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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
A PERSISTÊNCIA DO MESMO NA INQUIETUDE
TURBULENTA DO MUNDO:
Fredric Jameson e o Ocaso da História na Pós-Modernidade
Mauricio Miranda dos Santos Oliveira
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL - CFCH
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
A PERSISTÊNCIA DO MESMO NA INQUIETUDE TURBULENTA DO MUNDO:
FREDRIC JAMESON E O OCASO DA HISTÓRIA NA PÓS-MODERNIDADE
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Serviço Social da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Serviço Social.
ALUNO: MAURICIO MIRANDA DOS S. OLIVEIRA
ORIENTADOR: PROFESSOR Dr. MARILDO MENEGAT
RIO DE JANEIRO
DEZEMBRO DE 2008
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A PERSISTÊNCIA DO MESMO NA INQUIETUDE TURBULENTA DO MUNDO:
FREDRIC JAMESON E O OCASO DA HISTÓRIA DA PÓS-MODERNIDADE
Mauricio Miranda dos Santos Oliveira
Orientador: Professor Dr. Marildo Menegat
Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro -UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Serviço Social.
Aprovada por:
———————————————————
Presidente, Prof. Dr. Marildo Menegat
———————————————————
Prof. Dra. Maria das Dores Campos Machado
———————————————————
Prof. Dra. Maria Elisa Cevasco
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
RESUMO
A PERSISTÊNCIA DO MESMO NA INQUIETUDE TURBULENTA DO MUNDO:
FREDRIC JAMESON E O OCASO DA HISTÓRIA NA PÓS-MODERNIDADE
Mauricio Miranda dos Santos Oliveira
Orientador: Prof. Dr. Marildo Menegat
Resumo da dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos para a obtenção do título de mestre em Serviço Social.
O propósito central deste trabalho é a compreensão do significado da perda da
historicidade no Pós-moderno, segundo a teorização de Fredric Jameson. De acordo com o
crítico norte-americano, os traços mais importantes da cultura pós-moderna (e o novo papel
da cultura) não podem ser plenamente entendidos sem que coloquemos, em primeiro plano, o
esmaecimento do sentido histórico, que nos aprisiona num presente eterno, intransponível
o capitalismo tardio —, no qual qualquer tentativa de mudança radical parece estar fora de
questão, até mesmo no campo da imaginação. A pesquisa desta questão, fundamental para o
marxismo, nos propiciará, queremos crer, a chave para uma apreensão satisfatória da lógica
cultural do terceiro estágio do capitalismo.
Palavras-chave: Fredric Jameson, historicidade, Pós-modernidade.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
ABSTRACT
A PERSISTÊNCIA DO MESMO NA INQUIETUDE TURBULENTA DO MUNDO:
FREDRIC JAMESON E O OCASO DA HISTÓRIA NA PÓS-MODERNIDADE
Mauricio Miranda dos Santos Oliveira
Orientador: Prof. Dr. Marildo Menegat
Resumo da dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos para a obtenção do título de mestre em Serviço Social.
The main concern of this work is to understand the meaning of the loss of historicity in
postmodernism, according to Fredric Jameson’s theorization. To the north american critic, the
most important elements of the postmodern culture (and the new role of culture itself) cannot
be fully understood if we do not put, in a privileged place, the weakening of historicity, which
imprisons us in an eternal, unchangeable, present late capitalism —, where any possibility
of radical change seems out of question, even in the realm of imagination. The research of this
problem, central to marxism, will provide us, we believe, the best key for an accurate grasp of
the cultural logic of the third stage of capitalism.
Key words: Fredric Jameson, historicity, Postmodernity.
Oliveira, Mauricio Miranda dos S.
A Persistência do Mesmo na Inquietude Turbulenta do Mundo: Fredric Jameson e o
Ocaso da História na Pós-Modernidade/ Mauricio Miranda dos Santos Oliveira Rio de Janeiro:
UFRJ, 2008.
117 f.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Serviço Social, 2008.
Orientador: Marildo Menegat.
1. Jameson, Fredric 1934- 2. s-modernismo 3. Cultura-Teoria I. Menegat,
Marildo. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Serviço Social.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO....................................................................................................1
INTRODUÇÃO.........................................................................................................9
I- UM MAPA DA PÓS-MODERNIDADE
1.1 Os primeiros debates sobre a pós-modernidade......................................................20
1.2 A intervenção de Fredric Jameson...........................................................................27
1.3 A crise de representação e o mapeamento cognitivo...............................................44
II- O DOMINGO DA VIDA, OU O MUNDO DA PÓS- HISTÓRIA
2.1 A perda da historicidade como regressão da experiência humana.............................48
2.2 Grupos, movimentos sociais e classe: a renovação da práxis....................................68
III- EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO: A UTOPIA DEPOIS DO FIM DA HISTÓRIA
3.1 A utopia e a ausência de alteridades radicais na pós-modernidade...........................81
3.2 Ideologia e utopia: da cultura modernista ao pós-modernismo..................................86
3.3 A função política da utopia no mundo da pós-política..............................................94
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................114
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................118
AGRADECIMENTOS
Por mais que nos esforcemos pessoalmente em alcançar determinados objetivos, nunca
é demais lembrar que sem a amizade, a crítica, a compreensão, a confiança e a dedicação do
outro, ou seja, sem a real possibilidade de compartilhar nossas experiências, tudo aquilo que
realizamos, individual e coletivamente, se torna infrutífero, frustrante, sob qualquer ponto de
vista. Assim sendo, agradeço, primeiramente, ao meu orientador, o professor Marildo
Menegat, que com sua reconhecida competência, ousadia intelectual/política e radical apreço
à liberdade, foi capaz de me mostrar, desde os nossos primeiros contatos, possibilidades
inteiramente novas de compreensão do marxismo, muito mais desafiadoras e amplas,
revigorando a minha paixão pelo conhecimento, quando todos os caminhos pareciam levar a
lugar nenhum. Acima de tudo lhe agradeço por ter acreditado que eu poderia realizar esse
trabalho insistindo sempre na necessidade de se pensar para além dos meios acadêmicos e
de nossas limitadas perspectivas individuais e por você ter sido sempre rigoroso,
compreensivo e gentil na medida certa, mesmo nos momentos mais complicados deste
processo. Agradeço também a meus pais, Nadja e Cesar, à Nathalia Lãoturco companheira
no amor e na utopia —, ao meu irmão Marcus e a Ana Cecília, meu inesquecível avô Dario,
Nélio e às grandes amigas que nunca deixaram de me apoiar: Kátia San Martin, Renata
Medeiros, Tatiana Campbell, Valéria Noronha, Mariana D’ Acri e Vera Suarez. Não posso
deixar de ressaltar a preciosa contribuição das professoras Isabel Loureiro e Maria Elisa
Cevasco, que, mesmo me conhecendo apenas através de emails, tiveram participação decisiva
na produção desta dissertação. Agradeço ainda à professora Yolanda Guerra, que, sempre
atenciosa, me apresentou ” ao Serviço Social, com inegável empenho e talento, assim como
às professoras Maria das Dores Machado e Roberta Lobo, que, com suas importantes
observações, contribuíram para a realização deste trabalho quando ele ainda era apenas um
projeto. Agradecimentos especiais aos meus colegas da pós-graduação da ESS: Roberth
Salamanca, Márcia Botão, Paula Vidal, Elaine Martins, Paula Kropf, Emanuela do Carmo,
Fernanda Kilduff, Danielle Horta, Débora Santos, Daniele Taha e Andreza Prevot, que,
durante quase dois anos de convívio, se esforçaram para preservar e aprimorar a tradição
crítica e combativa da nossa Escola. Ao CNPq, sem dúvida, que por dois anos me concedeu
uma bolsa de pesquisa. Por último, e não menos importante, quero expressar aqui minha
profunda gratidão para com o professor Manoel de Jesus, a quem devo o meu tardio e
decisivo encontro com a filosofia.
Para Nathalia e Mariana, que em tempos e formas
distintas antecipam o mundo que ainda não veio.
Se pudesse desejar algo para mim, não desejaria riqueza nem poder, mas
a paixão da possibilidade; desejaria um olho que, eternamente jovem,
ardesse de desejo de ver a possibilidade.
Soren Kierkegaard, O Instante, 1855.
O momento de inércia da vida e do pensamento humanos parece imenso,
e a capacidade de sofrimento dos indivíduos talvez chegue muito perto
daquela dos animais. Não obstante, existe um limite absoluto, mesmo que
este esteja à beira da destruição do mundo ”, limite do qual ninguém pode
dizer o quanto estamos distantes. É possível que a era das trevas da crise do
sistema produtor de mercadorias, com suas formas de percurso e
acontecimentos catastróficos, abranja boa parte do século XXI.
Robert Kurz, O Colapso da Modernização, 1991.
APRESENTAÇÃO
O objetivo central deste trabalho é a compreensão daquele problema que, pelo menos
na perspectiva do marxismo, constitui uma das mais angustiantes e decisivas características da
ordem burguesa em seu período pós-moderno, a saber: a perda da historicidade. Aos olhos da
crítica materialista, o nosso presente perpétuo, pós-histórico, deve ser enfrentado, antes de
tudo, a partir da idéia de que, na atual constelação, uma avalanche de mudanças frenéticas e
incessantes sustenta e fortalece, paradoxalmente, um imobilismo sem precedentes. Essa
dialética regressiva e, à primeira vista, inconcebível se deixa ver nos traços definidores da
cultura contemporânea e revela — como pretendemos entender — o ocaso da história na pós-
modernidade. O entendimento dessa questão, creio eu, nos propiciará as bases mais seguras
para uma apreensão abrangente do pós-modernismo, ou seja, da lógica cultural do capitalismo
tardio. Procuraremos desenvolver o tema nos valendo, fundamentalmente, da seminal e
riquíssima contribuição teórica de Fredric Jameson. As obras de referência para esse estudo
serão aquelas que cobrem o início do debate sobre a pós-modernidade e todo o seu
desenvolvimento ulterior, quais sejam: O Inconsciente Político: A Narrativa como Ato
Socialmente Simbólico; Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio; O
Marxismo Tardio: Adorno ou a Persistência da Dialética; As Sementes do Tempo,
Modernidade Singular: ensaio sobre a ontologia do presente e Arquaeologies of the Future,
além de alguns importantes ensaios publicados em coletâneas.
No contexto das universidades brasileiras qualquer pesquisa sobre Jameson ainda é,
em grande medida, pioneira, fato que exige de nós o que em outros lugares seria totalmente
desnecessário, ou seja, uma breve apresentação da trajetória intelectual e da própria biografia
do grande pensador norte-americano.
Fredric Jameson nasceu na cidade de Cleveland, Ohio, em 1934, e graduou-se em
Letras pela Haverford College, em 1954. O ano seguinte, passado na França e na Alemanha,
seria marcante na formação de Jameson. Durante esse período na Europa, nosso autor pôde
aprofundar seus estudos sobre a literatura francesa, a tradição filosófica e, ainda que de forma
embrionária, travar contato com o chamado marxismo ocidental. Em 1956, de volta aos
Estados Unidos, Jameson inicia seu doutorado, sob a orientação de Erich Auerbach, na
Universidade de Yale. Desse estudo resultou seu primeiro texto importante: Sartre: As
Origens de um Estilo (1961, sem tradução para o português). Entre as décadas de 1950 e 60,
Jameson também viajou constantemente pelo terceiro mundo, tendo permanecido alguns
meses no México e no norte da África. Esse fato é importante para compreendermos a atenção
especial que a cultura dos países periféricos receberá ao longo de sua obra. Pouco depois da
conclusão de seus estudos com Auerbach, Jameson inicia sua carreira de professor na
Universidade Harvard, onde permanecerá até 1967. A fim de reforçar a relevância de nosso
tema e marcar nitidamente a continuidade das preocupações centrais de Jameson (por vezes
pouco percebida), vale sublinhar que, em seu estudo sobre Sartre, ele via ao seu redor uma
sociedade aprisionada:
uma sociedade sem futuro visível, deslumbrada com a permanência em massa de suas
próprias instituições, na qual nenhuma mudança é possível e a idéia de progresso está
morta. ” (Citado em ANDERSON, 1999, p.79)
Com seu mestre, Aeuerbach, grande autoridade em filologia alemã e teoria literária,
Jameson aprendeu que a literatura pode ser de fato compreendida, em seu sentido amplo,
quando a análise dos textos está firmemente ancorada na história social. Muito
provavelmente, vem daí a percepção de Jameson da necessidade de se ultrapassar os limites
tradicionais das disciplinas acadêmicas. A figura de Sartre, como principal intelectual francês
do pós-guerra, politicamente engajado e libertário, foi, no entanto, primordial na formação
intelectual do jovem e talentoso crítico, que, segundo Perry Anderson, já no final dos anos 70,
se firmaria como o maior crítico literário marxista do mundo. Para além das afinidades
teóricas, o autor de O Ser e O Nada era para Jameson o grande modelo do erudito que sabia,
ao mesmo tempo, responder às demandas do cotidiano, produzir intensamente e participar das
lutas políticas de sua época, com todos os riscos que daí decorrem. Numa recente entrevista,
Jameson assim descreveu a importância de Sartre:
Havia em Sartre a possibilidade (que muitas pessoas daquela geração [também na França
] sentiram) de que, em algum momento, você teria um modo de análise, de teorizar, de
filosofar, que de fato fosse um filosofar sobre tudo, desde a vida cotidiana e a experiência
existencial até a política e a história... Para mim, portanto, meu trabalho inicial parte de
Sartre, mesmo porque, do meu ponto de vista, o que havia de mais importante em Barthes
eram O Grau Zero da Escrita, as Mitologias, os primeiros trabalhos, que, pra mim, o
essencialmente prolongamentos da problemática sartreana.” (Entrevista em Buchanan,
2006, p. 122)
Fredric Jameson se define como um homem dos anos 50, mais do que dos 60, que,
como tantos outros esquerdistas de sua geração, viu na Revolução Cubana de 1959 a
possibilidade concreta de se construir uma ordem social radicalmente distinta do capitalismo.
Esse evento histórico, como lembra o próprio Jameson, colocou-o definitivamente nas
linhagens do marxismo ocidental:
“...na nossa situação provinciana dos Estados Unidos da Guerra Fria, a revolução política e
a revolução da forma caminharam juntas, e como sendo partes de uma mesma coisa. Assim,
meu marxismo e meu interesse pela dialética partiram dessa situação. (CEVASCO,
prefácio, PLC, p. 8)
O entusiasmo e a alegria com que Jameson saldou a revolta daquele povo que acabara de se
libertar de uma ditadura apoiada pelos EUA, para fazer sua própria história, contrastavam
radicalmente com o marasmo e o conservadorismo da vida social norte-americana, que tanto o
incomodavam. A construção desse consenso imobilista teve, evidentemente, um preço.
As idéias progressistas e de esquerda
1
aportaram nos Estados Unidos juntamente com
as enormes levas de imigrantes que, no início do século XIX, chegavam de vários países da
Europa (e posteriormente da Ásia) como produtos indesejáveis da expansão capitalista. Isso
sem falar na grande quantidade de judeus expatriados! Desde então, vítimas de perseguições e
denúncias sistemáticas, os homens e mulheres de esquerda pouco puderam desfrutar do
agradável acolhimento da tolerância liberal americana. Logo depois da Revolução Russa de
1917, até o início dos anos 20, o país inteiro viu-se em grande perigo. O chamado pânico
vermelho (Red Scare) havia tomado conta de todas as esferas da sociedade e milhares de
pessoas foram presas arbitrariamente, acusadas de traição ou por suspeita de apoio ao
bolchevismo. Nos anos 50 e 60 foi a vez do machartismo, período no qual o denuncismo e a
perseguição de intelectuais de esquerda atingiu duramente os meios de comunicação, as
universidades e até mesmo Hollywood. Cevasco nos explica muito bem como a formação de
Jameson se insere neste contexto:
1
É importante ressaltar que este corpo de idéias era marcadamente heterogêneo. Entre os milhões de
imigrantes, existiam revolucionários marxistas, anarquistas, socialistas e reformadores sociais, mais ou menos
radicais, que, de uma forma ou de outra, lutaram contra a brutal exploração do trabalho e a profunda
desigualdade social existente no país. Ver História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI, p. 175- 195,
Vários autores, São Paulo: Contexto, 2007.
Como resultado dessas medidas sistemáticas de profilaxia do ambiente político e
cultural, quando, na esteira dos movimentos sociais e embalado pelos ventos de reforma da
sociedade civil e de protesto contra a guerra que agitam os Estados Unidos nos anos 60, o
pensamento teórico de esquerda consegue uma certa visibilidade, ele vai se afinar não com
uma tradição de movimento social autóctone mas com as importações do marxismo
europeu que vicejavam nos departamentos universitários de línguas estrangeiras.
(CEVASCO, prefácio, PLC, p. 8)
É fundamental realçar a força dessa atmosfera puritana e conservadora, para que, mais
adiante, possamos compreender o papel crucial de Jameson no desenvolvimento e, porque não
dizer, na história do marxismo ocidental nas duas últimas décadas do século passado.
Como foi dito, Jameson formou-se nos anos 50, em meio ao silêncio em que se
encontrava a esquerda americana durante a estagnação política do governo Eisenhower. A
radicalização política de nosso autor não se deu apenas em função da Revolução Cubana; é
preciso destacar que ela passou também pela esfera da estética da literatura para sermos
mais precisos. Numa palavra: a leitura dos clássicos do modernismo fortaleceu
significativamente as idéias anticapitalistas de Jameson.
É no contexto da rebelião da juventude americana (o movimento hippie, a
contracultura), da luta dos negros pela conquista dos direitos civis e dos protestos contra a
Guerra do Vietnã que Jameson publica, em 1971, Marxismo e Forma, sua primeira grande
obra. O objetivo central do crítico norte-americano, aqui, era intervir de maneira profunda e
inovadora no debate contemporâneo daquele período, apresentando ao público acadêmico dos
Estados Unidos um marxismo bem diferente da tradição bolchevique, que lhe era
praticamente desconhecido e cujo riquíssimo desenvolvimento havia ocorrido principalmente
no âmbito da cultura e da estética. Deixemos que o próprio Jameson explique esse passo
decisivo:
Quando o leitor americano pensa em crítica literária marxista, imagino que seja
ainda a atmosfera dos anos 1930 que lhe vem a mente. As questões candentes daqueles
tempos — o anti- nazismo, a Frente Popular, a relação entre o movimento dos trabalhadores
e a literatura, a luta entre Stalin e Trostky, entre o marxismo e o anarquismo geraram
polêmicas nas quais podemos pensar com nostalgia mas que não mais correspondem às
condições do mundo hoje...Em anos recentes, no entanto, um tipo diferente de crítica
marxista começou a ter sua presença sentida no horizonte da língua inglesa. Este é o que
pode ser considerado em oposição à tradição soviética um tipo de marxismo
relativamente hegeliano, que para os alemães teve seu início, em 1923, no entusiasmo
teórico de História e Consciência de Classe, de Lukács, ao lado da redescoberta dos
Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, de Marx; enquanto na França pode-se mais
convenientemente datá-lo no revival de Hegel durante os anos 30.” (JAMESON, MF, p. 9).
Ao analisar algumas das obras mais significativas de Adorno, Benjamin, Marcuse, Bloch,
Lukács e Sartre, a mensagem de Jameson transpareceu inequivocamente: era chegada a hora
dos americanos aprenderem a pensar dialeticamente, apropriando-se daquela herança
imprescindível e do aparato crítico que a dialética oferece. A ambiciosa tarefa que Jameson se
impôs foi cumprida com brilhantismo. Desnecessário dizer que, já nesse momento, as
fronteiras da crítica literária tradicional haviam sido ultrapassadas.
Após a publicação de The Prison-House of Language (1972), importante estudo sobre
o formalismo russo e o estruturalismo francês, Jameson produzirá uma série de
inspiradíssimos ensaios ao longo de toda a década de 1970, a maioria deles ainda inéditos em
português. Dentre eles, podemos destacar Metacommentary (1971), The Ideology of the Text
(1975) e Reificação e Utopia na Cultura de Massa (1979), disponível em português na
coletânea intitulada As Marcas do Visível.
Diferente de seus colegas, confortavelmente inseridos na tradição empirista e
pragmatista predominante no mundo anglo-saxão, Jameson não considerava que os textos
literários eram obras apolíticas ou que, no máximo, como queriam as ideologias
conservadoras, poderíamos reconhecer, em obras muito específicas, um conteúdo político que
funcionaria, em maior ou menor medida, como “ pano de fundo ” para uma narrativa
individual. Em O Inconsciente Político (1981), Jameson defenderá a tese segundo a qual
todos os textos literários devem ser lidos e interpretados, primordialmente, como textos
políticos, isto é, como produtos históricos moldados, inconscientemente, pela luta de classes e
pela lógica do modo de produção dominante nas sociedades e épocas em que foram escritos.
Para Jameson, a história e a política constituem o horizonte intransponível de todas as
interpretações e narrativas. No prefácio a este livro, que tornou-se um verdadeiro clássico nos
EUA, Jameson escreve uma das passagens mais enfáticas e ilustrativas de seu compromisso
com materialismo histórico:
Historicizar sempre! Este lema o único imperativo absoluto e, podemos a
mesmo dizer, tras-histórico’ de todo pensamento dialético vai se revelar, o que não é
de surpreender, como a moral de O Inconsciente Político também. ” (JAMESON, IP, p. 9)
A leitura dos textos de Jameson é inegavelmente difícil e um dos fatores que muito
contribui para isso é, sem dúvida, o impressionante arsenal teórico que ele mobiliza para
explicar e defender suas teses. Se, por um lado, essa grande quantidade de referências
enriquece tremendamente a argumentação jamesoniana, por outro, ela abre espaço para uma
série de incompreensões. Cevasco descreve esse problema com exatidão:
Seu modo de tratar as teorias com que acerta contas tem lhe custado alguns problemas de
recepção, como se pode ver nas reações ao seu The Prison-House of Language (1972), em
que discute o formalismo russo e o estruturalismo francês: para alguns ele é um defensor
desses modos de trabalhar o texto literário e para outros é seu crítico. Este, aliás, é um
problema que se repete com seu tratamento posterior do pós-estruturalismo como em
seu estudo sobre Paul de Man, presente neste livro — e do próprio pós-modernismo.
Afinal, perguntam os mais afoitos, Jameson é a favor ou contra essas manifestações? A
resposta é, é claro, nem uma coisa nem outra, como ele discute na Conclusão. No entanto é
inegável que o movimento onívoro de sua prosa vai incorporando posições e evidenciando,
mais uma vez, a contradição imanente a toda representação: discutir os formalismos, os
pós-estruturalismos e pós-modernismos não o torna um deles, mas a incorporação dessas
posições como parte da discussão acaba tendo um efeito talvez indesejado que é o de
permitir que reverberem e interfiram na exposição. ” (CEVASCO e COSTA, prefácio,
PLC, p. 9)
Essa dificuldade em relação aos escritos de Jameson é muito semelhante àquela que sempre
perseguiu Adorno por conta de sua peculiar abordagem do tema da identidade. Aliás, no que
se refere à recepção no sentido mais geral, podemos dizer que Jameson herdou o falso
problema que, não raro, era colocado em relação ao autor da Dialética Negativa, a saber: para
alguns ele é demasiadamente marxista, enquanto, para outros, ele não é suficientemente
marxista.
No outono de 1982, três anos antes de se tornar professor emérito da Universidade de
Duke, Jameson apresentou, em forma de conferência, o texto cujas idéias centrais seriam a
base de todo o seu trabalho teórico nas décadas seguintes: Pós-Modernismo e Sociedade de
Consumo. Neste momento, o marxismo ganhou algo de extrema importância, que, até então,
nos faltava: um diagnóstico radical, sofisticado e amplo das transformações culturais
ocorridas no terceiro estágio do capitalismo. Em 1984, foi publicado, na New Left Review, o
fascinante ensaio Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio, no qual
Jameson analisa a cultura do simulacro em suas mais variadas formas, mostrando que, na
pós-modernidade, a antiga fronteira que separava o cultural do econômico foi inteiramente
dissolvida. O marxismo mais tradicional encontrava-se totalmente alheio a esse debate,
preocupado com questões supostamente mais relevantes e impotente diante dos
desalentadores anos finais do “socialismo realmente existente.” Enquanto isso, evitando
julgamentos morais, Fredric Jameson inspirado pela leitura de O Capitalismo Tardio, de
Mandel, — nos mostrava que as chamadas mudanças culturais eram, na verdade, parte
essencial de um processo global, complexo e assustadoramente conservador, que, em última
análise, preparava o mundo para o domínio absoluto do capital. Neste período Jameson
identificou, com precisão, o poder paralisante do fenômeno que é a razão de ser deste
trabalho:
Acredito que o surgimento do pós-modernismo está intimamente relacionado
com o surgimento desse novo momento do capitalismo tardio de consumo ou capitalismo
multinacional. Creio também que os seus aspectos formais expressam de muitos modos a
lógica mais profunda desse sistema social particular. Entretanto, serei capaz de
demonstrar isso em relação a um único tema maior, a saber, o desaparecimento do sentido
de história, o modo pelo qual todo o nosso sistema social contemporâneo começou, pouco a
pouco, a perder a capacidade de reter o seu próprio passado, começou a viver em um
presente perpétuo e em uma mudança perpétua, que obliteram as tradições do tipo
preservado, de um modo ou de outro, por toda a informação social anterior. (JAMESON,
PSC, p. 43-44)
A publicação de mais alguns ensaios importantes sobre a pós-modernidade e do
excelente livro sobre Adorno, em 1989, preparou o caminho para o aparecimento, em 1991,
do monumental Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio, obra maior de
Jameson, na qual ele desenvolve extensamente as teses apresentadas no famoso ensaio de
1984. Passando pela filosofia, arquitetura, vídeo, cinema e economia, o crítico norte-
americano elaborou, de forma originalíssima e corajosa, um quadro totalizante, sofisticado e
incomparavelmente mais rico do que tudo o que havia sido escrito, até aquele momento, sobre
a crise da modernidade e a pós-modernidade
2
. A partir daí, a opção de acompanhar Habermas
2
A compreensão de Jameson do pós-moderno estabeleceu os termos do debate subseqüente. Não é
surpresa que as intervenções mais significativas desde a entrada dele em campo tenham sido marxistas de
origem. As três contribuições mais importantes podem ser vistas como tentativas de suplementar ou corrigir,
cada um à sua maneira, o relato original de Jameson. Against Postmodernism (1989), de Alex Callinicos, faz
em sua improdutiva defesa do “ projeto inacabado da modernidade perdeu, pelo menos para
algumas correntes de esquerda, qualquer sentido. Os trabalhos posteriores de Jameson, sejam
eles sobre Brecht, o cinema do terceiro mundo ou ficção científica, têm sido obstinadamente
fiéis à ousada tarefa que ele se impôs: enfrentar a exclusão estrutural da memória ” na pós-
modernidade, mostrando, por meio de uma crítica incisiva do presente, que o desejo chamado
utopia existe até mesmo onde menos se espera, e que tudo pode ser historicizado.
A obra de Fredric Jameson abriu horizontes novos e estimulantes — ampliando
decisivamente as fronteiras do marxismo ocidental exatamente quando, depois da derrota
histórica, a esquerda revolucionária parecia não ter mais nada de relevante a dizer. Acima de
tudo, a indispensável contribuição de Jameson nos possibilitou perceber, com orgulho e um
discreto alívio, que, apesar das perspectivas sombrias, se não ficarmos presos olhando para
trás, o pensamento crítico-dialético estará sempre em condições de compreender o inimigo e
denunciá-lo em sua falsa necessidade. Ainda que ele, de formas novas e inesperadas, continue
triunfando às custas da destruição da vida.
uma análise mais detalhada do background político do pós-moderno. Condition of Postmodernity (1990), de
David Harvey, oferece uma teoria bem mais completa de suas pressuposições econômicas. As ilusões do pós-
modernismo (1996), de Terry Eagleton, aborda o impacto da difusão ideológica. ” (ANDERSON, 1999, p. 93)
INTRODUÇÃO
O presente perpétuo e cristalizado do pós-moderno, no qual a possibilidade de
mudanças reais parece inexistir, é resultado das transformações pelas quais o sistema do
capital vem passando nas últimas quatro décadas, principalmente em função da chamada
reestruturação produtiva. Agora, com a virtual conclusão do processo de modernização,
não nada fora do mundo das mercadorias, e, mais do que nunca, somos obrigados a lidar
com o adiamento indefinido da práxis revolucionária. Contudo, como ensina Jameson, por
mais que a história esteja fora de nosso alcance, é absolutamente imprescindível historicizar.
Na perspectiva jamesoniana, somente a partir de uma hermenêutica de duplo sentido —
negativa e positiva seremos capazes de compreender os intrincados mecanismos que, na
pós-modernidade, funcionam como substitutivos da história, e, no mesmo passo, descobrir
formas de fortalecer e desbloquear os impulsos utópicos (desejo e capacidade de imaginar
mudanças).
3
O pós-modernismo, enquanto lógica cultural dominante do capitalismo tardio, pode
ser entendido, segundo Cevasco e Costa, como um processo de intensificação do passado
4
.
Como veremos no primeiro capítulo deste trabalho, os aspectos e elementos definidores da
modernidade parecem ter alcançado, em nossos dias, seus limites últimos, gerando um quadro
geral repleto de fenômenos novos e ainda pouco compreendidos. As novidades atordoantes do
pós-moderno, que decretam, entre muitos outros “fins”, o fim de todos os sistemas e das
grandes narrativas históricas, não apontam, no entanto, para o advento de uma nova ordem
social, sobre a qual o pensamento de Marx pouco tem a nos dizer; muito pelo contrário, elas
são resultado da expansão planetária do capital, ou seja, da chamada globalização. O
esgotamento das formas e modelos modernistas coincide, não por acaso, com o colapso da
modernização ” (KURZ).
Seguindo a recomendação de Jameson, procuraremos mostrar que a perda da
historicidade em nossos dias pode, ela mesma, ser historicizada. Assim sendo, nesta
introdução, tentaremos localizar, no percurso da modernidade, as primeiras manifestações do
fenômeno que aqui chamaremos de o ocaso da história na pós-modernidade.
Sabemos que em alguns momentos da história contemporânea, na ótica de muitos dos
mais importantes pensadores marxistas, a revolução socialista mundial pareceu praticamente
3
Ver JAMESON, IP, p. 292-308, 1992.
4
Ver o prefácio de CEVASCO, M. E. e COSTA, I. C. em JAMESON, PLC.
certa e o colapso do sistema do capital, inevitável. O tempo aberto da modernidade empurrava
todos os olhares para o futuro, criando uma crença quase irresistível na idéia de progresso e
alimentando as expectativas de que uma sociedade inteiramente nova e diferente de todas as
anteriores o socialismo triunfaria sobre o mundo burguês. A revolução impulsionaria,
assim, a realização concreta das idéias mais libertárias do Iluminismo, em suma, a supressão
definitiva da dominação de classe e a emancipação da humanidade como um todo (este seria o
fim da pré-história, segundo Marx).
Desde 1848, ou seja, da chamada primavera dos povos ”, até hoje, o capitalismo
enfrentou revoltas proletárias, crises econômicas, revoluções na periferia do sistema (Rússia,
China e Cuba) e produziu com a colaboração de parte considerável da classe trabalhadora
duas guerras mundiais, a tragédia do nazismo e, mais recentemente, a farsa neoliberal. A
despeito de sua conturbada e catastrófica trajetória, a sociedade burguesa sobreviveu e a
fragmentada classe trabalhadora atual não tem conseguido pôr em prática uma estratégia de
luta ofensiva. Se todas essas mazelas sociais e econômicas, até agora, não foram suficientes
para provocar revoluções e mudanças políticas estruturais, pelo menos no ocidente e no centro
do sistema, nos parece legítimo pensar que o elemento central para a compreensão desse
fracasso histórico, ou seja, da incapacidade se criar uma sociedade genuinamente diferente,
encontra-se nos limites do projeto mesmo da modernidade, entendida aqui como o processo
de surgimento, desenvolvimento e consolidação de uma sociedade produtora de mercadorias
mundial, dominada em todas as suas esferas pela lei do valor.
Por cerca de um século e meio, as tendências ahistóricas do pensamento burguês
conviveram, lado a lado, com as promessas de emancipação e superação do capitalismo, quer
dizer, a questão da perda da historicidade, enquanto tal, não constitui nenhuma novidade.
Antes mesmo de 1848, em A Miséria da Filosofia, Marx já denunciava a racionalidade
determinista dos grandes apologistas do capital:
Os economistas m uma maneira de proceder singular. Para eles duas
espécies de instituições, as artificiais e as naturais. As do feudalismo são instituições
artificiais; as da burguesia, naturais. Equiparam-se, assim, aos teólogos, que classificam as
religiões em duas espécies. Toda religião que não for a sua é uma invenção dos homens; a
sua é uma revelação de Deus. Desse modo, havia história, mas, agora, não mais.
(Citado em MARX, 2004, p. 103).
Marx percebeu nitidamente que, para levar seu projeto adiante, a burguesia, aquela classe
revolucionária que havia demonstrado, da maneira mais radical possível, o poder da ão
humana, seria forçada, por conta de seus interesses de classe, a negar a historicidade das
relações sociais capitalistas e do próprio mundo por ela produzido. Neste processo de recalque
social da história, a disciplina do trabalho foi, sem dúvida, o meio principal pelo qual a
sociedade capitalista conseguiu, efetivamente, neutralizar os desejos radicais de emancipação
e, por assim dizer, transformar o sofrimento passivo na forma mais digna e valorosa de
práxis
5
. Numa inquietante passagem de O Capital, Marx nos revela as raízes do nosso
estrutural imobilismo histórico:
Não basta que haja, de um lado, condições de trabalho sob a forma de capital e,
de outro, seres humanos que nada têm para vender além de sua força de trabalho.
Tampouco basta forçá-los a se venderem livremente. Ao progredir a produção capitalista,
desenvolve-se uma classe trabalhadora que, por educação, tradição e costume, aceita as
exigências daquele modo de produção como leis naturais evidentes. (MARX, 2004, p.
851)
Os processos de reificação estão na base do ciclo de repetição que, ao longo da história
do capitalismo, tem perpetuado a dominação e a não-liberdade. Para Marx, no entanto, apesar
da derrota das revoluções proletárias e das recorrentes farsas históricas, ainda era possível
pensar que, em função das crises do capital e depois de um longo aprendizado político, os
trabalhadores, em algum momento, seriam obrigados a levar sua luta até as últimas
conseqüências. Segundo Marx, um longo período de sonolência domina as sociedades
burguesas depois do êxtase revolucionário. Os dramáticos efeitos da vitória conduzem
necessariamente à contemplação. Muito diferente disso:
“...as revoluções proletárias, como as do século XIX, se criticam constantemente a si
próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para
recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências, as fraquezas
e as misérias de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário apenas para que
este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante delas,
recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos até que se cria
5
Ver WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Lisboa: Presença, 2001 e THOMPSON,
E. Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial ”, in: Costumes em Comum. São Paulo, Companhia
das Letras, 2005.
uma situação que torna impossível qualquer retrocesso e na qual as próprias condições
gritam: Hic Rhodus, hic salta! ” (MARX, 2006, p. 19)
De acordo com Robert Kurz, no entanto, existe na obra de Marx um dilema, no que
diz respeito ao sujeito coletivo revolucionário, que, bem compreendido, nos revela a
verdadeira encruzilhada da modernidade. Se, por um lado, o trabalho promove a socialização
e a cooperação entre os operários, e isso os possibilita unificar e organizar sua luta; de outro, o
trabalho alienado, abstrato, e a necessidade produzem consciências reificadas (a fragmentação
do sujeito, segundo Lukács), promovem a concorrência no interior da classe operária e a
assimilação da ética burguesa do trabalho. Ou seja, se os valores e a ideologia do proletariado
são os mesmos da burguesia, como poderia a classe dominada, ela mesma produto do capital,
representar uma alternativa histórica concreta e radical ao mundo das mercadorias? Como
afirma Kurz, em O Colapso da Modernização, a crítica da economia política e a exaltação da
classe trabalhadora são incompatíveis:
A afirmação do movimento operário, por Marx, que nas expressões do
movimento dos trabalhadores ’, posição do trabalhador ’, posição de classe etc,
atravessa toda a sua de obra, é na verdade inconciliável com sua própria crítica da
economia política, que desmascara precisamente aquela classe trabalhadora não como
categoria ontológica, mas sim como categoria social constituída, por sua vez, pelo capital.
Do mesmo modo que se excluem a ontologia do trabalho e a crítica do trabalho abstrato,
excluem-se também a posição do trabalhador e a crítica da vida do trabalhador...Do
ponto de vista da lógica de desenvolvimento apenas infra-histórica do sistema produtor de
mercadorias, a classe trabalhadora não podia ser concebida com vistas à sua supressão
efetiva. O conceito da emancipação social tinha de ficar preso dentro do sistema do
trabalho abstrato e somente poderia ser definido com as categorias deste...O elemento
racional, mas hoje historicamente esgotado, dessa constelação não era outra coisa senão a
emancipação das massas para o trabalho e não do trabalho assalariado moderno. (KURZ,
2004, p. 65-66)
Percebe-se, nessa perspectiva, que a classe que deveria ser o representante negativo na
sociedade burguesa e cuja tarefa era promover o salto da humanidade para fora da pré-
história é, na verdade, um elemento constitutivo da própria ordem do capital, e não seu
oponente estrutural.
Não se pode negar que a classe trabalhadora européia obteve conquistas significativas
nas décadas que se seguiram à morte de Marx. Entretanto, ela não fez a tão esperada
revolução e tampouco conseguiu instituir o socialismo pela via parlamentar; ao contrário, o
proletariado continuou sendo vítima da dominação burguesa, de sua consciência reificada, e,
por conta própria, caminhou em direção ao abismo. Como se sabe, o desenvolvimento do
imperialismo e a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914) transformaram as ingênuas
esperanças da social-democracia européia em cinzas e sangue da maneira mais catastrófica
e violenta possível, vale sublinhar
6
. Em suas Teses Sobre o Conceito de História, Walter
Benjamin nos mostra que, subjacente a passividade dos social-democratas, estava um conceito
positivista e dogmático de progresso, no qual o aprimoramento infinito da humanidade era
inquestionável e o destino da história, a priori, conhecido:
“ Marx secularizou a representação do tempo messiânico na representação da
sociedade sem classes. E estava bem assim. O infortúnio começou quando a
socialdemocracia alçou essa pretensão a um ideal. O ideal foi definido, na doutrina
neokantiana, como uma tarefa infinita. E essa doutrina era a filosofia elementar do partido
socialdemocrata de Schmidt e Stadler a Natorp e Vorländer. Uma vez definida a
sociedade sem classes como tarefa infinita, o tempo homogêneo e vazio transforma-se, por
assim dizer, em uma ante-sala, em que se podia esperar com mais ou menos serenidade a
chegada da situação revolucionária. ” (LOWY, M. BENJAMIN, 2005, p.134, tese XVII a).
