o conceito aristotélico de verdade. Contudo, ao longo de Crítica da razão pura, a
preocupação de Kant volta-se para a lógica formal do entendimento e não abstrai maiores
resultados destas oscilações materialistas, o que é conseqüência da natureza incognoscível
da coisa em si
17
.
O neokantismo soube se valer das oscilações kantianas. A purificação relativista
de Kant é visível em Simmel, por exemplo. Conforme diz o sociólogo, o antigo enigma”,
o modo pelo qual deve estar organizado o mundo para que o compreendamos, foi resolvido
pelo “conceito kantiano de conhecer”: “o mundo compreendido é produto do espírito que
conhece, pois somente conhecemos do mundo precisamente aquilo que o espírito pode
apropriar-se lhe dando forma” (Simmel, 1950: 121). O espírito conhece o fragmento da
realidade empírica ao qual ele mesmo concede forma. É um relativismo subjetivo que
pretende filiar-se aos conceitos gnosiológicos de Kant. Entretanto, Simmel informa que,
para levar a cabo a metodologia kantiana, “não é necessária uma interpretação que recorra à
‘coisa-em-si’ ou a misteriosas relações pré-estabelecidas” (idem: 121). Permite-se afirmar
que Kant resolveu o enigma do conhecimento, sob a condição de que não se apele à coisa-
17
Não é, portanto, excêntrico que se observem palavras como estas em meio à exposição de Kant: “o soberbo
nome de ontologia a qual se arroga o direito de fornecer em uma doutrina sistemática conhecimentos
sintéticos sobre coisas em geral (por exemplo, o princípio da causalidade) [deve] ceder lugar ao modesto
nome de uma simples analítica do entendimento puro” (1999: 206).
104
em-si, à substancialidade dos fenômenos. Com a astúcia de um decadente que deseja
suprimir da filosofia os inconvenientes ao capital, Simmel acolhe um Kant relativista sem
que seja necessário recorrer a seus pendores materialistas.
Propriamente quanto ao relativismo de Weber, está escrito logo no início de
Economia e sociedade que se constrói ali uma ciência que pretende compreender
interpretativamente a ação social e assim explicá-la causalmente em seu curso e em seus
efeitos” (2004a: 03). Daí provém a famosa fórmula elaborada por Simmel e adotada
integralmente por Weber: “não é preciso ser Cézar para compreender Cézar” (Weber, idem:
04). Não é necessário reviver a ação estudada; basta lhe imputar uma conexão de causa e
efeito que seja coerente em si mesma e que, enquanto construto lógico, sentido ao agir
do ator social.
O método compreensivo que Weber retira de Dilthey implica atribuir o máximo
de racionalidade à conduta social, construindo assim um conceito típico-ideal que não
condiz com a efetividade do real, mas que serve à compreensão sociológica. A atribuição
da racionalidade ao comportamento social demonstra que Weber não é um irracionalista
clássico, muito embora a sua teoria conjugue elementos de gradação irracionalista e, assim,
abra caminho para se chegar à destruição da razão. O relativismo weberiano não aceita o
irracionalismo em todos os seus conceitos e formulações.
A bem dizer, a sociologia compreensiva de Weber não se priva do conceito de
intuição; este extrato de A ciência como vocação defende que a produção científica é
impossível sem a “inspiração”: “é necessário que ocorra alguma idéia a alguém, e deve ser
uma idéia correta, para realizarmos qualquer coisa digna. E essa intuição o pode ser
forçada” (Weber, 1979: 161). Porém, a intuição weberiana está longe de ser a mediação
entre o singular e o absoluto de Schelling. Na teoria do conhecimento de Weber, a intuição
é um instante dentro do processo racionalista-formal de construção de conceitos típicos-
ideais. A mesma disposição examina-se em A teoria da definição de Rickert, para quem
a intuição não é suficiente para se obter a “verdade teórica” (cf. Rickert, 1960: 10). Weber e
Rickert não abrem mão do discursivo a favor do intuitivo. Isso faz com que Weber não
esteja entre os clássicos do irracionalismo quanto à teoria da ciência. Lukács nota
corretamente uma abertura à destruição da razão em Weber, mas logo avisa que o sociólogo
era, “quanto a suas intenções conscientes, um adversário do irracionalismo” (1968: 488).
105
Que Weber não tenha sido um irracionalista clássico, isso não implica que tenha
dado um autêntico tratamento racionalista ao problema da intuição. Naquele pequeno
trecho de A ciência como vocação em que aborda a intuição, Weber não abstrai todas as
questões que envolvem a relação entre o discursivo e o intuitivo. Ali está escrito somente
que a intuição ocorre porque tem que ocorrer a alguém; isso não resolve o problema. Na
crítica ao existencialismo francês, Lukács foi mais longe que Weber: “considerada à luz da
psicologia, [a intuição] nada mais é do que a entrada brusca na consciência de um processo
de reflexão até então subconsciente” (1979: 51). A intuição não é apenas uma idéia que
ocorre a alguém; é o resultado do processo de reflexão até então subconsciente.
“Estabeleçamos, portanto, de uma vez por todas, que na realidade a intuição não é o
contrário, mas o complemento do pensamento discursivo e que seu emprego não poderia
ser jamais um critério da verdade” (Lukács, idem: 51). As noções de Existencialismo ou
marxismo? serão retomadas por Lukács anos depois na Estética, incorporando os estudos
da psicologia de Pavlov. Ao analisar as categorias psicológicas do comportamento estético,
Lukács alude a esta passagem em que o estudioso russo diz: “creio que todas as intuições
devem ser entendidas deste modo: ao homem ocorre o resultado final, porém, no momento
dado, não considera o caminho inteiro que percorreu para chegar a ele, o discurso que o
levou à meta” (Pavlov apud Lukács, 1966, III: 44). Apesar de não ter estudado Pavlov
detalhadamente à época de Existencialismo ou marxismo?, Lukács encontrou respostas
semelhantes às do psicólogo.
Weber não chegou aos resultados de Lukács ao tratar da intuição, o que não
significa, por outro lado, que tenha promovido o intuitivo à função de novo órgão do
conhecimento. Os aspectos irracionalistas da teoria do conhecimento de Weber são apenas
tendências que não se realizam por inteiro. A comparação entre o sociólogo e alguns
autores de sua geração talvez esclareça os fatos. O irracionalismo no Scheler da maturidade
é, ao contrário, um projeto levado a termo com bastante destreza. O assalto irracionalista de
Scheler começa com a proposta de uma significativa mudança no conceito de razão dos
gregos; à racionalidade dos gregos é preferível empregar um termo que, além de abrigar o
conceito de razão, agregue simultaneamente uma espécie de intuição, isto é, “a intuição dos
fenômenos originários ou dos conteúdos essenciais, e, mais além, uma determinada classe
de atos volitivos e emocionais tais como a bondade, o amor, o remorso, a veneração, a
106
ferida espiritual, a bem-aventurança e o desespero, a decisão livre” (Scheler, 2003: 35).
Trata-se do termo espírito. Em A posição do homem no cosmos, substitui-se razão por
espírito por que esta palavra expressa com maior exatidão o papel que a intuição possui no
ato de autoconsciência do homem. Não é à toa que Scheler recriminava um veraz
racionalista como Descartes por ter associado à sua definição de espírito apenas aspectos
racionais, abrindo mão das pulsões, dos instintos e das disposições psicológicas. A intuição
ganha uma estatura na teoria do conhecimento de Scheler que remonta a Schelling e que
não se encontra em Weber. Em momento algum, Weber aliou ao conhecimento sociológico
as idéias de bondade, amor, remorso, veneração, etc.
Scheler argumenta que, para fazer-se objeto de si mesmo e chegar a conhecer-se,
o homem deve suspender-se a ponto de sair da história: “somente o homem — uma vez que
é pessoa consegue se alçar por sobre si mesmo enquanto ser vivo —, e, a partir de
um centro como que para além do mundo espaço-temporal, incluindo ele mesmo, tornar
tudo objeto de seu conhecimento” (2003: 44). Alçando-se por sobre o mundo espaço-
temporal e inclusive sobre si mesmo, o homem faz de tudo objeto de sua ciência. O
movimento de intuição dos atos da psiquê “não pode ser ele mesmo uma ‘parte’ desse
mundo e também não pode, por conseguinte, possuir nenhum lugar qualquer e nenhum
tempo qualquer determinados: ele pode estar colocado no fundamento ontológico mais
supremo(Scheler, idem: 45). A intuição não participa do mundo. O conhecimento implica
ausentar-se da história, de quaisquer tempo e lugar, até atingir Deus, o “fundamento
ontológico mais supremo”.
De fato, o filósofo sustenta que apenas o animal “vive totalmente no concreto e na
realidade efetiva” (Scheler, 2003: 50). O animal vive na determinação de um aqui e agora;
a vida natural é condicionada pelo concreto. O ser do homem é diverso porque “ser homem
significa: lançar um vigoroso ‘não’ de encontro a este tipo de realidade” (Scheler, idem:
50). A determinação das particularidades históricas seria uma queda no animalesco para a
experiência vital humana. Por isso, “comparado com o animal que sempre diz ‘sim’ ao que
é real mesmo onde ele se atemoriza e foge —, o homem é aquele ‘que pode dizer
não’, ele é o ‘asceta da vida’, aquele que protesta eternamente contra toda mera realidade”
(Scheler, idem: 53).
107
À semelhança de grande parte dos irracionalistas, Scheler também é um
aristocrata no que diz respeito à teoria do conhecimento. O filósofo diz que a razão é capaz
de engendrar “novas formas de pensamento e intuição” por meio do que chama de “novas
intelecções essenciais” e a cargo destas intelecções estaria uma casta aristocrática,
constituída por aqueles desbravadores que criam a civilização; são “intelecções que
pioneiros dirigentes da humanidade encontram junto aos fatos experienciáveis e que são
acompanhados e realizados concomitantemente pela massa” (Scheler: 2003: 49). Recordem
que Scheler presenciou a Comuna de Paris, ocasião em que, segundo Marx, “não apenas a
ciência tornava-se acessível a todos, senão se liberava dos entraves da pressão
governamental e dos preconceitos de classe” (1972: 261).
vimos no capítulo passado que, assim como Scheler, Simmel pode ser
considerado um irracionalista clássico. O autor de A intuição da vida re-elabora a seu turno
as categorias picas do método que descende de Schelling. De acordo com sua concepção,
o autoconhecimento do homem é “um protofenômeno da vida em geral que neste caso se
oferece do modo mais sublimado, totalmente desprendida de todo conteúdo contingente”
(Simmel, 1950: 21). O ato do conhecimento em Simmel não se difere muito de Scheler;
para ambos, o conhecimento é a negação das particularidades históricas, das determinações
concretas do processo histórico. Em sua “mais íntima essência”, a tomada de consciência
da vida é “sair de si mesma, fixar seus limites passando por cima deles, ou seja,
precisamente sobre si mesma” (Simmel, idem: 21).
O conhecimento para Simmel também porta alguns dos aspectos místicos que
foram exibidos por Scheler e que são completamente estranhos à sociologia de Weber.
Revisando a conciliação entre o divino e o científico feita por Wilhelm Roscher, Weber fez
constar sarcasticamente em nota de página que “nós não temos conhecimento sobre
‘intervenções divinas’ no processo histórico” (1999a: 15). Nãonada de místico na teoria
weberiana do conhecimento. Em seu turno, Simmel considera que, ao decidirmos nos
elevar por sobre nós mesmos, “sentimos geralmente que [a decisão] não corresponde à
nossa autêntica vontade, que há em nós uma instância superior que, todavia, poderia anular
virtualmente aquela decisão” (1950: 22). O sujeito da ciência possui a sensação de deixar-
se levar por uma “instância superior”, a que Scheler batizaria de Deus.
108
Conduzidos pelas mãos seguras da “instância superior”, assim chegamos às
formas da vida, intemporais e invariáveis, que subtraem a individualidade da “corrente do
ser total” ou da “continuidade de justaposição e sucessão” da história. É preciso sair da
corrente da vida histórica porque, para o irracionalismo de A intuição da vida, o movimento
do real não porta nenhuma verdade; com efeito, “interpretando-a como se queira, a verdade
é algo independente da vida e esta virtualmente está pronta para apropriar-se dela”
(Simmel, 1950: 57). As verdadeiras categorias do conhecimento não são formas do ser,
condições da existência; elas independem do ser. As determinações da existência devem ser
repelidas para se intuir a verdade das formas.
Conhecendo-se, a individualidade adquire, portanto, um “cunho fechado”. A
corrente ininterrupta da vida social não admite nenhum fechamento estanque ou suspensão
perene. A interrupção das determinações do concreto livra a singularidade da fluidez
cotidiana e leva-a para a proteção das formas fechadas e eternas. O caráter fechado,
protegido das formas da ciência é explicado por Simmel pelo fato de que os pontos
culminantes do conhecimento são alcançados por poucos; isto é, o caráter seleto das
“formas de cunho fechado” é indicado “empiricamente pelo fato de que as supremas
culminações da individualidade, os grandes gênios, quase sem exceção deixam de procriar
uma descendência ou esta carece de impulso vital” (Simmel, 1950: 24). As “supremas
culminações da individualidade” alçam-se às maiores alturas da autoconsciência e
normalmente não fazem sucessores, o que ilustra aos olhos de Simmel o aspecto fechado do
ato do conhecimento.
Poucos eleitos podem pleitear as formas de cunho fechado. Nos últimos capítulos
da Filosofia do dinheiro, Simmel descreve a situação: “Jesus pôde dizer a seu rico
discípulo: teus bens aos pobres, mas não poderia dizer: tua cultura aos humildes”
(1999: 560). As formas de cunho fechado são inacessíveis aos “humildes”, às classes
trabalhadoras.
Talvez aquela “instância superior” tenha sido mais dadivosa com alguns homens
ao conduzi-los à estatura de supremo cume da individualidade. Os grandes pensamentos
seriam criações da “aristocracia espiritual”uma expressão que Simmel colhe em Goethe
(cf. Simmel, 1950: 126). E não falta um excesso de mistificação na explicação de Simmel a
propósito da relação entre os grandes pensamentos e os seus “criadores”:
109
Os grandes pensamentos “eternos” da humanidade existiram realmente em uma
espécie de eternidade ideal e, em um momento casual ou, melhor dito, no
momento correspondente à situação histórica do espírito, seriam só realizados,
apenas descobertos, não inventados, por seus “criadores”. Por fantástica que seja,
esta representação expressa o estado de coisas genuinamente real,
irrepreensivelmente sensível, ainda que não o compreendamos com claridade
(1950: 135, 136).
Semelhantes ao Deus de Schelling, Kierkegaard e Scheler, os grandes
pensamentos “eternos” de Simmel planam acima da história e as mais altas culminações da
individualidade alcançam suas formas, revelando-os para o mundo sensível. São uma
entidade abstrata que se desvenda à aristocracia espiritual. Simmel explica que, a despeito
de sua “aparência fantástica”, este seria o “estado genuinamente real das coisas”. De acordo
com o vocabulário utilizado em A intuição da vida, as formas da consciência são uma
“alma imortal” que passam pelos “corpos temporais”. Os corpos perecem, enquanto a alma
conserva-se
18
.
Weber nunca elevaria à enésima potência os elementos irracionalistas que são
observados por ele no ato de conhecimento. Suas críticas a Simmel possuíam esta acepção:
“[as formulações de Simmel] são de natureza psicológico-descritivas e, por causa disso, na
sua dimensão lógica, nem sempre muito consistentes, apesar de serem muito sutis” (1999:
92). Ainda que padecesse de algumas fendas irracionais, Weber não deve ser equiparado a
Scheler e Simmel quanto à concepção de ciência. Nestes dois últimos, a porta de entrada
para o irracionalismo descomedido está completamente franqueada; em Weber, está
somente entreaberta.
A racionalidade formal em Weber é então uma projeção feita pelo sujeito da
ciência ao fragmento particular da realidade estudado. O racionalismo da sociologia
compreensiva é pura “conveniência metodológica” (Weber, 2004a: 05). O racional não está
na própria objetividade; não uma legalidade imanente ao objeto, como entende a
tradição racionalista desde Aristóteles, passando por Descartes, Vico, Schiller, Hegel e
18
Por conceder à alma a imortalidade, Simmel exasperava-se ao discutir questões como a historicidade das
idéias morais: “o mero preconceito de que a dignidade inelutável da exigência moral não se garante se seu
conteúdo não se submeter ao devir, ao desenvolvimento, à transformação, em uma palavra, às direções da
vida, constitui uma das falsas excrescências conceituais dentro de uma concepção de mundo
progressivamente decadente” (1950: 162).
110
tantos outros a Marx. Não é uma racionalidade objetiva senão atribuída. Eis um modelo
explicativo de sua própria letra:
Para compreender, por exemplo, a maneira como uma guerra é conduzida, é
imprescindível imaginar — se mesmo que seja necessariamente expressamente ou
em forma acabada que em ambos os lados esteja no comando um comandante
ideal, que conheça a situação total e global e o deslocamento das forças militares
dos dois lados e também a totalidade das possibilidades daí resultantes e a meta
concreta a ser alcançada que nada mais é do que a destruição das forças militares
do inimigo; e também temos que imaginar que esse comandante, com base neste
conhecimento, tivesse procedido sem cometer erros e sem incorrer em falhas
lógicas. Somente neste caso seria realmente possível estabelecer de maneira
unívoca a influência causal que teve sobre o desenvolvimento das coisas o fato de
os comandantes reais não possuírem tal conhecimento e nem tal imunidade total
frente a erros, e, de maneira geral, tampouco serem meras máquinas racionais de
pensar. A construção racional, portanto, tem aqui o valor de desempenhar o papel
de meios para uma “imputação” causal correta (Weber, 1999a: 393, 394).
O tipo ideal é uma exacerbação: este comandante não existe de fato; é um
“comandante ideal” que procede “sem cometer erros ou falhas lógicas”, é uma exacerbação
dos traços da realidade efetiva que serve apenas como parâmetro de análise compreensiva
da ação social. Atentemos para a nitidez da última frase da citação: “a construção racional,
portanto, tem aqui o valor de desempenhar o papel de meios para uma ‘imputação’ causal
correta”.
O tipo ideal não é a realidade de fato; é a negação explícita da possibilidade de
uma ontologia. Por recusar a princípio qualquer impostação ontológica, Weber não se
impressionava com as contradições que poderiam existir entre seus conceitos típicos e o
movimento do ser. Falando sobre a metodologia weberiana, Cahnman assevera que “a
possível coincidência do ideal e do real em uma instância particular não invalida a utilidade
da construção ideal-típica em relação a uma série de outras instâncias em que o ideal e o
real estejam em algum grau ou mesmo abertamente apartados” (1995: 39). A aberta ou
razoável disjunção entre o real e o ideal não invalidaria a utilidade dos conceitos. Em A
ética protestante e o espírito do capitalismo, quando estuda a conduta típica da burguesia
da indústria têxtil, Weber recorre a alguns dados empíricos e explica em nota de página que
o seu conceito, “tendo sido elaborado com o fim de ilustrar nosso propósito, pouco importa,
naturalmente, que em nenhum dos exemplos que tenhamos pensado o processo tenha se
desenrolado exatamente da maneira como aparece descrito aqui” (2004b: 181, 182). Pouco
111
importa que haja contradições entre o conceito e os exemplos da realidade concreta; que
estejam em franca colisão o objeto e a teoria. Com demasiada negligência face à realidade
factual, escreve Weber que é possível que o processo tenha se desenrolado de maneira
divergente ao tipo construído.
Lukács desafiava os que negam a ontologia a atravessar a rua considerando os
veículos como se fossem projeções de sua consciência: “nem o mais fanático berkeleyano,
quando ao cruzar a rua evita um automóvel ou espera que este passe, tem a sensação de
estar lidando somente com sua própria representação, e não com uma realidade
independente de sua consciência” (1966, II: 48). Que se desafie a atravessá-la um cientista
social de hoje em dia, convicto de estar vivendo na sociedade da informação, lidando com
os carros como se fossem criações de algum web designer. Entretanto, acreditamos que
Weber enfrentaria o desafio. Mesmo que recuse a possibilidade de uma ontologia, Weber
não nega a existência da realidade para além das consciências individuais. O que recebe a
sua desaprovação é a existência de leis intrínsecas à própria realidade. A vida social é
caótica; não nada que a estruture. Sem maiores danos, um sociólogo compreensivo
atravessaria a rua desviando dos veículos como verdadeiros objetos fora de sua consciência,
ainda que não esteja dado a priori se são mercadorias ou totens religiosos. Leal aos
pressupostos do relativismo burguês, Weber designa ao sujeito do conhecimento a tarefa de
imputar sentido ao objeto mediante a construção de tipos ideais
19
.
É óbvio que os veículos apenas podem ser compreendidos como totens se
excluirmos a história da dinâmica de sua apreensão. Caso os capturasse enquanto o
resultado de um processo histórico, que teve início na natureza, cujas matérias foram
19
A recusa da ontologia rebate nas teorias econômicas de Weber. O seu endosso à escola marginalista é o
resultado. Para a economia vulgar, o valor econômico não seria uma categoria pertencente ao objeto em si
mesmo; seria, ao contrário, atribuição do sujeito. Possuem valor os itens que nos forem úteis. Esse
subjetivismo é implicação do imperativo para tais teóricos, a saber, a dissolução da economia clássica.
Lembrem-se de que uma de suas figuras canônicas, Stanley Jevons, afirma que “a conclusão a que estou
chegando, cada vez mais claramente, é a de que a única esperança de atingir um verdadeiro sistema de
Economia é deixar de lado, de uma vez por todas, as suposições confusas e absurdas da Escola ricardiana”
(1983: 18). Walras não se porta de modo diferente; em sua obra, endereça críticas aos fisiocratas e,
especialmente, à economia política inglesa. A propósito do valor-trabalho, Walras declara, substituindo-a por
um superficial utilitarismo: “ora, o trabalho vale e é trocado porque ele é, simultaneamente, útil e limitado em
quantidade, porque ele é raro. O valor decorre, pois, da raridade”. Em seguida, completa: “dessa forma, a
teoria que põe a origem do valor no trabalho é menos uma teoria muito estreita que uma teoria completamente
vazia, menos uma afirmação inexata que uma afirmação gratuita” (1983: 100). O confortável utilitarismo de
Bentham é privilegiado em detrimento da teoria do valor-trabalho de Smith e Ricardo. Não é sem razão que
Lukács chama a teoria marginalista de apogeu deste esvaziamento da economia na abstração e no
formalismo” (1968a: 65)
112
metamorfoseadas em valor de uso pelo trabalho humano, segundo as leis particulares do
modo de produção capitalista, Weber não poderia compreendê-los como outra coisa senão
mercadorias. O “tipo ideal” que chegasse a outra conclusão não teria reproduzido a essência
histórica que há por trás dos automóveis.
Paremos um instante neste ponto. Um leque de questões surge no entendimento da
metodologia weberiana. O próprio sociólogo tratou de levantar algumas. Por exemplo, a
compreensão seria obstada quando uma intransponível discrepância entre a ação social
estudada e os valores do sujeito da ciência:
Muitas vezes não conseguimos compreender, com plena evidência, alguns dos
‘fins’ últimos e ‘valores’ pelos quais podem orientar-se, com plena evidência, as
ações de uma pessoa; eventualmente conseguimos apreendê-los intelectualmente
mas, por outro lado, quanto mais divergem de nossos próprios valores últimos,
tanto mais dificuldade encontramos em torná-los compreensíveis por uma
revivência mediante a imaginação intuitiva (Weber, 2004a: 04).
As condutas de um burguês luterano e habitante de Heidelberg o próximas a
Weber. Ele consegue intuitivamente lhes imputar uma lógica; são regras de experiência de
tal maneira conhecidas que o sociólogo está apto a revivê-las espontaneamente por meio da
simples intuição. Porém, a compreensão de condutas estranhas requer maior esforço
intelectivo. Não é possível a Weber reviver as ações dos imperadores romanos “mediante a
imaginação intuitiva”. Em seguida ao trecho citado acima, Weber recomenda que o
cientista social que estuda uma ação muito diversa de seus valores deve imputar aquele
máximo de racionalidade à ação, evitando a “imaginação intuitiva” e compreendendo como
desvios os fatores irracionais que nela possuem ingerência (que soariam como um
“absurdo” para os seus valores íntimos). Ao cabo deste artifício, o cientista poderá
comparar os resultados de seu tipo ideal com aqueles que ocorreram efetivamente.
A solução de Weber não é satisfatória e o motivo foi precisado por Frank Parkin:
“o êxito deste procedimento dependeria naturalmente da capacidade do observador para ter
uma visão do estado subjetivo do ator superior à do próprio ator” (2000: 11). Completa
Parkin, talvez Weber não acreditasse que o sociólogo pudesse ser atormentado por
“irracionalidades” que impedissem a visão superior à do sujeito da ação. Para conceder esta
solução ao problema, Weber pressupõe que o observador detenha um controle sobre seus
sentimentos mais particulares a ponto de lhe conferir o “estado subjetivo superior” de que
113
fala Parkin. O rigor científico deveria imperar. É verdade que o próprio Weber não foi
capaz de pôr em prática este artifício ao analisar os “povos selvagens” da Rússia.
O leque de questões não se interrompe por aí. Agora se torna mais bem matizada a
sugestão posta por Weber de que os homens devem escolher entre deuses e demônios, o
importam quais sejam. Transposta para a metodologia da ciência, a sugestão vincula-se
profundamente aos conceitos típicos e ao relativismo que vimos em Nietzsche, Dilthey e
Simmel. Isso porque o relativismo da construçãopica ideal está em sua arbitrariedade. O
sujeito da ciência orienta-se segundo seus valores para recortar o fragmento do real que
concebe como relevante do mesmo modo como se opta por deuses e demônios. Este é o
emblema da teoria weberiana do conhecimento estampado no seu mais importante escrito
metodológico, A “objetividade” do conhecimento na ciência social e na ciência política:
“decidir-se por uma opção é exclusivamente ‘assunto pessoal’” (1999a: 110). A relevância
não pertence ao objeto; ela submete-se à eleição arbitrária do cientista social.
Abre-se um parêntese para dizer que Weber não fala de juízos de valor. Tanto
quanto para Durkheim, Weber também pressupõe uma ciência social isenta dos juízos de
valor. Durkheim não admite absolutamente nenhuma ingerência dos valores, sejam juízos
ou referências; o cientista social “deve colocar-se face aos fatos sociais esquecendo tudo o
que pensa saber, como face ao desconhecido” (Durkheim, 1975: 142). Ao contrário do
sociólogo francês, Weber assinala que a referência a valores é necessária para a escolha do
objeto; a diferença é tênue mas é uma autêntica diferença: a orientação é dada por uma
concepção de mundo particular ao sujeito e não por julgamentos valorativos ou
preconceitos.
Visto que, para Weber, as concepções de mundo são particulares, qualquer fração
do real é merecedora de estudo, uma vez que cabe ao sujeito imputar-lhe relevo científico
de acordo com sua valoração. Referenciando os valores à sua vontade, o sujeito da razão
está apto a construir o objeto de estudo que lhe agradar. “Ora, juízos sobre a essencialidade
de um fenômeno histórico, ou são juízos de valor, ou são juízos de fé” (Weber, 2004b: 90).
De novo, não importam quais sejam os deuses ou os demônios, qualquer escolha é legítima.
Que se opte por estudar o coquetismo de Simmel ou a estrutura da sociedade capitalista de
Marx, não nada que indique objetivamente que um “fragmento” detém maior
essencialidade que o outro; é “assunto pessoal”. Simmel teria estudado o coquetismo
114
porque lhe julgava essencial e o mesmo pretexto teria levado Marx a estudar as
contradições do capital. Weber aqui a sua versão para o subjetivismo, que tende ao
irracionalismo, tão típico dos períodos de decadência ideológica da burguesia.
Sabemos que o subjetivismo é o caminho que pode culminar no completo
irracionalismo mas que, em Weber, não chega a esse ponto. Ao contrário de Simmel e
Scheler, a arbitrariedade subjetiva de Weber o abriga nenhum psiquismo. Houve
oportunidades para que Weber deixasse à mostra a sua recusa do psiquismo
20
. No texto A
teoria do limite do aproveitamento e a “lei fundamental psicofísica”, é taxativa a afirmação
de que toda ciência empírica retira da experiência cotidiana o ponto de partida teórico.
Cada uma, no entanto, atua segundo métodos particulares. A teoria econômica não procura
seu objeto “por exemplo, da maneira da psicologia, mas num sentido exatamente oposto”
(Weber, 1999a: 288). O método econômico é oposto ao psicológico. Ao exacerbar os traços
das condutas cotidianas, a economia não disseca vivências interiores da experiência
cotidiana em ‘elementos’ físicos e psicofísicos (‘estímulos’, ‘sensações’, ‘reações’,
‘automatismos’, ‘sentimentos’ etc.)” (Weber, idem: 288); o seu método seria não o
psiquismo de Simmel e Scheler mas a compreensão que nasce de uma imputação causal:
em sua lógica, a economia tenta “‘compreender’ as ‘adaptações’ do comportamento externo
do homem a partir de uma determinada maneira das suas condições existenciais
externamente situadas..., conforme um cálculo que teria conhecimento de todas as
condições realmente existentes” (Weber, idem: 288). Atribui-se a racionalidade extrema
como se a conduta social pudesse ter sido calculada com o conhecimento de todas as
conseqüências da ação.
Em outras palavras, embora arbitrário, o construto típico ideal das ciências do
espírito não é por inteiro irracionalista. É problema de foro íntimo, mas que não implica a
queda no psiquismo.
Seguem-se algumas questões que daqui se desdobram. De acordo com Weber,
esse livre-arbítrio sempre existiu; os cientistas sociais de tempo e lugar variados utilizaram
a metodologia do tipo ideal, ainda que não soubessem. O tipo ideal é generalizado para o
20
Os primeiros parágrafos de Economia e sociedade o fartos a propósito da separação que Weber faz entre
psicologia e sociologia: “a consideração racional de uma pessoa sobre se determinada ação é proveitosa ou
não para determinados interesses dados, em vista das conseqüências a serem esperadas, e a decisão resultante
são coisas cuja compreensão nem por um fio é facilitada por considerações psicológicas” (Weber, 2004a: 12).
Vale conferir igualmente as respostas dadas por Weber às críticas que Karl Fischer endereçou a A ética
protestante e o espírito do capitalismo (cf. Weber, 2003).
115
conjunto extensivo dos autores que produziram uma ciência da sociedade. Desde os pré-
socráticos ou mesmo antes. Weber não permite possibilidade de evasiva; segundo a
sociologia compreensiva, fazer ciência da sociedade seria fatalmente produzir um tipo
ideal. Até mesmo um intérprete favorável a Weber constata que “é aqui que aparece a
afinidade básica de Weber com o positivismo: existem muitas histórias, mas somente uma
ciência legítima, ou, mais precisamente, existe a unidade do método científico (Cohn,
1979: 107). O tipo ideal não é um entre os possíveis métodos da ciência social; é senão o
método científico.
Até mesmo a ontologia materialista de Marx é reduzida a um mero tipo ideal
embora Marx seja reconhecido como “de longe o mais importante nas construções de tipo
ideal”. Está dito em certo instante no ensaio A “objetividade” do conhecimento na ciência
social e na ciência política:
Limitamos a constatar aqui que todas as “leis” e construções do desenvolvimento
histórico especificamente marxistas naturalmente possuem caráter de tipo ideal,
na medida em que sejam teoricamente corretas. Quem quer que tenha trabalhado
com os conceitos marxistas conhece a eminente e inigualável importância
heurística destes tipos ideais, quando utilizados para sua comparação com a
realidade, mas conhece igualmente o seu perigo, logo que apresentados como
construção com validade empírica ou, até mesmo, como tendências ou “forças
ativas” reais (o que quer dizer, na verdade, “metafísicas”) (Weber, 1999a: 147).
O marxismo seria uma construção típica que carece de validade empírica, igual a
qualquer outra. É um “perigo” que se pense que as categorias marxistas tenham validade
empírica. Weber é claro em seu intento: reduzir Marx à “modéstia de uma hipótese”. O
materialismo histórico-dialético é transformado em mera projeção ideal, em simples
construto lógico. Em clara polêmica com o materialismo, a possibilidade de uma ontologia
é o que Rickert batiza de realismo conceitual ingênuo (cf. 1961: 102). Sob a ótica de
Weber, Marx teria criado conceitos lógicos, não importa que o fundador do materialismo
moderno tenha dito que as categorias são formas do ser, determinações da existência. A
estratégia de transformar Marx em uma “sociologia” é providencial para manipulá-lo,
colocando-o em de igualdade com as outras centenas de sociologias que são produzidas
nos quatro cantos do mundo. Amesquinha-se o método dialético-materialista para
enquadrá-lo na investigação das disciplinas parciais (cf. Nogueira, 1978: 46).
116
É preciso rebaixar Marx a apenas mais uma entre tantas explicações causais
possíveis: com isso, equipara-o a qualquer outra conexão de causa e efeito e retira-lhe o
estatuto de ideologia do novo sujeito revolucionário. Substitui-se o ponto de vista de classe
pelo ponto de vista subjetivo. Marx deixa de ser o teórico da classe trabalhadora e
transforma-se no teórico de seus próprios valores subjetivos e Weber oportunamente
deixa de ser um pensador burguês, fazendo-se pensador de si mesmo. Nega-se a
possibilidade de uma ontologia para subtrair da ciência social o seu caráter de classe. Fazer
ciência social torna-se uma pueril escolha valorativa, respaldada em pontos de vista
subjetivos. Simmel estudou o coquetismo e Marx, as contradições do capital; ambos teriam
se guiado por uma imagem de mundo relativa. Deixam de existir ideólogos representantes
dos interesses de determinada classe; eles tornam-se intelectuais orgânicos de si, libertos
dos vínculos com as classes sociais, ligados exclusivamente à sua subjetividade. O
procedimento de Weber não é, portanto, nem casual e tampouco inocente.
No mesmo texto em que chama as leis da teoria social marxiana de mais
importante tipo ideal construído, Weber não prima pela congruência de suas posições e
também afirma que o pensamento de Marx “talvez apenas subsista nas mentes de leigos ou
diletantes” (1999a: 121). Weber não se avaliava como um leigo e sequer um diletante; pelo
contrário, a sua classe era composta por homens “livres do preconceito obsoleto de que a
totalidade dos fenômenos culturais pode ser deduzida como produto ou como função de
determinadas constelações de interesses ‘materiais’” (Weber, idem: 121).
Nunca um confronto direto com Marx nos textos weberianos. Não uma
única citação textual que comprove que Marx reduzia a totalidade dos fenômenos” a uma
causa econômica. Vez ou outra, é feita uma menção distante ao Manifesto do partido
comunista. Weber esquivou-se do confronto direto, muito embora estivesse a todo instante
no embate com as idéias do materialista; as referências são sempre alusivas (até mesmo na
conferência que dissertou sobre o socialismo).
Eis um momento de Stammler e a “superação” da concepção materialista da
história em que podemos ler o seguinte escárnio:
Suponhamos que surgisse um autor no nosso tempo, em que um interesse cada
vez forte no alcance dos elementos religiosos para a história cultural, que
afirmasse: a história nada mais é do que o processo de lutas e tomadas de posição
religiosas da humanidade. Em última análise, são os interesses religiosos e os
posicionamentos em face do fenômeno religioso que condicionam ‘de maneira
117
absoluta’ todos os fenômenos da vida cultural, inclusive os fenômenos políticos e
econômicos. Todos os acontecimentos e processos, nesses setores são também,
em última análise, reflexos de determinados posicionamentos da humanidade com
referência a problemas religiosos. Eles são, portanto, em última instância, apenas
manifestações de forças e idéias religiosas e, portanto, de maneira geral, são
explicados apenas cientificamente, no momento em que são explicados
causalmente a partir destas idéias (Weber, 1999a: 213).
aqui a caricatura da dialética marxista como um determinismo reducionista.
Basta alterar a referência à religião para economia que teremos a idéia feita por Weber a
propósito de Marx
21
.
Se as críticas foram endereçadas ao marxismo de autores como Plekhanov e seu
positivismo, Weber acerta no alvo. A invasão positivista no marxismo do período da
segunda internacional fazia com que a economia deixasse de ser “momento privilegiado”
para se tornar a determinação absoluta das relações sociais. Contra a monocausalidade de
parte da social-democracia, Weber procurou compreender a legalidade intrínseca às esferas
política, estética, religiosa, etc, em face da esfera econômica. Esta é parte mais fértil da sua
obra. Por exemplo, a sociologia weberiana da arte fecundou os estudos estéticos de um
marxista ortodoxo como Lukács. Weber entendia que a arte (especialmente a música)
assume a condição de esfera autônoma com a racionalização ocidental. O ensaio Os
fundamentos racionais e sociológicos da música é elucidativo quanto a isso; nele, Weber
trata da maneira pela qual a música ultrapassa o “emprego meramente prático-finalista das
fórmulas sonoras tradicionais..., [e com o despertar] das necessidades puramente estéticas,
inicia-se regularmente sua verdadeira racionalização” (1995: 86, 87).
A música adquire uma legalidade própria quando se desvencilha dos seus
“empregos prático-finalistas” ligados essencialmente ao cerimonial mágico. Os iniciados na
estética lukacsiana notam a afinidade com a teoria do pensador húngaro acerca da
diferenciação da arte em sua legalidade própria, ainda que não haja em Lukács a dicotomia
absoluta entre o útil e o agradável que em Weber, o qual se filia aqui arraigadamente à
escola kantiana. Precisamente Plekhanov sustentava que a arte possui estreita conexão
21
Naquele artigo, Weber inicialmente credita a Rudolf Stammler a caricatura de Marx; porém, ao longo do
texto, fica claro que concorda com a caricatura: a concepção materialista de história, “que está totalmente
errada e que cientificamente não tem valor nenhum, realmente ainda domina as mentes de alguns ‘partidários
do materialismo histórico’” (Weber, 1999a: 229).
118
causal com a economia
22
. Weber foi o antídoto utilizado por Lukács para compor uma
estética fiel à teoria materialista, liberta da monocausalidade do positivismo predominante
na segunda internacional
23
.
A estética de Lukács desfaz a idéia de que os marxistas nos bastam e que não é
preciso ler Weber. Ao que nos parece, o marxismo de Plekhanov não contribui tanto para a
estética quanto o neokantismo de Weber. É certo que Weber concedia uma autonomia
absoluta às esferas e, por isso, estava apto a falar em uma sociologia da arte autônoma
diante de uma sociologia da política que, por sua vez, é independente de uma sociologia da
religião, de uma sociologia do direito, etc. Uma vez que os objetos são isolados entre si,
pode-se conceber uma sociologia para cada um em avulso fato que mina boa parte das
contribuições weberianas a propósito da arte. Deixadas à sua própria deriva, as premissas
sociológicas weberianas terminam no relativismo. Com efeito, a teoria da música de Weber
apenas fecunda; para que floresça, que se abandonar os princípios da sociologia
compreensiva; para que de fato as suas propostas dêem bons frutos, que se promoverem
as necessárias inversões materialistas”, referenciando-as às determinações históricas e
adotando a perspectiva da totalidade de contrários fundada na esfera privilegiada do
trabalho, o que carece por inteiro em Weber.
A crítica de Weber à monocausalidade é certa se o seu alvo for efetivamente a
social-democracia. Mas a crítica não está endereçada ao positivismo social-democrata e
sim a Marx. O sociólogo alemão imputa a Marx um fatorialismo que, em verdade, inexiste.
É profundamente equivocado identificar Marx e Plekhanov; este último, apesar de seu
pioneirismo na literatura marxista russa, detinha uma interpretação parca da dialética
materialista, que implicava entre outras coisas a subsunção completa do fator subjetivo à
totalidade social. Lembrem-se de que a crítica de Marx a Feuerbach chama a especial
atenção para o caráter passivo da individualidade na filosofia do autor de A essência da
22
“A arte de qualquer povo, em minha opinião, sempre mantém estreitíssima relação causal com sua
economia” (Plekhanov, 1969: 124).
23
A noção de uma legalidade interna à arte é presente em Marx: “no concernente à arte, sabe-se que certas
épocas de florescimento artísticoo estão de nenhuma maneira em relação com o desenvolvimento geral da
sociedade, nem, por conseqüência, com a base material, com o esqueleto, por assim dizer, de sua organização.
Por exemplo, os gregos comparados com os modernos, ou também Shakespeare” (2001: 31). A arte possui
categorias relativamente autônomas, que a peculiarizam frente aos demais momentos do ser social, como a
esfera econômica, por exemplo. Isso não transforma Marx em um relativista. Para ele, a arte adquire a sua
explicação racional se capturada em seu contexto sócio-histórico particular, na totalidade intensiva em que foi
produzida: “admite-se assim que na própria esfera da arte, algumas de suas criações insignes são possíveis
apenas em um estágio inferior do desenvolvimento artístico” (idem: 31).
119
religião. O sujeito em Marx não é contemplativo; é prático. Ademais, Marx sempre
procurou demarcar a importância daquilo que denominou “consistência das convicções
populares” ou de outras modalidades de consciência social. Foi aludindo à consistência das
tradições culturais que Marx descobriu o motivo pelo qual os povos eslavos mantêm-se
organizados a partir da propriedade fundiária (cf. 2001: 28). Esse fatorialismo atribuído por
Weber é completamente estranho à teoria social de Marx, para o qual a realidade concreta é
sempre a síntese de múltiplas determinações. São múltiplas e não a única determinação
econômica a sintetizar a realidade concreta.
Vale para esta discussão a mesma observação que Lukács fez com relação às
censuras feitas a Marx pelo existencialismo francês: faz-se uma caricatura de Marx e
critica-se esta caricatura.
Weber termina por fazer uma crítica vulgar a Marx. No Judaísmo antigo, o
sociólogo estudava a ética religiosa dos Beduínos e reprova a possibilidade da explicação
materialista para o fenômeno: “as condições de vida dos Beduínos e seminômades [não]
‘produziram’ uma ordem cujo estabelecimento se consideraria o ‘expoente ideológico’ das
condições econômicas. Esta forma de construção materialista-histórica é aqui, como em
qualquer lugar, inadequada” (Weber, 1967: 80). Com isso, Weber quer dizer que toma a
teoria social marxista como uma construção abstrata, autônoma da história, que seria
aplicável da mesma maneira aos Beduínos de antes de Cristo e aos povos dos dias de hoje.
Perde-se de vista que Marx não construiu um “sistema social” ao modo de Parsons, que se
pretendia válido tanto para a Palestina antediluviana quanto para o Canadá contemporâneo.
Na Pequena ontologia, Lukács cita uma carta de Marx em que este fala das perspectivas do
desenvolvimento capitalista na Rússia e protesta contra a transformação da sua descrição
sobre a acumulação primitiva em uma lei de necessidade absoluta. Assim, Marx reclama
dos abusos: [o meu crítico] precisava converter o meu estudo histórico da gênese do
capitalismo na Europa ocidental em uma teoria histórico-filosófica do caminho geral,
fatalmente imposto a todos os povos, quais sejam as circunstâncias históricas em que se
encontram”. E Marx conclui ironicamente: “Mas lhe peço desculpas. Ele quis me fazer, ao
mesmo tempo, uma grande honra e uma grande ofensa” (Marx apud Lukács, 1990: 190).
Weber transporta para os Beduínos a “construção materialista” abstratamente autonomizada
da história para terminar por reprovar a sua validade ali “como em qualquer lugar”. No
120
entanto, Marx jamais permitiu que suas teorias fossem apartadas das circunstâncias
históricas particulares a que dizem respeito.
Deixemos de lado a limitação de Marx à mera hipótese e notemos o modo pelo
qual o próprio sociólogo limita-se a uma hipótese. Weber não reduz somente Marx à
modéstia de uma hipótese; reduz-se a si mesmo. Com a metodologia do tipo ideal, Weber
justifica as suas construções teóricas: são exclusivamente conexões hipotéticas entre causa
e efeito. E não pretendia que passassem disso; rebaixando-se à modéstia de uma hipótese,
retinha os traços mais superficiais dos fragmentos por ele selecionados. É apenas um outro
construto típico-ideal particular; é somente uma outra hipótese explicativa. Cabe uma
ilustração. Os seus estudos acerca das guerras imperialistas são uma prova de que Weber
almejava somente construir a “lógica coerente” de um tipo ideal. Weber declara que o
objetivo das guerras imperialistas seria o prestígio: “a experiência nos ensina que as
pretensões de prestígio estiveram sempre presentes na origem das guerras” (1979: 188). Do
que se conclui que a Alemanha e a França se puseram em guerra com o único fim de
submeter uma ao jugo da outra. A incorporação ou a sujeição de uma nação por outra
concederia status à vencedora.
A sua análise peca por superficialidade. Para fugir das determinações econômicas,
Weber foi obrigado a circunscrever os aspectos mais fenomênicos da objetividade sócio-
histórica. Sob o pretexto de que se constrói uma hipótese como as demais, subtrai-se a
concretude das categorias. Não se deduz daí que a análise weberiana seja errônea. De fato,
em certa medida, o prestígio atua nas rivalidades entre nações imperialistas. A análise não é
errônea, senão superficial. O conceito típico de Weber passou ao largo das contradições
reais do evento estudado. Weber põe o mero formalismo como substituto da racionalidade
dialética e, assim como fez Schelling em seu tempo, eleva o “conhecimento tabulador” à
condição de ciência.
Em estado nascente, a sociologia é chamada para catalogar os problemas
concretos retirando-lhes exatamente a concretude categorial. As guerras imperialistas foram
uma ilustração desse parcelamento que pode ser multiplicada inúmeras vezes. Weber
também elabora uma “hipótese modesta” acerca das classes sociais. De novo, o conceito
não é a síntese de determinações históricas; é somente um agregado de traços formais. O
conceito weberiano de classe social lembra certos aspectos do conceito de Simmel para as
121
classes subalternas que vimos no capítulo passado; o destino individual é valorizado para se
considerar a situação classista. Um indivíduo encontra-se em uma determinada situação de
classe de acordo com as oportunidades de mercado que lhe são oferecidas. Segundo
Weber, por exemplo, a disposição de dinheiro pode ser trocada no mercado por terras ou
pelo trabalho alheio; assim, no primeiro caso, a situação de classe seria a do arrendatário;
no segundo, a do empresário. O sujeito da ação poderá optar: decide-se por uma certa
situação de classe ou por outra; o ator social está com as oportunidades de mercado à
disposição. Weber define que “essa é sempre a conotação genérica do conceito de classe:
que o tipo de oportunidade no mercado é o momento decisivo que apresenta condição
comum para a sorte individual. ‘Situação de classe’, nesse sentido, é, em última análise,
‘situação de mercado’” (1979: 214).
A análise do conceito de classe social em Weber precisa estar atenta para alguns
pontos. Antes de tudo, 1) a responsabilidade por estar em determinada classe social é
atribuída por inteiro ao sujeito; as oportunidades estão dadas no mercado e cabe ao sujeito
aproveitá-las da maneira que lhe convém, conforme sua valoração subjetiva. Os homens
apresentam-se em igualdade de condições ao mercado, é dada a largada, as chances são
oferecidas e veremos quem terá sucesso ao fim. A superficialidade do conceito weberiano
não nos diz absolutamente nada sobre as condições concretas de que partem os homens,
sobre as contradições postas no processo produtivo, as quais determinam sob que
condições os homens chegarão ao mercado. Marx afirma que a produção determina a
distribuição não por realizar os objetos que serão distribuídos, mas por condicionar as
formas particulares de participação no mercado; um indivíduo que participe da produção
por meio do trabalho assalariado, participa da distribuição por meio do salário (cf. 2001:
15, 16). Significa que a participação da burguesia na distribuição de bens e serviços é de
todo distinta da participação do trabalhador. O sociólogo de Heidelberg não afirmaria
jamais que, acima de tudo, a inserção no processo produtivo determina a posição na
distribuição e troca de mercadorias. É similar à mitologia indiana narrada por Mészáros que
não se indaga acerca dos fundamentos que sustentam a tartaruga cósmica que sustém o
elefante que, em seu turno, ampara o mundo em suas costas.
Além do que, 2) o conceito weberiano une inextricavelmente a situação de classe
à situação de mercado. Não classe quandoo mercado; as várias situações de classe
122
estão sendo distribuídas diariamente no mercado e apenas nele. O destino casual no
mercado prescreve o pertencimento de classe. Os homens que não estão livres para ir ao
mercado não representam uma classe: “aqueles cujo destino não é determinado pela
oportunidade de usar, em proveito próprio, bens e serviços no mercado, isto é, os escravos,
não são, porém, uma ‘classe’, no sentido técnico da expressão. São, antes, um ‘estamento’”
(Weber, 1979: 214). A conjunção absoluta entre mercado e classe continua a seguir:
“segundo nossa terminologia, o fator que cria ‘classe’ é um interesse econômico claro, e na
verdade, apenas os interesses ligados à existência do ‘mercado’” (Weber, idem: 214). Logo,
as classes sociais são um espaço societário fluido: de acordo com a nossa sorte no mercado,
estaremos em determinada classe hoje e em qualquer outra amanhã. Deduz-se que os
trabalhadores terão a opção de transformar-se em capitalistas assim que o humor do
mercado lhes beneficiar.
A partir do conceito de classe, Weber classifica os eventos que perfariam as lutas
de classes. A conexão umbilical entre classe e mercado leva Weber a reduzir as lutas
classistas a uma pura questão de oportunidades de negócio. Assim sendo, em resumo, “os
não-proprietários da Antiguidade e da Idade Média protestaram contra os monopólios, as
compras antecipadas, açambarcamento, e a retenção de bens do mercado com a finalidade
de aumentar os preços. Hoje em dia, a questão é a determinação do preço do trabalho”
(Weber: 1979: 218). As classes engalfinham-se pela obtenção de um maior espaço no
tráfico comercial; as lutas entre elas são embates por maior acesso ao mercado, seja na
Antiguidade, na Idade Média ou hoje em dia. Os conflitos entre explorados e exploradores
nos diversos estágios históricos são preteridos por conflitos entre oferta e demanda de bens
e serviços. Nota-se brevemente que Weber escolhe bem os termos que emprega; falar em
“preço do trabalho” é mais conveniente do que em “valor de reprodução da força de
trabalho”; a primeira expressão vela as relações de exploração entre capital e trabalho, ao
passo que a segunda, desmascara-as.
