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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
DIVISÃO DO TRABALHO E BUROCRACIA: PARA A CRÍTICA DAS
INTERPRETAÇÕES SOCIOLÓGICAS DA BUROCRACIA
Marcos Paulo Oliveira Botelho
Rio de Janeiro
2008
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DIVISÃO DO TRABALHO E BUROCRACIA: PARA A CRÍTICA DAS
INTERPRETAÇÕES SOCIOLÓGICAS DA BUROCRACIA
Marcos Paulo Oliveira Botelho
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social, da Escola de Serviço
Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Serviço Social.
Orientador: Prof° Dr° José Paulo Netto
Rio de Janeiro
Março de 2008
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DIVISÃO DO TRABALHO E BUROCRACIA: PARA A CRÍTICA DAS
INTERPRETAÇÕES SOCIOLÓGICAS DA BUROCRACIA
Marcos Paulo Oliveira Botelho
Orientador: Prof° Dr° José Paulo Netto
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Escola de
Serviço Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em Serviço Social.
Aprovada por:
_____________________________________________________
Prof° Dr° José Paulo Netto (Orientador)
_____________________________________________________
Profª Drª Cleusa dos Santos
_____________________________________________________
Prof° Dr° Mauro Luis Iasi
Rio de Janeiro
Março de 2008
4
Dedico esta dissertação a Márcio Briski (In Memoriam)
5
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Regina, e ao meu pai, Paulo. Além do carinho de sempre, descobri o
quanto as histórias de vida e de trabalho contadas, até hoje, por vocês, com mínimos
detalhes, me ajudaram e me ajudam em minha trajetória humana e acadêmica.
À minha irmã Sheila, que além de tudo, teve um papel importante nesta dissertação,
me fornecendo livros, revisando e debatendo comigo o seu conteúdo.
Ao meu orientador Prof° José Paulo Netto, considerado, não por mim, mas por
todos os seus alunos, como o mestre. Nos ensina, a todo o momento, a lição de diferenciar
o essencial do acessório.
Aos amigos da pós-graduação, em especial àqueles que tiveram uma participação
direta neste trabalho: Rodrigo, Fernando Leitão, Henrique e Raniere. A este último tenho de
agradecer em particular pela orientação em relação ao pensamento de Weber e pelo debate
acerca de inúmeros aspectos deste trabalho.
Por meio do agradecimento ao Heitor, agradeço a todos os camaradas do Partidão.
Através do agradecimento ao Paulinho, agradeço a todos os companheiros do
movimento sindical da UFRJ.
Aos amigos do Riachuelo, em especial àqueles que me ajudaram nesta fase final de
elaboração da dissertação: Vinícius, Felipe e Leandro.
6
RESUMO
O presente estudo trata, a partir de uma apreensão crítica do debate sociológico, da
análise das categorias de “burocracia” e divisão do trabalho.
No primeiro momento, o arcabouço conceitual é apresentado tendo como base a
interpretação dada pela própria sociologia aos fenômenos. A análise crítica acerca do
método sociológico é, neste momento, apresentada de forma pontual.
O processo de crítica à interpretação sociológica da burocracia é, na verdade, parte
integrante da dinâmica expositiva em sua totalidade. A insuficiência desta interpretação é,
no segundo capítulo, desvendada a partir da textualidade de Hegel, Marx e Gramsci,
quando os mesmos tratam dos conceitos de burocracia, Estado e Sociedade Civil.
Por fim, a “burocratização” é referenciada à categorização marxiana e marxista. Na
análise da dinâmica econômica do capitalismo monopolista revela-se uma série de
tendências relacionadas à ampliação e complexificação da produção capitalista e da divisão
do trabalho. A riqueza conceitual marxista, na apreensão do crescimento das funções
parasitárias e gerenciais do capital e das funções improdutivas dos trabalhadores, se
contrapõe à interpretação amorfa da “burocracia” realizada pela sociologia.
Palavras-chave: burocracia; divisão do trabalho; marxismo.
7
ABSTRACT
This study analyzes, from a critical understanding of the sociological debate, the
categories of "bureaucracy" and division of labor.
In the first time the conceptual framework is presented based on the interpretation
given by the sociology itself for the phenomena. A critical analysis about the sociological
method is now presented in a punctual form.
The process of criticism of the sociological interpretation of bureaucracy is actually
part of the dynamic exhibition in its entirety. The failure of this interpretation is, in the
second chapter, unveiled from textuality of Hegel, Marx and Gramsci, when they deal with
the concepts of bureaucracy, State and Civil Society.
Finally, the "bureaucracy" is referred to the Marxian and Marxist categorization. In
the analysis of the dynamics of economic monopoly capitalism it is a series of trends
related to the expansion and complexity of the production and the capitalist division of
labor. The wealth conceptual Marxist seizure of the growth of the parasitic functions and
management of capital and unproductive functions of workers are in contrast to the
amorphous interpretation of the "bureaucracy" conducted by sociology.
Key words: bureaucracy; division of labor; Marxism.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................... 9
CAPÍTULO I: A “crítica” sociológica da burocracia............................................12
1.1- Interpretações sociológicas da burocracia.................................................15
1.2- “Crítica” sociológica e teoria social..........................................................59
CAPÍTULO II: Estado, Sociedade Civil e Burocracia.......................................... 69
2.1- Capitalismo e burocracia.......................................................................... 71
2.2- Estado, sociedade civil e burocracia........................................................ 81
2.3- Capitalismo monopolista e a burocracia.................................................. 106
CAPÍTULO III: A “questão burocrática”, divisão do trabalho e produção
capitalista............................................................................................................. 116
3.1- A empresa monopolista e a burocracia.................................................... 118
3.2- Produção capitalista e divisão do trabalho no capitalismo monopolista.. 131
CONCLUSÃO...................................................................................................... 178
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................. 187
9
INTRODUÇÃO
10
São inúmeros os motivos que nos levaram à temática da “burocracia”. Dois deles
têm relevo para serem citados aqui.
O primeiro tem relação com nosso interesse político e teórico pela investigação
acerca do vínculo entre o sindicalismo do setor público e as formulações político-
programáticas (e a própria elaboração teórica) da esquerda brasileira na atualidade. Ao que
parece, se, em outro momento histórico, outros vínculos revelaram uma influência
significativa nesta formulação, hoje não se pode desprezar com o crescimento da
organização sindical dos setores médios e do funcionalismo público as novas influências.
São vários os debates em que estas mudanças vêm à tona. Não cabe aqui situá-los, até
porque uma caracterização precipitada não passaria de uma especulação.
Outra problemática (que tem vínculo direto com a anterior) é a definição de classe
trabalhadora. Procura-se, diante do enfraquecimento político da classe operária e de sua
reestruturação ocupacional, uma “saída” teórica: trata-se de “enquadrar” todas as espécies
de trabalhadores improdutivos, segmentos médios, pequena burguesia, funcionalismo
público etc. numa “ampla” concepção de classe trabalhadora. Esta é a débil arma teórica da
esquerda em resposta ao profundo ataque político e econômico do neoliberalismo, da
reestruturação produtiva e da ofensiva ideológica encarnada nas teses do “fim do trabalho”.
As respostas, portanto, por mais diferentes que sejam (e mesmo parte daquelas mais
próximas à concepção ontológica do trabalho), caíram nesta armadilha. Busca-se
ansiosamente por “parceiros” do proletariado, no momento em que este é acusado de
extinção.
Contudo, estas dificuldades permeiam o universo de qualquer pesquisador,
identificado ou não aos pressupostos de transformação da realidade presente. Elas só
podem ser respondidas na medida em que o processo dinâmico da luta de classes avance.
Porém, um ator fundamental neste processo, o proletariado, ainda se recupera dos
profundos abalos e transformações das últimas décadas.
Estas foram as problemáticas que nos impulsionaram, mas muito pouco foi
desenvolvido em nosso estudo sobre estas relações. Pudemos perceber que o
desenvolvimento teórico destes processos só poderia ser realizado após um esforço anterior
de apreensão crítica, o do pensamento dos clássicos, mas também da interpretação
sociológica sobre estes fenômenos. Foi o que nos levou ao debate acerca da burocracia.
11
Diante dos limites que nos deparamos, restringimos ainda mais nossas prioridades e
acabamos por limitar nossa análise do ponto de vista histórico e conceitual.
No primeiro caso, priorizando o que seria a gênese e consolidação do “fenômeno
burocrático”, e o seu desenvolvimento no interior do capitalismo monopolista, a análise foi
circunscrita ao período de sua ascensão até meados do século XX. Por isso, não pudemos
identificar as profundas transformações ocorridas a partir da década de 70 na dinâmica
político-econômica do capitalismo o que, certamente, levar-nos-ia a um esforço ainda
maior para a apreensão do fenômeno investigado.
o limite conceitual se refere à prioridade dada à análise da produção capitalista e
da divisão do trabalho (e suas transformações sob os monopólios), ou seja, a restrição ao
que consideramos o centro determinante da “burocratização”. Priorizando o debate
econômico, não nos ativemos, por exemplo, no debate sociológico sobre a burocracia no
Estado e nos partidos políticos.
Mesmo tendo em vista os limites elencados, esse estudo tem a pretensão de
sintetizar nosso primeiro diálogo crítico com a sociologia, com os clássicos e, em
particular, a partir de uma ancoragem na obra marxiana e marxista.
12
CAPÍTULO I
A “CRÍTICA” SOCIOLÓGICA DA BUROCRACIA
13
A análise das teorias que se dedicam à abordagem do “fenômeno burocrático” nos
impõe uma dupla tarefa: a desmistificação destas teorias “em si” e a reconstrução do
processo de análise – que indique um caminho crítico para uma nova abordagem do
“fenômeno”. Mas, antes de apresentá-la, faz-se necessária uma pequena nota acerca do
papel da sociologia no debate acadêmico e na construção ideológica marcada por tempos de
absoluto domínio do capital sobre o conjunto da vida social.
O debate teórico sobre a burocracia, algum tempo, se transformou quase que
num monopólio dos sociólogos e cientistas sociais. Apesar desta monopolização, o termo
adentrou ao uso cotidiano. As reclamações e mesmo o ódio declarado à “burocratização”
aparece, por exemplo, no idioma próprio ao jornalismo político e econômico como crítica à
ineficiência do Estado e sinônimo de empecilhos à liberdade da “iniciativa privada”. o
senso comum expressa, na crítica à burocracia, o descontentamento de ampla camada da
população para com os serviços públicos e privados. A quantidade de papéis e
documentações necessárias para o acesso, por exemplo, aos serviços sociais ou a um
empréstimo bancário
1
são motivos comuns de críticas.
A “crítica” sociológica, salvo raras exceções, não tem superado o senso comum
jornalístico ou popular. E o motivo não é tão recente ou pontual: advém da própria natureza
das ciências sociais burguesas. Conservadoras, fragmentadas e ideológicas, não podem
superar a observação factual, ou, quando muito, a organização sistemática dos dados
aparentes da realidade. No que se refere à burocracia, o que se apresenta como resultado
destas análises trata-se somente dos efeitos e tendências aparentes advindas da crescente
“racionalização” da vida moderna, mas nem sequer tocam em seus fundamentos. Por isto,
nosso esforço ao longo deste estudo é, tendo em vista nossos limites, traçar os fios que
conectam estes efeitos da crescente “burocratização” da vida social aos seus fundamentos
na esfera da produção capitalista, e, neste caminho, do progresso da divisão do trabalho.
Ocorre com a definição de burocracia o mesmo que, por exemplo, ocorre com a
mercadoria, que aparece, na esfera da troca com outras mercadorias, como relação entre
coisas; oculta-se, portanto, o caráter social contido na produção destas. O que os sociólogos
1
É bem verdade que, contrariamente ao que dissemos, hoje as “facilidades” para empréstimos e outras
transações financeiras, para as mais diferentes faixas de renda, se transformaram até mesmo em campanha
publicitária: “Dinheiro sem burocracia!” é o lema que ilustra bem as “facilidades” do capitalismo dos
monopólios. as “dificuldades burocráticas” são percebidas pelo pobre cidadão quando este tem seu
nome inscrito no Serviço de Proteção ao Crédito.
14
procuram escamotear é o fato do caráter parasitário e ineficiente, que geralmente se atribui
aos burocratas e à burocracia
2
per se, ser um dado ineliminável da ordem burguesa e ter seu
fundamento na produção da vida material regida pelo estatuto privado da propriedade e
pela divisão do trabalho própria ao modo de produção capitalista.
O problema metodológico presente em nossa argumentação é que o percurso de
nossa exposição não se inicia na burocracia (tal qual no paralelo com Marx citar-se-iam a
mercadoria ou o valor), ou seja, o objeto “em si”. Se pretendemos realizar uma crítica às
interpretações sociológicas da burocracia, temos de iniciar pela teoria, ou seja, pela
representação ideal do objeto. É bem claro que na sociologia com a qual nos deparamos não
se trata da reprodução ideal do movimento real do objeto. Trata-se, quando muito, de uma
fotografia ou, freqüentemente, de uma caricatura do objeto. Por isso, do ponto de vista
metodológico, temos a tarefa de iniciar pela teoria e retornar ao objeto, para, por fim,
realizar a crítica teórica.
Sem dúvida nosso esforço será incompleto. Nos contentamos em traçar
primeiramente linhas gerais do “conceito” sociológico de burocracia e, no momento
posterior, realizar uma proposta heurística para a compreensão do fenômeno – que se
traduzirá, por seus limites e pretensões, numa proposta em aberto, num caminho possível de
interpretação, ou, na verdade, num projeto para interpretação crítica do “fenômeno
burocrático” em nossos tempos.
Este projeto crítico de interpretação, que neste estudo não encontrará nada mais que
um esboço, é um projeto não viável assim como imprescindível para a compreensão da
vida social sob o domínio do capital monopolista. Porém, é um projeto irrealizável pela
sociologia. E saberemos o motivo.
Baran e Sweezy, ao buscar uma compreensão totalizante do capitalismo
monopolista, observaram que a razão do fracasso dos cientistas sociais na explicação da
realidade social, para além do oportunismo puro e simples, reside “nas limitações inerentes
de sua visão e metodologia”.
2
Esse caráter ineficiente da burocracia é, na sua maior parte, referente ao atendimento das necessidades
sociais, pois a mesma, como veremos, se mostra bastante eficiente no papel acessório à valorização do capital
e de escoamento da massa de mais-valia no capitalismo monopolista. O relevante é que essa eficiência tem
seus limites, que a “burocratização” também pode ser compreendia como o resultado “irracional” de um
desenvolvimento da “racionalização”.
15
[Estas] Foram herdadas, em parte, do passado, e em parte modeladas em
reação ao seu próprio ambiente. Este é, acima de tudo, de uma crescente
complexidade, exigindo, cada vez mais, todos os tipos de especialização, e de todos
os veis. Segundo esta estrada, a ciência social tornou-se cada vez mais dividida
em compartimentos, com seus ocupantes transformados em especialistas cada vez
mais limitados – peritos excelentemente preparados em seus próprios ‘campos’, mas
conhecendo cada vez menos sobre as especialidades dos outros, e na verdade cada
vez menos capazes de entendê-las. Quanto à sociedade como um todo, que no
passado foi a principal preocupação dos grandes pensadores sociais, como
transcende a todas as especialidades, simplesmente desaparece do panorama da
ciência social. Ela é considerada como algo conhecido, e ignorada (Baran e Sweezy,
1966: 12).
O passado a que eles se referem tem raízes históricas no progressivo abandono da
burguesia do projeto revolucionário e, por conseguinte, na obliteração e fragmentação de
sua perspectiva teórica outrora totalizante.
Neste capítulo introdutório não pretendemos encerrar todo o processo que culminou
com a fragmentação hoje vista nas ciências sociais. As bases econômico-sociais desta
fragmentação serão abordadas no decorrer da exposição. Em primeiro lugar, precisamos
compreender como a sociologia responde à crescente “burocratização” da vida social
(objeto da seção 1.1 deste capítulo) e, posteriormente, faremos um breve comentário crítico
acerca de seu método e seus resultados (objeto da seção 1.2 deste capítulo).
1.1- Interpretações sociológicas da burocracia
Cada autor não é tratado aqui de forma minuciosa e exaustiva. A intenção é extrair
do conjunto de referências abordadas um arcabouço e uma estrutura geral, que permita a
exposição do “fenômeno burocrático” assim como ele é entendido por alguns sociólogos
que se dedicaram ao tema. Com isso, não insinuamos que a perspectiva de cada um deles
seja idêntica ou correspondente, até porque, em alguns pontos, apresentam posturas
opostas. Algumas demarcações destas diferenças serão feitas, contudo o que servirá de fio
condutor são os pontos que os conectam na interpretação da crescente burocratização e seus
reflexos na divisão do trabalho na “sociedade moderna”.
Weber define o processo de “racionalização” e “burocratização” da vida social
como fenômenos inevitáveis:
16
E, embora muitos se queixem dos ‘pecados da burocracia’, seria uma ilusão
imaginar que o trabalho administrativo contínuo pudesse ser executado, em
qualquer setor, sem a presença de funcionários trabalhando em seus cargos. Todo
modelo de vida cotidiana é talhado para se adequar a esta estrutura. Porque a
administração burocrática é sempre, observada em igualdade de condições e de uma
perspectiva formal e técnica, o tipo mais racional. Ela é, atualmente, indispensável
para o atendimento de massa. No setor administrativo, a opção é entre burocracia e
diletantismo (Weber apud: Campos, 1971: 25).
Edmundo Campos, ao chamar a atenção para os motivos do crescente estudo das
organizações complexas, notou que, dentre outros, notabiliza-se o fato de que “as modernas
sociedades se distinguem também pelo surgimento e expansão de uma nova categoria
ocupacional, a dos assalariados em funções não-manuais, freqüentemente chamados pelos
autores de ‘nova classe média’” (Campos, 1971: 7-8). Diante do fato observado de que
comumente esta “categoria” englobaria desde “o gerente de uma empresa industrial ao
datilógrafo de uma repartição pública” ou “os mais altos cargos com poder de decisão aos
mais humildes com a simples atividade de execução, passando pela categoria dos técnicos”
(Campos, 1971: 9), ele se pergunta:
‘Meros’ empregados, ‘puros’ burocratas e ‘técnicos’ constituirão, realmente,
uma classe distinta e suficientemente delimitada? Seu surgimento significará
unicamente um processo de ampliação da classe operária em uma nova categoria
apenas superficialmente diferenciada? Ou terão as funções burocráticas surgido de
uma diferenciação das funções empresariais? Ou ambas as hipóteses se aplicarão
corretamente aos diferentes segmentos burocráticos? (Campos, 1971: 9).
Estas questões podem ser entendidas como elementos centrais presentes em nossa
exposição. A construção crítica de um caminho explicativo para elas será objeto do terceiro
capítulo. Não será, portanto, nossa temática prioritária o estudo das “organizações
voluntárias” como sindicatos, partidos políticos e associações profissionais. Nem mesmo o
Estado se caracterizará como foco fundamental. E o motivo desta ausência se baseia no fato
de que a ênfase imposta às análises que priorizam estas esferas se caracteriza comumente
por uma inversão do fundamento do fenômeno real. O autor de que retiramos as instigantes
questões acima, referindo-se a estas organizações de massa, sustenta que
À medida que aumenta o número de seus membros e tornam-se mais
complexas as suas responsabilidades, essas organizações se burocratizam e agem no
sentido de ‘massificar’ o indivíduo despersonalizando suas relações sociais. Estas
17
não se estabelecem mais entre pessoas porque entre as partes se introduz a
organização que funciona como elemento mediatizante (Campos, 1971: 10).
O fundamento, nesta passagem, não é buscado na reificação advinda da produção de
mercadorias e do valor de troca como eixo fundante da vida sob o capitalismo, nem na
crescente divisão do trabalho por ele mesmo apontada como fato importante para análise da
burocracia. Agora, as próprias organizações de massa, que os trabalhadores criaram para
fazer frente a estes fenômenos seja para minorar os seus efeitos ou para subverter as suas
próprias bases –, aparecem como causa do fenômeno em questão.
É essa inversão ideológica que, num mesmo sentido, faz Weber (1999), ao substituir
a centralidade da “exploração” pela centralidade da “dominação” ela própria pintada das
mais variadas cores – como categoria explicativa das relações sociais no capitalismo.
Caminhando com seu mestre, temos o exemplo do eclético Tragtenberg (2006), que
busca o fundamento no conceito de poder.
Crozier (1981) já prefere investigar as relações de poder entre os grupos sociais
particulares no interior das organizações, sob uma perspectiva empírico-subjetiva destas
relações.
Outros
3
buscam desvendar o mistério do poder burocrático, seja através de métodos
matemáticos, estatísticos, seja por meio da análise da personalidade dos indivíduos etc..
Apesar das diferenças, poucos fogem à rigidez estéril do método positivista e/ou à decisiva
resignação teórico-metodológica weberiana na análise da burocracia.
É a partir daí que construímos nossa primeira parte da exposição: observando as
contradições presentes nestes sociólogos que, se é verdade que pretendem mascarar ou
inverter as conexões existentes entre burocracia e divisão do trabalho, não podem deixar de
situar, mesmo que implicitamente, estes vínculos.
1.1.1- Dominação e Economia
Weber é, sem sombra de dúvida, o mais influente autor na análise da burocracia. O
debate conceitual acerca da dominação, e a inversão por nós salientada, podem ser
3
Ver em Campos (1971) o conjunto de artigos onde autores como Weber, Hall, Udy Jr., Gouldner, Terrien e
Mills, Hopkins, Eisenstadt, Selznick, Michells, Merton, e Blau discutem a burocracia moderna.
18
analisados em pormenores no texto em que ele trata de forma mais direta a burocracia. Essa
inversão se expressa de modo mais determinante na relação entre dominação e economia.
O centro de suas análises é a dinâmica das relações sociais de dominação, onde cada
esfera aparece como esfera autônoma (política, economia, cultura etc.), que seu conceito
pressupõe a dominação (e a forma como ela é exercida) como mediação entre o que chama
de uma “ação social amorfa” e uma “relação associativa racional”. As relações de
dominação, por sua vez, são frutos destas ações sociais onde o peso determinante é do
indivíduo
4
.
Ao fundamentar sua “Sociologia da Dominação” dirá que o poder econômico “é
uma conseqüência freqüente, muitas vezes deliberada e planejada, da dominação e, com a
mesma freqüência, um de seus meios mais importantes” (Weber, 1999: 188). Deduz-se, a
partir desta prioridade categorial, que ele subordina a estrutura econômica a estas formas de
relações de poder, ou seja: para Weber a economia é um desdobramento das relações de
dominação.
Os seus conceitos referentes à burocracia moderna se fundamentam na interpretação
do alto grau de organicidade que é característico das organizações modernas. Estas
associações racionais nos indicariam um traço característico de complexidade e solidez em
relação às associações amorfas, que muitas vezes representam formas arcaicas, pré-
modernas (o que não exclui a possibilidade de sua manutenção no seio da “modernidade”
5
).
Tragtenberg ressalta a diferenciação weberiana entre a burocracia patrimonial da
burocracia capitalista e, partindo desta distinção, interpreta, ao seu modo, o lugar da
economia na análise de Weber. Esta nova burocracia fundar-se-ia, segundo ele, “transpondo
à área administrativa a crescente divisão de trabalho e a racionalização. O que não quer
dizer que a causalidade econômica explique, em última análise, a emergência deste
fenômeno; somente unida à análise política, poderá fazê-lo”. (Tragtenberg, 2006: 113).
4
“Weber desenvolve o conceito de ação social significativa, tendo como ponto de partida o indivíduo; mesmo
as formações como Estado, empresa ou sociedade anônima aparecem a ele como produto de entidades
individuais, ou melhor, são palcos onde se define a ação social de uns quantos indivíduos (Tragtenberg,
2006: 141).
5
A possibilidade de manutenção é, por sua vez, contrarrestada pela tendência de avanço contínuo da
organização burocrática: “mais lentamente onde funcionavam formas estruturais mais antigas com uma
adaptação técnica altamente desenvolvida às necessidades existentes.” [Esta organização moderna,] “uma vez
plenamente desenvolvida, pertence aos complexos sociais mais dificilmente destrutíveis. A burocratização é o
meio específico por excelência para transformar uma ‘ação comunitária’ (consensual) numa ‘ação associativa’
racionalmente ordenada” (Weber, 1999: 222).
19
O ecletismo de Tragtenberg faz com que ele procure se defender, em vão, de suas
próprias contradições: apesar de descrever um conjunto de determinações que possuem
fundamentos claramente referidos à esfera da produção capitalista (“a crescente divisão do
trabalho e a racionalização”) continua a afirmar o peso da análise política em sua
determinação. Por isso critica a ênfase que, segundo ele, Weber atribui aos aspectos
econômicos e, em seguida, propõe uma formulação alternativa:
Weber aceita, como os liberais, a separação entre o econômico e o político,
mas contraditoriamente a eles acentua o peso dos fatores economicamente
condicionados e muitas vezes insiste nos aspectos meramente econômicos em
detrimento do político, não considerando a interação dialética entre os fatores.
A compreensão da relação dialética entre economia e política traduz-se no
reconhecimento da necessidade objetiva da primazia da política sobre economia: as
transformações políticas radicais são condição básica para satisfação dos novos
interesses econômicos, pelo fato de as relações reais no plano político ocorrerem
como a expressão concentrada da economia (Tragtenberg, 2006: 199).
Seu apelo ao momento político supostamente revolucionário tem a pretensão de
universalizá-lo como determinação perene da explicação da vida em sociedade. Uma
suposição como essa leva não à idéia de que todas as relações sociais são permeadas
pelo peso da dominação, mas também leva, mesmo que esta não fosse sua intenção, à idéia
de que o poder sempre existiu e sempre existirá nas relações entre os homens, concepção,
por sua vez, diretamente contrária à pretensão pseudo-revolucionaria da idéia de
“transformações políticas radicais”.
Mas o conceito de dominação, para Weber, e sua relação com as relações
econômicas, é um pouco mais “sofisticado”. Se, por um lado, não deixa de conceber a
dominação como eixo, expõe os vínculos com a economia de outra forma:
Mas nem toda posição de poder econômica manifesta-se como logo
perceberemos como ‘dominação’ no sentido aqui adotado da palavra. E nem toda
‘dominação’ se serve, para sua fundação e conservação, de meios coativos
econômicos. Mas, na grande maioria das formas de dominação, e precisamente nas
mais importantes, este é, de alguma maneira, o caso, e muitas vezes numa proporção
tão grande que, por sua vez, o modo como os meios econômicos são empregados
para conservar a dominação influencia, decisivamente, o caráter da estrutura da
dominação. Além disso, a grande maioria das comunidades econômicas, entre elas
precisamente as mais importantes e modernas, apresenta uma estrutura que implica
dominação. E, por fim, a estrutura de dominação, por menos que sua natureza
peculiar esteja univocamente ligada a determinadas formas econômicas, é quase
20
sempre um fator relevante, em alto grau, para a economia, além de estar de alguma
forma condicionada também por esta (Weber, 1999: 188).
Weber, que expressa um grau significativo de relativismo nesta definição das
relações entre economia e dominação, por outro lado, nega o caráter científico de um certo
tipo de relativismo tão em voga nos nossos dias, que “enxerga” relações de poder nas mais
diferentes manifestações da vida cotidiana (e, na verdade, o que é pior, onde determinantes
de qualquer espécie estão ausentes). Sendo dominação a possibilidade de impor ao
comportamento de terceiros a vontade própria” (Weber, 1999: 188) temos dois tipos de
definições: uma ampla, outra restrita.
O primeiro “conceito” teria um sentido tão amplo que “‘dominação’ deixaria de ser
uma categoria cientificamente útil
6
”, pois expressaria uma relação que pode “desenvolver-
se tanto nas relações sociais do salão, quanto no mercado, do alto de uma cátedra
universitária, à frente de um regimento, numa relação erótica ou caritativa, numa discussão
científica ou no esporte” (Weber, 1999: 188).
de um ponto de vista mais restrito ou científico, Weber propõe duas formulações
para o conceito de dominação: “dominação em virtude de uma constelação de interesses
(especialmente em virtude de uma situação de monopólio), e, por outro, a dominação em
virtude de autoridade (poder de mando e dever de obediência)”. A primeira, em sentido
mais puro, “é a dominação monopolizadora do mercado”; a última, “o poder do chefe de
família, da autoridade administrativa ou do príncipe” (Weber, 1999: 188-189).
Sendo a primeira mais diretamente vinculada à moderna burocracia dedicaremos
maior espaço a ela nesta exposição. Contudo, entre as duas, existem formas de transição
que seriam bastante ilustrativas para a análise da passagem da burocracia tradicional para a
moderna.
Weber traz exemplos da passagem de formas autoritárias para formas de interesses
econômicos racionais e vice-versa. É importante notar que os modelos de tipos ideais
weberianos não tratam de passagens puramente históricas, mas de momentos constitutivos
6
Percebe-se que esta crítica a cientificidade desta conceituação ampla parece contradizer o seu próprio
conceito de dominação. Quando afirma que “toda ação social apresenta uma estrutura que implica
dominação”, ou quando diz que “todas as áreas da ação social, sem exceção, mostram-se profundamente
influenciadas por complexos de dominação” (Weber, 1999: 187), ele não estaria pondo no centro do conceito
a definição ampla? A sua “dança” entre o relativismo e o racionalismo fica clara.
21
da realidade social presente. Ou seja, os modelos autoritários, racionais ou carismáticos não
dizem respeito a formas históricas marcadamente delimitadas, mas formas que se mesclam
e se substituem na atualidade.
Tragtenberg, em seu estudo sobre a burocracia, procura definir a Teoria Geral da
Administração como ideologia, mas, ao conceber como fundamento a esfera política,
também opera uma “inversão ideológica”. Acredita que a “análise da Teoria Administrativa
deve partir da burocracia enquanto poder, para atingir a burocracia na estrutura da
empresa”. Pautado em Touraine, ele afirma que “o segredo da gênese e estrutura da Teoria
Geral da Administração, enquanto modelo explicativo dos quadros da empresa capitalista,
deve ser procurado onde certamente seu desenvolvimento mais pujante se dá: no âmbito do
Estado” (Tragtenberg, 2006: 25).
Compreende a emergência da burocracia como poder funcional e político com a
transição para o capitalismo monopolista:
O capitalismo industrial, estruturando a empresa burocrática, encontrou, nos
vários modelos da Teoria Geral da Administração, de Taylor aos estruturalistas ou
sistêmicos, um modelo explicativo, no século XX, a transição das sociedades
fundadas no capitalismo liberal para o capitalismo monopolista e a emergência da
burocracia como poder funcional e político, elemento típico no plano meramente
formal das civilizações orientais (Tragtenberg, 2006: 25-26).
Contraditoriamente, retoma um vínculo inverso do que vimos antes, na relação entre
dominação e economia, ao afirmar que no capitalismo, na medida em que “a unidade de
produção dominante for a indústria gerida burocraticamente, a burocracia se torna fator
social dominante” (Tragtenberg, 2006: 172). Estas contradições, permanentes em sua
exposição, o decorrentes da tentativa de vincular a teoria marxista com a weberiana.
Analisa o conceito de dominação burocrática de Weber inserindo alguns conceitos
marxianos, e, com isso, finalmente, acaba por consolidar a confusão absoluta de sua
concepção da relação entre dominação e economia:
A ação racional tendente a fins realiza-se na dominação burocrático-legal,
para Weber. A pretendida autonomia da técnica-racionalidade formal não representa
nada mais do que a autonomia da organização social e da produção em relação aos
agentes da produção (capitalistas ou trabalhadores) em função da sua submissão ao
capital. Nesse contexto, a maior eficiência, racionalidade, tecnologia possível e
progresso encobrem a produção e a reprodução da mais-valia, que, por sua vez,
aparecem opacamente como lucro. A organização da produção e a utilização dos
22
meios técnicos decorrentes são inseparáveis num sistema de dominação. Daí, a
organização ser a burocracia e esta a organização por excelência.
A classe dominante, no plano econômico, produz e reproduz em todas as
atividades extra-econômicas uma esfera autônoma da organização, concretizando a
força coletiva dos trabalhadores produtivos através de um grupo de especialistas. A
existência dessa esfera suprema de organização autônoma aparece como o
coroamento do sistema no Estado. Os problemas da razão de Estado ficam sendo
preocupação exclusiva de uma elite. A racionalidade econômica aparece como lei
natural que o especialista entende. Diferentemente do que postula Weber, os
valores são fatores de otimização da ação, no sentido sócio-histórico e não no
sentido pragmático-utilitário.
Em síntese, a burocracia não se esgota enquanto fenômeno meramente
técnico; é acima de tudo um fenômeno de dominação (Tragtenberg, 2006: 226).
Se Weber dialoga, como diz W. C. Mills, com a sombra de Marx, Tragtenberg,
diante da “nuvem teórica” weberiana, não traz à luz categorias marxianas fundamentais
para o desvelamento do “fenômeno burocrático
7
”. Só mais tarde poderemos nos ater a estas
categorias.
A trajetória histórica da burocracia é analisada por Tragtenberg em quatro
momentos: burocracia no modo de produção asiático, no capitalismo liberal, no capitalismo
monopolista e no socialismo, cada qual com suas particularidades. A empresa capitalista,
no período liberal de seu desenvolvimento econômico, observa a “ênfase do processo de
burocratização” fluindo na direção Estado-empresa. No capitalismo monopolista esta
dinâmica é consolidada com a intervenção do Estado na economia. no socialismo, que
ele denomina de “formas do coletivismo burocrático”, temos a “anatomia da burocracia
estatal legitimada pelo partido” (Tragtenberg, 2006: 232).
No capitalismo salientam-se as relações entre “público” e “privado” e
“racionalização” e “burocratização”. Mais uma vez as categorias ganham forma anárquica
na explicação do autor (o que, por sua vez, reflete o seu modo particular de pensar a
realidade burocrática):
No capitalismo, a burocracia é assimilada pela sociedade burguesa. Sob ele,
observa-se um policentrismo da burocracia, a competição entre burocracia das
7
A definição da emergência daquilo que Tragtenberg chama “abordagem estruturalista das organizações”
evidencia sua perspectiva eclética: “A abordagem estruturalista das organizações inicia-se sistematicamente
com algumas perspectivas lançadas por Marx, analisando a empresa oriunda da Primeira Revolução Industrial
e continuadas sistematicamente por Max Weber na análise da empresa, produto da Segunda Revolução
Industrial” (Tragtenberg, 2006: 101).
23
empresas privadas e a pública, contribuindo para impedir que chegue à unidade de
classe.
Por outro lado, a racionalização não conduz necessariamente à
burocratização, pois a primeira se processa num regime fundado na exploração, e a
burocratização é um sistema de dominação.
A burocracia constitui um sistema de condutas significativas e não
sistema de organização formal (Tragtenberg, 2006: 234).
Crozier parte de uma definição ainda mais problemática na análise da burocracia.
A prioridade dada à análise dos “jogos” que ocorrem no interior da fábrica, entre diferentes
grupos, leva-o a uma crítica ao conceito de poder e a uma reelaboração do mesmo. Esta
substituição revela sua preferência pela “pequena política
8
” na análise das organizações:
Esse jogo não é harmonioso, podendo ser considerado, tanto como um jogo
de conflito como de colaboração. A análise empírica mostra que ele é dominado por
problemas de poder não do poder no sentido político e mais ou menos místico do
termo, essa entidade que reside no pináculo e que poderia, um dia, ser conquistada –
e sim por relações de poder, essas relações que todo mundo mantém com seus
semelhantes para saber quem perde, quem ganha, quem dirige, quem influencia,
quem depende de quem, quem manipula a quem até que ponto (Crozier, 1981: 6).
Crozier não tem a pretensão de pôr fim àquilo que denomina de “fenômeno
burocrático”. Sofre da mesma resignação weberiana. Acredita que seu esforço teórico possa
contribuir para uma intervenção que elimine suas manifestações mais visíveis. Busca nos
mostrar que “esses fatores viciosos e irracionais, cujas conseqüências cada um de nós sofre
dolorosamente, para rejeitá-las o mais depressa possível no âmbito da imprecação e da
revolta, são fatores naturais, razoáveis, relativamente simples, suscetíveis de conhecimento
positivo e, conseqüentemente, de intervenção e correção” (Crozier, 1981: 4).
Critica, ao mesmo tempo, as interpretações conservadora e revolucionária acerca da
burocracia, diretamente no que se refere à ênfase dada à dimensão econômica na análise.
Substitui a definição de exploração da relação fabril (que teria como eixo a oposição entre
capitalista e operário) por uma definição de relações de poder (onde os grupos oponentes
são operários entre si ou estes versus administradores, gerentes, etc., em suma: pode-se
8
Talvez sua pequena política” seja ainda menor que aquela caracterizada por Gramsci como a que
“compreende as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura estabelecida
em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política”, por sua
vez, Crozier deixa claro sua oposição à “grande política”, que, na definição gramsciana, seria aquela que
“compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela
conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais” (Gramsci, 2007: 21).
24
extrair analiticamente indeterminadas oposições entre os mais diferentes grupos) no interior
da fábrica
9
. Substitui, ainda, a existência de normas impostas pelo jogo da cooperação:
A visão tradicional de burocracia, sobre a qual se apoiavam simultaneamente
conservadores e revolucionários tanto James Brunham como Rosa Luxemburg,
Marcuse como Galbraith consistia em que ela é o produto da concentração das
unidades de produção; concentração essa devida, por sua vez, às pressões técnicas e
às novas dimensões da economia. Daí a imposição de normas e o conformismo das
organizações modernas dominadas, a cada vez mais, por um aparelho burocrático
hierarquizado e opressivo.
(...) Com efeito, a burocracia, no sentido em que o grande público a entende
(isto é, o clima de rotina, de rigidez, de opressão e de irresponsabilidade que
caracteriza as organizações que provocam nosso descontentamento) não constitui,
em absoluto, a prefiguração do futuro nem tem tendência a aumentar
particularmente com a concentração das empresas, porém representa o legado
paralisante de um passado, no qual prevalecia uma conceituação estreita e limitada
dos meios de cooperação entre as pessoas (Crozier, 1981: 5-6).
Observa que algumas organizações mais modernas estão conseguindo ser mais
eficientes por elaborar modelos de jogos comunicativos. Estes não eliminariam “as relações
de poder na base tarefa impossível e esterilizante mas, antes pelo contrário, trata-se de
reconhecê-las para poder regularizá-las e forçar os parceiros à negociação direta, quer
dizer, à comunicação” (Crozier, 1981: 7- grifos meus).
Acentua que esta superação implica “tensões psicológicas difíceis de serem
superadas por aqueles que são seus beneficiários (e também suas vítimas)” (Crozier, 1981:
8). Ao que parece, julga que isto seria um mal necessário
10
.
Pressupõe viável “pôr na prática formas ‘cooperativas’ de organização, mais
eficazes para o desenvolvimento completo dos indivíduos, que as formas atuais paralisadas
pelas relações de poder” (Crozier, 1981: 296-297). Porém, antes de, apressadamente,
9
“Uma organização não está apenas constituída pelos direitos e obrigações da bela máquina burocrática, e
nem muito menos pela exploração e a resistência da força de trabalho a ser explorada por um patrão ou por
uma tecnoestrutura. Ela é um conjunto complexo de jogos entrecruzados e interdependentes, através dos quais
os indivíduos, com oportunidades freqüentemente muito diferentes de sucesso, procuram maximizar seus
benefícios, respeitando as regras não escritas do jogo que o meio lhes impõe, tirando partido sistematicamente
de todas as suas vantagens e tentando minimizar as dos outros. (...) De tudo isso decorre a tentação irresistível
ao desenvolvimento e manutenção ou reconstrução de diques contra a comunicação, apesar dos incessantes
esforços dos dirigentes. Daí as rotinas e a rigidez. Daí a ineficácia das organizações aparentemente racionais”
(Crozier, 1981: 7).
10
“Para que exista mudança real, para que a burocracia desaparecesse ou, pelo menos, se atenue, é portanto
necessário que as pessoas adquiram novas capacidades; capacidade individual para enfrentar as tensões,
capacidade coletiva para organizar e manter jogos baseados em mais intercâmbio e menos defesa” (Crozier,
1981: 8).
25
identificar a proposição do autor próxima a qualquer verniz de socialismo, mesmo que de
um utópico como o de Fourier, é preciso ver o que ele define como “cooperação”.
Crozier se pergunta: por que os homens preferem a rigidez burocrática? Acredita
que “quando se discute, se é envolvido pela própria cooperação aportada, como também se
é imediatamente mais vulnerável ante as pressões dos superiores e até mesmo dos colegas”
(Crozier, 1981: 298). Sua concepção de “cooperação”, portanto, implica pressão dos
superiores e maior vulnerabilidade dos subordinados. O contraditório é que, logo à frente,
ele, ao pensar o futuro dominado pela “cooperação”, diz o oposto:
A rigidez, dentro das sociedades mais industrializadas, tem e terá cada vez
mais tendência a diminuir, que os indivíduos parecem cada vez menos
vulneráveis às dificuldades do conflito e aos riscos do fracasso, dentro de um
sistema de organização social muito mais flexível e muito mais complexo. Quanto
menos vulnerável for o indivíduo, menos aceitará pagar o preço da rigidez
burocrática (Crozier, 1981: 302).
Certamente, nenhuma cooperação que indique o domínio coletivo dos meios de
produção e, portanto, o pleno desenvolvimento dos indivíduos livres (da “pressão” dos
superiores) poderá ser considerada entre os sociólogos da burocracia.
1.1.2- Dominantes e dominados
Voltando à formulação weberiana de dominação, notamos que é de particular
interesse do sociólogo o vínculo entre dominação e administração. Weber apresenta, como
primeiro passo crítico desta vinculação, a análise da administração democrática.
Comecemos, portanto, situando como ele identifica a relação entre dominantes e
dominados sob a democracia que é o melhor meio de extrair sua teoria particular das
formas políticas.
A administração democrática se baseia no pressuposto de qualificação igual, em
princípio, de todos para a direção dos assuntos comuns próprios à organização. Outra
característica é a possibilidade que seus membros possuem de minimizar a extensão do
poder de mando próprio aos dirigentes. Apesar destas características “democráticas”
apresentam-se tendências problemáticas, na visão do autor.
26
Um dos problemas tendo em vista que Weber apresenta como fato inquestionável
a diferenciação econômica na sociedade surge pela “oportunidade de que os possuidores,
como tais, se apoderem das funções administrativas” (...) “por terem tempo disponível para
realizar o trabalho administrativo acessoriamente e estarem economicamente em condições
de fazê-lo barato e gratuitamente” (Weber, 1999: 194). É a transformação da administração
democrática em dominação dos honoratiores. A luta contra eles deságua necessariamente
numa luta entre partidos, que, por sua vez, reproduzem, em seu interior, uma estrutura
hierárquica.
Como se pode ver, Weber atribui uma tendência inevitável ao desenvolvimento, no
interior da democracia, de processos hierárquicos. Muitos encontram nesta definição uma
perspectiva crítica. Ao que nos parece trata-se mais de uma postura de resignação ante a
própria tendência analisada como pode ser visto em outros momentos de sua análise
acerca da burocratização. Se algum sentido “crítico” em sua argumentação acerca da
democracia é somente se considerarmos um certo desprezo do autor para com esta forma de
administração.
Ao tratar da dominação por meio da “organização”, ele elabora uma estrutura de
compreensão da dominação hierárquica . Este organização poderia ser resumida na “relação
entre senhor ou os senhores e seu aparato, e entre estes dois e os dominados, e além disso,
de seus princípios específicos de ‘organização’, isto é, de distribuição dos poderes de
mando” (Weber, 1999: 197). Diante desta estrutura básica ele distingue as formas segundo
a fundamentação de sua legitimidade. Destacam-se três tipos:
[Quando temos um] sistema de regras racionais estatuídas (pactuadas ou
impostas)” (...) “o portador individual do poder de mando está legitimado por aquele
sistema de regras racionais, sendo o seu poder legítimo, na medida em que é
exercido de acordo com aquelas regras. Obedece-se às regras e não à pessoa, ou
então baseia-se o poder de mando em autoridade pessoal. Esta pode encontrar seu
fundamento na tradição sagrada, isto é, no habitual, no que tem sido assim desde
sempre, tradição que prescreve obediência diante de determinadas pessoas, ou ao
contrário, pode basear-se na entrega ao extraordinário; na crença no carisma, isto é,
na revelação atual ou na graça concedida a determinada pessoa em redentores,
profetas e heroísmo de qualquer espécie (Weber, 1999: 198).
Estes tipos ideais de dominação são categorias usadas por Weber e seus discípulos
na interpretação dos mais diferentes fenômenos, sejam eles vinculados à dominação estatal,
27
sindical ou partidária e mesmo na dominação econômica no interior da empresa moderna
11
.
O tipo mais claramente identificado com a burocracia moderna é o primeiro, mas isto não
exclui o desenvolvimento ou combinação das outras tipologias.
Selznick, já pensando na forma moderna, cita dois importantes aspectos das
organizações no sentido de garantir a sua segurança “frente às forças sociais de seu meio”:
a ideologia e a cooptação. Este último pode ser definido como “o processo de absorção de
novos elementos na liderança ou estrutura de decisões políticas de uma organização, como
meio de evitar ameaças à sua estabilidade ou existência”. A “cooptação formal” se
“quando necessidade de estabelecer a legitimidade da autoridade ou de tornar a
administração acessível ao público a que se dirige; e cooptação informal quando
necessidade de ajustamento às pressões de centros específicos de poder na sociedade”
(Selznick apud: Campos, 1971: 93).
Quanto a Weber, priorizando os aspectos formais, depois de uma longa descrição da
história da jurisdição e do direito racional, ele afirma que não traz nenhuma vantagem “para
as massas não-possuidoras, a ‘igualdade jurídica’ formal e a aplicação do direito e da
administração ‘calculáveis’, tais como as exigem os interesses ‘burgueses’”: somente se o
direito e a administração estiverem a serviço do nivelamento das oportunidades de vida
econômica e sociais diante dos possuidores” que a sua expansão lhes interessaria. Porém,
este nivelamento pode ser exercido quando as massas atuam de modo informal. Elas,
através de uma “ação social” pautada em “‘sentimentos’ irracionais e, em regra, encenada
ou dirigidas por chefes de partidos e pela imprensa, malogram o decurso racional da justiça
e da administração no mesmo grau ou até em grau muito mais alto que o podia fazer a
‘justiça de gabinete’ de um soberano absoluto” (Weber, 1999: 217).
Não há em Weber, portanto, nenhuma simpatia por estas ações, que considera
irracionais e ilegítimas. Sua preocupação é desvendar os fundamentos da regularidade
política e social das organizações burocráticas. Encontra os fundamentos desta solidez nas
organizações econômicas burguesas.
11
Weber cita como exemplos de administração burocrática “a Igreja, Estado, partidos políticos, empresas
econômicas, organizações promocionais de toda espécie, associações particulares, clubes e muitas outras”.
Por outro lado refere-se a “formas que não se aproximam do modelo: os órgãos colegiados representativos,
comissões parlamentares, sovietes, funcionários honorários, juízes não-profissionais e outras tantas” (Weber
apud: Campos: 24-25).
28
No desenvolvimento das grandes empresas capitalistas “a estrutura burocrática está
acompanhada pela concentração dos meios de serviço materiais nas mãos do senhor”
(Weber, 1999: 216). O que é acompanhado por outras comunidades públicas, como, por
exemplo, o exército
12
.
É necessário compreender a importância destes desenvolvimentos como
pressupostos da burocracia moderna, que “o servidor ‘patrimonial’ separado dos meios
de execução de suas funções e o proprietário de um exército mercenário com finalidades
capitalistas foram, juntamente com o empresário capitalista, os precursores na organização
do moderno tipo de burocracia” (Weber apud: Campos, 1971: 24).
Como decorrência da burocratização das empresas temos o fenômeno da
“burocratização da administração, acompanhada pela concentração dos meios de serviço”.
É própria do Estado que através da centralização do orçamento “abastece as instâncias
inferiores com os meios de serviço correntes, regulamentando e controlando seu emprego.
Para o caráter econômico’ da administração, isto significa o mesmo que a grande empresa
capitalista centralizada” (Weber, 1999: 218-219).
Weber define a burocracia como um “produto relativamente tardio do
desenvolvimento” e que, por isso, encontra obstáculos para seu desenvolvimento
13
. Refere-
se a uma superação destes obstáculos através da “democratização”, que, diante deles, a
organização burocrática impôs-se através de nivelamento relativo “das diferenças
econômicas e sociaisquando estas possuíam alguma relação com a ocupação de cargos
administrativos. Na verdade, trata-se do “nivelamento dos dominados diante do grupo
dominante, burocraticamente estruturado” que, de fato e formalmente, possui uma posição
autocrática. Por isso, é preciso observar que o termo democracia pode enganar, que “a
‘democratização’ no sentido aqui adotado não significa, necessariamente, um aumento da
participação ativa dos dominados na dominação dentro da formação social em questão”
(Weber, 1999: 220).
Esta “democratização” tem, para Weber, um vínculo com certas condições
econômicas, no momento em que o surgimento de novas classes (sejam plutocráticas,
12
“A burocratização das atividades militares pode basear-se no capitalismo privado como qualquer indústria”
(Weber, 1999: 218).
13
Ver nota 5.
29
pequeno-burguesas ou proletárias) “apelam a um poder político existente” ou “fazem
nascer ou renascer um tal poder” (Weber, 1999: 221).
A organização burocrática é um importante meio de poder para quem dispõe deste
aparato. O funcionário profissional é fundamental, por ser “um elo individual, encarregado
de fazer tarefas especializadas, de um mecanismo que se move sem cessar e somente pode
ser parado ou posto em movimento no seu posto culminante, (...) e que lhe prescreve um
percurso essencialmente determinado” (Weber, 1999: 222). Os funcionários integrados
neste sistema estão vinculados a uma “comunidade de interesses” e por isso buscam a
continuidade do funcionamento deste mecanismo e a persistência da dominação (“exercida
na forma de relações associativas”). Os dominados, segundo Weber, também,
não podem nem prescindir de um aparato de dominação burocrático, uma
vez existente, nem substituí-lo, porque este se baseia numa síntese bem planejada de
instrução específica, especialização técnica com divisão do trabalho e firme preparo
para exercer determinadas funções habituais e dominadas com destreza. (...) A
vinculação do destino material das massas ao contínuo funcionamento correto das
organizações capitalistas privadas, ordenadas de forma cada vez mais burocrática,
está se intensificando continuamente, e, por isso, torna-se cada vez mais utópica a
idéia de sua eliminação. A ‘documentação’, por um lado, e, por outro, a disciplina
dos funcionários, isto é, sua disposição à obediência precisa dentro de sua atividade
habitual, vêm, assim, a constituir, tanto no empreendimento público quanto no
privado, cada vez mais o fundamento de toda ordem. Mas, em primeiro lugar por
maior que seja a importância prática da administração baseada em documentação – ,
figura a ‘disciplina’(Weber, 1999: 222-223).
Esta burocratização tem o efeito de favorecer o interesse da pequena burguesia, ao
garantir-lhe um “sustento” tradicional ou, ao contrário, levar a um “socialismo estatal que
restringe as oportunidades de lucro privadas” (Weber, 1999: 224)
Para Weber o poder da burocracia aumenta na medida em que se afirma a sua
“indispensabilidade” assim como outrora se afirmara a do escravo e a do proletariado.
A administração burocrática, marcada pela especialização (vinculada ao segredo
profissional) possui conhecimento somente inferior ao “conhecimento especial dos
interessados da economia privada, na área econômica
14
”, assim sendo, a influência do
Estado sobre a economia, no capitalismo, “tem limites muito estreitos, e (...) desembocam
14
“O empresário capitalista é, em nossa sociedade, o único que tem sido capaz de manter-se relativamente
imune à dominação do saber racional burocrático. Todos os demais tendem a ser organizados em grandes
associações, inevitavelmente sujeitas a dominação burocrática, inevitabilidade idêntica à da dominação das
máquinas de precisão na produção em massa” (Weber apud: Campos, 1971: 27).
30
tão freqüentemente em caminhos imprevistos e despropositados ou tornam-se ilusórias
devido ao conhecimento especial superior dos interessados” (Weber, 1999: 227).
Há, ainda, o fator da segmentação nas funções dos dirigentes, que culminam em
diferenças importantes no interior da administração burocrática.
Com a crescente ampliação qualitativa das tarefas administrativas e, com
isso, da indispensabilidade do conhecimento especial, produz-se, por isso, de forma
muito típica, o fenômeno de que não basta ao senhor a consulta ocasional de alguns
homens de confiança provados ou de uma assembléia convocada de forma
intermitente em situações difíceis, passando este a rodear-se (...) de corporações
permanentemente reunidas que discutem e decidem de forma colegial. (...) Como é
natural, a posição delas difere muito, conforme exista, ao lado delas, uma instância
central monocrática, ou várias, e além disso conforme suas práticas – no tipo
plenamente desenvolvido reúnem-se, em princípio ou ficticiamente, sob a
presidência do senhor –, e todos os assuntos importantes, depois de serem
esclarecidos sob todos os aspectos mediante exposições principais e
complementares por parte dos especialistas e mediante votos motivadores de outros
participantes numa resolução, sancionada ou rejeitada por uma disposição do
senhor. Esta espécie de autoridades colegiais é, portanto, a forma pica em que o
soberano, que se torna cada vez mais ‘diletante’, se aproveita do conhecimento
especial e ao mesmo tempo o que muitas vezes passa despercebido procura
defender-se do poder crescente deste conhecimento e manter, diante deste, sua
posição dominante (Weber, 1999: 227-228).
Dessa forma os assuntos administrativos passam a incorporar a participação de
diferentes esferas. Weber as diferencia. Temos,
1) “as corporações”: “nascidas na base da especialização racional e do
domínio do conhecimento especial”;
2) “as corporações consultivas”: “freqüentes no Estado moderno, que são
recrutadas de círculos de interessados privados e cujo núcleo não está
formado por funcionários ou ex-funcionários”; e,
3) “as instâncias colegiais controladoras (conselho fiscal)”: “existem nas
atuais formações burocráticas da economia privada (sociedade por ações),
apesar de que estas, não raramente, se completam pela integração de
honoratiores provindos de círculos de não-interessados, seja por causa de
seu conhecimento especial, seja como meios de representação e
propaganda, pois, em regra, essas formações o reúnem portadores de
31
conhecimentos especiais, mas os principais interessados econômicos
decisivos, particularmente bancos que financiam o empreendimento e que
de modo algum ocupam apenas uma posição consultiva, mas pelo menos
controladora e freqüentemente, de fato, a posição dominante” (Weber,
1999: 228-229).
Outro ponto verificado por Weber se refere à distinção entre negócio” privado e
“administração de um cargo” público. Segundo o autor, é produto de um desenvolvimento
e nem em toda parte está tão consolidado como em seu país. Este desenvolvimento
histórico, particularmente na Alemanha de Weber, será o substrato em que Hegel, antes
daquele, desenvolve sua distinção entre Sociedade Civil e Estado
15
.
Tragtenberg ao qualificar Hegel e Weber como os dois maiores estudiosos da
burocracia atribui o motivo à nacionalidade, que “eles generalizam a experiência da
burocracia prussiana à burocratização do mundo capitalista
16
” (Tragtenberg, 2006: 113).
Salienta que a partir de Weber temos a passagem da Teoria da Administração para
a Sociologia da Organização” marcada pela conjuntura política alemã de Bismarck a
Weimar (Tragtenberg, 2006: 247).
Indica que no capitalismo temos a assimilação da burocracia pela burguesia.
também destaque para seu papel mediador entre Estado e sociedade civil:
Sob o capitalismo, a burocracia é assimilada pela burguesia; isso é revelado
pelo aburguesamento dos altos funcionários que participam dos Conselhos de
administração ou das rendas que provêm da atividade política de partido.
A burocracia age antiteticamente: de um lado responde à sociedade de
massas e convida a participação de todos, de outro, com sua hierarquia,
monocracia, formalismo e opressão afirma a alienação de todos, torna-se jesuítica
(secreta), defende-se pelo sigilo administrativo, pela coação econômica, pela
repressão política.
15
O que, do ponto de vista conceitual e histórico, será objeto de nosso segundo capítulo.
16
“Esta realidade histórica contraditória determinará a reflexão intelectual de Weber no nível de antinomias.
No seu esquema explicativo, sua Sociologia apresenta a combinação de esquemas de ação social a partir do
sujeito e explicações estruturais no vel de classe, estamento ou casta. A separação entre o político e o
econômico opera-se em sua obra, assim como a dialética antinômica das formas-limite de dominação:
burocracia e carisma; antinomia entre racionalidade formal e a racionalidade material; a ética de convicção
e a ética da responsabilidade; a dominação do ethos burocrático na vida alemã, em que a burocracia
representa elemento democratizante e impessoal. Todos são negativamente privilegiados ante ela; o
recurso ao personalismo do carisma plebiscitário. São estas contradições externas da sociedade alemã no seu
conjunto e as internas, de classe, religião e políticas, que situam a reflexão de Weber como a tomada de
consciência da crise do espírito liberal weimariano” (Tragtenberg, 2006: 249).
32
Em suma, ela une a sociedade civil ao Estado, efetua a viagem de volta, de
Marx a Hegel, converte sua razão histórica na razão na história do contingente
passa à essencialidade (Tragtenberg, 2006: 236-237).
Contrariamente a Hegel, Weber, quando se refere a um sentido mais abrangente de
razão, tem mais reservas do que quando trata da racionalidade concernente a fins imediatos,
interesses econômicos, etc.
17
. Critica aos que concebem a idéia de “razão de Estado” e que,
por isso, “exaltam a decisão ‘criativa’ do funcionário” como encarnação desta. Ele vincula
a “canonização” desta idéia aos “instintos infalíveis da burocracia para as condições da
conservação de seu poder dentro do Estado próprio (e, por intermédio dele, de outros
Estados)” e, apresenta como desdobramento o fato de que “atrás de todo ato de uma
autêntica administração burocrática encontra-se um sistema de ‘razões’ racionalmente
discutíveis, isto é, a subsunção a normas ou a ponderação de fins e meios” (Weber, 1999:
216).