Rosa Luxemburgo, voz quase isolada na social-democracia alemã, foi a personagem
principal dessa grande tragédia, e, apesar de ter lutado até a morte pela revolução, não deixou
de demonstrar toda a sua decepção e estarrecimento perante a capitulação das massas
trabalhadoras, que, ao aderirem aos chamados patriotas da burguesia, não hesitaram em pôr
em marcha a guerra imperialista e lutar contra seus camaradas de outras nações, negando
assim seus próprios interesses de classe
7
. Esta talvez tenha sido a primeira e, até hoje, mais
6
Parecia óbvio que o velho mundo estava condenado. A velha sociedade, a velha economia, os
velhos sistemas políticos tinham, como diz o provérbio chinês, perdido o mandado do céu ’. A humanidade
estava à espera de uma alternativa. Essa alternativa era conhecida em 1914. Os partidos socialistas, com o
apoio das classes trabalhadoras em expansão em seus países, e inspirados pela crença na inevitabilidade
histórica de sua vitória, representavam essa alternativa na maioria dos Estados da Europa. Aparentemente,
era preciso um sinal para os povos se levantarem, substituírem o capitalismo pelo socialismo, e com isso
transformarem os sofrimentos sem sentido da guerra mundial em alguma coisa mais positiva: as sangrentas
dores e convulsões do parto de um novo mundo. ” (HOBSBAWM, 2002, p. 62)
7
Ver LUXEMBURG, R. The Junius Pamphlet: The Crisis in the German Social Democracy. New York:
Pathfinder, 1997.
traumática demonstração da incorporação, pelos trabalhadores, dos valores da classe
dominante.
Exatamente neste período, atordoado pelo devastador impacto da guerra, Lukács
desenvolveu magnificamente o que Marx havia identificado em germe. Ao examinar as
antinomias do pensamento burguês e os efeitos da produção generalizada de mercadorias, em
História e Consciência de Classe (1923), Lukács formulou o conceito de reificação, que,
como fenômeno, corresponde à forma própria e característica da consciência sob o modo de
produção capitalista. A reificação, que de acordo com Marx (e depois Lukács), transforma as
relações sociais humanas em relações sociais entre coisas, deve ser compreendida, em
primeiro lugar, como um estranhamento radical entre os homens e sua própria atividade
(práxis). No processo de trabalho os homens se submetem a um sistema mecânico,
racionalizado e acabado, que aniquila as particularidades e funciona independente de sua
vontade. A cisão entre sujeito e objeto (Lukács fala de um processo de fragmentação do
sujeito, tema central no pós-moderno), no trabalho alienado, resulta num esquecimento
histórico, estrutural, e numa percepção radicalmente imediatista da realidade. Daí, como
mostra Lukács, decorre uma completa mistificação dos processos sociais:
Para a consciência reificada, essas formas do capital se transformam necessariamente nos
verdadeiros representantes de sua vida social, justamente porque nelas se esfumam, a ponto
de se tornarem completamente imperceptíveis e irreconhecíveis, as relações dos homens
entre si e com os objetos reais, destinados à satisfação real de suas necessidades. Tais
relações são ocultas na relação mercantil imediata...Sendo assim, para a consciência
reificada, esta se torna, necessariamente, a forma de manifestação do seu próprio
imediatismo, que ela, enquanto consciência reificada, não tenta superar. Ao contrário, tal
forma tenta estabelecer e eternizar esse imediatismo por meio de um ‘aprofundamento
científico’ dos sistemas de leis apreensíveis.” (LUKÁCS, 2003, p. 211)
Em decorrência do fetichismo da mercadoria (e do dinheiro), o produto do trabalho, as
instituições, as relações sociais e, por fim, a própria história, adquirem a aparência de objetos
autônomos, inquestionáveis, dotados de poderes mágicos e desconhecidos. Assim sendo, da
estrutura econômica da sociedade do capital, nasce uma espécie de “segunda natureza”, ou
seja, um conjunto de sujeitos passivos, desprovidos de imaginação social e, portanto,
incapazes de pensar historicamente. Ou, como diria Marx, incapazes de entender o significado
da atividade revolucionária, prático-crítica”. O proletariado, que, para Lukács, é ao mesmo
tempo sujeito e objeto do conhecimento, se encontra, portanto, diante de uma tarefa histórica
que parece estar muito além de seu horizonte existencial. Segundo Jameson, a tensão central
da grande obra de Lukács está justamente neste ponto:
Paradoxalmente, o diagnóstico de Lukács da outra consciência, a da classe trabalhadora
que foi privada até mesmo de suas habilidades técnicas e conhecimento produtivo, é muito
mais positiva: reduzido à mercadoria força de trabalho, esse proletariado devastado irá ter
agora único entre as todas as classes ou grupos da sociedade capitalista — a capacidade
estrutural de apreender como um todo a ordem social capitalista, nessa unidade-de-teoria-e-
práxis que é o marxixmo. ” (JAMESON, MS, p. 103)
Em seus escritos posteriores, Lukács recuou em certos aspectos e não levou algumas de suas
teses mais ousadas às últimas conseqüências. É possível encontrar, em História e Consciência
de Classe, passagens nas quais a possibilidade de uma derrota definitiva do proletariado
8
, isto
é, de um fechamento irreversível dos horizontes sociais da modernidade, aparece bem
delineada:
Do mesmo modo que o sistema capitalista produz e se reproduz a si mesmo econômica e
incessantemente num nível mais elevado, a estrutura da reificação, no curso do
desenvolvimento capitalista, penetra na consciência dos homens de maneira cada vez mais
profunda, fatal e definitiva. ” (LUKÁCS, 2003, p. 211)
A idéia de que os processos de reificação danificaram definitivamente a consciência
do sujeito moderno, perpetuando um movimento cíclico e repetitivo de dominação e barbárie,
é, a meu ver, central em toda a argumentação da Dialética do Esclarecimento, de Adorno e
Horkheimer. É fundamental sublinharmos, neste momento, o que entendemos por barbárie.
Especialmente no período de sua crise estrutural, a sociedade burguesa precisa administrar de
algum modo a pulsão de morte das coletividades, ou seja, em função da acumulação de
capital, tornou-se necessário, a um tempo, alimentar a agressividade e perpetuar a
passividade. Este movimento, mascarado pela estetização da vida, introduz a barbárie como
elemento estruturante do capitalismo tardio. Conforme a fecunda formulação de Menegat:
8
Essa hipótese foi sugerida pelo Professor Marildo Menegat durante o curso Pensamento Social
Contemporâneo ”, oferecido pelo Programa de Pós-graduação da ESS da UFRJ (2006/2).
A violência é produzida em três níveis: nos indivíduos, ao deixar sem representação a
agressividade do desamparo; na sociedade civil, por substituir traumaticamente a política
pela polícia; e na economia, pelo papel que a indústria armamentista desempenha. Nestas
condições, ela se torna um hábito que, invisível, se naturaliza como um estado perpétuo da
sociedade. Quando se observa a facilidade com que a violência se manifesta no cotidiano
das relações sociais, a explicação provavelmente não está, apenas, na construção desta
como uma cultura ou como uma forma de sociabilidade, mas na estetização de relações
sociais que se decompõe com uma velocidade que torna impossível o seu controle pelos
indivíduos nela envolvidos. [...] Vico, ao estudar o período heróico da formação dos gregos,
falava da violência como uma forma de sociabilidade da transição para a era clássica. Neste
caso, o uso do termo para este fenômeno procurava demonstrar o processo de lapidação dos
hábitos e costumes na entrada para a civilização, na qual as formas de sociabilidade
prescindiriam da violência. No atual estado de coisas, uma cultura da violência pode
referir-se ao processo inverso, isto é, ao retorno à barbárie, cujo veículo estabilizador da sua
estruturação, no interior da sociedade, é a estetização. ” (MENEGAT, 2003, 154-155)
No capitalismo tardio, portanto, o desenvolvimento das forças produtivas destrói não apenas
as próprias forças produtivas e os laços sociais, ou seja, além crescimento de todos os tipos de
violência e do aumento das desigualdades sociais, somos forçados a reconhecer a
possibilidade da extinção da natureza tal como a conhecemos. Numa palavra: o movimento do
capital é a marcha da barbárie. Feito este importante esclarecimento, voltemos agora a Adorno
e Horkheimer.
Tradicionalmente, o pensamento iluminista havia sempre considerado que o mito era a
verdadeira antítese do esclarecimento, quer dizer, o esclarecimento agia contra as forças
autoritárias e repressoras do mito, anulava seus poderes mágicos através da racionalidade e
cumpria, assim, seu papel emancipador do indivíduo e das coletividades. Segundo A Dialética
do Esclarecimento, sob o domínio das forças cegas do capital, revelou-se, na modernidade, a
continuação de uma nefasta dialética entre mito e esclarecimento, isto é, a humanidade, que
esperava livrar-se do medo, da opressão e da penúria material, sucumbe aos seus próprios
impulsos de dominação da natureza. O entrelaçamento histórico entre mito e esclarecimento
se deixa ver na necessidade de calcular, de conhecer e projetar, na natureza, o subjetivo. Na
base de ambos está o princípio da racionalidade instrumental, dizem Adorno e Horkheimer,
que, em nome da liberdade e progresso do saber, ratifica a dominação como destino dos
homens:
Do mesmo modo que os mitos já levam a cabo o esclarecimento, assim também o
esclarecimento fica cada vez mais enredado, a cada passo que dá, na mitologia. Todo
conteúdo, ele o recebe dos mitos, para destruí-los, e ao julgá-los, ele cai na orbitado
mito...Mas quanto mais se desvanece a ilusão mágica, tanto mais inexoravelmente a
repetição, sob o título da submissão à lei natural, parecia garanti-lo como sujeito livre. O
princípio da imanência, a explicação de todo acontecimento como repetição, que o
esclarecimento defende contra a imaginação mítica, é o princípio do próprio mito.
(ADORNO / HORKHEIMER, 1985, p. 26)
Radicalizando as descobertas da crítica da economia política e as idéias mais criativas
do jovem Lukács, Adorno e Horkheimer demonstram, na forma de crítica cultural, que a
sociedade burguesa avançada, prisioneira do valor-de-troca, consagrou o domínio absoluto do
universal sobre o particular e da identidade sobre a diferença, em outras palavras: agora, em
todas as esferas da vida, tudo deve ser quantificado, calculado e equiparado. No capitalismo
tardio, a cultura que é sempre e, ao mesmo tempo, barbárie alcança, sob o álibi do
entretenimento, um nível de homogeneização e padronização sem precedentes (essa idéia é
fundamental para Jameson). Para Adorno e Horkheimer, a repetição do mesmo e a
propagação das idéias da classe dominante se dão, em grande medida, através das múltiplas
facetas da indústria cultural, ou seja, do cinema, do rádio, da televisão e das revistas. A lógica
econômica e a racionalidade do “sempre-igual suprimem impiedosamente os aspectos
qualitativos, reduzindo a heterogeneidade e a diferença à ideologia. Para Adorno, que é quem
de fato nos interessa aqui, a possibilidade de mudanças substantivas, na modernidade, estava
estruturalmente adiada, isto é, a história, uma vez recalcada, configura-se como um tempo
vazio, do qual a práxis revolucionária foi excluída.
Adorno, como nos lembra Jameson, nunca pretendeu oferecer uma teoria sociológica
acabada sobre as classes sociais, mas sua incrível capacidade de articular e compreender os
múltiplos processos da vida social, sem jamais abandonar a perspectiva da totalidade,
permitiram a ele, antes do que qualquer outro, perceber que o ethos conservador do
proletariado não era conjuntural. As raízes do conservadorismo dos herdeiros da filosofia
clássica alemã encontram-se no reino da necessidade, no caráter repressivo do trabalho
material:
A práxis nasceu do trabalho. Alcançou seu conceito quando o trabalho não mais se
reduziu a reproduzir diretamente a vida, mas sim pretendeu produzir as condições desta:
isto colidiu com as condições então existentes. O fato de se originar do trabalho pesa muito
sobre toda práxis. Até hoje, acompanha-a o momento de não-liberdade que arrastou
consigo: que um dia foi preciso agir contra o princípio de prazer a fim de conservar a
própria existência; embora o trabalho, reduzido a um mínimo, entretanto não precisasse
continuar acoplado à renúncia. O ativismo de nossos dias reprime também o fato de que a
nostalgia de liberdade é estreitamente aparentada com a aversão à práxis. Práxis foi o
reflexo das penúrias da vida: isto a desfigura ainda ali onde ela tenta abolir tais penúrias.
(ADORNO, 1995, p. 206)
Para a tradição marxista, na qual vemos a obra de Fredric Jameson inserida, a
modernidade já era, portanto, pelo menos deste a Segunda Guerra Mundial, um período
histórico sem perspectivas de mudança qualitativa. O fracasso da Ideologia da Sociedade
Industrial e da Dialética do Esclarecimento, por exemplo, em oferecer uma saída
emancipatória e racional para os dilemas da modernidade tão ressaltado recentemente por
Habermas e Mészáros
9
se deixa compreender, agora, depois do fim da experiência
soviética, como um acerto político e teórico da maior importância. Às custas de
incompreensões e acusações de todo o tipo, Marcuse e Adorno preferiram ficar hospedados
no Hotel Abismo a escolher entre os dois blocos que se degladiavam. Para eles, a classe
trabalhadora havia sido irremediavelmente integrada e o socialismo realmente existente
representava a perpetuação da barbárie e da opressão
10
. Ao analisar a situação do mundo no
pós-guerra, e as opções que se ofereciam, Marcuse foi preciso:
As sociedades neofascistas e soviéticas são inimigas econômicas e de classe e
uma guerra entre elas é provável. Mas ambas são, em suas formas essenciais de dominação,
anti-revolucionárias e hostis ao desenvolvimento socialista...Sob estas circunstâncias,
uma alternativa para a teoria revolucionária: criticar impiedosa e abertamente os dois
sistemas e sustentar, sem concessões, a teoria marxista ortodoxa contra ambos. Diante da
realidade política, esta posição seria impotente, abstrata e apolítica, mas quando a realidade
política como um todo é falsa, a posição apolítica pode ser a única verdade política.
(MARCUSE, 1999, p.291-292, Teses 2 e 3)
9
Ver HABERMAS, J. O Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002 e
MÉSZÁROS, I. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
10
A análise mais instigante e convincente do significado da experiência do “ socialismo real ” encontra-
se, a meu ver, em KURZ, R. O Colapso da Modernização. São Paulo: Paz e Terra, 2004
O período que vai do final da década de 1960 a 1991 trouxe a derrocada do chamado “
socialismo real ”, a crise da modernidade, a crise estrutural do sistema produtor de
mercadorias (neoliberalismo) e, conseqüentemente, o alardeado fim da história (isso sem falar
na liquidação universal da natureza). Esses temas são partes de um mesmo problema e, de
uma forma ou de outra, colocam em xeque a validade do materialismo-histórico, as
possibilidades do socialismo e, sem exagero algum, a sobrevivência da própria humanidade.
A viabilidade do projeto revolucionário fundado por Marx e Engels se considerarmos que
ele ainda é possível depende do enfrentamento teórico e prático dessas questões. A reação
das diferentes correntes marxistas a esse enorme desafio tem sido variada. Alguns não as
enfrentaram, preferindo simplesmente permanecer em suas antigas posições, como se nada
tivesse que ser revisto. Outros, terrivelmente arrependidos, deram as costas ao marxismo,
reconhecendo a eficiência do mercado e a inevitabilidade do capitalismo. Os mais teimosos,
entretanto, decidiram enfrentar esse imenso desafio em sua totalidade, sem moralismos,
elaborando criticamente a dolorosa experiência do stalinismo e encarando o pós-modernismo
como uma nova realidade histórica a ser teorizada.
De nossa perspectiva, como veremos a seguir, Fredric Jameson está entre os autores
que, de forma mais criativa e consistente, ousou enfrentar o presente e as múltiplas
determinações que envolvem a compreensão da pós-modernidade — seguindo, a seu modo, as
trilhas da mais rica da tradição marxista.
CAPÍTULO I
UM MAPA DA PÓS-MODERNIDADE
“O pós-modernismo é o que se tem quando
o processo de modernização está completo
e a natureza se foi para sempre. ”
Fredric Jameson.
1- Os primeiros debates sobre a pós-modernidade
Em As Origens da Pós-Modernidade, texto originalmente planejado como
introdução a uma coletânea de ensaios de Fredric Jameson Perry Anderson percorre com
maestria o caminho que vai do aparecimento da expressão pós-modernismo ”, nos anos de
1930, no mundo hispânico, até o começo dos anos 1980, quando da intervenção de Jameson
no debate contemporâneo sobre a crise da modernidade. Não faz sentido analisarmos aqui
toda essa trajetória histórica, mas, antes de tentarmos compreender a teorização do pensador
norte-americano, precisamos examinar, ainda que brevemente, os primórdios da controvérsia
atual.
É imprescindível frisar que o debate envolvendo o pós-modernismo, nas universidades
e institutos de arte, no começo dos anos 70, se sob o impacto de maio de 68 marco
inicial da ruptura —, no contexto dos grandes protestos contra a Guerra do Vietnã, dos
movimentos da contracultura (opositores do establishment modernista e do Estado) e de uma
grave crise econômica (estrutural, vale acrescentar). David Harvey nos dá um panorama geral
dessa crise:
Perto do final dos anos 1960, o liberalismo embutido começou a ruir,
internacionalmente e no nível das economias domésticas. Os sinais de uma grave crise de
acumulação eram em toda parte aparentes. O desemprego e a inflação se ampliavam em
toda parte, desencadeando uma fase global de estagflação que duraria por boa parte dos
anos 1970. Surgiram crises fiscais de vários Estados (a Grã-Bretanha, por exemplo, teve de
ser salva com recursos do FMI em 1975-76), enquanto as receitas de impostos caíam
acentuadamente e os gastos sociais disparavam. As políticas keynesianas não
funcionavam. Mesmo antes da Guerra árabe-israelense e do embargo do petróleo da OPEP
de 1973, o sistema de taxas fixas DCE Bretton Woods baseado em reservas de ouro tinha se
mostrado ineficaz. A porosidade das fronteiras dos Estados com relação aos fluxos de
capital pressionava o sistema de taxas de câmbio fixas. Os dólares dos Estados Unidos
haviam inundado o mundo e escapado ao controle daquele país, sendo depositados em
bancos europeus. As taxas de mbio fixas foram abandonadas por causa disso em 1971. O
ouro não mais poderia funcionar como a base metálica da moeda internacional; as taxas de
juro passaram a ser flutuantes e as tentativas de controlar a flutuação foram logo
abandonadas. ” (HARVEY, 2008, p.22)
Segundo Perry Anderson, as discussões acerca do pós-modernismo tiveram lugar
principalmente nos Estados Unidos e ficaram restritas, até os primeiros anos da década de
1970, à esfera da poesia e da literatura. No outono de 1972, com o lançamento do primeiro
número do periódico boundary 2, cujo subtítulo era Revista de Cultura e Literatura Pós-
modernas, surgiram os primeiros indícios do que estava por vir. William Spanos, que havia
trabalhado como professor visitante na Universidade de Atenas, decidira fundar a revista ao se
dar conta da aliança não-declarada entre o governo Nixon e a junta ditatorial grega. Segundo
Anderson, o movimento de Spanos tinha dois alvos:
Em Atenas ele percebeu uma espécie de cumplicidade entre a ortodoxia estabelecida
dentro da qual fora educado e o insensível oficialismo que testemunhava. Ao voltar à
América, concebeu boundary 2 como uma ruptura com ambas as coisas. No auge da Guerra
do Vietnã, seu objetivo era fazer a literatura voltar ao domínio do mundo ’, no momento
mais dramático da hegemonia americana e do seu colapso ’, e demonstrar que o pós-
modernismo é uma espécie de rejeição, um ataque, um solapamento por parte do
formalismo estético e do conservadorismo político do New Criticism.’ (ANDERSON,
1999, p. 24)
Contudo, as intenções políticas oposicionistas da publicação foram enfraquecidas em seu
desenvolvimento posterior. No contexto da Guerra Fria, a revista acabou não ultrapassando os
limites tradicionais da literatura, voltando-se para uma certa leitura do existencialismo de
Sartre e, mais tarde, para uma metafísica heideggeriana do Ser.
Entre os mais destacados colaboradores da boundary 2 estava o crítico egípcio Ihab
Hassan. Em sua concepção de pós-modernismo, apresentada em 1971, Hassan evidenciava
uma relação muito tensa com o modernismo, ora de recusa, ora de radicalização de suas
principais características. O que é fundamental destacar é que, com Hassan, a noção de pós-
modernismo se expande em direção às artes visuais, à música, à tecnologia e à sensibilidade
de modo geral. Em seus trabalhos subseqüentes, Hassan procurou investigar os indícios do
pós-modernismo também na ciência e na filosofia, principalmente a partir das obras de
Nietzsche e Foucault. A questão que se colocava agora era a seguinte: afinal de contas, o pós-
modernismo era um fenômeno social ou apenas um conjunto de tendências artísticas? Hassan
não conseguiu dar uma resposta satisfatória a esse dilema, mas observou, acertadamente, que
o pós-modernismo reclamava um novo tipo de relação entre arte e sociedade. Anderson
assim descreve os limites da perspectiva de Hassan:
“ A concepção de Hassan para o pós-moderno, embora pioneira em muitas de suas
percepções ele foi o primeiro a estendê-la a todas as artes e a notar características mais
tarde amplamente aceitas —, tinha assim um limite embutido: barrava a passagem ao
social. Esta foi sem dúvida uma das razões pelas quais ele saiu de campo no fim dos anos
80. Mas havia outra, inerente à visão que tinha da própria arte. O compromisso original de
Hassan era com as formas exasperadas do modernismo clássico Duchamp, Beckket:
exatamente o que Onís definiu com presciência nos anos 30 como ultramodernismo ’.
Quando começou a examinar o ambiente cultural dos anos 70, Hassan construiu a cena
sobretudo através desse prisma. ” (ANDERSON, 1999, p. 27)
Em meados da década de 1980, na introdução à sua coletânea de ensaios The Postmodern
Turn, Hassan demonstrou toda a sua insatisfação com os rumos tomados pelo pós-
modernismo:
o próprio pós-moderno mudou, dando, a meu ver, a guinada errada. Encurralado entre a
truculência ideológica e a ineficácia desmistificadora, preso no seu próprio kitsch, o pós-
modernismo tornou-se uma espécie de pilhéria eclética, refinada lascívia de nossos prazeres
roubados e descrenças fúteis. ” (Citado em ANDERSON, 1999, p. 28)
O que Hassan estava longe de imaginar era que a guinada do pós-modernismo, que
para ele representou seu fim, seria a fonte inspiradora de Learning from Las Vegas, o grande
manifesto arquitetônico da década de 1970, publicado, em 1972, por Robert Venturi, Denise
Brown e Steven Izenour. A mensagem desse texto postulava uma atitude pragmática, de
aceitação do existente, e era claramente um ataque à arquitetura
11
modernista, em seus
11
Mas é no âmbito da arquitetura que as modificações da produção estética são mais
dramaticamente evidentes e seus problemas teóricos têm sido mais consistentemente abordados e
elementos utópicos, progressistas e, até mesmo, revolucionários. Na perspectiva do manifesto,
a tarefa do arquiteto era aprimorar o que está dado, criando ambientes simpáticos e
heterogêneos, nos quais deveriam ser contemplados, ao mesmo tempo, o bom gosto
tradicional e a sensibilidade popular. Segundo Anderson, Learning from Las Vegas assinala a
preponderância da construção de acordo com as necessidades do capital sobre o bem-estar e o
“construir para o Homem ”.
A despeito de seu programa de superação do modernismo, sublinha Anderson, o
manifesto de Venturi e seus colegas ainda não fazia uso da expressão pós-modernismo”. O
papel de difusor desse programa coube a Charles Jencks, que, com a publicação de seu The
Language of Post-modern Arquiteture, deu uma forma muito mais acabada e consistente às
idéias centrais de Learning from Las Vegas. Depois de uma breve hesitação, Jencks passaria a
celebrar entusiasticamente o ecletismo do pós-modernismo, sua vocação para suplantar o
elitismo do moderno e sua capacidade libertadora de combinar o sofisticado e o vulgar, o
velho e o novo. Citando palavras do próprio Jencks, Anderson nos explica o real significado
desses novos princípios:
Em meados da década de 80, Jencks festejava o pós-moderno como uma civilização
mundial de tolerância pluralística e opções superabundantes, uma civilização que ‘tornava
sem sentido ’ polaridades ultrapassadas como ‘ esquerda e direita, capitalista e classe
operária. ’ Numa sociedade em que a informação importava agora mais do que a produção,
não mais uma vanguarda artística ’, uma vez que não inimigo a derrotar na rede
eletrônica global. Nas condições emancipadas da arte atual, inúmeros indivíduos em
Tóquio, Nova York, Berlim, Londres, Milão e outras cidades mundiais que se comunicam e
competem, assim como estão no mundo financeiro. ” (ANDERSON, 1999, p. 31)
O pós-moderno ganharia uma dimensão muito mais ampla quando, em 1979, Jean
François Lyotard, ex- militante do grupo Socialismo ou Barbárie, publicou A Condição Pós-
Moderna. O livro tratava basicamente das implicações epistemológicas decorrentes dos
recentes avanços no campo das ciências naturais, mas, na realidade, esta foi a primeira obra a
conceber a pós-modernidade como um fenômeno social, melhor ainda, como uma
transformação geral da condição humana.
articulados; de fato, foi dos debates sobre arquitetura que minha concepção do pós-modernismo...começou a
emergir. De modo mais decisivo do que nas outras artes ou na mídia, na arquitetura as posições pós-
modernistas são inseparáveis de uma crítica implacável ao alto modernismo arquitetônico, a Frank Lloyd
Wright e ao assim chamado estilo internacional (La Corbusier, Mies, etc.). (JAMESON, PLC, p. 28)
Para Lyotard, filósofo de formação marxista, a pós-modernidade anunciava o
surgimento de uma sociedade pós-industrial, entendida como uma gigantesca rede de jogos
lingüísticos, na qual a informação se tornara a mais importante força econômica. Segundo
Lyotard, a ciência era apenas um entre muitos outros jogos de linguagem, o que retirava dela
qualquer tipo de privilégio em relação ao conhecimento e à verdade. Na perspectiva do
pensador francês, a posição soberana que a ciência ocupara até então havia sido conquistada
graças a duas grandes narrativas, a saber: a primeira era aquela que, desde a Revolução
Francesa, colocara, nas mãos dos próprios homens, a tarefa de libertar a humanidade através
do avanço do conhecimento; a segunda, originária da filosofia clássica alemã, enxergava, no
caminhar do espírito, a progressiva e irreversível revelação da verdade. Se essas duas
narrativas legitimaram todo o desenvolvimento da modernidade, dizia Lyotard, o elemento
definidor da pós-modernidade é precisamente a perda da credibilidade dessas
metanarrativas.
As narrativas mestras caíram em descrédito em função do próprio avanço
científico, afirmava Lyotard. Tivemos, de um lado, uma pluralização dos argumentos, a partir
da multiplicação dos paradoxos e dos paralogismos, antevistos, na filosofia, por Nietzsche e
Wittgenstein; por outro lado, em razão das pressões do capital e do Estado, a prova científica
foi tecnificada, ou seja, a verdade havia sido reduzida a critérios de desempenho. O
pragmatismo da ciência pós-moderna — enquanto pequena narrativa — se revela na produção
de paralogismos, na exaltação do caos, do imponderável e na teorização de sua própria
evolução descontínua e repleta de catástrofes.
Como mostra Perry Anderson, a política e as artes haviam ficado ausentes da reflexão
de Lyotard sobre a pós-modernidade. Esse fato era na verdade um sintoma, e evidenciava o
abandono, por Lyotard, do marxismo e do socialismo revolucionário. Sempre impulsionado
por sua ardente repulsa ao comunismo, o filósofo francês ainda tentaria, com resultados
contraditórios e improdutivos, enfrentar as questões políticas e estéticas do pós-moderno. A
integração da classe operária francesa havia deixado Lyotard imobilizado em seu hedonismo
niilista. Enquanto isso, o capitalismo (e suas recentes transformações), que, segundo ele, não
constituía uma narrativa porque era uma história sem historicidade e esperança, permanecia
sem qualquer teorização consistente. Para Anderson, toda a retórica de Lyotard a respeito das
rupturas, das pequenas narrativas e da multiplicidade caiu por terra com o triunfo planetário
do capitalismo:
Com a profunda mudança de conjuntura nos anos 80 a euforia do boom do
período Reagan e a triunfante ofensiva ideológica da direita que culminou com o colapso
do bloco soviético no final da década —, essa posição perdeu toda credibilidade. Longe de
terem desaparecido as grandes narrativas, parecia que pela primeira vez na história o
mundo caía sob o domínio da mais grandiosa de todas uma história única e absoluta de
liberdade e prosperidade, a vitória global do mercado. ” (ANDERSON, 1999, p. 39)
No lado oposto da controvérsia sobre a crise da modernidade aparecia, no início dos
anos 80, Jürgen Habermas, defendendo o projeto inacabado da modernidade contra as
tendências irracionalistas do pós-estruturalismo francês, dos herdeiros de Heidegger e do
conservadorismo tradicional, em suma, de todos aqueles que, de algum modo, haviam
abandonado o território da razão e proclamavam o esgotamento do Esclarecimento
12
.
Habermas reconheceu que os impulsos libertários e otimistas da modernidade estética,
que, durante tanto tempo, de Baudelaire ao dadaísmo, acalentara a visão de um tempo
presente repleto de promessas de um futuro brilhante, livre e feliz, haviam perdido sua força,
quer dizer, as chamadas vanguardas haviam envelhecido. O poder sedutor da pós-
modernidade vem justamente dessa inegável mudança. Seguindo Max Weber, Habermas dirá
que o projeto da modernidade tinha duas correntes: a primeira delas impulsionava a inédita
diferenciação entre ciência, moralidade e arte (anteriormente unidas em torno da religião)
como esferas de valor autônomas, cada uma delas governadas por suas próprias leis, ou seja,
verdade, justiça e beleza; a segunda procurava possibilitar o enriquecimento da vida cotidiana
a partir de um novo tipo de relação entre as coletividades e os domínios que haviam se
separado. O problema é que a ciência, a moral e a arte, uma vez desligadas, ao invés de se
harmonizarem com os mecanismos da comunicação diária, desenvolveram-se de forma
especializada e autônoma, isto é, alienadas do mundo da vida. Esse problema fundamental, no
entanto, não pode ser resolvido através do abandono puro e simples do programa da
modernidade. Esse passo, para Habermas, seria um ato de desespero, que fatalmente nos
conduziria a regressões imprevisíveis.
12
Reclamam igualmente o fim do esclarecimento, ultrapassam o horizonte da tradição da razão, da
qual a modernidade européia entendeu outrora fazer parte, e fincam o na pós-história...Não podemos
excluir de antemão que o neoconservadorismo ou o anarquismo de inspiração estética está apenas tentando
mais uma vez, em nome de uma despedida da modernidade, rebelar-se contra ela. Pode ser que estejam
simplesmente encobrindo com o s-esclarecimento sua cumplicidade com uma venerável tradição do contra-
esclarecimento. (HABERMAS, 2002, p. 7-8)
Mesmo admitindo que o cenário é pouco promissor, Habermas sustenta que o projeto
da modernidade ainda pode e precisa ser realizado. Para o filósofo alemão, trata-se, acima de
tudo, de promover via ação comunicativa a reapropriação das esferas especializadas
pela experiência comum das diferentes culturas e o fortalecimento da esfera pública. Esse
processo depende, fundamentalmente, de nossa capacidade de desenvolver mecanismos que
permitam à sociedade atuar livre e democraticamente sobre si mesma e, desta forma, impedir
a colonização do mundo da vida pelas forças do sistema (economia e burocracia, domínios da
razão instrumental). Nas palavras do próprio Habermas:
“...trata-se de construir barreiras inibidoras no intercâmbio entre sistema e mundo
da vida e de instalar sensores no intercâmbio entre mundo da vida e sistema. Em todo caso,
problemas de fronteira desse tipo colocam-se assim que um mundo da vida amplamente
racionalizado deva ser protegido contra os imperativos insustentáveis do sistema de
ocupações ou contra as penetrantes seqüelas de uma precaução administrativa com a
existência. O encanto sistêmico que o mercado capitalista de trabalho exerce sobre a
biografia da população ativa, que a rede de autoridades executivas, reguladoras e
supervisoras exerce sobre a forma de vida dos clientes, que a corrida armamentista nuclear,
que se tornou autônoma, exerce sobre a expectativa de vida dos povos, não pode ser
rompido pelo fato de os sistemas aprenderem a funcionar melhor. Pelo contrário, é
necessário que os impulsos do mundo da vida possam influir no autocontrole dos sistemas
funcionais. ” (HABERMAS, 2002, p. 504-505)
A idealização habermasiana da chamada esfera pública — como lugar do debate democrático,
da ética e do consenso e a crença de que o mundo da vida pode ser protegido das forças
destruidoras do capital só cabem, especialmente agora, no terceiro estágio da ordem burguesa,
numa teoria social de matriz liberal. O mais impressionante, no entanto, é perceber que, em
função de sua obstinada defesa da modernidade, boa parte da esquerda ainda nutre simpatias
por Habermas, preferindo esquecer que seu programa político nada mais é do que uma
tentativa de aprimoramento do capitalismo.
As análises de Lyotard e de Habermas sobre a pós-modernidade são diferentes e, em
vários aspectos, antagônicas, mas curiosamente nos conduzem ao mesmo e “inevitável
destino, a saber: o capitalismo. Nas duas perspectivas inexiste qualquer tentativa de
interpretação histórica do pós-moderno, capaz de explicá-lo enquanto fenômeno social e
esclarecer até que ponto ele constitui uma real novidade. Este era, portanto, mais um daqueles
momentos decisivos em que alguém deveria assumir a árdua tarefa de escovar a história a
contrapelo.
2- A intervenção de Fredric Jameson
A pós-modernidade apresenta a si mesma como um radical conjunto de rupturas e
eventos extraordinários, através do qual a crise dos paradigmas modernistas, o fim da arte, o
fim da história, o fim das classes sociais e das ideologias abrem caminho para o caos, o
simulacro, o imponderável, o pastiche, a diferença absoluta e uma série de supostas
novidades. No centro de todas as correntes do pós-modernismo, afirma Jameson, está a
dissolução da fronteira entre a alta cultura e a assim chamada cultura de massas
13
. Para o
materialista histórico, a celebração acrítica desse milenarismo às avessas e do verdadeiro
terremoto cultural que se anuncia é possível em função da característica mais corrosiva de
nossa época: o desaparecimento da historicidade. Sendo assim, vejamos exatamente o que
Jameson entende por historicidade:
A historicidade, de fato, nem é uma representação do passado, nem uma
representação do futuro (ainda que suas várias formas utilizem tais representações): ela
pode ser definida, antes de mais nada, como uma percepção do presente como história, isto
é, como uma relação com o presente que o desfamiliariza e nos permite aquela distância da
imediaticidade que pode ser caracterizada finalmente como uma perspectiva histórica. É
correto, então, em outras palavras, insistir também na historicidade da própria operação,
que é a nossa maneira de conceber a historicidade nessa sociedade específica e nesse modo
de produção. ” (JAMESON, PLC, p.290)
A não percepção do presente como história expressa, segundo Jameson, uma identificação
não mediatizada entre os homens e o real, ou seja, um empobrecimento radical da
experiência, que está no cerne de nossa atual incapacidade de imaginar um futuro que não seja
o prolongamento desse mesmo presente. No capitalismo tardio, a práxis humana é, no
essencial, práxis degenerada, pseudoatividade, quer dizer: somos mônadas reagindo
irrefletidamente ao automatismo do capital. A história, stricto senso, continua a existir, sem
dúvida, mas ahistoricamente, como um tempo desumanizado, ou seja, desprovida de seu
elemento fundamental, conforme lembra Debord:
13
Para uma excelente abordagem dessa questão, ver JAMESON, F. MV, p. 9-35, 1995.
A história sempre existiu, mas nem sempre sob forma histórica. A temporalização do
homem, tal como se efetua pela mediação de uma sociedade, é igual a uma humanização do
tempo. O movimento inconsciente do tempo se manifesta e se torna verdadeiro na
consciência histórica. ” (DEBORD, 2007, p. 87)
A partir da surdez histórica ” do pós-moderno torna-se possível acreditar que
vivemos numa sociedade sem classes, que todas as “ narrativas mestras foram invalidadas e
que a vida social não obedece a nenhuma lógica sistêmica universal. O positivismo e o
pragmatismo, renomeados e radicalizados no pós-modernismo, desempenham um papel de
destaque no mundo do não-acontecimento, como diria Slavoj Zizek, dando um esteio
filosófico à nova superficialidade. Devemos nos ater aos textos proclamam os apologistas
acríticos do pós-modernismo à imanência, ao presente empírico, ratificando a indissolúvel
união entre linguagem e pensamento, e abolir todas as formas de filosofia (materialismo,
metafísica, idealismo) que apontam para o futuro, postulando algum tipo de transcendência,
universalismo ou fundamento último.
14
O objetivo de Jameson é desmontar o pós-modernismo através de seus próprios meios,
sem moralismos e julgamentos ideológicos simplistas (o anti-modernismo dos pós-modernos
e o anti-pós-modernismo dos modernos), mostrando que ele mesmo, que tão violentamente
resiste à idéia de sistema e a qualquer tipo de abordagem totalizante, constitui um sistema
inteligível, regulado por princípios mais ou menos rígidos, cujos mecanismos e idiossincrasias
podem ser revelados pela crítica materialista. Somente assim, argumenta o pensador norte-
americano, é possível a superação da visão da história como heterogeneidade pura, diferença
aleatória e multiplicidade caótica.
Para Fredric Jameson, o ponto inicial de qualquer investigação marxista do pós-
modernismo é o reconhecimento do paradoxo central do mundo contemporâneo:
Assim, o paradoxo do qual devemos partir é a equivalência entre uma taxa de
transformação sem precedentes em todos os níveis da vida social e uma estandardização
14
Livrar-se dos velhos nomes, de todas essas abstrações que ainda fedem a universalismo e
generalidade, apegar-se com uma determinação ainda maior ao empírico e ao factual, estigmatizar o residual
como filosófico no mau sentido, ou seja, idealismo puro, sem por isso cair no materialismo igualmente oculto e
metafísico — esses são o lema do pós-moderno, que já serviram como lema para certas caças às bruxas de tipo
wittgensteiniano, em nome da defesa da saúde e da pureza da linguagem, mas que agora circulam na
economia tão à vontade quanto as entregas do supermercado da esquina ”. (JAMESON, ST, p. 21-22)
sem precedentes de tudo sentimentos junto com bens de consumo, linguagem junto com
espaço construído — que parecia ser incompatível com a mutabilidade. É um paradoxo que
pode ainda ser conceitualizado, mas em razão inversa: o da modularidade, por exemplo, no
qual a transformação intensificada é possível por meio da próprio estandardização, na qual
os módulos pré-fabricados, em tudo, desde a mídia até a vida privada doravante
estandardizada, da natureza comodificada à uniformidade de equipamentos, permitem que
reconstruções miraculosas se sucedam umas às outras, à vontade, como um vídeo fractal.”