Nessa ocasião, deve-se dizer algo análogo a que foi dito em relação ao conceito de
guerras imperialistas. O conceito não é errôneo, senão superficial. Lênin anotou nos
Cadernos filosóficos que o aparente é a essência em uma de suas determinações, em um de
seus momentos (cf. 1973: 127); o aparente é uma determinação abstrata, porém, efetiva do
real. É perfeitamente provável que um trabalhador particular acumule dinheiro, invista em
123
um empreendimento comercial e prospere com a bênção do mercado; assim a sua
participação na distribuição de bens e serviços mudará de figura. Para o ponto de vista da
sociologia vulgar, isso basta: está comprovada empiricamente a fluidez da situação de
classe. O questionável é que se conceba um conceito típico tendo por base esse destino
puramente individual”, como diria Simmel, sem que se considere a totalidade intensiva das
relações burguesas de produção. Dada a divisão capitalista do trabalho, a sociedade
burguesa é a única formação histórica que permite a mobilidade individual (o que foi tema
de Marx e Engels em A ideologia alemã). Contudo, a possibilidade não é acessível para a
totalidade da classe trabalhadora. É inimaginável que a sorte do mercado “auxilie” o
conjunto global dos trabalhadores a se tornar burgueses. Não fluidez de mercado que
transforme a oposição antagônica entre proletariado e burguesia
24
.
A superficialidade dos conceitos weberianos de guerras imperialistas e classes
sociais é manifesta. Hebbel ironizaria dizendo que este é o instante em que a dança das
moscas encobre a dança dos planetas. A sociologia compreensiva faz um inventário dos
dados empíricos sob a alegação de que está se compondo apenas a modéstia de uma
hipótese, tão possível quanto qualquer outra.
Os exemplos de superficialidade abundam em Weber. Observem o nosso autor a
conceituar o capital: “denomina-se capital a importância estimada em dinheiro, verificada a
fim de elaborar no cálculo de capital um balanço dos meios de aquisição disponíveis para
fins de empreendimento” (Weber, 2004a: 56). Trata-se de uma tautologia que gira em torno
de si mesma sem sair do lugar. O recurso da tautologia é providencial para que não se
desvende que o capital é resultado do processo de exploração da força de trabalho; a dança
das moscas é providencial para que não se desvende a dança dos planetas. Não é à toa que
Weber declara: “o conceito de capital aqui tem um rigoroso sentido ‘contábil’ e de
economia privada, como impõem as razões de conveniência” (idem: 58). Por conveniência,
Weber retirou o capital das contradições da história, não reteve a sua essência objetiva e
24
Diga-se que o conceito de classe social em Weber não é complementar à categoria em Marx. Tomá-los
enquanto complementos produziria um ecletismo estéril, assegura Michel Misse abordando especificamente a
categoria classe social: “é ilusão teórica e ingenuidade metodológica acreditar que os resultados concretos de
ambas teorias podem convergir, sem que necessariamente esta convergência de médio alcance’ afete a
coerência interna de cada um dos dois discursos, weberiano e marxista. Este é o procedimento do ‘ecletismo
diplomático’, que num meio-termo abstrato a base de uma sistematização necessária à Teoria Sociológica,
mas que na verdade reduz a imaginação e o horizonte científico a fórmulas híbridas, carregadas de soluções
precoces e, por isto mesmo, imprecisas” (1978: 165). A categoria de classe social particulariza a tese geral do
nosso texto: os universos ontológicos de Marx e Weber não são passíveis de união.
124
retratou a abstrata empiria. É conveniente ao próprio capital que assim se faça. Pela mesma
razão o sociólogo avisa que, no compêndio que produzia acerca dos conceitos econômicos,
“conseguimos evitar completamente, em nossa terminologia, o discutido conceito de
‘valor’” (Weber, idem: 37). Como se fosse possível capturar as determinações das relações
capitalistas ou de qualquer formação sócio-histórica evitando-se discutir a geração de
riquezas, a produção de valores. Ao desviar-se da produção de valores, Weber o poderia
senão se circunscrever à superfície da dança das moscas. São tantas superficialidades em
Economia e sociedade que, à certa altura, Weber confessa honestamente: “essas obviedades
dispensam comentário” (idem: 89).
Ainda se tem o que dissertar acerca da tabulação rasa de Weber. O ato de ater-se à
dança das moscas está prenhe de implicações para a sociologia compreensiva. O
conhecimento tabulador da conceitualização de Weber é uma conseqüência da
fragmentação impingida por ele ao real. Fragmenta-se e isola-se um aspecto unilateral do
objeto, como o status nas guerras imperialistas e a mobilidade de mercado nas classes
sociais. É um outro lado da autonomia absoluta dada aos objetos que vimos acima com a
música. Na acepção weberiana, “uma realização verdadeiramente definitiva e boa é, hoje,
sempre uma realização especializada” (Weber, 1979: 160). Especializa-se em objetos
autônomos. Especializado no fragmento das ciências da cultura, Weber tratou do status das
guerras imperialistas; o economista que cuide das causas e efeitos relativos ao fragmento da
economia; o mesmo se recomendaria a historiadores, filósofos, cientistas políticos, etc.,
cada um com o seu respectivo fragmento.
O relativismo formalista continua a ressoar. A perspectiva da totalidade é
categoricamente apartada e, em seu lugar, põe-se o que Lukács denominou de
especialização mesquinha
25
. Aliás, é a obra de Weber que serve de exemplo com que
Lukács procura exemplificar a “mesquinhez” da especialização das ciências vulgares:
Isto [a especialização mesquinha] pode ser visto claramente através do exemplo
de um sábio de nosso tempo, o qual, mesmo sendo um cientista escrupuloso,
dispunha de um vasto e multiforme saber e, não obstante, jamais superou uma
especialização estreita: refiro-me a Max Weber. Weber era economista, sociólogo,
25
A expressão “especialização mesquinha” é do ensaio Marx e o problema da decadência ideológica da
burguesia: “a especialização mesquinha tornou-se o método das ciências sociais” (Lukács, 1968a: 64). Na
Pequena ontologia, Lukács usa o termo “idiotismo especializado”: “pois que, todavia, o idiotismo
especializado que deriva [do parcelamento dos saberes]... facilita e favorece a subsunção das ciências
particulares à manipulação capitalista universal, esta tendência torna-se dominante propriamente na práxis
acadêmica oficial das ciências” (1990: 256).
125
historiador, filósofo e político. Em todos estes campos, tinha à sua disposição
profundos conhecimentos, muito superiores à média e, além disso, sentia-se à
vontade em todos os campos da arte e de sua história. Não obstante, inexiste nele
qualquer sombra de um verdadeiro universalismo (1968a: 64).
Lukács afirma que Weber envergonhava-se quando esquecia alguma data da
milenar história chinesa. Apesar de seu vasto conhecimento, Weber não transcendia as
determinações de classe, as lutas de seu tempo e o processo de decadência da ideologia
burguesa. Não há um traço de totalização em suas teses. Embora seja possível distinguir um
economista, um sociólogo, um historiador em Weber, não existe uma conexão entre essas
várias especializações. Relativizar a economia é também lhe outorgar uma autonomia
absoluta perante o social, o histórico, o cultural, etc. A economia seria um fragmento da
realidade autônomo dos demais fragmentos.
Daí, “Max Weber não podia realizar um verdadeiro universalismo, mas no
máximo a união pessoal de um grupo de especialistas estreitos em um só homem” (Lukács,
1968a: 67).
Pedro Monroy explica a caráter fragmentário da obra weberiana recorrendo à
idéia de que o fragmentário está posto na própria realidade; os “fragmentos” escritos por
Weber são respostas à fragmentação da vida cotidiana moderna. Embora, a nosso ver, a luta
contra o socialismo seja o seu fio norteador e lhe conceda um caráter sistemático, a obra de
Weber é formalmente fragmentada; são diversos temas expostos em dezenas de ensaios
produzidos para “satisfazer a demanda do dia”. “A fragmentação da produção weberiana
seria assim um reflexo do fragmentário do mundo que se situa frente a seus olhos”
(Monroy, 2004: 95). Entretanto, escapa às hipóteses de Monroy que o isolamento das
partes é um movimento necessário do pensamento burguês, ao passo que, em contrapartida,
a auto-afirmação do proletariado nas lutas de classes implique a adoção da perspectiva da
totalidade, a análise das relações sociais em seu conjunto. A própria idéia de uma
“sociologia” ou de qualquer outra ciência particular condiz com este processo de
insulamento no âmbito da teoria do que se encontra conexo na realidade. Em História e
consciência de classe, Lukács lembra que “toda categoria parcial isolada pode, de fato, ser
tratada e pensada (nesse isolamento) como se estivesse sempre presente durante toda a
evolução da sociedade humana” (2003: 78). O capital, isolado de suas determinações
126
históricas que o engendraram, pode ser tratado como se estivesse presente em toda a
evolução do ser social.
O isolamento dos complexos é significativo quando se aborda o que Weber
sustenta a respeito da permanência das realizações científicas no decorrer dos tempos. Para
não fazer nenhuma concessão à processualidade da história, à relação entre continuidade e
descontinuidade do movimento do real, Weber determina um prazo de validade para o
conhecimento. Diz que “na ciência, sabemos que as nossas realizações se tornarão
antiquadas em dez, vinte, cinqüenta anos... Toda ‘realização’ científica suscita novas
‘perguntas’: pede para ser ‘ultrapassada’ e superada” (Weber, 1979: 164). É óbvio, caso se
entenda que a ciência destina-se a satisfazer as demandas imediatas do dia, então as suas
realizações estariam fadadas a perecer quando terminarem afinal as tais demandas. Se nos
orientarmos por Weber, não saberíamos explicar porque se continua a ler Aristóteles. Por
que a Arte poética de Aristóteles não se tornou antiquada em dez, vinte, cinqüenta anos
depois de escrita? É certo que as categorias não são eternas fato muito bem delineado
por Marx em A miséria da filosofia. A metafísica aristotélica responde a circunstâncias
postas para o gênero humano na fase do modo de produção da Antiguidade grega. Porém,
não é verdade que se anula assim qualquer relação de continuidade entre as criações
científicas, de superação no sentido hegeliano (que sempre implica a conservação). Weber
considera que o pensamento científico seria feito de saltos de fragmentos em fragmentos:
dos conceitos-típicos de Kant salta-se para os de Nietzsche, e deste salta-se para os de
Simmel, etc; um substitui o outro. O caráter processual da história e das idéias que o
refletem não consta em Weber
26
.
Weber fragmenta a realidade, isola cada fragmento e procura compreender os
aspectos formais de sua legalidade relativa, autônoma perante as demais. Durkheim
fragmenta a realidade de um modo peculiar; defende que “a sociologia é uma ciência una,
[mas] ela não deixa de compreender uma pluralidade de questões e, por seguinte, de
ciências particulares” (Durkheim, 1975: 132). Repentinamente, o naturalismo de Durkheim
26
Em um nível mais alto de abstração, analisando na Pequena ontologia a continuidade e descontinuidade das
categorias no devir do gênero humano, Lukács escreveu algo que convém à discussão sobre a conexão entre
as várias etapas do pensamento social, a saber, “as duas categorias [continuidade e descontinuidade] estão em
permanente relação recíproca: não existe algum continuum que seja privado de momentos de descontinuidade
e nenhum momento de descontinuidade interrompe de maneira absoluta e total a continuidade” (1990: 139,
140). Marx inaugura uma nova etapa na história do pensamento social, sem que a descontinuidade que
representa seja privada de instantes de continuidade com Hegel, Ricardo, Fourier ou mesmo Aristóteles.
127
recebe elementos neokantianos. Apesar de indicar um ligeiro afastamento de Comte, não há
nenhuma contradição entre o parcelamento de inspiração neokantiana e o método do
positivismo clássico porque, segundo Durkheim, “está na própria natureza das ciências
positivas nunca elas ficarem terminadas. As realidades de que tratam são demasiado
complexas para alguma vez poderem ser esgotadas” (idem: 133). A acrescentar que “há, na
realidade, tantos ramos da sociologia e tantas ciências particulares quanto as diferentes
espécies de fatos sociais” (Durkheim, idem: 133). Do que se deduz que um fato social
como o suicídio pode ser isolado cientificamente ao modo de uma observação em
laboratório —, descrevem-se seus traços imediatos, explicam-se suas causas e, assim, faz-
se uma “sociologia do suicídio”.
De uma maneira geral, Durkheim subdivide os ramos da sociologia em
morfologia (uma espécie de geografia social) e fisiologia, sendo que esta última englobaria
a sociologia da religião, da moral, jurídica, econômica, lingüística e estética. Contudo, a
particularização do real não conduz Durkheim ao relativismo de Weber. Por trás de cada
“sociologia” existiria uma sociologia una e generalizante. “Por diferentes que as diversas
classes de fatos sociais sejam umas das outras, não passam de espécies do mesmo gênero”
(Durkheim, 1975: 137). Absolutamente todos os fatos sociais estão estruturados a partir da
moral coletiva, da consciência coletiva, que submete as particularidades dos fatos à sua
força coercitiva. Weber e Durkheim parcelam a realidade, mas o primeiro concede
autonomia àquilo que o segundo sujeita à coação das estruturas superiores da moral.
Na pesquisa empírica que fez sobre as condições dos trabalhadores das indústrias
alemãs, Weber descarta a explicação do comportamento da classe operária a partir dos
conceitos positivistas: “o abuso cometido com freqüência entre os sociólogos ao dividir
todos os fatores determinantes (hipotéticos) das capacidades concretas de um indivíduo
simplesmente entre ‘disposições naturais’ e ‘meio social’ é muito pouco útil para avançar
neste trabalho” (1999b: 227). Este é um extrato de uma pesquisa pouco conhecida entre
nós, intitulada Sociologia do trabalho industrial na edição espanhola e, no original alemão,
Psicofísica do trabalho industrial. Este estudo foi feito por Weber para provar
metodologicamente que as disposições naturais e o meio social são pouco úteis no instante
em que se interpreta o comportamento do homem cotidiano. Provavelmente, Durkheim
teria adotado como ponto de partida para entender o comportamento dos trabalhadores
128
alemães a coação moral da consciência coletiva que os fizesse exercer suas funções
solidariamente.
O parcelamento do real em Durkheim é realmente de outra modalidade, pois o
sociólogo enquadra as ciências sociais dentro do panorama geral das ciências da natureza.
De todos os reinos da natureza, a sociologia cuida do reino especificamente social. O
relativismo de Weber impede-o de chegar a tal ponto. A mencionada influência de Kant
na sociologia alemã fez com que os seguidores do positivismo clássico fossem figuras
menos escassas do que na França de Comte.
Um dos autores alemães que seguiram rente a Comte foi alvo de críticas de
Weber. Autor de Teorias energéticas nas ciências culturais, Wilhelm Ostwald obteve
recepção pouco calorosa por parte do nosso sociólogo. Weber qualifica certos trechos da
obra como as “piores coisas escritas por Ostwald”. O importante da crítica weberiana é a
rejeição das generalizações positivistas; reprova em Ostwald a crença na hierarquia das
ciências promovida por Comte, de acordo com a qual os conceitos da ciência da natureza
“que se encontram nos degraus inferiores da pirâmide pertenceriam às disciplinas ‘mais
gerais’ e teriam validade para os que se encontram em degraus mais elevados, isto é, para
as disciplinas ‘menos gerais’, e, portanto, deveriam ser ‘fundamentais’ para estas últimas”
(Weber, 1999a: 301). Os conceitos das disciplinas gerais e abstratas (a astronomia, por
exemplo) valeriam para as disciplinas específicas e concretas (a economia, entre outras).
Weber nega a autenticidade desta fórmula: “para a economia política é totalmente
insignificante se, por exemplo, a astronomia aceitou o sistema copernicano ou o de
Ptolomeu” (idem: 301).
No lugar das generalizações abusivas do positivismo clássico, Weber coloca a
deliberada fragmentação das disciplinas. A crítica neokantiana ao método positivista não
caminha em direção à preservação de categorias que dizem respeito à especificidade da
práxis social (teleologia e liberdade, a princípio); não é senão a defesa da epistemologia das
ciências do espírito. Não se efetua a distinção ontológica entre o ser social e o ser natural; é
separação lógica entre a metodologia peculiar às ciências da natureza e a das ciências do
espírito. Em suma, o problema não é ontológico; é metodológico.
3.2.2. A história entre o relativismo e a objetividade possível
129
As contradições do método compreensivo ganham novas cores quando
observamos que a queda de Weber no relativismo não é tão vertiginosa, como o é em
Simmel. Mészáros defende que em Weber haveria uma “relativização total” dos valores
27
,
mas não é isso que demonstra uma leitura acurada dos textos do sociólogo alemão,
especialmente os direcionados para a metodologia das ciências históricas. Pressentindo que
a relativização total dos valores ameaçaria a cientificidade de suas propostas, Weber recua.
Quem sabe o sociólogo não concordasse com Schaff quando este diz que “o relativismo
ameaça a existência da própria ciência, porque, sem o conhecimento objetivo
intersubjetivo, que é a negação do relativismo, qualquer ciência é impossível” (1983: 190).
Concordando ou não com Schaff, Weber tentou preencher as lacunas deixadas pela integral
relativização dos valores.
Em sua tentativa de salvaguarda, o conceito de possibilidade objetiva desempenha
um papel decisivo. Específico para a construção de “individualidades históricas”, o
conceito resume-se no seguinte: na seleção dos eventos que perfazem uma determinada
época estudada, “à história interessa exclusivamente a explicação causal daqueles
‘elementos’ e ‘aspectos’ do respectivo acontecimento que, sob determinados pontos de
vista, adquirem uma ‘significação geral’ e por causa disso, um interesse histórico” (Weber,
1999a: 197). Não interessa ao historiador as “particularidades ‘absolutamente’ triviais” que
envolvem o acontecimento; se, por exemplo, a punhalada em César causou a sua morte por
determinados problemas fisiológicos e não outros. O essencial, de fato, são as
circunstâncias que produziram “’conseqüências’ importantes para o curso da ‘História
Mundial’” (Weber, idem: 197).
O conceito de “individualidade histórica” é completamente inspirado em Rickert.
Ringer explica os aspectos essenciais do conceito em Rickert:
Assim o “indivíduo” histórico é um construto, não uma pessoa, coletividade ou
objeto concreto, embora os termos gerais empregados para representá-lo ressaltem
suas qualidades peculiares e não aqueles traços que conduzem à generalização. A
única maneira de conceber um “indivíduo histórico”, no entender de Rickert, é
afirmar, de um modo necessariamente avaliativo, a significação cultural da
pessoa, objeto ou acontecimento singular. (Os historiadores alemães
contemporâneos estão interessados no fato de Frederico Guilherme IV ter
recusado a coroa a ele oferecida pelo Parlamento de Frankfurt; não querem saber
quem lhe confeccionava os casacos.) (2004: 48).
27
Mészáros denomina o todo weberiano de “glorificação do relativismo e da arbitrariedade subjetiva”
(2004: 212).
130
Para a concepção de uma individualidade histórica, não é importante saber quem
confeccionava os casacos de Guilherme IV. A correta avaliação do historiador deveria
necessariamente concluir que os casacos do imperador não possuem significado cultural
para o devir dos eventos. Os fatores que detêm significado não concernem às trivialidades;
são os que produziram conseqüências importantes para o curso da História Mundial, relatou
Weber acima.
Rickert alegava que “todo o mundo deve admitir que a história não recorre a todo
individual, senão unicamente ao ‘importante’, o ‘interessante’, em síntese, o essencial em
sua representação” (1961: 68). Não é todo o dado singular que interessa à história; é
exclusivamente o essencial. Ao pesquisador da história não “interessa a maioria dos efeitos,
senão unicamente os efeitos ‘essenciais’ que são representados por ele. Portanto, o histórico
não é o que produz efeitos em geral, senão aquele que produz efeitos essenciais e que
por causa dele se torna essencial em si mesmo” (Rickert, idem: 69).
Em seus contornos gerais, não distinção entre o que Weber e Rickert dizem a
respeito da individualidade histórica. Aliás, os Estudos críticos sobre a lógica das ciências
da cultura de Weber e a Introdução aos problemas da filosofa da história de Rickert
partem de críticas a Eduard Meyer e à ausência neste autor da categorização dos fenômenos
historicamente relevantes. A única e crucial diferença está nos critérios para a seleção dos
eventos, para qualificar a significação cultural dos fenômenos que compõem uma
individualidade. Para Rickert, o construto deve respaldar-se nos valores coletivamente
compartilhados; a seleção dos eventos é feita sob a ótica dos valores legitimados pela
cultura. Para livrar-se da arbitrariedade” ou do “relativismo niilista”, segundo Rickert,
restaria ao historiador “dividir a realidade individual em elementos essenciais e não
essenciais unicamente mediante a referência a valores gerais, é dizer, a valores tais como se
materializaram nos exemplos mencionados do Estado, da arte, da religião, etc.” (1961:
71). O objeto histórico o é arbitrário; é o que está sob a referência dos valores que se
compreendem por todos, “a história refere seus objetos somente àqueles valores que valem
como tais para todos a quem se dirige, ou que, pelo menos, são compreendidos por todos
como valores” (Rickert, idem: 72).
131
Caso ainda persista algo de obscuro a propósito da matéria, Rickert entende que
conseguiu a exata definição dos princípios em que radica da lógica da história com estas
palavras:
O material próprio da ciência histórica, que por sua essência é vida cultural plena
de sentido, deve ser representado em forma individualizadora, de tal maneira que
os mesmos valores gerais que lhe outorgam sentido histórico, também
determinam a seleção dos elementos essenciais na conceitualização (1961: 82).
Assim, em Rickert não o conceito de possibilidade objetiva” (que Weber
extrai de Kries); em categorias marxistas, a seleção dos eventos orienta-se pelo projeto
cultural que obtiver hegemonia em determinado contexto histórico. É evidente que Rickert
não põe esta “generalização de valores” como resultado das batalhas das idéias entre
intelectuais orgânicos de classes antagônicas; segundo ele, certos valores adquirem
validade coletiva por meio da concordância intersubjetiva dos atores; são “universalmente
reconhecidos e aceitos” (Rickert, 1961: 71). Para A teoria da definição, a determinação de
um conceito filosófico “gera-se na luta pela verdade através do diálogo” (Rickert, 1960:
33). A verdade objetiva resulta do diálogo; por meio do entendimento, chega-se a um
consenso a propósito de quais seriam os conceitos com legitimidade cultural. Se uma
categoria como “luta de classes” não obtiver significação cultural mediante a concordância
intersubjetiva, o filósofo que a utilizar não estará sendo objetivo; lançar mão da categoria
seria uma arbitrariedade. Prontamente se percebe uma forte contradição na metodologia de
Rickert: o conceito “casacos do imperador” poderia adquirir significação cultural caso o
diálogo dos que constroem a verdade consensual se direcionasse neste sentido. Obtendo
respaldo nos valores coletivamente experimentados, a confecção dos casacos deixaria de
ser trivialidade. Rickert quer esquivar-se da queda no “obscurantismo relativista” e procura
qualquer nesga de certeza para não fazer a menor referência à objetividade concreta.
Rickert colocou seu método em prática com bastante perícia. A interpretação da
história que promove é efetivamente legatária dos valores generalizados em meio à cultura
burguesa imperialista. Para Rickert, são os grandes homens que produzem a história; faz
questão de descartar o “culto ao herói”, mas não se abstém de imputar as forças motrizes da
história aos “indivíduos por excelência”. Seu método não permitiria que se falasse em
movimento das classes sociais a protagonizar os processos históricos; à época, estas não
eram categorias legitimadas pelos diálogos em busca da verdade”. No período vivido por
132
Rickert, a defesa aristocrática da genialidade estava praticamente generalizada nos círculos
da inteligência burguesa. Por isso, o filósofo não foi senão metodologicamente coerente ao
sustentar que a história é feita pelas personalidades.
Atualmente, Habermas recupera a noção de generalização de valores de Rickert,
mas o faz à sua maneira, respondendo às questões postas pelo seu tempo particular. O autor
de Teoria da ão comunicativa é um ideólogo do Estado burguês de bem-estar social,
momento histórico que parecia a alguns que o capital havia resolvido as suas contradições
dentro de seus próprios limites.
Desde a última quarta parte do século XIX, nos países capitalistas mais
avançados, duas tendências de desenvolvimento podem ser notadas: (1) um
acréscimo da atividade intervencionista do Estado, que deve garantir a
estabilidade do sistema, e (2) uma crescente interdependência entre pesquisa e a
técnica que transformou a ciência na principal força produtiva. Ambas as
tendências perturbam aquela constelação do quadro institucional e dos
subsistemas do agir racional com respeito a fins, pela qual se caracterizava o
capitalismo desenvolvido dentro do liberalismo. Com isso, caem por terra
relevantes condições de aplicação da economia política, na formulação que, tendo
em vista o capitalismo liberal, Marx lhe deu justo título (Habermas, 1983: 327,
328).
Nesse contexto (que o próprio filósofo restringe aos países de capitalismo
avançado), a idéia de lutas de classes não seria mais válida: “o capitalismo regulado pelo
Estado, surgido a título de reação contra as ameaças ao sistema, geradas pelo antagonismo
aberto entre as classes, vem apaziguar o conflito de classes” (Habermas, 1983: 333).
Habermas acreditava que a regulação estatal viria a resolver (ou pelo menos apaziguar) as
divisões entre classes da sociedade burguesa. Daí a ineficiência que o filósofo imputa à
distinção entre ideologias classistas: os interesses de classe foram apaziguados; agora
passam a vigorar interesses que se estendem “tanto à manutenção de uma intersubjetividade
de compreensão mútua como à produção de uma comunicação livre de dominação” (1983:
337).
A apologia declarada ao Estado de bem-estar social conduz Habermas a negar a
validez das categorias de Marx; ideologia, luta de classes, exploração são categorias
inadequadas para se entender a nova circunstância. Substituem-se tais categorias pela
“compreensão mútua”, pela “comunicação livre de dominação”.
133
A sua teoria da ação comunicativa é um reflexo desse contexto histórico. Com ela,
Habermas renova o mito do consenso harmônico que vimos em Rickert. A nesga de
certeza que Rickert buscava na relação intersubjetiva é atualizada por Habermas, porém,
dessa vez, representando o Estado burguês de seguridade social. O conceito de “razão
comunicativa” compreende uma “razão imanente ao uso da linguagem quando este uso
endereça-se ao entendimento” (Habermas, 2003a: 563). O mito do consenso também na
versão dada pela teoria da ação comunicativa atribui ao entendimento intersubjetivo a tarefa
de respaldar as teses científicas; conforme o vocabulário que Habermas subtrai de Parsons,
o ego convence o alter da legitimidade de seu discurso.
Mesmo se analisada em sua lógica interna, isto é, deixando de lado a sua função
ideológica, a teoria da ação comunicativa não carece de boas inconsistências. A dubiedade
da postura de Habermas é a sua avaliação acerca da constituição de paradigmas no âmbito
das ciências sociais. Em curta nota de página, o filósofo elabora a esse respeito uma
comparação entre natureza e sociedade que não deve passar despercebida: “não entro aqui
na problemática do conceito de paradigma introduzido por Kuhn para as ciências da
natureza, conceito que pode aplicar-se com certas reservas às ciências sociais” (2003:
157). Nessas duas linhas, Habermas com reservas a transposição do conceito de
paradigma para as ciências da sociedade. No entanto, todo o cerne da teoria da ação
comunicativa baseia-se exatamente na possibilidade de construção de paradigmas. A
generalização valorativa não é outra coisa senão a constituição de um paradigma
consensual mediante o diálogo. Assim era em Rickert e continuou a ser em Habermas. As
sábias reservas que Habermas assume naquela pequena nota de página o valem para
totalidade de seu vultoso livro.
Adorno foi mordaz ao tratar das bases metodológicas da teoria que pressupõe a
generalização valorativa:
A confiança em que posições muito divergentes se conciliem graças às regras
reconhecidas da cooperação, adquirindo assim o maior grau de objetividade
possível do conhecimento, concorda inteiramente com o antiquado modelo liberal
daqueles que se reúnem numa mesa redonda a negociar um compromisso (1983:
230).
É bastante sugestivo o paralelo traçado por Adorno; o uso do entendimento
intersubjetivo como discernimento da objetividade da ciência possui ares de um
134
compromisso entre executivos à mesa redonda, que lavam as mãos quanto às contradições
da realidade social.
Volta-se a Weber. A bem dizer, pouco do que foi visto com Rickert ou Habermas
faz parte do repertório conceitual de Weber; a noção de uma generalização de valores passa
ao largo de seus pressupostos metodológicos
28
. Sabemos que, na apropriação que faz do
conceito de “individualidade histórica” de Rickert, Weber deixa de lado o critério por ele
estipulado para mensurar a significação cultural de um evento. No lugar do mito do
consenso harmônico, Weber põe o conceito de “possibilidade objetiva” já esboçado por nós
há alguns parágrafos.
O conceito leva o sociólogo de Heidelberg a mares nunca dantes navegados. A
partir dele, Weber é obrigado pela primeira vez a distinguir objetivamente o essencial do
trivial. Então, existem eventos que determinaram substancialmente o curso da história
mundial, a despeito da opinião do observador. Há eventos que são meras particularidades
triviais e outros que alteram o rumo da história universal. Pode-se optar por estudar um
fragmento qualquer da história, mas neste fragmento haverá aspectos universais e outros
particulares. No estudo do imperialismo alemão, a confecção dos casacos imperiais será
sempre trivial, não importa o diálogo dos executivos sentados à mesa. De súbito, uma certa
e possível objetividade é introduzida como critério de autenticidade dos indivíduos
históricos e, por esta razão, o relativismo de Weber não é tão desintegrador. A possibilidade
objetiva não transforma a sociologia compreensiva em uma ontologia do ser social; porém,
faz com que ela não desemboque na “mística niilista da decadência imperialista”, como
Lukács sustenta que ocorreu com Simmel.
Para esclarecer o tema, uma provável escrita da biografia de Goethe é a principal
das ilustrações usadas por Weber. Sem o correto exame acerca dos fatores relevantes,
poderia concluir-se que deveriam ser arrolados absolutamente todos os detalhes da vida do
poeta, ínfimos ou eloqüentes. Tal hipótese Weber estima ser “obviamente errônea” (1999a:
174). Os detalhes ínfimos não prestam à história. A biografia de Goethe deve conter “uma
coleção de materiais que tem por objetivo conservar tudo o que eventualmente possa ter
28
Weber e Rickert instituem a construção histórica a partir de valores, “porém, em realidade, Max Weber
queria dizer uma coisa totalmente diferente de Rickert. Não compartilhava de sua neokantiana em um
sistema de valores culturais objetivos senão que a ela opunha o caráter decisório valorativo de corte
nietzscheano segundo o qual os valores culturais, que eram elevados à categoria de pontos de vista diretores
de toda consideração histórica, deviam sua validade exclusivamente à decisão subjetiva da personalidade”
(Mommsen, 1981: 124).
135
significado para a história de Goethe” (Weber, idem: 174). Conseqüentemente, “está claro
que numa biografia de Goethe apenas deveriam entrar elementos da exposição aqueles fatos
que têm certo significado” (Weber, idem: 174, 175).
São históricos os fatos que se integram em um “elo causal”, uma série encadeada
de causa e efeito. A confecção de casacos de Guilherme IV o produziu nenhuma
conseqüência relevante, não ocupa nenhuma posição de importância enquanto elo causal
que liga um dado universalmente histórico a outro, não é a causa de qualquer efeito crucial
para o curso dos fenômenos em larga escala. “O contrário seria certo somente no caso em
que esta confecção concreta tivesse produzido determinados efeitos históricos...,
‘causalmente significativos’ para a transformação da moda ou da organização industrial”
(Weber, 1999a: 173).
Weber define que uma ocasião “é irrelevante não quando falta toda e qualquer
relação com o acontecimento a ser esclarecido..., mas também quando, in concreto, os
elementos essenciais e os que essencialmente interessam naquele processo, de maneira
nenhuma parecem tê-la causado” (1999a: 198).
A melhor exposição da lógica do juízo de possibilidade objetiva é este trecho dos
Estudos críticos sobre a lógica das ciências da cultura:
O juízo de que, se pensamos um fato histórico singular como inexistente ou como
modificado dentro do complexo das condições históricas, este fato tivesse
provocado um curso diferente dos acontecimentos históricos, com referência a
determinadas relações históricas importantes, parece revestir-se de considerável
valor para o estabelecimento da “significação histórica” daquele fato (Weber,
1999a: 194).
Bismarck declarou guerra a Áustria em 1866. Se a sua decisão tivesse sido oposta,
a guerra teria acontecido? Se a réplica a esta pergunta for negativa, então o acontecimento
singular da decisão de Bismarck adquire importância dentro do elo causal que resultou na
guerra. Para o efeito “guerra”, a decisão do chanceler de ferro deveria ser julgada enquanto
uma das possíveis “causas adequadas”. Com esta concepção “lógica”, Weber exclui por
completo qualquer movimento histórico necessário: “de modo nenhum é ocioso perguntar
pelo que poderia ter acontecido se Bismarck, por exemplo, não tivesse tomado a decisão de
declarar a guerra” (Weber, 1999a: 193). As decisões das personalidades ganham destaque
frente às determinações históricas. As metáforas de Hans Freyer não seriam proscritas por
136
Weber: para fazer história, é preciso encontrar-se num lugar que seja historicamente
relevante, ou então abrir caminho até lá. Somente a partir da ponte de comando é que se
torna possível manobrar um navio, e os amotinados é que têm que cuidar de ocupá-la”
(Freyer, 1965: 57). O fazer histórico é circunscrito aos que estão na ponte de comando do
navio. O devir é o produto das deliberações arbitrárias dos líderes, sejam sar, Lutero ou
Bismarck. Não é gratuito que Weber acuse o historiador Eduard Meyer de supervalorizar a
função das “pessoas mais insignificantes” (cf. Weber, idem: 171).
Outros bons problemas nascem quando o nosso autor expõe o método pelo qual se
deve balizar a caracterização do substancial. Pode-se inferir que não seja a práxis social
este balizamento. De acordo com Weber, a mensuração do relevante e do trivial se dará a
partir das “fontes de conhecimento” do observador. Um historiador estará mais apto a
distinguir os eventos que determinam um episódio histórico quanto mais tiver acumulado
conhecimentos a propósito do assunto estudado, tanto no que diz respeito às “regras da
experiência” quanto aos dados factuais. Conhecendo as “regras da experiência”, isto é,
como os homens costumam reagir em determinada situação, e as fontes de conhecimento,
os elementos empíricos, o historiador poderá compreender se os resultados seriam os
mesmos caso um dado particular fosse retirado da explicação causal de uma
individualidade histórica
29
. As fontes acumuladas demonstrariam se foi essencial ou trivial
o papel exercido pelo assassinato do arquiduque sérvio Ferdinando no estopim da primeira
guerra mundial. Contudo, Weber não se indaga se as fontes do historiador estão bem
fundadas quanto ao seu próprio juízo de possibilidade objetiva; calcula que as fontes do
nosso conhecimento estejam corretas, as quais concederiam assim um legítimo suporte ao
construto lógico que se pretende produzir. E, em seu turno, essas fontes deveriam basear-se
em outras fontes cuja correção também está dada como pressuposto por Weber. Sem
perceber, Weber criou um efeito dominó em que um juízo de possibilidade objetiva
depende do outro ao infinito.
O relevo que Weber atribuía às fontes de conhecimento era tanto que termina por
condicionar o sucesso de uma individualidade histórica à suficiência do material à
29
O saber em que se baseia um juízo de possibilidade objetiva é “o conhecimento de determinados fatos que
pertencem à situação histórica em questão e que são demonstráveis com referência às ‘fontes’ (saber
‘ontológico’) e, por outro lado, como vimos, conhecimento de determinadas regras do conhecimento
empírico, particularmente referentes à maneira como os homens habitualmente costumam reagir frente a
determinadas situações dadas (saber ‘nomológico’)” (Weber, 1999a: 200).
137
disposição; isto é, a imputação sempre tem como finalidade ser “‘objetivamente’ válida” e
“somente a insuficiência do material decide sobre a questão, a qual não é uma questão
lógica mas fática, se ela alcança o seu fim, de maneira totalmente idêntica como acontece
com qualquer explicação de um processo natural” (Weber, 1999a: 189). A construção da
ciência histórica pretende a validade objetiva idêntica às explicações de processos naturais;
o que decidirá a este respeito é o grau de abrangência do material reunido a propósito do
tema estudado.
Não como não observar um beco sem saída: para fugir ao primado ontológico
da objetividade frente ao conhecimento histórico, Weber obrigou-se a desembocar no
relativismo e, para que não decorresse daí a própria impossibilidade da ciência histórica, o
sociólogo tentou voltar a uma espécie de objetividade possível, sem que tenha feito este
trajeto de forma tortuosa. O indivíduo histórico é a lógica que se macula com um pouco de
realidade. O conceito de possibilidade objetiva é a tentativa fracassada de harmonizar o
subjetivismo agnóstico com um mínimo de objetividade.
Portanto, o construto da individualidade histórica não é a adequação veraz ao
objeto. Esta adequação é impossível em Weber. A individualidade histórica surge de uma
ponderação subjetiva; é a imputação causal subjetiva de acordo com as possibilidades
verificadas segundo as regras de experiência e as fontes de conhecimento. O relativismo
permanece, porém suavizado. Considerada uma individualidade histórica, a teoria marxista
sobre o advento do capitalismo seria possível de se construir; a de Weber, também.
Nenhuma das duas referiu-se a trivialidades. Seriam individualidades históricas
construídas a partir de corretos juízos de possibilidade objetiva, cada uma à sua maneira
compreendo o essencial em meio à gama infinita de possibilidades para o curso causal.
Ambas teriam imputado causalidades que se verificariam conforme as regras de
experiência, segundo informam as fontes de conhecimento. Porém, uma questão está
provisoriamente sem resposta. O capital foi uma das fontes de conhecimento de Weber, o
que se confirma pela presença dos três volumes da obra de Marx na bibliografia de suas
aulas sobre a história econômica. Vimos que, ao construir uma hipótese da “disciplina
histórica”, o juízo de possibilidade objetiva de Weber privilegia as decisões das
personalidades como fator efetivo para o curso da História Mundial. Infere-se então que O
capital não foi uma fonte de conhecimento valiosa o suficiente para que Weber se
138
convencesse de que o mando decisório dos “gênios” é um aspecto abstrato perante as
determinações concretas da economia burguesa; ou que Weber considerou o juízo de
possibilidade objetiva de Marx inapropriado às regras de experiência.
O fato é que Weber presumia que o historiador fosse livre para escolher os valores
que orientam a sua pesquisa e as fontes que pretende usar: “o historiador tem plena
liberdade na seleção dos valores que o conduzem, e, somente depois, na seleção das fontes
e na articulação da explicação do respectivo ‘indivíduo histórico’ (sempre no sentido lógico
do termo)” (1999a: 93). Entendam que a possibilidade objetiva não apaga o relativismo da
sociologia compreensiva. Weber libertou-se da necessidade de escolher O capital como
fonte de conhecimento histórico; construiu os “indivíduos históricos” orientando-se pelos
valores e fontes escolhidos a dedo. Somos livres para optar entre o estudo de César ou de
Guilherme IV, a partir das fontes selecionadas a nosso bel-prazer. Sobre o imperialismo,
por exemplo, Marx seria uma fonte tão “elegível” quanto Treitschke. Depois de feita a
escolha, seria dever do historiador imputar uma conexão lógica baseando-se no correto
juízo de possibilidade objetiva; aqui teríamos o condicionamento histórico face ao arbítrio
do sujeito da ciência. A escolha é então limitada; não se pode jamais optar pelas
trivialidades. Dado este passo necessário, o pesquisador estaria novamente livre para
escolher se acrescenta ou não as trivialidades à individualidade construída: “em certo
sentido, o historiador é ‘livre’ apenas na elaboração e inclusão ou não daquilo que é
‘ocasional’ e ‘fortuito’” (Weber, idem: 93). Os eventos ocasionais são desnecessários aos
indivíduos históricos, mas se é livre para adornar a paisagem com excesso de tinta. É
opinião de Weber que o acréscimo de elementos fortuitos consistiria em mera composição
“estética”, uma vez que são efetivamente dispensáveis à lógica histórica.
A possibilidade objetiva é constitutiva das ciências da história. Quando o tema é a
cultura, Weber não estipula qualquer critério externo ao sujeito. Mesmo no tocante às
ciências da cultura, a idéia do consenso de valores não agrada a Weber: “a conjetura de von
Schmoller, a saber, que existe uma crescente unanimidade de todas as confissões e de todos
os homens sobre os pontos principais das avaliações práticas, está em franca oposição com
o meu ponto de vista
30
(1999a: 370). Sequer a pretensa objetividade do consenso de
30
Na citação, Weber refere-se à proposta do economista Gustav von Schmoller de que com o progresso da
pesquisa metodológica, da observação e de uma explicação causal mais completas, “os erros diminuem e nós
nos aproximamos pouco a pouco da verdade indiscutível, reconhecida por todos”. Esta idéia que Schmoller
entende ser “incontestável” está no seu ensaio Teorias variáveis e verdades estáveis no domínio das ciências
139
valores de Rickert é considerada por Weber, o qual não poderia ser mais cristalino sobre a
matéria: “a função da ciência é, a nosso ver, exatamente a contrária: transformar em
problema o que é evidente por convenção” (idem: 370). A convenção estabelecida em torno
de paradigmas é motivo de questionamento por parte das ciências da cultura, na acepção de
Weber. Nos textos metodológicos, Weber repetiu-se inúmeros instantes acerca da
existência de um politeísmo de valores irresoluto em si mesmo: “no que diz respeito aos
valores..., definitivamente, não se trata de alternativas, mas de uma luta de vida e morte
irreconciliável entre ‘Deus’ e o ‘Demônio’. Entre eles não é possível uma relativização e
transições nenhumas” (idem: 374). Não existe o consenso intersubjetivo da ação
comunicativa entre Deus e demônio.
Desse modo, o objetivamente relevante na história; é fundamental saber qual
entre os deuses e demônios foi o determinante na causalidade de certa individualidade
histórica; não se opta por esta divindade chamada “confecção dos casacos” ao se construir o
conceito de imperialismo. Na consideração da cultura, eleições terminantemente
fortuitas; é uma luta de vida e morte entre deuses e demônios, sem diálogo e sem
transições. Essas gritantes contradições nunca perturbaram Weber porque ele fazia a rígida
e fantasiosa separação entre ciências históricas e ciências culturais. Esta separação é um
pouco nebulosa em Roscher e Knies e os problemas lógicos de economia política histórica
e bastante clara em Estudos críticos sobre a lógica das ciências da cultura; a possibilidade
objetiva ingressa apenas no procedimento metodológico da história, ao passo que, para as
ciências da cultura, continua valendo a absoluta arbitrariedade nas escolhas irreconciliáveis
a serem feitas pelo sujeito do conhecimento.
A despeito das insolúveis contradições que traz a Weber, o conceito de
possibilidade objetiva implica um certo triunfo da objetividade diante do relativismo
extremo de vários historiadores e filósofos da história. Ao menos, há um critério externo ao
sujeito, ainda que encontrá-lo em fontes de conhecimento e regras de experiência.
Lembrem-se de que um personagem que ainda não apareceu nestas linhas sustentou
peremptoriamente: “nossa história é a história de nossa alma; e a história de nossa alma
humana é a história do mundo” (Croce, 1962: 100). Para Benedetto Croce, não haveria
nada corrente fora do espírito, sequer uma história. Não é preciso ser um materialista para
sociais e da economia política alemã atual, de 1897.
140
reconhecer a mistificação aqui envolvida. Mesmo a partir do positivismo neokantiano de
Weber é possível de se compor uma crítica às idéias do filósofo italiano. O juízo de
possibilidade objetiva implica precisamente a valoração do sujeito dirigida aos fatos
relevantes para o decurso da História Mundial (em letras maiúsculas, prefere Weber). A
individualidade histórica não deixa de ser uma ponderação valorativa; porém, ela pressupõe
um objeto histórico para além das experiências subjetivas. Existe então uma História
Mundial que transcorre fora das consciências. Pode-se deduzir das palavras de Weber que,
a despeito de sua coerência interna, um construto lógico que relate as implicações
fisiológicas da punhalada em César não servirá à História Mundial, tampouco os relatos
sobre a confecção das vestes de Frederico Guilherme IV.
Era opinião de Croce que um fato pertence à história apenas quando pertence à
consciência humana e como, segundo o filósofo, não existe nada fora do pensamento, não
faz sentido a distinção entre o que é ou não histórico (cf. Schaff, 1983: 110). Um marxista
resolveria a questão dizendo que este se trata de um problema puramente escolástico
porque não existem acontecimentos que estejam à parte da história, sejam essenciais ou
fenomênicos. Tudo o que ocorre na natureza e na sociedade é inevitavelmente histórico.
Em seu lugar, Weber reprovaria Croce argumentando que se um acontecimento não es
dentro de um elo causal determinado, não é histórico. É histórico o que representa, de um
lado, o efeito lógico de uma causa e, de outro lado, a causa de um efeito logicamente
posterior. Além do mais, são objetos da crítica de Weber o relativismo psicológico de
Croce e a sua afirmação de que o meio para se reproduzir a história passada são as
“intuições artísticas” (cf. Weber, 1999a: 80, 81).
Esta objetividade possível das individualidades históricas é a única referência à
realidade no que toca a validade de determinada hipótese científica. É uma referência parca,
certamente. Quando falou em objetividade, Weber a qualificou de “possível” para que não
existissem dúvidas a respeito de sua natureza lógica, ideal, conceitual. Não se deve
confundi-la com a práxis sócio-histórica. Quanto a isso, não diversidade entre o que se
diz sobre a história, a cultura ou qualquer outra disciplina. No conjunto global dos escritos
metodológicos de Weber, a prática é sempre motivo de aversão. Não haveria erro maior do
que a confusão entre duas noções distintas: a possibilidade objetiva e o movimento real do
objeto histórico. O juízo de possibilidade objetiva não é a abstração do ser histórico e
141
Weber jamais pretendeu que o fosse. O nosso sociólogo sairia do confortável âmbito lógico
se procurasse o desenvolvimento necessário das relações históricas. A possibilidade
objetiva não sugere uma completa saída das fronteiras da lógica; apenas, como já dissemos,
é um construto ideal maculado com o mínimo aceitável de realidade.
3.2.3. O estatuto da verdade na ciência social.
A possibilidade objetiva é o mote interessante para que retornemos ao debate
entre ciência e política, uma vez que tenha ficado manifesto que o conceito não diz respeito
à verdade da práxis histórica. Partindo do debate centrado nas individualidades históricas,
podemos generalizar a problemática: é intenção de Weber que não se procure a
“prescrição” de normas nos seus escritos, sejam eles sobre a lógica da história, da cultura,
da economia, etc. Deixamos de lado o estrito terreno da “disciplina histórica” para
generalizar a problemática que foi objeto de nossa tese ao tratarmos de outros autores,
isto é, a relação entre a verdade oferecida pela ciência social e o estatuto da neutralidade na
construção do tipo ideal.
Weber aparenta não se preocupar com a prática porquejamais pode ser tarefa de
uma ciência empírica proporcionar normas e ideais obrigatórios, dos quais se possa derivar
‘receitas’ para a prática” (Weber, 1999a: 109). Ainda que sobejem receitas políticas em
seus livros, Weber não quer ser levado à união da teoria à práxis, o que culminaria em uma
espécie de dialética. Digna do positivismo domesticado, esta é a rígida dicotomia entre o
ser e o dever ser que caracteriza o nascimento da sociologia. A resposta conservadora ao
surgimento da teoria marxiana possui como um de seus momentos a simplista equalização
de Marx à ideologia anticientífica. Para Durkheim, a questão era muito mais fácil do que
para Weber; segundo o francês, o marxismo não era ciência senão o grito dos oprimidos;
segundo Weber, no entanto, Marx elevou as idéias socialistas à condição de ciência, apesar
do caráter normativo de sua teoria. Significa que, na leitura de Weber, Marx comportaria
elementos científicos e anticientíficos. Marx estaria no campo do dever ser (ou da arte,
como afirmou Durkheim); a ciência empírica lida exclusivamente com o que é. Trata-se da
aceitação do estado de coisas da qual claramente não escapa Weber uma de suas rentes
aproximações ao positivismo de Durkheim. Ao atravessar o corredor instituído entre o
142
materialismo e o positivismo clássico, Weber era obrigado a fazer concessões ao segundo
para combater o primeiro.
É rito de Nicola de Feo a constatação de uma mudança no ideário de Weber
quanto à relação entre prática e conhecimento. No discurso inaugural da universidade de
Freiburg, em 1895, havia a clara união entre política e ciência; naquele texto, Weber não
promovia a oposição metafísica entre ação e saber do modo como faria nos anos
subseqüentes
31
. É desta maneira que se associam cientificidade e política: “a ciência da
economia política é uma ciência política. Está a serviço da política, não da política
ordinária de pessoas e classes que porventura estejam comandando em um determinado
momento, mas dos interesses estáveis da política nacional de potência” (Weber, 1994a: 16).
A ciência não é desinteressada; ela está a serviço da razão de Estado, dos interesses
imperialistas, da vontade de potência da nação. Na década inicial do século XX, depois de
um longo interlúdio de inatividade teórica e acadêmica, Weber perderia a sincera
linguagem tomada de Nietzsche. Os ensaios metodológicos escritos naquele tempo passam
a desmembrar em pólos excludentes a prática e o saber. A ciência purifica-se. Weber não
mais confere à sociologia ou à economia política o papel de serviçal dos interesses do
Estado germânico imperialista. O caráter prático da ciência social ficaria encoberto pela
separação domesticada entre ser e dever ser.
No tempo em que a burguesia portava o devir, a categoria do dever ser era central
para seus intelectuais. É claro, a sociedade feudal era e a sociedade burguesa deveria ser.
Era a revolução contra o que é. Fichte e Condorcet não aceitariam acriticamente o ser do
feudalismo. A teoria política de Hegel é claramente um dever ser, um desígnio a ser
cumprido pelos Estados de seu tempo. De 1848 para frente, quando o ser assume a forma
burguesa, o dever ser é reduzido à prescrição de normas. Cabe então aos intelectuais
orgânicos da classe trabalhadora a crítica do ser da sociedade capitalista.
Na segunda metade do século XIX, era quase generalizada a recorrência ao
método positivista para legitimar a separação entre o ser e o dever ser. Do positivismo
clássico de Durkheim ao neokantiano de Weber, até a escola marginalista de Menger e
Walras em todos, a luta contra Marx possuía esta secessão enquanto um de seus
31
“A distinção entre ciência e política, entre consciência e ação, que Weber sublinha assim rigorosamente
nestes anos que seguem imediatamente a longa doença e a convalescença a 1903, são, no contexto de sua
biografia intelectual, uma terapia e uma autocrítica a respeito da subordinação da ciência à política que Weber
havia formulado no ‘Discurso inaugural’ de Freiburg” (Feo, 1970: 45).