A burocracia, sob forma moderna, atualiza o seu sentido corporativo: “tanto nos
escritórios comerciais quanto no serviço público, é tanto portadora de um desenvolvimento
especificamente ‘estamental’ quanto o eram os detentores de cargos do passado, totalmente
diferentes” (Weber, 1999: 232).
Esta característica não anula o profundo vínculo entre burocracia e capitalismo. Este
vínculo é tão mais importante na medida em que não se tem paralelo desta identidade em
nenhum modo de produção anterior, como também, necessariamente, constitui-se como
herança inevitável para organizações societárias futuras:
O sistema capitalista embora não somente ele desempenhou um papel
fundamental no desenvolvimento da burocracia. Na verdade, sem ela a produção
capitalista não poderia persistir, e todo o tipo racional de socialismo teria
simplesmente de adotá-la e incrementar sua importância. Seu desenvolvimento, sob
os auspícios do capitalismo, criou a necessidade de uma administração estável,
rigorosa, intensiva e incalculável. É esta necessidade que à burocracia um papel
central em nossa sociedade como elemento fundamental em qualquer tipo de
administração de massas. Somente por uma regressão à organização pouco extensa
na esfera política, religiosa, econômica etc. seria possível escapar à sua
influência. Por um lado, o capitalismo em seu estágio atual tende a fomentar de
maneira acentuada o desenvolvimento da burocracia, embora ambos tenham surgido
de fatos históricos diferentes. Por outro lado, o capitalismo constitui a base
17
É ilustrativo de sua “visão de mundo” que Weber considere a razão instrumental um fato inquestionável da
era moderna, enquanto, ao mesmo tempo, procure criticar o ideário racionalista herdado dos ideais
iluministas.
33
econômica mais racional para a administração burocrática e lhe possibilita o
desenvolvimento sob a forma mais racional porque, do ponto de vista fiscal,
fornece-lhe os recursos monetários requeridos (Weber apud: Campos, 1971: 26).
A opção socialista, citada de passagem anteriormente, é, logo em seguida,
descartada, já que a Sociologia encontra nela um elemento de irracionalidade:
O socialismo requereria um grau mais elevado ainda de burocratização
formal do que o capitalismo. Provada essa impossibilidade, estaria demonstrada a
existência de outro daqueles elementos fundamentais da irracionalidade nos
sistemas sociais um conflito entre a racionalidade formal e a substantiva e que a
Sociologia encontra tão freqüentemente (Weber apud: Campos, 1971: 27).
Se, freqüentemente, a “Sociologia” encontra na razão instrumental a prova da
superioridade eterna do capitalismo, não é de se estranhar que encontre nas formas de
divisão do trabalho no capitalismo um fundamento igualmente racional e inexorável.
Esses sociólogos costumam perguntar-se sobre a razão dos homens edificarem
organizações nas quais as regras impessoais e a rotina determinam o comportamento dos
indivíduos de forma restritiva. Segundo Crozier, por exemplo, os homens criam burocracias
porque “este é para eles o meio de evitar o relacionamento face a face, as relações de
dependência pessoal, das quais não podem suportar o tom autoritário” (Crozier, 1981: 75).
Ele define que “o ideal da burocracia é um mundo no qual todos os participantes estejam
ligados através de regras impessoais e não por ordens arbitrárias ou influências pessoais”. É
o que chama de “desejo de eliminar as relações de poder e dependência, a vontade de
administrar as coisas em lugar de governar os homens” (Crozier, 1981: 153).
Após tratar das contradições existentes, segundo ele, “na brilhante descrição do
‘tipo ideal’ de burocracia” de Weber, Crozier comenta sobre seus discípulos:
De um lado, a maior parte dos autores pensam que o desenvolvimento das
organizações burocráticas corresponde ao advento ao mundo moderno da
racionalização e que, por esse motivo, é intrinsecamente superior a todas as demais
formas possíveis de organização, enquanto do outro, muitos autores, e
freqüentemente os mesmos, consideram as organizações como se fossem Leviatães
através dos quais está se preparando a escravidão da raça humana. A ênfase que
cada um deles põe sobre um ou outro dos aspectos, depende do seu otimismo
natural; mas, seja qual for o resultado que consiga, sempre se descobre que ele
acredita no tocante à eficiência, como em suas implicações ameaçadoras para os
valores tradicionais da humanidade (Crozier, 1981: 258).
34
O que chama de “corrente pessimista revolucionária” une de “Rosa Luxemburgo e
Leon Trotsky a Bruno Rizzi, Simone Weil, C. Wright Mills e ao Socialismo ou Barbárie”.
Crozier se opõe ao método desta “corrente” e procura defender sua análise empírica contra
a análise dialética acerca da burocracia:
É devido aos próprios excessos do ataque mantido contra o que, aliás, se
julga inelutável, que nos esforçamos em conjurar a ameaça que pesa sobre a
humanidade; exagerando a contradição pensamos realmente tornar necessário o
excesso, isto é, o salto dialético ou, em outros termos, a fé mística, que é a única que
poderia resolvê-la (Crozier, 1981: 259).
É no sentido de se contrapor àquilo que consideravam uma ideologia carregada de
sentido revolucionário que os sociólogos (tendo início consciente em Weber) procuraram
substituir a análise dialética da formação histórica do capitalismo, realizada por Marx, por
uma idéia-força da burocratização como processo perene da modernidade. A crítica à
suposta “fé mística” se apresenta como descrença mistificadora.
1.1.3- Pressupostos sociais e econômicos da burocracia moderna
Depois de traçar um panorama histórico sobre o burocratismo, que vai desde Egito
do Novo Império, passando pelo principado romano tardio, a Igreja Católica Romana, a
China, o Estado Europeu Moderno e todas as corporações públicas e, por fim, a grande
empresa capitalista moderna, Weber inicia a reconstrução dos principais pressupostos da
burocratização.
A grande empresa impulsiona o processo de burocratização. Este processo
pressupõe certo grau de desenvolvimento de uma economia monetária, que pode não ser a
causa direta de sua gênese, mas garante a “subsistência inalterada das administrações
puramente burocráticas”. Sem este desenvolvimento da economia monetária “dificilmente
pode ser evitado que a estrutura burocrática mude fortemente em sua natureza interna ou
até seja substituída por outra” (Weber, 1999: 205).
Outro ponto característico desta nova época é a modernização do funcionalismo.
Weber assinala uma série de diferenças entre os “antigos” funcionários e os “modernos”
funcionários burocratas. Estas novas qualidades terão papel importante em sua relação com
a economia monetária. A mais importante das diferenças notadas diz respeito ao caráter
35
pessoal da relação dos antigos funcionários com o senhor feudal em contraposição com a
impessoalidade vigente na burocracia atual. Esta qualidade, dentre outros fatores, leva a
uma “superioridade” dos novos burocratas em relação aos anteriores, pois uma
“eficácia” maior da sujeição dos funcionários, agora sob novas bases
18
.
Um salário garantido em dinheiro, em conexão com a possibilidade de uma
carreira que não depende puramente do acaso e da arbitrariedade, da disciplina e do
controle enérgicos, mas que respeita o sentimento de dignidade, além do
desenvolvimento de um sentimento de honra estamental e da possibilidade de crítica
pública, oferece, segundo toda experiência, o ótimo relativo para o estabelecimento
e a conservação de uma mecanização rigorosa do aparato burocrático, e, sob este
aspecto, ele funciona com maior segurança do que qualquer escravização jurídica,
pois uma forte consciência estamental dos funcionários não apenas é compatível
com a disposição à subordinação incondicional aos superiores, mas como no caso
do oficial – é a conseqüência desta, por equilibrar o sentimento de dignidade pessoal
dos funcionários (Weber, 1999: 207-208).
Toda esta transformação é possível com o desenvolvimento pleno da economia
monetária, através de “receitas contínuas para sua conservação” extraídas de “lucro
privado”, de “tributos fundiários” e de “um firme sistema de impostos [, que] é a condição
prévia da existência permanente de uma administração burocrática” (Weber, 1999: 208).
Weber, portanto, destaca a importância do novo funcionalismo privado e público
para a estabilidade deste momento de desenvolvimento da economia monetária. Este, por
sua vez, também é o pressuposto da existência do outro: a ampliação das “receitas extras”
permite estabilizar um corpo administrativo eficaz e é a existência deste corpo que permite
a adequada estabilidade da moderna organização social.
O desenvolvimento das tarefas administrativas pressupõe o seu desenvolvimento
quantitativo. Um dos exemplos, na área política, da “base clássica da burocratização” é o
“grande Estado e o partido de massas”.
[Para Weber] os germes da formação de Estados intensiva e ‘moderna’, na
Idade Média (...) costumavam aparecer acompanhados pelo desenvolvimento de
complexos burocraticamente mais desenvolvidos que destruíram, finalmente,
aqueles conglomerados baseados, essencialmente, num Estado de equilíbrio pouco
estável (Weber, 1999: 209).
18
“Somente onde a sujeição dos funcionários ao senhor era absoluta também em sentido puramente pessoal,
isto é, no caso da administração por parte dos escravos ou empregados tratados como se fossem escravos,
podia ser alcançada, pelo menos sob uma direção muito enérgica, uma precisão semelhante àquela que
apresentam, no Ocidente da atualidade, os funcionários contratados” (Weber, 1999: 207).
36
Outros teóricos levam a característica quantitativa [desenvolvida de forma genérica
por Weber] ao da letra. A obsessão por esta dimensão do fenômeno da burocratização
leva a Terrien e Mills a formular a seguinte hipótese: “a relação entre o tamanho de um
componente administrativo e o tamanho da organização que o contém é tal que quanto
maior o tamanho da organização, tanto maior é a proporção de seu componente
administrativo” (Terrien e Mills apud: Campos, 1971: 69-70). Isto decorre do fato de que o
aumento do número de relações dentro do grupo exige quantidade crescente de supervisão.
Blau propõe um “refinamento” da teoria de Weber e, dentre outros pontos,
questiona a “fórmula” weberiana a respeito da burocratização, segundo a qual “a grande
dimensão de uma organização e sua complexidade promovem a burocratização”. Segundo o
comentarista de Weber “pesquisas comparativas recentes indicam que a dimensão não se
relaciona ou se relaciona negativamente com a burocratização, quando medida pela
proporção de pessoal em cargos administrativos” (Blau apud: Campos, 1971: 150).
Não só a aumento quantitativo das tarefas administrativas, mas também a ampliação
intensiva e qualitativa e seu desenvolvimento interno dão origem à burocratização. As
exigências do “novo” poder público impulsionam o desenvolvimento cultural. Ambos, por
sua vez, são condicionados, do ponto de vista de exigências crescentes, por parte do
aumento da riqueza de camadas mais afluentes do Estado. A conseqüência destes fatores é
uma complexificação dos meios e formas de consumo.
Neste sentido, a burocratização progressiva é uma função da propriedade
crescentemente disponível para o consumo e empregada neste e de uma técnica cada
vez mais refinada, correspondente às possibilidades assim criadas, do estilo de vida.
Quanto a repercussão na situação geral de necessidades, isto condiciona a crescente
indispensabilidade subjetiva de uma previdência interlocal e organizada em
economia pública, isto é: burocrática, para as mais diversas necessidades da vida,
que antigamente eram desconhecidas ou satisfeitas localmente ou pela economia
privada (Weber, 1999: 211).
também outros fatores políticos, sociais e “técnicos” para a burocratização. Um
deles é a “crescente necessidade de ordem e proteção (‘polícia’) em todas as áreas, por
parte de uma sociedade acostumada com a pacificação firme e absoluta (Weber, 1999:
211). Entre “fatores técnicos” podemos citar o desenvolvimento dos meios de
comunicação e transporte administrados por “economia pública” como os principais
precursores da burocratização, pois estão “intimamente ligados ao desenvolvimento de um
37
grande tráfico interlocal de bens, o qual vem, assim, a figurar entre os fenômenos
concomitantes causais na formação dos Estados modernos” (Weber, 1999: 211).
A superioridade cnica da organização burocrática sobre qualquer outra forma é
afirmada por Weber através da analogia em relação à máquina na produção de bens:
“Precisão, rapidez, univocidade, subordinação rigorosa, diminuição de atritos e custos
materiais e pessoais alcançam o ótimo numa administração rigorosamente burocrática
(especialmente monocrática)
19
” (Weber, 1999: 212).
Esta transformação, por sua vez, tem como impulso a moderna empresa capitalista.
A exigência da realização mais rápida possível das tarefas oficiais, além de
inequívoca e contínua, é atualmente dirigida à administração, em primeiro lugar,
pela economia capitalista moderna. As modernas empresas capitalistas de grande
porte são elas mesmas, em regra, modelos inigualados de uma rigorosa organização
burocrática.” (Weber, 1999: 212).
A superioridade por ele apontada tem relação direta com o seu caráter
absolutamente monocrático e tecnicista. O “tipo monocrático de burocracia” “o tipo mais
puro de organização administrativa” – se caracteriza por uma
perspectiva puramente técnica, de atingir o mais alto grau de eficiência e
neste sentido é, formalmente, o mais racional e conhecido meio de exercer
dominação sobre os seres humanos. (...) Daí a possibilidade de que os chefes da
organização e os interessados possam contar com um grau particularmente elevado
de calculabilidade dos resultados. Finalmente, é superior tanto em eficiência quanto
no raio de operações, havendo ainda a possibilidade formal de sua aplicação a todas
as espécies de tarefas administrativas (Weber apud: Campos, 1971: 24).
Tragtenberg, que acreditava que Weber estudou a burocracia para criar mecanismos
de defesa ante ela, resume o conceito weberiano de burocracia como “um tipo de poder”,
como uma organização sistêmica racional pautada na divisão do trabalho que “se
racionalmente com vista a fins
20
”, e, por isso, “implica predomínio do formalismo, de
existência de normas escritas, estrutura hierárquica, divisão horizontal e vertical de trabalho
e impessoalidade no recrutamento dos quadros” (Tragtenberg, 2006: 171).
19
“[Ela é] exercida por funcionários individuais treinados, em comparação a todas as formas colegiais ou
exercidas como atividade honorária ou acessória Quando se trata de tarefas complexas, o trabalho burocrático
remunerado não apenas é mais preciso, como também muitas vezes mais barato no resultado final do que o
formalmente não-remunerado, honorário” (Weber, 1999: 212).
20
“A ação racional burocrática é a coerência da relação entre meios e fins visados” (Tragtenberg, 2006: 171).
38
Crozier pensa a burocracia ao contrário da ênfase na superioridade técnica em
termos de disfunções burocráticas, ou seja, de contradições da organização que levam à
rotina e opressão. Fazendo a crítica à visão weberiana, afirma que o crescimento da
burocratização nas grandes organizações, “que Weber acreditava ser inexorável, depende,
pelo menos em parte, da própria capacidade do homem para dominar e romper os círculos
viciosos burocráticos” (Crozier, 1981: 261-262). A definição de sua perspectiva é realizada
após caracterizar a teoria das disfunções burocráticas. Busca, portanto, a ampliação crítica
do conceito weberiano de burocracia, partindo da análise de Merton e de outros teóricos:
A teoria das disfunções burocráticas é contemporânea da descoberta do fator
humano e da difusão das ‘relações humanas’ na indústria. (...) Parece existir uma
ligação gica entre o modo de raciocínio sobre o qual se apóiam as diferentes
teorias das ‘relações humanas’ e o que está subtendido na teoria das disfunções
burocráticas.
(...) Afinal, se as conseqüências do emprego do modelo mecanista deviam
realmente obrigar a utilizar sempre mais controle e regulamentação, também
deveríamos encontrar cada vez mais disfunções. Merton não equacionou esses
problemas porque não quis pôr novamente em causa a análise de Weber. Seu
objetivo unicamente era mostrar que o ‘tipo ideal’ comportava uma parte
considerável de ineficiência, e compreender quais eram as razões dessa diferença
entre o modelo de Weber e a realidade
21
(Crozier, 1981: 262-263)..
Considera-se como “fenômeno burocrático” a tentação das organizações a escapar
da realidade que impõe a necessidade objetiva de flexibilidade e mudança constante. Este
conceito também se define pelas “regras impessoais, que eliminam arbitrariamente as
dificuldades, bem como impossibilita o conhecimento suficiente dos fatos” pois
“constituem outros tantos meios ‘burocráticos’ de evitar as adaptações e as mudanças que,
de outra forma, pareceriam inevitáveis” (Crozier, 1981: 272).
É desta incapacidade de adaptação à mudança que Crozier extrai seu conceito de
“sistema burocrático de organização”: que é qualquer “sistema de organização no qual o
circuito ‘erros-informações-correções’ não funcione satisfatoriamente, e onde, por este
motivo, não exista a possibilidade de uma rápida correção e readaptação dos programas de
ação, em função dos erros cometidos” (Crozier, 1981: 272).
21
“Alguns autores m seguido o caminho aberto por Merton: Bendix, Selnick, Blau, Gouldner, Dubin. Seus
trabalhos de pesquisa empírica confirmaram as primeiras hipóteses de Merton, e permitiram elaborar um
esquema de interpretação mais completo e mais gico no qual o caráter de ‘círculo virtuoso’ do fenômeno
burocrático torna-se mais aparente” (Crozier, 1981: 263).
39
Merton, através do conceito de Veblen de “incapacidade treinada
22
”, a noção de
Dewey de “psicose ocupacional
23
e a de Warnotte de “deformação profissional”, quando
trata dos aspectos negativos da burocracia, realiza uma síntese da estrutura relacionada à
personalidade forjada com a burocratização da vida social. Propõe um estudo que enfoque o
outro lado da burocracia não abordado por Weber pois este, em seu estudo, “se ocupa quase
exclusivamente do que se consegue mediante a estrutura burocrática: precisão, confiança,
eficiência”. Merton propõe que “a mesma estrutura pode ser estudada, também, enfocando
o outro aspecto da ambivalência. Quais são as limitações da organização concebida para a
consecução desses fins?” (Merton apud: Campos, 1971: 112).
A estrutura burocrática submete o funcionário a uma série de pressões para torná-lo
“metódico, prudente, disciplinado”. Mas é somente através da capacidade de “infundir nos
grupos integrantes atitudes e sentimentos apropriados” que se garante uma eficácia da
estrutura social: “existem disposições dentro da burocracia para inculcar e fortalecer tais
sentimentos” (Merton apud: Campos, 1971: 113).
[Opera-se] uma transferência dos sentimentos dos fins da organização para
os detalhes particulares da conduta exigida pelas normas. A submissão à norma, de
início concebida como meio, transforma-se em um fim em si mesma. Trata-se do
processo do deslocamento dos objetivos pelos quais ‘um valor instrumental se
converte em valor final’. A disciplina (...) aparece na vida do burocrata como um
valor imediato (Merton apud: Campos, 1971: 113-114).
Esta ênfase no valor instrumental leva, por sua vez, à incapacidade de ajustamentos
imediatos, ao formalismo (apego aos procedimentos formais) ou ao tecnicismo (o burocrata
virtuoso).
Merton segue apontando os elementos que, ao mesmo tempo, são os responsáveis
pela eficiência e ocasionam a ineficiência da burocracia. Um desses elementos é a estrutura
de carreira do funcionário que o leva ao conformismo e ao exagero na observação das
22
“A incapacidade treinada corresponde à situação em que a preparação pode tornar-se inadequada ao mudar
certas condições. A falta de flexibilidade na sua aplicação a um meio em transformação produz desajustes
mais ou menos sérios” (...) “Assim a preparação pode resultar em incapacidade” (Merton apud:Campos,
1971: 111-112). Crozier traduz a análise de Merton: “O burocrata, diz ele, lançando mão de uma célebre
fórmula, infelizmente de difícil tradução ‘parece desadaptado porque se adaptou a uma adaptação
desadaptada” (Crozier, 1981: 289).
23
“Como resultado da sua rotina diária, os indivíduos vão adquirindo preferências e antipatias. (...) Essas
psicoses se desenvolvem pelas exigências da organização na qual o indivíduo desempenha seu papel
ocupacional” (Merton apud: Campos, 1971: 112).
40
normas. O desdobramento disso é o “espírito de grupo” dos burocratas que se opõe ao
interesse do público e dos chefes
24
. O aparecimento de grupos informais tem caráter
defensivo e surgem quando o grupo vê sua integridade ameaçada.
Outro aspecto importante é o que chama de “orgulho de ofício”.
Em um estimulante estudo, Hughes aplicou os termos ‘secular’ e ‘sagrado’ a
vários tipos de divisão do trabalho. O ‘sagrado’ das prerrogativas de casta e de
estamento contrasta, claramente, com a progressiva tendência secularizadora na
diferenciação das ocupações em nossa sociedade em mudança. Contudo, como o
sugerimos, em algumas carreiras e em certos tipos de organizações, pode
desenvolver-se o ‘processo de sacralização’ (como contrapartida do ‘processo de
secularização’). O que equivale a dizer que através da formação de sentimentos, da
dependência afetiva frente aos símbolos e status da burocracia e do envolvimento
afetivo nas esferas de jurisdição e de autoridade, desenvolvem-se prerrogativas que
implicam atitudes de legitimidade moral erigidas em valores, por direito próprio, e
não mais considerados como meios puramente técnicos para tornar mais eficiente o
trabalho administrativo (Merton apud: Campos, 1971: 118).
O autor lembra do conceito de Durkheim de solidariedade orgânica, que trata desse
processo onde valores e atitudes comuns permanecem numa sociedade marcada pela
diferenciação.
A impessoalidade é outro elemento marcante das relações na estrutura burocrática.
Diante do fato do grupo se constituir com base nessa característica “a conduta contrária às
normas formalizadas converte-se em objeto de apaixonada desaprovação” (Merton apud:
Campos, 1971: 122).
Gouldner, ao questionar o papel da “eficiência burocrática”, constata que Weber
concebe as normas como se elas não fossem determinadas pela intervenção de grupos
interessados que, na verdade, possuem o poder em graus diferentes.
As normas da fábrica, por exemplo, capacitam os operários a predizerem
coisas de maior interesse para eles? Poder-se-ia ver que sob determinadas
circunstâncias as normas da fábrica tornam normalmente difícil ou impossível a
predição para os estratos pessoais mais baixos; porque dada a implícita mas
penetrante suposição de que a ansiedade e insegurança são motivadores efetivos,
levando invisivelmente os homens a obedecerem, os empregadores tenderão a
24
O conflito entre o burocrata e o público tem origem, entre outros fatores, na própria estrutura burocrática, já
que o “burocrata, independente da parte de sua posição na hierarquia, atua como representante do poder e do
prestígio de toda a estrutura” (Merton apud: Campos, 1971: 120). Considera que esta fonte de conflito pode
ser minimizada na empresa privada (pois o cliente poderia transferir seu negócio para outra organização). Mas
pelo caráter monopolista da organização estatal isso não seria possível nesta esfera.
41
deixar em estado rudimentar aquelas normas que reforçariam a predicabilidade e
segurança dos trabalhadores (Gouldner apud: Campos, 1971: 66-67).
Esta caracterização advém da perspectiva em que Gouldner procura analisar a
burocracia, ou seja, segundo o modo pelo qual as normas são estabelecidas: por imposição
ou por acordo. Acredita que Weber não apontou para esta questão pelo fato de que ele
considerava as metas de diferentes estratos burocráticos como idênticas. Debita este erro à
“utilização da burocracia governamental, aparentemente solidária, como modelo implícito”.
Se Weber focalizasse “a burocracia da fábrica, com suas tensões mais evidentes entre
supervisores e supervisionados ..., e teria ele considerado imediatamente que uma norma
dada poderia ser racional ou vantajosa para a consecução dos fins de um estrato, digamos o
gerencial, mas poderia não ser racional ou vantajosa para os trabalhadores” (Gouldner
apud: Campos, 1971: 60).
Diante disso, supõe que análise weberiana, implicitamente, indicou a existência de
dois tipos de burocracia: a “forma representativa da burocracia”, que se baseia “nas normas
estabelecidas por acordo, regras que são tecnicamente justificadas e administradas por
pessoal especialmente qualificado” e a “burocracia punitiva” baseada “na imposição de
normas e na obediência pura e simples” (Gouldner apud: Campos, 1971: 64).
Além das críticas à teoria da “superioridade técnica” da burocracia temos outro
ponto bastante polêmico, alvo de crítica dos comentadores de Weber. Blau é um dos que
questionam a veracidade do fator “especialização burocrática”. Afirma que em algumas
áreas isto faria sentido (por exemplo, numa organização hospitalar), mas que em outras
(como as fábricas com linha de montagem) a tendência seria justamente a diminuição da
força de trabalho especializada
25
.
Hall, descontente com a “infeliz ausência de refinamento no uso do conceito de
burocracia”, propõe uma interpretação empírica do fenômeno. Seu empirismo leva-o a
afirmar que “as características ou dimensões que são tipicamente atribuídas à burocracia
surgem como variáveis que podem ser sistematicamente medidas a fim de demonstrar o
25
“Assim, observações impressionísticas podem levar à suspeita de que uma crescente especialização é
acompanhada de uma crescente profissionalização em certos tipos de organização hospitalar, por exemplo,
mas que, por outro lado, um alto grau de especialização torna menos necessária uma força de trabalho
especializada, em outros tipos por exemplo, fábricas com linhas de montagem” (Blau apud: Campos, 1971:
149).
42
grau em que as organizações são ou não burocráticas” (Hall apud: Campos, 1971: 30). Em
seu estudo chega à conclusão de que a dimensão comumente abordada por Weber, e alguns
de seus discípulos, como fundamental na caracterização da burocracia, qual seja, a da
qualificação técnica, não pode ser evidenciada como presente nas organizações burocráticas
por ele estudadas:
Se se considera a competência cnica como abrangendo um alto nível geral
de instrução e capacidade, então pode ser que ela não seja uma dimensão
apropriada. (...) Se, contudo, essa dimensão fosse reelaborada no sentido de
especificar que a competência cnica é reclamada somente no grau necessário para
preencher cada requisito de emprego dentro da estrutura burocrática, a dimensão
poderia ter uma utilidade mais comprovável (Hall apud: Campos, 1971: 44-45)
26
.
Na mesma linha do empirismo positivista, Udy Jr., ao mesmo tempo que critica,
reelabora as categorias weberianas. Sua assertiva é a confirmação da profunda influência da
análise weberiana acerca da burocracia nos mais diferentes autores que se dedicam ao tema:
Suas especificações da ‘burocracia racional’ não representam tanto um
sistema de categorias analíticas quanto uma tentativa de apreender o ‘espírito’ das
administrações contemporâneas. Contudo, apesar de seu caráter particularmente
metafísico, os tipos ideais weberianos têm um sabor empírico definido.
Conseqüentemente provaram ser altamente úteis no trabalho empírico e decerto
exercem uma reconhecida influência na teoria organizacional contemporânea (Udy
Jr. apud: Campos, 1971: 49).
Segue com a análise de duas variáveis da teoria de Weber, a da “racionalização” e a
da “burocratização”. Lembrando que na definição weberiana estas esferas nem sempre se
encontram unidas, a não ser nas sociedades ocidentais contemporâneas, ele propõe uma
interpretação mais minuciosa desta relação como relação de oposição. A partir do estudo de
Constas, acerca da rotinização do carisma em Weber, afirma que “as características
burocráticas estabelecidas tendiam a ser disfuncionais para a institucionalização da
racionalidade”. Por isso propõe um “modelo geral de organização formal”, supondo que:
1) A natureza tecnológica das tarefas executadas determina os níveis de
burocracia e racionalidade em que a organização deve operar em escala mínima. 2)
A burocracia e a racionalidade tendem a ser mutuamente inconsistentes na mesma
organização formal. 3) Frente a tal inconsistência, surgem mecanismos de
26
É interessante notar que, seguindo método oposto, estes autores atestem conclusão semelhante à de
Bravermam (1982) no que se refere à inexistência da exigência de qualificação do trabalhador sob a gestão
da empresa monopolista, como veremos no terceiro capítulo.
43
acomodação, o que resulta numa contínua operação da organização no mesmo nível
de eficiência (Udy Jr. apud: Campos, 1971: 56).
A análise da última definição advém da observação acerca do caráter do trabalho na
realidade contemporânea. Indica que a unidade de trabalho fragmentado e especializado
com o estilo rigoroso e autoritário de supervisão culmina em tensões interpessoais entre os
membros da organização. Porém, com o uso de normas gerais e impessoais temos um
acomodamento parcial do conflito pois é reduzida a visibilidade das relações burocráticas
de poder. Isto não resolve o problema pois esta imposição das normas implica tensões e
lugar a um novo mecanismo de acomodação, como por exemplo, turnover, tentativas
insistentes para escalar hierarquia organizacional, apatia, adaptação defensiva, crescimento
das cliques e crescente demanda de gratificações pelo trabalho” (Udy Jr. apud: Campos,
1971: 57).
Notando que o tipo ideal weberiano não conta de analisar fenômenos
considerados “informais”, Udy Jr. apresenta a “burocracia racional” do tipo weberiano
como um sistema social instável.
Por fim, ainda tratando da “qualificação técnica” da burocracia, vale a pena
observar uma longa citação onde Crozier realiza uma análise crítica sobre o poder dos
peritos e da tecnocracia:
A proeminência sucessiva dos peritos especialistas em questões financeiras,
técnicos de produção, especialistas em marketing, e especialistas em controle
orçamentário das organizações, testemunha a validade de nossa conclusão. Cada
onda de especialistas teve sua hora, em função das dificuldades que as organizações
deviam resolver para sobreviver. Tão logo os progressos da organização científica
do trabalho ou do conhecimento dos fenômenos econômicos permitiram fazer
previsões racionais na área em causa, o poder do grupo encarregado de resolver as
dificuldades nessa área tendeu a decrescer.
(...) A escalada da tecnocracia inspira ainda, pelo menos na Europa
ocidental, um grande temor e, ao mesmo tempo, uma certa fascinação. Muitos
autores sustentaram que a complexidade de nossa era tecnológica oferecia aos
técnicos e aos peritos especialistas da técnica ou da conduta das organizações a
possibilidade de desempenhar um papel cada vez mais importante, e que esses
tecnocratas, por tal motivo, estavam em vias de constituir-se na classe dirigente de
uma futura ordem feudal.
O exame cuidadoso da maneira em que são tomadas as decisões não
confirma bem esses temores, que provêm, nos parece, de uma falta de compreensão
da situação criada pelo desenvolvimento do progresso técnico e científico. A
invasão de um número cada vez maior de áreas pela racionalidade tecnológica dota
44
de poder aos peritos, que são os agentes desse progresso. Porém os sucessos dos
peritos se autodestroem. O processo de racionalização proporciona seus poderes ao
perito, mas seus resultados os limitam. Tão logo uma área é seriamente estudada e
conhecida, no momento em que as primeiras intuições e inovações têm podido ser
traduzidas em regras e programas, o poder do perito tende a desaparecer.
Na realidade, os peritos não têm poder social verdadeiro, a não ser na linha
avançada do progresso, o qual significa que esse poder é mutante e frágil. Nós até
diríamos que sua consolidação é cada vez mais difícil, na medida em que os
métodos e programas resultantes da ciência e da tecnologia podem ser utilizados por
pessoas que já não são mais peritos. Estes, não é preciso dizer, se esforçam em
resistir e salvaguardar seus segredos e seus ‘truques’ profissionais, porém
contrariamente à crença geral, a aceleração da mudança que caracteriza nossa época
lhes torna muito mais difícil que outrora resistir à racionalização e, afinal, o poder
de negociação do perito como indivíduo acabará tendo mais tendência a diminuir
(Crozier, 1981: 242).
Esta tendência à universalização da razão instrumental havia sido notada por
Weber, claro que não de maneira tão nítida pela própria limitação deste desenvolvimento
em sua época. É significativo que Weber tenha observado que a perda de poder decorrente
desta universalização tenha sido reposta na ampliação do poder daqueles que, segundo ele,
não seriam totalmente incluídos nessa pasteurização técnica: os próprios capitalistas.
Weber situa o avanço deste “racionalismo” na condição de vida. Compreende que o
desenvolvimento em direção à “objetividade” racional, ao homem “profissional” e
“especializado” é fomentada pela própria burocratização da dominação. Um dos
componentes importantes deste processo é a educação e a formação (Weber, 1999: 230) e
seus reflexos nas diferenciações de classe:
O aperfeiçoamento dos diplomas das universidades e escolas superiores
técnicas e comerciais, o clamor pela criação de atestados de formação em todas as
áreas, em geral, servem à constituição de uma camada privilegiada nos escritórios
públicos e privados. (...) E, como o curso exigido para adquirir o atestado de
formação causa consideráveis gastos e períodos de carência, aquela tendência
significa ao mesmo tempo a supressão do talento (‘carisma’) em favor da
propriedade (Weber, 1999: 231).
Todo o prestígio social que outrora tivera o “homem culto” é, agora, atribuído ao
“homem especializado”. É esta razão, exclusivamente instrumental, o fator impulsionador e
característico da “modernidade” pintada por Weber:
A burocracia é de caráter racional: regra, finalidade, meios, impessoalidade
‘objetiva’ dominam suas atitudes. Por isso, seu surgimento e sua divulgação tiveram
45
por toda parte efeito ‘revolucionário’ naquele mesmo sentido especial, ainda a ser
exposto, que caracteriza o avanço do racionalismo, em geral, em todas as áreas.
Neste processo, a estrutura burocrática aniquilou formas estruturais da dominação
que não tinham caráter racional, neste sentido especial (Weber, 1999: 233).
Aniquilada as formas anteriores de dominação, é preciso identificar como se
caracteriza a nova forma, marcada por estas tendências de “especialização” e de
“burocratização” crescentes. Como vimos como isto se reflete na relação entre
dominantes e dominados, precisamos, agora, identificar as transformações e fragmentações
no interior da estrutura ocupacional.
1.1.4- “Nova” Divisão do Trabalho
Diante das formas de transição dos tipos ideais Weber extrai algumas tendências
importantes. A primeira delas diz respeito ao surgimento de ocupações de novo tipo, assim
como trata de mudanças no interior da estrutura ocupacional:
Outras transições graduais conduzem até a situação de um empregado de
escritório, técnico ou trabalhador, recrutado no mercado de trabalho com base em
um contrato de troca, com ‘igualdade de direitos’ formal, na qual este aceita, do
ponto de vista formal, ‘voluntariamente’, as condições ‘oferecidas’ e passa da
trabalhar numa oficina cuja disciplina não se distingue, em sua essência, daquela de
um escritório estatal e, no caso extremo, de uma instituição militar. Mas, nos
últimos dois casos, a diferença de que o serviço no setor privado ou estatal é aceito e
abandonado voluntariamente, enquanto o serviço militar (entre nós, em oposição ao
antigo contrato na base de soldo) costuma ser obrigatório, é mais importante do que
a entre o emprego no setor estatal e no privado (Weber, 1999: 190).
Sob o capitalismo monopolista é criada uma série de escoadouros para o imenso
excedente econômico e, neste sentido, estas três “categorias ocupacionais” citadas teriam a
ver com o problema (o trabalhador de escritório como pressuposto para a campanha de
vendas, o funcionalismo público como suporte para o funcionamento da administração civil
e os gastos militares necessários para movimentar a indústria bélica). Contudo, em um
ponto Weber não avança, pois sabemos que apesar da semelhança do contrato de troca do
trabalhador (diria operário), do técnico e do empregado de escritório, é a partir do trabalho
do primeiro que se pode compreender a “distribuição” em outros setores. Desenvolver estes
46
temas, porém, seria adiantar em muito, questões que trataremos mais detidamente no
último capítulo.
Para entender a dominação burocrática em Weber há a necessidade de caracterizar o
funcionamento do funcionalismo moderno. Não cabe aqui descrever cada uma destas
características, por isso abordaremos aquelas que mais diretamente nos interessam na
compreensão da divisão do trabalho na empresa capitalista
27
.
A “administração moderna” caracteriza-se pela necessidade de “documentos (atas),
cujo original ou rascunho se guarda” e de “um quadro de funcionários subalternos e
escrivães de todas as espécies”. Weber define o escritório moderno como o “conjunto dos
funcionários que trabalham numa instituição administrativa e também o aparato
correspondente de objetos e documentos” (Weber, 1999: 199). Salienta, em particular, um
desenvolvimento da maior importância para a análise das novas funções e papéis no
capitalismo:
Escritório e residência, correspondência pessoal e privada, patrimônio da
empresa e privado estão, em princípios, separados, e isto tanto mais quanto mais
conseqüentemente se impôs o tipo moderno da gestão comercial os primeiros
passos encontramos na Idade Média. Como qualidade especial do empresário
moderno, pode-se constatar, portanto, o fato de ele atuar como ‘primeiro
funcionário’ de sua empresa, do mesmo modo que o soberano de um Estado
moderno especificamente burocrático refere-se a si como ‘primeiro servidor’ deste
(Weber, 1999: 199).
É importante notar que a referência ao “primeiro funcionário” ou ao “primeiro
servidor” não anula a diferença fundamental entre o “tipo” burocrata e esses ocupantes do
ápice da estrutura burocrática.
27
Estas características são assim resumidas por um dos seus comentadores: “A grande dimensão de uma
organização e a grande complexidade de suas responsabilidades produzem a burocratização, segundo Weber.
Um dos aspectos da burocratização é a elaboração do aparato administrativo na organização. As burocracias
também se caracterizam por um alto grau de especialização e seus membros são cnicos especializados nas
tarefas a eles atribuídas. Ademais, os cargos são organizados numa hierarquia, com limites definidos de
autoridade cuja extensão está limitada de maneira precisa por normas impessoais. As operações são
geralmente orientadas por um sistema consistente de normas e regulamentos. Espera-se que a impessoalidade
prevaleça no desempenho dos deveres e nas relações oficiais. As políticas de promoção e de pessoal são
também orientadas por critérios impessoais, tais como o de mérito ou de antiguidade, que asseguram
carreiras estáveis aos funcionários, com algum progresso dentro da organização. Weber assegura que essa
combinação de características tende a se desenvolver, pois é necessária para a eficiência administrativa que,
por outro lado, incrementa” (Blau apud: Campos, 1971: 145). Para consultar o resumo do próprio Weber
destas características ver: Weber apud: Campos, 1971: 15-23.
47
No Estado moderno os únicos cargos para os quais não se exigem
qualificações técnicas são os de ministro e presidente. O fato demonstra que são
‘funcionários’ apenas em sentido formal e não substantivamente, o mesmo se dando
com o gerente ou presidente de uma grande empresa. Não dúvida de que a
‘posição’ do empresário capitalista é, como a de um monarca, semelhante à de
apropriação definitiva. Assim, necessariamente no ápice da organização
burocrática no mínimo um elemento que não é puramente burocrático. A categoria
de burocracia é aplicada tão-somente ao exercício da dominação por meio de uma
espécie particular de quadro administrativo (Weber in Campos, 1971: 22).
Outro elemento importante é referido ao tratar da vitaliciedade do cargo burocrático.
Em se tratando da empresa privada, Weber atribui esta caracterização como um critério de
distinção entre o “funcionário em oposição ao trabalhador”. Esse caráter de oposição entre
os diferentes tipos de ocupações é adensado por outras distinções, como por exemplo, no
caso do funcionário, o direito a pensões e o salário calculado segundo considerações
“estamentais” (natureza das funções) e por tempo de serviço e não conforme rendimento
(Weber, 1999: 203-204).
Para a compreensão da estrutura interna da hierarquia das organizações é necessário
observar outras características, além das já citadas. Hopkins procura entender a burocracia a
partir do conceito de sistema de autoridade. Subdivide-o em quatro etapas: exercício da
autoridade, relações autoritárias de papéis, estruturas complexas de autoridade e
legitimação. Sendo o exercício da autoridade a “emissão de uma ordem por uma pessoa e o
seu consentimento por uma segunda” define-se como estrutura três classes principais de
participantes: o grupo dirigente (do qual emanam as ordens gerais); o quadro
administrativo (que interpreta e transmite as ordens) e os subordinados (aqueles que apenas
obedecem). O autor recorre a Weber para definir o conceito de legitimação, ao afirmar que
nem todos dentro de “um sistema de autoridade” consideram-no legítimo: por vezes “o
grupo dirigente e o quadro administrativo constituem, sozinhos, os membros do grupo
cujos valores legitimam aquele sistema
28
” (Hopkins apud: Campos, 1971: 77-78).
28
“Assim, da perspectiva dos não-membros a estrutura pode ser, ou não, legítima. Se não o é, será menos
institucionalizada (e, provavelmente, menos estável e efetiva) do que se o fosse. Contudo, o conceito requer
apenas que alguns valores do grupo legitimem o sistema de autoridade, não que todos os que ocupam
posições na hierarquia o considerem legítimo. Muito menos exige que sejam membros desse grupo” (Hopkins
apud: Campos, 1971: 78).
48
Numa “estrutura burocrática de autoridade” a hierarquia é implementada da
seguinte forma:
O status mais altamente colocado dentro de cada unidade subordinada é, ao
mesmo tempo, um status de baixa posição dentro da unidade superior. O conjunto
desses status conexionados forma a camada do grupo administrativo e são as
atividades desses administradores que constituem o centro vital do sistema de
autoridade. Porque, em sistemas burocraticamente organizados, nem a tomada de
decisões políticas que é tarefa específica do grupo dirigente nem os padrões de
consentimento entre os que estão sujeitos à autoridade e que podem executar
qualquer uma das inúmeras atividades são fundamentais para o sistema de
autoridade (Hopkins apud: Campos, 1971: 79).
Tendo em vista que uma “autoridade burocrática” tem sua eficiência medida “pelo
grau de consentimento com as normas formais do grupo ou com a interpretação que dela é
dada pelos administradores”, Hopkins propõe uma integração de dois conceitos de sistema
de autoridade: o de Weber (como uma estrutura de poder) e o de Barnard (como um
processo de comunicação). O primeiro, se refere a sistemas efetivos de autoridade
burocrática e, o segundo, refere-se “às relações autoritárias de papel e descrevem as
características das ordens passíveis de aceitação e das linhas de comunicação efetivas entre
superiores e subordinados” (Hopkins apud: Campos, 1971: 80). Formula, dessa forma, um
conceito de comunicação imperativa.
Blau, depois de analisar as características da burocracia em Weber a partir da
perspectiva dos “sistemas sociais”, revela, ao seu modo, a estrutura da divisão do trabalho
nas grandes organizações:
A pronunciada divisão do trabalho, particularmente em grandes
organizações, cria problemas especiais de cooperação. Um aparato administrativo
tende a se desenvolver para a manutenção de canais de comunicação e coordenação,
tornando-se concretamente necessária uma hierarquia de autoridade e
responsabilidade para efetivar a coordenação das diversas tarefas na consecução dos
objetivos organizacionais. Essa hierarquia capacita os supervisores nos sucessivos
níveis a dirigir, direta ou indiretamente, o desempenho de círculos cada vez mais
amplos de subordinados. Contudo, uma supervisão minuciosa de todas as decisões
pelos superiores é ineficaz e produz sérias tensões. O sistema de normas e
procedimentos oficiais destina-se a padronizar o desempenho e limitar a
necessidade de uma intervenção direta da supervisão apenas a casos especiais.
Apesar da instrução profissional e das normas oficiais, fortes sentimentos ou
tendências pessoais podem interferir na tomada racional de decisões. Daí que a
impessoalidade tenha a função de impedir a intrusão de tais fatores nas decisões
oficiais. Para que a rigorosa disciplina impessoal, sob a qual os membros da
49
burocracia devem operar, não diminua sua motivação, as carreiras estáveis
promovem a lealdade para com a organização e neutralizam os efeitos
inconvenientes. Em suma, os problemas criados por uma característica
organizacional estimulam processos que originam outros. E muitos processos
interdependentes desse tipo produzem a constelação de atributos característicos da
burocracia típica, tal como conceituada por Weber (apud: Campos, 1971: 146).
Pensar a estrutura da divisão do trabalho pressupõe identificar como ela é analisada
historicamente e ideologicamente. Tragtenberg realiza uma importante argumentação
quando trata das relações entre as transformações no capitalismo (em sua passagem de
liberal para o capitalismo monopolista) e o impacto nas teorias administrativas e na
gerência propriamente dita:
O aumento da dimensão da empresa no período da Segunda Revolução
Industrial
29
, além de ocasionar uma mutação, na qual as teorias sociais de caráter
totalizador e global (Saint-Simon, Fourier e Marx) cedem lugar às teorias
microindustriais de alcance médio (Taylor-Fayol)
30
, implica, no plano da estrutura
da empresa, a criação ‘em grau maior ou menor de uma direção determinada’, que
harmonize as atividades individuais e que realize as funções gerais que derivam da
atividade do corpo produtivo no seu conjunto. O crescimento da dimensão da
empresa irá separar funções de direção, de funções de execução
31
. Dá-se, assim, a
substituição de capitalismo liberal pelos monopólios (Tragtenberg, 2006: 86).
Tragtenberg resume o ethos burocrático taylorista” nas seguintes características:
“separação entre direção e execução, autoridade monocrática
32
, acentuação do formalismo
na organização [e] a administração como possuidora de idênticos interesses aos dos
trabalhadores” (Tragtenberg, 2006: 25).
29
“A grande empresa por suas dimensões e influência monopolística no mercado permite planejamento a
longo prazo da produção. A minimização da concorrência permite a redução da instabilidade, o que cria as
condições para o planejamento” (Tragtenberg, 2006: 87).
30
“O taylorismo aparece como ideologia da reprodução do trabalho simples, da acumulação primitiva do
capitalismo industrial, em que a ética da classe dominante surge como a ética da eficiência, que ele traduz
(...) “é o taylorismo a tradução administrativa da lógica e dos interesses da burguesia, num momento dado de
seu desenvolvimento histórico” (...) “constitui-se numa ideologia de uma estrutura fabril que, na separação
entre planejamento e execução, trabalho manual e intelectual, reproduz a dependência do trabalho ao capital
(Tragtenberg, 2006: 242).
31
“A grande divisão de trabalho entre os que pensam e os que executam se realiza na grande empresa.
Aqueles fixam funções, estudam métodos de administração e normas de trabalho; criam as condições
econômicas ao surgimento do taylorismo” (Tragtenberg, 2006: 87).
32
“A industrialização extensiva inerente ao esquema de Taylor implica a proliferação do trabalho
desqualificado que coexiste com a estrutura administrativa monocrática, alienante, em que a principal virtude
é a obediência a ordens” (Tragtenberg, 2006: 241).
50
Fayol, complementando Taylor, “defende a tese segundo a qual o homem deve ficar
restrito a seu papel, na estrutura ocupacional parcelada”. Coloca-se contrário, no que se
refere à remuneração, “a ultrapassagem de certos limites” e reafirma a “monocracia diretiva
combinada com um tratamento paternalista do operário, concluindo que administrar é
prever, organizar e controlar” (Tragtenberg, 2006: 25). O papel que confere à disciplina na
empresa é copiada do modelo militar. Ao definir a “função exemplar do administrador
33
”,
Fayol defende o “fortalecimento dos chefes de oficina e contramestre por um Estado-
Maior”. Essa é sua ênfase da “disciplina estrita na organização fabril” (Tragtenberg, 2006:
95)
34
.
O surgimento da Escola das Relações Humanas, com Elton Mayo, propõe novas
“soluções” para a organização fabril:
Para Elton Mayo a cooperação dos operários reside na aceitação das
diretrizes da administração, representando uma escamoteação das situações de
conflito industrial
35
. Nesse sentido, ele continua a linha clássica taylorista, este
acentuava o papel da contenção direta, aquele a substitui pela manipulação.
(...) No plano institucional, Mayo atribui ao administrador um papel que ele
dificilmente poderá cumprir, pois ele confunde conhecimento especializado
(administrativo) com poder; daí propor a noção de uma elite administradora
dominante (Tragtenberg, 2006: 100).
Mas como Tragtenberg é fiel à lei de que a mudança das condições de trabalho
leva à mudança dos modelos administrativos” caracteriza uma realidade muito menos
hierarquizada e burocratizada no que chama de “atual era pós-industrial
36
”:
33
“A direção administrativa, que nega todas as formas ativas de movimento, mantém o status quo gerado
pelo sistema industrial. Sua maior preocupação concentra-se no fluxo mecânico dos objetos e na manipulação
humana conforme critérios utilitários. Ela cristaliza tais mecanismos, confinando o homem a papéis definidos
como se fora coisa. Confirma-se tal afirmação pela preocupação taylorista em adaptar o homem à máquina”
(Tragtenberg, 2006: 241).
34
“O esquema Taylor-Fayol aparece como um processo de impessoalização, definida esta pelo enunciado de
tarefas e especialização destas; as pessoas se alienam nos papéis, estes no sistema burocrático”.
“A decisão burocrática é absolutamente monocrática, havendo apenas um fluxo de comunicação. O
empregado adota os mitos da corporação, que constitui uma atribuição de status, e ao mesmo tempo cria-se
um jargão administrativo esotérico” (Tragtenberg, 2006: 96).
35
Esta Escola tem como uma de suas características a “psicologização” da “questão social” inerente ao espaço
fabril: “A psicologização dos problemas dos trabalhadores teve como finalidade seu condicionamento
fundado no convencimento de que vive no melhor dos mundos, havendo somente casos pessoais a serem
tratados ou quando muito, minigrupos. Com isso, se escamoteiam referências à totalidade do social”
(Tragtenberg, 2006: 247).
36
“A evolução do trabalho especializado, como situação transitória entre sistema profissional e o sistema
técnico de trabalho, a desvalorização progressiva do trabalho qualificado e a valorização da percepção,
atenção, mais do que a habilidade profissional, inauguram a atual era pós-industrial” (Tragtenberg, 2006: 97).
51
O conjunto volta, na empresa, a ter prioridade sobre as partes: então ela
alcança alto nível de automação. Efetua-se a mudança do operário produtivo para o
de controle. A nova classe operária vai caracterizar-se pelo predomínio de funções
de comunicação, sobre as de execução (Tragtenberg, 2006: 97).
Teríamos, portanto, o fim da “hierarquia linear simples”, pois, agora, a organização
produtiva é dominada por “especialistas funcionais” que comunicam-se entre si. Com isso,
o princípio organizacional passa a se estruturar não mais na hierarquia de comando; mas na
tecnologia e na cooperação dos homens em seus vários níveis hierárquicos e qualificações
técnicas: o operário de controle passa a lograr decodificar os sinais observados. Por isso,
está aberta a possibilidade de uma divisão de funções mais cooperativa: “A elevação no
nível de cultura e o abandono do nível taylorista que separa, radicalmente, no trabalho,
concepção de execução são os fatores que permitirão maior utilização da mão-de-obra”
(Tragtenberg, 2006: 98).
Ao final, encontra, em Habermas, uma teorização de tendências opostas à
burocratização na atualidade e situa da seguinte forma o “mundo novo”:
A mesma sociedade que criara a burocracia como dominação, que separa o
trabalho físico do intelectual, que condenara o operário ao idiotismo da profissão, a
agente passivo do processo, produz o oposto.
A automatização complexa elimina o trabalho simples, concentra a energia
produtiva nas fases preparatórias da produção, exige alta qualificação, promove a
intensificação da tecnificação da produção, a passagem do processo produtivo
parcelado para unitário, integra o trabalho manual e intelectual. Permitindo a
diminuição da jornada de trabalho, influi no estilo de vida do operário, no
desenvolvimento de forças produtivas sociais que ela libera em grau cada vez
maior; na mudança subjetiva do agente de produção, entendido não como
instrumento de trabalho, mas como uma individualidade múltipla e diversificada,
dando lugar à utilização do tempo livre, da criação científica e artística não de uma
minoria como na industrialização mecanizada, desenvolvendo ramos de produção
qualitativamente diversos. Neste contexto, a Ciência atua como a força produtiva
mais importante, tornando o tempo de trabalho e a produtividade dependentes de
seu desenvolvimento (Tragtenberg, 2006: 263-265).
Apesar disso, Tragtenberg indica duas alternativas decorrentes da plena automação.
Ela pode levar a uma razão de domínio ou atuar como elemento de libertação do
trabalhador coletivo do capitalismo. E esta definição é possível a partir da “relação de
forças entre as classes sociais”. Ou a hegemonia da burguesia transformará, em longo
prazo, “a sociedade numa instituição total dirigida por engenheiros sociais e minorias
52
burocráticas”, ou , “a hegemonia dos negativamente privilegiados, poderá liquidar com a
descontinuidade entre o desenvolvimento das forças produtivas e o quadro estreito das
relações capitalistas de produção” (Tragtenberg, 2006: 267).
Crozier afirma que muito se tinha evoluído nos estudos acerca da comunicação, mas
identifica a necessidade de elaboração teórica acerca das relações de poder na sociologia
das organizações.
Situa como importante a passagem da “análise racionalista e limitada, quase
mecanicista, dos Taylor e dos Fayol, que dominava nos anos vinte, ao estudo das
organizações em termos de relações humanas
37
(Crozier, 1981: 212) Cita o período de
1930-35, a partir da Grande Crise, como um momento de crítica antitayloriana, que contou
com a participação dos sindicalistas americanos e europeus “como divulgadores
paternalistas ou neocapitalistas das ‘relações humanas’”. Suas críticas dirigiram-se “contra
a concepção utilitária do progresso e contra o esquema mecanicista do comportamento
humano que, até então, tinha regido a vida, em matéria de trabalho e de economia”
(Crozier, 1981: 213). Isto, por sua vez, não resultou, segundo sua interpretação, numa
melhor compreensão do poder. É por isso que se propõe a analisar as relações de poder
entre os grupos no interior da empresa moderna.
1.1.5- Aspectos empírico-subjetivos nas relações entre os grupos sociais
Partindo do método de análise dos jogos de poder nas organizações, Crozier realiza
uma pesquisa empírica em duas organizações estatais: uma “agência parisiense de
contabilidade” e um “monopólio industrial”. Descreveremos aqui alguns dos resultados de
sua pesquisa no sentido de caracterizar o método hegemônico da sociologia na análise do
“fenômeno burocrático” no interior das empresas modernas
38
.
37
“Assistimos agora, através do desenvolvimento do estudo das tomadas de decisão, a um retorno ao
racionalismo, porém sob uma forma completamente diferente da análise mecanicista clássica, que se trata
de um tipo de análise que deve permitir a integração de todos os conhecimentos adquiridos em matéria de
relações humanas. A cada uma dessas etapas que, por outra parte, continuam mais ou menos a sobrepor-se,
corresponde um certo tipo de atitudes, uma certa forma de conceber as relações de poder” (Crozier, 1981:
212).
38
Braverman resume esta perspectiva hegemônica revelada na preferência dos sociólogos pelos aspectos
subjetivistas em detrimento dos objetivos da seguinte forma: “Para eles, por longo hábito e insistente teoria, a
classe não existe realmente fora de suas manifestações subjetivas. Classe, status, ‘estratificação”, e até o
assunto da moda dos últimos anos, que foi tomado a Marx sem a mínima compreensão de seu significado,
53
A análise das “relações humanas” que realiza, com ênfase nos aspectos subjetivos,
identifica as relações de poder no interior da organização. No caso do trabalho na Agência
ele se depara com a seguinte contradição: mesmo descrevendo um quadro de tensão das
funcionárias por causa do trabalho monótono e repetitivo, das conseqüências desumanas
decorrentes da mecanização denunciadas por jornalistas e políticos
39
, ele, a partir da análise
dos questionários, afirma o contrário:
Os resultados da pesquisa estão realmente em contradição direta com esse
ponto de vista. A satisfação no trabalho não é especialmente baixa entre as
funcionárias do órgão parisiense. Em qualquer caso, ela não é diferente da que pode
ser observada em outras organizações comparáveis. Em seus comentários pessoais
as funcionárias geralmente minimizam o problema da natureza do trabalho e
destacam os aspectos de sua situação que dependem diretamente da vontade
humana. Três pontos sobressaem especialmente: a prioridade dada pelas
funcionárias ao problema da carga de trabalho; sua atitude moderada e
relativamente favorável com relação à própria tarefa e, principalmente, a influência
decisiva que parece exercer seu status social fora da Agência, para explicar suas
possibilidades de adaptação dentro da mesma (Crozier, 1981: 28).
Se nos atemos à avaliação do autor, não é possível identificar, em nenhum
momento, os nculos existentes entre, por exemplo, a carga de trabalho e o status (e a
própria divisão do trabalho). O que não percebe é que não é a divisão técnica do trabalho
‘alienação’ – tudo isto são para a ciência social burguesa artefatos de consciência que só podem ser estudados
na medida em que se manifestam nas mentes da população em foco. Pelo menos duas gerações de sociologia
acadêmica elevaram este enfoque de tal modo à categoria de dogma que raramente se sente necessidade de
substantivá-lo. Este dogma clama pela delineação de várias camadas de estratificação por meio de
questionários que capacitem os consultados a escolher sua própria classe, com isso aliviando os sociólogos da
obrigação que lhes incumbe. (...) Vemos aqui os sociólogos dimensionando não a consciência popular, mas a
sua. Contudo, a superioridade do questionário como meio de medir fenômenos sociais continua artigo de fé. O
sociólogo francês Michel Crozier diz, numa crítica de White Collar de C. Wright Mills: Infelizmente, a obra
de Mills... não é um verdadeiro estudo de pesquisa. De fato, não é o sentimento de alienação que pode
realmente afetar a balconista ou o intelectual numa agência publicitária o que interessa a Mills, mas antes a
alienação objetiva daquelas pessoas, na medida em que possa ser reconstituída mediante análise das forças
que exercem pressão sobre elas. Essa atitude aparenta ser mais científica que uma pesquisa de opiniões, mas
fica só na aparência’” (Braverman, 1981: 34-35).