(JAMESON, ST, p.30)
Contra a corrente de nossa época, a análise de Jameson procura estabelecer uma periodização
do pós-moderno, ou seja, situá-lo historicamente no tempo e no espaço, identificando as
mudanças reais e, ao mesmo tempo, examinando se ele é de fato tão novo e diferente quanto
acredita ser. O propósito dessa periodização é explicar a passagem do modernismo ao pós-
modernismo, demonstrando que mudanças substantivas podem ocorrer nos quadros de um
mesmo modo de produção, no caso, do capitalismo. Na ótica de Jameson, rupturas e mutações
de grande porte, no interior de um modo de produção (na forma), não envolvem mudanças
completas de conteúdo, mas, sim, a reorganização ou reestruturação de aspectos presentes no
período anterior. Os traços definidores do pós-modernismo já existiam no modernismo,
argumenta Jameson, a diferença é que alguns aspectos que eram secundários tornaram-se
agora dominantes ou centrais. Inversamente, determinados elementos que eram
preponderantes no modernismo passaram a ser coadjuvantes no pós-moderno. A obsessiva
procura pelo novo e a perda da historicidade, presentes na modernidade e intensificadas e no
pós-moderno, nos dão boas pistas sobre esse problema. De acordo com pensador norte-
americano, a especificidade do pós-moderno que constitui uma ruptura irreversível com a
modernidade — deve ser assim compreendida:
“ A especificidade histórica do pós-modernismo deve, portanto, ser finalmente discutida em
termos de funcionalidade social da própria cultura. [...] o alto modernismo, seja qual for seu
conteúdo político patente, era de oposição e marginal dentro de uma cultura burguesa
vitoriana, filistéia ou dos anos dourados. Embora o pós-modernismo seja igualmente
ofensivo sob todos os aspectos enumerados (pense-se no rock punk e na pornografia),
não é, de maneira alguma, de oposição no mesmo sentido; de fato, constitui a própria
estética dominante ou hegemônica da sociedade de consumo e serve, significativamente,
como um laboratório de novas formas e modas, à produção de mercadorias empreendida
por esta. A defesa de uma concepção do s-modernismo como categoria de periodização
baseia-se, pois, no pressuposto de que, mesmo que todas as características formais
enumeradas estivessem presentes no modernismo que o precedeu, o próprio significado
dessas características se transforma quando elas se tornam uma dominante cultural, com
uma funcionalidade sócioeconômica precisa. ” (JAMESON, P60s, p. 107)
O título da grande obra de Jameson sobre o tema, Pós-Modernismo: A Lógica Cultural
do Capitalismo Tardio, estabelece, de imediato, um laço indissolúvel entre cultura e
economia. Ao contrário de Lyotard e outros, Jameson afirma que a pós-modernidade, essa
totalidade não representável e ainda não mapeada, não nos fez saltar para fora do capitalismo
ou que vivemos atualmente numa sociedade pós-industrial, onde a informação e o
conhecimento se tornaram as grandes forças da economia
15
. Diferente do capitalismo
monopolista, que desenvolveu-se acompanhado de uma cultura modernista, relativamente
autônoma tendencialmente subversiva, o capitalismo tardio engendra uma lógica cultural
homogênea e totalmente integrada a seus princípios econômicos
16
. O pós-modernismo é a
lógica cultural do capitalismo tardio. Isto não significa dizer que toda a produção cultural de
nossa época é pós-moderna, ou seja, o pós-modernismo não constitui uma lógica
determinante, livre de contradições, ele deve ser entendido como dominante cultural, como
explica Jameson:
Não me parece, de modo algum, que toda produção cultural de nossos é s-moderna no
sentido amplo em que vou usar este termo. O pós-moderno é, no entanto, o campo de forças
em que vários tipos bem diferentes de impulso cultural — o que Raymond Williams
chamou, certeiramente, de formas ‘ residuais ’ e emergentes ’ de produção cultural — tem
que encontrar seu caminho. Se não chegarmos a uma idéia geral de uma dominante
cultural, teremos que voltar a visão da história do presente como pura heterogeneidade,
como diferença aleatória, como coexistência de inúmeras forças distintas cuja efetividade é
impossível aferir. ” (JAMESON, PLC, p. 31-32)
Entender o pós-modernismo como dominante cultural significa admitir a coexistência deste
com formas de produção cultural mais antigas, como o modernismo, assim como a
15
“...o pós-modernismo não é a dominante cultural de uma ordem social totalmente nova (sob o
nome de sociedade pós-industrial, esse boato que alimentou a mídia por algum tempo), mas é apenas reflexo e
aspecto concomitante de mais uma modificação sistêmica do próprio capitalismo. (JAMESON, PLC, p. 16)
16
Em função desta necessidade criou-se toda uma indústria que trabalha com o desejo, a fantasia e os
impulsos utópicos, planejando a imagem das mercadorias, criando estilos de vida associados a elas e
elaborando estratégias de venda (a propaganda torna-se aqui a mediação fundamental).
possibilidade do aparecimento de novidades. O que Jameson nos ensina é que o pós-moderno
não é nada tolerante, digamos, pois o que resta às formas de cultura que estão fora desta
lógica são espaços diminutos e aparições muito episódicas. Ao mesmo tempo em que procura
mostrar que o pós-modernismo constitui, ele mesmo, um sistema, Jameson quer evitar a
construção de uma lógica sistêmica fechada, indestrutível, que, segundo ele, dissolveria a
capacidade crítica de seu trabalho e nos deixaria impotentes diante de um quadro social que
não pode ser enfrentado (Os casos emblemáticos deste tipo de sistematização são o Vigiar e
Punir, de Michel Foucault, e a jaula de ferro da burocracia, teorizada por Weber).
Para Jameson, o fato econômico decisivo do final do século XX, mencionado por
nós, foi a virtual conclusão do processo de modernização. Ratificando a análise de
Wallenstein, o pensador norte-americano sustenta que o modelo de sociedade construído na
URSS e seus satélites nunca chegou a ser um sistema realmente novo e separado do
capitalismo ocidental
17
. Esses países promoveram estratégias ultra-rápidas de modernização,
que, no entanto, nunca os levaram para fora do capitalismo, ou seja, o bloco comunista era um
espaço anti-sistêmico no interior do próprio sistema. Stalin modernizou a União Soviética,
transformando um país atrasado e essencialmente agrícola numa superpotência industrial /
militar, que dispunha de uma população alfabetizada e uma extraordinária base científica.
Nesse sentido, argumenta Jameson, o stalinismo cumpriu sua missão histórica e foi um
inegável sucesso, pelo menos até o advento da terceira revolução industrial (microeletrônica,
robótica), no início dos anos 70, quando os países do leste europeu se mostraram incapazes de
acompanhar o enorme salto dos países centrais do capitalismo
18
. A modernização capitalista
deve ser entendida, portanto, como o veículo da modernidade, como um processo econômico
global, de caráter desigual e combinado, conforme a clássica teorização de Trotsky
19
. O
17
Ver JAMESON, F. CTM, p. 193.
18
“... a União Soviética tornou-se ineficiente e entrou em colapso quando tentou integrar-se a um
sistema mundial que estava passando da fase de modernização para a fase pós-moderna, um sistema que, de
acordo com suas novas regras de operação, estava por isso mesmo funcionando em um nível
incomparavelmente mais alto de ‘ produtividade ’ que qualquer coisa na esfera soviética. Impelida por motivos
culturais (consumismo, as novas tecnologias da informação etc.), atraída por uma competição militar-
tecnológica calculada, pela isca da dívida e por formas de coexistência comercial que se intensificavam cada vez
mais, a sociedade soviética ingressou em um ambiente no qual não poderia sobreviver. (JAMESON, CTM, p.
192)
19
As leis da história não têm nada em comum com o esquematismo pedantesco. O desenvolvimento
desigual, que é a lei geral do processo histórico, não se revela, em nenhuma parte, com maior evidência e
complexidade do que no destino dos países atrasados. Açoitados pelo chicote das necessidades materiais, os
países atrasados se vêem obrigados a avançar aos saltos. Desta lei universal do desenvolvimento desigual da
cultura decorre outra que, por falta de nome mais adequado, chamaremos de lei do desenvolvimento
acentuado enfraquecimento da autonomia dos Estados nacionais nas últimas décadas obriga
os países periféricos a se sujeitar à regulamentação financeira externa, quer dizer, as decisões
são tomadas simplesmente como confirmação do movimento automático do capital, o que
explica a atordoante insignificância a que foram reduzidos os tradicionais espaços da política
no mundo inteiro. Em grande medida, o capitalismo globalizado segue sua lógica à revelia
dos Estados nacionais e dos resultados a que chegou a modernização no terceiro mundo, por
exemplo. A conclusão da modernização é a expressão mais concreta e acabada do fim do
moderno. De acordo com Jameson, o atual estágio do capitalismo não permite nenhum
avanço modernizador:
O capital internacional não esperará por eles, por nenhuma modernização no sentido
clássico. A conjuntura é, portanto, extremamente desfavorável, para não dizer contraditória:
para a maioria das nações do Terceiro Mundo e do então chamado Segundo Mundo, o
relógio ainda bate pela modernização de maneira bem mais peremptória e urgente, ao passo
que para o capital, movendo-se rapidamente de uma situação de baixa compensação à
próxima, só são finalmente atraentes a tecnologia cibernética e as oportunidades pós-
modernas de investimento. No entanto, no novo sistema internacional, poucos países
podem se fechar para proceder a uma modernização em seu próprio ritmo e gosto: a
maioria entrou no circuito internacional de dívida e consumo do qual já não pode se
desligar. Nem tem a tecnologia cibernética nenhum uso imediato para tais países em
desenvolvimento, por razões tanto sociais quanto econômicas: ela não cria novos empregos
nem riqueza social, ela não fornece, nem de maneira mínima, substituições de importação,
quanto mais uma fonte básica nacional de necessidades comuns. (JAMESON, MRE, p.
100-101)
Partindo da leitura de O Capitalismo Tardio, importantíssima obra de Ernst Mandel,
Jameson se propõe a mostrar que as transformações culturais de nosso tempo decorrem de
uma gigantesca dilatação da esfera da mercadoria, quer dizer, a chegada do capitalismo a seu
terceiro e mais puro estágio transformou a cultura num produto como outro qualquer, em
outras palavras, substituiu-a pelo mercado. Segundo Jameson, a produção cultural está hoje
completamente integrada à produção de mercadorias, e a economia, por sua vez, foi
irremediavelmente dissolvida no cultural. Ou seja: no capitalismo tardio, toda a produção
combinado, aludindo à aproximação das distintas etapas do caminho e à confusão de distintas fases, ao
amálgama, de formas arcaicas e modernas. Sem recorrer a esta lei, enfocada, naturalmente, na integridade de
seu conteúdo material, seria impossível compreender a história da Rússia, nem a de nenhum outro país de
avanço cultural atrasado, seja em segundo, terceiro ou décimo grau. ” (TROTSKY, L. 2007, p. 21)
cultural / artística obedece, em maior ou menor medida, a lógica do capital, e a produção
econômica, em decorrência da importância fundamental das imagens e do espetáculo, precisa
cada vez mais ser estetizada. As teses de Jameson acerca dos papéis da cultura e da economia
na totalidade do capitalismo multinacional certamente apontam para um novo tipo de relação
entre base econômica e superestrutura:
“Dizer que meus dois termos, o cultural e o econômico, se fundem desse modo um no
outro e significam a mesma coisa, eclipsando a distinção entre base e superestrutura, o que
em si mesmo sempre pareceu a muitos ser uma característica significativa do pós-moderno,
é o mesmo que sugerir que a base, no terceiro estágio do capitalismo, gera sua
superestrutura através de um novo tipo de dinâmica. E isso pode bem ser o que preocupa (e
com razão) os que não aderiram ao termo; este parece nos obrigar, de antemão, a tratar os
fenômenos culturais no mínimo em termos de business, se não nos termos da economia
política.” (JAMESON, PLC, p. 25)
Na perspectiva de Jameson, as relações entre cultura e economia na pós-modernidade
evidenciam uma uma notável radicalização das tendências teorizadas, por Adorno e
Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento, acerca da indústria cultural, o que parece
reforçar a idéia de que o nosso presente ahistórico é resultado de um amplo processo de
intensificação do passado, como sugerem Cevasco e Costa
20
. Numa brilhante passagem,
Jameson afirma:
Assim, na cultura s-moderna, a própria cultura se tornou um produto, o mercado
tornou-se seu próprio substituto, um produto exatamente igual a qualquer um dos itens que
o constituem: o modernismo era, ainda que minimamente e de forma tendencial, uma
crítica à mercadoria e um esforço de forçá-la a se autotranscender. O pós-modernismo é o
consumo da própria produção de mercadorias como processo. O ‘ estilo de vida ’ da
superpotência tem, então, com o fetichismo da mercadoria de Marx, a mesma relação
que os mais adiantados monoteísmo têm com os animismos primitivos ou com as mais
rudimentares formas de idolatria; na verdade, qualquer teoria sofisticada do pós-moderno
deveria ter com o velho conceito de indústria cultural de Adorno e Horkheimer uma
relação semelhante à que a MTV ou os anúncios fractais têm com os seriados de televisão
nos anos 50. ” (JAMESON, PLC, p. 14)
20
Ver o prefácio de CEVASCO, M. E. e COSTA em JAMESON, F. PLC.
A generalização absoluta do valor de troca no pós-modernismo revela a conquista,
pela lógica mercantil, dos últimos enclaves pré-capitalistas, a saber: a natureza e o
inconsciente
21
. Segundo Jameson, o moderno tinha como uma de suas experiências
fundamentais a alteridade entre as grandes metrópoles e o campo. Havia claramente uma
cultura das cidades e uma outra provinciana, camponesa, que podia ser reconhecida em muitas
áreas do terceiro mundo (colônias) ou associada a um passado pré-capitalista do continente
europeu. Quando os habitantes dos centros urbanos visitavam o campo e as regiões agrícolas
percebiam a inquestionável coexistência de dois mundos desnivelados, ou seja, eles podiam
realmente dizer, orgulhosos, que eram absolutamente modernos. Essa dicotomia desaparece
no pós-moderno. A conclusão da modernização extinguiu as tradições camponesas, a saber,
seu modo de produção agrícola, as antigas aldeias, as terras que não eram propriedade privada
e sua própria temporalidade. O campo é agora domínio das grandes corporações, do
agrobusiness (especulação), e estas precisam eliminar hábitos e práticas residuais de outros
modos de produção
22
. Jameson não quer dizer, com isso, que o globo terrestre foi
homogeneizado por completo. O que ele reconhece — como tendência — é a radicalização de
um processo que, na modernidade, ainda tolerava a existência das formas de vida tradicionais.
No pós-moderno, os habitantes do campo podem ter acesso a todas as tecnologias e meios de
comunicação / informação que, antes, eram exclusividade das grandes metrópoles. Hoje, a
internet, a publicidade e todos os tipos de mídia estão presentes nos meios rurais, promovendo
os mesmos desejos consumistas, a mesma moda e as mesmas ideologias que constituem a
cultura urbana, quer dizer, estamos diante de um assombroso processo de estandardização da
cultura mundial.
A industrialização da natureza produz uma temporalidade universal abstrata, na qual o
novo é esvaziado de seu sentido e o tempo, cristalizado pela mudança perpétua das imagens
21
Cada vez mais os indivíduos se transformam, de fato, naquele homo ecomomicus que outrora era uma
simples imagem da economia política clássica. Com a economização de todas as esferas da vida, a
economização da conciência avançou num grau até havia pouco inconcebível e isso, graças à globalização,
nos quatro cantos do mundo, não só nos centros capitalistas. Quando até mesmo amor e sexualidade, tanto na
ciência quanto no cotidiano, são pensados cada vez mais como categorias econômicas e estimados segundo
critérios econômicos, a comercialização da alma parece irresistível. (KURZ, 2004, p. 249)
22
“ Tudo agora é organizado e planejado, a natureza foi triunfalmente cancelada, e também os
camponeses, o comércio pequeno-burguês, o artesanato, as aristocracias feudais e as burocracias imperiais. A
nossa condição é mais homogeneamente modernizada, não estamos mais sobrecarregados pelos estorvos das
não-simultaneidades e não-sincronicidades. Tudo chegou a mesma hora no grande relógio do desenvolvimento
ou da racionalização...Esse é o sentido em que podemos dizer que o modernismo caracteriza-se por uma
modernização incompleta, ou que o pós-modernismo é mais moderno que o próprio modernismo.
(JAMESON, PLC, p.314)
da moda e da mídia, reduzido ao espaço. Nesse presente fungível, o espaço e a psique podem
ser manipulados e formatados de modo ilimitado, às dispensas de qualquer disputa
ideológica, de acordo com as necessidades do capitalismo em sua atual fase pós-fordista
(acumulação flexível
23
). Assim como a esfera da produção, o inconsciente, colonizado pela
propaganda e pela indústria cultural, tornou-se igualmente flexível no pós-moderno
24
. No
centro das etapas finais do processo de modernização e do desaparecimento da natureza,
explica Jameson, aparece, mais forte do que nunca, o “ demônio da identidade ”:
A questão, porém, é que onde quer que se invoque a oposição heterogeneidade e
homogeneidade, é sempre esse processo brutal que surge como referente último: os efeitos
resultantes do poder do comércio e depois do capitalismo propriamente dito o que quer
dizer apenas os números agora espoliados e despidos de sua mágica heterogeneidade,
reduzidos a equivalências para apropriar-se da paisagem e aplainá-la, reorganizando-a
numa rede de parcelas idênticas, expondo-a à dinâmica de um mercado que agora
reorganiza o espaço em termos de um valor idêntico. O desenvolvimento do capitalismo,
então, distribui esse valor de forma muito irregular, até que, a longo prazo, em seu
momento pós-moderno, a pura especulação, um pouco como o triunfo do espírito sobre a
matéria, a liberação da forma valor de qualquer de seus conteúdos antes concretos e
terrenos, reina agora suprema e devasta as próprias cidades e campos que criou no processo
de seu próprio desenvolvimento. Mas todas essas formas posteriores de violência abstrata e
homogeneidade derivam da parcialização inicial, que traduz para o próprio espaço a forma
dinheiro e a lógica da produção de mercadorias. ” (JAMESON, ST, p. 39)
Os clássicos da cultura modernista podiam ser reconhecidos em função de modelos e
critérios subjetivos, mais ou menos rígidos, é verdade, mas, acima de tudo, o que lhes conferia
sua consagração como grandes artistas, capazes de produzir obras-primas, era o traço singular,
melhor ainda, o estilo único e inimitável de cada um deles. De uma forma ou de outra, como
sempre insiste Jameson, o modernismo era predominantemente subversivo, pouco importando
23
A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do
fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e
padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas
maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente
intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas
mudanças dos padrões de desenvolvimento desigual, tanto em setores como entre regiões geográficas,
criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado setor de serviços ’...” (HARVEY, 1992, p.
140) Essas transformações, segundo Harvey, sugerem que a acumulação de capital em nossos dias se dá,
principalmente, por meio da espoliação do patrimônio público, e não mais pela exploração direta do trabalho.
24
JAMESON, 1997, p. 24-43.
as posições políticas dos autores. A arte produzida neste período continha um forte sentido de
transcendência (utopia), ou seja, ela apontava para além do estético (segundo Jameson, esse
era o significado do sublime no modernismo). Os pós-modernistas se rebelaram contra a alta
cultura modernista, contra uma cultura que, em dado momento, se afastou das massas e
tornou-se patrimônio oficial de uma elite conservadora. No pós-moderno, os impulsos
transestéticos da arte desaparecem, dando lugar a uma produção artística cuja característica
principal é o que Jameson chama de uma nova falta de profundidade ”. Essa
superficialidade, vale ressaltar, está também na base dos princípios epistemológicos da
chamada teoria, como um dos elementos centrais da cultura do simulacro e das imagens.
Para explicar a falta de profundidade do pós-modernismo, Jameson recorre a duas
obras emblemáticas: o quadro de Van Gogh dos sapatos do camponês, obra-prima do alto
modernismo, e Diamond Dust Shoes, de Andy Warhol, representante da arte pós-moderna. De
acordo com a brilhante análise de Jameson, é necessário reconstruir a situação inicial da qual
surge a obra acabada, ou seja, suas matérias-primas e o conteúdo que ela, de algum modo,
precisou confrontar e trabalhar. Somente assim a obra pode ser compreendida como um ato
simbólico, como práxis. A matéria-prima inicial do quadro do pintor holandês consiste no
mundo embrutecido e opressivo do trabalho rural, na miséria de uma vida em seus limites. No
entanto, esse mundo de dificuldades extremas transforma-se, surpreendentemente e de
maneira avassaladora, a partir da materialização das cores em pintura a óleo. Esse conjunto de
cores e seu efeito representam o momento utópico da obra de Van Gogh, isto é, contrapondo-
se à vida sem esperança, surge o desejo de superação da miséria e da divisão do trabalho na
sociedade capitalista. O quadro de Van Gogh, em razão de seu impulso trasestético, pode ser
entendido como um sintoma de uma realidade muito mais ampla essa é a sua verdade, diz
Jameson.
Bem diferente disso, Diamonds Dust Shoes, de Warhol, apresenta vários pares de
sapatos num quadro que não possibilita ao espectador qualquer tipo de movimento, tampouco
a reconstrução da situação inicial da obra. Trata-se de um objeto quase natural, reificado, uma
imagem que se esgota em si mesma e não nos diz absolutamente nada. A obra de Warhol é
uma produção totalmente integrada ao mundo das mercadorias, uma imagem reluzente,
desprovida de qualquer conteúdo ou sentido. Segundo Jameson:
Aqui, no entanto, temos uma coleção aleatória de objetos sem vida, pendurados na tela
como se fossem nabos, tão desprovidos de sinais de sua vida anterior como uma pilha de
sapatos que ficaram em Auschwitz, ou restos de um incêndio inexplicável e trágico em um
salão de baile lotado. Não há, então, em Warhol, nenhum modo de completar o gesto
hermenêutico e reintegrar essa miscelânea ao contexto vivido mais amplo do salão, ou do
baile, do mundo da alta moda ou das revistas glamourosas. ” (JAMESON, PLC, p. 35)
As diferenças entre os quadros de Van Gogh e Warhol revelam a falta de profundidade do
pós-moderno, assim como uma superficialidade no sentido literal, que, na ótica de Jameson,
constitui o aspecto formal mais importante de todas as correntes do pós-modernismo. Com
isso, afirma o crítico norte-americano, podemos falar de uma transformação decisiva do pós-
moderno, qual seja: a superficialidade foi transformada num princípio recorrente, numa
norma pré-estabelecida que substitui os conteúdos por simulacros e textos, cujos efeitos são
necessariamente experiências fugazes, que se esgotam na imediatez de um presente que o
sujeito percebe como imutável. Intimamente ligada a essa superficialidade, que implica num
terrível empobrecimento da experiência como tal, está uma outra característica espantosa do
nosso tempo: o esmaecimento dos afetos.
Reconhecer o enfraquecimento dos afetos não significa dizer que, no pós-modernismo,
todos os sentimentos, emoções e a própria subjetividade tenham desaparecido inteiramente da
vida cotidiana. A partir de uma análise de O Grito, famoso quadro de Edvard Munch,
Jameson nos mostra que, nele, encontram-se condensados temas fundamentais do
modernismo, a saber, a alienação, a anomia, a solidão e a fragmentação social. Neste quadro,
um pequeno homem, isolado e desorientado num ambiente que lhe parece ameaçador, tenta
desesperadamente se comunicar com as outras pessoas, expressando sua dor da forma mais
evidente possível. Mas seu grito não alcança ninguém, e ele, que não possui orelhas, se mostra
incapaz de reagir a seu próprio sentimento de horror e escutar as eventuais respostas de seus
semelhantes. A ansiedade radical representada no quadro de Munch pode ser considerada,
segundo Jameson, um ótimo exemplo do que ele chama de estética da expressão. Jameson
explica que o pós-moderno recusa, teórica e praticamente, o princípio fundamental deste tipo
de estética:
De fato, o próprio conceito de expressão pressupõe uma separação no interior do sujeito
e, também, toda uma metafísica do dentro e do fora, da dor sem palavras no interior da
mônada, e o momento em que, no mais das vezes de forma catártica, aquela ‘emoçãoé
então projetada e externalizada, como um gesto ou grito, um ato desesperado de
comunicação, a dramatização exterior de um sentimento interior. (JAMESON, PLC, p.
39)
A teoria contemporânea tem se empenhado na tarefa de criticar e invalidar essa metafísica
do dentro e do fora ”, denunciando seu caráter mistificador e ideológico. Sendo a verdade
algo tão desinteressante, o discurso teórico, ele mesmo um fenômeno pós-moderno, tem
reservado suas energias para atacar outros modelos que não correspondem as suas exigências
de superficialidade: o dialético, com suas noções de essência, aparência, e, muito
naturalmente, o conceito de ideologia; o modelo da psicanálise, ou seja, os conteúdos latente
e manifesto, juntamente com a tese da repressão; o modelo existencialista da autenticidade e
da inautenticidade; e finalmente o mais recente desses modelos, o da semiótica, que trabalha
fundamentalmente com a oposição entre significante e significado. A substituição desses
modelos de profundidade por discursos e superfícies múltiplas, textos aleatórios e jogos de
linguagem, está na base da perda da historicidade no pós-modernismo. Jameson sustenta que
Adorno reconheceria, na teoria pós-moderna, os traços daquele tipo de filosofia que ele
incansavelmente combateu e que costumávamos chamar de positivismosó que num estágio
mais avançado
25
.
A preocupação maior de Jameson, ao explicar o esmaecimento dos afetos no pós-
moderno, é levantar uma hipótese histórica acerca da subjetividade. Para o pensador
americano, a ansiedade, a histeria e a alienação, tanto como conceitos quanto como
experiências, não são mais possíveis no capitalismo tardio. A experiência da alienação exigia,
mal ou bem, uma certa coesão social, ou seja, uma concentração numerosa de pessoas no
interior da fábrica, que compartilhavam vivências semelhantes e tinham que cooperar umas
com as outras para trabalhar e sobreviver
26
. Marx descreveu com enorme profundidade o
sentido da cooperação no ambiente fabril:
25
O positivismo se torna pós-modernismo quando, como a filosofia no antigo paradigma, se realiza e
portanto se abole a si mesma. Adorno insiste em um aspecto de sua missão, fornecendo-nos assim uma valiosa
descrição: ele quer abolir o subjetivo, na medida em que este adota formas de pensamentos, interpretações e
opiniões (talvez também queira abolir a linguagem que corresponde a essas coisas: poética, emotiva, retórica).
Isto significa que se trata de um nominalismo e, como tal, quer reduzir-nos ao presente empírico (ou usar o
presente empírico como único padrão para imaginar outras situações e outros momentos temporais). Quer
abolir o valor como tal, qualquer pensamento que suscite a questão dos fins (a formulação da chamada ‘ crítica
da razão instrumental ’), sem excluir a própria dialética, mas incluindo todas as outras ideologias visionárias das
quais ele igualmente promete o ‘ fim ’. (JAMESON, MT, p. 320-321)
26
A reestruturação produtiva alterou completamente essa dinâmica nas últimas décadas, como bem
demonstrou Harvey, por exemplo. Ver HARVEY, 2006, Parte II, p. 115-184.
Chama-se cooperação a forma de trabalho em que muitos trabalhadores juntos, de acordo
com um plano, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes,
mas conexos...O efeito do trabalho combinado não poderia ser produzido pelo trabalho
individual, e o seria num espaço de tempo muito mais longo ou numa escala muito
reduzida. Não se trata aqui da elevação da força produtiva individual através da cooperação,
mas da criação de uma força produtiva nova, a saber, a força coletiva. Pondo de lado a nova
potência que surge da fusão de muitas forças numa força comum, o simples contato social,
na maioria dos trabalhos produtivos, provoca emulação entre os participantes, animando-os
e estimulando-os, o que aumenta a capacidade de realização de cada um...É que o homem,
um animal político, segundo Aristóteles, é por natureza um animal social. (MARX, 2004,
p. 379)
A incrível proliferação do uso de drogas (lícitas e ilícitas) e a esquizofrenia apontam
para uma patologia cultural que, em sua brutal radicalidade, deve ser compreendida como
uma cisão no interior do próprio sujeito, isto é, como fragmentação. Esse fenômeno é a
tradução da chamada “ morte do sujeito ”, do fim do ego ou indivíduo burguês autônomo, seja
ela interpretada à maneira historicista ou pós-estruturalista.
27
Se o ego burguês não existe
mais, com ele também desaparecem as psicopatologias que, historicamente, o acompanhavam
(neuroses, alienação, anomia). Mas a extinção do individuo, da mônada isolada, impede ou
dificulta a expressão de todos os tipos de sentimento, o que leva Jameson a afirmar que, no
pós-moderno, os sentimentos (“ intensidades ”) são impessoais e se sustentam por si mesmos
— normalmente impulsionados por algum tipo de euforia.
O fim do sujeito centrado tornou as grandes lutas ideológicas pouco relevantes, ou
seja, a antiga propaganda ideológica parece não ser mais o meio pelo qual as sociedades
capitalistas se legitimam, argumenta Jameson. A própria classe dominante se mostra incapaz
de produzir um discurso coerente ou um corpo de idéias que possa ser considerado um
programa político — já não há nenhum projeto a ser defendido ou proposto. O convencimento
se hoje automaticamente, através de hábitos e práticas dirigidas pela compulsão
consumista, que, naturalmente, dispensam qualquer tipo de elaboração ou fundamentação
mais complexa. Numa época que desaprendeu a pensar historicamente, qualquer positivismo
pós-moderno é suficiente para justificar as maiores atrocidades e transformar um amontoado
de velharias em novidades excitantes (o “ mercado ”, acima de tudo).
27
Ver JAMESON, PLC, p. 42-43.
A fragmentação do sujeito no pós-modernismo se num contexto em que as
categorias espaciais parecem se sobrepor de maneira avassaladora sobre as temporais (ao
contrário do que acontecia no modernismo). O hiperespaço pós-moderno, ou seja, o ambiente
urbano degradado, saturado de imagens, nos impõe uma carga de informações para a qual
nossos aparelhos sensoriais encontram-se inteiramente despreparados. Segundo Jameson,
nossos hábitos perceptivos, formados no espaço do alto modernismo, não passaram por
nenhuma mudança similar, o que nos deixa impossibilitados de agir e representar a grande
rede global de informações que constitui o capitalismo globalizado. Temos assim um radical
descompasso entre sujeito e objeto, em outras palavras, não conseguimos mais representar a
totalidade do real. Considerando-se os impactos dessa transformação, cabe perguntar se a
práxis humana, em seu sentido mais amplo, já não estaria de todo comprometida.
Em sua impressionante análise do Hotel Bonaventure, construído em 1977, em Los
Angeles, Jameson nos mostra que esse ambicioso projeto da arquitetura pós-moderna, no qual
os visitantes são incapazes de identificar a entrada principal, tem a pretensão de substituir a
cidade (transformando-a em mais uma imagem) e oferecer alternativas aos nossos antigos
hábitos urbanos. No Bonaventure, que é também um shopping center, as pessoas circulam
desorientadas, invisíveis umas as outras, movidas unicamente pelo propósito de comprar.
Mais do que tudo, afirma Jameson, essa construção é um verdadeiro monumento à
passividade e à contemplação:
Parece-me que não apenas as escadas rolantes e os elevadores aí passam as substituir o
movimento, mas também, e sobretudo, eles nomeiam a si mesmos como os novos signos e
emblemas do próprio movimento...Aqui o passeio da narrativa foi ressaltado, simbolizado,
reificado e substituído pela máquina de transporte, que se torna o significante alegórico
daquele antigo passeio que não nos é mais permitido fazer por nós mesmos. Essa é uma
intensificação dialética da auto-referencialidade de toda cultura moderna, que tende a
voltar-se para si mesma e a designar a sua própria produção cultural como o seu conteúdo.
” (JAMESON, PSC, p. 35)
A desorientação do sujeito (ou do que restou dele) no hiperespaço pós-moderno asfixia a
experiência e gera, nesse vazio existencial, aquele fenômeno que pode ser entendido como a
manifestação mais radical da fragmentação do ego burguês: a esquizofrenia. Partindo da
descrição de Lacan, Jameson define a esquizofrenia como uma ruptura na cadeia de
significantes que constituem um significado ou proposição. Aqui o significado deve ser
entendido em seu efeito, produzido no movimento mesmo do significado ao significante,
como uma objetivação da significação forjada e estruturada pela relação interna dos
significantes. Quando, por algum motivo, essa seqüência de significantes se rompe, temos a
esquizofrenia, isto é, uma espécie de curto-circuito lingüístico que deixa o sujeito paralisado
diante de um amontoado de significantes aleatórios, distintos e não-relacionados. Essa ruptura
leva o indivíduo à perda de sua identidade pessoal, tornando-o incapaz de articular e unificar
sua experiência temporal no passado, no presente e no futuro. Essa perda de sentido do tempo
aprisiona a psique esquizofrênica num presente perpétuo, assustador, onde nenhuma práxis
autêntica é possível:
Se somos incapazes de unificar passado, presente e futuro da sentença, então somos
também incapazes de unificar o passado, o presente e o futuro de nossa própria experiência
biográfica, ou de nossa vida psíquica. Com a ruptura da cadeia de significação, o
esquizofrênico se reduz a experiência dos puros significantes materiais, ou, em outras
palavras, a uma série de puros presentes, não relacionados no tempo.” (JAMESON, PLC, p.
53)
A crítica filosófica do sujeito, iniciada por Nietzsche, Freud e Lacan, teve seus
prolongamentos mais importantes no pós-estruturalismo, particularmente nas obras de
Foucault e Deleuze. Essa crítica que, pelo menos neste último, aparece como uma exaltação
da experiência esquizofrênica, representou, segundo Jameson, a correta percepção de uma
mudança muito significativa, ou seja: a experiência do sujeito no capitalismo tardio havia de
fato se tornado muito diferente do que era no estágio anterior da ordem burguesa. Temos
agora a fragmentação, o uso de drogas alucinógenas e psicofármacos, dispersões psíquicas e
descontinuidades temporais, quer dizer, um conjunto de sensações inteiramente desconhecidas
pelos seres humanos do início do século XIX, por exemplo
28
. Jameson reconhece os méritos
28
Falando a respeito dos limites do capitalismo e dos atuais contornos da subjetividade, Zizek critica
uma determinada concepção da esquizofrenia, corroborando, a meu ver, as teses de Jameson: “Alguns
psicólogos sociais chegam até a achar que existe um limite psíquico, no sentido de que o capitalismo atual e
não se trata de uma posição o ridícula quanto parece está literalmente nos levando à loucura. É
praticamente o oposto de Deleuze e Guattari, porque eles têm aquela idéia da esquizofrenia capitalista, da
paranóia ruim que depois explode numa boa esquizofrenia revolucionária. Mas penso que Deleuze e Guattari
aproximam-se perigosamente de uma espécie de celebração pseudo-antipsiquiátrica da loucura. Penso que a
loucura é uma coisa terrível as pessoas sofrem e sempre considerei falso tentar identificar nela alguma
dimensão libertária. Seja como for, o limite a que se referem os psicólogos sociais é de natureza muito mais
direta. Por exemplo, segundo algumas estimativas norte-americanas, pelo menos 70% dos professores e
acadêmicos de hoje usam Prozac ou alguma outra forma de droga psicotrópica. Isso não constitui a exceção.
da crítica deleuziana (pós-estruturalista) do sujeito, mas, ao mesmo tempo, a fim de não
avalizar o ideal esquizofrênico que ela parece requerer, devemos, como afirma a pensador
americano, historicizar radicalmente esta transformação. Para Deleuze e Guattari (em O Anti-
Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia
29
), haveria um tipo de esquizofrenia libertária, capaz de
produzir um presente absoluto, que marcaria tanto uma ruptura com o passado (a família, o
complexo de Édipo ”) quanto com o futuro, identificado aqui com a rotina de trabalho sob o
capitalismo. A interessante teorização de Deleuze, no entanto, falha, pelo menos do ponto de
vista do marxismo, em não reconhecer que somente a invenção de formas de vida coletiva e
pós-individualistas pode oferecer um verdadeiro antídoto contra a solidão, o isolamento e a
fragmentação do sujeito burguês. A crítica deleuziana acaba, assim, presa ao que ela mesma
denunciou com grande perspicácia. Segundo Jameson:
“ Na medida em que a libertação do tempo é somente aquela redução ao presente que temos
examinado, o que parece ser uma crítica da nossa ordem social e a conceituação de uma
alternativa a ela se revela, na realidade, como a reprodução de uma de suas tendências mais
fundamentais. A noção deleuziana de esquizofrenia é, portanto, certamente profética, mas
ela é profética em relação à tendências latentes no interior do capitalismo e não a um
entusiasmo quanto a uma ordem social radicalmente diferente, capaz de substituí-la. De
fato, é questionável se Deleuze esteve em algum momento interessado em teorizar a
respeito de qualquer ordem social alternativa enquanto tal. ” (JAMESON, ET, p. 711)
assinalamos que a produção cultural e artística do pós-modernismo, dissolvida na
economia, tem, como características básicas, a falta de profundidade e a ausência de qualquer
intenção de transcendência. Num mundo em que a inovação estilística tornou-se inviável, a
cultura deve estar de acordo com a mesmice e a homogeneização imposta pelo universal, ou
seja, pelo valor-de-troca. Com isso, a arte, que não pode ser práxis revolucionária, como
queria Benjamin
30
, se condena à repetição absoluta, sob a forma de um novo tipo de imitação,
distinta da antiga paródia. Estamos falando do pastiche.
Tanto a paródia como o pastiche dizem respeito à imitação de determinados estilos,
especialmente dos maneirismos e idiossincrasias que, reconhecidamente, definem uma
singularidade. A paródia se vale dos traços excêntricos e inconfundíveis do artista original
Trata-se literalmente de que, para funcionar, já precisamos de psicofármacos. Portanto, o limite é este:
simplesmente começaremos a enlouquecer. ” (ZIZEK e DALY, 2006, 187)
29
DELEUZE, G./GUATTARI, F. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996.
30
Ver BENJAMIN, 1996, p. 165-196.
para ridicularizá-lo. Há, na paródia, inconscientemente ou não, um elemento satírico, uma
leve simpatia e, por vezes, até mesmo uma real admiração pela pessoa imitada. Seja como for,
o objetivo final da paródia é sempre revelar o ridículo, o inconfundível, os excessos no modo
pelo qual os grandes artistas do período modernista cantam, escrevem, falam etc. Entretanto,
os estilos dos modernistas podem ser ridicularizados em função da existência de uma
norma lingüística, de um critério fundamental. Mas, se como já observamos, a cultura do pós-
modernismo não contempla nenhum estilo ou norma, preferindo celebrar a multiplicidade e o
heterogêneo, o que vem a ser o pastiche? Jameson nos explica com muita clareza:
O pastiche, assim como a paródia, é a imitação de um estilo peculiar e único, o uso de
uma máscara estilística, o discurso em uma língua morta; no entanto, ele é uma prática
neutra de tal mímica, desprovida do motivo oculto da paródia, sem o impulso satírico, sem
o riso, sem aquele sentimento ainda latente de que existe algo normal, em comparação com
o qual aquilo que é imitado é cômico. O pastiche é a paródia pálida, a paródia que perdeu o
seu senso de humor...” (JAMESON, PSC, p. 23)
O pastiche, enquanto imitação de estilos mortos, evidencia o completo esgotamento das
formas modernistas e a inevitável falência da arte e da estética no pós-moderno. No
capitalismo tardio, as novidades produzidas por sujeitos fragmentados e sem história
nascem cobertas de poeira, esmagadas pelo peso de um passado modernista do qual não são
mais do que cópias grosseiras e efêmeras.
As práticas desespiritualizadas e inautênticas que Jameson chama de pastiche podem
expressar, ainda, uma espécie de nostalgia pelo presente. Não se deve pensar, no entanto, que
essa nostalgia diz respeito ao nosso presente. O que o pensador americano sugere é que a
cultura do simulacro precisa recorrer ao passado ou a um futuro distante de forma superficial,
idealizando e fantasiando aqueles aspectos que supostamente definem uma época, tais como
roupas, penteados característicos, avanços tecnológicos ou estilos musicais (estereótipos).