143
momentos constitutivos; buscam a castidade da neutralidade axiológica. Leiam o que
escreve um dos expoentes da economia marginalista:
A arte “aconselha, prescreve, dirige” porque tem como objeto os fatos que têm
sua origem no exercício da vontade humana e, sendo a vontade humana, pelo
menos até certo ponto, uma força clarividente e livre, cabe aconselhá-la,
prescrever-lhe tal ou qual conduta, dirigi-la. A ciência “observa, expõe, explica
porque tem como objeto fatos que têm sua origem no jogo das forças da Natureza
e, sendo as forças da Natureza cegas e fatais, o outra coisa a fazer com elas
além de observá-las e explicar seus efeitos (Walras, 1983: 16).
Para as ciências do período de decadência ideológica da burguesia (economia
vulgar e sociologia), a “arte” aparece como desvios subjetivos; seria a subjetividade a
interferir na imparcialidade científica. É a expressão da “rígida contraposição metafísica
entre ideologia (subjetiva) e pura objetividade enquanto princípio exclusivo da ciência”
(Lukács, 1981: 543).
Como vimos anteriormente, a neutralidade axiológica exigida por Durkheim é
inteira: desde o primeiro enfrentamento do objeto, com sua descrição inicial, o cientista
deve estar livre de seus juízos mais íntimos. Diferentemente, em Weber, a neutralidade de
valores é um impositivo que aparece no decorrer do processo científico, tendo em vista que
a referência aos valores é necessária neste primeiro instante de escolha da parcela do real a
ser estudada. Mas, assim que a escolha esteja feita, os valores subitamente desaparecem da
ciência social num verdadeiro tour de force. De repente, a ciência converte-se de ação
racional com relação a valores em ação racional com relação a fins.
Durkheim conduz ao limite o método positivista (o que Weber não faz) e conclui
que, ao pautar-se na neutralidade axiológica, a ciência que daí decorre é uma verdade
consensual: tendo derivado das diversas escolas filosóficas, “a sociologia conserva o hábito
de se apoiar em algum sistema do qual se acha, pois, solidária. Assim, ela foi
sucessivamente positivista, evolucionista, espiritualista, quando deve contentar-se em ser
sociologia e nada mais” (Durkheim, 1999: 145). O raciocínio de Durkheim é este: se não há
uma física fenomenológica e outra metafísica, uma química hermenêutica e outra
existencialista, tampouco poderia existir uma sociologia com alguma filiação filosófica. A
sociologia seria uma ciência pura e, deste modo, estaria composta de verdades universais,
acima das particularidades.
144
Os estudos acerca da religião mostram o quanto Durkheim era tributário desta
noção naturalista de verdade. Sabe-se que o sociólogo francês induz uma “religião em
geral” do sistema totêmico dos aborígines australianos. À objeção de que tal conclusão tão
ampla não poderia ter a base de uma experiência estreita como essa, Durkheim responde:
Não imaginamos desprezar aquilo que uma investigação ampla pode adicionar em
autoridade a uma teoria. Todavia, não é menos verdade que, quando uma lei foi
provada por uma experiência bem feita, essa prova é lida universalmente. Se,
mesmo em caso único, um sábio conseguisse compreender o segredo da vida,
ainda que esse caso fosse o do ser protoplásmico mais simples que se puder
conceber, as verdades assim obtidas seriam aplicáveis a todos os seres viventes,
até os mais superiores (1968: 113).
Assim como as verdades sobre um protoplásmico valeriam para todos seres
viventes, as verdades acerca da religião totêmica valeriam para toda crença religiosa em
absoluto, sem restrição. Estamos diante de um positivista em sua feição clássica, que pensa
a ciência social integralmente vinculada à modalidade das ciências da natureza; de um
positivista que se sente à vontade em meio às generalizações excessivas de sua noção de
cientificidade.
Em Weber, são outras as questões envolvidas. Não é surpresa para ninguém a esta
altura do nosso texto o fato de que a verdade em Weber possua um aspecto puramente
lógico. Antes de tudo, frente à tese de que a neutralidade axiológica é impossível, Weber
refuta: “esta [tese], decerto, é totalmente errada, tão errada que precisamente a
‘neutralidade axiológica’... é o pressuposto de qualquer abordagem puramente científica da
política, e, em particular, da política social e econômica” (1999a: 396). Pode-se entender
que haja uma contradição entre a exigência da neutralidade e a seleção do fragmento do
real a ser estudado pelo sujeito da ciência. No entanto, apesar da arbitrariedade inerente ao
construto típico-ideal, Weber elege a neutralidade como a “premissa básica” da ciência
social, o que ele reconhecia ser uma incursão no solo das ciências naturais
32
. É uma
32
Weber fala da necessidade epistemológica de se efetuar a separação entre avaliação normativa e
interpretação causal e, à guisa de argumento, recorre às ciências naturais como faria um positivista comteano:
“obviamente, qualquer um tem liberdade de assumir determinadas posturas na sua obra historiográfica ou de
posicionar-se como sujeito, de propagar determinados ideais políticos e culturais ou outros quaisquer ‘juízos
de valor’, e de lançar mão das fontes históricas como ilustração do significado prático destes ou de outros
ideais combatidos ou não. O historiador procede, nesse caso, de modo semelhante ao biólogo ou ao
antropólogo que introduz nas suas investigações científicas determinadas convicções filosóficas ou ideais
‘progressistas’. Se ele procede dessa forma, não faz mais do que alguém que utiliza todos os conhecimentos
das ciências naturais para mostrar e ilustrar a ‘bondade divina’” (1999a: 65). O cientista social que expõe suas
convicções políticas age de maneira similar ao biólogo que introduz seus ideais filosóficos na análise da
145
tentativa de unir o subjetivismo neokantiano e a repulsa à conjugação entre prática e ciência
de Marx. O fruto dessa união é uma peculiar idéia de verdade. A verdade científica é o
resultado da elaboração corretamente lógica de um tipo ideal.
Não vale a assertiva materialista de Kant, segundo a qual, mesmo se um
conhecimento estiver congruente quanto à lógica formal, não implica que esteja congruente
no tocante à verdadeira adequação ao objeto. Weber importa-se apenas com a congruência
formal. Não adequação ao objeto; exclusivamente a logicidade formalista dos tipos
ideais sociológicos, abstrata, privada de concretude. É um exemplo do que Hegel, na
introdução a Ciência da lógica, denomina de “esqueleto morto” (cf. 1968: 49), sem
músculos e nervos, um conjunto de regras soltas no ar, esvaziadas de história. A lógica
weberiana é um momento da curva descendente desenhada pelos pensadores burgueses
desde a lógica de Hegel, que se amparava em princípios opostos aos de Weber: “se nos
determos à visão abstrata, segundo a qual o elemento lógico é só formal, fazendo abstração
de todo conteúdo, temos então um conhecimento unilateral, que não deve conter nenhum
objeto, é dizer, temos uma forma vazia, carente de determinação” (Hegel, idem: 525).
Deste modo, se forem legítimos conceitos típicos, tanto a explicação marxista
para as relações capitalistas quanto a weberiana seriam verdadeiras. Nenhuma das duas
estaria adequada ao objeto porque, como indicamos, inexiste em Weber a possibilidade
desta adequação; a verdade de ambas seria a correta imputação lógica. certo que e
continuará a sê-lo se uma demonstração científica, metodologicamente correta no setor
das ciências sociais, pretende ter alcançado o seu fim, tem de ser aceita como sendo correta
também por um chinês” (Weber, 1999a: 113, 114). Quando pretendia que os seus conceitos
fossem validados por um chinês, Rickert tentava convencê-lo mediante o diálogo; Rickert e
o chinês sentavam-se à mesa, convenciam-se de que compartilham dos mesmos valores e o
consenso intersubjetivo outorgaria a verdade aos conceitos. É o diálogo rumo à verdade de
que trata A teoria da definição. Weber deseja que, sem nenhum diálogo, a conexão interna
ao tipo ideal seja necessariamente validada pelo chinês, tendo ela a harmonia lógica, o rigor
científico; a logicidade coerente do conceito de Weber é aceita pelo chinês, a prescindir da
razão comunicativa
33
.
célula, por exemplo.
33
Pretendendo a harmonia lógica, Weber impôs-se discussões estéreis, típicas de um “lógico moderno”, como
a polêmica com Rudolf Stammler sobre o “conceito de natureza”. O que seria a natureza, indaga-se o lógico
Weber. Poderia ser: “(01) a natureza ‘morta’ (ou inanimada), ou (02) esta natureza em oposição a fenômenos
146
A exposição de Weber elucida a natureza lógica da verdade nas ciências sociais:
A validade objetiva de todo saber empírico baseia-se única e exclusivamente na
ordenação da realidade segundo categorias que são subjetivas, no sentido
específico de representarem o pressuposto do nosso conhecimento e de
associarem, ao pressuposto de que é valiosa, aquela verdade que só o
conhecimento empírico nos pode proporcionar. Com os meios da nossa ciência,
nada podemos oferecer àquele que considere que essa verdade não tem valor,
visto que a crença no valor da verdade científica é produto de determinadas
culturas, e não um dado da natureza. Mas o certo é que buscará em vão outra
verdade que substitua a ciência naquilo que somente ela pode fornecer, isto é, nos
conceitos e juízos que não constituem a realidade empírica, nem a podem
reproduzir, mas que permitem ordená-la de modo válido por meio do pensamento
(Weber, 1999a: 152).
A “validade objetiva” é concernente apenas à “ordenação de categorias
subjetivas". A verdade nada mais é do que uma imputação coerente entre causa e efeito.
Para aqueles que pretendem uma outra verdade no terreno da ciência social, Weber pede
que se conformem; a autenticidade dos conceitos científicos está exclusivamente em sua
capacidade de “ordenar a realidade”.
Weber não poderia abster-se de introduzir em sua teoria uma noção de verdade;
desse modo, a arbitrariedade de princípio do tipo ideal é atenuada. Pondo a verdade sob um
matiz puramente lógico, o sociólogo consegue destituí-la de seu caráter objetivo, isto é, a
concordância entre as representações e o movimento real do objeto. Weber não possui a
ingenuidade naturalista de Durkheim, mas a sua idéia de verdade é igualmente universal em
um certo sentido: sendo o conceito típico logicamente correto, ele apresenta-se como
verdadeiro “também a um chinês”. Assim, no mesmo instante, é uma verdade relativa, por
ser referente às valorações subjetivas do sujeito da ciência, e universal, uma vez que detém
a logicidade exigida pelo método compreensivo. O subjetivo particular transforma-se em
objetivo universal em um salto antidialético, sem qualquer mediação. O que seria uma viva
de vida especificamente humanos’, ou (03) os dois objetos, e além disso, também aqueles fenômenos de
vida, seja do tipo ‘vegetativo’ ou do tipo ‘animal’, que o homem tem em comum com o animal, admitindo,
obviamente, as atividades de vida ‘mais elevadas’ ou ‘espirituais’ que são específicas da espécie humana”
(Weber, 1999a: 232). É um tema clássico da burguesia parasitária que se pergunta o que é natureza, o que é
realidade, etc. Na prática, um agricultor distingue muito bem entre as batatas de seu plantio e a natureza morta
de Paul Cézanne. Todos os mistérios da vidao resolvidos na práxis, assim dizia a oitava das teses de Marx
sobre Feuerbach. A natureza, este mistério que tira o sono dos “lógicos modernos”, não é nada misteriosa para
o homem que trabalha.
147
dialética surge em Weber como uma rígida contradição que se torna irresoluta caso nos
mantenhamos dentro dos termos específicos da sua escola de pensamento.
Por fim, esse é método pelo qual Weber tenta compactuar o subjetivismo de viés
irracionalista com uma noção peculiar de verdade. O sujeito da ciência escolhe o fragmento
do real que lhe aparece como essencial, porém, fundado na premissa da neutralidade
axiológica. É interessante observarmos o modo pelo qual o próprio Weber “escolheu” seus
objetos. Nesta escolha, o sociólogo dirigiu a sua atenção para o processo de gênese do
capital. E aqui também está posta a tarefa de criar uma alternativa burguesa a Marx: uma
explicação conservadoramente resignada para a sociedade burguesa contra explicação
revolucionária elaborada pelo dialético materialista.
Leiam-se as palavras de Cohn:
É evidente que um ponto em comum entre as preocupações de Marx e Weber,
e que não deve ser subestimado: a posição central atribuída aos problemas da
sociedade capitalista na obra de ambos, ainda que com a diferença de que num
caso isso conduz a uma crítica revolucionária e no outro a uma crítica marcada
pela resignação (1979: 79).
Esta avaliação é correta em seus termos gerais, embora erre ao dizer que Marx
“atribui uma posição central” às contradições do capitalismo, como se Marx deixasse de ser
ontológico e, de repente, passasse a atribuir sentido à realidade, ao estilo de um relativista
neokantiano; é o típico equívoco de uma leitura sociológica de Marx.
Mas é certo que Weber procurou interpretar a gênese do capital para opor-se à
interpretação materialista-dialética da história. Lukács analisa com grande lucidez as
questões que preocupavam a geração de Weber: “o problema central da sociologia alemã
no período do imperialismo de anteguerra consiste em encontrar uma teoria para explicar o
nascimento e a natureza do capitalismo e ‘superar’ o materialismo histórico neste terreno,
mediante uma concepção teórica própria” (1968: 488). Vê-se que, apesar de defender que a
essência de um fenômeno é questão de referência a valores, é assunto pessoal, Weber
estudou os eventos que detinham uma enorme relevância objetiva, a despeito de seus juízos
de ou de valor. Isso o transforma em um pensador a léguas de distância dos relativistas
de hoje em dia, autores cujo poder de abstração é nulo, como o hiper-empirista Clifford
Geertz, que levam às últimas conseqüências o relativismo burguês e elegem como objeto
brigas de galo, a simbologia das piscadelas e outras puerilidades.
148
3.3. Gênese do capitalismo e teleologia da história
3.3.1. A modernidade do capitalismo
A crítica burguesa à teoria social marxista alimenta-se de alguns chavões e um
dos mais constantes talvez seja associar a Marx uma concepção teleológica da história. Em
verdade, é necessário que se diga prontamente que uma teleologia da história é possível de
se encontrar em Weber e não em Marx. Ellen Wood discerne:
Foi Weber, e o Marx, quem viu o mundo através do prisma da concepção
unilinear, teleológica e eurocêntrica da história, que Marx, mais que qualquer
outro pensador ocidental, tentou erradicar. Longe de levar a teoria social a superar
as imperfeições do determinismo marxista, Weber a reduziu a uma teleologia pré-
marxista, em que toda a história é um movimento no mais das vezes tendencioso
em favor do capitalismo, em que o destino capitalista é sempre percebido nos
movimentos da história, e em que as diferenças entre as várias formas sociais
estão relacionadas aos modos particulares com que incentivam ou obstruem o
movimento histórico único (2003: 129).
Nos Gründrisse, Marx afirma a necessidade metodológica de se partir das
categorias da sociedade então mais desenvolvida para se capturar a anatomia das
sociedades remotas. Parte-se do resultado do processo (a economia burguesa) para lançar
luz sobre os aspectos progressistas das formações societárias anteriores. Quanto de
relevância histórica adquirem as manufaturas durante o feudalismo, por exemplo, no
instante em que se constata que ali nasceu o capital industrial. É claro, esta análise pode
ser feita post festum. O que Marx não permite é que as categorias da sociedade burguesa
sejam assim generalizadas para todo o devir do homem. Ele mesmo adiciona à idéia de que
a economia burguesa oferece a chave para a apreensão da anatomia das sociedades remotas:
“porém não certamente do modo dos economistas, que cancelam todas as diferenças
históricas e vêem a forma burguesa em todas as formas societárias. Pode-se compreender o
tributo, o dízimo, etc., quando se conhece a renda da terra. Mas não se deve identificá-los”
(2001: 26). Marx não se esquece de assinalar que as relações capitalistas de produção
podem encerrar determinados aspectos herdados de tempos anteriores, como a produção
comunal. No entanto, que se frisar: elas [as relações burguesas] podem conter estas
formas de um modo desenvolvido, atrofiado, caricaturado, etc., porém a diferença será
sempre essencial” (Marx, idem: 27). Isso é de imensa importância: a diferença será sempre
149
o essencial. Para a teoria social marxista, o comum entre as formações históricas é o
acessório; o essencial é aquilo que as particulariza uma em face da outra.
A crítica de Marx às generalizações abusivas da economia vulgar torna-se mais
incisiva em O capital. Segundo Marx, a apologia à sociedade burguesa costuma partir do
ponto de vista da mera circulação de mercadorias, quando, na verdade, o método correto
seria assumir o ponto de vista do processo de produção. Com este procedimento, a ciência
apologética “procura negar as contradições do processo capitalista, reduzindo as relações de
seus agentes de produção às relações mais simples que decorrem da circulação das
mercadorias” (Marx, 2002: 141). Marx explica que “produção e circulação de mercadorias
são, porém, fenômenos que sucedem nos mais diferentes modos de produção, embora com
extensão e importância diversas” (idem: 141). A apologia direta ao capital consiste em
tomar essas relações abstratas precisamente em seu caráter abstrato: “quando se conhecem
apenas as categorias abstratas da circulação, comuns a todos esses modos de produção, é
impossível saber qualquer coisa sobre as diferenças características desses modos de
produção, não havendo condições para julgá-los” (Marx, idem: 141).
Serve em Weber com toda sua justeza a crítica aos apologistas construída por
Marx. Não é difícil de localizar ao longo da obra de Weber a idéia de que as antigas
formações sociais não passam de antecipações do que chama de capitalismo racional
moderno. Em primeiro lugar, Weber define o seu tipo-ideal de capitalismo: “o capitalismo
existe onde quer que se realize a satisfação de necessidades de um grupo humano, com
caráter lucrativo e por meio de empresas, qualquer que seja a necessidade que se trate”
(1968: 249). Qualquer usurário aparece assim como as relações capitalistas de produção
projetadas no tempo. É capitalista o homem que entra no mercado com a quantia X e sai
com X+1, esteja ele no passado, presente ou futuro. Com este conceito, é fato que Weber
atém-se apenas à epiderme da experiência. Mas o sociólogo não é o único. Lujo Brentano
lhe faz companhia. Para o economista alemão (que se guia por Werner Sombart), empresa
capitalista é a forma econômica que possui o objetivo de aumentar o valor dos bens reais
através de uma série de contratos de prestações e contraprestações medidas em dinheiro, e o
regime capitalista é aquele em que a empresa capitalista constitui a específica forma
econômica (cf. Brentano, 1968: 21). Weber, Brentano e tantos outros tomam as categorias
150
epidérmicas das instituições burguesas como se fossem as características mais peculiares de
suas relações de produção.
Mészáros utiliza o tipo-ideal weberiano de capitalismo para colocar em xeque a
pretensa “neutralidade axiológica” de seu autor. Lembrem-se de que Weber pretendia-se
“neutro” ao criar este tipo (ou qualquer outro). Mészáros distingue muitos elementos a
propósito da questão e vamos listar alguns: 1) Weber escolhe definir o capitalismo em
termos de uma cultura privada, fomentos de empresas, preterindo alternativas possíveis
como “modo de produção”, por exemplo; 2) nada se diz acerca dos fundamentos históricos
em que a satisfação das necessidades surge para o homem; 3) o “caráter lucrativo” encobre
as relações de exploração da mais-valia entre capital e trabalho; 4) está oculto o fato de que
não é o investimento empresarial, mas também o estatal que caracteriza o capitalismo.
Mészáros seleciona outras tantas abstrações do tipo-ideal de capitalismo feito por Weber. O
principal é que está problematizada a “neutralidade” do conceito. De forma cabal, o crítico
marxista determina que se pode contrapor à definição weberiana esta seguinte: ‘o
capitalismo é um modo de produção caracterizado pela extração de mais-valia para efeito
de produção e reprodução do capital em escala sempre crescente’. Fica para o leitor decidir
qual das duas definições é mais ‘ideológica’” (1993: 29, 30). De fato, deve-se decidir por
uma das duas definições porque “não são complementares, mas diametralmente opostas
uma à outra: o que absolutamente não seria o caso, se fosse válida a afirmação de Weber
quanto ao caráter ‘puramente lógico’ e ‘axiologicamente neutro’ de seus ‘tipos ideais””
(Mészáros, idem: 30).
Os problemas não se limitam à natureza epidérmica e apologética do conceito de
capitalismo em Weber. Na seqüência àquela definição que vimos acima, o nosso autor
generaliza o seu tipo-ideal para as demais épocas históricas:
O capitalismo se nos apresenta em forma diferente nos diversos períodos da
história, porém a satisfação das necessidades cotidianas, baseada em técnicas
capitalistas, é peculiar no Ocidente... O que registramos em séculos anteriores,
numa espécie de antecipação, são simples pródromos (Weber, 1968: 250).
São simples preâmbulos os demais estágios de desenvolvimento do homem. São
antecipações que desembocaram inevitavelmente no atual “capitalismo moderno”. Toda a
história mundial é compreendida como um trajeto fatal rumo à época capitalista. A pré-
história do capitalismo atual é apenas “um simples pródromo” na teleologia designada a
151
resultar na sociedade burguesa. Por isso, repetimos: a crítica que Marx construiu visando
atingir os apologistas da sociedade burguesa serve em Weber com todas as suas proporções.
Quando captura a história a partir das categorias da sociedade mais desenvolvida,
Marx não subtrai as transformações dinâmicas que culminaram na formação social que
provisoriamente está no cume do processo evolutivo. Em seu tempo, Weber toma a
sociedade burguesa e apaga as particularidades dos modos de produção que lhe
precederam; todos não passam de meras “antecipações”. Os diversos estágios de
desenvolvimento do ser social, para Marx, possuem sua própria dinâmica interna, sua
peculiar totalidade de complexos, suas categorias e estrutura autônoma; uma categoria
como “escravidão” pertence à determinada particularidade histórica, e o mesmo se diz para
“vassalagem” e “trabalho assalariado”. Para Weber, os demais estágios da evolução
humana são apenas tendências que obstruem ou favorecem em maior ou menor grau o
destino único rumo ao nascimento do capitalismo moderno ocidental; uma categoria como
“capital” pertence a toda e qualquer etapa societária.
Ainda que demarque certos aspectos abstratos de diferenciação histórica, Weber
sente-se à vontade para escrever em A ética protestante e o espírito do capitalismo que
“‘capitalismo’ existiu na China, na Índia, na Babilônia, na Antiguidade e na Idade Média”
(2004b: 45).
É curioso o modo pelo qual são descobertas por Weber as relações capitalistas na
Antiguidade romana. A preocupação é compreender até que ponto as leis facilitavam o
empreendimento capitalista, um problema que Weber procurava resolver desde os
primeiros anos de academia, conforme atesta a sua dissertação (cf. Weber, 2003a).
Posteriormente, na História agrária romana, o sociólogo estuda as legislações que versam
sobre a propriedade fundiária e encontra-se com o ager publicus, que, segundo ele,
desvinculava a propriedade da terra de seu caráter individual (cf. Weber, 1994: 98). Por
meio desta lei, estavam concedidos à livre iniciativa a concessão e o usufruto das terras do
Estado; a legislação do ager publicus teria incentivado a livre concorrência pela posse da
terra pública. Então, Weber presume:
Com toda probabilidade, conforme a natureza dos compromissos da época,
estabeleceu-se uma igualdade jurídica de todos os cidadãos ante a terra pública
com a concessão geral da liberdade de pastoreio e de ocupação, e tentou-se
mascarar, na medida do possível, esse impulso ao capitalismo com a introdução,
ao menos em teoria, da obrigatoriedade de um tributo. De fato, observou-se
152
freqüentemente que essa livre concorrência não pode ter beneficiado os pequenos
proprietários, mas, antes, os grandes capitalistas patrícios ou plebeus; em suma,
ela representou o mais desenfreado capitalismo agrário da história (1994: 106).
Na realidade da Roma antiga, Weber deparou-se com o “mais desenfreado
capitalismo agrário da história”. O ager publicus equiparou os homens em face das leis
aliás, como sempre quis o liberalismo burguês. A livre concorrência liberal teria aberto as
vias que impulsionaram o capitalismo romano nas terras públicas, cuja expansão jamais foi
repetida na história. Tentou-se freá-lo com a cobrança de tributos, o que favoreceu os
“grandes capitalistas patrícios ou plebeus”; mas, de qualquer forma, não foi suficiente.
Weber julga que a livre concorrência do ager publicus representou o mais desenfreado
capitalismo agrário da história.
A análise do “capitalismo agrário romano” prossegue: “durante toda a era
republicana, continuaram levantando-se vozes que reclamavam a divisão do ager publicus,
mas essas vozes perderam sua justificativa íntima quando a massa dos proletários, que as
havia erguido, perdeu pouco a pouco suas antigas características” (Weber, 1994: 107). A
“massa proletária” da Roma antiga, que se opôs ao ager publicus e ao “capitalismo
desenfreado”, foi gradativamente perdendo voz porque perdeu sua identidade, suas antigas
características que a uniam em torno de interesses práticos. Roma deixava de ser uma
cidade com amplas terras a serem ocupadas; “enquanto Roma ia assumindo cada vez mais o
caráter de grande metrópole, o proletariado perdeu sua energia expansiva; concentrou-se
numa plebe urbana de tipo moderno” (Weber, idem: 107).
Como se Weber estivesse tratando da Roma do século XX. Sob a égide do “mais
desenfreado capitalismo”, a “massa dos proletários” desenvolveu-se em uma “plebe urbana
de tipo moderno”. Não se iludam: o tema daquele livro é a história agrária romana da
Antiguidade. Livre iniciativa, legislação liberal, concorrência de mercado, grande capital
latifundiário, massa proletária de tipo moderno e capitalismo agrário: são categorias que
Weber extrai da sociedade burguesa e projeta para a realidade da Antiguidade. Olha-se para
o passado remoto e descobre-se a sociedade do presente. A sua teleologia da história
possibilita tais exacerbações. Cancelam-se as diferenças e encontra-se a forma atual de
sociabilidade no conjunto extensivo da história.
153
Não pensem que isso se deve à juventude de História agrária romana
34
. Na
maturidade de Economia e sociedade, estas idéias foram retomadas e acentuadas com
outros componentes. Desta vez, Weber afirma explicitamente que o império romano foi a
primeira amostra do capitalismo imperialista: “a expansão ultramarina de Roma... mostra
pela primeira vez na história de forma tão marcante e, ao mesmo tempo, em escala
gigantesca traços que, desde então, semelhantes em seus elementos fundamentais,
apresentam-se sempre de novo, até hoje” (1999: 168). Os traços vistos na expansão romana
apresentam-se repetidamente na história. Nietzsche arremataria completando que, por isso,
a história é um eterno retorno. Weber expõe os elementos que na antiga Roma e que se
repetem ininterruptamente: “são próprios de um tipo específico, apesar de não se distinguir
claramente de outros tipos de relações capitalistas — ou melhor: oferecem-lhe condições de
existência que denominaremos capitalismo imperialista” (idem: 168). Não houve
capitalismo na Antiguidade romana como este capitalismo foi de espécie especificamente
imperialista. Os aspectos gerais que estariam presentes em Roma e que se reiteram em giros
circulares são estes: “trata-se dos interesses capitalistas de arrendatários de impostos,
credores do Estado, fornecedores ao Estado, capitalistas do comércio exterior e coloniais
estatalmente privilegiados” (Weber, idem: 168). São traços que sempre retornam à história
ao infinito. Não foram poupadas abstrações na tarefa de eternizar para a história as relações
da fase monopolista do capital.
Continuemos com Weber a buscar a “ação capitalista” entre os povos da
Antiguidade. No Judaísmo antigo, outro livro da maturidade, Weber estuda a conduta
religiosa dos judeus no período anterior à diáspora e percebe também ali uma espécie de
capitalismo. Eis que igualmente houve capitalismo no antigo Oriente Médio. O interessante
nome que Weber lhe é “capitalismo pária judeu”. Constituía-se da prática da usura e do
comércio com os não-judeus, os homens que não pertenciam aos guetos judaicos.
Lembrem-se de que a presença de um simples usurário é pretexto para que Weber
transponha as relações capitalistas para as formações sócio-econômicas passadas. Apesar
de “sentirem-se em casa em várias formas de capitalismo”, os judeus “falharam ao
desenvolver os traços específicos do capitalismo moderno. Isto é verdade para a
34
Quanto à existência do “proletário de tipo moderno” em Roma, Weber reformulou suas idéias juvenis e, em
1909, escreveu que, na Antiguidade, “enquanto classe, o proletariado moderno não existia” (2001: 92). Pelo
menos enquanto classe, Weber não mais projetou o proletariado moderno para o passado antigo.
154
Antiguidade, a Idade Média e os tempos modernos” (Weber, 1967: 345). Dada a
especificidade do “capitalismo pária”, os judeus não anteciparam as linhas do capital
moderno, estivessem eles entre os antigos, medievais ou modernos. Repete-se o que disse
Ellen Wood no início do item, Weber analisa a história para encontrar barreiras ou
incentivos ao desenvolvimento do capitalismo moderno ocidental
35
.
Após toda esta exegese, não é de se admirar que as abstrações desmesuradas de
Weber levem-no a estender as relações capitalistas até a distante China antiga:
Durante o Período dos Reinos Guerreiros e suas lutas por poder político, existiu
um capitalismo de provedores de empréstimo monetário, que era politicamente
determinado e aparentemente muito significativo. Altas taxas de lucro pareciam
ser a regra. Na China, como em outros Estados patrimoniais, este tipo de
capitalismo era costumeiro. Somando a estas transações politicamente
determinadas, a extração e o comércio são mencionados como fontes de
acumulação de bens. Dizem terem existido multimilionários sob a dinastia Han
(no padrão do cobre). Quando a China unificou-se politicamente em um império
mundial, como o orbis terrarum unificado do Império Romano, o resultado foi um
óbvio retrocesso deste capitalismo, essencialmente vinculado à competição entre
Estados. Por outro lado, o desenvolvimento do mercado capitalista puro, de busca
por livres oportunidades de comércio, era apenas rudimentar (Weber, 1968a: 84).
Acreditamos não ser preciso rediscutir a natureza excessiva das projeções
weberianas. À guisa de esclarecimento, a citada dinastia Han perdurou de 206 a.C. ao ano
de 220 d.C.
Essas tamanhas abstrações, no entanto, são lidas da pena de autor que escreveu
um dia: “nada seria mais perigoso que representar as condições da Antiguidade em uma
35
Marx também abordou as formas antigas de aquisição de lucro. Para Weber, os usurários e comerciantes
antigos constituíam manifestações do sistema capitalista. Ao contrário, Marx disse que “a forma comercial e a
forma a juros são mais antigas do que a da produção capitalista, do que o capital industrial, forma básica da
relação capital enquanto domina a sociedade burguesa” (1974a: 279). A produção capitalista não engendra
estas formas de aquisição de lucro: “encontra estas formas mais antigas na época de sua constituição e de sua
geração, encontra-as como prévias pressuposições, que não são todavia pressuposições postas por si próprias,
formas de seu processo de vida” (Marx, idem: 279). A usura e o comércio não são gerados pela produção
capitalista; em seu processo de constituição histórica, as relações de produção de capital se deparam com
estas formas de lucro. De fato, são pressupostos para o metabolismo capitalista: do dinheiro acumulado com a
usura e o comércio, investe-se na compra de força de trabalho; então, usurário e o comerciante transformam-
se em capitalistas industriais. Contudo, para que isso ocorra, que se contar com determinadas
circunstâncias históricas: o acúmulo de dinheiro dos usurários e comerciantes é meio para a constituição de
uma nova sociabilidade “somente numa época em que se encontram disponíveis as demais condições para a
produção capitalista trabalho livre, mercado mundial, dissolução do vínculo social antigo,
desenvolvimento do trabalho até determinado nível, desenvolvimento da ciência, etc.” (Marx, idem: 328).
Uma vez desenvolvida a produção capitalista, as antigas formas de obtenção de lucro subordinam-se à nova
estrutura societária. Indubitavelmente, é uma abordagem teórica diversa desta que estudamos em Weber.
155
feição ‘moderna’. Aquele que o faz subestima a variedade das formas que a Idade Média
nos produziu, precisamente à sua maneira, no domínio do direito do capital” (Weber, 2001:
96). Estas palavras pertencem à obra que recebeu o titulo original de Relações agrárias na
Antiguidade. Haveria perigo em se representar a Antiguidade a partir das categorias
“modernas”; isso seria subestimar a variedade histórica. Sugere-se que, no livro de 1909,
Weber será menos epidérmico do que no restante de sua extensa produção teórica; dessa
vez, não se subestimará a variação das formas históricas. Apesar da aparente cautela, o
ponto de vista burguês termina por prevalecer na leitura que Weber produz dos povos
antigos neste estudo; é o que justifica a colocação de uma pergunta como esta: a
Antiguidade conheceu a economia capitalista a um grau que seja significativo do ponto de
vista da história mundial?” (Weber, idem: 98). Quando Weber fala acerca do “ponto de
vista da história mundial”, que se ouça, em verdade, do “ponto de vista da sociedade
burguesa”. Com idas e vindas, Weber prescinde da cautela inicial e conclui
afirmativamente que “o caráter amplamente ‘capitalista’ de épocas inteiras da história
antiga (e precisamente das ‘maiores’ épocas) parece então de todo assegurado” (idem: 101).
Épocas inteiras dos povos antigos foram de caráter “capitalista”. Com transparência
meridiana, Weber reconheceu que é perfeitamente possível de assegurar a ocorrência das
relações capitalistas em etapas distintas da evolução do ser social, se o conceito de
capitalismo for “puramente econômico”, “se não se limite, não sem motivo, o conceito de
‘economia capitalista’ ao modo determinado de valorização do capital, isto é, a exploração
do trabalho alheio mediante um contrato com o trabalhador ‘livre’, se não se inserirem
determinações sociais no conceito” (Weber, idem: 101). Concordamos integralmente com o
escrito weberiano: caso não se apreendam as determinações sociais do modo de produção
capitalista, caso não se restrinja a produção capitalista à valorização do capital por meio
da extração de mais-valia do trabalhador “livre” para vender sua força de trabalho, então
é fácil de assegurar a presença do capitalismo na Antiguidade.
Na Antiguidade manifestam-se relações capitalistas. E do mesmo modo no
feudalismo. Em História geral da economia, Weber começa o parágrafo que se chama
“desenvolvimento capitalista do regime feudal” com o seguinte dizer: “o sistema feudal,
determinado por fatores militares, e concebido, a princípio, para assegurar aos senhores a
exploração das terras e da mão-de-obra, demonstrou uma forte tendência a orientar-se no
156
sentido capitalista (1968: 92). O sentido capitalista das relações feudais seria claro nas
plantações sob a forma de “fazendas”. A peculiaridade do estudo weberiano sobre a
economia dos latifúndios feudais é que os exemplos históricos trazidos às páginas iniciais
são concernentes a Inglaterra dos séculos XVI e XVII, quando, em verdade, se avança o
processo de acumulação primitiva do capital. Ao longo do texto, outros fatos são
reportados, como a organização econômica da Rússia feudal, com os quais Weber tenta
provar a existência das instituições capitalistas durante o feudalismo. A conceitualização
equivocada coloca em xeque a estrutura da História geral da economia, um livro
riquíssimo nos detalhes e, por isso, imprescindível para o conhecimento das relações sociais
de produção historicamente constituídas.
A descoberta do “capitalismo medieval” o fez com que Weber se abstivesse de
reproduzir a vulgata burguesa que entende a Idade Média como um interlúdio de trevas
entre a Antiguidade e a “civilização burguesa moderna”. Weber sustenta que a queda do
império romano implicou a queda da antiga economia urbana. Com o término do “ciclo do
desenvolvimento econômico” dos povos antigos, “seu gênio criador parece completamente
exaurido. Com o comércio, submergiu o esplendor dos mármores das cidades antigas e,
com elas, todas as riquezas espirituais que nela repousavam: a arte e a literatura, a ciência e
as formas refinadas do direito comercial antigo” (Weber, 2001: 82). O fim da grande
civilização antiga implicou o retorno para o campo: “a civilização torna-se rural” (Weber,
idem: 82). A economia perde seu caráter “burguês urbano” e parte rumo ao feudalismo, à
autoridade despótica dos senhores fundiários. “Deste modo, desaparece o véu da civilização
antiga e a vida espiritual da humanidade ocidental mergulha em uma longa noite” (Weber,
idem: 82). Se um dos autores clássicos acordasse em qualquer dos mosteiros medievais,
consideraria tudo estranho: “ele seria assaltado pelo odor do esterco do domínio feudal”
(Weber, idem: 83). Entretanto, após a longa noite do feudalismo, o homem retorna à
claridade diurna com a sociedade burguesa. Apenas com o desenvolvimento da burguesia
urbana durante a Idade Média, os velhos gigantes armaram-se de novas forças e o
testamento espiritual da Antiguidade foi revivido à luz da moderna civilização burguesa”
(Weber, idem: 83).
Afinal, as passagens acima são suficientes para demonstrar que, para a
interpretação teleológica da história em Weber, haveria relações capitalistas em todo o
157
tempo e lugar. Basta que alguém atue em busca do lucro para que o capitalismo esteja
presente. Falamos do capitalismo que Weber transpõe para o passado, mas não ainda
daquele previsto para o futuro. Isso se clarifica de melhor forma com a análise que o
sociólogo faz da burocracia. E aqui nos ocuparemos bastante do tema. A natureza
teleológica que Weber imputa ao devir histórico não possuiria melhor estampa do que as
suas teses acerca da “liderança burocrática”. A fundamental característica dos burocratas
seria a extrema “racionalidade” com que executam as tarefas; o aparato burocrático
desenvolve sua peculiaridade “com tanto maior perfeição quanto mais se ‘desumaniza’,
vale dizer, quanto mais perfeitamente consegue realizar aquela qualidade específica que é
louvada como sua virtude” (Weber, 1999: 213). Weber fala especificamente da “eliminação
do amor, do ódio e de todos os elementos sentimentais, puramente pessoais e, de modo
geral, irracionais, que se subtraem ao cálculo, na execução das tarefas oficiais” (idem: 213).
Com este modelo de ação racional relativa a fins, “esta burocracia pode operar muito
melhor do que qualquer outra estrutura de dominação” (Weber, 1974: 31).
O verdadeiro triunfo do cálculo burocrático é observado por Weber nas indústrias
que se guiam pela organização científica” do trabalho. Os delineamentos da “gerência
científica” são descritos em Economia e sociedade:
O aparelho psicofísico do homem é aqui completamente adaptado às exigências
do mundo externo, do instrumento, da máquina ou, em uma palavra, da função,
despojado de seu ritmo dado por sua própria estrutura orgânica e submetido a um
novo ritmo que, depois da análise sistemática das funções de cada músculo e da
criação de uma ótima economia de forças, corresponde perfeitamente às condições
do trabalho (Weber, 1999: 362).
Weber a este processo a denominação de “adestramento e treinamento do
trabalho produtivo”. Em verdade, são as modalidades de exploração capitalista da força de
trabalho que ficaram associadas ao nome de Taylor. Para Weber, são apenas métodos
racionais de medição do “ótimo de rentabilidade” de cada trabalhador individual (cf.
Weber, 1999: 362).
A burocratização da vida social é uma tendência que Weber qualifica como
“inevitável”; em Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída, trata-se “do
avanço irresistível da burocratização” (Weber, 1974: 32). Detém uma natureza teleológica e
não haveria exército que impedisse o seu triunfo. E, caso fosse tentada uma revolução que
158
instituísse uma sociabilidade para além dos limites do capital, Weber avisa: “a burocracia
estatal reinaria absoluta se o capitalismo fosse eliminado. As burocracias privada e pública,
que agora funcionam lado a lado, e potencialmente uma contra a outra, assim restringem-se
mutuamente até certo ponto, fundir-se-iam numa única hierarquia” (idem: 31). Weber
aprecia que, durante a vigência do capital, as burocracias estatal e privada atuam em
paralelo e limitam-se reciprocamente; a derrocada do capitalismo só faria congregar as duas
modalidades de burocracia, o que ampliaria a força do império burocrático. A eliminação
do capitalismo instituiria o reino absoluto da burocracia. Na letra de Weber, a luta contra a
burocracia seria então uma luta inglória, fadada ao fracasso.
Em meio às idéias de Weber, é necessário ter atenção sobre o que está em jogo
quando se acerca da inexorabilidade da burocratização. Com efeito, o que Weber
promove em sua teoria é uma generalização de seu próprio tempo histórico:
O ponto mais discutível de suas idéias é, sem dúvida, a afirmação — que é o cerne
de sua “sociologia política” e o resultado de uma abstração injustificável e de uma
“desistorização da História” do destino burocratizado dos tempos modernos,
ou seja, de que “o futuro pertence à burocratização”. Mas esse ponto, na verdade,
nada mais reflete do que a generalização da experiência alemã por parte de
Weber, em primeiro lugar para o capitalismo em geral e, depois, para o conjunto
da humanidade (Nogueira, 1977: 146).
A teoria weberiana encoberta o fato de que a burocratização da vida social é uma
característica do estágio monopolista do capital, em que não a produção mas todas as
esferas da cotidianidade são reificadas, o que demanda o controle burocrático, a
manipulação do consumo inteiro dos homens. “A disciplina burocrática transcende o
domínio do trabalho para regular a vida inteira de quase todos os homens, do útero à cova”
(Netto, 1981: 82). O caso da Alemanha é ainda de maior dimensão haja vista o forte peso
adquirido pelo Estado prussiano de Bismarck. As determinações de classe do movimento
de regulação da vida cotidiana não são levadas em conta pela teleologia da história de
Weber. A fase imperialista do capital particularizada na Alemanha é o período histórico que
Weber transforma em inevitável necessidade, encontrando antecipações suas desde a
Antiguidade (Egito, Roma, China, Pérsia, Esparta, etc.) e fazendo-o perdurar até as
sociedades do futuro.
159
Ao contrário do que relata acima Marco Aurélio Nogueira, a generalização de um
período histórico por parte de Weber não é uma “abstração injustificável”. Não paira a
menor dúvida de que seja uma enorme abstração; porém, que se justifica pelo fato de que
Weber atuava dentro das fronteiras objetivamente postas pelas lutas de classe de seu tempo.
Para a burguesia do pós-1848, qualquer abstração era justificável caso fosse conveniente à
conservação do estado de coisas.
Uma constante no processo de decadência ideológica da burguesia é o convite à
resignação. Com Schelling, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche e outros decadentes,
foram vistas algumas formas de se educar o homem para a passividade. À sua maneira,
Weber apresenta uma forma de resignação pessimista e de apologia indireta do capital: a
burocratização da vida moderna é uma “jaula de ferro” que, embora aprisione os
indivíduos, não é reversível. A racionalidade da vida social caminha sem perturbações e
que os homens deixem-se levar. São os “malefícios” da sociedade burguesa alçados à
condição humana inelutável.
No passado (Antiguidade e Idade Média), Weber via formas do capitalismo que
impediam ou antecipavam os traços racionais da “ação de se obter lucro”; no presente, está
em vigência o capitalismo de específico caráter racional; e no futuro, a racionalidade
burocrática do capital persistirá em vigor.
É profundamente mistificador perder de vista o caráter teleológico que Weber
atribui à racionalidade do capital quando se analisa a sua relação com a tese do fetichismo
da mercadoria descrita por Marx. Para o bem dos fatos, deve-se rejeitar categoricamente a
seguinte observação: “entre a ‘racionalização’ de Weber e a ‘alienação’ de Marx, a
distância não é grande” (Colliot-Thélène, 1995: 48). O inverso é o verdadeiro: a distância é
abismal. Dissemos acima que Weber apreende traços imediatos do processo de reificação
do cotidiano no período do capitalismo monopolista, transformando-os em eternos. Marx
abarca a totalidade contraditória das relações capitalistas dentro de seu processo histórico
de gênese, desenvolvimento, crise e possibilidades concretas de superação. Weber não
pretendia unir a ciência à ação, mas, se fosse o caso, uma crítica técnica reparadora é o
máximo de prática que as suas teses permitiriam; a crítica resignada ao capital não pretende
a sua superação, senão sua apologia indireta. É ocioso recordar que Marx concebe uma
autêntica crítica revolucionária à sociedade burguesa; a transformação radical do modo de
160
produção capitalista é o máximo de ação prática que as teses marxistas permitem. Colliot-
Thélène não considera esses grandes pontos de discordância ao afirmar que a
racionalização em Weber não distancia em muito da alienação em Marx
36
.
A socióloga o é única a afirmar o íntimo parentesco entre Marx e Weber.
Beetham sugere que existem “ecos” do “conceito de alienação de Marx” em Weber no
instante em que este último afirma que a racionalização assume “forças e valores próprios”,
independentes do homem (cf. Beetham, 1974: 71). inclusive quem sustente que é
“consensual” a afinidade entre os dois: “[há] um consenso (embora frágil) que existe um
certo paralelo entre a visão de Weber sobre a racionalidade e a visão de Marx sobre a
alienação, que existem muitos pontos pacíficos entre Marx e Weber na conceitualização do
capitalismo” (Holton & Turner, 1990: 17, 18). Nunca é demais recordar que este consenso
não nos inclui.
Até mesmo nos instantes que Weber parece reproduzir algumas determinações
capturadas por Marx, as diferenças dos pontos de vista de classe ganham relevo. Quando
parece que a teoria da racionalização burocrática tangencia em alguns pontos o processo de
fetichização do capital descrito por Marx, Weber é incapaz de ultrapassar o “círculo
familiar dos objetos”, assim expressaria Schiller. Prestem atenção na maneira pela qual, ao
estudar as condições dos trabalhadores nas fábricas alemãs, Weber chega perto de
processos descritos por Marx como a transformação do operário em apêndice da
maquinaria:
Na questão da “rentabilidade”, a capacidade de rendimento do trabalhador é
considerada no mesmo sentido que a rentabilidade de uma classe qualquer de
carvão ou de um mineral ou de qualquer outra “matéria prima”, de uma fonte de
energia ou de uma determinada máquina. O trabalhador é aqui, em princípio, nada
mais que um meio de produção rentável..., com cujas capacidades e “falhas”
que se contar, como se conta com as de qualquer meio de produção mecânico
(Weber, 1999b: 131).
36
O capítulo sobre a relação entre Weber e Marx em Max Weber e a história foi escrito por Colliot-Thélène
para tentar unir os dois autores. A socióloga chega a dizer que “Weber é, em grande parte, devedor de Marx
pela ruptura com a interpretação ‘idealista’ dos fenômenos históricos” (1995: 55). A conexão dos dois autores
é provada por Colliot-Thélène a partir da designação que ambos davam à ciência que produziam: em A
ideologia alemã, Marx falava em ciência com “pressupostos empíricos”, ao passo que Weber sempre disse
fazer uma “ciência empírica”. Esta débil correspondência é suficiente para que a socióloga diga que Weber é
legatário de Marx em vários aspectos. Não é demais relembrar que os universos ontológicos e os pontos de
vista de classe de que partem são incompatíveis entre si. Que a oposição a Marx não tenha levado Weber à
“mística niilista” de Simmel, isso pouco significa. O materialismo de Marx não é a mesma coisa que o
pretendido “materialismo” de Weber. Não é uma ou outra expressão em comum que fará com que se apague
esse fato crucial.
161
Weber chega perto das determinações do capítulo sobre a maquinaria de O
capital, mas não as reproduz. Faltou dizer que, embora em aparência possa ser tratada
como um “meio de produção”, um apêndice da maquinaria, a força de trabalho é, em
verdade, a mercadoria particular sem a exploração da qual não existiriam as relações de
produção capitalista. O trabalhador é um “apêndice” que gera mais-valor, o que nenhum
meio de produção poderia efetuar; não se extrai mais-trabalho de um meio de produção. A
“rentabilidade” da força de trabalho será sempre imperiosa ao capital. Ao contrário do
argumento de Weber citado acima, as falhas da rentabilidade da força de trabalho possuem
uma grandeza que não se compara com as falhas da rentabilidade do carvão ou de qualquer
matéria prima. São estas as contradições essenciais que movem o processo. Para o capital, a
classe trabalhadora nunca foi “nada mais que um meio de produção rentável”.
Nesta pesquisa sobre os trabalhadores alemães, quando se ocupa da extensão da
jornada de trabalho, Weber põe às claras as diferenças entre o que chama de racionalização
burocrática em face das formas capitalistas de alienação apreendidas por Marx. Nesse caso,
a interrogação de Weber respeita à influência do aumento ou da diminuição da jornada
sobre o “rendimento” do trabalhador; que espécie de mudança na jornada causa a “fatiga
psicofísica” na classe operária. Menciona o exemplo a fábrica de tecelagem Zeiss que
reduziu a jornada e o trabalho “rendeu” tanto ou inclusive mais do que uma jornada
ampliada (cf. Weber, 1999b: 143). A propósito do assunto, escaparam a Weber elementos
importantes que constam em O Capital: a extensão da jornada e sua divisão entre o custo de
reprodução da força de trabalho e o mais valor produzido; a ampliação ou redução da
jornada de trabalho e a sua relação com a transformação da mais-valia absoluta em relativa;
os métodos de exploração de mais-valia relativa caso a jornada esteja limitada por lei
(incremento da produtividade do trabalho, o exército industrial de reserva, a introdução de
novidades tecnológicas, etc.); a passagem da subsunção formal para a subsunção real do
trabalho ao capital; a intensificação do trabalho; as melhorias ou os retrocessos do custo de
reprodução da força de trabalho de acordo com as lutas travadas entre capital e trabalho, e
outros. Se não houver grande distância entre a “racionalização” de Weber e a “alienação”
de Marx, é de se explicar o porquê do abissal intervalo entre o que os autores disseram
sobre a jornada de trabalho.
162
Disso não resulta que Weber não tenha capturado determinadas formas de
resistência do trabalhador face aos avanços do capital. O debate sobre a “auto-restrição”
cumpre um papel importante neste seu estudo empírico sobre a classe trabalhadora alemã.