39
“O trabalho na Agência é, quase sempre, monótono e repetitivo. Além disso, as tarefas são fisicamente
pesadas e, no estabelecimento de Paris, são levadas a termo dentro de um clima de tensão nervosa que as
torna muito cansativas para as funcionárias. Muitas pessoas, concluem, um pouco apressadamente, que a
moral das funcionárias e suas possibilidades de adaptar-se satisfatoriamente a sua situação depende,
essencialmente, do próprio conteúdo da tarefa que lhes é imposta pela técnica. Os jornalistas e políticos que
têm mostrado interesse pela situação das funcionárias da Agência sempre consideraram que a maior parte dos
problemas humanos dessa organização resultam da natureza desumana do trabalho. Mesmo os políticos de
orientação conservadora denunciaram as conseqüências deploráveis da mecanização, que transforma os
trabalhadores em robôs, fazendo-lhes perder sua individualidade e seu gosto pelo trabalho. Muitos dos altos
funcionários e dos quadros de direção da Agência compartilham inteiramente o mesmo ponto de vista”
(Crozier, 1981: 28).
54
per se o elemento alienante. O problema central é que esta divisão técnica, no interior da
empresa, encontra-se inserida num contexto em que tanto a carga imposta ao trabalhador
como o próprio produto do trabalho aparecem como entes estranhos à sua vontade
40
. O
status social” fora do ambiente de trabalho é, por sua vez, decorrência desta alienação
refletida ao nível das relações sociais para além da empresa.
Além de tudo, é preciso lembrar que, como mostra a própria descrição que Crozier
faz do trabalho realizado na Agência, trata-se de uma divisão do trabalho correspondente
mais a uma suposta divisão “manufatureira” do mesmo do que uma situação de
mecanização (e, além disso, não se trata de um setor de produção material). Isto nos levaria
a análises que no momento não caberiam nesta argumentação.
Nas entrevistas também é analisada a relação entre as funções e o status
diferenciado no interior do serviço público. Mesmo sendo a Agência um órgão público, a
grande maioria das funcionárias possui uma rotina árdua de trabalho e, por isso, não se
identificam com a função pública.
Nossas entrevistadas se recusam, de forma muito significativa, a considerar-
se como funcionários, se bem que isso não implique, de maneira alguma qualquer
ambigüidade em seu status. Para elas, como para o grande público, um funcionário
é um homem ‘atrás da sua mesa’, que não tem grande coisa a fazer. As funcionárias
da Agência, que estão assoberbadas de trabalho, nada têm em comum com esses
funcionários que o público critica com tanta constância (Crozier, 1981: 43).
Crozier encontra no “Monopólio Industrial” um ambiente favorável para a análise
do “problema das relações de poder entre os indivíduos e entre os grupos, dentro de um
sistema de organização” (Crozier, 1981: 80). Diante de três questões a carga de trabalho;
a mecanização e o ritmo das máquinas; e as regras de antiguidade que determinam a
distribuição dos postos de trabalho pôde observar os três pontos “onde se organizavam as
reações dos operários da produção. Essas reações (...) aparecem principalmente como
reações coletivas. Sua coerência e seu caráter opressivo sugerem a existência de uma
‘subcultura’ operária autônoma” (Crozier, 1981: 92). Uma das críticas mais constantes dos
operários referia-se ao peso da mecanização na rotina de trabalho:
Os operários que interrogamos na ocasião se queixaram amargamente de
serem reduzidos à condição de robôs’, de máquinas humanas de animais
40
No terceiro capítulo estas questões serão expostas de forma mais rigorosa, no momento preferimos uma
argumentação que reproduza a dinâmica própria ao método sociológico.
55
mecânicos’, tudo isso em benefício do Estado. Eles falavam constantemente da
tensão nervosa à que estavam submetidos, muito mais cansativa que o esforço
físico. Tal como dizia uma operária: ‘Vive-se à base dos nervos e se perde a saúde;
não vale a pena ter lutado para obter a pensão, ninguém terá tempo de aproveitá-la’
(Crozier, 1981: 105).
O sociólogo busca responder a esta crítica apresentada nos depoimentos declarando
que “a atitude oposicionista à mecanização” é uma atitude aprendida: “É após uma espécie
de aprendizado correspondente à assimilação dos valores do grupo operário, (...) uma
aculturação ao meio quando aparecem as atitudes hostis. O fator importante é finalmente o
grupo e não a situação pessoal. A ausência de relações com as variáveis, como o posto de
trabalho e a fábrica, constitui disso uma prova suplementar” (Crozier, 1981: 107).
É bem provável que se Crozier incluísse na análise de suas variáveis relatórios
médicos e psiquiátricos da condição dos operários
41
identificaria conseqüências físicas e
psíquicas degradantes nas situações pessoais. Além disso, não deveria se considerar
estranho que o ambiente fabril e a gradual organização operária leve a respostas coletivas
aos problemas coletivos que estes efeitos não ocorrem isoladamente a cada um dos
operários.
Porém, nosso sociólogo está preocupado em encontrar os outros motivos para a
reação operária à mecanização. Depara-se com a resistência operária ante a mudança, pois,
credita-se à mecanização “implicações ameaçantes para aqueles que acreditam beneficiar-
se com o sistema de organização atual” (Crozier, 1981: 109), ou seja, segundo Crozier, os
próprios operários.
Mais à frente afirma que esta reação dos operários concilia dois tipos de atitude: “o
pessimismo negativo a propósito da organização” e “a satisfação individual pela situação
nela encontrada”:
Os operários da produção parecem realmente bem adaptados a sua situação,
porém essa boa adaptação depende da existência de um certo número de privilégios,
aos quais eles estão extraordinariamente apegados e temem, com ou sem razão, ver
ameaçados. Conseqüentemente, eles acreditam ser necessário mostrar, a qualquer
preço, uma atitude intransigente, se querem manter suas posições e anular as
pressões que pensam estarem sendo exercidas no sentido de mudar a situação. Para
eles, a mecanização é, antes de tudo, um meio do qual a direção gostaria de servir-se
41
Como o fez, por exemplo Marx em O Capital, ao descrever as conseqüências da mecanização na condição
de vida dos trabalhadores.
56
para reabrir as negociações e obter um regulamento mais favorável para ela. Eles
suspeitam que seus diretores são completamente indiferentes no tocante ao sistema
de organização formal, do qual são oficialmente responsáveis, e procuram valer-se
de todos os pontos fracos e duvidosos das regras, para manipular o pessoal. Uma
agressividade moderada, porém constante, constitui para eles o melhor meio de
proteger-se contra qualquer tentativa de usurpação. Ao mesmo tempo, essa atitude
proporciona um excelente argumento para manter a disciplina nas fileiras e tornar
impossível a tática tradicional de divisão, que tão bem se presta aos dirigentes
(Crozier, 1981: 144).
Para o autor é evidente o caráter burocrático presente nas relações internas do
Monopólio Industrial. Ao seu ver, no caso pesquisado, dois fatores que fogem a esta
impessoalidade e burocratismo: são as paradas mecânicas e a responsabilidade individual
dos operários da manutenção. No primeiro caso “existe um contraste muito grande entre a
rigidez das regras, que determinam em seus mínimos detalhes as medidas a serem tomadas,
e a completa incerteza que impera na esfera técnica”. No caso dos operários da manutenção
“descobre-se um segundo contraste entre o caráter abstrato e impessoal da organização e
a responsabilidade individual dos operários da manutenção” (Crozier, 1981: 155).
Apesar desta situação configurar uma dependência dos operários da produção aos
da manutenção isto não abala a aliança entre as duas categorias
42
, já que as mesmas
reconhecem a necessidade da frente comum para fazer valer seus “privilégios”.
Crozier procura combater o “poder” dos operários da manutenção. Ao que parece
está impregnado de uma velha crítica do capital contra a “insubordinação do trabalhador”.
Marx identifica-a nas palavras de um típico defensor da industrialização em relação à
divisão manufatureira do trabalho, o Dr. Ure: “Em virtude da fraqueza da natureza humana
ocorre que quanto mais destro o trabalhador mais voluntarioso é ele, mais difícil de ser
tratado e sem dúvida menos apto para participar de um mecanismo coletivo ao qual pode
causar grande dano” (apud: Marx, 1985: 121).
Analisando as atitudes dos diretores, Crozier critica a posição “humanista”, avessa à
mudança, dos mesmos. Vale lembrar que, para ele, a manutenção do status quo significa a
42
“Os operários da produção, por sua parte, aceitam mal sua situação de dependência, mas não podem
manifestar abertamente sua hostilidade porque, individualmente, precisam da boa vontade dos operários da
manutenção na oficina, e porque, ao mesmo tempo, sabem que no plano coletivo, não podem manter seus
privilégios e consolidar uma situação que até agora lhes parece muito vantajosa, a não ser que mantenham
uma frente comum com o outro grupo. A unidade operária e a solidariedade de classe são os valores que
permitem legitimar esta aliança e os sacrifícios que têm de fazer para conservá-la” (Crozier, 1981: 157).
57
garantia dos direitos e deveres dos operários e chefes, através de regras impessoais
43
. a
mudança, significaria a quebra destas regras em favor do poder autoritário das chefias
Identifica na organização em questão três princípios que, ao seu ver, constituem
tendências em todas organizações burocráticas: 1) um princípio igualitário: “manifestado
na relevância dada à antiguidade e na aplicação rigorosa desde critério, que permite
conseguir que todos os membros da organização, ao chegarem ao mesmo nível hierárquico,
preencham quase exatamente as mesmas funções e sejam estritamente iguais, quando não
mesmo intercambiáveis”; 2) um princípio hierárquico de separação: “tem como
conseqüência a divisão do pessoal em categorias hostis e incapazes de comunicar-se
mutuamente, junto com a necessidade de recrutar seus novos membros através de
concursos destinados, quase exclusivamente a pessoas estranhas ao serviço e, 3) o princípio
da impessoalidade das regras e dos procedimentos: “graças ao qual é possível reduzir ao
máximo o arbítrio humano” (Crozier, 1981: 206).
Ao aplicar a sua análise estratégica de poder no caso do Monopólio, Crozier
constata, “nos diferentes escalões hierárquicos, uma forte tendência, de inspiração
racionalista, a eliminar qualquer relação de poder” através de “regras extremamente estritas
[que] prescreviam os comportamentos que cada um devia adotar em todas as circunstâncias
possíveis”. Ao mesmo tempo observava que, “na área onde o comportamento dos atores
não podia ser facilmente previsto – a área da manutenção – desenvolveu-se todo um
sistema de negociações, de pressões e de contrapressões, ou seja, de fato, de novas relações
de poder”. Daí extrai a afirmação de que, no Monopólio, o poder sobre outros membros é
exercido “na medida em que o comportamento de seus parceiros se encontra estreitamente
limitado por regras, enquanto o seu não o está. A conseqüência inesperada da
racionalização é que a previsibilidade do comportamento aparece como um teste seguro de
inferioridade” (Crozier, 1981: 232-233).
Há outros “saberes informais” dos operários que ele procura conhecer para eliminar:
“a luta dos operários que trabalham com máquinas semi-automáticas [que] se dirige no
43
“As coisas não mudam facilmente, tendem eles a pensar, mas é possível, talvez, que seja natural e desejável
que não mudem. Os problemas humanos, dentro dessa perspectiva, são realmente, a chave de qualquer ação,
mas uma chave que serve mais para fechar caminhos do que para abri-los. O humanismo dos diretores se
converte então no reconhecimento desabusado do direito de outrem a obstaculizar qualquer mudança e impor
o status quo” (Crozier, 1981: 201).
58
sentido de acumular peças de reserva, acelerando a cadência normal das mesmas e
utilizando procedimentos proibidos e ‘truques’ pessoais” (Crozier, 1981: 237). Para Crozier
este comportamento indica um convite à negociação:
Ao acumular reservas de pecas, os operários também procuram atingir
objetivos racionais, e seu comportamento não é diferente dos que podem ser
observados entre os dirigentes. Constituir reservas proporciona, efetivamente, aos
operários, a margem de segurança necessária para poder dispor de uma certa
liberdade de ação dentro dos limites das regras. Essa liberdade de ação lhes permite
entregar-se a atividades mais pessoais ou, em qualquer caso, organizar seu trabalho
de forma a chegar a dominá-lo mais um pouco. Ela lhes dá, enfim e sobretudo, uma
proteção eficaz e uma moeda de intercâmbio indispensável nas suas relações com o
contramestre. A independência que o operário manifesta veladamente aos olhos do
contramestre tende a demonstrar-lhe que não deve contar com a boa vontade de seus
subordinados. Ela prova realmente que o operário dispõe de muitos mais recursos
do que supunha o controlador dos tempos, e constitui um convite à negociação
(Crozier, 1981: 238-239).
Na verdade, mostrando-se um bom leitor de Weber, propõe o desmonte da
racionalidade burocrático-formal, que garante alguns direitos ao conjunto dos operários, e
ao mesmo tempo, indica a quebra do poder “informal” dos operários da manutenção. A
fórmula para isso é a vigência de um poder autocrático por parte das chefias e ao mesmo
tempo um desenvolvimento tecnológico. A solução encontrada, portanto, é a proposição de
uma intervenção autoritária a ser implementada pela gerência. Crozier recomenda-a:
Nenhuma organização pode realmente funcionar sem impor sérias restrições
ao poder de negociação de seus membros, o qual representa conceder a alguns
indivíduos a liberdade de ação suficiente para que possam solucionar os conflitos
entre as reivindicações contraditórias, e impor decisões que beneficiem o
desenvolvimento do conjunto da organização ou, se assim for preferido, o jogo
desta contra o seu ambiente. Para obter essa liberdade de ação, um manager deve
dispor de poder sobre seus subordinados: poder formal para tomar decisões em
último recurso, e poder informal para negociar com cada membro e cada grupo da
organização, para forçá-los a aceitar essas decisões (Crozier, 1981: 241 grifos
meus).
Certamente que forçar os operários a aceitar decisões que lhes são alheias faz parte
de uma alienação real. Mas Crozier, tão dedicado que está às supostas relações subjetivas,
nega que uma alienação concreta exista. Veja como Bravermam desmascara o seu cinismo,
59
ao comentar a crítica de Crozier ao sociólogo C. W. Mills
44
, e ao mesmo tempo define o
papel da sociologia no marco do estudo das relações fabris:
Com base no enfoque de Mills, Crozier argumenta que ‘a vida social sem
alienação seria impossível’, porque ‘o indivíduo está sempre necessariamente
limitado por seu lugar na estrutura social’. Esta é a forma amena de um argumento
exposto de modo mais rude por Robert Blauner quando disse: ‘O trabalhador médio
é capaz de fazer um ajustamento à função que, do ponto de vista do intelectual,
parece ser a epítome do tédio’. Nesta linha de raciocínio percebemos o
reconhecimento por parte da sociologia de que os processos do trabalho moderno
estão de fato degradados; o sociólogo partilha esta intuição com a gerência, com
quem ele também partilha a convicção de que esta organização do processo do
trabalho é ‘necessária’ e ‘inevitável’. Isto deixa à Sociologia a função, que ela
partilha com o pessoal administrativo, de assentar não a natureza do trabalho, mas o
grau de ajustamento do trabalhador. Evidentemente, para a Sociologia industrial o
problema não aparece com a degradação do trabalho, mas apenas com sinais
ostensivos de insatisfação por parte do trabalhador. Deste ponto de vista, o único
assunto importante, a única coisa digna de estudo não é o trabalho em si mesmo,
mas a reação do trabalhador a ele, e a esse respeito a Sociologia faz sentido
(Braverman, 1981: 35-36).
Fica claro que este método empírico é incapaz de apreender o processo de
consciência de classe nas relações sociais da empresa, porque é um método claramente
vinculado a uma perspectiva de classe oposta a um pólo fundamental destas relações, o
único capaz de se rebelar ante elas: os operários.
Propor um método crítico ao método sociológico, nas suas diferentes facetas, é de
fundamental importância para a compreensão da “burocratização” da vida social, se se
compartilha da perspectiva daqueles que pretendem romper com as amarras objetivas da
alienação. Na próxima seção esboçaremos uma breve análise crítica deste método.
1.2- “Crítica” sociológica e teoria social
O processo de crescente “racionalização” ou “burocratização” da vida social pode
ser compreendida de forma mais crítica que a apreensão sociológica. Isso porque, o que
poderia ser apresentado como “crítica” da sociologia à burocracia, não indica, desde a sua
formulação inaugural, com Weber, os fundamentos concretos, e por sua vez, a reprodução
teórica do fato em suas determinações centrais.
44
Ver nota 38.
60
afirmamos o caráter fragmentário e ideológico da sociologia, mas precisamos
dedicar um comentário breve sobre a interpretação sociológica da burocracia que
sintetizamos na seção anterior.
Coutinho propõe um diálogo crítico entre o marxismo e as ciências sociais
particulares. Acredita que deve-se encarar a fragmentação destas ciências tendo em vista “o
reconhecimento, ainda que crítico, de que tal especialização corresponde também, muitas
vezes, a uma exigência do próprio objeto, que se tornou mais complexo e diversificado”
(Coutinho, 1996: 98). Lembra, retomando a importante categorização lukacsiana, que
A base dessa crítica ontológica, portanto, é a comparação dos resultados
particulares da ciência que está sendo criticada com o conjunto da vida social; e o se
objetivo é precisamente o de examinar até que ponto esses resultados correspondem
ou não ao movimento global e histórico do objeto que está sendo elevado a conceito
(Coutinho, 1996: 100).
Essa superação teórica implica, ao mesmo tempo, dois momentos, o da totalidade e
o da historicidade, e o resultado final do processo intelectivo seria a conversão do aspecto
aparentemente “natural” do objeto e sua transformação “em estados transitórios de um
devir ininterrupto” (Coutinho, 1996: 100).
Quando nos deparamos com o “conceito” de “burocracia” identificamos sua
característica peculiar de atribuir ao movimento rico e contraditório das constantes
transformações no seio da sociedade capitalista uma tendência natural e inevitável de um
progresso castrador e fetichizante da vida social. Nossa crítica não tem outra alternativa
senão, ao longo de nossa exposição, realizar um progressivo abandono do termo, na medida
em que retomamos as categorizações marxianas, mais densas e críticas na compreensão do
fenômeno. É bem provável que não construamos, tal qual nos recomenda Coutinho, uma
crítica que não caia na armadilha de se transformar numa crítica liqüidatória, “que afirme,
pura e simplesmente, que as ciências sociais particulares estão globalmente erradas” e não
resgate “os resultados parciais positivos” (Coutinho, 1996: 101).
Esta “sensibilidade” necessária ao pesquisador nos é ausente por dois motivos:
nossa crueza e insuficiência teórica para uma absorção mais completa da interpretação
sociológica e a concordância com a crítica eminentemente negativa da sociologia. A esta
atitude negativa, presente na crítica lukacsiana, muito pode ser dito sobre o seu caráter
unilateral, mas pouco pode se contestar acerca de sua veracidade:
61
Para Lukács, por exemplo, o nascimento da sociologia como ciência social
particular vincula-se a esse período de decadência, quando a burguesia evita pensar
a sociedade como um todo
45
para evitar assim, ao mesmo tempo, refletir sobre o
fato agora inconteste de que a sociedade capitalista é estrutural e ineliminavelmente
contraditória. A sociologia, portanto, teria se constituído como tentativa de elaborar
uma análise do social desligada da reflexão econômica e histórica, o que a
conduziria a um intenso formalismo, expresso na recusa de pensar o social como
totalidade e na preferência por uma análise reificada das formas da estruturação
social (Coutinho, 1996: 97).
É difícil pensar de outra forma, por mais que seja a boa vontade para com estas
ciências, a partir de uma espiadela, mesmo que muito superficial, de sua formulação acerca
da burocracia. Por sua vez, a tarefa teórica de superação desta visão reificada torna-se cada
vez mais difícil. Isto porque
na idade avançada do monopólio, a organização capitalista da vida social
preenche todos os interstícios da existência individual: a manipulação desborda a
esfera da produção, domina a circulação e o consumo e articula uma indução
comportamental que penetra a totalidade da existência dos agentes sociais
particulares é o inteiro cotidiano dos indivíduos que se torna administrado (Netto,
1981: 81).
Torna-se mais cômodo resignar-se ante esta realidade que buscar compreendê-la e
transformá-la. Basta recorrer a uma ou outra explicação sociológica para sossegar o
espírito, que o caminho inevitável da “burocratização” pode ser compartilhado com o
conjunto da sociedade, independente de sua classe, nacionalidade, credo ou posição social.
Determina-se conceitualmente o peso dos indivíduos nas relações sociais e por
outro lado se impessoaliza o poder. A caricatura da sociologia expressa a vida social em sua
45
“Portanto, a distinção atual entre várias ciências sociais particulares, cada uma constituindo uma
‘especialidade’ dotada de um pretenso objeto próprio (e ocupando assim um departamento universitário),
surge no momento em que se esse eclipse da reflexão totalizante sobre o social. E esse eclipse tem lugar,
como antecipamos, no momento em que a burguesia deixa de ser uma classe revolucionária, ou seja, deixa
de representar os interesses do conjunto dos excluídos pelo ancien regime e passa a defender estritamente os
seus próprios interesses de classe, os quais, a partir de um certo momento, revelam-se contrapostos aos
interesse de outras classes sociais. O fato é que essa divisão científica do trabalho, consagrada e reforçada
pela atual concepção da universidade, estimula a emergência de um pensamento fragmentário, favorável aos
interesses particulares da burguesia; podemos dizer que o nascimento das ‘ciências sociais’ é um dos
momentos constitutivos da atual ideologia burguesa precisamente na medida em que essa especialização, ao
dificultar ou mesmo bloquear a reflexão sobre a sociedade em seu conjunto, dificulta também, em
conseqüência, a captação das contradições antagônicas e das tendências evolutivas gerais da vida social, que
apontam para a construção de uma nova ordem social. Independentemente das posições concretas que seus
representantes possam assumir, as ciências sociais particulares tendem ao positivismo, ao imediatismo, à
aceitação da realidade social como um agregado de ‘dados’ insuperáveis” (Coutinho, 1996: 96).
62
aparência peculiar ao capitalismo monopolista e eterniza-a como fundamento “racional”.
Não faz mais que identificar a realidade à visão do senso comum.
A visibilidade do poder opressivo (outrora, por exemplo, o capitalista) se
esvaneceu ele é tanto mais eficiente em suas manifestações econômicas, sociais,
políticas e culturais quanto menos é localizável; mais funciona, menos é
identificável. A ubiqüidade deste poder, desta weberiana autoridade ‘racional’ e sem
rosto, se instala nos trilhos por onde escorre o cotidiano (...) A ubiqüidade do poder
– inconcreto, gasoso e onipotente – esconde o poder na ubiqüidade.
Este caos imediato, porém, é de coisas, mas não de coisas que se relacionam
à natureza, ao mundo extra-humano. Ele é vivido e percepcionado como um
conglomerado de coisas, dados e fatos sociais, que quase nada têm a ver com as
antigas formas alienadas (Netto, 1981: 82-83)
Esta “alienação”, que não é mais determinada pela incapacidade de domínio das
forças naturais, mas justamente se refere ao caráter de coisa que adquirem as relações
sociais, implica numa nova “naturalização”: “A sua naturalidade decorre apenas da
aparência de inexorabilidade, de fatalidade do processo geral de produção e reprodução da
vida social” (Netto, 1981: 85). A negação desta ordem de coisas sociais existente, assim
como a negação das produções teóricas que refratam esta ordem, se torna imperativa, na
medida em que
O vinco negativo do contraditório é apagado neste modo de aparição do ser
social: todas as suas manifestações são duras e opacas impõem-se pela aparente
ausência de qualquer vestígio, de qualquer indício de negatividade. Tudo é liso e
raso, tudo aponta para uma direção (ou falta de). O que se manifesta é a pura
positividade. Como Marx diria, o fetichismo acabado e o acabamento do fetichismo
(Netto, 1981: 85).
Em Weber a tendência em tratar de forma poli-causal os fenômenos, em diferentes
esferas da vida social, permite a ele relativizar” os fundamentos do ordenamento social.
Mas não esconde todas as suas armas. Ao fim e ao cabo acaba por reduzir o conjunto das
relações ao domínio das “ações sociais” centradas nos indivíduos. São relações de
dominação que tendem cada vez mais a se apresentar de um ponto de vista burocrático-
formal. Seus vínculos com os aspectos econômicos são invertidos: a burocracia e a
dominação não surgem do desenvolvimento das formas de produção e reprodução da vida
social, mas pelo contrário, na medida em que se afirmam como formas de poder das mais
eficientes, são o pressuposto para a existência da “dominação econômica” no seio da
empresa.
63
Lênin, que foi contemporâneo de Weber, afirma que as relações de dominação e a
violência ligada a essa dominação” são formas típicas “da fase mais recente do
desenvolvimento do capitalismo, eis o que inevitavelmente tinha de derivar, e derivou, da
constituição de monopólios econômicos e todo-poderosos” (Lênin, 2005: 28).
Para ele o conteúdo determinante entre dominação e economia é inverso. O caráter
evidente que a dominação e a violência assumem na vida social nesta fase é uma
decorrência direta da potência econômica das empresas monopolistas. Mas a defesa do
imperialismo alemão impedia a determinação correta destes vínculos por parte de Weber.
Mas não as formulações pautadas em Weber que escondem o caráter
contraditório presente na racionalização” moderna. uma variedade relativamente
grande de sociólogos que buscam desvendar os mais complexos fenômenos relativos à
“burocratização” através de métodos estatísticos, de variáveis matemáticas e de toda sorte
de transposições das ciências naturais ao desvelamento do fenômeno social.
Hegel foi um dos primeiros a criticar esta forma mecanicista de apreensão do real.
Para o autor, que compreendia a totalidade da vida social, “o formalismo matemático deixa
de lado e impede qualquer compreensão e aproveitamento crítico dos fatos”. Isso porque
Hegel “reconhece a conexão intrínseca entre a lógica matemática e a indiscriminada
aquiescência aos fatos
46
” (Marcuse, 1969: 139).
A superação de todas estas interpretações, que ao mesmo tempo reproduzem, de
forma mais ou menos sistematizada, o senso comum e, por isso, não superam seus
elementos mais imobilizadores, pelo contrário, reforçam a apatia ante a realidade, deve ser
apresentada através da crítica imanente da realidade. Devemos superar o “catecismo da
prática e do pensamento cotidianos (inclusive o pensamento científico comum)” (Marcuse,
1969: 127) e para isso é preciso recorrer à formulação dialética.
A formulação deste método de apreensão da realidade tem em Hegel uma
característica absolutamente crítica das formas sociais existentes:
A lógica de Hegel, na verdade, apresenta regras e formas de ação e do
pensamento falsos falsos do ponto-de-vista do senso comum. As categorias
dialéticas constroem um mundo às avessas, começando com a identidade entre ser e
nada, para chegar ao conceito, considerado como a realidade autêntica. Hegel põe
em relevo o caráter absurdo e paradoxal do mundo; entretanto, seguindo o processo
46
Esta crítica hegeliana leva Marcuse ao exagero de afirmar que ele “antecipou em mais de cem anos o
aparecimento do positivismo” (Marcuse, 1969: 139).
64
dialético até o fim. Hegel descobre que o paradoxo é o receptáculo da verdade que
se oculta, e que o absurdo é, antes, uma qualidade que o esquema correto do senso
comum possui, o qual, liberado de suas impurezas, contém a verdade latente
(Marcuse, 1969: 127)
Vê-se que não cabe uma postura contemplativa para com o fenômeno da reificação
que sob o capitalismo monopolista desborda todas as esferas da vida social. Não cabe,
como a sociologia, tratar a “burocratização” como fenômeno inevitável, antes, cabe a
negação da realidade tal qual se apresenta na imediaticidade, e, portanto, também, negar a
sociologia e seu método: “A filosofia não pretende ser uma descrição do que acontece, mas
um conhecimento do que é verdadeiro nos acontecimentos; e é a partir do corpo da verdade
que ela tem de compreender aquilo que aparece na narrativa como mero acontecimento”
(Hegel apud: Marcuse, 1969: 149).
Uma das características que proporcionaram a Hegel esta formulação do
fundamento crítico da filosofia tem relação com a identificação do papel do trabalho no
seio da constituição da Razão, já evidente desde sua Fenomenologia do Espírito:
Para avançar na direção da universalidade, entretanto, a ‘autoconsciência’
ainda necessita de outra conquista: ela deve se dar conta da importância do
trabalho. Apesar da rudeza das formas que assume, o trabalho é a atividade básica
pela qual os sujeitos humanos afirmam, inicialmente, seu poder de intervir na
realidade objetiva, dominando-a e pondo-a, astuciosamente, a seu serviço.
quando se conta disso é que a ‘autoconsciência’ supera a ótica distorcida que lhe
vinha da postura passiva, contemplativa, que vinha prevalecendo no sujeito em
todas as ‘figuras’ anteriores da consciência e que ainda prevalecia nela. Nesse
momento, a ‘autoconsciência’ deixa de ser ‘autoconsciência’ e se transforma,
finalmente, em razão (Konder, 1991: 31).
Marx em muito se valeu da concepção de trabalho de Hegel, até mesmo para sua
formulação inicial da categoria de “alienação”. Mas, com o desenvolvimento teórico de sua
obra, quando se debruça criticamente sobre a Economia Política, pode-se apreender o
abismo entre as duas concepções: em Hegel, o trabalho ainda permanece refém de sua
formulação abstrata, e, em Marx, o trabalho ganha a estatura de conceito determinante do
próprio processo de sociabilidade humana
47
.
47
“A ontologia marxiana se diferencia da de Hegel por afastar todo elemento lógico-dedutivo e, no plano da
evolução histórica, todo elemento teológico. Com esse ato materialista de ‘colocar sobre os próprios pés’, não
podia deixar de desaparecer da série dos momentos motores do processo também a síntese do elemento
simples. Em Marx, o ponto de partida não é dado nem pelo átomo (como nos velhos materialistas), nem pelo
65
Marx exaltou a genialidade da concepção hegeliana do homem como um ser
que se criou a si mesmo e continua se criando (o processo de autocriação é
constante) através de sua atividade específica, que é o trabalho humano. Hegel
pensou essa autocriação e também seu avesso: a exteriorização e o estranhamento
do sujeito humano naquilo que ele põe na realidade objetiva. Para Marx, no entanto,
o acerto fundamental dessa concepção ficava prejudicado pela extrema
abstratividade do desenvolvimento que Hegel lhe deu (Konder, 1991: 31).
as ciências sociais particulares pouco se importam com o conceito ontológico do
trabalho enquanto fundante da humanidade. Quando tratam do trabalho não fazem mais do
que descrever seus aspectos exteriores ou os reflexos sobre os indivíduos. Kosik procura
diferenciar esta interpretação sociológica do trabalho e sua interpretação filosófica.
Comecemos pela primeira:
As definições sociológicas do trabalho, que pretendem superar a
abstratividade e excluir a metafísica, dão uma descrição geral das operações de
trabalho ou das atividades laborativas, mas não penetram de todo na problemática
do trabalho. A sociologia do trabalho se acha a priori numa posição da qual é
absolutamente impossível captar a problemática do trabalho. Embora pareça não
haver nada mais notório e banal do que o trabalho, está demonstrado que esta
pretensa banalidade e notoriedade se baseiam em um equívoco: na representação
cotidiana e na sistematização sociológica não se pensa o trabalho em sua essência e
generalidade, mas sob o termo trabalho se entendem os processos de trabalho, a
operação de trabalho, os diversos tipos de trabalho e assim por diante (Kosik, 2002:
196-197).
Ao demonstrar os limites das interpretações sociológicas se pergunta: “Por que a
análise do trabalho exige uma investigação filosófica e não pode ser feita no âmbito de uma
ciência especializada?” (Kosik, 2002: 197). A resposta é a reafirmação do caráter
ontológico do trabalho:
A problemática do trabalho como problema filosófico e como filosofia do
trabalho se baseia na ontologia do homem. A conexão do trabalho com a
problemática filosófica nas citadas correntes do pensamento não é, portanto, um
mero fato. O espanto que se tem ao constatar que desde os tempos de Marx a
problemática do trabalho não se desenvolveu filosoficamente só assume o seu
verdadeiro sentido depois de se ter chegado à constatação de que a filosofia
materialista é também a ‘última’ vale dizer, não ultrapassada historicamente
‘ontologia do homem’ (Kosik, 2002: 198).
simples ser abstrato (como em Hegel). Aqui, no plano ontológico, não existe nada análogo. Todo o existente
deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte (movente e movida) de um complexo concreto”
(Lukács, 2007; 226)
66
Na sociologia da burocracia a insuficiência no trato à categoria trabalho torna-se
mais patente. Por um lado se invertem as relações entre economia e dominação e, por outro,
se metamorfoseiam as características do trabalho (mesmo as mais superficiais) em torno
das funções burocráticas. Valem-se do desenvolvimento dos processos de trabalho ao nível
de escritório e da distribuição para fazer com que esta torne-se a forma (juntamente com o
funcionalismo estatal) determinante para a explicação da racionalização” e da “divisão do
trabalho”: “Como esta tendência atingiu o escritório e as ocupações técnicas e ‘educadas’,
os sociólogos falaram de ‘burocratização’” (Bravermam, 1981: 109). Mas será que a
disciplina e o parcelamento do homem não existiam no modo de trabalho do operário,
muito antes destes desenvolvimentos?
É daí que se opera uma nova mistificação. Os pressupostos econômicos e sociais do
desenvolvimento do capitalismo são reinterpretados, mais uma vez, mudando o foco da
análise e elevando ao centro a “burocratização”.
Weber, como vimos, não desconsidera este fato da separação entre os
produtores diretos e os meios de produção como condição para o capitalismo, no
entanto não estabelece como Marx os vínculos entre esse fenômeno e a
característica singular do capitalismo que é a valorização do valor no processo
capitalista de produzir mais-valia. Para ele existem alguns aspectos que se somam à
utilização do trabalho livre e que seriam essenciais à compreensão do que chama de
moderno capitalismo ocidental. Entre eles estariam a contabilidade racional’, o
‘direito racional’, mas sobretudo tudo isso, ao mesmo tempo ‘determinado pela
capacidade e disposição dos homens em adotar certos tipos de conduta racional
(Iasi, 2002: 75).
Além disso, é preciso fazer uma correção. Se é verdade que Weber está atento para
a separação entre os produtores diretos e os meios de produção, ele procura mistificar essa
relação, pois, ao tratar dos pressupostos da burocracia moderna, indica a concentração dos
meios de serviço materiais nas mãos do senhor” como um deles. Com isso, ao nosso ver,
ele procura salientar duas substituições: agora ao invés de o local determinante das relações
antagônicas ser a produção, passa a se identificar ao serviço. Por outro lado, o fundamento
histórico desta separação não é mais referenciado à produção capitalista, pois, mesmo ela,
significa um desdobramento desta separação, seja ao nível do Estado ou do escritório. Em
suma: não é a lógica de organização fabril a forma de “racionalização” refratada para outras
esferas, mas as esferas seriam “pasteurizadas” pela razão instrumental e, assim, não mais
existiria um centro específico como fundamento deste processo.
67
Há, também, outra mistificação, do ponto de vista histórico. Weber substitui os
pressupostos ao capitalismo, que Marx apresenta como formas econômico-sociais que
antecederam e prepararam a produção capitalista, pelo pressuposto de um certo grau de
desenvolvimento de uma economia monetária. Na verdade substitui as relações sociais por
relações entre coisas:
Para que fosse possível o capitalismo não bastavam, apesar de serem
algumas de suas precondições, a produção generalizada de mercadorias, o dinheiro
como equivalente geral, o comércio mundial, condições que existiam antes do
modo de produção capitalista. Era necessária uma acumulação primitiva de capitais.
Mas o paradoxo é que esta acumulação que cria as condições do surgimento do
capital tem de se produzir antes e fora da ordem capitalista. Muitos confundem essa
acumulação com o aumento quantitativo da população e da massa de moeda
circulante, que é falso. Para Marx o capital é uma relação social e não uma coisa, o
processo de gestação do capitalismo seria, portanto, o processo no qual se gestam no
interior da ordem feudal os elementos materiais que tornariam possíveis o advento
das relações capitalistas (Iasi, 2002: 74).
Mesmo que a interpretação weberiana não seja exatamente uma reificação dos
pressupostos ao desenvolvimento histórico do capitalismo, ela é, com certeza, ao conceituar
a economia monetária, um meio de transferir o centro destes pressupostos dos elementos
referentes à produção para aqueles próprios à distribuição das mercadorias.
A divisão do trabalho é entendida pela sociologia, como vimos, fundamentalmente,
pelos reflexos sobre os indivíduos. Dois dos teóricos que muito influenciam as formulações
acerca da divisão do trabalho e da “burocratização” compreendem que estes processos
refratam nas consciências dos indivíduos, mas não conduzem a uma crítica desta
“alienação”.
[O que] para Durkheim é um dado objetivo e natural e portanto positivo
(aprofundamento da divisão do trabalho, normatização da vida pelo Estado etc.),
para outro [Weber] é uma forma histórica que tende a enfatizar um tipo de conduta
que diminui o espaço de ação do indivíduo e portanto valorativamente negativa, não
no sentido de valorar uma constatação empírica, o que seria contraditório com o
pensamento weberiano, mas no confronto com os valores liberais com os quais
Weber comunga (Iasi, 2002: 88).
Temos dúvidas acerca desta comunhão de Weber com os valores liberais, mas
concordamos com o fato de que, tanto “o otimismo reformista de Durkheim” como “a
crítica levada até o ponto máximo da resignação de Weber” condena-nos a uma ação
68
restrita ao modo de produção que produz estas racionalidades irracionais, ou, nas palavras
de Kant, a uma “insociável sociabilidade
48
”.
Mas a superação destes conceitos se impõe àqueles que identificam a necessidade
de superar este ordenamento social. Pois se Kant naturaliza” esta ordem, ao debitar à
natureza humana o desenvolvimento desta forma do homem se pôr no mundo, Weber
também “naturaliza”, mas, como vimos, sem se referir à natureza, pelo contrário, eterniza a
“burocratização” como o estado de coisas sociais existentes. Fica clara a sua incapacidade
de superar a descrição factual da organização do capitalismo dos monopólios. A “crítica”
sociológica nada tem de crítica, mas se revela apologética da reificação.
Konder, em sua didática peculiar, retomou a riqueza da música popular para
expressar a categoria de totalidade e de historicidade em Hegel, e, nos versos de Candeia,
as resumiu: “Cego é quem só vê aonde a vista alcança” (apud: Konder, 1991: 77).
Nosso desafio é reconstruir, a partir de um ponto de vista histórico e crítico, a
dinâmica em que a “burocratização” apontaria para outros fatos em processo. Não no
nosso caminho expositivo uma conclusão definitiva, pelos próprios limites de nossa
interpretação. Mas permanece a intenção em enxergar, para além das árvores, a floresta
como um todo. Esta intenção passa pela compreensão, em primeiro lugar, das tentativas de
interpretação totalizantes da “burocracia” e, num momento posterior, na apreensão das
características fundamentais da divisão do trabalho sob o capitalismo monopolista.
48
“Eu entendo aqui por antagonismo a insociável sociabilidade dos homens, ou seja, a tendência dos mesmos
a entrar em sociedade que está ligada a uma oposição geral que ameaça constantemente dissolver esta
sociedade” (Kant, 1986: 13).
69
CAPÍTULO II:
ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E BUROCRACIA
70
A caracterização da “burocracia”, tal qual encontramo-la desenvolvida no
capitalismo contemporâneo, pode ser exposta a partir da análise de sua plena
consolidação no capitalismo monopolista. Este é um dos motivos pelos quais os clássicos
da teoria política e social anteriores ao surgimento dos monopólios não abordaram o fato
com a dimensão, por exemplo, com que se debruçou Max Weber que tem seus escritos
situados a partir do final do século XIX e início do século XX.
Por isso, antes de nos ocuparmos da análise dos determinantes estruturais do
“fenômeno burocrático”, pretendemos trazer à luz o contexto histórico de seu
desenvolvimento. Ao mesmo tempo devemos abordar as primeiras manifestações teóricas
que buscaram dar conta deste objeto. A insuficiência destas advém do fato de que
puderam apreender os aspectos transitórios e desenvolvimentos iniciais da
“burocratização”.
Dividimos este capítulo em três seções: na primeira intentamos uma breve
exposição histórica da gênese do capitalismo e do surgimento da “burocracia moderna”
(própria à nascente sociedade burguesa) em oposição à “burocracia tradicional” (resquício
do Antigo Regime); o segundo momento é forjado a partir de um resumo crítico das
principais definições de Estado, Sociedade civil e burocracia, em Hegel, no jovem Marx
49
e
em Gramsci, que situam o objeto ainda no seio deste marco categorial; e, a terceira seção
retoma a caracterização histórica, mas agora tratando dos desenvolvimentos no interior do
modo de produção capitalista que preparam a existência plena da “burocratização” no
capitalismo monopolista fenômeno este que, do ponto de vista dos elementos endógenos,
será analisado no terceiro capítulo.
49
A caracterização de “jovem Marx” não implica a intenção de adentrar na polêmica sobre uma cisão em sua
obra entre o “jovem” e o “maduro” Marx com todas as conseqüências decorrentes. Contentamo-nos em
explicitar que nossa interpretação desta polêmica se afina com as proposições que situam a obra marxiana
como um progresso dialético e implica conservação-superação constante, assim como momentos regressivos e
outros de progresso teórico. Nossa referência aqui ao “jovem” é necessária no sentido em que, como veremos,
trataremos de duas obras de sua juventude no presente capítulo, enquanto que no terceiro teremos como
referência “O Capital”, obra de sua maturidade. Antes de tudo é preciso salientar que se, de fato, não um
corte drástico entre momentos de sua obra, a nossa exposição marcará como importante a diferença entre o
momento em que Marx ainda estava preso à dicotomia Estado-Sociedade Civil e o momento em que se
debruça criticamente sobre a Economia Política e procura desvendar a “anatomia da sociedade civil”. Esta
mudança de perspectiva é de fundamental importância para a diferenciação da própria análise da
“burocracia”.
71
2.1- Capitalismo e burocracia
na passagem entre o feudalismo e o capitalismo uma série de desenvolvimentos
específicos e algumas rupturas estruturais. A consolidação definitiva do novo modo de
produção contou com uma dupla revolução como elementos fundantes: a revolução política
e a revolução industrial. Diante dos objetivos limitados de nossa exposição buscaremos
somente expor os elementos mais diretamente vinculados à formação de uma nova
burocracia pública e privada no marco da Era das Revoluções (Hobsbawm).
É obvio que, como se trata de um momento de transição histórica, as formações
sociais encontradas caracterizam-se como formas em transição, ou seja, ou como formas
temporárias ou como formas mistas – que coadunam formas pretéritas e outras ainda
nascentes. Um dos exemplos desta transição, no campo econômico, é o início da divisão
manufatureira do trabalho, que ainda luta com o peso do passado das corporações da Idade
Média:
As leis das corporações da Idade Média impediam metodicamente (...) a
transformação de um mestre artesão em capitalista, limitando severamente o número
de companheiros que ele tinha o direito de empregar. Também lhe era permitido
empregar companheiros no ofício em que era mestre. A corporação se defendia
zelosamente contra qualquer intrusão no capital mercantil, a única forma livre de
capital com que se confrontava. O comerciante podia comprar todas as mercadorias,
mas não o trabalho como mercadoria. era tolerado como distribuidor dos
produtos dos artesãos. Se circunstâncias externas provocavam progressiva divisão
do trabalho, as corporações existentes se subdividiam em subespécies ou se
fundavam novas corporações junto às antigas, sem que diferentes ofícios se
reunissem numa única oficina. A organização corporativa excluía portanto a divisão
manufatureira do trabalho, embora muito contribuísse para as condições de
existência desta, especializando, separando e aperfeiçoando os ofícios. Em geral, o
trabalhador e seus meios de produção permaneciam indissoluvelmente unidos, como
o caracol e sua concha, e assim faltava a base principal da manufatura, a separação
do trabalhador de seus meios de produção e a conversão desses meios em capital
(Marx, 1985: 411).
É este processo de separação e de formação do capital que vai revolucionar não só o
modo de produzir assim como toda a vida política e social. É necessário portanto advertir
para algumas destas transformações econômicas e políticas.
No século XVIII ainda predominavam monarquias absolutas em todos os Estados
europeus (com exceção da Inglaterra), mas, ao final deste século assistimos a uma
72
renovação em suas administrações públicas. a ascensão, em alguns desses países, de
uma camada administrativa renovada no interior dos Estados modernos. Esta renovação se
inicia no seio dos próprios Estados absolutistas com a substituição da nobreza por pessoal
civil no aparelho estatal. Posteriormente, temos uma transformação ainda maior com a
apropriação mais determinante do ideário iluminista na organização do Estado. É a
evidência de uma necessária mudança estrutural para adaptar-se aos novos tempos.
É verdade que a simples necessidade de coesão e eficiência estatais em uma
era de aguçada rivalidade internacional tinha de muito obrigado os monarcas a
pôr freio às tendências anárquicas de seus nobres e outros interesses estabelecidos e
a preencher seu aparelho estatal tanto quanto possível com pessoal civil não
aristocrata. Além disso, na última parte do século XVIII, estas necessidades e o
evidente sucesso internacional do poderio capitalista britânico levaram a maioria
destes monarcas (ou melhor, seus conselheiros) a tentar programas de modernização
intelectual, administrativa, social e econômica. Naquela época, os príncipes
adotavam o slogan do ‘iluminismo’ do mesmo modo como os governos de nosso
tempo, por razões análogas, adotam slogans de ‘planejamento’; e, como em nossos
dias, alguns dos que adotavam slogans em teoria muito pouco fizeram na prática, e a
maioria dos que fizeram alguma coisa estava menos interessada nas idéias gerais
que estavam por trás da sociedade ‘iluminada’ (ou ‘planejada’) do que na vantagem
prática de adotar os métodos mais modernos de multiplicação de seus impostos,
riqueza e poder (Hobsbawm, 2007: 43-44).
Esta contradição, entre o que necessitava ser feito (razão) e o que de fato era feito
(realidade)
50
revela o antagonismo existente entre as classes nesta transição histórica. Se, de
início, comporta alianças entre a pressão social das “classes médias” e o aparato estatal, em
seu desenvolvimento expõe-se como contradição aberta ante a intenção de mudança no
poder político.
Reciprocamente, as classes média e instruída e as empenhadas no progresso
quase sempre buscavam o poderoso aparelho central de uma monarquia ‘iluminada’
para levar a cabo suas esperanças. Um príncipe necessitava de uma classe média
51
e
50
Leandro Konder se contrapondo aos críticos da famosa tese hegeliana de que “o que é racional é real, e o
que é real é racional” resume o conteúdo da mesma, apreendendo o seu sentido progressista: “Mas o real, para
Hegel, não se reduzia ao existente. (...) Os homens, buscando realizar sua liberdade, efetuam ações
modificadoras sobre o real; e a realidade efetiva, racional, é aquela que existe incorporando as modificações
reais efetuadas sobre ela, que são parte de sua constante autotransformação” (Konder, 1991: 66). Se
percorrêssemos a formulação de Hegel, teríamos que ajustar nossa identificação (razão e realidade), e afirmar
que o Estado real era justamente aquele idealizado pelos iluministas, já que “o estado se torna realidade
quando corresponde às potencialidades reais dos homens e permite o pleno desenvolvimento delas. Qualquer
forma prévia de estado que ainda não seja racionalizável ainda não é, por isso, real” (Marcuse, 1969: 22).
51
Julgamos pertinente citar neste espaço a nota da edição brasileira de A Era das Revoluções de Hobsbawm,
que procura expor a dificuldade na tradução do termo “classe média”. Esta dificuldade não pode ser entendida
simplesmente como um problema de tradução, mas como uma dificuldade conceitual, tendo em vista as
73
de suas idéias para modernizar o seu Estado; uma classe média fraca necessitava de
um príncipe para quebrar a resistência ao progresso, causada por arraigados
interesses clericais e aristocráticos.
Contudo, de fato, a monarquia absoluta, não obstante quão moderna e
inovadora, achava impossível e pouco se interessava em libertar-se da hierarquia
dos nobres proprietários, à qual, afinal de contas, pertencia, e cujos valores
simbolizava e incorporava, e de cujo apoio dependia grandemente. (...) Na prática
pertencia ao mundo que o iluminismo tinha batizado de féodalité ou feudalismo,
termo mais tarde popularizado pela Revolução Francesa. (...) seus horizontes eram o
de sua história, de sua função e de sua classe. Ela quase nunca desejou, e nunca foi
capaz de atingir, a total transformação econômica e social que exigiam o progresso
da economia e os grupos sociais ascendentes (Hobsbawm, 2007: 44).
A solução de tal contradição exigiu a Revolução Política, que tão bem encarnou a
burguesia francesa, de forma direta, mas também através do exemplo e do domínio em
parte significativa da Europa.
Se é fato que a revolução política tem na França seu exemplo mais emblemático, é
na Inglaterra que a Revolução Industrial se desenvolve de forma pioneira. Mas, também
neste caso, se evidencia um logo caminho, em que, num primeiro momento o centro de
gravitação da dinâmica econômica ainda não pode ser debitado à produção capitalista, mas
ao capital comercial
52
. Esse fato é significativo para que pensemos a forma em que a
“burocracia” é constituída neste momento.
diferentes conotações que podem ser dadas ao termo, dependendo do contexto histórico e abrangência dos
grupos sociais referidos. Isto demonstra a própria deficiência da definição, que tal qual o termo burocracia
significando outros estratos sociais -, tem sentidos diferentes se compararmos o período de advento da
sociedade burguesa com aquele referente ao seu desenvolvimento pleno no capitalismo monopolista. A nota é
a seguinte: “‘middle classno original. Talvez seja esta palavra a mais freqüentemente empregada por E. J.
Hobsbawm, e sua tradução exata é infelizmente impossível: ‘classe intermediária’ (entre a ‘classe alta’, por
um lado, constituída pela monarquia, nobreza e igreja, e pela ‘classe baixa’ dos camponeses com ou sem terra,
dos artífices e domésticos, dos ‘trabalhadores pobres’ (labouring poor), por outro lado, ou ‘classe burguesa e
pequeno-burguesa ainda diferenciada no período que nos ocupa. O inglês britânico possui duas séries de
termos paralelos: bougeoisie e upper middle class (‘classe média superior’) para a burguesia propriamente
dita, ‘petty-bourgeoisie’ e lower middle class’ (‘classe média inferior’) para a pequena burguesia, esta última
também chamada de ‘classe média’ em português. Na medida em que o período é da emergência das middle
classes’ (‘intermediárias’) contra as superiores, e da sua principiante estratificação interna, a expressão
‘classe(s) média(s)’, longe de designar única e especificamente a pequena burguesia, vai receber várias
acepções, desde a de ‘conjunto das novas camadas sociais, políticas e profissionais emergentes na época’ até a
de categoria social intermediária específica’ cujas situação e composição são determinadas pelo contexto ou
pelo momento histórico” (apud: Hobsbawm, 2007: 15).
52
“A circulação das mercadorias é o ponto de partida do capital. A produção de mercadorias e o comércio,
forma desenvolvida da circulação de mercadorias, constituem as condições históricas que dão origem ao
capital. O comércio e o mercado mundiais inauguram no século XVI a moderna história do capital” (Marx,
1985: 165).
74
Isto ocorria porque a principal forma de expandir a produção industrial era o
chamado sistema doméstico ou do bota-fora, no qual o mercador comprava os
produtos dos artesãos ou do tempo de trabalho não agrícola do campesinato, para
vendê-los num mercado mais amplo. O simples crescimento deste comércio
inevitavelmente criou condições rudimentares para um precoce capitalismo
industrial. (...) Mas o controlador-chefe destas formas descentralizadas de produção,
aquele que ligava a mão-de-obra de vilarejos perdidos ou de ruelas afastadas com o
mercado mundial, era uma espécie de mercador. E os industriais’ que estavam
aparecendo ou a ponto de aparecer das fileiras dos próprios produtores eram, em
comparação a ele, ínfimos operadores, quando não diretamente dependentes dele.
(...) Mas o industrial típico (a palavra não havia sido inventada ainda) era nesta
época um pobre gerente e não um capitão de indústria (Hobsbawm, 2007: 39-40).
É por esse motivo que pensar a “burocracia” neste período significa remeter não à
dinâmica interna da fábrica, que, como vimos, pouco tinha se desenvolvido em suas
funções gerenciais – já que o único a ocupar esta função era o próprio “industrial” –, mas às
funções “comerciais” vinculadas direta ou indiretamente ao aparelho estatal. É este o
motivo da insistência de pensadores como Hegel e Marx, entre outros, até por volta de
1844, ao se depararem com a questão da “burocracia”, em encarar com especial atenção a
mediação que esta revelava entre Estado e Sociedade civil.
No início da produção capitalista propriamente dita ainda persistem
indeterminações. Descrevendo as lutas dos trabalhadores no início da produção
manufatureira na Inglaterra, Marx nota como ainda não fica claro, neste período, a oposição
entre capital e trabalho a luta principal ainda envolve outras classes. É somente com a
expansão da maquinaria que, pouco a pouco, esta oposição iria ganhar uma dimensão mais
nítida.
As lutas por salário dentro da manufatura pressupunham a manufatura e não
se dirigiam contra sua existência. Os que combatem a criação de manufaturas não
são os assalariados, mas os mestres das corporações e as cidades privilegiadas. (...)
Durante o período manufatureiro, os ofícios manuais, embora decompostos pela
divisão do trabalho, continuaram sendo a base da produção. O número relativamente
pequeno de trabalhadores urbanos, que constituíam o legado da Idade Média, não
podia satisfazer às exigências dos novos mercados coloniais, e as manufaturas
propriamente ditas abriam novos campos de produção para a população rural
expulsa das terras com a dissolução do sistema feudal. Destacava-se, então, o lado
positivo da divisão do trabalho e da cooperação nas oficinas, tornando os
trabalhadores empregados mais produtivos. Aplicados à agricultura, a cooperação e
a concentração em poucas mãos dos instrumentos de trabalho provocaram
transformações grandes, súbitas e violentas no modo de produção e
conseqüentemente nas condições de vida e nas possibilidades de trabalho da
75
população rural, em muitos países e bem antes do período da indústria moderna.
Mas, esta luta, originalmente, se trava mais entre grandes e pequenos proprietários
de terras do que entre capital e trabalho assalariado; por outro lado, quando
trabalhadores são suprimidos por instrumentos de trabalho, ovelhas, cavalos etc., os
atos de violência diretamente aplicados constituem prelúdio da revolução industrial.
Primeiro, os trabalhadores são expulsos das terras; depois, vêm as ovelhas. O roubo
de terras em grande escala, praticado na Inglaterra, cria as condições para a
agricultura em grande escala. Em seu começo, essa subversão da agricultura tinha
mais o aspecto de uma revolução política (Marx, 1985: 492).
Vê-se que mesmo na Inglaterra, o berço da revolução industrial, um período
longo de maturação em que a dinâmica das transformações econômicas é antecedida pela
revolução política. Essa aparência política determinante dos processos de mudanças sociais
teria importante papel no seio das formulações dos intelectuais, assim como na posição
política adotada pela “burocracia”. Não outro palco para a sua atuação que não seja o
Estado.
Essa “burocracia” já expressa, neste período, uma posição política muito bem
determinada: a do meio
53
. É neste sentido em que, na França pré-revolucionária, ela
expressa o descontentamento de ambos os setores: o da nobreza e o da burguesia. Ela é
fruto das novas necessidades do Estado modernizado ao passo que dependente da
manutenção do status alcançado, e, por isso, encara, ao mesmo tempo, o perigo da
regressão, e, o da ruptura mais drástica de sua condição para uma nova e indefinida.
O fato continuou a se agravar entre a mais alta aristocracia e entre a noblesse
de robe mais recente, criada pelos reis para vários fins, principalmente financeiros e
administrativos; uma classe média governamental enobrecida que expressava tanto
quanto podia o duplo descontentamento dos aristocratas e dos burgueses através das
assembléias e cortes de justiça remanescentes (Hobsbawm, 2007: 88).
53
C. W. Mills, ao comentar este dilema da “burocracia” (que ele identifica a uma “nova classe média”), em
outro período histórico, define-o de forma polêmica, mas genial: A nova classe média penetrou
discretamente na sociedade moderna. Sua história não teve grandes acontecimentos; seus interesses comuns
não levam à unidade; seu futuro não dependerá dela. Suas aspirações, se é que as tem, referem-se a um meio-
termo, numa época em que não existe meio-termo, e portanto a uma situação ilusória numa sociedade
imaginária. Internamente, ela é dividida, fragmentada; externamente, ela depende de forças mais poderosas.
Ainda que tivesse vontade de agir, seus atos seriam menos um movimento do que uma desordem de conflitos
sem nexo. Como um grupo, o ameaça ninguém; como indivíduos, seus membros não m um estilo de vida
independente. Por isso, antes que se pudesse formar dela uma idéia precisa, sua existência foi reconhecida
enquanto atores usuais na massa urbana” (MILLS, C. R. A Nova Classe Média. Rio de Janeiro: Ed. Zahar,
1969: 11)
76
A nobreza ameaça uma reação. Durante todo o século XVIII invade “decididamente
os postos oficiais que a monarquia absoluta preferira preencher com homens da classe
média, politicamente inofensivos e tecnicamente competentes”. Esta ânsia reacionária era
um dos elementos que “exasperava os sentimentos da classe média”, pois, além da
competição pura e simples dos cargos com a nobreza, via, no avanço desta, “através da
crescente tendência de assumir a administração central e provinciana”, a degradação do
próprio Estado (Hobsbawm, 2007: 88).
A França revolucionária, a partir de 1789, tem, na ideologia de sua ala burguesa
moderada, a permanente preocupação em relação à estabilidade política. A solução, por sua
vez, não surge numa determinada forma político-representativa e nem na administração
civil
54
; é o expansionismo militar que põe fim ao problema
55
.