Isso se dá principalmente através do cinema, diz Jameson. Esse tipo de “ arte ”— o cinema de
nostalgia apaga o passado, nos aprisiona no presente reificado, suprimindo as
especificidades históricas, os conflitos de classe e transformando um tempo aleatório num
presente que pode ser consumido e experimentado com alegria e alguma esperança. No
caso dos Estados Unidos, essa nostalgia se fixa, de maneira recorrente, na década de 1950.
É importante frisar que esse tipo de cinema não precisa necessariamente se voltar para
o passado, ou seja, seu efeito pode ser alcançado através de uma projeção futurística, como
em Guerra nas Estrelas (1977). Podemos citar aqui alguns filmes que se enquadram nessa
prolífera categoria: American Graffiti (1973), de Geoge Lucas, O Selvagem da Motocicleta
(1983), de Coppola, Jurassic Park (1995), de Spielberg e os milhares de remakes que têm
sido produzidos nos últimos anos (O King Kong versão 2005 e a constrangedora refilmagem
de Psicose, grande clássico de Alfred Hitchcock, por exemplo). Mais do que distorcer o
passado, o cinema de nostalgia faz o nosso presente desaparecer, obstruindo o contato do
espectador com a realidade contemporânea. Quando a história é apagada, o que nos resta,
como afirma Zizek, é o deserto do real:
Não se trata apenas de Hollywood representar um semblante da vida real
esvaziado do peso e da inércia da materialidade na sociedade consumista do capitalismo
recente, a ‘ vida social real ’ adquire de certa forma as características de uma farsa
representada, em que nossos vizinhos se comportam ‘ na vida real ’ como atores no
palco...Mais uma vez, a verdade definitiva do universo desespiritualizado e utilitarista do
capitalismo é a desmaterialização da vida real em si, que se converte num espetáculo
espectral. ” (ZIZEK, 2003, p. 28)
3- A crise de representação e o mapeamento cognitivo
Para cada um de seus três estágios a ordem do capital gerou uma gica cultural
dominante. No capitalismo concorrencial predominaram, como primeiro momento do
modernismo, as tendências realistas; no período do imperialismo, ou capitalismo dos
monopólios, prevaleceu o que Jameson chama de alto modernismo; e agora, em seu estágio
mais “ puro ”, o capitalismo tardio, a dominante cultural é o pós-modernismo. A passagem de
um estágio ao outro acarretou sempre em profundas mudanças na base produtiva do sistema
capitalista, impulsionadas, como mostrou Mandel, pela introdução de tecnologias
revolucionárias, que possibilitaram, a seu tempo, o começo de um novo ciclo de expansão.
Tomando como ponto de partida o ano de 1884, quando, na Conferência de Berlim, as
potências européias partilharam a África, Jameson explica que a grande expansão do capital
nessa época, isto é, o imperialismo, produziu um alargamento substancial da experiência
cotidiana, para o qual os habitantes do velho mundo estavam absolutamente despreparados.
Segundo Jameson, essa mudança trouxe, entre outros problemas, uma sensível perda de
significado:
“...para o colonialismo isto significa que um considerável segmento da estrutura econômica
como um todo está agora alocado em outro lugar, para além da metrópole, fora da vida
cotidiana e da experiência existencial do país de origem, em colônias ultramar cuja
experiência de vida e mundo da vida muito diferente daquela da potência imperial
permanece desconhecida e inimaginável para os indivíduos da potência imperial, seja qual
for a classe a que pertencem. Tal disjunção espacial tem como conseqüência imediata a
inabilidade de apreender o modo pelo qual o sistema funciona como um todo. Diferente do
estágio clássico do capitalismo nacional ou de mercado, portanto, estão faltando peças do
quebra-cabeça; ele nunca pode ser inteiramente reconstruído; nenhum alargamento da
experiência pessoal (no conhecimento de outras classes sociais, por exemplo), nenhum
auto-exame mais aprofundado (na forma de algum tipo de culpa social), nenhuma dedução
científica na base da evidência interna dos relatórios do Primeiro mundo, jamais será
suficiente para incluir esta radical alteridade da vida colonial, o sofrimento colonial e a
exploração, sem falar nas conexões estruturais entre isto e aquilo, entre o espaço ausente e a
vida cotidiana na metrópole. ” (JAMESON, MI, p. 50-51)
Na perspectiva de Jameson, a grande cultura modernista foi, em boa medida, a resposta dos
europeus a essa radical crise de representação. Este problema histórico original constituiu um
novo tipo de conteúdo, um dilema, uma contradição formal que o modernismo procurou
resolver de diferentes maneiras. Aliás, explica Jameson, somente a arte que reflexivamente
percebeu e aceitou enfrentar esse dilema formal pode ser chamada de modernista.
Fizemos esse breve retorno a situação original da cultura modernista com o intuito de
mostrar que, da expansão planetária do capital, nas últimas três décadas, emergiu uma nova
crise de representação, ainda mais profunda do que aquela que, segundo Jamesou, abriu
caminho para o modernismo. Na pós-modernidade, essa crise não constitui um dilema,
melhor dizendo: a representação aparece como uma impossibilidade. A globalização do
capital produziu a uma espantosa dilatação da esfera da cultura e, com ela, o hiperespaço
pós-modernista. Esse hiperespaço o sublime do pós-moderno ultrapassou as
capacidades do corpo humano de se localizar na nova totalidade, em outras palavras, a
mutação espacial do capitalismo multinacional tornou nossos aparelhos sensoriais obsoletos.
Estamos lidando, portanto, com uma espécie de abismo entre o corpo individual e o ambiente
em que vivemos, e essa disjunção, ainda que dramática, pode ser considerada secundária
quando comparada à incapacidade de nossas mentes de mapear a gigantesca rede global de
comunicação, descentralizada e não-representável, que nos mantém aprisionados enquanto
sujeitos individuais.
O hiperespaço pós-moderno deve ser concebido como o fundamento de uma nova
realidade histórica, que nos impõe a tarefa de construir um internacionalismo de um tipo
radicalmente novo. Nesse contexto de desorientação, uma cultura política de esquerda precisa,
em primeiro lugar, promover a desalienação nas cidades, isto é, capacitar o sujeito individual
(e posteriormente um sujeito coletivo) a reconquistar um sentido de localização, quer dizer,
tornar as pessoas capazes de reter e articular, na memória, um conjunto de informações que as
permitam mapear e remapear o espaço pós-moderno, numa palavra: trazer de volta a
possibilidade de uma práxis revolucionária. A estética do mapeamento cognitivo postula que
o capitalismo globalizado, enquanto totalidade espacial e histórica, é irrepresentável, mas isto
não quer dizer que ele não pode ser decifrado, conhecido. O maior desafio desse programa
político-pedagógico, como reconhece Jameson, é a superação das categorias individuais,
melhor dizendo, a transposição do mapa visual da cidade para uma escala global, para o
plano das lutas políticas coletivas. O mapeamento cognitivo, pode-se dizer, é a fórmula
atualizada da nossa velha e conhecida consciência de classe, uma teoria do conhecimento
para os nossos tempos pós-modernos
31
. Para os marxistas e todos os progressistas do mundo,
afirma Jameson, tão importante quanto o mapeamento do espaço multinacional do capitalismo
tardio é a tarefa de examinar e diagnosticar o medo e a ansiedade diante da utopia. A
reconquista da possibilidade de se fazer história no século XXI depende, assim, de um
incansável trabalho teórico-prático sobre os desejos, esperanças e angústias das coletividades:
É preciso fazer uma terapia coletiva com as vítimas da despolitização, lançar um olhar
rigoroso sobre tudo o que fantasiamos como mutilador, negativo, opressivo, pesaroso e
depressivo, em todas as visões disponíveis de transformação radical da ordem social. Penso
que esses sentimentos, os quais, em seu conjunto, constituem aquele fato amorfo, mas
mesmo assim real e ativo, que é o antiutopismo, não brotam realmente da felicidade pessoal
profunda e da gratificação ou realização no presente, mas servem meramente para bloquear
a experiência da satisfação do presente de tal forma que, logicamente, a satisfação se
torne o único julgamento que pode ser feito por um observador confuso, a quem as provas
inconscientes mais profundas foram sonegadas.” (JAMESON, ST, p. 72)
31
Ver o prefácio de CEVASCO, M. E. e COSTA, I. C. em JAMESON, PLC.
Uma ontologia marxista do presente deverá necessariamente encarar o pós-
modernismo como uma nova realidade histórica, promover o mapeamento cognitivo do
espaço global e, mais do que nunca, radicalizar a crítica da economia política. Isto, insiste
Jameson, implica em resistirmos à tentação de apelar para modelos culturais elaborados em
vista de dilemas que pertencem ao passado, ou seja, precisamos reconhecer que o caminho
para a modernidade está fechado
32
. A luta pelo socialismo demanda, ao contrário,
arqueologias do futuro, como pretendemos mostrar, a partir da compreensão do tema central
deste trabalho, nos dois capítulos seguintes.
32
Este é o ponto mais sensível e radical, por assim dizer, que, de uma perspectiva panorâmica, separa
Jameson de outros pensadores marxistas que, como ele, se esforçaram para compreender o significado da pós-
modernidade. David Harvey, por exemplo, ainda acredita que uma reformulação do Iluminismo pode nos
fornecer as bases para um programa político transformador: “...há uma renovação do materialismo histórico e
do projeto do Iluminismo. Por meio do primeiro, podemos começar a compreender a pós-modernidade como
condição histórico-geográfica. Com essa base crítica, torna-se possível lançar um contra-ataque da narrativa
contra a imagem, da ética contra a estética e de um projeto de Vir-a-ser em vez de Ser, buscando a unidade no
interior da diferença, embora o contexto em que o poder da imagem e da estética, os problemas da
compressão do tempo-espaço e a importância da geopolítica e da alteridade sejam claramente entendidos.
Uma renovação do materialismo histórico-geográfico pode na verdade promover a adesão a uma nova versão
do projeto do Iluminismo. ” (HARVEY, 2005, p. 325)
CAPÍTULO II
O DOMINGO DA VIDA, OU O MUNDO DA PÓS-HISTÓRIA
“ A dinâmica é menos incompatível
com a estática do que parece. ”
Roberto Schwarz.
1- A perda da historicidade como regressão da experiência humana
Se considerarmos que o aparecimento da consciência histórica no culo XVIII,
enquanto expressão das demandas de liberdade, representou, na entrada da modernidade, um
ganho da maior relevância no que diz respeito a uma possível emancipação da humanidade,
talvez não seja exagero sugerir, já agora, que a perda da historicidade no pós-moderno
constitui uma regressão de proporções alarmantes. Essa regressão, sustenta Jameson, revela
o retorno da consciência da natureza, isto é, a crença de que as ações coletivas são incapazes
de operar qualquer transformação radical do existente. Desta forma, como querem os
defensores da ordem do capital, as sociedades humanas passam novamente a ser entendidas
sob a mesma ótica das leis naturais, em outras palavras, como reino da necessidade
absoluta, da imutabilidade (essa é uma das faces do positivismo pós-moderno).
Bem compreendida em seu sentido, a historicidade não difere substancialmente
daquilo que, especialmente a partir da Revolução Francesa, nos acostumamos a chamar de
consciência histórica. Ou seja, para os homens e mulheres deste período em diante, a idéia de
que o mundo era governado por leis imutáveis, naturais, e que os reis e governantes da Europa
tinham algum tipo de ligação direta com Deus — e que por isso era necessário obedecê-los —
tornou-se, num ritmo mais ou menos acelerado, insustentável. Para os habitantes do mundo
que nascia, em substituição ao antigo regime, a possibilidade efetiva de se modificar
radicalmente a realidade por meio da ação surgiu como uma novidade, a um tempo temida
e libertadora. A revolução burguesa de 1789, enquanto evento político produzido
espontaneamente pelas massas, representou uma ruptura sem precedentes com a continuidade
do curso da história. A despeito da apatia política e do atraso histórico de seu país em relação
à França e à Inglaterra, ninguém apreendeu melhor o significado da fase inicial desse notável
processo de transformação, isto é, do advento da modernidade, do que Hegel, o mais ilustre
representante da filosofia clássica alemã. Em 1807, ele escreveu:
Aliás, não é difícil ver que nosso tempo é um tempo de nascimento e trânsito
para uma nova época. O espírito rompeu com o mundo do seu ser-aí e de seu representar,
que até hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega à tarefa de sua
transformação. Certamente, o espírito nunca está em repouso, mas sempre tomado por um
movimento para a frente. [...] Falta porém a esse mundo novo como falta a uma criança
recém-nascida uma efetividade acabada; ponto essencial a não ser descuidado. O
primeiro despontar é, de início, a imediatez do mundo novo o seu conceito: como um
edifício não está pronto quando se põe seu alicerce, também esse conceito, que foi
alcançado, não é o todo mesmo. [...] O começo do novo espírito é o produto de uma ampla
transformação de múltiplas formas de cultura, o prêmio de um itinerário muito complexo, e
também de um esforço e uma fadiga multiformes. ” (HEGEL, 2007, p.31)
Radicalmente historicizada, a filosofia de Hegel revelou, da maneira mais abrangente
possível, o princípio estruturante dos tempos modernos, qual seja: a atividade do sujeito.
Sendo assim, a história passava a ser entendida como o processo social de auto-produção e
auto-conhecimento do homem, que, em sua práxis, sob condições historicamente
determinadas, transforma o mundo em função de suas necessidades e sua vontade, sempre no
sentido de um progresso constante (emancipação).
Ao contrário das sociedades feudais, a modernidade compreendeu a si mesma como
um tempo aberto ao futuro, como uma época de progresso inquestionável, que, a partir do
presente e de seu incessante movimento interno, deveria buscar sempre o novo, o mais
recente, confirmando, assim, a todo momento, sua ruptura com o velho mundo
33
. Em meio a
aceleração do tempo, a modernidade capitalista gerou, no mesmo passo, um contexto
altamente problemático e um enorme horizonte de expectativas, cujas evidentes contradições
poderiam ser enfrentadas com seus próprios recursos, em outras palavras: a modernidade
não podia recorrer ao passado para resolver seus dilemas e se consolidar
34
. Em conseqüência
disso, a dialética do Esclarecimento já nasceu com a premente necessidade de uma reflexão
crítica sobre a nova sociedade, decorrente, em grande medida, de suas promessas de
emancipação universal. Os mais sofisticados intérpretes dialéticos da modernidade e dos
33
. Em O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, Marx assinala enfaticamente a necessidade de uma
ruptura completa com as tradições do passado: A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do
passado, e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração
supersticiosa do passado. As revoluções anteriores tiveram que lançar mão de reminiscências da história
universal para se iludirem quanto ao próprio conteúdo. A fim de alcançar seu próprio conteúdo, a revolução do
século XIX deve deixar que os mortos enterrem seus mortos. Antes a frase ultrapassava o conteúdo; agora é o
conteúdo que ultrapassa a frase. ” (MARX, 2006, p. 18)
34
Ver HABERMAS, J. 2002, cap. I
primeiros estágios do capitalismo, inclusive Marx, puderam manter, compreensivelmente,
uma atitude mais ou menos otimista durante todo esse período, quer dizer: o futuro
permanecia em aberto e o progresso, ainda que aos tropeços, nos conduziria à superação da
sociedade de classes
35
. Para Marx, a revolução comunista representava a ruptura mais radical
possível com o passado, e o próprio desenvolvimento do capitalismo preparava,
necessariamente, seu fim:
A condição essencial para a existência e a dominação da classe burguesa é a concentração
de riqueza nas mãos de particulares, a formação e a multiplicação do capital; a condição de
existência do capital é o trabalho assalariado. Este se baseia na concorrência entre os
trabalhadores. O progresso da indústria, de que a burguesia é o agente passivo e
inconsciente, substitui o isolamento dos trabalhadores, decorrente da concorrência, pela sua
união revolucionária, através da associação. Com o desenvolvimento da grande indústria,
portanto, a base sobre a qual a burguesia assentou seu regime de produção e apropriação
dos produtos é solapada. A burguesia produz, antes de mais nada, seus próprios coveiros.
Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis. ” (MARX, 1997, p. 20)
O desenrolar da modernidade, impulsionado pela modernização capitalista
(desenvolvimento das forças produtivas, industrialização), no entanto, nos mostrou, a partir
de 1848 e ao longo do século XX, que não eram pouco significativas as ilusões acerca das
possibilidades da emancipação humana. A revolução comunista ficou restrita à periferia do
capitalismo, basicamente ao oriente, e sua derrota clamorosa evidenciou que, na verdade, a lei
do valor e os elementos fundamentais da sociedade burguesa haviam sido mantidos. O
chamado socialismo real não foi muito mais do que uma modernização recuperadora
(KURZ). Ao lado do avassalador desenvolvimento da técnica e das forças produtivas,
assistimos na história contemporânea algumas das maiores catástrofes de todos os tempos (já
35
O otimismo de Marx deve ser sempre relativizado, uma vez que em vários momentos de sua obra
ele percebeu e assinalou, mais ou menos claramente, a possibilidade do fracasso, ou seja, a idéia de que a
derrota da revolução comunista poderia produzir um estado de barbárie, a despeito de todo o
desenvolvimento das forças produtivas. É curioso notar que a formulação mais instigante de Marx sobre uma
possível recaída na barbárie aparece, justamente, num panfleto de chamado à luta revolucionária, no qual o
pesadelo da derrota definitiva poderia, ou mesmo deveria, ser desconsiderado. No Manifesto Comunista, Marx
e Engels afirmam: “ A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes. Homem
livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo,
oporessores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora
disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira,
ou pela destruição das duas classes em conflito. (MARX, ENGELS, 2005, p. 40) Para um instigante
desenvolvimento dessa questão, ver MENEGAT, M. O Olho da Barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
mencionadas na introdução deste trabalho). Em virtude do aprofundamento dos processos de
reificação, o mundo do capital realizou a liberdade tão-somente como ideologia, produziu
desigualdades sociais absurdas e ainda integrou a classe cuja missão histórica era a
emancipação da humanidade a realização concreta do projeto da modernidade. Já em
História e Consciência de Classe (1923), Lukács parece ter percebido, certamente com pesar,
que o conformismo poderia se instaurar definitivamente na consciência dos trabalhadores, nos
colocando numa situação de imobilismo estrutural:
“ O perigo ao qual o proletariado ficou incessantemente exposto desde seu aparecimento na
história, ou seja, o de ficar aprisionado em seu imediatismo junto com a burguesia, adquiriu
com a socialdemocracia uma forma de organização política que interrompe artificialmente
as mediações penosamente conquistadas, para reduzir o proletariado à sua existência
imediata, onde ele é um simples elemento da sociedade capitalista, e não, ao mesmo tempo,
o motor de sua autodissolução e destruição. ” (LUKÁCS, 2003, p. 389)
Na esteira do jovem Lukács, Adorno, Horkheimer, Bloch, Benjamin e Marcuse
todos eles bem distantes do marxismo oficial nos alertaram acerca das ilusões de uma
dialética progressiva
36
, problematizando radicalmente as relações entre história e
emancipação, o caráter opressivo da razão instrumental, assim como a integração do
proletariado à ordem do capital. A chegada da pós-modernidade e o fim do “ socialismo real ”
sem dúvida aniquilaram a tradição marxista vencedora, mas, segundo Fredric Jameson, o
ataque sistemático dos entusiastas acríticos do pós-moderno às metanarrativas históricas e o
riso festivo do conservadorismo tradicional caem no vazio quando postulam o esgotamento do
potencial crítico do marxismo ocidental e o fim de todas as possibilidades do socialismo. O
que pretendemos entender neste capítulo é, precisamente, como Jameson, enquanto
representante desta segunda tradição, enfrenta a questão da perda da historicidade no pós-
moderno. Segundo nosso autor, é urgente elaborarmos uma interpretação radicalmente
histórica deste fenômeno, demonstrando suas bases materiais, ou seja, os nexos entre o pós-
modernismo e o terceiro estágio da ordem burguesa — o capitalismo tardio.
36
Em sua implacável crítica ao dogmatismo da social-democracia alemã, Benjamin escreveu: “ A
representação de um progresso do gênero humano na história é inseparável da representação do avanço dessa
história percorrendo um tempo homogêneo e vazio. A crítica à representação desse avanço tem de ser a base
crítica da representação do progresso em geral. ” (BENJAMIN, Tese XIII, 2005, p. 116)
As chamadas metanarrativas históricas, isto é, o marxismo e o pensamento dialético
em geral, são, segundo a teoria e do discurso pós-moderno, as grandes responsáveis pelas
tragédias da modernidade. Mas qual seria o ponto crucial dessa recusa intransigente? As
críticas dos pós-modernos têm seu momento de verdade? Segundo Anderson:
“ Quer na variante que proclamou a morte de todas as grandiosas narrativas, ou que
explicou a transição da realidade para a simulação, a marca registrada da versão pós-
moderna do fim da história foi uma fusão do que Kojève tinha oposto como alternativas:
não mais uma civilização de consumo ou de estilo, mas de sua intermutabilidade — a dança
de mercadorias como bal masqué de intensidades libidinais. Nesse espaço, onde a forma
estética e a função publicitária se interpenetram naturalmente, e um artifício lúdico modela
indistintamente objetos e pessoas, o tempo perdeu sua força. Consumida a modernidade, a
história atinge sua imobilidade na dinâmica voragem de um turbilhão. (ANDERSON,
1992, p. 74)
Descartando a possibilidade ou necessidade de um projeto político emancipatório, o
pós-modernismo rejeita, em primeiro lugar, a idéia de uma história que caminha progressiva e
necessariamente em direção a algo melhor, num movimento constante de superação crítica do
velho em favor de uma nova figura do espírito ou um novo modo de produção (revolução
proletária)
37
. A visão de um processo histórico universal, unitário e linear, que traz consigo a
necessidade da emancipação da humanidade, teria dificultado ou impedido, durante todo o
percurso da modernidade, o florescimento e/ou a preservação das diferenças e alteridades
culturais. Numa palavra: o projeto da modernidade, ao contrário de suas intenções
emancipatórias, teria sido, na verdade, um sistema universal de negação da liberdade, de
supressão das diferenças e perseguição das minorias, sustentado pela noção de progresso e por
uma concepção unitária e determinista da história. Na era dita pós-ideológica, pós-industrial, a
37
De acordo com Lyotard, quando o “...metadiscurso recorre explicitamente a algum grande relato,
como a dialética do espírito, a hermenêutica do sentido, a emancipação do sujeito racional ou trabalhador, o
desenvolvimento da riqueza, decide-se chamar moderna a ciência que a isto se refere para se legitimar. É
assim, por exemplo, que a regra do consenso entre o remetente e destinatário de um enunciado com valor de
verdade será tida como aceitável, se ela se inscreve na perspectiva de uma unanimidade possível de
mentalidades racionais: foi este o relato das Luzes, onde o herói do saber trabalha por um bom fim ético-
político, a paz universal. Vê-se neste caso que, legitimando o saber por um metarrelato, que implica uma
filosofia da história, somos conduzidos a questionar a validade das instituições que regem o vínculo social: elas
também devem ser legitimadas. A justiça relaciona-se assim com o grande relato, no mesmo grau que a
verdade. Simplificando ao extremo, considera-se ‘ pós-moderna a incredulidade em relação aos metarrelatos.
É, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências; mas este progresso, por sua vez, a supõe. [...] A função
narrativa perde seus atores (functeurs), os grandes heróis, os grandes perigos, os grandes périplos e o grande
objetivo. ” (LYOTARD, 2006, Introdução, xv-xvi)
história da humanidade dissolve-se, para a alegria de muitos, em diversas ‘estórias’, ou seja,
num conjunto disperso de experiências retóricas e estéticas, como afirma o filósofo italiano
Gianni Vattimo:
Dissolução, decerto, significa, antes de tudo, ruptura da unidade, e não fim puro
e simples da história. Percebeu-se que a história dos eventos políticos, militares, dos
grandes movimentos de idéias é apenas uma história entre outras. A ela pode se
contrapor, por exemplo, a história dos modos de vida, que caminha muito mais lentamente
e se aproxima quase de uma história natural dos fatos humanos. Ou então, e mais
radicalmente, a aplicação de instrumentos de análise da retórica à historiografia mostrou
que, no fundo, a imagem da história que nós temos é toda ela condicionada pelas regras do
gênero literário; em suma, que a história é muito mais uma estória ’, um relato, do que
geralmente se está disposto a admitir. ” (VATTIMO, 2002, Introdução, XIV)
Não se pode negar o caráter positivista e evolucionista da concepção de progresso e da
filosofia da história na qual se baseou grande parte do marxismo durante o século XX,
tampouco é possível dizer que o projeto socialista não carece, há muito, de um sujeito
coletivo, ou seja, que a classe trabalhadora fez o que se esperava dela. O que escapa aos
relativistas da pós-modernidade é precisamente um diagnóstico concreto dos problemas por
eles mesmos apontados. O que suprimiu as diferenças culturais e a liberdade não foi a
dialética hegeliana, muito menos o pensamento marxista. Deixando de lado a crítica da
economia política e qualquer tipo de embate direto com o sistema capitalista, os pós-
modernos não conseguem perceber que foi o próprio movimento do capital a verdadeira
grande narrativa quem produziu um mundo desprovido de alteridades substanciais e sem
liberdade (informação verbal)
38
. Igualmente grave é o fato dos pensadores pós-modernos e
seus precursores mais imediatos (Deleuze, Foucault, Derrida etc) passarem ao largo da
enorme distância que separa o marxismo ocidental do comunismo soviético. No entanto, a fim
de evitarmos a caracterização empobrecedora de Habermas, para quem os pós-estruturalistas
são simplesmente neoconservadores, é importante ressaltar as origens esquerdistas dos
grandes autores da teoria e suas relações problemáticas com o marxismo, que, em grande
medida, explicam o caráter politicamente ambíguo do pós-modernismo. Terry Eagleton nos
explica esse ponto com exatidão:
38
Curso Tópicos Especiais em Teoria Social ”, oferecido pelo professor Marildo Menegat no
Programa de Pós-graduação da ESS, UFRJ, (2008/2).
Roland Barthes era um homem de esquerda que achava o marxismo lamentavelmente
pobre quando se tratava de semiótica, a ciência dos signos. Julia Kristeva trabalhou com
linguagem, desejo e corpo, nenhum deles temas que ocupassem exatamente os primeiros
lugares na agenda marxista. Ainda assim, esses dois pensadores tinham afinidades estreitas,
pelo menos naquele momento, com a política marxista. [...] Jacques Derrida afirma hoje em
dia que sempre entendeu sua própria teoria da desconstrução como uma espécie de
marxismo radicalizado. [...] Michel Foucault, um aluno de Louis Althusser, era um herético
pós-marxista que não achava força de persuasão no marxismo quando se tratava de
questões de poder, loucura e sexualidade, mas que continuou a circular, durante algum
tempo, no ambiente marxista. O marxismo deu a Foucault um interlocutor silencioso em
vários de seus trabalhos mais famosos. [...] Nem todos os teóricos dos Estudos Culturais
tinham essa relação tensa com as idéias marxistas. Mas parece justo dizer que muito da
nova teoria dos Estudos culturais nasceu de um diálogo extraordinariamente rico com o
marxismo. Começou como tentativa de achar uma maneira de contornar o marxismo sem
propriamente abandoná-lo. Acabou fazendo exatamente isso. (EAGLETON, 2005, p. 57-
58)
A concepção positivista do progresso, a homogeneização do mundo, a integração do
proletariado e os limites da modernidade, como já dissemos, foram, desde a década de 1930,
questões centrais para a teoria crítica, que as problematizou radicalmente, e com muito
brilhantismo, recusando todas as variantes do capitalismo e o stalinismo.
39
Isso sem falarmos
nas contribuições fundamentais de Rosa Luxemburgo, Karl Korsh e do jovem Lukács, por
exemplo (informação verbal)
40
. Os resultados do abandono da crítica da economia política
podem ser a resignação, a aceitação acrítica do sistema do capital e a ilusão de que, com a
pós-modernidade, abre-se um caminho promissor de liberdade para as vozes que nunca foram
ouvidas:
39
A teorização da indústria cultural, por Adorno e Horkheimer, certamente antecipou muitas das
grandes descobertas dos radicais pós-modernos, que, de maneira empobrecida, o-dialética, denunciam a
supressão das alteridades na modernidade, festejando o seu fim como a vitória das minorias (da diferença)
sobre o universal opressor. Segundo Adorno e Horkheimer: Em face da trégua ideológica, o conformismo dos
compradores, assim como o descaramento da produção que eles mantêm em marcha, adquire boa consciência
Ele se contenta com a reprodução do que é sempre o mesmo. Essa mesmice regula também as relações com o
que passou. O que é novo na fase da cultura de massas em comparação com a fase do liberalismo avançado é a
exclusão do novo. A máquina gira sem sair do lugar. Ao mesmo tempo que determina o consumo, ela
descarta o que ainda não foi experimentado porque é um risco. [...] Nada deve ficar como era, tudo deve estar
em constante movimento. Pois só a vitória universal do ritmo da produção e reprodução mecânica é a garantia
de que nada mudará, de que nada surgirá que não se adapte. ” (ADORNO/HORKHEIMER, 1985, p. 125-126)
40
Curso Tópicos Especiais em Teoria Social ”, oferecido pelo professor Marildo Menegat no
Programa de Pós-graduação da ESS, UFRJ, (2008/2).
Não se trata somente de dar voz a interesses particulares, mas de interpretar, colocar de
forma legível para todos, perspectiva, expectativas e esperanças, exatamente daquela parte
da humanidade que até agora não teve a capacidade de se fazer ouvir. [...] Não unicamente
por dizerem coisas importantes, mas porque são outras e o ser (mas, se se quiser, Deus
ele próprio) é sempre outro, ou o outro. [...] Nietzsche nos ensina a pensar que o niilismo,
ou seja, o declínio das grandes metanarrativas não é uma lástima, mas a possibilidade de
inventar novos valores, menos repressivos, para nossa convivência. [...] Uma perspectiva
pós-moderna, que é também uma perspectiva antimetafísica, prefere liberalismo e
democracia não porque estejam fundados sobre valores humanos eternos, mas porque
representam as únicas possibilidades de dar um sentido retrospetivo à História. Como
afirma Heidegger, nós somos projetos e por isso precisamos de liberdade e de espaços
abertos. (VATTIMO, O nascimento do pós-moderno, artigo publicado, em 31/05/2008,
no jornal O Globo)
Seja como for, é fundamental sublinhar que a questão do ocaso da história na pós-
modernidade (e mesmo antes dela) não é uma construção subjetiva ou ideológica de um
marxismo ressentido, isto é, também para os liberais e os pós-modernos algo como um fim
da história parece ter ocorrido
41
. Perry Anderson nos mostra que a famosa teoria de Francis
Fukuyama, formulada em O Fim da História e o Último Homem, não postulava o fim dos
conflitos no interior das sociedades capitalistas, tampouco que as instituições liberais estavam
prontas para resolver todos os problemas sociais e criar um mundo perfeito, plenamente
estável. A intenção básica de Fukuyama era nos convencer de que, tendo o comunismo
fracassado totalmente, haviam sido suprimidas todas as alternativas à democracia liberal, quer
dizer: o melhor dos mundos possíveis estava decididamente posto. A maior comprovação
dessa tese seria a derrocada não violenta de quase todas as ditaduras pelo mundo a fora
(América Latina, Europa oriental, África), como demostração do reconhecimento, por parte
de seus antigos adversários, da superioridade dos valores liberais e democráticos
42
.
Analisando a obra de Fukuyama, Anderson escreve:
41
Nas páginas iniciais de seu belo livro sobre a história do século XX, Eric Hobsbawm chama a atenção
do leitor para o problema de que estamos tratando: A destruição do passado ou melhor, dos mecanismos
sociais que vinculavam nossa experiência pessoal à das gerações passadas — é um dos fenômenos mais
característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de
presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.
(HOBSBAWM, 2002, p. 13)
42
Ver ANDERSON, P. 1992, cap. 5
Muitos problemas sociais por solucionar déficit habitacional, falta de
empregos e de oportunidades; pobreza e criminalidade permanecem mesmo nos países
mais ricos; e diferentes soluções podem ser consideradas para eles no âmbito de permutas
entre liberdade e igualdade que um capitalismo democrático propicia. Se limites
exteriores para esse espaço, fixados pelos princípios de efetiva propriedade privada, não
existe um ótimo estável ao longo dele, e mais democracia social pode ser inculcada aqui e
ali, sem alterar os parâmetros básicos do tempo. Na verdade, o fato político central nos dias
de hoje é que não sobrou nenhum programa que afirme superar o capitalismo. A revolução
liberal ainda não está realizada em toda a parte. Mas na ausência de quaisquer
competidores, a história parece realmente ter chegado ao seu termo. ” (ANDERSON, 1992,
p. 97)
Tendo em vista esse cenário, Jameson nos mostra que, enquanto dominante cultural, o
pós-modernismo representa a falência completa do novo, o aprisionamento da humanidade,
que, não mais sabendo lidar com o tempo e a história, permanece encarcerada no reino da
necessidade e do fetiche, reproduzindo velharias e mascarando, sob a forma do pastiche e do
simulacro, o dramático processo de auto-dissolução do sistema do capital. Passivos diante de
um excesso de imagens e informações (a imagem é a forma última da mercadoria, segundo
Debord
43
), não somos capazes de representar nossas experiências mais significativas e
avaliar criticamente o que nos é ofertado pela indústria cultural, pelos discursos políticos e
pela fala dos economistas, quer dizer: o presente tornou-se, para nós, um tempo abstrato,
cristalizado, uma realidade espacial desconhecida, simplesmente contemplada, sem
movimentos exteriores ao capital, apesar do agravamento das mazelas sociais, do
empobrecimento cada vez mais intenso da existência humana e da real possibilidade de
extinção do meio natural. O apego desesperado à modernidade por parte da esquerda —,
como se ela fosse uma espécie de garantia última de que o socialismo não foi derrotado
definitivamente, sustenta Jameson, é parte desse problema. A defesa de um processo que,
segundo as próprias tendências identificadas por Marx, teria seu fim com a chegada do
capitalismo aos seus limites lógicos e históricos (ainda que os resultados políticos tenham
sido desfavoráveis do ponto de vista da revolução) é contraproducente, ahistórica e somente
fortalece o jogo cínico dos apologistas do capital. Esse medo de enfrentar o presente nos
43
Em A Sociedade do Espetáculo, Guy Debord escreve: O espetáculo é o capital em tal grau de
acumulação que se torna imagem. ” (DEBORD, 2007, Tese 34, p. 25)
impede de diagnosticar corretamente os problemas atuais, alimentando, assim, a atitude
contemplativa diante do intolerável. De acordo com Jameson:
“...‘ modernidade é uma palavra suspeita nesse contexto, e está sendo usada precisamente
para acobertar a ausência de qualquer esperança, ou telos, social coletiva depois do
processo de descrédito do socialismo. Isso porque o capitalismo em si mesmo não tem
nenhum objetivo social. Sair usando a palavra modernidade’ a torto e a direito, em vez de
capitalismo, permite que políticos, governos e cientistas políticos finjam que o capitalismo
tem um objetivo social e que disfarcem o fato terrível de que não tem nenhum.
(JAMESON, CD, p. 33)
Longe de expressar o advento de novas formas de sociedade (sem classes, pós-
industriais?), o pós-modernismo constitui uma mutação de largo alcance no interior da ordem
burguesa, ou seja, ele é a manifestação sistêmica da impressionante dilatação da esfera da
cultura no capitalismo tardio. Nesse terceiro estágio, quando o regime do capital se propagou
por todo o globo terrestre, não é possível localizarmos regiões ou áreas significativas nos
quais a lógica da produção mercantil não governa inteiramente a vida social. A natureza, a
chamada esfera pública e até mesmo o inconsciente — moldado e remodelado à exaustão pela
publicidade estão, hoje, submetidos às necessidades destrutivas e fetichistas do capital. No
atual contexto, a única possibilidade de evitarmos uma concepção da história como diferença
pura ou conjunto de pequenas narrativas aleatórias, sustenta Jameson, é tentarmos mostrar
que, enquanto lógica cultural dominante, o pós-modernismo constitui, ele mesmo, um
sistema, que pode ser periodizado e compreendido em suas raízes materiais.
A perda da historicidade no pós-moderno tem dois sentidos básicos: a crescente
incapacidade de elaborarmos o passado e o fato de não mais percebermos o presente como
uma realidade historicamente construída, isto é, como produto da ação humana, e, portanto,
como algo que pode ser radicalmente modificado por nós mesmos. Partindo do descrédito do
socialismo, Jameson explica as origens do ocaso da história e algumas de suas mais
importantes conseqüências imediatas:
Seja ela causa ou efeito, essa deslegitimação da própria linguagem do socialismo e
conceitualidade do socialismo (e sua substituição por uma retórica de mercado
repugnantemente complacente) teve um papel fundamental no atual fim da história. A
experiência da derrota, que inclui todos esses aspectos mas também os transcende, tem uma
relação ainda maior com o sentimento de impotência quase universal que se estendeu a uma
enorme série de estratos sociais em todo o mundo a partir do final da década de 1960, uma
profunda convicção quanto à impossibilidade fundamental de qualquer forma de mudança
sistêmica real em nossas sociedades. Isso se expressa freqüentemente pela incapacidade de
perceber a existência de agentes de mudança, de qualquer tipo que sejam; e toma a forma
de um sentido de permanência maciça e de imutabilidade não humana ou pós-humana de
nossas instituições incomensuravelmente complexas, apesar de suas intermináveis
metamorfoses, que são imaginadas com freqüência em termos tecnológicos. O resultado é
uma crença instintiva na futilidade de todas as formas de ação ou práxis, e um
desencorajamento milenar que pode explicar a adesão apaixonada a uma variedade de
substitutos e soluções alternativas: mais claramente ao fundamentalismo religioso e ao
nacionalismo... ” (JAMESON, MRE, p. 72)
O fracasso dos grandes projetos coletivos abriu caminho para a proliferação de iniciativas
locais e movimentos particularistas as chamadas políticas de identidade —, que, em geral,
impulsionadas pela celebração festiva do pluralismo e do direito à diferença, revelam,
implicitamente em suas ações, sua impotência e a aceitação do mundo burguês como
horizonte insuperável da humanidade. O capital oferece migalhas de liberdade àqueles que,
sabidamente, não o vêem como adversário
44
. A grande ironia é que, justamente quando a
direita tem o globo terrestre à sua disposição, a esquerda pós-moderna limita-se ao local, a um
pragmatismo inócuo.