O trabalhador impõe-se conscientemente um limite de produção; restringe o próprio
trabalho para que não maiores ganhos ao capital. A auto-restrição demanda um certo
grau de consciência dos seus interesses por parte do trabalhador em antagonismo aos
interesses do capital. Weber afirma que “a ‘auto-restrição’ intencional e consciente, não
apenas involuntária e dependente do ânimo, dá-se em todos os lugares em que exista algum
sentimento de solidariedade entre os trabalhadores ou em uma parte significativa deles, a
despeito da organização sindical” (1999b: 157). Weber capta uma modalidade de
resistência do operário e, ademais, atrela esta resistência à solidariedade de classe. Contudo,
o sociólogo o transgride as fronteiras colocadas para sua classe; o vislumbra que a
resistência espontânea do trabalho frente ao capital possa evoluir para a política
revolucionária. Não era de se esperar que Weber pusesse tais temas em pauta de discussão.
Pois, é evidente, logo nos capítulos introdutórios a Sociologia do trabalho industrial,
declara-se que a empresa monopolista moderna “transformou o rosto espiritual do gênero
humano quase até não reconhecê-lo e segui transformando-o” (Weber, idem: 74). Que
resistam os trabalhadores porque o capitalismo burocrático modelou e seguirá modelando a
face do gênero humano.
Lukács sempre teve enorme prudência ao traçar paralelos de Marx com os
filósofos burgueses. Na análise da relação entre Marx e Vischer, Lukács apreende questões
metodológicas que podem servir ao presente debate. Sabe-se que Marx acompanhou
atentamente a produção teórica do esteta irracionalista. Lukács encontra algumas
ressonâncias da leitura de Vischer na obra de Marx, como, por exemplo, nas passagens
sobre os mitos gregos em Contribuição para a crítica da economia política. Obviamente,
não seria a circunstância para reproduzir a discussão completa; o decisivo é reter a
afirmação de Lukács quando compara os trechos de Marx que parecem nascer da influência
de Vischer: “é impossível não notar que as duas exposições apresentam certos traços
comuns, ainda que sejam de natureza muito geral” (1957: 297). Isso, no entanto, não é
suficiente para que Lukács convença-se de que Marx corrobora com a estética irracionalista
de Vischer: “certamente o confronto entre os autores revelará ao mesmo tempo de modo
163
mais explícito a radical diferença entre as duas concepções, o seu diverso fundamento de
classe e, por isso, a sua linha de desenvolvimento diametralmente oposta” (Lukács, 1957:
297, 298). Daí, Lukács aprofunda o cotejo entre os dois, o que evidencia a mencionada
“radical diferença”. Nas mãos de Marx, as influências de Vischer mudam de caráter,
ganham uma “linha de desenvolvimento diametralmente oposta”.
É esta a postura metodológica a ser seguida quando se trata da relação entre Marx
e Weber. Os prováveis ecos de Marx em Weber adquirem uma “linha de desenvolvimento
diametralmente oposta”. A “racionalização” de Weber e a “alienação” de Marx distam
remotamente; discutiram a introdução da maquinaria no processo produtivo, a jornada de
trabalho, as formas de resistência do trabalho ao capital, mas assumiram pontos de vista de
classes distintas.
É preferível que se descartem os paralelos com Marx e que se procurem com
autores diversos os laços da interpretação de Weber acerca do capitalismo burocrático. Ao
concluir o capítulo sobre Weber em A destruição da razão, Lukács diz que o sociólogo faz
a ponte entre a filosofia imperialista do neokantismo e o existencialismo (cf. 1968: 500). A
correlação é exata, a nosso ver. Também em Heidegger a situação do capital monopolista é
eternizada para todo o ser social, com a peculiaridade que aqui se transforma na condição
ontológica do homem. A angústia dos tempos do estágio imperialista do capital é um dos
elementos que constituem a ontologia existencialista: “aquilo com que a angústia se
angustia é o ‘nada’ que não se revela ‘em parte alguma’. Fenomenalmente, a impertinência
do nada e do em parte alguma intramundanos significa que a angústia se angustia com o
mundo como tal (Heidegger, 1997: 250). Para Heidegger, o princípio motivador da
angústia é o mundo enquanto tal e não o mundo do capital monopolista. Kierkegaard havia
escrito que um pouco de eternidade compunha o desespero humano e Heidegger afirma que
o homem jamais supera o estado de angústia. O homem está condenado à angústia. É a
resignação frente à fase imperialista do capital compartilhada entre os existencialistas e
Weber. Efetivamente, as circunstâncias históricas não são de todo distintas. A segunda e
completa edição de A ética protestante e o espírito do capitalismo é de 1920 e a publicação
de O ser e o tempo é de 1927. Respondem à mesma particularidade histórica. Não se duvida
que haja especificidades entre Weber e os existencialistas (e mesmo entre os
164
existencialistas; que se comparem os franceses com os alemães). Mas todos fincam estacas
no mesmo território político-teórico.
Lukács estabelece a correlação entre o neokantismo de Weber e existencialismo
de Heidegger que, a nosso parecer, é correta. No terreno do pensamento burguês, Weber é
ponte de transição que conduz a Heidegger. Em contrapartida, existe novamente em
Colliot-Thélène a tendência de equiparar as teses de Weber acerca do Estado burocrático
com as de Hegel; não só Marx mas igualmente Hegel seria correlato de Weber quanto à
burocracia. Com efeito, é a tese central do livro O desencantamento do Estado — de Hegel
a Weber, de Colliot-Thélène. As palavras introdutórias exibem a tendência: “as
similitudes que existem entre as análises hegeliana e weberiana do Estado moderno foram
raramente assinaladas. São, entretanto, completamente perceptíveis” (Colliot-Thélène,
1992: 07). A socióloga discorre a propósito das semelhanças dos dois autores a respeito do
funcionalismo estatal. Por exemplo, segundo ela, em Weber também haveria “o tema da
dedicação ao bem público, igualmente presente, e fundamentalmente, no Estado hegeliano”
(idem: 15). Todo o texto direciona-se no sentido de construir um parentesco entre a
“filosofia política” de Hegel e a “sociologia da dominação” de Weber.
Colliot-Thèléne acredita ter encontrado o grande trunfo de seus argumentos no
fato de que Hegel teria percebido o desprendimento da esfera administrativa estatal em face
das demais esferas societárias. Tal desprendimento autônomo seria posteriormente
analisado em larga escala por Weber. É feito o vínculo: “Hegel, como vimos, antecipou
esta dissociação das práticas sociais que está no coração do processo de ‘racionalização’
descrito por Weber” (Colliot-Thèléne, 1992: 261). Ali estão as similitudes perceptíveis
entre os pensadores. Apesar de ressalvar certas distinções metodológicas (o projeto
hegeliano de uma filosofia da história que nunca esteve nos planos weberianos), este foi o
argumento com o qual Colliot-Thèléne procura convencer-nos das afinidades teóricas entre
o dialético idealista e o positivista neokantiano: a burocracia desprende-se enquanto classe
autônoma na gerência cotidiana dos negócios do Estado.
Na verdade, a socióloga francesa atém-se a aspectos formais de Princípios da
filosofia do direito e de Economia e sociedade. Se ambos teorizaram sobre a burocracia
desencantada, as suas respectivas teses assumem funções históricas bem diversas; refletem
contextos distintos. Tomando de novo o modelo de Lukács ao estudar Marx e Vischer,
165
veremos que as similitudes formais desaparecem ao analisarmos o conteúdo histórico dado
ao Estado burocrático em Hegel e em Weber.
Bom leitor de Hobbes, Hegel entendia a sociedade civil como “o campo de
batalha dos interesses individuais de todos contra todos” (1976: 265). No âmbito da
sociedade civil, os homens portam-se conforme seus interesses mais imediatos,
particulares. A manifestação de tais particularidades dá-se nas “corporações”. O Estado, em
seu turno, representa os interesses universais, “o ponto de vista mais elevado”. É justamente
a burocracia, a “classe de funcionários”, que está em possibilidade de engendrar a
universalidade em meio às particularidades da sociedade civil; o funcionalismo é o
portador da universalidade do Estado. É a generalidade da burocracia versus o
imediatismo das corporações civis. Leiamos da letra de Hegel a sua definição da classe
burocrata: “a classe universal ocupa-se dos interesses gerais, da vida social” (idem: 185). O
ofício do funcionário é o interesse universal da razão. Para que esteja em condições de
atuação, a classe universal deve ser “dispensada do trabalho direto requerido pelas
carências, seja mediante a fortuna privada, seja mediante uma indenização dada pelo Estado
que solicita a sua atividade, de modo que, nesse trabalho pelo universal, possa encontrar
satisfação o seu interesse privado” (Hegel, idem: 185). É imperativo que o burocrata esteja
acima das carências da sociedade civil para que possa resolver os conflitos particulares em
nome da razão de Estado. Eis que a burocracia desprende-se, autonomiza-se das esferas
sociais.
Os juízos de Hegel a propósito da “classe universal” suscitaram o seguinte
comentário de Marx: “os fins do Estado convertem-se em fins de escritório e os fins de
escritório em fins do Estado. A burocracia é um círculo de que nada pode escapar” (2002a:
120). Logo adiante: “o Estado existe na forma de diversos espíritos burocráticos fixos,
cuja única coerência é a subordinação e a obediência passiva” (Marx, idem: 121).
O Estado de Hegel é uma projeção, um ideal a ser alcançado, um dever ser. É um
conceito construído a partir das potencialidades do seu presente exacerbadas
especulativamente. Diz Marx: “constrói-se uma categoria e conforma-se em encontrar uma
existência que lhe corresponda. Hegel concede à sua Lógica um corpo político; o que não
é a lógica do corpo político(idem: 122). Ainda na esteira de Feuerbach, o jovem Marx
procura resolver as mistificações hegelianas a partir de um ponto de vista materialista,
166
mesmo que neste instante de sua formação não tenha descoberto a chave metodológica da
crítica da economia política.
A teoria política de Hegel é a principal manifestação da contradição entre o seu
método, que afirma a historicidade das relações sociais, e o sistema, que aponta para um
“fim da história”.
Lukács diz que somente se pode entender a idéia de que o Estado é a realização da
razão ao se reter a situação histórica da Alemanha de Hegel. Diante da fragmentação das
nações germânicas, o Estado poderia engendrar a unidade nacional. “Só deste ponto de
vista o Estado aparece como algo que se encontra para além de todos os contrastes da
sociedade civil” (Lukács, 1975: 511). Assim, Hegel pensa o Estado como a encarnação
unitária das figuras do espírito; o filósofo sempre acreditou que as contradições da
sociedade pudessem ser resolvidas pela intervenção do Estado. E, para Hegel, a burocracia
é a implementação do Estado burguês, a consolidação revolucionária deste Estado. Pode-se
dizer que, segundo os Princípios da filosofia do direito, a maturação da revolução burguesa
ocorre com o desenvolvimento da casta burocrática. Hegel era um ideólogo do período
revolucionário da burguesia, do período heróico do nascimento do Estado burguês em face
das relações feudais. A filosofia do direito de Hegel é a tentativa de elevar a conceito o
Estado da revolução francesa (em especial do período napoleônico).
Inteiramente distante é a situação histórica de Weber. A sua apologia indireta ao
Estado burocrático é o embate contra a possibilidade de ruptura deste Estado por parte da
classe trabalhadora. Tanto Weber quanto Hegel estavam a favor do Estado burocrático
burguês; porém, com a determinante diferença de que isso significava em Hegel uma
tomada de posição contra a miséria da Alemanha aristocrática, enquanto que em Weber
implicava a luta a favor da conservação da ordem. Entre ambos, a mudança qualitativa
da burguesia em direção à manutenção do estado de coisas. Entre os Princípios da filosofia
do direito e Economia e sociedadeo surgimento do novo sujeito revolucionário, a classe
trabalhadora.
Colliot-Thèléne não compreende que a advocacia de Hegel favorável ao Estado
burguês revolucionário o é passível de equalização com a defesa do Estado burguês
conservador de Weber. A identificação é possível se nos atermos aos contornos mais
abstratos do pensamento dos dois teóricos. A linha histórica que parte de Hegel e conduz a
167
Weber somente pode ser construída sob aspectos puramente formais. Para alguém que
tenha lido e entendido as teses de Lukács em A destruição da razão, soa extremamente
problemático traçar uma linha de pensamento que chega até Weber desde Hegel e não de
Schelling. Sabemos que a herança das grandes aquisições da dialética hegeliana não está
em Weber, senão em Marx. Com mordaz ironia, Isaac Deutscher (1973) disse que, se
houver algum parentesco entre Hegel e Weber, este último seria um “neto pigmeu” daquele
primeiro.
3.3.2 O lugar da ética protestante
Weber descobriu o capitalismo em absolutamente todas as épocas históricas.
Porém, sob sua visão, o caráter específico da modernidade ocidental é precisamente este
pendor geral à burocratização. O capitalismo moderno do ocidente se diferenciaria do
antigo e do medieval graças a sua racionalidade, seu cálculo, sua burocracia. Sobre a
racionalidade burocrática se falou bastante nestas páginas, sem que fossem feitas
menções à maneira pela qual Weber explica a origem do capitalismo moderno. Que este
seja o nosso assunto a partir de agora. A teoria weberiana acerca da gênese do capitalismo
moderno é controversa porque “a tese de Weber está repleta de ambigüidades,
inconsistências e outras curiosidades intelectuais” (Parkin, 2000: 23). O ponto principal da
discussão gira em torno da dimensão que possuiria a ética protestante na origem da
modernidade.
Swedberg defende que a atuação da ascese protestante seria um episódio apenas
na individualidade histórica construída por Weber:
O que nem todos sabem é que Weber via o surgimento do capitalismo moderno
como um processo gradual, que teve dimensões institucionais assim como
culturais e que se estendeu por vários séculos. A influência do protestantismo
ascético é apenas um episódio desse longo processo, embora um episódio
importante e particularmente fascinante (2005: 21).
A partir da leitura de História geral da economia, Swedberg constata que Weber
deu importância a outros fatores além da religiosidade racional protestante. De fato,
naquele texto, Weber colocaria enquanto pressuposto do capitalismo hodierno a
contabilidade racional do capital, cujas condições prévias seriam 1) a apropriação dos
meios de produção por parte da burguesia, 2) a liberdade de mercado, 3) uma técnica
168
racional, 4) o direito racional, 5) o trabalho livre e 6) a comercialização da economia (cf.
Weber, 1968: 250, 251). Aliadas a outros fatores (o Estado racional e o protestantismo), as
instituições teriam gerado o capitalismo moderno. Esta é a leitura da tese weberiana para a
ascensão da modernidade que Swedberg privilegia: a doutrina protestante é um episódio
entre outros de peso igualmente relevante.
Em meio à série de eventos listada em História geral da economia encontra-se a
desapropriação dos trabalhadores de seus meios de produção. Seria mais um dos
momentos constitutivos do capital moderno, ao lado dos demais. Ao contrário, para Marx,
este é o pressuposto histórico para o ser do capital: a apropriação dos meios de produção
por parte da burguesia e então a classe trabalhadora “livre” para alienar a sua força de
trabalho no mercado. Não capitalismo em qualquer outra condição. A tendência de
Weber é diminuir a importância histórica desse movimento. Na conferência de 1918 sobre
o socialismo, Weber afirma que os instrumentos de produção tornaram-se monopólio das
empresas e que “esta é uma realidade de fato, mas semelhante fenômeno não é típico
apenas do processo econômico de produção” (1993: 97). A partir daqui, Weber enumera
situações que qualifica como similares a do trabalhador fabril. Na universidade, “a massa
de forças trabalhadoras atuais no âmbito da atividade universitária, sobretudo os assistentes
dos grandes institutos, encontram-se, nessa perspectiva, na mesma condição que um
operário qualquer” (Weber, idem: 97). Os funcionários e docentes das universidades
também estão desprovidos de seus meios de produção, afirmaria Weber.O mesmo ocorre,
também, no âmbito das forças armadas”. Isto é, na modernidade, “tanto o soldado quanto o
oficial... deixam de ser proprietários dos meios necessários para travar uma guerra” (Weber,
idem: 97, 98).
Não é necessário muito esforço para perceber que Weber reduz a amplitude do
movimento de desapropriação dos trabalhadores. É uma abstração desmedida, nociva à
ciência, a equalização da função social historicamente determinada ao trabalhador com a de
funcionários de universidades e de soldados. O que é o pressuposto genético-ontológico
para o ser do capital, Weber equipara a outros momentos profundamente episódicos em
vista do processo de libertação” da classe trabalhadora para que se venda no mercado; na
História geral da economia, é mais uma entre tantas esferas que ajudaram a causar a
sociedade capitalista.
169
Caso fosse a construção de uma “individualidade histórica”, diríamos que o “juízo
de possibilidade objetiva” de Weber não foi eficaz. Não soube discernir entre o trivial e o
substantivo. É resultado de um uso falho das “fontes de conhecimento” e uma análise
precária das “regras de experiência”. A desapropriação dos meios de produção dos
trabalhadores transformou o curso da História Mundial; uma causalidade de tão magnitude
não cabe nem de longe à “desapropriação” de funcionários e soldados.
Não pretendemos estudar todas as esferas listadas em História geral da economia
que constituiriam as causalidades do capitalismo moderno, porém, uma outra chama a
atenção: a formação do direito racional. À visão de Weber, na sociedade contemporânea,
um dos elementos característicos da burocracia estatal seria a racionalização do direito; o
nosso autor delineia em Economia e sociedade que, nos marcos da modernidade, a esfera
do direito assume a forma de um todo sistemático, “um sistema de regras logicamente
claro, internamente consistente e, sobretudo, em princípios, sem lacunas” (Weber, 1999:
12). A sistematização moderna do direito significa a constituição de “um sistema, portanto,
que busca a possibilidade de subsumir logicamente a uma de suas normas todas as
constelações de fatos imagináveis, porque, ao contrário, a ordem baseada nestas normas
careceria de garantia jurídica” (Weber, idem: 12). O direito enquanto corpo normativo
implica a abrangência sem lacunas de todos eventos da vida cotidiana. É um dos elementos
de maior peso no que tange ao controle burocrático da vida social.
O fenômeno em si é compreendido por Weber sem que a sua substância racional
seja capturada. Ater-se ao resultado é prescindir de todo o processo do qual ele é apenas a
manifestação histórica. O que está por trás de tal sistematização do aparato jurídico não é
levado em conta. Diversamente do que nos noticia Weber, o direito como um sistema não
nasce do vazio.
Nos fecundos estudos de A teoria geral do direito e o marxismo, Pasukanis afirma
que o direito apenas assume a “forma acabada” na sociedade burguesa: “as relações dos
produtores de mercadorias entre si engendram a mais desenvolvida, universal e acabada
mediação jurídica” (1989: 09). A sistematização do direito é um movimento que responde
às questões postas pela produção material, pela troca de mercadorias no mercado, pela
defesa positiva (“não natural”) da propriedade privada: “assim como a riqueza da sociedade
capitalista tem a forma de uma enorme acumulação de mercadorias, a sociedade, em seu
170
conjunto, apresenta-se como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas” (Pasukanis,
idem: 10). Com a reificação do estágio monopolista do capital, a burocratização jurídica da
vida cotidiana tende a expandir-se quantitativa e qualitativamente.
Além do que, Pasukanis constata um dado relevante para a teorização do direito
vigente nas relações atuais: “é apenas na sociedade burguesa capitalista, em que o
proletário surge como alguém que dispõe da sua força de trabalho como mercadoria, que a
relação econômica da exploração é juridicamente mediatizada sob a forma de um contrato”
(1989: 10). Pela primeira vez na história, temos um contrato jurídico a intermediar uma
relação de exploração entre as classes antagônicas. Nas sociedades escravocratas, “o
escravo é totalmente subordinado ao seu senhor e é precisamente por esta razão que esta
relação de exploração não necessita de nenhuma elaboração jurídica particular”. O advento
das relações capitalistas de produção engendra a essencial novidade: “o trabalhador
assalariado, ao contrário, surge no mercado como livre vendedor de força de trabalho e é
por isso que a relação de exploração capitalista se mediatiza sob a forma jurídica de
contrato” (Pasukanis, idem: 82).
Na Ontologia do ser social, Lukács diz que, à medida que os conflitos adquirem
complexidade, o direito torna-se cada vez mais abstrato em sua formalidade lógica. Essa
sistematização lógica é estabelecida “não pela objetividade social propriamente dita, mas
pelo interesse da classe dominante (ou das classes dominantes ou que articularam um
compromisso) para regular e, portanto, dirimir de certo modo determinados conflitos”
(Lukács, 1981: 480). O direito é sempre um direito de classe. Lukács costumava exprimir o
caráter classista dessa sistematização com uma citação do escritor francês Anatole France
contida no romance O lírio vermelho; ela está referida em meio às suas parcas anotações do
livro sobre a ética que pretendia escrever: a lei proíbe com a mesma majestade que tanto o
pobre quanto o rico durmam embaixo da ponte. Eis uma norma universal, que subsume
sem lacunas todos os “fatos imagináveis” e que vela as suas determinações de classe.
O núcleo oculto deste movimento é inapreensível para o formalismo da sociologia
weberiana. Até quando estabelece uma conexão entre a sistematização do direito e os
interesses da burguesia, Weber não captura efetivamente as determinações que movem este
processo:
Naturalmente, cabe sobretudo aos interessados burgueses exigir um direito
inequívoco, claro, livre de arbítrio administrativo irracional e de perturbações
171
irracionais por parte de privilégios concretos: direito que, antes de mais nada,
garanta de forma segura o caráter juridicamente obrigatório de contratos e que, em
virtude de todas estas qualidades, funcione de modo calculável (Weber, 1999:
123).
Os interesse burguês em se criar um direito sistêmico diz respeito à pura
racionalização formal, à necessidade de se calcular em contratos as relações entre os
agentes econômicos. O direito inequívoco seria um reflexo mecânico do imperativo que se
tenha um conjunto calculável de leis para o tráfico de mercadorias, livre de ingerências
arbitrárias. Oculta-se o fenômeno descrito por Pasukanis: pela primeira vez na história,
temos uma relação de exploração mediada por contratos. Oculta-se que todo um corpo
jurídico nasceu sobre esta base material.
Não é a nossa intenção avaliar uma por uma as esferas que, segundo História
geral da economia, produziram o capitalismo atual. A desapropriação dos meios de
produção dos trabalhadores e o direito racional foram duas ilustrações dos limites do
formalismo sociológico de Weber. Swedberg não questiona o formalismo weberiano em
seu estudo; valoriza a “pluricausalidade” da explicação que Weber dá para a constituição da
modernidade e não a coloca em xeque.
Agora, o problema que cobre a leitura de História geral da economia feita por
Swedberg é que o comentador atenua a importância de uma determinada passagem do
texto. Nela, Weber diz que “o capitalismo não pode surgir de um grupo econômico
fortemente influenciado pela magia” (1968: 315, 316). Ainda que equilibre a força da
ascese protestante com as outras instituições listadas acima, Weber não deixa de conferir ao
protestantismo a causa primária do capitalismo moderno. Instituições modernas como um
corpo de burocratas especializados existiram em outras etapas da história (na China dos
confucionistas, por exemplo); contudo, a burocracia não seria racional moderna” sem a
mentalidade ascética que nasce com a Reforma. As profecias dos reformados quebraram a
magia; são profecias racionais: “é possível que um profeta, acreditado pelos milagres e
outros meios, quebre as normas sagradas e tradicionais” (Weber, idem: 316). Os profetas de
confissão protestante romperam com as normas sagradas da tradição. As profecias que se
ouviram de sua voz foram eleitas por Weber enquanto o “fundamento” do capitalismo
moderno: “às profecias cabem o mérito de haver rompido o encanto mágico do mundo,
172
criando o fundamento para a nossa ciência moderna, para a técnica e, por fim, para o
capitalismo” (idem: 316). Lutero e Calvino fundam a modernidade. Não obstante as outras
esferas tenham vez no escopo de História geral da economia, o ponto crucial é a primazia
da ideologia religiosa, da ascese protestante na constituição da época racional do
capitalismo.
Em seu turno, Parkin traça um sentido diverso ao de Swedberg estudando a
compreensão weberiana do capitalismo ocidental moderno. Embora a debilidade de seu
exame resida no fato de que toma unicamente A ética protestante e o espírito do
capitalismo, Parkin defende que Weber possuía duas teses distintas para explicar a
ascensão da modernidade ocidental, uma fraca e outra forte. A forte é aquela que assume
como ponto de partida da época capitalista a doutrina protestante. A fraca diz respeito a
certos instantes da obra de Weber que indicam que a ética protestante e o espírito capitalista
harmonizavam-se mutuamente sem que a primeira fosse causa originária do segundo;
existiriam entre ambos “afinidades eletivas” e não uma conexão de causa e efeito. Para
caracterizar a tese fraca, Parkin baseia-se em um trecho de A ética protestante e o espírito
do capitalismo em que está dito:
Em face da enorme barafunda de influxos recíprocos entre as bases materiais, as
formas de organização social e o conteúdo espiritual das épocas culturais da
Reforma, procederemos tão de modo a examinar de perto se, e em quais
pontos, podemos reconhecer determinadas “afinidades eletivas” entre certas
formas de fé religiosa e certas formas de ética profissional (Weber, 2004b: 83).
Esta é a tese fraca: haveria afinidades eletivas entre o espírito capitalista e a
conduta protestante. Parkin poderia ter encontrado a tese fraca também em Economia e
sociedade. Neste texto, Weber escreve que, com a correspondência entre a reprodução do
capital e o comportamento moral estipulado pela Reforma, “está alcançada a coincidência
do postulado religioso com o estilo de vida burguês favorável para o capitalismo” (2004a:
399). Coincidiram a religião reformada e os interesses do capital. São simples afinidades ou
coincidências. Não existiria, portanto, o pressuposto lógico da tese forte, ou seja, a
correlação de causa religiosa e efeito econômico.
Nas respostas às críticas de Felix Rachfahl, Weber tende a reforçar a tese fraca.
Não temos os originais de Rachfahl, mas, segundo as citações de Weber, o crítico acusava-
o de ter supervalorizado a função das religiões. Weber retruca voltando a utilizar a
173
expressão que tomou de empréstimo de Goethe: “eu encontrei a idéia da ‘profissão
vocacional’ [Beruf] e considerei a afinidade eletiva muito específica que o calvinismo (e
com ele os quakers e algumas seitas semelhantes) mantém com o capitalismo, afinidade
constatada depois de longo tempo” (2003: 418).
A confusão entre as visões dos comentadores dá-se porque Weber é ambíguo em
suas colocações. As leituras possíveis e discordantes encontram respaldo nos textos
weberianos. No entanto, a tese forte é aquela que recebe maiores atenções ao longo de sua
obra (e é obviamente por esse motivo que Parkin lhe atribui a força ao invés da fraqueza): a
ascese protestante, especialmente o calvinismo, teria racionalizado o espírito do
capitalismo ao determinar a seus seguidores o critério econômico da acumulação de bens
como indicativo de salvação. A fórmula é lebre: quanto mais disciplinado for o trabalho
do fiel, maiores são as suas chances de obter a salvação de sua alma; o êxito na profissão dá
ao crente protestante a certeza da redenção espiritual. De acordo com os preceitos da
Reforma, “já que o êxito do trabalho é o sintoma mais seguro do agrado a Deus, o lucro
capitalista é um dos mais importantes fundamentos do conhecimento de que a bênção de
Deus descansou sobre a empresa” (Weber, 2004a: 399). Esse seria o marco inicial da época
moderna ocidental.
A ambigüidade da explicação causal de Weber não é pequena. A tese forte é a
norteadora de A ética protestante e o espírito do capitalismo, enquanto que em História
geral da economia, Weber procura equilibrar aquelas outras esferas que vimos com
Swedberg e a causalidade originária posta à função do protestantismo. Na mesma época em
que lecionava os cursos que seriam publicados sob o título de História geral da economia,
Weber lançava a segunda edição (em 1920) de A ética protestante e o espírito do
capitalismo fazendo notar que “no que a ascese se pôs a transformar o mundo e a produzir
no mundo seus efeitos, os bens exteriores deste mundo ganharam poder crescente e por fim
irresistível, sobre os seres humanos como nunca antes na história” (2004b: 165). Nessa
citação testemunha-se o poder de alcance atribuído à conduta ascética da religião; como
nunca antes na história, a ascese calvinista pôs a transformar o mundo. Na História geral
da economia, é correto que a causalidade do período capitalista também se deve a Lutero e
Calvino. Mas a conduta ética por eles estipulada convive com as demais esferas
174
privilegiadas por Swedberg. Ficamos entre a explicação unidimensional do ensaio de 1920
e a pretendida “pluricausalidade” das lições sobre a história econômica.
Ainda não se fechou a sucessão de curiosidades intelectuais” da tese weberiana.
No ensaio conhecido como Considerações intermediárias: o destino do Ocidente, Weber
a entender que o protestantismo teria sido uma resposta ao surgimento do capitalismo
moderno; seria o efeito secundário e não a causa instituidora. Weber explica que uma
tensão entre as religiões impregnadas do misticismo tradicional e a esfera econômica do
capitalismo contemporâneo: “quanto mais o mundo da economia capitalista racional
moderna seguia suas próprias leis imanentes, tanto menos impermeável tornava-se a
qualquer relação imaginável com uma ética religiosa de fraternidade (2005: 56). Haveria
um conflito inerente à relação entre a impessoal racionalidade da época capitalista e a
fraternidade tradicionalista das velhas igrejas: “e esta impermeabilidade aumentava com o
crescimento da racionalização e da impessoalidade” (Weber, idem: 56). Para fugir à tensão
entre a fraternidade religiosa e a impessoalidade do capital, criou-se a ética vocacional dos
protestantes: “como religiosidade de virtuosos, a ética vocacional puritana renunciava ao
universalismo do amor e considerava racionalmente todo o trabalho neste mundo como
sendo um serviço à vontade de Deus” (Weber, idem: 58). Weber insinua que a ética
protestante tenha sido o retrato religioso das relações capitalistas modernas, uma
“aceitação” do estado de coisas da modernidade: “ao mesmo tempo, esta ética [puritana]
transfigurava o universo econômico — desprezado, como totalidade do mundo, como coisa
da criatura e imperfeita — em vontade divina e material sobre o qual deita o próprio dever”
(idem: 58). Em outras palavras, a rotina burocrática da economia moderna é anterior e a
conduta puritana aceita-a, ajusta-se mecanicamente a ela, transfigura-a em vontade de
Deus.
Essa passagem aponta que existiam maiores inconsistências no “construto lógico”
de Weber do que ele mesmo poderia desconfiar. As arestas ilógicas de sua individualidade
histórica destacam-se à medida que se confrontam os diversos textos em que são abordados
assuntos similares. Se a causalidade cronológica da época capitalista encontra-se na ética
protestante, esta última não seria uma “aceitação” do cosmos econômico moderno,
tampouco uma simples coincidência; pelo contrário, seria a sua origem fundadora. Apesar
disso, o fragmento das Considerações intermediárias parece ser um momento avulso que
175
não se repete ao longo da obra weberiana. Talvez Weber desejasse que os seus leitores
calassem quanto a essas “curiosidades intelectuais” e retivessem apenas a tese forte de A
ética protestante e o espírito do capitalismo: a doutrina protestante fundou a modernidade
do espírito capitalista e ponto final.
Na individualidade histórica que construiu do capitalismo ocidental, Weber
colocou-se a pergunta: se Lutero e Calvino fossem retirados da história, existiria a
modernidade do capital? A despeito das contradições internas, o conjunto global dos
escritos de Weber responde negativamente à questão.
Não houve um par como o de Lutero e Calvino no Oriente. Faltou ao capitalismo
oriental a conduta racional dos ascéticos. Na China, por exemplo, Weber descreve a sua
burocracia estatal e constata a ausência da advocacia, porque “os membros do clã,
possivelmente educados em literatura, funcionavam como advogados para seus familiares”
(Weber, 1968a: 102, 103). A burocracia chinesa baseava-se na irracionalidade das
tradições. Segundo Weber, “o capitalismo industrial racional, específico do
desenvolvimento moderno, não originou em nenhum lugar sob este regime” (idem: 103).
Não haveria capitalismo moderno sem a liderança racional-legal: “o investimento
capitalista na indústria é bastante sensível a tal norma irracional e muito dependente da
possibilidade de cálculo da operação estável e racional da máquina do Estado para emergir
sob uma administração deste tipo” (Weber, idem: 103). Faz-se a pergunta: “porém, por que
esta administração e este judiciário [na China] permaneceram tão irracionais do ponto de
vista capitalista? Esta é a questão decisiva” (idem: 103). adiantamos a resposta à
“questão decisiva” no início do parágrafo; Confúcio e Lao-tzu não foram para as religiões
chinesas o que os Reformadores foram para o cristianismo. Como as demais esferas da vida
social, a administração chinesa permaneceu irracional visto que Lutero e Calvino não
estavam lá. O confucionismo e o taoísmo não racionalizaram profundamente a ética
religiosa. Das religiões chinesas, conforme Weber, o confucionismo foi a que mais perto
chegou da ascese protestante. Todavia, “o racionalismo confucionista significou a
adaptação racional ao mundo; o racionalismo puritano significou o controle do mundo”
(Weber, idem: 248). O racionalismo de Confúcio implica a procura da autoperfeição do
espírito, da sabedoria respaldada nas tradições, da compreensão e aceitação do mundo (ao
contrário do puritano que atua no mundo para adaptá-lo à sua vocação).
176
Nos seus estudos sobre a China, Weber especializa-se no fragmento da religião. É
da religião a prioridade na interpretação do comportamento típico dos chineses. Em certa
medida, as instituições capitalistas estavam lá, porém sem o espírito racional dos ascéticos.
Sem a mentalidade ascética, não nasceu o moderno espírito capitalista entre os chineses.
Entretanto, em uma curta frase, Weber menciona um fato que talvez merecesse melhor
atenção: “foram obstruídas na China a ‘disciplina do trabalho’ e a seleção livre de trabalho
no mercado, as quais caracterizaram a grande empresa moderna” (1968a: 95). Face ao
vínculo dos homens à rígida estrutura dos clãs, jamais houve na China a força de trabalho
disciplinada e “livre” para se vender no mercado. Não resta dúvida que esta característica
da sociedade chinesa poderia ter sido mais bem desenvolvida pelo estudo de Weber. Mas,
tivemos ocasião para demonstrar que, embora o trabalhador desapropriado de seus meios de
produção e subsistência fosse referido por Weber, este evento histórico não lhe causava a
maior das preocupações. Como o nosso autor disse logo acima, a “questão decisiva” não
era esta. Weber centrava-se, sobretudo, na forma como a ascese protestante modelou “a
face do gênero humano” no Ocidente e continuaria a modelar no futuro, não obstante tenha
perdido os laços religiosos de origem.
O mesmo tratamento é dado à sociedade indiana. Na Índia, Weber depara-se com
instituições “racionais”; um exército organizado, contabilidade burocrática, monopólios de
comércio e comunicação, sistema numérico racional, relativo desenvolvimento urbano,
aritmética e álgebra desenvolvidas, direito positivo; tudo isto havia lugar na Índia, segundo
Weber. Por que então o capitalismo moderno de feição ocidental não aportou em terras
indianas? O fato é que foi o próprio ocidente que o levou a Índia. Weber relata que “o
capitalismo industrial moderno, em particular a indústria, entrou na Índia sob a
administração britânica e com diretos e fortes incentivos” (1967a: 113). Todavia, Weber
não pretende analisar os impactos que a dominação colonizadora do capital inglês impôs
aos indianos, o que Marx chamou de “crimes do capital”. Pelo contrário, incumbe-se de
compreender as dificuldades que as relações capitalistas tiveram para se desenvolver. O
capital monopolista não encontrou uma força de trabalho domesticada, pronta para ser
explorada: o indiano é “apenas um trabalhador casual. ‘Disciplina’ no sentido europeu é
uma idéia desconhecida por ele” (Weber, idem: 114). A exploração capitalista encontrou
barreiras no tradicionalismo da cultura da Índia. Careceu o capitalismo indiano da ascese
177
que condicionasse o operário ao trabalho vocacional e “racionalizado”: “para racionalizar a
economia era impossível romper com o tradicionalismo, baseado na ritualística das castas
que se ancora na doutrina do karma (Weber, idem: 123). Weber especializou-se no
fragmento da religião; um “economista” que cuidasse dos “crimes do capital”.
Na individualidade histórica de Weber para a modernidade ocidental, os
Reformados interpretam o papel de protagonistas. Ernst Troeltsch intuiu os equívocos que
possivelmente existiriam em se “exagerar unilateralmente a significação do protestantismo”
(2005: 28). Por isso, tratou de registrar:
Uma grande massa dos fundamentos do mundo moderno em respeito ao Estado, à
sociedade, à economia, à ciência e à arte originou-se com completa independência
do protestantismo, sendo, em parte, uma simples continuação dos
desenvolvimentos da baixa, Idade Média, em parte, efeito do Renascimento e,
especialmente, do Renascimento assimilado pelo protestantismo, e, finalmente, foi
lograda nas nações católicas, como Espanha, Áustria, Itália e especialmente
França, depois que surgiu o protestantismo e junto a ele. Porém, de todo modo,
não é possível negar abertamente sua grande significação na origem do mundo
moderno (2005: 28).
O historiador das religiões é muito mais cauteloso do que Weber ao avaliar a
importância dos Reformados. Vejam que Troeltsch expõe inclusive problemas cronológicos
para se atribuir à conduta ascética a causa originária da modernidade. É fato que Weber
também observa que “certas formas importantes de negócio capitalista” são mais antigas
que a Reforma (cf. 2004b: 82); todavia, esta observação permanece sendo uma outra das
contradições internas à tese de Weber, para a qual o capitalismo moderno não poderia
nascer sem a mentalidade ascética. Ainda que não um tratamento dialético às questões
que levanta, Troeltsch não absolutiza unilateralmente a influência da doutrina religiosa no
devir da modernidade; a sua análise caminha no sentido de imputar à religião o papel
fomentador do comportamento moderno, sem que fosse a instância criadora, a causa única:
“o Estado moderno e sua liberdade e seu regime constitucional, sua burocracia civil e
militar, a economia moderna e a nova estratificação social, a ciência moderna e a arte
moderna encontram-se já em marcha... antes do protestantismo e sem ele” (Troeltsch, 2005:
95). Troeltsch deseja explicar aspectos do homem moderno a partir do luteranismo e do
calvinismo e, ao fazê-lo, não escapa dos limites de um neokantismo culturalista, mas se
178
desvencilha daqueles que viriam quando se confere uma causalidade absoluta às forças
religiosas.
Troeltsch não foi o único pensador burguês a conceber uma variante da
interpretação weberiana para a gênese da época capitalista evidente, sem fazer
concessões à concepção materialista da história). Outros autores participam do baile. No
ensaio As origens do capitalismo moderno, Lujo Brentano elabora a sua própria teoria
sobre o fator causal da modernidade. De acordo com o economista, “o capitalismo moderno
obteve então suas origens no comércio, no empréstimo do dinheiro e na organização da
guerra” (Brentano, 1968: 60, 61). Dos três elementos, o que adquire maior relevo em sua
teoria é a organização da guerra. Na guerra, a diferença entre o regime feudal e o
capitalismo moderno patenteia-se: “na guerra ofensiva, o sistema feudal demonstrou-se
ineficaz; era necessário comprar com dinheiro os serviços dos cavaleiros. É este o primeiro
passo da penetração do capitalismo na organização da guerra” (Brentano, idem: 51). A
partir do investimento do dinheiro acumulado nas cidades comerciais mediterrâneas, as
guerras começaram a ser construídas como verdadeiros empreendimentos capitalistas. Para
que não haja dúvidas, Brentano finca o marco inicial: “encontramos as primeiras formas de
capitalismo nas guerras marítimas travadas pelas cidades italianas comerciais. Lá, as
expedições guerreiras apresentam às vezes o caráter de empresas de sociedade de ações”
(idem: 45).
Alfred Weber prefere privilegiar o papel do Estado ao explicar a ascensão do
capitalismo moderno. O capitalismo moderno seria a passagem do comercial para o
industrial. Nesta passagem, o Estado teria atuado em primeiro plano. Alfred Weber relata
que o capitalismo industrial foi um “presente maravilhoso para os modernos estados” em
sua época de constituição (cf. s/d: 427). Conforme a História sociológica da cultura, “o
Estado moderno, quanto a seu crescente ímpeto, é compreensível à luz desse fato
material. O Estado moderno atrai a si, com todos os seus meios, o capitalismo nascido na
Itália, na Flandres, na Inglaterra e nas cidades alemãs” (Weber, idem: 427). O Estado
moderno teria criado a época capitalista. Vejam que o capitalismo comercial é apresentado
como um fato da história, que não necessita ser explicado, cuja ascensão para a forma
industrial é produzida pelo “ímpeto” do Estado moderno.
179
Alfred Weber esclarece em que consistiu o desempenho do Estado na consecução
da modernidade do capitalismo: para que se fomentasse a empresa capitalista
contemporânea, era preciso que fossem formados monopólios e privilégios, uma moeda e
um sistema de crédito monetário organizados, estradas, canais e correio público; além
disso, o capitalismo moderno nascente precisava de colônias em todas as regiões do mundo,
de terras a serem exploradas, de “territórios estrangeiros aos quais, depois de ter destruído a
produção primitiva dos indígenas, pudesse vender com grande ganho, comprar barato ou
fazer produzir barato aquilo que venderia caro depois” (Weber, s/d: 428). Eram necessários
a força de trabalho barata e também o exército armado que lhe protegesse. Estes eventos
teriam vez apenas com a ação do Estado: “só o Estado moderno seria capaz de proporcionar
todos esses meios” (Weber, idem: 429). Dessa maneira, segundo História sociológica da
cultura, o Estado alimentou o “ser que, uma vez criado, tem de desenvolver-se por si
próprio como conquistador da vida e do mundo, dado que este ser vivia do princípio da
acumulação do capital..., levando... em si próprio forças ilimitadas que possuíam as suas
próprias leis de evolução” (idem: 431).
Em seu turno, Werner Sombart trouxe à luz a sua versão particular para o
surgimento do “espírito capitalista”. No seu caso, a polêmica era explícita contra Max
Weber. O economista descobre o “espírito de empresa”, característico do empreendimento
burguês, muito antes do Benjamin Franklin de Weber; escreve que, “se o me equivoco,
em Florença, até fins do século XIV apareceu pela primeira vez o perfeito burguês
(Sombart, 1953: 103). Assim afirma Sombart porque o atesta um grande número de
documentos deixados por homens de negócios e outros que estavam à par das atividades
comerciais; são homens que “consignaram seus pensamentos em preciosas memórias ou
obras morais cuja leitura erige ante nossos olhos, com claridade meridiana, a imagem e
semelhança de Benjamin Franklin, cabal encarnação do espírito burguês” (Sombart, idem:
103).
Sombart elege o filósofo Leon Battista Alberti (1404-1472) como o autor da obra
que, em primeira mão, reúne os princípios do espírito capitalista. Haveria em Do governo
da família as noções de racionalização da conduta econômica, o espírito acumulativo e a
honestidade nos negócios; são características que Sombart chama de “virtudes burguesas”
presentes na obra do renascentista. Esse livro demonstra para o economista que aquilo
180
que se encontra na época capitalista “a saber, os princípios de uma existência burguesa bem
ordenada, discreta, fundada em um determinado conjunto de conveniências, signos de bom
tom e distinção, forma desde 1465 a substância vital da alma dos comerciantes e dos
banqueiros florentinos” (1953: 103).
Entretanto, para melhor articular a sua explicação para a origem do capitalismo
contemporâneo, o economista alemão separa dois tipos ideais de burguês: o antigo e o
moderno. O antigo percorre desde o Renascimento até o século XVIII e tem como principal
atributo o fato de que não está a serviço do capitalismo; “para todos os homens dos alvores
do capitalismo, os negócios não eram mais que um meio para se chegar ao único fim
supremo que não era outro senão a vida”. Segundo Sombart, estes homens colocavam-se no
centro mesmo de seus interesses: “eram seus próprios interesses vitais e dos demais homens
com quem e para quem trabalhavam que determinavam a direção e a medida de suas
atividades” (1953: 148). A marca distintiva do novo burguês, advindo da revolução
industrial inglesa, é o deslocamento do centro de seus interesses para a aquisição do lucro:
“o homem, com seus prazeres e dores, com suas necessidade e exigências, deixou de ser o
ponto de convergência de todos os interesses, e que seu lugar foi ocupado por algumas
abstrações como o lucro, o enriquecimento, os negócios” (idem: 162). Esse é o aspecto
psicológico de principal relevância na caracterização do burguês moderno feita por
Sombart: o homem deixa-se de lado, ocupa-se com a obtenção dos lucros e nada mais.
Restaria saber quais foram as novas forças que, de acordo com Sombart,
produziram a mudança, trouxeram o lucro para o cerne dos interesses do homem burguês e
engendraram a modernidade do capital. O economista é claro quanto a isso: o espírito do
capitalismo moderno deve-se aos judeus, graças à sua predisposição psicológica e à sua
religião.
Vejamos com maiores detalhes o caminho traçado pelo autor de O burguês rumo
à conclusão de que os judeus instituíram o capitalismo moderno. Sombart sustenta que a
biologia particular de certas raças detém condições que contribuem ao empreendimento
capitalista: “sem dúvida, todas as manifestações do espírito capitalista reduzem-se, como
todos os estados e processos psíquicos, a predisposições particulares, é dizer, a
propriedades originais e hereditárias do organismo” (1953: 187). Seriam inerentes à
psicologia de determinadas raças as aptidões que impulsionam o capital. Apesar do
181
grosseiro darwinismo social de suas idéias, Sombart não se abala: “a meu juízo, é um fato
acima de toda discussão que as manifestações do espírito capitalista e que a estrutura
psíquica em sua totalidade repousam sobre predisposições hereditárias” (idem: 187).
Homens de certa estirpe nascem com a alma burguesa, com a “vivacidade de espírito,
perspicácia, inteligência” que, conforme Sombart, perfazem o temperamento do empresário
(cf. idem: 189). A natureza burguesa está “no sangue”. Por isso, “avistamos de longe um
burguês porque conhecemos o aroma especial que se desprende desta raça humana”
(Sombart, idem: 191).
Por conseguinte, as etnias que estariam predispostas ao capitalismo empreendedor
são aquelas que abrangem o maior número de homens com a alma burguesa. Observem as
conclusões produzidas pelo economista a partir deste determinismo psicológico: “entre os
povos cujas aptidões capitalistas estão abaixo do comum, coloco antes de tudo os celtas e
algumas tribos germânicas, como os godos” (1953: 199). Em contrapartida, “entre os povos
europeus, foram os florentinos, os escoceses e os judeus os que mais contribuíram para o
desenvolvimento do espírito capitalista” (Sombart, idem: 202). Assim, aqui estão os judeus
com as suas predisposições psicológicas e biológicas a ajudar na constituição do capital
moderno. Mas não estão sós. Os florentinos e os escoceses figuram entre eles. Os três
povos mantiveram-se puros ao longo dos tempos. Não mesclaram o seu sangue burguês
com outros povos menos aptos ao capitalismo e selecionaram entre si os mais fortes para o
empreendimento empresarial.
Por que seriam então os judeus os escolhidos por Sombart para fazer originar o
capitalismo moderno? É de se interrogar o que os difere das duas “etnias” também aptas
para o espírito capitalista. A resposta é mais simplória do que parece à primeira vista:
segundo Sombart, nem os florentinos e sequer os escoceses tiveram para si uma moral
religiosa como o judaísmo. Ou seja, a influência da religião judaica sobre a orientação da
vida em geral e da vida econômica em particular foi mais decisiva e mais profunda que as
outras demais” (Sombart, 1953: 224). Sombart refuta claramente a idéia weberiana de que o
protestantismo foi um impulso ao capital; pelo contrário, a “Reforma teve
incontestavelmente como resultado uma introversão do homem e a intensificação de sua
necessidade metafísica, os interesses capitalistas deviam necessariamente sofrer na medida
em que o espírito da Reforma difundia-se e generalizava-se” (idem: 241). Conforme os
182
estudos de Sombart, o papel que Weber credita ao protestantismo pertenceria, na verdade,
ao judaísmo. Se existiram grandes capitalistas puritanos, Sombart inclina-se a crer na força
das disposições naturais deste homens ou nas meras circunstâncias casuais; não seria
resultado da ascese protestante (cf. idem: 249). Fosse talvez a influência do judaísmo
dentro do próprio protestantismo.
A situação é diferente quando se trata do judaísmo: “o que considero como o
aspecto específico do judaísmo é que este contém e desenvolve até as últimas
conseqüências lógicas todas as doutrinas favoráveis ao capitalismo” (Sombart, 1953: 252).
Haveria nos preceitos da religião judaica os mandamentos que motivam a liberdade
comercial e industrial. O economista sugere inúmeras passagens dos textos sagrados dos
judeus em que são comprovados tais pressupostos. De acordo com Sombart, para a
judaica, “não dúvidas: é Deus mesmo quem deseja a liberdade de comércio, o exercício
liberal das profissões. É inútil insistir acerca da influência que semelhante concepção
desempenhou sobre a orientação e evolução da vida econômica” (idem: 257).
Em um livro chamado Os judeus e o capitalismo moderno, Sombart coloca a
seguinte questão para os leitores que ainda duvidam de que existe algo de essencialmente
judeu na constituição do capitalismo contemporâneo: “de outra maneira, poderíamos talvez
assegurar que não haveria diferença para a história econômica da Europa ocidental se os
esquimós tivessem ocupado o lugar dos judeus, ou quem sabe até gorilas tivessem feito esta
função tão bem” (2001: 176, 177).
A religião judaica é milenar e a constituição do capitalismo moderno data do
século XVIII. Lembrem-se de que o novo burguês seria recente na história do homem.
Explica Sombart que, apenas neste período, as premissas biológicas, psíquicas e religiosas
do povo judeu conseguiram as condições sociais que serviram de fulcro para a formação de
uma época capitalista. No século XV, trezentos mil judeus foram expulsos da Espanha e
espalharam-se pela Europa. Esses migrantes judeus “são os pioneiros e os animadores da
organização capitalista” (Sombart, 1953: 281). A este fenômeno agregam-se condições
sociais de outra espécie: maiores migrações, o Estado, as descobertas de minas de outro e
prata, a técnica racional, etc. Assim se deu o capitalismo moderno; “o gigante liberado
percorreu os países, assolando tudo a seu passo, demolindo todas as barreiras que se
opunham ao avanço de sua marcha” (Sombart, idem: 338).
183
Ao concluir triunfante, diz Sombart que o seu estudo sobre a constituição do
capitalismo “não deixa de nem sequer hipóteses o engenhosas como as de Max
Weber” (1953: 335).