Napoleão Bonaparte, para além das vitórias militares, foi o mais bem-sucedido
governante da história da França. Sabe-se que fenômenos históricos não devem ser
analisados a partir das respectivas realizações pessoais
56
, mas deve-se encarar os feitos
napoleônicos como ancorados num processo histórico de tal envergadura que a partir da
54
“O problema com que se defrontava a classe média francesa no restante do que é tecnicamente descrito
como o período revolucionário (1794-9) era como alcançar a estabilidade política e o avanço econômico nas
bases do programa liberal de 1789-91. A classe média jamais conseguiu desde então até hoje solucionar este
problema de forma adequada, embora a partir de 1870 conseguisse descobrir na república parlamentar uma
fórmula exeqüível para a maior parte do tempo. As rápidas alternâncias de regime Diretório (1795-9),
Consulado (1799-1804), Império (1804-14), a restaurada Monarquia Bourbon (1815-30), a Monarquia
Constitucional (1830-48), a República (1848-51), e o Império (1852-70) foram todas tentativas para se
manter uma sociedade burguesa evitando ao mesmo tempo o duplo perigo da república democrática jacobina
e do velho regime” (Hobsbawm, 2007: 108).
55
“A inatividade era a única garantia segura de poder para um regime fraco e impopular, mas a classe média
necessitava de iniciativa e de expansão. O exército resolveu este problema aparentemente insolúvel. Ele
conquistou; pagou-se a si mesmo; e, mais do que isto, suas pilhagens e conquistas resgataram o governo.
Teria sido surpreendente que, em conseqüência, o mais inteligente e capaz dos líderes do exército, Napoleão
Bonaparte, tivesse decidido que o exército podia prescindir totalmente do débil regime civil?” (Hobsbawm,
2007: 109).
56
Hegel pensava que algumas personalidades poderiam ser consideradas “indivíduos histórico-mundiais” e
Napoleão, ao seu ver, era aquele que encarna o espírito da modernidade. “A razão, na história, precisa da
paixão para produzir resultados significativos, mudanças concretas. E são as grandes paixões que geram os
grandes homens, os seres humanos que Hegel chama de ‘indivíduos histórico-mundiais’. Esse indivíduos
histórico mundiais não são propriamente modelos de virtudes, e podem apresentar até traços mesquinhos e
lamentáveis em suas respectivas personalidades; são, no entanto, desencadeadores de transformações sociais
necessárias (ainda que ‘explosivas’)” (Konder, 1991: 79). “Na segunda-feira, 13-10-1806, ‘dia em que Iena
foi ocupada pelos franceses e o imperador Napoleão atravessou suas muralhas’, Hegel escreveu ao amigo
Niethammer uma carta, contando: ‘Vi o imperador, essa alma do mundo, sair da cidade a cavalo para um
reconhecimento do terreno. É, de fato, uma sensação maravilhosa a de ver um indivíduo assim, que, de um
determinado ponto, de seu cavalo, estende sua presença sobre o mundo inteiro e o domina’” (Konder, 1991:
26).
77
conceituação do “bonapartismo” ganhou status de categoria analítica, diante do peso de
sua influência na vida nacional francesa e de outros países europeus.
Triunfou gloriosamente no exterior, mas em termos nacionais, também
estabeleceu ou restabeleceu o mecanismo das instituições francesas como existem
até hoje. Reconhecidamente, a maioria de suas idéias talvez todas foram
previstas pela Revolução e o Diretório; sua contribuição pessoal foi fazê-las um
pouco mais conservadoras, hierárquicas e autoritárias. Mas seus predecessores
apenas previram; ele realizou. Os grandes monumentos de lucidez do direito
francês, os Códigos que se tornaram modelos para todo o mundo burguês, exceto o
anglo-saxão, foram napoleônicos. A hierarquia dos funcionários – a partir dos
prefeitos, para baixo –, das cortes, das universidades e escolas foi obra sua. As
grandes ‘carreiras’ da vida pública francesa, o exército, o funcionalismo público, a
educação e o direito ainda têm formas napoleônicas (Hobsbawm, 2007: 113).
Este “mito”, mesmo se inspirando neste ideário iluminista, derrotou politicamente
seus aspectos mais transformadores: “O império de Napoleão liquidara com as tendências
radicais da Revolução consolidando, ao mesmo tempo, suas conseqüências econômicas”
(Marcuse, 1969: 16). Apesar disso, “a Revolução Jacobina, o sonho de igualdade, liberdade
e fraternidade”, permaneceu muito vivo: “este foi um mito mais poderoso do que o dele
[Napoleão], pois, após a sua queda, foi isto e não a sua memória que inspirou as revoluções
do século XIX, inclusive em seu próprio país” (Hobsbawm, 2007: 113).
É a partir deste ideário que podemos compreender a “onda revolucionária de 1830”.
É quando entra em cena uma inovação: “o aparecimento da classe operária como uma força
política autoconsciente e independente na Grã-Bretanha e na França, e dos movimentos
nacionalistas em grande número de países da Europa” (Hobsbawm, 2007: 162). Mas,
apesar deste novo elemento e do início da incorporação crítica do ideário revolucionário
burguês, o que assistimos foi a consolidação justamente da dominação política burguesa. É
“a derrota definitiva dos aristocratas pelo poder burguês na Europa Ocidental” e a ascensão
definitiva ao governo da “‘grande burguesia’ de banqueiros, grandes industriais e, às vezes,
altos funcionários civis, aceita por uma aristocracia que se apagou ou que concordou em
promover políticas primordialmente burguesas” (Hobsbawm, 2007: 161)
Se antes de 1830 podíamos situar três tendências de oposição à aristocracia o
liberal moderado (da classe média superior e da aristocracia liberal), o democrata radical
(da classe média inferior, parte dos novos industriais, intelectuais e pequena nobreza
descontente) e o socialista (dos ‘trabalhadores pobres’ ou das novas classes operárias
78
industriais) a partir daí define-se uma separação entre os moderados e os radicais. O
contínuo distanciamento em suas perspectivas se consolida após a revolução européia de
1848. Após o duro aprendizado decorrente da derrota o proletariado se convence da
incompatibilidade das suas pretensões com as da burguesia
57
.
A ideologia vitoriosa do liberalismo buscava enaltecer as virtudes de uma
“sociedade aberta” e da mínima intervenção estatal. Mas o resultado da abertura da
instrução ao talento criou, na verdade, uma situação paradoxal:
Ele criou o a ‘sociedade aberta’ da livre competição comercial, mas sim a
‘sociedade fechada’ da burocracia; mas ambas, em suas várias formas, eram
instituições características da era liberal burguesa. O ethos dos cargos mais altos do
serviço civil do século XIX foi fundamentalmente o do iluminismo do século
XVIII: maçônico e ‘josefiniano’ na Europa Central e Oriental, napoleônico na
França, liberal e anticlerical nos outros países latinos, e benthamista na Grã-
Bretanha. A competição era transformada em promoção automática uma vez que o
homem de mérito tivesse efetivamente conquistado seu lugar no serviço; embora a
rapidez e a importância com que um homem fosse promovido ainda dependessem,
na teoria, de seus méritos, a menos que o igualitarismo da corporação impusesse
uma promoção pura em função da idade. À primeira vista, portanto, a burocracia
parecia muito dessemelhante do ideal da sociedade liberal. E, ainda assim, os
homens que exerciam os serviços públicos estavam unidos na consciência de terem
sido selecionados por mérito, numa atmosfera predominante de integridade,
eficiência prática e educação, e nas origens não aristocráticas. Até mesmo a rígida
insistência na promoção automática (...) teve ao menos a vantagem de excluir o
hábito tipicamente aristocrático e monárquico do favoritismo. Nas sociedades em
que o desenvolvimento econômico se arrastava, o serviço público, portanto, fornecia
uma alternativa para a ascensão das classes médias (Hobsbawm, 2007: 268).
Depois de assinalar o significativo aumento percentual dos gastos governamentais
na maioria dos países capitalistas entre 1830 e 1850, Hobsbawm define com precisão a
visão do liberalismo acerca da burocracia:
O aumento dos gastos públicos deveu-se também ao desenvolvimento das
velhas funções e à aquisição de nova por parte dos Estados. Pois é um erro
elementar (não compartilhado por esses protagonistas lógicos do capitalismo, os
‘filósofos radicais’ partidários de Bentham) acreditar que o liberalismo era hostil à
57
“A consciência de classe dos trabalhadores ainda não existia em 1789, ou mesmo durante a Revolução
Francesa. Fora da Grã-Bretanha e da França, ela era quase que totalmente inexistente mesmo em 1848. Mas
nos dois países que personificam a revolução dupla, ela certamente passou a existir entre 1815 e 1848, mais
especificamente por volta de 1830. A própria expressão ‘classe trabalhadora’ (distinta da menos específica ‘as
classes trabalhadoras’) aparece nos escritos trabalhistas ingleses logo após a batalha de Waterloo, e talvez até
mesmo um pouco antes, e nos escritos trabalhistas franceses a expressão equivalente se torna freqüente depois
de 1830” (Hobsbawm, 2007: 292).
79
burocracia. Ele era somente hostil à burocracia ineficaz, à interferência pública em
assuntos que ficariam melhor deixados para a empresa privada, e a tributação
excessiva. O slogan liberal vulgar de um Estado reduzido às atrofiadas funções de
um vigia noturno obscurece o fato de que o Estado destituído de suas funções
ineficazes e inadequadas era um Estado muito mais poderoso e ambicioso do que
antes. (...) Novas ou velhas, as funções governamentais eram desempenhadas cada
vez mais por um único serviço nacional civil constituído de funcionários de carreira
em regime de tempo integral, cujos últimos escalões eram promovidos e
transferidos livremente pela autoridade central de cada país. Entretanto, enquanto
um serviço eficiente deste tipo poderia reduzir o número de funcionários e o custo
da administração através da eliminação da corrupção e do serviço em regime de
meio expediente, ele criava uma máquina governamental muito mais formidável. As
funções mais elementares do estado liberal, como a eficiência da avaliação e da
coleta de tributos por um corpo de funcionários assalariados ou a manutenção de
uma força policial rural, organizada regularmente em termos nacionais, teria
parecido estar além dos sonhos mais loucos da maioria dos absolutismos pré-
revolucionários. Da mesma forma, o nível de tributação. (...) em 1840, os gastos
governamentais na Grã-Bretanha liberal foram quatro vezes tão grandes quanto na
Rússia autocrática (Hobsbawm, 2007: 269-270).
Apesar do expansionismo militar, a maioria dos postos burocráticos era ocupada por
servidores civis. Dentre estes, a situação do subfuncionário, do comerciário e do
escriturário eram modestas, mas “ela se achava muito acima dos trabalhadores pobres. Seu
trabalho não exigia esforço físico. Suas mãos limpas e seus colarinhos brancos os
colocavam, embora simbolicamente, ao lado dos ricos. Normalmente eles carregavam
consigo a magia da autoridade pública” (Hobsbawm, 2007: 271).
Os burocratas compartilharam com a “classe média” a ideologia do progresso.
Contudo, não podiam desenvolvê-la plenamente do ponto de vista liberal, por um lado, e do
ponto de vista socialista, por outro. De um lado, “os radicais ‘homens pequenos’ da Europa
Ocidental e dos Estados Unidos”, não podiam desenvolver até o fim sua radicalidade “pelo
fato de que estas conclusões teriam condenado os pequenos artesãos, os lojistas, os
fazendeiros e os pequenos negociantes a serem transformados ou em capitalistas ou em
trabalhadores”. Já o segundo grupo, “os homens da modesta classe média da Europa
Central e Meridional” se intimidavam “porque eram muito fracos e, depois da experiência
da ditadura jacobina, muito aterrorizados para desafiar o poderio de seus príncipes, de
quem eram, em muito casos, funcionários”. É por esse motivo que a ideologia de ambos
combinava elementos liberais e antiliberais, progressistas e antiprogressistas. Esta
contradição “lhes permitia ver mais profundamente a natureza da sociedade do que os
80
liberais progressivos ou antiprogressivos. Forçava-os no sentido da dialética” (Hobsbawm,
2007: 342-343). A partir daí que podemos entender o desenvolvimento intelectual deste
período:
Entre os intelectuais das classes média e superior, a atitude mais comum,
bem adequada a uma classe em que figuravam tantos servidores civis e professores
a serviço do Estado, era talvez a crença na inevitabilidade do progresso e nos
benefícios do avanço econômico e científico, combinada à crença nas virtudes de
uma administração burocrática de ilustrado paternalismo e um senso de
responsabilidade entre as hierarquias superiores. O grande Goethe, ele mesmo
ministro e conselheiro privado de um pequeno Estado, ilustra esta atitude muito
bem
58
(Hobsbawm, 2007: 344-345).
Ao que parece, estas contradições da ainda jovem sociedade burguesa são
responsáveis pelas últimas formas de representação do pensamento burguês do ponto de
vista progressista e totalizante. Hobsbawm descreve esta ascensão e decadência das
pretensões teóricas burguesas
59
de forma eloqüente:
Assim, o período da revolução dupla viu o triunfo e a mais elaborada
expressão das radicais ideologias da classe média liberal e da pequena burguesia e
sua desintegração sob o impacto dos Estados e das Sociedades que haviam
contribuído para criar, ou pelo menos recebido de braços abertos. O ano de 1830,
que marca o renascimento do maior movimento revolucionário da Europa Ocidental
depois da quietude que se seguiu à vitória de Waterloo, também marca o início de
sua crise. Tais ideologias ainda sobreviveriam, embora bastante diminuídas:
nenhum economista liberal clássico do último período tinha a estatura de Smith ou
de Ricardo (nem sequer J. S. Mill, que se tornou o típico filósofo-economista liberal
britânico da década de 1840); nenhum filósofo clássico alemão viria a ter o alcance
ou o poder de Kant e Hegel; e os girondinos e jaconinos da França de 1830, 1848 e
58
Este trecho da fala do personagem Fausto na obra homônima de Goethe expressa bem as contradições do
homem burguês progressista: “Não fiz mais que através passar do mundo,/ Cada apetite, sem parar fartando;/
O que me não bastava, abandonando;/ Do que escapava não fazia fundo./ Desejei, consegui; de novo ardia/ O
desejo, e assim com energia/ A vida em turbilhão corri; potente/ Outrora, hoje moroso, hoje prudente./ Esta
terrena esfera bem conheço./ E a vista além dela acha tropeço./ Néscio, quem turvos olhos põe mais/ E
sobre as nuvens sonha ter iguais!/ Firme na terra, atente bem em tudo:/ Não é, para quem pensa, o globo
mudo!/ Que ganha em divagar na eternidade?/ Aqui, palpa e conhece a realidade./ Pise pois este solo o
caminhante!/ Se larvas o turvarem, siga avante!/ No progredir terá gozo e tormento;/ Satisfação, porém,
nenhum momento!” (Goethe, Fausto – Ed. Martin Claret, 2004: p. 460)
59
“Há uma perfeita verdade no anúncio surpreendentemente exato, de Hegel, de que a história chegara ao fim.
Mas, o que se anuncia é a morte de uma classes, não a da história. No final do livro, Hegel nos diz, depois de
descrever a Restauração, que ‘este foi o ponto atingido pela consciência’. Isto dificilmente ressoa como um
final. A consciência é a consciência histórica, e quando lemos na Filosofia do Direito que ‘uma forma de vida
envelheceu’, trata-se de uma forma de vida, não de todas elas. Para Hegel a consciência e os propósitos de sua
classe eram evidentes, e não possuíam nenhum princípio novo que servisse ao rejuvenescimento do mundo.
Se tal consciência fosse mesmo a forma final do espírito, então a história teria entrado em um domínio além
do qual não haveria progresso” (Marcuse, 1969: 208).
81
depois disso seriam pigmeus comparados a seus ancestrais de 1789-94. Os Mazzinis
da metade do século XIX não podiam-se comparar de forma alguma com os Jean
Jacques Rousseau do século XVIII. Mas a grande tradição principal corrente de
desenvolvimento intelectual desde a Renascença não morreu; foi transformada em
seu oposto. Marx foi, em estatura e enfoque, o herdeiro dos economistas e filósofos
clássicos. Mas a sociedade da qual ele esperava se tornar profeta e arquiteto era
muito diferente da deles (Hobsbawm, 2007: 349).
Na próxima seção, nossa tentativa é situar parte da riqueza desta abordagem
dialética própria a este momento histórico-intelectual de crise. Através da interpretação
inaugural de Hegel e Marx da função da burocracia na sociedade burguesa revelar-se-iam
as idas e vindas próprias à reflexão teórica em transição, sua potencialidade e limite.
2.2- Estado, sociedade civil e burocracia
Neste momento, como primeiro passo à crítica do “conceito” de burocracia,
abordaremos alguns estudos de Hegel, Marx e Gramsci onde a “questão burocrática” é
delineada.
Os motivos da escolha das obras que forjam a base desta seção podem ser
resumidos em três pontos comuns: o relevo à temática do Estado e da política (em
particular da relação Estado e Sociedade Civil); um conjunto relativamente amplo de
passagens acerca da “burocracia”; e o fato de constituírem, ao nosso ver, obras “em
aberto”, ou seja, obras que constituíram e ainda constituem um campo de muitas
polêmicas.
O primeiro desafio é trazer à luz, sendo coerente ao seu método, a interpretação
hegeliana do Estado, sociedade civil e da burocracia. A obra que sintetiza suas formulações
sobre estas categorias é a Filosofia do Direito de 1821.
Hegel, através de seu método dialético, procura construir uma mimese do Estado
60
e
da sociedade civil-burguesa. Não queremos dizer com isso que suas conclusões ou mesmo
60
Na proposta metodológica de Hegel não uma antecipação de um Estado que ainda não existe, mas a
observação do Estado tal qual existe, em suas contradições: “Conceber aquilo que é, eis a tarefa da filosofia;
pois, aquilo que é, é a razão. (...) É igualmente tolo supor que uma filosofia qualquer ultrapassará o mundo
contemporâneo, como crer que um indivíduo saltará além de seu tempo, cruzará o Rhodus. Se uma teoria, de
fato, ultrapassa esses limites, se constrói um mundo tal como deve ser, este mundo decerto existe, mas apenas
em sua opinião, que é um elemento maleável, podendo tomar qualquer forma” (Hegel, 1997: 36). Isto não
implica que se abandone o movimento dialético das tendências postas na realidade, o problema é que, em
82
que o método que empregou, em sua totalidade, sejam corretos, reafirmamos, porém, o fato
de que, em Hegel, é a categoria da totalidade (ou universalidade) que imprime a dinâmica
61
da explicação acerca da “burocracia”.
Para Hegel a fase em que vivemos (qual seja: a moderna sociedade burguesa)
representa a realização mais acabada da liberdade do Espírito, a fase objetiva da realização
do Espírito no mundo (dos homens). A manifestação desta realização se objetivamente
nas instituições criadas pelos homens a partir de um longo processo histórico. Dentre estas
instituições temos como esferas fundamentais três momentos: a “família”, a “sociedade
civil-burguesa” e o “Estado”.
Todo o seu esforço teórico pauta-se na tentativa de expressar a síntese de momentos
(ontológico-históricos) que, ao seu ver, marcam o avanço da vontade livre; é o esforço de
dar forma moderna a realização da polis grega, passando pela Reforma Protestante e pela
Revolução Francesa.
Mas estes momentos não podem ser compreendidos levando-se em conta uma visão
abstrata, tal qual representa, por exemplo, Sócrates, que é expressão da vontade livre em
uma época que, objetivamente, esta vontade não tinha condições de se realizar; a Religião,
que no Cristianismo tem sua mais acabada expressão de interpretação moral-abstrata do
mundo e, finalmente, os jacobinos, que procuram realizar o ideal da polis grega
objetivamente, mas ainda pautados em princípios abstratos e não numa compreensão
racional que, por sua vez, só a filosofia nos permite alcançar.
Superar esta visão abstrata significa entender estes momentos lógico-históricos na
dinâmica da moderna sociedade burguesa e, neste sentido, o Estado, como realização do
Hegel, essa apropriação intelectual pode se dar a posteriori: “O que o conceito ensina, a história o mostra
com a mesma necessidade: é na maturidade dos seres que o ideal aparece em face do real e, após ter colhido o
próprio mundo em sua substância, o reconstrói na forma de um império de idéias. Quando a filosofia chega
com a luz crepuscular ao anoitecer, uma manifestação da vida acaba de envelhecer. Não se pode rejuvenescê-
la com o cinza sobre cinza, mas apenas conhecê-la. Ao cair das sombras da noite é que alça vôo o pássaro de
Minerva” (Hegel, 1997: 37).
61
“Devemos acrescentar que, antes de Hegel, fora elaborada, pela filosofia alemã, uma filosofia dinâmica,
Kant dissolvera as formas estáticas da realidade dada em um complexo de sínteses da ‘consciência
transcendental’, enquanto Fichte tentara reduzir o dado’ a um ato espontâneo do eu. Hegel nem descobriu a
dinâmica da realidade, nem foi o primeiro a adaptar as categorias filosóficas a este processo. O que ele
descobriu e utilizou foi uma forma definida de dinâmica, e a novidade e significação última da sua gica
repousam neste fato. O método filosófico que ele elaborou buscava refletir o processo efetivo da realidade,
construindo-o de forma adequada” (Marcuse, 1969: 120).
83
momento ético-político, se como superação-conservação do momento particular dos
“interesses egoístas” da sociedade civil-burguesa.
Por isso, é preciso analisar esta expressão da “eticidade” no conjunto das
instituições sociais da era moderna enquanto um sistema que contém “em si” o elemento
universal, e que tem sua forma universal “para si” no Estado moderno (expressão última do
Espírito objetivo).
Neste caminho, Hegel, depois de apresentar a família como a primeira manifestação
desta “eticidade” (manifestação esta que se apresenta de forma imediata enquanto
“relação natural”), adentra na análise da sociedade civil-burguesa.
Poderíamos até mesmo dizer que o autor, nesta seção do livro, se mostra como um
dos primeiros críticos da Economia Política, nos oferecendo uma representação bem
acurada das contradições imanentes a esta sociedade e conduz sua argumentação no sentido
de apreender o que no interior desta manifestação dos interesses privados, das carências,
das contingências, do entendimento e das particularidades se apresenta em sentido de
universalidade.
Daí passa, a partir da contribuição da economia política de seu tempo, a identificá-la
como um “sistema de carências”. Este é o primeiro sentido da constituição da
universalidade na sociedade burguesa, contudo, se apresenta ainda como uma precária
manifestação desta, que ainda dominada pela contingência e pelas vontades particulares.
Este domínio das vontades particulares, para o autor, não constitui propriamente um “mal”,
mas justamente a particularidade desta esfera. Diante disto, se sua particularidade é o
próprio desenvolvimento das vontades particulares, temos como condição necessária, e
como fim da “eticidade” nesta esfera, a expansão exponencial destas particularidades.
Este desenvolvimento nos permite compreender o primeiro momento em que estas
particularidades na sociedade civil-burguesa se apresentam como unidade (ainda “em si”)
destas vontades particulares: é o “estamento”.
O estamento reúne as vontades singulares que no “sistema de carências” têm
carências, meios e modos de satisfação (onde a mediação do trabalho é fundante)
correspondentes. Ele representa a “massas universais”, “sistemas particulares” no interior
deste “sistema de carências”, o homem bipartido que “ora trabalha para o universal, ora
84
para um interesse particular” (Hegel, 2000: 35-36). Podem ser considerados como a
segunda base do Estado (a primeira, como vimos é a família).
Os estamentos se dividem em: 1) estamento camponês e a aristocracia (estado
substancial ou imediato), 2) estamento dos cidadãos industriosos (estado reflexivo ou
formal) e, 3) estamento dos servidores do Estado (estamento universal).
Os primeiros, que possuem uma dependência direta do solo e dos produtos da
natureza para sua subsistência, se particularizam por uma “eticidade imediata, que repousa
na relação familiar e na confiança” (Hegel, 2000: 39).
O “estamento industrioso”, como se caracteriza por dar forma ao produto natural”,
(...) “está remetido ao seu trabalho, à reflexão e ao entendimento, assim como,
essencialmente, à mediação com as carências e os trabalhos dos outros”. Sub-divide-se em:
a) estamento do artesanato (“trabalho voltado concretamente para carências singulares e por
demanda de singulares”, b) estamento dos fabricantes (“massa total mais abstrata do
trabalho para carências singulares”) e c) estamento do comércio (“ocupação voltada para a
troca de meios singularizados entre si principalmente através do meio de troca universal, o
dinheiro”). (Hegel, 2000: 41).
o estamento dos servidores do Estado que “tem por sua ocupação os interesses
universais do estado de sociedade” (...) “é ressarcido pelo Estado que reivindica a sua
atividade, de sorte que o interesse privado encontre sua satisfação no seu trabalho para o
universal”. Pertencem a este estamento: militares, juristas, médicos, religiosos, homens da
ciência, etc (Hegel, 2000: 42).
Após observar esta caracterização temos condições de analisar os conceitos que
em Hegel nos permite investigar o problema da burocracia. Aquilo que chamamos de
“burocracia privada” terá sua expressão no conceito hegeliano de corporação. E o que
denominamos “burocracia estatal” tem tradução hegeliana no conceito de servidores do
Estado (ou funcionário público)
62
.
62
Tragtenberg (2006) nos propõe uma compreensão do “fenômeno burocrático” a partir da distinção lógica de
Hegel entre a burocracia privada (corporação inacabada) e a burocracia pública (burocracia acabada). Tendo
em vista que esta distinção põe em relevo uma questão fundamental no debate que travamos, que é a relação
Estado-Sociedade Civil, usamo-la como ponto de partida. Apesar de na presente seção termos utilizado esta
distinção conceitual por motivos didáticos e expositivos consideramos esta proposição alheia à apreensão
conceitual extraída de Hegel. Na verdade é o Marx de 1843 que utiliza esta expressão para analisar os
conceitos hegelianos e mesmo sendo uma distinção que nos facilita em muito a compreensão para o debate
85
Poderíamos dizer que o conceito de estamento nos permite compreender a posição
social dos indivíduos ou grupos de indivíduos; o conceito de corporação e de
funcionários do Estado a função social dos mesmos (função política-econômica, no caso da
corporação e, essencialmente política, no que se refere aos funcionários do Estado). Para
compreender melhor a função eminentemente mediadora destes conceitos é preciso seguir o
curso da argumentação hegeliana.
Este papel de mediação entre os interesses particulares e o interesse universal se
expressa nos mais diferentes graus e formas e o papel desta “burocracia” é fundamental.
Seriam algumas destas formas mediadoras: a administração da justiça, a polícia e a
corporação (que atuam sobre a particularidade da sociedade civil
63
) e as diferentes formas
de atuação estatal. Dentre estas últimas destaca-se as atividades relativas aos funcionários
públicos.
Analisaremos duas atividades representativas que, na nossa compreensão do texto
de Hegel, ocupam um papel de destaque nesta mediação entre sociedade civil e Estado,
como dissemos, a corporação (burocracia privada) e os servidores do Estado (burocracia
pública).
A corporação representa este papel mediador pelo fato de que ela, ao representar os
interesses particulares, tendo um papel político-econômico na relação dos indivíduos com o
Estado permite, pela primeira vez, a estes membros da sociedade civil, a experiência,
mesmo que restrita, da eticidade “para si”. Na corporação
64
, que reúne os indivíduos
acerca da burocracia, deve ser lembrado que o seu uso para analisar a textualidade hegeliana empobrece sua
compreensão dialética da corporação e dos funcionários de Estado.
63
“O sistema de classes que Hegel esboça como a organização própria à sociedade civil não é por si capaz de
resolver a contradição. A tentativa de unificação exterior entre os indivíduos em competição, através das três
classes – o campesinato, os comerciantes (incluindo-se os artífices, os produtores de manufaturas e os
marchantes), e a burocracia simplesmente repetia as tentativas iniciais de Hegel nesta direção; a idéia soava
de modo menos convincente aqui do que antes. Todas as organizações e instituições da sociedade civil
serviam ‘à proteção da propriedade’ e a liberdade daquela sociedade significava apenas o ‘direito de
propriedade’. As classes deviam ser reguladas por forças externas mais poderosas que os mecanismos
econômicos. Estes preparam a transição à organização política da sociedade. Esta transição ocorre nas seções
sobre a Administração da Justiça, a Polícia e a Corporação” (Marcuse, 1969: 190).
64
“O desgoverno da sociedade civil deve ser controlado por ainda outra instituição, a ‘Corporação’, que
Hegel concebia na linha do antigo sistema de guildas, com alguns traços do moderno estado corporativo. A
corporação é uma unidade econômica e política, com as seguintes funções: 1) unificar os interesses e
atividades competitivas dentro das classes e 2) defender, contra o estado, os interesses organizados da
sociedade civil. A corporação é supervisionada pelo estado, mas visa defender os interesses materiais do
comércio e da indústria. O capital e o trabalho, o produtor e o consumidor, o lucro e o bem-estar geral juntam-
se na corporação, onde os interesses especiais dos sujeitos econômicos estão purificados do mero egoísmo, de
modo que se podem ajustar à ordem universal do estado” (Marcuse, 1969: 195).
86
advindos exclusivamente do estamento da indústria
65
, estes, pela primeira vez,
compreendem e experimentam a autoconsciência de que seus interesses privados somente
se concretizam a partir da intervenção do Estado, ou seja, admitem a necessidade imanente
do momento ético-político na vida da sociedade burguesa. É a consciência do universal que
se expressa a partir de sua organização (em conjunto com os que partilham consigo a
mesma “condição estamental”) para fazer valer seus interesses privados. É a forma
inacabada de subsunção do particular ao universal que terá sua real expressão (ou sua
expressão acabada) no Estado. Além disso, através de sua relação direta com o Estado, a
corporação tem o papel de tornar exeqüível a apresentação das “demandas” da sociedade,
que, se não fossem apresentadas a partir da forma organizada da corporação, apresentar-se-
iam na forma anárquica e violenta advinda da realidade atomística da “multidão” da
sociedade civil (e em particular da plebe).
Noutro extremo, temos os servidores do Estado, que, além das funções mediadoras
no interior do Estado (nas relações com o Monarca no interior do poder governamental
e na relação deste com os outros poderes), tem um papel fundamental na articulação direta
com a corporação, atuando na sua fiscalização e inclusive nas eleições dos seus
representantes (já que o governo tem o direito à indicação de parte destes). Hegel, neste
ponto é bem concreto: que o Estado tem de fazer valer os interesses universais na
sociedade civil, ele necessita de indivíduos destinados a tão nobre tarefa. E este é o papel
dos funcionários públicos: devem, através de seu saber e sua prática, conduzir a sociedade
ao elevado patamar da universalidade
66
.
Por hora queremos salientar duas questões em torno da análise sobre a “burocracia
privada e pública” contida na Filosofia do Direito.
65
que o “estamento agrícola tem imediatamente nele mesmo, na substancialidade da sua vida familiar e
natural, o seu universal concreto” e o “estamento universal tem na sua destinação o universal para si por fim
de sua atividade e por seu solo”. “O termo-médio entre ambos, o estamento da indústria, está essencialmente
dirigido ao particular e, portanto, a corporação é antes de tudo própria a esse estamento” (Hegel, 2000: 85).
66
O papel que Hegel delega ao funcionalismo estatal é absolutamente vinculado a um sentido laico e
revolucionário presente no ideário da Revolução Francesa. É um exemplo deste ideário a proposta dos
Institutos franceses: “O instituteur francês, pobre, abnegado, ensinando a seus alunos em cada aldeia a
moralidade romana da Revolução e da República, antagonista oficial do vigário da aldeia, não triunfou aa
Terceira República, que também resolveria os problemas políticos de instaurar uma estabilidade burguesa
sobre os princípios da revolução social, pelo menos durante 70 anos. Mas ele já estava prefigurado na lei de
Condorcet de 1792, que estabelecia que ‘as pessoas encarregadas da Instrução nas classes primárias serão
chamadas de instituteurs’, fazendo eco com Cícero e Salústio que falavam na ‘instituição do Estado’
(instituere civitatem) e na instituição da moralidade do Estado’ (instituere civitatum mores)” (Hobsbawm,
2007: 306).
87
A obra de Hegel condensa um grande avanço na perspectiva de análise da sociedade
moderna, já que, ao não separar – num plano epistemológico – uma esfera racional-abstrata
e outra científica-empírica, nos permite a compreensão da sociedade em sua integralidade,
onde os conceitos se apresentam por meio de mediações sucessivas e buscam reproduzir o
movimento próprio à existência efetiva do objeto
67
. E esta ontologia hegeliana
68
, no que se
refere à obra em questão, tem no que aqui mal caracterizamos como “burocracia” uma
mediação privilegiada dos conceitos de Estado e sociedade civil-burguesa. Estes conceitos,
para o autor, não aparecem como momentos simplesmente opostos ou antagônicos per se: a
verdade destes está justamente no seu movimento
69
, no seu vir-a-ser permanente
70
.
Deste modo podemos entender a tarefa da burocracia no projeto hegeliano como um
permanente ativismo em prol da expressão racional do estado burguês. Ele acredita que esta
forma de expressão estatal é a mais acabada e fim último da expressão da liberdade. Isso
não contradiz o fato dele acreditar num constante vir-a-ser no interior desta própria forma
social. O Ser não corresponde imediatamente à sua real expressão, e, se a forma burguesa já
se apresenta como forma real, falta que ela se expresse cada vez mais em sua
autoconsciência em seu conceito. Esta é uma tarefa da “burocracia”, que ela (como
ironiza Marx, sintetizando a fórmula de Hegel) possui a propriedade privada “da essência
do Estado, da essência espiritual da sociedade” (Marx, 2005: p. 66). Marx criticará esta
definição, como veremos adiante.
Mas antes de entrar na crítica marxiana gostaríamos de chamar a atenção para uma
insuficiência de Hegel no que se refere à contribuição que pretendemos extrair para analisar
67
“Os primeiros escritos de Hegel haviam mostrado que seu ataque à separação tradicional entre
pensamento e realidade implicava muito mais do que uma crítica epistemológica. Hegel acha que tal dualismo
equivale à submissão ao mundo como ele é, e à fuga do pensamento diante da sua alta tarefa de conduzir a
ordem existente da realidade à harmonia com a verdade. A separação entre pensamento e ser implicava em
que o pensamento se retraísse diante das invectivas do ‘sendo comum’. Se, então, podemos atingir a verdade,
a influência do senso comum deve ser afastada e, com ela, as categorias da lógica tradicional, que, feitas as
contas, são categorias filosóficas do senso comum que estabilizam e perpetuam uma falsa realidade. E a tarefa
de anular o senso comum pertence à lógica dialética” (Marcuse, 1969: 120-121).
68
“Kant sustentava que, antes de falar sobre o ser, nós devíamos enfrentar a questão preliminar do
conhecimento. Deveríamos começar por perguntar: o que significa conhecer? Hegel, porém, discordava de
Kant e advertia que, até para poder indagar concretamente o que é o conhecimento, precisamos ter uma
certa concepção do ser, que está implícita no “é” da indagação” (Konder, 1991: 46).
69
“A visão monista-integradora de Hegel sustenta que entre as duas entidades sociais há apenas uma
discordância exterior, fenomênica; que os fins imanentes de ambas, contudo, se identificam e, por isso, o
conflito aparente resolve-se pelo próprio desenvolvimento do processo social; o movimento dialético da
essência alcança e realiza a identidade subjacente na aparente contradição” (Sampaio e Frederico, 2006: 91).
70
“No tornar-se o ser assume sua negação interior, a contraditoriedade que existe dentro dele, que lhe
imprime movimento e o faz viver. Ser e nada, então, aparecem como nascer e perecer” (Konder, 1991: 46).
88
a “burocracia”. Hegel, particularmente em relação ao conceito de estamento e corporação,
trabalha com uma concepção em que mescla elementos da sociedade burguesa moderna e
elementos que dizem respeito à transição do feudalismo ao capitalismo. Por isso, a
corporação tem para ele uma função que reúne o sentido político e econômico
71
. Além
disso, e o que é mais grave, é que, diante dos limites históricos
72
, ele não pôde apreender
com mais clareza o que Marx tratará como “anatomia” da sociedade civil e, por isso, no que
se refere à corporação (e no geral), não pôde identificar, de forma nítida, uma distinção
fundamental entre proletários e burgueses no estamento da indústria. Isto o levou a
representá-los juntos numa única organização corporativa
73
.
O curioso é que somente por causa deste “erro” de Hegel faz sentido o papel
mediador da corporação e a sua lógica (sociedade civil-burocracia-Estado) mantém-se
inabalada.
Para melhor apreender a crítica de Marx às noções hegelianas sobre o Estado e a
“burocracia” precisamos apresentar, resumidamente, sua trajetória juvenil.
Marx, antes de sua Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, situa-se justamente no
espectro das polêmicas dos jovens hegelianos de seu tempo. Estes jovens, que depositaram
suas esperanças na ascensão de Frederico-Guilherme IV na Prússia, em 1840, como a
possibilidade de “transformação da Prússia em Estado racional”, imediatamente tiveram
suas expectativas frustradas, já que além de não vivenciarem as liberdades democráticas e
as reformas liberais que esperavam, presenciaram a perseguição do Estado prussiano aos
neo-hegelianos que ainda tinham um espaço significativo no meio universitário e foram
retirados dos seus cargos. A alternativa de Marx, que anteriormente tinha o projeto de se
tornar professor universitário, foi partir para o caminho profissional no jornalismo. Daí se
vincula, em 1842, ao empreendimento jornalístico da burguesia renana: A Gazeta Renana.
71
Apesar dos paralelos que podem ser feitos, o papel que os sindicatos representam, enquanto representação
política dos trabalhadores, na dinâmica econômica, como apontará mais tarde Marx, é bem diferente da
caracterização da corporação hegeliana.
72
Talvez até mesmo por conta do atraso do desenvolvimento econômico alemão, ainda uma forte presença
das corporações (no sentido pré-capitalista) na Alemanha deste período. Nestas, ao contrário do capitalista e
proletário, encontraremos o mestre artesão e o aprendiz. Mas, tendo em vista que Hegel diferencia o
“estamento do artesanato” do “estamento dos fabricantes”, podemos assegurar que ele, mesmo mantendo uma
dubiedade na sua formulação, já está atento para as mudanças nas relações sociais internas a esta forma social.
73
Hegel faz um interessante esforço de compreensão desta “anatomia” na sub-seção referente à Polícia e a
Corporação, em particular nos parágrafos 243, 244 e 245 (Hegel, 2000: 80-81), mas a leitura da economia
política de seu tempo, a precária organização propriamente dita do proletariado neste período, e sua visão de
classe, ainda não lhe permite identificar esta relação fundamental.
89
Nos artigos da Gazeta, pela primeira vez, Marx, como ele mesmo dirá mais tarde,
vai se deparar com as “questões materiais”. Mas este trato marxiano tem ainda uma forte
influência hegeliana. Ele nos mostra diferentes facetas nestes artigos desde um momento
mais liberal democrático, quando trata dos debates acerca da liberdade de imprensa na
Dieta renana, até um momento “mais hegeliano”, nos artigos sobre os roubos de madeira
(no que se refere à concepção do Estado). Diante destes dilemas “materiais” o jovem Marx
inicia um movimento de incorporação-superação das concepções de seus pares neo-
hegelianos, o que vai desembocar, num momento posterior, com a descoberta do
protagonismo do proletariado e a conseqüente expressão teórica de suas lutas: o marxismo.
No que se refere à sua concepção do Estado e da sociedade civil-burguesa vemos
Marx, em 1842, reafirmar a visão hegeliana que supõe uma diferenciação da sociedade civil
como uma esfera dos interesses particulares e do Estado como representante dos interesses
universais, mas podemos salientar pequenas conotações que o diferenciam. É nítido o
destaque depreciativo que ele inclui na caracterização da sociedade civil: “mesquinha”,
“estúpida” e “egoísta" são alguns dos adjetivos que a caracterizam. Por outro lado, o Estado
continua, tal como em Hegel, a expressão e resolução definitiva e universal destas
particularidades.
Mas quando se trata da relação entre os dois temos mais uma novidade: é o caráter
de oposição e não o de mediação entre as duas esferas que é salientado por Marx
74
. Michael
Löwy nos propõe três motivos para interpretação desta característica no trato marxiano da
sociedade civil e do Estado:
a) O considerável desenvolvimento dos interesses privados burgueses na
Alemanha desde a época em que Hegel escrevera os Princípios de filosofia do
direito (1820); b) A recusa por Marx das soluções hegelianas do conflito Estado-
Sociedade civil: corporações, burocracia, etc.; c) A influência do socialismo francês
e de Moses Hess (crítica da propriedade, do egoísmo, etc.) (Löwy, 2002: 63).
Outro ponto que distingue Marx de Hegel neste período é o seu posicionamento em
favor dos “pobres” (artigo sobre o roubo de madeira)
75
. Se compararmos as referências de
74
“Marx busca demonstrar que a oposição das duas entidades não é aparente, mas sim essencial, que se trata
de uma diferença na qual o lugar para nenhum movimento de identificação e que, em verdade, os
círculos civis e o Estado na sociedade moderna opõem-se em seus fins imanentes” (Sampaio e Frederico,
2006: 92).
75
“‘Sofrimento privado’, ‘interesse particular’, ‘populacho privado’: tantas expressões que nos mostram o
quanto Marx estava ao lado dos pobres (todo seu artigo sobre os roubos de madeira é uma defesa corajosa,
90
Hegel, na “Filosofia do Direito”, à plebe
76
, ao posicionamento do jovem hegeliano,
podemos notar um distinto posicionamento de classe entre ambos e o início de um
processo, ainda bem embrionário, de consciência de classe na trajetória marxiana.
A censura aos jornais críticos ao Estado Prussiano e a atitude de concessão da
burguesia renana diante dos fatos leva Marx a uma fase de “disponibilidade teórica” e de
crítica às concessões que fizera no passado. Estes fatos não ficam alheios à sua reflexão
teórica. A publicação das “Teses Provisórias”, por Feuerbach, é o ingrediente a mais que
permite a construção de sua crítica à filosofia de Hegel. Ele procura, a partir de Feuerbach,
criticar este Estado, que não é mais visto, pelos jovens hegelianos, como esperança de
realização do universal. O que a filosofia do primeiro critica em relação às concepções
“religiosas” da lógica de Hegel
77
, Marx o fará acerca das concepções “religiosas” do Estado
hegeliano.
Na sua Crítica da Filosófica do Direito de Hegel Marx reapresenta a relação
entre Sociedade civil e Estado como uma relação entre uma esfera concreta-empírica-real-
particular a outra esfera abstrata-espiritual-irreal-universal. Apresenta ainda uma dubiedade
característica, pois ora nega o Estado enquanto realidade conceitual e ao mesmo tempo
nega o método dialético hegeliano, ora nega a concepção de Estado hegeliano se valendo
das próprias contradições hegelianas e dos próprios conceitos deste e, neste sentido,
reafirma o seu método, superando-o. Nesta obra, portanto, a presença feuerbachiana é
inflamada e indignada dos miseráveis perseguidos e explorados pelos proprietários das florestas), mas ainda
prisioneiro do esquema hegeliano da superioridade dos assuntos espirituais e gerais do Estado sobre os
assuntos materiais e particulares da esfera privada. Ademais, Marx na miséria dos camponeses apenas seu
aspecto passivo: a penúria, as carências, o sofrimento deles” (Löwy, 202: 64).
76
Leandro Konder nota o viés elitista da formulação hegeliana: “Hegel confiou demais na competência e
isenção dos burocratas, na independência dos servidores do Estado, para conter as manobras dos grandes
interesses particulares, empenhados em manipular o aparelho do Estado em proveito próprio. E o que é pior
– na medida em que seu medo das massas populares o comprometia com uma perspectiva elitista e o levava a
opor-se ao aumento da participação da ‘plebe’ nas opções da direção do Estado, o filósofo privava os
funcionários mais ‘democráticos’ do único apoio material, concreto, que eles poderiam ter para enfrentar
eficazmente a pressão das corporações e dos grandes proprietários privados" (Konder, 1991: 94-95).
77
Feuerbach afirmará que a lógica hegeliana é a teologia reconduzida à razão e ao presente, a teologia feita
lógica. Assim como o ser divino da teologia é a quinta essência ideal ou abstrata de todas as realidades, isto é,
de todas as determinações, de todas as finidades, assim também a lógica (...); na filosofia hegeliana, cada
coisa é-nos dada duas vezes: como objeto da lógica e, em seguida, novamente como objeto da filosofia da
natureza e do espírito” (Feuerbah, ---: 21). Nãoessa passagem mas um conjunto muito amplo de passagens
desta obra pode ser cotejado com as de Marx de 1843 e se observará a nítida vinculação das duas obras. Para
garantir um curso mais dinâmico à nossa exposição consideramos desnecessária a referência a cada uma
delas.
91
determinante, mas momentos em que ele esboça uma superação a esta presença
(através do próprio Hegel).
No que nos interessa, que é a crítica à “mediação burocrática” na relação entre o
Estado e a Sociedade civil, em primeiro lugar, destaca-se a famosa “inversão” da teoria
hegeliana: “o Estado político não pode ser sem a base natural da família e a base artificial
da sociedade civil; elas são, para ele, conditio sine qua non. Mas a condição torna-se o
condicionado [na teoria de Hegel], o determinante torna-se o determinado, o produtor é
posto como o produto de seu produto” (Marx, 2005:.30-31)
Marx que faz importantes críticas à textualidade hegeliana, principalmente no que
diz respeito àquilo em que ela se prende ainda ao passado, como por exemplo, a elementos
“naturais” que constituem a soberania do monarca e os direitos da “nobreza”
78
–, no que diz
respeito à burocracia, entende que “Hegel nos dá uma descrição empírica da burocracia, em
parte como ela realmente é, em parte segundo a opinião que ela tem de seu próprio ser” e
neste sentido a relação entre “burocracia”, Estado e Sociedade civil em Hegel é resumida
desta forma por Marx:
Hegel parte da separação entre ‘Estado’ e sociedade ‘civil’, entre os
‘interesses particulares’ e o ‘universal que é em si e para si’, e a burocracia está, de
fato, baseada nessa separação. Hegel parte do pressuposto das ‘corporações’ e, de
fato, a burocracia pressupõe as corporações, ao menos o ‘espírito corporativo’.
Hegel não desenvolve nenhum conteúdo da burocracia, mas apenas algumas
determinações gerais de sua organização ‘formal’ e, certamente, a burocracia é
apenas o ‘formalismo’ de um conteúdo que está fora dela.
As corporações são o materialismo da burocracia e a burocracia é o
espiritualismo das corporações. A corporação é a burocracia da sociedade civil; a
burocracia é a corporação do Estado. Por isso, na realidade, ela se defronta, na
condição de ‘sociedade civil do Estado’, com o ‘Estado da sociedade civil’, com as
corporações (Marx, 2005, 64-65).
A descrição de Marx em relação às definições de Hegel é realmente precisa, mas o
fato é que o termo “burocracia” , como temos usado até o momento, não aparece em Hegel
e é utilizado por Marx por dois motivos: no sentido de explicitar didaticamente os
78
E para isso ele se utiliza, como falamos, das contradições e conceitos do próprio Hegel. Marx neste escrito
prioriza a crítica aos aspectos conservadores da textualidade hegeliana, mas Marcuse, por exemplo, nota para
a contradição presente nesta obra: “A Filosofia do Direito, de Hegel, deve grande parte da sua importância ao
fato de seus conceitos básicos absorverem e conservarem conscientemente as contradições desta sociedade,
seguindo-as até o amargo fim. A obra é reacionária na medida em que a ordem social que reflete o é, e
progressista na medida em que aquela ordem é progressista” (Marcuse, 1969: 167).
92
momentos de mediação que Hegel apresenta entre sociedade civil e Estado (corporação e
funcionários de Estado), e, de forma pejorativa. Ou seja, Marx, descredenciando o papel
“universalizador” das corporações e dos servidores, procura abrir caminho para a crítica
que vai apresentar à função que Hegel delega à burocracia e neste sentido negar a validade
real desta mediação e, por conseguinte, da própria relação Estado-Sociedade civil como
momentos mediados. O que Marx pretende com isso é, justamente, indicar, ao contrário de
mediação, o sentido de oposição (não-mediada) que subjaz ao conceito de burocracia
79
. Ao
contrário do caminho à universalidade e à expressão da realidade do Estado, a burocracia
indicaria justamente a sua alienação. Ela constitui “uma rede de ilusões práticas, ou seja, a
ilusão do Estado” (Marx, 1995: 65).
Marx também vai dedicar parte significativa de suas notas numa crítica à concepção
de estamento e da representação político-estamental. Refere-se a alguns conceitos
hegelianos que possuem um certo anacronismo e, dessa forma, ao analisar o conceito de
estamento, Marx nos revela o sentido em que apreende a modernidade:
O estamento não se baseia, como lei geral, na separação da sociedade,
como também separa o homem de seu ser universal, faz dele um animal que
coincide imediatamente com sua determinidade. A Idade Média é a história animal
da humanidade, sua zoologia
80
.
A era moderna, a civilização, comete o erro inverso. Ela separa do homem o
seu ser objetivo, como um ser apenas exterior, material. Ela não toma o conteúdo do
homem como sua verdadeira realidade (Marx, 1995: 98).
É clara nesta passagem a presença da categoria da alienação tal qual exprime
Feuerbach
81
. Ao aplicar esta categoria à filosofia do Estado, Marx dirá que “O homem real
é o homem privado da atual constituição do Estado
82
” , pois,
79
“Portanto, a burocracia traz consigo, como corporação acabada, a vitória sobre a corporação, como
burocracia inacabada. Ela rebaixa a corporação a uma aparência e quer rebaixá-la a esta condição, ao mesmo
tempo que pretende que esta aparência exista e creia em sua própria existência. A corporação é a tentativa da
sociedade civil de se tornar Estado; mas a burocracia é o Estado que se fez realmente sociedade civil.” (Marx,
2005:.65)
80
Percebe-se que esta primeira parte da definição ele mantém até a sua maturidade, quando em O Capital
afirma: Castas e corporações derivam da ação da mesma lei natural que regula a diferenciação das plantas e
animais em espécies e subespécies, com a diferença de que a hereditariedade das castas e a exclusividade das
corporações são decretadas como lei social logo que se atinge determinado grau de desenvolvimento” (Marx,
1985: 390). O conceito de alienação, por sua vez, tem modificações significativas na sua maturidade.
81
A crítica feuerbachiana à alienação religiosa leva-o a identificar no método hegeliano a presença desta
alienação: “A essência da teologia é a essência do homem, transcendente, projetada para fora do homem; a
essência da lógica de Hegel é o pensamento transcendente, o pensamento do homem posto fora do homem
(Feuerbach, -----: 21). “É fácil reconhecer até mesmo nessas primeiras observações o alinhamento do jovem
93
[suas] determinações na sociedade civil aparecem como inessenciais ao
homem, ao indivíduo, como determinações exteriores, que, na verdade, são
necessárias à sua existência no todo, isto é, como um vínculo com o todo, mas um
vínculo do qual ele pode muito bem prescindir. (A atual sociedade civil é o
princípio realizado do individualismo; a existência individual é o fim último; a
atividade, trabalho, conteúdo etc., são apenas meio.) (Marx, 2005: 98).
Marx, que nesse momento é um democrata radical, depois de tratar longamente as
contradições presentes na fundamentação de Hegel acerca do poder legislativo, têm na
proposta da expansão e máxima generalização do sufrágio (questões, neste momento,
presentes embrionariamente no debate político francês e inglês, porém distantes da
realidade alemã) uma proposta de resolução da alienação estatal:
A eleição é a relação real da sociedade civil com a sociedade civil do poder
legislativo, com o elemento representativo. Ou seja, a eleição é a relação imediata,
direta, não meramente representativa, mas real, da sociedade civil com o Estado
político (...) A reforma eleitoral é, portanto, no interior do Estado político abstrato, a
exigência de sua dissolução, mas igualmente da dissolução da sociedade civil
(Marx, 2005: 135).
Dessa forma se concretiza, para o Marx de 1843, a democracia enquanto
autodeterminação do povo:
Os franceses modernos concluíram, daí, que na verdadeira democracia o
Estado político desaparece. O que está correto, considerando-se que o Estado
político, como constituição, deixa de valer pelo todo.
Em todos os Estados que diferem da democracia o que domina é o Estado, a
lei, a constituição, sem que ele domine realmente, quer dizer, sem que ele penetre
materialmente o conteúdo das restantes esferas não-políticas. Na democracia, a
constituição, a lei, o próprio Estado é apenas uma autodeterminação e um conteúdo
particular do povo, na medida em que esse conteúdo é constituição política (Marx,
2005: p.51).
Desaparece, dessa forma, o conteúdo abstrato do Estado, e tal qual a alienação
religiosa tem seu fim com a “realização da filosofia” (em Feuerbach), a “alienação política”
Marx de 1843 ao ponto de vista feuerbachiano: ele aplica à teoria hegeliana do Estado a refutação global à
filosofia e à lógica de Hegel contida na então nova e revolucionária ‘teoria da alienação’ de Feuerbach.
Podemos, pois, presumir que, se Hegel, como dizia Marx, fazia nascer da lógica toda a teoria do Estado, como
Minerva da cabeça de Júpiter, Marx retirava do combativo pensamento geral de Feuerbach toda a crítica que
brandia contra aquela mesma teoria do Estado contida na Filosofia do Direito(Sampaio e Frederico, 2006:
100).
82
“Marx, que, apoiado na doutrina do segundo [Feuerbach] e aplicando-a a um ‘ente terrestre’, denuncia o
Estado como o fim universal usurpado da sociedade civil, fora do seu controle, agindo como um falso sujeito
autônomo oposto à sociedade civil” (Sampaio e Frederico, 2006: 100).
94
tem aqui seu fim com a “realização da democracia”. Mas falta-lhe ainda o agente que levará
a cabo este projeto. Não é a “burocracia hegeliana”, que, com o fim do conteúdo alienado
do Estado, perde sua razão de ser. Esta realização só se dá quando as “armas intelectuais da
filosofia” encontram as “armas materiais do proletariado” (Marx, 2005: 156).
A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução será o primeiro texto em que
em Marx aparece a figura do proletariado. Mas é ainda um conceito muito marcado pela
filosofia de Feuerbach. Poderíamos dizer que este importante ator, que vai se constituir em
protagonista no conjunto da obra de Marx a partir daí, nesta primeira aparição tem um
papel de ator coadjuvante, ao lado do filósofo. Nesta obra Marx não tematiza o papel da
burocracia, mas ao resumir, em poucas páginas, todo o sentimento crítico em relação aos
dilemas alemães de seu tempo diferentemente da proposição simplesmente democrática
que se limitava até então – encara o problema da revolução.
Os jovens hegelianos, muitos dos quais tinham na experiência revolucionária
francesa um ideal para Alemanha, não obtiveram da realidade a resposta esperada, pois a
burguesia alemã, como afirma Marx, não possuía a “audácia revolucionária” que “um
estamento que seja reconhecido como o estamento de toda a sociedade” pode ter, pelo fato
de “concentrar em si todos os males da sociedade”, o “estamento da opressão”,
uma classe que tenha cadeias radicais, de um estamento que seja a
dissolução de todos os estamentos, de uma esfera que possua caráter universal
porque os seus sofrimentos são universais e que não exige uma reparação particular
porque o mal que lhe é feito não é um mal particular, mas o mal em geral” (...) “por
fim, de uma esfera que não pode emancipar-se a si mesma nem se emancipar de
todas outras esferas da sociedade sem emancipá-las a todas o que é, em suma, a
perda total do homem. A dissolução da sociedade, como classe particular, é o
proletariado (Marx, 2005: 156).
O que em outro momento aparecia como emancipação da alienação política,
aparece aqui claramente como emancipação social, emancipação humana, o que era
identificado como sociedade civil, como povo, de forma indeterminada, agora aparece
como uma classe “universal”.
Repare, ao que parece, o ciclo se completa: o que para Hegel se expressava no
Estado enquanto o universal e tinha na burocracia os seus dominicanos
83
, encontra agora na
83
“(...) os ‘cães de Deus’ (em latim domini canes, expressão que se confunde com dominicanos)” (BEER, M.
A História do Socialismo e das Lutas Sociais. 1ª Edição São Paulo Ed. Expressão Popular: 2006, p. 176).
95
filosofia “a cabeça” e no proletariado “o coração
84
(Marx, 2005: 156) e pode ser levada
a cabo através de uma revolução. Esta revolução se diferencia da burguesa por não se tratar
de uma revolução parcial, mas da emancipação humana universal (Marx, 2005: 154). Mas
não é bem verdade que o ciclo esteja completo, pois, se notarmos bem para os pontos de
contato com Feuerbach, veremos que o conjunto destas categorias ainda não ultrapassa o
sentido de um humanismo radical e, se notarmos para o desenvolvimento posterior de
Marx, perceberemos que a definição de proletariado aqui exposta ainda é bastante diversa
daquele conceito que, em O Capital, expressa uma negação ontológica ao capital e portanto
a si mesmo.
Mas com esta contribuição pudemos perceber o seguinte: somente a partir do
desenvolvimento desta categoria (do proletariado) e, por conseguinte, do desvelamento da
“anatomia da sociedade civil” e de sua contradição fundamental a oposição entre
burguesia e proletariado que obteremos as repostas necessárias à “questão burocrática”,
pois, até aqui, e como veremos, também em Gramsci, esta oposição apresentar-se-á ainda
de forma nebulosa, a partir da oposição entre Estado e Sociedade civil.
Sabe-se que apesar da oposição Estado/Sociedade civil não constituir uma
“oposição irreal” como Marx apresenta-a em 1843, ela certamente perde o caráter de
antítese fundamental para a análise da realidade social na obra marxiana madura, e não
pelo fato dele ter se dedicado especificamente à crítica da economia política e por isso
não ter dedicado esforços intelectuais mais detidos nas questões políticas –, mas pela
“descoberta” precisa de Marx da oposição central “capital-trabalho”. A partir dessa
compreensão o Estado deixa de ser entendido como fim e passa a constituir-se
ontologicamente como meio (para a garantia da existência da propriedade privada na
sociedade capitalista e para o seu fim na sociedade socialista, em direção à comunista).
Gramsci propõe um resgate de Hegel e de Marx, que compreende uma conservação-
superação de ambos, ao retomar a questão da relação Estado/Sociedade-civil hegeliana e
“O espírito burocrático é um espírito profundamente jesuítico, teológico. Os burocratas são os jesuítas do
Estado, os teólogos do Estado. A burocracia é a république prête” (Marx, 2005: 65).