Juntamente com o arcaico e os resíduos pré-capitalistas (o campesinato, os pequenos
burgueses, a natureza), que tiveram uma sobrevida na modernidade, a cultura pós-moderna
dissolveu o próprio passado, a historicidade e a memória coletiva. No capitalismo pós-
moderno, as pretensas novidades e rupturas não têm mais nenhum conteúdo transcendente ou
utópico claro (pouco importa o que acontece depois desses eventos), elas são meros
simulacros, ou seja, artefatos produzidos e reproduzidos a partir de uma cópia, que, em sua
44
O aparecimento dos chamados novos movimentos sociais é um acontecimento de inegável
importância, segundo Jameson, mas, pelo menos em sua maioria, creio eu, eles não têm se colocado como
opositores radicais do capital. A questão parece ser exatamente a posição que esses grupos assumirão, a médio
prazo, diante da ordem burguesa. Os limites atuais desse tipo de política são bem pontuados por Zizek: Essa
floração perpetuamente em irrupção de grupos e subgrupos nas sua identidades híbridas, fluidas e móveis,
insistindo cada um deles em afirmar o seu modo específico de vida e/ou de cultura, esta incessante
diversificação não é possível e pensável a não ser apoiada na base da globalização capitalista; é a maneira
própria através da qual a globalização capitalista afecta nosso sentimento de pertença étnica e outras formas
de pertença comunitária: o único laço que liga estes grupos múltiplos é o laço do próprio Capital, sempre
disposto a satisfazer as reclamações específicas de cada grupo e subgrupo (turismo gay, música hispânica...). ”)
(ZIZEK, 2006, p. 61)
imediatez e superficialidade, reforçam o imobilismo histórico do presente. A modernidade
caminhou sempre sob o domínio do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo,
no qual o novo e o moderno ainda se deparavam com o velho, o arcaico, permitindo, assim, a
coexistência de temporalidades nitidamente distintas durante todo esse período a
percepção de alteridades sistêmicas e, é claro, a genuína experiência do novo. O desfecho
do processo de modernização produziu um verdadeiro enclausuramento espaço-temporal,
uma cultura achatada e homogênea, que, como afirma Jameson, é o resultado lógico e
necessário da expansão planetária da forma mercadoria:
A nossa condição é mais homogeneamente modernizada, não estamos mais
sobrecarregados pelos estorvos das não-simultaneidades e não-sincronicidades. Tudo
chegou à mesma hora no grande relógio do desenvolvimento ou da racionalização (ou pelo
menos foi o que se deu segundo a perspectiva do ‘Ocidente’). Esse é o sentido em que
podemos dizer que modernismo caracteriza-se por uma modernização incompleta, ou que o
pós-modernismo é mais moderno que o próprio modernismo. ” (JAMESON, PLC, p. 314)
O pós-modernismo é produto do virtual encerramento da modernização, e, por esta razão, ele
assinala, na perspectiva de Jameson, o fim da própria modernidade. Esta não terminou porque
desapareceu ou deixou de existir, mas, sim, porque foi inteiramente realizada enquanto
processo. A modernidade caminhava por meio das rodas da modernização (industrialização).
Pensando em termos de base econômica e superestrutura, pode-se dizer que o modernismo é a
forma que a segunda assumiu enquanto expressão das contradições da primeira, isto é, da
modernização. A modernidade é algo como uma síntese desse jogo dialético, o lugar das
mediações, a partir do qual procuramos compreender nossas ações, projetos, sentimentos, e
dar algum sentido ao processo histórico. Se a modernidade está para nós perdida, podemos
sustentar que, com ela, perdemos também o espaço da avaliação ideológica, cultural, o espaço
da crítica e da auto-compreensão. Em outras palavras: no pós-moderno, as mediações
incluindo-se aí a própria história — foram suprimidas.
Uma sociedade somente é capaz de refletir sobre si mesma quando pode se comparar a
outras, do passado e do presente, principalmente quando, de seu interior para fora, ela torna-se
questionável para seus próprios membros, produzindo antagonismos e contradições que, de
formas diferentes, apontam para além do existente. A modernidade, ainda que de maneira
limitada e problemática, possibilitou um avanço desse movimento crítico, impulsionado, sem
dúvida, pelo sentido transcendente e questionador constitutivo da própria cultura
modernista
45
. O fim da modernização gerou uma cultura que, de ponta a cabeça, parece estar
em harmonia com o capital; o hiperespaço pós-moderno, global e saturado de imagens,
suprimiu a temporalidade e, junto com ela, a capacidade de crítica, ou seja, passado, presente
e futuro dissolvem-se numa realidade instantânea, irrepresentável, inquestionável, que se
movimenta, exclusivamente, ao sabor de seu sujeito automático: o capital. Nas palavras de
Kurz:
Justamente em seu fim, essa sociedade ficou inquietantemente idêntica a si mesma. As
gerações pós-modernas não compreendem o conceito de reflexão, que em poucos anos
passou a lhes soar tão alheio quanto o culto aos mortos do Egito. Elas são o que são e mais
nada. São perfeitamente idênticas a seus atos banais, quanto mais absurdos forem esses
atos. A crise da realidade é recalcada pela pós-modernidade, uma vez que ela tenta
substituir a crítica social por uma simulada reciclagem da consciência pré-moderna: a
filosofia desarmada pode tornar com toda a candura aos paradigmas da ética e da arte de
viver. Mas ela esquece que os pressupostos sociais desse pensamento deixaram de existir.
Em seu estado terminal, o sistema moderno torna-se, pois, a primeira sociedade totalmente
sem reflexão da história. Junto com a capacidade de auto-reflexão, ela perde também uma
condição básica da existência humana. Uma sociedade que somente funciona não é mais
humana e acaba por não ser mais capaz de funcionar. ” (KURZ, 2004, 162-163)
O imobilismo histórico do pós-moderno pode ser compreendido se, de maneira
razoavelmente segura, apreendermos, no interior dessa temporalidade vazia e repetitiva, o
atual significado do novo e da mudança. Segundo Jameson, o período moderno somente pôde
nos propiciar o verdadeiro sentimento ou experiência do novo em função de seu caráter
desigual, hibrido, que colocava o velho e o arcaico diante das novidades da cultura e da
tecnologia. Assim, explica Jameson:
Na Paris de Apollinaire coexistiam tanto monumentos medievais e cortiços apertados da
época da Renascença quanto carros, aviões, telefones, eletricidade, a última moda em
roupas e na cultura. Conhecem-se e experimentam-se estes últimos como novos e modernos
45
De acordo com Kurz, a reflexão crítica moderna, presa à ideologia do progresso e à lógica do
desenvolvimento, não foi capaz de desvelar as bases fetichistas da modernidade, mais precisamente, a
metafísica do dinheiro. Marx, afirma o pensador alemão, elaborou os princípios dessa crítica verdadeiramente
radical, mas eles acabaram sendo esquecidos pelo próprio marxismo. Ver KURZ, Robert. Com todo vapor ao
colapso, p. 145-153, ou ainda, Os Últimos Combates, p. 23-30.
porque o velho e o tradicional ainda estão presentes. Uma maneira de se narrar a história da
transição do moderno para o s-moderno é mostrar como, a longo prazo, o moderno
triunfa sobre e aniquila completamente o velho: a natureza é eliminada juntamente com o
velho campo da agricultura tradicional; até os monumentos históricos sobreviventes, agora
limpos, tornam-se simulacros brilhantes do passado, e não sua sobrevivência. Agora tudo é
novo, mas, pela mesma via, a própria categoria do novo perde seu sentido e torna-se agora
algo como um remanescente modernista. ” (JAMESON, PLC, p. 315)
A busca incessante pelo novo, aliás, é uma daquelas características centrais da modernidade
que o pós-moderno tratou de intensificar, tão-somente como tragédia ou farsa
alimentando sentimentos de nostalgia e criando imagens de um futuro, desde já, planejado
pelo capital. Se as novidades do pós-modernismo são fundamentalmente simulacros
(mercadorias), como entender a afirmação de Jameson segundo a qual o nosso presente
esse mundo sem tempo e sem história — se deixa ver como um período de mudança
perpétua?
O atual estágio do capitalismo evidencia, mais nitidamente do que suas fases
anteriores, que, enquanto modo de produção, este tipo de sociedade se legitima e se perpetua
proliferando diferenciaçõe, que podem inegavelmente, em alguns momentos, representar
mudanças e transformações significativas. Impulsionadas principalmente pelo avanço
tecnológico, essas mudanças, no entanto, não vão de encontro à ordem, muito pelo
contrário
46
! O capitalismo tardio se deixa compreender como uma forma social cuja lógica
interna exige a produção sistêmica de diferenças e novidades que, por meio do consumismo,
garante a aparente eficácia e eternidade do mundo burguês. Assim, a maioria das pessoas
identifica suas próprias necessidades com as necessidades fetichistas do sistema. Uma
interpretação dialética de alguns dilemas da globalização pode nos ajudar a entender melhor
essa lógica. Se tomarmos isoladamente as inúmeras culturas locais e seus conteúdos,
provavelmente não teremos como deixar de celebrar o pós-modernismo, ou seja, exaltar as
diferenças, as alteridades, enfim, a vitória do pluralismo sobre qualquer tipo opressão
universalista, principalmente se levarmos em conta o convívio, geralmente amistoso, na
46
Cabe sublinhar que, para Jameson, a tecnologia não constitui de forma alguma a determinação
fundamental de nossas sociedades, sua importância está muito mais em sua capacidade de nos propiciar,
mesmo que de maneira deturpada, uma figuração do capitalismo globalizado. Diz ele: “A tecnologia da
sociedade contemporânea é, portanto, hipnótica e fascinante, não tanto em si mesma, mas porque nos oferece
uma forma de representar nosso entendimento de uma rede de poder e de controle que é ainda mais difícil de
ser compreendida por nossas mentes e por nossa imaginação, a saber, toda a nova rede global descentrada do
terceiro estágio do capital. ” (JAMESON, PLC, p. 64)
esfera pública, de grupos étnicos distintos, homossexuais, religiosos de todo tipo e
movimentos de gênero. Esse fato, em si, pode ser visto como um ganho, como uma conquista
democrática por parte daqueles que foram, durante um longo tempo, silenciados ou
violentamente perseguidos. Mas, como sabemos, a globalização não é apenas um fenômeno
cultural, trata-se, em primeiríssimo lugar, de um acontecimento econômico. Do ponto de vista
da produção material, a heterogeneidade perde força e o próprio conceito de diferença torna-
se obscuro, suspeito. Radicalizando essa segunda possibilidade, vemos que a economia (o
valor de troca universalizado) suprime as alteridades substantivas e põe em cena a identidade,
que se faz presente, por exemplo, na integração forçada e avassaladora dos antigos mercados
nacionais, relativamente autônomos, numa única esfera global, ou seja, no mercado mundial.
não é possível ficar fora desse sistema, desligar-se dele, e o enfraquecimento dos Estados
nacionais não é o menor dos sintomas desse movimento irresistível. Se na esfera da cultura
parece reinar a diversidade, a diferença, o que parece brotar do solo da economia é justamente
o oposto, ou seja, um imenso processo de homogeneização, baseado na produção sistemática
de identidades, a repetição exaustiva do “ sempre igual ”. E se, como insiste Jameson,
tratarmos o cultural e o econômico como uma única esfera, como dois momentos de um
mesmo processo? O que o crítico estadunidense nos mostra é que, longe de constituir um par
incompatível, o brilho e o êxtase libertário do pós-modernismo estão em perfeita harmonia
com o tom sombrio e opressor da ordem do capital, em outras palavras, o mercado comporta,
em sua lógica e estrutura, conteúdos distintos, aparentemente excludentes, que compõe, na
perspectiva de uma dialética interrompida ”, um tipo de antinomia insolúvel. Assim sendo,
Jameson afirma que duas posições políticas podem resultar desse cenário paradoxal:
“ Tendo colocado essas duas possibilidades estruturais iniciais, podemos projetar seus eixos
uns sobre os outros. Agora, em um segundo momento, a visão desastrosa da identidade
pode ser transferida para o domínio do cultural: e o que se verá, à maneira da desalentada
da escola de Frankfurt, é a estandardização ou americanização da cultura mundial, a
destruição das diferenças locais, a massificação de todos os povos da terra. Mas você tem
toda a liberdade de fazer o oposto e transferir a diferença alegre e festiva e as
heterogeneidades múltiplas da primeira dimensão, a do cultural, para a esfera econômica:
aí, é claro, pululam os retóricos do mercado livre que tentam nos convencer, com acentos
febris, das benesses e das possibilidades excitantes do novo mercado livre para todo o
mundo: o aumento da produtividade a que levarão os mercados abertos, a satisfação
transcendental de constatar que os seres humanos finalmente começaram a perceber que a
troca, o mercado e o capitalismo são as mais fundamentais de suas possibilidades enquanto
seres humanos, a mais segura das fontes da liberdade. ” (CD, 2001, p. 87)
É desta maneira, sob o domínio absoluto da lei do valor, que as diferenças e o movimento
atordoante da cultura s-moderna mostram sua verdade, quer dizer, aqui, as mudanças e
alteridades são, em geral, tão relevantes quanto a distância que separa dois modelos de
automóvel. Numa palavra: o dinamismo é constitutivo da inércia estrutural, ou seja, estamos
falando de mudanças puramente aparentes ou quantitativas, nunca de um movimento
transformador que poderá colocar em xeque as estruturas fetichistas do capital. Em seu
repúdio ao conceito de totalidade, os pós-estruturalistas colocam em primeiro plano a
diferença, o fluxo total e a heterogeneidade, mas não percebem que a valorização dessas
categorias é possível a partir da existência de ideologias universalistas e de uma realidade
homogênea posta, as quais eles devem rejeitar e se opor. A diferença se destaca como o
que, pelo menos aparentemente, escapa do universal instituído, ou seja, o próprio conceito
faz sentido em referência a um sistema totalizante.
O pós-modernismo, sugere Jameson, deve ser entendido como uma época mais
propícia às antinomias do que às contradições propriamente ditas
47
. O que ocorre, portanto, é
que, na lógica cultural do capitalismo tardio, os pares antinômicos se mantém unidos, um
termo não exclui o outro, como seria de se esperar. Sem causar danos ou qualquer
perplexidade, a diferença se transforma em identidade, a homogeneidade se dissolve no
heterogêneo, a identidade anula a diferença, e assim por diante. Enquanto modo de produção,
o capitalismo globalizado gerou uma temporalidade específica (é o tempo da mídia, da moda,
das vitrines), na qual a mudança perpétua acaba se igualando à estase absoluta. Isto é, esse
paradoxo temporal que constitui o esmaecimento do próprio tempo e da historicidade
expressa a dinâmica inerente à sociedade burguesa em seu terceiro estágio, cujo resultado
final, em que pese a incrível maleabilidade que ela confere ao real, é um sistema que
percebemos como incontrolável, imutável
48
. Neste contexto, aparentemente inconcebível, o
47
“...organizarei adequadamente a minha sintomatologia e passarei a operar como se a antinomia
fosse o sintoma de uma contradição: isso pode pressupor um modelo ou imagem multidimensional, assim
como a noção de que a nossa era esta do positivismo tecnológico e do nominalismo experiencial é uni ou
bidimensional tanto por opção quanto por desenvolvimento histórico. ” (JAMESON, ST, p. 20)
48
Robert Kurz acrescenta argumentos muito interessantes nesse sentido, que parecem corroborar as
instigantes teses de Jameson acerca da dinâmica estática do capitalismo pós-moderno e sua relação com o
ocaso da história: “ Que outro enunciado, senão a ‘ espantosa rapidez do esquecimento ’, caracterizaria melhor
as conjunturas capitalistas, que não se caracterizam mais como evolução humana, sendo antes um processo de
espaço se sobrepõe ao próprio tempo, o que significa dizer, em outras palavras, que, no pós-
moderno, o tempo de alguma maneira foi transformado em espaço. O hiperespaço pós-
moderno produziu em nossos aparelhos sensoriais um verdadeiro curto-circuito, uma
desorientação radical que nos impede de organizar e elaborar a temporalidade, ou seja, houve
uma profunda transformação no objeto (espaço) que não teve, até o momento, uma mutação
correspondente no que se refere a subjetividade (tempo). Nossos hábitos perceptivos foram
formados no espaço do alto modernismo, sublinha Jameson. Assim, explica o crítico norte-
americano:
“...essa última mutação do espaço o hiperespeço pós-modernista finalmente
conseguiu ultrapassar a capacidade do corpo humano de se localizar, de organizar
perceptivamente o espaço circundante e mapear cognitivamente sua posição em um mundo
exterior mapeável. Pode-se sugerir agora que esse ponto de disjunção alarmante entre o
corpo e o ambiente construído que está para o choque inicial do modernismo assim
como a velocidade da nave espacial está para o automóvel — seja visto como um símbolo e
um análogo daquele dilema ainda mais agudo que é o da incapacidade de nossas mentes,
pelo menos no presente, de mapear a enorme rede global e multinacional de comunicação
descentrada em que nos encontramos presos como sujeitos individuais. ” (JAMESON,
PLC, p. 70-71)
Nesse sentido, a própria subjetividade — e com ela o tempo — é violentamente
cancelada pela espacialização da vida social (pelo objetivo)
49
. A tão falada morte do sujeito
encontra aqui uma explicação histórica e muito mais consistente do que aquelas oferecidas
pelo pós-estruturalismo. A teorização de Jameson nos mostra, de maneira convincente, que a
fragmentação do sujeito é um processo análogo e inseparável da perda da historicidade, e que
a conseqüência necessária desse descompasso radical é a nossa incapacidade de agir
coletivamente, de problematizar o presente. Nossas biografias, enquanto indivíduos, se
conteúdos diferentes, cujo combustível é o dinheiro? E facilidade de substituição ’, que descrição seria mais
precisa da personalidade rebaixada a objeto que o ser humano universalmente cambiável? E o que poderia ser
mais ávido de mobilidade do que o próprio capitalismo, o qual, na condição de sistema econômico tipo bola
de neve, de fato consegue subsistir enquanto se mantiver em movimento e puser em movimento tudo ao
seu redor ‘? [...] E o que, finalmente, poderia representar uma falta de continuidade mais radical do que o
mercado universal sem história, que realiza seu movimento sempre idêntico numa espécie de nirvana
atemporal? (KURZ, 2004, p. 179)
49
Zizek sublinha com muita propriedade que a proliferação de novos sujeitos na pós-modernidade
encobre esse assombroso processo: O resultado último da subjetivação global não é o desaparecimento da
realidade objetiva ’, mas o desaparecimento de nossa própria subjetividade, que se transforma num capricho
fútil, enquanto a realidade social continua seu curso. ” (ZIZEK, 2003, p. 105)
esvanecem na perda das experiências das gerações anteriores, uma vez que até mesmo a morte
parece incapaz de produzir qualquer corte significativo no presente e nos propiciar uma visão
coerente dos possíveis encadeamentos entre presente, passado e futuro, ou seja, a expressão
mais concreta e radical da finitutude se dilui na arbitrariedade do presente perpétuo. A
sensação preponderante é a de um incontrolável esvaziamento da experiência, de uma perda
brutal, assinala Jameson. Aniquilado pelas determinações espaciais, o tempo, enquanto
fluxo total ”, se iguala ao vazio, ao nada. É interessante notarmos aqui a ambigüidade do pós-
moderno, que em seu louvor da diferença anula as tradicionais distinções da modernidade,
transformando seu ímpeto libertário em homogeneidade. Os pares dicotômicos do moderno se
configuram agora como antinomias insolúveis (identidade/diferença,
homogeneidade/heterogeneidade, espaço/tempo, sujeito/objeto), que, na ótica de Jameson,
devem ser compreendidas como sintomas de contradições materiais. Assim sendo, escreve
nosso autor:
A persistência do Mesmo na Diferença absoluta — a mesma rua com edifícios diferentes,
a mesma cultura sob novos disfarces desacredita a mudança, pois daqui para frente a
única mudança concebível consistiria em pôr fim à própria mudança. Aqui, porém, a
antinomia realmente resulta no bloqueio ou paralisia do pensamento, visto que a
impossibilidade de pensar outro sistema, a não ser por meio do cancelamento deste, termina
por desacreditar a própria imaginação utópica que é fantasiada [...] como a perda de tudo o
que conhecemos experiencialmente, dos nossos investimentos libidinais aos nossos hábitos
psíquicos e, em particular, a excitação artificial do consumo. ” (JAMESON, ST, p. 33)
Com base nas grandes corporações da comunicação, que transmitem e reproduzem,
mundo à fora, a publicidade, os programas de televisão e os filmes americanos, por exemplo,
os produtos da cultura pós-moderna funcionam, ao mesmo tempo, como fatores de base e
superestrutura, quer dizer, são produtos econômicos e culturais (produção e distribuição, para
falarmos das etapas do processo econômico). Neles configuram-se o improvável, as fantasias
e mudanças mais extravagantes, anseios e desejos são alimentados, imagens de uma vida
melhor são vendidas das mais variadas formas, tudo parece possível, até mesmo o extermínio
completo da vida na Terra exceto o fim do capitalismo, é claro. Nesse frenesi consumista,
a exaltação da liberdade das pessoas se confunde com a defesa da propriedade intelectual
(copyrights), nos fazendo desconfiar que a defesa apaixonada da livre circulação de idéias e a
valorização das culturas locais tornou-se relevante tão-somente porque, enquanto propriedade
privada, os produtos culturais devem necessariamente gerar lucro. Aqui a disputa por
mercados também segue a lógica do darwinismo social, ou seja, os mais fortes e eficientes
devem aniquilar os menos capacitados. O domínio incontestável do cinema norte-americano
deixa um espaço cada vez mais restrito às produções de outros países, até mesmo as dos
países centrais da Europa, em que pesem os subsídios estatais. A vitória de Hollywood nesse
campo não é apenas econômica, ela traz dividendos políticos importantíssimos. A
americanização do cinema mundial e é isso o que nos interessa ressaltar suprimiu,
quase inteiramente, a produção dos filmes experimentais e independentes, principalmente os
do terceiro mundo, que, de alguma forma, mantinham vivo o protesto modernista contra a
mercantilização da vida, alimentando o desejo de se construir modelos alternativos de
sociedade
50
. Numa formulação muito inspirada, Jameson explica como o triunfo do cinema, e
da cultura norte-americana como um todo, nos ajuda a entender a passagem da modernidade à
pós-modernidade, isto é, o surgimento de um mundo homogêneo, fechado, no qual o
desaparecimento da política (o fim da ideologia) expressa, também, a suspensão da
historicidade:
“ Trata-se, ainda, em um outro sentido, da morte relativamente final do moderno, na
medida em que os cineastas independentes em todo o mundo eram guiados por um certo
modernismo, mas é também a morte do político e uma alegoria do fim da possibilidade de
se imaginar alternativas sociais radicalmente diferentes da ordem vigente. Isso porque o
cinema político nos anos 60 e 70 ainda corroborava a existência dessa possibilidade (como
o faziam, de forma mais complexa, todo o modernismo) ao atestar que a descoberta ou
invenção de uma nova forma era equivalente à descoberta ou invenção de relações sociais e
de formas de viver no mundo radicalmente novas. São estas possibilidades
cinematográficas, formais, políticas e sociais que desapareceram na medida em que se
consolidou a hegemonia mais definitiva dos Estados Unidos. ” (CD, 2001, p. 53)
50
Um sem número de cineastas importantes da atualidade, deixando-se de lado qualquer juízo sobre
suas obras, já trabalham com produtores, elencos ou, pelo menos, distribuidores dos países centrais, o que nos
faz pensar que os filmes por eles produzidos dificilmente podem ser considerados nacionais; mais ainda, que
essa tendência está, rapidamente, se transformando em norma (necessidade?). Ensaio sobre a Cegueira
(Blindness, 2008), de Fernando Meirelles, uma co-produção Brasil/Japão/Canadá, ilustra perfeitamente o que
estamos tentando explicar. O mesmo Meirelles dirigiu O Jardineiro fiel (The Constant Gardener), produção
norte-americana de 2005. Poderíamos citar vários diretores mexicanos, orientais e europeus que, hoje,
trabalham em Hollywood. O cineasta mexicano Arturo Ripstein, diretor dos filmes A Rainha da Noite e
Vermelho Sangue, comenta: Existe uma nova geração, mas ela é composta de poucos cineastas. Diretores
como Alfonso Cuarón e Alejandro Gonzáles Iñárritu fazem, na verdade, cinema americano. Não se trata de ser
bom ou ruim. Apenas não é cinema mexicano. ” (Publicado em O Globo, dia 7/10/2008)
O que resulta desse quadro é que não podemos mais considerar seriamente qualquer tipo de
continuação do moderno, ou seja, algo como a construção de modernidades sul-americanas ou
orientais, por exemplo, alternativas e/ou autônomas em relação ao modelo anglo-saxão
51
. A
mais padronizada e homogênea sociedade de todos os tempos se fecha em si mesma,
globalmente, ainda que em seu interior apareça alegremente um conjunto impressionante de
diversidades e um grau de heterogeneidade nunca antes visto. No moderno, tudo o que nas
antigas colônias não podia ser conhecido ou mapeado cognitivamente, pode agora, na pós-
modernidade, difundir-se pelo globo por meio da informação instantânea, quer dizer, a
distância que antes separava as colônias das metrópoles foi suprimida e a interdependência
econômica cada vez mais cancela os espaços que existiam entre essas realidades outrora
diferentes. Essa visibilidade do outro, essa nova transparência, nada mais é, no entanto, do
que o outro lado da americanização do mundo (confinamento ideológico/cultural). A história
termina na realização mundial do capital, na regressão da humanidade à consciência da
natureza. Aqueles que isolam a religião e outros elementos culturais, postulando uma possível
modernização da periferia, somente podem fazê-lo esvaziando idealisticamente o projeto da
modernidade. Mas como afirma Jameson:
“...isso seria passar por cima de outro significado fundamental da modernidade, que é o
capitalismo mundial. A padronização da projetada pela globalização capitalista, neste
terceiro ou mais recente estágio do sistema, lança uma dúvida considerável sobre todas
essas piedosas esperanças por uma variedade cultural, num mundo futuro colonizado por
uma ordem universal do mercado. ” (JAMESON, MS, p. 22)
Como sublinhamos, a perda da historicidade no pós-moderno expressa a descrença
de que as ações coletivas podem transformar radicalmente a vida social, mais ainda, ela nos
revela a aceitação passiva da ordem capitalista como destino final e insuperável da espécie
51
A guerra do governo Bush contra o terrorismo reascendeu a luta dos civilizados (modernos) contra o
barbarismo do terceiro mundo e, com ela, a insuperável necessidade de democratização e modernização dos
países periféricos. Em sua brilhante análise do 11 de setembro, Zizek desmonta essa falsa dicotomia: Apesar
de sua eficácia retórica, essa doxa esconde o paradoxo contrário, muito mais perturbador: os fundamentalistas
maometanos não são verdadeiramente fundamentalistas, são modernistas ’, um produto e um fenômeno
do capitalismo global moderno representam a forma como o mundo árabe luta para se ajustar ao
capitalismo global. Devemos portanto rejeitar também a sapiência liberal padrão segundo a qual o Islã ainda
precisa realizar a revolução protestante que o abriria para a modernidade: essa revolução protestante foi
realizada dois séculos na forma do movimento Wahhabi que surgiu no que é hoje a Arábia Saudita. Seu
princípio básico, o exercício do ijtihad (o direito de reinterpretar o Islã com base na mudança das condições), é
o correspondente exato da leitura de Lutero da Bíblia. ” (ZIZEK, 2003, p. 69)
humana. Na perspetiva do marxismo, essa questão diz respeito, evidentemente, a pergunta
sobre a revolução (considerando-se que ela ainda é possível), isto é: quem pode vir a ser o
sujeito coletivo da transformação social? A desmoralizada classe trabalhadora? Os chamados
movimentos sociais? Os excluídos? No caso de Jameson, essa pergunta pode ser formulada da
seguinte maneira: levando-se em conta as transformações do pós-modernismo, a partir de que
bases um grupo ou classe social poderá conduzir o desejo chamado utopia às últimas
conseqüências, ou seja, lutar em favor da construção de uma sociedade sem classes, de um
mundo radicalmente diferente do sistema produtor de mercadorias?
2- Grupos, movimentos sociais e classe: a renovação da práxis
Entre os poucos diretores que, mesmo depois do fim do socialismo real ”,
declaradamente continuam fazendo cinema político de esquerda, o britânico Ken Loach
merece um lugar de destaque. Pode-se dizer que, na contramão da cultura pós-moderna, seus
filmes procuram recuperar a história dos vencidos e o cotidiano da maioria que
invariavelmente perde: seja tratando de problemas do presente, seja trazendo ao público fatos
e acontecimentos da longa luta pelo socialismo que, sob as botas do stalinismo, foram
esquecidos. Em Terra e Liberdade (Land and Freedom, 1995), mais do que contar a história
da Guerra Civil Espanhola do ponto de vista da esquerda não-stalinista, Loach nos mostra a
falência dos partidos e organizações tradicionais da classe trabalhadora, ressaltando um dos
principais efeitos da derrota histórica, a saber: a perda da memória coletiva das lutas sociais
do século XX. No começo do filme, uma jovem inglesa se depara com a morte iminente de seu
avô, que, enquanto militante comunista, lutara em defesa da república durante a guerra civil
na Espanha. É somente a partir do falecimento do avô que a jovem, ao arrumar os objetos
deixados por ele, começa a descobrir, através da leitura de velhas cartas, o passado de
militância deste seu engajamento na luta pelo socialismo e sua posterior decepção com
esquerda oficial. Ao contrário de seu avô comunista, a jovem dos anos 90 não pertence a
partido político algum, não participa de sindicatos e tampouco parece ter algum conhecimento
das idéias socialistas. Esta mesma jovem, entretanto, surpreende-se e se entusiasma com o que
a respeito da trajetória e das idéias defendidas por seu avô. No final do filme, na cena do
enterro do falecido militante, a neta se coloca como herdeira da luta revolucionária, como
alguém que aderiu ao socialismo.
No caso da jovem inglesa, no entanto, nascida e criada no pós-moderno, o surgimento
do interesse pela política esbarra no vazio da pós-política democrática (ZIZEK), em outras
palavras, não existe um movimento internacional no qual se possa ingressar, não há um
partido ou organização política de oposição capaz de atrair os insatisfeitos e semear idéias
revolucionárias, ou seja: o que existe concretamente é a experiência da derrota e a dolorosa
constatação de que a revolução socialista perdeu sua atualidade. A transformação do mundo
deixou de ser uma questão, não se discute o que pode ou deve ser uma sociedade sem
classes e a própria idéia de revolução parece anacrônica. As experiências e memórias das lutas
políticas das gerações passadas foram apagadas. O engajamento da nova militante não se dá,
portanto, por meio de qualquer experiência ou movimento coletivo, ele ocorre quase por
acaso, por conta de uma decisão individual, isolada. Esta é a questão que nos interessa, isto é,
a necessidade de reconhecermos a falência do movimento dos trabalhadores, a ausência de um
sujeito coletivo disposto a enfrentar o sistema do capital e transformar a insatisfação e o
desejo de felicidade em práxis revolucionária. A barbárie social está à nossa frente,
indisfarçável, a natureza caminha a passos largos em direção à extinção e o desenvolvimento
das forças produtivas o progresso gera, hoje, antes de mais nada, destruição,
desumanização e crises insolúveis (cada vez mais graves). Mais do que nunca precisamos
mudar o mundo, mas a impotência e a passividade generalizada diante desse quadro
desalentador nos fazem pensar que o pior se aproxima impiedosamente de todos nós. Dito
isto, podemos agora tentar entender e explicar o que Jameson tem a nos dizer sobre a
subjetividade pós-moderna, sobre a possibilidade de nos tornarmos novamente aptos a agir
coletivamente e, assim, “ explodir o contínuo da história ”, como dizia Benjamin.
A espacialização diminui drasticamente a possibilidade de pensarmos o tempo e a
história, como vimos, mas, por outro lado, esse mesmo processo abre perspectivas
inexploradas e libera um terreno inteiramente novo para o investimento libidinal de caráter
utópico, ou seja, para formas protopolíticas de satisfação dos desejos (para uma nova práxis).
Essa tese nos permite perceber que o diagnóstico de Jameson do nosso tempo, ainda que
pouco otimista (seria possível outra postura?), jamais se mostra unilateral ou fechado. Por
mais pobre que ela seja, a cultura pós-moderna não constitui um todo intransponível e
destituído de contradições, quer dizer, ela guarda em todos os seus produtos um lugar para os
impulsos utópicos, para o aparecimento de uma oposição ao capital, como explica Jameson:
Quanto às exposições sistêmicas do s-moderno (incluindo a minha), quando elas têm
sucesso, fracassam. E quanto mais formos capazes de ressaltar e isolar as características
antipolíticas da dominante cultural mais recente por exemplo, a perda da historicidade
mais ficamos sem saída e mais fazemos com que qualquer repolitização de tal cultura
seja inconcebível a priori. Entretanto todas as exposições totalizantes do pós-moderno
sempre incluíram um espaço para as várias formas de cultura oposicionista: a dos grupos
marginais, a das linguagens residuais ou emergentes radicalmente distintas, sendo que sua
existência é predicada pelo desenvolvimento necessariamente desigual do capitalismo
tardio, cujo Primeiro Mundo em sua dinâmica interna produz um Terceiro Mundo em seu
próprio interior. Nesse sentido, o pós-modernismo é ‘ meramenteuma dominante cultural.
Descrevê-lo em termos de hegemonia cultural não significa sugerir uma homogeneidade
cultural massificada e uniforme do campo social, mas exatamente levar em conta sua
coexistência com outras forças resistentes e heterogêneas tem tendência a dominar e a
incorporar. ” (JAMESON, PLC, p. 175-176)
É necessário frisar que, para Jameson, qualquer tentativa de solução local, particularista ou
nacional, no contexto do capitalismo tardio, será sempre muito pouco promissora. A luta
contra o capital mundializado requer um sujeito coletivo, um grupo ou classe capaz de
reconhecer que os problemas da humanidade são universais e não podem ser resolvidos por
meio de medidas individuais.
O quadro geral do pós-moderno nos mostra, lamentavelmente, que a crença na
capacidade de ação e produção dos homens está profundamente abalada, as novas gerações
não guardam nenhuma experiência de lutas políticas coletivas e a percepção dominante é a de
que podemos, na melhor das hipóteses, evitar um desastre irreversível, mais precisamente: a
destruição completa do planeta. Já nos acostumamos à degradação urbana, ao desemprego
estrutural, às gritantes desigualdades sociais, à corrupção generalizada, à violência, à ausência
de liberdade etc. Essa aceitação acrítica e/ou resignada do intolerável, do sofrimento
injustificável, é a expressão mórbida e mais radical da impotência. Somos seres humanos
bloqueados, perdidos num espaço desconhecido e saturado de imagens, que, de maneira mais
ou menos clara, percebem que a política tradicional desligou-se da vida e que não temos
nenhum poder decisório sobre a atividade produtora, a economia. A impotência, diz Jameson,
é uma verdadeira mortalha sobre a psique, que se deixa compreender como um crescente e
profundo desinteresse pelo próprio eu e pelo mundo exterior (Nietzsche chamou essa
vontade de “querer o nada” de niilismo). A perda da historicidade é a forma mais acabada da
impotência coletiva, ou da obstrução radical da produtividade humana. Diante de uma
realidade objetiva imutável e presos à condição de não-produtividade, o que nos resta é o
consumismo ele é o contraponto do imobilismo, a nossa grande satisfação, pelo menos
para aqueles que ainda podem e conseguem se distrair com a parafernália tecnológica. A
reificação quase absoluta dos processos sociais é inseparável do fracasso das sociedades
burguesas em atingir qualquer transparência sobre si mesmas. Segundo Jameson:
Em uma sociedade transparente, na qual nossas diferentes posições na produção social
estivessem claras para nós mesmos e para todos os outros de tal forma que, como os
selvagens de Malinovski, nós pudéssemos pegar um graveto e desenhar um diagrama da
cosmologia cio-econômica na areia da praia não pareceria psicológico ou
antropológico falar do que acontece com as pessoas que não m nenhum poder sobre seu
trabalho: nenhum utopiano ou habitante da terra-de-niguém pensaria que você estivesse
mobilizando hipóteses a respeito do Inconsciente e da libido, ou pressupondo de forma
fundacional uma essência humana ou uma natureza humana; talvez isso tudo parecesse
mais com medicina, como se estivéssemos falando de uma perna quebrada ou de uma
paralisia do lado direito. De qualquer modo, é assim, como um fato, que eu gostaria de falar
sobre a reificação: no sentido da maneira pela qual um produto acaba por cortar qualquer
tipo de participação solidária, através da imaginação, em sua produção. Ele se coloca de
nós sem exigir nada, como algo que não poderíamos nem imaginar fazermos nós mesmos. ”
(JAMESON, PLC, p. 320)
O surgimento dos “ novos movimentos sociais ” é, para Jameson, um fenômeno
histórico da maior relevância, que, no entanto, não pode ser compreendido a partir da idéia
simplista de que a micropolítica ”, que corresponde às práticas políticas dos diferentes
grupos, ganhou espaço no vazio deixado pelo desaparecimento das classes sociais. A
reestruturação global da produção e o advento das novas tecnologias criaram novos tipos de
indústria, na periferia do capitalismo mundial, e, com elas, um novo proletariado. O que
importa ressaltar, quanto a isso, é que, segundo Jameson, tanto os chamados novos
movimentos sociais quanto do novo proletariado global emergente nasceram da expansão
mundial do capitalismo em seu terceiro estágio (eles são estritamente pós-modernos, nesse
sentido). Sem essa percepção, argumenta Jameson, cairemos na celebração ilusória do
pluralismo, que, por meio da mídia, promove uma exaltação despudorada da democracia e do
mercado, nos fazendo pensar que o advento dos pequenos grupos e da micropolítica constitui
a superação incontestável das divisões sociais, ainda que, no mundo real, o desemprego
estrutural e as desigualdades sociais não parem de crescer. O que é mais espantoso nesse
contexto é percebermos que a retórica do pluralismo e da liberdade convive, sem grandes
atritos, com o aumento das desigualdades sociais e a perpetuação dos velhos problemas do
capitalismo, evidenciando, como sublinha nosso autor, o avanço histórico da esquizofrenia
coletiva. O pluralismo somente não se desmancharia em ideologia na presença de mudanças
sociais reais, que até o momento não se verificaram.
O pós-moderno atribui a formação dos grupos a uma ligação orgânica e secular destes
com o mercado e a moda, como se este processo fosse o resultado desta ou daquela escolha.