Max Weber não se furta a dialogar com as provocações de Sombart. É escrito no
capítulo da sociologia das religiões em Economia e sociedade: “na polêmica contra o
engenhoso livro de Sombart não se deveria ter contestado seriamente o fato de que o
judaísmo participou intensamente no desenvolvimento do sistema econômico capitalista da
Idade Moderna” (2004a: 405). Com efeito, em parcial concordância com Sombart, Weber
no judaísmo uma forma de racionalização da conduta cotidiana, que, em certa medida,
fomenta o “espírito do capitalismo”: a despeito de suas diferenças internas, o fato de que o
judaísmo e o protestantismo não conhecerem nenhuma confissão e dispensa de graça por
uma pessoa humana e nenhuma graça sacramental mágica, exerceu historicamente aquela
pressão imensamente forte que levou ao desenvolvimento de formas eticamente racionais
de vida” (Weber, idem: 376). Sob configurações diferentes, ambas racionalizam a conduta
no mundo.
No entanto, do ponto de vista de Weber, a racionalização da ética judaica não teria
alcançado o grau de asceticismo modernizador de seu herdeiro, o protestantismo:
O sucesso nas atividades aquisitivas passou a ser cada vez mais, para o judeu do
gueto, uma prova tangível da graça pessoal de Deus. No entanto, a idéia de
“afirmar-se” na “profissão” determinada por Deus não se aplica ao judeu no
sentido dado pelo asceticismo intramundano. Pois a bênção de Deus está
arraigada, muito menos do que entre os puritanos, num método de vida
sistemático, ascético e racional, como a única fonte possível da certitudo salutis.
Não apenas, por exemplo, a ética sexual conservou um caráter antiascético e
naturalista, e a ética econômica do judaísmo antigo permaneceu fortemente
tradicionalista nas relações postuladas, francamente dominada pela valorização da
riqueza, alheia a toda ascese, como também toda santificação pelas obras dos
judeus tem um fundamento ritualista e, além disso, está freqüentemente
combinada com o conteúdo sentimental específico de uma religiosidade baseada
na fé (2004a: 339).
Weber alega que fortes elementos tradicionalistas mantiveram-se na moral da
religião judaica. Nas relações sexuais, na esfera econômica, no próprio ritualismo
sacramental, os judeus não se desvencilharam as amarras da tradição. A ascese dos judeus
184
não foi uma ruptura plena com a magia à maneira do protestantismo, sob a ótica de
Economia e sociedade.
O sociólogo não duvida que o judaísmo estimulou determinadas atividades
aquisitivas, porém, sustenta que falta à economia dos judeus “uma seção — não por inteiro,
mas relativamente e num grau que chama a atenção —, a saber, aquela que é precisamente
própria do capitalismo moderno: a organização do trabalho artesanal em indústrias
caseiras, manufaturas e fábricas” (Weber, 2004: 406). Segundo o sociólogo, as teorias de
Sombart não explicam o motivo pelo qual “não tenha ocorrido a nenhum judeu devoto criar
uma indústria com os círculos de trabalhadores judaicos devotos no gueto da mesma
maneira como o fizeram tantos empresários puritanos devotos com devotos trabalhadores e
artesãos cristãos” (idem: 406). Na seqüência do parágrafo, Weber é categórico: “eles [os
judeus] estão quase inteiramente ausentes (em termos relativos) do que é especificamente
novo do capitalismo moderno, isto é, a organização racional do trabalho, sobretudo
artesanal, em ‘empresas’ industriais” (idem: 406). Isso teria acontecido porque o judaísmo
nunca possuiu a realização racional capitalista enquanto a medida de sua salvação. “Há
traços ‘ascéticos’ no judaísmo, mas eles não são, em si, o central, mas em parte apenas
conseqüências da lei e em parte procedentes da problemática peculiar da piedade judaica;
em todo caso, são tão secundários como tudo que o judaísmo possui de mística genuína”
(Weber, idem: 410).
A distinção do protestantismo estaria justamente naquilo que carece à moral
judaica; de acordo com Weber, para esta última “o que falta é precisamente aquilo que
ao ‘asceticismo intramundano’ sua característica decisiva: a relação unitária com o ‘mundo’
sob o aspecto da certeza de salvação, da certitudo salutis, sendo esta o centro do qual tudo
se alimenta” (2004: 410). Weber reconhece na religião protestante a herança da judaica;
mas é um filho que não carrega absolutamente todos os traços do pai. O protestantismo
aniquilou tudo de magia que ainda persistia no judaísmo e levou a racionalização incipiente
dos judeus a um nível nunca visto. Seria justamente o que existe de “não-judaico” no
protestantismo que teria causado o espírito do capitalismo moderno: a conduta cotidiana do
exercício profissional que se oriente para o acúmulo racional de bens. Uma eclética mistura
das categorias maristas com os conceitos weberianos ficaria assim: a ascese protestante
incita a reprodução ampliada do capital.
185
A polêmica que Weber travou com Sombart esclarece alguns pontos de sua
metodologia, especialmente o racionalismo formal da sociologia compreensiva. Nas
respostas que deu ao economista, Weber não mencionou uma vez sequer os
condicionamentos psicológicos que Sombart atribuía aos judeus. O tema limitou-se à
religião; o irracionalismo resoluto de Sombart foi sumariamente esquecido. Weber ignorou
por completo o fato de que o seu oponente havia declarado que “as características judaicas
estão enraizadas no sangue da raça e não são a sabedoria que se deve a processos
educativos” (Sombart, 2001: 225). Por essas e outras, as conclusões dos estudos sobre o
Judaísmo antigo e Economia e sociedade de Weber são bem melhores do que esta espécie
de darwinismo social permitiria a Sombart produzir.
Enfim, a tarefa de conceber uma alternativa à explicação materialista acabou por
dar vazão a inúmeras versões de inúmeros autores, que divergiam entre si; cada uma à sua
maneira hipertrofiou um aspecto unilateral do processo histórico de gênese da época
capitalista. O “conceito típico” de Brentano refere-se especialmente à organização da
guerra; o de Alfred Weber, ao Estado; o de Sombart, às predisposições psíquicas e à
religião dos judeus; e, finalmente, o de Max Weber, à ascese protestante.
Mesmo na época de Max Weber, não era nenhuma novidade remeter à religião
protestante quando se pensava na difusão da ideologia disciplinar. Já Marx havia atentado
para o fenômeno: “o protestantismo, transformando os dias tradicionais de festas em dias de
trabalho, desempenhou importante papel na gênese do capital” (2002: 318). Aos que vêem
em Marx um reducionista, que toma a cultura enquanto mero retrato passivo da economia,
eis o que o teórico social responde: o protestantismo exerceu um papel importante na
gênese do capital. A diferença é que, de um lado, Weber colocava as múltiplas
determinações da dinâmica histórica em uma relação rígida de causa e efeito enquanto
Marx tratava do assunto em sua forma dialética e totalizante e, de outro, concebia a
racionalidade da ação capitalista como portadora da invencibilidade que vem sendo
assinalada há alguns parágrafos — o que para Marx seria uma fantasia de má-fé ideológica.
Ao fim de A ética protestante e o espírito do capitalismo, quando afirma que a sua
tese vem a completar a de Marx
37
, Weber parte de dois pressupostos equivocados: presume
37
“Não cabe contudo, evidentemente, a intenção de substituir uma interpretação causal unilateralmente
‘materialista’ da cultura e da história por uma outra espiritualista, também ela unilateral. Ambas são
igualmente possíveis, mas uma e outra, se tiverem a pretensão de ser, não a etapa preliminar, mas a
conclusão da pesquisa, igualmente pouco servem à verdade histórica” (Weber, 2004b: 167).
186
que 1) a interpretação efetuada por Marx seja unilateral e, portanto, precisaria de
complementos na mesma medida unilaterais — então, os dois lados juntos se completariam
mutuamente; e que 2) os complementos realmente necessários à interpretação marxista
pudessem ser feitos de fora, do exterior, a partir de uma metodologia que nega as premissas
do materialismo histórico-dialético, como a sociologia compreensiva. “Aperfeiçoar” o
marxismo desde o positivismo neokantiano é uma empreitada fadada ao fracasso. Com a
sua leitura unidimensional do capitalismo moderno, Webero apresenta um complemento
a Marx o que poderia ser feito no terreno da própria dialética materialista —, senão
uma tentativa frustrada de “correção”, ou “reconstrução”, diria Habermas.
Alguns weberianos mencionam uma série de passagens em que Weber fala sobre
a esfera da economia como se, de repente, isso fizesse dele um materialista. Ilude-se
Monroy ao acreditar que essas referências bastariam para desfazer o juízo de que Weber é
um antimaterialista (cf. Monroy, 2004: 192). Se for verdade que “as investigações de
Weber... mostram que ele atribuía em muitos casos grande importância (causal) a
condicionamentos e ‘interesses’ econômicos, políticos e sócio-culturais no surgimento e no
desenvolvimento de concepções religiosas” (Weiss: 1997: 199), então, no limite, Weber
seria um materialista mecanicista, que não compreendeu o significado de uma ontologia
fundada nos modos históricos de produção e reprodução do ser social, que buscou entender
as relações sociais a partir da fórmula tipicamente positivista de causa e efeito, ao estilo de
Plekhanov.
É importante reter a abismal diferença dos universos metodológicos de Marx e
Weber para que o se incorra na falácia de que “uma evidente convergência de
manifestações marxianas e weberianas” (Weiss, 1997: 186). Lukács diz que os raciocínios
de Weber direcionam-se “para atribuir aos fenômenos ideológicos... um desenvolvimento
‘imanente’, nascido de sua própria entranha, e esta tendência também acaba impondo-se
sempre, de tal modo que os ditos fenômenos afirmam... sua prioridade causal sobre todo o
processo” (1968: 487). Esses termos descrevem o que ocorre especificamente com a
relação que Weber estabelece entre o protestantismo e o capital moderno; infla-se o
fenômeno ideológico em tal magnitude que se acaba por transformá-lo em causa prioritária
de todo o processo em absoluto. A “questão decisiva” é a mentalidade religiosa. Assim,
responde-se à exigência de compor uma alternativa à explicação materialista do capitalismo
187
(especialmente o período de acumulação primitiva do capital), que não pode ser
obscurecida por nenhuma fantasiosa “convergência de manifestações”.
O problema não se reduz a discernir até que ponto Weber tenha sido ou não um
idealista, um individualista, etc. Não de trata disso, em hipótese alguma. Seria muito
simplório classificá-lo de idealista e supor assim que estivesse feita a crítica materialista de
A ética protestante e o espírito do capitalismo. Ellen Wood acerta quando afirma que as
explicações weberianas para a gênese do capital são mais complexas do que sugerem as
dicotomias entre idealismo e materialismo (cf. 2003: 136). O ponto central está em
observar que Weber foi levado a hipertrofiar a função das ideologias para contrapor-se a
Marx. Por esta razão, as ideologias em Weber assumem a primazia causal. Quer dizer que o
“idealismo” de Weber não é uma mera hipótese falha, um equívoco lógico; nesse caso,
estaríamos produzindo uma crítica a Weber nos padrões da sociologia compreensiva
aliás, abundante material de crítica sociológica a Weber; por exemplo, Samuelsson
(1961). Ao contrário, os chamados “idealismo” e “subjetivismo” de Weber recebem a sua
explicação racional a partir da captura das circunstâncias históricas, da situação concreta de
lutas de classes em que o sociólogo se punha.
Em Contribuição à história da sociedade burguesa, Kofler o calvinismo a
partir de uma ontologia materialista, respaldando-se largamente nos dados da historiografia
burguesa (Weber, Troeltsch, etc.); que são incorporados à concepção materialista da
história sem que se redunde em um ecletismo. A Reforma de Calvino seria uma resposta às
demandas da burguesia manufatureira em sua luta contra o feudalismo. Na doutrina da
predestinação vocacional a burguesia de então encontrou as armas religiosas para combater
a propriedade feudal baseada na tradição, a favor do empreendimento capitalista:
A burguesia manufatureira experimentou a si mesma como a força dinâmica
dirigida contra o antigo e como portadora de um desenvolvimento futuro
prometedor; Calvino fortaleceu esta consciência proporcionando-a uma
fundamentação teórica na forma de um genial resumo de todos os argumentos em
uma unidade sistemática. Acolhendo ao mesmo tempo a disposição religiosa, a
atitude antifeudal e a necessidade de justificação da atividade econômica da
burguesia, Calvino cria uma doutrina na qual todos estes momentos adquirem
validade em um todo que os põe em relação de complementaridade: a doutrina da
predestinação... Ela constitui o suposto ideal para a declaração de guerra da
burguesia contra o feudalismo e para a proclamação de igualdade de direitos do
capitalista, que se julga escolhido de Deus quando o acompanha o êxito, com o
senhor feudal; por outra parte, ela consagra a acumulação de capital,
188
indispensável para o desenvolvimento da manufatura, como obra agradável a
Deus no instante em que promove a idéia de que quem alcança o êxito econômico
está pleno de graça (Kofler, 1971: 241).
Como se lê, a burguesia encontra no protestantismo de Calvino as respostas
religiosas para o mundo que está prestes a arquitetar. O calvinismo reuniu em si os
elementos antifeudais eficazes na luta contra a religiosidade medieval; mantendo a então
necessária disposição religiosa, na doutrina da predestinação aliam-se a atitude antifeudal e
o espírito empreendedor. Lembrem-se de que Dante, este “homem-síntese” da Idade Média,
reservava ao capital usurário uma parte do sétimo círculo do inferno em A divina comédia;
com efeito, o sétimo círculo é composto de almas que cometeram pecados contra o próximo
(tiranos e assaltantes), contra si mesmo (suicidas e esbanjadores) e contra Deus, e
especialmente nesse último caso localiza-se o pecado do lucro da usura. A Reforma retira o
capital do inferno. A ética de Calvino respondeu às novas circunstâncias postas pelo
advento do modo capitalista de produção. Quer dizer que o protestantismo foi um
movimento necessário de uma burguesia revolucionária; não foi um raio caído de céu azul
como faz crer Weber.
3.3.2. O carisma frente à burocracia desencantada
A teleologia da história em Weber encontra um possível contrapeso: a irresistível
burocratização da vida social pode ser obstada pela intervenção da liderança carismática.
De todos os tipos de liderança construídos por Weber, a carismática é a única que
transcende a rotina da vida cotidiana. Seja a tradicional ou a racional-legal, a continuidade
está em sua base e por ela se legitima. Transcender o prosaísmo do cotidiano é função do
carismático de qualquer tempo e lugar (e que fique claro que o conceito tipo de Weber vale
tanto para Cezar quanto para Napoleão ou Lênin, sem qualquer referência às suas
respectivas condicionantes sócio-históricas).
A bem dizer, o carisma é o conceito antinômico da burocracia:
Em oposição a toda espécie de organização administrativa burocrática, a estrutura
carismática não conhece nenhuma forma e nenhum procedimento ordenado de
nomeação ou demissão, nem de “carreira” ou “promoção”; não conhece nenhum
“salário”, nenhuma instrução especializada regulamentada do portador do carisma
ou de seus ajudantes e nenhuma instância controladora ou à qual se possa apelar;
não lhe estão atribuídos determinados distritos ou competências objetivas
189
burocráticas. Ao contrário, o carisma conhece apenas determinações e limites
imanentes. O portador do carisma assume as tarefas que considera adequadas e
exige obediência e adesão em virtude de sua missão (Weber, 1999: 324).
Não se nomeia, remunera, controla ou demite o chefe carismático. Para Weber,
burocracia e carisma são elementos de um antagonismo irresoluto. Não se resolvem; ao
contrário, opõem-se. A prática metódica da liderança racional e a catarse mágica do chefe
carismático chocam-se mutuamente.
Da burocracia nasce a continuidade; do carisma, a transformação social: “exige o
carisma a sujeição íntima ao nunca visto, absolutamente singular, e portanto novo. Neste
sentido puramente empírico e não-valorativo, é o carisma, de fato, o poder revolucionário
especificamente ‘criador’ da história” (Weber, 2004a: 328). Weber atribui à ação
carismática a transformação das normas em vigor. Diz que, quanto mais se recua na
história, vê-se que a adaptação aos costumes ou às ordens jurídicas dá-se com uma
adequação psicofísica do indivíduo às regularidades estabelecidas. E “o fato de que a
‘adaptação’ psíquica àquelas regularidades implica ‘inibições’ sensíveis diante de
inovações experiência que todos têm, ainda hoje, na vida cotidiana constitui... um
apoio muito forte para a crença naquela obrigatoriedade” (Weber, idem: 216). A adaptação
psíquica às regularidades dos costumes e da ordem jurídica inibe o apoio às inovações e
incentiva que se creia na obrigatoriedade das normas; é uma experiência vivida pelos
indivíduos nas sociedades remotas e que, no parecer de Weber, todos teriam ainda hoje na
vida cotidiana moderna.
Frente a essa circunstância, Weber coloca-se a pergunta: “como nascem, neste
mundo de adaptação às ‘regularidades’, representando estas o ‘vigente’, as inovações? Sem
dúvida, elas vêm de fora: pela mudança nas condições externas da vida” (2004a: 216). De
pronto, Weber analisa as transformações sociais enquanto um fenômeno externo à ordem
regular. Não são as contradições inerentes ao metabolismo societário que possibilitam as
mudanças; pelo contrário, elas vêm de fora. É aqui que surge o evento da liderança
carismática; com seus poderes extraordinários, o detentor do carisma é o responsável pelas
transformações nas diversas sociedades ao redor do mundo: “segundo todas as experiências
da Etnologia, a origem mais importante da inovação parece estar na influência de
indivíduos capazes de determinadas vivências ‘anormais’... e, através destas, de
190
ascendência sobre outras pessoas” (Weber, idem: 216). A vivência “anormal” do
carismático produz a inovação e seus liderados acompanham-no. De acordo com os
conceitos de Weber, do carisma proveria a “inspiração” que origem ao novo e dos
influenciados, a “intuição” de que a novidade deve ser seguida. Assim, “os efeitos da
‘intuição’ e, particularmente, da ‘inspiração’ na maioria das vezes resumida sob o nome
ambíguo de ‘sugestão’ pertencem às fontes principais da imposição de inovações
efetivas” (Weber, idem: 217).
Desde Schelling, sabemos que, na forma irracionalista clássica, a intuição é a
mediação direta entre o singular e o absoluto, sem que as determinações sócio-históricas
tenham alguma valia. Os conceitos tipicamente irracionalistas são incondicionados. A
intuição das inovações em Weber também prescinde da processualidade da história. Não
importam as condições concretas em que esteja o líder carismático; vinda do absoluto, a
intuição das inovações cai como um raio do céu azul: “a inspiração de novas normas pode
ocorrer aos carismaticamente qualificados, de fato ou pelo menos aparentemente,
independente de ocasiões concretas, sobretudo sem que se mudem as condições externas”
(Weber, 1999: 73). Independente de ocasiões concretas, a transformação vem a despeito
das particularidades da história. É um “tiro de pistola”, diria ironicamente Hegel. É um
momento único de mediação entre o líder abençoado pela intuição que provém de Deus.
Na análise sociológica do carisma, Weber permite transparecer tendências de
maior peso irracionalista. É o tema em que os conceitos clássicos do irracionalismo são
utilizados em abundância. Em nenhum outro problema debatido por ele as tendências
irracionalistas de seu pensamento realizam-se com tanta força. Não é preciso grande
empenho para se entender o porquê: um homem que se educou para compartilhar os ideais
da burguesia imputaria a transformação social aos aspectos irracionais, psicológicos,
emocionais, intuitivos dos sujeitos. A razão tem um preciso limite histórico na voz de
Weber: para além das fronteiras do modo de produção capitalista, não racionalidade. O
racionalismo por “conveniência metodológica” da sociologia compreensiva converte-se em
inconveniência no instante em que o objeto é a radical ruptura com o estado de coisas
vigente.
Todavia, Weber descreve uma tendência: o carisma destina-se a se burocratizar.
O carisma transformando as normas é comum nas sociedades tradicionais pois, na
191
modernidade, a intuição carismática é asfixiada pela tecnocracia; ou, o que significa a
mesma coisa na pena weberiana, a transformação é asfixiada pela continuidade. Foi-se o
tempo em que se acreditava em oráculos. A “revelação carismática” teria sido um
“primitivo elemento revolucionário” que cedeu lugar às amarras férricas do capitalismo
burocrático: “onde quer que a burocratização da administração tenha sido levada
conseqüentemente a cabo, cria-se uma forma praticamente inquebrantável das relações de
dominação” (Weber, 1999: 222). O caráter inquebrantável do capitalismo burocrático não
concerne apenas ao Estado senão, na mesma medida, às empresas monopolistas; por este
motivo, “a vinculação do destino material das massas ao contínuo funcionamento correto
das organizações capitalistas privadas, ordenadas de forma cada vez mais burocrática, está
se intensificando continuamente, e, por isso, torna-se cada vez mais utópica a idéia de sua
eliminação” (Weber, idem: 222).
Aqueles que vislumbravam na genialidade de Schelling e Nietzsche a salvação
para a “jaula de ferro” moderna, Weber retira-lhes a razão para o otimismo: “o destino do
carisma, ao penetrar nas estruturas permanentes da ação social, é o de recuar em favor dos
poderes da tradição ou então da relação associativa racional. Seu recuo significa,
considerado de modo geral, a diminuição do alcance da ação individual” (1999: 356). Ou
de forma mais plástica: “todo carisma encontra-se neste caminho que conduz de uma vida
emocional entusiasmada, alheada da economia, a uma morte lenta por asfixia sob o peso
dos interesses materiais, e isto em cada hora de sua existência e cada vez mais à medida que
passam as horas” (Weber, idem: 331). O destino do carisma é recuar. O triunfo da liderança
racional-legal sobre a carismática é sinal de que de se esgotaram as esperanças do antigo
liberalismo do século XVIII. No artigo sobre a revolução de 1905 na Rússia, Weber julga
ser uma otimista” a tentativa dos revolucionários em restaurar o ideal humanitário do
liberalismo iluminista: “o racionalismo atual não permite de forma alguma que esse tipo
de convicção ressurja de maneira maciça..., tratava-se de um produto originário de uma
otimista, segundo a qual haveria uma harmonia natural entre os interesses de indivíduos
livres” (2005a: 67). O racionalismo capitalista não permite que se reconstitua o ideário
humanista do antigo liberalismo. “Essa suposição foi eliminada, de uma vez por todas, pelo
capitalismo” (Weber, idem: 67). A mão invisível do mercado a acomodar as liberdades
192
individuais cede lugar ao pulso firme da dominação do Estado burocrático e das empresas
monopolistas.
Não adiantam as tentativas de fuga; para onde se caminha dentro da teleologia da
história de Weber, a saída é uma única: a racionalização capitalista vence ao fim; e mesmo
a sua crença nos poderes extraordinários de um “gênio” da estirpe de Bismarck fica
comprometida. O contrapeso feito pelo “gênio” não significa uma real ruptura com a
racionalização, com o destino de toda a época moderna. O recuo em face da racionalidade
disciplinada é o destino irresistível da liderança carismática que pretende se reproduzir no
cotidiano.
Ao tratar do conflito entre carisma e burocracia, o nosso autor é levado a elaborar
uma teoria sobre o partido político moderno. É uma esfera privilegiada para abordar o
assunto; nas instâncias da organização partidária, o choque entre o líder carismático e a
estrutura burocrática é perpétua, segundo Weber. Em uma democracia de massas, o chefe
carismático seria necessário para se produzir nelas o efeito emocional que conduz à vitória
eleitoral. Por outro lado, a racionalização metódica do aparato partidário deteria a
inevitabilidade demarcada por Weber em tantas ocasiões. A formação de uma casta de
dirigentes burocráticos, de uma “federação de nobres” é uma tendência geral que Weber
encontra em todos os partidos que começaram como “séqüitos carismáticos de pretendentes
legítimos ou cesaristas ou de demagogos no estilo de um Péricles, Cleon ou Lassalle”
(Weber, 1999: 339). O resultado é a relação conflituosa entre o chefe e a burocracia
partidária, que Weber aponta como problema sem anunciar a solução.
Disso resulta que não se confie em qualquer mudança advinda da atuação dos
partidos. Os partidos revolucionários também tenderiam à burocratização da rotina
burguesa. Assim pensa Weber, as autoridades carismáticas não conseguiriam transformar o
capitalismo burocrático, mesmo se estiverem à frente dos partidos comunistas.
Weber confiava que o desenvolvimento do capital monopolista fosse estreitar as
possibilidades de ruptura com a economia burguesa. Em 1906, o crescimento do
movimento comunista na Rússia recebeu de Weber o seguinte registro: “o desenvolvimento
ulterior do capitalismo se encarregará da decomposição do ‘romantismo’ populista” (2005a:
101). No decorrer do ensaio, Weber é honesto o suficiente para diferenciar os “populistas”
dos autênticos marxistas; todavia, aquele juízo não deixa de ser uma avaliação
193
característica do positivismo domesticado. É um argumento clássico de um positivista,
como estes que abundavam em meio à social-democracia que Weber tanto criticou. Seria
um fato erradicável do progresso do capital: sem que se tenha a mínima alternativa, a
própria evolução do capitalismo imperialista tomará conta dos “populistas” que agem à
frente das massas russas.
Analisando a teoria weberiana dos partidos e observando a tendência à burocracia
que Weber imputava aos partidos, Parkin assinalou que, por isso, “foi com absoluta
normalidade que [Weber] desvalorizou a tomada do poder pelos bolcheviques” (2000: 85).
Em nossa apreciação, isso não parece ser exato. Weber não desvalorizou a revolução de
outubro, embora publicamente a avaliasse como um “não-acontecimento”. Tivemos a
oportunidade de mencionar como Marianne Weber narrou todas as angústias que Weber e
sua geração experimentavam com a organização do proletário. Não foi com “absoluta
normalidade” que Weber vivenciou as revoluções proletárias. A teoria do partido moderno
em Weber é, em verdade, uma ramificação de sua apologia indireta ao capital: a
racionalização capitalista não é reversível nem mesmo com o desempenho dos
revolucionários organizados em partidos. O capital não cederia aos “colapsos” produzidos
pelo partido bolchevique. Weber transforma em fórmulas sociológicas os valores anti-
humanistas da burguesia de sua época.
Revolucionários ou não, os partidos tenderiam a se adequar à rotina das
instituições burguesas com a formação de uma casta burocrática, sob a ótica da ciência
política weberiana. Alguns autores que não reconheciam este “processo irreversível”
receberam de Weber a mais impiedosa condenação. É o que demonstra o seu juízo sobre
Rosa Luxemburgo, que defendia a participação efetiva da massa nas decisões partidárias,
cuja alcunha conferida por Weber era a de exemplar de jardim zoológico (cf. Parkin, 2000:
87).
Parkin não está correto quando equipara as teorias sobre o partido de Weber e de
Lênin: “[Weber] pensava, tal como Lenine, que a política partidária e o processo de tomada
de decisão deveria ser mantido nas mãos de uma elite” (2000: 88). É uma equiparação que,
se for levada para além dos aspectos formais, não faz justiça nem a Weber e sequer a Lênin.
A visceral repulsa por Rosa Luxemburgo não induz Weber a concordar com Lênin.
Vejamos se haveria a possibilidade de alguma concordância. As considerações sobre a
194
organização partidária de Lênin resultam da constatação de que a política possui uma
legalidade distinta da estrita esfera econômica. Por si só, a espontaneidade do movimento
de massas não levaria ao comunismo. É necessário que a consciência política-genérica seja
levada ao proletariado pelos intelectuais orgânicos. A generalidade da política catártica
pode ser “introduzida do exterior” da luta espontaneamente econômica: a consciência
política de classe não pode ser levada ao operário senão do exterior, isto é, de fora da luta
econômica, de fora da esfera das relações entre operários e patrões” (Lênin, 1970: 94).
Não se infere das palavras de Lênin que os intelectuais sejam uma classe
autônoma ou uma “elite” que reina soberana e governa por decreto. Lembrem-se de que,
em Economia e sociedade, Weber elabora quatro conceitos típicos de classes sociais: os
trabalhadores em seu conjunto, a pequena burguesia, “as classes dos proprietários e
privilegiados por educação” e os especialistas profissionais e “intelectuais sem
propriedade” (cf. 2004a: 201). Ao formarem uma classe autônoma, os “intelectuais sem
propriedade” estariam para além do bem e do mal; seriam neutros em face dos
antagonismos de classes e, na pureza das cátedras acadêmicas, defenderiam a abstrata razão
de Estado. É muito duvidoso que Lênin compartilhasse das idéias de Weber acerca da
posição ocupada pelos intelectuais nas lutas de classes.
Não reproduziremos o debate entre Rosa Luxemburgo e Lênin sobre a
organização partidária. Isso passa ao largo de nossos atuais propósitos. A intenção é
unicamente negar que haja qualquer semelhança entre a noção de partido em Lênin e
Weber. Mesmo porque, se Parkin estivesse certo nesta equiparação, isso nos levaria a
afirmar que os juízos sobre o proletariado massificado são similares nos dois autores. Para
que concordem quanto ao partido dirigente, as opiniões de Lênin e Weber deveriam
inevitavelmente concordar quanto às massas a serem comandadas, o que soaria como um
absurdo ainda maior. Que Parkin tente encontrar em Lênin uma passagem como esta de
Economia e sociedade: as massas “são apenas objetos de solicitação em tempos de eleição
ou votação (‘simpatizantes’ passivos), cuja opinião só interessa como meio de orientação
para o trabalho de propaganda do quadro de partido em casos de luta efetiva pelo poder”
(Weber, 2004a: 188). Lênin nunca considerou as massas proletárias como matéria amorfa,
pronta para ser moldada pelos dirigentes. Pelo contrário, de Lênin se ouvi que “quanto
mais extensa for a massa espontaneamente incorporada na luta, massa que constitui a base
195
do movimento e que nele participa, mais premente será a necessidade de semelhante
organização [de dirigentes profissionais estáveis] e mais sólida deverá ela ser” (1970: 141).
E, mais, a elaboração teórica pode ser feita por trabalhadores, desde que estejam
para além da estrita esfera econômica: “isto não significa, naturalmente, que os operários
são participem nessa elaboração [intelectual]. Mas eles não participam na qualidade de
operários, mas como teóricos do socialismo” (Lênin, 1970: 51). Os intelectuais dirigentes
não são assim uma “federação de nobres”, como desejou Weber. Na melhor tradição
marxista, Lênin somente efetua a distinção entre a peculiaridade da política e a da
economia; e, com isso, não nega a participação dos operários na formulação teórica do
partido. A qualidade da economia é diversa da qualidade da política, ou, nos termos de O
que fazer?, a “qualidade de operários” é diversa da qualidade de “dirigentes profissionais
estáveis”.
Lukács, que sempre foi leninista quanto à organização partidária, procurava
descartar a idéia de que os dirigentes são as genialidades defendidas pela filosofia
irracionalista desde a sua fundação com Schelling: “cada proletário é, de acordo com seu
pertencimento à classe, um marxista ortodoxo. O ponto em que os teóricos podem alcançar
através de um duro trabalho intelectual, está sempre ao alcance do proletário” (Lukács,
2005: 53). Diria a Fenomenologia do espírito, o caminho da ciência está aberto para todos.
Aquelas palavras de Lukács em Tática e ética são uma viva apresentação da versão
comunista para a racionalidade do pensamento progressista que o marxismo herda. Uma
outra é o desenlace do último ensaio de História e consciência de classe: “precisamente
pelo fato de o nascimento do Partido Comunista só pode ser obra consciente do operário
dotado de consciência de classe é que nesse caso todo passo em direção ao conhecimento
correto é simultaneamente um passo para realização desse conhecimento” (Lukács, 2003:
594).
Por tudo que está escrito acima, poderíamos considerar no nimo infeliz a
comparação entre Lênin e Weber produzida por Parkin; ele precisaria muito mais que um
paralelo formal para convencer seus leitores de que Lênin nutria do mesmo anti-humanismo
de Weber. O nosso sociólogo não apenas possuía uma noção profundamente aristocrática
da política, como atribuía a ela o dom da inevitabilidade. Uma casta dirigente seria
“erradicável” da legalidade imanente à política.
196
Nas teses weberianas, Robert Michels descobriu as pistas para formular a sua
sociologia da organização partidária. em Michels a mesma crítica romântica à
burocracia que em seu mestre: o funcionalismo burocrata “é o inimigo jurado da
liberdade individual, de toda iniciativa corajosa em matéria de política interna” (Michels,
s/d: 105). Lê-se em Michels a hostilidade à natureza prosaica da burocracia: “sua
dependência em relação às autoridades superiores sufoca na média dos funcionários a
personalidade e contribui para imprimir à sociedade um caráter estreito, burguês e filisteu”
(idem: 105). Entretanto, queira ou não a crítica romântica, o desenvolvimento de uma casta
de burocratas impõe-se como uma “lei férrea” aos partidos democráticos modernos, de
acordo com Michels: “a democracia compraz-se em dar às questões importantes uma
solução autoritária. Ela tem, ao mesmo tempo, sede de esplendor e de poder. Quando os
cidadãos tiverem conquistado a liberdade, empenharão toda a sua ambição em criar uma
aristocracia” (idem: 232). A democracia liberal parlamentarista está sob suspeita; quanto
maior for a liberdade individual outorgada, maior a “sede de esplendor e de poder” dos
cidadãos. Todas essas idéias talvez recebessem a aprovação incondicional de Ortega y
Gasset. A ambição aristocrática seria a essência do homem político. Michels credita à
natureza humana a tendência de conceber uma classe de dirigentes, de aristocratas, o que no
partido político moderno é representado pela burocracia.
O cerne das questões aqui presentes foi antes discutido. O fato é que Michels
generaliza uma experiência histórica para toda a totalidade do devir humano, assim como
fez Weber. Na mesma tribuna de Mosca e Pareto, Michels estava presenciando a imensa
burocratização do partido social-democrata alemão; os exemplos que percorrem sua obra
dizem respeito especialmente a este evento; e daqui se retirou uma fórmula sociológica que
se pretende irrevogável até mesmo para o futuro:
A história parece-nos ensinar que não existe movimento popular, por mais
enérgico e vigoroso, capaz de provocar transformações profundas e permanentes
no organismo social do mundo civilizado. É que os elementos preponderantes do
movimento, a saber, os homens que o dirigem e alimentam, acabam por se afastar
lentamente das massas e por ser atraídos para órbita da “classe política”
dominante (Michels, s/d: 244).
Vê-se que a crítica romântica do cientista político não é alheia à resignação.
Weber está bastante presente nestas linhas escritas por Michels: não adianta a luta
197
revolucionária; pede-se que os homens resignem-se porque a racionalização capitalista da
vida social não perecerá em face da prática do movimento operário. O “mundo civilizado”
não se transforma profunda e permanentemente: este é um ensinamento que Michels
aprendeu com a história e que, como grande pedagogo, tentou difundir por meio de seus
livros. O ensinamento que a história concedeu a Michels foi o mesmo que Weber expôs no
artigo sobre a possibilidade de uma democracia igualitária na Rússia: “já foram tomadas
providências até demais para que as árvores do individualismo democrático não cresçam
até o céu. De acordo com toda a experiência, a ‘história’ deverá continuar parindo
impiedosamente novas ‘aristocracias’ e ‘autoridades’” (2005a: 103). Assim entende Weber,
de acordo com toda a experiência, a história sempre produzi renovadamente as
autoridades aristocráticas.
3.3.3. O desencantamento do mundo: religião, ciência e ética.
O processo de racionalização das várias esferas societárias desencadeia o que
Weber batizou de desencantamento do mundo. Daqui adiante, vamos abordar este
famigerado tema da sociologia compreensiva. Segundo as palavras do próprio Weber, a
crescente intelectualização da realidade social significa que “não forças misteriosas
incalculáveis, mas que podemos, em princípio, dominar todas as coisas pelo cálculo...
não precisamos recorrer aos meios mágicos para dominar ou implorar aos espíritos, como
fazia o selvagem, para quem esses poderes misteriosos existiam(1979: 165). Assim, com
o desenvolvimento da técnica, da ciência, o homem moderno do ocidente desencantou o
seu próprio mundo; os fenômenos da natureza e da sociedade prescindem agora a
ingerência mágica dos espíritos. O sentido da vida perde a transcendência e ganha
imanência; encerra-se em si mesmo.
Para Weber, são fenômenos cognatos que se encontrariam apenas no capitalismo
da modernidade ocidental: a preponderância da dominação racional-legal (que possui o
burocrata como seu tipo mais puro) e o desencantar-se do mundo. Sem encantos, a
modernidade faz recuar a dominação carismática em privilégio dos mandos de uma
aristocracia de funcionários.
A ascese protestante atuaria em primeiro plano no que concerne ao
desencantamento do mundo. De acordo com Weber, “o desencantamento do mundo: a
198
eliminação da magia como meio de salvação, não foi realizado na piedade católica com as
mesmas conseqüências que na religiosidade puritana (e, antes dela, somente na judaica)”
(2004b: 106). A introdução de A psicologia social das religiões mundiais escreve que a
conduta intramundana dos protestantes alcançou dois objetivos: “o desencantamento do
mundo e o bloqueio do caminho da salvação através da fuga do mundo. O caminho da
salvação é desviado da ‘fuga contemplativa do mundo’, dirigindo-se ao invés disso para um
‘trabalho neste mundo’, ativo e ascético” (Weber, 1979: 334). O fiel protestante basta por si
mesmo: não recorre a meios extramundanos para salvar-se; a salvação garante-se com o
agir “neste mundo”, com o exercício vocacional de sua profissão e sem a ingerência de
encantos. Diz Habermas ao comentar as teses de Weber, o rechaço do calvinismo aos meios
mágicos para caracterizar a salvação dos fiéis, desencantou a própria religiosidade (cf.
Habermas, 2003: 223). Da ética calvinista, o desencanto transbordaria as esferas da religião
para atingir as demais parcelas da vida social, inclusive a ciência. Habermas explana
utilizando a linguagem de Talcott Parsons: “primeiramente o racionalismo ético se filtra,
pois, do plano da cultura ao plano do sistema da personalidade” (idem: 223). Esse
desencanto provindo inicialmente do protestantismo terminaria por balizar toda uma época
do ocidente.
Durkheim assume uma posição que, em certas vezes, é destoante e, em outras, é
concordante com a postura weberiana; uma leitura da conclusão de As formas elementares
da vida religiosa revela o que existe de comunhão e de divergência entre os dois clássicos
da sociologia. O conflito entre ciência e religião surge em meio às idéias expostas: “os
debates em que a religião é o tema giram-se em torno da questão de saber se ela pode ou
não se conciliar com a ciência, quer dizer, ao lado do conhecimento científico, há lugar para
uma outra forma de conhecimento que fosse religioso” (Durkheim, 1968: 114). A isso se
segue uma caracterização da função exercida pela religiosidade na vida coletiva. Para
Durkheim, os fiéis sentem que “a verdadeira função da religião não é de nos fazer pensar,
de enriquecer nosso conhecimento, de acrescentar às representações que devemos à ciência
as representações de uma outra origem e de um outro caráter, mas a de nos fazer agir, de
nos ajudar a viver” (idem: 114). A função da religião é a de fazer “suportar as dificuldades
da existência”, de elevar os crentes para além da “miséria humana”. Durkheim diz que a
experiência demonstra que a religião cumpre a sua função, isto é, os fiéis sentem-se
199
efetivamente acima do mal. Porém, não decorre daí que Durkheim assuma uma posição
relativista:
Do mesmo modo, se as impressões sentidas pelos fiéis não são imaginárias, em
contrapartida, elas não são também intuições privilegiadas; não nenhuma razão
para se pensar que essas impressões nos informam melhor sobre a natureza de seu
objeto tanto quanto as sensações vulgares sobre a natureza dos corpos e suas
propriedades. Para descobrir em que consiste este objeto, é preciso erguê-lo a uma
elaboração análoga àquela que substituiu a representação sensível do mundo por
uma representação científica e conceitual (1968: 115).
Segundo o método do positivista, apenas com esta distância é possível de se
produzir uma “sociologia da religião”. Tratando-a como coisa, Durkheim descobre alguns
aspectos da religiosidade que indicam a sua relação com a ciência. A citação é longa mais
elucidativa:
Contrariamente às aparências, constatamos então que as realidades às quais se
aplica a especulação religiosa são as mesmas que servirão mais tarde de objeto
para a reflexão dos cientistas: são a natureza, o homem e a sociedade... A religião
se esforça para traduzir estas realidades em uma linguagem inteligível que não é
de natureza diferente da empregada pela ciência; de parte a parte, o problema é de
relacionar as coisas umas às outras, de estabelecer relações internas entre elas, de
classificá-las, de sistematizá-las. Até mesmo vimos que as noções essenciais da
lógica científica são de origem religiosa. Sem dúvida, para utilizá-las, a ciência
submeteu estas noções a uma nova elaboração; a ciência as depura de toda sorte
de elementos estranhos; de uma maneira geral, em todos os seus passos, a ciência
ancora-se em um espírito crítico que a religião ignora; a ciência se envolve de
precauções para “evitar a precipitação e a prevenção”, para manter-se longe das
paixões, dos prejulgamentos e de todas as influências subjetivas. Mas estes
aperfeiçoamentos metodológicos não são suficientes para diferenciar a ciência da
religião. Sob este aspecto, uma e outra possuem o mesmo objetivo; o pensamento
científico não é mais que uma forma mais perfeita do pensamento religioso.
Assim, parece natural que o segundo dissipa-se progressivamente diante do
primeiro à medida que a ciência torna-se mais apta para cumprir a tarefa
(Durkheim, 1968: 124, 125).
À medida que a ciência torna-se mais apta para classificar, sistematizar, relacionar
positivamente as coisas, a natureza, o homem e a sociedade, não haverá porque a religião
cuidar da mesma função. A religião cumpre a mesma tarefa, porém de forma rústica. Cabe
a ciência substituir a rusticidade religiosa ao depurar metodologicamente a observação
positiva dos fatos. Durkheim escreveu acima que “o pensamento científico não é mais que
uma forma mais perfeita do pensamento religioso”. Desse modo, “nascida da religião, a
200
ciência tende a substituir esta última no que concerne às funções cognitivas e intelectuais”
(Durkheim, 1968: 125). Isso não quer dizer que, para Durkheim, a religião irá desaparecer.
Ela perde as suas tarefas relacionadas ao conhecimento do mundo: “o que a ciência
contesta da religião não é o direito de existir, mas é o direito de dogmatizar a natureza das
coisas, é o espaço de competência particular que a religião se atribuiu de conhecer o
homem e o mundo” (Durkheim, idem: 125). Por isso, continua o sociólogo francês, “a
religião parece convocada a se transformar muito mais que a desaparecer” (idem: 125).
A religião não irá desaparecer, segundo Durkheim; mas as suas áreas de alcance,
as suas funções serão reduzidas pela secularização advinda com o progresso científico. Esse
é um ponto de contato com Weber. O sociólogo de Heidelberg não falava em “progresso”
científico senão entre aspas porque aprendeu com o romantismo de Nietzsche a ser
cauteloso quanto às felicidades prometidas pela secularização. No entanto, igualmente em
Weber, a racionalização que provém da ciência transforma a religiosidade. Conforme
comenta o weberiano Pierucci, “a ciência, na verdade, obriga a religião a abandonar sua
pretensão de nos propor o racional. Assim acuada, ela tem de se conformar em nos oferecer
o irracional, melhor, em retirar-se ela mesma no irracional (2003: 145). De fato, Weber
aponta que o crescimento da racionalidade científica provoca o retrocesso da forma de
conhecimento proporcionado pelas imagens religiosas do mundo: “o resultado geral da
forma moderna de racionalizar totalmente a concepção de mundo e do modo de vida,
teórica e praticamente, de forma intencional, foi desviar a religião para o mundo do
irracional” (Weber, 1979: 324). No que tange à explicação das causalidades naturais e
sociais, a concepção religiosa do mundo cedeu espaço à ciência. Tanto para Durkheim
quanto para Weber, a ciência passa a cumprir a tarefa de conhecer, relegando à religião
outras funções. Em ambos, a religião abandona a esfera do racional.
Contudo, Durkheim diverge de Weber em dois instantes: 1) quando formula a
oposição ciência versus religião; e 2) quando credita à ciência o papel de estopim da
secularização. Em primeiro lugar, a oposição antinômica em Weber é ciência versus
religião tradicional. O racional científico aflige o que de tradição na religiosidade. O
caráter anti-religioso contido na ciência afronta não todas as religiões senão as tradicionais,
as que engendram uma “conduta irracional”, extramundana, contemplativa, apática, as que
“renunciam este mundo”. Weber separa duas modalidades de desencantamento do mundo:
201
a científica e a religiosa
38
. Em conjunto, as duas minaram as religiões tradicionais. As
profecias que Weber qualifica como “racionais”, especialmente as protestantes, rompem
com a magia característica das religiões tradicionalistas. E, a respeito do segundo instante
de divergência com Durkheim, Weber entende que o desencantamento do mundo produzido
pela religião protestante é a causa fundadora do desencantamento do mundo científico.
Naquela mesma passagem da História geral da economia em que se estabelece que as
profecias racionais rompem com a magia, Weber imputa à religião a prioridade causal em
face da ciência; que a leiamos de novo: “às profecias [protestantes] cabem o mérito de
haver rompido o encanto mágico do mundo, criando o fundamento para a nossa ciência
moderna, para a técnica e, por fim, para o capitalismo” (1968: 316). Da ética protestante a
ciência moderna teria recebido o seu fundamento. Novamente Pierucci interpreta as
nuances do pensamento weberiano: a religião monoteísta ocidental desalojou a magia e nos
entregou um mundo sem encantos mágicos; depois veio a ciência dos tempos modernos e
desalojou ainda mais a magia deste mundo já bastante desencantando (cf. 2003: 145).
Portanto, os textos de Weber não permitem que se nivelem secularização e
desencantamento (cf. Pierucci, 2000). Não há uma equivalência direta entre os termos. Com
o desencantamento do mundo Weber não subscreve o óbito de Deus anunciado por
Nietzsche. A ruína das tradições dá-se com a racionalidade comandada, antes de tudo, pela
religião e pela ulterior ajuda da incomparável “força propulsora” da ciência.
Deste modo, Nicholas Gane erra ao atribuir a Weber o desenvolvimento das idéias
de Nietzsche a propósito da morte de Deus:
A racionalização do mundo pode ser vista como o engendrar do movimento geral
em direção ao niilismo, em que os valores últimos são desvalorizados, ou, como
demonstrado pela transição da religião universal até a “morte de Deus”,
desvalorizam-se a si mesmos, e, no processo em que se tornam subordinados aos
meios-fins da racionalidade baseada em questões de técnica e cálculo (Gane,
2004: 26, 27).
38
Eis o extrato de um artigo de Weber em que o sociólogo efetua a dicotomização entre o desencantamento
produzido pela religião e o desencantamento produzido pela ciência. Weber diz que investigará os
pressupostos para o capitalismo racional e põe a ciência e a conduta ascética como os dois principais, que não
estão necessariamente associados: “de um lado, a história da ciência moderna e sua relação prática com a
economia, que só se desenvolveu na idade moderna, e, do outro, a história da conduta de vida moderna no seu
significado prático para a própria economia, eis o que vai nos fornecer, a este respeito, os elementos-chave da
investigação... O desenvolvimento do método racional prático de uma conduta de vida é evidentemente algo
muito diferente do racionalismo científico e não necessariamente associado com ele” (Weber, 2003: 444).
Reproduzimos integralmente a tradução de Pierucci (cf. 2003: 148).
202
A imprecisão de Gane é compartilhada por Holton e Turner que acreditam que
fosse de comum acordo entre Nietzsche e Weber que, “com a queda das comunidades
normativas tradicionais e a morte de Deus, os indivíduos assumem a posição de conceber
significados seculares para si mesmos, embora em competição com os outros” (1990: 37).
Essas palavras podem ser legítimas quanto a Nietzsche; porém, elas são uma meia-verdade
no caso de Weber. Não é essa a descrição que Weber faz do advento da modernidade. O
desencantamento do mundo o é a falência dos deuses, não é a passagem de um tempo
com um Deus universal para um outro sem absolutamente nenhum Deus. A modernidade
ainda tem o seu Deus. Em síntese, a questão resume-se a isso: o Deus moderno não possui
os encantos do tradicional.
O erro de Nicholas Gane é acentuado no instante em que se que o comentador
reproduz corretamente a dicotomia weberiana em um instante diverso de seu ensaio: “a
ciência desencanta as bases (religiosas) tradicionais sobre a qual os valores foram
legitimados, mas ela mesma não provém nenhum solo em que as questões valorativas
devem finalmente ser deliberadas” (Gane, 2004: 35). É isto que efetivamente se encontra
no texto weberiano: a racionalização atinge a religião tradicional, as “bases (religiosas)
tradicionais”. Significa que a religiosidade tradicional sofre as penas do desencantamento
das imagens do mundo, enquanto a religião ascética resiste incólume. Dessa vez, Gane faz
justiça ao objeto de seus comentários.
Todavia, um enigma Weber ainda tem de solucionar: pode-se supor que os
desencantamentos não atinjam a todos os modernos. A práxis histórica demonstrou que, até
hoje, a “modernidade sem encantos” não foi morte do Deus tradicional. quem não se
oriente pelo cálculo, pela ciência, pela racionalidade contábil; ainda quem se encante à
maneira das tradições. A religiosidade tradicional não se arruína por completo, mesmo
frente à ciência ou às religiões ascéticas. Weber é obrigado a reconhecê-lo em alguns
aspectos, ainda que seja com a linguagem pouco afável de A ciência como vocação: “para
quem não pode enfrentar como homem o destino da época, devemos dizer: possa ele voltar
silenciosamente, sem a publicidade habitual dos renegados, mas simples e quietamente. Os
braços das velhas igrejas estão abertos para eles” (1979: 183).
203
Portanto, não são somente os “selvagens” que recorrem aos poderes extraterrenos.
Os modernos “renegados” que não enfrentam o destino da época “como homens” também
buscam a espécie de refúgio prestado pela tradição, pelos “braços das velhas igrejas”.