84
Mas uma vez vemos a presença da influência de Feuerbach. Este, antes de Marx, havia dito: “O coração
princípio feminino, o sentido do sensível, a sede do materialismo é de inspiração francesa; a cabeça o
princípio masculino, a sede do idealismo – é de inspiração alemã. O coração faz revoluções, a cabeça
reformas; a cabeça põe as coisas em posição, o coração põe-nas em movimento” (Feuerbach, ---: 29). Mas
esta não é a única relação, pois a influência perpassa grande parte da textualidade de Marx.
96
incorporar nesta mediação o papel da moderna organização sindical e partidária. Dirá ele,
em sua nota sobre Hegel e o associacionismo:
A doutrina de Hegel sobre os partidos e associações como trama ‘privada’
do Estado. Ela deriva historicamente das experiências políticas da Revolução
Francesa e devia servir para dar um caráter mais concreto ao constitucionalismo.
Governo com o consenso dos governados, mas com consenso organizado, não
genérico e vago tal como se afirma no momento das eleições: o Estado tem e pede o
consenso, mas também ‘educa’ este consenso através das associações políticas e
sindicais, que, porém, são organismos privados, deixados à iniciativa privada da
classe dirigente. Assim, em certo sentido, Hegel já supera o puro constitucionalismo
e teoriza o Estado parlamentar com seu regime dos partidos. Sua concepção da
associação não pode deixar de ser ainda vaga e primitiva, entre o político e o
econômico, segundo a experiência histórica da época, que era muito restrita e dava
um só exemplo acabado de organização, o ‘corporativo’ (política enxertada na
economia).
Marx não podia ter experiências históricas superiores às de Hegel (ao menos
muito superiores), mas tinha sentido das massas, por sua atividade jornalística e de
agitação. O conceito de organização em Marx ainda permanece preso aos seguintes
elementos: organização profissional, clubes jacobinos, conspirações secretas de
pequenos grupos, organização jornalística
85
(Gramsci, 2007: 119-120).
Gramsci, que apreende o debate da política levando em consideração a necessária
relação entre economia (estrutura) e política (superestrutura) presentes na análise marxiana
da sociedade burguesa, incorpora de Hegel a preocupação da necessidade de uma reforma
intelectual e moral como complemento às transformações políticas. Em Hegel esta tarefa
(na verdade poderíamos chamar de ética e não moral) tratar-se-ia da “adaptação” da forma-
burguesa ao conteúdo racional ético-político estatal e por isso atenta para a necessidade
85
Gramsci continua na nota explicando a contextualização histórica destas organizações: “A Revolução
Francesa oferece dois tipos predominantes: os clubes, que são organizações não rígidas, do tipo ‘assembléia
popular’, centralizadas por individualidades políticas, cada uma das quais tem seu jornal, com o qual mantém
despertos a atenção e o interesse de uma determinada clientela pouco nítida nas margens, mas que defende as
teses do jornal nas reuniões do clube. Decerto, entre os freqüentadores dos clubes deviam existir grupos
restritos e selecionados de pessoas que se conheciam reciprocamente, que se reuniam em separado e
preparavam a atmosfera das reuniões para apoiar uma ou outra corrente, de acordo com o momento e também
de acordo com os interesses concretos em jogo. As conspirações secretas, que em seguida tiveram tanta
difusão na Itália antes de 1848, desenvolveram-se na França, depois do Termidor, entre os seguidores de
segundo plano do jacobinismo, com muitas dificuldades no período napoleônico, por causa da atenta
vigilância da polícia, com mais facilidade de 1815 a 1830 sob a Restauração, que foi bastante liberal na base e
não tinha certas preocupações. Neste período que vai de 1815 a 1830, verificou-se também a diferenciação do
campo político popular, que se revela bastante significativa nas ‘gloriosas jornadas’ de 1830, nas quais
afloram as formações que se constituíram nos quinze anos anteriores. Depois de 1830 a até 1848, este
processo de diferenciação se aprofunda e, com Blanqui e Filippo Buonarroti, gera tipos bastante definidos”.
“É difícil que Hegel pudesse ter conhecido de perto estas experiências históricas, que ao contrário, eram mais
vivas em Marx” (Gramsci, 2007: 119-120).
97
de incorporação por parte do Estado da compreensão “filosófica” do mundo, o que para ele
seria um resultado de um processo em curso. Em Gramsci esta preocupação pode ser
caracterizada como um fator decisivo no processo de conquista da “hegemonia”, ou seja,
como necessidade imprescindível na construção da luta político-revolucionária, como na
manutenção e ou transformação da ordem social existente.
Ambos encontram na crítica ao “jacobinismo” um ponto fundamental para o
desenvolvimento desta formulação.
Hegel critica-o pelo fato de que este fenômeno representaria uma incorporação
ainda abstrata dos princípios da vontade livre, o que levara a uma ação política “terrível” e
“chocante
86
” .
Gramsci entende que o conceito de “revolução permanente” predomina nas
organizações revolucionárias até 1870 e é “expressão cientificamente elaborada das
experiências jacobinas de 1789 ao Termidor”. Por isso, após 1870 é que, nos países
desenvolvidos, “as relações de organização internas e internacionais do Estado tornam-se
mais complexas e robustas; e a fórmula da ‘revolução permanente’, própria de 1848, é
elaborada e superada na ciência política com a fórmula de ‘hegemonia civil’” (Gramsci,
2007: 24). Para ele, portanto, no contexto em que o Estado constrói a hegemonia através da
conjugação de uma política coercitiva a uma construção de consensos, entra em ação, com
maior potência que em outros momentos, o fator da luta ideológica. Daí a necessidade da
incorporação do debate da reforma intelectual e moral por parte das organizações
revolucionárias, assim como da mudança na “temporalidade” e “dinâmica” da luta política:
“Ocorre na arte política o que ocorre na arte militar; a guerra de movimento torna-se cada
vez mais guerra de posição; e pode-se dizer que um Estado vence uma guerra quando a
prepara de modo minucioso e técnico no tempo de paz” (Gramsci, 2007: 24).
86
“Tendo prosperado e se tornado poder, essas abstrações, por essa razão, por um lado proporcionaram, desde
que temos memória do gênero humano, o primeiro espetáculo prodigioso de instaurar inteiramente a partir do
princípio e do pensamento a constituição de um grande Estado efetivamente real, subvertendo tudo o que
subsistia e estava dado, e de querer dar-lhe como base apenas o pretensamente racional; por outro lado,
porque não eram senão abstrações desprovidas de idéia, elas converteram essa tentativa no mais terrível e
chocante acontecimento” [nota 6 ao parágrafo 258] (Hegel, 1998, 28). Mais tarde, em sua História da
Filosofia, seu medo persiste. Leandro Konder, ao analisar esta obra, comenta que, apesar dos seus elogios à
Revolução Francesa, Hegel “advertia, contudo, para os riscos decorrentes do entusiasmo excessivo pela
liberdade, quando esse entusiasmo se dissemina entre as massas populares. Dizia: o fanatismo da liberdade,
posto nas os do povo, tornou-se apavorante’. O fantasma do jacobinismo continuava a assustá-lo”
(Konder, 1991: 84).
98
Essa semelhança com a formulação hegeliana é a mesma que faz com que Gramsci
recupere a concepção da relação Estado/Sociedade civil como um ponto fundamental para
compreensão da política em “tempos modernos”, que agora em outras bases. O seu
conceito de sociedade civil não se refere apenas a uma esfera dos “interesses particulares e
egoístas”, que tem seu elemento de mediação com o Estado no conceito de corporação, mas
de um conceito que “incorpora” à sociedade civil a moderna organização sindical,
partidária e demais meios e modos de organização e expressão política e cultural das
classes. E “por ‘Estado’ deve-se entender, além do aparelho de governo, também o aparelho
‘privado’ de hegemonia ou sociedade civil” (Gramsci, 2007: 254-255). É por isso que a
feição da oposição Estado/Sociedade civil reaparece de forma ainda mais mediatizada e
dialética. Mas nem por isso deixa de apresentar problemas inerentes à própria natureza
desta formulação antitética. É o que veremos após apresentar o contexto das mediações
presentes em Gramsci que nos auxilia na compreensão do “fenômeno burocrático”
contemporâneo.
Neste sistema de mediações nos são apresentados (por Gramsci) o papel dos
sindicatos, partidos e do funcionalismo estatal, que, de forma moderna, representam aquilo
que em Hegel representavam as corporações e os servidores do Estado: o papel de
mediação entre os interesses particulares e universais.
Gramsci ancora estas mediações na compreensão marxiana da “determinação
econômica em última instância
87
e ao mesmo tempo procura responder às vertentes
“economicistas” quando sistematiza a sua análise acerca das relações de força. Neste
sentido o autor dos Cadernos do Cárcere perfaz o caminho entre o particular e o universal,
distinguindo os diversos momentos ou graus ontológicos. Em primeiro lugar, temos
uma relação de forças sociais estreitamente ligada à estrutura, objetiva,
independente da vontade dos homens, que pode ser mensurada com os sistemas das
ciências exatas ou físicas” (...) “[que] permite verificar o grau de realismo e de
viabilidade das diversas ideologias que nasceram em seu próprio terreno, no terreno
das contradições que ele gerou durante seu desenvolvimento (Gramsci, 2007: 40).
87
“Portanto, em ambos os casos, de pleno acordo com o método ontológico-social de Marx, Gramsci não
coloca a subjetividade acima da objetividade (o que ele fará algumas vezes quando tratar de temas
especificamente filosóficos); e, o que mais nos interessa aqui, não põe a política acima da economia. (...) Para
Gramsci, a economia aparece não como a simples produção de objetos materiais, mas sim como o modo pelo
qual os homens associados produzem e reproduzem não só esses objetos materiais, mas suas próprias relações
sociais globais” (Coutinho, 2007: 95).
99
Este é o pressuposto dos seus desdobramentos necessários (a relação de forças
políticas e militares) e nele vemos a superação em Gramsci do idealismo hegeliano com
uma incorporação do Marx da maturidade
88
.
Ao abordar o segundo momento, o da “relação das forças políticas, ou seja, a
avaliação do grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançado pelos
vários grupos sociais” (Gramsci, 2007: 40-41) ele nos oferece uma leitura atualizada das
mediações que nos referimos, a passagem do momento estritamente econômico-corporativo
ao momento político universal. Identifica três fases: a primeira, uma fase econômico-
corporativa restrita ao grupo profissional, depois, uma fase econômico-corporativa que se
estende a “todos os membros do grupo social, mas ainda no campo meramente econômico”
onde “já se põe a questão do Estado, mas apenas no terreno da obtenção de uma igualdade
político-jurídica com os grupos dominantes, que se reivindica o direito de participar da
legislação e da administração e mesmo de modifica-las, de reformá-las, mas nos quadros
fundamentais existentes” (Gramsci, 2007: 41) e, por fim, a “fase mais estritamente
política”:
Um terceiro momento é aquele em que se adquire a consciência de que os
próprios interesses corporativos, em seu desenvolvimento atual e futuro, superam o
círculo corporativo, de grupo meramente econômico, e podem e devem tornar-se os
interesses de outros grupos subordinados. Esta é a fase mais estritamente política,
que assinala a passagem nítida da estrutura para a esfera das superestruturas
complexas; é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em
‘partido’, entram em confrontação e lutam até que uma delas, ou pelo menos uma
única combinação delas, tenda a prevalecer, a se impor, a se irradiar por toda a área
social, determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a
unidade intelectual e moral, pondo todas as questões em torno das quais ferve a luta
não no plano corporativo, mas num plano ‘universal’, criando assim a hegemonia de
um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados (Gramsci,
2007: 41).
Esta passagem leva-nos a uma definição de um “Estado de classe” que exerce sua
hegemonia apresentando-se como representante dos “interesses universais”:
O Estado é certamente concebido como organismo próprio de um grupo,
destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima desse grupo, mas este
desenvolvimento e esta expansão são concebidos e apresentados como a força
88
Fora do contexto a afirmação de que a estrutura objetiva pode sermensurada com os sistemas das ciências
exatas ou físicas” parece denotar um viés positivista, mas não o é: trata-se da referência às afirmações
contidas na Contribuição à Critica da Economia Política de Marx.
100
motriz de uma expansão universal, de um desenvolvimento de todas as energias
‘nacionais’, isto é, o grupo dominante é coordenado concretamente com os
interesses gerais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida como uma
contínua formação e superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os
interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados,
equilíbrios em que os interesses do grupo dominante prevalecem, mas até um
determinado ponto, ou seja, não até o estreito interesse econômico-corporativo
(Gramsci, 2007: 41-42).
O derradeiro momento “é o da relação das forças militares, imediatamente decisivo
em cada oportunidade concreta”. Este momento, apresentado por Gramsci do ponto de vista
lógico ao final, nos leva a crer que sua concepção de disputa pela hegemonia tem seu ápice
e desdobramento decisivo no embate político-militar entre as classes em luta.
O conjunto das contribuições gramscianas por nós apresentadas possui momentos
de superação e outros de manutenção das “antinomias” presentes em Hegel e no jovem
Marx.
A primeira superação trata-se justamente da incorporação do Marx da maturidade,
que, como apresentamos, sustenta a concepção de determinação ontológica da “economia”
sobre os processos políticos.
A segunda superação trata-se do movimento dialético de passagem da “consciência
econômica” à “consciência política” e deve-se à sua incorporação da formulação de Lênin.
A terceira diz respeito à superação da visão “democrática” do Marx de 1843,
quando Gramsci concebe o desdobramento militar da disputa pela hegemonia.
Mas suas superações guardam antinomias não-superadas. E a principal delas, e a
que nos interessa neste trabalho, é a advinda da reinterpretação da relação
Estado/Sociedade civil em novas bases.
Mesmo “ampliando” o conceito de sociedade civil e o do Estado e, por conseguinte,
as mediações entre ambos, permanece dúbia a concepção do Estado que ora aparece
como instrumento de classe (particular), ora como esfera ético-política (universal) apesar
dele propor justamente o contrário: o fim do Estado-classe na sociedade regulada
89
. Ele
fundamenta a necessidade dessa passagem no fato de que a classe burguesa não cumpre
89
Ver Caderno 6 – nota 12 (Gramsci, 2007: 223-224).
101
mais, a partir de determinado momento histórico, o papel hegemônico “universalizador”
90
que ela mesmo criou em seu processo revolucionário por causa da necessidade de
“‘assimilar’ organicamente as outras classes”. Por isso, a burguesia expressou esta
necessidade numa revolucionária concepção de direito e do Estado. Mas, diante de sua
inflexão política, faz-se necessária a ascensão de uma nova classe hegemônica:
Uma classe que se ponha a si mesma como passível de assimilar toda a
sociedade e, ao mesmo tempo, seja realmente capaz de exprimir este processo
[levando] à perfeição esta concepção do Estado e do direito, a ponto de conceber o
fim do Estado e do direito, tornados inúteis por terem esgotado sua missão e sido
absorvidos pela sociedade civil (Gramsci, 2007: 271).
Mas esta definição que concretiza elementos que levariam ao desenvolvimento a um
patamar superior da similar concepção de Marx na Crítica à Filosofia do Direito de Hegel.
Introdução é, num outro momento, redefinida, quando, ao se referir ao fenômeno da
“estatolatria”, concebe a distinção entre “governo dos funcionários” (da “sociedade
política”) e “autogoverno” (da sociedade civil) e pressupõe o desenvolvimento e produção
de “novas formas de vida estatal, em que a iniciativa dos indivíduos e dos grupos seja
‘estatal’, ainda que não se deva ao ‘governo dos funcionários’ (fazer com que a vida estatal
se torne ‘espontânea’)” (Gramsci, 2007: 280). Percebemos que, neste momento, Gramsci
retoma o “estatal”
91
como sinônimo de “universal” (o momento ético-político de Hegel).
É por isso que persiste a polêmica entre os comentadores da obra gramsciana sobre
o fato dele conceber ou não o fim do Estado
92
. Mas, na verdade, esta polêmica, ao que
90
“A concepção de Hegel é própria de um período em que o desenvolvimento extensivo da burguesia podia
parecer ilimitado e, portanto, a eticidade ou universalidade desta classe podia ser afirmada: todo o gênero
humano será burguês. Mas, na realidade, o grupo social que propõe o fim do Estado e de si mesmo como
objetivo a ser alcançado pode criar um Estado ético, tendente a eliminar as divisões internas de dominados,
etc., e a criar um organismo social unitário técnico-moral” (Gramsci, 2007: 284-285).
91
Ver ainda Gramsci, 2007: 282-283.
92
Carlos Nelson Coutinho chama a atenção para o fato de que o conceito “restrito” de política de Gramsci
situa a “crítica da política”: “Se, em sua primeira acepção, como “catarze”, a política pode ser considerada um
momento ineliminável da estrutura ontológica do ser social, nessa segunda acepção ela aparece, ao contrário,
como algo historicamente transitório(Coutinho, 2007: 93). Depois ele explica que “Gramsci concretiza e,
ao mesmo tempo, supera a teoria de Marx, Engels e Lênin sobre a extinção do Estado na sociedade
comunista sem classes, que ele (por causa da censura) chama de ‘sociedade regulada’” lembrando que “essa
extinção siginifica o desaparecimneto progressivo da sociedade política na sociedade civil” (Coutinho, 2007:
135-136 e 138). Losurdo afirma que “é Gramsci o autor que se mostra mais crítico em relação às tendências
anarquistas e escatológicas. É fácil entender. Fazer coincidir o fim do domínio burguês com o fim do Estado
enquanto tal é uma forma de mecanicismo que transforma as instituições políticas em uma simples
superestrutura da economia. Por outro lado, a espera do desaparecimento do Estado, do conflito e, em última
análise, da política torna sem sentido o problema da herança, que é particularmente caro a Gramsci”. E
102
parece, à primeira vista, não tem solução a partir da própria textualidade gramsciana, já que
nem sempre fica nítida a distinção entre as fases socialista e comunista em Gramsci.
Esta imprecisão advém, mais uma vez, da ambigüidade no trato do conceito de
Estado e de Sociedade civil. Um exemplo disto é que, mesmo se adotarmos a primeira
posição apresentada por Gramsci (o fim do Estado) como sua posição definitiva, ele incorre
num “deslize” em relação ao conseqüente uso do método dialético, pois, o fim do Estado
não aparece, para ele, imediatamente, correlacionado com a necessária superação da própria
sociedade civil – como momento dialético imanente ao movimento primário.
É neste cenário que devemos compreender a importância e os limites das
contribuições de Gramsci ao “problema da burocracia”. Sua nova” concepção de Estado e
sociedade civil lhe permite entender a burocracia não como mediação entre os interesses
particulares e os universais, mas justamente como um entrave à plena expressão desta
mediação, tanto no que se refere à “burocracia privada
93
” (no interior dos partidos políticos)
como nas “burocracias públicas
94
(no interior do Estado). Trata, para além desta
constatação, a burocracia como um problema concreto e que, portanto, deve ser respondido
concretamente. E a resposta está na superação do “centralismo orgânico” (ou centralismo
burocrático”) pelo “centralismo democrático”:
A ‘organicidade’ pode ser a do centralismo democrático, que é um
‘centralismo’ em movimento, por assim dizer, isto é, uma adequação da organização
ao movimento real, um modo de equilibrar os impulsos a partir de baixo com o
comando pelo alto, uma contínua inserção dos elementos que brotam do mais fundo
da massa na sólida moldura do aparelho de direção (...) não se enrijece na
burocracia; e ao mesmo tempo, leva em conta o que é relativamente estável e
permanente ou que, pelo menos, move-se numa direção fácil de prever, etc
95
(Gramsci, 2007: p.91).
continua: “A instauração do Estado proletário não parece ser vista como o início da extinção de toda forma
estatal. A esse propósito, ‘L’Ordine Nuovo’ desenvolve uma polêmica explícita e dura; ‘Construi-se um
esquema preestabelecido, segundo o qual o socialismo seria uma ‘passarelapara a anarquia; e este é um
preconceito tolo, uma arbitrária hipoteca do futuro’. Gramsci não parece dar crédito algum à tese do ‘fim’
idêntico (uma sociedade sem Estado) perseguido, segundo Estado e Revolução, por anarquistas e comunistas”
(Losurdo, 2006:215-216).
93
“A burocracia é a força consuetudinária e conservadora mais perigosa; se ela chega a se constituir como um
grupo solidário, voltado para si mesmo e independente da massa, o partido termina por se tornar anacrônico e,
nos momentos de crise aguda, é esvaziado de seu conteúdo social e resta como que solto no ar” (Gramsci,
2007: 61-62)
94
Ver Gramsci, 2007: 89, entre outros momentos específicos.
95
É preciso entender que esta concepção de centralismo para Gramsci vale tanto para os partidos como para o
Estado: “O predomínio do centralismo burocrático no Estado indica que o grupo dirigente está saturado,
transformando-se num grupelho estreito que tende a criar seus mesquinhos privilégios, regulamentando ou
mesmo sufocando o surgimento de forças contrastantes, mesmo que estas forças sejam homogêneas aos
103
Este posicionamento de Gramsci, apesar de colocar o problema da burocracia em
outro patamar (mais concreto), esbarra nas antinomias por nós apresentadas. Sua crítica ao
“jacobinismo”, por exemplo, leva-o a considerar a contribuição de Marx e de nin ao
problema da organização como pertencentes à realidade “atrasada” da “sociedade oriental”.
Sua concepção relacional do Estado e sociedade civil leva-o a priorizar, no momento de
análise política, o papel do proletariado como classe hegemônica na construção da nova
ordem social, mas, por sua vez, relega a segundo plano, o papel onto-negativo do
proletariado em relação ao capital (e por conseguinte à ordem social burguesa). Tudo isso
leva ao limite a polêmica interminável entre seus discípulos acerca da dialética reforma-
revolução. Mas nem por isso devemos incorrer no erro de negar seus méritos na análise e
crítica da sociedade burguesa.
É um mérito de Gramsci, especificamente no trato à “questão burocrática”, o
interesse pela investigação da composição social da burocracia estatal e que na situação
histórica européia ele vai encontrar na pequena e média burguesia rural
96
. Ainda: vai
chamar a atenção para o reflexo deste grupo nos intelectuais conservadores – quando
analisará o livro de Gaetano Mosca
97
. Outro ponto importante é a sua análise da
“localização” da burocracia no interior dos partidos e sua conseqüente crítica às
proposições analíticas de Robert Michels e Weber
98
.
Como se pode ver são inesgotáveis e bastante atuais as polêmicas travadas por
Gramsci que devem em muito nos auxiliar no desvelamento do “fenômeno da burocracia” e
das “teorias burocráticas” na contemporaneidade. Diante dos limites deste estudo não
poderemos esboçar uma análise de todas as suas facetas. O que procuramos desenvolver
aqui foi a interpretação deste fenômeno correlacionado à antinomia Estado/Sociedade civil,
que, ao nosso ver, chama a atenção para o fato de que precisamos recorrer ao Marx – crítico
da economia política – para a superação das antinomias advindas de Hegel, do jovem Marx
interesses dominantes fundamentais (...). Nos partidos que representam grupos socialmente subalternos, o
elemento de estabilidade é necessário para assegurar a hegemonia não a grupos privilegiados, mas aos
elementos progressistas, organicamente progressistas em relação a outras forças afins e aliadas, mas
heterogêneas e oscilantes” (Gramsci, 2007: 91).
96
Ver Gramsci, 2007: 63.
97
Ver Gramsci, 2007: 64-65.
98
Ver Gramsci, 2007: 81, 87 e 160-170.
104
e do próprio Gramsci, sabendo, por outro lado, da imensa contribuição destes “momentos”
dos clássicos para o estudo de nosso objeto.
O que torna Gramsci nosso contemporâneo não é somente a riqueza das
problemáticas ainda não resolvidas, mas a capacidade de interpretar o mundo através do
debate entre os clássicos e os contemporâneos, até mesmo com aqueles com os quais
divergimos ou nos opomos no campo da “disputa da hegemonia”. Este ensinamento nos
transmite Gramsci, que não se negou nem mesmo ao debate com aqueles teóricos que (ao
caracterizar Mosca) resumiu como:
aquela parte de universitários que, embora considerem seu dever alardear
todas as cautelas do método histórico quando estudam as pequenas idéias de um
publicista medieval de terceira categoria, não consideram ou não consideravam
dignas ‘do método’ as doutrinas do materialismo histórico, não consideravam
necessário ir às fontes e se contentavam com uma simples ‘espiada’ em pequenos
artigos de jornal e livretos populares (Gramsci, 2007: 23).
Numa retrospectiva, podemos lembrar que Hegel destaca à “burocracia” um papel
fundamental na mediação entre os “interesses egoístas” da sociedade civil (particular) e o
momento ético-político do Estado (universal).
Marx (dos Manuscritos de 1843, é preciso lembrar), ao criticar a concepção
hegeliana com base em Feuerbach, vai afirmar que Hegel, ao partir de uma “oposição
irreal” (sociedade civil-estado) conduz somente a uma identidade imaginária (...). Uma tal
identidade é a burocracia” (Marx, 2005: 67).
Gramsci, ao retomar a antítese sociedade civil-estado, reinterpreta algumas funções
mediadoras (“burocráticas”) que Hegel conceituou como “corporações” (na sociedade civil)
e “funcionários do Estado” (burocracia estatal) à realidade “moderna” e, procura entender o
mesmo fenômeno, respectivamente, no interior dos partidos e sindicatos (sociedade civil) e
dos “funcionários do Estado”. Na linha de Hegel, entende que estas organizações da
sociedade civil têm a função de mediação ao momento ético-político do Estado, mas não
se trata mais da defesa do Estado tal qual existe, mas um Estado que concretize um
autogoverno (governo da sociedade civil) e não um governo dos funcionários” (governo
da sociedade política). A “burocracia” aparece desta forma, para ele, não como uma
mediadora a serviço do interesse universal, mas sim como um obstáculo à realização da
democracia no interior dos partidos e do Estado. Não é à toa que contrapõe, nos ambos os
105
casos, à existência de um “centralismo burocrático” a efetivação de um “centralismo
democrático”. Nem por isso Gramsci expõe uma visão “idealista” acerca da “burocracia” e
entende que “toda forma de sociedade tem sua formulação ou solução do problema da
burocracia, e uma forma não pode ser igual à outra” (Gramsci, 2007, 274).
Esta indicação de Gramsci nos incita a avançar em nossas análises e, de antemão,
expor nossos questionamentos. Ao nosso ver nenhuma das perspectivas apresentadas nestes
“momentos” dos clássicos nos parece satisfatória para a crítica das formulações e soluções
ao problema da “burocracia” que hoje nos são apresentadas.
O primeiro motivo cabe não propriamente aos respectivos autores que
apresentamos, mas sim aos teóricos que apresentam a “questão burocrática” como um
conceito fundamental e fetichizado, trato que não pode ser afirmado acerca dos autores aqui
tratados (que, como afirmamos: não elevam o termo burocracia à condição de categoria).
O segundo motivo da insuficiência destes “momentos” dos clássicos é, justamente,
decorrente da prioridade dada a esta relação (seja para afirmá-la como mediação objetiva
ou mesmo para negá-la enquanto tal).
As relações entre política e economia nas obras por nós analisadas ilustram bem
estas insuficiências e o caminho para a sua superação. Na teoria social de Hegel “a
atividade política pressupõe a atividade econômica”, ou seja, a superação da sociedade
civil pelo surgimento do Estado político não eliminaria a relação básica de propriedade do
‘contrato social’, que caracteriza a sociedade civil” (Sampaio e Frederico, 2006: 43-44).
em Gramsci teríamos, tendo como base o seu conceito de sociedade civil, “uma passagem
menos conflituosa para um Estado socialista, entendido este como um universal concreto e,
portanto, para a sociedade socialista, que seria uma efetivação do processo dialético
exposto na Filosofia do direito de Hegel” (Sampaio e Frederico, 2006: 35). Se ambos
afirmam o momento mediador, Marx , em sua juventude, irá negar esta mediação entre as
esferas. Mas, é no desenvolvimento de sua obra que vai perceber que, na verdade, é o seu
foco que deve mudar de direção:
Não custa lembrar que no curso do pensamento de Marx isto foi
corretamente formulado quando ele localizou a questão da alienação no interior da
estrutura básica da sociedade burguesa e não mais em suas relações com o Estado
entendido até então como um universal abstrato. Desse modo, a luta pelo socialismo
continuou a passar pela mudança do Estado, porém não mais como a verdadeira
meta revolucionária, como ele acreditava em 1843. A contradição a ser eliminada
106
não se encontra mais entre os indivíduos da sociedade civil e os interesses abstratos
do Estado, deles usurpados, mas está, ao contrário, dentro da própria sociedade, no
conflito entre os interesses particulares das classes exploradora e explorada, no que
chamamos de contrato social burguês instituído sobre a propriedade privada
(Sampaio e Frederico, 2006: 44).
É por isso que a superação destas deficiências e a correta crítica ao fenômeno
burocrático pode se realizar através de uma análise da “anatomia da sociedade civil”
no contexto do desenvolvido capitalismo monopolista e suas contradições.
2.3- Capitalismo monopolista e a burocracia
Marx, resumindo a transformação do antigo mestre artesão em capitalista, percebe
que as modernas sociedades por ações tem seu fundamento em uma necessidade
eminentemente monopólica – desde a sua gênese histórica.
O possuidor de dinheiro ou de mercadorias se transforma realmente em
capitalista quando a soma mínima adiantada para produção ultrapassa de muito esse
limite medieval. Aqui, como nas ciências naturais, evidencia-se a justeza da lei
descoberta por Hegel, em sua Lógica’: modificações quantitativas além de certo
ponto se transformam em modificações qualitativas.
(...) Certos ramos da produção exigem nas primeiras fases da produção
capitalista um mínimo de capital que não se encontra em mãos de indivíduos
isolados. Isto faz surgirem os subsídios oficiais a particulares, como na França no
tempo de Colbert e em muitos estados alemães até nossa época, e as sociedades com
monopólio legal para explorar determinados ramos industriais e comerciais, as
precursoras das modernas sociedades por ações (Marx, 1985: 352-354)
Os principais aspectos que pretendemos compreender nesta seção, sem negar estas
determinações históricas centrais, diz respeito a novas características.
Lênin resume as contradições daquilo que chama a fase particular do capitalismo, o
imperialismo, do seguinte modo:
A livre concorrência é a característica fundamental do capitalismo e da
produção mercantil em geral; o monopólio é precisamente o contrário da livre
concorrência, mas esta começou a transformar-se diante dos nossos olhos em
monopólio, criando a grande produção, eliminando a pequena, substituindo a grande
produção por outra ainda maior, e concentrando a produção e o capital a tal ponto
que do seu seio surgiu e surge o monopólio: os cartéis, os sindicatos, os trusts e,
fundindo-se com eles, o capital de uma essa dezena de bancos que manipulam
bilhões. Ao mesmo tempo, os monopólios, que derivam da livre concorrência, não
107
eliminam, mas existem acima e ao lado dela, engendrando assim contradições e
conflitos de interesses particularmente agudos e intensos. O monopólio é a transição
do capitalismo para um regime superior (Lênin, 2005: 89).
Baran e Sweezy criticam as interpretações marxistas do início do século XX que
ainda se pautam no capitalismo concorrencial para explicar a realidade deste período. Sua
crítica se fundamenta no fato, afirmado por Lênin, de que o imperialismo se define como
uma fase monopolista do capitalismo
99
. Fundados nesta convicção buscam desenvolver os
aspectos fundamentais da dinâmica econômica própria a este momento. Sabendo que o
próprio Marx, Engels, Hiferding e Lênin conseguiram identificar tendências importantes
para a explicação do capitalismo dos monopólios, priorizam um tema central na análise: a
criação e a absorção do excedente, num regime de capitalismo monopolista” (Baran e
Sweezy, 1966: 14).
Operam, ao nosso ver, uma ênfase conceitual perigosa ao preferir “o conceito de
‘excedente’ à tradicional ‘mais-valia’,”
[O conceito de mais-valia] provavelmente se identifica para a maioria das
pessoas conhecedoras da teoria econômica marxista como igual à soma de lucros +
juro + renda. É certo que Marx demonstra em passagens esparsas de O Capital e
Teorias da Mais-Valia que a mais-valia também compreende outros itens, como
as receitas do Estado e Igreja, as despesas de transformação das mercadorias em
dinheiro e os salários dos trabalhadores improdutivos. Em geral tratou-os como
fatores secundários, excluindo-os de seu esquema teórico básico. Afirmamos que
sob o capitalismo monopolista este procedimento não se justifica, e esperamos
que uma modificação de terminologia ajude a efetuar as modificações necessárias
na posição teórica (Baran e Sweezy, 1966: 19-20).
Apesar de notar para aspectos relevantes do capitalismo monopolista nesta nota, os
autores, ao proporem a mudança conceitual, não resolvem, pelo contrário, criam novas
problemáticas na explicação da produção e distribuição do excedente sob o modo de
produção capitalista em sua fase monopolista. Vejamos que a escolha pelo conceito de
mais-valia não é aleatório na análise marxiana pois tem um fundamento lógico e histórico:
99
Lênin vai afirmar que o aparecimento do monopólio devido à concentração da produção é uma lei geral e
fundamental da presente fase de desenvolvimento do capitalismo”. Critica, por sua vez, àqueles que não
debitam esta descoberta à Marx: “A ciência oficial procurou aniquilar, por meio da conspiração do silêncio, a
obra de Marx, que tinha demonstrado, com uma análise teórica e histórica do capitalismo, que a livre
concorrência, num certo grau de seu desenvolvimento, conduz ao monopólio” (Lênin, 2005: 21).
108
Não foi o capital quem inventou o trabalho excedente. Toda vez que uma
parte da sociedade possui o monopólio dos meios de produção, tem o trabalhador,
livre ou não, de acrescentar ao tempo de trabalho necessário à sua própria
manutenção um tempo de trabalho excedente destinado a produzir os meios de
subsistência para o proprietário dos meios de produção. Pouco importa que esse
proprietário seja o nobre ateniense, o teocrata etrusco, o cidadão romano, o barão
normando, o senhor de escravos americano, o boiardo da Valáquia, o moderno
senhor de terras ou o capitalista. É evidente que numa formação social onde
predomine não o valor-de-troca mas o valor-de-uso do produto, o trabalho
excedente fica limitado por um conjunto mais ou menos definido de necessidades,
não se originando da natureza da própria produção nenhuma cobiça desmesurada
por trabalho excedente
100
.
(...) Interessa especialmente comparar a avidez por mais valia, observada nos
principados danubianos, com a que existe nas fábricas inglesas, pois a mais valia
possui na corvéia uma forma independente, palpável (Marx, 1985: 265-266).
A questão fundamental, que nos impõe caracterizar diferencialmente a mais valia e
as formas anteriores de produção de excedente, se explicita, por exemplo, nesta diferença
entre mais valia e corvéia. No primeiro caso, o “trabalho excedente e o trabalho necessário
se confundem”, ou seja, “não se percebe isso à primeira vista”, e, “na corvéia, o trabalho
excedente está claramente separado do trabalho necessário” (Marx, 1985: 266-267). Todo o
esforço de Marx no Livro I do Capital é fazer-nos compreender esta forma nova e
“misteriosa” de produção e apropriação do excedente. Por isso, ao propor uma mudança de
mais valia para excedente, Baran e Sweezy não inovam, pelo contrário, dão um passo atrás
na análise teórica
101
.
100
Marx na seqüência mostra o processo bárbaro que se instaurou com a conjugação de formas arcaicas de
apropriação do excedente com o modo de produção capitalista: “Na antiguidade, o trabalho em excesso
atingia as raias do monstruoso quando estava em jogo obter valor-de-troca em sua materialização autônoma,
em dinheiro, com a produção de ouro e prata. Fazer o trabalhador trabalhar até à morte se torna, nesse caso, a
forma oficial do trabalho em excesso. Basta ler Diodoro da Silícia. Todavia, condições monstruosas de
trabalho constituíram exceção no mundo antigo. Mas, quando povos cuja produção se encontra nos estágios
inferiores da escravatura, da corvéia etc., entram num mercado mundial dominado pelo modo de produção
capitalista, tornando-se a venda de seus produtos ao exterior o interesse dominante, sobrepõem-se aos
horrores bárbaros da escravatura, da servidão etc. a crueldade civilizada do trabalho em excesso. O trabalho
dos negros nos estados meridionais da América do Norte preservava certo caráter patriarcal enquanto a
produção se destinava principalmente à satisfação direta das necessidades. Na medida porém em que a
exportação de algodão se tornou interesse vital daqueles estados, o trabalho em excesso dos pretos e o
consumo de sua vida em 7 anos de trabalho de trabalho tornaram-se partes integrantes de um sistema
friamente calculado. Não se tratava mais de obter deles certa quantidade de produtos úteis. O objetivo passou
a ser a produção da própria mais valia. Fenômeno semelhante sucedeu com a corvéia, por exemplo, nos
principados danubianos” (Marx, 265-266).
101
Braverman ao caracterizar as diferenças entre sua obra e a de Baran e Sweezy nota esta insuficiência na
análise da produção, mas, de forma justa, defende o ponto de vista dos dois: “O prisma adotado naquele
trabalho era no sentido de encarar a sociedade capitalista como a produtora de um gigantesco e crescente
109
Apesar disso, a caracterização conceitual e histórica de que se valem os permitem
identificar a afirmação marxiana que indica o crescimento exponencial da produção de
excedente sob a universalização da produção de valores-de-troca. No capitalismo
monopolista ela ganha dimensões catastróficas.
Um dos pilares deste desenvolvimento tem relação com as diferenças na produção
sob o capitalismo concorrencial e no capitalismo monopolista. O primeiro inaugura a
Revolução Industrial de meados do século XVIII e, o outro a revolução técnico-científica
das últimas décadas do século XIX. No primeiro caso, “a ciência, em seus inícios sob o
capitalismo, no mais das vezes formulou suas generalizações lado a lado com o
desenvolvimento tecnológico ou em conseqüência dele” (Braverman, 1981: 138-139). Com
a revolução técnico-científica assistimos uma rie de transformações. A princípio ela é
fruto do avanço da “velha época da indústria” nos campos da eletricidade, aço, petróleo e
motor de explosão, mas, depois, ganha vida própria.
A primeira nação que realizou, definitivamente, a “incorporação da ciência à
empresa capitalista” foi a Alemanha: “O papel da ciência na indústria alemã foi o produto
da fraqueza do capitalismo alemão em seus estágios iniciais, junto com o estado avançado
da ciência teórica alemã
102
(Braverman, 1981: 140). Esse desenvolvimento se
consideravelmente na indústria química
103
.
excedente econômico, e os autores ocupavam-se do modo como aquele excedente é utilizado, ou ‘absorvido’,
no capitalismo monopolista”. (...) “Mas, como observam eles, não apenas a mudança tecnológica, como
também um produto mutável enseja novos e diferentes processos de trabalho, uma nova distribuição
ocupacional da população empregada e, pois, uma classe trabalhadora transformada. Está claro, portanto, que
o estudo dos movimentos do trabalho empreendido neste livro constitui uma variante do estudo dos
movimentos do valor efetuado em Capital Monopolista” (Braverman, 1981: 216-217).
102
Braverman debita à influência de Hegel o ponto de partida para este desenvolvimento. Apesar do exagero
nesta atribuição como aspecto determinante, a seguinte passagem é ilustrativa das “diferenças científicas”
entre Alemanha e Inglaterra/EUA: No primeiro momento, segundo o autor, houve a influência de Hegel “na
reforma da educação prussiana, na segunda década do século XIX. E, em seguida, houve a penetrante
influência da filosofia especulativa alemã, da qual Hegel era o pensador culminante, ao dar à educação
científica alemã um aspecto fundamental e teórico. Assim, enquanto a Inglaterra e os Estados Unidos estavam
ainda às voltas com aquele empirismo do senso comum, que atrofia e desestimula o pensamento reflexivo e a
pesquisa científica básica, na Alemanha eram esses mesmos hábitos da mente que estavam sendo
desenvolvidos na comunidade científica. Foi por essa razão mais do que por qualquer outra que a primazia da
ciência européia passou da França para a Alemanha em meados do século XVII, enquanto a Inglaterra no
mesmo período permanecia atolada no ‘que J. S. Mill chamava o dogmatismo do senso comum espalmado
pela norma prática’”(Braverman, 1981: 141).
103
Assim resumiu Richard Sasuly esta revolução na química: “Foi a Alemanha que mostrou ao resto do
mundo como tirar matérias-primas escassas de uma caixa de areia e de uma pilha de carvão. E foi a IG Farben
que abriu o caminho para a Alemanha. A IG transformou a química de pura pesquisa e pílulas comerciais
numa indústria gigantesca com efeitos sobre toda fase de civilização” (apud: Braverman, 1981: 141-142)
110
EUA e Inglaterra, a princípio, importam estes desenvolvimentos e especialistas da
Alemanha
104
.Mas tão logo o capitalismo monopolista surge, os Estados Unidos começam a
desenvolver seus laboratórios de pesquisa
105
. Mesmo assim, em seu início, predominava a
imitação do exemplo alemão, sem muitas inovações.
Assim foi até o surgimento do nazismo na Alemanha e a Segunda Guerra
Mundial, em conseqüência da qual grande quantidade de talento científico foi
desviada da Alemanha pela política racial e ideológica de Hitler, ou apropriada
pelos aliados vitoriosos, que os Estados Unidos adquiriram uma base científica igual
ao seu poder industrial, que antes do seu desenvolvimento dependera amplamente
da exploração da ciência estrangeira. Assim foi que, apenas desde a Segunda Guerra
Mundial, a pesquisa científica nos Estados Unidos, grandemente financiada pelas
empresas e pelo governo, e robustecida por mais alentos de gênio científico de todas
as partes do mundo, forneceu sistematicamente o conhecimento científico utilizado
na indústria (Braverman, 1981: 145-146).
Pode-se afirmar que é no capitalismo monopolista que se consolida definitivamente
a tese marxiana segundo a qual o “instrumental de trabalho, ao converter-se em maquinaria,
exige a substituição da força humana por forças naturais e da rotina empírica pela aplicação
consciente da ciência” (Marx, 1985: 439).
Além do desenvolvimento das forças produtivas e da aplicação sistemática da
ciência, que são desdobramentos de tendências observadas em momentos anteriores,
temos a entrada em cena de uma nova dimensão dominante na dinâmica econômica: é o
capital financeiro. Faz-se necessário analisar as principais determinações de seu
desenvolvimento.
O novo papel dos bancos é um elemento que não pode ser desprezado na
compreensão do capitalismo monopolista.
À medida que vão aumentando as operações bancárias e se concentram num
número reduzido de estabelecimentos, os bancos convertem-se, de modestos
intermediários que eram antes, em monopolistas onipotentes, que dispõe de quase
todo o capital-dinheiro do conjunto dos capitalistas e pequenos patrões, bem como
da maior parte dos meios de produção e das fontes de matérias-primas de um ou de
muitos países. Esta transformação dos numerosos modestos intermediários num
104
“Não foi somente a indústria cervejeira que importou especialistas cientificamente preparados (mestres em
cervejaria, no seu caso) da Alemanha: Carnegie colocou um químico alemão a trabalhar no início da década
de 70 e, em parte devido a seus esforços, desvaneceu muito da incerteza que antes rondava a fabricação de
ferro gusa; e a General Eletric arrolou o físico alemão C. P. Steinmetz, principalmente para ajudar a projetar o
equipamento de corrente alternada” (Braverman, 1981: 143-144).
105
Ver a série de laboratórios desenvolvidos em: (Braverman, 1981: 144).
111
punhado de monopolistas constitui um dos processos fundamentais da
transformação do capitalismo em imperialismo capitalista (Lênin, 2005: 31).
A concentração bancária leva à uma transformação fundamental: “Os capitalistas
dispersos acabam por constituir um capitalista coletivo”.
Ao movimentar contas correntes de vários capitalistas, o banco realiza,
aparentemente, uma operação puramente técnica, unicamente auxiliar. Mas quando
esta operação cresce até atingir proporções gigantescas, resulta que um punhado de
monopolistas subordina as operações comerciais e industriais de toda a sociedade
capitalista, colocando-se em condições por meio das suas relações bancárias, das
contas correntes e de outras operações financeiras –, primeiro de conhecer com
exatidão a situação dos diferentes capitalistas, depois de controlá-los, exercer
influência sobre eles mediante a ampliação ou a restrição do crédito, facilitando-o
ou dificultando-o, e, finalmente, de decidir inteiramente sobre o seu destino,
determinar a sua rentabilidade, privá-los de capital ou permitir-lhes aumentá-lo
rapidamente e em grandes proporções etc. (Lênin, 2005: 35).
Em polêmica com Kautsky, Lênin afirma: “O que é característico do imperialismo
não é precisamente o capital industrial, mas o capital financeiro” (Lênin, 2005: 92). O que
diferencia o “novo” do “velho” imperialismo é que agora “os interesses financeiros, ou
relativos ao investimento de capital, predominam sobre os interesses comerciais” (Hobson
apud: Lênin, 2005: 92).
As novas capacidades bancárias levam a uma inovação na relação entre os bancos e
os industriais:
Simultaneamente, desenvolve-se, por assim dizer, a união pessoal dos
bancos com as maiores empresas industriais e comerciais, a fusão de uns com as
outras mediante a posse das ações, mediante a participação dos diretores dos bancos
nos conselhos de supervisão (ou de administração) das empresas industriais e
comerciais, e vice-versa (Lênin, 2005: 41).
É também revelada, neste mesmo sentido, uma profunda relação com o Estado,
que a união pessoal dos bancos com a indústria completa-se com a união pessoal de umas
e outras sociedades com o governo (...) ‘No conselho de administração de um banco
importante encontramos geralmente algum membro do Parlamento ou da vereação de
Berlim’” (Lênin, 2005: 42).
Lênin, citando Jeidels, observa uma “divisão do trabalho entre várias centenas de
reis financeiros da sociedade capitalista atual”:
112
Estabelece-se uma divisão do trabalho cada vez maior entre os diretores,
com o fim (que conseguem) de os elevar um pouco, por assim dizer, acima dos
negócios puramente bancários, de os tornar mais aptos para julgarem, mais
competentes nos problemas gerais da indústria e nos problemas para a sua atividade
no setor industrial da esfera de influência do banco. Este sistema dos bancos é
completado pela tendência que neles se observa de serem eleitos para os seus
conselhos de administração pessoas que conheçam bem a indústria, empresários,
antigos funcionários, particularmente os que vêm dos departamentos de estradas de
ferro, minas etc. (Jeidels apud: Lênin, 2005: 43).
O que de novo com o capitalismo monopolista, em uma de suas facetas, é, por
fim, observado por Lênin: “O culo XX assinala, pois, o ponto de transformação do velho
capitalismo para o novo, da dominação do capital em geral para a dominação do capital
financeiro
106
” (Lênin, 2005: 46).
A partir de agora temos o domínio das “sociedades anônimas”, que, por sua vez,
consolidam o domínio do grande capital por uma série de empresas.
O capital financeiro, concentrado em muito poucas mãos e gozando do
monopólio efetivo, obtém um lucro enorme, que aumenta sem cessar com a
constituição de sociedades, emissão de valores, empréstimos do Estado etc.,
consolidando a dominação da oligarquia financeira e impondo a toda a sociedade
um tributo em proveito dos monopolistas (Lênin, 2005: 53).
A exponenciação do excedente sob os monopólios fica evidente quando pensamos
que “o capitalismo, que iniciou o seu desenvolvimento com o pequeno capital usurário,
chega ao fim deste desenvolvimento com um capital usurário enorme” (Lênin, 2005: 54).
O movimento dialético do capital leva, ao mesmo tempo, a uma união (capital
bancário e capital industrial) e a uma cisão em seu interior:
É próprio do capitalismo em geral separar a propriedade do capital da sua
aplicação à produção, separar o capital-dinheiro do industrial ou produtivo, separar
o rentier, que vive apenas dos rendimentos provenientes do capital-dinheiro, do
empresário e de todas as pessoas que participam diretamente na gestão do capital. O
imperialismo, ou domínio do capital financeiro, é o capitalismo no seu grau
superior, em que essa separação adquire proporções imensas. O predomínio do
capital sobre todas as demais formas do capital implica o predomínio do rentier e da
oligarquia financeira, a situação destacada de uns quantos Estados de poder
financeiro em relação a todos os restantes (Lênin, 2005: 59).
106
A partir da leitura de Hilferding, resumida por Lênin, temos uma síntese da nova dinâmica: “Concentração
da produção; monopólios que resultam da mesma fusão ou junção dos bancos com a indústria: tal é a história
do aparecimento do capital financeiro e daquilo que este conceito encerra” (Lênin, 2005: 47)
113
O resultado mais visível deste desenvolvimento é a partilha do mundo entre as
associações de capitalistas. Depois de partilharem o mercado interno, as “associações de
monopolistas capitalistas” deram início a um “acordo universal entre elas, à constituição de
cartéis internacionais” (Lênin, 2005: 67). Mas esta relação não exclui, pelo contrário, põe
em novo patamar a disputa entre o grande capital:
Os capitalistas não partilham o mundo levados por uma particular
perversidade, mas porque o grau de concentração a que se chegou os obriga a seguir
esse caminho para obterem lucros; e repartem-no segundo o capital, segundo a
força; qualquer outro processo de partilha é impossível no sistema da produção
mercantil e no capitalismo. A força varia, por sua vez, de acordo com o
desenvolvimento econômico e político; para compreender o que está acontecendo é
necessário saber que problemas são solucionados pelas mudanças de força, mas
saber se essas mudanças são puramente econômicas ou extra-econômicas (por
exemplo, militares), é secundário e em nada pode fazer variar a concepção
fundamental sobre a época atual do capitalismo. Substituir o conteúdo da luta e das
transações entre os grupos capitalistas pela forma desta luta e destas transações
(hoje pacífica, amanhã não-pacífica, depois de amanhã outra vez não-pacífica)
significa descer ao papel de sofista (Lênin, 2005: 74).
Tem-se, como desdobramentos políticos e nacionais deste conteúdo econômico, as
guerras imperialistas e a partilha do mundo entre as grandes potências. Não cabe aqui
expor como isso se deu nas disputas pelas colônias em fins do século XIX e no início do
século XX. Nosso objetivo é extrair os elementos fundamentais do capitalismo
monopolista, pois “a particularidade fundamental do capitalismo moderno consiste na
dominação exercida pelas associações monopolistas dos grandes patrões” (Lênin, 2005:
83). A reunião, nas mãos dos grupos monopolistas, de todas as fontes de matérias-primas é
um dos principais motivos, notados à época de Lênin, para as guerras imperialistas.
Voltando ao centro produtivo do capitalismo monopolista, não podemos deixar de
comentar sobre um setor importante. Não é à toa que Weber, ao tratar dos pressupostos à
burocratização, tenha situado como um dos importantes “fatores técnicos” o
desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte administrados por “economia
pública” como precursores da burocratização. Para ele, estes fatores estariam “intimamente
ligados ao desenvolvimento de um grande tráfico interlocal de bens” (Weber, 1999: 211).
Observando o desenvolvimento histórico nota-se que o setor que consideramos a
célula do fenômeno burocrático, “a grande sociedade anônima”, “começou a surgir na
segunda metade do século XIX nos campos das finanças e ferrovias, estendendo-se à
114
industria, na passagem do século, e invadindo mais tarde outros setores da economia
nacional
107
” (Baran e Sweezy, 1966: 38).
Mais uma vez, os desenvolvimentos do capitalismo monopolista mostram como
Marx estava atento às tendências mais definitivas de sua época. É assim que ele observa o
desenvolvimento da comunicação e do transporte como fatores determinantes para que o
capitalismo se erguesse “sobre seus próprios pés” com a produção industrializada do
maquinário moderno:
A revolução no modo de produção da indústria e da agricultura tornou
sobretudo necessária uma revolução nas condições gerais do processo social de
produção, isto é, nos meios de comunicação e de transporte. Os meios de
comunicação e transporte de uma sociedade cujo pivô, para utilizar uma expressão
de Fourier, era a pequena agricultura com sua indústria doméstica acessória e o
artesanato urbano, não podiam de modo nenhum satisfazer às necessidades de
produção do período manufatureiro com sua extensa divisão do trabalho social, com
sua concentração de instrumentos de trabalho e de trabalhadores e com seus
mercados coloniais, e por isso foram inteiramente transformados
108
. Do mesmo
modo, os meios de transporte e de comunicação, legados pelo período
manufatureiro, logo se tornaram obstáculos insuportáveis para a indústria moderna
com sua velocidade febril de produção em grande escala, seu contínuo
deslocamento de massas de capital e de trabalhadores de um ramo de produção para
outro e com as novas conexões que criou no mercado mundial. Além das
transformações radicais ocorridas na construção de navios a vela, o sistema de
transportes e comunicações foi progressivamente adaptado ao modo de produção da
grande indústria com a introdução dos navios a vapor fluviais, das vias rreas, dos
transatlânticos e do telégrafo. Mas as massas gigantescas de ferro que tinham então
de ser forjadas, soldadas, cortadas, brocadas e moldadas, exigiam máquinas
ciclópicas cuja produção não se poderia conseguir através dos métodos da
manufatura (Marx, 1985: 437-438).
Diante da dimensão da produção industrial vista a olho nu nos dias de hoje, poder-
se-ia subestimar a profunda atualidade da análise de Marx. Porém, se observamos o quanto
o desenvolvimento por ele notado foi importante para a consolidação das “empresas
107
“A rede de transportes foi a primeira arena para a empresa gigante. As empresas ferroviárias e marítimas,
em virtude de sua demanda de trilhos de o, placas e chapas estruturais, arrastavam em seu despertar a
siderurgia que acabava de tornar-se perita na fabricação de aço a um preço e quantidade que possibilitaram
esse desenvolvimento. Adaptações especiais dos meios de transporte para alimentos, sob a forma de
compartimentos estanques e refrigerados (a princípio com gelo, e posteriormente refrigerados
mecanicamente), possibilitaram o transporte a longas distâncias das mercadorias essenciais exigidas pelo
rápido crescimento dos centros urbanos” (Braverman, 1981: 223).
108
Braverman analisa de forma genial, em seu décimo terceiro capítulo, esta transformação da produção
doméstica e artesanal em produção capitalista nos EUA da passagem do século XIX para o século XX e a
conseqüente consolidação do que chama de mercado universal. Ver: (Braverman, 1981: 231-241).
115
gigantes” monopólicas, perceberíamos a dimensão de suas descobertas. Lênin,
posteriormente dirá: “A distribuição da rede ferroviária, a desigualdade dessa distribuição e
do seu desenvolvimento, constituem um balanço do capitalismo moderno, monopolista, à
escala mundial” (Lênin, 2005: 10).
A análise da expansão desta rede nas colônias indica o poderio, por exemplo, da
Inglaterra no início do século XX. O desenvolvimento das forças produtivas da Alemanha,
por outro lado, foi o mais rápido neste período. Estas diferenças anunciam tensões
importantes.
As disputas entre as grandes potências capitalistas tem fundamento na espetacular
produção de excedente. É o que leva Lênin a se perguntar: “No terreno do capitalismo, que
outro meio poderia haver, a não ser a guerra, para eliminar a desproporção existente entre o
desenvolvimento das forças produtivas e a acumulação de capital, por um lado, e, por outro
lado, a partilha das colônias e das esferas de influência do capital financeiro?” (Lênin,
2005: 99). Veremos que, sem abandonar esta alternativa fundamental, o capital cria outras
“saídas” para o escoamento da massa de mais-valia. É o que será analisado quando nos
determos sobre as tendências postas a partir das características particulares das grandes
empresas” no capitalismo monopolista.
Com a universalização de modos ciclópicos de produção como a sua forma
hegemônica, faz-se necessário uma análise mais acurada dos nossos tempos. É a partir da
compreensão dos aspectos endógenos a estas empresas gigantes que poderemos desvendar
determinações centrais da tendência à burocratização nos mais diferentes setores da vida
social. No próximo capítulo a empresa monopolista e a divisão do trabalho correspondente
à sua centralidade na produção capitalista sob os monopólios serão objeto de nossa análise.
116
CAPÍTULO III:
A “QUESTÃO BUROCRÁTICA”, DIVISÃO DO TRABALHO
E PRODUÇÃO CAPITALISTA
117
Pretendemos compreender o fenômeno da “burocratização” a partir dos elementos
internos à produção capitalista, pois, como afirmamos anteriormente, a burocracia tal qual
encontramos hoje tem seu núcleo nas tendências recentes da dinâmica econômica do
capitalismo monopolista.
Tendo em vista que uma série de tendências analisadas por Marx, em seu tempo, se
desenvolveu plenamente sob os monopólios, pode-se afirmar que a dinâmica capitalista
analisada em sua obra máxima O Capital , mais do que se referir ao século XIX, em
grande parte de seus elementos, tem validade ainda maior sob o capitalismo monopolista do
século XX. Pretendemos, a partir de sua contribuição conceitual, reproduzir as tendências
fundamentais para a crítica à interpretação sociológica da “burocracia”.
O primeiro passo é compreender como a divisão do trabalho, sob o capitalismo, e
em particular, sob o capitalismo monopolista, refrata, contraditoriamente, na realidade
social. Temos, ao mesmo tempo, as tendências de crescente racionalização no seio da
empresa e de irracionalidade incontrolável nas relações econômicas exógenas às mesmas.
Marx já havia nos lembrado que a “industria moderna rasgou o véu que ocultava ao
homem seu próprio processo social de produção e que transformava os ramos de produção
naturalmente diversos em enigmas” (Marx, 1985: 557). Neste momento de nossa exposição
não há, portanto, motivo algum que nos prenda às interpretações ideológicas da
sociologia. É necessário apreender a produção e reprodução das formas sociais em seu
movimento. Apesar de penosa, é tarefa necessária seguir o “ritmo” da industria moderna
que “transforma continuamente, com a base técnica da produção, as funções dos
trabalhadores e as combinações sociais do processo de trabalho” (Marx, 1985: 557).