Essa explicação neo-histórica ”, que na verdade assinala uma espécie de retorno das
matérias-primas da história apartado de sua função —, produz uma coletividade mística
que, reunindo negócios e subclasses, acaba conferindo à dinâmica do capitalismo tardio sua
própria condição de possibilidade (ou seja, os movimentos sociais devem se identificar com o
sistema). Jameson rejeita a explicação unilateral do pós-modernismo para o aparecimento dos
movimentos sociais, ou seja, a idéia de que o capitalismo liberal detém o mérito de ter criado
as condições para o surgimento desses novos atores nas sociedades contemporâneas. Da
mesma forma, devemos recusar a posição supostamente radical de uma certa esquerda, para a
qual os grupos e movimentos sociais são a expressão de lutas árduas que, depois de um longo
período, produziram vitórias localizadas e conquistas muito significativas contra o próprio
capitalismo. Mais uma vez nos vemos diante de uma antinomia típica do pós-moderno. Essas
duas posições são equivocadas, insiste Jameson, e uma interpretação genuinamente dialética
deve repelir essa falsa oposição. Nesse sentido, é bem mais produtivo apontarmos as
fraquezas e vantagens que podem estar ligadas às políticas de grupo e classe, ao invés de
simplesmente elegermos, a priori, quem é o verdadeiro sujeito da revolução. As categorias de
classe são sempre heterogêneas, impuras, mostra Jameson, e se espraiam por toda a sociedade,
como elemento constitutivo do processo de produção material. Em sua abrangência, as classes
se afastam das representações utópicas, deixando um espaço muito limitado para os
investimentos libidinais e para a liberdade, quer dizer, ninguém escolhe fazer parte desta ou
daquela classe. A dimensão do desejo (gratificação psíquica), que é absolutamente
imprescindível para a formação de uma nova cultura e para um genuíno movimento de
identificação e reconhecimento, fica, assim, claramente enfraquecida. Ao contrário das
classes, que estão dadas pela economia, o aparecimento dos grupos requer um processo
mais ou menos livre de escolha, ou seja, a construção de uma narrativa. O ambiente dos
grupos é, assim, muito mais propício a gerar sentimentos de fraternidade e sacrifício, uma vez
que, para sua própria formação, as identidades exigem o engajamento ativo de seus
participantes. Existe aqui uma gratificação, a satisfação de um desejo, exatamente o que falta
ao mundo das classes e do trabalho. Contra o consenso e em sua recusa política das “
totalizações ”, os grupos procuram diferenciar-se uns dos outros criando hábitos e formas de
pensar que se pretendem “ únicas ”, o que, justificadamente, constitui a base de seu orgulho. É
nesse mesmo processo, no entanto, que a ideologia da diferença se confunde com a
compulsiva busca do novo e com a própria lógica do capital. O pluralismo dos grupos que se
formaram à margem da estrutura econômica nos anos 60 negros, mulheres, imigrantes do
terceiro mundo, etc — não pode, hoje, afirma Jameson, desempenhar um papel político
estrutural, quer dizer, elaborar um programa de transformação radical do existente, e isso em
função das próprias modificações do capitalismo nas últimas décadas. De forma geral, as
políticas de identidade tendem a excluir as representações do que o marxismo chama de classe
dominante e, assim, acabam impossibilitadas de produzir qualquer tipo de problematização
radical sobre a infra-estrutura econômica (e a cultura), ou seja, as noções de poder tornam-se
abstratas e se dissolvem nas determinações do mercado e nos espetáculos midiáticos
52
. A
proliferação dos grupos pode ser entendida, portanto, como um sintoma da própria “ morte do
sujeito ”, como explica Jameson:
Os paradoxos representacionais inerentes a qualquer narrativa cuja categoria fundamental
seja o grupo pós-moderno podem ser articulados como segue: uma vez que a ideologia
dos grupos surge ao mesmo tempo que a morte do sujeito (da qual ela é simplesmente
uma versão alternativa) a psicanálise solapando as experiências da identidade pessoal, o
ataque estético à originalidade, ao gênio e aos estilos privados do modernismo, o
esmaecimento do carisma na era das mídias e dos grandes homens na era do
feminismo, a estética do fragmentário, do esquizofrênico [...] —, a conseqüência será que
52
O abandono da crítica da economia política está intrinsecamente ligado ao verdadeiro culto da
sociedade civil que temos acompanhado nas últimas décadas. Esta aparece como um espaço neutro, livre da
tirania do Estado e das determinações econômicas, ou seja, como o terreno ideal para o desenvolvimento da
democracia e a participação de todos. Segundo Wood: Por mais diferentes que sejam os métodos para
dissolver conceitualmente o capitalismo o que inclui tudo desde a teoria do pós-fordismo aos estudos
culturais pós-modernos e a política de identidade —, eles em geral têm em comum um conceito
especialmente útil: sociedade civil ’. Depois de uma história longa e tortuosa, depois de uma série de marcos
representados pelas obras de Hegel, Marx e Gramsci, essa idéia versátil se transformou numa expressão
mágica adaptável a todas as situações da esquerda, abrigando uma ampla gama de aspirações emancipadoras,
bem como é preciso que se diga um conjunto de desculpas para justificar o recuo político. Por mais
construtiva que seja essa idéia na defesa das liberdades humanas contra a opressão do Estado, ou para marcar
o terreno de práticas sociais, instituições e relações desprezadas pela velha esquerda marxista, corre-se o
risco hoje de ver ‘ sociedade civil ’ transformar-se num álibi para o capitalismo. ” (WOOD, 2003, p. 205)
esses novos personagens coletivos que são os grupos não podem mais, por definição, ser
sujeitos. Por certo essa é uma das coisas que tornam problemáticas as visões da história, ou
das narrativas mestras da revolução burguesa ou da socialista (como Lyotard explicou),
pois é difícil de imaginar tais narrativas mestras sem um sujeito da história ’.
(JAMESON, PLC, p. 349)
Na perspetiva de Jameson, nada do que se pode dizer a respeito das classes sociais ou das
políticas de identidade resolve a questão primordial, qual seja: o processo de desaparecimento
do eu e de qualquer coletividade dotada de sentido utópico, que, como deve estar claro,
está na base do ocaso da história na pós-modernidade. O que parece estar diante de nós é o
velho dilema entre voluntarismo e determinismo, isto é, a questão de compreendermos o
sentido das ações e seus possíveis efeitos no interior do modo de produção capitalista. Se,
como quer Jameson, entendermos que não há uma alternativa real entre voluntarismo e
determinismo, torna-se factível um engajamento ativo nos movimentos sociais, que nos
permitirá, ao mesmo tempo, por meio de um realismo sistêmico, manter uma postura crítica e
contemplativa em relação a esses mesmos movimentos, principalmente no que diz respeito às
suas tendências particularistas. Em vista desse quadro ambivalente, devemos ter claro que a
produção de uma cultura revolucionária não é um momento menor da práxis, e que, em todo
esse processo, devemos estar abertos ao inesperado, às desconcertantes surpresas da história
das revoluções, isto é, ao possível aparecimento de um sujeito revolucionário não teorizado
(ou previsto) pelo pensamento
53
. Dito isto, podemos entender melhor os grandes problemas
políticos da atualidade, os limites da ação, que, na ótica de Jameson, configuram um contexto
de imobilismo histórico. Segundo nosso autor:
Antes a política tentava coordenar as lutas globais e as localizadas e, por assim dizer,
dotar a ocasião imediata de luta localizada de um valor alegórico, a saber, o de representar a
53
Comentando a Revolução Cubana, Jameson destaca que, a despeito de seus resultados não terem
sido os pretendidos, sua desconcertante originalidade será sempre inspiradora: Desde o início, a experiência
cubana revelou-se original, como um novo modelo revolucionário a ser radicalmente diferenciado das formas
tradicionais de prática revolucionária. [...] Essa peculiaridade do modo como as coordenadas espaciais da
estratégia cubana são concebidas tem conseqüências imediatas no modo como os elementos de classe do
movimento revolucionário são teorizados. Nem cidade, nem campo; prova disso é que, paradoxalmente, os
próprios guerrilheiros não são vistos nem como operários, nem como camponeses (e muito menos como
intelectuais), mas como algo inteiramente novo, para o que a sociedade de classes pré-revolucionária não tem
categorias: novos sujeitos revolucionários, forjados na luta de guerrilha, indiferentemente, a partir do material
social de camponeses, trabalhadores urbanos ou intelectuais, mas que transcendem de muito essas categorias
de classe... ” (JAMESON, P60s, p. 116-117)
própria luta geral, encarnando-a no aqui e no agora que ficavam assim transfigurados. A
política funciona apenas quando esses dois níveis podem ser coordenados; caso contrário,
eles se separam e se transformam em uma luta abstrata e desencarnada pelo Estado e em
torno dele, uma luta facilmente burocratizada, por um lado, e, por outro, em uma série
verdadeiramente interminável de questiúnculas regionais, cuja infinitude acaba por
ser investida, no pós-modernismo, quando se transforma na única forma da política que
restou, em algo como o darwinismo social de Nietzsche, e com a euforia forçada de uma
revolução metafísica permanente. Penso que a euforia é uma formação compensatória em
uma situação na qual, por algum tempo, a política autêntica (ou totalizante ’) não é mais
possível; é necessário acrescentar que o que fica perdido em sua ausência é precisamente a
dimensão do econômico, ou do sistema, da iniciativa privada e da razão do lucro que não
podem ser desafiadas num plano local. ” (JAMESON, PLC, p. 332)
Antes de chegarmos à contribuição mais original e importante de Jameson acerca da práxis no
pós-moderno o mapeamento cognitivo é preciso frisar que o crítico norte-americano
nunca se propôs a fazer qualquer tipo de sociologia das classes sociais e dos diversos grupos
ou movimentos que ganharam força e visibilidade desde os anos 60. O que parece mais
interessante, nesse aspecto, é percebermos a sutileza e a radicalidade da argumentação de
Jameson, que, bem entendida, nos mostra que as políticas de classe e dos movimentos sociais
não são incompatíveis. É preciso conservar a noção de classe, afirma o pensador norte-
americano, mas como uma categoria contingente e não uma propriedade empírica, ontológica,
pois somente por meio de seu sentido universalizante é possível transcendermos o
individualismo e, ao mesmo tempo, incluir as categorias de gênero e raça. Longe de se
contentar com soluções fáceis e improdutivas, Jameson mantém as tensões, colocando os
problemas fundamentais sem ilusões. Vejamos uma passagem emblemática do que estamos
dizendo:
“...a deterioração da força de trabalho da indústria nacional ocasionou o surgimento de
massas de desempregados, que parecem ser agentes mais plausíveis de ação política, ou
sujeitos da história ’, e cuja nova dinâmica está registrada pela emergência da nova
categoria radical da marginalidade. Entretanto, todo o conhecimento recebido a respeito da
organização política foi adquirido com base no trabalho assalariado e na vantagem espacial
que ele apresenta, o que não está disponível no caso dos desempregados, a não ser nos
casos especiais de posseiros e bidonvilles ou cidades-acampamentos. (JAMESON, MRE,
p. 93)
A idéia do mapeamento cognitivo é crucial na teorização de Jameson acerca do pós-
moderno e da crise da modernidade, contudo, ela parece ser uma noção pouco desenvolvida,
que surge numa determinada obra, desaparece por vários anos e retorna inesperadamente. De
acordo com Buchanan, no entanto, essa justificável impressão é enganosa. Segundo este
intérprete, o mapeamento cognitivo tem uma história na produção intelectual de Jameson,
quer dizer, antes mesmo do início dos anos 80, outros nomes foram utilizados exatamente
com o mesmo propósito e para dar conta de problemas muito semelhantes. Numa palavra: o
conceito existia antes de receber esse nome. Não é nossa intenção analisar esse problema
aqui, queremos apenas sublinhar a curiosa trajetória desta riquíssima idéia para um possível
aprofundamento posterior.
Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, o mapa cognitivo aparece,
primeiramente, como uma tentativa de explicar o desenvolvimento da cultura modernista,
que, para Jameson, se dá como uma resposta à profunda crise de representação da experiência
social vivida pelos europeus, na segunda metade do século XIX, com a expansão do
capitalismo. Posteriormente, a mesma categoria será utilizada para explicar a crise de
representação, de proporções muito maiores, produzida na passagem da modernidade à pós-
modernidade (pela chegada da ordem burguesa a seu terceiro e mais puro estágio). A chave é
não perdermos de vista as relações entre o mapeamento cognitivo e as questões da
representação (ou figuração) e da totalidade. Como afirma Buchanan:
“ No caso da figuração, o objeto representado é uma idéia abstrata cujo efeito é nos libertar
do aprisionamento do particular e do concreto. [...] Ao contrário, o objeto representacional
do mapa cognitivo é um conceito abstrato, cuja intenção é tornar visíveis as várias forças e
movimentos que dão forma e constituem a situação mundial. Falar de um mundo
significa, inclusive, iniciar a produção de um mapa cognitivo, pois trata-se de uma
articulação de uma ‘ totalidade ’ concreta muito mais ampla do que aquilo se pode verificar
empiricamente. O conceito mesmo de mundo ’, na sua forma mais crua, denota o
reconhecimento e o registro de um misterioso conjunto de forças e efeitos que eu não posso
ver, mas que, entretanto, sei que m uma influência sobre a minha existência.
(BUCHANAN, 2006, p. 109)
Para Jameson, no que se refere ao capitalismo tardio, a questão pode ser assim formulada:
como ordenar nossas limitadas posições, enquanto indivíduos ou mesmo classes sociais, no
interior de um processo histórico mundial cuja dinâmica não conseguimos representar? O
mapeamento cognitivo é uma teoria do conhecimento socialista, cujo objetivo central é criar
as condições necessárias para a constituição de um novo sujeito coletivo, capaz de agir nas
condições específicas do pós-moderno. A abordagem totalizante de Jameson busca produzir
um distanciamento crítico da imediaticidade, da urgência do real e da sucessão de eventos
caóticos e não-relacionados que caracteriza a pós-modernidade. A reconstrução da
historicidade somente será possível se conseguirmos dar um sentido concreto à determinadas
abstrações sistêmicas, tais como modo de produção, capitalismo global e pós-modernismo
(nenhuma dessas noções nos é dada pela experiência imediata). Esse movimento está
evidentemente em conflito com o repúdio pós-moderno da totalidade, que, segundo Jameson,
tem suas raízes no medo da utopia, isto é, naquele conjunto de teses idealistas que nos faz
acreditar que toda e qualquer tentativa de revolução necessariamente produzirá algo como o
terror stalinista (este tema será desenvolvido no próximo capítulo). Ironicamente, as
tendências nominalistas e empiristas da s-modernidade descartam os conceitos
universalizantes justamente quando, em seu terceiro estágio, o capitalismo tornou-se um
sistema planetário, impossibilitando, assim, qualquer conhecimento mais amplo e substancial
do presente, ou seja, a experiência humana fica reduzida aos fenômenos repetitivos do
cotidiano degradado. Livre de qualquer alteridade sistêmica, o espaço saturado do capitalismo
pós-moderno suprime as distâncias, as mediações, deixando nossos aparelhos perceptivos
completamente expostos a um conjunto imensurável de informações, cujo resultado é uma
desorientação total, uma desarmonia radical entre o novo ambiente e a subjetividade formada
ainda no período modernista. A historicidade é, por assim dizer, diluída no espaço, ou seja,
excluída de um processo social que não conta com a intervenção consciente de nenhum
sujeito além do próprio capital. Jameson explica os dramáticos efeitos dessa situação:
Considero tais peculiaridades do pós-modernismo sintomas e expressões de um novo
dilema historicamente original, que envolve nossa inserção como sujeitos individuais em
um conjunto multidimensional de realidades radicalmente descontínuas, cujas molduras vão
desde os espaços sobreviventes da vida privada burguesa até o descentramento
inimaginável do próprio capital global. Nem mesmo a relatividade einsteiniana ou os
múltiplos mundos subjetivos dos antigos modernistas são capazes de fornecer um tipo de
figuração adequada para esse processo, que na experiência do vivido faz-se sentir pela
assim chamada morte do sujeito, ou, mais exatamente, pelo descentramento e pela
dispersão esquizofrênica e fragmentada deste último (que não pode nem mesmo
desempenhar a função de reverberação ou ponto de vista de Henry James). (JAMESON,
PLC, p. 408)
A estética do mapeamento cognitivo — que se deixa compreender como uma teoria do
conhecimento aparece como condição de possibilidade para a superação do atual
imobilismo político da esquerda, principalmente no que se refere as dificuldades de se
combinar estratégias nacionais e internacionalistas no espaço do capitalismo globalizado
54
. As
mutações do espaço no pós-moderno dizem respeito ao urbano, às grandes cidades, e esse é o
ponto de partida do modelo de política cultural proposto por Jameson, que outra coisa não é
que um programa que procura, sobretudo, salientar o potencial pedagógico e cognitivo das
formas artísticas (com um objetivo bem preciso). No filme Coisas Belas e Sujas (Dirty Pretty
Things, Reino Unido, 2002), de Stephen Frears, temos um bom exemplo do que pode ser um
mapeamento cognitivo. Em Londres, um médico nigeriano, na condição de imigrante ilegal,
se forçado a trabalhar, ao mesmo tempo, como motorista de táxi e recepcionista de um
hotel. Ele sofre na pele, ao lado de sua colega de trabalho, uma camareira turca, as violências
do subemprego e da exploração (do trabalho e sexual) a que são submetidos os imigrantes
ilegais nos países centrais. O drama dos dois torna-se ainda maior quando, por um infeliz
acaso, o nigeriano descobre que o gerente do hotel em que trabalha está envolvido com o
tráfico e a venda de órgãos. Em um quarto escondido, imigrantes ilegais desesperados vendem
seus rins em troca de passaportes europeus, submetendo-se à violenta cirurgia nas piores
condições possíveis. O que interessa frisar é que, na mesma trama, são abordados temas e
problemas da maior gravidade, que revelam os elos perversos dos países centrais com a
miséria da periferia do capitalismo. Surge, desse modo, uma visão ampla dos problemas do
capitalismo tardio, especialmente a percepção de que as mazelas do terceiro mundo e o
acumulo de riquezas nos países ditos desenvolvidos são lados diferentes de um mesmo
54
O que não podia ser mapeado cognitivamente no mundo do modernismo pode, agora, aparecer
lentamente nos próprios circuitos da nova cibernética transnacional. A informação instantânea suprime
repentinamente a distância que, no período moderno, mantinha a colônia afastada da metrópole. Enquanto
isso, a interdependência econômica do sistema mundo, hoje, significa que onde quer que alguém se encontre
no globo, sua posição pode, daqui para frente, ser sempre articulada aos outros espaços deste. Esse tipo de
transparência epistemológica caminha, sem dúvida, de mãos dadas com a estandardização, que tem sido
freqüentemente caracterizada como a Americanização do mundo (ou mesmo sua Disneyficação). Esta
descrição não é enganosa ou incorreta, mas omite o meio através do qual o novo sistema também transmite
tendências e mensagens oposicionistas, tais como o movimento ecológico; paradoxalmente, assim como o
próprio movimento anti-globalização, são desenvolvimentos políticos que resultaram dos danos causados pela
globalização, mas que, ao mesmo tempo, se tornaram possíveis por conta dela. ” (JAMESON, ET, p. 701)
processo, isto é, de uma ordem social, mundializada e desumana, que não se presta a
mudanças superficiais ou locais.
Apropriando-se das sugestivas contribuições de Kevin Lynch, em The Image of the
city, Jameson nos lembra que a cidade alienada é um espaço no qual os seres humanos,
enquanto indivíduos e coletividades, tornaram-se inaptos a reconhecer e mapear suas posições
na totalidade em que vivem, isto é: o ambiente urbano, saturado de imagens e informações, se
transforma num espaço assustadoramente desconhecido, estranho, no qual nos movemos
como autômatos, incapazes de estabelecer conexões entre os fenômenos que ocorrem a nossa
volta e perceber de que maneira nos situamos neste processo. Essa incapacidade de
mapearmos o hiperespaço pós-modernista, sustenta Jameson, é desastrosa tanto para a
experiência da vida urbana quanto para a prática política. O mapeamento cognitivo aponta,
portanto, para a necessidade de reconquistarmos o espaço, de conhecê-lo e registrá-lo na
memória e, assim, nos tornarmos novamente aptos a agir e fazer escolhas substantivas, ou
seja, intervir politicamente no processo social. O capitalismo tardio e sua lógica cultural, o
pós-modernismo, constituem uma totalidade irrepresentável, um sistema altamente complexo,
o qual, apesar desse fato, de forma alguma é incognoscível. A função do mapeamento
cognitivo é precisamente possibilitar a representação situacional por parte dos indivíduos
ainda que precária e imaginada das estruturas que constituem as sociedades
contemporâneas em seu todo. A recuperação do sentido histórico exige, no entanto, que este
mesmo processo transponha as categorias individuais, ou seja, devemos mapear
cognitivamente o globo terrestre afim de permitir a emergência de uma nova práxis coletiva,
revolucionária. Estão presentes aqui as dimensões lacanianas do imaginário, do real e do
simbólico, que podem nos ajudar a superar o verdadeiro abismo que separa, hoje, a
experiência existencial e o conhecimento, conforme explica Jameson:
Uma estética do mapeamento cognitivo uma cultura política e pedagógica que busque
dotar o sujeito individual de um sentido mais aguçado de seu lugar no sistema global
terá, necessariamente, que levar em conta essa dialética representacional extremamente
complexa e inventar formas radicalmente novas para lhe fazer justiça. Esta não é, então,
uma convocação para a volta a um tipo mais antigo de aparelhagem, a um espaço nacional
mais antigo e transparente, ou a qualquer enclave de uma perspectiva mimética mais
tradicional e tranqüilizadora: a nova arte política (se ela for de fato possível) terá que se ater
à verdade do pós-modernismo, isto é, a seu objeto fundamental o espaço mundial do
capitalismo multinacional —, ao mesmo tempo que terá que realizar s façanha de chegar a
uma nova modalidade, que ainda não somos capazes de imaginar, de representá-lo, de tal
modo que nós possamos começar novamente a entender nosso posicionamento como
sujeitos individuais e coletivos e recuperar nossa capacidade de agir e lutar, que está, hoje,
neutralizada pela confusão espacial e social. A forma política do pós-modernismo, se
houver uma, terá como vocação a invenção e a projeção do mapeamento cognitivo global,
em uma escala social e espacial. ” (JAMESON, PLC, p. 79)
O mapeamento cognitivo do espaço global é imprescindível para a construção de um
sujeito coletivo capaz de restituir a historicidade ao presente e enfrentar o capitalismo pós-
moderno em seus próprios domínios. Como veremos no próximo capítulo, essa luta,
acontecendo de fato, deverá engajar os socialistas do mundo inteiro numa incansável terapia
coletiva, qual seja: o desbloqueio dos impulsos utópicos.
CAPÍTULO III
EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO: A UTOPIA DEPOIS DO FIM DA HISTÓRIA
Enquanto o ser humano se encontrar em maus lençóis, a sua
existência tanto privada quanto pública será perpassada por sonhos diurnos,
por sonhos de uma vida melhor que a que lhe coube até aquele momento. No
inautêntico, e ainda mais no autêntico, toda intenção humana é erigida sobre
esse fundamento. ”
Ernst Bloch.
1- A utopia e a ausência de alteridades radicais na pós-modernidade
O fim da temporalidade no pós-moderno está diretamente associado a uma experiência
de confinamento, ou seja, ao enclausuramento ideológico num espaço saturado e ao mesmo
tempo desconhecido, do qual, em virtude do processo de homogeneização do planeta, foram
suprimidos todo e qualquer tipo de alteridade radical ao sistema capitalista. Na perspectiva de
Jameson, esse presente congelado e sem historicidade constitui a situação social em que, mais
do que nunca, cabe aos socialistas desbloquear e fortalecer os impulsos utópicos. Tentaremos
entender, a seguir, porque a utopia representa, segundo Jameson, o contrapeso necessário do
ocaso da história e da suspensão da política.
Durante a Guerra Fria e depois da falência dos regimes ditos comunistas, utopia
tornou-se sinônimo de stalinismo, de um desejo irrefreável de supressão do indivíduo e da
liberdade, em nome da justiça social e do bem-estar das coletividades. Na ótica contra-
revolucionária, trata-se de uma tentativa de violação da natureza humana, de uma vontade
descabida de impor a perfeição e criar uma uniformidade num conjunto de seres imperfeitos e
irredutivelmente diferentes. Qualquer mudança radical, inevitavelmente associada ao utópico,
exigiria, portanto, o uso indiscriminado da força e da violência, ou seja, o advento de regimes
totalitários. Justas ou não, essas idéias — fortemente enraizadas no imaginário social do nosso
tempo constituem, sem dúvida, o primeiro constrangimento diante de qualquer pensador
que, como Jameson, se propõe a revitalizar a utopia no século XXI. O que resta saber,
entretanto, é se o capitalismo liberal, sob o manto da democracia e do individualismo, não
estaria produzindo algo bastante semelhante a tudo aquilo que sempre condenou. nos anos
60, Marcuse explica de modo convincente que a liberdade, nos marcos da ordem do capital,
pode perfeitamente mascarar um sistema totalitário:
Em virtude do modo pelo qual organizou a sua base tecnológica, a sociedade industrial
contemporânea tende a tornar-se totalitária. Pois totalitária não é apenas uma
coordenação política terrorista da sociedade, mas também uma coordenação técnico-
econômica não-terrorista que opera através da manipulação das necessidades por interesses
adquiridos. Impede, assim, o surgimento de uma oposição eficaz ao todo. Não apenas a
uma forma específica de Governo ou direção partidária constitui totalitarismo, mas também
um sistema específico de produção e distribuição que bem pode ser compatível com o
pluralismo de partidos, jornais, ‘poderes contrabalançados etc. (MARCUSE, 1979, p.
24-25)
O retrato que Jameson nos oferece da cultura pós-moderna, no qual se destacam,
entre outras coisas, a perda do sentido histórico, a rejeição de todo o tipo de transcendência e
a supressão das mediações, fortalece a percepção de que vivemos num mundo cuja marca
fundamental é a homogeneização. A estandardização planetária, que se à sombra de uma
exaltação acrítica das diferenças e do multiculturalismo, tem sua base no desenvolvimento do
capitalismo nos últimos trinta anos, quer dizer, no movimento derradeiro da ordem burguesa
em sua desesperada tentativa de superação de sua crise estrutural. Pensando nas possíveis
ilusões, Jameson nos alerta que esse conjunto de transformações profundas, por mais radical e
libertário que se pretenda, perpetua as normas históricas da dominação:
“...a nova cultura pós-moderna global, ainda que americana, é expressão interna e
superestrutural de uma nova era de dominação, militar e econômica, dos Estados Unidos
sobre o resto do mundo: nesse sentido, como durante toda a história de classes, o avesso da
cultura é sangue, tortura, morte e terror. (JAMESON, PLC, p. 31)
Pretendemos entender neste último capítulo as linhas gerais da teorização de Jameson
acerca da utopia e dos impulsos utópicos, que, a meu ver, mais do que complementar, é
essencial para uma compreensão mais elaborada do nosso tema, ou seja, do ocaso da história
na pós-modernidade. A importância que a revitalização da utopia adquire no corpus da obra
de Jameson, ao longo de seu desenvolvimento
55
, cresce na medida exata em que a política
tradicional fracassa e a revolução socialista perde sua atualidade. O presente enclausurado
em si mesmo, de uma humanidade que já não consegue elaborar seu próprio passado e
imaginar um futuro diferente do que conhecemos, aparecerá, vale adiantar, como o ambiente
próprio da utopia, como o tipo de situação histórica em que torna-se absolutamente
necessário, do ponto de vista do marxismo, detectar e fortalecer os impulsos utópicos.
A chegada do capitalismo ao seu terceiro estágio, sustenta Jameson, produziu um
mundo desprovido de qualquer alteridade sistêmica radical (o socialismo real
representava, ainda que ilusoriamente, este papel), no qual, como dissemos, as esferas da
cultura e da economia se fundiram em uma só. Reforçando essa tese, lembremos, mais uma
vez, que a experiência modernista de uma temporalidade diferenciada, ou seja, uma do campo
e outra das grandes cidades, parece cada vez mais distante em virtude do espantoso
desenvolvimento das comunicações e da industrialização da agricultura. Outro fator decisivo
do processo de homogeneização mundial, segundo Jameson, é o desaparecimento, no pós-
moderno, da tradicional fronteira entre a alta cultura e a chamada cultura de massa. Uma
análise empírica da vida nas grandes cidades do mundo, suas culturas e do que sobrou da
natureza (do inconsciente e da chamada vida rural) nos revela uma aceitação, ao mesmo
tempo, passiva e angustiada do sempre-igual ”, como diria Adorno, isto é, um aglomerado
de experiências individuais fragmentadas, repetitivas e vazias de significado — mediadas pela
forma mercadoria do qual não se pode esperar nada além de uma espécie de solipsismo
compartilhado ”(Zizek). Em qual país do mundo contemporâneo podemos deixar de notar a
presença das bolsas de valores, dos shopping centers, do fetichismo da mercadoria, do
dinheiro, enfim, do implacável peso da lei do valor? É precisamente à luz desse conjunto de
mutações do capitalismo contemporâneo que deverão ser entendidas as formulações de
Jameson sobre a utopia.
A virtual conclusão do processo de modernização, sob o domínio cultural do pós-
modernismo, e a ativação dos limites últimos do capital (Mészaros) nos colocaram, de acordo
55
O tema da utopia é central na obra de Jameson desde o final da década de 1970, na qual se destaca,
sem dúvida, o brilhante ensaio Reificação e Utopia na Cultura de Massa (1979). A partir daí as elaborações
acerca da utopia aparecem em todos os trabalhos mais sistemáticos do crítico norte-americano, culminando, em
2005, com a publicação de Arquaeologies of the Future, o mais criativo e abrangente estudo sobre a utopia
realizado nas últimas décadas — e que encerra o projeto intitulado “ A Poética das Formas Sociais. ”
com Jameson, numa desesperadora situação de clausura, na qual o dito fatalista de que não
alternativa ao capitalismo soa, para a grande maioria das pessoas, como uma desnecessária
constatação do óbvio. A experiência do enclausuramento ideológico (inseparável da perda da
historicidade), no ainda não mapeado hiperespaço do pós-moderno, é o ponto de partida da
argumentação de Jameson em sua obstinada tentativa de resgatar a função primordial da
utopia, a saber: sua possível função política em sociedades que parecem ter se tornado
incapazes de imaginar ou conceber uma transformação qualitativa radical, isto é, o advento de
uma formação social distinta do capitalismo. Segundo o pensador norte-americano:
Mesmo depois do ‘ fim da história ’, ainda parece persistir uma certa curiosidade
histórica geral mais sistêmica do que meramente anedótica: não saber somente o que vai
acontecer depois, mas também uma ansiedade mais geral sobre a sorte ou destino do nosso
próprio sistema ou modo de produção a experiência individual (de tipo pós-moderno)
nos quer convencer de que ele tem que ser eterno, enquanto nossa inteligência sugere que
essa impressão é, de fato, muito improvável, sem que se chegue, no entanto, a nenhum
roteiro plausível para sua desintegração ou substituição. Parece que hoje é mais fácil
imaginar a deterioração total da terra e da natureza do que o colapso do capitalismo tardio;
e talvez isso possa ser atribuído à debilidade de nossa imaginação.” (JAMESON, ST, p. 9-
10)
Apesar do fim da União Soviética e do socialismo real ”, com os quais o termo
utopia foi identificado durante décadas, nota Jameson, a palavra e seu caráter transcendente
persistem, às duras penas, no imaginário social e na cultura — mesmo nas formas mais
degradadas da indústria cultural como inspiração, mais ou menos consciente, para os
movimentos políticos que, pelo mundo afora, ainda insistem na recusa do capitalismo como
destino inevitável do gênero humano. É válido, portanto, colocarmos em destaque, logo de
saída, a relação essencial entre o ocaso da história e a utopia, e a importância desta para uma
possível práxis revolucionária. Nas palavras de Jameson:
“...o declínio da idéia utópica é um sintoma histórico e político fundamental que, por si só,
merece um diagnóstico para não dizer alguma nova terapia mais eficaz. De um lado,
esse enfraquecimento do senso histórico e da imaginação da diferença histórica que
caracteriza a pós-modernidade está paradoxalmente entrelaçado com a perda daquele lugar
além de toda história (ou depois do seu final) que chamamos de utopia. De outro, hoje é
bastante difícil imaginar algum programa político radical sem o conceito de alteridade
sistêmica, de uma sociedade alternativa, que apenas a idéia de utopia parece manter vivo,
ainda que de modo débil. É claro que isso não significa que, ainda que consigamos reviver
a própria utopia, os contornos de uma política prática nova e eficaz para a época da
globalização vão se tornar visíveis de imediato; mas apenas que jamais chegaremos a ela
sem isso. ” (JAMESON, PU, p. 160)
Tendo em vista essas primeiras idéias, podemos adiantar que a reflexão de Jameson sobre a
utopia (o lugar para além da história) e sua função política vai girar em torno de uma
dialética entre diferença e identidade, ou seja, um confronto na forma de uma experiência
de pensamento entre um sistema universal produtor de identidades e alteridades
superficiais (inofensivas à ordem do capital) e a capacidade de imaginarmos uma diferença
radical, mais precisamente, formas de vida social genuinamente estranhas ao mundo das
mercadorias.
Uma das chaves para entendermos as relações entre diferença e identidade no
capitalismo tardio, argumenta Jameson, é a compreensão de que em sua lógica atomista, esse
modo de produção é, na verdade, uma anti-sociedade, uma ordem que estruturalmente produz
diferenças e, em momento algum, deixa de funcionar como um sistema, ao contrário do que
pensam os apologistas da pós-modernidade. No sistema produtor de mercadorias, a exaltação
das diferenças mascara a impossibilidade do não-idêntico, como dizia Adorno. Numa
passagem fundamental, Jameson nos boas razões para desconfiar do atual culto da
diferença:
“...o próprio conceito de diferença é minado; ele é no mínimo pseudodialético, e sua
alternância imperceptível com o seu oposto, a Identidade, está entre os mais antigos dos
jogos de linguagem e pensamento registrados em (muitas) tradições filosóficas. (Será que a
diferença entre o Mesmo e o Outro é a mesma que a diferença entre o Outro e o Mesmo, ou
será que é diferente? Muito do que passa por uma defesa vigorosa da diferença é, claro,
simplesmente tolerância liberal, uma posição cuja complacência ofensiva é bem conhecida,
mas essa diferença tem, pelo menos, o mérito de levantar uma questão histórica
embaraçosa: não será, em primeira instância, a tolerância da diferença como um fato social
resultado homogeneização social e da estandardização, e do desaparecimento da verdadeira
diferença social? (JAMESON, PLC, p. 342-343)
Sublinhemos, portanto, a delicada questão apresentada por Jameson, pois sua própria resposta
a ela, ou seja, a tese de que vivemos num mundo cada vez mais homogêneo, desprovido de
alteridades sistêmicas e radicais, nos permiticompreender o sentido da idéia utópica: sua
ascensão na modernidade e seu declínio no pós-moderno.
2- Ideologia e utopia: da cultura modernista ao pós-modernismo
As revoluções de 1848 na Europa em primeiríssimo lugar — e a Comuna de Paris,
em 1871, produziram um trauma insuperável, que provocou uma ruptura violenta entre os
artistas, os intelectuais e sua classe social de origem, ou seja, a burguesia. Em seu brutal
movimento de afirmação, em face das revoltas dos trabalhadores, a sociedade capitalista criou
um ambiente favorável ao aprofundamento de uma crítica estética e social da modernidade.
Segundo Oehler:
“ Alguns contemporâneos conceberam as jornadas de junho de 1848, esse primeiro
embate de vulto entre a república liberal e o proletariado insurrecto em Paris, como um
genocídio social, uma tentativa sem precedentes de exterminar toda uma classe da
sociedade. Em razão de sua monstruosidade, esse acontecimento foi presa do recalque, e
com ele a literatura que, de uma forma ou de outra, quisera lhe dar voz. De modo algum a
literatura foi cúmplice e nem preparou o caminho do recalque dos horrores de 1848;
antes, ela própria tornou-se vítima desse recalque, exatamente na medida em que tentou
opor-se a ele. Além disso, o protesto literário contra o esquecimento não se limitou a
insistir na culpa histórica da sociedade burguesa. A modernidade crítica após 1848
reinscreveu o acontecimento no contexto histórico do século e transformou as
reminiscências históricas em imagens dialéticas, no sentido de Benjamin, e portanto em
imagens nas quais, ao mesmo tempo em que o passado, o próprio presente vem à luz.
(OEHLER, 1999, p. 10)
O que salta aos olhos nessa passagem emblemática é o ímpeto crítico e inconformista da
cultura modernista, principalmente em sua luta contra a necessidade da sociedade capitalista
de suprimir a memória histórica e o desejo de mudanças.
A cultura modernista foi, assim, desde seu início, tendencialmente subversiva e
manteve sempre uma postura de recusa, mais ou menos aberta, da ordem capitalista, ou, pelo
menos, um vigoroso sentimento de mal-estar e estranhamento em relação a ela (uma
hostilidade ao mercado) independente das escolhas políticas dos chamados grandes
artistas ou gênios. Isto quer dizer, em outras palavras, que a arte modernista, como ressalta
Jameson, se define exatamente em função de seus impulsos transcendentes (utópicos),
transestéticos, de sua negação do positivismo (a corrente hegemônica no pensamento burguês
pós 1848) e de um mundo que separava radicalmente a arte da vida. Mas como entender o
ethos crítico e rebelde do modernismo? Se não se trata de uma questão de opções pessoais,
morais ou apenas uma crise de valores, precisamos articular essa problemática ao
desenvolvimento mesmo do sistema capitalista, isto é, buscar, na contramão do espírito da
pós-modernidade, os fundamentos econômicos dessa postura crítica. O descompasso entre a
cultura produzida no período modernista e suas bases materiais, desde o capitalismo
concorrencial ao estágio dos monopólios, pode ser bem compreendido à luz da teoria do
desenvolvimento desigual e combinado, ou seja, como uma desarmonia temporal (histórica)
entre o modernismo e a modernização. De acordo com Jameson:
O moderno ainda tem algo a ver com a arrogância da gente da cidade sobre os
provincianos, quer se trate do provincianismo dos camponeses, de culturas distintas,
colonizadas, ou simplesmente do próprio passado pré-capitalista: aquela satisfação mais
profunda de ser absolument modern ’ se dissipa quando as tecnologias modernas estão em
toda parte, não existem mais províncias e mesmo o passado acaba por parecer mais um
mundo alternativo do que um estágio imperfeito e carente deste. Entretanto, os habitantes
modernos da cidade ou os metropolitanos de décadas passadas vinham do campo ou pelo
menos ainda podiam registrar a coexistência de mundos desnivelados; podiam medir a
mudança dos modos, coisa que se torna impossível quando a modernização está, mesmo
que relativamente, completa (e não é mais um processo isolado, antinatural e enervante,
perceptível a olho nu). ” (JAMESON, ST, p. 26-27).
O capitalismo dos monopólios comportava a existência de alteridades culturais e econômicas,
ainda que com prazo para acabar, como antecipou Marx no Manifesto Comunista
56
, quer
dizer: o estágio imperialista da ordem burguesa foi uma época de expansão e ascensão do
capital, no qual ainda se encontravam distantes os seus limites lógicos e históricos, apesar da
eclosão da primeira Guerra Mundial e do colapso de 1929. Basta lembrarmos, aqui, que é
56
A necessidade de mercados sempre crescentes para seus produtos impele a burguesia a
conquistar todo o globo terrestre. Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter
cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para grande pesar dos reacionários, ela retirou a
base nacional da indústria. As indústrias nacionais tradicionais foram, e ainda são, a cada dia destruídas. São
substituídas por novas indústrias, cuja introdução se tornou essencial para todas as nações civilizadas. Essas
indústrias não utilizam mais matérias-primas locais, mas matérias-primas provenientes das regiões mais
distantes, e seus produtos o se destinam apenas ao mercado nacional, mas também a todos os cantos da
Terra. (...) No lugar da tradicional auto-suficiência e do isolamento das nações surge uma circulação universal,
uma interdependência geral entre os países. E isso tanto na produção material quanto intelectual. Os produtos
intelectuais das nações passam a ser de domínio geral. ” (MARX/ ENGELS, 1998, p. 11-12)
justamente depois da catástrofe de 1914 que os Estados Unidos, beneficiando-se da destruição
e do esgotamento dos países ricos da Europa, vão se consolidar como grande potência
mundial.