Essas simplificações não ajudam a abstrair o núcleo oculto do problema que existe
entre o “capitalismo racional” e a persistência da religiosidade tradicional. Não é uma mera
questão de escolhas subjetivas ou de coragem, como entende Weber; não o uns
“renegados” que não enfrentam a realidade “como homens” que optam pelo acalento das
velhas igrejas. No imediato do cotidiano burguês, a religião supre uma determinada
necessidade, cunhada por Lukács de carência religiosa. Ainda que invertido, o humanismo
religioso o sentido de pertencimento a uma irmandade. No capítulo sobre a alienação da
Ontologia do ser social, Lukács descreve que, com as formas religiosas de alienação, a
essência genérica do homem torna-se para ele mesmo transcendente: é um anúncio que
chega do para além da vida social, do al di da existência terrena; de fato, o indivíduo
procura no al di là aquela realização, aquela elevação acima da particularidade cotidiana,
que o seu ser social, por causa dos mecanismos de alienação, não está apto a indicar-lhe
nem sequer como possibilidade no imanente espontâneo (cf. Lukács, 1981: 657).
Tendenciosamente, o ser social alienado não está apto a indicar o seu caráter genérico ao
indivíduo cotidiano. A religião concede um caráter genérico à existência individual na
imediaticidade da vida cotidiana: somos todos filhos de um único criador, todas as coisas
emanam de Deus, etc.
A necessidade religiosa pressupõe a dissensão entre o singular e o gênero e, por
isso, Lukács determina que as primeiras formas de carecimento religioso manifestam-se
com a decadência das comunidades da Antiguidade: “apenas com a desagregação da polis e
de sua ética, em positivo com o advento do cristianismo, a personalidade que se sente assim
sem pátria e direção procura um apoio transcendente para si, para o conjunto da própria
existência e não somente para seus atos singulares” (1981: 712). A reificação do cotidiano
burguês faz atualizar esta carência durante o estágio monopolista do capital. As novas
espécies de alienação nascidas com a reificação intensificam o vácuo que entre o
indivíduo particular e o gênero humano; e o carecimento religioso ainda responde a essa
circunstância. Assumindo a altiva postura de um “desencantado”, Weber qualifica como
renegados os indivíduos que buscam na religião tradicional o humanismo que não se
204
encontra imediatamente na reificada cotidianidade burguesa; se assistisse ao atual vigoroso
crescimento do islamismo, uma religião que “renuncia ao mundo”, Weber seria obrigado a
reconhecer que muitos “renegados” que não agem “como homens” buscam o abrigo dos
“braços das velhas igrejas”.
Não é ocasião para dissertar sobre o assunto, muito embora se faça necessário ter
em conta o problema da carência religiosa para entender a história contemporânea. Para a
grande parte dos homens, a religiosidade tradicional ainda supre este carecimento. Não se
retira daí que a consciência religiosa componha uma “unidade estrutural ilacerável” com o
comportamento humano, da maneira pretendida por Max Scheler
39
. O recuo das barreiras
naturais, o desenvolvimento das forças produtivas e a divisão do trabalho perpetrados pelo
capital não fariam suprir esta carência. A necessidade que torna atual a religiosidade
(tradicional ou “desencantada”) somente será passível de ser superada quando existir uma
relação transparente entre o homem e a natureza e os homens entre si, quando a cisão entre
a particularidade cotidiana e a generalidade estiver desfeita pelas transformações futuras,
quando a humanidade superar a sua pré-história
40
. Enquanto vigorar esta lacuna, é
puramente escolástica qualquer polêmica acerca da superação da religiosidade pela ciência
(seja nos moldes de Durkheim ou nos de Weber).
Continuando a tratar do desencantamento do mundo, um tema presente na tese
de Weber que geralmente é muito valorizado entre seus comentadores: haveria na
modernidade um desencantamento da ética. É um assunto tratado especialmente em A
política como vocação. É hipótese de Weber que, assim como em todas as esferas do
comportamento na modernidade, a ética também estaria desencantada. Isto é o que indica a
dicotomia concebida entre a ética da responsabilidade e a dos fins últimos (ou da
convicção). Eis como se dá a sua dicotomização:
39
Consciência do mundo, do si próprio e de Deus formam uma unidade estrutural ilacerável (Scheler:
2003, 86). Ou então: “o fogo, a paixão para além de siquer a meta se chame ‘super-homem’ ou ‘Deus’
é a única ‘humanidade’ verdadeira” (Scheler, idem: 122).
40
Marx anotou em O capital: “o reflexo religioso do mundo real pode desaparecer quando as condições
práticas das atividades cotidianas do homem representem, normalmente, relações claras entre os homens e
entre estes e a natureza. A estrutura do processo vital da sociedade, isto é, do processo da produção material,
pode desprender-se do seu véu nebuloso e místico no dia em que for obra de homens livremente
associados, submetida a seu controle consciente e planejado. Para isso, precisa a sociedade de uma base
material ou de uma série de condições materiais de existência, que, por sua vez, podem ser o resultado
natural de um longo e penoso processo de desenvolvimento” (2002: 101). Percebam que Marx fala em
possibilidades concretas: “o reflexo religioso do mundo pode desaparecer...” As possibilidades concretas
de superação do reflexo religioso descritas por Marx não estão postas pelo estágio capitalista de evolução do
ser social.
205
A conduta pode ser orientada para uma “ética das últimas finalidades”, para uma
“ética da responsabilidade”. Isso não é dizer que uma ética das finalidades últimas
seja idêntica à irresponsabilidade, ou que a ética da responsabilidade seja idêntica
ao oportunismo sem princípios. Naturalmente ninguém afirma isso. Há, porém,
um contraste abismal entre a conduta que segue a máxima de uma ética dos
objetivos finais isto é, em termos religiosos, “o cristão faz o bem e deixa os
resultados ao Senhor” e a conduta que segue a máxima de uma
responsabilidade ética, quando então se tem de prestar conta dos resultados
previsíveis dos atos cometidos (Weber, 1979: 144).
O exemplo mencionado é a conduta religiosa com o sermão da montanha, mas o
objetivo de Weber é discorrer acerca da ação dos partidos e sindicatos revolucionários.
Logo em seguida a essa passagem é feita a caricatura: “pode-se demonstrar a um
sindicalista, partidário da ética dos objetivos finais, que seus atos resultarão num aumento
das oportunidades de reação, na maior opressão de sua classe e na obstrução de sua
ascensão sem causar nele a menor impressão” (Weber, 1979: 144). Weber não é
desinteressado quando exacerba ao extremo a atitude desse obtuso sindicalista; a
exacerbação é tanta que duvidamos que esse “tipo puro” seja realmente útil para se
confrontar com a realidade. A intenção de Weber é provar que a ética responsável é aquela
que deve preponderar; pretende afirmar o desencanto da esfera política. Assim, os
convictos não são isentos do escárnio weberiano: “no mundo da realidade, em geral,
encontramos a experiência sempre renovada de que o partidário de uma ética de fins
últimos subitamente se transforma num profeta quiliasta” (idem: 146). No mundo
desencantado da modernidade, não haveria lugar para os políticos revolucionários, os quais,
sob a acentuação de Weber, logo se transformam em profetas do quiliasmo. Explica-se
brevemente que quiliastas são aqueles que crêem na vinda do messias redentor que
instaurará o reino dos justos na terra durante mil anos depois de derrotar o anticristo.
A imagem burlesca do quiliasmo foi recuperada por Hans Freyer para tratar
igualmente dos revolucionários. Freyer argumentava que, com os quiliastas modernos, a
“história profana” é interpretada sob os parâmetros da via crucis, “sucedendo-se
irreversivelmente até o fim deixado em branco: a criação do mundo, o pecado original, a
morte redentora, a ressurreição, a volta do Salvador, o juízo final e depois o fim que não
tem fim, o reino de Deus, eterno” (Freyer, 1965: 182). Entretanto, diga-se que, em sua
crítica à “convicção” revolucionária, Freyer foi menos dúbio do que Weber e declarou
206
abertamente de quem falava: “Marx não era tão realista quanto acreditava, mas se
encontrava, pelo contrário, em pleno terreno do quiliasmo... Isso, contudo, equivale, em
toda a sua inocência (ou em toda a sua intencionalidade), a acreditar em milagres” (Freyer,
idem: 213).
A escassez de realismo também era imputada por Weber aos eticamente
convictos. Em polêmica com os que ainda persistem a conduzir suas ações a partir de
convicções, diz o sociólogo: “não a totalidade do curso da história mundial, mas
qualquer exame franco da experiência cotidiana nos leva ao oposto” (Weber, 1979: 146).
Os convictos estariam remando contra o curso da história.
Em vista dos que assumem o palanque para professar a exatidão dos fins últimos
em que acreditam, Weber não se altera:
Tenho a impressão de que em nove em cada dez casos trata-se de oradores
verbosos que não compreendem plenamente o que estão chamando a si, mas que
se embriagam com sensações românticas. Do ponto de vista humano, isto não me
é muito interessante, nem me comove profundamente. Mas é profundamente
comovente quando um homem maduro o importa se velho ou jovem em
anos tem consciência de uma responsabilidade no coração e na alma. Age,
então, segundo uma ética de responsabilidade e num determinado momento chega
ao ponto em que diz: “eis-me aqui; não posso fazer de outro modo”. Isso é algo
genuinamente humano e comovente. E todos nós que não estamos espiritualmente
mortos devemos compreender a possibilidade de encontrar-nos, num determinado
momento, nesta posição (1979: 151).
O genuinamente humano seria a adequação aos compromissos burgueses. A ética
dos revolucionários não passa de “embriaguez de sensações românticas”. Com o suporte
destas idéias, não é estranho que se conclua: todas as lutas partidárias são lutas para o
controle de cargos, bem como lutas para metas objetivas” (Weber, 1979: 107).
No panfleto Sufrágio e democracia na Alemanha, de 1917, Weber escreveu que
“como sempre ocorreu, o compromisso é ainda a forma dominante pela qual os conflitos de
interesses econômicos são dirimidos, particularmente aqueles entre empregadores e
trabalhadores” (1994a: 102). Não faltam comentadores que louvem a política do
compromisso em Weber. Com uma boa dose de mistificação, Beetham sustenta que a
política de Weber seria universal, por colocar-se acima dos interesses classistas, enquanto
que a política de Marx seria estreita, vinculando-se apenas ao proletariado e não à
“consciência nacional”. O objetivo de Marx seria a consciência de classe dos trabalhadores
207
e o de Weber, a consciência que abarcasse a generalidade da nação, segundo Beetham (cf.
1974: 241). Contudo, não se deve perder de vista o caráter classista da ética do
compromisso em Weber; a sua noção de ética reflete a política imperialista do período
guilhermino. O compromisso entre as classes em torno da abstrata razão de Estado é
imperioso para que a nação germânica mantenha-se. A solidez do reich dependeria do
compromisso classista. É uma versão ligeiramente modificada da ética da responsabilidade
de A política como vocação.
Qual é o núcleo oculto da ciência política de Weber? Aqui, assistimos ao triunfo
da pequena política. Weber desencanta a política para reduzi-la ao mero jogo parlamentar.
Assim pôde fazê-lo porque separou em dicotomias as duas concepções de ética; mesmo que
insista em dizer que não são inteiramente opostas, o tratamento teórico que lhes concede
termina por opô-las. Em verdade, não este abismo entre a responsabilidade e a
convicção. Coube a Gramsci afirmar a existência de uma política catártica:
Pode-se empregar a expressão “catarsis” para indicar a passagem do momento
puramente econômico (ou egoísta-passional) ao momento ético-político, isto é, a
elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens.
Isto significa, também, a passagem do “objetivo ao subjetivo” e da “necessidade à
liberdade”. A estrutura da força exterior que subjuga o homem, assimilando-o e o
tornando passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar
uma nova forma ético-política, em fonte de novas iniciativas (Gramsci, 1984: 53).
O comportamento político possibilita a transformação do egoísta-passional no
momento ético, do objetivo no subjetivo, da necessidade na liberdade. O comportamento
político retira o homem da heterogeneidade do cotidiano para alçá-lo à condição genérica, à
autoconsciência da universalidade humana.
Influenciado pela leitura de Gramsci, Lukács dará à política catártica um caráter
universal na Ontologia do ser social: “a política é um complexo universal da totalidade
social, todavia pertencente à práxis e exatamente à práxis imediata, uma vez que não pode
ter uma universalidade espontânea e permanente, similar, digamos, à linguagem” (Lukács,
1981: 483). Era habitual que Lukács citasse uma determinada passagem em que Gottfried
Keller defendia que “hoje tudo é política e dela depende, do couro que sola nossos sapatos
ao azulejo superior no telhado; as fumaças que flutuam por cima da lareira são política,
suspendendo-se em nuvens perigosas sobre as cabanas e palácios, vagueando por entre
208
cidades e aldeias” (apud Lukács, 1993: 170). É a universalidade da política exposta por
Keller e mencionada por Lukács nos estudos estéticos sobre o realismo alemão e na
Ontologia. É preciso que se tome cuidado com afirmações como esta de Keller para que as
leis do complexo político não transbordem sua própria esfera e passem a freqüentar outros
complexos, do trabalho à arte. No entanto, parece-nos correto que a política catártica esteja
inextricavelmente vinculada à sociabilidade.
Com esta noção universal de política, Lukács e Gramsci vão além de Marx, que
caracterizava a política apenas como a dominação do homem sobre o homem. Nas
sociedades divididas em classe, a política realmente assume esta forma particular capturada
por Marx, o que não significa que a sua esfera de ação seja sempre reduzível a esta
particularidade.
Dissemos que, dada a sua peculiaridade, o comportamento político pode elevar-se
à condição genérica, transcendo a simples imediaticidade cotidiana; é assim possível que a
ação política seja mais do que o mero jogo parlamentar e torne-se o debate sobre a vida
pública, sobre o destino do gênero humano. Por menor que seja seu alcance, toda e
qualquer ação política é uma tomada de posição em face da generalidade humana. Quer
dizer que, ao contrário do que Weber afirmou, nem todas as lutas partidárias são apenas
disputas por cargos estatais; as convicções e as responsabilidades não são contrários sem
mediações. Com suas antinomias mistificadoras, Weber perde de vista esse caráter
universal da ética.
É nítido um movimento nas considerações de Weber sobre a legalidade da
política. A saber, há uma absoluta confusão entre a moral e a ética, o que não passa de uma
herança de Nietzsche. De modo extremamente simplista, a moral do sermão da montanha é
interpretada como a ética; falar em valores catárticos na política implicaria necessariamente
“dar a outra face”. A confusão patenteia-se quando, na palestra de Freiburg, Weber
repreendia os “filisteus” que “acreditavam ser possível substituir os ideais políticos pelos
‘éticos’, identificando ingenuamente estes últimos com esperanças otimistas de felicidade”
(1994a: 27). Este juízo ressoa em A política como vocação. Mas, pouco antes de A política
como vocação, em Entre duas leis, texto no qual se posiciona a favor das guerras
imperialistas, Weber reafirma que o homem “sempre se encontrará engajado em uma luta
contra um ou outro dos deuses deste mundo e, acima de tudo, sempre se encontrará longe
209
do Deus do Cristianismo ao menos do Deus proclamado no Sermão da Montanha”
(idem: 79). Ao recusar a política moralista do sermão da montanha, Weber termina por
excluir os valores genéricos catárticos da legalidade inerente à política.
O príncipe de Maquiavel nos ensinou que a política detém leis que se distinguem
das leis morais. A moralidade é uma esfera de comportamento que diverge da esfera de
comportamento da política. Se Weber pretendia diferenciar a política da moral, o seu
empreendimento nasce de um princípio legítimo. Contudo, o complexo moral em Weber é
tomado como a totalidade da ética. A autonomia da política frente à ética é improvável,
mesmo porque a ética não é uma esfera de comportamento, senão a mediação entre os
complexos do ser social. A decisão política sempre possui implicações éticas, assim como
as decisões religiosas, morais, científicas, etc. Os valores éticos perpassam as decisões
cotidianas dos homens, tenham elas a orientação que tiverem: o voto em determinados
políticos, a adesão à determinada religião, a leitura das tragédias gregas, o uso das novas
tecnologias da genética; em todas estas alternativas, de alguma maneira o vínculo a
valores genéricos ou a sua refutação. Weber não obtém sucesso na diferenciação das leis da
“vocação política” porque entende que a reflexão ética implica um comportamento dos
quais as outras esferas poderiam distinguir-se autonomamente. Repete-se que, de uma
vez, ao descartar a moral do sermão da montanha, Weber rejeita igualmente os valores
universais da política catártica.
Posteriormente, iremos encontrar a defesa da pequena ética em Hans Kelsen.
Neste autor, no entanto, essa apologia ao compromisso burguês recebe uma conotação
muito distinta: a preocupação era proteger as instituições parlamentares do assalto
fascista. Ambicionava-se fazer valer o princípio de que a censura ao parlamento era por
conseqüência uma censura à democracia liberal: “a condenação do parlamentarismo é, ao
mesmo tempo, a condenação da democracia” (Kelsen, 2000: 112). Parte-se daí para
demonstrar as virtudes do jogo parlamentar. A ética das responsabilidades, do compromisso
entre interesses é vista como a própria essência das instituições políticas democráticas:
caso se busque o significado do “procedimento especificamente antitético-dialético do
parlamento, esse sentido poderá ser o seguinte: da contraposição de teses e antíteses dos
interesses políticos deve nascer de alguma maneira uma síntese, a qual, neste caso, pode
ser um compromisso” (Kelsen, idem: 129). Os compromissos da política burguesa
210
adquirem relevo em face da idéia da ditadura nazi-fascista. Para Kelsen, esses
compromissos condiriam com a idéia de livre-arbítrio dos indivíduos, com as instâncias
políticas mediadoras, com o direito da maioria, com o reconhecimento do outro. Em suma,
Kelsen utiliza os argumentos da burguesia democrático-liberal para defender a ética da
responsabilidade diante da ascensão nazi-fascista.
Os principais interlocutores de Kelsen são os ideólogos fascistas, ainda que o
jurista não faça distinção entre as ditaduras que agitam “a sua bandeira vermelha ou preta”
(2000: 134, 135). Não se esqueçam de que, naquela época, um adepto de Hitler como Carl
Schmitt sentenciava: é necessário ter clareza “da situação histórica para ver que o
parlamentarismo abandona suas fontes intelectuais e que o inteiro sistema de livre
expressão, assembléia e imprensa, de reuniões públicas, privilégios e imunidades
parlamentares, está perdendo sua racionalidade” (1985: 49). Esse verdadeiro tratado contra
a democracia liberal burguesa é finalizado com estes termos: se nas atuais circunstâncias
dos negócios parlamentares, a abertura e a debate tornaram-se uma formalidade vazia e
trivial, então o parlamento, como se desenvolveu no século XIX, perdeu seus prévios
fundamentos e significados” (Schmitt, idem: 50). Schmitt preocupa-se com o fato de que o
parlamento transpunha para a política a pluralidade de interesses em luta na sociedade (cf.
1996: 26); a sua solução reacionária era o modelo de uma representação política à maneira
da igreja católica romana que instituía a ordem por cima, como uma esfera transcendente; o
soberano apresentaria o todo ao povo e o o inverso. Não é de se estranhar que Schmitt
tenha encontrado no assalto de Hitler ao poder a encarnação dessa idéia mistificada de
política.
No contexto desta luta em específico, Kelsen é em boa medida progressista.
Sempre que se capturar as determinações de cada totalidade intensiva, de cada bloco
histórico para que não se incorra na equalização horizontal de toda e qualquer atitude. São
respostas diversas a circunstâncias diversas. Em Kelsen a defesa da pequena ética é algo
substancialmente distante daquilo que se apresenta em Weber.
A apologia de Weber à pequena ética aponta no sentido de qual seria a sua
concepção de homem; o eticamente humano é o ato da mera responsabilidade cotidiana, da
satisfação burguesa dos interesses mais imediatos. O ser ético é reduzir-se às vicissitudes
das instituições burguesas. E, com a peculiar linguagem que o caracteriza, Weber determina
211
a ética utilitária como imperativo para aqueles que não estão “espiritualmente mortos”; os
espiritualmente mortos embriagam-se com sensações românticas e sonham com a
transformação do estado de coisas. O desencantamento da ética é, portanto, um mecanismo
para se afirmar a simples reprodução e negar a transformação; para se afirmar o indivíduo
recluso em seus interesses particulares e negar o citoyen partícipe do devir de sua
generalidade. É uma ética anti-humanista, assim como a de Schelling, Schopenhauer,
Kierkegaard e Nietzsche.
Isso não é fora de propósito, uma vez que o grande humanismo da filosofia
racionalista foi herdado por Marx. Quando falou em “espécie”, Weber tratou de adjetivá-la
de “germânica”. Não apenas na juventude do discurso inaugural de Freiburg, em que
endossa a “manutenção e expansão das qualidades alemãs”, mas também na maturidade dos
debates sobre a revolução na Baviera, quando, apesar dos acontecimentos, Weber
conservava-se convicto de que nascer alemão era uma dádiva dos céus. Acalentando como
toda a burguesia guilhermina o projeto de uma Alemanha imperialista, Weber era um
partidário da “espécie” restrita à nação alemã. O restante da humanidade era avaliado sob a
esta ótica particular. Os demais homens, os não-germânicos, eram adversários imperialistas
(ingleses, franceses, holandeses), hordas invasoras em potencial do solo alemão (russos),
objeto de conquista (africanos e asiáticos), etc. Uma autêntica ética humanista deveria partir
do pressuposto estipulado por Marx: “o homem se e se reconhece primeiro em seu
semelhante, a não ser que já venha ao mundo com um espelho na mão ou como um filósofo
fichteano para quem basta o ‘eu sou eu’” (2002: 74). O reconhecimento de si no outro é o
que pressupõe a consciência ética: “através da relação com o homem Paulo, na condição de
seu semelhante, toma o homem Pedro consciência de si mesmo como homem. Passa, então,
a considerar Paulo com pele, cabelos, em sua materialidade paulina a forma em que
se manifesta o gênero homem” (Marx, idem: 75).
Os valores de Weber não eram os valores do homem, senão do homem burguês do
período imperialista do capital. Não faltaram oportunidades para que Weber defendesse
idéias contrárias aos valores genéricos, sob o título mistificador da ética da
responsabilidade, a única que, segundo ele, estaria adequada ao mundo desencantado da
modernidade.
212
Enfim, o desencantamento atribuído à modernidade começa com a religião
protestante e espraia-se teleologicamente por todas as esferas de comportamento da vida
social, inclusive a ética.
Depois desta longa exposição, resta o fato de que Weber produziu uma linear e
unidimensional teleologia da história; uma teleologia “pré-marxista”, como disse Ellen
Wood em citação presente no início deste item. Mommsen está equivocado quando
comenta que Weber
Resistiu à tentação de transformar o fenômeno da burocratização em fenômeno de
uma teoria explícita da história, comparável a do marxismo. Observava
claramente que uma construção linear do processo universal da história deste tipo,
não poderia estar nunca em condições de dar conta da enorme riqueza do material
histórico (1981: 119).
Realmente, Weber não pretendia fazer uma filosofia da história. Para as rígidas
antinomias da sociologia compreensiva, a simples referência às determinações históricas
significa entender que “o advento do resultado não se estabelece num determinado
momento, mas está fixado ‘desde toda a eternidade’” (Weber, 1999a: 209). Para alguém
que supervaloriza as arbitrariedades fortuitas, a idéia de um desenvolvimento histórico
necessário devia causar arrepios. O problema é que, em verdade, o sociólogo transformou
sim a burocratização em destino absoluto de todas as épocas. O oposto do que argumenta
Mommsen é o verdadeiro: a burocratização é transformada por Weber em uma construção
linear do processo universal da história; para usar as palavras do próprio Weber, a
racionalidade capitalista é determinada por eledesde toda a eternidade”. E é precisamente
neste ponto que não se compara com a teoria da história de Marx. Desde o Manifesto do
partido comunista, a teoria marxiana entende que as contradições do capital podem levar à
superação de uma classe por outra (ao socialismo) ou à dissolução de ambas as classes em
conflito barbárie). São possibilidades concretas que estão dadas na própria dinâmica do
real. Quando Marx fez projeções sobre o futuro acerca da dominação britânica na Índia,
por exemplo —, sempre falou em nome de “resultados prováveis”. Ao contrário, Weber
concebe a sua teoria da história como um fim inelutável, teleológico, evolucionista, a
despeito das suas possibilidades de superação. De sua pena, podemos ler a frase lapidar: “à
burocratização pertence o futuro” (Weber, 1999: 540).
213
Nem toda teleologia da história é linear. Hegel produziu uma teleologia da
história sem, contudo, desembocar na linearidade. na Fenomenologia do espírito um
desígnio para a história, que seria a ocasião em que, ao largo de alienações e retroações no
trabalho que executa, o espírito atinge “o saber absoluto, ou [quando] o espírito se sabe
espírito”, passando pelo “calvário” do processo histórico efetivo, produzindo a “história
conceituada” (Hegel, 2002: 545). Ao tratar das alienações e retroações, Hegel mantém-se
dialético fazendo notar que esse desígnio é o resultado a que se conduz o espírito por meio
de contradições históricas.
Por sua vez, se sabe que Weber participava de uma geração de pensadores
burgueses que era objetivamente impossibilitada de ser dialética, de portar à ciência as
contradições processuais da história; daí o caráter estreito e unidimensional da sua
teleologia.
Weber apresenta o modelo do que Hans Freyer chama aprobativamente de
“possibilidade de consumar a história”: toma-se o presente enquanto um fato consumado e
lê-se o passado como a história que gerou esta consumação irremediável (cf. Freyer, 1965:
56).
Deve-se então desmistificar a idéia corrente de que Weber deu atenção à
pluricausalidade, atuando na direção oposta a um determinismo teleológico. Vilma
Figueiredo sustenta que o método pluricausal seria uma das virtudes do pensamento
weberiano que o fariam atual (cf. 2000: 322). De fato, no plano metodológico, Weber foi
um ardoroso combatente da monocausalidade. Mas o que é um conjunto plural de causas se
o seu efeito for inelutavelmente um só? A racionalização capitalista seria o efeito
inevitável, não importam quais fossem as causas. No intento de conceber uma alternativa a
Marx, Weber transformou o capital em ser eterno, onipresente e onipotente, a transcender
todas as épocas, do passado ao futuro.
214
215
Conclusão: a presença de Weber na trajetória de Lukács
Percorremos um longo caminho desde a ascensão da razão burguesa à dialética de
Hegel, pelo legado racionalista herdado por Marx, passando pelo necessário movimento de
decadência ideológica da burguesia, até o nascimento da sociologia e o seu momento de
maior importância com os escritos de Max Weber. Todo esse caminho nos foi útil para
localizar o pensamento de Weber dentro de um processo histórico bem determinado. Com
efeito, tal processo diz respeito ao instante em que a burguesia percebe que todas as armas
que forjara contra a aristocracia fundiária voltavam seu gume contra ela, segundo explica a
bela imagem de Marx em O dezoito brumário.
Notou-se a olhos nus que o nosso estudo esteve respaldado nas teorias de Lukács
contidas especialmente em A destruição da razão. Como se sabe, este texto é um acerto de
contas de Lukács com seu passado filosófico. Na juventude, o pensador húngaro alinhou-se
ao positivismo neokantiano, sendo influenciado por Weber, tendo participado de seu
círculo de debates em Heidelberg.
Ressalta-se que o Lukács marxista sempre cultivou um enorme respeito à
personalidade de Weber. Mesmo em A destruição da razão, uma obra cuja linguagem está
216
marcada pela guerra-fria, é visível a diferença de tratamento dado a Weber em face de
Simmel, por exemplo. Este último era um “niilista mistificador”, ao passo que aquele
primeiro era um “sábio de nosso tempo”. No Pensamento vivido, o próprio Lukács
esclarece a diferença ao ser questionado acerca da avaliação negativa sobre os neokantianos
no livro de 1953: “só que minha atitude em relação a Weber, do ponto de vista moral, foi
sempre positiva, ao passo que criticava uma certa frivolidade em Simmel e por isso nos
afastamos. Mas com Weber esse distanciamento não ocorreu” (1999: 39). A explicação é
coerente: enquanto Weber punha-se a compreender a gênese do capital (mesmo que fosse
para conceder uma alternativa à concepção de Marx), Simmel fugia dos problemas
concretos de seu tempo com estudos a propósito de frivolidades como a coquetismo, a
moda feminina, etc.
O legado neokantiano no jovem Lukács aparece com evidência em seus
primeiríssimos textos. Em 1909, ao escrever A evolução do drama moderno, Lukács
esquivava-se da monocausalidade do positivismo social-democrata à maneira de A ética
protestante e o espírito do capitalismo: “o defeito maior da crítica sociológica da arte
consiste em que busca e analisa os conteúdos das criações artísticas, querendo estabelecer
uma relação direta entre eles e determinadas condições econômicas” (1989: 67). Conforme
Netto, Lukács manteria a mesma repulsa ao economicismo no decorrer de sua produção
teórica a propósito da arte, que culmina na Estética de 1963 (cf. 1978a: 228). No entanto,
que se distinguir: em 1909, o então relativista Lukács não tomava a legalidade do
estético enquanto um dos complexos da totalidade do ser social; ao contrário, procurava
fazer uma simples sociologia da arte, o que, no limite, implica atribuir uma exagerada
autonomia às esferas do comportamento humano.
Em Meu caminho até Marx, Lukács caracteriza a sua filosofia de então: tomando
a figura modelar de Simmel, “eu, de um lado, separava o quanto possível a ‘sociologia’ do
fundamento econômico concebido de modo bastante abstrato, e, de outro lado, via na
análise ‘sociológica’ apenas o estágio inicial da verdadeira e real pesquisa científica no
campo da estética” (1988: 92). Á maneira de Simmel e de Weber, a crítica à
monocausalidade da social-democracia redundava no relativismo burguês, em uma
sociologia da arte. Ainda em Meu caminho até Marx, Lukács diria que a sua teoria juvenil
do conhecimento era um método adotado de autores que “queriam resolver este problema
217
de forma irracionalista e relativista, e, até muitas vezes, mística (Windelband-Rickert,
Simmel, Dilthey)” (idem: 92).
Na mesma A evolução do drama moderno surge uma temática típica de Simmel,
isto é, a autonomia das formas diante do conteúdo histórico: “a verdadeira forma do artista
autêntico existe a priori, é uma forma constante frente aos objetos, é algo sem o qualo
estaria em condições de se confrontar com os objetos” (Lukács, 1989: 68). A forma existe
a priori. Lukács reproduz a idéia de Simmel, concede “liberdade” às formas e retira-as do
solo da história; a forma é eternamente constante em face da dinâmica histórica. Àquele
momento, Lukács apropriava-se acriticamente do formalismo neokantiano.
Aparece vividamente nos primeiros escritos de Lukács a recusa daquilo que na
Estética de Heidelberg ele denominará de “escória de todo ser”, a rejeição romântica da
realidade burguesa. As formas são o reduto salvador diante do caos do cotidiano burguês.
A relação entre forma e história volta ao próximo livro de Lukács, A alma e as
formas. Ainda no forte rastro de Simmel, a forma é elevada à “aspiração maior do ser”
(Netto: 1978a: 233). Logo no início do ensaio sobre a ética de Kierkegaard está escrito: “o
valor da forma na vida, o valor das formas, que cria vida e exalta-a. O gesto é apenas o
movimento que expressa claramente o inequívoco, e a forma é o único caminho do absoluto
na vida” (Lukács, 1985: 57). no último ensaio, cujo tema é a obra de Paul Ernst, expõe-
se sem meias palavras: “a forma é o juiz supremo da vida. O poder de dar forma é uma
força julgadora, algo ético, e em toda configuração está contido um juízo de valor”
(Lukács, idem: 272).
As formas são “a aspiração maior do ser” porque na vida empírica não como a
personalidade realizar-se: “o antídoto contra o desregramento anárquico da vida corrente o
jovem Lukács encontra na consecução da forma. A elaboração das formas torna-se a
manifestação da ordem e da necessidade em meio a uma existência designada como a
‘anarquia do claro-escuro’” (Tertulian, 1981: 75, 76). Não é por acaso que o conjunto de
ensaios recebeu este nome. As formas são o lócus em que a alma do homem pode
suspender-se do fluxo anárquico da vida burguesa.
O que chama atenção em A alma e as formas é sua a crítica ao capital feita à
maneira de Weber. Vejam que o Lukács neokantiano inspira-se em Weber e coloca a
questão: “pois como poderia alguém nascido burguês possuir a idéia que também se pode
218
viver de outra maneira?” (1985: 99). Esta é uma pergunta tipicamente weberiana. Olhando
para trás na história, contemplando com admiração as “sociedades cerradas” a
Antiguidade em especial —, Lukács escreve: “hoje se observa retrospectivamente com
nostalgia essa época, com a nostalgia histérica do homem complexo, condenado desde o
primeiro momento à insatisfação” (idem: 99). A insatisfação do homem burguês é
inexorável
41
. Este homem está condenado à insatisfação; é impotente frente aos avanços do
capital, assim como, para Weber, a racionalização capitalista da vida é inelutável. “Com
impotente nostalgia se pensa que houve uma época em que para aproximar-se da
perfeição... não se fazia nenhum esforço de um gênio, porque a perfeição era o evidente e
nem sequer se pensava na possibilidade do contrário” (Lukács, idem: 99). o esforço de
um gênio supera e transcende o ser burguês, alçando-se assim à “perfeição”. A superação
do imediato burguês está legada a gênios e não a plebeus.
Nota-se que, nesta fase teórica de Lukács, compactuam-se crítica e resignação, a
união clássica da decadência ideológica da burguesia. Não é outra coisa que uma
forma de apologia indireta ao capital. Ressalvam-se as contradições da sociedade
burguesa para lhes conferir um caráter indissolúvel. A nostalgia do homem
moderno que o passado cada vez mais distante é impotente; nada pode fazer
em face do desenvolvimento irreversível do capital. Nesta época, a reposta de
Lukács seria negativa à indagação colocada por ele mesmo: poderia o homem
burguês imaginar viver de um modo diverso?
O espectro de Weber é presença assídua em A alma e as formas, especialmente no
ensaio dedicado a Theodor Storm. No que tange ao romantismo resignado do texto, a
influência do sociólogo é visceral. Lukács resgata a idéia weberiana de que a racionalização
burocrática, a “perda da perfeição”, do mundo moderno provém antes de tudo da ética da
profissão: “a vida se faz burguesa sobretudo pela profissão burguesa” (Lukács, 1985: 101).
Está exposto com a máxima clareza adiante: para o verdadeiro burguês sua profissão
burguesa não é uma ocupação, senão forma de vida, algo que, por assim dizer, determina
com independência do conteúdo, o tempo, o ritmo, o contorno, em uma palavra, o estilo de
41
Foi descoberto um diário escrito por Lukács entre 1910 e 1911. Diz Tertullian no prefácio da edição
francesa que este diário apresenta o “pano de fundo existencial” de A alma e as formas. De fato, há passagens
de extrema consternação em que Lukács demonstra sentir toda a angústia do homem burguês que não
vislumbra alternativa: “desprovidos de qualquer razão, são curiosos os meus estados de espírito suicidas.
Momentâneos. De espécie vertiginosa. Nunca penso neles pois, quando o momento passa, eu os sinto
como uma terrível loucura. Porém, os instantes: estupidamente, sem preparação, de se deitar sobre a cama
assim, fatigado, como se quisesse dormir, e lá. E lá viria o grande silêncio” (Lukács, 2006: 81).
219
vida” (idem: 101). É a ética vocacional experimentada pelo burguês enquanto a conduta
que lhe salvará a alma.
Ressoam as teses de A ética protestante e o espírito do capitalismo em A alma e
as formas. No fragmento a seguir são fortes estas ressonâncias:
A profissão burguesa como forma da vida significa, sobretudo, o primado da ética
na vida; que a vida esteja dominada pelo que se repete sistematicamente,
regularmente, pelo que sempre retorna de acordo com o dever, pelo que se tem de
fazer sem se levar em conta o prazer ou o desprazer. Dito de outro modo: o
domínio da ordem sobre o estado da alma, do duradouro sobre o momentâneo, do
trabalho tranqüilo sobre a genialidade alimentada de sensações (Lukács, 1985:
101, 102).
O espírito burguês implica a sujeição da “genialidade alimentada de sensações”
frente ao exercício automático do labor. O trabalho prosaico consome as energias vitais do
gênio. O espírito burguês seria o tempo em que as qualidades do gênio teriam sido
abreviadas pela rotina da ética da repetição. Diria Weber que a liderança carismática é
sufocada pela racional-burocrática.
A racionalidade do espírito burguês é malévola para a genialidade porque,
conforme A alma e as formas, “o autoconhecimento da pura genialidade em seu ato não
pode ser senão irracional” (Lukács, 1985: 102). A racionalidade da ética burguesa não
permite espaço para que a pura genialidade eleve-se à autoconsciência, o que não se daria a
não ser de modo irracional.
Em um ensaio publicado em 1912, é novamente explícita a herança neokantiana.
Em Da pobreza de espírito, o pensador húngaro conjuga, de um lado, a crítica inofensiva
de Weber à realidade burguesa e, de outro, o extremo formalismo de Simmel. A conjugação
é manifesta nesta passagem:
Dever é um postulado, uma forma e quanto mais perfeita é uma forma, tanto
mais possui uma vida própria, tanto mais se distancia de toda imediatez. A forma
é, portanto, uma ponte que separa; uma ponte na qual vamos e voltamos e
chegamos sempre a nós mesmos, sem ter de fato encontrado ninguém (2004: 176).
Com Weber, nega-se o real burguês, distancia-se de “toda imediatez”, e com
Simmel, procura-se amparo nas formas a-históricas. Em Da pobreza de espírito, não
nenhuma novidade no tocante à resignação nostálgica de A alma e as formas: em ambos,
220
atravessa-se a ponte entre o imediato singular e a essência “sem ter de fato encontrado
ninguém”.
Löwy neste ensaio a problemática de Weber da antinomia entre a ética da
convicção e a ética da responsabilidade (cf. 1998: 130). Não poderia ser exatamente a
problemática específica porque Weber daria forma à antinomia apenas em A ciência como
vocação, de 1917, cinco anos depois de Da pobreza de espírito. É correto, porém, que
Lukács reproduz a noção de que, em presença da realidade reificada do capitalismo
imperialista, não há bondade para se propor, uma idéia que Weber já sustentava muito antes
de A ciência como vocação. Lukács escreve em formato de diálogo que “a bondade é, no
entanto, divina, é metapsicológica. Se se manifesta em nós, então o paraíso tornou-se
realidade e é revelada em nós a divindade. Você ainda crê que se a bondade tivesse eficácia
na vida teríamos permanecido ainda homens?” (2004: 177). Sendo bons, os homens deixam
de ser homens. No mundo terreno, “a bondade é inútil e sem causa”. A bondade é um
atributo peculiar a Deus. Na vida cotidiana, ilegítima, sem autenticidade, não cabem
conceitos da ética pura do sermão da montanha: “pura deve ser a obra separada da vida,
mas a vida nunca pode se tornar e nem ser pura; a vida cotidiana não tem nada a ver com a
pureza, nela a pureza é uma impotente negação, nenhum caminho de saída da confusão,
mas antes a sua multiplicação” (Lukács, idem: 181). A ética pura do sermão da montanha é
impossível no chão da vida cotidiana; na confusão da realidade burguesa, a pureza e a
bondade são impotentes.
A ética da convicção não pertence aos homens cotidianos; são características
pertinentes aos gênios, àqueles que possuem o dom de transcendência: “a bondade é dever
e virtude e pertence a uma casta mais elevada do que a minha” (Lukács, 2004: 188). A
bondade divina é atributo dos gênios, da “casta mais elevada”.
Weber leu Da pobreza do espírito. Gostou do resultado e divulgou o ensaio de
Lukács, colocando-o no patamar de Os irmãos Karamazov, “como uma notável ilustração
da tese segundo a qual o comportamento moral o deve ser julgado por seus resultados,
mas por seu valor inerente” (Löwy, 1998: 130).
A influência de Simmel é também presente. Lukács desdobra as características
centrais da “tragédia da cultura”. Há evidentes similitudes entre Da pobreza do espírito e A
filosofia do dinheiro quando Lukács observa que a obra cresceu da vida, mas se
221
emancipou dela, originou-se do homem, mas é inumana, é até contra o homem” (2004:
183). É o mesmo fenômeno que Simmel narra acerca do dinheiro: a emancipação do uso
cotidiano e a transformação em símbolo autônomo.
Da pobreza do espírito termina com uma citação da blia, do livro do
apocalipse: “conheço suas obras, você não é nem quente nem frio. Ah! Se você fosse
quente ou frio. Mas porque você é morno e nem frio e nem quente, por isso cuspi-lo-ei de
minha boca” (Lukács, 2004: 188). Existem muitas referências neste trecho. Lukács alude ao
caráter “morno” da vida cotidiana; é morna porque é mediana, sem altos e baixos, feita de
repetições burocráticas. A solução que Lukács propõe com a menção a este fragmento
bíblico é comum a vários de seus escritos deste período: de um lado, é o “frio”, é a morte
para o mundo como pensava Kierkegaard —, de outro lado, é o “quente” da redenção
mística, é a espera messiânica da salvação para além da cotidianidade burguesa. O morno
da rotina não é aceito, deve ser cuspido; aceitam-se o frio da morte e o quente do
misticismo religioso.
Neste período, Lukács nutria-se de todos os elementos do positivismo
neokantiano de versão weberiana: relativismo formalista, idealismo subjetivo, pessimismo
frente à história, abdicação de qualquer luta transformadora, apologia indireta à sociedade
capitalista, a racionalidade dialética sob suspeita, parcelamento do real, queda no nível de
abstração teórica, etc. Até mesmo a leitura de Marx era levada a termo ao estilo de Weber,
ou seja, apropriando-se da ontologia materialista apenas enquanto mais uma entre tantas
“sociologias”; era a forma de assimilação de Marx mais adequada à posição de classe de
Lukács naquele tempo: o marxismo era apenas uma outra entre tantas hipóteses de
explicação causal para as relações sociais modernas.
A produção teórica do jovem Lukács não se estagnou em Da pobreza do espírito.
Entre 1912 e 1914, foram produzidos os capítulos que perfazem a Filosofia da arte. Nesse
texto que se projeta como uma teoria sistemática da arte, Lukács examina um problema que
irá nortear sua obra ao longo de muitos anos: a peculiaridade das leis estéticas. O resultado
dos estudos está em plena concordância com o neokantismo, que persiste em plena
vigência, assim como em Da pobreza do espírito, A alma e as formas e A evolução do
drama moderno. Por exemplo, de pronto, é resgatada a noção de Simmel da criação estética
como um “mundo próprio”:
222
Se refletirmos agora sobre o significado da existência de obras de arte, devemos
dizer que certas obras, certas criações humanas, que ao carregar o selo da
personalidade que as produziu são capazes de exercer os efeitos imediatos
independentemente desta personalidade, apenas por elas mesmas, pela própria
virtude de seu complexo imanente, ao mesmo tempo formal e material (Lukács,
1981a: 03).
A obra de arte é um mundo próprio; é autônoma perante seu criador. Apesar de
carregar o selo da personalidade que a criou, a arte não é redutível a este signo; seu
complexo imanente e seus efeitos independem da personalidade criadora.
O manancial de tais idéias é conhecido. O conceito de mundo próprio da arte está
presente em um ensaio de Simmel chamado A moldura. Um ensaio estético, de 1902. O
autor de A filosofia do dinheiro explica: “a essência da obra de arte, porém, é um todo por
si mesmo, não precisa de uma relação com o exterior, sempre reconduzindo suas correntes
energéticas ao seu centro... [A arte] se isola, sendo um mundo por si mesmo” (Simmel,
2005b: 119). Simmel afirma o mundo próprio do estético para tentar reconstruir
teoricamente a sua legalidade interna; a arte é um “mundo por si mesmo”. O problema é
que essa afirmação o leva a negar qualquer conexão da arte com a realidade concreta; a
esfera do estético isola-se do sujeito criador e também do ambiente externo. A arte não
precisa de nenhuma relação com exterior, segundo o filósofo decadente. Estudando a
essência imanente à arte, Simmel lhe concedeu uma autonomia absoluta frente à realidade
concreta; produziu uma “sociologia da arte” digna do cânone do relativismo burguês.
No início da década de 10, quando elaborava a Filosofia da arte, Lukács re-
afirmava o mundo próprio da arte sob os parâmetros do positivismo neokantiano que
observamos no ensaio de Simmel. É a legalidade da arte autônoma frente ao sujeito criador
e também à realidade exterior. O procedimento do jovem Lukács não fugia das estreitas
fronteiras traçadas pela filosofia da vida:
A diferença profunda que separa esta esfera [a arte] de todas as outras esferas
(como aquela do conhecimento, quanto do comportamento ético ou religioso, etc.)
é que ela não contém nenhuma máxima que impõe um julgamento de valor sobre
os objetos, que entre as mais diversas “experiências vividas” dos homens o
aparece então a partir dos princípios desta esfera alguma diferença de valor
ou de verdade; as experiências permanecem subjetivas e não apresentam nunca o
menor objeto para que se possa garantir o seu aspecto comum. As diferenças que
existem entre elas são qualitativas e de intensidade, não se pode assim compará-
223
las e toda tentativa de hierarquizar ou comparar as diversas experiências dos
homens não é possível caso se abandone a vida pura (Lukács, 1981a: 12).
Esta passagem de Filosofia da arte é de extremo relativismo, representante da
“mística niilista” da filosofia da fase imperialista do capital, como diria o Lukács da
maturidade. Não nenhum critério objetivo que tangencie com um mínimo de realidade o
mundo próprio da arte. As experiências permanecem subjetivas, autocentradas e não
possibilidade de se emitir nenhum juízo de verdade sobre elas. Não um conceito comum
generalizante que as unifique. O gênero é sobrepujado pelo singular. É impossível de ser
feita a hierarquia entre as determinações do real, entre a essência e a aparência dos fatos,
entre concreto e abstrato. Isso quer dizer que, no que concerne à arte, se escolhe um deus ou
um demônio e qualquer um é legítimo. Vê-se que é um Simmel com maior sofisticação
filosófica que fala pelas palavras do jovem Lukács.
Posteriormente, nada disso passaria incólume pelo crivo do Lukács marxista. Em
A destruição da razão, os aspectos ideológicos do “mundo próprio” de Simmel são
desvendados pela severa crítica do pensador húngaro: “Simmel não reconhece já, em rigor,
um mundo objetivo, senão tão somente diferentes formas de comportamento vivo ante a
realidade (o conhecimento, a arte, a religião, o erotismo, etc.), cada uma das quais faz
brotar seu mundo próprio de objetos” (Lukács, 1968: 358). A materialidade do concreto
real inexiste; os comportamentos constroem seus próprios objetos, sua realidade peculiar e
autônoma perante as demais. A disposição do mundo próprio” de Simmel é renunciar à
existência de uma realidade que esteja fora da consciência do indivíduo burguês.
Expondo a sua metodologia em A intuição da vida, Simmel argumentava que “é
uma censura erroneamente formulada dizer que os filósofos violentam o mundo com o
unilateral de seus princípios, pois graças a semelhantes princípios vem a existir
propriamente o mundo” (1950: 34). A filosofia cria seu mundo. Caso nos comportássemos
na vida cotidiana em concordância com as premissas desse modelo de vulgarização
sociológica, seria um verdadeiro desafio atravessar a rua lidando com os veículos que
passam como se fossem projeções valorativas de nossa subjetividade.
A mistificação do relativismo em Simmel é da mesma espécie produzida por seu
fiel seguidor, o jovem Lukács: cada esfera do comportamento humano possui seu objeto
sociológico autônomo, constituído por si só, a partir da subjetividade auto-suficiente. A
224
crítica de A destruição da razão à “mística niilista” do relativismo de Simmel é igualmente
justa para as teses juvenis de seu autor (o que, aliás, sempre foi reconhecido por ele mesmo
no período maduro).
Como se sabe, o Lukács da alta maturidade não excluiria de seu arcabouço
categorial a noção de mundo próprio. Ela cumpriria um papel fundamental lá na Estética de
1963. No entanto, a categoria muda substancialmente de figura. Em verdade, ela só mantém
o nome; não se pode dizer absolutamente que se trata da mesma categoria. Da maneira
como Marx usou as categorias da economia política para lhes desvendar o núcleo oculto,
Lukács usou as categorias da estética burguesa com o mesmo intuito. O mundo próprio
continua servindo para que se afirme a legalidade imanente ao estético; o que é subtraído é
o relativismo então arraigado à expressão. O mundo próprio da arte está agora referenciado
à realidade concreta, é uma re-configuração mimética das “experiências vividas”, elevadas
à tipicidade, e a práxis histórica é o critério em que se baseiam os juízos a propósito da
autenticidade de uma criação estética
42
.
Filosofia da arte mantém um certo tom existencialista de Da pobreza do espírito,
A alma e as formas e dos textos anteriores. O homem desesperado de Kierkegaard e
Heidegger é também o homem da Filosofia da arte. Até mesmo a idéia da morte para o
mundo como salvação do desespero ontológico é presente no livro de 1914 (cf. 1981a: 20).
O pessimismo de Schopenhauer e Kierkegaard norteia certas páginas do texto em que o
jovem Lukács fala damiséria profunda e da solidão irredutível em que se fecha o homem
na realidade vivida” (idem: 28).
42
Na Estética de 1963, o papel exercido pelo “mundo próprio” da arte é de grande importância; apenas com a
constituição de um mundo propriamente seu é que a arte desprende-se inteiramente da mimese mágica. O
“mundo próprio” é quase sinônimo de uma legalidade peculiar ao estético. Lukács explica a nova acepção do
termo “mundo próprio”: “a palavra ‘próprio’ tem neste contexto três significações, e as três são de igual
importância para o conhecimento do fenômeno estudado. Trata-se, em primeiro lugar, de um mundo que o
homem criou para si mesmo, para o humano-progressivo que nele; em segundo lugar, de um mundo no
qual aparece em imagem a peculiaridade de outro mundo, da realidade objetiva, porém de tal modo que a
seção do mesmo, inevitavelmente reduzida e recortada, que constitui imediatamente o conteúdo da imagem,
cresce até converter-se em uma totalidade intensiva das determinações decisivas de cada caso, levantando
assim uma reunião em si talvez acidental de uns objetos à altura de um mundo necessário em si; em terceiro
lugar, trata-se de um mundo próprio no sentido da arte, ou seja, nesse nosso caso, de um mundo visualmente
próprio, no qual os conteúdos e das determinações da realidade objetiva evocam-se mimeticamente
despertam-se à existência estética e podem manifesta-se na medida em que se transpõem em visualidade
pura” (Lukács, 1966, II: 143, 144). A presente determinação do mundo próprio artístico pode ser acusada de
tudo, menos de ser relativista.