A teoria, por sua vez, não se pode pensar de forma estéril. Ela pode ter validade
se vinculada a um imperativo político inalienável. Se, ao tempo de Marx a força da
indústria já havia mostrado seus limites no sentido da emancipação humana, com a
ampliação de seus elementos degradantes e irracionais tornam-se necessárias uma série de
atualizações de algumas das proposições marxianas. Mas, em sua essência, continua
vigente a afirmação categórica de que no modo de produção capitalista não espaço para
que se desenvolvam as plenas capacidades humanas.
A indústria moderna, com suas próprias catástrofes, torna questão de vida ou
morte reconhecer como lei geral e social da produção a variação dos trabalhos e em
conseqüência a maior versatilidade possível do trabalhador, e adaptar as condições à
118
efetivação normal dessa lei. Torna questão de vida ou morte substituir a
monstruosidade de uma população operária miserável, disponível, mantida em
reserva para as necessidades flutuantes da exploração capitalista, pela
disponibilidade absoluta do ser humano para as necessidades variáveis do trabalho;
substituir o indivíduo parcial, mero fragmento humano que repete sempre uma
operação parcial, pelo indivíduo integralmente desenvolvido para o qual as
diferentes funções sociais não passariam de formas diferentes e sucessivas de sua
atividade. (...) Também não dúvida de que a forma capitalista de produção e as
correspondentes condições econômicas dos trabalhadores se opõem diametralmente
a esses fermentos de transformação e ao seu objetivo, a eliminação da velha divisão
do trabalho. Mas o desenvolvimento das contradições de uma forma histórica de
produção é o único caminho de sua dissolução e do estabelecimento de uma nova
forma. A máxima da sabedoria do artesanato, ‘sapateiro não passes do sapato’,
tornou-se mera sandice no dia em que o relojoeiro Watt inventou a máquina a vapor,
o barbeiro Arkwright o tear, o artífice de ourivesaria Fulton, o navio a vapor (Marx,
1985: 558-559).
É preciso lembrar que, ao contrário do que por vezes se têm afirmado, Marx não
decreta o fim do trabalho parcial com a indústria moderna. Pelo contrário: revela que a
ultrapassagem da forma capitalista de produção permitiria o fim da divisão do trabalho e do
homem fragmentado. As potencialidades contidas nesta revolucionária forma de produção,
descrita por Marx, foram contrapostas na história do capitalismo dos monopólios por
contra-tendências e, ao contrário do progresso e da necessária ruptura em relação a este
modelo produtivo, assistimos a sua manutenção, e, por conseguinte, a vigência dos
elementos de irracionalidade do sistema, como por exemplo, aquilo que vimos chamando
até aqui de “burocratização”.
3.1- A empresa monopolista e a burocracia
A “sociedade anônima gigante” é a unidade fundamental do capitalismo
monopolista. Lênin afirmara que “o enorme incremento da indústria e o processo
notavelmente rápido de concentração da produção em empresas cada vez maiores
constituem uma das particularidades mais características do capitalismo
109
(Lênin, 2005:
17).
109
Ver dados por ele citados: Lênin, 2005: 17-18.
119
Uma característica importante de algumas destas empresas é o que foi chamado de
combinação: “a reunião numa empresa de diferentes ramos da indústria, que, ou
representam fases sucessivas da elaboração de uma matéria-prima (...) ou desempenham um
papel auxiliar uns em relação aos outros” (Lênin, 2005; 19). Dentre outras capacidades,
temos, com esta combinação, a garantia para estas empresas de uma taxa de lucro mais
estável; a eliminação do comércio e o aperfeiçoamento técnico. Com isso, tem-se a
obtenção de lucros suplementares das empresas combinadas em comparação com as
empresas simples; e, por fim, essa disputa com a simples garante à primeira um reforço “na
luta de concorrência durante as fortes depressões” (Hilferding apud: Lênin, 2005: 19).
Entre as principais determinações endógenas à administração das grandes empresas,
temos: 1) o fato do controle passar às mãos da administração (uma junta de diretores e os
principais funcionários executivos), 2) a autoperpetuação de um mesmo grupo na
administração e, 3) a independência financeira que cada empresa tende a atingir através da
criação interna de fundos administrados por seu aparato.
No que se refere à primeira característica pode-se garantir a representação também
de interesses externos à empresa, como a participação na junta de clientes, fornecedores,
banqueiros, entre outros, no intuito de garantir a harmonização dos interesses da empresa
com estes setores. Mas o poder real permanece com o pessoal interno, que dedicam todo
o tempo à empresa e seus interesses e carreira estão diretamente vinculados ao destino dela.
A autoperpetuação do seu núcleo gerencial é garantida pela política de
recrutamento, treinamento e promoção da empresa. A carreira nestas organizações, por sua
vez, pode levar a duas possibilidades: “a ascensão das posições inferiores para as
superiores, dentro de uma determinada companhia, e a passagem de uma companhia menor
para outra maior. O auge do êxito é a presidência ou a chefia da junta diretora de uma das
maiores empresas” (Baran e Sweezy, 1966:26).
A independência financeira da unidade empresarial não exclui a possibilidade de
tomada de empréstimos a instituições financeiras, porém, ela “é capaz de evitar o tipo de
sujeição ao controle financeiro que foi tão comum ao mundo das Grandes Empresas 50
anos
110
(Baran e Sweezy, 1966: 26). Agora os alinhamentos com outras empresas ou
110
Essa característica pode ser afirmada tendo em vista o profundo vínculo entre capital bancário e capital
industrial, já analisado no capítulo anterior. Caberia apenas uma definição mais precisa, pois, se é verdade que
o volume de capital investido nas grandes empresas permitem uma “autonomia financeira”, não se pode
120
interesses “não são determinados pelos centros de controle externos mas pelos cálculos
racionais das administrações internas” (Baran e Sweezy, 1966: 30).
Diante do largo horizonte temporal e da racionalização da empresa monopolista,
criam-se dois modos de comportamento: a fuga sistemática aos riscos e tolerância no
círculo monopolista para com os outros membros empresariais.
Uma das estratégias das grandes empresas é permitir aos pequenos a inovação e o
lançamento de novos produtos, para que, assim que estiver clara a garantia dos lucros com
estes produtos e inovações, elas se arrojem em sua produção em larga escala, ou mesmo
comprem estas empresas menores.
O comportamento “correspectivo” (Schumpeter) entre as grandes companhias (e
somente entre as grandes) é mais um destes aspectos. Conhecendo o poder uma da outra, e
as suas capacidades de retaliação, elas procuram demonstrar uma atitude solidária entre si e
constroem uma frente única ao mundo exterior. Confirma-se a tendência de que ao chegar
a um determinado grau de desenvolvimento, a concentração por si mesma, por assim dizer,
conduz diretamente ao monopólio, visto que, para umas quantas dezenas de grandes
empresas, é muito fácil chegarem a acordo entre si” (Lênin, 2005: 18).
Estes aspectos de estrutura das grandes empresas não implicam que as pequenas
empresas não participem da interação própria ao capitalismo monopolista, mas, na análise
da estrutura econômica deste período, “as empresas menores deveriam ser tratadas como
parte do ambiente dentro do qual operam as grandes empresas, e não como um ator no
palco” (Baran e Sweezy, 1966: 60-61). Lênin, após resumir os dados astronômicos das
grandes empresas ainda no início do século XX, dirá: “Algumas dezenas de milhares de
grandes empresas são tudo, os milhões de pequenas empresas não são nada” (Lênin, 2005:
17). Os dados devem ser atualizados, porém, a afirmação continua completamente
verdadeira.
Ao intentar compreender o sistema de relações “burocráticas”, precisamos analisar
as relações no interior e externas à empresa monopolista. Somente a partir daí pode-se
extrair a tendência à profunda racionalização da unidade empresarial e a irracionalidade no
sistema de relações entre as mesmas.
perder de vista a capacidade de controle do capital financeiro sobre o conjunto das atividades econômicas
destas empresas.
121
Dentro da grande companhia, as relações são diretas, hierárquicas,
burocráticas. Predomina nela o planejamento autêntico, vindo da cúpula as
instruções, e havendo uma responsabilidade dos escalões menores para com os
maiores. Para o sistema como um todo, porém, tais relações não existem”.
(...) No conjunto, o capitalismo monopolista é tão sem planificação como o
seu predecessor, o capitalismo concorrencial. As grandes empresas se relacionam
mutuamente, relacionando-se com os consumidores, os empregados e as empresas
menores principalmente através do mercado (Baran e Sweezy, 1966: 61).
Com esta constatação verdadeira, Baran e Sweezy retiram uma hipótese
absolutamente problemática. Indicam que, “como as relações de mercado são
essencialmente relações de preço, o estudo do capitalismo monopolista, como o do
capitalismo competitivo, deve começar com o funcionamento do mecanismo de preços”
(Baran e Sweezy, 1966: 61). Os autores, depois de indicarem uma mudança conceitual de
mais-valia para excedente
111
, inevitavelmente caem em outra armadilha, ao iniciar a
explicação pelas relações de preços. Seria o mesmo que inverter a gica de construção
expositiva presente em O Capital. O que, por sinal, como assinala o próprio Marx, significa
priorizar a esfera “à qual o livre-cambista vulgar toma de empréstimo sua concepção, idéias
e critérios para julgar a sociedade baseada no capital e no trabalho assalariado” (Marx,
1985: 197). E mais do que isso, ao priorizar o desenvolvimento das relações entre preços, o
desenvolvimento da exposição acaba por subestimar uma lei marxiana fundamental: “não é
a troca que regula a magnitude do valor da mercadoria, mas, ao contrário, é a magnitude do
valor da mercadoria que regula as relações de troca” (Marx, 1985: 72).
Para que se faça justiça, não podemos comparar, de forma alguma, a exposição dos
autores como próximas a dos economistas vulgares. Muito pelo contrário, a riqueza na
análise da realidade econômica do capitalismo monopolista é ainda hoje penetrante e
absolutamente crítica. Porém os seus pontos negativos não podem ser negligenciados, e um
deles é justamente essa ênfase na avaliação exógena das relações de compra e venda e a
pouca atenção para com as relações de produção
112
. É o que fundamenta a seguinte
afirmação:
111
Ver seção 2.3 desta dissertação.
112
Braverman, como já dissemos, que considera o seu próprio livro Trabalho e Capital Monopolista como
um “estudo dos movimentos do trabalho”, que é “uma variante dos movimentos do valor efetuado em Capital
Monopolista”, lembra que este livro de Baran e Sweezy trata “menos dos movimentos da produção que dos
movimentos deste resultado” (Braverman, 1981: 217).
122
Sob o capitalismo competitivo a empresa individual aceita os preços, ao
passo que no capitalismo monopolista a grande empresa é quem faz o preço.
(....) Quando dizemos que as empresas gigantes fazem os preços, queremos
dizer que elas podem escolher, e escolhem, os preços a serem cobrados pelos seus
produtos. decerto limites à sua liberdade de escolha: acima e abaixo de
determinados preços, seria preferível suspender totalmente a produção. Mas,
tipicamente, o âmbito de escolha é amplo (Baran e Sweezy, 1966: 61 e 64).
Não cabe aqui expor todos os elementos que os levam, após o debate crítico com os
economistas de seu tempo, à definição dos superlucros sob o capitalismo monopolista. Em
poucas palavras, podemos dizer que as grandes empresas procuram, em princípio, baixar os
preços para “quebrar” a concorrência. Com isso, podem aumentá-los em seguida, por causa
da diminuição da mesma, levando, dessa forma, a uma significativa tendência ascendente
no nível geral de preços numa economia de capitalismo monopolista. Além disso, teríamos,
com o acordo entre as empresas monopolistas, o fim da disputa do mercado através da
disputas de preços
113
.
O desenvolvimento da exposição revela que nem todas as afirmações dos autores
são desprovidas da conexão com os aspectos da produção e, independente da comprovação
ou não de sua validade empírica, são muito instigantes para a compreensão da dinâmica do
capitalismo monopolista .
Uma vez consolidado um oligopólio estável, com o fim do período de ajustamento,
temos o fim da guerra de preço como arma de luta: a luta por maiores parcelas do mercado
continua, mas com outras armas. Além da campanha de vendas (que será discutida em
pormenores mais à frente), uma delas é a elevação do excedente através da redução dos
custos da produção. mais duas formas da “concorrência extra-preço”: a dinâmica da
divisão do mercado e a campanha de vendas nas industrias de bens de produção (Baran e
Sweezy, 1966: 75). Na primeira forma, “a companhia de menores custos e lucros mais altos
adquire uma reputação especial que lhe permite atrair e manter clientes, roubar pessoal
dirigente de talento de firmas rivais e recrutar os mais capazes engenheiros e economistas”.
Na segunda forma, o desenvolvimento das forças produtivas é o aspecto central:
113
Os próprios autores afirmam que estas tendências não podem ser absolutizadas, porém, não resolvem a
problemática indicada na argumentação anterior: “embora a competição de preços seja normalmente tabu nas
situações de oligopólio, isto não significa que esteja totalmente excluída ou que jamais tenha um papel
importante” (Baran e Sweezy, 1966: 70).
123
Os fabricantes de bens de produção obtêm mais lucros ajudando os outros a
também obter mais lucros. O processo reforça-se a si mesmo e tem caráter
cumulativo, e explica em grande parte o progresso, extraordinariamente rápido, da
tecnologia e da produtividade do trabalho que caracteriza a economia do capitalismo
monopolista desenvolvido (Baran e Sweezy, 1966: 70).
Há, por outro lado, uma tendência ao parasitismo sob os monopólios:
Na medida em que se fixam preços monopolistas, ainda que
temporariamente, desaparecem até certo ponto as causas estimulantes do progresso
técnico e, por conseguinte, de todo o progresso, de todo o avanço, surgindo assim,
além disso, a possibilidade econômica de conter artificialmente o progresso técnico
(Lênin, 2005: 101).
Esta tendência, por sua vez, não é unívoca, que, “sob o capitalismo, o monopólio
não pode nunca eliminar do mercado mundial, completamente e por um período muito
prolongado, a concorrência” (Lênin, 2005: 101).
Mesmo tendo em vista estas ressalvas, não está excluído o aspecto parasitário, cada
vez maior, desta fase do capital. Com o aumento do excedente, e com o domínio do capital
financeiro, por exemplo, temos o “divórcio completo entre o setor dos rentiers e a
produção”, o que “imprime uma marca de parasitismo a todo país, que vive da exploração
do trabalho de uns quantos países e colônias do ultramar” (Lênin, 2005: 102).
No capitalismo monopolista o excedente tende a elevar-se tanto absolutamente
como relativamente. Por isso, Baran e Sweezy propõem a substituição da lei da tendência
decrescente da taxa de lucro pela do excedente crescente. Chegam a afirmar que “o que é
mais essencial na modificação estrutural sofrida pelo capitalismo, de sua forma competitiva
para a monopolista, encontra sua expressão teórica nessa substituição” (Baran e Sweezy,
1966: 79).
Tal afirmação é levada à frente por eles justamente pela pouca atenção, ou mesmo,
negação da lei do valor. Na verdade, é preciso lembrar, a lei do valor se mantém sob o
capitalismo monopolista, pois, mesmo tendo em vista os superlucros de algumas empresas,
o fato de que, “operando uma produtividade do trabalho acima da média, [os
superlucros] poderão ser explicados por uma transferência de valor à custa das firmas
que operam com uma produtividade do trabalho abaixo da média” (Mandel apud: Braz e
Netto, 2006: 189).
124
A substituição da lei da queda tendencial da taxa de lucro é outra questão posta por
eles, e pode ser contraditada. Braz e Netto afirmam o seguinte:
Mesmo os superlucros têm limites: assim como acaba por se estabelecer uma
taxa média de lucro, também acaba por se fixar uma taxa média de superlucros e
embora a existência de uma dupla taxa seja um fenômeno próprio do imperialismo,
salvo conjunturas excepcionais, a tendência à queda da taxa de lucro continua se
fazendo sentir no capitalismo dos monopólios (Braz e Netto, 2006: 190).
De qualquer forma, o exponencial crescimento do excedente impõe a sua absorção
em novas proporções. As três formas de sua absorção são: o consumo; o investimento; e, o
desperdício.
Não nos deteremos nos pormenores da explicação de cada uma destas formas. A
intenção é a apreensão de suas principais características. Uma delas diz respeito ao fato de
que, diante da crescente expansão do excedente, e da finitude dos mercados e das
possibilidades de absorção no consumo e no investimento, e, sendo “o crescimento
acelerante como totalmente irrealista, ficamos com a conclusão inevitável de que o
investimento real de um volume de excedente que se eleva em relação à renda deve
significar que a capacidade de produção da economia cresce mais rapidamente do que o seu
produto” (Baran e Sweezy, 1966: 88).
Buscam-se, primeiramente, soluções teóricas ineficazes na descoberta das contra-
tendências desta lei. A “solução” parece encontrar-se não no investimento endógeno, mas
no exógeno, ou seja, no investimento que ocorre “independentemente dos fatores de
procura criados pelo funcionamento normal do sistema”. Segundo a literatura econômica,
se destacam três tipos de investimentos: 1) para atender às necessidades de uma população
em crescimento; 2) em novos métodos de produção e novos produtos; 3) no exterior.
Segundo Baran e Sweezy, os dois primeiros tipos ou perdem sua validade ou se
transformam no capitalismo monopolista e, por isso, não constituem uma solução para o
problema da absorção do excedente.
Sobre o terceiro, Lênin havia afirmado: “Enquanto o capitalismo for capitalismo o
excedente de capital não é consagrado à elevação do nível de vida das massas do país, pois
significaria a diminuição dos lucros dos capitalistas, mas ao aumento desses lucros através
da exportação de capitais para o exterior, para os países atrasados” (Lênin, 2005: 62). Baran
e Swezy, contrariamente, apresentam o desenvolvimento de uma característica
125
diferenciada. Para eles, o investimento no exterior “como escoadouro para o excedente
investível criado no setor das grandes empresas do sistema do capitalismo monopolista”
também “não desempenha um papel importante, nem isto seria de esperar”. Isto deve-se ao
fato de que, “mesmo nos casos em que somas substanciais de capitais são exportadas, a
expansão subseqüente ocorre, comumente, pelo reinvestimento dos lucros” (Baran e
Sweezy, 1966: 110-111).
A única conclusão possível é que o investimento no exterior, longe de ser
um escoadouro para o excedente criado internamente, é um recurso dos mais
eficientes para a transferência do excedente gerado no exterior para o país
investidor. Nessas circunstâncias, é evidente que o investimento no exterior agrava,
ao invés de ajudar a resolver, o problema de absorção do excedente (Baran e
Sweezy, 1966: 112).
Deixado à sua própria sorte o capitalismo monopolista seria levado a uma
estagnação constante, tendo em vista as tendências que salientamos. Contudo forças
neutralizantes. O excesso que, como nunca, surge no capitalismo monopolista como um
problema geral tem, num primeiro momento, a redução da produção como tentativa de
contê-lo. Depois, surgem estratégias que justificam “que o inverso de ‘excesso’ na oferta é
a ‘insuficiência’ na procura; (e) ao invés de reduzir a oferta, preferem estimular a procura”
(Baran e Sweezy, 1966: 114). Dada a “impossibilidade” de estimular a procura pela
diminuição dos preços dos produtos, segundo os autores, no capitalismo monopolista, surge
o estímulo através da campanha de vendas.
A campanha de vendas se enquadraria naquilo que foi denominado por Marx de
despesas da circulação, que, no capitalismo monopolista, ganha uma dimensão e
desempenha um papel quantitativo e qualitativo inimaginável à época de Marx. Ela surge
antes da fase monopolista, mas só nesta fase passa a constituir um de “seus centros
nervosos centrais” e em “seu impacto sobre a economia”, é superada “apenas pelo
militarismo. Em todos os outros aspectos da existência social, sua influência generalizada
supera qualquer outra” (Baran e Sweezy, 1966: 120).
A campanha de vendas exemplifica a formulação de mais uma lei do capitalismo
monopolista, na qual opera-se a substituição das antigas formas de concorrência no
capitalismo: opera-se o fim da competição dos preços como meio de atrair a preferência
do público, dando lugar a novos modos de promoção de vendas: publicidade, variação dos
126
aspectos dos produtos, de sua embalagem, a ‘obsolescência planejada’, as modificações de
modelos, vendas a crédito, etc.” (Baran e Sweezy, 1966: 120). Apesar da negação que
realizamos anteriormente da teoria da inexistência de concorrência de preços sob os
monopólios, consideramos factual o desenvolvimento deste setor como mais um elemento
importante nesta disputa.
A publicidade (e a campanha de vendas no geral) é custeada de duas formas. Tendo
em vista sua dedução do excedente total, expressa-se pelo aumento do preço para os
consumidores: 1) quando o produto é consumido pelos trabalhadores produtivos, temos um
aumento dos preços custeado pela redução dos seus salários e, dessa forma, o excedente
aumenta; 2) quando consumido pelos capitalistas ou trabalhadores improdutivos, não temos
um aumento do excedente, mas sua redistribuição: “certas pessoas que dele vivem são
privadas de uma fração de sua renda a fim de manter outras pessoas que vivem do
excedente, ou seja, os que obtêm suas rendas dos salários e lucros criados pela própria
‘indústria’ de vendas” (Baran e Sweezy, 1966: 130).
Há impactos diretos na estrutura de renda, assim como na esfera produtiva da
economia, pois a publicidade, do mesmo modo como o dispêndio governamental, tende a
expandir a renda e a produção total.
Nos seus efeitos indiretos temos: os que afetam a disponibilidade e a natureza das
oportunidades de investimento e os que afetam a divisão da renda social total. No primeiro
caso, “tornando possível criar a procura de um produto, a publicidade estimula o
investimento em instalações e equipamento, o que de outra forma o ocorreria”. Este
desperdício de recursos tem sua justificativa racional, pois, “diante do desemprego e da
capacidade ociosa, esses recursos teriam, de qualquer modo, continuado sem utilização: a
publicidade cria um acréscimo líquido ao investimento e à renda” (Baran e Sweezy, 1966:
131).
o segundo aspecto implica numa profunda estratificação da classe trabalhadora.
Sua análise torna-se fundamento obrigatório para a compreensão do parasitismo e da
burocratização no capitalismo monopolista:
A estratificação dentro da classe trabalhadora, rigorosamente definida,
aumentou, e muitas categorias de trabalhadores especializados e burocratas obtêm
rendas e status social que eram, até bem pouco tempo, desfrutados apenas pelos
membros das classes médias. Ao mesmo tempo, a velha camada de ‘comedores do
excedente’ aumentou, e novas camadas surgiram: burocratas das companhias e
127
governamentais, banqueiros e advogados, publicitários e peritos em relações
públicas, corretores de títulos e de seguros, especuladores imobiliários e agentes
funerários, e assim por diante, numa sucessão aparentemente sem limite (Baran e
Sweezy, 1966: 131-132 – grifos meus).
A campanha de vendas, além do papel desempenhado de travar uma guerra
permanente em favor do consumo em detrimento da poupança, destaca-se por outra função
importante. não é mais um ator coadjuvante em relação à indústria, pois, “invade cada
vez mais a fábrica e a oficina, ditando o que deve ser produzido de acordo com os critérios
estabelecidos pelo departamento de vendas e seus consultores e conselheiros da indústria de
publicidade” (Baran e Sweezy, 1966: 134).
Os autores indicam problemas conceituais decorrentes da identificação e separação
entre as diferentes esferas no contexto da produção. Quando a campanha de vendas é
realizada separadamente ficam mais fáceis as distinções, quando estão unidas a
diferenciação se torna quase impossível:
Como devemos fazer quando os custos de venda são literalmente
indistinguíveis dos custos de produção, como por exemplo no caso da indústria
automobilística? Ninguém duvida de que uma grande parte do trabalho real na
produção de um automóvel (...) tem a finalidade não de fazer um produto útil, mas
um produto mais vendável. Mas o automóvel, depois de planejado, é uma unidade
produzida pelos esforços combinados de todos os trabalhadores na oficina e na linha
de montagem. Como distinguir os trabalhadores produtivos dos improdutivos?
Como separar os custos de venda e os de produção?
A resposta é que eles não podem ser distinguidos e separados à base de
qualquer dado registrado na contabilidade das companhias automobilísticas. O
único processo sensato consiste em comparar os custos reais dos automóveis, tais
como são, inclusive todas as suas características destinadas a promover venda, com
os custos prováveis dos automóveis planejados para executar as mesmas funções,
mas do modo mais seguro e eficiente (Baran e Sweezy, 1966: 137-138).
As perguntas por eles formuladas são absolutamente pertinentes, mas as respostas
possuem um equívoco na formulação. Eles buscam desvendar o mistério da diferenciação
entre os trabalhos produtivos e improdutivos e entre a parte relativa à produção
propriamente dita e os custos da campanha de vendas através da comparação entre um
suposto produto útil e o produto produzido para a venda. Acontece que partem de uma
concepção de utilidade sem levar em conta que ela, na sociedade capitalista, é forjada a
partir das necessidades criadas sob o prisma deste modo de produção. Neste sentido, as
128
necessidades, sejam do espírito ou do estômago, são também induzidas ou recriadas
constantemente de forma que melhor se enquadre na lógica da realização do valor e,
mesmo de outra forma, ou em qualquer caso, o valor de troca é inseparável do valor de uso.
Em síntese: mesmo que não atenda aos mais racionais critérios de segurança e eficiência
um produto não deixa de ser útil.
É por isso que, por mais instigante que seja a sua proposição de comparação entre o
preço “real” e o preço ideal” do produto, o que ainda continua válido, para a
caracterização do valor real de uma mercadoria, é o tempo de trabalho necessário para sua
produção. Mas, uma afirmação como essa implicaria que eles abandonassem a teoria dos
superpreços monopolistas e a negação da tendência decrescente da taxa de lucro.
De todo jeito, suas perguntas continuam sendo difíceis de serem respondidas, e
implicam não somente o estudo das variações de preços, mas, sobretudo, da composição do
tempo de trabalho necessário para a produção das mercadorias, levando em conta as
diferenciações na estrutura da divisão do trabalho própria à unidade produtiva no
capitalismo monopolista.
Outra forma de escoar o excedente produzido é a destinação parasitária dos setores
de Finanças, Seguros e Propriedade Imobiliária. Estes setores são necessários ao modo de
produção capitalista, principalmente em sua fase monopólica, mas isto não significa que em
outro tipo de organização social continuaria vigente sua necessidade.
Se todos os tipos de seguros fossem proporcionados automaticamente a
todos, como parte de um sistema amplo de seguro social, toda a seqüência de
agentes, vendedores, coletores, contadores, atuários e enormes edifícios onde
possam trabalhar poderiam ser eliminados. E quanto aos imóveis (...) um corpo de
funcionários supervisores e de atendimento é, evidentemente, necessário, mas todo
o comércio parasitário de compra e venda e especulação em imóveis, que é onde se
ganha dinheiro no capitalismo, não teria razão de existir (Baran e Sweezy, 1966:
144).
Todas as características elencadas até aqui constituem elementos fundamentais para
estimular o nível de renda e emprego, e o fato de mostrarem-se como “custos necessários
da produção capitalista” somente explicitam que o “sistema econômico no qual esses custos
são socialmente necessários muito deixou de ser um sistema econômico socialmente
necessário” (Baran e Sweezy, 1966: 145).
129
O governo tem um papel ainda maior na absorção do excedente, porém seus usos do
excedente são cada vez mais limitados e destrutivos.
Baran e Sweezy criticam as teorias que tendiam a considerar que o capitalismo
operava com sua capacidade produtiva plena e, por isso, acreditavam que o aumento dos
gastos governamentais seria a expensas de alguns ou de todos os membros da sociedade. E,
dado o fato de que o salário tenderia a corresponder com o mínimo para a subsistência, os
gastos recairiam sobre as classes que recebem o excedente: “parte do que elas consumiriam,
de outro modo, ou acrescentariam ao seu estoque de capital vai para o Estado, através da
tributação para manutenção de funcionários, polícia, forças armadas, assistência aos
necessitados, etc.” (Baran e Sweezy, 1966: 146). Suporia-se, portanto, que o governo que
reduzisse suas atividades às policiais seriam os mais adequados para os interesses do
capital. No capitalismo monopolista, de forma contrária, revelam-se alterações
fundamentais:
Nele, a situação normal é de produção inferior à capacidade.(...) Se esses
recursos ociosos puderem ser postos em atividade, produzirão não só os meios
necessários de subsistência para os produtores, mas também volumes adicionais de
excedente. Daí, se o Governo criar mais procura efetiva, poderá aumentar seu
controle sobre os bens e serviços sem interferir nas rendas de seus cidadãos. Essa
criação da procura efetiva pode tomar a forma de compras governamentais diretas
de bens e serviços, ou de ‘pagamentos de transferência’ a grupos que podem, de
alguma forma, justificar sua pretensão de tratamento especial (subvenções a homens
de negócios e agricultores, benefícios aos desempregados, pensões aos velhos, etc.)
(Baran e Sweezy, 1966: 147).
As despesas e a tributação do Governo aparecem, portanto, não como transferência
de renda, mas como criação de renda, ao pôr “em produção capital e trabalho ociosos” e,
que “se o que o Governo toma não teria, de outra forma, sido produzido, não se pode dizer
que tenha sido arrancado de ninguém” (Baran e Sweezy, 1966: 153-154). Sem dúvida
alguns setores que perdem com a elevação dos impostos (“os que vivem de rendimentos, os
pensionistas, os grupos de trabalhadores não-organizados”), mas o impacto na dinâmica
econômica em favor do conjunto dos trabalhadores é mais importante:
A perda destes grupos é de grandeza e de importância secundária, se
comparadas aos ganhos daquela grande parte dos trabalhadores que devem seu
emprego, direta ou indiretamente, aos dispêndios governamentais. Além disso, a
capacidade de negociação da classe operária como um todo e, portanto, sua
capacidade de defender ou melhorar seu padrão de vida são, sem dúvida, maiores na
130
medida em que o nível de desemprego é menor. Assim, dentro da estrutura do
capitalismo monopolista, as classes de renda mais baixa, tomadas como um todo,
melhoram com um dispêndio governamental mais intenso e com impostos mais
elevados (Baran e Sweezy, 1966: 154).
Baran e Sweezy, comparando os diferentes gastos governamentais, notam que o
orçamento militar constitui, sob o capitalismo monopolista, a sua parcela fundamental:
A absorção maciça do excedente em preparativos militares foi o fator chave
da histórica econômica dos Estados Unidos, no pós-guerra. Cerca de seis ou sete
milhões de trabalhadores, ou mais de 9% da força de trabalho, dependem hoje, em
seus empregos, do orçamento militar. Se as despesas militares fossem novamente
reduzidas às proporções anteriores à Segunda Guerra Mundial, a economia norte-
americana voltaria a um estado de depressão profunda, caracterizada por taxas de
desemprego de 15% e mais, como ocorreu durante a década de 1930 (Baran e
Sweezy, 1966: 156-157).
Os gastos governamentais com o militarismo
114
são decorrentes das necessidades
próprias ao capitalismo monopolista, e aqueles que procuram mistificar as suas tendências,
propondo uma alteração destes gastos em favor de um Estado de bem-estar social, na
verdade, ignoram os fundamentos do poder político na sociedade capitalista sob os
monopólios.
O Estado no capitalismo monopolista, do ponto de vista de sua dimensão política,
não será o foco específico de nosso estudo. Vale lembrar que “o monopólio, uma vez que
foi constituído e controla milhões e milhões, penetra de maneira absolutamente inevitável
em todos os aspectos da vida social, independente do regime político e de qualquer outra
particularidade” (Lênin, 2005: 57). Por isso, precisamos apreender suas determinações
114
Apesar do militarismo ser o mais determinante fator para a análise do período do imperialismo e do
capitalismo monopolista, não nos deteremos em sua análise pelo fato de priorizar a estrutura da “burocracia”
civil, seja ela “pública” ou “privada”, em nosso estudo. Além disso uma questão conceitual importante
para que privilegiemos a unidade produtiva como foco, e ela é resumida por Braverman: “O excedente que
procuramos, pelo fato de ser um excedente de trabalho mais que de valor, é um tanto diferente daquele
excedente que Baran e Sweezy estudaram. Por exemplo, para os fins que eles tinham em mente era
perfeitamente adequado incluir no excedente econômico o enorme e aparentemente irredutível
estabelecimento militar mantido pelo capital com enorme ônus social. Este é, evidentemente, um dos
principais modos pelos quais a abundância criada pela produção moderna é absorvida, drenada, desperdiçada,
beneficamente para o capital embora com grave prejuízo para a sociedade. Mas na medida em que esta
instituição militar implica o sustento da demanda de produtos da indústria fabril, o trabalho assim utilizado já
foi tido em conta no setor manufatureiro da Economia. O fato de que o trabalho seja utilizado na fabricação
de produtos úteis ou nocivos não nos interessa no momento. Interessa-nos o excedente do trabalho distribuído
em novas formas de produção ou não produção, visto que foi deste modo que a estrutura ocupacional e
portanto a classe trabalhadora foi transformada” (Braverman, 1981: 218).
131
mais profundas, antes de qualquer análise estritamente política. Por hora necessitamos
desvendar os mistérios intrínsecos à produção capitalista e a divisão do trabalho própria ao
novo período que acabamos de caracterizar em linhas gerais.
3.2- Produção capitalista e divisão do trabalho no capitalismo monopolista
A sociedade capitalista, com seu desenvolvimento pleno, torna, definitivamente, o
valor de troca como o princípio determinante de toda a vida social. Esta tendência
universalizadora, em sua fase inicial, se mostra como um método progressista no sentido
da ruptura com os laços de dependência pessoal próprios ao feudalismo. Contudo, o seu
desenvolvimento exponencial logo encontra limites, e leva à ampliação do elemento
irracional que é imanente a todo este processo de racionalização. Baran e Swezy resumem
este desenvolvimento:
Somente à base da troca equivalente era possível conseguir a utilização mais
racional dos recursos humanos e materiais que foi a realização central do
capitalismo. Ao mesmo tempo, jamais devemos esquecer que a racionalidade do
quid pro quo é especificamente uma racionalidade capitalista, que a certa fase do
desenvolvimento se torna incompatível com forças produtivas e relações de
produção subjacentes. Ignorar isso e tratar o quid pro quo como uma máxima
universal de conduta é, em si, um aspecto da ideologia burguesa (Baran e Sweezy,
1966: 333-334).
Para Marx este pleno desenvolvimento das relações de troca na sociedade burguesa
impõe uma superação, que não é somente teórica (mas na qual a teoria tem peso
importante). Somente a partir da consolidação da “idéia de igualdade humana”, como
consistente convicção popular, será possível “decifrar o segredo da expressão do valor” e a
“igualdade e a equivalência de todos os trabalhos” enquanto trabalho humano em geral:
“essa descoberta é possível numa sociedade em que a forma mercadoria é a forma geral
do produto do trabalho, e, em conseqüência, a relação dos homens entre si como
possuidores de mercadorias é a relação social dominante (Marx, 1985: 68).
Se, ao tempo de Marx, a expansão destas relações permitiu que ele encontrasse
teoricamente as características estruturais deste modo de produção, com o exponencial
desenvolvimento sob os monopólios, faz-se necessário compreender as idas e vindas destas
tendências.
132
No que se refere à divisão do trabalho uma importante distinção que Marx realiza
nos permite analisar este fenômeno de forma mais clara. Ele diferencia a divisão do
trabalho própria à unidade produtiva, seja ela uma manufatura ou indústria e a divisão
social do trabalho, que diz respeito às relações entre estas unidades produtivas entre si, e
por conseguinte, sua relação com a totalidade da vida social. Enquanto na primeira o
fundamento determinante é a crescente racionalização, na divisão social do trabalho impera
uma irracionalidade própria à concorrência e à realização dos interesses privados. No
capitalismo monopolista pode-se observar esta dinâmica de forma aguda:
A empresa gigante retira da esfera do mercado grandes parcelas da atividade
econômica, sujeitando-as à administração científica planejada. Essa modificação
representa um aumento contínuo na racionalidade das partes do sistema mas não é
acompanhada de qualquer racionalização do todo (Baran e Sweezy, 1966: 334).
A vigência desta divisão e seu crescimento, no capitalismo monopolista, aparece,
aos olhos da sociedade, de forma naturalizada, como fosse condição ineliminável do
trabalho humano. Mas Marx, porém, demonstrando as diferenças fundamentais entre
divisão social do trabalho e a divisão do trabalho na unidade produtiva, salienta que ambas
não podem ser consideradas de um ponto de vista a-histórico. Somente o trabalho como
criador de valores de uso, “indispensável à existência do homem, quaisquer que sejam as
formas de sociedade, é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material
entre o homem e a natureza, e, portanto, de manter a vida humana” (Marx, 1985: 50). A sua
divisão social e industrial absolutamente.
Muito antes da universalização do modo capitalista de produção a divisão social do
trabalho existia
115
, assim como, no capitalismo, é característica fundamental a
diferenciação entre divisão social do trabalho e sua divisão na unidade produtiva
116
.
Daí o conteúdo supostamente autônomo e anárquico do mercado em contraposição
ao rigoroso controle e “racionalização” no ambiente fabril. O caráter irracional
117
da
divisão social do trabalho capitalista é resumido na seguinte passagem:
115
A divisão social do trabalho “é condição para que exista a produção de mercadorias, embora,
reciprocamente, a produção de mercadorias não seja condição necessária para existência da divisão social do
trabalho” (Marx, 1985: 49)
116
Esta é a “divisão sistemática do trabalho, mas essa divisão não leva os trabalhadores a trocarem seus
produtos individuais. se contrapõem, como mercadorias produtos privados e autônomos, independentes
entre si” (Marx, 1985: 50).
133
Os componentes dispersos do organismo social de produção, configurados
na divisão social do trabalho, têm suas funções e proporcionalidade determinadas de
maneira espontânea e alheatória. Por isso, descobrem nossos donos de mercadorias
que a mesma divisão do trabalho, ao fazer deles produtores privados, torna
independente deles o processo social de produção e as próprias relações que
mantém dentro do processo, e, ainda, que a independência recíproca das pessoas se
integra num sistema de dependência material de todas as partes (Marx, 1985: 121).
A divisão social do trabalho “é a separação da produção social em seus grandes
ramos, agricultura, indústria etc.”, é a divisão do trabalho em geral, ou seja, “a
diferenciação desses grandes ramos em espécies e variedades”. A divisão do trabalho sob a
manufatura é a divisão do trabalho em particular, ou seja, “a divisão do trabalho numa
oficina”, “divisão do trabalho individualizada, singularizada
118
(Marx, 1985: 402). Elas se
relacionam da seguinte forma:
Sendo a produção e a circulação de mercadorias condições fundamentais do
modo de produção capitalista, a divisão manufatureira do trabalho pressupõe que a
divisão do trabalho na sociedade tenha atingido certo grau de desenvolvimento.
Reciprocamente, a divisão manufatureira do trabalho, reagindo, desenvolve e
multiplica a divisão social do trabalho (Marx, 1985: 404-405).
A autoridade impera na fábrica e a anarquia na divisão social do trabalho: “Na
sociedade em que rege o modo capitalista de produção condicionam-se reciprocamente a
anarquia da divisão social do trabalho e o despotismo da divisão manufatureira do
trabalho
119
” (Marx, 1985: 408).
117
Este caráter irracional tem fundamental importância para analisar uma série de tendências estruturais do
capitalismo pois revela a possibilidade da não-realização no mercado do valor produzido: “Evidentemente, a
mercadoria ama o dinheiro, mas ‘nunca é sereno o curso do verdadeiro amor’” (Marx, 1985: 120).
118
Sobre a divisão social do trabalho na etapa primitiva do desenvolvimento social: na família e tribos e seu
desenvolvimento até a separação entre cidade e campo: Ver: Marx, 1985: 403-404. Sobre a divisão do
trabalho no modo de produção asiático ver: Marx, 1985: 409-410.
119
“A divisão manufatureira do trabalho pressupõe a autoridade incondicional do capitalista sobre seres
humanos transformados em simples membros de um mecanismo que a ele pertence. A divisão social do
trabalho faz confrontar-se produtores independentes de mercadorias, os quais não reconhecem outra
autoridade além da concorrência, além da coação exercida sobre eles pela pressão dos recíprocos interesses,
do mesmo modo que no reino animal a guerra de todos contra todos, o bellum omnium contra omnes, preserva
mais ou menos as condições de existência de todas as espécies. O mesmo espírito burguês que louva, como
fator de aumento da força produtiva, a divisão manufatureira do trabalho, a condenação do trabalhador a
executar perpetuamente uma operação parcial e sua subordinação completa ao capitalista, com a mesma
ênfase denuncia todo controle e regulamentação sociais conscientes do processo de produção como um ataque
aos invioláveis direitos de propriedade, de liberdade e de iniciativa do nio capitalista. É curioso que o
argumento mais forte até agora encontrado pelos apologistas entusiastas do sistema de fábrica, contra
qualquer organização geral do trabalho social, seja o de que esta transformaria toda a sociedade numa
fábrica.” (Marx, 1985: 408).
134
Hegel havia identificado uma série de elementos do trabalho sob o capitalismo,
mas sua teoria só podia apreender ainda seus elementos gerais, e por isso, apesar de
apresentar algumas características reais da divisão do trabalho, pressupunha um
desenvolvimento progressista destas tendências sob a forma racional burguesa:
O universal e objetivo no trabalho reside, porém, na abstração, que efetua a
especificação dos meios e das carências e, precisamente com isso especifica a
produção e produz a divisão dos trabalhos. Pela divisão do trabalho do singular
torna-se mais simples e graças a isso torna-se maior a sua habilidade no trabalho
abstrato, bem como o conjunto de suas produções. Ao mesmo tempo, essa abstração
da habilidade e do meio tornam completas até uma necessidade total a dependência
e a relação recíproca entre homens em vista da satisfação das demais carências. A
abstração do produzir torna o trabalho, além disso, sempre mais mecânico e, com
isso, ao fim, apto para que o homem dele se retire e a máquina possa entrar em seu
lugar (Hegel, 2000: 31).
Muitos críticos sociais, porém, antes e depois de Marx, identificaram na divisão do
trabalho um conteúdo alienante, e procuraram respostas que repusessem o desenvolvimento
dos seres humanos completos, uns, de um ponto de vista romântico, com a idéia de retorno
a um passado onde esta divisão não existia, outros, de forma mais crítica, apontavam para o
futuro. Marx e Engels acreditavam que sua solução estava no desenvolvimento máximo,
através do progresso científico e tecnológico, da produtividade do trabalho humano. Este,
entretanto, encontrava barreiras intransponíveis sob a forma capitalista de produção. Há os
que acreditam que isto foi uma “suposição ilusória”.
Marx julgou que esse alto grau de produtividade do trabalho poderia ser
alcançado num ‘estágio superior da sociedade comunista’. Podemos ver, agora, que
tal suposição foi ilusória, que, do ponto de vista da elevação da produtividade do
trabalho, o capitalismo tinha um potencial muito maior do que Marx ou mesmo
qualquer dos cientistas sociais burgueses da época imaginaram. A empresa gigante
revelou-se um instrumento de eficiência sem precedente na promoção da ciência e
tecnologia, e em sua colocação a serviço da produção de mercadorias (Baran e
Sweezy, 1966: 338-339).
Se é verdade que esta expansão é contínua, não se pode afirmar que as barreiras
para um desenvolvimento ainda maior não continuem operando. Além disso, continua
vigente a manutenção de relações de produção que supõem a fragmentação cada vez maior
do trabalho e continuidade da especialização e isolamento dos homens através da divisão
do trabalho. Vê-se “sufocadas as suas faculdades e reduzidas as suas mentes. E uma
135
ameaça à sua segurança e paz de espírito, que era grande na época de Marx, cresceu em
proporção direta com a crescente incidência e acelerada transformação tecnológica sob o
capitalismo monopolista” (Baran e Sweezy, 1966: 339).
Um processo cada vez mais acelerado exige, contraditoriamente, o aumento
constante da velocidade de sua rotação, sem que se levem em consideração as reais
necessidades da maior parte da humanidade: “quanto mais avançada a ciência e quanto
mais racionais os cálculos, mais veloz e calamitosamente esta irracionalidade é engendrada.
Como o capitão Ahab, o capitalista pode dizer: ‘Todos os meus meios são lúcidos, meus
motivos e objetivos são loucos’” (Braverman, 1981: 178).
No capitalismo monopolista o pleno desenvolvimento das forças produtivas tem
como conseqüência a tendência de expansão da divisão do trabalho para várias “esferas da
sociedade, além da econômica, lançando por toda parte a base para o desenvolvimento das
especialidades, para um parcelamento do homem que levou A. Fergunson, o mestre de A.
Smith, a exclamar: ‘Construímos uma nação de hilotas e não temos cidadãos livres’”
(Marx, 1985: 406).
Não só a imensa máquina militar pode servir para ilustrar a crescente desumanidade
e parasitismo do capitalismo monopolista.
Mas não apenas os que manejam e abastecem a máquina militar que estão
empenhados numa empresa anti-humana. O mesmo se pode dizer, em graus
variados, de muitos milhões de outros trabalhadores que produzem e criam a
procura de bens e serviços de que ninguém precisa. E tão interdependentes são os
setores e ramos da economia que quase todos estão envolvidos, de uma forma ou de
outra, nessas atividades anti-humanas (Baran e Sweezy, 1966: 341).
São diversos os setores criados a partir da “irracionalidade” do sistema de produção
e distribuição sob os monopólios. Porém, não podemos ficar presos à interpretação que
salienta os modos irracionais da distribuição do excedente, é preciso analisar o centro desta
produção de irracionalidades, já que, na ótica do capital, não é a razão ou a não-razão, não é
o valor humano o determinante, mas a necessidade perene de acumular. Impõe-se uma
inflexão na análise da “burocratização”. O estudo da “evolução do processo do trabalho
dentro das ocupações, bem como as alternâncias de trabalho entre as ocupações” permitem
esta viragem.
136
Bravermam, ao empreender esta tarefa, depara-se com uma falta de estudos, mesmo
marxistas, sobre este fenômeno, e constata que, após o livro primeiro do Capital, pouco se
desenvolveu. Acredita que, diante de algumas mudanças no modo de produção, uma nova
investigação, que atualize a observação de novos fenômenos, é necessária, principalmente
pelo fato de que “o aumento do trabalho técnico no comércio e na administração parecia
alterar a estrutura bipolar de classe de Marx e incluir um elemento perturbador”
(Braverman, 1981: 20).
No século XX os movimentos trabalhistas experimentam uma acomodação tendo
em vista que o alto grau de produtividade do trabalho proporciona um consumo
significativo à classe trabalhadora. Esta acomodação tem reflexo na formulação teórica dos
marxistas: “a crítica do modo de produção cedia lugar à crítica do capitalismo como modo
de distribuição”. Os marxistas “adaptaram-se à maneira de ver a fábrica moderna como
uma inevitável mas aperfeiçoável forma de organização do trabalho
120
(Braverman, 1981:
21).
Revela-se que a pertinência da análise concreta da estrutura de classes é condição
necessária para o fortalecimento do marxismo, e, neste sentido, ele havia se tornado
débil
121
:
3.2.1- A Gerência Moderna
O desenvolvimento histórico da “burocratização”, que a sociologia busca, por
diversas formas, escamotear, pode ser ilustrado pela forma como o processo de trabalho
passa das mãos do trabalhador para a do capitalista. É quando se apresenta a questão da
gerência. Veremos que, diferentemente da interpretação da sociologia, esta “alienação”
120
“Se a velha Democracia Social tendia a ver o modo de produção capitalista como uma empresa
imensamente poderosa e bem sucedida com a qual era preciso conciliar, os comunistas tendiam a vê-lo com
igual admiração como a fonte da qual era preciso aprender e obter, e que teria de ser imitada se a União
Soviética quisesse nivelar-se ao capitalismo e lançar as bases para o socialismo” (Braverman, 1981: 22).
121
“De qualquer modo, e sejam quais forem os fatores realmente em ação, a crítica do modo capitalista de
produção, que era a mais contundente arma do marxismo, gradualmente perdeu seu gume, à medida que a
análise marxista da estrutura de classe da sociedade deixava de atualizar-se com o rápido processo de
mudança. Tornou-se agora lugar-comum asseverar-se que o marxismo era apropriado apenas para a definição
de ‘proletariado industrial’, e que, com a relativa redução daquele proletariado em dimensão e peso social, o
marxismo, pelo menos nesse sentido, tornou-se ‘fora de moda’. Em conseqüência dessa obsolescência não
corrigida, o marxismo tornou-se mais frágil, precisamente no ponto em que era originalmente mais forte”
(Braverman, 1981: 22-23).
137
aparece de forma mais direta e clara na visão dos gerentes e teóricos da administração, nos
primórdios da “gerência científica”
122
.
O problema da gerência está posto, na verdade, desde o início da forma capitalista
de produzir, que a “atuação simultânea de grande número de trabalhadores, no mesmo
local, ou se quiser, no mesmo campo de atividade constitui, histórica e logicamente, o
ponto de partida da produção capitalista” (Marx, 1983: 370).
Neste contexto inicial o trabalho permanecia sob imediato controle dos produtores,
pois dominavam o conhecimento tradicional e as perícias de seus ofícios. Marx mostra
como se o processo de apropriação destes conhecimentos pelo capital em sua primeira
forma:
Dentro do processo de produção conquistou o capital o comando sobre o
trabalho, sobre a força de trabalho em funcionamento ou seja sobre o próprio
trabalhador. O capital personificado, o capitalista, cuida de que o trabalhador realize
sua tarefa com esmero e com o grau adequado de intensidade.
O capital transforma-se, além disso, numa relação coercitiva, que força a
classe trabalhadora a trabalhar mais do que exige o círculo limitado das próprias
necessidades. E como produtor da laboriosidade alheia, sugador de trabalho
excedente e explorador de força de trabalho, o capital ultrapassa em energia, em
descomedimento e eficácia todos os sistemas de produção anteriores fundamentados
sobre o trabalho compulsório direto.
De início, o capital submete o trabalho ao seu domínio nas condições
técnicas em que o encontra historicamente. Não modifica imediatamente o modo de
produção (Marx, 1985: 354).
O capitalista assumiu a função de gerente em virtude de sua propriedade do capital.
Ele possuía a propriedade do tempo dos trabalhadores assalariados, tanto quanto a dos
meios de produção.
A estrutura de base, porém, revela sempre traços essenciais comuns: assim
como, no próprio trabalho, o saber real sobre os processos naturais envolvidos em
122
“A perfeita expressão do conceito de qualificação na sociedade capitalista é o que se encontra nos lemas
estéreis e rudes dos primeiros tayloristas, que descobriram a grande verdade do capitalismo segundo o qual o
trabalhador deve tornar-se um instrumento de trabalho nas mãos do capitalista, mas que não haviam
aprendido ainda a sabedoria de adornar, obscurecer e confundir esta necessidade do modo como fazem a
gerência e a Sociologia modernas. ‘Que acontece ao trabalhador não qualificado sob a Gerência Científica?’,
pergunta Gilbreth em seus Primer neste assunto. ‘Sob a Gerência Científica não absolutamente trabalho
não qualificado; ou, pelo menos trabalho que permaneça não qualificado. Trabalho não qualificado é ensinado
do melhor método possível.... Nenhum trabalho é não qualificado depois de ensinado’ (...) ‘Instruir um
trabalhador significa capacitá-lo apenas capacitá-lo a executar as diretrizes do seu programa de trabalho.
Desde que ele possa fazer isso, terminou sua instrução, seja qual for a sua idade’” (Braverman, 1981: 377-
378).
138
cada caso concreto é imprescindível para poder desenvolver com êxito o
intercâmbio orgânico da sociedade com a natureza, do mesmo modo, um certo saber
sobre a natureza dos homens, sobre suas recíprocas relações sociais e pessoais, é
aqui indispensável para induzi-los a efetuar as posições teológicas desejadas
(Lukács, 2007: 235).
No início essa compreensão ainda não era consolidada sob sua nova forma
capitalista, tanto é que ainda durou um tempo para o conjunto de relações feudais serem
totalmente abolidas e, por isso, “só mais tarde pôde ocorrer a transformação dos métodos de
produção em virtude da subordinação do trabalho ao capital” (Marx, 1985: 209)
Essa dificuldade inicial de diferenciar a força de trabalho e o trabalho que pode ser
obtido com ela levou a uma variedade de sistemas de subcontratação e “desligamento”, de
que é um exemplo o trabalho domiciliar, entre outros. Mesmos nas primeiras fábricas,
muitas vezes, os capatazes “juntavam às funções de supervisão a prática de tomar a seus
cuidados umas poucas máquinas e pagar o salário a quem operasse” (Braverman, 1981: 63).
Os primeiros sistemas de tarefas domiciliares e de subcontratação
representavam uma forma de transição, fase durante a qual o capitalista não havia
ainda assumido a função essencial de direção no capitalismo industrial e o controle
sobre o processo de trabalho; por esta razão era incompatível com o
desenvolvimento geral da produção capitalista, e sobrevive apenas em casos
especiais (Braverman, 1981: 64).
Esta mescla do capitalismo industrial com o mercantil permitia poucos
desenvolvimentos, já que a forma ainda caótica da organização produtiva limitava as
transformações dos processos de produção, e não permitia um maior desenvolvimento da
divisão do trabalho. Logo essa indeterminação é superada. Apesar do controle de grandes
turmas de trabalhadores anteceder de muito à época burguesa, é nesta em que o capitalista
vai definitivamente assumir a posição de “maestro” e “comandante” deste processo de
trabalho.
O puro emprego de muitos trabalhadores leva a “uma revolução nas condições
materiais do processo de trabalho” pois “uma parte dos meios de produção é agora utilizada
em comum” (Marx, 1985: 373), e, por isso, proporcionalmente àqueles utilizados
individualmente, custam mais baratos. Além disso, quando falamos em cooperação,
tratamos da criação de uma força produtiva nova a força coletiva: agora os trabalhos
individuais podem representar, “como partes do trabalho total, diferentes fases do processo
139
de trabalho, percorridas mais rapidamente pelo objeto de trabalho em virtude da
cooperação
123
” (Marx, 1985: 374-375).
A condição para a cooperação é, portanto, a concentração de grande quantidade de
meios de produção. A necessidade de uma quantidade mínima de acúmulo de capital,
observada historicamente como condição para liberar o mestre artesão do trabalho manual e
transformá-lo em capitalista, é agora exigida para a conversão dos trabalhos isolados em
trabalho social combinado: “O comando do capitalista no campo da produção torna-se
então tão necessário quanto o comando de um general no campo de batalha” (Marx, 1985:
379).
Temos agora uma nova situação criada pelas novas relações sociais de produção:
fica mais evidente o antagonismo entre os que administram e os que executam.
A força produtiva desenvolvida pelo trabalhador através da cooperação se apresenta
como trabalho social e é produtividade do capital, é desenvolvida gratuitamente para ele.
Daí a necessidade da gerência: o sentido é ampliar esta produtividade coletiva. A posição
de gerente é exercida pelo capitalista, com o conhecimento da propriedade especial da
mercadoria que compraste (a força de trabalho) para o seu consumo produtivo por
determinado tempo em sua brica, qual seja: a produção de valor. Este é o serviço que o
capitalista espera que ela exerça, e, conforme “as leis eternas da troca de mercadoria”, ele
tem o direito ao seu valor de uso pelo tempo que a emprega e, por isso, fará de tudo para o
uso máximo de suas propriedades através da gerência racional do processo de produção.
Tendo em vista a anterior caracterização das linhas gerais da divisão do trabalho, já
podemos situá-la na forma em que é plenamente desenvolvida: a divisão manufatureira e
industrial do trabalho. Marx demonstra o caráter absolutamente embrutecedor e arcaico
desta divisão do trabalho:
A manufatura produz realmente a virtuosidade do trabalhador mulilado, ao
reproduzir e levar sistematicamente ao extremo, dentro da oficina, a especialização
123
“A jornada coletiva tem essa maior produtividade ou por ter elevado a potência mecânica do trabalho, ou
por ter ampliado o espaço em que atua o trabalho, ou por ter reduzido esse espaço em relação à escala da
produção, ou por despertar a emulação entre os indivíduos e animá-los, ou por imprimir às tarefas
semelhantes de muitos o cunho da continuidade e da multiformidade, ou por realizar diversas operações ao
mesmo tempo, ou por poupar os meios de produção em virtude do seu uso em comum, ou por emprestar ao
trabalho individual o caráter de trabalho social médio. Em todos os casos, a produtividade específica da
jornada de trabalho coletiva é a força produtiva social do trabalho ou a força produtiva do trabalho social. Ela
tem sua origem na própria cooperação. Ao cooperar com outros de acordo com um plano, desfaz-se o
trabalhador dos limites de sua individualidade e desenvolve a capacidade de sua espécie” (Marx, 1985: 378).
140
natural dos ofícios que encontra na sociedade. Por outro lado, sua ação de
transformar o trabalho parcial em profissão eterna de um ser humano corresponde à
tendência de sociedades antigas de tornar hereditários os ofícios, petrificá-los em
castas ou, então, ossificá-los em corporações quando determinadas condições
históricas produziam no indivíduo uma tendência incompatível com o sistema de
castas (Marx, 1985: 390).
Dois passos são a condição para o domínio do capitalista no que se refere à gerência
do processo de trabalho:
Nada significa para o capitalista que o primeiro passo apenas parcele o
processo enquanto o segundo desmembre também o trabalhador, muito menos que
ao destruir o ofício como um processo sob o controle do trabalhador ele o
reconstitua como processo sob seu próprio controle. Ele pode contar seus ganhos em
duplo sentido, não apenas na produtividade mas no controle gerencial, visto que
aquilo que fere mortalmente o trabalhador é neste caso vantajoso para ele
(Braverman, 1981: 76).
Soma-se a estas características um outro princípio, descoberto por Babbage
124
: “este
importantíssimo princípio significa que dividir os ofícios barateia suas partes individuais,
numa sociedade baseada na compra e venda da força de trabalho
125
(Braverman, 1981:
76).
Tendo tudo isso em vista Braverman formula a “lei geral da divisão do trabalho
capitalista”:
Toda fase do processo do trabalho é divorciada, tão longe quanto possível,
do conhecimento e preparo especial, e reduzida a simples trabalho. Nesse ínterim, as
relativamente poucas pessoas para quem se reservam instrução e conhecimento são
isentas tanto quanto possível da obrigação de simples trabalho. Deste modo, é dada
uma estrutura a todo o processo de trabalho que em seus extremos polariza aqueles
cujo tempo é infinitamente valioso e aqueles cujo tempo quase nada vale. Esta
124
Babbage após citar as contribuições de Smith acrescenta: “Ora, conquanto todas essas sejam causas
importantes, e cada uma tenha influência no resultado, contudo, parece-me que qualquer explicação do baixo
custo dos artigos manufaturados como conseqüência da divisão do trabalho seria incompleta se o seguinte
princípio fosse omitido: que o mestre manufatureiro, ao dividir o trabalho a ser executado em diferentes
processos, cada qual exigindo diferentes graus de perícia ou força, pode comprar precisamente aquela exata
quantidade de ambas que for necessária para cada processo; ao passo que, se todo trabalho fosse executado
por um operário, aquela pessoa deve possuir suficiente perícia para executar o mais difícil, e força suficiente
parra executar o mais laborioso das operações nas quais o ofício é dividido” (Apud: Braverman, 1981: 77).
125
Marx também vai confirmar a existência deste princípio na divisão manufatureira do trabalho: “surge a
classificação dos trabalhadores em hábeis e inábeis. Para os últimos não custos de aprendizagem e, para os
primeiros, esses custos se reduzem em relação às despesas necessárias para formar um artesão, pois a função
deles foi simplificada. Em ambos os casos, cai o valor da força de trabalho. A exceção é constituída pelas
novas funções gerais resultantes da decomposição do processo de trabalho, as quais não existiam no
artesanato ou, quando existiam, desempenhavam papel inferior” (Marx, 1985: 401-402).
141
poderia até ser chamada a lei geral da divisão do trabalho capitalista
126
(Braverman,
1981: 80).
É diante destas descobertas não necessariamente no marco teórico, mas
empiricamente que, cada vez mais, no trato diário com a compra e venda da força de
trabalho, o capital, aos poucos, vai entendendo que seu uso pode ganhar formas cada vez
mais racionais, e o que é mais importante lucrativas. Para isso é necessário, para além
da inserção individual do capitalista na organização do processo produtivo, ser posto em
ação um escopo mais amplo de funcionários e “intelectuais”.
A gerência científica se apresenta como um fundamento teórico para mais uma
separação importante no processo de trabalho: entre o trabalho manual e intelectual. Antes
da análise desta divisão são necessárias algumas notas sobre a gerência científica.
A gerência científica, como é chamada, significa um empenho no sentido de
aplicar os métodos da ciência aos problemas complexos e crescentes do controle do
trabalho nas empresas capitalistas em rápida ascensão (...) Investiga não o trabalho
em geral, mas a adaptação do trabalho às necessidades do capital. Entra na oficina
não como representante da ciência, mas como representante de uma caricatura de
gerência nas armadilhas da ciência (Braverman, 1981: 82-83).
Pode-se considerar Taylor como o maior representante do surgimento da gerência
científica. Isso não quer dizer que não existiu, antes e depois dele, uma série de formas e
tendências na formulação da gerência fabril, mas, o que faz da escola de Taylor a mais
determinante é, talvez, o modo mais explícito como ele pensou o controle do trabalhador e
126
A formulação desta lei permite-nos entender o por quê da insistência de Marx no Volume I do Capital em,
mesmo explicando que o trabalho complexo é o somatório de trabalho simples, tratar o trabalho simples como
tendência absoluta sob o capitalismo. A seguinte passagem, na primeira parte, permite ilustrar isto: “O
trabalho simples médio muda de caráter com os países e estágios de civilização, mas é dado numa
determinada sociedade. Trabalho complexo ou qualificado vale como trabalho simples potenciado ou, antes
multiplicado, de modo que uma quantidade dada de trabalho qualificado é igual a uma quantidade maior de
trabalho simples. A experiência demonstra que essa redução sucede constantemente. Por mais qualificado que
seja o trabalho que gera a mercadoria, seu valor se equipara ao produto de trabalho simples e representa, por
isso, uma determinada quantidade de trabalho simples. As diferentes proporções em que as diversas espécies
de trabalho se reduzem a trabalho simples, como sua unidade de medida, são fixadas por um processo social
que se desenrola sem dele ter consciência os produtores, parecendo-lhes, por isso, estabelecidas pelo costume.
Para simplificar, considerar-se-á, a seguir, força de trabalho simples toda espécie de força de trabalho, com o
que se evita o esforço de conversão” (Marx, 1985: 52). Ver ainda a nota em que Marx cita S. Laing e James
Mill, onde este último afirma: “A grande classe que dispõe de trabalho comum para dar em troca de
alimento, constitui a grande maioria da população” (Apud: Marx, 1985: 223). Compreende-se que esta
simplificação de Marx na exposição não significa apenas um elemento didático, mas expressa sua
compreensão da tendência à crescente redução de grande parte do trabalho complexo a trabalho simples na
sociedade capitalista desenvolvida. É importante observar que Braverman confunde muitas vezes, ao longo do
texto, esta redução a trabalho simples com uma redução a trabalho abstrato – que é uma categoria diferente.
142
a separação entre as funções de execução e concepção
127
. A principal inovação de Taylor é
a efetivação, através da gerência, do “controle do modo concreto de execução de toda a
atividade no trabalho, desde a mais simples à mais complicada. Nesse sentido, ele foi o
pioneiro de uma revolução muito maior na divisão do trabalho que qualquer outra havida
(Braverman, 1981: 86).
São três os princípios taylorianos mais importantes acerca da divisão do trabalho:
1) Dissolução do processo de trabalho das especialidades dos trabalhadores:
O administrador assume o cargo de reunir todo o conhecimento
tradicional que no passado foi possuído pelos trabalhadores e ainda de
classificar, tabular e reduzir esse conhecimento a regras, leis e fórmulas;
2) Separação de concepção e execução: Todo possível trabalho cerebral
deve ser banido da oficina e centrado no departamento de planejamento
ou projeto;
3) Utilização do monopólio do conhecimento para controlar cada fase do
processo de trabalho e seu modo de execução: Talvez o mais proeminente
elemento isolado na gerência científica moderna seja a noção de tarefa.
O trabalho de todo operário é inteiramente planejado pela gerência pelo
menos com um dia de antecedência, e cada homem recebe, na maioria
dos casos, instruções escritas completas, pormenorizando a tarefa que
deve executar, assim como os meios a serem utilizados ao fazer o
trabalho. Esta tarefa especifica não apenas o que deve ser feito, mas
como deve ser feito e o tempo exato permitido para isso. A gerência
127
“Taylor ocupava-se dos fundamentos da organização dos processos de trabalho e do controle sobre ele. As
escolas posteriores de Hugo Müsterberg, Elton Mayo e outros, ocupavam-se sobretudo com o ajustamento do
trabalhador aos processos de produção em curso, na medida em que o processo era projetado pelo engenheiro
industrial. Os sucessores de Taylor encontram-se na engenharia e projeto do trabalho, bem como na alta
administração; os sucessores de Müsterberg e Mayo acham-se nos departamentos de pessoal e escolas de
psicologia e sociologia industrial. O trabalho em si é organizado de acordo com os princípios tayloristas,
enquanto os departamentos de pessoal e acadêmicos têm-se ocupado com a seleção, adestramento,
manipulação, pacificação e ajustamento da ‘mão-de-obra’ para adaptá-la aos processos de trabalho assim
organizado. O taylorismo domina o mundo da produção; os que praticam as ‘relações humanas’ e a
‘psicologia industrialsão as turmas de manutenção da maquinaria humana. Se o taylorismo não existe hoje
como uma escola distinta deve-se a que, além do mau cheiro do nome, não é mais propriedade de uma facção,
visto que seus ensinamentos fundamentais tornaram-se a rocha de todo projeto de trabalho” (Braverman,
1981: 84).
143
científica consiste muito amplamente em preparar as tarefas e sua
execução (Taylor apud: Braverman
128
, 1981: 103-108).
Remete-se a uma suposta pergunta taylorinana: Por que não trabalho científico mas
gerência científica? A resposta deve ser extraída de Princípios da Gerência Científica de
Taylor:
O desenvolvimento de uma ciência, por outro lado, implica o
estabelecimento de muitas normas, leis, fórmulas que substituem o julgamento do
trabalhador individual e que podem ser utilizadas eficazmente após terem sido
sistematicamente registradas, selecionadas etc. O emprego prático de dados
científicos também exige uma sala na qual guardar os livros, arquivos etc., e mesa
para nela trabalhar o planejador. Assim, todo o planejamento que no antigo sistema
era feito pelo trabalhador, como resultado de sua experiência pessoal, deve
necessariamente, no novo sistema, ser feito pela gerência de acordo com as leis da
ciência; porque mesmo que o trabalhador fosse bem adequado ao desenvolvimento e
emprego de dados científicos, seria fisicamente impossível para ele trabalhar em sua
máquina e numa secretária ao mesmo tempo. É também claro que na maioria dos
casos um tipo de homem é necessário para planejar e um tipo inteiramente diferente
para executar o trabalho (apud: Braverman, 1981: 105).
Parece que o motivo que Taylor encontra para a separação entre os que pensam e os
que executam é sua verdadeira paixão pela ciência. Uma trágica atualização para a era
capitalista da velha cantilena que se ouve desde a antiguidade clássica, para justificar o
desprezo pelo trabalho manual e a paixão pelas artes e a filosofia. Sacramenta-se a
naturalização dos destinos das aptidões que, desde o nascimento, impõe, a uns poucos, a
satisfação do desenvolvimento do intelecto e, à grande maioria, a fortuna da degradação
através do trabalho
129
. Trágica porque, até nossos tempos, muito se falou em nome de uma
ciência emancipadora e progressista; agora, a ciência da gerência, se fosse possível,
decretaria o fim de toda ciência social que não tenha como critério único e exclusivo o
cálculo e a elevação dos lucros capitalistas.
128
As denominações dos princípios são de Braverman, em itálico temos a citação de Taylor.
129
“Aristóteles, porém, não podia descobrir, partindo da forma do valor, que todos os trabalhos são expressos,
na forma dos valores das mercadorias, como um só e mesmo trabalho humano, como trabalho de igual
qualidade. É que a sociedade grega repousava sobre a escravatura, tendo, por fundamento, a desigualdade dos
homens e de suas forças de trabalho” (Marx, 1985: 68). Se para Aristóteles a escravidão foi um impedimento
para a descoberta do caráter humano (ou seja, social) do valor em sua teoria, em Taylor é, justamente, a
degradação do trabalho humano manual à condição praticamente animalesca a razão de ser de sua formulação
“teórica” acerca da separação do trabalho intelectual e manual.
144
O impacto real da gerência científica sobre o processo de trabalho teve o papel de
tornar consciente e sistemática a tendência antigamente inconsciente da produção
capitalista. Precisamos demonstrar, portanto, a partir deste momento, de fato, a inflexão de
nossa análise. Temos observado que a “burocratização” é um fenômeno característico da
grande indústria sob os monopólios. A observação dos elementos endógenos à produção
capitalista e da divisão industrial do trabalho nos levará, inevitavelmente, à constatação de
que esta tendência é, por certo, decorrente das tendências próprias ao modo capitalista de
produção. Este giro torna inadiável a crítica da própria “categoria” que é comumente
expressa como “burocratização”.
A sociologia passa a se interessar pela “burocratização” no momento em que,
com o desenvolvimento da indústria e comércio, a tendência de rotinização e submissão ao
controle gerencial “atingiu o escritório e as ocupações técnicas e ‘educadas’”:
[“Burocratização”] é uma terminologia evasiva e infeliz tirada de Weber,
terminologia que quase sempre reflete a opinião dos que a empregam, segundo a
qual essa forma de domínio do trabalho é endêmica às empresas em ‘larga escala’
ou ‘complexas’, ao passo que é mais bem compreendida como o produto específico
da organização capitalista do trabalho, e reflete não a escala principalmente, mas
os antagonismos sociais (Braverman, 1981: 109 – grifos meus).
Esta crítica indica um projeto para a análise do fenômeno. Neste caminho,
procuraremos descortinar estes antagonismos, e, a partir de agora, a burocratização”, com
suas particulares características de indeterminação e evasividade, dá lugar às diferenciações
e tendências reais decorrentes do desenvolvimento das formas de produção capitalista e de
organização do trabalho sob estas bases. Elas podem ser investigadas em diversos
movimentos a separação entre trabalho manual e intelectual, entre trabalho produtivo e
improdutivo etc. mas não alcançam determinação mais próxima à concretude se não são
analisadas através da dinâmica que perpassa todas as diferentes esferas: a oposição entre
capital e trabalho.
145
3.2.2- Trabalho manual e intelectual
O trabalho é elemento fundante da humanidade e, por isso, é a principal categoria
distintiva entre homem e natureza
130
: “O momento essencial da separação é constituído o
pela fabricação dos produtos, mas pelo papel da consciência, a qual, precisamente aqui,
deixa de ser mero epifenômeno da reprodução biológica” (Lukács, 2007: 228). Esta
característica teleológica ineliminável nos reporta à questão de como podemos pensar a
relação entre atividade e intelecto.
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera
mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto
da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la
em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que existia
antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o
material sobre o qual opera, ele imprime ao material o projeto que tinha
conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar
e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito.
Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se
manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho. E isto é tanto mais
necessário quanto menos se sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método
de execução de sua tarefa, que lhe oferece por isso menos possibilidade de fruir da
aplicação das suas próprias forças físicas e espirituais (Marx, 1985: 202).
Este processo de produção em geral adquire uma forma determinada sob o processo
capitalista de produção. Um dos aspectos centrais desta forma é a divisão entre o trabalho
intelectual e o manual. Sua primeira expressão se dá na divisão manufatureira do trabalho, e
se completa na indústria, com a potência do uso da ciência:
O camponês e o artesão independentes desenvolvem, embora modestamente,
os conhecimentos, a sagacidade e a vontade, como o selvagem que exerce as artes
de guerra apurando sua astúcia pessoal. No período manufatureiro, essas faculdades
passam a ser exigidas apenas pela oficina em seu conjunto. As forças intelectuais da
produção se desenvolvem num sentido, por ficarem inibidas em relação a tudo
que não se enquadre em sua unilateralidade. O que perdem os trabalhadores
parciais, concentra-se no capital que se confronta com eles. A divisão manufatureira
130
“Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser
humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza.
Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo,
braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à
vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria
natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças
naturais, não se trata aqui de formas instintivas, animais, de trabalho” (Marx, 1985: 202).
146
do trabalho opõe-lhes as forças intelectuais do processo material de produção como
propriedade de outrem e como poder que os domina. Esse processo de dissociação
começa com a cooperação simples em que o capitalista representa diante do
trabalhador isolado a unidade e a vontade do trabalhador coletivo. Esse processo
desenvolve-se na manufatura, que mutila o trabalhador, reproduzindo-o a uma
fração de si mesmo, e completa-se na indústria moderna, que faz da ciência uma
força produtiva independente de trabalho, recrutando-a para servir ao capital (Marx,
1985: 413-414).
Estas tendências se concretizam plenamente sob o capitalismo monopolista. Mas a
separação entre concepção e execução não pode ser concebida como um fenômeno
inevitável e derradeiro da evolução humana. A história comporta causalidades e
possibilidades, e a permanência dela sob o capitalismo nos impele, mais uma vez, à
constatação de que a natureza deste modo de produção determina um desenvolvimento
muito aquém das possibilidades humanas.
Sua implementação reduz a necessidade de trabalhadores ligados diretamente à
produção, contudo aumenta a intensidade da exploração do trabalho e a segmentação no
interior da classe trabalhadora. Leva à necessidade constante de que a reprodução ideal do
processo de trabalho seja concretizada em papel (ou em outras formas de registros) e a
“imagem do processo, tirada da produção para um lugar separado e grupo distinto, controla
o próprio processo
131
”. A novidade desta separação é a dimensão e o antagonismo que
agora revela:
A novidade disto durante o século passado residiu não na existência
separada de mão e cérebro, concepção e execução, mas no rigor com o qual são
divididos uma do outro, e daí por diante sempre subdivididas, de modo que a
concepção seja concentrada, tanto quanto possível, em grupos separados cada vez
mais restritos dentro da gerência ou intimamente associados com ela. Assim, ao
estabelecer relações sociais antagônicas, de trabalho alienado, mão e cérebro
tornam-se não apenas separados, mas divididos e hostis, e a unidade humana de mão
e cérebro converte-se em seu oposto, algo menos que humano (Braverman, 1981:
113).
131
“Num local, são executados os processos físicos da produção; num outro estão concentrados o projeto,
planejamento, cálculo e arquivo. A concepção prévia do projeto antes de posto em movimento; a visualização
das atividades de cada trabalhador antes que tenham efetivamente começado; a definição de cada função; o
modo de sua execução e o tempo que consumirá; o controle e verificação do processo em curso uma vez
começado; e a quota dos resultados após conclusão de cada fase do processo todos esses aspectos da
produção foram retirados do interior da oficina e transferidos para o escritório gerencial. Os processos físicos
são agora executados mais ou menos cegamente, não apenas pelos trabalhadores que o executam, mas com
freqüência também por categorias mais baixas de empregados supervisores. As unidades de produção operam
como a mão, vigiada, corrigida e controlada por um cérebro distante” (Braverman, 1981: 112-113).
147
Tem-se, portanto, a institucionalização desta separação de um modo sistemático e
formal. Ambos, porém, continuam necessários à produção.
A degradação do trabalho do operário que agora opera como “ferramenta humana
da gerência
132
” – , leva a outra questão: o seu reflexo na classe trabalhadora como um todo.
Temos um rápido crescimento do pessoal administrativo e técnico especializado, e
alternâncias e transformações nas ocupações dentro dos processos industriais. A
fragmentação e degradação do trabalho devem ser analisadas tendo em vista um conjunto
mais amplo de trabalhadores do que o segmento operário, assim como, observando as
“novas” ocupações operárias.
Marx, como salientamos, define que a tendência a “desqualificação” do trabalho
tem início na manufatura, que “cria uma classe de trabalhadores sem qualquer destreza
especial” e conduz a uma “graduação hierárquica” com uma “classificação dos
trabalhadores em hábeis e inábeis” (Marx, 1985: 401).
A passagem à produção propriamente industrial se a partir do próprio período
manufatureiro, que “simplifica, aperfeiçoa e diversifica as ferramentas, adaptando-as às
funções exclusivas especiais do trabalhador parcial” e, com isso, “cria uma das condições
materiais para a existência da maquinaria, que consiste numa combinação de instrumentos
simples” (Marx, 1985: 392). Marx identifica uma dinâmica absolutamente revolucionária e
progressista, do ponto de vista técnico, com o advento da industria moderna
133
, pois esta
eliminou “o ofício manual como princípio regulador da produção social” e a “necessidade
técnica de fixar o trabalhador a uma operação parcial por toda a vida”. (Marx, 1985: 422).
Diante disto, caíram as barreiras impostas pelo princípio da divisão manufatureira do
trabalho ao domínio do capital
134
.
132
“A estreiteza e as deficiências do trabalhador parcial tornam-se perfeições quando ele é parte integrante do
trabalhador coletivo. O hábito de exercer uma função única limitada transforma-o naturalmente em órgão
infalível dessa função, compelindo-o à conexão com o mecanismo global a operar com a regularidade de uma
peça de máquina” (Marx, 1985: 400-401).
133
Sobre esta revolução técnica ver Capítulo XIII, seção 1, em O Capital (Marx, 19854: 423-440). Um outro
fator que não exploraremos detidamente neste espaço é que, num mesmo sentido, aumentando “a força
produtiva dos ramos de que se apodera”, o sistema industrial impulsiona ainda mais a divisão social do
trabalho (Marx, 1985: 510).
134
É preciso lembrar, entretanto, que este novo modo de organizar o trabalho unifica “novas” formas com
formas pretéritas” de divisão do trabalho. “Na indústria coexistem todas as formas de trabalho: o ofício, o
trabalho manual ou mecanizado, a máquina automática ou o processo continuado” (Braverman, 1981: 150).
148
Faz-se necessário avaliar como a imposição técnica informa a divisão do trabalho:
temos o fim do “princípio subjetivo” desta divisão. “Na manufatura, o isolamento dos
processos parciais é um princípio fixado pela própria divisão do trabalho; na fábrica, ao
contrário é imperativa a continuidade dos processos parciais” (Marx, 1985: 433-434).
Essa equiparação da força de trabalho a um elemento objetivo no processo de
trabalho
135
é realizada pela gerência, porém, de forma limitada, já que “enseja novos ofícios
e especialidades bem como qualificações técnicas que são primeiramente da área do
trabalho mais que da gerência” (Braverman, 1981: 150). O desejo permanente do capital é
adaptar os “instrumentos humanos” à maquinaria de produção. É nesta forma em que,
definitivamente, o “caráter cooperativo do processo de trabalho torna-se uma necessidade
imposta pela natureza do próprio instrumental de trabalho” (Marx, 1985: 440).
É necessário lembrar, pois, que, ao contrário da visão do burguês, que caracteriza a
força de trabalho como mais um elemento objetivo no processo de trabalho, Marx revela
que a força de trabalho é o único elemento subjetivo
136
neste processo, por ser a única
mercadoria que possui a propriedade de criar valor
137
:
A maquinaria, por sua vez, cumpre um novo papel. Como se exige uma menor
qualificação do trabalhador, e este perde o domínio do trabalho, o “mecânico competente” é
imediatamente considerado obsoleto, e é substituído por três espécies de trabalhadores: “o
135
Marx havia definido a força de trabalho como a capacidade de pôr em ação o trabalho que supõe
dispêndio “de músculos, de nervos, de cérebro etc., que se tem de renovar” e definiu que o seu valor é
“determinado pelo tempo de trabalho requerido para que seja fornecida de acordo com sua qualidade normal”.
Critica o sentimentalismo barato, que considera brutal este método objetivo de determinar o valor da força de
trabalho, pois acredita que o “método decorre da natureza do fenômeno” e, por isso, sob o capitalismo, “quem
diz capacidade de trabalho, não põe de lado os meios de subsistência necessários para sustentá-la. O valor
destes se expressa no valor daquela. Se não for vendida, não traz nenhum proveito ao trabalhador, e parece-
lhe uma cruel imposição da natureza que a capacidade de trabalho tenha exigido determinada quantidade de
meios de subsistência para sua produção e reprodução. Descobre então com Sismondi: ‘A capacidade de
trabalho... nada é, se não se vende” (Marx, 1985: 194). Esta definição objetiva, por sua vez, não impede Marx
de apontar para elementos subjetivos fundamentais na determinação do valor da força de trabalho: “Um
elemento histórico e moral entra na determinação do valor da força de trabalho, o que a distingue das outras
mercadorias” (Marx, 1985: 191).
136
Este elemento subjetivo também se mostra ativo no que se refere à luta político-econômica. Esta se
expressa , primeiramente, na luta pela redução da jornada de trabalho e por melhores condições de trabalho.
Marx dedica grande parte de sua análise à reconstrução lógica e histórica desta luta.
137
“O valor dos meios de produção reaparece no valor do produto, mas, falando exatamente, não é
reproduzido. O que é produzido é o novo valor-de-uso em que reaparece o anterior valor-de-troca”.
“É diferente o que se sucede com o fator subjetivo do processo de trabalho, a força de trabalho em atividade.
Quando o trabalho sob forma apropriada a um fim conserva o valor dos meios de produção, transferindo-o ao
produto, cada instante de sua operação forma valor adicional, valor novo” (Marx, 1985: 233).
149
programador de peças”, o responsável em “converter a folha de planejamento em forma
lógica pela máquina” e o “operador de máquina
138
”.
Um sistema automático de maquinaria permite, além da redução do número de
trabalhadores no processo produtivo, uma socialização do trabalho. Esta tendência, por
outro lado, se choca com a crescente divisão do trabalho.
Marx define a separação entre as forças intelectuais e o trabalho manual e o domínio
da gerência e da ciência sob o comando do capital nesta passagem:
A separação entre as forças intelectuais do processo de produção e o
trabalho manual e a transformação em poderes de domínio do capital sobre o
trabalho se tornam uma realidade consumada, conforme vimos, na grande
indústria fundamentada na maquinaria. A habilidade especializada e restrita do
trabalhador individual, despojado, que lida com a máquina, desaparece como uma
quantidade infinitesimal diante da ciência, das imensas forças naturais e da massa de
trabalho social incorporadas ao sistema de máquinas e formando com ele o poder do
patrão. No cérebro deste estão indissoluvelmente unidos a maquinaria e o
monopólio patronal sobre ela e, por isso, o patrão, nas divergências com os
trabalhadores, a estes se dirige depreciativamente.
(...) A subordinação técnica do trabalhador ao ritmo uniforme do
instrumental e a composição peculiar do organismo de trabalho, formado de
indivíduos de ambos os sexos e das mais diversas idades, criam uma disciplina de
caserna, que vai ao extremo no regime integral da brica. Por isso, desenvolve-se
plenamente o trabalho de supervisão anteriormente mencionado, dividindo-se os
trabalhadores em trabalhadores manuais e supervisores de trabalho, em soldados
rasos e em suboficiais do exército da indústria.
(...) Através do código da fábrica, o capital formula, legislando particular e
arbitrariamente, sua autocracia sobre os trabalhadores, pondo de lado a divisão dos
poderes tão proclamada pela burguesia e o mais proclamado ainda regime
representativo. O código é apenas a deformação capitalista da regulamentação social
do processo de trabalho, que se torna necessária com a cooperação em grande escala
e com a aplicação de instrumental comum de trabalho, notadamente a maquinaria. O
látego do feitor de escravos se transforma no regulamento penal do supervisor
(Marx, 1985: 484-485).
Precisamos, por partes, analisar como estas tendências se desenvolvem no
capitalismo monopolista. Além disso, deve ser observado que contra-tendências
operantes, mas estas não anulam estes fundamentos da divisão do trabalho sob o
capitalismo.
138
Para uma detalhada exposição destas funções, ver: (Braverman, 1981: 173-175).
150
Com o rápido aumento na escala de produção, a partir do capitalismo monopolista, e
a aplicação de métodos modernos de gerência e tecnologia mecânica, temos um rápido
aumento na produtividade do trabalho. As tendências inevitáveis desta dinâmica na criação
de população excedente são, de certa forma, contrabalançadas pelo crescimento da
produção: “em conseqüência disto, o emprego naquelas indústrias ocupadas na produção de
bens não declinou em termos absolutos”
139
(Braverman, 1981: 203).
Outra contra-tendência, observada por Marx, a esta redução absoluta do emprego,
tem relação com a luta dos trabalhadores pela redução da jornada de trabalho. Esta jornada
reduzida, por sua vez, leva à intensificação da exploração através da universalização da
mais-valia relativa
140
.
A ampliação da população excedente realiza o barateamento da força de trabalho e,
por isso, abre a oportunidade para setores ainda não mecanizados adquirirem esta força de
trabalho barata e, portanto, se constitui em um empecilho à rápida universalização da
mecanização. Além disso, um efeito ainda mais importante para os propósitos de nosso
estudo:
A separação de concepção e execução a retirada de todo trabalho possível
do piso da oficina, o ponto de execução, para o escritório – e a posterior necessidade
de manter uma caricatura de todo o processo da produção em forma de papel, enseja
grande funcionalismo técnico e de escritório. Estatísticas procedentes de todos os
principais países capitalistas indicam que houve uma alta pida, iniciada antes da
virada do século, na proporção dos não empregados diretamente na produção.
141
(Braverman, 1981: 206).
139
Pensando na dinâmica econômica atual, esta afirmação levantaria mais de uma dúvida.
140
“Quando a rebeldia crescente da classe trabalhadora forçou o estado a diminuir coercitivamente o tempo de
trabalho, começando por impor às fábricas propriamente ditas um dia normal de trabalho, quando, portanto, se
tornou impossível aumentar a produção da mais valia, prolongando o dia de trabalho, lançou-se o capital, com
plena consciência e com todas as suas forças, à produção da mais valia relativa, acelerando o
desenvolvimento do sistema de máquinas” (Marx, 1985: 467).
141
“De modo característico, havia nas industrias fabris, por volta do início deste século, perto de cinco a dez
empregados não produtivos para cada cem empregados na produção, e após a Segunda Guerra Mundial esta
proporção subiu para mais de vinte por cem.” (...) “O mais importante a observar, porém, é que nem todo esse
aumento é atribuível às tendências que nos ocuparam até aqui: a reorganização da produção e a utilização de
sistemas de máquinas em larga escala. A categoria de emprego não produtivo empregada nessas cifras é uma
mistura; é, como observa Delehanty, uma categoria residual, que inclui todos os empregados da indústria
separados da produção, manutenção e trabalhadores auxiliares. Isto significa que ela inclui não apenas
engenheiros, técnicos e empregados de escritório associados com as tarefas de produção, mas todo o emprego
administrativo, financeiro, de mercadejamento e afins. As cifras disponíveis não permitem uma pronta
distinção dos dois tipos de emprego não produtivo daqueles associados com o processo de produção e os
associados com outros aspectos da atividade empresarial, mas amplas indicações de que a porção técnica
do emprego não produtivo é a menor” (Braverman, 1981: 207).
151
O rápido crescimento da demanda de engenheiros permite-nos identificar algumas
das tendências acerca da “racionalização” desta e de outras profissões, consideradas como
setores intermediários, sob o capitalismo monopolista. O engenheiro, e profissões como
contador, advém de uma antiga classe média que, tornando-se uma ocupação de massa,
passou a exprimir características de racionalização, divisão do trabalho, simplificação de
funções, aplicação da mecanização, diminuição do salário relativo, algum desemprego, e
alguma sindicalização.
Alguns fatores contribuíram para isso, por exemplo, o fato de que o projeto foi
parcelado e especializado para ser executado por vários cnicos. Este fato leva a uma
importante conseqüência, uma maior hierarquização no processo de concepção: ao ponto
que muitos engenheiros ficaram restritos à especialidade de um plano ou uma rotina,
enquanto a concepção à qual deveriam ficar subordinados ‘competia à administração’”
(Braverman, 1981: 209).
Até que um novo e poderoso elemento se desenvolve, e induz a novas
características: quando o computador adentra ao setor da produção, além dos aspectos de
poupança do trabalho, altera a composição ocupacional: essa tecnologia, através da
“divisão de trabalho patrocinada pela gerência”, permite a substituição de “engenheiros e
desenhistas por funcionários subalternos e operadores de máquinas, e intensifica ainda mais
a concentração de conhecimento conceptual e projeto” (Braverman, 1981: 210).
Temos, com tudo isso, uma relativa expansão da figura do “técnico” na empresa
moderna: ele funciona “como um ‘apoio’ para o engenheiro ou cientista; a rotina que pode
ser passada para uma pessoa mal remunerada e ligeiramente preparada vai para o técnico”
(Braverman, 1981: 211).
Estas ampliações de segmentos ocupacionais nos permite refletir sobre o processo
de crescimento da “burocratização” das atividades outrora realizadas diretamente no chão
da fábrica. Sua dinâmica implica mudanças constantes, e sua relação com o poder de
controle gerencial é mais um elemento que não pode ser negligenciado.
Surgiu uma multidão de trabalhadores burocráticos cujo trabalho abarca tudo
o que era anteriormente executado de modo normal na própria oficina, ou em
pequena escala nos escritórios do passado. Uma vez que a gerência agora planeja o
processo paralelo que segue e prevê tudo o que acontece na própria produção, surge
uma enorme massa de material para arquivo e cálculo. Materiais, trabalho em curso,
balanço de peças, trabalho, maquinaria estão sujeitos a meticulosa contabilidade de
152
custos e de tempo padrão. Cada passo é pormenorizado, registrado e controlado de
longe, e especificado em relatórios que oferecem um quadro seccionado em dado
momento, freqüentemente na base de um dia, dos processos concretos da produção,
manutenção, despacho, armazenagem etc. este trabalho é feito por exércitos de
funcionários, equipamento de processamento de dados e uma gerência burocrática
destinada à sua realização. Uma vez que não meio algum de separar este trabalho
do outro trabalho administrativo da empresa, devido a que o auxiliar da produção
não é classificado e enumerado separadamente, e porque está de fato tão interligado
com o restante trabalho administrativo que talvez não possa ser suscetível de
contabilidade estatística separada (Braverman, 1981: 211-212).
O impacto das transformações na divisão do trabalho leva a dois movimentos: a
criação de uma série de esferas ligadas ou não à produção (o que, por sua vez, amplia
enormemente as diferenças no seio da classe trabalhadora) e a própria transformação da
forma personificada do capital. Cabe-nos, portanto, investigar estes movimentos, tendo em
vista a divisão do trabalho no interior da empresa e a divisão social do trabalho.
que, segundo a lei descoberta por Marx, com o progresso da força produtiva
social do trabalho a proporção das camadas que vivem do trabalho alheio em relação aos
produtores diretos cresce absoluta e relativamente (Marx, 1985: 587), e no sentido de
desvelar o caráter parasitário que o capitalismo monopolista desenvolveu (e a acentuação
das contradições de classe daí decorrentes), precisamos, em dois momentos, marcar as
diferenças entre trabalhadores produtivos e improdutivos, e entre capital e trabalho, sob
estas bases. Estes serão os objetivos das duas próximas seções.
3.2.3- Trabalho produtivo e improdutivo
Há duas explicações para que as formas de absorção improdutivas do excedente não
tenham tido uma atenção especial dos teóricos (inclusive de Marx), segundo Baran e
Sweezy: uma de natureza histórica e outra conceitual.
A burguesia dominante dos séculos XVIII e XIX interessava-se em reduzir
os impostos a um mínimo, resultando disso que a proporção do excedente
consumido pela Igreja e pelo Estado era muito menor do que nos períodos feudais e
podia-se esperar, razoavelmente, que continuasse a declinar, à medida que a
sociedade capitalista se tornava mais rica. Da mesma forma, as despesas de
circulação foram muito reduzidas em comparação com o período mercantil, quando
predominava sobre o capital industrial, o que também parecia indicar um futuro no
qual o consumo e a acumulação capitalistas se apropriariam antecipadamente do
153
produto excedente da sociedade em proporções cada vez maiores (Baran e Sweezy,
1966: 118).
Do ponto de vista conceitual, Baran e Sweezy acreditam que a convicção de Marx
na tendência decrescente da taxa de lucro foi o que impediu sua preocupação com o
excedente: “Vista desse ângulo, as barreiras à expansão capitalista pareciam estar mais na
escassez de excedente para manter o impulso de acumulação do que em qualquer
insuficiência nos modos característicos da utilização do excedente” (Baran e Sweezy, 1966:
118). Já vimos a falsidade da afirmação de que não impera mais, sob o capitalismo
monopolista, a tendência decrescente da taxa de lucro. Contudo, além disso, mesmo que
isso fosse verdade, é preciso lembrar da preocupação de Marx com a centralização e
concentração de capital, que poria nas mãos de poucos capitalistas uma massa de mais-valia
com dimensões homéricas. Isto implicaria, com certeza, no impasse sobre seu uso
produtivo (uma das decorrências seriam as crises, mas não somente elas).
Para compreender este constante aumento de trabalhadores improdutivos é
necessário, antes de tudo, entender a segmentação entre diferentes esferas no interior da
empresa, que é fruto do desenvolvimento do capitalismo sob a égide dos monopólios. Este
divide as atividades produtivas em departamentos funcionais, tais como: planejamento,
organização, pesquisa e desenvolvimento; controle da produção; inspeção ou controle da
qualidade; apuração de custos de fabricação; expedição e transporte; compra e controle do
estoque; manutenção da fábrica e da maquinaria, energia; administração e preparo do
pessoal, entre outras.
Grande parte dos trabalhadores ligados a algumas destas esferas não são
improdutivos, mas o que nos interessa analisar é que esta divisão no interior da empresa
permite a expansão de outras funções, não mais diretamente ligadas à produção. A
primeira destas a ganhar uma grande dimensão foi o “mercadejamento
142
”.
Em seus momentos iniciais, este “mercadejamento” possuía a função exclusiva de
transporte de mercadorias, função eminentemente produtiva. Com o seu desenvolvimento,
este setor alcançou a marca de “segunda divisão principal da empresa”. Agora já se trata de
142
Este termo, utilizado por Braverman, tem vínculo com as funções que Baran e Sweezy descreveram a
partir da termo “campanha de vendas”.
154
uma esfera “subdividida por sua vez em seções de vendas, publicidade, promoção,
correspondência, pedidos, comissões, análise de vendas e outras”. (Braverman, 1981: 223).
A partir daí temos uma transformação ainda maior, quando outras funções de
gerência foram destacadas de divisões inteiras. É o exemplo das finanças, que passam a ter
um papel central
143
. Vê-se que o domínio do capital financeiro, visto por Lênin de um
ponto de vista estrutural, sob o imperialismo, é reproduzido em cada subdivisão da
empresa.
também uma espécie de autonomização de cada seção, cada qual com o seu
departamento de contabilidade, recrutamento de pessoal específico e cada uma com
estruturas de seções próprias, “departamentos internos que refletem e imitam as subdivisões
de toda a empresa” (Braverman, 1981: 225). Temos, portanto, um crescimento vertical e
horizontal da empresa. O que induz à necessidade de uma “descentralização”, ou seja, de
colocar “cada operação em sua própria base
144
”, garantindo maior eficácia no controle e
redução dos gastos.
Sintetizando as transformações na empresa moderna, Braverman define os três mais
importantes aspectos:
1) o mercadejamento: tem o sentido de reduzir o caráter autônomo da demanda
dos produtos da empresa e aumentar seu caráter induzido. É a segunda em
dimensão, depois da organização da produção em empresas fabris. tipos de
empresa que vêm existir com o único propósito e única atividade de mercadejar.
Sua responsabilidade é o que Veblen chamou “uma produção quantitativa de
clientes”. Além disso, esta divisão é responsável pelo planejamento da
obsolescência do produto quanto ao estilo e pouca durabilidade. Esta é uma
demanda do mercadejamento, mas exercida através da divisão de Engenharia;
143
“A financeira, por exemplo, embora, via de regra, não grande em tamanho converte-se no centro cerebral
de todo o organismo, porque nela centralizava-se a função de vigiar o capital, de conferir e controlar o
progresso de seu avolumamento; para este fim, a divisão financeira tem suas próprias subdivisões para
empréstimo, crédito, cobrança, supervisão do giro do dinheiro, relações com acionistas, e supervisão geral das
condições financeiras da empresa. E assim por diante, por todas as várias funções e atividades da empresa,
inclusive construção e bens imóveis, relações legais, públicas, pessoais e do trabalho etc.” (Braverman, 1981:
225).
144
“Alfred P. Sloan, chefe operacional por muito tempo da General Motors” (apud: Braverman, 1981: 226).
155
2) a estrutura da gerência: a especialização da função gerencial, e a reorganização
administrativa a partir de uma simples organização linear é uma cadeia imediata
de comando de operações, desde o chefe ao executivo, através da
superintendência e chefia e as complexas equipes de organização. Estas são
ajustadas, por sua vez, a uma subdivisão da autoridade por diversas funções
especializadas. o atual desmembramento das funções da chefia da empresa
corresponde às funções administrativas do capitalista do passado. Existe agora
um complexo de departamentos, cada um dos quais assumiu em forma ampliada
uma única função que ele efetuava com mínimo pessoal no passado. Já não
mais um único gerente, mas um departamento inteiro que imita, em sua
organização e em seu funcionamento, a fábrica de onde ele brotou. A função
especial de administração é exercida por uma organização de trabalhadores sob
o controle de gerentes, assistentes de gerentes, supervisores etc. Assim, as
relações de compra e venda da força de trabalho, e, em conseqüência, de
trabalho alienado, tornou-se parte do aparelho gerencial em si mesmo. A
gerência veio a ser administração que é um processo de trabalho efetuado
para fins de controle no seio da empresa. Um processo de trabalho
rigorosamente análogo ao processo da produção, embora ele não produza artigo
algum que não seja a operação e coordenação da empresa
145
3) a função da coordenação social: a sociedade capitalista não tem meios para
desenvolver um mecanismo geral de planejamento para uma coordenação
social. Por isso muito dessa função pública passa a ser assunto interno da
empresa. Isto não tem base jurídica ou teoria administrativa de apoio; surge
simplesmente em virtude do gigantesco tamanho e poder das empresas, cujo
planejamento interno transforma-se, de fato, num rústico sucedâneo para o
necessário planejamento social. O rápido aumento do emprego administrativo
nas empresas reflete assim a urgência da necessidade de coordenação social, a
falta geral dessa coordenação, e o parcial preenchimento da lacuna pela empresa
145
Logo em seguida, Braverman afirma que examinar a gerência significa também examinar esse processo
de trabalho, que contém as mesmas relações antagônicas contidas no processo de produção” (Braverman,
1981: 228). Examinar estas relações antagônicas em relação ao desmembramento da gerência será de
fundamental importância para definir o perfil que assume o capitalista coletivo e o trabalhador coletivo no
capitalismo monopolista, o que será assunto de nossa próxima sub-seção.
156
que opera em base capitalista e movida simplesmente por motivações
capitalistas
146
(Braverman, 1981: 228-230).
Para analisar as características acima de forma crítica, em primeiro lugar, é preciso
se ater às espécies de trabalho que Marx identificaria como improdutivos, o trabalhador em
escritório (que se vincularia, portanto, àquilo que Marx considerou como “despesas de
circulação”), os trabalhadores em serviços, e, alguns setores médios. Nosso objetivo é
demonstrar, ao final, como as profundas transformações ocorridas com o capitalismo
monopolista refletem em uma maior complexidade nas relações (e, portanto, maior
dificuldade na análise) entre trabalhadores produtivos e improdutivos.
Os funcionários de escritório hoje são bem diferentes dos do passado. É preciso “vê-
los na fase atual do capitalismo monopolista como virtualmente um novo estrato, criado nas
últimas décadas do século XIX e a partir de então enormemente ampliado
147
”. Fica evidente
a mudança em relação aos antigos “funcionários”, por exemplo, se levarmos em
consideração mudanças referentes à composição por sexo e salário relativo: temos, por um
lado, o aumento no número relativo de mulheres e, por outro, uma diminuição drástica do
nível salarial.
Verifica-se que, além da divisão da empresa fabril entre o setor de produção e o
escritório, cada vez mais há empreendimentos puramente comerciais, onde temos três tipos
de trabalho: distributivo (armazenamento, embalagem e expedição), vendas e escritorial.
Nestes, os funcionários são a maior categoria. Há, ainda, empreendimentos puramente
escritoriais, como por exemplo, os bancos e agências de investimento. se empreende um
único modo de trabalho: o escritorial (mas também há os trabalhadores que fazem a
146
“A expansão das funções governamentais de coordenação social nas últimas décadas é outra expressão
desta urgente necessidade, e o fato de que tais atividades governamentais são perfeitamente visíveis, em
comparação com as da empresa, levou à noção de que o principal exercício do controle social é feito pelo
governo. Pelo contrário, na medida em que as decisões sobre investimento são tomadas pelas empresas, o
lugar do controle social e da coordenação deve ser procurado entre elas; o governo preenche os interstícios
deixados por essas decisões principais” (Braverman, 1981: 229-230).
147
“Se atribuirmos aos milhões de trabalhadores em escritório hoje as funções de ‘classe média’ ou
semigerenciais daquela delgada camada aos poucos desaparecida de funcionários de inícios do capitalismo, o
resultado pode ser um grave mal-entendido quanto à sociedade moderna. Contudo, é precisamente desse
modo que se exprime a Sociologia acadêmica e o jornalismo popular (Braverman, 1981: 249).
157
limpeza dos escritórios). O caráter burocratizado do trabalho pode ser, portanto, encontrado
nos mais diferentes tipos de “empresas
148
”.
O desenvolvimento exponencial das forças produtivas, a ampliação do excedente, a
necessidade de seu escoamento, e a própria complexificação das necessidades do modo de
produção, faz com que o número de intermediários entre a produção e o consumo aumente.
Braverman afirma que isso se dá “de modo que o cálculo do valor da mercadoria é
duplicado por certo número de etapas” (Braverman, 1981: 256).
É importante observar que esta contabilização a que se refere não quer dizer que
estas esferas produzam valor, mas pelo contrário: muitas existem somente para calcular e
garantir as metamorfoses que o valor já produzido adquire na sua distribuição. Segue
apontando rias atividades como meios de expandir a complexidade da contabilidade do
valor, como por exemplo, o mercadejamento, o trabalho despendido na mera transformação
da forma do valor, vigilância, caixa e cobrança, registros, contabilidade etc., daí afirma:
Assim a forma de valor das mercadorias separa-se da forma física como um
vasto império de papel que sob o capitalismo torna-se tão real quanto o mundo
físico, e que engloba crescentes quantidades de trabalho. É o mundo no qual o valor
é canalizado e no qual o excedente é transferido, disputado e distribuído. Uma
sociedade que se baseia na forma do valor submete mais e mais de sua população
trabalhadora às complexas ramificações das exigências da propriedade do valor.
Embora não haja modo de calcular ou r à prova esta afirmação, é provável que a
maior parte do rápido aumento do trabalho em escritórios deva-se a isso;
certamente, não dúvidas que as demandas de mercadejamento, juntamente com
as exigências de contabilização do valor, consumam o grosso do tempo em
escritórios (Braverman, 1981: 258).
Dos antigos vínculos estreitamente pessoais, o escritório se transforma no reino da
impessoalidade
149
. Tendo em vista que “o propósito do escritório é controlar a empresa, e o
148
Além das citadas temos outros exemplos: Em grau menor, o mesmo aspecto altamente burocrático do
processo de trabalho ocorre nos cartórios e escritórios de outras profissões institucionalizadas, agências de
publicidade, editoras e redação de jornais, na medida em que não fazem o trabalho da indústria, das
organizações filantrópicas e religiosas, escolas por correspondência, agências de viagem, de emprego etc. bem
como repartições públicas” (Braverman, 1981: 255).
149
“À medida que esta situação mudava, as associações íntimas, a atmosfera de obrigação mútua e o grau de
lealdade que caracterizavam o pequeno escritório viram-se transformados de um objetivo principal a uma
responsabilidade positiva, e a gerência começou a cortar esses vínculos e pôr em seu lugar a disciplina
impessoal de uma chamada organização moderna. Certamente, ao fazê-lo, cuidou, através de todo esse
período de transição, de reter tanto quanto possível os sentimentos de obrigação e lealdade que
tradicionalmente estimulara; mas seus próprios compromissos especiais para com o pessoal de escritório
foram sendo restringidos, um a um, à medida que o escritório crescia. O aspecto característico dessa época era
o fim do reino do contador e a subida do gerente de escritório como o principal funcionário e representante
158
propósito da gerência do escritório controlar o escritório”, desenvolve-se, portanto, o
“aumento da função controladora, juntamente com a conseqüente transformação dessas
funções de gerência em processos de trabalho independentes” e, com isso, surge “a
necessidade de controlar os novos processos de trabalho, de acordo com os mesmos
princípios aplicados à fábrica” (Braverman, 1981: 259-260). É assim que “a gerência
começou a exercer no escritório o seu direito de controle, até então pouco utilizado ou
esporadicamente exercido, sobre o processo de trabalho”: “Como na fábrica, a solução do
problema achava-se primeiro na divisão técnica do trabalho e em segundo lugar na
mecanização” (Braverman, 1981: 262-264).
A separação entre escritório, como local de trabalho intelectual, e oficina, como
local de trabalho manual, se alterou, pelo fato de que uma ampla gama de atividades
quase exclusivamente manuais no interior do escritório: “Com a transformação da gerência
em processo de trabalho administrativo, o trabalho manual estendeu-se ao escritório
150
e
logo tornou-se característica das tarefas da massa de funcionários” (Braverman, 1981: 267-
268).
Os teóricos da gerência observam o estudo dos tempos e movimentos no escritório
seguindo a linha tayloriana, e tratam o trabalho do escritório e da fábrica com os mesmos
critérios de análise. Pode-se concluir que “ambos ficam reduzidos ao mesmo nível,
igualando-se em suas formas mais simples o trabalho do operário e do burocrata”
(Braverman, 1981: 275-276).
Da mesma forma que a entrada da máquina no processo de produção, o computador
de escritório não põe fim à divisão do trabalho. Além disso, com o controle maior do
andamento do trabalho pela máquina possibilita-se, ao chefe do escritório, uma poderosa
arma de controle. Temos, portanto, um sistema de informações processados, o que “à
gerência um quadro automático da dimensão e volume do trabalho feito por operador, seção
da administração superior. A gerência do escritório, produto do período monopolista do capitalismo,
desenvolveu-se como um ramo especializado da gerência, com suas próprias escolas, associações
profissionais, guias e manuais, periódicos, padrões e métodos” (Braverman, 1981: 259).
150
“A eliminação progressiva do pensamento no trabalho de escritório assume a forma, assim, da redução do
trabalho mental à execução repetitiva da mesma pequena série de funções. O trabalho ainda é feito no cérebro,
mas o cérebro é usado como o equivalente da mão do trabalhador de pormenor na produção, pegando ou
soltando uma única peça de ‘dados’ vez por outra. O passo seguinte é a eliminação do processo pensante
inteiramente ou pelo menos na medida em que é sempre retirado do trabalho humano e o aumento das
categorias burocráticas nas quais nada mais que trabalho manual é executado” (Braverman, 1981: 270).
159
ou divisão” (Braverman, 1981: 278 e 282). A desqualificação do trabalho também se afirma
neste setor, pois, “com exceção de uma minoria especializada cujas perícias técnicas e
‘sistêmicas’ se expandiram, esta tendência afeta cada vez mais todos os trabalhadores em
escritório” (Braverman, 1981: 286). Em suma: temos a transformação “da rotina do
escritório em processo como o da fábrica” (Braverman, 1981: 293).
Esta realidade é bem própria à fase monopolista do capitalismo. Marx, em sua
época, pouco pode contribuir com este debate, devido ao fato do trabalho em escritório não
ter um desenvolvimento enquanto processo de trabalho capitalista. Porém, o rápido
crescimento deste setor no início do século XX leva uma série de comentaristas à conclusão
de que estava surgindo “uma nova e grande classe média”: “Desse ponto de vista, todo o
trabalho de escritório é tomado sob rubricas como ‘colarinho branco
151
ou ‘empregados
assalariados’. Isto nada mais é que um remanescente dos dias em que todo o trabalho no
escritório gozava das características de privilégio em matéria de pagamento, posição,
autoridade etc.” (Braverman, 1981: 294).
Braverman reitera a incapacidade da sociologia acadêmica para dar conta desses
fenômenos. Contudo, ele mesmo reconhece que há, entre os sociólogos, alguns mais
críticos; C. W. Mills, por exemplo, observou o fenômeno sob outro enfoque:
Depois dos anos 20, essas inovações aumentaram a divisão do trabalho entre
os colarinhos-brancos, modificaram a repartição do pessoal, e diminuíram os níveis
de qualificações necessárias. (...) Mesmo no nível dos funcionários categorizados e
dos profissionais, o desenvolvimento da racionalização burocrática tornou o
trabalho semelhante à produção industrial. O demiurgo administrativo
constantemente estimula todas essas tendências, isto é, a mecanização, a divisão
mais minuciosa do trabalho e o emprego de trabalhadores menos especializados e
menos caros.
Nas primeiras fases da introdução de uma nova divisão do trabalho, o efeito
pode ser o de especializar mais os indivíduos, aumentando os níveis de
qualificações; posteriormente, entretanto, sobretudo quando as operações são
151
“Um termo que reúne em uma única classe de grupamento o executivo com autoridade representando o
capital e as partes intercambiáveis da máquina do escritório que serve a ele não pode ter valor. Esta
terminologia, contudo, considerada prática pelos que estão alarmados com os resultados de uma terminologia
mais realista – aqueles, por exemplo, cuja ‘sociologia’ procura propósitos apologéticos. Para eles, esses
termos como ‘empregados engravatados’ convenientemente junta em uma categoria os cargos bem pagos,
com autoridade e desejáveis, no topo da hierarquia, e as massas de subalternos proletarizados de modo que
torna possível um quadro róseo: salários ‘em média’ elevados etc. Neste uso do termo, a categoria
‘engravatada’ tende a obter seu sabor quando lembra engenheiros, gerentes e professores no topo da
hierarquia, enquanto suas massas numéricas impressionantes são dadas por milhões de funcionários de
escritório, do mesmo modo que os astros de um elenco operístico ocupam a frente do proscênio enquanto os
comparsas fazem o coro” (Braverman, 1981: 295).
160
fragmentadas e mecanizadas, essa divisão desenvolve determinadas faculdades à
custa de outras, e termina por estreitar todas elas. À medida que se desenvolve a
mecanização e a gerência centralizada, ela nivela novamente os homens, tornando-
os autômatos. Há, então, poucos especialistas e uma massa de autômatos, ambos os
grupos integrados pela autoridade que os faz interdependentes e limitados cada um a
suas tarefas de rotina. Assim, pela divisão do trabalho, o desenvolvimento e o
exercício livre das qualificações profissionais são limitados e dirigidos.
As condições alienantes do trabalho moderno atingem hoje tanto os
empregados assalariados quanto os operários. Poucas características do trabalho dos
operários não se aplicam também ao dos colarinhos-brancos. Também, pois, nesse
caso, exceto, talvez, o esforço pesado, que, no entanto, tende a diminuir de
importância no trabalho operário, os aspectos humanos do indivíduo, desde os
físicos até aos psíquicos, tornam-se unidades no cálculo funcionalmente racional
dos gerentes (Mills apud: Braverman, 1981: 296-297).
A tendência verificada de uma ampla “classe média” não proletária não se
confirmou e, na verdade, grande parte dos funcionários de escritório se proletarizou
152
.
Há um outro segmento importante na diversificação da classe trabalhadora: os
trabalhadores em serviços. O crescimento do setor de serviços é, por exemplo, ao mesmo
tempo, uma contra-tendência ao aumento do desemprego decorrente da crescente
produtividade e a ascensão da racionalização em novas esferas.
Embora o crescimento do setor de serviços tenha compensado parcialmente
os efeitos perniciosos que a tecnologia moderna teve sobre os empregos,
acrescentou, juntamente com fatos correlatos, uma nova dimensão à desumanização
do processo de trabalho sob o capitalismo (Baran e Sweezy, 1966: 340).
A profunda mercantilização da vida social faz com que os serviços se ampliem
enormemente e tenham uma nova dimensão:
O trabalho da dona-de-casa, embora tenha o mesmo efeito material ou de
serviço que o da camareira, da garçonete, faxineira, porteira ou lavadeira, está fora
do alcance do capital; mas quando ela assume uma dessas funções fora de casa,
torna-se um trabalhador produtivo. O trabalho dela agora enriquece o capital e assim
merece um lugar no produto nacional (Braverman, 1981: 240).
Para Marx, um serviço “nada mais é que o efeito útil de um valor-de-uso,
mercadoria ou trabalho” (Marx, 1985: 217). Mas, como se pode ver, Braverman questiona
esta definição, pois se pergunta como este serviço pode ser caracterizado caso não resulte
152
“Em suas condições de emprego, esta população trabalhadora perdeu todas as antigas superioridades sobre
os trabalhadores fabris, e em suas escalas de salário desceu quase que ao nível mais baixo” (Braverman, 1981:
299-300).
161
em um objeto, quando se trata de um trabalho direto ao consumidor, onde produção e
consumo são simultâneos e, segundo ele, os próprios efeitos do trabalho transformam-se em
mercadorias. Nesse caso, ele não está tratando do antigo trabalho doméstico familiar ou
mesmo o empregado doméstico, trata do trabalhador que vende seu serviço ao capitalista e,
este, por sua vez, o revende no mercado de bens: é o que caracteriza como o modo de
produção capitalista no setor de serviços.
Apesar de Braverman diferenciar corretamente alguns erros na classificação de
detreminados serviços que, na verdade, se identificariam com trabalho produtivo, acaba
incorrendo no erro de generalizar os serviços como trabalho produtivo e levar a uma
indeterminação da forma de produção de valor:
Eles simplesmente ilustram o princípio que para o capitalismo o que importa
não é a determinada forma de trabalho, mas sua forma social, sua capacidade de
produzir, como trabalho assalariado, um lucro para o capitalista. O capitalista é
indiferente a determinada forma de trabalho; não lhe interessa, em última análise, se
emprega trabalhadores para produzir automóveis, lavá-los, consertá-los, repintá-los,
abastecê-los de gasolina e óleo, alugá-los por dia, dirigi-los como contratado,
estacioná-los ou convertê-los em sucata. O que lhe interessa é a diferença entre o
preço que ele paga por um agregado de trabalho e outras mercadorias, o preço que
recebe pelas mercadorias – sejam bens ou ‘serviços’ – produzidas ou prestadas.
Desse ponto de vista, a distinção entre mercadoria sob a forma de bens e
mercadorias sob a forma de serviços é importante para o economista ou
estatístico, não para o capitalista. O que vale para ele não é determinada forma de
trabalho, mas se foi obtido na rede de relações sociais capitalistas, se o trabalhador
que o executa foi transformado em homem pago e se o trabalho assim feito foi
transformado em trabalho produtivo – isto é, trabalho que produz lucro para o
capital (Braverman, 1981: 305).
É verdade que, para os capitalistas este rigor o é necessário, na verdade, não é
nem mesmo interessante, pois permite desvendar o centro da exploração do capital sobre o
trabalho. E, neste caso, nos levaria a conclusão de que, sob o capitalismo monopolista, com
a diminuição do trabalho diretamente na produção, há uma série de trabalhadores
improdutivos e funções parasitárias do capital que se mantém à base da super-intensificação
desta exploração na esfera produtiva. Esta afirmação, ao contrário do que possa parecer,
não negaria a degradação intensa da atividade dos segmentos de trabalhadores
caracterizados como improdutivos (como até agora tratamos: o trabalho em escritório e no
setor de serviços).