Voltando ao desenvolvimento da cultura modernista, sabemos que, nas primeiras
décadas do século XX, as vanguardas artísticas (surrealismo, dadaísmo, cubismo etc) levaram
a crítica social e as tendências anticapitalistas do modernismo às suas últimas conseqüências,
tendo boa parte dos maiores nomes da época se engajado diretamente na luta política,
inclusive como membros dos partidos comunistas
57
. A negação da arte pela arte viveu um
outro momento decisivo durante o período da ascensão do nazismo e o término da Segunda
Guerra Mundial, quando, por exemplo, o apelo de Benjamin sobre a necessidade da
politização da arte e as teorizações sobre o surgimento da indústria cultural, por Adorno e
Horkheimer, já apontavam, em boa medida, para a crise decisiva do estético, isto é, para o fim
de sua relativa autonomia e para a perpetuação da culpa da arte (ADORNO) nas
sociedades burguesas tardias. Depois da Segunda Guerra mundial, com o advento do chamado
Estado do Bem-Estar social em alguns países da Europa, o modernismo, não resistindo à idéia
do progresso e encantado com a tecnologia, foi aos poucos perdendo seu potencial subversivo,
utópico, ou seja, por força mesmo do desenvolvimento do capital, a cultura modernista foi
assimilada e transformada em patrimônio exclusivo de uma pequena elite, que, resguardada
da penúria material, podia ocupar seu tempo livre com a fruição estética. O pós-moderno e a
teoria nascem no final dos anos 60, de forma pouco sistemática, sem dúvida,
fundamentalmente como uma recusa da cultura modernista tornada oficial e das instituições
petrificadas das “ sociedades administradas ” (ADORNO)
58
. Nesse mesmo período, explodem
57
Uma vez desfeitas as esperanças revolucionárias na Europa, os artistas vanguardistas perderam suas
raízes e não raro se colocaram na perspectiva do decadentismo. Mas a força subversiva dessas formas de arte
mostrou-se capaz de suplantar a decepção radical. Segundo De Micheli: Claro, não poucas experiências do
vanguardismo coincidem seriamente com as do decadentismo e dele fazem parte, mas existe uma alma
revolucionária da vanguarda (que é, afinal, sua alma verdadeira) que não pode de maneira alguma liquidar com
tamanha superficialidade. A existência desta alma revolucionária aparecerá de forma evidente toda vez que um
verdadeiro artista de vanguarda encontrar com suas próprias raízes um terreno histórico novamente propício,
ou seja capaz de proporcionar renovada confiança no fato de que a única salvação não está na evasão, mas na
presença ativa dentro da realidade. (DE MICHELI, 2004, p. 45-46)
58
O conceito adorniano de mundo administrado é inseparável do de indústria cultural
(homogeneização). O que nos ensina Adorno é que, no capitalismo tardio, uma imensa rede de dominação
parece capaz de fazer até mesmo os mais radicais opositores da ordem burguesa incorporarem os princípios
desta. No aforismo Reprodução Piper ”, Minima Moralia (132), o filósofo alemão escreve: A Sociedade é
integral, antes mesmo de ser governada de um modo totalitário. Sua organização envolve mesmo aqueles que
a combatem e impõe normas à sua consciência. Mesmo os intelectuais que têm à mão todos os argumentos
políticos contra a ideologia burguesa sucumbem a um processo de estandardização, que o obstante um
as lutas políticas de libertação colonial e entram em cena os novos movimentos sociais. A
última tentativa revolucionária de se unir arte e política no ocidente ficou a cargo dos
situacionistas franceses, exatamente nessa mesma época, principalmente nas proféticas
intuições de Guy Debord, que anunciavam a derrota da arte, da revolução e a chegada do
capitalismo a seus limites últimos:
O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não
apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o
mundo que se vê é o seu mundo. A produção econômica moderna espalha, extensa e
intensivamente, sua ditadura. Nos lugares menos industrializados, seu reino já está presente
em algumas mercadorias célebres e sob a forma de dominação imperialista pelas zonas que
lideram o desenvolvimento da produtividade. Nessas zonas avançadas, o espaço social é
invadido pela superposição contínua de camadas geológicas de mercadoria. (DEBORD,
2007, Tese 42, p. 42-43,)
Não se trata aqui de fazer qualquer exposição da história da arte moderna ou coisa
que o valha, o que nos interessa é tão-somente indicar, de maneira panorâmica, as
transformações que, na ótica de Jameson, vão incrementar a relevância e a função da utopia
na passagem da cultura modernista, subversiva e claramente utópica, ao pós-modernismo,
uma cultura a-histórica, desprovida de profundidade, na qual predominam o simulacro e o
pastiche, especialmente na forma de imagens, como falava Debord. O desafio de Jameson (e
da crítica cultural marxista, segundo ele) consiste precisamente na árdua tarefa de detectar,
na cultura degradada do capitalismo tardio, onde não mais um fora do mercado e da
ideologia, a presença de impulsos utópicos, de formas de inconformismo com o atual estado
de coisas, isto é, mostrar a inevitável permanência do desejo chamado utopia depois do
fim da utopia ”. O tamanho deste desafio não é nunca subestimado por Jameson, que sintetiza
em poucas frases a mudança fundamental que queremos salientar:
Assim, na cultura s-moderna, a própria cultura se tornou um produto, o mercado
tornou-se seu próprio substituto, um produto exatamente igual a qualquer um dos itens que
conteúdo crassamente oposicionista —, pela disposição a também se acomodarem de sua parte, de tal
maneira os aproxima do espírito predominante, que seu próprio ponto de vista se torna objetivamente cada
vez mais contingente, dependendo apenas de frágeis preferências ou de sua avaliação de suas próprias
chances. ” (ADORNO, 1993, p. 181) Ver ainda o ensaio Notas marginais sobre teoria e práxis ”, in: ADORNO, T.
1995.
o constituem: o modernismo era, ainda que minimamente e de forma tendencial, uma
crítica à mercadoria e um esforço de forçá-la a se autotranscender. O pós-modernismo é o
consumo da própria produção de mercadorias como processo. ” (JAMESON, PLC, p. 14)
Apropriando-se dos valiosos ensinamentos de Marcuse e, principalmente, Ernst Bloch,
Jameson afirma que até mesmo os produtos mais pobres da cultura de massa e as ideologias
políticas mais reacionárias, como o nazismo, trazem consigo uma carga utópica, uma
mensagem ou texto que vai ao encontro de aspirações e anseios mais antigos e legítimos da
humanidade
59
. À crítica cultural marxista, portanto, não pode escapar a idéia de que, enquanto
indivíduos situados no espaço e no tempo de uma totalidade social determinada, somos
incapazes de alcançar algo como uma consciência plenamente transparente, quer dizer,
apenas coletivamente podemos nos livrar inteiramente da ideologia. Desta maneira, podemos
compreender porque, na ótica de Jameson, ideologia e utopia, ainda que de modo diverso,
estão presentes tanto no campo do conservadorismo quanto no da crítica socialista radical
60
. É
nesse sentido que, fugindo das não raras concepções mecânicas e instrumentais da cultura
produzidas pelo próprio marxismo, nosso autor propõe um esquema analítico de extrema
riqueza, no qual uma hermenêutica negativa não pode ser produtiva sem a presença de uma
hermenêutica positiva. Em O Inconsciente Político, Jameson escreve:
“ Essa visão dita uma perspectiva ampliada a qualquer análise marxista da cultura,
que não pode mais se satisfazer com sua vocação desmistificadora de revelar e demonstrar
maneiras pelas quais um artefato cultural cumpre uma missão ideológica específica, ao
legitimar uma dada estrutura de poder, ao perpetuar e reproduzi-la, e ao gerar formas
específicas de falsa consciência (ou ideologia no sentido mais estrito). Ela não deve deixar
de praticar esta função hermenêutica essencialmente negativa (que o marxismo entre
todos os métodos críticos contemporâneos assume hoje), mas também deve buscar, através
e além desta demonstração da função instrumental de um dado objeto cultural, projetar seu
poder simultaneamente utópico como a afirmação simbólica de uma forma de classe
59
A falta de esperança é, ela mesma, tanto em termos temporais quanto em conteúdo, o mais
intolerável, o absolutamente insuportável para as necessidades humanas. É por isto que até mesmo a fraude,
para que seja eficaz, tem de trabalhar com a esperança lisonjeira e perversamente estimulada. É por isto que
justamente a esperança, limitada porém a uma mera manifestação interior ou como consolação voltada para o
além, é pregada de todos os púlpitos. ” (BLOCH, 2005, p. 15)
60
Em relação a este ponto, assinala Jameson, é emblemático o caráter utópico da religião na
sociologia de um pensador inegavelmente conservador como Durkheim. Em sua luta contra as organizações da
classe trabalhadora e a anomia social, a religião aparece como o elemento capaz de suspender as divisões de
classe, ou seja, desempenhar um papel unificador no imaginário coletivo e assim manter ou restituir a coesão
social sob constante ameaça. Ver Fredric Jameson, IP, p. 301-302.
específica e histórica de unidade coletiva. Esta é uma perspectiva unificada, e não a
justaposição de duas opções ou alternativas analíticas: nenhuma das duas é satisfatória em
si mesma. ” (JAMESON, IP, p. 300)
Para que possamos apreender a radicalidade dessa nova forma de conceber as relações
entre ideologia, utopia e cultura precisamos marcar, com muita clareza, o limite histórico das
teorizações da Escola de Frankfurt a respeito da indústria cultural e da autonomia da alta
cultura. Para Jameson, o aparato crítico e negativo produzido pelos frankfurtianos constitui
um legado indispensável para o enfrentamento de nossos atuais dilemas, mas não podemos
trabalhar com qualquer tipo de valoração positiva e apriorística da cultura modernista em
contraposição à cultura de massa
61
. Na perspectiva de Jameson, as avaliações subjetivistas da
cultura, baseadas em padrões ou critérios estéticos definidos, atemporais e mais ou menos
rígidos, não nos permitem perceber que essas duas formas de cultura, outrora dicotômicas, se
tornaram, no pós-moderno, fenômenos objetivamente inseparáveis e dialeticamente
interdependentes. É preciso reconhecer que a tão propalada autonomia da arte se foi (se é que
ela de fato existiu em algum período do capitalismo) e que a cultura de massa não é pura e
simplesmente manipulação, engodo ou falsidade.
As novidades introduzidas por Jameson preparam o marxismo para um embate
rigorosamente crítico e dialético com a cultura pós-moderna e sua incontornável tendência à
repetição (simulacro), sem que, com isso, tenhamos que descartá-la em bloco ou deixar de
reconhecer que, de modo geral, ela é de fato paupérrima. O esforço de Jameson se justifica na
medida em que ele nos oferece um método de análise capaz de demonstrar que a cultura
degradada da pós-modernidade precisa administrar os medos, esperanças e desejos das
coletividades, ou seja, através de suas mais variadas formas, a cultura tem a função primordial
de acalentar, em alguma medida, ainda que de forma ilusória, efêmera ou fraudulenta, os
anseios de felicidade, justiça, amor e liberdade que a lógica do capital não cessa de pulverizar.
Assim sendo, diz Jameson sobre o filme Tubarão (1975):
61
Em uma passagem de A Dimensão Estética, Marcuse defende exatamente o que, para Jameson, é
atualmente inaceitável: Considero autênticas ou grandes as obras que satisfaçam os critérios estéticos
previamente definidos como constitutivos da arte autêntica ou grande arte ’. Como argumento, diria que,
ao longo da história da arte, apesar de todos os critérios se transformarem, permanece fixa uma valoração, que
não nos permite distinguir entre literatura alta e trivial ’, ópera e opereta, comédia e farsa, como
também, no interior dos gêneros, entre boa e má arte. ” (MARCUSE, 1999, p. 12)
procurarei defender que não podemos fazer plena justiça à função ideológica de obras
como essa, a menos que queiramos aceitar a presença no seio delas também de uma função
mais positiva: daquilo que chamarei, seguindo a Escola de Frankfurt, seu potencial utópico
e transcendente essa dimensão mesmo do mais degradado tipo de cultura de massa que
permanece implícita e, não importa quão debilmente, negativa e crítica da ordem social, da
qual, enquanto produto e mercadoria, deriva. Nesta altura do argumento, então, a hipótese é
que as obras de cultura de massa não podem ser ideológicas sem serem, em certo ponto e ao
mesmo tempo, implícita ou explicitamente utópicas: não podem manipular a menos que
ofereçam um grão genuíno de conteúdo, como paga ao público prestes a ser o
manipulado. ” (JAMESON, MV, p. 30)
A dissolução parcial ou completa das fronteiras tradicionais e das diferenciações das esferas
no pós-moderno, que nos orientavam no capitalismo dos monopólios e forneciam as bases
para a auto-compreensão da modernidade, fortalece a idéia de que estamos passando por um
gigantesco processo de unificação e estandardização, no qual sociedades inaceitáveis, carentes
de qualquer sentido de coletividade, se pretendem eternas, a despeito da crise estrutural que se
aprofunda em todos os seus níveis (em escala global). Recapitulemos os antigos pares
dicotômicos que, segundo Jameson, somente podem ser compreendidos em sua nova
dinâmica por meio de uma dialética interrompida ”, na qual os dois termos não podem ser
excluídos e permanecem em tensão: economia/cultura, alta cultura/cultura de massa, primeiro
mundo/terceiro mundo, essência/aparência, espaço/tempo, arcaico/moderno, ideologia/utopia,
Estado/mercado. Esse ambiente, radicalmente anti-utópico e homogêneo, em que os processos
de reificação atingiram níveis impressionantes, obscurece as velhas distinções, tornando a
ideologia e seus modos de reprodução absolutamente naturais (não há mais um fora da
ideologia). Segundo Jameson, a elaboração de ideologias mais sofisticadas tornou-se
desnecessária ou mesmo impossível para a classe dominante, ou seja, as idéias e valores
conservadores já não precisam da política e dos grandes líderes carismáticos para se propagar,
pois é fundamentalmente através do consumismo compulsivo
62
e da publicidade que se
aceitação acrítica da “ vida danificada ” (ADORNO) e da barbárie.
62
Terry Eagleton destaca com muita pertinência a mudança da relação entre prazer e consumo no
capitalismo tardio: “ O capitalismo puritano do velho estilo nos proibia de nos darmos prazer, pois uma vez que
tivéssemos adquirido gosto pela coisa, provavelmente nunca mais seríamos vistos em nosso local de trabalho.
Sigmund Freud sustentava que, se não fosse pelo que chamou de princípio de realidade, simplesmente
ficaríamos jogados por aí o dia todo, em vários estados mais ou menos escandalosos de jouissance. No entanto
um tipo de capitalismo mais esperto, consumista, nos persuade a sermos indulgentes com nossos sentidos e a
Se a ideologia permeia todos os poros da cultura no capitalismo tardio, podemos dizer,
com Jameson, que os impulsos utópicos estão igualmente presentes no cinema, nas artes
plásticas, na música, nos vídeos experimentais e, evidentemente, na publicidade. Ao sujeito,
economica e politicamente paralisado, alienado da produção e incapaz de controlar seu
próprio destino, o consumismo aparece como a única forma de atividade livre, reparadora,
por assim dizer. Desta forma, sustenta Jameson, em reação ao imobilismo social e o
movimento autônomo do capital, o consumismo em todo o seu conteúdo ideológico e
utópico — se transforma num grande alívio:
“ Uma psicologia social marxista tem que insistir acima de tudo nos elementos psicológicos
que acompanham a produção. A razão pela qual a produção (e o que podemos chamar
vagamente de o econômico ’) é filosoficamente anterior ao poder (ou ao que podemos
chamar vagamente de o político ’) está aqui, nessa relação entre a produção e os
sentimentos de poder em primeiro lugar, mas isso é algo que é preferível, e mais
convincente, colocar em sentido contrário (e não apenas porque isso nos ajuda a evitar a
retórica humanista, a saber: ao insistir no que acontece com as pessoas quando suas
relações de produção são bloqueadas, quando elas não tem mais poder sobre a atividade
produtora. A impotência é antes de mais nada exatamente isso, uma mortalha sobre a
psique, a perda gradual do interesse no eu e no mundo exterior, algo bastante parecido com
a descrição do luto por Freud, com a diferença de que se pode recuperar do luto (Freud
mostra como), mas a condição de não-produtividade, uma vez que é um índice de uma
situação objetiva que não muda, tem que ser tratada de outra maneira, uma maneira que
leve em conta sua persistência e inevitabilidade, e que disfarce, reprima, desloque e sublime
uma incapacidade fundamental. É claro que a outra maneira é o próprio consumismo, como
uma compensação pela impotência econômica que é também uma total ausência de poder
político: o que é chamado de apatia dos eleitores é principalmente visível nas camadas
sociais que não têm meios para se distrair através do consumo. ” (JAMESON, PLC, p. 319-
320)
Em função da imensa dilatação do cultural (que é também da mercadoria) no terceiro estágio
do capitalismo e na impossibilidade de serem eliminados, os impulsos utópicos podem ser
detectados na totalidade do pós-modernismo, ainda que de forma bastante débil, afirma
Jameson. A utopia aquele lugar para além da história ganha importância,
paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a perda do que costumávamos chamar de
nos gratificar tão despudoradamente quanto possível. Dessa maneira, não apenas consumiremos mais bens;
também identificaremos nossa própria satisfação com a sobrevivência do sistema. ” (EAGLETON, 2005, p.)
consciência histórica e o caráter essencialmente anti-utópico (anti-transcendente) do nosso
presente acentuam-se radicalmente. Como entender essa constatação? A atual irrelevância da
política teria alguma relação direta com a centralidade que Fredric Jameson atribui à utopia?
O imobilismo histórico e o enclausuramento ideológico alimentam os impulsos utópicos, a
imaginação?
3- A Função política da utopia no mundo da pós-política
Considerando o caminho até aqui percorrido, podemos dizer que, no moderno,
enquanto a cultura era crítica, escandalosa e transcendente, o discurso e as ações políticas em
favor da utopia, ou seja, da transformação socialista, eram, na mesma medida, radicais, claros
(havia um sujeito revolucionário, havia um modelo de revolução), mas a função propriamente
política da utopia encontrava-se, por assim dizer, desativada. Já no pós-moderno — o reino da
pós-política
63
em que pesem toda a sua carga de passividade, o conformismo em relação à
ordem do capital e a falência do movimento operário, a função política da utopia ganha um
enorme relevo. Já demos algumas pistas que explicam em parte essa curiosa e dramática
situação, mas agora precisamos tentar entendê-la com a profundidade que a obra de Jameson
exige.
A função política da utopia não se deixa compreender, na perspectiva de Jameson,
como uma resposta ou reação, no âmbito da cultura, a um quadro de imobilismo social
produzido por uma crise de valores, transformações da subjetividade e pelo fim do
socialismo real ”, quer dizer, por mais que esses fatores desempenhem um papel relevante na
63
Essa noção, desenvolvida por Slavoj Zizek nos últimos anos, é importante para defendermos a idéia
de que o imobilismo histórico do nosso tempo é mascarado e amparado por um intenso movimento na superfície
da sociedade burguesa. Os movimentos políticos pós-modernos são, para Zizek, o retrato da interpassividade.
Segundo ele: É fácil mostrar como esta noção de interpassividade se liga à situação global do nosso tempo. O
domínio das relações de mercado capitalistas constitui a Outra Cena da chamada repolitização da sociedade civil,
defendida pelos advogados das políticas identitárias e outras formas pós-modernas de politização: o conjunto
do discurso sobre as novas formas de política que explodem por todos os lados, formas centradas sobre paradas
em jogo de ordem particular (direitos dos homossexuais, ecologia, minorias étnicas...), toda essa incessante
atividade de identidades fluidas, móveis, de múltiplas coligações ad hoc em curso de elaboração, etc., tem
qualquer coisa de profundamente inautêntico, e evoca, em última análise, o neurótico obsessivo que ou fala
permanentemente ou se mantém freneticamente ativo, precisamente com o fim de garantir que alguma coisa
aquilo que realmente importanão será perturbada, continuará sem mudar. Em resumo, o problema em última
instância da pós-política de hoje é o fato de ser fundamentalmente interpassiva. ” (ZIZEK, 2006, p. 148)
nossa questão, devemos ir às bases do capitalismo atual para apreender as determinações
concretas do enclausuramento ideológico ao qual nos referimos. Com esse objetivo, vale a
pena recorrermos a Robert Kurz, cujo diagnóstico da crise mundial do sistema produtor de
mercadorias vai ao encontro de algumas das teses mais importantes de Jameson,
especialmente no diz respeito à conclusão dos processos de modernização e o conseqüente
esgotamento do projeto da modernidade
64
.
O colapso da modernização, a nível global, assinala, segundo Kurz, a chegada do
capitalismo a seus limites históricos e gicos, ou seja, o sistema produtor de mercadorias
dominou inteiramente o planeta e, hoje, somente permanece de por conta de uma série de
recursos e mecanismos que negam frontalmente a lógica de funcionamento do mercado e sua
suposta capacidade de auto-regulamentação
65
. A crise estrutural da ordem do capital e a
derrocada dos países do leste europeu, sugere Kurz, são momentos diferentes de um mesmo
fenômeno, que deve ser compreendido, em suas mais amplas implicações, como a crise
terminal da sociedade do trabalho
66
. A produção atual, turbinada pela informática, a
microeletrônica, a robótica etc, tomou o lugar do antigo modelo de acumulação, o fordismo,
mas o fez, em resposta a crise iniciada na década de 1970, às custas da dissolução da
substância trabalho. Devemos ressaltar, com Kurz, que a crescente incapacidade do capital de
explorar trabalho humano não assinala, historicamente, o fim daquele processo absolutamente
necessário que Marx chamou de metabolismo do homem com a natureza; a crise da sociedade
do trabalho, que produziu o chamado desemprego estrutural, diz respeito ao processo
fetichista de transformação do trabalho em dinheiro, ou seja, à exploração do trabalho que
64
Ver, especialmente, JAMESON, F. O Marxismo realmente existente. In: Espaço e Imagem: Teorias
do pós-moderno e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1995.
65
Podemos lembrar aqui as ões dos bancos centrais europeus e dos Estados Unidos que, em 2007,
despejaram, em poucas semanas, quase 400 bilhões de dólares no mercado mundial a fim de impedir o colapso
do sistema financeiro internacional. Mais recentemente, o jornal O Globo, do dia 8/09/2008, publicou a
seguinte notícia: “ O governo americano assumiu ontem o controle da Fannie Mae e da Fredie Mac, gigantes do
setor de hipotecas afetados pela crise financeira dos EUA. Ao anunciar um pacote de medidas, o secretário do
Tesouro, Henry Paulson, sinalizou ao mercado que pode injetar até US$ 200 bilhões para evitar a falência das
empresas. Se isso for necessário, será o maior socorro na História do país. ”
66
Nem o descontentamento latente do terço de pobres na periferia e tampouco a repercussão das
crises e colapsos de outras regiões do globo nos centros ocidentais constituirão a última fase do processo de
crise mundial. Pois a promessa de uma nova prosperidade futura também cobrirá de vergonha as economias
do ocidente, cujas zonas de normalidade vêm se tornando cada vez mais restritas. A lógica da crise está
avançando da periferia para os centros. Depois dos colapsos do Terceiro Mundo nos anos 80 e do socialismo
real no começo dos anos 90, chegou a hora do próprio ocidente. O princípio da rentabilidade ainda partirá para
uma última corrida deslumbrada antes de percorrer, até o fim, seu caminho duplo de emancipação negativa
e destruição social-ecológica. ” (KURZ, 2004, p. 192)
encontra sua finalidade em si mesmo: o trabalho abstrato
67
. A ordem burguesa tem flutuado
desde então, e cada vez mais, sobre o capital financeiro, num movimento suicida, buscando
neste uma saída para a sua crise sistêmica de acumulação. Essa crise, sem precedentes, parece
confirmar, em seu andamento, a dissolução das bases sobre as quais se ergueu a modernidade
e o fim das ilusões a respeito das relações entre Estado e mercado. De acordo com Kurz:
“...o que se deu não foi uma conciliação assimiladora de mercado e Estado, num processo
ontológico de transformação das sociedades industriais marcadas pelas ciências naturais,
mas sim um colapso histórico. Se esse colapso não significa simplesmente o triunfo do
sistema ocidental da economia de mercado como uma formação extrínseca ao socialismo
real, já falecido e enterrado sem cerimônias, e indica de fato a existência de uma base
comum danificada que vai se tornando obsoleta, então essa base deve ser procurada para
além tanto do paradigma da sociedade industrial como das relações entre mercado e Estado.
Mercado e Estado, bem como os agentes da tecnologia e das ciências naturais uma vez
postos em movimento, seguem uma gica básica social mais profunda; a identificação
desta como sociedade do trabalho não denomina, de modo algum, um estado ontológico
fundamental da humanidade. (...)...essa crise deve ser procurada naquele nível em que se
encontram todos os sistemas sociais até agora conhecidos na modernidade. O termo, há
algum tempo em circulação, da crise da sociedade de trabalho, mesmo que apareça por
enquanto apenas como problemática particular e não se refira às formas sociais básicas,
pode ter nascido do pressentimento dessa metacrise, que está amadurecendo. (KURZ,
2004, p. 17)
Mais do que nunca, os combalidos Estados-nação estabelecem relações fraudulentas,
promíscuas e insustentáveis com o mercado, num processo fetichista e irreversível de
endividamento global.
67
Se prescindirmos do valor-de-uso da mercadoria, lhe resta ainda uma propriedade, a de ser
produto do trabalho. Mas, então, o produto do trabalho já terá passado por uma transmutação. Pondo de lado
seu valor-de-uso, abstraímos, também, das formas e elementos materiais que fazem dele um valor-de-uso. Ele
não é mais mesa, casa, fio ou qualquer outra coisa útil. Sumiram todas as qualidades materiais. Também não é
mais o produto do trabalho do marceneiro, do pedreiro, do fiandeiro ou de qualquer outra forma de trabalho
produtivo. Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, também desaparece o caráter útil dos
trabalhos neles corporificados; desvanecem-se, portanto, as diferentes formas de trabalho concreto, elas não
mais se distinguem umas das outras, mas reduzem-se, todas, a uma única espécie de trabalho, o trabalho
humano abstrato. Vejamos o que é esse resíduo dos produtos do trabalho. Nada deles resta, a não ser a
mesma objetividade impalpável, a massa pura e simples do trabalho humano em geral, do dispêndio de força
de trabalho humana, sem consideração pela forma como foi despendida. Esses produtos passam a representar
apenas a força de trabalho humana gasta em sua produção, o trabalho humano que neles se armazenou. Como
configuração dessa substância social lhes é comum, são valores, valores-mercadorias. ” (MARX, 2006, p. 60)
Kurz interpreta o curso da modernidade, fundada sobre a exaltação do trabalho como
valor supremo, como uma sucessão de ciclos de monetarismo e estatismo. Nesses ciclos, a
economia capitalista e o socialismo de caserna (KURZ) historicamente superaram suas
crises ora fortalecendo o Estado contra as falhas do mercado, ora minimizando o papel do
Estado em favor da liberdade de comércio. Não de agora, no entanto, essas alternativas já não
produzem qualquer efeito positivo ou civilizatório, diz Kurz, pelo contrário, as tradicionais
tentativas de resolver a crise tem apenas contribuído para aprofundá-la ainda mais. Os Estados
dependem do mercado para financiar as despesas de seu funcionamento como um todo, que
crescem passo a passo com as demandas da economia, que, por sua vez, no contexto da atual
crise de acumulação, precisa desesperadamente de incentivos e subsídios do Estado. O
resultado inevitável dessa lógica é o galopante endividamento estatal
68
.
Um outro ponto fundamental dessa crise, que reforça a idéia do enclausuramento, da
chegada a uma situação limite, desprovida de alternativas visíveis, diz respeito à práxis
política, mais precisamente à incapacidade (ou falta de vontade?) do movimento dos
trabalhadores de dar fim a esse imobilismo destrutivo. A análise de Kurz mostra, de modo
bastante convincente, que a chamada contradição estrutural entre capital e trabalho
inquestionável para o marxismo tradicional revelou-se definitivamente, na pós-
modernidade, uma contradição pouco explosiva. Segundo Menegat, assim como Estado e
mercado, capital e trabalho têm se condicionado mutuamente, principalmente depois da
Segunda Guerra Mundial, como sócios na barbárie
69
, como inimigos que, enquanto produtos
da mesma ordem — incapazes de imaginar e oferecer qualquer saída emancipatória do
sistema brigam sem sair do lugar (informação verbal
70
). A integração da classe
68
Se o recurso da tributação regular não funciona, o Estado deva passar para um segundo recurso,
cujo caráter fundamentalmente aventureiro aos poucos está sendo esquecido: o endividamento junto aos
participantes do mercado da sua economia nacional. O Estado não mais se financia, portanto, só com os
impostos, que ele cobra graças à sua pretensão de soberania e graças ao seu monopólio da força, mas toma
dinheiro emprestado de seus cidadãos, como um participante comum do mercado financeiro. Hoje, esse
processo não é mais considerado como uma atitude em princípio aventureira; discute-se somente até que
montante do produto social bruto o Estado pode se endividar para ainda ser considerado solvente. (KURZ,
1998, 104-105)
69
Essa idéia está longe de ser lugar comum no marxismo e deve ter seu desenvolvimento bem situado.
Ver, principalmente, ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. 1985 e MENEGAT, 2003.
70
Curso Tópicos Especiais em Teoria Social ”, oferecido pelo professor Marildo Menegat no
Programa de Pós-graduação da ESS, UFRJ, (2008/2).
trabalhadora, diz Kurz, demorou a ser percebida (e ainda não o foi por boa parte da
esquerda) em função de uma mistificação das classes sociais:
“...em vez de criticar o próprio capital, passou-se a criticar os capitalistas ’ que tinham de
aparecer como sujeitos pessoais da relação social da mercadoria, que na verdade não tem
sujeito algum. As classes, mistificadas como metasujeitos sociais, assumiram assim um
caráter estranhamente familiar, tal como o possuem os deuses da Antiguidade, que também
se apresentavam como caracteres pessoais com comportamento muito humano. Desse
modo, uma categoria social analítica, a classe trabalhadora ’, transformou-se numa pessoa
coletiva com identidade consistente que, independentemente de pessoas empíricas, atua
de forma quase biográfica. A identidade de classe encontrou sua razão numa ontologia
equivocada do trabalho, que não foi compreendido como elemento e parte integrante do
sistema fetichista da mercadoria, mas sim de forma quase bíblica (isto é, protestante ’),
como essência eterna da humanidade que apenas externamente foi violentamente
modificada pelos ‘ exploradores ’, os capitalistas. ” (KURZ, 2004, p. 45)
Delineadas as linhas gerais da crise estrutural que está na base do pós-modernismo, temos
agora os elementos necessários para voltar a Jameson com o propósito de entender a função
política da utopia no contexto do capitalismo tardio.
Devemos partir de uma tese central do crítico norte-americano, colocada desde a
introdução deste trabalho, qual seja: o pós-moderno deve ser concebido como um conjunto de
modificações frenéticas, aleatórias, que, contrariamente a sua auto-imagem, sustenta e ratifica
o que ele pensa ter mandado pelos ares, a saber: um sistema total, um imobilismo histórico
nunca visto, onde toda a exaltação das diferenças e da liberdade se desfaz em ideologia
quando confrontada com a realidade. Tendo em vista esse jogo dialético entre imobilismo
(identidade) e movimento (diferença absoluta), Jameson afirma que a utopia torna-se
absolutamente necessária nos momentos da suspensão da política, isto é, naqueles períodos
históricos de impotência total, claramente anti-utópicos, quando, diante de uma realidade
insuportável, nenhuma solução está dada e o consenso geral é que de fato é impossível
transformar o existente. Nas palavras de Jameson:
Talvez seja mais fácil começar dizendo: a política está sempre entre nós e é sempre
histórica, sempre no processo de mudar, evoluir, desintegrar-se e deteriorar-se. Quero
transmitir uma situação na qual as instituições políticas pareçam tanto imutáveis quanto
infinitamente modificáveis; não surgiu no horizonte nenhum meio que permita a menor
possibilidade ou esperança de modificar o status quo, mas, mesmo assim, na mente e
talvez por essa mesma razão —, todo tipo de variação e recombinação institucional parece
imaginável. ” (JAMESON, PU, p. 167)
A não-liberdade e a paralisia do real são, portanto, as pré-condições de uma nova liberdade,
ainda que puramente intelectual e construtivista. A suspensão da política, ou seja, sua
separação radical da vida cotidiana, não é uma novidade do capitalismo atual, muito pelo
contrário, diz Jameson. A maior parte da história da humanidade se deu em longos períodos
de desesperança, incapacidade de ação e impotência geral, nos quais não se conseguia
conceber qualquer revolta efetiva contra os poderes constituídos. Nessas épocas de
imobilidade imutável ”, no entanto, a ausência de qualquer imagem de futuro ou alteridade
radical nos permite, em sua desesperada calmaria, desenvolver liberdades mentais e jogos de
imaginação em que até mesmo a mudança mais premente e desejável pode se tornar
previsível, pálida. Essa caracterização parece nos dizer muito sobre o pós-moderno e seu
imobilismo. Para Jameson:
São todos períodos de grande fermentação social, mas aparentemente sem leme, sem
força motriz nem direção; a realidade parece maleável, mas não o sistema; e é essa própria
distância entre o sistema imutável e a inquietude turbulenta do mundo real que parece criar
um momento de jogo ideal, livre e criador de utopias na própria mente ou na imaginação
política. Se isso transmite algum tipo de imagem plausível da situação histórica em que as
utopias são possíveis, então resta ponderar se isso também não corresponde à da nossa
própria época. ” (JAMESON, PU, p.168)
O fator que confere sentido e força à utopia é o seu distanciamento do mundo real, do
presente que nos aprisiona. Segundo Jameson, o poder crítico desse distanciamento é ainda
mais consistente do que aquele que Marcuse identificou na cultura em seu célebre ensaio de
1937 (Sobre o caráter afirmativo da cultura). A liberdade da imaginação evidentemente não
constitui uma base para um programa político revolucionário, seu propósito fundamental é
negativo, ou seja: a melhor utopia, ensina Jameson, é aquela que permite que nos tornemos
mais conscientes das nossas impossibilidades reais, dos limites impostos à vida social,
produzindo, assim, um diagnóstico elaborado de uma situação de desespero, de clausura,
como a nossa, para a qual não existem soluções dadas. Acima de tudo, não dispomos de um
sujeito coletivo para enfrentar o capital. A utopia revela o fracasso e funciona, em certa
medida, como um contrapeso à indisponibilidade da história.
Na ótica de Jameson a idéia utópica é produzida por meio de uma experiência do
pensamento, que, impulsionada pela imaginação, realiza a mediação representacional entre a
alteridade radical por ela produzida e a homogeneidade do mundo (identidade). Um primeiro
problema surge quando lembramos que o pós-moderno caracteriza-se, em boa medida, pela
supressão das mediações e pelo empobrecimento geral da experiência. Cevasco explica essa
questão sublinhando o valor cognitivo da utopia:
“...uma experiência de pensamento é uma tentativa de se resolver um problema usando o
poder da imaginação. Esses experimentos são usados para tentarmos compreender algo
prático por meio de uma analogia. É claro que as utopias em geral e a ficção científica, em
particular, constituem exatamente uma experiência de pensamento, a qual nos oferece uma
variação experimental em nosso universo empírico. Agora, que tipo de problema, podemos
dizer, elas estão tentando solucionar? É nesse estágio que a própria discussão de Jameson
sobre a ação simbólica pode ser útil. Lembramos que em O Inconsciente Político ele
demonstrou que as narrativas são atos sócio-simbólicos, isto é, tentativas de obter soluções
simbólicas para contradições reais, políticas e sociais. Vimos que uma das características
mais paralisantes do mundo contemporâneo é o cancelamento da experiência, na medida
em que ela, sem remorso, repete que tudo o que podemos desejar é mais do mesmo. Na pior
das hipóteses, a experiência de pensamento que é a construção das utopias desvela esta
forma corrente de ideologia, nos garantindo precisamente o que a ideologia pretende evitar,
isto é, algum tipo de conhecimento sobre as reais condições de vida e pensamento no
capitalismo pós-industrial. Aqui está o poder cognitivo das utopias. (CEVASCO, p. 7-8,
2006)
A utopia deve ser compreendida como um enclave imaginário, como um corpo
estranho que na ausência da política revolucionária invade o interior do espaço social
real, introduzindo, por meio de uma experiência do pensamento (imaginação), as mais
variadas formas de alteridade radical, ou seja, exatamente o que nos falta na totalidade do pós-
moderno. O distanciamento da política concede à utopia, enquanto enclave imaginário, uma
autonomia considerável em relação às regras sociais, uma liberdade fundamental frente à
lógica da mercadoria. Esse afastamento evidencia, sem dúvida alguma, a impotência política
da idéia utópica, mas, ao mesmo tempo, nos oferece um espaço permanente, irremovível, no
qual podemos imaginar novas formas sociais. A crítica de Jameson da pós-modernidade nos
mostra, entretanto, que esse jogo incessante da imaginação não está livre de limites. Se, como
dissemos anteriormente, o inconsciente foi, ao lado da natureza, o último enclave não
capitalista colonizado pela forma mercadoria, o velho argumento de que o mercado se baseia
na essência mesmo da natureza humana, em nossos desejos, pode agora parecer incontestável.
Essa idéia, que, de acordo com Jameson, deve ser combatida de todas as maneiras, sem
trégua, põe em cena uma contradição entre o discurso econômico e uma das tendências
definidoras do pós-moderno. Para o pensador norte-americano:
“...o apelo à natureza humana não é mais plausível no pós-moderno, no espírito
construtivista do capitalismo tardio e suas ideologias. Esta é de fato a ambigüidade do pós-
modernismo enquanto filosofia, isto é, seu progressivo encorajamento da multiplicidade
anti-essencialista, e também seu perspectivismo, refutam a retórica do capitalismo tardio e
do mercado enquanto tal. Quanto ao planejamento, socialista ou de outro tipo, o que
poderia ser mais complexamente pós-humano do que a tentativa de controlar as
multiplicidades da produção contemporânea e do consumo, do mercado de trabalho, do
investimento e da ecologia? (JAMESON, AF, p. 163)
A idéia anti-utópica por excelência de que existe uma identidade entre mercado e
natureza humana (pecaminosa, agressiva), ou seja, uma inclinação natural dos seres humanos
para realizar negócios e ganhar dinheiro, é, provavelmente, o ponto central da luta discursiva
que o marxismo, valendo-se de seu inigualável arsenal crítico, deverá travar, no interior do
pós-modernismo, com o objetivo de demonstrar suas incongruências, fraquezas e seu acordo
inconfesso com o capital.
As possibilidades da imaginação e os violentos constrangimentos que lhe impõe a
cultura pós-moderna devem ser entendidos como tensões constitutivas e incontornáveis das
relações entre ideologia e utopia na contemporaneidade. Por mais que o capitalismo tardio
precise de inconscientes maleáveis, flexíveis, os impulsos utópicos e o desejo não podem ser
suprimidos ou totalmente moldados pelo mercado. Como eliminar a esperança e as promessas
de uma vida melhor dos sonhos de consumo e de felicidade vendidos pela publicidade e a
indústria cultural, por exemplo? Numa palavra: querendo ou não, o capital necessitará sempre
da imaginação, de desejos incontroláveis e de vários tipos de utopia. Cabe ao marxismo tentar
encaminhar os impulsos utópicos para outros objetivos, insiste Jameson. Partindo daí, nosso
autor procura explicar que, mesmo os argumentos mais agressivos contra a utopia são, eles
mesmos, utópicos. O traço mais ousado da obra de Bloch, assinala Jameson, está
precisamente nessa percepção, ou seja: pode ser muito mais interessante e produtivo
identificar e desbloquear os impulsos utópicos onde eles são radicalmente repudiados e/ou
recalcados (o nazismo é o exemplo mais acabado nesse caso) do que simplesmente olharmos
para os lugares onde eles se mostram claramente. Assim, diz Jameson:
Se, de fato, considerarmos que o desejo utópico está em toda parte e algumas libidos
freudianas individuais ou pré-individuais são ampliadas e complementadas por um domínio
do desejo social, no qual o anseio por relações coletivas transfiguradas é não menos
poderoso e onipresente, então não é absolutamente de surpreender que esse inconsciente
político particular deva ser identificado mesmo onde é mais apaixonadamente
desacreditado e denunciado. ” (JAMESON, ST, p. 66)
O discurso vitorioso do capitalismo esconde, nesse sentido, uma antinomia, sugere Jameson.
O mercado precisa fazer uso das figurações ou representações de seu adversário, isto é, do
discurso utópico, e, no que é forçado a usar as armas de seu inimigo para se auto-glorificar
como o melhor dos mundos possíveis, acaba difundindo mensagens e idéias contrárias a sua
lógica.
A questão da utopia traz em seu cerne um sério dilema acerca das relações entre
subjetividade e transformação social: afinal, uma revolução requer uma verdadeira e radical
mutação no que costumamos chamar de natureza humana, ou seja, a criação de um novo ser
humano, ou, diferente disso, a possibilidade de se construir uma sociedade sem classes já teria
suas bases na própria natureza humana, apenas necessitando ser libertos das amarras do
capital, que, em função de sua lógica anti-social, os oprime e os distorce? A tentação de optar
por uma dessas alternativas é quase irresistível e os debates em torno desse problema tem uma
longa história nas lutas políticas. Para Jameson, no entanto, devemos nos manter firmes e não
tentar eliminar a tensão aqui expressa. A escolha, nesse caso, somente contribuiria para
desqualificar a utopia, isto é, para reforçar o velho discurso da direita sobre a supressão do
indivíduo e o desejo de uniformização. De acordo com Jameson:
Se a diferença absoluta é alcançada, em outras palavras, nos encontramos num
mundo de ficção científica como aqueles de Stapledon, nos quais os seres humanos m
dificuldades amesmo para se reconhecer (...) Por outro lado, se a Utopia é arrastada para
perto demais das realidades do cotidiano atual, e seu sujeito começa a se aproximar muito
de nossos vizinhos e nossos desorientados cidadãos, retornaremos, paulatinamente, a um
jardim de variedades reformistas ou à política social-democrática, que pode perfeitamente
ser utópica num outro sentido, mas que, no entanto, abandonou qualquer exigência de
transformação radical do sistema. ” (JAMESON, AF, p. 168)
Mantendo a tensão entre as duas opções mencionadas, Jameson reconhece, em cada uma
delas, um momento de verdade. A utopia, enquanto desejo do que ainda não existe, é uma
forma que não possui um conteúdo verdadeiro, pré-determinado ou definido. Seu conteúdo,
produzido pelo próprio movimento da forma, terá necessariamente as marcas de nossa
experiência histórica, quer dizer, as representações e imagens da utopia serão sempre
ideológicas, distorcidas e limitadas, ainda que possamos ou tentemos projetar as formas mais
radicais de alteridade. O domínio da identidade (ela representa o modo de produção
estabelecido) sobre a diferença real se faz presente aqui, restringindo a imaginação e nos
impedindo de atribuir qualquer tipo de determinação concreta ou conteúdo transparente (não-
ideológico) à utopia.
Recapitulando o que dissemos até o momento sobre o significado e a função da utopia,
temos as seguintes teses: o conteúdo da utopia é sua própria forma, sempre ideológico, vazio
de determinações práticas e historicamente limitado; sua função política primordial é
essencialmente negativa, ou seja, permitir que enxerguemos a situação de enclausuramento
em que nos encontramos no presente; a utopia é uma forma ineliminável da vida social, em
que pese a presença permanente de seu oposto, quer dizer, do anti-utopismo (medo,
ansiedade); a idéia utópica se constrói por meio de experiências do pensamento, que, em seu
distanciamento do real, introduzem, na paisagem homogênea, diferenças verdadeiras; os
impulsos utópicos configuram um jogo dialético entre diferença e identidade (entre alteridade
e persistência do mesmo). Dito isto, podemos colocar uma outra questão fundamental
envolvendo a utopia, a saber, a relação do declínio das energias utópicas
(compreensivamente associado ao fim do comunismo soviético) com a crise de representação
que caracteriza o pós-moderno. Ao explicar as bases desse problema, Jameson sublinha uma
diferença entre a crise de representação que fundou o modernismo e aquela que está na
origem do pós-modernismo:
Está última não pode, é claro, ser confundida com a relação do modernismo com uma
crise de representação que o antigo movimento tentou superar através heróicas invenções
formais e das grandiosas e proféticas antecipações dos visionários modernistas. Na pós-
modernidade a representação não é concebida como um dilema, mas, sim, como uma
impossibilidade, que pode ter dado fim a um tipo de razão cínica no âmbito da arte,
substituindo-a por uma multiplicidade de imagens, as quais nenhuma corresponde à ‘
verdade ’. Já argumentei em vários lugares que tal relativismo oferece caminhos novos e
produtivos à práxis; e que o razão para temermos que as utopias pós-modernas não
serão tão energéticas em seu novo contexto histórico quanto o foram as antigas nos séculos
passados. A dúvida mais imediata está na diferenciação das novas utopias de suas
predecessoras. ” (JAMESON, AF, p. 212)
No pós-moderno, em sua luta contra um sistema universal, a utopia se vê diante de um
outro dilema característico do nosso tempo: as transformações da relação entre o local
(tradicionalismo cultural) e o global (multiculturalismo). Para Jameson, as tradicionais formas
de nacionalismo e as tentativas de fortalecer culturas locais são, do ponto de vista do
socialismo, pouquíssimo promissoras. Os argumentos do crítico norte-americano para
justificar a debilidade dessas práticas são muito interessantes, e mais uma vez põe em
destaque a dialética entre diferença e identidade. Segundo Jameson, em virtude da
globalização, o local tornou-se, em todas as suas formas, dependente do capital transnacional,
que, aos poucos, faz as indústrias nacionais desaparecerem. Esse fato é muito visível no
turismo, que, enquanto espaço novo de criação e reprodução, ao contrário de valorizar e
promover costumes e culturas locais, como pretendem os entusiastas do multiculturalismo,
impulsiona vigorosamente o estabelecimento de uma cultura global, homogênea e fetichista.
Sob o disfarce do pluralismo e das festividades locais, o pós-modernismo ou disneyficação,
como ironicamente coloca Jameson, reproduz artificialmente as imagens culturais
tradicionais, transformando-as em simulacros, em produtos para o mercado mundial (o
carnaval carioca é um ótimo exemplo), que, de uma forma ou de outra, bloqueiam a
experiência do presente e apagam o que havia de autêntico nas culturas locais, ou seja: o
próprio passado, a história. Jameson nos explica como esse processo contribui para a
radicalização da situação de enclausuramento:
a gentrificação
71
e a disneyficação também devem ser vistas como componentes da
especulação da terra que, ao lado do capital financeiro, também define centralmente a pós-
modernidade (ou capitalismo tardio). Em nível algum, nenhum desses processos está
71
Processo pelo qual, por meio de restaurações ou transformações, as culturas ou ambientes
populares e tradicionais tornam-se agradáveis às classes abastadas.
assegurando o futuro do local: o turismo e a disneyficação são as faces gêmeas daquele
futuro que, com admiração, observa primeiramente o terceiro e depois o primeiro mundo.
Podemos assim supor que a oposição entre o global e o local é um dualismo ideológico que
gera não apenas falsos problemas, mas, também, falsas soluções: pluralismo e
multiculturalismo são os filhos gêmeos desse dualismo quando ele deseja sintetizar seus
elementos positivos num termo complexo ou imagem de solução. A multiplicidade torna-se
o tema central dessa solução imaginária, cujo dilema conceitual permanece sendo a aquele
da clausura.” (JAMESON, AF, p. 216)
Vemos, assim, reforçadas as teses do cancelamento dos pares dicotômicos da modernidade e
do desaparecimento das verdadeiras diferenças, na medida exata em que o local se dissolve no
movimento global do capital e as experiências vividas do terceiro e do primeiro mundo se
tornam, cada vez mais, semelhantes. A homogeneização do mundo pelo capital e o
enclausuramento ideológico/cultural do pós-moderno são, portanto, momentos de um mesmo
processo.
Uma das críticas mais comuns ao materialismo histórico e ao próprio Marx é aquela
segundo a qual o marxismo nunca desenvolveu uma teoria política stricto senso, pois
preocupou-se, sempre e demasiadamente, com o econômico. Levando em conta a mesmice e a
irrelevância em que caíram as disputas políticas tradicionais, ou seja, a condição pós-política
em que vivemos nos regimes democráticos contemporâneos, talvez possamos, agora, quando
o capitalismo atingiu seus limites, ver o chamado economicismo com outros olhos. Jameson
analisa essa questão de maneira muito sugestiva, tirando, desta suposta lacuna da tradição
marxista, bons argumentos em favor da utopia. Segundo ele, o fato de Marx não ter elaborado
uma filosofia política deve ser encarado, hoje, como um ganho, isto é, como a confirmação de
suas teses que repetidamente nos alertaram a respeito da pretensa autonomia da política e das
formas de consciência
72
. Nesse sentido, a ausência, na obra de Marx, de um conjunto de
72
“...na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações sociais determinadas,
necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau
de desenvolvimento das forças produtivas. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura
econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem determinadas formas de consciência social. Não é a consciência dos homens que determina o
seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. (...) A transformação da base
econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é
necessário sempre distinguir entre a alteração material que se pode comprovar de maneira cientificamente
rigorosa das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou
filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito,
levando-o às suas últimas conseqüências. Assim como não se julga um indivíduo pela idéia que ele faz de si
próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo
medidas ou um programa político a ser adotado depois da revolução (ou ainda uma teoria
sobre as instituições), vai ao encontro da idéia de que a utopia é uma forma vazia de
conteúdos definidos, o que nos livra, pelo menos em tese, da tentação de projetar um futuro
fechado à imaginação, cristalizado, incompatível com um pensamento radicalmente
historicista como o de Marx e a construção de uma sociedade sem classes. Para Jameson,
Marx percebeu inequivocamente que, em função da lógica interna do capital, a economia
dominaria inteiramente a vida social, e que, portanto, uma teoria crítica revolucionária deveria
tomar a forma de uma crítica da economia política, que evidenciaria, entre outras coisas, o
caráter falacioso da autonomia da consciência e da cultura. A suposta negligência de Marx em
relação ao político não foi um acidente teórico, afirma Jameson. Podemos, com isso, levantar
a hipótese de que, justamente nesse ponto, encontra-se o espaço da utopia do pensamento de
Marx, ainda que, em suas críticas e ambivalentes relações com os socialistas utópicos, ele não
o tenha reconhecido como tal
73
. Em seu ensaio intitulado Filosofia e Teoria Crítica, de 1937,
Marcuse chama a atenção para o que podemos entender como o núcleo idealista do
materialismo histórico, relacionando-o, de maneira muito perspicaz, com a utopia e o papel
da imaginação. Vale à pena reproduzirmos uma passagem central desse texto:
“ O mau materialismo da filosofia é superado na teoria materialista da sociedade. Ele não se
dirige apenas contra as relações de produção, que dominam os homens em vez de serem
dominadas por eles. Este é o idealismo que está no fundamento de seu materialismo. Seus
conceitos construtivos, também, possuem um resíduo de abstratividade, enquanto a
realidade efetiva, para a qual tendem, ainda não está dada. Entretanto, aqui, a abstratividade
não se fundamenta em desviar o olhar da ordem estabelecida, mas sim em olhar para o
status futuro dos homens. Ela não é superada por uma outra teoria correta do existente
(como acontece com a abstratividade idealista na crítica da economia política) depois
não nenhuma teoria nova melhor, mas sim tão-somente a realidade racional mesma. O
abismo entre ela e o que existe não pode ser construído pelo pensamento conceitual. Para
preservar no presente o que ainda não está presente como meta, a fantasia é necessária. Que
a fantasia se relacione de modo essencial com a filosofia, resulta da função que foi
designada sob o título de imaginação pelos filósofos, particularmente por Aristóteles e
Kant. Devido a sua capacidade única de ‘ intuir um objeto mesmo ausente, de criar algo a
contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças
produtivas sociais e as relações de produção. ” (MARX, 2003, 5-6)
73
Ver, especialmente, a seção do Manifesto Comunista em que Marx elenca alguns tipos de
socialismo, mostrando suas falácias, limites e, em alguns casos, seus méritos (o socialismo ou comunismo
utópico).
partir do fundamento do material dado do conhecimento, a imaginação indica um elevado
grau de independência, a liberdade em meio a um mundo de não-liberdade. Ao ultrapassar
o presente, pode antecipar o futuro. ” (MARCUSE, 2006, p. 154-155)
Muito diferente disso, o pós-modernismo (não sem a participação de grande parte da
esquerda), encerrado num presente perpétuo, vem ressuscitando, em sua cegueira histórica,
problemas políticos muito superados, que, como adverte Jameson, apenas contribuem para
bloquear a experiência real do mundo contemporâneo e garantir a manutenção do sistema do
capital. Segundo o pensador norte-americano:
“...algo como uma filosofia política vem igualmente ressurgindo, arrastando por trás de si
todas essas questões antigas sobre a Constituição e a cidadania, a sociedade civil e a
representação parlamentar, a responsabilidade e a virtude cívica, que constituíram os
tópicos mais ardentes do final do século XVIII, tão certamente quanto elas não nos
pertencem. É como se nada se houvesse aprendido dos desafios do século revolucionário
que se concluía, e que confrontou o pensamento tradicional burguês sobre o Estado com as
ressentidas contradições de classe e do ser social coletivo. Pois, em si mesmos, todos esses
antigos conceitualismos constituíram de tal maneira reflexos de uma situação histórica
muito diversa da nossa especificamente, a transição do feudalismo para o capitalismo...
” (JAMESON, MS, p. 10)
Esse é exatamente o tom da pós-política do pós-modernismo, que, em seus discursos radicais
de ruptura, nada mais faz do que ratificar a suposta inevitabilidade do capitalismo,
demonstrando, assim, contra suas próprias intenções, seu caráter pragmatista e afirmativo da
ordem. O repúdio à utopia não nos enganemos está enraizado também na esquerda,
que, nas últimas décadas, rendeu-se totalmente às normas estabelecidas, às chamadas regras
do jogo, acreditando que por meio de reformas constitucionais, eleições e da ampliação dos
direitos sociais chegaríamos, sem correr os riscos de uma revolução, ao socialismo
74
. A
situação lamentável em que nos encontramos parece dar razão a Jameson quando ele insiste
que, sem o fortalecimento da imaginação e dos impulsos utópicos, nenhuma práxis
74
A utopia sempre foi um ideal ambíguo, estimulando alguns a realizações desesperadas e
impossíveis, a respeito das quais outros tinham certeza de que, por princípio, jamais se realizariam, e assim
atirava os apaixonados e dogmáticos num frenesi, enquanto imergia os liberais mornos num conforto
intelectual imobilista. O resultado é que aqueles que desejam ação podem repudiar o utópico com a mesma
determinação que os que não a desejam; sendo a recíproca, evidentemente, verdadeira. (JAMESON, ST, p.
64)
revolucionária é possível. O poder crítico da utopia nos proporciona um distanciamento do
existente, uma recusa permanente, mais ou menos consciente, da lógica da mercadoria e de
todas as instituições políticas criadas pelo próprio capitalismo em sua necessidade de auto-
legitimação.
Na carência de projetos coletivos, sugere Jameson, é interessante pensarmos
novamente no nacionalismo, não como saída emancipatória, é claro, mas considerando que,
enquanto movimento coletivo mais bem-sucedido da era do capital, talvez ele nos sirva como
uma espécie de termômetro para avaliar as reais possibilidades de outros projetos coletivos.
Se por um lado o nacionalismo impulsionou as lutas de libertação colonial e revoluções
socialistas, por outro, é certo que, sob sua bandeira, foram justificadas, no século XX, as duas
grandes guerras mundiais e várias tragédias de menor envergadura. Insuflados pelo
nacionalismo, milhões de jovens europeus se entregaram à carnificina de 1914, plenamente
convencidos de que lutavam pela liberdade e por um futuro melhor para seus povos. A
questão que interessa aqui, segundo Jameson, é saber se alguma forma de utopia libertária é
capaz de despertar paixões desse calibre
75
. Isto significa, em outras palavras, investigarmos a
possibilidade da utopia enquanto ruptura sistêmica radical, não apenas com presente, mas
também com um futuro neutralizado, que, não tenhamos dúvida, está sendo preparado pelo
capital. Para Jameson:
O que se quer não é apenas privar o futuro de seu potencial explosivo, mas também
anexar o futuro como uma nova área de investimento e colonização para o capitalismo.
Onde Benjamin observou que nem mesmo o passado estaa salvo dos conquistadores,
podemos agora acrescentar que o futuro também não está seguro, e que ele se compara ao
nivelamento dos especuladores de terra e investidores da construção, cujos tratores
destroem todas as propriedades locais e específicas de um terreno com o objetivo de limpá-
lo e torná-lo fungível a todo tipo de investimento, para que se possa construir sobre ele
75
O problema torna-se mais complexo se lembrarmos que, com o descrédito do socialismo, outras
formas de utopia apareceram em seu lugar. Estas expressam, com toda a certeza, reações distintas ao tédio, à
impotência política e à desintegração social. Dois exemplos são bem ilustrativos da lógica cultural do
capitalismo tardio: a utopia da eterna juventude (o corpo é um tema obsessivo no pós-moderno) e a utopia da
segurança total, que, com seus carros blindados, guerras preventivas, seguranças privados e meras nos
vigiando por toda a parte, transformou em escárnio até mesmo a liberdade das classes dominantes. Seja como
for, esses novos tipos de utopia convivem, é claro, com as velhas, e cada vez mais risíveis, utopias
liberais/burguesas, tais como a idéia de uma paz perpétua e do chamado pleno emprego, que, note-se bem, é
muito diferente do fim do desemprego. Esta demanda tem uma conotação radicalmente utópica, subversiva,
uma vez que, logo de saída, a mesma nos coloca diante dos limites intransponíveis da ordem capitalista,
especialmente, agora, na era do desemprego estrutural.
qualquer coisa que o mercado demande. Este é o futuro preparado pela eliminação da
historicidade, por sua neutralização através da evolução tecnológica e do progresso: é o
futuro da globalização, no qual nada permanece em sua particularidade e tudo agora é
válido em nome dos lucros e da introdução do trabalho assalariado. (JAMESON, AF, p.
228)
O fechamento ideológico do pós-moderno nos permite considerar que agora, mais do
que nunca, quando nos defrontamos com o predomínio do capital financeiro, a ruptura mais
radical que podemos imaginar é aquela mesma postulada por Thomas More em sua Utopia
(1516), ou seja: a abolição do dinheiro e da propriedade privada
76
. No capitalismo tardio,
estágio em que o valor se desprendeu de suas bases materiais e as abstrações fetichistas
chegaram ao seu extremo, somente a experiência utópica do pensamento, segundo Jameson,
nos permite suprimir o dinheiro e vislumbrar relações sociais não-alienadas. Ao contrário de
uma aceitação passiva do real, a imaginação utópica conduz a razão em direção aos problemas
concretos, mesmo que ainda nos faltem respostas para a maior parte deles. O dinheiro,
pergunta Jameson, já não teria, no movimento especulativo do capital, abolido a si mesmo? O
que pode ser mais fetichista do que o poder atribuído aos cartões de plástico ou a crença nas
várias modalidades de capital fictício, por exemplo? Assim, ainda que na forma de
representações, o jogo da imaginação constitui a possibilidade um conhecimento novo, de
uma terapia ou pedagogia coletiva que, indo de encontro à idéia segundo a qual apenas na
esfera individual podemos ser livres e autênticos, se faz necessária como pressuposto de
qualquer programa político revolucionário.
Por meio da ativação dos impulsos utópicos, o espaço saturado e degradado do pós-
moderno é temporariamente colonizado pelas mais variadas formas de combinações coletivas,
76
Quando repasso na memória as várias repúblicas que vicejam hoje em dia, que Deus me ajude,
nada vejo senão a conspiração dos ricos, que engordam seus negócios sob a capa e o nome da República. Eles
imaginam e inventam todos os artifícios para conservar os bens que adquiriram por meios escusos e, depois,
para oprimir o pobre, comprando seu esforço e trabalho a preço vil. E essas práticas tornam-se lei, tão logo o
rico, que tem voz nas instituições da república da qual os pobres fazem parte diz que elas devem ser
observadas. E assim, esses homens maus e insaciavelmente gananciosos dividiram entre eles o que seria
suficiente às necessidades de toda uma população. Quão longe estão da felicidade reinante na República da
Utopia, que aboliu não apenas o dinheiro mas, com ele, a ganância! Que massa de problemas erradicados
apenas com uma medida! Quantos crimes não foram eliminados pela raiz! Todos sabem que se o dinheiro
fosse abolido, a fraude, o roubo, as brigas, a sedição, o assassinato, as traições e todo tipo de crime que a forca
pode punir mas o consegue prevenir, desapareceria. Se o dinheiro desaparecesse, também desapareceriam
o medo, a ansiedade, a angústia, o trabalho estafante e as noites sem dormir. Mesmo a pobreza, que parece
precisar de dinheiro mais do que qualquer outra coisa, se esvaneceria completamente se o dinheiro fosse
abolido. ” (MORE, 2004, p. 129)
quer dizer, a alteridade radical se insere na vida social, na contramão do imobilismo e da
estandardização, antecipando a luta política e produzindo imagens de um futuro estranho
àquele já configurado pelo capital. A experiência do pensamento para além do presente
perpétuo produz um alívio estético, que, segundo Jameson, é condição si ne qua non para
produzirmos a radical e dramática ruptura da qual depende qualquer transformação social
genuína, a saber: a supressão do dinheiro e das abstrações do valor. A ruptura é, ela mesma,
uma nova estratégia de luta discursiva, que, por sua vez, necessariamente assume a forma da
utopia, para nos mostrar, contra as afirmações de que não há alternativa ao capitalismo, que a
diferença radical é possível. Na perspectiva de Jameson, é muito mais relevante afirmar a
necessidade da ruptura do que dizermos o que pode ou deve acontecer depois dela, ou seja, a
utopia é de fato a mediação do real com o impossível, o irrealizável, mas ela, bem mais do
que qualquer programa de ação, nos aproxima de um verdadeiro futuro político. Vejamos o
que diz o crítico norte-americano sobre o instigante poder da utopia:
Paradoxalmente, portanto, a crescente inabilidade de imaginarmos um futuro, ao invés de
diminuir, incrementa o apelo e a função da Utopia. A fraqueza fundamental da Utopia nas
gerações anteriores notadamente que ela não proporcionava nada parecido com a
descrição da ação, ou tampouco possuía um quadro histórico e prático/político da transição
se transforma agora, numa situação em que nenhum desses problemas parece ter
qualquer solução pronta a ser oferecida, em uma força. A ruptura radical ou separação da
Utopia das possibilidades políticas assim como da realidade mesma reflete agora, de
maneira mais apurada, nosso atual estado de espírito ideológico. ” (JAMESON, AF, p. 232)
Se é em tempos de desespero e falta de esperança que a função política da utopia se
faz plenamente relevante, deve haver um elemento social /existencial, de oposição ao utópico,
que, de maneira semelhante, cresce a passos largos nessas mesmas condições. Qual seria,
então, o grande oponente da vontade de mudança, do desejo chamado Utopia? Para Jameson,
o adversário permanente da utopia é o medo ou ansiedade que ela própria nos causa. Esse
medo que é também ideologia existe inclusive na esquerda revolucionária, como
assinalamos, e diz respeito aos riscos que envolvem qualquer mudança qualitativa, isto é, a
dificuldade de imaginarmos uma vida social radicalmente diferente, que requer a completa
reformulação, ou mesmo o abandono, de nossos hábitos, valores e práticas. O que está em
jogo, portanto, é o conflito entre o existente e o novo que enquanto verdadeiro estado de
exceção
77
— luta para nascer.
O antiutopismo decorre do medo, da ansiedade, muito mais do que de um sentimento
real de felicidade e satisfação com o presente. O mundo da pós-política se alimenta
justamente desse medo, do instinto de autopreservação
78
, projetando sobre qualquer idéia de
transformação radical da sociedade uma série de elementos mutiladores, opressivos,
puramente destrutivos, que, segundo as correntes contra-revolucionárias, necessariamente
acompanham qualquer processo de mudança estrutural. Diagnosticar e examinar a ansiedade
diante da utopia é a tarefa primordial de todos que se colocam no campo da esquerda, diz
Jameson. Essa terapia coletiva possui tão-somente um caráter de liberação, isto é, ela não
substitui a ação e não nos trará a liberdade. O que ela pode e deve fazer é neutralizar aquilo
que bloqueia a liberdade e a manifestação coletiva da insatisfação com a vida degradada.
Somente a ruptura utópica radical, sustenta Jameson, poderá nos trazer de volta a
possibilidade de um pensamento da totalidade (unidade entre teoria e ação), ou seja, abrir
caminho para a produção de um novo sujeito coletivo. Trata-se, portanto, de romper a
estrutura antinômica que paralisa o pensamento no pós-moderno, ou seja: a lógica da
repetição imobilista, através da qual diferença e identidade mudam incessantemente de lugar,
mantendo intactas as bases da dominação. Em meio a dormência do pensamento que nos
cabe confrontar se colocam, lado a lado, o imobilismo histórico e o desejo utópico, como
explica Jameson:
para nós o tempo consiste em um eterno presente e, muito mais adiante, numa catástrofe
inevitável, esses dois momentos vão aparecer distintamente, em um aparelho de registro,
sem estágios sobrepostos ou transicionais. É próximo instante de tempo que nos falta;
somos como as pessoas que conseguem se lembrar do passado distante, perdemos toda a
77
A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção no qual vivemos é a regra.
Precisamos chegar a um conceito de história que conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de
instaurar um real estado de exceção... ” (BENJAMIN, 2005, Tese VIII, p. 83)
78
O ‘ instinto de autopreservação é, segundo Adorno, a tendência dominante do mundo burguês em
seu período de decadência. Ver JAMESON, F. (MT), p. 95. Em oposição a essa postura paralisante, escreve
Menegat: O desenvolvimento pleno do indivíduo deve se colocar, com efeito, como uma superação da mera
autoconservação, e esta implicaria antes de mais nada um domínio sobre o tempo, de tal forma a poder
determinar o tempo livre como um tempo singular construído dentro da sua disponibilidade universal. Este
tempo significa, dessa forma, uma desconstrução das formas desantropomorfizadas de condensação de tempo
e espaço. O tempo no capitalismo, porém, é a medida do trabalho socialmente necessário, e este se manifesta
no espaço dominado pela técnica como justaposição de muitos dias de trabalho num único dia e lugar.
(MENEGAT, M. 2003, p. 196)
dimensão do recente e do mais familiar. Tanto quanto uma causa, de fato, essa
incapacidade de imaginar a mudança (que deve ser em si imaginada como a paralisia de um
lobo do cérebro coletivo) constitui também a alegoria dos dilemas que delineamos aqui: a
Identidade de um presente confrontando a imensa e impensável Diferença de um futuro
impossível, as duas coexistindo como globo oculares que registram, cada um, um tipo
diferente de espectro. É uma situação dota a espera de um novo tipo de suspense, quando
ouvimos pelo próximo tique que está faltando no relógio, o primeiro passo ausente de uma
práxis renovada. ” (JAMESON, ST, p. 80-81)
A construção de uma ordem social radicalmente distinta do capitalismo exige a
superação das categorias individuais, e, nesse sentido, a utopia também desempenha um papel
primordial. Além de apagar da memória as experiências coletivas do passado, a dissolução da
historicidade nos faz perder de vista, enquanto indivíduos, o encadeamento das gerações e o
significado da morte, da finitude. Tudo o que conseguimos pensar e elaborar não ultrapassa o
que é dado no presente, as lembranças mais recentes. Jameson sustenta que a utopia, ao
assumir a perspectiva da espécie humana, em detrimento do individualismo e acima da
própria história repõe a morte na vida social. Em outras palavras: a utopia nos permite
apreender as especificidades, as singularidades e contingências que, com o enrijecimento do
real, ganharam o status de necessidade histórica ou elementos insubstituíveis, como o que de
fato elas são. Com tranqüilidade e firmeza, a utopia aponta para o lado oposto da existência e
dos interesses do indivíduo atomizado, evidenciando o quanto, do ponto de vista da espécie,
são limitados e pouco importantes os acidentes e o inevitável desaparecimento de cada um de
nós
79
. Essa posição pode parecer fria ou simplista, mas, para os socialistas, afirma Jameson,
ela constitui a única atitude possível diante da situação de imobilismo e desespero em que nos
encontramos. Vejamos, agora, como nosso autor explica os laços entre utopia, morte e a perda
do sentido histórico:
A história é a experiência mais intensa dessa fusão única entre o tempo e o evento, a
temporalidade e a ação; a história é escolha, é liberdade e ao mesmo tempo fracasso,
fracasso inevitável, mas não morte. A utopia é colocada numa altura em que essas
79
A importância do encadeamento das gerações para o rompimento utópico do individualismo pode
ser bem compreendida numa bela passagem do livro Woman on the edge of time, de Marge Piercy, citada pelo
próprio Jameson: Vocês podem nos extinguir [...] Vocês, individualmente, podem deixar de nos entender ou
de lutar em sua própria vida e em sua própria época. Vocês, do seu tempo, podem deixar inteiramente de lutar
[...] [Mas] nós temos de lutar para existir, para continuar existindo, para ser o futuro que vai acontecer. Foi por
isso que viemos até vocês. ” (JAMESON, PU, p. 176)
mudanças não são mais visíveis: mesmo que a Utopia em questão seja de mudança
absoluta, a mudança é, todavia, vista daquele ponto de vista quase glacial e inumano como
repetição absoluta, como uma mesmice de mudança até onde a vista alcança. O estado de
uma sociedade que não precisa da história ou do conflito histórico está além de muitas das
coisas preciosas para nós na existência tanto individual, quanto coletiva; o seu pensamento
nos obriga a confrontar as mais terríveis dimensões de nossa humanidade, ao menos para o
individualismo das pessoas modernas burguesas, e isso é o ser da nossa espécie, a nossa
inserção na cadeia de gerações, que conhecemos como morte. ” (JAMESON, ST, p. 129)
A função política da utopia, isto é, sua capacidade de nos fazer perceber que estamos
aprisionados, confinados num contexto de desesperança e negação radical das potencialidades
do ser humano, deixa de existir naqueles raros momentos, desejados ou temidos, em que a
classe dominante não consegue exercer seu poder de comando e as instituições vigentes
perdem sua legitimidade perante a maioria. Nos períodos de agitação política incontrolável,
quer dizer, nas situações verdadeiramente revolucionárias, a utopia é revogada em favor da
ação, a imaginação deixa de ser livre, pois a realidade exige escolhas bem definidas, demanda
concentração e nos põe diante de dilemas concretos. Por mais que desejemos a chegada de um
período de revolução e o término do marasmo destrutivo do capital, devemos lembrar sempre
— à luz da experiência socialista derrotada no século XX — que a construção de uma
sociedade sem classes, genuinamente nova, livre e aberta à produtividade de todos, não se
dará sem uma elevada dose de imaginação, sem o uso intenso e permanente da criatividade.
Afinal, o que, para além da razão e da consciência da morte, melhor poderia definir o ser
humano do que a nossa imensurável capacidade de inventar? Sem o desejo do impossível, o
reino fetichista das mercadorias e do dinheiro permanecerá incontestado, e as velhas
estruturas reificadas da dominação serão preservadas pelo Estado e/ou outras formas de
divindade ”. Ainda que sob o álibi das boas intenções.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Encontramos na obra de Fredric Jameson um panorama amplo, audacioso e
muitíssimo esclarecedor do pós-modernismo, no qual a fusão do econômico e do cultural, a
perda do sentido histórico e o apagamento da fronteira que separava a alta cultura da cultura
de massas nos obrigam, enquanto marxistas, a rever e modificar uma série de concepções que,
durante várias décadas, pareceram incontestáveis. Como vimos, o paradoxo fundamental que
surge de uma interpretação sistêmica do capitalismo pós-moderno é que, ao mesmo tempo em
que ele se mostra como o tipo de sociedade mais homogêneo da história, sua necessidade
compulsiva do novo o obriga a produzir diferenças de maneira incessante
80
. Antes de
qualquer coisa, procurados demonstrar que o ocaso da história no pós-moderno nos coloca
diante de problemas novos, de grandes proporções, que somente poderão ser enfrentados,
pratica e teoricamente, se forem reconhecidos como dilemas para os quais a tradição marxista,
em hipótese alguma, conseguirá produzir respostas apegando-se acriticamente ao passado.
Poderíamos, sem dúvida, ter optado pelo estudo de muitos outros temas presentes na
teorização jamesoniana do capitalismo tardio e sua dominante cultural, mas a questão da
perda da historicidade é, a nosso ver, a preocupação maior de Jameson em relação à nossa
época. Essa afirmação decorre de um posicionamento político muito claro do pensador norte-
americano:
A esquerda é, hoje, colocada na posição de ter que defender o grande governo e o Estado
de bem-estar social, algo que suas tradições refinadas e sofisticadas de crítica à social-
democracia tornam embaraçoso fazer sem uma compreensão mais dialética da história que
aquela que grande parte da esquerda possui. Em especial, é desejável recuperar algum
sentido da maneira como as situações históricas mudam e, juntamente com elas, as reações
políticas e estratégias apropriadas. Mas essa atitude também exige um enfrentamento do
denominado fim da história, isto é, a a-historicidade fundamental do pós-moderno em
geral.” (JAMESON, CTM, p. 189-190)
80
Menegat compreende essa lógica de forma muito precisa. Segundo ele: A consciência reificada é
um momento de percepção e de participação na produção de uma objetividade, cujo dinamismo a sociedade
capitalista não cessa de reproduzir. Na verdade, o contradição entre uma estrutura dinâmica e outra
estática, mas a articulação do momento estático do domínio de uma na outra. Elas se equivalem, uma vez que
o que as determina é o processo de troca. Neste, os movimentos vivos são subsumidos e a percepção de
reificação aparece como dinamismo das coisas em oposição à estaticidade dos produtores. (MENEGAT, 2003,
p. 53)
Tentamos mostrar que o esmaecimento da historicidade e a cisão do sujeito burguês
aparecem, na pós-modernidade, como resultado de uma transformação geral da experiência
humana no mundo, produzida pela terceira grande expansão do sistema do capital. Agora as
categorias espaciais predominam sobre a temporalidade de forma implacável, gerando um
desacordo radical entre sujeito e objeto. A dissolução do tempo no hiperespaço do pós-
moderno nos amarra a um presente perpétuo, aprisionando a imaginação, o desejo e nossas
aspirações nos limites da forma mercadoria. Esse enclausuramento ideológico/cultural se
configura num mundo inteiramente dominado pela lógica do capital, no qual a virtual
conclusão do processo de modernização evidencia o aniquilamento das alteridades sistêmicas
(formas de vida pré-capitalistas) e a conquista daqueles enclaves que, no modernismo,
constituíam territórios relativamente autônomos, a saber: a cultura, o inconsciente e a
natureza. Esse conjunto de transformações revela, em seu sentido mais profundo, uma
mudança radical do papel da cultura nas sociedades contemporâneas:
“ A importância crescente da cultura para o político e o econômico não é uma conseqüência
da tendência para a separação ou a diferenciação nessas esferas, mas sim da saturação e da
penetração mais gerais da própria redução de tudo à condição de mercadoria, que pode
agora colonizar grandes zonas da área cultural até então dela protegidas e, na maior parte,
hostis e incompatíveis com sua lógica. O fato de a cultura ter hoje se tornado, em grande
parte, um negócio, tem uma conseqüência: a de que a maior parte do que costumava ser
considerado especificamente econômico e comercial tornou-se também cultural, uma
caracterização sob a qual os vários diagnósticos da denominada sociedade ideal, ou
consumismo, precisam ser incluídos. ” (JAMESON, CTM, p. 193)
A derrota histórica do socialismo no século XX e o advento da pós-modernidade,
sustenta Jameson, nos colocam numa posição dificílima, para a qual ainda temos muito mais
perguntas e hipóteses do que soluções. O atual contexto requer uma luta discursiva contra a
retórica anti-socialista, que, em nome de uma suposta identidade entre o mercado e a natureza
humana, sataniza toda e qualquer noção do público ” como ineficiente e contrário a
liberdade. De acordo com o crítico americano, em que pesem as incertezas, três idéias devem
ser necessariamente incorporadas pela esquerda, caso ainda se queira pensar seriamente numa
práxis revolucionária, quais sejam: precisamos realizar o mapeamento cognitivo das cidades e
do espaço global; todos os movimentos anticapitalistas do mundo devem combater
insistentemente a ansiedade e o medo da utopia, buscando promover novas formas políticas
de liberação do desejo e canalização da libido
81
; não menos importante, devemos reconhecer
que não há caminho de volta à modernidade, quer dizer, o marxismo terá de abrir seu caminho
no pós-moderno, sem moralismos, tentando detectar, até mesmo nos produtos mais
superficiais e ideológicos dessa cultura, a presença do desejo chamado utopia. A imagem da
revolução social nesse ambiente, onde a perspectiva de qualquer mudança radical parece estar
fora de nossos horizontes, surge, para Jameson, como um grande movimento de reconquista
da real possibilidade de agirmos e tomarmos decisões, tirando das mãos invisíveis e
destruidoras do capital o controle que, por força do fetiche, ele continua exercendo sobre o
destino de todos nós. O movimento da revolução é, por assim dizer, o primeiro passo em
direção ao reino da liberdade, a percepção, ainda que problemática, dos efeitos da causa
ausente ”, ou seja, da história humana, compreendida como uma grande e única narrativa
coletiva.
A conclusão deste estudo coincide com a eclosão da mais grave crise do sistema
capitalista desde 1929, que, a julgar pela resignação geral e o discurso dos poderes instituídos
(a grande mídia, a política oficial), em pouco tempo será esquecida. Assim como a capacidade
de crítica, insiste Jameson, a memória também foi excluída de nossas sociedades. A
passividade diante deste processo de conseqüências desastrosas e imprevisíveis é tão
espantosa quanto as tentativas dos economistas de dissimular a irracionalidade da ordem do
capital. Tendo em vista as tendências do atual cenário, não faremos mal em concluir este
trabalho com uma oportuna advertência de Jameson acerca dos perigos do otimismo:
Para aqueles que pensam que tudo isso é pessimista, posso agora sugerir que não
precisamos deixar Nietzsche para os inimigos, mas sim nos consolar com a profunda
convicção de que apenas o mais profundo pessimismo é fonte de força verdadeira.
Devemos ser profunda e infatigavelmente pessimistas sobre esse sistema, como foram meus
amigos do leste sobre o outro sistema; o otimismo, ainda que do tipo mais fraco, pode
81
“...mesmo se a teoria do desejo constituir uma metafísica e um mito, seus grandes eventos
narrativos a repressão e a revolta deverão ser compatíveis com uma perspectiva marxista, cuja visão
utópica da liberação do desejo e da transfiguração libidinal constitui-se em característica essencial das grandes
revoltas de massa ocorridas na década de 1960 na Europa Oriental e Ocidental, bem como na China e nos
Estados Unidos. Mas exatamente por isso, e mais particularmente devido às dificuldades teóricas e políticas
encontradas pelas conseqüências desses movimentos à medida que tentavam adaptar-se às circunstâncias
muito diferentes do período atual, esses mitos devem ser cuidadosamente reexaminados. Se eles têm
afinidades com o marxismo, têm-nas ainda maiores com o anarquismo, e a atual e vigorosa renovação deste
exige que o marxismo contemporâneo dê conta delas. ” (JAMESON, IP, p. 61)
ser recomendado para aqueles que não têm nada contra serem usados e manipulados.
(JAMESON, COM, p. 233-234)
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