225
Com efeito, a leitura deste livro nos apresenta uma mescla do existencialismo, da
filosofia da vida e do neokantismo, sem que essa combinação lhe traga alguma incoerência
interna.
Para compreender os comportamentos receptivos e criativos no âmbito estético,
Lukács lança mão do psiquismo de Dilthey e Simmel: “não se trata certamente de uma
psicologia empírica, mas de uma psicologia racional normativa e metodológica, o de
uma ciência privada de todo julgamento de valor, mas de uma reconstrução da realidade
dada da experiência” (1981a: 46).
A história torna-se mera referência distante. No último capitulo, Lukács escreveria
o seguinte acerca da temporalidade da obra de criação estética: “a obra não possui nenhuma
aderência essencial com o tempo e a data de sua vinda ao mundo não possui nenhuma
importância” (1981a: 160). O mundo próprio da arte não está em relação alguma com a
história; pouco interessa a particularidade histórica em que foi produzida a arte. Em alguns
trechos, o deliberado irracionalismo é bastante acentuado: o homem perfeito, o gênio
artístico, faz saltar esses muros [da vida empírica] e pode comunicar-se inteiramente e sem
reservas” (idem: 22). O homem perfeito, a genialidade a-histórica está acima dos
“obstáculos empíricos”; eis que o jovem Lukács formula a sua própria teoria aristocrática
do conhecimento, o que já era do nosso saber desde a análise de A alma e as formas.
Antes de prosseguirmos, uma curiosidade assinalada por Tertulian (cf. 1981:
117). Analisamos aqui os elementos weberianos no pensamento de Lukács, mas
poderíamos agora fazer o inverso, isto é, mencionar um trecho da obra de Weber que, com
certeza, se deve à influência do jovem Lukács. Ao ler a introdução de Filosofia da arte,
exatamente a questão colocada à feição kantiana: “existem obras de arte; como elas são
possíveis?” (Lukács, 1981a: 03), Weber emitiu este juízo registrado por Marianne Weber:
“minha impressão é muito forte, e tenho muita certeza de que a apresentação do problema é
a definitivamente correta. É uma benção que se tenha afinal dado voz à ‘obra’ como tal”
(2003: 540). A apresentação do problema impressionou tanto Weber que, anos mais tarde, a
questão seria reproduzida em A ciência como vocação: “os estetas modernos (na realidade
ou expressamente, como por exemplo G. v. Lukács) partiram do pressuposto de que ‘as
obras de arte existem’, e em seguida indagaram: como pode ter sentido e ser possível a sua
existência?” (1979: 181).
226
Retomemos o fio da história. A teoria do romance começa parcialmente o
afastamento em face de Simmel e Weber. Aqui, surgem novidades substanciais no
pensamento do nosso autor. Lukács põe-se a estudar as formas épicas e Hegel é seu suporte
teórico. No prefácio de 1962, ele explicou a trajetória: “encontrava-me, a essa altura, no
processo de transição de Kant para Hegel, sem contudo alterar em nada minha relação com
os métodos das chamadas ciências do espírito” (2000a: 09). Vê-se que a ruptura com o
neokantismo não é plena em A teoria do romance (e sequer no decorrer da obra do jovem
Lukács, como veremos). O arcabouço categorial de Hegel é bastante utilizado, muito
embora Weber e as ciências do espírito ainda persistam. Por exemplo, a crítica romântica
ao capital apresenta-se nas teses do Lukács de 1916 a propósito do romance, o que
prontamente se faz recordar de Weber. A forma romanesca seria a epopéia da “era da
perfeita culpabilidade”, como expressaria Fichte: “o romance é a epopéia de uma era para a
qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a
imanência do sentido da vida tornou-se problemática, mas que ainda assim têm por
intenção a totalidade” (Lukács, 2000a: 35). O sentido imanente à vida na sociedade
burguesa tornou-se problemático; isso quer dizer que as antigas formas societárias e suas
epopéias são normais, não-problemáticas. Atribuir um caráter problemático à modernidade
significa tomar o passado como se fosse um padrão de vida violado pelo presente burguês.
O anticapitalismo de A teoria do romance brota vivamente no trato da categoria
da totalidade. Dada a imbricação entre essência e aparência, entre ato e consciência, a
realidade grega apresenta-se como uma totalidade: totalidade do ser é possível quando
tudo é homogêneo, antes de ser envolvido pelas formas; quando as formas não são uma
coerção, mas somente uma conscientização” (Lukács, 2000a: 31). Antes de ser alçado à
forma, a Antiguidade grega vivenciava a totalidade do ser; as formas apenas punham em
evidência o sentido imanente ao mundo. Na Idade Média, não se perde a totalidade; da
Igreja originou-se uma nova polis (cf. Lukács, idem: 35). Desse modo, “em Giotto e Dante,
em Wolfram de Eschenbach e Pisano, em São Tomás e São Francisco o mundo voltou a ser
uma circunferência perfeita, abarcável com a vista, uma totalidade”. Com a arte medieval,
“surgiu um novo e paradoxal helenismo: a estética volta a ser metafísica” (Lukács, idem:
35). anotamos que sobre a modernidade Lukács não diz o mesmo. Depois da ruína da
Idade Média, “não mais uma totalidade espontânea do ser” (Lukács, idem: 35). Isso
227
porque “o romance é a epopéia do mundo abandonado por Deus” (Lukács, idem: 89).
Lukács crê que a arte moderna tem, como pressupostos de sua existência e
conscientização, o esfacelamento e a insuficiência do mundo” (idem: 36).
As preocupações de A teoria do romance são as formas; não é, porém, à base do
formalismo abstrato de Simmel e Weber. As formas atrelam-se à realidade histórica; estão
impregnadas de historicidade; pertencem a etapas particulares do desenvolvimento
humano: “epopéia e romance, ambas as objetivações da grande épica, não diferem pelas
intenções configuradoras, mas pelos dados histórico-filosóficos com se deparam para a
configuração” (Lukács, 2000a: 55). As formas épicas diferenciam-se pelo objeto a ser
configurado, “pelos dados histórico-filosóficos com se deparam para a configuração”.
Diferentemente das formas a priori de A evolução do drama moderno, são os diversos
estágios históricos, isto é, Antiguidade, Idade Média e modernidade, que particularizam
suas perspectivas formas. Claramente, a influência de Hegel impôs-se na nova postura de
Lukács em A teoria do romance. A prioridade do objeto histórico frente ao sujeito criador
da forma é explícita quando Lukács distingue a matéria da forma romanesca e sua conexão
direta com ela: “todos os abismos e fissuras inerentes à situação história têm de ser
incorporados à configuração e não podem nem devem ser encobertos por meios
composicionais” (idem: 60). Os abismos e fissuras inerentes à sociedade burguesa não
podem ser encobertos pelo romance; é o efetivo conteúdo a ser configurado. Quer dizer que
é preciso que o objeto se faça valer frente ao sujeito estético
43
.
O primado do objeto histórico diante da forma é novamente manifesto quando
Lukács estuda o primeiro romance produzido pela literatura, Dom Quixote. A obra de
Cervantes não surge casualmente; o seu aparecimento está muito bem condicionado
historicamente: “é mais que um acaso histórico que o Dom Quixote tenha sido concebido
como paródia aos romances de cavalaria, e sua relação com eles é mais do que ensaística”
(Lukács, 2000a: 103). Os romances de cavalaria tinham perdido o tempo histórico; não
havia tempo e lugar para o heroísmo medieval dos cavaleiros. “O romance de cavalaria
sucumbiu ao destino de toda épica que quis manter e perpetuar uma forma puramente a
43
Tertulian elogia A teoria do romance escrevendo que uma similar historicização das categorias estéticas
fundamentais representa uma notável tentativa de ressurreição do hegelianismo em nossa época, e o vínculo
estabelecido por Lukács entre a existência de uma categoria estética e o devir histórico (mais orgânico que em
Hegel) constitui uma das contribuições mais originais de A teoria do romance às ciências do espírito” (1980:
22).
228
partir do formal, depois de as condições transcendentais de sua existência estarem
condenadas pela dialética histórico-filosófica” (Lukács, idem: 103, 104). Perdeu-se o objeto
histórico de tais romances. Os cavaleiros perderam as “condições transcendentais de sua
existência”, as quais foram condenadas pelo devir da “dialética histórico-filosófica”. A
manutenção do romance de cavalaria apenas seria possível sob puros aspectos formais
porque o seu conteúdo objetivo dissipava-se. Que a linguagem hegeliana do jovem Lukács
esteja carregada pelo invólucro místico não modifica o fato de que a história passa a ser
determinante. A forma dos romances de cavalaria não pertence mais ao tempo de
Cervantes. O escritor espanhol foi o primeiro a conceder forma ao novo objeto que se
punha diante de si: “assim, esse primeiro grande romance da literatura mundial situa-se no
início da época em que o deus do cristianismo começa a deixar o mundo” (Lukács, idem:
106).
No prefácio de 1962, Lukács compreenderia as idéias de A teoria do romance
como um anticapitalismo romântico. Entretanto, o Lukács de 1916 não mais se resigna com
a suposta irredutibilidade do capital. Existe em A teoria do romance o sentimento utópico
de que as categorias burguesas, hostis à digna vida, prontamente entrariam em colapso. E o
colapso possui um profeta: os livros de Dostoievski não seriam “romances”; neles, o
problemático do herói romanesco é resolvido e a totalidade da vida volta à imanência:
Somente nas obras de Dostoievski esse novo mundo, longe de toda luta contra o
existente, é esboçado como realidade simplesmente contemplada. Eis por que ele
e a sua forma estão excluídos dessas considerações: Dostoievski não escreveu
romances, e a intenção configuradora que se evidencia em suas obras nada tem a
ver, seja como afirmação, seja como negação, com o romantismo europeu do
século XIX e com as múltiplas reações igualmente românticas contra ele. Ele
pertence ao novo mundo (2000a: 160).
A função exercida por Dostoievski na história da literatura não é a de refletir as
condições postas; não é um papel similar ao de Homero na Antiguidade, Dante na Idade
Média e Cervantes na modernidade. O escritor russo não reflete as condições postas pela
sociabilidade burguesa; ele proclama a sua superação.
Dostoievski pertence ao novo mundo. Ainda que seja saturado de uma
ingenuidade idealista, A teoria do romance anuncia um novo mundo, o qual Dostoievski
teria previsto. Isso implica um grande passo para além de Weber. Lukács deixa de falar
como seu antigo mestre em nome de uma “nostalgia impotente”. Em 1916, a impotência é
229
substituída por “indícios de um porvir ainda tão fraco que pode ser esmagado, com o
mínimo de esforço, pelo poder estéril do meramente existente” (Lukács, 2000a: 161).
Continua-se a negar o “meramente existente” do real burguês, porém, profetizando a
superação de sua “esterilidade”. Se aquela pergunta de A alma e as formas fosse refeita, o
Lukács de A teoria do romance mudaria de postura: o homem burguês poderia sim
imaginar uma outra vida.
Nos manuscritos do livro que almejava escrever sobre a literatura de Dostoievski,
Lukács conserva a idéia de que o russo “não escreveu nenhum romance” (2000: 24). A
utopia prossegue vigorando. Um dos sinais desta utopia ingênua é o fato de que o autor de
Crime e castigo seja sempre considerado à parte; ao longo dos parágrafos avulsos, é
comum Lukács referir-se a “Dostoievski e os outros”. Os outros seriam os romancistas, os
escritores ainda vinculados às formas da sociedade burguesa. Dostoievski é diferente dos
“outros”; os seus personagens predizem a nova era,um mundo sem Deus” (Lukács, 2000:
86), em que a culpabilidade burguesa está aquém da moral, quando “tudo é permitido” (o
niilista Raskolnikov é a ilustração cabal da ética futura, que conta também com Ivan
Karamasov, por exemplo).
A obra de Dostoievski resgata a perdida “ação heróica imediata” (Lukács, 2000:
85), isto é, em Os irmãos Karamasov, Crime e castigo, Os demônios, O idiota, etc., a
totalidade do sentido da vida retorna à epiderme das relações. O herói não se põe em busca
de um sentido imanente às suas ões; ele está dado no imediato. O poder do
“meramente existe” desvincula-se de sua esterilidade burguesa; é fértil em Dostoievski.
Nos manuscritos sobre Dostoievski o afastamento do neokantismo é bem mais
intenso. Com efeito, o se deve qualificar a filosofia deste texto de neokantiana. Os
fragmentos estão impregnados do hegelianismo, em maior medida que A teoria do
romance; é inclusive um Hegel que às vezes tende sutilmente a Marx: “a possibilidade de
conhecimento da verdadeira estrutura do espírito objetivo deve ser feita do ponto de vista
histórico-filosófico; aqui está o significado de Marx” (Lukács, 2000: 37). São aceitas tanto
a natureza objetiva do espírito quanto a sua historicidade. Porém, embora seja largamente
mencionado, Marx está longe de ser a tônica. É notável a maneira como Lukács começa a
colocar-se algumas questões típicas do marxismo. A revolução é um tema abordado. A
partir de Dostoievski, Lukács discorre em certos fragmentos sobre a moral da revolução e
230
termina por associá-la a uma espécie de terrorismo” (cf idem: 57). Não se diferença
entre o terrorismo e a revolução. Ademais, o humanismo revolucionário é chamado de
“metafísica do socialismo” (cf. idem: 86), o que atesta o quanto o pensador húngaro ainda
distava da teoria social marxista.
Com efeito, aqui se apresenta o primeiro contato de Lukács com o problema da
revolução. Weber conhecia o projeto lukacsiano sobre Dostoievski e não o aprovava; em
carta a Lukács, Weber discordou de sua “súbita guinada para Dostoievski” e do abandono
da estética sistemática que vinha escrevendo, a Filosofia da arte. Demonstram as cartas que
Weber acompanhava a estética de Lukács assumindo o papel de autêntico orientador (cf.
Lukács, 1986: 222, 223). Quanto a Dostoievski, em correspondência de 14 de agosto de
1916, Weber foi franco ao escrever que “odiou a obra e continua a odiá-la” (apud Lukács,
idem: 264). Conforme Jordão Machado, é justamente a temática da revolução a causa da
desaprovação de Weber: “a ‘sua súbita guinada [de Lukács] para Dostoievski’ (Max
Weber) expressa, na verdade, o seu fascínio pela Revolução Russa —, e não por outro
motivo Weber detestou esse trabalho” (Machado, 2004: 103).
De novo, Carlos Eduardo Jordão Machado registra a pretensão de Lukács em
Dostoievski: “o livro planejado não seria apenas uma monografia sobre Dostoievski, mas
também o projeto de uma ética metafísica e de uma filosofia da história” (2004: 58), o que,
sob nossa perspectiva, também se pode dizer acerca de A teoria do romance. Em carta a
Paul Ernst, Lukács escreve precisamente que o livro sobre o autor russo “conterá minha
ética metafísica e uma parte significante da minha filosofia da história” (1986: 244). Esse
projeto filosófico não é exeqüível a partir das categorias oferecidas pelo neokantismo e pela
filosofia da vida; não se fazem uma filosofia da história e uma ética metafísica sem abrir
mão da metodologia de Weber, Simmel ou Dilthey. É perfeitamente coerente que Weisser
conclua que as ambições lukacsianas expostas no manuscrito sobre Dostoievski invalidam
os conceitos estéticos decisivos da Filosofia da arte (cf. Machado, idem: 61).
A teoria do romance e, especialmente, Dostoievski representam um afastamento
acentuado do positivismo neokantiano, da filosofia da vida, do existencialismo. O curioso
do trajeto filosófico do jovem Lukács é que as temáticas das ciências do espírito retornam à
superfície; parecem que tinham sido parcialmente superadas com a influência de Hegel.
Porém, eis que surgem obras que negam a aparência, como a Estética de Heidelberg, por
231
exemplo. Antes de analisá-la, todavia, vejamos um pequeno texto que, em 1918, Lukács
escreve em memória do recém-falecido Simmel. O opúsculo de dez páginas mostra que a
influência da sociologia cessa para Lukács apenas com a efetiva adesão ao marxismo. Não
foi Hegel e sim Marx quem imunizou Lukács do “ponto de vista sociológico”. O Hegel de
Lukács conviveu com aquelas tendências características do pensamento burguês pós-1848.
Em verdade, pode-se sugerir que um Lukács neokantiano (Estética de Heidelberg, À
memória de Simmel), que nega a processualidade do espírito, corre paralelo a um Lukács
hegeliano (A teoria do romance, Dostoievski), que a afirma terminantemente.
contradições irresolutas entre esse curto texto e Dostoievski. A filosofia de um
não é a de outro. No ensaio, Lukács saúda o surgimento da obra de Simmel no cenário
intelectual da Alemanha porque era um momento em que “a grande tradição da filosofia
clássica alemã parecia estar perdida; os outsiders importantes dessa época (Nietzsche,
Hartmann) erguiam-se sem raiz nem rebento numa maré montante de materialismo e
positivismo particularmente desprovida de sabor e alma” (2006a: 204). Lamenta-se o fato
de que o niilismo irracionalista de Nietzsche não tenha criado uma tradição. Simmel teria
sido um alento reconfortante em meio ao materialismo e ao positivismo então reinantes,
ambos desprovidos de “sabor e alma”. É bastante curiosa a emissão de um juízo desse
quilate por um autor que vivia as vésperas de aliar-se à classe trabalhadora, e que em
Dostoievski havia dito à maneira de Hegel que o significado de Marx era a afirmação do
verdadeiro devir histórico do espírito objetivo.
Também acerca do materialismo histórico-dialético, é feita a comparação de Marx
com Simmel, cujo conteúdo é inteiramente favorável ao filósofo da vida:
Se, antes de Simmel, a sociologia, sobretudo a que foi igualmente determinante
para sua posição, a sociologia de Marx, tendia a dissolver na realidade temporal
todo o absoluto atemporal (a religião, a filosofia, a arte), a parcialidade e a
fraqueza das maiores concepções histórico-filosóficas da época clássica, a de
Hegel, por exemplo, estavam vinculadas à tentativa de incorporar a temporalidade
da história, em sua inteireza indivisa, ao absoluto de relações puramente
apriorísticas. A importância de Simmel para a sociologia penso em primeiro
lugar em sua Filosofia do dinheiro vem de que ele exacerba e aprimora a
análise das condicionalidades a um ponto que ninguém havia conseguido
alcançar, sua autolimitação, sua parada diante do incondicionável (2006a: 207).
O formalismo vazio de Simmel é consagrado em detrimento da racionalidade
histórica de Marx e de Hegel. É preferível o formalismo carente de conteúdo em Simmel ao
232
caráter inapelavelmente histórico das idéias em Marx. Esta seria a “importância de
Simmel”: a abstração da processualidade histórica no trato das formas culturais. Na citação
mencionada, a incorporação da temporalidade à filosofia é a “fraqueza” de Hegel. A
opinião lukacsiana modifica-se de modo considerável. Um mesmo autor produziu em um
espaço curto de tempo textos em que assumia uma postura claramente tendente a Hegel e
outros em que descartava as contribuições do filósofo alemão; em alguns ensaios era
hegeliano (como Dostoievski) e deixava de ser em outros; engrandecia as conquistas
científicas de Marx em uns, passava a rejeitá-las e, em um terceiro instante, voltava a
incorporá-las. É extremamente difícil enquadrar em alguma tipologia filosófica o
pensamento de Lukács à época. Conforme Tertulian, as empreitadas filosóficas lukacsianas
na juventude eram plenas de flutuações e contradições internas (cf. 1981: 118). O breve
escrito em homenagem a Simmel representa um grande retrocesso em face do hegelianismo
objetivo de Dostoievski e de A teoria do romance; representa um recuo de volta ao
relativismo, ao positivismo neokantiano.
Ainda no período entre 1916 e 1918, Lukács escreveria os manuscritos que foram
editados sob o título da mencionada Estética de Heidelberg, livro que segue rente aos
princípios já vistos com a Filosofia da arte; de fato, a abertura de ambas é a indagação feita
à maneira de Kant que tanto impressionou Weber: as obras de arte existem, mas como elas
são possíveis? A sua definição de arte também recorre ao conceito de “mundo próprio” de
Simmel: “a obra de arte pode ser definida como um complexo formal com uma estrutura
então conclusa em si, com uma imanência, colhida na experiência imediata, completa a tal
ponto que a obra deve sua própria validade exclusivamente a essa imanência” (Lukács,
1974: 07). É uma necessidade teórica de Lukács reafirmar a todo instante a independência
do âmbito estético face ao exterior: “para a valoração da posição estética originária, a obra
de arte e a realidade põem-se em absoluta não-interdependência: a consideração de uma
significa a negação efetiva da outra” (idem: 08). As idéias discutidas a propósito do mundo
próprio de Simmel retornam aqui. Remetamos o leitor a elas: a realidade concreta não é
referência para a valoração de uma peça de criação estética; o valor de uma obra encontra-
se em sua própria imanência e em nenhum outro lugar.
A tal definição irracionalista de arte, Lukács adiciona uma definição não menos
irracionalista de “realidade”: “a ‘realidade’... não é apenas, para usar a expressão de
233
Husserl, ‘posta entre parênteses’, senão é posta como não-existente” (1974: 07). Na tarefa
de julgar o valor da arte, a realidade não é apenas colocada entre parênteses; ela não existe.
Era um procedimento comum de Weber aludir a categorias como “realidade”,
“objetividade”, “verdade”, etc., colocando-as entre aspas. Porém, o irracionalismo do
jovem Lukács é ainda mais acentuado: para a Estética de Heidelberg, no que concerne ao
julgamento estético, não há o real.
Explica-se então porque Lukács diz ser inexprimível” a condição prévia que
determina a posição estética. Segundo o seu vocabulário da época, Lukács fala no
“inexprimível ‘pré’ da posição” (1974: 22). No tocante à arte, não um calço real para as
escolhas. Ao estilo de Weber, as formas e os valores estão culturalmente dados e nada se
diz a respeito das determinações concretas que condicionam as decisões; eles brotam por
geração espontânea.
A única “realidade” levada em consideração é a experiência vivida. Nada existe
fora do sujeito. A subjetividade é auto-suficiente:
Todos os problemas que podem reconduzir à questão da “realidade do mundo
exterior” não são outra coisa que hipóstases metafísicas desta estrutura objetiva
paradoxalmente bilateral da realidade da experiência: em seu plano, não se pode
encontrar algum critério válido de diferenciação entre o despertar e o sonho, entre
saúde do espírito e a loucura, porque as categorias que nos são objetivamente
dadas não são exatamente idênticas seja tanto para o sonho ou a loucura quanto
para seus contrários e possuem para estes o mesmo escasso valor como para
aqueles (Lukács, 1974: 27).
A passagem deixa manifesto que tudo o que for considerado realidade para além
da experiência subjetiva não passa de hipóstases, de ficções que pretendem transformar-se
em fato. A “objetividade” da vivência da imediaticidade burguesa é a única possível de ser
apreendida pelo jovem Lukács, em vista da sua condição de classe. No terreno da chamada
experiência vital, não método para se estipular nenhum critério de autenticidade; não
possibilidade de uma valoração acerca do comportamento humano. A antinomia entre
loucura e saúde mental é uma versão equivalente aos deuses e demônios antinômicos de
Weber. Os dois pares de antinomias convêm à justificação do relativismo burguês. Isto é, a
diferenciação entre loucura e saúde espiritual é impraticável; estabelecer uma conduta
humana eticamente legítima é tarefa inexeqüível.
234
Em A destruição da razão, no capítulo sobre Dilthey, Lukács chamaria a
objetividade da experiência vivida de “pseudo-objetividade”. A mesma designação vale
para a pretensa objetividade da Estética de Heidelberg.
Ao longo do livro, Hegel está bastante presente (e esta é a principal divergência
com a anterior Filosofia da arte). Porém, é um Hegel filtrado pelo idealismo subjetivo. É
certo que Lukács contrapõe o idealismo “relativo” de Kant ao “absoluto” de Hegel, o que
não lhe impede de encontrar similaridades entre “a coisa em si de Kant e o puro ser de
Hegel” (1974: 21). A Estética de Heidelberg encontra tendências da filosofia da vida em
Hegel; sustenta, por exemplo, que o conceito hegeliano de imediaticidade e o conceito de
experiência vital de Dilthey são afins, possuem a mesma função sistemática (cf. idem: 17).
Em outra ocasião à frente, está escrito que a problemática fenomenológica de Hegel
evidencia a necessidade filosófica de se partir do “factum”, do substrato factual da
realidade da experiência vivida (cf. idem: 40). O Lukács da Estética de Heidelberg não
poderia nutrir-se das soluções apresentadas pela estética hegeliana uma vez que efetua o
isolamento em esferas autônomas da arte, de um lado, e da ética, de outro. Sabe-se que
Hegel entendia a criações artísticas enquanto a mediação privilegiada entre o homem e os
mais altos interesses do espírito; portanto, a ética está imbricada com a posição estética”,
para usar os termos juvenis de Lukács. A função de Hegel no texto lukacsiano é de mero
fomentador de questões e não de soluções.
A dissociação entre ética e arte traz conseqüências a Lukács quando o pensador
húngaro teoriza o retorno à imediaticidade depois da experiência estética. Não é um sujeito
eticamente elevado que encontramos ao cabo da fruição. Com efeito, segundo a Estética de
Heidelberg, o homem que experimenta a arte adquire novos órgãos, que são homogêneos
em contraposição à heterogeneidade do cotidiano (idéias que seriam retomadas em seus
traços mais amplos na Estética de 1963). O Lukács de 1918 diz que este homem “pode
iniciar a viver um mundo construído em referência a estes órgãos, um mundo estruturado
em seu interior como totalidade” (1974: 117). Percebam que é o mundo que se acomoda ao
sujeito e não o inverso; a subjetividade pós-vivência estética está apta a criar um mundo
homogêneo para si. O homem que sai da fruição e que pode adequar o mundo a si mesmo é
“sujeito, indivíduo, personalidade, homem no sentido próprio do termo” (Lukács, idem:
117). Não se deduz daí que este homem no sentido próprio do termo seja eticamente
235
elevado; o próprio Lukács apressa-se em ressalvar que a aquisição possibilitada pelo
estético “obviamente não se trata nem de órgãos sensoriais, nem de um ‘patrimônio
espiritual’” (idem: 117). Trata-se senão daqueles órgãos que permitem a adequação do
mundo à personalidade, que permitem a identidade sujeito-objeto, uma idéia que
comparecia a Filosofia da arte: “o fim do movimento [de recepção estética] consiste em
encontrar aqui, com toda evidência, um mundo exterior adequado à interioridade da
experiência” (Lukács, 1981a: 63).
O mundo adequado à subjetividade nascida do confronto com o estético significa
a conformidade entre sujeito e objeto; não é, porém, a identidade hegeliana. Hegel estipula
esta identidade no período histórico em que o espírito atinge a figura da consciência
equivalente ao saber absoluto. Nada mais distante do Lukács neokantiano. Para ele, a
personalidade cria um “microcosmo” com a obra de sua fruição. Neste microcosmo é que
se a identidade; cada um, cada relação entre sujeito receptor e objeto artístico constrói o
seu microcosmo particular. São microcosmos relativos e não o macrocosmo absoluto de
Hegel. Lukács diz: “a subjetividade não é um dado psíquico e empiricamente existente, mas
uma idéia, cuja realização é para cada sujeito uma tarefa infinita” (1974: 147). Vê-se
excluída a categoria da totalidade: a aquisição da subjetividade é uma tarefa a ser cumprida
por cada indivíduo em separado na recepção de uma obra singular. E acrescenta-se: “a cada
sujeito é uma tarefa radicalmente diversa de todos os outros. A idéia a cada sujeito não é
posta como idéia da pura subjetividade em absoluto, mas como a idéia da sua pura
subjetividade especial, incomparável e inatingível por outras vias” (Lukács, 1974: 147,
148). Ou então com a linguagem de Leibniz: “cada ato e cada criação é uma mônada
fechada que, segundo a norma e por princípio, não pode saber nada de todas as outras
mônadas similares, que em sua dimensão estética própria o pode ter com elas nenhum
tipo de relação” (Lukács, idem: 153).
Às vezes, para compor os delineamentos de sua própria estética, Lukács apela à
polêmica precisamente com Hegel. Não são poucas as circunstâncias em que Hegel é o
oponente escolhido para que se façam valer os princípios da Estética de Heidelberg. Por
exemplo, para afirmar o relativismo neokantiano, Lukács confronta-se com a categoria de
totalidade da Fenomenologia do espírito:
Enquanto que a fenomenologia metafísica de Hegel abraçava a totalidade do re-
vivificável e reconhecível e organizava uma hierarquia unitário-homogênea em
236
direção ao espírito absoluto que tudo envolve e leva à consciência, a nossa
fenomenologia estética, ao invés, não considera minimamente outra tendência
senão aquela estética, como se não existissem as demais e, seguindo uma linha
reta, parte do “homem inteiro” da realidade re-vivificável para alcançar o sujeito
estilizado da estética; deste modo, a sua unidade e homogeneidade não são
universal-sistemáticas, porém estéticas, imanentes à esfera (1974: 85).
É rejeitada a categoria da totalidade sistemática; o todo sistemático no qual se
insere a arte é refutado por Lukács. Sob a influência de Weber, o jovem Lukács demarca a
legalidade estética que basta por si só.
À totalidade sistêmica hegeliana, é preferível o subjetivismo de Kant: a real
fundação de uma esfera autônoma de valor é possível somente seguindo a via kantiana; o
primado do sistema a respeito da esfera leva necessariamente à negação efetiva de sua
autonomia” (Lukács, 1974: 83). A afirmação da legalidade imanente à arte conduz Lukács
a negar qualquer sistematicidade totalizante. A acolhida de Kant conduz à rejeição de
Hegel. Mas não se enganem: o Kant do jovem Lukács é o mesmo presente em Weber e nos
demais neokantianos; é o novo kantismo purificado de suas oscilações ao materialismo,
apropriado à burguesia do período pós-1848.
Nos instantes do texto em que surge o debate sobre a transcendência da
imediaticidade, Lukács não se convence por Hegel e não fala em superação do sensível
rumo às leis do ser do interior; não fala em apreensão da substancialidade supra-sensível do
mundo fenomênico. Indicam estas palavras que de fato Lukács aborda a transcendência do
concreto real pela arte: “a experiência deve ser sempre experiência de alguma coisa e, em
verdade, de uma coisa que deve a própria objetividade a categorias situáveis para além da
experiência e que, para poder ser colhida, exige que o sujeito transcenda a experiência”
(1974: 64). Contudo, não se trata de uma superação dialética. Na Estética de Heidelberg, a
transcendência do imediato é a busca de abrigo nas formas, do modo já dado pela Filosofia
da arte e A alma e as formas, Da pobreza do espírito, etc. O forte diálogo com Hegel não
transforma em dialética as idéias lukacsianas ora observadas. As experiências estéticas,
transcendendo o “caos” cotidiano, “devem tornar-se forma” (Lukács, idem: 64). Abrigado
nas formas a-históricas, protegido pelas mônadas da vivência estética, o sujeito salva-se do
caos do cotidiano burguês.
237
De novo, os temas que vimos com o “mundo próprio” de Simmel enquadram-se
aqui. O formalismo é vazio, é carente de qualquer conteúdo histórico; despoja-se a forma
de todo e qualquer ser. Notem que “a plena realização [estética] pode dar-se unicamente na
configuração formal liberada do ser, na obra destacada mesmo do sujeito criador... É o
abismo entre ser e significado” (Lukács, 1974: 73). A ruptura entre ser e forma é completa.
O formato é esvaziado por inteiro do ser. Lukács chega a falar em “recusa de qualquer
escória de ser” para que se conquiste a forma necessária à arte (cf. idem: 70).
Daí não ser nenhum absurdo que se chegue à conclusão que “uma coerente teoria
cognoscitiva da estética propriamente por isto termina por conduzir a uma sorte de
agnosticismo” (Lukács, 1974: 97, 98). Despojada de “qualquer escória do ser”, a arte não
poderia obviamente consistir em uma modalidade de conhecimento sobre este ser.
Efetivamente, embora Lukács precise que se trata de um puro procedimento
teórico, a Estética de Heidelberg situa em primeiro plano a forma. Na relação conteúdo e
forma, a segunda possui primazia:
A estrutura objetiva de significado da estética é assim verdadeiramente formal;
cada “matéria”, cada “conteúdo” são materiais que apenas se posicionam na
forma, “relativamente”, sempre que por matéria entenda-se um conceito antitético
à forma, como no âmbito da teoria e da ética. Os componentes da estrutura formal
da estética são exclusivamente formais e quando o processo de relativização da
dualidade forma-conteúdo conclui-se, uma análise escrupulosa não pode deixar de
deparar-se com elementos formais: a forma estética não “abarca” a matéria, como
na teórica, e nem menos a “domina”, como na ética, mas a cancela para usar
uma expressão plástica bastante apropriada de Schiller (1974: 67).
A estrutura do estético é verdadeiramente formal; o conteúdo apenas marca a sua
posição dentro dos moldes, das proporções, da perspectiva da forma. A matéria não importa
a não ser para que a forma realize-se. O Lukács da maturidade marxista inverteria a relação:
na conexão entre conteúdo e forma, o primeiro termo é o determinante; nesse caso, caberia
ao sujeito estético a concepção de uma forma adequada ao conteúdo abstraído do
movimento do real. Ao contrário, para o Lukács ainda adepto do positivismo neokantiano, a
forma cancela a matéria. Trata-se de um passo atrás em comparação à anterior A teoria do
romance; neste livro, a forma romanesca é a épica apropriada ao conteúdo da sociedade
burguesa, à matéria dada pelas relações modernas. Como dissemos, o formalismo da
238
Estética de Heidelberg lembra o da Filosofia da arte, com a diferença de que naquele livro
Hegel é chamado às páginas.
A recusa de toda “escória de ser” leva a Estética de Heidelberg a desaprovar a
teoria do reflexo mimético. E não seria de outra maneira. A mimese, para o jovem Lukács,
coloca o objeto da arte no exterior da esfera estética mesma e nisso residiria o seu
equívoco. Bastante diferente da Estética da maturidade marxista, o Lukács de Heidelberg
equipara o reflexo mimético à mera reprodução naturalista do imediato. Assim, “a teoria da
imitação” é fatal seja para a estética, seja para a teoria (cf. 1974: 175); no que concerne à
estética, a teoria da imitação “conduz a um naturalismo real ou transcendente: segundo essa
concepção, os objetos se dão formados antes de serem alcançados pela forma estética,
cuja função então consiste na simples repetição do que está dado” (idem: 175). A todo
instante tentando convencer seus leitores de que a atividade artística não possui
absolutamente nenhum determinante, Lukács não poderia admitir que a obra do sujeito
criador estivesse rebaixada a apenas “reconhecer o que existe sem sua intervenção e
independentemente da sua concepção e que possui uma natureza estética assim
assegurada” (idem: 175).
Durante toda a sua juventude, Lukács escreveu diversos textos e estudou diversos
autores. Porém, uma constante no seu pensamento brota novamente aqui quando vemos a
sua rejeição da teoria do reflexo: a negação do real burguês. Seja nos utópicos A teoria do
romance e Dostoievski, ou nos resignados A evolução do drama moderno, A alma e as
formas, Da pobreza do espírito, Filosofia da arte e Estética de Heidelberg, em todos a
recusa do real burguês, da esterilidade do imediato, da escória de todo ser capitalista. Às
vezes resignado, às vezes utópico, o anticapitalismo romântico é a mais indelével marca da
presença de Weber no pensamento juvenil do filósofo húngaro.
Muita coisa transforma-se nos meses finais de 1918. A revolução russa havia
acontecido em outubro do ano anterior; os seus desenvolvimentos demonstram para Lukács
que a recusa do real burguês não precisaria rumar para a utopia ou a resignação. A chegada
dos trabalhadores ao poder prova que as alternativas ao capital não precisavam ser
necessariamente a utopia ineficiente e a prostração inerte. No prefácio de 1962 de A teoria
do romance, Lukács é claro a esse respeito: “somente o ano de 1917 trouxe-me uma
resposta às perguntas que até então me pareciam insolúveis” (2000a: 08).
239
Simmel faleceu em 23 de setembro de 1918. Lukács escrevia aquela homenagem
à sua memória quando, no dia 24 daquele mês, fundava-se o partido comunista na Hungria
sob a liderança de Bela Kun. Em 02 de dezembro, diante da surpresa geral, Lukács
converte-se ao comunismo e entra no partido. São vários os relatos de espanto entre as
pessoas próximas a Lukács naqueles dias (Arnold Hauser, Anna Lesznai). A surpresa
aumentava de intensidade porque precisamente em dezembro de 1918 é publicado O
problema moral do bolchevismo. Causa estranheza que esse ensaio tenha sido escrito por
alguém que então negociava o ingresso no partido comunista. Nele, Lukács justifica os
motivos que o levavam a divergir da ética bolchevique:
Repito: o bolchevismo baseia-se na seguinte hipótese metafísica: o bem pode
surgir do mal, e é possível, como diz Razoumikhine em Raskolnikov [a tradução
alemã de Crime e castigo], chegar à verdade mentindo. O autor destas linhas é
incapaz de partilhar dessa fé, e isto porque um dilema moral insolúvel na raiz
mesma da atitude bolchevista, enquanto a democracia acredita não exige
daqueles que a querem realizar consciente e honestamente até o fim senão uma
renúncia sobre-humana e espírito de si. E, entretanto, ainda que esta solução exija
uma força sobre-humana, no fundo não é insolúvel, como o é o problema moral
posto pelo bolchevismo (1998: 319).
A revolução é a violência; pela violência, o partido bolchevique pretende instaurar
a sociedade do futuro, sem as contradições da sociedade burguesa. Chega-se à verdade por
meio da mentira. Tal dualidade ética, segundo O problema moral do bolchevismo, é
irresoluta para o comunismo e o seu autor não partilha de tal crença metafísica.
O interessante é que o problema moral do bolchevismo anunciava-se como
insolúvel no mesmo momento em que, de súbito, era “resolvido”. Lukács entra no partido
comunista paralelamente à publicação desse ensaio em que rejeita a moral revolucionária.
Se tivesse os meios para tal, acreditamos que Lukács teria impedido a publicação. O texto é
uma outra amostra daquela agitação intelectual que Lukács e sua geração experimentavam.
Posteriormente, Lukács faria analogia daquela sua oscilação com a do Fausto de Goethe,
que abrigava em seu peito duas almas. Em meio a uma crise mundial, Lukács estava
passando de uma classe para outra e abrigava em seu peito as contradições do tempo e das
respostas pendulares que lhe concedia.
De qualquer forma, O problema moral do bolchevismo é o último texto
“sociológico” que Lukács publica. No marxismo, Lukács encontra o “método justo” de
240
apreensão da realidade sócio-histórica, a superação da filosofia. E, diga-se, a sua adesão a
Marx ratifica que o processo de decadência ideológica é necessário para a burguesia em seu
conjunto e não para todos os indivíduos em absoluto.
A última carta de Weber endereçada a Lukács é de março de 1920; exprime um
profundo lamento por estarem em flancos opostos nas lutas político-ideológicas:
Estimado amigo, é claro que estamos separados pelas nossas visões políticas!
(Estou absolutamente convencido de que estes experimentos [as revoluções]
podem ter e terão somente a conseqüência de desacreditar o socialismo nos
próximos 100 anos.) Além do que, se tenho que ser bastante honesto
independente de uma resposta a esta questão presumivelmente existe uma
diferente resposta à outra questão, a saber: era este o seu “chamado” ou o que
seja? Que se entenda que você reivindique o monopólio da decisão sobre isso. E
ainda, sempre que eu penso em que os acontecimentos da política presente (desde
1918) nos custaram em termos de inquestionáveis pessoas valorosas,
independentemente da “direção” de suas escolhas, por exemplo, Schumpeter e
agora você, sem que eu seja capaz de visualizar um fim a isto tudo, e, em minha
opinião, sem dar em nada (afinal de contas, todos nós não estamos sob a
dominação de poderes alienados?), então eu não posso deixar de sentir uma
amargura quanto a este destino sem sentido... Este caso deve ser dirimido de
alguma maneira e você deveria voltar às tarefas que colocou para si mesmo e que
seus talentos colocaram para si, especialmente no momento quando tudo for
reacionário nas próximas décadas (Weber apud Lukács, 1986: 281, 282).
É efetivamente uma despedida. Weber morreria três meses depois, em junho de
1920. Na carta, Weber expõe com lástima o que chama de “destino sem sentido” de
Lukács, isto é, a aposta em experimentos que não darão em nada senão em contragolpes
reacionários e em descrédito para o movimento socialista. Deseja ainda que, no instante em
que os experimentos falirem, Lukács possa voltar à sua antiga classe, a cultivar os seus
antigos preceitos ideológicos, que Lukács não esteja mais em flanco oposto ao seu. As
projeções “otimistas” de Weber sobre Lukács não se cumpriram. O sociólogo de
Heidelberg não viveu a tempo de acompanhar os delineamentos do trajeto pelo qual Lukács
se tornaria o maior filósofo marxista do século XX.
Passados os anos de peregrinação, a aprendizagem do marxismo inicia-se com o
conjunto de ensaios Tática e ética, de 1919. Abre-se e desfecha-se o percurso marxista de
Lukács com a discussão ética, um tema com o qual o pensador húngaro ainda se
confrontava nos anos finais de vida. No texto que o nome ao livro, Lukács parece ainda
carregar a herança do neokantismo ao dizer que “nenhuma ética pode ter por fim encontrar
241
receitas para ação correta, suavizar e negar os conflitos insuperáveis, trágicos do destino
humano” (2005: 33). Talvez fosse dedutível destes termos que o sujeito está liberto da
ingerência de qualquer exigência ética universal, como queriam Weber em A ciência como
vocação e Simmel na crítica a Kant e Fichte em A intuição da vida. No entanto,
encontramos boas diferenças; ao passo que Simmel e Weber pretendiam afirmar a liberdade
burguesa para ação individual, Lukács caminha em sentido inverso. A ética não é capaz de
aliviar a ação humana dos eventos “trágicos” que a história lhe impõe. Certamente, não é
uma noção de ética que Lukács depois manteria. Mas o indivíduo já não é mais considerado
o detentor de valores que não se generalizam; não é mais livre para escolher entre deuses e
demônios sem parâmetros externos à sua própria valorização. Quando faz uma opção ética,
o indivíduo está, de algum modo, sacrificando-se. O sujeito deve sacrificar a sua mera
particularidade a favor da ação coletiva. Isto é, “[a ética] também nos ensina que ainda no
caso de termos que eleger entre duas formas de culpabilidade, existiria um parâmetro para
ação correta e a incorreta. Esse parâmetro é o sacrifício” (Lukács, idem: 33). Nas
alternativas a se tomar, sempre existirá a culpa, mas um dos caminhos é o sacrifício correto.
deuses e demônios e a escolha por algum deles é o inequívoco. O sacrifício da mera
particularidade a favor da ação coletiva que lutava pelo comunismo era a escolha ética de
Lukács.
No mesmo livro, em um ensaio que discute a direção intelectual do movimento
dos trabalhadores, Lukács exibe avanços e recuos na assimilação do marxismo, o que será
comum nesses anos. Os avanços que indicam que Lukács desfaz-se das ideologias
decadentes é a crassa recusa da genialidade a ser imputada às lideranças das massas; no
entanto, exatamente quando expressa a tal recusa, Lukács demonstra a fragilidade da crítica
que produzia aos ideólogos partidários do gênio: “a tarefa da velha ideologia conservadora
era simples (por causa do inadequado conhecimento de todas as conexões lógicas), que
invocava aos grandes homens que, com seu ‘gênio’, conduziam com criatividade a
evolução humana” (Lukács, 2005: 36). A velha ideologia conservadora invocava os
grandes homens geniais porque não conhecia todas as conexões lógicas da evolução social.
Reduz-se a um problema lógico. Lukács recusa a genialidade que um dia defendeu junto
com Nietzsche, Simmel e Weber, mas não está apto a fazer uma crítica senão gnosiológica
ao pensamento burguês.
242
Em Tática e ética, Lukács persiste com a noção da identidade sujeito-objeto vista
na Estética de Heidelberg, dando contornos revolucionários a ela. Portanto, consciência
significa aquele estado particular do conhecimento no qual o sujeito e o objeto conhecido
são homogêneos em sua substância” (Lukács, 2005: 38). Tomar consciência da legalidade
do objeto é identificar-se com ela; o trabalhador conscientiza-se da necessidade da
superação do capital e identifica-se com tal necessidade. Lukács exemplifica a identidade
sujeito-objeto com a “autoconsciência moral do homem”, com o sentimento de
responsabilidade diante do movimento da história. Desaparece então a dicotomia entre a
teoria e a prática: “a teoria, sem sacrificar nada quanto à pureza, ausência de preconceitos e
verdade, transforma-se em ação, em práxis” (Lukács, idem: 38). Por fim, através da
tomada de consciência, aquela tendência que se encontrava antes presente no objeto, se
torna mais segura e vigorosa do que era anteriormente ou do que poderia ser sem essa
tomada de consciência” (Lukács, idem: 38).
Os resquícios do passado filosófico adequavam-se às respostas que Lukács dava
ao seu tempo. A revolução mundial estava na pauta do dia e era chegado o momento em
que o sujeito deveria responsabilizar-se com o devir do objeto; a tomada de consciência das
necessidades históricas era um dever ser para o homem de então. A identidade sujeito-
objeto da Estética de Heidelberg permanecia válida para o messianismo de Tática e ética,
embora não contenha nesta última o relativismo daquela primeira.
A circunstância assim posta não permitia que o jovem Lukács vislumbrasse uma
das pedras de toque no materialismo histórico-dialético, elaborada em sua forma cabal por
Lênin: o fenômeno é sempre mais rico que a lei. Por mais ampla que seja a perspectiva de
totalidade, não há uma lei que abarque todas as determinações do objeto. A teoria do valor-
trabalho não diz nada a respeito das propriedades físico-químicas das mercadorias. O
fenômeno “mercadoria” é mais rico que a lei “valor-trabalho”. A tomada de consciência do
sujeito em face do objeto não produz a identidade homogênea entre ambos. Para que
superasse esses ideais filosóficos, Lukács deveria ter em conta que o objeto não se reduz
aos aspectos reconhecidos pelo sujeito da razão, e uma superação dessa espécie viria a
ocorrer com a interpretação ontológica de Marx.
Os dias transcorreram. Antes de chegar a compreender Marx enquanto uma
ontologia do ser social (o que começa a acontecer na década de 30 com a leitura dos então
243
inéditos Manuscritos de 1844), é fato que Lukács relutou com certas tendências weberianas
no período de aprendizagem do marxismo. Lendo o livro característico desta fase, História
e consciência de classe, Goldmann argumenta que a categoria de consciência possível é
uma re-elaboração do conceito weberiano de possibilidade objetiva. Para o Lukács de 1923,
“consciência possível e possibilidade objetiva estão associadas arraigadamente”
(Goldmann, 1975: 100). Mais adiante é explicado o porquê da associação: “a falsidade da
consciência ou sua verdade, seu caráter ideológico ou não, estão determinados pelo modo
que se vinculam com as relações de produção, pela possibilidade que possuem de alcançar
a totalidade da vida social e por sua proximidade com ela” (Goldmann, idem: 101). O falso
ou o verdadeiro da consciência estaria na sua possibilidade de inferir as conexões lógicas da
dinâmica histórica. A consciência proletária é a verdadeira porque, a partir dela, se pode
estabelecer as causalidades corretas desta “individualidade histórica” que se chama
capitalismo.
Próximo a Goldmann, Ricardo Antunes apreende um outro dado pertinente para
iluminar a questão: “talvez ainda sob algum influxo de Weber, a falsa e a verdadeira
consciências são, no limite, apresentadas de maneira algo tipificadas, deixando, por isso, de
apreender as suas ‘formas de ser e existir’” (1996: 98). Falso e verdadeiro são antinomias
sem mediações, o que soa como um enorme influxo do método de Weber em História e
consciência de classe. Dissemos que Lukács ainda não considerava Marx como uma
ontologia do ser social e a sua noção de consciência carece disso. A consciência proletária
não são formas de ser e de existir, respostas a circunstâncias concretas; parece que Weber,
este historiador perspicaz do capitalismo moderno” (Lukács, 2003: 214), é chamado a
suprir as deficiências da apropriação titubeante que o Lukács de 1923 detinha do
materialismo histórico-dialético e a categoria de consciência de classe é apenas um
exemplo entre tantos.
No que concerne aos aspectos weberianos de História de consciência de classe, a
leitura de Merleau-Ponty ficou célebre em As aventuras da dialética. Segundo o
existencialista francês, o marxista húngaro “aceita inteiramente a análise que Weber
esboçou sobre a escolha calvinista e o espírito capitalista, ele desejava apenas continuá-la: a
escolha calvinista deve ser confrontada com todas as outras e todas as escolhas devem
formar um conjunto de uma ação” (2000: 48). Todavia, isso é uma meia verdade.
244
Efetivamente, Lukács foi buscar em Weber as idéias de uma racionalização da vida social;
mas, a tarefa que se punha não era apenas dar continuidade às idéias de A ética protestante
e o espírito do capitalismo. O seu projeto consistia em dar chão às teses de Weber, calçá-las
na história e, por isso, Lukács elabora a teoria da reificação do cotidiano burguês. um
instante privilegiado do livro de 1923 em que, em nota de gina, Lukács remete a Weber
quando estuda o elo entre o calvinismo e o empreendimento capitalista; assim que a
sociologia da religião weberiana é citada, Lukács acresce: “para a consideração do seu
material factual, é inteiramente indiferente se concordamos ou não com sua interpretação
causal” (2003: 382). A explicação causal de Weber sobre a gênese do capital é descartada,
o que significa que a sugestão de Merleau-Ponty é falha: Lukács não a aceita inteiramente.
Pode-se dizer que a tentativa de Lukács em dar chão às teses de Weber não tenha obtido
pleno sucesso em História e consciência de classe, o que justificaria a alcunha de
“marxismo weberiano” dada por Merleau-Ponty, porém, em respeito às próprias palavras
de Lukács, é preciso sublinhar o “marxismo” em face do “weberiano”.
É verdade que encontramos trechos do livro que poderiam ter sido escritos por
Weber. Neles ressalta-se o adjetivo “weberiano” do marxismo aprendiz de Lukács.