162
Contudo, Braverman continua afirmando: “os serviços constituíram grande parcela
na divisão social do trabalho por toda a era capitalista – para não falar nos primeiros tempos
mas não constituíram uma parte ‘produtiva’ ou lucrativa senão recentemente”
(Braverman, 1981: 306). É significativo que Braverman tenha o cuidado de colocar entre
aspas a palavra “produtivo”. É porque ele conhece o rigor da caracterização marxiana. Se
fosse fiel a esta caracterização afirmaria: lucrativo sim, mas produtivo não!
Para Marx, uma distinção importante, e nela nos apoiamos para negar o caráter
produtivo dos serviços: “A força humana de trabalho em ação ou o trabalho humano cria
valor, mas não é valor. Vem a ser valor, torna-se valor, quando se se cristaliza na forma de
um objeto” (Marx, 1985: 59).
Braverman diz que esta teoria não tem mais validade na economia burguesa
moderna: a prestação de serviços que de acordo com Adam Smith ‘não se fixa ou se
concretiza em qualquer tipo determinado ou mercadoria vendável’ não é tida em
desfavor, mas, pelo contrário, como se revelou como excelente fonte de lucro, é enaltecida”
(Braverman, 1981: 307-308). Segundo ele poucos economistas chamariam hoje a
prestação de serviços de ‘improdutiva’” (Braverman, 1981: 308).
Não foi ele, que pouco, afirmou que esta distinção entre mercadoria, sob a forma
de bens ou serviços, só interessava aos economistas e estatísticos? Qual será o motivo deste
interesse dos economistas ao confundir uma série de funções produtivas e improdutivas no
interior da classificação de serviços?
Realmente não serão os atuais economistas, nem os estatísticos, que trarão respostas
mais conclusivas, que eles “tendem a glorificar o serviço como forma característica da
produção em nossa época, superior à indústria e com um futuro promissor” (Braverman,
1981: 308).
foi negligenciada, por Braverman, a diferença fundamental, por sinal, também
notada por Marx, dos economistas políticos de outrora e dos atuais economistas vulgares.
E, por isso, deixa de identificar o conteúdo absolutamente ideológico que os últimos
possuem, principalmente no sentido de desviar o centro do debate da produção para a
163
distribuição e consumo das mercadorias, ou para qualquer lugar onde se esconda o centro
da exploração burguesa
153
.
Apesar dos percalços na análise sobre o caráter “produtivo” ou “improdutivo”
destas funções, Braverman, ao fazer uma análise concreta das condições de trabalho neste
setor, nos brinda com elementos fundamentais para a crítica da visão dos ideólogos
burgueses e suas manipulações “conceituais” e estatísticas:
Nesta categoria ocupacional encontram-se as funções de governante de uma
sociedade de vida e trabalho concentrados que reúne trabalhadores e residentes em
unidades habitacionais, blocos gigantescos de escritórios e imensas unidades fabris
e que exigem constantes serviços de limpeza, conservação e abastecimento. Vemos
aqui o lado inverso da proclamada ‘economia de serviço’ que se pretende isentar os
trabalhadores da tirania da indústria, criar uma ‘ordem superior’ de trabalho
instruído e transformar as condições do homem médio. Quando esse quadro é
pintado por jornalistas entusiásticos e publicitários do capitalismo (com ou sem
graus superiores em Sociologia e Economia), tem-se uma impressão de realidade
pela referência a ocupações profissionais. Quando se exigem números para dar
concreção à idéia, invocam-se as categorias profissionais em escritório, vendas e
em serviços. Mas não se pede que esses trabalhadores exibam seus diplomas, seus
contracheques ou seus processos de trabalho (Braverman, 1981: 314-315).
Todas as camadas sociais que analisamos até o momento (os trabalhadores em
escritório e nos serviços), em seu processo de transformação, passam a assemelharem-se às
condições sociais do proletariado. Agora trataremos das camadas médias do emprego.
Acredita-se que, “diferentemente das primeiras massas de classe média, que tão
grandemente desapareceram, ela corresponde cada vez mais à definição de classe
trabalhadora” (Braverman, 1981: 308). Explica-se o motivo:
Isto é, como classe trabalhadora, ela não possui qualquer independência
econômica e afiliados, não possui acesso algum ao processo de trabalho ou meios de
produção fora do emprego, e deve renovar seus trabalhos para o capital
incessantemente a fim de subsistir. Esta parcela do emprego abrange os
engenheiros, técnicos, quadro científico, os níveis inferiores da supervisão e
gerência, o considerável número de empregados especializados e ‘liberais’
153
Seja como for, Bravermam demonstra a crescente importância deste setor na economia e a degradação
destes trabalhadores: a prestação de serviços “incluem agora vasta massa de trabalho perto de nove vezes
maior que os milhões de trabalhadores no setor pela virada do século” e, por isso, teve um “aumento muito
mais rápido que o do emprego total, que, no mesmo período (1900-1970), menos que triplicou” (Braverman,
1981: 308-309). Além disso “a média dos ganhos semanais comuns de trabalhadores em tempo integral e
assalariados nos serviços é mais baixa que a de qualquer grupo ocupacional, exceto agrícolas” (Braverman,
1981: 309). Por fim, é característico deste setor um grau muito pequeno de qualificação como condição para
exercício da maioria das atividades vinculadas a ele.
164
ocupados em mercadejamento, administração financeira e organizacional e
semelhantes, fora da indústria capitalista, em hospitais, escolas, repartições
públicas
154
etc. relativamente ela nem de longe é tão grande quanto a velha pequena
burguesia que, na base do empreendimento independente, ocupava quase metade ou
mais da população na fase pré-monopolista do capitalismo. Ela abrange, nos
Estados Unidos hoje talvez mais de 15, porém menos de 20 por cento do emprego
total (Braverman, 1981: 341).
Para, finalmente, extrair deste conjunto de transformações na estrutura ocupacional
uma análise crítica, é importante o esclarecimento de algumas delimitações, expostas por
Marx, acerca das definições de trabalho produtivo e improdutivo. Marx encara o conceito
de trabalho produtivo, numa explicação preliminar, a partir da diferenciação necessária, do
ponto de vista analítico, entre o processo de trabalho em geral e o processo de trabalho sob
o capitalismo. Tendo em vista a diferença entre ambos, ele define dois aspectos do conceito
de trabalho produtivo: um aspecto amplo e um restrito.
O primeiro se vincula ao processo constante ao longo da história (e de forma
exponencial sob o capitalismo) de socialização do trabalho: trata da criação do trabalhador
coletivo.
Enquanto o processo de trabalho é puramente individual, um único
trabalhador exerce todas as funções que mais tarde se dissociam. Ao apropriar-se
individualmente de objetos naturais para prover sua vida, é ele quem controla a si
mesmo; mais tarde, ficará sob controle de outrem. O homem isolado não pode atuar
sobre a natureza, sem pôr em ação seus músculos sob o controle de seu cérebro.
Fisiologicamente, cabeça e mãos são partes de um sistema; do mesmo modo, o
processo de trabalho conjuga o trabalho do cérebro e das mãos. Mais tarde se
separam e acabam por tornar hostilmente contrários. O produto deixa de ser o
resultado imediato da atividade do produtor individual para tornar-se produto social,
comum, de um trabalhador coletivo, isto é, de uma combinação de trabalhadores,
podendo ser direta ou indireta a participação de cada um deles na manipulação do
objeto sobre que incide o trabalho. A conceituação do trabalho produtivo e de seu
executor, o trabalhador produtivo, amplia-se em virtude desse caráter cooperativo
do processo de trabalho. Para trabalhar produtivamente não é mais necessário
154
E, apesar da imensa máquina militar, o funcionalismo civil, por exemplo, continua tendo importante peso.
Ao analisar a tabela de gastos governamentais crescentes nos EUA, Bravermam adverte: “Não se deve supor,
contudo, que o impacto dos gastos governamentais com a estrutura ocupacional seja proporcional a essas
cifras. Grande parte dos gastos governamentais é canalizada através da estrutura existente do mercado mais
que diretamente através do emprego governamental: eles assumem a forma de suprimentos militares,
assinatura de contratos para rodovias e serviços públicos, é que, em 1961, quando os governos federal,
estaduais e municipais gastavam quase 29 por cento do Produto Nacional Bruto, o funcionalismo público civil
dos três tipos de governo era de 13 por cento do emprego civil total. Mas mesmo esse percentual é grande, e
tem aumentado. No emprego federal, está concentrado pesadamente na instituição civil para administração
militar; nos estados e municípios, concentra-se na educação” (Braverman, 1981: 246).
165
executar uma tarefa de manipulação do objeto de trabalho; basta ser órgão do
trabalhador coletivo, exercendo qualquer uma das suas funções fracionárias. A
conceituação anterior de trabalho produtivo, derivada da natureza da produção
material, continua válida para o trabalhador coletivo, considerando em conjunto.
Mas não se aplica mais a cada um de seus membros, individualmente considerados
(Marx, 1994: 583-584).
O segundo aspecto é relacionado à determinação posta, sob o modo capitalista de
produção, ao trabalho produtivo, que se revela na sua restrição às atividades produtoras de
mais valia:
Ademais, restringe-se o conceito de trabalho produtivo. A produção
capitalista não é apenas produção de mercadorias, ela é essencialmente produção de
mais valia. O trabalhador não produz para si, mas para o capital. Por isso não é mais
suficiente que ele apenas produza. Ele tem de produzir mais valia. é produtivo o
trabalhador que produz mais valia para o capitalista, servindo assim à auto-expansão
do capital. Utilizando um exemplo fora da esfera da produção material: um mestre-
escola é um trabalhador produtivo quando trabalha não só para desenvolver a mente
das crianças, mas também para enriquecer o dono da escola. Que inverta seu capital
numa fábrica de ensinar, em vez de numa de fazer salsicha, em nada modifica a
situação. O conceito de trabalho produtivo não compreende apenas uma relação
entre atividade e efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho, mas também
uma relação de produção especificamente social, de origem histórica, que faz do
trabalhador o instrumento direto de criar mais valia. Ser trabalhador produtivo não é
nenhuma felicidade, mas azar (Marx, 1994: 584-585).
No que se refere ao trabalho improdutivo, ao analisar as formas de absorção do
excedente sob o capitalismo, Marx observou que, para além do consumo capitalista e o
investimento privado “o Estado e a Igreja foram sempre reconhecidos como co-
consumidores do excedente”. E “além dos funcionários públicos e do clero, havia uma
categoria importante de trabalhadores ‘improdutivos’, exemplificadas pelos empregados
domésticos, que recebiam uma grande parte, ou a totalidade, de suas rendas dos capitalistas
e latifundiários” (Baran e Sweezy, 1966: 117). Somam-se, ainda, as despesas de circulação:
A lei geral é que todas as despesas de circulação, provocadas apenas pelas
modificações de forma, não acrescentam qualquer valor às mercadorias. São
simplesmente despesas exigidas para a realização do valor, ou para a sua conversão
de uma forma em outra. O capital investido nessas despesas (inclusive o trabalho
empregado por ele) pertence às despesas mortas da produção capitalista. Devem ser
cobertas pelo produto excedente e são, do ponto-de-vista de toda a classe capitalista,
uma dedução da mais-valia ou do produto excedente (Marx apud: Baran e Sweezy,
1966: 117).
166
A ampliação do trabalho improdutivo sob o capitalismo monopolista é devida a um
aumento das funções voltadas à concretização e apropriação do valor, emprego do capital
para fins de crédito, especulação, entre outras: estas funções mobilizam “enormes volumes
de trabalho, e este trabalho, enquanto necessário para o modo capitalista de produção, é em
si improdutivo, visto que não amplia o valor ou o valor excedente disponível à sociedade
nem a mínima parcela à classe capitalista” (Braverman, 1981: 350).
A incapacidade da economia burguesa compreender esta diferença entre o trabalho
produtivo e improdutivo advém do fato de que a Economia Política esteve presa ao antigo
modo de trabalho improdutivo e, a economia atual, pelo fato de, contraditoriamente com a
Economia clássica que indicava a necessidade da redução ao mínimo do trabalho
improdutivo –, não poder hoje manter a mesma atitude, diante de seu vínculo com a
burguesia dos monopólios. Veja-se a factualidade atual:
A empresa moderna desenvolveu o trabalho improdutivo dessa forma
desnecessária, e sem necessidade acabou com os modos mesquinhos e sovinas de
seus predecessores, cuja primeira regra era ‘revirar tudo’ e dedicar todos os recursos
possíveis à produção. ‘Despender milhões para ganhar milhões’, tornou-se o lema, e
esta frase, em todas as suas variantes na empresa moderna, é compreendida em geral
no sentido de gastar milhões em mercadejamento, publicidade, promoção,
especulação; estas são as áreas a que as rendas empresariais disponíveis são
canalizadas, enquanto a produção tornou-se relativamente rotinizada e os gastos
naquele setor fluem em quantidades medidas e previstas (Braverman, 1981: 352).
A necessidade de impor uma velocidade cada vez maior ao fluxo da circulação do
capital leva os ideólogos e administradores burgueses a misturarem, em suas cabeças, os
processos de trabalho: todos processos são considerados igualmente úteis, seja os da
produção, concretização ou desvio do excedente.
Pelo conjunto de transformações indicadas em seu texto, Braverman propõe uma
nova demarcação da linha divisória entre trabalhadores produtivos e improdutivos:
De posições privilegiadas que eram, nas quais se podia em pequeno grau
partilhar das vantagens decorrentes do capital mediante trabalho produtivo, vieram a
ser meros dentes na engrenagem total destinada a multiplicar o capital. E isto
continua sendo verdade não obstante o fato de que, tecnicamente falando, todos
aqueles que não produzem valores de troca devem consumir uma parcela dos
valores de troca produzidos pelos demais. Na empresa moderna, e para a massa de
trabalho que ela emprega, essa distinção perdeu sua força social como linha
divisória entre os proletários e a classe média: essa linha não mais pode ser
traçada tão rudemente correspondendo à divisão entre trabalhadores produtivos e
167
improdutivos, mas deve ser traçada noutra parte na estrutura social. Assim o
aforismo de Marx deve ser modificado e agora se deve dizer que ser um
trabalhador assalariado é uma desventura (Braverman, 1981: 354).
que o próprio Marx considerava os “trabalhadores na produção e empregados
comerciais do mesmo modo como trabalhadores assalariados”, Braverman determina:
Embora o trabalho produtivo e o improdutivo sejam tecnicamente distintos,
embora o trabalho produtivo tenha tendido a decrescer na razão do aumento de sua
produtividade, enquanto o improdutivo tenha aumentado apenas como conseqüência
do aumento dos excedentes jorrados pelo trabalho produtivo a despeito dessas
distinções, as duas massas de trabalho não estão absolutamente em flagrante
contraste e não precisam ser contrapostas uma à outra. Elas constituem uma massa
contínua de emprego que, atualmente e diferentemente da situação nos dias de
Marx, têm tudo em comum (Braverman, 1981: 357).
As semelhanças nas condições de vida e de trabalho destes segmentos são sem
dúvida inegáveis, mas é necessário, do ponto de vista ontológico, reafirmar que as
diferenças não podem ser tratadas como secundárias.
Apesar de Marx igualar o “trabalho” do mestre-escola ao do trabalhador produtor de
salsichas, é preciso identificar uma diferença fundamental, pautada no caráter ontológico do
trabalho: “Para Lukács, o trabalho implica sempre a apropriação da natureza; o seu
produto possui uma realidade corpórea e este o é o caso da atividade pedagógica, do
mestre-escola de Marx” (Carli, 2007: 1).
A diferenciação entre a atividade ontológica do trabalho e as demais atividades
torna-se cada vez mais difícil devido à complexidade desenvolvida no processo de
produção capitalista e na divisão do trabalho, pois “o trabalho se torna não simplesmente
um fato no qual se expressa a nova peculiaridade do ser social, mas, ao contrário,
precisamente no plano ontológico, também se converte no modelo de toda a nova forma do
ser” (Lukács, 2007: 230). Isso implicaria também, como vimos no decorrer da exposição, a
refratação da forma de divisão do trabalho presente na produção para as mais diferentes
esferas ligadas aos trabalhadores improdutivos, entre outras esferas da vida social.
É por isso que, mesmo diante do fato da crescente diversificação e degradação dos
mais diferentes segmentos da classe trabalhadora, continuamos a insistir na centralidade do
proletariado na dinâmica econômica do capitalismo dos monopólios e, por conseguinte, na
luta política. A afirmação desta centralidade não pode se confundir com qualquer tipo de
168
tendência “obreirista”. Marx, ao seu tempo, em polêmica com o lassaleanos, já havia
criticado, de forma contundente, a idéia de que a classe operária era a única classe
revolucionária “em face da qual todas as outras classes não formam mais do que uma massa
reacionária”. Ele responde, trazendo-nos elementos importantes para pensar a necessidade
de constituição de alianças de classe com setores médios (ou o que hoje mal chamaríamos
de “trabalhadores burocráticos”, “trabalhadores improdutivos”, “classe média”, etc.), da
seguinte forma:
Por outro lado, o proletariado é revolucionário frente à burguesia porque,
resultante ele próprio da grande indústria, tende a despojar a produção do seu caráter
capitalista, que a burguesia procura perpetuar. Mas o Manifesto acrescenta que ‘as
classes médias... se tornam revolucionárias.... na perspectiva da sua passagem
iminente ao proletariado’.
Deste ponto de vista, portanto, é mais um absurdo fazer das classes médias,
juntamente com a burguesia e, ainda por cima, com senhores feudais, ‘uma mesma
massa reacionária’ face à classe operária (Marx In: Antunes, 2004: 138).
De qualquer forma, somente a definição de como as principais classes antagônicas
se conformam no capitalismo monopolista poderá nos indicar as diferenciações e as
semelhanças mais fundamentais, o que, por sua vez, redefine aquilo que os sociólogos
trataram indiscriminadamente como burocracia. aqueles para quem as “funções
burocráticas” trazem a alegria e a fruição dos grandes lucros monopolistas, e outros que, se
querem se manter vivos, devem aceitar uma rotina cada vez mais alienante, seja no
trabalho, no lazer ou em qualquer esfera da vida social. Entre estes uma série de tipos, e
os processos constantes e cada vez maiores de mutações trazem-nos a uma necessidade
constante de atualização da análise teórica. Como nossa análise tem propósito limitado,
trataremos apenas dos principais marcos destas diferenças.
3.2.4- Capitalista coletivo e trabalhador coletivo
Da mesma forma que salientamos a dupla caracterização do trabalho produtivo,
segundo sua relação com o processo de trabalho ou com o processo de trabalho capitalista,
precisamos definir o duplo conteúdo da função social do capitalista: “Se a direção
capitalista é dúplice em seu conteúdo, em virtude da dupla natureza do processo de
produção a dirigir que, ao mesmo tempo, é processo de trabalho social para produzir um
169
produto e processo de produzir mais valia ela é, quanto à forma, despótica” (Marx, 1985:
380-381).
Esta forma autoritária de direção do processo de trabalho foi por nós analisada. O
que importa agora é identificar aquele duplo caráter de forma clara. No primeiro caso,
temos o capitalista como “superintendente” do processo de trabalho:
Todo trabalho diretamente social ou coletivo, executado em grande escala,
exige com maior ou menor intensidade uma direção que harmonize as atividades
individuais e preencha as funções gerais ligadas ao movimento de todo o organismo
produtivo, que difere do movimento de seus órgãos isoladamente considerados. Um
violinista isolado comanda a si mesmo, uma orquestra exige um maestro. Essa
função de dirigir, superintender e mediar assume-a o capital logo que o trabalho a
ele subordinado se torna cooperativo (Marx, 1985: 379-380).
no processo de produção capitalista a forma do capitalista dirigir é determinada
objetivamente pela necessidade de exploração da força de trabalho:
Com a quantidade dos trabalhadores simultaneamente empregados cresce
sua resistência e com ela, necessariamente, a pressão do capital para dominar essa
resistência. A direção exercida pelo capitalista não é apenas uma função especial,
derivada da natureza do processo de trabalho social e peculiar a esse processo; além
disso, ela se destina a explorar um processo de trabalho social, e, por isso, tem por
condição o antagonismo inevitável entre o explorador e a matéria-prima de sua
exploração. (...) A cooperação dos assalariados é levada a efeito apenas pelo capital
que os emprega simultaneamente. (...) A conexão entre seus trabalhos aparece-lhes
idealmente como plano, e praticamente como autoridade do capitalista, como poder
de uma vontade alheia que subordina a um objetivo próprio a ação dos assalariados
(Marx, 1985: 380).
Pouco a pouco esta função, exercida, em princípio, individualmente pelo capitalista,
é ampliada. Para entender como isso se dá, uma longa citação permitirá uma compreensão
mais clara deste processo.
De início, o capitalista em germe liberta-se do trabalho manual quando seu
capital atinge aquela magnitude mínima em que começa a produção capitalista
propriamente dita. Com o desenvolvimento, o capitalista se desfaz da função de
supervisão direta e contínua dos trabalhadores isolados e dos grupos de
trabalhadores, entregando-a a um tipo especial de assalariados. Do mesmo modo
que um exército, a massa de trabalhadores que trabalha em conjunto sob o comando
do mesmo capital precisa de oficiais superiores (dirigentes, gerentes) e suboficiais
(contramestres, inspetores, capatazes, feitores), que, durante o processo de trabalho,
comandam em nome do capital. O trabalho de supervisão torna-se sua função
exclusiva. Comparando o modo de produção dos camponeses independentes ou dos
artífices autônomos com a economia das plantações, baseada na escravatura, o
170
economista político arrola esse trabalho de superintendência como despesa anormal
da produção. Em contraposição, ao observar o modo de produção capitalista
identifica a função de direção que deriva da natureza do processo de trabalho
coletivo com a que deriva do caráter capitalista do processo produtivo, do
antagonismo entre patrão e trabalhador. O capitalista não é capitalista por ser
dirigente industrial, mas ele tem o comando industrial porque é capitalista. O
comando supremo na indústria é atributo do capital, como no tempo feudal a direção
da guerra e a administração da justiça eram atributos da propriedade da terra (Marx,
1985: 381-382).
Tendo em vista a profunda dificuldade posta com o desenvolvimento das
segmentações na classe trabalhadora, e nas próprias funções gerenciais burguesas, faz-se
necessário uma tentativa de realizar um esboço da caracterização destas classes, tal como se
apresentam sob o capitalismo monopolista.
O velho discurso ideológico burguês, que Marx expõe, com toda sua ácida ironia, é
hoje ainda mais difícil de ser desatado. A “humilde” auto-apresentação do burguês
enquanto trabalhador é repetida hoje para definir não só a posição de um capitalista
individual, mas o conjunto dos gerentes, alto executivos, especuladores, proprietários dos
mais diferentes tipos, em suma, ao capitalista coletivo:
Nosso amigo, até pouco arrogante, assume subitamente a atitude modesta
do seu próprio trabalhador. Não trabalhou ele, não realizou o trabalho de vigiar e de
superintender o fiandeiro? o constitui valor esse trabalho? Mas, seu capataz e se
gerente encolhem os ombros. Entrementes, nosso capitalista recobra sua fisionomia
costumeira com um sorriso jovial. Com toda aquela ladainha, estava apenas se
divertindo às nossas custas. Não daria um centavo por ela. Deixa esses e outros
subterfúgios e embustes por conta dos professores de economia, especialmente
pagos para isso. Ele é um homem prático que nem sempre pondera o que diz fora do
negócio, mas sabe o que faz dentro dele (Marx, 1985: 217-218)
Como estaria nosso jovial brincalhão, hoje, com um império monopolista
impensável ao tempo de Marx? Será que ficaste mais sisudo? “Potente outrora, hoje
moroso, hoje prudente”, como antecipara Goethe?
O dirigente empresarial de hoje é um tipo muito diferente do magnata de
50 anos. Sob um aspecto, ele representa um retorno aos dias anteriores ao magnata;
sua principal preocupação é novamente a ‘vigilância e regulamentação de um
determinado processo industrial ao qual sua sobrevivência está ligada’. Por outro
lado, sob outro aspecto é a antítese do empresário e do magnata clássicos ao mesmo
171
tempo: estes foram individualistas por excelência, ao passo que ele é a espécie
principal de um gênero conhecido como ‘homem da organização
155
’.
muitas formas de descrever o contraste entre o magnata e o dirigente
moderno. O primeiro foi o pai da empresa gigante, o segundo é seu filho. O
magnata permanecia fora e acima, dominando a empresa. O dirigente é um homem
de dentro, dominado por ela. A fidelidade do primeiro é para consigo mesmo e sua
família (que, na sua forma burguesa, é essencialmente uma extensão do eu); a
fidelidade do outro é para com a organização a que pertence e através da qual se
expressa. Para o primeiro, a empresa era apenas um meio de enriquecimento; para o
segundo, o bem da companhia tornou-se uma finalidade ao mesmo tempo
econômica e ética. O primeiro roubava da empresa, o segundo rouba para ela (Baran
e Sweezy, 1966: 39).
Baran e Sweezy atualizam a identificação feita por Marx, sobre a determinação da
função capitalista da propriedade sobre a função capitalista da gerência, e afirma a posição
social da camada administrativa como capitalista:
a impressão generalizada, e muita literatura que a mantém e difunde, de
que as administrações das grandes empresas formam um tipo de classe social à
parte, independente ou ‘neutra’.
(...) A verdade é que a camada administrativa é a parte mais ativa e influente
da classe dos proprietários. Todos os estudos mostram que seus membros são
recrutados principalmente das camadas média e superior da estrutura de classes;
confundem-se por vezes com o que C. W. Mills chama de ‘os muito ricos’; com
poucas e insignificantes exceções são homens ricos, independentemente das grandes
rendas e privilégios que obtêm de suas ligações empresariais. É certo, sem dúvida,
como já ressaltamos, que, na grande empresa típica, a administração não está sujeita
ao controle do acionista, e, nesse sentido a ‘separação entre propriedade e controle’
é uma realidade. Mas não há justificativa para concluir-se disso que a administração
em geral está divorciada da propriedade em geral. Pelo contrário, os dirigentes estão
entre os maiores donos; e devido às posições estratégicas que ocupam, funcionam
como os protetores e porta-vozes de toda a propriedade em grande escala. Longe de
serem uma classe à parte, constituem na realidade o principal escalão da classe dos
proprietários (Baran e Sweezy, 1966: 43-44)
156
.
155
Antes que se suponha que os autores indicam o fim do individualismo do burguês, sob os monopólios, é
necessário ler sua explicação noutro momento: “Isto não significa, porém, que ele seja mais ou menos o homo
economicus, mais ou menos egoísta, mais ou menos altruísta do que o magnata ou o empresário individual
que o antecederam, todas essas concepções são, na melhor das hipóteses, irrelevantes, e, na pior, enganosas”
(Baran e Sweezy, 1966: 46).
156
Braverman também procura delinear este novo capitalista coletivo, que, a partir das tendências de
centralização e concentração do capital, tem a oportunidade de se apresentar sob duas faces em um ser único:
“A empresa como uma forma desfaz o vínculo direto entre o capital e seu proprietário individual, e o
capitalismo monopolista ergue-se sobre sua forma. Imensos agregados de capital podem ser reunidos, que
ultrapassam de longe a soma de riqueza daqueles diretamente associados com a empresa. O controle
operacional recai cada vez mais sobre um funcionalismo gerencial para cada empresa. Uma vez que tanto o
capital como o gerenciamento profissional em seus veis mais altos são retirados, em geral, da mesma
classe, pode-se dizer que os dois lados do capitalista, proprietário e administrador, antigamente unidos numa
172
A relação de assalariamento, em alguns casos, pode vir a servir como forma para a
mistificação de determinadas relações sociais. Na verdade ela deve ser claramente
demarcada:
A forma de emprego assalariado exprime duas realidades diferentes: num
caso, o capital contrata uma ‘força de trabalho’ cuja função é atuar, sob direção
externa, para aumentar o capital; na outra, por um processo de seleção dentro da
classe capitalista e principalmente a partir de suas próprias fileiras, o capital escolhe
um pessoal administrativo para representá-lo no local, e ao representá-lo
supervisionar e organizar os trabalhos da população trabalhadora (Braverman, 1981:
342- 343).
Nesta definição fica mais evidente o caráter opositivo das classes, mas entre estas
duas verifica-se uma gama de categorias intermediárias que partilham as características de
ambas. Braverman esboça uma hipótese interessante que precisamos investigar mais de
perto:
As gradações de posição na linha da administração podem ser vistas
sobretudo em termos de autoridade, enquanto as gradações em posição funcional
são expressas pelo nível de perícia técnica. Uma vez que a autoridade e a perícia das
camadas médias na empresa capitalista representam uma inevitável delegação de
responsabilidade, a posição de tais funcionários pode ser julgada melhor por sua
relação com o poder e a riqueza que os comandam de cima, e com a massa de
trabalho sob eles que eles por sua vez ajudam a controlar, comandar e organizar.
Seu nível de remuneração é significante, porque além de certo ponto dele, como a
remuneração dos dirigentes da empresa, claramente representa não precisamente a
troca de seu trabalho por dinheiro uma troca de mercadorias mas uma
participação no excedente produzido na empresa e dando-lhes um ‘apoio
administrativo’ mesmo que pequeno. O mesmo é certo na medida em que partilham
de uma garantia reconhecida de emprego, na semi-independência de seu modo de
trabalho dentro do processo produtivo, na autoridade sobre o trabalho de outros, no
direito de admitir e demitir e outras prerrogativas de direção (Braverman, 1981:
343).
mesma pessoa, agora tornam-se aspectos da classe. É certo que a propriedade do capital e a administração das
empresas jamais estão inteiramente divorciados um do outro nos indivíduos da classe, visto que ambos
permanecem concentrados em um grupamento social de dimensões extremamente limitadas: portanto, via de
regra, os altos administradores não são indivíduos destituídos de capital, nem são os proprietários de capital
necessariamente inativos da administração. Mas, em cada empresa, a unidade imediata e pessoal entre os dois
é rompida. O capital ultrapassou sua forma pessoal limitada e limitadora e passou a uma forma institucional.
Isso continua sendo certo mesmo embora a pretensão de propriedade continue, em última análise, amplamente
pessoal ou familial de acordo com a estrutura lógica e jurídica do capitalismo” (Braverman, 1981: 220-221).
173
Os setores médios do emprego administrativo são vistos em suas diversas
gradações:
Os chefes de engenharia que projetam o processo de produção misturam-se
com a administração no alto (...). Intermediariamente estão os funcionários
subalternos e sem posto do exército industrial, os chefes de turma, os pequenos
‘gerentes’ de todos os tipos, os especialistas técnicos que detêm, senão autoridade,
pelo menos uma ligeira independência no trabalho. E fora deste âmbito das
empresas, nos estabelecimento governamentais, educacionais e hospitalares, essas
gradações são reproduzidas de modos peculiares aos processos de trabalho
executados em cada uma dessas áreas (Braverman, 1981: 343-344).
São empregos diretamente decorrentes da “posição privilegiada no mercado que o
trabalho instruído especializada e tecnicamente possui na primeira fase de seu
desenvolvimento” (Braverman, 1981: 344), mas que tendem a perder seu caráter de
especialização logo sua área seja “racionalizada”.
Considera-se que, dentre estes, “aqueles que estão na área do emprego capitalista
desfrutam os privilégios de isenção inclusive dos piores aspectos da situação proletária,
inclusive, via de regra, escalas de pagamento significativamente mais altas, em maior ou
menor grau segundo seu lugar específico na hierarquia” (Braverman, 1981: 344). Porém,
eles não podem ser confundidos com a idéia vaga de “classe média”:
[A “velha classe média”] não desempenhava papel direto no processo de
acumulação de capital, seja de um lado ou de outro. Esta ‘nova classe média’, em
contraste, ocupa sua posição intermediária não porque esteja fora do processo de
aumento do capital, mas porque, como parte desse processo, ela assume as
características de ambos os lados (Braverman, 1981: 344).
a outra parte das ocupações dessa “nova classe média” está submetida a
determinados aspectos da condição operária, como por exemplo, a constituição de um
exército industrial de reserva, a tendência decrescente nos salários e a “racionalização” que
subdivide o trabalho. Daí, a forma proletária passa a afirmar-se, e as inseguranças como
vendedores da força de trabalho impera, juntamente com o controle e a “alienação” sobre a
sua atividade.
Entretanto, para observar em seus pormenores estas tendências precisamos, mais
uma vez, recorrer à Marx.Vejamos como ele resume a estrutura hierárquica da fábrica:
A distinção essencial ocorre entre os trabalhadores que estão realmente
ocupados com as máquinas-ferramenta (inclusive alguns trabalhadores que tomam
174
conta da máquina motriz e a alimentam) e seus auxiliares (que são quase
exclusivamente crianças). Entre seus auxiliares podem ser incluídos os que
alimentam a máquina com o material a ser trabalhado. Ao lado dessas duas classes
principais, um pessoal pouco numeroso, que se ocupa com o controle de toda a
maquinaria e a repara continuamente, como engenheiros, mecânicos, marceneiros
etc. é uma classe de trabalhadores de nível superior, uns possuindo formação
científica, outros dominando um ofício; distinguem-se dos trabalhadores de brica,
estando apenas agregados a eles. Sua divisão do trabalho é puramente técnica
157
(Marx, 1985: 480-481).
Apesar da distinção da camada técnica dos trabalhadores para os operários, eles
estão mais próximos, nos dias de hoje, no que diz respeito ao caráter produtivo de seu
trabalho. Ao nosso ver, esta deve continuar sendo uma linha demarcatória importante, na
caracterização da classe. Sendo assim, faz-se necessário retomar uma série de distinções,
delineadas neste estudo, para um esboço de caracterização objetiva
158
da “classe
trabalhadora” e da “classe capitalista”.
uma grande dificuldade na definição do termo classe trabalhadora algum
tempo, pois, estando a grande maioria das pessoas na condição de não possuidora dos
meios de produção, uma referência a todos, definindo-os na mesma classe, levaria, no
mínimo, a um empobrecimento do conceito. Por outro lado, é polêmica a definição de
“nova classe trabalhadora”, pois, na maioria das vezes, aqueles que a empregam se referem
a uma suposta nova classe, qualificada, bem remunerada etc., que não necessariamente
deveria se enquadrada numa definição precisa da classe trabalhadora em suas
determinações concretas.
A primeira camada que, indiscutivelmente, compõe a “classe trabalhadora” é o
operariado, pois, se partimos da necessidade ontológica do trabalho manual para a
157
Em nota, Marx salienta o caráter intencional das estatísticas de confundir a classificação de diferentes
funções na categoria de trabalhadores de fábrica: “Sente-se a ambigüidade estatística intencional, que se
poderia comprovar em muitos casos de maneira pormenorizada, na circunstância de a legislação fabril inglesa
excluir de sua esfera de ação a última classe de trabalhadores mencionada no texto e de os relatórios
estatísticos parlamentares publicados incluírem na categoria de trabalhadores de fábrica não engenheiros,
mecânicos etc. mas também gerentes, vendedores, mensageiros, enfardadores etc., enfim todas as pessoas
exceto o dono da fábrica” (Marx, 1985: 481)
158
Com isso não pretendemos reproduzir uma análise positivista presente em “certos marxistas” que,
“exagerando a afirmação marxiana segundo a qual os seres humanos na produção social da vida estabelecem
relações sociais necessárias e independentes de sua vontade (...) tendem a ver a história como um produto
meramente objetivo que foge à compreensão e à teologia humana” (Iasi, M. L. As Metamorfoses da
Consciência de Classe: o PT entre a negação e o consentimento Edição. São Paulo: Expressão Popular,
2006: p.41).
175
transformação da natureza, veremos que, sob o capitalismo, esta é a mais importante função
na produção da mais-valia apropriada pelo capital.
Mas vimos que a atividade do trabalho, que ontologicamente une numa mesma
atividade individual o pensamento e a ação transformadora do objeto, é, com o
desenvolvimento da produção capitalista, dividida em duas funções contrapostas: a
concepção e a execução no interior da fábrica. Precisamos analisar cada uma destas funções
particularmente.
A atividade intelectual, para que não se confundam funções diferenciadas, deve ser
concebida em dois modos absolutamente antagônicos: o projeto referente ao uso capitalista
da força de trabalho (ou seja, a gerência do trabalho na indústria) e a projeção referente às
matérias-primas ou mesmo aos instrumentos de trabalho. No primeiro caso, as diferentes
funções exercidas se vinculam à função do capitalista, que foi subdividida ao longo do
desenvolvimento histórico. A segunda função é decorrente de outra subdivisão, a da divisão
entre trabalho manual e trabalho intelectual.
No primeiro momento, Marx caracteriza este “trabalho intelectual” como “as forças
intelectuais da produção” que passam ao domínio do capitalista. Porém, de fato, isto não se
trata exatamente de “trabalho”, mas sim de gerência da força de trabalho, já que as
habilidades intelectivas referentes às propriedades e manuseio dos meios de produção
continuam sob o controle do trabalhador. Isso muda quando surge, por exemplo, a
figura, ilustrada por Braverman, do “programador de peças” separado do operário manual.
Esta figura pode ser expandida por uma série de funções destinadas a “pensar” ou
projetar as diferentes matérias-primas e instrumentais. Estas funções, à primeira vista,
que são decorrentes da função operária que foi fragmentada, constituiria uma parcela
produtiva da classe trabalhadora, pois o conteúdo teleológico é característica ineliminável
do processo de trabalho e, no capitalismo, esta separação potencializa a produção de mais-
valia.
A unidade do operário manual e o “trabalhador intelectual”, neste sentido, forma o
trabalhador coletivo condição indispensável no processo de produzir mais-valia a partir
de determinado grau de seu desenvolvimento.
O problema, entretanto, é que, muitas vezes, a concepção do objeto está diretamente
vinculada ao seu uso pelo operário, ou seja, é característica de uma parte significativa do
176
“trabalho intelectual” pensar a gerência da força de trabalho junto com o projeto do
material objetivamente necessário à produção. Por isso, excluindo a parcela dos
“trabalhadores intelectuais” dedicados especificamente a “pensar” o produto concreto (que
se configuram como “trabalhadores produtivos”), as funções de “pensar” a gerência da
força de trabalho é realizada por uma heterogênea camada improdutiva. Cabe distinguir se
esta camada compõe o “trabalho improdutivo” ou a própria função administrativa e
gerencial burguesa.
O desenvolvimento do capitalismo dos monopólios desenvolveu amplamente, seja
as camadas de “trabalhadores improdutivos” (detalhamos o trabalho em escritório, em
serviços e situamos algumas outras), como as camadas improdutivas e parasitárias do
capital. Não cabe retomar esta explicação. que somente salientar que uma forma
central de diferenciá-las: a propriedade de capital. Este é o modo objetivo de determinar
esta diferença, o que, por sua vez, não é uma caracterização fácil, tendo em vista a
existência de uma série de funções e camadas intermediárias em constante transformação.
Se é verdade que a grande maioria do “trabalho improdutivo” reproduz a condição
social e de trabalho dos operários (quando não são piores como o caso de parte dos
trabalhadores em serviços), não pode ser negada a centralidade do operariado como centro
imantador destes outros fragmentos da classe trabalhadora que é o único que encarna,
de forma direta, como já dissemos, a oposição onto-negativa ao capital.
O capital, por sua vez, como classe hegemônica, necessita, em virtude da crescente
complexidade de sua gestão e de sua concentração e centralização, pôr na frente de batalha
uma série de camadas intermediárias que ou têm conhecimentos especiais dedicados às
diferentes necessidades da acumulação ou são importantes na reprodução de sua ideologia e
das relações de produção. Por isso, estes setores são recompensadas com um tratamento
diferenciado na repartição da mais-valia apropriada dos trabalhadores no interior da
produção. A isto também se inclui o crescimento dos gastos com a representação do capital
e com a manutenção do Estado, que garantem ideológica e coercitivamente a manutenção
das relações sociais.
Este breve ensaio de caracterização do trabalhador coletivo e do capitalista coletivo
não pressupõe uma análise mais detalhada de como as classes se comportam no rico
movimento político ou seja, na luta de classes propriamente dita. É neste campo que elas
177
ganham contornos antagônicos mais nítidos e indispensáveis no sentido de reproduzir ou
transformar as relações sociais existentes.
Infelizmente os limites de nosso estudo não permitem avançar mais nestas questões.
Nosso objetivo foi buscar um veio analítico que permitisse re-construir criticamente a
interpretação sociológica da burocracia. Vimos que, com o caminhar da exposição, o
conceito se dissolve nas caracterizações das transformações ocupacionais, na divisão do
trabalho e nas funções do capital e do trabalho. Já não cabe, portanto, falar mais em
burocracia, mas sim nas contradições entre as classes. Uma crítica completa a este
“conceito”, contudo, poderia ser solucionada com um suposto quarto capítulo, onde
realizássemos a crítica imanente a estas concepções na sociologia. No entanto, por
enquanto, neste estudo, esta proposta fica em aberto.
178
CONCLUSÃO
179
São muitas as lacunas deixadas por este esforço inicial de critica à interpretação
sociológica da “burocracia”.
Em primeiro lugar, não nos coube a tarefa de fazer um apanhado mais denso das
obras da sociologia que se dedicam ao tema. Nosso empreendimento se deteve a poucas
obras, mas que nos permitiram uma visão geral das concepções que vinculam burocracia e
divisão do trabalho.
Também não nos dedicamos nas análises sociológicas acerca da burocracia no
Estado e nos partidos políticos, que, como dissemos, constituem o modismo
característico destas interpretações.
Estas ausências têm uma razão de ser. Tendo em vista o objetivo limitado de nosso
estudo, nos dedicamos àquilo que consideramos o centro da produção dos burocratismos”
reais e “sociológicos”: a produção da vida social e sua correspondente divisão do trabalho
sob o capitalismo.
Com a expansão da produção de mercadorias e da mercantilização da vida social,
que o capitalismo monopolista consolida, temos uma situação paradoxal. Se, por um lado, o
peso da alienação do trabalho, a ampliação das funções chamadas burocráticas, do
parasitismo etc., parecem inevitáveis; “hoje, a generalização da alienação dos homens é um
sintoma do fato de que o desenvolvimento econômico está em vias de revolucionar a
relação do homem com o trabalho” (Lukács, 2007: 239).
Com essa afirmação, não queremos fazer coro com os teóricos da sociedade pós-
industrial ou algo do gênero. As possibilidades postas devem ser encaradas tal qual elas
são, ou seja, como possibilidades inscritas num marco de causalidades objetivas. O
desenvolvimento das forças produtivas não leva, automaticamente, a uma sociedade
cooperativa, onde a divisão do trabalho é subsumida na figura do novo trabalhador com
múltiplas funções e capacidades.
É verdade que, de propósito, situamos nosso debate conceitual sem levar em
consideração o conjunto de transformações vivenciadas pelo capitalismo, a partir da década
de 70 do século XX, quando começamos a assistir à passagem do modelo taylorista-
fordista à acumulação flexível (David Harvey). Reproduzir estas transformações nos levaria
a uma tarefa exaustiva de formulação, que não teríamos fôlego neste debate inicial.
Contudo, isto não nos isenta de formular uma posição especulativa acerca das tendências da
180
divisão do trabalho na contemporaneidade. Não é aqui o momento de expô-las, mas, ao que
nos parece, há uma corrente imprecisão “sociológica” na identificação do trabalhador
contemporâneo como um trabalhador qualificado, que unifica o trabalho manual e
intelectual e onde as funções produtivas e improdutivas se esvanecem. A tendência em
dissolver a classe operária num conceito “amplo” de classe trabalhadora não é “nova”, e,
nem mesmo, científica e politicamente favorável. No caso de nossa pesquisa, essa diluição
não permitiria compreender como o conjunto de atividades “burocráticas” e parasitárias,
tanto no campo do “trabalho”, como no campo do “capital”, são criadas e recriadas
constantemente em virtude da necessidade de escoar a imensa massa de mais-valia
produzida na esfera produtiva.
Quando trata de discutir o Estado e as tendências burocráticas o verbalismo
sociológico aponta para todos os lados. Uma de suas principais metas é fazer com que as
vicissitudes na construção do socialismo no leste europeu sejam elevadas à condição de
prova de que o “burocratismo” é não inevitável, mas se aprofundaria num modo de
produção alternativo ao capitalismo.
É de forma distorcida que apresentam a questão do poder e criticam a elaboração
marxista:
Se eles analisavam todos os problemas do capitalismo em termos de relações
de poder (dentro de uma dialética, por outra parte, extraordinariamente simplista),
estes pensavam realmente, ainda mais profundamente que os ‘taylorianos’, que a
administração das coisas poderia resolver todos os problemas de poder. Em lugar de
empatar tudo na racionalização dos métodos, eles tinham outra receita: a supressão
da propriedade dos meios de produção. Porém quando Lenine lançou sua definição
impaciente do socialismo: ‘os sovietes mais a eletrificação’ o laconismo de sua
expressão acabou ilustrando muito bem o profundo desejo que os dirigentes
revolucionários compartilharam com os industriais e os organizadores ocidentais, de
escapar, através da ciência, aos mesmos problemas de poder que suscitam as
organizações modernas (Crozier, 1981: 213).
Os sociólogos apagam sempre um elemento fundamental na análise concreta de
situações concretas: a história. Nunca se comenta sobre a difícil alternativa posta ao
desenvolvimento do socialismo num país atrasado como a Rússia, e busca se identificar a
utilização dos métodos tayloristas por Lênin e pelos revolucionários russos como prova de
que se decretara, mais uma vez, sob outro verniz, a eternidade da alienação do trabalho.
181
Esquecem, portanto, que o próprio Lênin tinha uma visão clara, demonstrada em sua
obra teórica anterior à revolução, sobre o vínculo entre economia e política.
A verdade é que, nem os leninistas, nem os capitalistas, querem escapar aos
problemas do poder. Ambos compreendem o poder como o domínio de uma classe sobre
outra. Os industriais e os organizadores dos processos produtivos capitalistas, como vimos,
souberam se valer da ciência não para escapar ao poder, mas para aumentar o poder do
capital sobre o trabalho na intensificação da exploração. Já Lênin sabia que a única
alternativa proletária ao poder era, enfim, acabar com qualquer espécie de poder. A tomada
do poder do Estado pelo proletariado seria a ante-sala para, após a derrocada da burguesia,
caminhar na direção do fim das classes, e, portanto, da dominação política e da exploração
econômica.
Marx, mesmo entre seus últimos escritos, mais uma vez, caracteriza o Estado que se
interpõe entre o capitalismo e o comunismo, levando em consideração a sua forma:
Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista situa-se o período de
transformação revolucionária de uma na outra, a que corresponde um período de
transição política em que o Estado não poderá ser outra coisa que não a ditadura
revolucionária do proletariado (Marx In: Antunes, 2004: 147).
Esta forma política tem razão de ser na medida em que se correlaciona com seu
conteúdo, com uma finalidade. Ela se materializa quando põe fim a outro tipo de poder:
a autocracia capitalista na estrutura econômica. Esta rege o modo de produção capitalista e
pressupõe a divisão do trabalho e a constituição de diversas atividades burocráticas e
improdutivas. Somente pondo fim ao “trabalho alienado” seria possível acabar com o
“racionalismo” da produção e o “irracionalismo” do mercado.
quando o trabalho for efetiva e completamente controlado pela
humanidade e, portanto, quando ele tiver em si a possibilidade de ser ‘não
apenas meio de vida’, mas o ‘primeiro carecimento da vida’ –, quando a
humanidade houver superado qualquer caráter coercitivo em sua própria
autoprodução, então terá sido aberto o caminho social para a atividade humana
como finalidade autônoma (Lukács, 2007: 242).
Todo este processo de transição passa por uma luta no interior do capitalismo e,
como dissemos, já no socialismo. No primeiro caso, temos de identificar o papel importante
dos partidos revolucionários, e, no segundo, entre outros elementos, o Estado socialista é
um mediador fundamental. Estes dois temas são recorrentes entre os autores, sociólogos ou
182
não, que enfrentam o debate acerca da burocracia. A “burocratização” dos partidos
operários e da URSS é tema prioritário entre eles. esclarecemos que a ausência desta
temática em nosso estudo se refere à necessidade por nós encontrada de, em primeiro lugar,
analisar os determinantes econômicos da “burocratização” sob o capitalismo. Ao nosso ver,
o debate politicista acerca dos partidos e do Estado deixa de lado determinações
importantes para uma crítica mais profunda do fenômeno.
Não arriscaremos aqui nenhuma nota sobre estes debates. Porém, a ancoragem na
obra marxiana nos previne da resignação sociológica e de seu conteúdo absolutamente
ideológico. O desafio de analisar os partidos revolucionários e o Estado socialista, se fiel à
argumentação de Marx, se depararia, por exemplo, com uma débil “teoria das elites” de
Michells. Se acompanhamos o processo analítico acerca da divisão do trabalho, não
razão para que naturalizemos o fato de que “sempre surge necessariamente no seio das
massas, uma nova minoria organizada que se eleva à posição de uma classe dirigente”
(Michells, 1982: 234). Muito menos seria possível prescrever uma lei natural e eterna da
divisão do trabalho contra a qual não poderíamos lutar.
Ora, é uma lei social inelutável que qualquer órgão da coletividade, nascido
da divisão do trabalho, cria para si, logo que estiver consolidado, um interesse
especial, um interesse que existe dentro de si e para si. Mas interesses especiais não
podem existir no seio do organismo coletivo sem estarem imediatamente em
oposição com o interesse geral. Mais do que isso: camadas sociais desempenhando
funções diferentes tendem a se isolar, a se outorgar órgãos aptos a defender seus
interesses particulares e a se transformar finalmente em classes distintas (Michells,
1982: 234).
Esta concepção positivista da divisão do trabalho pode levar a uma concepção
elitista dos partidos e do Estado:
De acordo com essa concepção o governo ou, se preferirmos, o Estado não
saberia ser outra coisa a não ser a organização de uma minoria. E essa minoria
impõe ao resto da sociedade a ‘ordem jurídica’, a qual aparece como uma
justificação, uma legalização da exploração à qual ela submete a massa dos hilotas,
em vez de ser a emancipação da representação da maioria (Michells, 1982: 234).
Pouco dissemos sobre a concepção de Estado em Marx em nosso estudo, mas, ao
que se pode ver, sua crítica amparada na constatação da Economia Política, da
transformação da sociedade em uma “nação de hilotas” supõe a construção de uma
sociedade onde os homens possam desenvolver todas as suas potencialidades, e não estejam
183
subordinados a uma tarefa fragmentada e a uma autoridade alheia à sua vontade. Isto
implica uma teoria intrinsecamente negativa da política.
A “crítica” da burocracia pela sociologia, como vimos, descreve uma realidade
aparente, em que a divisão do trabalho, a especialização das funções, a impessoalidade, a
“racionalidade instrumental” etc., tendem a se agravar, seja no capitalismo ou em qualquer
sociedade que venha substituí-lo. Não formula uma crítica, mas se atém aos fatos. Quando
muito, formula algumas propostas de adequação dos aspectos burocráticos mais gritantes.
Às vezes, esta adequação significa, ao contrário de uma emancipação, uma subordinação
ainda maior dos trabalhadores a uma autoridade. Seria a substituição do poder burocrático-
formal pelo poder tradicional ou carismático. Os tipos ideais, portanto, são funcionais à
necessidade de estabilização do poder do capital.
A formulação sociológica da “burocracia” e da divisão do trabalho tem uma relação
direta com as novas características econômico-sociais advindas com o capitalismo
monopolista. Por um lado, um crescimento de uma série de ramos produtivos e
improdutivos no interior da estrutura econômica. De forma direta, isto incide na
fragmentação da classe trabalhadora que, por sua vez, também se complexifica e subdivide-
se. A sociologia se atém ao que é novo, sem desvendar, porém, suas determinações mais
elementares. Por isso, o processo de trabalho dos funcionários de escritório, ou dos
servidores públicos, passam a ser o indicativo do conjunto das características dos
trabalhadores em geral.
Confunde-se, além disso, as mais diferentes atividades, sejam relativas aos
segmentos operários, a trabalhadores improdutivos, a segmentos médios ou mesmo a
funções burguesas, com um único e opaco termo: burocracia. Por trás, ao lado ou por
dentro do termo procura-se camuflar as necessidades cada vez mais alienantes, e outras
irracionais, derivadas do domínio monopólico da “lógica” do capital sobre o conjunto da
vida social.
Por tudo isso, a sociologia não se apresenta como suficiente para desvendar estas
contradições. A busca por determinações mais completas acerca da burocracia nos remeteu
ao pensamento hegeliano. Sua formulação dialética do Estado e da Sociedade Civil
permitiu a conceituação de funções mediadoras fundamentais para a compreensão da
“burocracia”. Entretanto, além do fato deste termo ser alheio à própria textualidade
184
hegeliana, o seu conceito de corporação e de funcionários do Estado ainda se vincula a
transformações de um capitalismo em sua gênese, e, portanto, eles permanecem presos a
uma suposta tendência universal e ética do Estado burguês. Sua conceituação une
elementos revolucionários da sociedade nascente e outros vinculados a um resquício feudal.
Marx, em sua juventude, inicia sua crítica à obra de Hegel salientando estas
antinomias do autor, mas ainda está muito vinculado às formulações do neo-hegelianismo,
especialmente à filosofia de Feuerbach. Apesar disso, inicia um processo de critica às
suas influências diretas, que, pouco a pouco, vai desembocar numa concepção mais acurada
do papel central do proletariado na transformação social.
Parece estranho que tenhamos situado Gramsci junto a este momento de análise de
Hegel e Marx, que, historicamente, abrange a primeira metade do século XIX. É verdade
que Gramsci, escrevendo no século XX, pôde observar uma série de fenômenos recentes,
postos pelo advento do capitalismo monopolista. Contudo, especificamente no que se refere
à sua ênfase na relação entre o Estado e Sociedade Civil, assim como na sua recuperação
crítica de Hegel e de Marx, fica evidente, mesmo pontuando sua profunda fecundidade no
desvelamento do fenômeno burocrático, uma insuficiência do arcabouço conceitual preso a
esta distinção antitética.
É dessa forma que descobrimos, com o Marx que se debruça sobre a Economia
Política, que é a partir da análise da anatomia da sociedade civil” que poderíamos
chegar às conclusões mais próximas às determinações do “fenômeno burocrático”.
Esta “anatomia” não é a diretamente relacionada ao capitalismo nascente, mas a
evidenciada pela extrema concentração e centralização do capital sob o imperialismo: é a
realidade do capitalismo monopolista. A produção exponencial de mais-valia, nesta fase,
leva ao dilema sobre sua absorção. É daí que o capital cria uma série de escoadouros para
este excedente, criado na produção, levando ao surgimento de uma série de funções
parasitárias do capital, assim como de atividades improdutivas dos trabalhadores.
Ampliam-se, por sua vez, as necessidades de gerenciar o capital nos seus mais
diferentes setores. Interpõe-se, entre a produção e o consumo, uma série, cada vez mais
complexa, de mediações. As atividades financeiras, a publicidade, a campanha de vendas,
os serviços, e uma série bastante heterogênea de atividades, são estimuladas, e, o que é
fundamental, são necessárias para a sobrevivência do capitalismo.
185
O caráter improdutivo e parasitário evidente na esfera de circulação do capital – que
demonstra o caráter inevitavelmente irracional que conforma o capitalismo – tem seu
reverso no aprofundamento da “racionalização” de um conjunto de atividades cada vez
mais amplo, não somente restrito à produção.
Todas estas “novidades” tornam mais difícil, mesmo para os marxistas, uma análise
sistemática das constantes fragmentações e transformações da classe trabalhadora e da
classe capitalista. Nosso estudo se limitou a um período anterior às transformações mais
recentes no capitalismo monopolista, mas, de qualquer forma, a última parte de nossa
exposição tratou apenas de salientar que, diante das transformações constantes na estrutura
econômica e ocupacional, faz-se necessário, ao contrário da frenética busca pelo “novo”, se
ancorar em categorias fundamentais da obra marxiana. É nesse sentido que retomamos
categorias tais como trabalho manual e trabalho intelectual, trabalho produtivo e trabalho
improdutivo, capitalista coletivo e trabalhador coletivo, entre outras. É verdade que nosso
esforço de apreensão destas formas sob o capitalismo contemporâneo é ainda muito
precário, mas busca chamar a atenção para a necessidade da construção de uma análise, ao
nosso ver, imprescindível.
A riqueza conceitual marxiana revela que a interpretação sociológica da burocracia
impede uma postura crítica da divisão do trabalho e da oposição entre capital e trabalho.
Com Marx, abandonamos o termo vazio de conteúdo e passamos às determinações
concretas da realidade em sua transformação. Temos a conceituação das tendências de
crescimento de funções parasitárias e administrativas (gerenciais) por parte do capital e de
funções improdutivas por parte do trabalho.
As atividades intelectuais, quando referidas à gerência da força de trabalho, se
colocam como potências para uma maior subsunção do trabalho ao capital. Porém, não se
deve confundir trabalho intelectual com gerência capitalista. Da mesma forma, não se deve
confundir as atividades parasitárias do capital com as atividades improdutivas dos
trabalhadores, com o risco de, ao analisar, num outro momento, a dinâmica da luta de
classes, perder-se completamente os determinantes da distinção entre elas. Mas o
“conceito” de burocracia não distingue nada disso!
Todo este esforço analítico deve ser realizado tendo em vista as constantes
transformações econômico-sociais do capitalismo recente. Nem todas as distinções se
186
encontram de forma nítida na textualidade marxiana, que ele tratou, muitas vezes, de
tendências que se consolidaram, de fato, sob os monopólios. Mas, seu método e suas
conclusões nos mostram a necessidade de abandonar a crítica resignada e avançar na crítica
transformadora, que, por sua vez, existe se vinculada a uma práxis transformadora.
Somente a partir da perspectiva de superação teórica e prática da exploração do homem
pelo homem faria sentido a formulação que de forma alguma “entra” na cabeça dos
sociólogos, atados que estão a esta sociedade “burocratizada” e hierarquizada: o fim do
domínio das coisas sobre os homens e, finalmente, o racional domínio dos homens sobre as
coisas.
187
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