Mencionemos apenas um extrato. Lukács analisa o movimento de reificação burocrática do
capitalismo monopolista, cuja tendência é controlar a totalidade do cotidiano dos homens,
cujo avanço parece ilimitado; daí surge a advertência:
No entanto, essa racionalização do mundo, aparentemente integral e penetrando
até o ser físico e psíquico mais profundo do homem, encontra seu limite no caráter
formal de sua própria racionalidade. Isto é, embora a racionalização dos elementos
isolados da vida e o conjunto de leis formais dela resultante se adaptem facilmente
ao que parece constituir um sistema unitário de “leis” gerais para o observador
superficial, o desprezo pelo elemento concreto na matéria das leis, desprezo em
que se baseia seu caráter de lei, surge na incoerência efetiva do sistema de lei, no
caráter contingente da relação dos sistemas parciais entre si e na autonomia
relativamente grande que esses sistemas parciais possuem uns com relação aos
outros (2003: 223, 224).
Ninguém notaria a diferença se dissessem que a autoria destas palavras pertence a
Weber. Observem o que elas nos afirmam: os limites da racionalização estão no seu caráter
formal, do que se deduz que o núcleo humano autêntico dos indivíduos está protegido; a
subjetividade autêntica é um reduto contra a racionalização formal (cf. Habermas, 2003:
468). Existe também em Weber a concepção de que o indivíduo pode ser uma fortaleza
245
contra a burocratização, que se assemelha muito mais a uma esperança do que a uma
constatação real
44
. Para Lukács, a racionalização é formal porque não constitui uma relação
totalizante; o processo manifesta-se como uma legalidade sistemática apenas para o
“observador superficial”. Em verdade, o aspecto sistemático totalizante não passa de uma
“contingência”, em vista da autonomia relativamente grande que as esferas parciais detêm.
Lukács abre mão de abarcar a realidade sócio-histórica enquanto um todo e concede
preeminência à feição contingente das relações; a totalidade sistemática é resultado de uma
observação superficial, porque, no fundo, tudo isso seria contingente. O contraditório é que
uma das afirmações canônicas de Lukács em 1923 é o fato de que o que diferencia Marx
das ciências burguesas é a perspectiva da totalidade
45
. História e consciência de classe
pretende dar chão às teses de A ética protestante e o espírito do capitalismo, mas, às vezes
reproduz elementos basilares do pensamento weberiano.
Ainda há muito que se dizer acerca do ecletismo do livro. Por exemplo, Habermas
depara-se com elementos da filosofia da vida em História e consciência de classe. Lukács
assinala que apenas na sociedade produtora de mercadorias é possível que tenha a
reificação do cotidiano. A produção de mercadorias é a chave explicativa para a reificação
da realidade burguesa; é o seu modelo: “pois somente nesse caso pode-se descobrir na
estrutura da produção mercantil o protótipo de todas as formas de objetividade e de todas as
suas formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa” (Lukács, 2003: 193).
Segundo Habermas, a expressão “formas de objetividade” é um resquício da filosofia da
vida de Dilthey e Simmel, ainda que Habermas sabiamente se lembre de comentar que
Lukács não compartilhava do relativismo desses autores (cf. 2003: 452).
Lukács o se abstém de discutir as propostas da filosofia da vida, seus antigos
ideais filosóficos. Simmel é um interlocutor presente em História e consciência de classe;
ele aparece no instante em que Lukács tenta esboçar uma crítica ao formalismo vazio das
ciências burguesas quando estas procuram compreender o fenômeno da reificação
burocrática:
44
“Como é possível, diante desta tendência irresistível à burocratização, salvar pelo menos alguns resquícios
de uma liberdade de ação ‘individualista’ em algum sentido?” (Weber, 1999: 542). Para o bem da verdade,
Weber fala no indivíduo burguês, ao passo que Lukács fala no indivíduo trabalhador.
45
“Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que distingue de maneira decisiva o
marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade” (Lukács, 2003: 105).
246
Até mesmo pensadores que não querem negar ou camuflar o fenômeno e que, de
certo modo, estão cientes de suas conseqüências humanas desastrosas,
permanecem na análise do imediatismo da reificação e não fazem nenhuma
tentativa para superar as formas objetivamente mais derivadas, mais distanciadas
do processo vital próprio do capitalismo, portanto, mais exteriorizadas e vazias,
para penetrar no fenômeno originário da reificação. Além do mais, destacam essas
forças de manifestação vazias do seu terreno natural capitalista, tornando-as
autônomas e eternas, como um tipo intemporal de possibilidades humanas de
relações. (essa tendência se manifesta mais claramente no livro de Simmel, A
filosofia do dinheiro, um trabalho muito perspicaz e interessante em seus detalhes)
(2003: 213).
De acordo com a citação, Simmel não quer negar ou camuflar o fenômeno da
reificação. Seu trabalho “interessante e perspicaz” apenas não conseguiu ultrapassar o
imediatismo das “formas objetivamente mais derivadas”. Com sua tragédia da cultura,
Simmel não supera o imediato reificado das formas. Em História e consciência de classe,
Lukács não compreende a função ideológica exercida pela extrema abstração de Simmel;
elabora assim uma crítica gnosiológica a Simmel, o que já estava posto em Tática e ética. É
fato que A filosofia do dinheiro nunca superou a natureza imediata e aparente da reificação;
entretanto, isso não é uma mera deficiência lógica de seu ponto de vista sociológico, que
merecesse um ou outro ajuste reparador. O ponto de vista de classe assumido por Simmel
impedia-o de apreender a essencialidade da reificação, o movimento do capital
monopolista. O Lukács de A destruição da razão não seria tão complacente com o filósofo
da vida; no caso, a tragédia da cultura é tomada enquanto uma apologia indireta do capital;
é o processo pelo qual Simmel consegue transformar as “conseqüências humanas
desastrosas” do capital imperialista em condição eterna e absoluta do homem. Não é,
portanto, uma simples lacuna do construto típico-ideal de Simmel.
É significante que História e consciência de classe mantenha a rejeição da teoria
do reflexo que vimos na Estética de Heidelberg uma outra demonstração que o livro
clássico dos anos de aprendizagem do marxismo não rompeu drasticamente com o passado.
O reflexo, para o Lukács de 1923, parecia como a mera reprodução das “facticidades
rígidas e reificadas da empiria”. O teórico defendia que a consciência proletária transcendia
a imediaticidade do capital, sendo capaz de objetivar uma realidade superior”, que seria a
verdadeira realidade. Eis a recusa da escória do ser burguês que a Estética de Heidelberg
apresentou e que História e consciência de classe retoma a seu modo. Dessa maneira, “o
247
critério de correção de um pensamento é, com efeito, a realidade. Esta, porém, não é, mas
vem a ser não sem a contribuição do pensamento” (Lukács, 2003: 403). O reflexo é a
reprodução naturalista do que é; contudo, a realidade é um dinâmico vir a ser e não um
estático ser. A consciência do operariado deveria, de uma vez, superar o reflexo do
presente ser reificado e objetivar o vir a ser da realidade futura. A rejeição da noção de
reflexo é uma conseqüência da identidade entre sujeito e objeto que já constava na Estética
de Heidelberg e em Tática e ética, e que é re-elaborada com outras determinações em
História e consciência de classe: de acordo com o Lukács de 1923, o reflexo estabeleceria
teoricamente a dualidade insuperável no plano da reificação entre a consciência e o ser.
Enfim, História e consciência de classe é um livro eclético. Contudo, isso não
implica que o livro seja um emaranhado de filosofia do dinheiro de Simmel,
racionalização de Weber e reificação de Marx” (Simone, 1985: 87, 88). Simone não
percebe que, em meio às ambivalências do texto, o marxismo prepondera. O ecletismo do
conjunto de ensaios é resultado daquilo que Lukács posteriormente denominaria de “caráter
experimental” dos seus trabalhos desta época de indecisa assimilação da teoria social
marxista.
Os anos 20 foram um tempo de combate à invasão positivista no marxismo.
Lukács engajou-se nessa luta teórica. Assistindo ao amesquinhamento da teoria de Marx,
Lukács se disse satisfeito por ter filiado-se à escola neokantiana na juventude, um evento
que o livrou das influências do positivismo clássico de Comte, Spencer e Durkheim: “hoje
não me desagrada ter aprendido os primeiros elementos das ciências sociais com Simmel e
Max Weber e não com Kautsky. E não sei se hoje não se poderia dizer que para minha
evolução essa foi uma circunstância favorável” (Lukács apud Abendroth; Holz & Kofler,
1969: 100). As ciências da cultura foram benéficas neste sentido para a formação
intelectual de Lukács. O ingresso no marxismo deu-se quando o pensador húngaro se
encontrava imune às generalizações do método positivista clássico, graças à escola de
Dilthey, Rickert, Simmel e Weber.
Isso trouxe conseqüências para o marxismo iniciante de Lukács. A aprendizagem
do marxismo começou com uma lição devidamente aprendida: a natureza não serve de
modelo explicativo para as relações sócio-históricas. Em História e consciência de classe, a
crítica à dialética da natureza em Engels é fruto daquela “circunstância favorável” descrita
248
no parágrafo acima: “os equívocos surgidos a partir da exposição de Engels sobre a
dialética baseiam-se no fato de que Engels seguindo o mau exemplo de Hegel
estende o todo dialético também para o conhecimento da natureza” (Lukács, 2003: 69).
A crítica a Engels voltaria à baila em 1925 na resenha N. Bukharin: Teoria do materialismo
histórico. A questão é que, neste período, Lukács negava os excessos de Engels e de alguns
social-democratas e terminava por recusar toda e qualquer dialética da natureza.
Posteriormente, sabe-se que a recusa do positivismo não conduziu Lukács a repelir o
movimento do ser natural: existe uma dialética da natureza, embora seja uma modalidade
de ser distinta da sociedade, com suas leis particulares. Contudo, nas obras de “caráter
experimental”, Lukács ainda recusa ambos: o positivismo e a dialética da natureza.
Aos poucos se desfaz o experimento. Lukács inicia a década de 30 consolidando a
sua interpretação ontológica de Marx. Textos como Moses Hess e os problemas da
dialética idealista, de 1926, e as Teses de Blum, de 1929, são modelos ilustres deste
movimento rumo à leitura dos Manuscritos de 1844, em 1931. Com razão, Guido Oldrini
sustenta que as polêmicas contra as vanguardas artísticas se baseiam na concepção
ontológica de arte (cf. 2002: 52).
Lançando mão de todo o seu vasto conhecimento filosófico, Lukács pôs-se em
busca de uma estética para Marx. Para compô-la, o recurso à categoria da tipicidade atuou
em primeiro plano. Dito brevemente, por meio da criação de tipos, a literatura pode levar a
cabo a síntese de uma particularidade histórica em uma forma esteticamente evocativa.
Somente com a expressão do típico particular, a arte é capaz de uma só vez excluir o médio
fenomênico e o abstrato especulativo de seu reflexo; assim, os personagens possuem tempo
e lugar. Na introdução de Sociologia da literatura, Peter Ludz sustenta que o tipo literário
em Lukács é uma espécie de tipo ideal no sentido de Weber (cf. Lukács, 1989: 52). Não é
uma relação válida, a nosso ver. Ludz esquece-se de que, muito antes de Weber, a
tipicidade estética havia sido proposta por Engels como um imperativo para a literatura
realista. Em famosa carta a Margaret Harkness, Engels escreve que “o realismo, para mim,
implica para além da verdade do pormenor, a reprodução verdadeira de personagens típicos
em circunstâncias típicas” (1986: 70). Está associada a concepção de tipos à autêntica
literatura. Nenhum esteta marxista aludiu tanto quanto Lukács a esse extrato das missivas
de Engels. É verdade que, para criar uma estética marxista, Lukács recorreu a Weber
249
quando determinou os matizes do desprender da legalidade artística. Entretanto, exatamente
no tocante à tipicidade, Lukács foi fiel às idéias de Engels, prescindindo de Weber.
As tendências metodológicas de Weber no pensamento de Lukács são superadas.
Ainda que inspirar-se em Weber para o combate ao determinismo positivista (como
dissemos antes com relação à legalidade estética), isso não o torna um eclético. O que há de
fecundo na crítica weberiana à social-democracia, Lukács o retém sem que, entretanto, caia
no relativismo neokantiano, nas tipologias sociológicas. Se em História e consciência de
classe ainda um relutante diálogo entre Marx e Weber, a partir do encontro com os
Manuscritos de 1844 Lukács abandona de vez os pressupostos teórico-metodológicos de
seu antigo mestre. Ao termo daquela década, em 1938, escreve o ensaio Marx e o problema
da decadência ideológica da burguesia, um anúncio do que será A destruição da razão.
Nele, Weber é apresentado como o trágico destino de um “sábio” que não superou os
limites objetivamente postos para a sua classe.
Em 1946, Lukács apresenta a conferência Concepção aristocrática e concepção
democrática do mundo. Weber ingressa no texto desta palestra como um dos intelectuais
burgueses guilherminos que representam o “distanciamento em relação à democracia que,
salvo no movimento operário socialista, torna-se cada mais débil e com menor
influência” (Lukács, 2007: 32). Foi “o mais importante sociólogo do período”, tendo
dedicado a vida à democratização das instituições da Alemanha, sem que esta luta
democrática significasse a efetiva incorporação das massas operárias à cena política; era
apenas um aprimoramento técnico dos mecanismos funcionais do Reich.
Durante a segunda guerra mundial, Lukács começa a escrever A destruição da
razão, publicada tardiamente em 1953. O livro é geralmente apresentado como a peça
dogmática da obra de Lukács; de tudo escrito pelo pensador húngaro, A destruição da
razão seria o mais afeito ao pensamento oficial da URSS. Entretanto, apenas uma leitura
superficial poderia vincular as teses medulares do livro à vulgarização stalinista. Sabe-se
que, à época, vigia a idéia de que a história da filosofia devia ser narrada tendo em seu eixo
a luta entre materialismo e idealismo. Leia-se da pena do mais influente dos filósofos
oficiais: “na medida em que o materialismo cresce e se desenvolve no embate contra as
correntes idealistas, a história da filosofia é também a história do embate do materialismo
contra o idealismo” (Zdanov, 1948: 53). A estas simplificações, Lukács refutou
250
drasticamente ao estruturar a história do pensamento moderno como o conflito entre
racionalismo e irracionalismo. Embora sejam ambos idealistas, Hegel e Schelling não lutam
na mesma trincheira. Relembrando as desavenças dos anos 30, Lukács afirmou no
Pensamento vivido:
Naquela época, escrevi meu livro sobre Hegel, na segunda metade dos anos 30,
num período em que Zdanov dizia que, na verdade, Hegel era o ideólogo da
reação feudal contra a Revolução Francesa, e não se pode afirmar que meu livro
sobre Hegel seja uma exposição dessa idéia. Mais tarde, Zdanov apresenta, com
Stalin, toda a história da filosofia como a luta entre materialismo e idealismo. A
destruição da razão, ao contrário, que no geral foi escrita durante a guerra, põe no
centro de reflexão uma oposição totalmente diversa, isto é, a luta entre a filosofia
racional e irracional. É verdade que os irracionalistas eram todos idealistas, mas
eles também tinham antagonistas racionalistas-idealistas. Portanto, a oposição que
exponho em A destruição da razão é totalmente incompatível com a teoria
zdanoviana (1999: 103).
As idéias centrais de A destruição da razão estão longe de ser uma exposição das
teses oficiais. A sua estrutura é de todo diferente do imposto pelo oficialato stalinista; é
totalmente incompatível com a teoria de Zdanov.
Isso não exime o livro de alguns bons problemas em respeito aos dogmas então
vigentes. Ilustremos com um único episódio: eis que Lukács toma partido favorável à
“biologia proletária de Lyssenko. A destruição da razão fala sobre “a possibilidade de se
desenvolver dialeticamente as doutrinas de Darwin (como mais tarde fariam Mitchurin e
Lyssenko, à base do materialismo dialético)” (1968: 22). Sabe-se que Lyssenko foi um
biólogo russo que, a partir de determinados estudos, concluiu que as teorias genéticas de
Gregor Mendel e Thomas H. Morgan eram fruto do “idealismo burguês reacionário” e, por
isso, precisavam ser refutadas e substituídas por um “darwinismo soviético” (Lyssenko, s/d:
103). O biólogo convencia-se de que “é de todo evidente que as posições fundamentais do
mendelismo-morganismo são falsas. Não refletem a realidade da natureza viva e são um
exemplo de metafísica e de idealismo” (idem: 105). As leis da genética são exemplo de
metafísica. O darwinismo soviético lutava para “desmascarar plenamente a metafísica
morganista, inteiramente tomada de empréstimo à biologia reacionária estrangeira que nos
é nociva” (Lyssenko, idem: 113). Desmascarados os elementos reacionários da genética de
Mendel e Morgan, Lyssenko supunha que se teriam na URSS todas as condições
favoráveis ao desenvolvimento da biologia materialista de vanguarda” (idem: 174).
251
Contra a genética, esta “biologia burguesa reacionária”, defendia-se a
hereditariedade dos caracteres adquiridos, o que significava um trágico recuo às
ultrapassadas hipóteses de Lamarck.
À época, o “darwinismo soviético” foi alçado à condição de dogma oficial das
ciências biológicas. É manifesto que A destruição da razão reproduz o dogma ao
corroborar com a idéia de que Lyssenko desenvolveu as teses de Darwin à luz do
materialismo de Marx. Recordem-se de que Lukács tomou uma decisão ética por se manter
nas fileiras do partido comunista e, para isso, fez as concessões que considerou necessárias
em determinados momentos. Como está em Tática e ética, é o sacrifício da mera
particularidade a favor do coletivo. Clarifica-se bem a opção lukacsiana quando lemos que,
segundo sua opinião, “o pior socialismo é preferível ante o melhor capitalismo. Estou
profundamente convencido disto e vivi estes tempos com esta convicção” (Lukács, 2003a:
121). O pensador húngaro preferiu ser um divergente no interior do movimento a ser um
dissidente. Sob seu prisma, Hitler, Stalin e Churchill não são simples dados da realidade e a
opção por um deles não está privada de conseqüências, como imaginou o relativismo de
Weber. As “benesses” do ocidente capitalista nunca seduziram Lukács e não o fizeram abrir
mão da possibilidade de edificar o socialismo. Hoje podemos considerar equivocado o
julgamento otimista quanto às possibilidades de edificação de um autêntico socialismo nas
terras de Stalin; mas foi com esta convicção que Lukács manteve-se alinhado ao partido,
fazendo concessões, citações protocolares e produzindo autocríticas pouco sinceras quando
preciso fosse. Certamente, uma boa dose de concessões à linguagem da guerra-fria no
decorrer de A destruição da razão, embora a sua estrutura medular mantenha-se intacta,
estando em franca oposição aos mandamentos do oficialato stalinista.
Nesta obra, Lukács encontra Weber no meio do caminho percorrido pela filosofia
alemã desde Schelling até Hitler. As controvérsias em torno de tais idéias não são
pequenas. Antes de qualquer coisa, deve-se rechaçar com toda força a avaliação que
sustenta que A destruição da razão credita a Weber um protofascismo
46
. O fato de que
weberianos (por exemplo, Carl Schmitt) tenham aderido ao par Hitler-Mussolini não diz
nada, uma vez que outros foram grandes opositores dos regimes nazi-fascistas (entre outros,
46
Um protofascismo é creditado a Weber por um de seus discípulos que se aliaram à reação nazi-fascista. Era
a opinião de Robert Michels que Weber havia lutado pela democracia, mas que o seu conceito de democracia
compunha-se de aspectos fascistas (cf. Löwy, 1998: 62).
252
Peter Jacob Meyer). Em entrevista concedida a Perry Anderson, o próprio Lukács
testemunha no tribunal da história a favor da opinião de que pessoalmente Weber não teria
pactuado com o nazismo, caso tivesse vivido para ver a ascensão de Hitler. Como prova de
seu testemunho, Lukács narra a seguinte história: quando a universidade de Heidelberg lhe
pediu a indicação de dois nomes para assumir determinada cátedra, Weber os indicou
observando que, infelizmente, estes nomes não assumiriam o posto porque, embora fossem
os melhores, eram judeus (cf. Lukács, 1980: 93). O anti-semitismo de Hitler causaria
aversão em Weber.
Dito isso, discerne-se de melhor forma o complexo de A destruição da razão no
que se refere a Weber e aos outros pensadores analisados. Lukács não pretendia fazer uma
“demonologia”, como propõe a segunda Agnes Heller (cf. 1983: 179). A obra estuda o
processo pelo qual a inteligência burguesa foi aos poucos sucumbindo perante a reação;
tanto Schelling quanto Hitler são instantes distintos desse processo.
Ainda Heller incorre no erro de simplificar a estrutura de A destruição da razão
ao dizer que, para Lukács, “se tivessem sido todos os racionalistas marxistas ou hegelianos,
o irracionalismo não teria se desenvolvido [...] e por conseqüência o nazismoo possuiria
qualquer tipo de ideologia e possivelmente não teria saído vitorioso” (1983: 180). Heller
reduz o problema ao âmbito das idéias. Na perspectiva de Lukács, o irracionalismo foi um
movimento necessário que responde ao período de decadência ideológica da burguesia.
Schelling concede respostas à história de seu tempo, assim como o faz Hitler. Ambos são
compreendidos no período histórico a que pertencem (a Restauração prussiana e o estágio
imperialista do capital, respectivamente); são constelações ideais que possuem efetividade
prática em lutas concretamente históricas e apenas assim contextualizadas recebem a sua
veraz elucidação. Por exemplo, lê-se no livro que “toda a barbárie, todo o cinismo, etc. do
período hitleriano podem compreender-se e criticar-se partindo da economia, da
estrutura social, das tendências de desenvolvimento social do capitalismo monopolista”
(Lukács, 1968: 890). O que A destruição da razão busca ressaltar é que a anatomia de
Hitler lança nova luz sobre a anatomia de Schelling e seus continuadores, o que não
significa que o advento do nazismo obtenha a sua compreensão pelo simples recurso ao
movimento das idéias, como a segunda Heller sugere que Lukács tenha feito.
253
Grande parte dessas considerações vale igualmente para as duras críticas que
Adorno dispensa ao livro. De pronto, o teórico da escola de Frankfurt declara que A
destruição da razão veio a revelar a destruição da razão do próprio Lukács” (s/d: 43). Os
motivos de sua apreciação negativa são esclarecidos do seguinte modo: “com total desprezo
ao método dialético, o prestigioso mestre da filosofia dialética relacionava todas as
correntes irracionalistas da filosofia recente à reação e ao fascismo... Para ele, Nietzsche e
Freud se convertem sem mais em nazistas” (Adorno, idem: 43). A crítica de Adorno
obscurece alguns pontos. Quanto a Freud, o fato é que Lukács não trata do pai da
psicanálise; em A destruição da razão, “o nome de Freud aparece quatro vezes, e é
citado diretamente por Lukács uma vez, quando emprega uma expressão freudiana a
propósito de Nietzsche; ou seja: Lukács não emite um único juízo (de fato ou de valor)
sobre Freud” (Netto: 1978: 58). É de se investigar com que elementos Adorno concluiu que
Lukács toma Freud como fascista, uma vez que o autor de A interpretação dos sonhos não
consta entre os pensadores examinados. O único texto em que Lukács cuida de Freud é a
pequena resenha A psicologia das massas em Freud (cf. Lukács, 1983) e asseguramos ao
leitor de que não absolutamente nenhuma referência à ideologia nazista, mesmo porque
o artigo foi escrito em 1922. Frente a isso, a crítica de Adorno carece de qualquer
credibilidade.
Quanto à suposta conexão imediata que Lukács teria efetuado entre as correntes
filosóficas e Hitler, as observações que fizemos acerca de Agnes Heller dão conta do
problema; para seu complemento, citemos Netto uma outra vez:
Em nenhum momento de A destruição da razão Nietzsche é considerado como
“nazista”: o que Lukács põe em relevo é que, objetivamente, a sua filosofia
antecipa (até profeticamente) formulações que, desarmando a reflexão para opor-
se à barbárie, serão retomadas pela ideologia fascista com a qual, de fato, ela
não se incompatibilizava imanentemente (1978: 58, 59).
Em momento nenhum Lukács qualifica Nietzsche de nazista. Leiam um trecho em
que os nomes de Nietzsche e de Hitler estão associados: “para ele [Nietzsche], o decisivo é
a atitude que adotem os ‘senhores’; se estes mostram a decisão necessária, conseguirão o
que desejam. (Com esta maneira de pensar, Nietzsche é um precursor direto de Hitler)”
(1968: 273). Das palavras de Lukács não se infere que Nietzsche seja um nazista. Com
efeito, Nietzsche não poderia ser um nazista pelo mesmo motivo de Schelling: o nazismo é
254
uma determinada resposta a uma circunstância historicamente concreta, isto é, a Alemanha
que se projeta como império frente à derrota da primeira guerra mundial e à Rússia
revolucionária que se afirmava enquanto potência mundial. Nem Nietzsche e sequer
Schelling vivenciaram este momento histórico. Agora, é fato que as idéias do autor de O
nascimento da tragédia não eram incompatíveis com as de Hitler. Objetivamente, a
“maneira de pensar” de Nietzsche fazia dele um verdadeiro “precursor de Hitler”.
Ainda que o avaliasse enquanto um precursor de Hitler”, Lukács não fechou os
olhos para as grandes diferenças entre Nietzsche e seus continuadores fascistas; as
diferenças não dizem respeito apenas ao fato de que “Nietzsche é um pensador importante e
interessante em toda sua problemática, ao passo que seus adoradores e herdeiros fascistas
são apologistas ecléticos e demagogos sicofantas, vazios repetidores de slogans a mercê do
capitalismo moribundo” (Lukács, 1957: 319). Sobretudo, a diferença fundamental Lukács
atribui à discrepância entre os períodos da ideologia burguesa em Nietzsche e nos fascistas
que o lêem (Rosenberg, Baeumler, Bertram). São dois períodos distintos do pensamento
burguês. O anticapitalismo da etapa de Nietzsche foi excluído pelos “repetidores de
slogans” da fase seguinte. A postura dos ideólogos de Hitler frente a Nietzsche é crítica: “o
fascismo deve eliminar da herança burguesa tudo o que seja progresso; no caso de
Nietzsche, deve adulterar ou mesmo negar os momentos de seu pensamento em que aparece
uma crítica romântica, subjetivamente honesta, à civilização do capital” (Lukács, idem:
319). Nietzsche foi acolhido pelo fascismo com uma certa reserva: o aspecto progressista
de sua filosofia, isto é, a crítica subjetivamente honesta ao capitalismo não interessa aos
fascistas. Portanto, Lukács sustenta que a recepção fascista de Nietzsche implicou
adulterações, o que Adorno deveria ter levado em conta quando disse que o marxista
húngaro atribuía um efetivo nazismo ao filósofo irracionalista.
Que a avaliação sobre Nietzsche esteja correta, isso não quer dizer que Lukács
tenha sempre acertado na busca dos antecessores de Hitler. Lembrem-se de que, em outro
livro, Lukács esse estatuto a um grande escritor como Kafka e a outros menores como
Joyce e Musil
47
. Até mesmo em sua análise do stalinismo, Lukács atribui a Engels uma
47
“Não pretendemos dizer, evidentemente, que os escritores mais notáveis da decadência estejam
pessoalmente ligados à política hitleriana ou da guerra fria. Ninguém ignora que um Joyce ou um Kafka
escreveram as suas obras imensamente significativas muito antes dos acontecimentos que acabamos de
referir, que Musil era pessoalmente um antifascista, etc. Mas, se não pretendemos imputar-lhes uma tomada
de posição diretamente política, devemos notar, no entanto, a sua responsabilidade, na medida em que a sua
concepção de mundo serviu de quadro a toda uma literatura, enquanto reflexo da realidade efetiva, e
255
função muito pouco provável: “antes de mais nada creio que é muito importante e sem
esta deformação o stalinismo não seria possível que Engels e, com ele, alguns social-
democratas tenham interpretado o decurso da sociedade do ponto de vista de uma
necessidade lógica” (1999: 107). Lukács imputa a Engels uma responsabilidade histórica
absurda: sem as suas “deformações”, Stalin não teria sido possível. É um juízo de
possibilidade objetiva: se fossem apagadas da história as “deformações” de Engels, teria
existido Stalin? Lukács responde que não. Bastaria então que o Anti-dühring e a Dialética
da natureza não fossem publicados. O problemático é que Lukács nunca disse que, sem
Nietzsche ou Weber, Hitler não teria sido possível. Em verdade, a autêntica compreensão
de Stalin somente obtém sucesso caso forem apreendidas as determinações de seu
respectivo contexto histórico, como o próprio Lukács fez na Carta sobre o stalinismo. Não
é ocasião para analisarmos aqui o porquê das falhas do exame lukacsiano com relação a
Kafka e a Engels; a nossa intenção é sublinhar que o caminho que Lukács traça rumo ao
nazismo conta com alguns personagens estranhos.
Weber não é estranho a este percurso. A capitulação conservadora (e às vezes
reacionária) que vai de Schelling a Hitler não passa por Kafka senão pelo sociólogo de
Heidelberg. Como dissemos no início desta conclusão, A destruição da razão carrega o
signo do conturbado ambiente do pós-guerra. Contudo, em especial Weber escapa ileso dos
excessos do texto de 1953. A leitura de Lukács procura as raízes históricas de sua
sociologia; procura os condicionamentos históricos de Weber nas lutas do período
guilhermino, quando toda uma geração de pensadores burgueses incumbia-se da tarefa de
criar uma alternativa a Marx. Enfim, saturado de determinações concretas, Weber pisa no
solo da história.
As idéias expostas neste trabalho não pretendem ser algo mais do que uma longa
extensão das teses basilares do marxista húngaro. Ao lado de Istvan száros, Nicola de
particularmente desta realidade atual, onde a sua maneira de refletir o mundo e de o julgar ocupa um lugar tão
importante. Que este ou aquele escritor tire daí conclusões práticas de caráter político, neste ou naquele
sentido, o interessa no momento. Trata-se somente de saber se, na imagem do mundo que estes autores
oferecem, e que é reflexo da realidade objetiva, o caos, o sentimento de perdição, o desespero, a angústia, são
realmente os fatores essenciais que determinam subjetivamente os comportamentos correspondentes, isto é,
justamente os aspectos intelectuais e emocionais da interioridade humana, cuja predominância permite que as
propagandas do fascismo e da guerra fria exerçam o seu pleno efeito” (Lukács, 1991: 100, 101).
256
Feo, Marco Aurélio Nogueira, José Paulo Netto e outros, cremos que a correta interpretação
de Weber não deve prescindir de Lukács.
Entre outras coisas, a leitura de A destruição da razão é importante para que se
desfaça a inocência costumeiramente imputada a Weber. De Fritz Ringer a Gabriel Cohn,
são vários os comentadores que analisam o pensamento weberiano apenas a partir de uma
história das idéias, fazendo referência à sua aversão ao positivismo clássico, à
monocausalidade da social-democracia, à sua relação com Dilthey e os neokantianos, com
Nietzsche e Menger, etc. Desse modo, Weber torna-se um ente abstrato. É uma ilusão
pensar como Mommsen que relutava em “chamá-lo [Weber] de ‘burguês’ no sentido
específico do termo. No sentido de sua própria terminologia, ele deve muito antes ser visto
como um membro da intelligentsia, um grupo social que a rigor o se enquadra em
nenhuma das classes econômicas” (1997: 147). À maneira de Mannheim, Mommsen
concebe um grupo de intelectuais que se põe acima das lutas de classes, situando Weber
entre eles (e talvez coloque a si mesmo).
Um grupo de homens que “a rigor não se enquadra em nenhuma classe
econômica” é algo alheio às teses de Lukács; o alheamento aumenta desde o instante em
que se aloca Weber no tal imaculado grupo. O presente texto concorda com o mote de A
destruição da razão: não existe ideologia inocente. Em sua inteireza, este trabalho foi
norteado pela afirmação de que em Weber temos o destino de um pensador que não
superou as fronteiras impostas à burguesia pelas lutas de classe de seu tempo, o que não
significa outra coisa senão dar razão ao próprio sociólogo quando, no trecho da palestra de
Freiburg que utilizamos como epígrafe, diz que se educou para compartilhar as
preocupações da classe burguesa.
257
Bibliografia
ABENDROTH, Wolfgang; HOLZ, Hans Heinz & KOFLER, Leo. Conversando
com Lukács. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
ADORNO, Theodor. Introdução à controvérsia sobre o positivismo na sociologia
alemã. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
—. “Lukács y el equívoco del realismo”. In PIGLIA, Ricardo (org.) Polémica
sobre realismo. Barcelona: Ediciones Buenos Aires, s/d.
ANTUNES, Ricardo. “Notas sobre a consciência de classe”. In ANTUNES,
Ricardo & RÊGO, Walkíria Leão (orgs). Lukács: um Galileu no século
XX. São Paulo: Boitempo, 1996.
BEETHAM, David. Max Weber and the theory of modern politics. London:
George Allen & Unwin, 1974.
BRENTANO, Lujo. Le origini del capitalismo. Firenze: Biblioteca Sansoni, 1968.
CAHNMAN, Werner. Weber & Toennies: comparative sociology in historical
perspective. New Brunswick: Transaction publishers, 1995.
CARVALHO, Alonso Bezerra de. Max Weber: modernidade, ciência e educação.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
258
COHN, Gabriel. Crítica e resignação: fundamentos da sociologia de Max Weber.
São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.
COLLIOT-THÈLÉNE, Catherine. Le désenchantement de l’État. De hegel à Max
Weber. Paris: Editions de Minuit, 1992.
—. Max Weber e a história. São Paulo: Brasiliense, 1995.
CONDORCET, Jean-Antoine. Esquisse d’un tableau historique des progrès de
l’esprit humain. Paris: Garnier-Flamarion, 1988.
—. Cinq mémoires sur l’instruction publique. Paris: Garnier-Flammarion, 1994.
COUTINHO, Carlos Nelson. Estruturalismo e a miséria da razão. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1972.
CROCE, Benedetto. A história: pensamento e ação. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1962.
DEUTSCHER, Isaac. As raízes da burocracia. Porto: Publicações Escorpião,
1973.
DILTHEY, Wilhelm. Introducción a las ciencias del espíritu. México, DF: Fondo
de Cultura Económica, 1949.
—. Teoría de las concepciones del mundo. Madrid: Revista de Occidente, 1974.
DURKHEIM, Émile. Montesquieu et Rousseau, précurseurs de la sociologie.
Paris: Librarie Marcel Rivière, 1966.
—. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Livre III: les principales attitudes
rituelles. Paris: Presses Universitaires de France, 1968.
—. A ciência social e a ação. São Paulo: Difel, 1975.
—. “Lições sobre o socialismo”. In DURKHEIM, Émile & WEBER, Max.
Socialismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.
—. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Rio
de Janeiro: Editorial Vitória, 1963.
—. As guerras camponesas na Alemanha. São Paulo: Grijalbo, 1977.
—. Anti-Dühring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
—. “O realismo e o romance”. In MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Sobre arte
e literatura. São Paulo: Global, 1986.
FICHTE, Johann. Introdução à teoria do estado. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
FEO, Nicola de. Introduzione a Weber. Roma: Editori Laterza, 1970.
—. Weber y Lukács. Barcelona: Redondo, 1972.
FIGUEIREDO, Vilma. “A atualidade de Max Weber”. In SOUZA, Jessé (org). A
atualidade de Max Weber. Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasília,
2000.
FREYER, Hans. Teoria da época atual. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1965.
GANE, Nicholas. Max Weber and postmodern theory. New York: Palgrave
Macmilan, 2004.
GOLDMANN, Lucien. Lukács y Heidegger. Buenos Aires: Amorrortu, 1975.
GRAMSCI, Antônio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1984.
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência enquanto “ideologia”. São Paulo: Abril
Cultural, 1983.
—. Teoría de la acción comunicativa. Tomo I. Madrid: Taurus, 2003.
—. Teoría de la acción comunicativa. Tomo II. Madrid: Taurus, 2003a.
259
HEGEL. Ciencia de la lógica. Buenos Aires: Ediciones Solar, 1968.
—. Princípios da filosofia do direito. Lisboa: Martins Fontes, 1976.
—. Lecciones sobre la historia de la filosofía. Tomo I. México, DF: Fondo de
Cultura Económica, 1996.
—. Estética — a idéia e o ideal. São Paulo: Abril Cultural, 1999.
—. A razão na história: uma introdução geral à filosofia da história. São Paulo:
Centauro, 2001.
—. Fenomenologia do espírito. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
HEIDEGGER, Martin. O ser e o tempo. Volume I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
HELLER, Agnes. “Lukács’ Later Philosophy”. In HELLER, Agnes (org.). Lukács
reappraised. New York: Columbia University Press, 1983.
HOLTON, Robert & TURNER, Bryan. Max Weber on economy and society.
London: Routledge, 1990.
HOBSBAUM, Eric. A era do capital. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
JEVONS, Stanley. Princípios de economia política. São Paulo: Nova Cultural,
1983.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1999.
—. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
KELSEN, Hans. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KIERKEGAARD, Sören. Traité du desespoir. Paris, Gallimard, 1963.
KOFLER, Leo. Contribución a la historia de la sociedad burguesa. Buenos
Aires: Amorrortu Editores, 1971.
LENIN. Materialismo y empiriocriticismo. Montevideo: Ediciones Pueblos
Unidos, 1959.
—. Que fazer? Lisboa: Editorial Estampa, 1970.
—. Cahiers philosophiques. Paris: Éditions du Progrès, 1973.
LYSSENKO. A herança e sua variabilidade. Rio de Janeiro: Editorial Vitória,
s/d.
LÖWY, Michel. A evolução política de Lukács: 1909-1929. São Paulo: Cortez,
1998.
—. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e
positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 2003.
LUKÁCS, Georg. Contributi alla storia dell’estetica. Milano: Feltrinelli Editore,
1957.
—. Estética I. Barcelona & México, D. F.: Grijalbo, 1966.
—. El asalto a la razón. Barcelona; México, DF: Ediciones Grijalbo, 1968.
—. “Marx e o problema da decadência ideológica da burguesia”. In Marxismo e
teoria da literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968a.
—. Estetica di Heldelberg (1916-1918). Milano: SugarCo Edizioni, 1974.
—. Il giovane Hegel e i problemi della societá capitalistica. Torino: Einaudi,
1975.
—. Existencialismo ou marxismo? São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas,
1979.
—. “Lukács fala sobre sua vida e sua obra”. Temas de Ciências Humanas, 9.
São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1980.
—. Per l’ontologia dell’essere sociale. Volume II. Roma: Riuniti, 1981.
—. Philosophie de l’art (1912-1914). Paris: Éditions Klincksieck, 1981a.
260
—. “Freud’s psychology of the masses”. In Reviews and articles from Die rote
Fahne. London: Merlin Press, 1983.
—. El alma y las formas. Barcelona; México, DF: Ediciones Grijalbo, 1985.
—. Selected correspondence: 1902-1920. New York: Columbia University Press,
1986.
—. “Meu caminho até Marx”. Cadernos ensaio: Marx hoje, 1. São Paulo:
Ensaio: 1988.
—. Sociología de la literatura. Barcelona: Península, 1989.
—. Prolegomini all’ontologia dell’essere sociale. Milano: Guerini & associati,
1990.
—. Realismo crítico hoje. Brasília: Thesaurus, 1991.
—. German Realists in the Nineteenth Century. London: MIT Press, 1993.
—. “O problema moral do bolchevismo”. In LÖWY, Michel. A evolução política
de Lukács: 1909-1929. São Paulo: Cortez, 1998.
—. Pensamento vivido. São Paulo: Estudos e edições Ad Hominem; Viçosa:
Editora da UFV, 1999.
—. Le Roman Historique. Paris: Éditions Payot, 1999a.
—. Dostoevskij. Milano: SugarCo Edizioni, 2000.
—. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000a.
—. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
—. Testamento político y otros escritos sobre política y filosofía. Buenos Aires:
Herramienta, 2003a.
—. “Da pobreza de espírito. Um diálogo e uma carta”. In MACHADO, Carlos
Eduardo Jordão. As formas e a vida: estética e ética no jovem Lukács. São
Paulo: Editora Unesp, 2004.
—. Táctica y ética: escritos tempranos (1919-1929). Buenos Aires: El cielo por
asalto, 2005.
—. Journal — 1910-1911. Paris: Éditions Rivages & Payot, 2006.
—. “Posfácio à memória de G. Simmel”. In SIMMEL, Georg. Filosofia do amor.
São Paulo: Martins Fontes, 2006a.
—. O Jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
2007.
MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. As formas e a vida: estética e ética no
jovem Lukács. São Paulo: Editora Unesp, 2004.
MAYER, Jacob Peter. Max Weber e a política alemã. Brasília, DF: Editora
Universidade de Brasília, 1985.
MANN, Thomas. Doutor Fausto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
MARSHALL, Alfred. Princípios de economia. Volume II. São Paulo: Nova
Cultural, 1985.
MARX, Karl. La guerre civile en France. Paris: Éditions Sociales, 1972.
—. O 18 brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
—. O rendimento e suas fontes a economia vulgar. São Paulo: Abril Cultural,
1974a.
—. O capital crítica da economia política. Livro III. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1981.
261
—. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política
(Gründrisse). México, DF: Siglo Veintiuno, 2001.
—. O capital crítica da economia política. Livro I. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
—. Crítica de la filosofia del Estado de Hegel. Madrid: Biblioteca Nueva, 2002a.
—. Las luchas de clases en Francia de 1848 a 1850. Buenos Aires: Luxemburg,
2005.
MENGER, Carl. Princípios de economia política. São Paulo: Abril cultural, 1983.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Les aventures de la dialectique. Paris: Gallimard,
2000.
MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Ensaio,
1993.
—. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
MICHELS, Robert. Os partidos políticos. São Paulo: Editora Senzala, s/d.
MISSE, Michel. “Marx e Weber: sobre o conceito de classes sociais”. Encontros
com a civilização brasileira, 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978.
MOMMSEN, Wolfgang. La época del imperialismo Europa 1885-1918.
México, DF: Siglo Veintiuno, 1973.
—. Max Weber: sociedad, política y historia. Buenos Aires: Editorial Alfa, 1981.
—. Max Weber and German politics, 1980-1920. Chicago: University of Chicago
Press, 1984.
—. “Capitalismo e socialismo. O confronto com Karl Marx”. In GERTZ, René
(org.). Max Weber e Karl Marx. São Paulo: Hucitec, 1997.
MONROY, Pedro Piedras. Max Weber y la crisis de las ciencias sociales.
Madrid: Ediciones Akal, 2004.
NETTO, José Paulo. Lukács e a crítica da filosofia burguesa. Lisboa: Seara Nova,
1978.
—. “Das obras de juventude de Lukács”. Encontros com a civilização brasileira,
nº 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978a.
—. Capitalismo e reificação. São Paulo: Livraria Editora de Ciências Humanas,
1981.
—. “Para ler o Manifesto do Partido Comunista”. In Marxismo impenitente. São
Paulo: Cortez, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. Humain, trop humain. Paris: Hechette, 1988.
—. Sobre o niilismo e o eterno retorno (1881-1888). São Paulo: Abril Cultural,
1999.
—. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
NOGUEIRA, Marco Aurélio. “Max Weber: a burocracia e as armadilhas da
razão”. Temas de ciências humanas, 1. São Paulo: Editorial Grijalbo,
1977.
—. “Anotações preliminares para uma história crítica da sociologia”. Temas de
ciências humanas, nº 3. São Paulo: Livraria de Ciências Humanas, 1978.
ÖELZE, Berthold. “Weber e Nietzsche”. In SOUZA, Jessé (org). A atualidade de
Max Weber. Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasília, 2000.
ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Rio de Janeiro: Livro Ibero-
americano, 1971.
262
PARKIN, Frank. Max Weber. Oeiras: Celta Editora, 2000.
PASUKANIS. Eugeny. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro:
Renovar, 1989.
PIERUCCI, Antônio Flávio. “A secularização segundo Max Weber”. In SOUZA,
Jessé (org). A atualidade de Max Weber. Brasília, DF: Editora da
Universidade de Brasília, 2000.
—. O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber.
São Paulo: Editora 34, 2003.
PINASSI, Maria Orlanda. “Metástase do irracionalismo”. Novos Rumos, 43.
São Paulo: Instituto Astrogildo Pereira, 2005.
PLEKHANOV, George. A arte e a vida social & cartas sem endereço. São Paulo:
Brasiliense, 1969.
RICKERT, Heinrich. Teoría de la definición. México, DF: Universidad Nacional
Autónoma del México, 1960.
—. Introducción a los problemas de la filosofía de la historia. Buenos Aires:
Editorial Nova, 1961.
RINGER, Frintz. O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: Editora
Universidade de São Paulo, 2000.
—. A metodologia de Max Weber: unificação das ciências culturais e sociais. São
Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2004.
SAINT-SIMON. De la reorganización de la sociedad europea. Madrid: Instituto
de Estudios Políticos, 1975.
—. El nuevo cristianismo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1981.
—. “Parábola”. In TEIXEIRA, Aloísio (org.). Utópicos, heréticos e malditos: os
precursores do pensamento social de nossa época. Rio de Janeiro: Record,
2002.
SAY, Jean-Baptiste. Tratado de economia política. São Paulo: Nova Cultural,
1983.
SAMUELSSON, Kurt. Religion and economic action: a critique of Max Weber.
New York: Harper Torchbooks, 1961.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada ensaio de ontologia fenomenológica.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
SCHAFF, Adam. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
SCHELER, Max. A posição do homem no Cosmos. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003.
SCHELLING, Friedrich. “Philosophie et religion”. In Essais. Paris: Aubier,
1946.
—. La esencia de la libertad humana. Buenos Aires: Facultad de Filosofía y
Letras, 1950.
—. Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo. São Paulo: Abril
Cultural, 1973.
—. On the history of modern philosophy. Cambridge: Cambridge University
Press, 1994.
SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras,
2002.
SCHMITT, Carl. Roman Catholicism and political form. Westport: Greenwood
Press, 1996.
263
—. The crisis of parliamentary democracy. Cambridge: MIT Press, 1985.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre la cuádruple raíz del principio de razón
suficiente. Buenos Aires: Aguilar, 1967.
—. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.
SIEYÈS, Emmanuel. A constituinte burguesa qu’est-ce que le Tiers État? Rio
de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001.
SIMMEL, Georg. Intuición de la vida. Buenos Aires: Editorial Nova, 1950.
—. “O problema da sociologia”. In Georg Simmel: sociologia. São Paulo: Ática,
1983.
—. Les pauvres. Paris: Presses Universitaires de France, 1998.
—. Philosophie de l’argent. Paris: Presses Universitaires de France, 1999.
“O conceito e a tragédia da cultura”. In SOUZA, Jessé & ÖELZE, Berthold
(orgs). Simmel e a modernidade. Brasília, DF: Editora Universidade de
Brasília, 2005.
—. “A escultura de Rodin e a direção espiritual do presente”. In SOUZA, Jessé &
ÖELZE, Berthold (orgs). Simmel e a modernidade. Brasília, DF: Editora
Universidade de Brasília, 2005a.
—. “A moldura. Um ensaio estético”. In SOUZA, Jessé & ÖELZE, Berthold
(orgs). Simmel e a modernidade. Brasília, DF: Editora Universidade de
Brasília, 2005b.
—. Questões fundamentais da sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2006.
SIMONE, Antonio de. Lukács e Simmel: il disincanto della modernità e le
antinomie della ragione dialettica. Lecce: Editore Milella, 1985.
SOMBART, Werner. El burgués. Buenos Aires: Ediciones Oresme, 1953.
—. The Jews and the modern capitalism. Kitchener: Batoche Books, 2001.
SPENGLER, Oswald. A decadência do Ocidente. Rio de Janeiro: Zahar editores,
1973.
SWEDBERG, Richard. Max Weber e a idéia de sociologia econômica. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ; São Paulo: Beca, 2005.
TERTULIAN, Nicolas. Georges Lukács: etapes de sa pensée esthétique. Paris: Le
Sycomore, 1980.
TOENNIES, Ferdinand. Principios de sociología. México, DF: Fondo de Cultura
Económica, 1946.
—. Comunidad y sociedad. Buenos Aires: Editorial Losada, 1947.
TREITSCHKE, Heinrich. Selections from Treitschke’s lectures on politics. New
York: Stokes Company Publishers, s/d.
TROELTSCH, Ernst. El protestantismo y el mundo moderno. México, DF: Fondo
de Cultura Económica, 2005.
WALRAS, Leon. Compêndio dos elementos de economia política pura. São
Paulo: Abril Cultural, 1983.
WEBER, Alfred. História sociológica da cultura. Lisboa: Arcádia, s/d.
WEBER, Marianne. Weber: uma biografia. Niterói, RJ: Casa Jorge Editorial,
2003.
WEBER, Max. Ancient Judaism. New York: Free Press, 1967.
—. The religion of India: the sociology of Hinduism and Buddhism. New York:
Free Press, 1967a.
264
—. História geral da economia. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
—. The religion of China: Confucianism and Taoism. New York: Free Press,
1968a.
—. Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída. São Paulo: Abril
Cultural, 1974.
—. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
—. “Conferência sobre o socialismo”. In DURKHEIM, Émile & WEBER, Max.
Socialismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.
—. História agrária romana. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
—. Political writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1994a.
—. Sociología del trabajo industrial. Madrid: Editorial Trotta, 1994b.
—. Os fundamentos racionais e sociológicos da música. São Paulo: Edusp, 1995.
—. Economia e sociedade. Volume II. Brasília, DF: Editora Universidade de
Brasília, 1999.
—. Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Cortez; Campinas: Unicamp,
1999a.
—. Économie et société dans l’Antiquité. Paris: La Découverte, 2001.
—. “Anticritiques”. In L’étique protestante et l’esprit du capitalisme. Paris:
Gallimard, 2003.
—. The history of commercial partnerships in the Middle Ages. Boston: Rowman
& Littlefield, 2003a.
—. A bolsa. Lisboa: Relógio d’água Editores, 2004.
Economia e sociedade. Volume I. Brasília, DF: Editora Universidade de
Brasília, 2004a.
—. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004b.
—. Considerazioni intermedie: il destino dell’Occidente. Roma: Armando
Editore, 2005.
—. Estudos políticos Rússia 1905 e 1917. Rio de Janeiro: Azougue Editorial,
2005a.
WEISS, Johannes. “A obra de Weber na recensão e na crítica marxista”. In
GERTZ, René (org.). Max Weber e Karl Marx. São Paulo: Hucitec, 1997.
WOOD, Ellen. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo
histórico. São Paulo: Boitempo, 2003.
ZDANOV. Literatura y filosofía a la luz del marxismo. Montevideo: Ediciones
Pueblos Unidos, 1948.
265
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo