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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rogério Bianchi de Araújo
Utopia e Antiutopia Contemporânea: a utopia da cidadania planetária e a antiutopia da
sociedade de consumo
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rogério Bianchi de Araújo
Utopia e Antiutopia Contemporânea: a utopia da cidadania planetária e a antiutopia da
sociedade de consumo
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Tese apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do
título de Doutor em Ciências Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, sob a orientação da Profª. Doutora
Lucia Helena Vitalli Rangel
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
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À Flávia, minha esposa que
me apoiou desde o início
deste trabalho e aos meus
filhos Marina e Murilo
AGRADECIMENTOS
De acordo com Umberto Eco, “se você jogar a partida com gosto, fará uma boa
tese. Se partir com a idéia de que se trata de um ritual sem importância e destituído de
interesse, estará derrotado de saída”. Para o autor, fazer uma tese significa divertir-se.
Esse é um princípio que procurei seguir, mas para não perder esse foco algumas pessoas
foram de fundamental importância. Por isso meus sinceros agradecimentos:
À Profa. Dra. Teresinha Bernardo que me acolheu no programa de Ciências Sociais da
PUC/SP quando da seleção de candidatos;
À Profa. Dra. Lucia Helena Vitalli Rangel, que desde o princípio se interessou pelas
idéias presentes na primeira versão do projeto e me orientou com muita paciência ao
longo de quatro anos.
Ao Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho, por sua erudição e suas brilhantes aulas que se
tornaram referência para minha vida acadêmica.
À Profa. Dra. Constança Marcondes César.
À Profa. Dra. Margarida Limena.
À minha esposa Flávia que foi uma espécie de conselheira nestes quatro anos de
estudos.
Aos meus novos colegas de estudos na PUC/SP, especialmente à Cíntia e ao Rodrigo.
Aos professores da PUC-SP, extremamente qualificados.
Ao Prof. Dr. José Luis Sollazi, sempre solidário.
À CNPQ pelo apoio financeiro.
À Profa. Dra. Cláudia Stella.
Ao meu colega Celso Chiaranda pelo apoio no final da tese.
Ao Rohan Staples, muito prestativo.
Aos meus pais.
Aos meus sogros.
Aos meus filhos, Marina e Murilo.
À minha irmã Vânia.
ARAÚJO, Rogério Bianchi. Utopia e Antiutopia Contemporânea: a utopia da
cidadania planetária e a antiutopia da sociedade de consumo. Tese de Doutorado.
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. PUC - São Paulo, 2008.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lucia Helena Vitalli Rangel.
RESUMO
O objetivo desta tese é problematizar o papel da utopia na contemporaneidade e
não explicá-la com todas as suas nuances, nem fazer a sua interpretação no decorrer dos
mais variados contextos históricos. Esta tese não pretende esgotar o assunto devido à
vastidão de referências utópicas, sobretudo dentro da área de estudos das Ciências
Humanas. Faço um recorte epistemológico que permite pensar a utopia e a antiutopia
contemporânea sob a perspectiva de alguns autores que me aproprio com a finalidade de
conciliar seus pensamentos num caminho que parece ser o mais adequado para
compreender o espaço da utopia na contemporaneidade.
Por meio da análise de algumas obras de Gianni Vattimo e Edgar Morin discuto
a necessidade da criação de um novo paradigma de pensamento que nos permita a
religação da objetividade e da subjetividade perdida desde o paradigma cartesiano.
A utopia se constrói também com ética e princípios que norteiam o pensar
utópico. Ela comporta em si uma objetividade de pensamento que se constrói na relação
dialógico entre as possibilidades concretas de realização e as possibilidades imaginárias
do sonho acordado. Nesse sentido, tomei como referência o “Princípio Esperança” de
Ernst Bloch e o “Princípio Responsabilidade” de Hans Jonas de forma complementar e
não antagônica.
Por fim, pretendi demonstrar que a utopia da construção da cidadania planetária
é incentivada por meio da expansão da sociedade de consumo a qual considero como a
antitutopia contemporânea. Alguns autores, tais como Jean Baudrillard e Zygmunt
Bauman são referências importantes para problematizar os efeitos desastrosos da
sociedade de consumo.
Como método de trabalho e pesquisa, além dos autores citados, utilizei em toda
a tese os referenciais do cinema e de obras literárias para justificar as minhas
argumentações dado que a utopia contém dimensões objetivas e subjetivas de análise. É
possível afirmar que na contemporaneidade ela não desapareceu, mas se faz com novos
paradigmas que esta tese procura discutir.
Palavras chave: Utopia, distopia, paradigma, consumo, cidadania planetária.
ARAÚJO, Rogério Bianchi. Contemporary Utopia and Anti-Utopia: utopia of the
planetary citizen and anti-utopia of consumer society. Doctorate thesis. Study
program: Postgraduate Degree in Social Sciences. PUC - São Paulo, 2008. Mentor:
Profª. Drª. Lucia Helena Vitalli Rangel.
ABSTRACT
The objective of this thesis is to problematize the role of utopia in
contemporaneity without explaining all its nuances, nor to attempt to come up with an
interpretation of utopia throughout various historical contexts. This thesis does not
intend to be a conclusive study given the wealth of references on utopia, particularly in
the area of study of Human Sciences. I am focussing on a part of an epistemological
study, which permits us to think about contemporary utopia and anti-utopia from the
perspective of some authors, whose ideas I will use with the purpose of bringing their
thoughts together in a way that seems most appropriate to comprehend the role of utopia
in contemporaneity.
By analyzing some of Gianni Vattimo and Edgar Morin’s works, I will discuss
the necessity to create a new paradigm of thought, which permits us to reconnect to
objectivity and subjectivity, which were lost after the Cartesian paradigm.
Utopia is a development of ethics and principles, which guide utopian thought.
It contains in itself an objectivity of thought which creates a dialogic relationship
between the concrete possibilities of realization and the imaginary possibilities of day
dreaming. Following this line of thought , I used, Ernst Bloch’s “Principle of Hope”
and Hans Jonas’ “Principle of Responsibility” as my references and in such a way that
they would complement each other and not the contrary.
In conclusion, I intend to demonstrate that the utopia of the development of a
planetary citizenship is stimulated through the expansion of the consumer society,
which I consider to be a contemporary anti-utopia. Some authors, such as Jean
Baudrillard and Zygmunt Bauman are important references for problematizing the
disastrous effects of the consumer society.
I used various information sources, besides the authors cited, including
references from cinema and literary works, which I used to justify my arguments given
that utopia contains both objective and subjective dimensions of analysis. It is possible
to affirm that in contemporaneity, it has not disappeared, rather, there are new
paradigms that have emerged and this thesis seeks to discuss those.
Key words: utopia, dystopia, paradigm, consumer, planetary citizenship.
SUMÁRIO
Introdução.........................................................................................................................9
Capítulo 1 – Ética e Utopia ...........................................................................................27
O resgate da ética ...........................................................................................................27
O papel da ética na atualidade ......................................................................................42
Um novo horizonte utópico e um novo paradigma .......................................................51
A cidadania na era planetária .......................................................................................66
Uma reforma do pensamento: a debilidade e a complexidade .....................................83
Capítulo 2 – Esperança e Responsabilidade: fundamentos da nova utopia ...............97
O princípio esperança de Ernst Bloch..........................................................................108
O princípio responsabilidade de Hans Jonas ...............................................................133
O ambiente utópico hoje ...............................................................................................154
Capítulo 3 – A antiutopia da sociedade de consumo e o imaginário distópico..........161
Consumismo e antiutopia .............................................................................................166
A função do imaginário.................................................................................................187
O imaginário distópico da sociedade de consumo no cinema .....................................208
Considerações Finais ...................................................................................................232
Bibliografia ..................................................................................................................243
Anexos...........................................................................................................................252
1
INTRODUÇÃO
“Não há nada como o sonho para criar o futuro. Utopia hoje, carne e osso amanhã.”
Victor Hugo
“O filósofo é o homem de amanhã, aquele que recusa o ideal do dia, aquele que cultiva
a utopia.”
Friedrich Nietzsche
O objetivo deste trabalho é problematizar o conceito utopia e antiutopia na
contemporaneidade. Tanto se falou sobre o fim das utopias que se faz necessário
discutir o assunto com maior acuidade. Essa tese não tem a ambição de fazer uma
história da utopia, que ela esteve presente em todas as épocas históricas, seria uma
tarefa descabida e por demais pretensiosa. Também não pretendo enveredar pelo
caminho da discussão de obras utopias clássicas tais como as de Platão, More e
Campanella. O objetivo é contextualizar o espaço atual da utopia e demonstrar que ela
está mais viva do que nunca, caracterizada pela forte presença de uma sociedade
antiutópica que cada vez mais alimenta os horizontes e a imaginação utópicos. A minha
proposta é de estudar a utopia de acordo com a objetividade que ela engendra, mas
também com os fortes traços de subjetividade que lhe são peculiares. Por isso utilizo
como método referências teóricas que penso serem mais pertinentes para discutir o
tema, assim como a análise de filmes e da literatura para buscar a dimensão subjetiva e
imaginária da utopia.
Esse trabalho não pretende esgotar o assunto devido à vastidão da temática e da
complexidade que a envolve. Se formos pensar sob a perspectiva utópica, vários autores
têm em sua obra traços da utopia, até mesmo aqueles que a tratam como quimera. Com
isso utilizei-me de alguns autores para traçar o meu campo de estudo. Com Gianni
Vattimo e Edgar Morin mapeio a configuração do novo paradigma das Ciências; com
Ernst Bloch e Hans Jonas a formatação de princípios éticos fundamentais para a
construção da utopia; e com Zygmunt Bauman e Jean Baudrillard a crítica da sociedade
de consumo. Novas formas de pensar a realidade envolvem a inevitável busca de novos
princípios de ação que são pensados a partir da crítica que se faz às práticas sociais
vigentes.
2
Segundo o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, a utopia do controle sobre os
mundos social e natural desmoronou com o advento da era líquido-moderna. Bauman
desenvolveu o conceito de uma sociedade “líquida”, partindo do princípio de que as
certezas e a previsibilidade do futuro estão diluídas e, porque políticos e empresas
tendem a lucrar com isso, não perspectiva de que esse clima de insegurança seja
sanado. Não mais certezas com solidez. A incerteza e a desconfiança governam a
época e num mundo constantemente em movimento, a angústia impregna a totalidade
da vida diária. Como disse o filósofo Ortega y Gasset: “Não sabemos o que acontece e
é isso o que acontece”. Vivemos ainda em um cenário de um mundo dividido, repleto
de disparidades, intolerâncias, violência, opressão e injustiça. Chegamos a um tempo no
qual nenhuma perspectiva utópica apresenta-se com credibilidade aos olhos da imensa
maioria das pessoas. A sociabilidade contemporânea é cada vez mais avessa ao
imaginário utópico tradicional. Para Morin chegamos, finalmente, à época em que
não há “salvação” nem se compreende que a idéia de “salvação” leva-nos à perdição;
que não existe “luta final” nem promessa de uma sociedade futura que possa redimir
todos os males ou fazer esquecer a dor dos que aqui estão. Os estados futuros dos
sistemas complexos escapam ao nosso controle e previsão. O futuro é aberto, não-
inequívoco. Significa então que não há mais espaço para a utopia? Muito pelo contrário!
Abdicamos da idéia do “melhor dos mundos”, mas não da idéia de um “mundo melhor”.
O homem não pode viver simplesmente o presente, pois no presente escontido o
passado e o futuro. Contudo, a vida não é possível senão voltada para o futuro e o ser
humano enquanto insatisfeito com o momento presente, experimenta o futuro como
ausência.
De forma simplista e até mesmo vulgar, o “Utópico” veio a ser, na esquerda, um
codinome para socialismo ou comunismo, enquanto, na direita, tornou-se sinônimo de
“totalitarismo” ou de stalinismo. Todas as utopias por nós conhecidas baseiam-se na
possibilidade de descoberta e na harmonia de fins objetivamente verdadeiros, válidos
para todos os homens, em todas as épocas e lugares. Creio que esse modelo de utopia
política e, de certa forma, totalitária, homogeneizadora, tenha acabado, isto é, aquela
utopia que prometia um mundo perfeito, em que todos se reconciliam, um mundo sem
conflitos e um mundo de harmonia, tais como as utopias clássicas: a da República e das
Leis de Platão, a Utopia de Thomas More e a Cidade do Sol de Campanella.
3
O “mundo perfeito” seria um que permanecesse para sempre idêntico a si
mesmo, em que nada de obscuro ou impenetrável se colocava no caminho do olhar, um
mundo em que nada estragasse a harmonia e que nada estivesse fora do lugar. Esse
mundo é impossível e o desejo de realizá-lo pode por vezes ser desastroso como nos
mostrou a História. Trata-se da utopia negativa marcada pela idéia de perfeição, mas
essa perfeição não existe. É conceitualmente incoerente o ideal antigo comum a muitas
culturas e que tem inclusive herança no Iluminismo, de uma sociedade perfeita em que
se realizam todos os verdadeiros objetivos humanos. Como a nossa época é marcada por
emergências permanentes, a construção de castelos no ar perdeu muito de sua força.
Tornamo-nos utilitaristas prontos para consertar, mas não reinventar o presente.
Acreditamos desse modo que as medidas têm que ser realistas. Com isso, os
antiutopistas liberais com seu discurso racionalizado sobre a ordenação atual são
seguidos pela sabedoria convencional que hoje se universaliza pelos quatro cantos. No
entanto, a imaginação utópica não perdeu o seu vigor.
Segundo Jacoby (2007), uma distinção entre duas correntes do pensamento
utópico: a tradição projetista e a tradição iconoclasta. A tradição dos utopistas
projetistas calcula o futuro e o projeta a cada centímetro e minuto, são os utópicos que
vão de Thomas More a B. F. Skinner. Detalharam como o futuro seria; estabeleceram,
elaboraram e demarcaram essas diretrizes. O risco deste utopismo é a revelação de certo
autoritarismo. Os utopistas antiprojetistas, também chamados por Jacoby de
iconoclastas são aqueles que sonharam uma sociedade superior, eram contestadores e
destruidores de imagens. Não descrevem o futuro, ou seja, é possível “ouvir” o futuro,
mas não vê-lo. Oferecem pouco de concreto em que se prender e não apresentam nem
fábulas e nem imagens do devir. Eles ansiavam, aguardavam e se empenhavam pela
utopia, mas não a visualizavam. Buscavam suas pistas na música, na poesia e nos
momentos místicos. Modelaram um utopismo compromissado com o futuro, mas que
lhe mantinha reservas. Enalteceram a recusa a reduzir o futuro desconhecido ao presente
conhecido, a esperança à sua causa. Para os inconoclastas, nenhum projeto de edifício se
faz, mas o amor e a solidariedade determinam o futuro. Um elemento essencial de seu
utopismo é a sua consideração pelo aqui e agora. Anseiam pelo futuro e valoriza o
presente. Numa época que as imagens imperam, enquanto criadora de significados, esse
tipo de utopismo iconoclasta analisado por Jacoby é imprescindível. Ao agraciar o hoje,
os utopistas iconoclastas abrigam esperanças ardentes do amanhã, esperanças de um
4
mundo de vidas e paixões mais livres. O visionarismo dos utopistas iconoclastas é que
pode nos concatenar novamente com a esperança, a responsabilidade, a solidariedade e
a ética. Como veremos no segundo capítulo, é a utopia iconoclasta de Bloch que vai
justificar e fundamentar a necessidade utópica da cidadania planetária.
Em primeiro lugar, devemos afastar qualquer generalização. Vivemos uma
época de transformação e esperança, mas também uma época de resignação, rotina e
medo. Pensamos que o mundo caminha para um futuro melhor, mas também
entendemos que algo pode não ir bem e o futuro seja tenebroso. Há, ao mesmo tempo,
muita pobreza e muita riqueza e paz e violência coexistindo. Hoje, ao contrário do que é
dito sobre o fim das utopias, foram abertos espaços para várias outras propostas
utópicas, em menor escala, mas que lidam melhor com a diversificação e com a
diversidade. São as utopias positivas que dizem que algo pode se realizar, mas que,
atualmente, parece impossível, como, por exemplo, o estabelecimento de um mundo
ambientalmente equilibrado, com uma distribuição de riqueza eficaz que propicie uma
boa qualidade de vida e que traga a paz na Terra e um mundo melhor. Possuimos meios
técnicos e materiais para realizar isso e é perfeitamente factível. O nosso potencial
humano deve ser visto não como aquele que destrói, mas também aquele que
constrói. O desafio tem ficado cada vez mais complexo. Hoje temos um potencial maior
de destruir, mas nosso potencial de construir também é maior. A experiência humana é
um emaranhado de destruição e construção. O Homo sapiens produz equilíbrios, mas
deixa transparecer também a fratura que promove nos equilíbrios existentes. No entanto,
como nos diz Morin (1995), temos hoje a possibilidade e a necessária perspectiva da
tomada de consciência da comunidade de destino terrestre - a Terra Pátria-, retomar a
construção de uma real e própria história planetária do Homo sapiens. A humanidade
não é um destino: a humanidade é uma reinvenção contínua. Segundo I. Prigogine
1
,
nossa visão do futuro vem sofrendo uma modificação radical rumo ao múltiplo, ao
temporal e ao complexo.
A modernidade européia foi animada por uma utopia que prometia ao homem
um aumento ilimitado de seu poder. A perspectiva da dominação total do mundo,
1
Illya Prigogine, físico-químico russo (25/1/1917-), nascido em Moscou e naturalizado belga em 1949.
Prêmio Nobel de Química em 1977 por suas contribuições à termodinâmica e, em especial, pela Teoria
das Estruturas Dissipativas.
5
alavancada pelos desenvolvimentos das ciências e das técnicas, choca-se atualmente
com a tomada de consciência de nossa dependência no que concerne à biosfera e à
tomada de consciência dos poderes destruidores da tecnocência. Com isso, Morin
entende que dois tipos de utopia. A “boa”, que propõe um progresso técnico ou
materialmente possível, mas atualmente impossível. A “má”, que é uma utopia de
harmonia e perfeição que acredita poder se impor pela força. Para ele a supressão das
guerras entre nações ou a solução do problema da fome no mundo têm soluções, mas
elas são ainda impossíveis.
Portanto, a proposta utópica de Morin é a tomada de consciência da Terra-Pátria,
porque todos os seres humanos vivem um destino comum em face das ameaças
ecológicas e nucleares, em face do mercado mundial e da comunidade de destino,
aquela que define uma pátria, segundo a concepção de Otto Bauer
2
. A utopia é a
utopia da perfeição, do aniquilamento dos conflitos, da evacuação do negativo.
O pluralismo democrático e a tolerância das diferenças carregam em si
horizontes utópicos que prognosticam mudanças gradativas no seio das sociedades
humanas. Este é o desafio do futuro, criar uma idéia complexa do mundo e da unidade
humana. Quando pensamos no que é humano, temos de pensar em unidade e
diversidade. Somos seres com coisas em comum do ponto de vista cerebral, genético,
sentimental e, por outro lado, há uma grande diversidade individual, cultural e social. A
riqueza de uma sociedade e da humanidade é essa diversidade. Não é possível falar em
humanidade como um todo, pois múltiplas respostas culturais para os problemas e
elementos da existência psíquica, econômica, social e política. Qualquer destruição da
2
Bauer, Otto (1881-1938) Economista de esquerda, seguidor de Marx e Engels, embora não da forma
usual, já que elaborou algumas idéias novas, Otto Bauer foi, junto a Kautsky, um dos líderes mais
representativos da corrente austríaca do marxismo. Ele se ocupou especialmente em explicar as crises
como conseqüência da anarquia da produção capitalista, a partir da teoria do subconsumo e do direito de
autodeterminação dos povos. Ficou conhecido por sua firme oposição ao bloco bolchevique. Bauer teve
um papel político destacado, fundou o Partido Social Democrata Austríaco e exerceu, durante o primeiro
governo deste partido, a pasta de Relações Exteriores, cargo que manteve na República (1918-19). Sua
idéia de realizar uma união política com a Alemanha tornou-se inviável com a efetivação da “Paz de
Versalhes” que impôs condições muito duras a esse país, como reparações por danos causados durante a
Primeira Guerra Mundial, o que levou à Segunda Guerra Mundial. Assim como Keynes, foi muito crítico
em relação à Paz de Versalhes, e por isso, ao ser aprovada, demitiu-se de seu posto. Apesar disso, sua
atividade política se prolongou. Bauer participou ativamente (junto ao exército austríaco) da Primeira
Guerra Mundial desde seu começo, tendo sido privado de liberdade, em território russo, durante a mesma,
entre 1914 e 1917, data da Revolução Bolchevique. Foi exilado na extinta Tchecoslováquia e na França
por sua indignação com o movimento fascista.
6
diversidade é algo extremamente grave. O verdadeiro problema é aquilo que
homogeneiza, aquilo que mecaniza, que torna abstrato, aquilo que cronometra e tudo
aquilo que maltrata os seres humanos. Não se trata, portanto, de homogeneizar o
diferente, mas de assumir a diferença e fazer com que esta dialogue.
A minha problemática nesta tese é apontar a necessidade de construção da utopia
de uma cidadania planetária a partir dessa diversidade, pois as circunstâncias ambientais
nos colocam numa crise generalizada de civilização. Essa utopia a meu ver é alimentada
pela antiutopia da sociedade de consumo, portanto, não trato aqui de uma oposição
binária ou dualista de tradição cartesiana. Também não se trata de uma relação dialética
porque ela supõe que se pode superar toda contradição por uma síntese superior. A
utopia e a antiutopia se entrelaçam num jogo dialógico constante. Este tipo de relação
implica na existência de dois princípios contraditórios e antagônicos, associados, sem
que se possa resolvê-los numa síntese. Nós vivemos de contradições, sem poder superá-
las. Pensar a utopia e a antiutopia de forma dialógica é intercomunicar lógicas diferentes
para explicar fenômenos complexos. Só de pensar a utopia se pressupõe que algo não
está bem. Se a realidade posta estivesse sempre de acordo com a perspectiva humana de
felicidade, amor e fraternidade não precisaríamos do utopismo. A complexidade não
significa apenas a idéia de que tudo está ligado, mas também a idéia de que conceitos
que se opõem não devem ser expulsos um pelo outro quando se chega a eles por meios
racionais. Por isso, é comum à complexidade o uso do macro conceito para pensar a
realidade em movimento. Segundo o princípio de Hölderlin
3
“Lá onde cresce o perigo,
cresce também o que salva”. As coisas não estão dadas desde sempre, as coisas
ocorrem num devir, fazem-se e desfazem-se. Mas a grande questão é: como construir
essa utopia planetária? Essa tese não tem a ambição de resolver tamanha tarefa, mas sim
problematizar algumas questões que são pertinentes a tal temática.
3
Hölderlin, Johann Christian Friedrich (1770-1843), poeta alemão, considerado uma das figuras mais
notáveis da poesia alemã. Preparou-se para ser pastor luterano, mas não tomou ordens. Ganhou a vida
como tutor de crianças de famílias de destaque na Alemanha, na Suiça e na França. Neste mister, como
tutor em casa de um banqueiro em Frankfurt, Hölderlin apaixonou-se desesperadamente pela esposa do
patrão, Susette Gontard, que retribuiu seu amor. O caso obrigou-o a deixar Frankfurt, e tentou viver como
escritor, sem sucesso. Voltou à atividade de tutor e, quando em Bordeaux teve notícia do falecimento de
Susette, em 1802, vagou a pelas estradas até Frankfurt, onde chegou em péssimo estado físico e
mental. Recuperou-se graças aos cuidados de amigos, que lhe obtiveram um emprego de bibliotecário de
Homburg. Mas seu estado mental voltou a piorar e, depois de um internamento breve em uma clínica em
Tübingen, foi levado para a casa de um carpinteiro naquela cidade, onde morreu. Seu gênio poético
somente foi reconhecido no século XX.
7
Segundo Morin, vivemos uma nova Idade Média planetária pelo fato de
estarmos numa época em que todos os elementos estão prontos para civilizar o planeta,
mas, ao mesmo tempo, estamos longe de uma civilização civilizada. Ainda
presenciamos a existência de duas barbáries: a do fanatismo, dogmatismo, ódio,
desprezo; e a da tecnociência, burocracia etc. O desenvolvimento da máquina
tecnoburocrática é um dos maiores perigos que enfrenta a democracia. O destino do
mundo nos diz Morin depende do destino político, o qual depende do destino do
mundo. Vivemos um momento politicamente regressivo (a redução da política à
economia) e um momento mentalmente regressivo (predomínio das idéias
fragmentadas). Nós ainda não saímos, digamos, da barbárie do espírito humano para
ingressar em uma época civilizada. O grande problema que fica é: por que será que não
podemos realizar o que sintetizou muito bem o tema da República francesa: liberdade,
igualdade, fraternidade? Primeiro, temos de entender que tal tema é complexo. Pois
com a liberdade elimina-se a igualdade e não se gera a fraternidade. Impondo a
igualdade, elimina-se a liberdade e não se gera a fraternidade. A fraternidade deve vir
dos cidadãos, deve vir dos indivíduos, mas é preciso achar um meio de unir liberdade,
igualdade, fraternidade. épocas em que a fraternidade é mais importante - como
hoje. E a fraternidade pode diminuir a desigualdade. Mas onde falta a liberdade é
preciso estabelecê-la. Como assinala Ernst Bloch em seu livro Droit Naturel et Dignité
Humaine (1976), estes princípios, inscritos pela classe dominante no frontão dos
edifícios públicos na França, nunca foram por ela realizados. Na prática, escrevia Marx,
eles foram, muitas vezes, substituídos por Cavalaria, Infantaria e Artilharia. Fazem parte
da tradição subversiva do inacabado, do ainda não-existente, das promessas que não
foram cumpridas. Possuem uma força utópica concreta, que “vai bem além do horizonte
burguês”, uma força de dignidade humana que aponta para o futuro, para a “marcha de
cabeça levantada” da humanidade, para o socialismo. Se examinarmos de perto estes
valores, do ponto de vista das vítimas do sistema, descobriremos seu potencial
explosivo e sua atualidade no combate atual contra a mercantilização do mundo.
possibilidades de futuro, mas elas não são irreversíveis. Não temos mais essa idéia de
que o progresso era inevitável e necessário. E sabemos que, se houver progresso será a
obra da vontade dos seres humanos, de sua consciência e, sobretudo, todo progresso
deve ser regenerado.
8
Um dos principais pressupostos para pensar a utopia nas atuais circunstâncias é
preocupar-nos com a separação existente entre os objetos do conhecimento e seu
contexto, o que fragmenta o pensar, fraciona os problemas e impede que as pessoas
tenham uma compreensão melhor da realidade. Para Morin, a reforma do pensamento é
uma necessidade-chave da sociedade, pois permitiria o pleno emprego da inteligência,
de forma que os cidadãos possam realmente entender e enfrentar os problemas
contemporâneos. É a idéia de um pensamento não-fragmentado. A idéia de que o
homem, ao analisar a vida e o mundo, perceba tudo o que está a sua volta e assim
construa um entendimento melhor e mais abrangente a respeito dos problemas da
humanidade. A reforma dos saberes é uma necessidade para que a humanidade seja
capaz de compreender a complexidade do universo. Devemos nos conscientizar que
estamos ligados à vida, de que a vida está ligada à Terra, de que a Terra está ligada ao
seu Sol, e de que o próprio Sol está ligado a este imenso cosmo.
Estamos acostumados a pensar em coisas pontuais, que estão mais próximas de
nossa condição, mais palpáveis e que dizem respeito a nosso cotidiano, mas a tomada de
consciência dos problemas universais é algo que se impõe aos poucos. A ligação entre o
regional e o mundial é importante porque o mundo não pode ser algo que comporte uma
civilização homogênea para todos. Essa questão hoje está ligada à qualidade de vida
para todos. A defesa da qualidade de vida está também ligada à defesa das culturas e, ao
mesmo tempo, implica na idéia de uma globalização não apenas econômica. Nosso
conhecimento desarticulado, fragmentado e compartimentado não sustentação para
lidar com os problemas planetários cada vez mais multidisciplinares, transversais,
multidimensionais, transnacionais e globais.
Segundo Edgar Morin, a humanidade passa por um estágio em que ameaças e
promessas são inseparáveis. “A nossa era planetária é ambivalente e polivalente”.
Todos convivem hoje com as mesmas ameaças coletivas, de armas de destruição
massiva, de aquecimento global e poluição, como também convivem com esperanças de
uma nova medicina, da manipulação da vida, da libertação pelo uso das máquinas
artificiais. Para Morin, este processo fez com que a humanidade criasse o que ele chama
de “comunidade de destino”. “É preciso fazer da Terra um espaço comum. Cultivar o
nosso jardim coletivo. Essa é a condição central do humanismo”.
9
uma preponderância da organização do mundo inteiro e da centralização das
ações humanas em torno do econômico, por isso presenciamos um desequilíbrio entre as
várias dimensões do humano e isso representa um dos grandes perigos da nossa época.
Como a economia é baseada em cálculos e tudo o que foge ao cálculo é eliminado do
pensamento econômico, perde-se as noções de emoção, de vida, de sentimento e da
própria natureza humana. Caímos então num puro conhecimento abstrato e conseqüente
reducionismo do entendimento dos problemas sociais de forma simplista e reducionista,
incoerente com o conhecimento da sociedade. Por muito tempo, acreditou-se que o ser
humano dividia-se entre o chamado Homo sapiens, isto é, o homem racional, e o Homo
faber, o homem que fabrica ferramentas. O homem da inteligência não é o Homo
sapiens, indissoluvelmente, ele é o Homo demens, o Homo faber, que trabalha, o Homo
ludens, que brinca, o Homo economicus, o Homo poeticus, o Homo mitológico etc.
Apenas a racionalidade abstrata do Homo Sapiens deixa de ser racional. Essa
preponderância dos valores de produção, consumo, acumulação coloca o Homo
economicus no centro do projeto de existência de cada um de nós, de sorte a sufocar,
estrangular e a coagir a expressão dos valores éticos, culturais e de solidariedade, mas
não há pensamento racional sem emoção, não existe racionalidade pura. A racionalidade
autêntica deve ter as características de abertura e de dialogismo, além de saber
compreender a esfera da afetividade e da irracionalidade. A afetividade é necessária à
razão. Somos seres capazes de emoções e de loucuras também. Como dizia o poeta
português Fernando Pessoa: Viver não é preciso, navegar é preciso”
4
, e essa é a
grande dificuldade. Nunca perder a racionalidade, mas, também, nunca perder o
4
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
"Navigare necesse; vivere non est necesse" - latim, frase de Pompeu, general romano, 106 - 48 a. C., dita
aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra, cf. Plutarco, in Vida de Pompeu].
10
sentimento, sobretudo o amor. O desafio é criar uma nova moralidade capaz de
coordenar o agir no espírito da abertura, da cooperação e do diálogo.
Prosa e poesia são duas maneiras de viver. Viver prosaicamente significa
realizar coisas obrigatórias, entediantes, sem emoção, cansativas e rotineiras. Somos
obrigados a realizar certas atividades prosaicas para sobreviver e para ganhar a vida.
Segundo Morin, a prosa serve para sobreviver. O complexo transforma a prosa do
cotidiano em poesia da vida. O Homo faber, o Homo economicus e o Homo sapiens são
seres prosaicos que produzem coisas materiais por necessidade, mas há também o
aspecto poético da vida. A qualidade poética da vida é a qualidade que encontramos na
comunhão entre as pessoas: nas festas, no fervor, no amor, no futebol, nos poemas,
enfim, em todas as coisas que dão uma intensidade afetiva. A qualidade de vida está na
poesia, é o viver, é o próprio desabrochar. É a comunicação, a comunhão.
“Poeticamente, o homem vive na terra”, dizia Hölderlin. Viver poeticamente é ser
capaz de exprimir sua personalidade, suas comunhões, suas participações, suas
curiosidades, ou seja, de pensar a condição humana. Existe um excesso de prosa na vida
porque há uma predominância em obedecer a lógica das máquinas artificiais e às
inteligências artificiais, em relação à lógica do ser vivo, segundo a qual viver é
expandir-se afetiva e intelectualmente. Pretender que o homem seja pura ação racional é
ignorar as ações dementes do homem. Tanto o conhecimento abstrato quanto conhecer a
si mesmo é importante. No entanto, nunca se ensina o autoconhecimento. O didatismo
tem sentido se aprendermos a ser autodidatas, isto é, a sermos autônomos. Ensinar a
autonomia é ensinar a viver e a conhecer os problemas da vida, além de estimular a
criatividade. A autonomia dos indivíduos é condição fundamental da evolução da
sociedade, além de alimentar a cultura da solidariedade. Se tivermos essa definição
aberta do ser humano, levaremos em conta toda a dimensão humana. Mas se ela for
fechada e econômica, a perderemos.
Os espíritos humanos criaram a tecnologia e hoje é ela que nos ameaça. A
complexidade começa a reencontrar um diálogo entre o ser e sua idéia, entre nós e nossa
tecnologia. As idéias simples são mortais porque, hoje, considerando a complexidade de
nosso mundo e de nossos problemas, é difícil admitir que podemos resolvê-los com uma
idéia simples - por exemplo, a economia resolverá tudo ou a educação resolverá tudo. É
preciso entender como se relacionam os diferentes problemas, como se determinam
11
entre si. Para isso, devemos ter uma visão não-fragmentada e não-separada do mundo.
Penso que a visão de Edgar Morin e as referências do pensamento complexo são vitais
para compreender e evitar a cegueira do pensamento que, na época atual, pode ser muito
perigosa para a humanidade.
Pensar a utopia é pensar sobre o futuro, mas não pode ser um pensamento
profetizado. O futuro é incerto, pois forças de destruições terríveis ameaçam a
humanidade, entretanto também forças de evolução enormes, sobretudo através das
descobertas científicas, mas será preciso uma grande explicação entre a humanidade, a
ciência, a tecnologia e a economia, ou seja, o problema do controle da tecnologia, da
ciência, pela humanidade, através da ética e da política será de vital importância para o
futuro e para a construção da utopia. Há uma série de fatos históricos que comprovaram
que o improvável se torna provável. Esta é a nossa possibilidade de esperança.
Popper já havia sinalizado que a ciência era feita de erros, sonhos e objetivação
5
.
A origem do conhecimento, portanto, está relacionada com a ignorância, ela começa da
tensão entre esses dois pólos aparentemente opostos. A elaboração de conteúdos
informativos acontece na relação direta da apresentação de novos problemas. As teorias
são sempre hipotéticas e conjunturais, isto é, uma impossibilidade de afirmações de
verdades. O conhecimento é, portanto, produto de um conjunto de ações que envolvem
os níveis animal, cultural, social, psicológico, histórico e espiritual. Dessa forma,
devemos fazer a crítica à disciplinaridade fechada, dada a pouca troca cognitiva entre as
ciências, e propor uma lógica capaz de incluir um pensamento universalista. Uma
sociedade pensada com esquemas lógicos aristotélicos é uma sociedade totalitária, como
o poder de sua lógica. necessidade de se adquirir uma nova forma de pensar que
englobe todos estes conhecimentos (mito, religiosidade, crença) e, principalmente, uma
nova ética que não considere como única possibilidade o caminho da razão e da ciência
ocidentais. Pensar a utopia da cidadania planetária então requer uma reforma do fazer
científico. A construção do presente passa pela descoberta de um novo amanhã, de uma
abertura para o imponderável e de uma paixão pelo diálogo. A essa nova configuração
5
Para o filósofo Karl Popper (1902-1994), leis e teorias jamais podem ser comprovadas. Tomemos, por
exemplo, a generalização bem simples “Todos os cisnes são brancos.” Por maior que seja o número de
cisnes observados, não podemos demonstrar que o próximo cisne a ser observado será branco. Nossas
observações nos autorizam a afirmar apenas que todos os cisnes observados até o momento são brancos.
Para Popper, no entanto, uma única observação de um cisne negro pode, logicamente, refutar a hipótese
de que todos os cisnes são brancos. Assim, embora as generalizações científicas (e as leis e teorias
científicas) não possam ser comprovadas, elas podem ser refutadas.
12
Morin entende como normas antropo-éticas. São as normas que orientam a práxis e o
modo de ser de cada um aos valores essenciais para a vida humana. Esses valores, de
validade intercultural e referências normativas universais, se expressam na
compreensão, solidariedade e compaixão. São, portanto, valores típicos de uma ética
planetária, cujo objetivo último é a fraternidade humana universal. Isso não significa
uma ética totalizante. Preserva-se a unidade de um lado, mas tutela e cultiva as
diferenças de outro.
Devemos passar por uma revolução de paradigma, pois o paradigma vigente que
domina nossos espíritos nos faz sempre separar. Assim podemos considerá-lo como
diabólico, que a palavra diabo significa aquele que separa, aquele que divide sempre.
Devemos passar por uma revolução cultural que conduza do pensamento simples ao
pensamento complexo que possa criar uma nova responsabilidade dos homens pelo seu
caminho histórico. O grande paradigma do Ocidente cartesiano afirma a não
comunicabilidade entre o domínio do sujeito, que era o da agitação, da filosofia e o
domínio do objeto, da coisa extensa, que era o domínio da ciência. Houve, portanto, um
divórcio trágico entre ciência e filosofia. O grande paradigma da cultura ocidental desde
o século XVII ao século XX separa o sujeito e o objeto, sendo o primeiro remetido para
a filosofia e o segundo para a ciência, e, no âmbito deste paradigma, tudo o que é
espírito e liberdade emana da filosofia, tudo o que é material e determinista emana da
ciência. A partir do século XVII houve uma ruptura entre a ciência e o sentido, ou seja,
entre o Sujeito e o Objeto, o que configurou a metodologia da ciência moderna. Hoje,
ciência e cultura não tem mais nada em comum.Criou-se uma dicotomia entre a cultura
científica e a cultura humanista. Cada mundo o mundo científico e o mundo
humanista ficou hermeticamente fechado sobre si mesmo. Como diz Morin e muitos
outros cientistas e pensadores, necessitamos de um paradigma que nos faça religar e
solidarizar. Religar a cultura humanista e a cultura científica, religar as partes e o todo
do qual elas fazem parte e pensar que essa reforma não concerne apenas ao
conhecimento, porque ela possui uma inclinação ética. A transdisciplinaridade necessita
e propõe o encontro entre o teórico e o prático; entre o filósofo e o científico. Isso não
significa em absoluto dissolver o científico no filósofo nem o filósofo no científico, mas
sim estabelecer elos e laços comunicativos. O pensamento ecologizado deve
necessariamente romper este paradigma e referir-se a um paradigma complexo no qual a
autonomia do vivo, concebido como ser auto-eco-organizador, é inseparável da sua
13
dependência. Essa reconciliação será possível quando a ciência passar por uma
conversão e tornar-se verdadeiramente de novo uma cultura. Isso exige uma mudança
significativa de mentalidade, principalmente por parte dos cientistas.
A revolução paradigmática faz-se necessária porque moralmente esta situação
degrada tanto o senso de solidariedade quanto o de responsabilidade, duas fontes
fundamentais da ética. A perda de responsabilidade (no seio da grande máquina
tecnoburocrática compartimentada e especializada) e a perda da solidariedade (pela
atomização dos indivíduos e a obsessão pelo dinheiro) conduzem à degradação moral. O
desenvolvimento técnico e material produziu um subdesenvolvimento psíquico e moral,
o bem-estar produziu o mal-estar, sem suprimir as zonas de anomia e de miséria.
Qualquer indivíduo traz consigo uma propensão egocêntrica e uma propensão
comunitária. Nossa civilização desintegra as comunidades concretas, favorece não
somente o individualismo, o que é uma virtude, mas também seus excessos no
egocentrismo e hedonismo. Como ligar o indivíduo, essa reconquista do individualismo,
que são conquistas de autonomia, a um sentido de comunidade? Como fazer para que ao
mesmo tempo haja o ximo de autonomia, de liberdade, de responsabilidade e um elo
social forte, que não seja evidentemente o poder da coerção? Esse elo social é apenas
um sentimento vivenciado de solidariedade e de comunidade. As noções de cidadania
planetária, Terra-Pátria e comunidade de destino, implicam em criar um elo fraternal e
comunitário entre o conjunto dos humanos no qual, justamente, as diferentes liberdades
e autonomias possam manifestar-se. Cada um de nós é uma pequena parte da sociedade,
mas a sociedade como um todo se encontra em cada indivíduo através da linguagem, da
cultura, da família. Somos indivíduos no planeta, mas na realidade o planeta está em
nós. Quanto mais a nossa cultura for capaz de nos permitir o conhecimento de culturas
alheias e de culturas passadas, mais o nosso espírito terá hipóteses de desenvolver a sua
autonomia. A era planetária é uma era em que todos os seres humanos se encontram
unidos numa espécie de comunidade de destino cada vez maior. Nós, seres humanos,
não podemos nos separar da aventura do cosmos e da aventura da vida.
Morin diz que a nossa condição humana é tripla: indivíduo, espécie e sociedade.
Três dimensões absolutamente inseparáveis. A sociedade produz o indivíduo que
produz a sociedade. A complexidade significa ver a unidade e a diversidade ao mesmo
tempo. Por exemplo, a especificidade humana é a cultura, mas nunca percebemos que
14
conhecemos a cultura através de outras culturas. Hoje o que está sendo ameaçado é a
espécie humana porque existem enormes riscos para a biosfera. Ao mesmo tempo o
processo de unificação ameaça as diversidades culturais. Hoje a tendência é a
homogeneização, é preciso querer preservar as diversidades culturais que são uma
riqueza para a humanidade. Portanto, devemos então proteger a unidade e a diversidade
e se não tomarmos consciência disso a utopia da cidadania planetária não será capaz de
sequer ser imaginada. Ainda não existe uma sociedade civil mundial e a consciência de
que somos cidadãos da Terra-Pátria está dispersa, embrionária, ainda longe, mas em
estágio de gestação.
Pode-se constatar, mesmo empiricamente, que o envolvimento da cidadania com
a esfera pública dá-se, normalmente, a partir da contraposição de interesses particulares.
O debate das questões que dizem respeito a todos constitui a preocupação de uma
esmagadora minoria de cidadãos. então uma espécie de privatização da
sociabilidade, um estado de permanente pressão para se despojar de toda interferência
coletiva no destino individual, para desregulamentar e privatizar em contraposição aos
antigos, quando para esses, a idéia de felicidade seria inconcebível se apartada da idéia
de “felicidade pública”. A dificuldade em estabelecer uma relação autêntica durável
com o outro e a inserção numa comunidade de destino evidencia um problema de
civilização. O desaparecimento da cortesia torna difícil o diálogo, a compreensão do
outro. Ele favorece choques, grosserias, insolências e, finalmente, as violências.
Como vislumbrar nossa própria felicidade, se estamos imersos na infelicidade
geral? Dois problemas significativos se apresentam: em primeiro lugar, a ausência de
uma perspectiva utópica e, em segundo lugar, a construção de uma sociabilidade
fragmentada e subsumida quase que inteiramente à esfera privada da existência. Como
pensar a sociedade em transcendência? Como renovar o ideal utópico na
contemporaneidade? Fazem-se necessários regramentos morais desejáveis que
pudessem ser universalizados e a utopia da cidadania planetária vai nessa direção. Ela
comporta uma ética e uma moral novas que recuperam a perspectiva e o ideal utópico,
recupera os grandes projetos que buscam dar conta da realidade em que vivem os
homens e identifica a emergência de um objeto novo, o mundo, e que, nesse sentido, a
mundialização corresponde ao surgimento de problemas comuns e específicos para toda
a humanidade, destaque para a crise ambiental mundial. A mundialização que se
15
apresenta é baseada na técnica e na economia. Mas existe uma segunda mundialização
minoritária que aponta para a mundialização das idéias de humanismo, de democracia,
da compreensão entre os povos e mesmo da cidadania terrestre. Criar o ecocidadão
implica numa modificação das práticas individuais de consumo de energia, de bens e
serviços que conduz a efeitos planetários globais.
O desenvolvimento sustentável que supõe que não se deve destruir a ecologia, o
ambiente, a biosfera, tem ainda um viés extremamente técnico e econômico. Cria a
ilusão que o simples desenvolvimento das forças técnicas e econômicas produz o
desenvolvimento da civilização, das relações humanas, da democracia. O político e o
civilizacional estão acima do saber técnico, ou seja, o técnico está a serviço do político.
O meio ambiente não é uma questão científica nem de natureza, mas é uma questão
social e política. A reivindicação da natureza é uma das reivindicações mais pessoais e
profundas, que nasce e se desenvolve nos meios urbanos cada vez mais industrializados,
tecnicizados, burocratizados, cronometrados. Nossa educação ambiental cartesiana
ignora que a natureza tem a ver com sentimentos. A natureza foi dissecada pela ciência.
Por isso creio que os homens podem se encontrar numa sociedade melhor através do
movimento ecológico. Afinal o que é que nos sustenta? É a vida que nos sustenta, por
isso precisa haver vida para criar um desenvolvimento sustentável, mas parece que
perdemos o sentido da vida, o sentido religioso, de religar. A idéia de desenvolvimento
durável deve ser substituída por desenvolvimento adaptativo regulado, ou melhor,
substituir a noção de desenvolvimento sustentável pela noção de civilização sustentável.
O desenvolvimento tradicional conduz a uma degradação moral porque foca no bem-
estar material, mas esse frequentemente corresponde a um mal-estar do indivíduo e até
mesmo à solidão e conseqüente degradação das solidariedades tradicionais. Os
progressos do individualismo permitem a autonomia e a responsabilidade pessoal. Por
outro lado, eles provocam a desintegração das solidariedades tradicionais, familiares,
locais e profissionais. Com isso, somente as solidariedades anônimas desenvolvem-se,
tais como o Seguro-saúde, o Seguro Social etc. Com efeito, esse sistema de
solidariedade institucionalizada está ligado à desintegração das solidariedades concretas
e ao crescimento das solidões individuais.
Da mesma maneira que o desenvolvimento produz subdesenvolvimento, o
progresso pode gerar retrocessos ou regressão. A economia ecológica deve reconhecer
16
as propriedades ecossistêmicas da economia. Não deve ser concebida separada do meio
ambiente. Deve levar em conta as atividades o-mercantis fundadas sobre a troca de
outros valores indispensáveis à manutenção e ao desenvolvimento das sociedades: a
educação mútua, a solidariedade, a assistência social, a partilha dos frutos do
conhecimento, o voluntariado para investir no ecocapital. Seria também necessário que
a ciência econômica reconhecesse que as necessidades espirituais, sociais, emocionais,
artísticas, devem ser satisfeitas em conjunto com as necessidades materiais. A política
tradicional com o cálculo meio-fim e como ação instrumental tem apresentado poder
muito limitado. Turbinar a política com novas referências, com novos conceitos, limites,
utopias, é necessário para pensar a sociedade e atuar sobre ela. Uma política planetária
em escala mundial que trate as causas das desigualdades, injustiças, carências. A
política do humano teria como missão urgente solidarizar o planeta para construir,
preservar e controlar os bens planetários comuns. Isso se configura na idéia de uma
antro-política que serve para direcionar o agir coletivo em escala mundial, para os
valores e as normas antropo-éticas. Como diz Edgar Morin, trata-se da “luta simultânea
contra a morte da espécie humana e pelo nascimento da humanidade”. É possível,
portanto, manter a esperança na desesperança.
Essa tese procura problematizar essa questão, como construir a utopia
impulsionada pela antiutopia. No primeiro capítulo procurei primeiramente pensar o
espaço da ética na contemporaneidade relacionando-a com a utopia. Pensar a ética hoje
exige criar uma nova forma de pensamento condizente com o atual contexto histórico.
Entendo que tanto o pensamento débil como o pensamento complexo são referenciais
importantes para a compreensão de um período no qual há um arrefecimento das
ideologias, utopias, ideais, sonhos. Por isso, a referência a Gianni Vattimo, filósofo
social italiano e Edgar Morin, filósofo e sociólogo francês para pensar a ética sem as
amarras de qualquer pensamento totalizante. Não se pensa a utopia sem preceitos éticos,
mas essa também não se manifesta mais como sociedade ideal.
No segundo capítulo pretendi responder a seguinte questão: Quais seriam então
os princípios que norteiam essa nova ética do humano? Entendo que o “Princípio
Esperança” de Ernest Bloch e o “Princípio Responsabilidade” de Hans Jonas sejam os
norteadores para a construção da utopia da comunidade de destino ou da cidadania
planetária. Jonas faz uma séria crítica à filosofia utópica de Bloch. Para ele, a utopia de
17
Bloch mostra o ser como ainda não dado, que está em devir, isto é, um “não-ser-ainda”
que chegará à sua identidade apenas no futuro de uma libertação total da humanidade e
do mundo. Jonas entende que o ser é reconhecido sob o valor intrínseco daquilo que ele
é. Critica o fato de sacrificar o presente a um advir realmente desconhecido. Acusa
Bloch de fechar os olhos para a insuperável ambigüidade do homem. Pretendi resolver
essa problemática ao trabalhar com o pensamento de Edgar Morin para ressaltar a
ambigüidade humana e pensar a utopia dentro dessa característica fundamental. Além
disso, não considero a crítica que Jonas faz ao utopismo de Bloch coerente, que
pensar o princípio da responsabilidade como devir ético hoje, está no mesmo horizonte
utópico que ele critica.
Pensar a utopia assim, apenas de forma abstrata, não basta. No terceiro capítulo
faço a crítica à sociedade de consumo enquanto antituopia. Ressalto o papel do
imaginário, principalmente o distópico, para a construção dos horizontes utópicos. Na
literatura e no romance encontramos uma dimensão humana que não existe nas ciências
que é a dimensão subjetiva. A literatura nos ensina a conhecer melhor o outro enquanto
a poesia é uma introdução a qualquer poética da vida que nos ajuda a entender que, se
nos emocionamos com poemas, é porque fala de nossas esperanças, de nossas verdades
profundas, é dizer que o conhecimento não se encontra nas ciências. Na realidade, o
cinema, a literatura, o teatro, nos ajuda a entendermos muitas coisas, mas tão logo
voltamos à vida real, esquecemos tudo. Precisamos desenvolver essa benevolência que
permita compreender o outro. Bloch no seu livro “Princípio Esperança” dá amplo
destaque para o papel do imaginário, especialmente a música, como fomentador de
esperanças. Neste trabalho procurei ressaltar o papel do cinema. Num mundo marcado
principalmente pela estética e pela força da imagem penso que o cinema tem a
possibilidade de trazer boas referências para pensar a construção da utopia. Com isso,
procurei enfatizar o cinema distópico marcado, sobretudo, pela sociedade de consumo a
qual considero a antiutopia mais relevante na contemporaneidade. É ela que vai de
encontro ao pensamento de uma nova ética e à criação de um novo paradigma
ecológico, mas quanto mais ganha força enquanto estabelecimento de valores
hedonistas, mais faz por criar a atmosfera para a construção de uma cidadania
planetária, já que entre um futuro distópico ou utópico é a segunda opção que prevalece
no imaginário coletivo. Dentro da ambigüidade do ser humano, cria-se o Princípio
18
Esperança e o Princípio Responsabilidade para a construção de uma nova ética que nos
religue com o Cosmo.
19
CAPÍTULO 1
ÉTICA E UTOPIA
"Um mapa do mundo em que não aparece o país Utopia não merece ser guardado.”
Oscar Wilde
O resgate da ética
uma crise de fundamentos da ética porque houve uma ruptura entre a ética
individual e a ética da pólis. Essa crise é produzida e produtora de vários problemas.
Para um tempo de crise de referências e de perplexidade, ressurge a discussão sobre a
necessidade de retomar não o pensamento da ética como também a ética do
pensamento. Faz-se necessário a compreensão de uma ética complexa com o aparato da
ciência, mas não no sentido da ciência clássica que concebe uma separação entre a
objetividade e a subjetividade, sujeito e objeto.
Por que iniciar esse trabalho com a ética? Por que uma crise generalizada nas
sociedades e nas ações políticas, cujo reflexo é o obscuro entendimento de qual caminho
seguir. Como situar a ética e os atos éticos que dão sustentação a ela? Em primeiro
lugar, é preciso entender que a ética não é um sistema de ordem, porque ela sempre tem
contradições compostas por forças de religação e forças de separação.
Muito se fala sobre o fim da história, fim das ideologias, ideais e, sobretudo, fim
das utopias. Por isso, falar de ética para pensarmos a utopia significa pensar quais os
princípios norteadores que possam auxiliar na compreensão e visualização do espaço
utópico na contemporaneidade. A ética complexa é, portanto, o ponto de partida deste
caminhar. Enquanto a ética não-complexa obedece a um código binário: bem e mal. Na
ética complexa o bem contém o mal, o justo e o injusto. É esse o caminho para se
pensar a utopia. Nela está contida a distopia e é a partir desta que a utopia se alimenta.
O caminho ético se impõe, caso quisermos efetivamente superar a crise em que
nos achamos que a ética é um elemento característico da cultura ocidental. Essa
tematização está nas mais diversas esferas da atividade humana e com isso uma
motivação profunda para o debate moral. A ética está fundamentada em valores
20
universais sob égide da cooperação e da solidariedade. No entanto, é preciso destacar
que a partir da Modernidade perdemos a capacidade de formular conceitos de modo
integrado e objetivo, perdemos a concepção unificadora. Criamos um pluralismo moral
e fragmentado que não promoveu um diálogo integrado e ordenado conforme as novas
exigências. Ela é ainda mais importante numa organização social pluralista de
democracia participativa. É através da ética que é fundamentado o projeto do futuro, ou
seja, a utopia.
A ética se refere a um devir, uma visão futura da humanidade que tem inspirado
inúmeras gerações durante o processo histórico, cujos sujeitos “desejantes” e ativos
criaram comunidades de cidadãos ativos, fontes de liberdade que transformam a
História. Essa ética não é ficção ou sonho, mas uma visão futura do mundo construída
por meio de um discurso em que se confrontam os valores por seus impactos reais e
prováveis na existência humana. Ela surge como um amálgama da recriação de
aspirações e valores cultuados em todos os tempos que leva a uma síntese imaginária à
luz das experiências políticas e práticas acumuladas.
A ética é também uma exigência moral que organiza o nosso viver junto. A
utopia, por sua vez, não pode ser algo individual. Utopia se faz junto com o outro, daí a
necessidade de pensar a ética. Definir o que é o ser humano também não é um processo
lógico e de fácil decodificação. É preciso pensá-lo em suas dimensões biológica,
individual e social, um ser que é egoísta e é também altruísta. Então, esse estar-junto
também não é tão simples de se alcançar. Afinal, estar-junto de que forma? As utopias
tradicionais tratam do estarmos junto numa sociedade perfeita e coesa, com bom
funcionamento estrutural, a ponto de eliminar as contradições e controvérsias. Na
atualidade não podemos pensar a utopia nesses moldes. Ela se faz presente com
outras características que envolvem novos paradigmas e novas compreensões da
realidade que nos cerca.
A ética é a expressão do imperativo da religação, ou seja, o ato ético é o ato
religatório por excelência que implica em assumir o nosso destino cósmico, físico e
biológico, assim como a mortalidade. Deve ser concebida como a religião do que religa,
fazendo frente à barbárie que divide. Religação com um outro, religação com uma
comunidade, religação com uma sociedade e, no limite, religação com a espécie
21
humana. É, portanto, um ato que envolve a incerteza e assume que qualquer ação
sempre traz consigo um princípio de risco e de preocupação. Esse preceito ético é
decisivo para repensarmos a utopia em nosso espaço contemporâneo aparentemente
caótico e niilista. O comprometimento individual da parte com o todo, ou seja, a
compreensão de que as ações individuais interferem de alguma forma na sociedade é
imprescindível para resgatarmos a ética de solidariedade que é intrínseca à condição
humana, afinal somos seres sociais e animais políticos por natureza, como dizia
Aristóteles. Quando falamos em solidariedade não é como pensamento abstrato, mas
sim referida à concretude das relações que ligam efetivamente os seres humanos uns aos
outros, porque todos nós procedemos de um tronco comum: o Anthropos.
O sentimento de comunidade e de pertencimento é fonte de responsabilidade e
de solidariedade e, consequentemente, fonte de ética. Pertencer a uma comunidade tem
um fundo de bondade, de algo agradável e de relações sociais apaziguadoras. Sugere
uma coisa boa por causa dos significados que a palavra carrega – todos eles prometendo
prazeres e, no mais das vezes, as espécies de prazer que gostaríamos de experimentar,
mas que não se alcança mais. Comunidade é um lugar acolhedor, pois todos nos
entendemos bem, nunca somos estranhos entre nós, nunca desejamos sorte uns aos
outros, podemos contar com a boa vontade dos outros, ninguém vai rir de nós, sempre
haverá alguém para nos dar a mão em momentos de tristeza. Esse lugar ainda existe?
Parece não haver mais esse espaço. O que essa palavra evoca é tudo aquilo de que
sentimos falta e que precisamos para viver seguros e confiantes. Em suma,
“comunidade” é o tipo de mundo que não está, lamentavelmente, a nosso alcance mas
no qual gostaríamos de viver e esperamos vir a possuir (paraíso perdido ou paraíso
esperado).
É interessante notar como a noção de comunidade é fascinante quando
criticamos e estabelecemos uma relação com as transformações sociais a qual passamos
ao longo do tempo, principalmente após o surgimento do capitalismo, que nos levou a
viver em sociedades com imensos problemas urbanos e sociais. Como conseqüência,
temos a falsa ilusão de construir ilhas de segurança e bem-estar proporcionadas por
condomínios, shopping centers e outras construções pós-modernas que criam em nosso
imaginário a condição de pertencimento dentro de uma perspectiva comunitária, mas
que no fundo é uma forma de apartheid urbano. Creio que o filme “A Vila” (EUA,
22
2004) dirigido pelo cineasta indiano M. Night Shyamalan, seja um referencial
interessante para ilustrar a relação complexa entre comunidade e sociedade. O filme se
passa na zona rural da Pensilvânia em 1987, e conta a história de um pequeno vilarejo
de Covington, com a pequena população de 60 pessoas. Parece ser o local ideal para
viver: tranqüila, isolada e com os moradores vivendo em harmonia. É uma vila auto-
sustentada e é proibido o uso do dinheiro. Porém este local perfeito passa por mudanças
quando os habitantes descobrem que o bosque que o cerca esconde uma raça de
misteriosas criaturas míticas, por eles chamados de "Aquelas de Quem Não Falamos".
O medo de ser a próxima tima destas criaturas faz com que nenhum habitante da vila
se arrisque a entrar no bosque. A história ainda conta o romance de Kitty, a filha do
líder do vilarejo e de Lucius, um jovem rapaz. Os dirigentes da cidade possuem uma
política de restrição bem forte: todos são proibidos de adentrar a floresta, ou seja, todos
os habitantes da vila viveram toda a sua existência isolada do restante do mundo, já que
ninguém do exterior pode entrar também. A vila é habitada por uma comunidade
administrada por um conselho de seniores (the elders) que, de forma aparentemente
“democrática” delibera em conjunto com a população. vários postos de vigia, que
servem tanto para afugentar as criaturas como para se certificarem de que ninguém tente
fugir da vila. Entretanto, o vilarejo é ameaçado quando Lucius começa a questionar
sobre o confinamento completo das pessoas de lá. Por causa dessas criaturas, os
moradores da vila são terminantemente proibidos de transpor o limite fixado através de
um renque de mastros embandeirados com flâmulas amarelas. O mesmo, obviamente,
não inibe os supostos entes, que periodicamente fazem sua assustadora aparição de
rotina na vila. Como tudo é muito simbólico neste filme, enquanto as flâmulas de alerta
são amarelas, as assustadoras criaturas vestem vermelho. Motivo este, aliás, da
proibição na vila do uso desta cor, que é combatida inclusive nas ervas daninhas
casualmente encontradas nos jardins. O vermelho naquela vila nada mais representa que
o crime. Este, por sua vez, não é o que alimenta o medo que motivou semelhante
simbologia, como também é o próprio motivo tanto da criação do mito das criaturas,
quanto da escolha daquela comunidade pela vida no campo. No entendimento dos
seniores, para que esta opção possa ser sustentada, é imprescindível o mito dos
malévolos entes do bosque, de modo que os segredos da vila não sejam descobertos.
Estes, por sua vez, são guardados em caixas azuis, não por acaso, a cor da melancolia.
As tais caixas azuis trancafiam o passado dos habitantes daquela vila, todos antes
moradores urbanos, tendo em comum entre si a vivência de uma perda humana por
23
crime. Eis, portanto, a explicação do vermelho sangue –, para simbolizar o horror
encarnado pelos entes do bosque. Vemos que o ideal de sociedade perfeita que o
conselho pretende com a vila, é mantido por uma nefasta ideologia de poder.
Ao invés de fragmentar o espaço comunitário, como mostrado em “A Vila”, para
um número reduzido de pessoas, pode-se imaginar a ampliação desse universo dentro de
preceitos éticos mais coerentes. Conviver com as incongruências, com as adversidades,
com as incertezas cotidianas, com as paixões e desejos é o maior desafio e a proposta da
utopia contemporânea. No entanto, o que se percebe atualmente é uma leitura muito
próxima à apresentada pelo filme. As pessoas se fecham em condomínios e freqüentam
espaços públicos que separam e desunem. Proporciona falsas sensações de bem estar e
segurança a apenas uma camada da sociedade e solapa a discórdia e a fragmentação das
relações sociais. O que está além do bosque hoje são os outros, os miseráveis, os
marginais, Aqueles de quem não falamos”, são eles que estão vestindo vermelho. Na
pseudo-segurança dos lares “Das Vilas” e com suas regras internas de convivência
“comunitária”, vai-se produzindo a exclusão e a indiferença. Precisamos urgentemente
rever essa condição humana e sairmos das profundezas desse individualismo.
Paradoxalmente, a individualidade de hoje, enquanto condição, nos permite
maiores graus de liberdade e de sermos nós mesmos. A utopia contemporânea se
constrói no espaço traçado entre esses dois pilares: o de pertencer a uma comunidade e,
ao mesmo tempo, ser livre para satisfazer seus desejos e necessidades de forma
individualizada e sem restrições de ordem econômica, social ou política. Daí a
importância da autonomia moral em relação à pretensão das éticas universalizantes.
Assim como hoje não fazem muito sentido os espaços totalitários, ideologizantes e
fundamentalistas, também perderam força as utopias universais que estabelecem regras
para a vida e a constituição social. A utopia de hoje se constrói junto com a constituição
da autonomia moral dos indivíduos. Isso não significa que “tudo é válido”; uma das
diretrizes da ética, que é o dever, continua viva.
Perder a dimensão do dever implica em vivenciar situações tão bizarras que a
própria concepção de sociedade ver-se-á ameaçada enquanto espaço de convivência,
solidariedade e relações sociais. Como exemplo dessa dinâmica cito o filme “Cama de
24
Gato” (BRA, 2004), de Alexandre Stockler, a primeira obra do movimento
T.R.A.U.M.A. (Tentativa de Realizar Algo Urgente e Minimamente Audacioso).
Retrata o dilema moral de nossa época, o embate entre a necessidade de instauração de
princípios éticos universais de um lado e, de outro, o impulso para a satisfação dos
desejos individuais e a conseqüente carência de “mínimos” valores e princípios. Os
personagens principais do filme são Cristiano (Caio Blat), Francisco (Rodrigo Bolzan) e
Gabriel (Cainan Baladez), três jovens de classe média que moram em São Paulo.
Neste filme, entretenimento e violência se misturam de tal forma que o drama
vivido pelos personagens confunde-se com uma verdadeira comédia urbana tamanha a
banalização de seus atos. Na tentativa de se divertirem a “qualquer custo”, acabam
estuprando e matando acidentalmente uma adolescente. A partir daí, eles passam a
tentar encobrir os crimes, e quanto mais eles tentam resolver os problemas mais eles se
complicam.
O apelo sexual no filme serve para criar polêmica e chocar o espectador.
Cristiano recebe a visita de uma colega, com quem planeja se divertir, com a
participação de seus dois amigos sem que ela saiba. Quando a moça percebe o que está
acontecendo ela recusa, mas é estuprada pelos rapazes. O uso da força extrapola os
limites e a moça fica inconsciente. Neste ínterim, a mãe de Cristiano chega à sua casa e
ele tenta impedir que a mãe suba até o quarto. Surpreendida no alto da escada por um
dos amigos de Cristiano a mãe cai da escada e quebra o pescoço.
A princípio Cristiano fica extremamente abalado pela morte da mãe, mas
passado poucos minutos se recompõem e diz: “Já passou, passou...”. A preocupação
dos garotos agora é se livrar dos corpos, apagarem todos os vestígios do crime e ainda
terem tempo para ir a uma festa. A solução encontrada por eles é levar os corpos para o
lixão e queimá-los. Depois de atearem fogo na garota, descobrem que ela ainda estava
viva, resolvem então matá-la com pauladas na cabeça. O responsável pelo lixão aparece,
questiona o que eles estavam fazendo àquela hora da noite e reprova o fogo e a
exposição ao perigo naquelas circunstâncias. Também acaba morto pelos jovens que
têm mais uma “brilhante” idéia: forjar um estupro do homem com a e de Cristiano.
Tentam masturbar o morto, para dar credibilidade à farsa. O filme não para de chocar
25
um só instante. Os três, num último ato de desespero telefonam para seus pais e
recebem conselhos destes, ninguém fica indignado com a atitude dos rapazes.
O que mais surpreende no filme, além da bizarrice da história, são os
depoimentos verídicos e estarrecedores dos jovens entrevistados nas ruas de São Paulo,
que aparece como suplemento no final do filme. Muitos compartilham das decisões dos
personagens e têm soluções ainda mais pitorescas para que eles possam sair daquela
confusão criada. O choque é maior ainda que agora nos deparamos com jovens que
estão ao nosso lado. O que é realidade e o que fantasia misturam-se sem pudor algum.
Como explicitado no filme o conflito ético entre o coletivo e o individual, o
público e o privado é marco de nosso tempo. Esse distanciamento dos preceitos éticos
de convivência é que anuncia o ambientalismo como utopia. O dever moral e ético
aguça-se por meio da discussão ambientalista que alimenta a utopia contemporânea e
faz o contraponto ao ambiente distópico da relativização da ética individualista. Existem
várias maneiras e sugestões de ações humanas para a constituição de novos hábitos e
comportamentos ligados diretamente à questão ambiental. As discussões sobre o
desenvolvimento sustentável vão desde as questões macro-sociais até interferir no
cotidiano das pessoas. Essa mudança implica na pressão pela adoção de novos hábitos
sustentáveis que são corriqueiramente divulgados pelas mídias ou por especialistas da
área ambiental, tais como: a diminuição do uso de automóveis, utilizar construções com
energia renováveis, como por exemplo, o aquecimento solar e sistemas de captação de
água, criar o hábito da separação do lixo para reciclagem, adotar dietas e promover o
uso de recursos renováveis em bases sustentáveis. No entanto, seria ingenuidade colocar
esses hábitos como fatos concretos, devido às desigualdades de classe, gênero, sociais e
econômicas mundo afora. Tendo em vista que as pessoas têm demonstrado dificuldades
em elaborar regras mínimas de convivência no cotidiano, isso ainda é uma utopia.
Segundo o Relatório Brundtland (1987)
6
, uma série de medidas deve ser tomada
pelos Estados nacionais: a) limitação do crescimento populacional; b) garantia de
6
Relatório Nosso Futuro Comum, ou Relatório Brundtland: Produzido em 1987 pela Comissão
Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento, teve como uma de suas principais recomendações a
realização de uma conferência mundial para direcionar os assuntos ambientais o que culminou com a
Rio-92. Nesse relatório foi cunhada a clássica definição de desenvolvimento sustentável: o
desenvolvimento que atende às necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade de as
26
alimentação em longo prazo; c) preservação da biodiversidade e dos ecossistemas; d)
diminuição do consumo de energia e desenvolvimento de tecnologias que admitem o
uso de fontes energéticas renováveis; e) aumento da produção industrial nos países não-
industrializados à base de tecnologias ecologicamente adaptadas; f) controle da
urbanização selvagem e integração entre campo e cidades menores; g) as necessidades
básicas devem ser satisfeitas. Em âmbito internacional, as metas propostas pelo
Relatório são as seguintes: a) as organizações do desenvolvimento devem adotar a
estratégia de desenvolvimento sustentável; b) a comunidade internacional deve proteger
os ecossistemas supranacionais como a Antártica, os oceanos, o espaço; c) guerras
devem ser banidas; d) a ONU deve implantar um programa de desenvolvimento
sustentável.
Como podemos perceber, todas essas medidas pertinentes à sustentabilidade têm
como pano de fundo comum a ética universalizante do compromisso com o planeta.
Esse é o caminho mais adequado para vislumbrar a realização da utopia. É a nossa
incerteza que nos leva mais perto da realidade, muito mais do que anteriormente quando
se tinha no absoluto. Somente quando estivermos completamente conscientes do
âmbito limitado de cada ponto-de-vista, estaremos a caminho da almejada compreensão
do todo. Não existiria uma síntese absoluta e permanente, essa deveria sempre ser
reformulada de tempos em tempos. A incerteza pode ser paralisante e inativa,
entretanto, pode ser incentivo ao questionamento. Ao mesmo tempo em que ela é
inativa (paralisa), é também enativa (aciona) num processo contínuo de ligar, desligar e
religar.
Os tempos modernos inauguraram a ética planetária. Kant propõe uma ética
universalizada e nesta existia um horizonte utópico quando postulava a paz perpétua.
A obra de Kant é um culto a uma ordem internacional não violenta. É uma obra de
reflexão filosófica sobre as relações internacionais da época, um importante texto sobre
filosofia política. O objetivo da obra kantiana foi o de trazer uma meta a ser atingida por
meio do respeito e do exercício dos princípios e normas estabelecidas nesse fictício
tratado de paz. Essa proposta de uma ordem internacional não violenta deve ser
futuras gerações terem suas próprias necessidades atendidas. O documento ficou conhecido pelo nome de
Relatório Brundtland, já que a Comissão era presidida por Gro Harlem Brundtland, então primeira-
ministra da Noruega.
27
entendida no sentido da necessidade de se estruturar um pacifismo jurídico, baseado no
seu ideal de liberdade.
A partir de Kant, o ser humano conquista uma autonomia contrária às
imposições da teologia medieval. Agora, os imperativos morais passam a ser
controlados e estipulados pela racionalidade humana, acompanhada pelas noções
políticas e filosóficas idealistas de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.
O que Kant não esperava era que o desenvolvimento da ciência e da técnica
imporia uma racionalidade instrumental, a tal ponto, que faria crescer as especializações
e estruturação das burocracias. Ciências e técnicas colocam atualmente problemas éticos
que elas mesmas não sabem como resolver.
Max Weber procurou problematizar essa questão da racionalização promovida
pela ciência e pela técnica. Weber faz uma crítica à concepção positivista de ciência e
ao estilo de vida que daí emerge: a era da calculabilidade, este processo através do qual
todos os agentes tendem a se tornar racionais, o que apresenta como conseqüência a
irracionalidade da totalidade social. Para Weber, o progresso da ciência teria despojado
a magia do mundo e o desencantou. Por outro lado, segundo Weber, um tipo de
contribuição que a ciência pode fornecer, ou seja, fornecer conceitos e juízos que
permitem ordenar a realidade empírica de modo válido.
Para elucidar a relação que Weber estabelece entre ciência e verdade, bem como
entre racionalização e desencantamento, pode ser significativo o recurso ao romance de
Milan Kundera. Na obra “A Insustentável Leveza do Ser” (1983) Kundera relata a
angústia vivida pelo moderno Tomas, quando se torturava frente à necessidade de
decidir o futuro de sua vida. É somente no mundo moderno que os indivíduos se sentem
capazes de decidir o futuro de suas vidas e este é um problema, pois num mundo
dessacralizado e desencantado, no qual pouco se acredita em profetas ou salvadores,
nunca se sabe aquilo que se deve querer, pois “só se tem uma vida e não se pode nem
compará-la com as vidas anteriores e nem corrigi-la nas vidas posteriores.” Neste
caso, abandonado à sua própria individualidade, num mundo em que as pessoas vivem
cada vez mais próximas e, ao mesmo tempo, cada vez mais isoladas, num mundo
crescentemente individualista e desprovido de encantos, o sujeito individual
28
experimenta a outra face da liberdade e se sente fragilizado. Nesta circunstância é que
Kundera entende a angústia de seu personagem Tomas:
‘“...não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe
termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como
se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a
vida se o primeiro ensaio da vida é a própria vida? É isso que faz com que a
vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo ‘esboço’ não é a palavra
certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de
um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é esboço de nada, é
um esboço sem quadro.” (KUNDERA, 1983:14)
O objetivo de Milan Kundera parece ser o de filosofar sobre situações concretas e
a partir daí extrair a abstração necessária. O próprio título já é um prenúncio do que será
lido. Ele chega a questionar a Bíblia em um determinado trecho, mas o tema principal se
concentra em torno de dois conceitos: o do peso e o da leveza. A leveza de Tomas, que
vive a vida de forma arbitrária, uma leveza que esta fadada ao vazio de não viver em
plenitude. Do outro lado está o peso de Teresa, que enxerga a vida com certo amargor,
como uma cruz a ser carregada, mas que lhe impossibilita de vivenciá-la com mais
intensidade, contraste que diz respeito ao episódio que ficou conhecido como
"Primavera de Praga", quando os soviéticos invadiram a Tchecoslováquia no final da
década de 60. O autor tece um enredo altamente sensual e conflituoso como uma
espécie de analogia ao que ocorria no país. Essa obra pode ser considerada uma
referência importante no sentido de propor uma ética na busca pela construção de uma
nova utopia. Assim como o contraste entre leveza e peso presente no livro de Kundera,
também estamos hoje inseridos na dialógica razão/emoção, realidade/sonho,
objetividade/subjetividade, ordem/desordem.
Com o desenvolvimento da ciência e da técnica, nasceu a utopia do
desenvolvimento, do progresso e da riqueza material. Colocamo-nos como sujeitos e
motor que faz girar a roda da História. Vimo-nos como seres históricos com capacidade
de transformar a realidade e produzir cultura. O mundo enquanto “mundo” somente
existe com referência à mente que conhece, e a atividade mental do sujeito cria
representações da forma pela qual o mundo aparece.
29
No início do século XIX, surgiu a utopia positivista que partia da crença de que
a ciência seria o caminho natural para o fim da escassez de alimentos, o combate à fome
e à pobreza, assim como o fim das guerras e a possibilidade real de criação de um
mundo novo. Baseado nessa perspectiva positivista, os ideais não se encaminhariam
para um fim único. Para os inumeráveis utopistas do século XIX e do começo do século
XX, a Idade de Ouro não se situava no passado, mas sim no futuro. Liberais e
socialistas acreditavam no fim da História, no sentido de progressão desta até chegar
num Estado idealizado, mas por caminhos diferentes. Ambos são oriundos do projeto
positivista. Dessa forma, os positivistas são os grandes mentores intelectuais das utopias
da Modernidade, influenciaram e inspiraram os engenheiros sociais utópicos.
O projeto da modernidade estava embasado em dois pilares: o pilar da regulação
e o pilar da emancipação. O pilar da regulação tem por estrutura o Estado contratualista,
articulado por meio do pensamento hobbesiano; o princípio do mercado, segundo os
preceitos de Locke e por fim, o princípio de comunidade, amparado nas posições de
Rousseau. Já o pilar da emancipação foi constituído pelo seguinte tripé lógico de
racionalidades: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a
racionalidade moral-prática da ética e do direito; e a racionalidade cognitivo-
instrumental da ciência e da técnica.
A esperança e a expectativa dos pensadores iluministas eram uma amarga e
irônica ilusão. O desenvolvimento da racionalidade proposital-instrumental não leva à
realização concreta da liberdade universal, mas à criação de uma “jaula de ferro” no
sentido weberiano - da racionalidade burocrática da qual não há como escapar.
O desenvolvimento deve assegurar o progresso, o qual deve assegurar o
desenvolvimento, mas o mito do desenvolvimento determinou a crença de que era
preciso sacrificar tudo por ele. A idéia de desenvolvimento foi e é cega perante as
riquezas culturais das sociedades arcaicas ou tradicionais, vistas unicamente através das
lunetas economicistas e quantitativas. O desenvolvimento da nossa civilização produziu
maravilhas, mas trouxe também a atomização dos indivíduos, que perdem as
solidariedades antigas sem adquirirem novas, a não ser as anônimas e administrativas. O
espírito da competição e de sucesso desenvolve o egoísmo e dissolve a solidariedade.
30
O romance Frankenstein ou o Moderno Prometeu (Frankenstein; or the Modern
Prometheus, no original em inglês de 1818), mais conhecido simplesmente por
Frankenstein, pode ilustrar essa situação. É um romance de terror gótico com
inspirações no movimento romântico, de autoria de Mary Shelley, escritora britânica
nascida em Londres. Relata a história de Victor Frankenstein, um estudante de ciências
naturais que constrói um monstro em seu laboratório, que é tomado pela ânsia de
alcançar a glória através da ciência. Em sua busca científica, desenvolve interesse pela
física, pela química e, combinando ambas as formações, procura descobrir a origem do
princípio vital latente em todas as coisas vivas. Descobrir, nesse sentido, significava
poder dominar tal princípio e dar-lhe uma finalidade. Para ele, tal finalidade era “banir
a doença do coração humano, tornando o homem invulnerável a todas as mortes, salvo
a provocada pela violência...”; assim, ele “seria o criador de uma nova espécie, seres
felizes, puros...” que lhe deveriam a própria existência (SHELLEY, 2001: 41-56).
A tragédia de Frankenstein contada por Mary Shelley não deixa de manifestar
certos incômodos com a forma que as elites governantes tratavam a questão social na
época. A arrogância social, a afetação nas afeições e a falta de solidariedade constroem
seus próprios monstros sociais, que são jogados “para o nada social” ou “para o mal”.
Nesse sentido, não é uma condenação moralista religiosa contra o saber médico-
científico que Mary Shelley nos apresenta, mas uma provocação romântico-humanista
que pretende lembrar que o homem, em sua ânsia de tentar aperfeiçoar a si mesmo e o
seu mundo, não pode perder a sensibilidade, o que significa equilibrar de modo
inclusivo as relações entre meios e fins.
A utopia da época das Luzes é a utopia dos direitos do homem, da liberdade, da
igualdade entre todos e da fraternidade; a legitimidade da cidadania e da busca da
felicidade. Os valores com base nos direitos era o projeto da utopia iluminista, um
projeto de desenvolvimento das aptidões individuais e de libertação das antigas
sujeições. Agora o homem faria seu próprio destino. Uma sociedade em que todos são
livres e buscam o seu desenvolvimento. As várias invenções tecnológicas e o progresso
material que marcaram a Modernidade transformaram o cotidiano e visão de mundo das
pessoas, alterando os seus horizontes mentais. Aquele pensamento estático de que um
ano será igual ao outro, sem maiores transformações significativas no quadro
31
existencial, deu lugar à idéia de que a humanidade sempre estaria gradativamente
caminhando rumo à perfeição.
Com as grandes transformações sociais promovidas pela Revolução Industrial e
Francesa, além da herança iluminista e com o avanço e superação das crises enfrentadas
pelo sistema capitalista ao longo do processo histórico da Modernidade, chegamos hoje
a um período histórico do capitalismo liberal em que a ética se individualiza a tal ponto
que cunhamos deselegantes frases que podem ser considerados chavões: “minhas
ações dizem respeito a mim”, “o que você tem a ver com a minha vida?”, “cada um
cuida do que é seu” etc. Desenvolvemos o que hoje é chamado de individualismo.
Somos os condutores de nossa própria vida, fazemos o nosso destino e seguimos as
diretrizes básicas da meritocracia, segundo a qual o bem-sucedido merece seu sucesso;
logo, os derrotados merecem seu fracasso. Esse tipo de comportamento egocêntrico
mina os laços de solidariedade “naturalmente” construídos. Nesse sentido, pode-se dizer
que uma crise de fundamentos? Parece haver uma crise ética dos juízos universais e
como conseqüência, ocorre a crise de fundamentos em outros setores da vida. uma
crise geral dos fundamentos da certeza que leva junto com ela os preceitos éticos.
Existem valores universais? Onde estão as normas? Deus realmente está morto, como
dizia Nietzsche?
O desenvolvimento do individualismo conduz ao niilismo. Mas o niilismo é
ruim? O niilismo é angustiante? No sentido negativo, o niilismo ameaça à sociedade, na
qual eu não reconheceria outros valores que não fossem meus próprios desejos, esse é o
único valor que guiaria o indivíduo. Por outro lado, alguns autores identificam o
niilismo reativo. Gianni Vattimo, filósofo italiano afirma que devemos ser
suficientemente niilistas para viver até o fim a experiência da liberdade. Analisa a
dissolução dos pontos de vista centrais do mundo moderno, relacionando o niilismo e o
pós moderno na sociedade contemporânea. Ao estabelecer a conexão entre Nietzsche,
Heidegger e o pós modernismo, Vattimo constrói o que ele chama de filosofias da
diferença, baseadas na fragmentação e na multiplicidade, cuja finalidade é a
reconstrução filosófica do sentido do homem e do mundo.
Sendo um dos expoentes do pós modernismo, Vattimo difere dos nostálgicos
porque prioriza o mundo da intersubjetividade ao invés de um mundo puramente
32
objetivo. No princípio da realidade, impera o princípio da autoridade e a ideologia
ganha o status de verdade única, enquanto que numa sociedade democrática o único
conflito possível é o conflito de interpretação. E para esse tipo de sociedade que
Vattimo confia estarmos nos encaminhando. Por isso a ética hermenêutica é ressaltada
em sua obra, pois ela é marcada pela dissolução do princípio de realidade diante dos
conflitos existentes no conturbado mundo tecnológico. São horizontes que a época da
imagem do mundo traz consigo.
Segundo Vattimo, devemos pensar a filosofia da interpretação como o resultado
de um curso de eventos, como conclusão de uma história que podemos interpretar
nos termos niilistas. A história do Ser é feita de incidentes, de coisas que acontecem,
são os eventos. A verdade com a sua história é um desses eventos e o niilismo é a
superação da história. É isso o que significa o pós modernismo para Vattimo. O
niilismo seria, nesse sentido, interpretado como um destino do homem moderno.
Os signos do niilismo são a devastação da terra, o exílio do indivíduo, a
massificação, o totalitarismo e a fuga dos deuses. Mas esse niilismo poderá resultar
numa via de salvação, isto é, o retorno à verdade esquecida, a mútua apropriação do
homem e do ser. Niilismo, nesse sentido, é o acontecimento da ontologia ocidental, o
percurso do progressivo esvaziamento das categorias filosóficas tradicionais e do
progressivo enfraquecimento da noção aristotélica-platônica do Ser. Mais que a verdade
como adequação descritiva, agora se fala de “fidelidade” a um Ser que é antes de tudo
evento, e a um sujeito que é antes de tudo diálogo.
Pensar a incerteza é, portanto, aproximar-se do niilismo e pode ser gerador de
angústia. No entanto, o niilismo pode ser motivador e o mesmo ocorre com a angústia.
Heidegger dizia que o homem inautêntico é o que se degrada vivendo de acordo com
verdades e normas dadas. Por outro lado, o homem autêntico é, de certa forma o homem
angustiado, que a angústia retira o homem do cotidiano e o reconduz ao encontro de
si mesmo. A angústia surge da tensão entre o que o homem é e aquilo que virá a ser,
como dono do seu próprio destino. Segundo Heidegger essa é dentre todos os
sentimentos e modos da existência humana, aquela que pode reconduzir o homem ao
encontro de sua totalidade como ser e juntar os pedaços a que é reduzido pela imersão
na monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana. Faria o homem elevar-se da traição
33
cometida contra si mesmo, quando se deixa dominar pelas mesquinharias do dia-a-dia,
até o autoconhecimento em sua dimensão mais profunda. A partir da apreensão da
angústia, o homem perceber-se-ia como um ser-para-morte, devido ao fato de intuir o
absurdo da existência. Quando isso ocorre, Heidegger afirma haver duas soluções, ou o
homem foge para a vida cotidiana, ou supera a angústia, manifestando seu poder de
transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo.
Em nossa época marcada pelo desenvolvimento tecnológico e pela realidade
virtual, esses filósofos ajudam a compreender os horizontes utópicos. É a partir desses
sentimentos e situações aparentemente caóticos que podemos recuperar os antigos
fundamentos comunitários e promover a religação ética. Não precisamos, nem
podemos, estar felizes permanentemente, sorridentes e distribuindo e retribuindo “está
tudo bem” a torto e a direito. Só existe horizonte utópico quando as coisas estão
nebulosas, é preciso aceitar – sem se acomodar - as incongruências da vida.
Caos é uma palavra muito mal compreendida. Para muitas pessoas, caos
significa apenas desordem. Curiosamente, da forma como é entendida na ciência
moderna, esse caos é um tipo de ordem, uma ordem instável em que as seqüências
periódicas são muito complexas. A Teoria do Caos
7
para a física e a matemática é a
hipótese que explica o funcionamento de sistemas complexos e dinâmicos. Uma
pequenina mudança no início de um evento qualquer pode trazer conseqüências
enormes e absolutamente desconhecidas no futuro. Ou seja, uma ação realizada por
alguém ou um animal hoje, trará uma resultado desconhecido amanhã.
7
Edward Lorenz (1917-2008) foi o cientista que desenvolveu “a teoria do caos” ao tentar explicar por
que é tão difícil fazer previsões meteorológicas. Para sustentar sua teoria, Lorenz usava o exemplo da
borboleta, cujo constante bater de asas poderia provocar tornados destruidores em lugares distantes do
ponto onde ela se encontra. Ao desenvolver modelos matemáticos meteorológicos nos primeiros anos da
década de 60, Lorenz disse que um sistema tão dinâmico como a atmosfera podia guardar enormes e
desconhecidas conseqüências. Essas conclusões abriram um novo campo de estudos, os quais, por sua
vez, abraçaram quase todos os ramos da ciência. No caso específico da meteorologia, revelaram que é
impossível prever o tempo com certo grau de precisão além de duas ou três semanas. Durante sua vida
profissional, o cientista recebeu vários prêmios, entre eles o Prêmio Crafoord, concedido pela Real
Academia de Ciências da Suécia. Em 1991, Lorenz também recebeu o Prêmio Kyoto para as ciências
planetárias e da Terra. Nessa ocasião, o comitê que lhe concedeu o prêmio disse que Lorenz "teve sua
mais ousada conquista científica ao descobrir o 'caos determinista", princípio que conduziu às "mudanças
mais dramáticas na visão humana da natureza" desde os tempos de Isaac Newton.
34
Assim como a utopia contém o caótico, o caótico também contém a utopia.
Pensar a utopia hoje significa pensar não mais num mundo perfeito e eternamente feliz,
mas pensar uma utopia complexa que lida com as incertezas, mas que finalmente
instaura o diálogo e o civismo.
O papel da ética na atualidade
Em seu livro Laranja Mecânica (2004), Anthony Burgess anunciava com
pessimismo um futuro sombrio, principalmente no que diz respeito à violência urbana.
A obra de Burgess é um retrato fiel do que acontece no mundo, nos guetos e favelas das
cidades industrializadas. Escrito em 1961 após o autor receber a notícia de que morreria
em menos de um ano por causa de um tumor no cérebro, o livro é ambientado em uma
Londres caótica e dominado por gangues de jovens. Alex, o narrador da história, é um
delinqüente juvenil que pensa em praticar atos de violência e fazer sexo. A
industrialização decadente das cidades e o crescente desemprego em massa servem
como pano de fundo para Burgess criar um ambiente compatível com os atos perversos
de seu narrador-personagem. Com outros três amigos tão dementes quanto ele próprio –
Pete, Georgie e Tosko, o mais imbecil e bobo –, Alex se diverte em fazer estripulias nas
madrugadas, brigando com grupos rivais e tomando uma espécie de leite aditivado na
“Leiteria Korova”. Filho único mais um indício dos tempos modernos que, na época
de feitura do livro, ainda estavam longe de chegar mente para os pais que trabalha nas
madrugadas frias da capital inglesa. Na verdade, Alex é um dominador que trata os
progenitores de forma rude. A liderança do jovem se faz presente também em sua
gangue, que segue fielmente as palavras do líder, que é sempre quem planeja as ações
do grupo. Porém os modos radicais de Alex começam a incomodar seus companheiros
de baderna, que resolvem dar uma lição no chefe, que acaba caindo em uma emboscada
e sendo preso. É aí que a trama começa a dar voltas e o quebra-cabeça de Burgess vai se
mostrando por inteiro. A cena de Alex sem saber o que fazer ao final da história, com
apenas 21 anos e sem rumo nem expectativa é uma ótima metáfora de nossos tempos.
Um mundo em que as oportunidades são, para muitos, invisíveis.
Obras como a de Anthony Burgess são importantes para nos alertar sobre nossas
condições apáticas e normalizadoras de uma sociedade que apresenta vários sinais de
barbárie. Precisamos recuperar a verdadeira ética, aquela que religa
35
indivíduo/sociedade/espécie em busca da solidariedade. Por isso faz-se necessária a
imaginação utópica e o ressurgimento da esperança para a reenergenização da ética.
A imaginação utópica nos faz sonhar com a harmonia geral ou com o paraíso na
terra, mas o seu construto embasado na amizade, afeição e fraternidade não pode ser
posto de lado nesse horizonte. Fraternidade é simultaneamente meio e fim. Tem um
significado antropológico universal. Civilizar a terra é uma finalidade inseparável da
precedente. A solidariedade, a amizade e o amor são a máxima religação antropológica
e são elas que nos dão a base estrutural e fundante da complexidade humana. O nível
mais alto desta formulação ética, e que dará o sustentáculo para a utopia, é sem dúvida o
amor, experiência fundamental da religação dos seres humanos. A emoção que, na
sociedade, funda uma sociedade senhora de todas as circunstâncias e detalhes é o amor.
Amar é existir, como se o amante e o amado estivessem sós no mundo. A relação
intersubjetiva do amor não é o início, mas a negação da sociedade.
No entanto, esse amor não pode se tornar incondicional a uma pessoa, um
regime ou um sistema. Temos vários exemplos disso em utopias que se tornaram
nefastas para a humanidade, entre elas ressalto o fascismo, o nazismo e demais utopias
que descambaram para os regimes totalitários. Quantos desvios individuais
inconscientes ocorreram, fruto da falta de clareza e da presença de imperativos morais
antagônicos. Muitos seguiram o caminho errado ao simpatizar com os regimes
totalitários por acreditar nas boas intenções e na ilusão de seus ideais morais.
É interessante notar como o cinema se apropriou dessa relação complexa dos
regimes totalitários com a vida humana e alguns cineastas tiveram a intenção de
parodiar e fazer humor com o tema e assumiram os riscos da polêmica e da crítica.
Filmes como “O Grande Ditador”, “Trem da Vida” ou “A Vida é Bela” tiveram a
genialidade de humanizar um tema tão duro quanto o fascismo e o nazismo. Isso gerou
muita repercussão, pois grande parte da opinião pública não admite que se “zombe”
com assunto tão sério. No entanto, entendo que esse método é uma espécie de catarse
muito interessante para lidar com tema tão espinhoso. O Humor e a Tragédia estão
muito ligados, isso é fato desde os gregos. Seria o riso o reflexo do medo? Ou será que
o humor é a válvula de escape para aliviar um sofrimento?
36
Como um filme que lide com o Holocausto, que irá resgatar lembranças de
milhões de vítimas e familiares, pode ser ético sem ser zombador, que tocam em
questões delicadas como o humor e as dores de muitas famílias? Diante do genocídio e
da carnificina provocada pelos regimes totalitários, os diretores optaram pelo humor,
como fuga à realidade, e busca de uma esperança. Mas não se trata de um humor
pastelão e enfadonho, mas um humor sutil e crítico, que repercute muito mais do que
mostrar uma estética da violência com o objetivo de chocar. O humor nesse sentido
promove a reflexão crítica. Portanto, esses filmes não podem ser considerados
comédias. Parece-me que o humor não escondeu a crueldade das utopias totalitárias.
Esses filmes não têm a finalidade de abordar o real, retratar efetivamente o que
aconteceu nos campos de concentração, porque, mesmo que tentassem, nunca
conseguiriam representar a crueldade em absoluto. Então, eles giram em torno de uma
fábula, através da qual passam alguma mensagem, mas de forma alegre, positiva e
esperançosa.
Charles Chaplin resume como ninguém o sentido dessa polêmica: "Um fato, por
exemplo, no qual sempre baseio meus filmes, consiste em fazer o meu público se
defrontar com ele, com alguém que se encontra numa situação ridícula ou embaraçosa.
Vocês repararam o que acontece quando um policial escorrega na rua e cai de
pernas para o ar? Todo mundo ri. Por quê? Porque o policial e seu cacetete encarnam
a autoridade. Imagine vocês, um capitalista cheio de orgulho, com uma cara solene,
bem vestido, com todos os atributos de um milionário; mesmo o mais inofensivo de nós,
teve a idéia de lhe puxar pela barba, mas se um homenzinho como eu puxar a barba
de um capitalista, o público desata a rir. Alguns acharão tal ato escandaloso e
revolucionário, mas 90% dos espectadores regozijam-se de ver a realização de seus
próprios desejos. O que importa num filme não é a realidade, mas o que dela possa
extrair a imaginação”.
No filme em branco e preto O Grande Ditador” (EUA, 1940), escrito, dirigido
e atuado por Charles Chaplin, quando o mundo enfrentava a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), a ascensão do nazismo e a "limpeza étnica", Chaplin interpreta dois
papéis: o de um barbeiro judeu (Carlitos, o vagabundo) e o do ditador Hynkel
(referência a Hitler). O filme faz uma sátira de Hitler, Göebbels, Mussolini e demais
autoritários em geral, e tem uma seqüência incrível em seu fim, quando Hynkel e o
37
barbeiro judeu são confundidos por sua semelhança física. Nesse momento, Chaplin faz
um discurso antinazista e conscientizador, que causou muita polêmica na época. É o
primeiro filme falado de Chaplin. Hynkel usa muito a fala (em seus discursos fala, fala e
não diz nada), o barbeiro judeu fala, mas ainda usa muito a pantomima. Por
curiosidade, algumas das melhores cenas do filme são mudas. Com medo de que o filme
pudesse causar polêmica antes mesmo de ser lançado, Chaplin resolveu ouvir as
opiniões de alguns membros da United Artists; mas parece que a única opinião que de
fato ouviu foi a do roteirista Garson Kanin, que disse que se em certa época, o pior vilão
e o maior comediante conhecidos se parecem, o se deveria pensar no assunto. Seria
inevitável o lançamento do filme. Lembre-se que desde 1937, Hitler havia proibido a
exibição dos filmes de Chaplin na Alemanha.
Chaplin passou dois anos estudando a vida de Hitler e segundo seu filho, quando
assistia filmes em que o ditador agradava crianças ou visitava doentes no hospital,
ficava indignado, dizia que Hitler era o maior comediante que ele havia visto. Depois
de pronto, o filme gerou muita polêmica, por seu discurso final
8
(antinazista), pelo qual
8
O discurso final do filme "O Grande Ditador"
"Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para
a felicidade do próximo - não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros?
Neste mundo espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.
O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a
alma dos homens, levantou no mundo as muralhas do ódio e tem-nos feito marchar a passo de ganso para
a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela.
A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos
céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do
que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e
doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.
A aviação e o rádio nos aproximou. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloqüente à
bondade do homem, um apelo à fraternidade universal, a união de todos nós. Neste mesmo instante a
minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora. Milhões de desesperados: homens, mulheres,
criancinhas, vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que podem me
ouvir eu digo: não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da
cobiça em agonia, da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que
odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo.
E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.
Soldados! Não vos entregueis a esses brutais, que vos desprezam, que vos escravizam, que
arregimentam vossas vidas, que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos. Que vos
fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como
gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão. Não sois máquina. Homens é que sois. E com o
amor da humanidade em vossas almas. Não odieis. odeiam os que não se fazem amar, os que não se
fazem amar e os inumanos.
Soldados! Não batalheis pela escravidão. Lutai pela liberdade. No décimo sétimo capítulo de São
Lucas está escrito que o reino de Deus está dentro do homem - não de um só homem ou grupo de homens,
mas de todos os homens. Está em vós. Vós, o povo, tendes o poder - o poder de criar máquinas; o poder
de criar felicidade. Vós o povo tendes o poder de tornar esta vida livre e bela, de fazê-la uma aventura
maravilhosa. Portanto - em nome da democracia - usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos
38
Chaplin foi considerado comunista. O filme foi proibido em alguns países e demorou
um pouco a ser lançado em outros. Chaplin foi atacado e perseguido pelos americanos
anti-comunistas por ter sido considerado comunista. Um tempo depois, acabou
retirando-se dos EUA.
O caminho da vida, de liberdade e beleza sofreu desvios causados pelo homem.
Para Chaplin criamos um mundo da técnica e da ciência, mas também criamos a miséria
e a ganância em abundância. Aceleramos tanto a velocidade que mal nos sobra tempo
para sentir. Afirma que mais do que máquinas precisamos de humanidade. Mais do que
inteligência, precisamos de afeição, virtudes imprescindíveis na utopia de Charles
Chaplin.
apontava no seu discurso, para o desenvolvimento dos meios de transporte e
dos meios de comunicação que nos aproximavam uns dos outros, o que muitos chamam
hoje de aldeia global. Enquanto ditadores cairão, a liberdade jamais perecerá. Essa é a
mensagem otimista de Chaplin. Lutar por um mundo novo que assegure trabalho, futuro
e segurança na velhice são suas palavras de ordem. Lutar para libertar o mundo, abolir
as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. A ciência e o
progresso a serviço da razão na busca pela felicidade humana. Enfim, a utopia de
Chaplin entende que o ser humano estaria por adentrar um mundo novo, um mundo
melhor em que os homens estariam acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Sua
despedida de Carlitos foi perfeita: o Vagabundo nos deixou não apenas com um riso
estampado nos lábios. Deixou, também, uma reflexão em nossas mentes.
por um mundo novo, um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade
e segurança à velhice.
É pela promessa de tais coisas que desalmados m subido ao poder. Mas, mistificam. Não
cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão. Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo.
Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e a
prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à
ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos.
Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos. Vês, Hannah? O sol vai
rompendo as nuvens que se dispersam. Estamos saindo da treva para a luz. Vamos entrando num mundo
novo - um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os
olhos, Hannah. A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da
esperança. Ergue os olhos, Hannah. Ergue os olhos."
39
Outro filme interessante que mistura humor com tragédia e aponta para a
construção utópica diante de uma situação caótica é Trem da Vida”, (HOL/BEL/FRA,
1998), escrito e dirigido por Radu Mihaileanu. Radu é judeu e filho de um deportado.
Percebeu que não dava mais para discutir o Holocausto daquela forma tradicional. Foi aí
então, que começou a entrevistar diversas pessoas chegou à conclusão de que a
imaginação delas foi o que sobreviveu ao horror. Havia até os que diziam que o espírito
humano, em condições de muita tensão, tem a capacidade de deixar o corpo por um
tempo e viajar com sua imaginação. Então, Radu decidiu fazer uma fábula, cuja história
é contada por um louco e entregue à imaginação e aos sonhos deste.
A história do filme se passa em 1941, na Segunda Guerra Mundial, num
pequeno vilarejo judeu da Europa Oriental. O louco da aldeia a notícia de que o
exército alemão e os nazistas estão chegando, e ele mesmo sugere que, como solução,
forjem um trem de deportados, que eles comprem um trem e se passem por nazistas
carregando prisioneiros para campos de concentração, sendo eles próprios os judeus,
maquinistas e nazistas. Os habitantes do lugar sem saber o que fazer resolvem adotar a
idéia do louco da aldeia Schlomo, o povo acha tudo genial. Então por incrível que
pareça começa a mais bizarra fuga que se viu nas telas. Ir de trem até a Rússia
passando por um sem número de postos nazistas. Tudo recheado com um humor,
digamos, tipicamente judeu. No filme, o nazismo não é tratado de forma tão
aterrorizante. Todos sabem que os nazistas perseguiam os judeus, fala-se isso no filme,
mas toda vez que os nazistas de verdade aparecem, eles são facilmente enganados pelos
"espertos e alegres judeus".
Na cena em que o louco chega à aldeia para dar o aviso de que os nazistas estão
chegando, ele corre por entre as árvores, segue uma trilha na aldeia, gritando pelo Rabi.
Ele se joga no chão e junto com Rabi saem correndo e gritando, para avisar os outros. A
cena é colorida e acompanhada por uma trilha sonora que se molda à ação, e nela tem
um tipo de suspiro, como se fosse o suspiro do louco correndo. Outra sequência que
vale a pena destacar é quando os judeus fogem dos seus próprios amigos que se fingem
de nazistas. O Rabi avisa o comandante do trem. A sequência é colorida, a câmera
mostra os judeus fugindo de vários ângulos, por trás, pela frente, pelo lado. Eles
procuram os judeus com cachorros farejadores (inclusive entre eles um cão filhote,
sendo carregado no colo). O alfaiate fica para trás, quebra os óculos e uma câmera
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subjetiva mostra sua visão embaçada, confundindo os nazistas de verdade com os
nazistas de mentira. É capturado pelos nazistas de verdade e os de mentira vão até a
prisão, mostram segurança e autoridade, enfrentam os nazistas de verdade e resgatam o
alfaiate.
Na última seqüência do filme, quando os judeus deverão ultrapassar a fronteira
para a liberdade, a cena mostra apenas o trilho do trem e este no meio de um campo.
Eles param o trem e começam a procurar a fronteira, angustiados. Começam a cair
bombas, todos ficam apavorados, é quando o louco diz que com fogos de ambos os
lados, eles estão na linha de frente. Todos ficam muito contentes e o trem volta a andar.
As bombas passam pela câmera, caem ao lado do trem. Até não se tinha trilha, a
partir daí começa a tocar uma alegre música judia. Nesse momento entra a narração em
off do louco, como no começo do filme. Em seguida ele aparece num campo de
concentração, negando a história do filme, dizendo que ela é quase verdadeira. Sua
imagem é congelada e ele começa a cantar uma música em off sobre o seu shtetl
9
.
O filme “A Vida é Bela” (ITA, 1997) do diretor italiano Roberto Benigni,
levantou grande polêmica com essa mistura tragi-cômica. Havia quem o analisava como
comédia; outros, como farsa ou negação da realidade. Mas entendo que se trata de um
filme muito sensível sobre o Holocausto, que nos faz perceber o drama de um ponto de
vista subjetivo, com alma e não simplesmente com os olhos. O filme pode ser dividido
em duas partes muito bem definidas: a luta de Guido (também vivido pelo diretor
Benigni) para conquistar seu amor Dora (interpretada por Braschi, mulher de Benigni na
vida real), na primeira parte, e a luta pela sobrevivência de sua família durante a
Segunda Guerra Mundial, na segunda metade do filme. Guido é o típico imigrante,
sonhador e empenhado em suas decisões, vindo do campo para a cidade. Conhece Dora
e se apaixona depois de diversos encontros casuais, sempre com troca de flertes.
Ficamos sabendo que Guido é judeu no final dessa primeira parte, algo que acentuou
ainda mais o romance entre ele e a italiana Dora, que era um estrangeiro. Essa
primeira parte se passa no ano de 1939, antes da guerra explodir e os judeus serem
caçados pelas tropas nazistas.
9
Shtetl (plural: shtetelech, de ídiche: cidadezinha) é o nome ídiche das cidades judaicas na Europa
oriental (Polônia, Rússia, Belarus etc.). As shtetlech foram formadas pela política antisemita da Rússia no
século XIX. Shetetl são aldeias judaicas na Europa oriental.
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Na segunda metade, o drama é muito mais intenso. Localizado ainda na Itália,
com a duração do período da Segunda Grande Guerra, Guido e seu filho Giosué são
levados para um campo de concentração nazista. Guido tenta, de todas as maneiras
possíveis, proteger seu filho de seis anos de tudo o que está acontecendo ao redor. Ele
inventa uma história, uma fantasia, para que seu filho acredite que tudo o que está
acontecendo é apenas um jogo, como numa espécie de gincana, protegendo-o de toda a
maldade que ronda a guerra. Tudo é uma fantasia, todas as cenas têm dois significados:
o real e o inventado por Guido. Ele tem por objetivo salvar a vida de seu filho que,
mesmo sobrevivendo, jamais se livraria da situação traumática causada pelos campos de
concentração nazista. O pai explica para o filho a situação vivida por ambos de um
modo que o filho passe a vê-la de maneira inteiramente diferente. A preocupação do pai
é salvaguardar a alma do menino, não seu corpo físico. Portanto, embora o humor
esteja presente no filme, seu maior destaque é a ternura e o amor de um pai para com
seu filho e, quem sabe, da humanidade para consigo própria. Como disse Begnini: "um
hino ao fato de sermos condenados a amar poeticamente a vida porque ela é bela".
O que esses dois últimos filmes têm em comum? Eles trazem o contraste entre a
vontade de ser feliz e a monstruosidade dos acontecimentos que circundam os
personagens. Esses exemplos são importantes para reforçar a esperança ao invés de nos
afundarmos em cenas tristes e lamentáveis. Sempre nas profundezas a esperança de
dias melhores. Toda distopia contém em si o alimento para a construção utópica de um
futuro melhor.
Podemos afirmar com isso que não há certeza nas utopias. Embora elas ilustrem
os horizontes e alimente o imaginário, não podemos afirmar que a realização de nossos
ideais morais se concretizarão. O totalitarismo foi prova disso. Começou como uma
utopia e terminou como ditadura. Utopias são construídas e desconstruídas pela
realidade, nascem e morrem a todo tempo, mas são imprescindíveis para a constituição
da ética humana. Por mais que desejemos pensá-las a longo prazo, é impossível prevê-
las. As condições históricas de cada época são imprevisíveis, os caminhos se constroem
gradativamente, a curto prazo, é impossível prever seus efeitos.
42
Em outros tempos havia maior clareza sobre o real significado da utopia, ela era
impreterivelmente geral. Mas com o advento da Modernidade, do capitalismo, da
técnica e das ciências, ganha força os desejos particulares e individuais. Ganhamos um
problema a mais: sacrificar o bem geral em proveito do particular, ou sacrificar o bem
particular para benefício geral? Esse bem geral é uma boa causa? Acredito nele? Qual é
o risco de estar enganado? Esse bem geral traz emancipação da humanidade ou
submissão desta?
Hoje, um resgate das preocupações do bem geral em detrimento das vontades
particulares. É por isso que as utopias gerais emergem com força neste século. A nossa
preocupação em relação às gerações futuras cresce gradativamente. Trataremos mais
adiante desta constatação com o “Princípio Responsabilidade” de Hans Jonas, cuja
proposta é a maximização do conhecimento das conseqüências de todos os nossos
agires. Temos o péssimo hábito de pensar nas coisas imediatistas e resultados rápidos
para situar os nossos deveres éticos na longa duração. A lógica de mercado de lucros
imediatos e competitividade acirrada moldam nosso comportamento e enfraquece a
ética de longa duração. Como viver sempre em estado de urgência? Onde fica o espaço
para pavimentar o caminho da longevidade? As coisas simples, prazerosas e essenciais
da vida ficam submetidas ao julgo da instantaneidade.
“Corpo esguio e adequação ao movimento, roupa leve e tênis, telefones
celulares (inventados para o uso dos nômades que têm de estar ‘constantemente
em contato’), pertences portáteis ou descartáveis são os principais objetos
culturais da era da instantaneidade.” (BAUMAN, 2001:149)
A quase-instantaneidade do tempo do software anuncia a desvalorização do
espaço. A instantaneidade significa realização imediata, “no ato” mas também
exaustão e desaparecimento do interesse. Anulação da resistência do espaço e
liquefação da materialidade dos objetos. Uma escolha racional na era da instantaneidade
significa buscar a gratificação evitando as conseqüências, e particularmente as
responsabilidades que essas conseqüências podem implicar. Viver tudo de forma
instantânea pode ser desastroso, isso é ainda mais evidente quando analisamos sob essa
perspectiva os problemas ambientais recorrentes. Os indivíduos vivem o dia-a-dia,
consomem o presente, deixam-se fascinar por mil futilidades, e nesse mundo de
43
superficialidade não mais se compreendem. Incapazes de se manterem num lugar,
atiram-se em todos os sentidos e em todas as direções.
Os desvios éticos têm sua origem na falta de um senso crítico e da aquisição de
um conhecimento pertinente, isto é, nas dificuldades do auto-conhecimento e da auto-
análise crítica. Nesse sentido, é necessário localizar a utopia fora da lógica da certeza, já
que devido às revoluções tecnológicas, ao avanço dos meios de comunicação de massa e
à abundância de informações, o atual momento é muito instável e incerto. Pensar com
todos os antagonismos, as incertezas, as pluralidades, é que a utopia vai se posicionar
na Contemporaneidade. O imaginário utópico continua ativo no ser humano, o que
mudam são as formas de realização deste.
Essa nova ética nos posiciona de uma maneira mais coerente para compreender
que não está decretado o fim das utopias, pelo contrário, essa nova ética sugere que
muitos novos horizontes utópicos estão se abrindo. Com a ética complexa deixamos de
ver apenas o imediato, não nos esquecemos do passado e conseguimos vislumbrar um
futuro a longo prazo, imaginando um todo com elementos solidários além de recuperar
o binômio ético solidariedade/responsabilidade. Hoje, mais do que nunca, com as crises
sociais, políticas e econômicas que assolam cada canto do planeta, integrar as partes
com o todo, estabelecer a relação local/global e inscrever o presente na relação circular
passado, presente e futuro, são os novos imperativos morais de nosso momento
histórico. Com esse caminho pavimentado podemos regenerar os horizontes utópicos.
Um novo horizonte utópico e um novo paradigma
A partir do século XVIII, trocamos os dogmas da Igreja Católica pelos
“dogmas” da ciência moderna e o conhecimento científico sistemático e metódico
passou a ser o conhecimento política e academicamente aceito. O mundo da ciência e da
técnica é o que vigora e impera. Com a tendência de ignorar a subjetividade humana e
impulsionar as perspectivas deterministas e reducionistas das explicações causais. Hoje
não é possível afirmar que o homem esteja plenamente realizado diante da montagem
técnica e racional que cobre todos os espaços da vida. Além dos regimes políticos e
econômicos que escravizaram o homem ao longo da História, agora é a vez das
exigências técnicas da civilização cibernética e racionalizada.
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Contudo, na gênese da era científica instaura-se um novo horizonte utópico.
Francis Bacon (1561-1623) inaugurou a crença na utilização da ciência para o bem geral
da sociedade. Em 1624, Bacon havia publicado A Nova Atlântida, espécie de utopia em
que o governo da ilha fictícia de Bensalem cabia aos sábios (meio sacerdotes, meio
cientistas), que compunham a “Casa de Salomão”. Nova Atlântida, obra inacabada de
Bacon, é o que muitos considerariam uma utopia, uma sociedade na qual o
conhecimento científico é o responsável pela felicidade de seus cidadãos. Em Nova
Atlântida a ciência não é uma obra individual, como seria praticada por Isaac Newton;
pelo contrário, ela exige um exército de pesquisadores cujo conhecimento científico
seria gerado não por cientistas com habilidades extraordinárias, mas pelas atividades
cooperativas de pessoas que cultivaram qualidades como independência de julgamento e
liberdade de pensamento no qual o compromisso com a pesquisa empírica não é
subordinado a posições religiosas ou metafísicas previamente assumidas. A concepção
de um laboratório de pesquisa científica que Bacon desenvolve nesta utopia é a idéia de
ciência como um empreendimento cooperativo conduzido impessoal e metodicamente, e
animado pela intenção de trazer benefício material para a humanidade. O ideal
baconiano seria a “instalação do saber como dominação sobre a natureza” e a
dominação da natureza como útil para a melhoria do destino humano. Em suma, o
programa baconiano tem por objetivo a dominação da natureza por intermédio da
técnica científica e sua fórmula básica diz que “saber é poder”. Bacon, um dos
articuladores da noção de progresso que caracteriza a Modernidade ocidental mostra
que o poder de intervenção na natureza para explorar suas possibilidades é o melhor
caminho para o desenvolvimento. Baseado na história do desenvolvimento técnico,
defendeu a idéia de que o avanço do conhecimento científico depende do
desenvolvimento de instrumentos e da conjunção de esforços e colaboração de
diferentes grupos de trabalho. As preocupações de uma sociedade que aprendeu a amar
a ciência, anteviu Bacon, estariam concentradas mais nos domínios da técnica e da
ciência que em problemas econômicos e sociais. Propondo a observação isenta dos
preconceitos, afastando os ídolos, coletando dados e interpretando-os judiciosamente,
conduzindo experimentos para, com todo esse método, aprender os segredos da natureza
e sistematizar o que nela parece desordenado e irregular, Bacon estava convicto de que
havia inventado um método que levaria os homens para o seu verdadeiro apogeu.
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Estava posto o projeto de domínio total da natureza, num programa de pesquisas
extremamente atual: prolongar a vida, devolver a juventude, mitigar a dor, curar
doenças incuráveis, criar instrumentos de destruição (armas, veneno), acelerar a
germinação, fabricar "compostos ricos" para a terra, produzir alimentos novos, fabricar
novos fios e novos materiais, criar ilusões e maiores prazeres para os sentidos.
Bacon defendia que conhecimento era poder, e não somente “argumento ou
ornamento”. Divorciada da ciência e da filosofia, a política poderia se tornar destrutiva
e não construtiva. Para tanto, fazia-se necessário organizar a própria pesquisa, estimular
a comunicação e o intercâmbio dos pesquisadores em atividade e fornecer patrocínio
real ao avanço de idéias e experimentos. A Coroa britânica ouviu seus conselhos.
A utopia de Bacon ajudou a criar o mito do cientificismo e o mito do progresso.
A fé no progresso pode ser considerada uma ilusão, na medida em que nos leva a pensar
que o homem não é dono de seu destino e que os avanços científicos estariam, portanto,
desconexos da discussão ética. O progresso científico e tecnológico não levou em conta
suficientemente os interesses e necessidades humanas. A crença no progresso, uma
tradição moderna que advém do século XVIII, deixou um legado de crença num
processo evolutivo de melhora contínua para as futuras gerações. Isso pode ser um mito
perigoso e uma ilusão nociva, pois o progresso pode na verdade significar regresso.
Quando o conceito de progresso é aplicado à ética e à política, ele é uma ilusão
perigosa. O grande problema é que a ideologia do progresso se converteu em
acumulação capitalista e transformou a natureza em mera condição de produção, nos
levando a uma tragédia ambiental eminente. A doutrina do progresso também trouxe
consigo exclusão, concentração de renda e subdesenvolvimento, ou seja, maior
progresso não necessariamente significa melhora na qualidade de vida da maioria das
pessoas.
A ciência, no geral, chega mais perto da verdade do mundo que outros sistemas
de crença, e s temos testemunhado seu sucesso pragmático em aumentar o poder
humano. Mas, do ponto de vista ético, o conhecimento é neutro, desprovido de valor
pode tanto nos levar a realizações maravilhosas quanto atender a propósitos terríveis, a
experiência das Duas Guerras Mundiais do Século XX comprova isso. Mesmo que a
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tecnologia se desenvolva a ponto de levar o homem à imortalidade, as instituições e a
sociedade na qual vivemos não são imortais, um dia acabarão. Não se trata de voltarmos
a períodos pré-históricos de nossa existência, mas de por os avanços científicos e
tecnológicos a serviço dos seres humanos.
A produção da física matemática de Galileu e de Newton, abalou a imagem do
mundo que garantia aos seres humanos, criaturas divinas e filhos da terra um lugar
privilegiado. A partir de então o ser humano guarda para si seus sonhos, seus desejos e
seus anseios mais profundos. uma nítida separação entre ciência e religião na qual a
ciência moderna impõe a dissociação entre as realidades e os valores, entre universo das
ciências e o mundo humano. A expansão da racionalidade científica e da ideologia
cientificista a partir de meados do século XIX e sua expansão para o estudo da natureza
para o estudo da sociedade foram criando um ambiente intelectual cada vez mais hostil
ao pensamento utópico.
Foi somente no século XIX que a atividade de pesquisa científica se
profissionalizou e passou a integrar, como capital, o sistema de produção, conquistando
espaço crescente nas universidades, indústrias e governos. Petróleo, eletricidade, aço e
motor de explosão, setores industriais nos quais a pesquisa de cunho mais teórico se
mostrou de grande utilidade abriram os olhos da classe capitalista, em especial os das
corporações que surgiam frutos da concentração de capital. A esses grupos não
escaparia a percepção da importância da pesquisa como meio de estimular ainda mais a
acumulação de capital.
A tecnociência começava a servir ao capital empresarial fornecendo tecnologia e
maiores possibilidades de produtividade. Definitivamente qualquer dúvida de
neutralidade da ciência foi dissipada. Ela é engolida pelos interesses escusos do
capitalismo e, assim como na Idade Média a filosofia cristã fora totalmente distorcida
para atender aos interesses dos clérigos, ocorre, neste momento, o mesmo com a ciência
para atender aos interesses de capitalistas, multinacionais e do poder de Estado. A
ciência carrega, portanto, a ambivalência do conhecimento e da manipulação. Ela pode
ser útil para aperfeiçoar a vida material, biológica e até filosófica do ser humano, mas
também pode ser nefasta, no sentido de seu uso em decorrência de interesses políticos.
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Inspirado na discussão de Morin a propósito da complexidade de toda realidade
vivente, tomo como exemplo a distinção entre a máquina artificial e a máquina viva. A
máquina artificial cumpre programas, não tolera e não integra a desordem, enquanto a
chamada máquina viva e humana é capaz de estabelecer estratégias e lidar com o acaso
e com a incerteza. Parece que a máquina escravizada às necessidades humanas
escravizou ao mesmo tempo os humanos às suas necessidades mecânicas. O trabalhador
se transforma num mero apêndice da máquina artificial voltado a tarefas especializadas.
O filme “Tempos Modernos” (EUA, 1936) de Charles Chaplin satirizava a
industrialização e critica de forma irônica a implantação do modo taylorista nas
fábricas. Trata-se do último filme mudo de Chaplin, que focaliza a vida urbana nos
Estados Unidos nos anos 30, imediatamente após a crise de 1929, quando a depressão
atingiu toda sociedade norte-americana, levando grande parte da população ao
desemprego e à fome. A frase do início do filme resume sua idéia fundamental, uma
história sobre a indústria, a iniciativa privada e a cruzada da humanidade em busca da
felicidade. A figura central do filme é Carlitos, o personagem clássico de Chaplin que
ao conseguir emprego numa grande indústria transforma-se ocasinalmente em líder
grevista e conhece uma jovem pobre por quem se apaixona. O filme focaliza a vida na
sociedade industrial caracterizada pela produção com base no sistema de linha de
montagem fordista e especialização do trabalho. É uma crítica à “modernidade” e ao
capitalismo representado pelo modelo de industrialização, onde o operário é engolido
pelo poder do capital e perseguido por suas idéias “subversivas”. Alguns momentos do
filme, tais como o trabalho realizado na linha de produção em que Carlitos aperta
parafusos intermitentemente a ponto de literalmente “zerar” o seu cérebro, sem ao
menos ter mais o controle sobre os movimentos do seu corpo, ou quando a máquina o
“engole” e ele passa a ser parte de suas engrenagens representam um processo de
alienação radical. E podem ser consideradas algumas das cenas mais críticas do cinema
mundial. um controle total do trabalho por parte do capitalista. Além de ditar a
velocidade da produção, observa os trabalhadores até mesmo dentro do banheiro. Esse
controle se estende ainda mais com a utilização da “Máquina Alimentadora Bellows”
que tem por objetivo alimentar os empregados enquanto trabalham e eliminar assim os
“tempos mortos” da produção.
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Além da crítica à alienação do trabalho na linha de produção, o filme também
trata das desigualdades entre a vida dos pobres e das camadas mais abastadas, sem
representar, contudo, diferenças nas perspectivas de vida de cada grupo. Mostra ainda
que a mesma sociedade capitalista que explora o proletariado, alimenta todo conforto e
diversão burguesas.
A crítica de Chaplin ainda soa atual. Em uma sociedade marcada pela
complexidade na qual os indivíduos são regrados pelos segundos preciosos do relógio, a
lógica da máquina artificial passa a controlar todas as nossas atitudes com o intuito de
“objetivar metas”. Com isso, ela invade a vida cotidiana, controla viagens, consumo,
lazer, educação, serviços e restauração. Transforma todo o mundo numa grande linha de
produção cultural, social, intelectual etc. Reduzir tudo ao quantificável produziu a
cegueira sobre a nossa condição humana e nossa existência, além da impossibilidade de
visualizar o contexto, o global e o fundamental. Vemos hoje que a civilização técnico-
científica produz uma barbárie que lhe é própria. No paradigma pseudo-racional do
Homo sapiens faber, a ciência e a técnica assumem e realizam o desenvolvimento
humano. O maior perigo hoje, causa de muitos desequilíbrios entre as várias dimensões
do humano, é o paradigma do Homo sapiens economicus com a predominância dos
valores de produção, consumo, acumulação, que estrangulam a expressão dos valores
éticos, culturais e solidários.
Como conseqüência, podemos perceber que até hoje ainda existe uma nítida
divisão entre a cultura científica e a cultura das humanidades. Ao se desenvolverem
separadamente e não se comunicarem, estes dois sentidos têm dificuldades em
desenvolver sabedoria. A noção de progresso concentrou-se na eficácia da razão e
propiciou o entendimento da vida de forma linear e independente. A arrogância da
ciência passou a reprimir qualquer cognição e formas de pensamento que não fossem
regidas pelo determinismo e pela causalidade. O conhecimento da sociedade não pode
ser reduzido ao cálculo e ao desenvolvimento da economia.
Heidegger já havia atentado para esta questão ao relacionar o problema da
técnica com a história do ser e seu esquecimento. O mundo humano transformou-se em
um universo técnico, no qual estamos presos. O expansionismo da técnica constitui a
dimensão planetária da razão calculadora e conduz ao perigo do esquecimento do ser.
49
Heidegger, no texto A questão da técnica, originariamente publicado em 1953, mostra
como o ser se nos moldes da técnica moderna, e quais armadilhas este modo de
conceber nos torna vulneráveis à sua essência. No Ge-Stell, isto é, na sociedade da
técnica e da manipulação total, Heidegger também uma chance de ultrapassar o
esquecimento e a alienação metafísica em que viveu até hoje o homem ocidental. A
possibilidade de salvação estaria no caminho de pôr-se poeticamente à escuta do ser,
pois os poetas dizem e o dizer do poeta é a fundação da existência humana. Fundar é
abrir o Ser, fazer aparecer o mundo, dizer a essência das coisas. A poesia é pensamento
inaugural do Ser, construção de sentido. É a raiz de qualquer arte, entendida como
aquilo que coloca em obra a verdade do Ser.
Indubitavelmente a ciência traz um grande progresso material, não é o caso de
suprimi-la radicalmente. Provavelmente as inovações em medicina, agricultura,
comunicações e entretenimento vão mudar nossas vidas nos próximos anos. As
televisões de alta definição são apenas o começo de uma revolução de interatividade
que vai atingir todos os equipamentos. Enfermeiros que cuidam de doentes à distância,
policiais munidos de câmeras e estudantes que visitam museus sem sair da sala são
algumas das projeções da conexão ultra-rápida da Internet que irá multiplicar os
serviços. As idéias de automação residencial não são cenários apenas de Os Jetsons.
Os games que estão invadindo ano a ano, todas as áreas da vida do trabalho ao
relacionamento amoroso. As pesquisas com células-tronco que alimentam o sonho de
construção de órgãos sob medida e a cura de doenças terríveis. A engenharia genética e
o avanço das pesquisas em nanotecnologia, entre outros avanços científicos, fazem crer
na melhoria das condições materiais, sociais e humanas a médio prazo. Mas, por outro
lado, também estamos caminhando para um fracasso moral. Para problematizar essa
questão utilizo como exemplo alguns filmes que nos alertam para a crise moral que o
pensamento restrito da valorização da técnica e da ciência nos conduzem.
O filme “Blade Runner” (EUA, 1982) de Ridley Scott foi lançado como ficção
científica, mas hoje o pode ser considerado tão ficcional, tece uma história sombria
sobre o futuro da humanidade. Ambientado em Los Angeles, a trama do filme gira em
torno da necessidade da eliminação - incumbência dada a um ex-policial - de seis
replicantes (andróides) rebelados, de última geração e que são quase impossíveis de se
distinguir dos humanos. Um grupo de “replicantes”, seres quase pessoas criados pela
50
bioengenharia e que geralmente vivem fora do mundo, voltou à Terra para enfrentar
seus criadores, a Tyrell Corporation, uma empresa de alta tecnologia. Sua queixa é que
eles não aceitam o período de vida de quatro anos e querem que lhes seja dada a
possibilidade de se equipararem aos humanos. O que vai nos interessar particularmente
é a questão da sociedade urbana caótica visualizada, ambientada e projetada no filme no
ano de 2019.
O cenário de Blade Runner é de decadência urbana, com edifícios antes
imponentes, agora demolidos, ruas cosmopolitas apinhadas, centros comerciais
intermináveis, montes de lixo e garoa cinzenta constante. O que marca essa triste
paisagem é um progresso em ruínas. A construção da utopia desenvolvimentista cede
lugar à desconstrução da utopia urbana. Trata-se de uma projeção do que virá pela
frente, com cidades superpopulosas e violentas, meio ambiente destruído e o domínio
econômico das corporações. Sem dúvida, uma projeção um tanto quanto catastrofista e
cética que desconstrói qualquer tipo de utopia urbana. Na Los Angeles do filme chove o
tempo todo, nunca se o sol e nas ruas se fala um dialeto que mistura inglês, chinês e
outras línguas. Corresponde à existência de cidades multi-étnicas, onde estão presentes
outros elementos como violência, solidão, burocracia, neocolonialismo, individualismo,
degradação urbana e desintegração social - mas, principalmente um sistema econômico
e social dominado pela razão técnica e pelo medo e que leva o homem
inexoravelmente para a destruição física e emocional.
O filme é bastante lembrado ainda pelo clima noir e pelas imagens de trânsito
com os hovercars. As cidades parecem caminhar para aquelas imagens claustrofóbicas,
noturnas e úmidas, com gigantescos outdoors e anúncios de Coca Cola e de fast foods
japoneses. Os aglomerados urbanos sufocam e a necessidade de espaços torna-se
angustiante. Toda a estética do filme é de um cinza-azulado. Acrescido à chuva fina que
cai intermitentemente dão o tom ainda mais enclausurante de se viver em meio ao caos
urbano.
Há claramente uma conotação pessimista e a existência de uma anti-utopia sobre
o futuro e desígnios da raça humana. É ambientada em Los Angeles, mas é bom frisar
que poderia ser em qualquer outro lugar. Não sabemos mais se somos máquinas ou
51
humanos, ou talvez tornamo-nos ciborgues e homens-máquinas, o próprio caçador de
andróides vê-se neste dilema, mas essa passa a ser uma dúvida de todos nós. Ao final,
tudo indica para uma humanização não dos andróides, mas dos próprios seres
humanos. um alerta do quanto estamos nos tornando máquinas artificiais sem
sentimento. Ao final do filme, do cinza-azulado, passamos para a claridade dos campos
verdes e do céu límpido. Resta-nos uma esperança.
“A Ilha” (EUA, 2005) de Michael Bay, é um thriller de ão muito
interessante. Lincoln Six-Echo (Ewan McGregor) é um morador de um utópico, porém
rigorosamente controlado complexo em meados do século XXI. Assim como todos os
habitantes deste ambiente cuidadosamente controlado, Lincoln sonha em ser escolhido
para ir para "A Ilha" dita o único lugar descontaminado no planeta. Mas Lincoln logo
descobre que tudo sobre sua existência é uma mentira. Ele e todos os outros habitantes
do complexo são na verdade clones cujo único propósito é fornecer “partes
sobressalentes” para seus humanos originais. Percebendo que é uma questão de tempo
antes que seja “usado”, Lincoln faz uma fuga ousada com uma linda colega chamada
Jordan Two-Delta (Scarlett Johansson). Perseguidos sem trégua pelas forças da sinistra
instituição que uma vez os abrigou, Lincoln e Jordan entram em uma corrida por suas
vidas e para literalmente conhecer seus criadores. É uma história de terror ético em que
cientistas que fazem experiências em genética humana, visando promover os avanços da
medicina, são retratados como vilões em estilo Dr. Frankestein. O vilão chefe, o Dr.
Merrick (Sean Bean), tem um discurso padrão em que fala de cura da leucemia mas
percebe-se que o que realmente o move é a cobiça. A história se passa num ambiente
controlado, cujos habitantes sempre vestidos de branco, levam vidas sem objetivo,
supostamente protegidos da contaminação mundial resultante de um desastre ecológico.
Desde o começo o espectador sabe que essa tese é falsa. O que está por detrás de tudo
isso é uma força policial onipotente que monitora todas as funções corporais e é
obcecada com a “proximidade” entre homens e mulheres na população, que vive quase
segregada, e fala dos moradores, pelas costas, como “produtos”. Ao questionar a
sociedade em que vive perante um dos responsáveis pela manutenção desse oásis em
meio à destruição que teria atingido o mundo, Lincoln é lembrado de que a qualquer
momento pode ser sorteado para conhecer a Ilha, o último refúgio natural que restou da
grande devastação promovida pelo homem no planeta. A Ilha é o sonho de todos
aqueles que moram nesse mundo hermeticamente fechado e totalmente controlado. Os
52
sorteios são diários e quem ganha parte para a inesquecível viagem sendo invejado por
todos os demais.
Como em outros filmes que utilizam laboratórios como um de seus cenários
principais, “A Ilha” nos coloca diante de empresários e cientistas inescrupulosos, até
mesmo caricatos, mas nos alerta para a necessidade de estarmos de olhos abertos e
atentos para os eventuais desmandos e descaminhos da ciência. Não se trata de dizer
que cientistas são inescrupulosos que almejam apenas o sucesso nas carreiras e alcançar
um importante grau de status científico. idealismo e comprometimento por parte dos
cientistas, mas por outro lado, não podemos cair nas armadilhas da ciência e da técnica.
A idéia de progresso científico está atrelada à idéia de desenvolvimento humano
não em nível material, mas, sobretudo moral e ético. É necessário que o homem não
rejeite ou se abstenha de sua condição mais própria que é o fato de ser um ser pensante.
Trata-se de manter acordado o pensamento. Em vez de vivermos absorvidos pela
técnica, devemos ler o mundo, habitar num mundo lendo a outra dimensão de sentido
que esta dimensão que transcende as coisas simplesmente presentes tem.
Como se vê, essa dicotomia da ciência remete às imaginações utópicas e
distópicas. A ciência para o bem ou para o mal humano.
Segundo Morin,
Entre ciência e política, a ética é residual, marginalizada, impotente. A
ética está desarmada entre a ciência amoral e a política frequentemente
imoral. Essa é a trágica situação da humanidade planetária. (MORIN,
2005:78)
No entanto, há um grande alento no que tange às reformulações da ciência
clássica. Algumas mudanças significativas ocorrem. Uma diz respeito à física quântica,
que quebra o determinismo absoluto e o reducionismo, a outra procura reagrupar o
cosmos, a natureza e a terra. O paradigma cartesiano que instaura um corte radical entre
o homem (possuidor de alma) e o resto da criação (entendida como matéria inerte
desprovida de toda dimensão espiritual), propicia o exercício ilimitado da dominação
humana sobre a natureza que o avanço das forças produtivas requerem. Quando um
problema muito complicado, a proposta cartesiana é dividir a dificuldade em pequenas
53
partes para depois entender o todo. É esse paradigma que está em franco declínio haja
vista a alarmante situação da biosfera hoje. Conhecer cada vez mais os determinismos
que nos governam nos permite pôr em prática uma maior liberdade. A mudança de
padrões para uma visão sistêmica de mundo é crucial. Sem ela não futuro. A física e
a ciência moderna em geral nos conduzem a uma visão profundamente ecológica.
Ecológica no sentido que leva em conta a interconexão fundamental, a interdependência
de todos os fenômenos e o fato de estarmos incorporados a sistemas maiores, nos
processos cíclicos da natureza.
Cansamos de ouvir e ler a respeito das transformações sociais, políticas,
econômicas e culturais que vêm ocorrendo no mundo. Hoje diz-se em todas as linhas, e
particularmente no campo do trabalho humano, que o trabalho intelectual substitui a
passos largos o trabalho manual. Qualquer indivíduo que se preza deve ter o mínimo de
conhecimento e articulação mental para viver neste mundo globalizado e complexo.
Conhecer não se reduz apenas a informações, sem as estruturas teóricas estas não
representam nada. Sem dúvida, fazemos parte de um mundo da informação, da
comunicação e do conhecimento. O avanço da área de tecnologia e comunicação nos
leva a novos parâmetros de vivência. As informações vêm até de nós de forma muito
rápida. No entanto, o excesso de informações leva-nos ao desconhecimento, ela
obscurece o conhecimento. Não basta mais apenas saber as operações triviais da
matemática ou os princípios elementares básicos da linguagem, faz-se preciso novas
conexões mentais que possam propiciar o novo. A crítica pela crítica não é mais
suficiente para explicar as incongruências do cotidiano. Qualquer senso crítico hoje
deve vir necessariamente acompanhado da possibilidade de que o pensamento possa
incorrer em erro. As teorias devem sempre ser revistas, revisitadas, re-arranjadas em
novas perspectivas e dinâmicas. Nada é para sempre. Tempo e espaço ganharam novas
dimensões que na maioria das vezes nos deixam desorientados. Teoria é um sistema de
idéias que se alimentam das aberturas com o mundo exterior. Todas as idéias são
biodegradáveis, não idéias fechadas. Aceita o princípio de sua própria morte. Ao
contrário da doutrina que é uma teoria fechada que se alimenta pela referência do
pensamento de seus fundadores, canonizando-os como uma coisa blindada que não
admite refutações. Ocorre que na realidade nunca podemos ter certeza sobre um
determinado fato. As teorias, portanto, são iluminadas pela idéia da incerteza.
54
Muitos vêem nesse avanço tecnológico um quadro crítico e pessimista para o
destino humano. O problema não é tecnologia em si, mas o uso que se faz dela. Essa
preocupação já fazia parte da obra de Isaac Asimov (1920-1992), um grande romancista
que dedicou sua vida para a divulgação científica e a criação de obras de ficção
científica. Sua linguagem simples e característico senso de humor abriram as portas da
ciência e das descobertas científicas para um público leigo. Asimov também é famoso
por suas obras envolvendo robôs (palavra criada por ele). Nestas obras ele introduziu as
Três Leis Fundamentais da Robótica:
Primeira Lei - Um robô não pode causar dano a um ser humano nem, por
omissão, permitir que um ser humano sofra.
Segunda Lei - Um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos,
exceto quando essas ordens entrarem em conflito com a Primeira Lei.
Terceira Lei - Um robô deve proteger sua própria existência, desde que essa
proteção não se choque com a Primeira nem com a Segunda Lei da robótica.
Ele criou estas leis para gerar uma nova visão a respeito dos robôs, pois muitos
críticos viam nestas máquinas um futuro apocalíptico. Asimov, por outro lado, nos
robôs, computadores e máquinas um meio útil de libertar o ser humano para tarefas
mais criativas.
Um dos aspectos mais marcantes de nosso século é a idéia de perda de futuro.
Para onde estamos caminhando? Qual o sentido de tudo isso? Os modelos econômicos
atuais nos movem para viver o aqui e agora. Provoca a ética da utilidade em detrimento
de valores mais enraizados no ser. De certa forma, esse ambiente contagia a crença na
política, ainda mais com noticiários escabrosos de corrupção pelo mundo afora entre a
classe política, desvirtuando o verdadeiro sentido do que é política. A suposta
“profissionalização” da política nos legou a indiferença e descrença em relação a ela.
A política é uma referência permanente em todas as dimensões do nosso
cotidiano na medida em que se desenvolve como vida em sociedade. Ela surge junto
com a própria história, nesse jogo de forças de contínua transformação que não é fruto
do acaso, mas da atividade dos próprios homens que vivem em sociedade e interferem e
conduzem o enredo da história. Ela penetra em todos os poros da sociedade ao mesmo
55
tempo que se deixa penetrar por todos os problemas da sociedade. Viver, nascer e
morrer situam-se doravante no campo político.
Confrontada com problemas antropológicos fundamentais, a política torna-se,
sem o querer e muitas vezes sem o saber, uma política do homem. A política deve tratar
a multidimensionalidade dos problemas humanos. De fato, ela é levada a assumir tanto
o destino e o futuro do homem como o do planeta. Tudo que o ser humano faz tem um
profundo sentido político. Entretanto, o cidadão tem seu ser político obscurecido por um
contínuo jogo de poder e manutenção do status quo. Como conseqüência dessa
distorção de sentido cada vez mais as pessoas se tornam intolerantes com os políticos e
há uma banalização das ações políticas dos cidadãos. Além disso, há uma grande
distorção do que é bem público e do que é bem privado. As pessoas cuidam de sua
propriedade privada ao mesmo tempo em que contaminam ou depredam os espaços
públicos. Alguns autores concluem que a solução seria a extensão da propriedade
privada o máximo possível, reduzindo os espaços públicos. Existe, não obstante, a outra
face da moeda. Aqui os argumentos apontam que é por causa da existência da
propriedade privada (e não pela sua escassez) que existem tendências à depredação e à
poluição. Nas sociedades pré-capitalistas, em que existe ou existia propriedade coletiva
do solo, a decisão sobre seu uso é também coletiva. Quando o caçador primitivo reparte
entre os membros de sua família o produto da caça é porque o animal pertence à
comunidade antes de ser caçado. A natureza, incluindo os seres vivos, é propriedade da
comunidade, e quem atua sobre ela deve se submeter às regulações comunitárias. A
depredação e/ou poluição da natureza é uma questão coletiva e não individual. Ao
contrário, com a extensão da propriedade privada, ocorre que cada pessoa é livre para
fazer com ela o que quiser. Quando a depredação e/ou poluição constituem uma
vantagem econômica, estas se realizam, independentemente de ser dentro ou fora de
casa. Essa forma de relacionar-se com os recursos naturais privados se constitui na
racionalidade hegemônica. Quando se podem utilizar recursos ou espaços públicos,
sempre se fará com o objetivo da produção privada. Toda a história do capitalismo é a
de apropriar-se de recursos naturais virgens com o propósito de utilização privada.
Quando se utilizam matérias-primas dos “espaços coletivos”, está-se privatizando-os,
que reaparecem no produto final vendido como propriedade privada no mercado.
56
O realismo da política precisa da utopia para alimentá-lo. No entanto, os
“políticos profissionais”, aos poucos emudecem o imaginário utópico através de suas
ações e promovem a descrença e ceticismo dos cidadãos. Por outro lado, um
florescimento de manifestações civis por outra via, através das organizações
governamentais pelo menos as que têm comprometimento e movimentos sociais de
toda ordem, que querem ser vistos e ouvidos em suas mensagens e reivindicações.
A proposição de uma utopia realista comporta projeções ainda impossíveis, mas
que podem se realizar. de se ressaltar o movimento ambientalista e as conferências
mundiais sobre o meio ambiente que tem por característica estabelecer novos
comportamentos que são, a princípio, considerados utópicos, mas também considerados
realistas pela perspectiva da necessidade de mudança que eles carregam. Para chegar a
tais conclusões e posicionamentos utópicos, o movimento ambientalista teve que se
embasar em dados científicos, assim como tem que fazer uma pressão política para que
uma nova ética se instaure. Esse caminho é viável para que não caiamos no utopismo
banal e superficial da mera impossibilidade sonhadora. Toda transformação parece
impossível antes de acontecer, mas o impossível pode tornar-se possível e esse é o
sentido do realismo, ou seja, basear-se na incerteza do real. O projeto ambientalista é
um projeto realista/utópico no sentido complexo porque comporta a incerteza do real,
isto é, enxerga que existe um possível ainda invisível no real.
Momentos de crises são momentos de grandes interrogações e grandes incerteza
quanto às possibilidades futuras. Mas são nos momentos de crise que afloram as
grandes ações e também os horizontes utópicos da transformação. No entanto, os
momentos de crise são os momentos da ambivalência. de se controlar e buscar o
equilíbrio para não provocar ainda mais desastres tanto em sentido social quanto
emocional e psicológicos. Quem fica no olho do furacão nesses momentos é a ética, ora
de forma degenerativa, ora regenerativa. Em meio de tantos exemplos de ética
degenerativa, o ambientalismo é um dos exemplos de ética regenerativa que
presenciamos na Contemporaneidade.
Chegamos ao limiar da necessidade de reatar as relações humanas num sentido
mais holístico e integrador. Para tanto, é importante fazer uma reflexão sobre a moral,
no sentido nietzschiano. Para onde ela nos levou? Qual é a sua herança? A busca da
57
compreensão das ações humanas é um importante exercício reflexivo, para resgatar uma
ética mais condizente com o atual momento histórico. A compreensão permite conhecer
o sujeito enquanto sujeito e tende sempre a reumanizar o conhecimento político. Na
utopia de Edgar Morin, um impossível daqueles possíveis:
A “boa sociedade” só pode ser uma sociedade complexa que abraçaria a
diversidade, não eliminaria os antagonismos e as dificuldades de viver, e
que comportaria mais religação, compreensão, consciência,
solidariedade, responsabilidade ... (MORIN, 2005: 87)
O maior obstáculo à utopia de Morin é a “doença” da velocidade e os seus males
sobre a nossa civilização. Talvez seja preciso travar, abrandar, a fim de fazer advir um
outro devir. Como desacelerar? Este problema exige a uma tomada de consciência
mundial. Uma iniciativa das grandes potências industriais pode engrenar a
desaceleração. Seria ingenuidade vislumbrar esta iniciativa?
A cultura da velocidade encoraja as pessoas a fazer as coisas cada vez mais
rápidas e coloca a quantidade na frente da qualidade. Nossa razão de viver passa a ser
econômica, entramos nesse círculo vicioso de que temos que correr para ganhar cada
vez mais dinheiro. No fim do dia, o que realmente importa para nós, seres humanos, o
que nos humaniza, são as coisas que deixamos de lado por causa da loucura do dia-a-
dia: os relacionamentos. Sentimos falta de momentos simples, de intimidade, coisas que
dão poder e textura à vida das pessoas. Essas coisas se perdem.
Precisamos resgatar a dimensão bio-psico-sócio-cultural do ser humano para nos
lembrar do quanto estamos perdendo do real significado do que venha a ser cidadania,
uma condição que fora marco de muitas lutas, revoluções e movimentos sociais ao
longo da História.
A cidadania na era planetária
58
Diante da perda de referências e o enfraquecimento dos valores universais, a
auto-ética é hoje uma emergência. Não basta mais esperarmos alguma voz divina ou
alguma liderança carismática para nos dizer como agir. Estamos numa época além do
bem e do mal. A pluralidade e diversidade de culturas, pensamentos, idéias não nos
autoriza a impor uma linha de conduta moral universalizante. Não se sabe mais qual é a
finalidade da história humana. Para onde caminhamos, quais são as nossas metas, as
nossas realizações?
A auto-ética preza pela autonomia individual, a qual envolve consciência e
decisão pessoal. Trata-se de uma restauração do sujeito que comporta a exigência do
auto-exame, a consciência da responsabilidade pessoal e o encargo autônomo da ética.
Nesse sentido o princípio altruísta e o apelo à solidariedade estão vivos, são presentes
na constituição da condição humana. Não é fácil construir a auto-ética. Ela envolve
características psíquicas numa espécie de ética de si para si e que tem como refluxo a
construção de uma ética para o outro. A recursão ética é um reforço imunológico contra
a nossa deficiência imunológica e tendência de culpabilizar o outro. O auto-exame faz
com que a culpabilidade caia sobre nós mesmos. Resistimos assim, à nossa barbárie
interior. A modernidade elaborou a “redução do outro” daí resultando o progressivo
desprestígio da alteridade na textura da experiência existencial e moral.
O encontro com Outrem é imediatamente minha responsabilidade por
ele. A responsabilidade pelo próximo é, sem dúvida, o nome grave do
que se chama amor do próximo, amor sem Eros, caridade, amor em que
o momento ético domina o momento passional, amor sem concupiscênci.
(LÉVINAS, 1997:10)
Ricouer (1991) sublinha que a identidade não deve ser pensada somente no
plano psicológico, como narrativa de uma vida pessoal, mas também na sua dimensão
política e, também antropológica, pelo fato de esta narrativa estar inscrita na história dos
outros, tornando o homem um ser com os outros. O olhar antropológico é o primeiro
que capta as mudanças na sociedade, sinalizando para as outras ciências os impactos
ocasionados pela aceleração da tecnologia. A partir do conhecimento e do
reconhecimento das diferenças, podemos construir as igualdades, ao invés de supormos
uma igualdade preestabelecida e a impormos sobre as diferenças.
59
Os homens são responsáveis uns pelos outros, além de ser responsável pelo
planeta, mas para por esse pensamento em prática é preciso a justiça que brota do amor.
Isso não quer dizer absolutamente que o rigor da justiça não se possa voltar contra o
amor, entendido a partir da responsabilidade. A política abandonada a si mesma tem um
determinismo próprio, por isso mesmo o amor deve sempre vigiar a justiça. A ética é,
portanto, o humano enquanto humano, não é uma invenção da raça branca ou da
humanidade que leu os autores gregos nas escolas e que seguiu certa evolução.
O exercício da auto-análise e da auto-compreensão são os alicerces da auto-
ética. Para tanto, precisamos tomar conhecimento de nossos pontos fortes e fracos num
processo de auto-observação. Trata-se de um longo trabalho de mergulho interior
introspectivo e de aprendizagem sobre si mesmo. Essa ação auto-analítica deve ser
entendida como uma espécie de vigilância que deveria ser praticada desde criança,
ensinada nas escolas, uma verdadeira aprendizagem ética e cidadã.
Não pode existir auto-análise sem a auto-crítica. Tradicionalmente sempre se
falou na filosofia em despertar o senso crítico de dentro para fora. Pois bem, a auto-
crítica vai além e nos mostra que antes é necessário fazer a crítica de nós mesmos. O
maior desafio desta tarefa é o fato de termos que lidar com o nosso egocentrismo e a
nossa mania de autojustificação. Com a auto-crítica, criamos uma cultura psíquica
cotidiana, fazemos uma análise existencial de nós mesmos. Aprendemos a desconfiar de
nossos próprios olhos, a desconfiar de nossas certezas e convicções e perder o hábito de
colocar a culpa nos outros.
A análise existencial recupera o dom de raciocinar desde a experiência direta,
que ao longo da modernidade foi renegada pelos filósofos e encontrou refúgio entre
os poetas e romancistas. É a redescoberta da lógica por trás do absurdo, a reconquista do
estatuto espiritual humano que torna a vida digna de ser vivida. Heidegger, em suas
análises filosóficas na obra Ser e Tempo, procura refletir acerca da questão do “sentido
do ser”. Encontramos esse questionamento filosófico do sentido do ser a partir de uma
analítica ontológica da existência. A revelação do ser é possível a partir do des-
velamento do mundo. Trata-se de recuperar a estranheza das coisas, ou melhor, o
estranhamento do homem diante das coisas para tentar mostrar que o cotidiano e o
habitual, em sua aparente monotonia, escondem o mistério do ser. É possível
60
vislumbrarmos esse esforço nas obras de alguns romancistas, como Dostoievski e
Albert Camus.
No universo artístico de Dostoievski uma multiplicidade de vozes e
consciências independentes e imiscíveis. A consciência de seus personagens se converte
num emaranhado de dúvidas e questionamentos que todos fazemos quando
mergulhamos no interior do ser. Como a do jovem Raskólnikov em Crime e Castigo.
Há grandes monólogos interiores dialogados; seus personagens dialogam com seus
duplos (Ivan e o diabo, por exemplo) ou mesmo são duplas, quando o autor procura
converter cada contradição interior de um indivíduo em dois indivíduos para dramatizar
essa situação e desenvolvê-la extensivamente (como ocorre com Raskólnikov e
Svidrigáilov). Em Dostoiévski, onde começa a consciência começa o diálogo.
Referências dessa perspectiva são as falas de Dostoievski através de seus personagens:
(na fala de Ivan Karamazov, na famosa novela deste escritor russo): “Se Deus não
existe, então tudo é permitido” e “Não um sentido ou propósito último inerente à
vida humana; a vida é absurda”. Isto significa que o indivíduo, foi jogado de fato na
existência sem nenhuma razão real para ser. “Simplesmente descobrimos que existimos
e temos então de decidir o que fazer de nós mesmos”. De onde viemos? Para onde
vamos? Qual o destino que nos aguarda? A vida é uma navegação sobre um oceano de
incertezas através de um arquipélago de certezas. Estamos todos numa aventura
desconhecida. Cada um de nós tem apenas a certeza da morte e não sabemos o momento
em que ela chegará.
Sob outra perspectiva, mas nessa mesma linha da análise existencial, na obra “O
Estrangeiro” (2006) de Albert Camus, o autor tenta contrariar o conceito de que a arte é
a manifestação dos sentimentos do ser humano. A inexistência de emoções leva o
personagem a um vazio interior, causando uma profunda resignação no leitor. É
impossível não sentir um mal-estar diante dessa frieza. Contudo, analisando a obra pelo
lado do realizador e não na visão do personagem, é incrivelmente bem sucedida a
maneira de conduzir o leitor a uma reflexão existencialista da vida. Mersault, o
personagem central, jamais seria um artista pelo fato de ser totalmente dominado por
um vazio, por uma crise existencial que ultrapassa as fronteiras da compreensão
humana. Desde a notificação da morte da mãe, passando por um ato homicida até a
confirmação da condenação, ele age da mesma maneira. Essa indiferença não se faz
61
presente somente nesses fatos, os mais importantes dentro da trama, mas também em
outras situações elementares e relacionamentos de menor relevância. O absurdo
existencial do personagem procura conduzir o leitor a uma identificação com essa
experiência, a mergulhar num mar vazio, onde a essência da vida é simplesmente viver.
Por outro lado, a análise do trabalho como “arte” reside na capacidade de modificar o
comportamento do leitor, ou o mesmo se adere à crise existencial ou repudia a conduta,
repúdio que poderá comprometer a própria relação com o autor.
Cada um ao seu modo, esses autores nos oferecem uma profunda reflexão
existencial sobre nossas vidas e o entorno. Poderíamos citar inúmeras obras de poetas,
dramaturgos ou romancistas que auxiliam enormemente nessa busca da análise
existencial. Pensar na auto-ética passa, sobretudo, pela auto-análise existencial.
Construir a ética é no sentido heideggeriano tomar a existência como o modo de ser
deste ente que é o homem, o único ente que põe para si mesmo a questão do ser. O
homem é algo que se define num “projeto” sempre retomado. O modo de ser do homem
é “poder-ser”.
Um dos objetivos primordiais da auto-crítica é a criação da consciência de
responsabilidade. Somos todos responsáveis pelo que fazemos, inclusive pelas coisas
feitas por nosso intermédio sem que as tenhamos escolhido. A responsabilidade nada é
caso não seja incentivada pelo sentimento de solidariedade de pertencimento a uma
comunidade. De fato, essa é uma das virtudes mais nobres que implica em resistir à
nossa barbárie interior. Em suma, a auto-ética tem por premissa básica resgatar o
princípio altruísta existente na subjetividade humana e o princípio de solidariedade que
é intrínseco a uma comunidade. Dessa forma, solidariedade, responsabilidade e auto-
ética são os fundamentos básicos da construção utópica hoje.
Preocupa o fato do quão distante estão os cidadãos desse tripé ao serem
subjugados por uma sociedade de consumo que os priva dessa reflexão auto-crítica.
Adormecidos em seus imediatismos de mercados e satisfações ilusórias e momentâneas
da aquisição de bens de consumo, os cidadãos perdem o poder de auto-análise e, cada
vez mais, culpam os outros, a economia, o governo, por não poderem ter o poder de
consumo desejado. Esse quadro distópico gera uma sociedade acéfala e a idéia de
pertencimento parece que só é recuperada nos corredores dos shopping centers.
62
Algo ameaça por dentro a nossa civilização. A degradação das relações pessoais,
a solidão, a perda de certezas junto com a incapacidade de assumir a incerteza, tudo isso
nutre um mal subjetivo cada vez mais espalhado. Os males da civilização que se
infiltram nas almas e ganham formas subjetivas nem sempre são apercebidos. O mal da
instabilidade, da pressa, da superficialidade instala-se no amor e reintroduz nele o mal
de civilização que o amor recusa. Há, nas ruínas de tudo o que o progresso destruiu, ele
próprio agora em ruínas, uma procura de verdades perdidas.
Aparece aqui um jogo dialógico entre uma ética egocêntrica que se exterioriza e
uma ética altruísta que está submersa. Enquanto a primeira se fecha para o outro, a
segunda pede a abertura para o outro. O excesso de separação entre as pessoas pode
gerar problemas muito sérios tais como a violência, a corrupção, o desrespeito etc. A
religação é, pois, o imperativo ético contemporâneo. assim poderemos restabelecer
os laços com a comunidade, a sociedade e com nossa própria essência. Reconhecimento
dos outros e de nós mesmos como sujeitos e não como meros objetos é a tarefa de
grande alcance a se realizar. As amizades, convívios e relacionamentos não podem estar
ancorados na perspectiva da utilidade, ou seja, não convém aos cidadãos ter como
máxima a relação com o outro apenas se este “servir” para futuras vantagens, tais como
uma recolocação profissional, um emprego, uma indicação etc. Nesse sentido, as
relações se tornam fúteis e os laços de solidariedade ficam frouxos. Há um vínculo ético
de fraternidade na amizade. Amizade é fraternização, cumplicidade, envolvimento de
antagonismos, não é uma regra. A ética da compreensão é a ética do saber e do aprender
a estar juntos e reconhecer que haverá algo que será mesmo incompreensível. Perdoar,
sim, mas perdoar não significa esquecer. A religação envolve o prefixo com: com-
preensão, com-unidade, ou seja, compreender com o outro e estar junto com o outro.
A relação entre os seres humanos é carregada de incompreensão e esta traz
muitos malefícios como o não respeito às diferenças e o aumento das intransigências.
Mesmo numa época de florescimento das diferenças, fruto da evolução dos meios de
comunicação de massa e de tempos de globalização, não conseguimos diminuir as
incompreensões. Por que esse paradoxo? Por que a compreensão depende de uma
disposição subjetiva por parte do indivíduo. Como então compreender? Segundo Morin
(2005), existem três procedimentos para aprendermos a compreender: primeiro a
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compreensão objetiva que comporta a explicação com as respectivas causas e
determinações; em segundo, a compreensão subjetiva que permite compreender o que
vive o outro, seus sentimentos, motivações interiores, sofrimentos e desgraças; e, por
fim, a compreensão objetiva que comporta a subjetividade, trata-se da compreensão
complexa de caráter multidimensional, que enlaça subjetiva e objetivamente. No
cinema este desafio é constante, e nos desperta para a compreensão do outro, podemos
desprezar o personagem ao mesmo tempo em que o compreendemos.
O filme Cinema, Aspirinas e Urubus” (Brasil, 2005) do diretor pernambucano
Marcelo Gomes é um bom exemplo disso. É um filme que fala sobre as diferentes
relações que cultivamos na vida e da possibilidade de se compreender o outro. Em
1942, no sertão do Brasil, encontram-se dois homens muito diferentes: o alemão
Johann, que fugiu da guerra, aceitando um emprego para vender a mais nova droga
miraculosa, a aspirina; e o sertanejo Ranulfo, mais um dos muitos agricultores expulsos
de suas terras pela implacável seca nordestina. Para convencer os compradores, Johann
começa a exibir filminhos produzidos pela companhia para a qual trabalha. Johann
precisa de um ajudante e contrata Ranulfo, um paraibano de 40 anos que também está
migrando - da pobreza do sertão, ele quer chegar ao rico sudeste do país. Num
caminhão, os dois percorrem as estradas poeirentas do interior do Brasil. Mostram aos
moradores das menores vilazinhas um filme sobre o novo remédio que é a primeira
experiência com o cinema da maioria deles. A viagem é também uma oportunidade de
troca entre duas experiências de vida muito diferentes, do alemão urbano e educado, e
do brasileiro iletrado, mas versado em vários expedientes úteis para seu dia-a-dia.
Perspectivas e visões diferentes da vida sob ângulos completamente díspares são
possíveis através da arte e o cinema é a experiência estética que mais nos aproxima da
ambigüidade do olhar.
Muitas vezes isso provoca críticas, debates e polêmicas. No filmeA Queda! Os
últimos dias de Hitler” (ALE/ITA, 2004) há um relato historicamente preciso dos
últimos dias de Hitler e seus asseclas, passados num bunker escondido nos subterrâneos
de Berlim. A história é baseada no livro de memórias da secretária de Hitler, Traudl
Junge, cuja história foi transformada numa excelente entrevista/documentário sob o
título “Blind Spot”. A grande contribuição do filme é garantir que vejamos que o “rosto
do mal” não veio do espaço sideral, mas de entre nós mesmos. Não se trata de uma
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caricatura do mal. O Hitler do filme nos mostra um ser humano. Quando ele se nega a
deixar Berlim e salvar sua própria pele, percebemos que, para ele próprio, o que está
fazendo é um ato de heroísmo. Essa humanidade perversa de Hitler e seus assessores
retratada no filme foi um problema para alguns críticos e representantes de outros
setores que viam com repugnância o fato de um dos maiores criminosos da história
humana poder ter alguma feição humana. Trata-se, portanto, de um filme que, em todos
os níveis, consegue dizer tanto não apenas sobre os horrores do século XX, mas também
sobre os da própria natureza humana.
O cinema nos auxilia a entender que a compreensão do outro não pode ser
reducionista. Seria cil, por exemplo, dizer simplesmente que os cidadãos hoje estão
imersos num processo de alienação constante, reflexo de uma sociedade consumista e
manipuladora. É preciso compreender essa situação com critérios mais palpáveis, ou
seja, compreender o contexto no qual esta realidade foi criada, as condições em que são
forjadas as mentalidades e praticadas as ações. O reducionismo impede a compreensão
do outro. Não é porque os indivíduos entendem a cidadania como a capacidade de
consumir que podemos julgá-los como tolos. Uma antropologia complexa considera o
homem como sapiens/demens, isto é, dotado de razão/afetividade/pulsão. Sermos
“Homo sapiens demens” é nossa grandeza e também nossa perdição, paradoxo inerente
à condição humana. Somos descendentes do sapiens arcaico, no qual irrompeu, por
primeiro, a inteligência reflexa, duzentos mil anos e do sapiens sapiens, já falante,
societário e trabalhador, quarenta mil anos. Portadores de afeto, cuidado,
inteligência, criatividade, arte, poesia e êxtase, ocupamos todo o Planeta.
10
10
Edgar Morin (1979), ao estudar a evolução da espécie Homo percebeu muitos fatores que contribuíram
para se alcançar à condição Sapiens, porém dois foram fundamentais: a locomoção bípede e a
verticalização de sua postura. Estas novas posições foram decisivas para libertar as mãos da função de
locomoção, o polegar opositor possibilitou movimentos de preensão com muita precisão, este, passou a
ser utilizado como um instrumento polivalente fundamental para a caça, desenvolvimento, uso de armas e
construção de abrigos, iniciando a fase denominada de desenvolvimento instrumental ou homo fabris. Sob
essa ótica, acredita-se que o bipedismo foi um dos mais importantes fatores que possibilitou a evolução à
condição “sapiens”.
Morin, afirma que a complexificação cerebral, ocorrida gradualmente, foi um processo
fundamental para a evolução da espécie sapiens. Esse tem um caráter dialético, pois ao mesmo tempo em
que a evolução do cérebro produziu o desenvolvimento da cultura, esta estimulou o desenvolvimento do
cérebro. Nosso interesse não é entrar nesta discussão, porém, nos cabe ressaltar que o fato do cérebro se
desenvolver lentamente, a partir das relações estabelecidas com o meio, proporcionou a prolongação do
período biológico da infância e da adolescência. Assim, o cérebro ganhou mais tempo para completar seu
desenvolvimento, que passou a acontecer também após o nascimento, por meio das relações estabelecidas
com o mundo externo. Essa prolongação facilitou tanto a aptidão para a aprendizagem quanto o
desenvolvimento afetivo e cognitivo por transmissão cultural, propiciando o amadurecimento da
linguagem. Morin (1979) qualifica o processo de hominização, como aquele que fortaleceu os elos entre
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A cultura iluminista exaltou a sapiência humana. A história, entretanto,
continuamente, desfaz essa imagem magnificadora. Revela a cada momento o lado de
demência, de crueldade, de massacres, de exterminações em massa. A violência humana
excede a de qualquer outra espécie. Sua demência não é ocasional. Configura uma
desordem originária. Na medida em que compartilharmos tudo o que somos e temos,
inauguramos o reino humano e deixamos emergir o sapiens sapiens. A desordem em
nós é herança da virulência do processo cosmogênico e biológico.
Nossa vida oscila entre confusão e repetição. Estamos entre duas forças opostas
(a ordem e a desordem) que devem se relacionar. O cérebro humano é tricímico,
trazemos heranças daquilo que nos gerou a nós mesmos, isto é, herança dos répteis, dos
antigos mamíferos e o neocórtex cerebral. Nosso cérebro é herança da evolução
histórica. Não uma soberania do racional sobre o afetivo, da inteligência sobre a
agressão. Não soberania de um lado sobre o outro. O cérebro é uma federação, não
hierarquia, o que é permutação dessas três áreas. Mas temos condições de impor
limites à demência usando nossa sapiência, urdida de cuidado, amorização,
solidariedade a partir de baixo, com-paixão, racionalidade e perdão.
O ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e
desmedida; sujeito de afetividade intensa e instável. Sorri, ri, chora, mas sabe
também conhecer com objetividade; é sério e calculista, mas também ansioso,
angustiado, gozador, ébrio, extático; é um ser de violência e de ternura, de
amor e de ódio; é um ser invadido pelo imaginário e pode reconhecer o real,
que é consciente da morte, mas que não pode crer nela; que secreta o mito e a
magia, mas também a ciência e a filosofia; que é possuído pelos deuses e pelas
Idéias, mas que duvida dos deuses e critica as Idéias; nutre-se dos
conhecimentos comprovados, mas também de ilusões e de quimeras. E quando,
na ruptura de controles racionais, culturais, materiais, há confusão entre o
objetivo e o subjetivo, entre o real e o imaginário, quando hegemonia de
ilusões, excesso desencadeado, então o Homo demens submete o Homo sapiens
e subordina a inteligência racional a serviço de seus monstros. (MORIN, 2000:
59-60)
O homem não é somente uma máquina calculadora de raciocínio lógico, é
também produtor de delírios. Segundo o postulado nietzschiano, a vida do homem deve
mães e filhos, homens e mulheres, proporcionando ao adulto o desenvolvimento de algumas aptidões até
então infantis, principalmente, as relacionadas à capacidade de amar e se apegar ao outro.
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ser transformada em uma obra de arte. Com isso a ética de Nietzsche prenuncia e denota
uma estética existencial. A superação do homem em sociedade é emergência de um
homem que crie seus próprios valores e como toda obra de arte é uma criação, ele se faz
tal obra. Segundo Nietzsche, a complementação que existia nas experiências
antagônicas do Dionisíaco e Apolíneo foi destruída pela civilização. O caráter da
filosofia passa a ser julgar a vida, humanizar a natureza, iluminar a escuridão do mundo
com a luz tênue da razão. Apolo era o Deus da moderação e da individualidade, do
lazer, do repouso, da emoção estética e do prazer intelectual, harmonizador dos
contrários. Era o deus brilhante da claridade do dia e se revelava no Sol. Zeus, seu pai,
era o Céu de onde vem a luz, e sua mãe, Latona, personificava a Noite, de onde nasce a
Aurora, anunciadora do soberano senhor das horas douradas do dia. Apolo, soberano da
luz, era o deus cujo raio fazia aparecer e desaparecer as flores, queimava ou aquecia a
Terra, era considerado como o pai do entusiasmo, da música e da poesia; deus da lira.
Apolo tornou-se, como conseqüência natural, o deus da dança, da poesia e da
inspiração. Dionísio era o Deus do vinho e da festa, experimentação dramática da
existência. Aniquilador das fronteiras e limites habituais da existência cotidiana. É o
prazer da ação, a inspiração, o instinto que simboliza as forças obscuras que emergem
do inconsciente. De um ponto de vista simbólico, o deus da mania e da orgia configura
a ruptura das inibições, das repressões e dos recalques. Dionísio simboliza as forças
obscuras que emergem do inconsciente, pois se trata de uma divindade que preside a
liberação provocada pela embriaguez, em todas as suas formas, a que se apossa dos que
bebem, a que se apodera das multidões arrastadas pelo fascínio da dança e da música e
até mesmo a embriaguez da loucura com que o deus pune aqueles que lhe desprezam o
culto. Desse modo, Dionísio retrataria as forças de dissolução da personalidade: as
forças caóticas e primordiais da vida, provocadas pela orgia e a submersão da
consciência no magma do inconsciente. A relação entre Apolo e Dionísio é uma relação
de criação. A luta entre eles promove sempre coisas novas, por isso a identificação com
a arte (juntos produzem o mundo). Apolo não é contrário de Dionísio, mas, sim, uma
unidade; um é uma parte distinta do outro. Não uma harmonia, mas um complexo
contínuo de luta, em que é possível perceber no gênio grego estes dois elementos: o
espírito apolíneo e o espírito dionisíaco.
É preciso assumir a dialógica razão-paixão. Civilizar as paixões e emoções para
que elas não caiam nas armadilhas da ilusão. Em outras palavras, o amor pela
67
humanidade não pode estar a serviço de sua subjugação. Contextualizar o
comportamento em condições históricas significa entender a ideologia que está em voga
naquele momento porque muitos são levados pelo fluxo ideológico que vigora. Hoje, a
luta salutar entre Apolo e Dionísio encontra-se subjugada pela ideologia da sociedade de
consumo, é notável a articulação da publicidade, da propaganda e do marketing em
todas as esferas da vida ao invadirem o nosso cotidiano quando menos se espera. Em
todo momento somos confrontados com as mais diversas marcas, produtos e objetos,
muitos deles inócuos. um processo de imbecilização na dia que nos trata apenas
como Homo economicus, definido pelo interesse e pelo lucro, tentando nos convencer
de qual produto comprar, conectando a nossa existência. Esse tipo de comportamento
leva à incompreensão da totalidade por parte do cidadão. Ele não se conta de que sua
ação local reflete de alguma forma no global. um paradoxo no sistema capitalista
atual, o consumo gera emprego, mas ao mesmo tempo degrada o meio ambiente. Como
o cidadão deve se posicionar? O pensamento complexo permite um metaponto de vista.
Enxergar o erro nas comunicações humanas, perceber a nossa indiferença perante os
fatos e a cegueira oriunda do egocentrismo e por desconhecimento da complexidade.
Compreender não significa abdicar do julgamento moral ou tolerar qualquer
delito ou atrocidade que seja cometido, mas sim complexificar o julgamento e as nossas
opiniões a fim de reconhecer os mecanismos das ações humanas, para não corrermos o
risco de cairmos no reducionismo. Prioriza o conflito de idéias e as argumentações.
Assim, é preciso que os cidadãos introduzam a compreensão profunda nos espíritos.
Aqui podemos perceber a impossibilidade de separar nesta ética as ões locais das
reações globais, o caráter subjetivo dos indivíduos das reais possibilidades objetivas de
mudança. Enraizar as faculdades humanas de compreensão é o desafio. Esse é, sem
dúvida, um horizonte utópico necessário em tempos de crise. Viver sob a máxima olho
por olho, dente por dente, nos trouxe um legado de violência e desrespeito mútuos.
Como dizia Mahattma Gandhi: “olho por olho e o mundo acabará cego”.
Há hoje uma aparente satisfação nos indivíduos traduzida pela aquisição de bens
e prazer material. Viver na aparência de bem-estar exterior não elimina, pelo contrário,
pode até alimentar, o mal-estar interior. Estamos hoje numa encruzilhada em que nos
defrontamos com a escolha: qualidade ou quantidade? Estaríamos vivendo a era do
vazio. As pessoas buscam o preenchimento desse vazio espiritual com o consumismo.
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São satisfações efêmeras que logo vem acompanhada da idéia de que “falta algo mais”.
O viver para o consumo, numa espécie de gozo intermitente, pode nos fazer esquecer a
tragédia da condição humana. Pode nos conduzir a uma distração e nos impede de viver
poeticamente no sentido da comunhão, amizade e participação. Viver poeticamente
consiste na apreciação estética da vida. Para que isso ocorra, não precisamos pagar, ela
está ao nosso redor. Um r-do-sol, um rosto, um gesto, uma música etc. Não
precisamos nos tornar consumidores em âmbito econômico para ter uma experiência
estética. Sair dessa armadilha necessita de novos horizontes e imaginações utópicas.
Entre elas destaco a Ecosofia, termo cunhado por Félix Guattari Trata-se de uma
Ecologia Generalizada, que abrace todos os ramos do conhecimento e apresente
propostas para todas as manifestações do Ser: da produção de energia à psicanálise, das
relações de vizinhança à preservação das espécies em vias de extinção, das neuroses
familiares às viagens espaciais, da liberdade artística ao reaproveitamento dos dejetos
industriais, dos meios de transporte à linguagem da publicidade, dos conceitos estéticos
às práticas partidárias e sindicais, da macroestrutura administrativa à felicidade no
cotidiano, das formas de poder às formas de amar, das necessidades protéicas ao direito
à fantasia. Propõe, entre outras coisas, a “ressingularização” do indivíduo, isto é, passar
a ver o indivíduo ecologicamente como um universo original, singular, dignificado na
sua especificidade, e o apenas na visão tradicional do capitalismo e do marxismo,
como “massas”, “estrato social”, “minoria racial”, “faixa do eleitorado”, “grupo
marginal”, enfim, como “gado” a ser conduzido pelas forças da economia, da ideologia
ou da política para a direção que os “pastores do rebanho humano” achar conveniente,
no nosso caso, para o “matadouro” do delírio tecnológico - industrial.
Ao lado da “ressingularização”, Guattari propõe uma “nova suavidade”, uma
forma de pensar e de agir que repudie os sistemas fechados, as estatísticas e as pesquisas
de opinião, a histeria do consumo, a ditadura das modas e a rigidez das palavras-de-
ordem e inaugure uma nova era de relações mais afetuosas e tranqüilas entre as pessoas,
de curiosidade pelo mundo interior do outro, de substituição da angústia e da ansiedade
pela sabedoria diante dos fatos naturais da vida tais como: o passar do tempo, o
nascimento, a paixão, o envelhecimento, a ternura e a morte. Ele defende um retorno
aos prazeres simples, ao convívio pessoal, ao contato com a natureza, à boa conversa, ao
namoro, a beber um copo d'água com prazer quando se está com sede, a dormir bem, a
fazer amor com um afeto renovado e sem a voracidade do “consumo sexual”. Um novo
69
padrão de relacionamento conjugal e uma nova empatia entre pais, filhos e netos fazem
parte da nova visão de “família” que a Ecosofia propõe, assim como a percepção de
que, no equilíbrio da natureza, não existe o “feio” e o “belo”, posto que um pavão não
seja mais “belo”, por exemplo, que um sapo boi; ou de “certo” e “errado”, posto que um
tubarão não seja mais cruel” que uma ostra, nem o leão é “imoral” quando avança
sobre a zebra desgarrada da manada. Dentro da proposta de “ressingularização”, da
busca da “alteridade” no lugar da “uniformidade” do pensamento, inverte-se o
raciocínio tradicional e busca-se o dissenso no lugar do consenso.
Na opinião de Guattari, a própria Ciência e a Psicanálise devem ser repensadas
para que se aproximem da forma como a arte percebe o universo: ao invés de teorias
fechadas às quais a realidade deve encaixar-se à força, ele propõe um processo contínuo
de recriação, de reencantamento, uma revalorização do espaço imaginário, à maneira de
um pintor ou de um compositor que, no desenvolvimento criativo de sua obra, jamais
repete o mesmo quadro ou a mesma melodia. A arte, que de todas as formas de
realização humana, é a que mais singulariza o Ser, pode servir como parâmetro para a
Ciência, assim como para a Política, para a Administração e tudo o mais. Trata-se de re-
situar o Ser como centro da identidade, e de jamais permitir que o Ter ocupe este lugar
na definição do ser humano sobre si mesmo.
Ser cidadão significa a busca da auto-ética, a qual remete à ética da comunidade.
As sociedades contemporâneas têm em si componentes de sociedade/comunidade. Ao
mesmo tempo em que o espírito de competição com o interesse/lucro que desune, há
também um sentimento de pertencimento que une. No entanto, quanto mais complexas
se tornam as relações no seio de uma sociedade, mais ela precisa da auto-ética. O
horizonte utópico da solidariedade/responsabilidade deve ser interiorizado por cada
membro desta.
Para que tal encaminhamento seja seguido, faz-se necessária a complexidade
democrática, pois é na real democracia que criamos o respeito à pluralidade, às
diferenças de opiniões e idéias. A democracia possibilita que o cidadão exerça sua
função tanto em deveres como em direitos. A falta de solidariedade e o crescimento do
egocentrismo colocam em xeque o jogo das relações democráticas, ao separar os
cidadãos da sociedade. Interesses públicos passam a ser tratados como privados. Ocorre
70
o detrimento do todo para valorizar a parte. Enfim, um desconhecimento do que
significa ser cidadão. O egocentrismo cego cria o desvio do papel do cidadão, ou seja,
se sou consumidor e tenho poder de compra, nem que seja por crediário, então teria os
meus direitos de cidadão assegurados. Viver para ter e ter para ser seriam valores
básicos das pessoas nas sociedades capitalistas. Pode-se, nesse contexto, definir o modo
ter de experiência como o relacionamento com o mundo baseado na posse e na
propriedade, onde se encontra o desejo de se querer e de se possuir tudo, inclusive a si
mesmo. o modo ser de experiência pode ser descrito como o contraste desse quadro,
no qual se preza mais o exercício da essência, o relacionamento autêntico com o mundo,
o vivenciar ao invés do possuir. Como disse laconicamente Jean Baudrillard, “Diz-me
com quem andas e te direi o que consomes”.
Não é o caso de dispensar os valores, costumes, hábitos, culturas, padrões
morais das diversas sociedades e comunidades, pelo contrário. O que esem jogo na
construção da utopia contemporânea é a articulação de uma ética universalista de caráter
planetário, a qual Morin o nome de Terra-Pátria. Significa a compreensão de que a
Terra é uma totalidade complexa física/biológica/antropológica, onde a vida é uma
emergência da história da Terra, e o homem uma emergência da história da vida
terrestre. Significa também fazer uma reflexão crítica sobre o crescimento econômico,
que desde o século XIX, tem sido não motor, mas regulador da economia,
aumentando a procura, ao mesmo tempo que a oferta. Trouxe melhorias consideráveis
ao nível de vida, mas ao mesmo tempo provocou perturbações no modo de vida. O
efeito civilizacional que a mercantilização de todas as coisas produz provocou o quase
desaparecimento do não-monetário, que provocam a erosão de outros valores que não
sejam o apetite do lucro, o interesse financeiro e a sede de riqueza. O homem produtor
passa a ser subordinado ao homem consumidor e este ao produto vendido no mercado.
Pensar a Terra-Pátria significa resistir, isso quer dizer manter a defensiva em
todas as frentes contra os retornos e desencadeamentos da grande barbárie e recuperar a
noção de que o verdadeiro desenvolvimento é o desenvolvimento humano. A associação
planetária é a exigência racional mínima para um mundo interdependente. A cidadania
planetária daria e garantiria direitos terrenos a todos. Uma nova geopolítica do planeta
seria descentrada e subordinada aos imperativos associativos e estabelecendo laços
cooperativos. É preciso que os homens e culturas caminhem para a mestiçagem
71
generalizada e diversificada. Ser cidadão-mundo requer uma maior vigilância sobre
heranças culturais e sermos mais compreensivos frente às adversidades e diferenças.
Trata-se de fazer da espécie uma humanidade e do planeta uma casa comum para a
diversidade humana.
A possibilidade de uma opinião pública planetária é uma realidade com a
participação da mídia. Isso já ocorre com vários exemplos de solidariedade planetária. A
união planetária é a exigência racional mínima para um mundo deprimido e
interdependente e é este realismo planetário que é hoje utópico. No entanto, a estratégia
da Antropolítica planetária está condenada a desenvolver-se numa extrema incerteza,
pois os princípios Antropolíticos são complexos, comportam incerteza e/ou
antagonismo no seu seio. Toda transformação é desorganizadora/reorganizadora.
Decompõe antigas estruturas para, a partir delas, constituir novas. A identidade terrena e
a Antropolítica não podem se conceberem sem um pensamento capaz de juntar as
noções desligadas e os saberes compartimentados. É necessário um pensamento que
reúna o que está separado e compartimentado, que respeite o diverso sem deixar de
reconhecer o uno, que tente discernir as interdependências.
O pensamento do complexo planetário remete-nos incessantemente da parte para
o todo e do todo para a parte. Ele deixa de opor o universal e o concreto, o geral e o
particular: o universal tornou-se particular - é o universo cósmico - e concreto - é o
universo terrestre. A reforma de pensamento é um problema antropológico e histórico
essencial. Isso implica numa revolução mental ainda mais considerável do que a
revolução Copernicana. Nunca na história da humanidade as responsabilidades do
pensamento foram tão esmagadoras. Estamos condenados à incerteza que as religiões de
salvação, incluindo a terrestre, pensaram ter expulsado. Não seguimos por um caminho
balizado, já não somos teleguiados pela lei do progresso, não temos messias nem
salvação, caminhamos às escuras. Devemos assumir a incerteza e a inquietação,
devemos assumir o Dasein, o fato de estarmos sem saber porque. Prosaica e
poeticamente o homem habita a Terra, mas a civilização ocidental moderna separou
prosa e poesia.
A tomada de consciência da comunidade de destino terrestre pode ser o
acontecimento-chave do fim do milênio: somos solidários com este planeta, a nossa
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vida está ligada à sua vida, ou o salvamos ou morremos. Assumir a cidadania terrestre é
assumir a nossa comunidade de destino. Como nos disse Morin,
A aventura continua a ser desconhecida. A era planetária talvez
soçobre antes de desabrochar. A agonia da humanidade talvez só
produza mortes e ruínas. Todavia, o pior ainda não é certo, nem tudo foi
jogado. Sem que para isso haja certeza ou sequer probabilidade existe,
contudo, a possibilidade de um futuro melhor. (MORIN, 160:95)
O maior desafio para a construção desta utopia é a promoção da democracia
cognitiva que tente eliminar os reducionismos e busque uma explicação no sentido
cosmológico para dar conta do entendimento dos sistemas complexos em que estamos
inseridos. Faz-se urgente a necessidade de uma reforma de pensamento, em sentido
qualitativo e não quantitativo. Não há reforma tendo como prisma apenas as instituições
se não for levada em conta a reforma dos espíritos. Em suma, a construção utópica que
se aproxima exige o reaprendizado do pensar numa espécie de revolução silenciosa e de
produção de enraizamento ético.
O novo preceito ético propõe que nós assumamos a condição e o destino
humano. Isso envolve a compreensão de uma antropologia complexa que entende o ser
humano numa relação dialógica e que faça emergir uma comunidade de destino. Essa
idéia representa a necessidade de uma ética universal que envolva o global e as
particularidades locais. Trata-se de uma ética planetária da comunidade humana. A
tomada de consciência da comunidade de destino terrestre deve ser o acontecimento-
chave do fim do milênio: somos solidários com este planeta, a nossa vida está ligada à
sua vida. Ou o salvamos ou morremos.
Morin (2005) sugere a criação de uma política de humanidade, isto é, uma
política de civilização que envolve necessariamente a articulação de uma ética da
compreensão planetária e uma ética da solidariedade planetária com o objetivo último
de civilizar a Terra. Trata-se de uma política instauradora de uma ética civilizatória
imbuída de objetivos planetários, tais como: as idéias de justiça, igualdade e
fraternização. Portanto, quando falamos em utopia, temos a clarividência de que a
esperança não morreu. Pensar a política civilizatória implica pensar a utopia fundada
73
numa ética cívica planetária. O humanismo planetário é produtor e produto da ética
planetária que também é sinônimo da ética da humanidade.
Criar a ética planetária implica reformas profundas da sociedade, do espírito e da
vida. assim conseguiríamos a reforma ética almejada. É uma tarefa sica e desafio
fundamental desenvolver uma consciência do destino terrestre comum. Isso implica
numa refundação antropológica capaz de alterar percepções, maneiras de pensar, valores
e instaurar preceitos já antigos, mas renegados pela civilização contemporânea. Entre
esses se destacam: o poder de síntese, a cooperação, a sabedoria intuitiva, a conservação
e o indeterminado. Faz-se necessário criar pela primeira vez uma antropologia, isto é,
uma teoria do homem que nos sirva de apoio na hora de fazer uma política do homem.
Essa é uma visão cosmopolita, democrática e ecológica. Para tanto, estamos imbuídos
de ousar uma reforma educacional que terá por objetivo conectar os conhecimentos,
reconhecer os problemas globais e apropriar-se dos desafios da complexidade, com
base, sobretudo, na religação. Em seu livro “Os sete saberes necessários à educação do
futuro” (2005), Edgar Morin afirma que há sete saberes “fundamentais” que a educação
do futuro pode abordar em toda sociedade e em toda cultura, sem exclusividade nem
rejeição, segundo modelos e regras próprias a cada sociedade e a cada cultura. São eles:
as cegueiras do conhecimento; o erro e a ilusão; os princípios do conhecimento
pertinente; ensinar a condição humana; ensinar a identidade terrena; enfrentar as
incertezas; ensinar a compreensão; a ética do gênero humano. O fim último é a
compreensão dos problemas planetários, assim como a compreensão das diferenças
entre as pessoas, povos e etnias e tomar consciência das necessidades políticas, sociais e
éticas.
Como romper com a gica do utilitarismo e ditadura das satisfações materiais
que nos sufoca hoje? Trata-se de um campo espinhoso que é o da subjetividade humana.
Fazer com que as pessoas passem por experiências estéticas como a música, literatura,
artes em geral pode ser um grande antídoto libertador em relação a esse hedonismo
consumista e exacerbado. A estética, como herança da nobreza, é a exaltação da
“riqueza do ser”, inimiga do egoísmo burguês. Ressalta uma visão de sociedade como
comunidade de sensibilidade com seus iguais. Julgar esteticamente equivale a livrar-se
de preconceitos em nome de uma humanidade comum e universal.
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A obra de arte está dentro e fora de nós, ela é nosso dentro ali fora. É isto que faz
dela um objeto especial – um ser novo que o homem acrescenta ao mundo material, para
torná-lo mais humano. A arte não seria uma tentativa de explicação do mundo, mas de
assimilação de seu enigma. Se a Ciência e a Filosofia pretendem explicação do mundo,
esse não é o propósito da música, da poesia ou da pintura. A arte, abrindo mão das
explicações, nos induz ao convívio com o mundo inexplicado, transformando sua
estranheza em fascínio.
Vivemos um dilema ético atualmente que é o favorecimento do egocentrismo
deixando o altruísmo num plano secundário. Os publicitários exercem o papel de
apóstolos da Modernidade e criam um imaginário social em que todo mundo é uma ilha.
Oferece seus produtos como resposta para o descontentamento moderno. Para os
homens de negócio, a produção de massa implica a educação do povo. Consumo e
nação são faces da mesma moeda. Os publicitários se consideram assim como
verdadeiros artífices da identidade nacional. A publicidade induz ao consumo e reforça
a idéia de que o ato de consumir é um exercício de participação, inserção social e
cidadania. Essa nova mídia cria anseios e expectativas. Na sociedade contemporânea, os
não-consumidores são vistos como não-pessoas e os padrões de consumo classificam os
estratos sociais e determinam as identidades e reconhecimento de conduta através
destes. As identidades configuram-se no consumo, ou seja, o que se possui ou o que se
pode chegar a possuir. Há uma tendência do capitalismo em promover a ilusão da
ascendência de classe. Como medir essa mobilidade? Os critérios e modalidades de
consumo das classes sociais, mapeada por meio das pesquisas de mercado quantitativa e
qualitativa é um “ótimo” indicador dessa movimentação.
11
11
O estudo do comportamento do consumidor é um campo de estudos novo que surge em meados da
década de 60. Auxiliado por outras disciplinas científicas como a psicologia (o estudo do indivíduo), a
sociologia (o estudo dos grupos), a psicologia social (o estudo de como um indivíduo age em grupo), a
antropologia (a influência da sociedade no indivíduo) e a economia.
É o estudo de como os indivíduos tomam decisões de gastar seus recursos disponíveis (tempo,
dinheiro, esforço) em itens relacionados ao consumo.
Para as empresas e profissionais de marketing tornou-se importante reconhecer por que e como
indivíduos tomam suas decisões de consumo de tal modo que possam tomar decisões melhores de
estratégia de marketing. Se os profissionais de marketing entendem o comportamento do consumidor, eles
se tornam capazes de predizer a probabilidade de os consumidores reagirem a vários sinais
informacionais e ambientais e, portanto, podem planejar suas estratégias de marketing coerentemente.
Sem dúvida, as empresas que entendem o comportamento do consumidor m grande vantagem
competitiva no mercado.
75
Precisamos de uma regeneração moral para não perder o horizonte do altruísmo
e das potencialidades comunitárias que são intrínsecas à nossa condição humana.
Qualquer reforma ética que se preza deve estar atrelada à reforma educativa e à reforma
da vida. Não existe reforma ética solitária. Ela não é algo que se faz como uma receita
de bolo com doses e medidas adequadas. Esta reforma é, ao mesmo tempo, realista,
porque está nas possibilidades concretas da humanidade, e utópica, porque grandes
forças de ilusão e de erro a ela se opõem. Toda utopia se alimenta da realidade, assim
como toda realidade tem dentro de si os horizontes e possibilidades utópicas.
Uma reforma do pensamento: a debilidade e a complexidade
Francis Fukuyama (1992) afirmou o “fim da História”. O esforço principal de
Fukuyama, que provocou grande repercussão, foi a elaboração de uma linha histórica
que, de Platão a Nietzsche, passando por Kant e Hegel, revigorasse a tese de que o
capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento da história da
humanidade, ou seja, de que a humanidade teria atingido, no final do século XX, o
ponto culminante de sua evolução com o triunfo da democracia liberal ocidental sobre
todos os demais sistemas e ideologias concorrentes. Mas o que Fukuyama assimilou foi
o esgotamento de um modelo histórico ao “fim da História”. Não existiria mais o
movimento progressivo linear do Ser, no sentido de uma história unitária que contemple
a noção de progresso da humanidade, a dissolução dos pontos de vista únicos e
excludentes e a possibilidade de emancipação humana, num mundo menos totalitário,
quer dizer, que tenha por base o fim da consciência moderna da história como curso
unitário e progressivo dos eventos à luz da equação segundo o qual o novo é sinônimo
de melhor. Estaríamos diante da queda dos paradigmas absolutos e fixos. Ocorreria o
que chamamos de desvelamento do Ser, a abertura do Ser para suas infinitas
possibilidades, sem estruturas fixas, possibilitando o aparecimento de entes particulares.
A História aniquilada é a História linear dos poderes absolutos dos Estados.
A meta é alcançarmos uma pós-História, o que Morin chama de “sociedade-
mundo”. A História é sempre feita de desvios e bifurcações, passando por várias
metamorfoses nem todas consideradas progresso. O momento que estamos vivendo é
emblemático para ilustrar essa metamorfose, pois estamos na iminência de uma
catástrofe ambiental de proporções gigantescas. existem sinais evidentes pelo mundo
76
dos desequilíbrios ecológicos causados pela ação humana. Cresce perigosamente o risco
de destruição, mas é em situações como essa que a esperança ganha corpo e a
metamorfose se faz iminente. Segundo Morin, estamos prestes a entrar numa era
planetária que carrega o horizonte utópico de uma sociedade-mundo que tem por meta a
regeneração e a metamorfose antropossociológica rumo a uma meta-humanidade que
transforme as relações indivíduo/sociedade/espécie. Uma era de comunidade de destino
de toda a humanidade cuja identidade se faz como uma forma de identificação e
pertencimento e não implica num único modo de pertencer, mas vários. Ela é, portanto,
desconcentrada. Onde está a esperança? A esperança ética e política estão em estágio
embrionário no ceio dessa metamorfose que se avizinha.
A crueldade do mundo em conjunção com a crueldade humana é o pior dos
males. Temos em nós o bem e o mal juntos. Nesse sentido, a tarefa da ética é combater
essa conjunção nefasta e impedir que o mal triunfe, embora ingênuo afirmar a sua
extinção. A esperança repousa sob a égide da solidariedade para combater a crueldade
do mundo e a crueldade humana.
Utopizar uma ética civilizatória significa instaurar uma nova filosofia pública e
uma ecologia da ação que respeite a polifonia de valores e culturas dentro de uma
perspectiva ecocêntrica e que tenha como base fundante a dialogia entre ciência e
tradição, imaginário e real, subjetividade e objetividade, Oriente e Ocidente. A ecologia
da ação incita-nos a uma dialética entre o ideal e o real.
Para o filósofo Gianni Vattimo, as filosofias de Nietzsche e Heidegger seriam as
constituintes do pilar que vai estruturar a filosofia do futuro. Para Vattimo, esses dois
pensadores marcam o fim da época moderna, tendo em vista que pensam o ser como
acontecimento e não como uma estrutura estável. De Nietzsche, Vattimo vai tomar a
idéia de niilismo, propondo a partir de então um niilismo positivo e reativo e, sob a
influência de Heidegger, Vattimo faz uma reflexão sobre a crise do humanismo, na qual
a centralização de tudo no próprio homem parece ter chegado ao seu limite máximo. A
crise do humanismo corresponde ao ser metafísico dotado de certeza inabalável. As
certezas não deixam espaço para o exercício da subjetividade humana, impossibilita um
respeito autêntico pela natureza e conduz à escravidão das sociedades de consumo na
era da tecnologia.
77
A conquista da emancipação e a superação da metafísica tradicional serão
realizadas, na percepção de Vattimo, através de uma ontologia débil. O pensamento
débil é uma legitimação que não se apega à estrutura do Ser nem tampouco a uma lei da
História, propõe-se trabalhar por uma sociedade onde se elimine a violência e os
autoritarismos. Segundo o filósofo italiano, a nossa época se configura como a
passagem de um pensamento forte para um pensamento débil.
Para explicar o pensamento débil Vattimo faz uso das categorias ontológicas de
Nietzsche e Heidegger, o super-homem nietzschiano que abandonou as certezas
metafísicas e abre caminho para uma efetiva experiência da individualidade como
multiplicidade, e o Dasein heideggeriano que significa a nossa própria análise de nós
mesmos em nossa existência, estar no mundo na forma de projeto. Uma ontologia débil
é, na concepção vattimiana, uma ontologia hermenêutica. Sendo assim, Gianni Vattimo
apresenta a razão hermenêutica como novo modelo de pensar o real, a qual possibilita a
interpretação e descrição mais razoável da cultura tardo-moderna.
Por outro lado, o paradigma da complexidade, que tem em Edgar Morin um de
seus principais expoentes, concatena uma nova cosmologia e um universo holístico o
qual penso ter um efeito complementar à filosofia de Gianni Vattimo. A aceitação da
complexidade é a aceitação de uma contradição e a idéia de que não se podem
escamotear as contradições numa visão eufórica do mundo. É exatamente o que dizia
Heráclito: há a harmonia na desarmonia, e vice-versa.
A consciência da complexidade nos faz compreender que jamais poderemos
escapar da incerteza e que jamais poderemos ter um saber total: “A totalidade é não-
verdade”. Segundo Morin, três princípios que podem nos ajudar a pensar a
complexidade: o primeiro é o dialógico que nos permite manter a dualidade no seio da
unidade e associa dois termos ao mesmo tempo complementares e antagônicos. O
segundo princípio é o da recursão organizacional, já que tudo o que é produzido volta-se
sobre o que o produz num ciclo ele mesmo autoconstitutivo, auto-organizador e
autoprodutor. O terceiro princípio é o princípio hologramático. Não apenas a parte está
no todo, mas o todo está na parte.
78
Creio que estes princípios podem ser alcançados através do pensamento débil e
de uma ontologia fraca. É aqui que pensamento débil e pensamento complexo se
complementam. Passamos então a uma pequena análise destas duas formas de pensar.
O pensamento débil corresponde a uma determinada atitude cognitiva. É uma
corrente intelectual que surgiu na Itália, no início da década de 80, como uma reação
aos excessos ideológicos que se desencadearam a partir de 1968, e consequentemente
como o único movimento que tem herdado o caráter emancipador daquelas ideologias.
Concebe a história da emancipação do Homem como uma redução progressiva da
violência e dos dogmatismos, fato que permite ultrapassar as estratificações sociais que
deles derivam. O pensamento débil é uma legitimação que não se apega à estrutura do
Ser nem tampouco a uma lei da história. O pensamento tem a função de construção, de
funcionalidade histórica (e política), acerca da qual podem surgir muitas e legítimas
dúvidas. Em outras palavras, trata-se de um pensamento que se reduz à tarefa de
incorporar as formas espirituais transmitidas. Vattimo entende que a noção chave para
entender a existência humana no mundo pós moderno é a de “debilitação do ser”, isto
é, a passagem de um pensamento forte para um pensamento débil . O “pensamento
fraco” é nesse sentido uma resposta ética e epistemológica ao fim dos fundamentos
absolutos postulados pela metafísica clássica.
Vattimo acusa a filosofia atual de não ter nenhum projeto, a não ser a descrição
dos fatos. Entretanto, o pensamento débil, considerado por Vattimo uma alternativa ao
Hegelianismo, possui um projeto, segundo o qual diante da perda de confiança no
futuro, propõe-se trabalhar por uma sociedade onde se eliminem a violência e os
autoritarismos. Trata-se da capacidade de viver numa racionalidade plural, fruto do
enfraquecimento do ideal filosófico de racionalidade.
Por pensamento forte ou metafísico, Vattimo entende um pensamento que fala
em nome da verdade, da unidade e da totalidade, ou melhor, um tipo de pensamento que
tem a ilusória pretensão de fornecer ao homem uma faculdade que lhe permite conhecer,
julgar e agir. Por pensamento débil ou pós metafísico entende também ser um tipo de
pensamento que refuta as categorias fortes e as legitimações de pensamento. Um
pensamento que não aceita um tipo de razão apresentada como única e normativa. Nesse
sentido, o pensamento débil é fruto de nossa época, que se apreende como uma forma
79
de niilismo. Ascender ao Ser em sentido débil é uma fundamentação hermenêutica, quer
dizer um projeto histórico que não se preocupa em remontar a uma origem única de
pensamento e tradição. Seria o contrário das formas de pensamento forte como os
nacionalismos, a xenofobia, o terrorismo e uma resposta aos fundamentalismos. Por isso
Vattimo aponta que o niilismo e o pensamento débil se apresentam como a resposta da
filosofia (a única resposta que lhe parece agora possível) a este estado de coisas. Em
suma, é o único modo de se fazer filosofia, na época (e na contingência) do niilismo.
Muitas teses, muitas “verdades”, muitas interpretações, são simultaneamente legítimas,
mas nenhuma tese, nenhuma verdade pode dizer-se definitiva e conclusiva.
Para Vattimo, o único modo de falar de ontologia é falar de história do Ser, e
não limitar-se a falar do Ser. A história do Ser tem como fundamento básico o
debilitamento das estruturas fortes, ou seja, desse projeto de racionalidade da
modernidade, no qual os portadores de mensagens “verdadeiras” serão desmascarados.
Há, portanto, um desvelamento do Ser, como diria Heidegger.
A verdade é agora categorizada como uma verdade débil que questiona as
certezas da metafísica clássica e entende o verdadeiro como resultado de um processo
de verificação sem uma natureza lógica ou metafísica, mas apenas retórica. As
verificações e os acordos ocorrem dentro de um determinado horizonte, constituídos
pelas relações interpessoais, das relações entre as culturas e as gerações. A verdade não
é resultado da interpretação porque através da interpretação se logra apreender
diretamente o verdadeiro, como ocorre quando a interpretação se concebe como
deciframento, desmascaramento etc. As crises do fundamento e o final da ontologia
afetam também a base com que se apóiam as relações sociais.
Em virtude da concepção “retórica” da verdade, o Ser de acordo com a visão
heideggeriana do Ocidente como a terra do ocaso do Ser experimenta profundamente
seu declive, vive até o fim o sentimento de sua debilidade. A proposta é acompanhar o
Ser em seu ocaso e preparar assim uma humanidade ultrametafísica.
A concepção da história da modernidade é vista como debilitamento e
dissolução do Ser (da metafísica). O sujeito racional e unitário perde a sua segurança
epistemológica, a sua autoconsciência axiológica e questiona-se do ponto de vista
80
ontológico. Torna-se frágil, débil, na expressão de Vattimo, e a par dessa transformação,
assiste-se à erosão do princípio da realidade: a realidade deixa de ser uma só, ou deixa
mesmo de ser como para Derrida
12
—, torna-se plural, caótica, oscila, abre-se a um
mundo de possíveis. O sujeito “debilitado” aprende a responder a situações
imprevisíveis e complexas. Entretanto, Vattimo vai ressaltar o perigo de esperar a
chegada de um Ser autêntico ou de uma “verdade forte”. O pensamento “débil” remete a
uma modificação tanto do objeto do conhecimento quanto do sujeito que conhece.
Um pensamento “débil” pretende expor um diálogo em que reconhece a sua
própria historicidade. Questiona todo intento de integração dialética em um projeto
total. Vattimo propõe uma ontologia débil, que concebe o ser como transmissão de
experiências e que tenha uma superioridade intrínseca a qualquer lei de iluminação
profética, lei essa que tem o sentido de estabelecer uma verdade única e que deva
exercer um domínio sobre os fiéis seguidores. Este pensamento não é um conhecer, pois
este “conhecer” é uma experiência global e esta experiência não admite ser tratada
como objeto. É uma união com a realidade; ou melhor, um realizar-se.
Ao pensar, não de acordo com suas características “fortes”, sempre preferidas
pela metafísica, mas sim segundo uma concepção diversa, débil, do Ser, não se trata
apenas de pensar o Ser de forma negativa, como devastação e alienação que constituem
a experiência da civilização de massas. Vattimo propõe uma leitura ontológica, e não
somente sociológica, psicológica, histórico cultural da existência humana dentro de
concepções pós – modernas de vida.
Hermenêutica é uma filosofia que reconhece como constitutivo do Ser mesmo o
diálogo entre indivíduos, gerações, culturas diversas. É uma orientação filosófica hoje
largamente difundida e que ganhou autonomia no mundo contemporâneo. É uma forma
de dissolução do Ser na época da metafísica acabada. A hermenêutica ganha força
12
Jacques Derrida (1930-2004), em uma linha de raciocínio inspirada em Nietzsche e Heidegger,
procurou atacar o platonismo alertando para uma característica da linguagem que teria envolvido e
dominado a filosofia. Ao querer apresentar “a realidade” e o “significado”, a filosofia não teria percebido
ao menos se mantivermos a filosofia como um discurso que sempre foi honesto o quanto se colocou
de modo superior a outros discursos sem legitimidade para tal. O discurso filosófico não seria superior ou
inferior a outros tipos de discursos, escritos ou falados, como os da ficção e das ciências, e sofreria das
vicissitudes de toda e qualquer linguagem quando se dispõe a dizer o que é o “significado” e a
“realidade”. Todo discurso, em tal tarefa, cairia em auto-destruição – se des-construiria.
81
enquanto filosofia do mundo atual em virtude desse mundo ter uma forte expressão da
mídia, justificando a frase de Nietzsche de que “não fatos, interpretações”. É a
filosofia que tem como ponto central o fenômeno da interpretação, que traz consigo a
marca de quem “conhece”. A novidade hermenêutica consiste em afirmar que a
interpretação racional (argumentativa) da História não é científica no sentido do
positivismo. O pensamento hermenêutico proposto por Vattimo destaca o pertencimento
do observador e do observado a um horizonte comum, cujo diálogo produz um
pensamento, uma reflexão, uma teoria, enfim capaz de modificar um horizonte.
O mundo da ontologia hermenêutica é para Vattimo, o mundo do niilismo em
ato, onde o Ser tem uma chance, a contaminação vivida como único possível, isto é, o
Ser visto como evento e acontecimento, que ao ser “contaminado” pode viver outras
realidades possíveis. Uma ontologia hermenêutica contraria a ontologia “absoluta”
hegeliana que prevê uma conclusão, isto é, que expõe a idéia do Ser que atingiu o auge
e portanto, deve impor-se aos outros. Nesse sentido, Vattimo argumenta que não
podemos fazer uma filosofia da história, ou melhor, a única filosofia da história que
podemos professar é a filosofia da história do fim da filosofia da história, e isto não
deixa de ser um princípio positivo. Se eu sei que a verdade não é definitiva, procuro um
acordo, escutar os outros e corrigir-me, estou na atitude hermenêutica, que vai
proporcionar um diálogo intersubjetivo. Em outras palavras, o fundamento, o princípio,
o projeto inicial de nossas reflexões só pode ser a reflexão hermenêutica
A ontologia hermenêutica é muitas vezes acusada de relativista ou irracionalista,
porque lhe falta aquela instância da verdade apregoada pela tradição metafísica. No
entanto, Vattimo defende que a hermenêutica deve desenvolver uma noção específica de
racionalidade, sem retornar aos procedimentos fundadores da tradição metafísica. O
modo de conceber a verdade atualmente, caracteriza a hermenêutica como koiné”. A
experiência da verdade se como ato interpretativo. A hermenêutica é em si mesma
“apenas” interpretação, ela não funda as próprias pretensões de validade num acesso
presumido às coisas em si mesmas. Ela é muito mais uma consequência da modernidade
do que uma refutação. Destruir ou “desconstruir” a história da ontologia não é aniquilar
a filosofia do passado, mas recuperá-la como uma filosofia que está por vir uma
filosofia futura que irá olhar adiante para seu passado e regozijar-se em sua infindável
novidade.
82
Como um pensamento complementar à proposta hermenêutica vattimiana,
entendo que junto com o pensamento complexo teremos condições de vislumbrar a
construção da utopia na Contemporaneidade enquanto um projeto em aberto. Tanto um
pensamento como o outro questiona o fim do projeto iluminista de lidar com a razão e
verdades alcançadas e reveladas como um fim em si mesmo.
O pensamento complexo ou a complexidade é gerador de grandes equívocos. O
senso comum entende o complexo como o oposto a simples. Etimologicamente,
complexo vem do latim complectere; plectere significa emaranhar, trançar; complectere
corresponde a trançar com, trançar junto, religar. Na etimologia latina, portanto, procede
de complexus, ou seja, aquilo que se junta, e não aquilo que se define como oposição ao
simples.
Segundo Edgar Morin, a simplicidade é a barbárie do pensamento enquanto a
complexidade é a civilização das idéias. Morin entende a simplicidade como um
sinônimo de fragmentação, divisão, separação, blindagem, monofonia. Enquanto a
complexidade é entendida como sinônimo de trançagem, religião, complementaridade,
multidimensionalidade e polifonia.
Aprender a lidar com as incertezas é uma condição revolucionária. Sempre
procuramos buscar as verdades, os princípios, as explicações e indagações convincentes
para resolução de problemas e de soluções inquestionáveis, mas tudo isso não passa de
uma grande ilusão. A que se destina então o conhecimento, as nossas atitudes, as nossas
ações? Não uma resposta certa e verdadeira para essas questões. Nesse sentido, é em
cima dessas incertezas que devemos caminhar, pois a idéia de incerteza é constitutiva, já
que dentro das incertezas, tudo pode vir a acontecer.
O pensamento científico é o pensamento que foi domesticado, que se afastou da
sensibilidade, da intuição e começou a pensar exclusivamente através da imagem fria
dos conceitos, transformando-se em algo extremamente objetivo, renegando a
subjetividade a um plano secundário e superficial. Ao seguir os preceitos do
pensamento complexo, percebemos que os conceitos não podem ser entendidos como
algo frio para estudar os objetos, tendo em vista que os conceitos também são saturados
83
de intuição e de sensibilidade. O próprio conhecimento não é o conhecimento da
certeza, ele é dotado de erros e ilusões. Sendo assim, a referência apreendida no
pensamento complexo é a de religar os sentimentos, trabalhar sem centro e no terreno
da Antropoética, isto é, a ética da condição humana e para a condição humana, uma
posição acêntrica do ser humano, sem um centro organizador.
Essa ética do ser humano remete à necessidade urgente de se buscar um novo
humanismo, articula ciência, filosofia e religião e encontra uma nova significação do
conhecimento pelo religar, sai da cegueira paradigmática e enxerga o homem, o
cidadão, em sua essência. Nesse sentido, a cosmologia como área interdisciplinar e que
raciocina transdisciplinarmente é que deve ser a linha mestra segundo o campo de ação
do ser humano, conectando o indivíduo com o cosmo e visando sempre o
estabelecimento de uma sociedade mais horizontalizada e não tão verticalizada. A
cosmologia ganha uma perspectiva muito mais importante no mundo atual, porque a
perpetuação da humanidade hoje não é mais uma evidência, depende de nós querê-la, ou
seja, querer promover a reconciliação do homem com a natureza, pois o homem faz
parte da natureza, não está fora dela.
O trabalho de reconectar é um hábito a ser cultivado e reaprendido, pois o
conhecimento da forma como é tratado, ao invés de abrir fecha as janelas. Por isso
mesmo, é mais coerente entender o conhecimento que deve ser entendido como a
pluralidade de janelas que lhe conectem com o mundo. Para que isso ocorra é
imprescindível que o conhecimento não seja creditado como algo portador de verdades
objetivas, pois é por meio do sentimento de incertezas que será favorecida uma
reorganização cognitiva. E por vezes, a tentativa de abrir janelas é mais proveitosa que a
efetividade de um objetivo concretizado. A ausência de objetivo também indica a
presença de alguma coisa.
A nossa crítica tem como alvo principal o determinismo linear que é a
determinação clássica da ciência. A ciência tem como principal característica a
perspectiva reducionista e o pensamento complexo, fazem justamente uma
contracorrente ao reducionismo. Foram os estudos da complexidade que tentaram
colocar obstáculos no caminho do paradigma dominante. A tradição diz que todo
84
cientista quer fazer valer o seu ponto de vista. A ciência vista pela ocularidade do século
XVII buscava a previsão do futuro e a busca da verdade articulando-se como o caminho
mais legítimo. Sendo assim, é necessário hoje desaprender determinados hábitos,
conceitos e idéias, não no sentido da negação destas, mas sim do desligamento.
Tendo como proposta a noção de incerteza, ou melhor, de lidar com as
incertezas, é necessária a existência de práticas científicas diferenciadas, instaurando o
diálogo. Estabelecer uma nova aliança entre as ciências e a cultura, não para fazer
apologias às diversidades culturais, mas para mostrar que são as manifestações da
cultura que possuem as diferenciações. A sociedade que não conseguir estabelecer um
elo entre a cultura científica com a cultura das humanidades, sem dúvida poderá ser
considerada uma sociedade menor.
As sociedades complexas que dominam o planeta hoje têm a característica da
superexploração, são sociedades de diversificação. Voltar o olhar para trás faz-se
necessário na atualidade para que possamos considerar o modelo desenvolvimentista e a
noção de progresso como projetos falhos que nos levaram a extremas desigualdades,
processos de desumanização, além de adquirirmos a possibilidade de liquidarmos a nós
mesmos. Quando digo voltar a olhar para trás não significa o retorno ao estado de
natureza, mas o resgate de um humanismo ético e planetário. O mito do
desenvolvimento e crescimento econômico determinou a crença de que era preciso
sacrificar tudo por ele. Apesar das condições materiais de existência terem se submetido
ao significativo avanço e proporcionado o bem-estar, ou pelo menos a perspectiva deste.
O indivíduo mergulha em um mundo de futilidades e falsas necessidades numa busca
desenfreada por um consumo inóspito. Carrega na alma a fragilidade da subjetividade,
pois a ciência e a técnica parecem assumir a tarefa de promoção do desenvolvimento
humano. A noção de progresso, produtividade, parece ter transformado o homem em
máquina, sempre em busca de um objetivo que não é claro e gera um processo de
desumanização. A idéia de progresso que pressupõe a história como superação,
evolução e desenvolvimento, rumo a um determinado fim, é agora colocada em xeque.
Não mais espaço, para um sujeito único e racional que interpreta a história à luz de
sua ótica como uma verdade e sentido absolutos. Vários fatos históricos no correr dos
séculos têm demonstrado como é falha a idéia de um ponto de vista supremo.
85
Com o pensamento complexo é evidente perceber que a ciência e o
conhecimento precisam, no mundo globalizado, de meios de comunicação de massa
conectados com o todo, sem afastamentos. O mesmo ocorre com os demais campos da
ciência, sejam elas físicas, humanas ou biológicas. Não mais como pensarmos em
campos separados e fazermos louvor à fragmentação do conhecimento. Os campos do
conhecimento não precisam mais necessariamente promover preconceitos uns em
relação aos outros. Uma nova utopia que tende a pensar o cidadão planetário, com uma
visão holística e conectado com o mundo encaminha-se, está em gestação. Não se trata
da paz perpétua, mas de um novo caminho a trilhar na busca pelo novo encantamento do
mundo.
Aceitar a debilidade e a complexidade do pensamento não significa cair no mero
relativismo, mas lidar com os problemas humanos e a utilização de outras categorias de
pensamento, menos rígidas, menos totalitárias e que possam nos levar a uma nova
condição ética de convívio, talvez nos emancipando definitivamente das amarras que
criamos ao longo das épocas históricas. A proposta de promover o diálogo entre esses
dois pensamentos remete à apreciação do caminho percorrido por ambos, por vias e
caminhos distintos, porém com a proposta de criar um novo paradigma que me parece
mais condizente com a realidade contemporânea, integrando e compartilhando ao invés
do fragmentar e do afastar; e, interpretando e dialogando ao invés do aniquilar e não
tolerar.
Enquanto Vattimo vislumbra a possibilidade de um pensamento
descentralizador, sem as categorias rígidas da razão e que leve em conta a idéia de que
não há fatos, só interpretações, segundo a formulação nietzchiana. Morin propõe a
complexidade do pensamento que concebe a conjunção do uno e do múltiplo, fato que o
paradigma simplificador de Descartes foi incapaz de conceber. Enquanto Vattimo
aponta para a multiplicação de verdades e pontos de vista (o múltiplo), Morin propõe a
religação de todos esses saberes desconexos (o uno). Nesse sentido, a ética complexa
conserva a esperança quando tudo parece carregado de desesperança. A esperança está
totalmente aberta para o que ainda pode acontecer. Ela acredita na metamorfose que
produziria um renascimento da humanidade. É importante frisar que ter esperança não
significa ter o alcance da totalidade da certeza, mas é uma reação do humano contra a
86
desesperança. A esperança é, pois, alimentada pela desesperança, assim como a utopia é
alimentada pela antiutopia.
Como podemos descrever o objetivo do conhecimento? Seu principal aspecto é
descrever o destino humano e esse destino ocorre pelos acasos, pelas dissipações. Por
isso, devemos apostar em uma nova possibilidade para a condição humana. O homem
social se voltou muito para a idéia de que o Contrato Social seria o ideal para viver em
sociedade. É preciso reativar o Contrato Natural. É preciso restaurar a idéia de
totalidade.
O filósofo francês Michel Serres, em sua obra O Contrato Natural (1991),
procurou analisar o lugar do homem no mundo. A violência seria resultado de uma ação
individual, muito mais do que coletiva. A ligação do indivíduo com a terra através de
atividades produtivas agrícolas promovia ao indivíduo o estar-no-mundo numa relação
intrínseca um-com-outro, caracterizando as convencionais filosofias campesinas, nobres
e dignas. Hoje o sujeito, através do contrato social ficou enclausurado e em espaços
cotidianos fechados, subjugado pelo imperativo do medo e da desconfiança. Com isso o
ser humano se individualiza. Trata-se de uma cultura que perdeu o mundo e a memória
do longo prazo ficando reduzido à lógica perversa do instante, embora a construção
exija o longo e o lento processo, inclusive da formação ético-cultural. Na perspectiva de
Serres, faz-se necessário criar uma relação de comunhão e de amor com o outro e com a
Natureza na busca da recuperação dos elos que prendiam o homem ao mundo e ao
tempo em que foram perdidos, a fim de resgatar a visão espiritual, capaz de efetivar o
novo “Contrato Natural” que possibilite um novo padrão de desenvolvimento
sustentável, ambientalmente seguro e eco-socialmente equilibrado, que crie condições
para a sustentabilidade da própria sociedade. A história global entra na natureza, a
natureza global entra na História e isto é inédito na Filosofia, diz Michel Serres.
Falar em Contrato Natural e na religação ética do homem com a natureza
implica também num aspecto fundamental no mundo contemporâneo que é a
necessidade de se recuperar a idéia de mito. A ciência nasce em oposição ao mito como
desmitificação, promovendo o desencanto do mundo, enquanto o mito continua a ser
tratado como uma objetividade menor, uma menor eficácia tecnológica. Os mitos
87
nascem da recusa da metafísica da História que regia a anterior teoria do mito, mas não
conseguem formular-se em termos teoricamente satisfatórios porque não elaboraram
uma nova concepção filosófica da História; puseram simplesmente o problema de lado.
Cabe aqui frisar que o mito não é uma fase primitiva e superada de nossa história
cultural, mas antes uma forma de saber mais autêntica, não devastada pelo fanatismo
puramente quantitativo e pela mentalidade objetivamente própria da ciência moderna,
da tecnologia e do capitalismo. Espera-se de um renovado contato com o mito uma
possível saída das deformações e contradições da atual civilização científica
tecnológica.
Por isso é importante ressaltar o papel da cultura como criadora de novas
experimentações simbólicas de significantes. A cultura corresponde à quantidade e
qualidade de aprendizado que as pessoas acumulam por meio de uma instituição ou
não e que produz complexidade individual e sentido à vida. Se todos somos seres
culturais e o homem é um fazedor de cultura por excelência, é inútil acreditar que
alcançaremos certezas inafiançáveis. Dentro do processo complexo atual do
conhecimento não mais espaço para distanciamento entre as áreas do saber. As
conexões entre áreas aparentemente contraditórias não podem ser descartadas. Sendo
assim, faz-se necessário o estabelecimento de um novo paradigma no campo das
ciências, principalmente aproximando a área das humanidades a do cientificismo puro.
Qual a finalidade da ética? Resistir à crueldade e à barbárie e buscar a realização
da vida humana com o objetivo de viver humanamente. Por isso, é preciso assumir as
dimensões da identidade humana: individual, social e antropológica. É dessa forma que
a ética se relaciona com a utopia no mundo contemporâneo. A ética complexa está
totalmente conectada com o atual conceito histórico que é alimentado por um niilismo
negativo, por uma descrença generalizada e pela desesperança. É em momentos como
esses que a ética complexa regenera a utopia como mola propulsora de uma nova
metamorfose, que invista num mundo menos antropocêntrico e mais ecocêntrico.
Não caminho. Apostar nisso é apostar na regeneração. Assumir que a vida é
uma arte e viver a vida como poesia e como arte. Como disse Nietzsche: “O homem
mais sábio seria o homem mais rico de contradições, mas de tempos em tempos teria
momentos de gloriosa harmonia”.
89
CAPÍTULO 2
ESPERANÇA E RESPONSABILIDADE: FUNDAMENTOS DA NOVA UTOPIA
"A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais
alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de
caminhar.”
Eduardo Galeano
A utopia como definição etimológica significa o lugar não existente, que não se
encontra em lugar algum. O interesse principal da utopia é a incessante viagem da
humanidade em direção ao que ainda não existe; a busca da ilha feliz, concebida das
maneiras mais diversas e registradas em formas literárias as mais variadas. Utopia como
definição de senso comum é o projeto cuja realização é impossível. Os defensores do
status quo classificam as idéias contrárias à ordem de “subversivas”, de impraticáveis e
irrealistas procurando assim combatê-las, são os chamados antiutópicos. Em poucas
palavras: com freqüência não é o caso de que certo projeto seja absolutamente
irrealizável, mas sim que a maioria das pessoas ainda não é capaz de se propor a sua
realização, ou ainda que, de fato, o projeto seja impossível no momento, embora venha
a ser possível amanhã ou depois. É comum definir-se como irrealizável um projeto de
transformação social tão somente porque não se conhecem realizações históricas
anteriores ao mesmo.
A qualificação de algo como utópico depende em muitos casos da imaginação
sociológica e tecnológica de quem analisa, pois capacita seu possuidor a compreender o
cenário histórico mais amplo. O primeiro fruto dessa imaginação - e a primeira lição da
ciência social que a incorpora, é a idéia de que o indivíduo pode compreender sua
própria existência e avaliar seu próprio destino localizando-se historicamente. Hoje, a
principal tarefa intelectual e política do cientista social é deixar claros os elementos da
inquietação e da indiferença contemporânea diante dos valores mais altruístas e
coletivos da boa convivência.
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uma diversidade muito grande quando se fala em utopia. Podemos destacar
quatro pontos que corroboram esta afirmação: é muito difícil classificar as idéias
utópicas; a quantidade das idéias utópicas é quase ilimitada; cada época produz muitas
utopias que não apresentam um esquema único; existem muitos pontos de vista para
estudar a pluralidade de dimensões do fenômeno; daí a dependência da utopia como
qualificadora da imaginação sociológica de quem a professa.
Pode-se dizer que as utopias têm um caráter religioso e também um mecanismo
de mobilização política que nem sempre levam para o caminho do bem, são capazes de
provocar injustiças terríveis. Mas por que os homens as criam? Seria para amenizar as
estadias nos infernos em comum, como aponta Freud; ou a criação imaginária de locais
paradisíacos de se viver é inerente à nossa condição humana? Entendo que ambas as
indagações são procedentes e justificam a existência dos horizontes utópicos. A
esperança de que aquilo que não é, não existe e pode vir a ser é a força contraditória
inerente ao indivíduo. A imaginação utópica supera os limites freqüentemente
medíocres da realidade e penetra no mundo do possível, é o ponto de contato entre a
vida e o sonho, pois mantém a crença numa outra vida possível. Parte de fatores
subjetivos, mas a seguir ela se nutre dos fatores objetivos produzidos pela tendência
social da época, guia-se pelas possibilidades objetivas e reais do instante que funcionam
como elementos mediadores no processo de passagem para o diferente a existir amanhã.
Essa imaginação, portanto, não é um simples sonho abstratamente utópico, e sim, uma
imaginação utópica concreta.
A diferença entre a profecia e a imaginação utópica é que a primeira é a
visualização do não sabido, do desconhecido; a imaginação utópica é a projeção do
sabido, do consciente (materialização de um desejo). Ela é propositiva: as coisas
poderão acontecer se o homem quiser. É assim, interior ao homem, algo de seu íntimo,
uma necessidade e um direito que não se esgota com a realização de seu objetivo, pois
sempre um excedente utópico a funcionar como mola de um novo ciclo imaginativo,
há sempre algo de irrealizado que busca realizar-se numa nova projeção. Sendo assim, a
imaginação utópica existe e pode continuar existindo sob pena, em caso contrário, de
aniquilamento do homem já que o realizado parece não estar à altura do projeto
humano.
91
A utopia se faz presente em contextos históricos diferenciados. Nas sociedades
primitivas, a imaginação utópica aparece sob a forma de lendas e crenças que apontam
para um lugar melhor. Nas sociedades históricas as formas do pensamento religioso
encarregam-se de servir como veículos primeiros para esta. Mas é na utopia política que
a sua manifestação é mais popularizada, com propostas de um novo arranjo político da
sociedade, firmada em novas estruturas sociais.
O conceito utópico, seja qual for, é uma condição para se conhecer a realidade e
intervir nela, por isso é também preciso compreender o que a realidade social não é.
Assim, para atuar socialmente é preciso vislumbrar o horizonte utópico que se apresenta
com um modelo social perfeito a ser alcançado. A realidade não é impermeável e
imutável. Faz-se e desfaz-se num processo de entropia permanente. O real e o irreal, o
concreto e o abstrato, o vivido e o imaginado etc. São essas condições que nos permite
vivenciar horizontes utópicos. Não se trata de um caminho de mão única, mas de vias de
acesso múltiplas e disformes que nos levam a múltiplas possibilidades de realização
utópica. Essas são construídas em cima das críticas ao momento e à sociedade vigente.
Talvez não houvesse religião, moral, ética e outras criações humanas, caso a idéia de
uma sociedade boa não existisse. Essa busca da sociedade perfeita habita o horizonte de
nosso pensamento. Isso não implica em saber se o homem é bom ou egoísta por
natureza, mas de buscarmos uma fórmula mais eficaz de convivência e sobrevivência da
espécie humana.
A utopia é necessária? Acredito positivamente que é ela que nos conduz a
buscarmos novos métodos, diretrizes, além de nos impelir a criarmos o novo. A criação
e criatividade humana são impulsionadas por essa condição utópica que nos é intrínseca,
é assim que fazemos a História, é através dela que fazemos projetos e buscamos
realizações, um processo infindável que por vezes vê-se ameaçado diante da ganância e
articulação de ações e reflexões de muitos indivíduos. um ambiente de
desencantamento ao qual não nos conformamos facilmente que logo é problematizado,
discutido e buscamos, a partir de então, rapidamente reencantar as nossas ambições e
necessidades. É possível, então, destacar o caráter transcendental da utopia no interior
da vida concreta.
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A utopia é um sistema de crenças que se coloca como sempre além do presente.
Como se concentra no futuro, não como atestar a sua veracidade, nem a sua
realização. Uma utopia, ao contrário do que se pensa, tem sua racionalidade, sua lógica,
sua probabilidade, isso faz com que também se justifique a existência de seguidores.
Possivelmente nenhuma sociedade pode viver sem uma utopia, caso contrário corre o
risco de vivenciarmos uma sociedade sem vida, amorfa e acéfala; uma sociedade que
não acalenta mais nenhuma esperança, ou sonho ou ideal e que não pode mais ser
chamada como tal. É tudo, menos sociedade. Por mais que critiquemos hábitos e modos
de vida de outros grupos e outras culturas, essas têm sua própria formulação utópica.
Talvez seja essa a grande novidade que nos traz o mundo contemporâneo: a ausência de
uma utopia única que envolva toda a humanidade. As utopias modificam-se e têm a sua
peculiaridade de acordo com o ambiente histórico próprio, a cultura e a forma de
enxergar o mundo, as quais denomino micro utopias. No entanto, toda época é marcada
pela presença de macro-utopias e essa característica marcante nos leva à discussão entre
o global e o local como jogo dialético. Existem ainda utopias globais que nem sempre
se adequam da mesma forma quando pensadas em âmbito local. A máxima “agir
localmente, pensar globalmente”, é uma das mais poderosas formas de reflexão
contemporânea. Quanto mais global for o problema, mais locais e mais multiplamente
locais devem ser as soluções. A idéia de cidadania também segue essa lógica, uma vez
que existem duas esferas de cidadania: a macrossocial, a partir de questões emanadas da
sociedade capitalista, por exemplo, e a microssocial, a partir do cotidiano e do mundo
vivido.
A fórmula complexa da antropolítica não se limita ao "pensar
global, agir local", ela exprime-se pelo acasalamento: pensar
global/agir local, pensar local/agir global. O pensamento planetário
deixa de opor o universal e o concreto, o geral e o particular:o universal
tornou-se particular - é o universo cósmico - e concreto - é o universo
terrestre (MORIN, 1995:139).
que se tomar cuidado com os adeptos da utopia, que é óbvio que a utopia
não se constrói com cabeças pensantes, líderes ou partidos. A verdadeira utopia se
constrói ambientada em uma época histórica, num jogo de constantes aparições,
reflexões, desentendimentos, distúrbios, crises, caos etc. É um movimento ambicioso
que se articula gradativamente pelos variados personagens e interesses diversos,
envolve erros, acertos, alegrias e confusões, levando ou não a superações e construção
93
de novas configurações históricas. Entretanto, como fora abordado no capítulo
anterior, o caos não é essencialmente negativo, acaba por se afirmar como um horizonte
de possibilidades progressivas e não somente regressivas. As realidades caóticas
produzem, por si mesmas, novos sistemas ordenados. A utopia não é de apropriação de
um grupo de pessoas ou de uma classe específica. Ela é algo que pertence ao conjunto
de seres humanos. Idéias ou ideais que se espraiam por toda a sociedade e fazem isso
porque existe o espaço para que essas discussões apareçam, caso contrário o horizonte
utópico passaria apenas como delírio.
A utopia tem por meta fazer a crítica ao poder institucionalizado, mas ela mesma
corre o risco de ser cooptada por este. Discursos utópicos podem vir a se materializar
nas instituições em forma de poder arbitrário, desencantando e matando o próprio
horizonte utópico. Um exemplo clássico desse tipo foi legado por George Orwell no seu
livro “A Revolução dos Bichos”. George Orwell, escritor, jornalista e militante político,
participou da Guerra Civil Espanhola na milícia marxista/trotskista e foi perseguido,
junto aos anarquistas e outros comunistas, pelos stalinistas. Desencantado com o
governo de Stalin, escreveu “A Revolução dos Bichos” em 1944. Nenhum editor
aceitou publicar a sátira política, pois na época Stalin era aliado da Inglaterra e dos
Estados Unidos. Só após o término da guerra, em 1945, é que o livro foi publicado e se
tornou um sucesso editorial. Trata-se de uma alegoria através da qual Orwell nos remete
a uma feroz crítica aos totalitarismos e as desigualdades reinantes tanto no sistema
capitalista quanto no socialismo dos soviéticos.
Um ser humano, o Sr. Jones era o dono de uma Granja e, como tal, explorava o
trabalho animal em benefício próprio para acumular capital. Em troca dos serviços
prestados ele pagava com a alimentação que nem sempre era boa e suficiente. Temos
o retrato de uma sociedade capitalista: quem mais trabalha é quem menos ganha. A
história, desde a expulsão de Jones até a transformação completa de Napoleão em
“humano” durou aproximadamente seis anos. Na Granja do Solar, situada perto da
cidade de Willingdon (Inglaterra), viviam bichos que como dono tinha o Sr. Jones. O
Velho Major (porco) teve um sonho sobre uma revolução em que os bichos seriam auto-
suficientes e todos iguais. Major, um porco ancião e já premiado, reúne todos os
animais e conta seu sonho visionário de como será o mundo depois que o homem
desaparecer, declara em tom profético a necessidade dos bichos assumirem suas vidas e
94
acabar com a tirania dos homens e canta a canção “Bichos da Inglaterra”. Os animais
são contagiados pelos versos revolucionários e entoam apaixonadamente a canção
recém-aprendida. Sr. Jones acorda, alarmado com a possível presença de uma raposa, e
com uma carga de chumbo disparada na escuridão encerra a cantoria.
Era o princípio do Animalismo. Major falece três noites após. A morte emoldura o mito
e suas palavras ganham destaque nas falas dos animais mais inteligentes da granja.
Ninguém sabe quando será a rebelião, mas a necessidade de libertação domina os
diálogos. Os bichos mais conservadores insistem no dever de lealdade ou no medo do
incerto: “Seu Jones nos alimenta. Se ele for embora, morreremos de fome”.
O Major morreu, mas mesmo assim os animais colocam em prática a idéia do
líder ao fazer a Revolução dos Bichos. A rebelião ocorre mais cedo do que esperavam.
Com a expulsão do Sr. Jones da granja, surge o momento de reorganizar o
funcionamento da propriedade. Os porcos assumem a liderança, dirigem e
supervisionam o trabalho dos outros e os demais animais dão continuidade à colheita.
Alguns bichos se destacam pela obstinação, como o cavalo Sansão, cujo lema é
“Trabalharei mais ainda.”
Depois da Revolução, a Granja passou a se chamar Granja dos Bichos, e quem a
administrava era Bola-de-Neve (porco). Bola-de-Neve seguia os princípios do
Animalismo, e mesmo sendo superior (em quesitos de inteligência e cultura) em relação
aos outros animais, sempre se considerou igual a todos e não impôs privilégios devido à
sua condição. Bola-de-Neve tinha um assistente, Napoleão (porco), que na ânsia pelo
poder, traiu o amigo e assumiu a administração da Granja. Napoleão mostrou-se
competente e justo no começo, mas depois passou a desrespeitar os SETE
MANDAMENTOS, os quais firmavam as idéias animalistas. Depois de
aproximadamente cinco anos, Napoleão ocupava a casa do Sr. Jones, bebia álcool,
vestia as roupas do ex-dono, andava somente sobre duas pernas e convivia com seres
humanos, enfim agia em benefício próprio instalando um regime ditatorial dominando e
hostilizando os demais animais considerados seres inferiores e sem direitos. Por essa
época já não era possível distinguir quando reunidos à mesa, o porco tirano e os homens
com quem se confraternizava. Napoleão conseguiu sair vitorioso graças à ajuda de
Garganta, porco servil e obediente que através de bons argumentos convencia os
animais de que tudo o que acontecia era para o bem deles.
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Os sete mandamentos, declarados por Major, são escritos na parede:
“Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
O que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
Nenhum animal usará roupa.
Nenhum animal dormirá em cama.
Nenhum animal beberá álcool.
Nenhum animal matará outro animal.
Todos os animais são iguais.”
Os sete mandamentos, elaborados na revolução são condensados no lema
“Quatro pernas bom, duas pernas ruim”. A ntese do Animalismo é repetida pelas
ovelhas no pasto por horas a fio. Sr. Jones tenta recuperar a propriedade, mas é vencido
pelos bichos na “Batalha do Estábulo”. Resultado da Batalha: o porco Bola-de-neve e o
cavalo Sansão são condecorados pela bravura demonstrada no conflito; a vaca Mimosa
foge para uma propriedade vizinha seduzida pelos mimos oferecidos por um humano;
surge a idéia de construção de um moinho de vento e os animais ficam divididos e
inseguros com a perspectiva do novo.
Bola-de-neve e Napoleão sobem ao palanque e montam suas campanhas
políticas. A eloqüência de Bola-de-neve conquista os animais, mas a força dos cães de
Napoleão expulsa Bola-de-neve da granja e “legitima” Napoleão no cargo de líder
diante dos atemorizados bichos. Os bichos trabalham como escravos na construção do
moinho de vento e gradativamente perdem a memória de como era a vida na época do
Sr. Jones. Animais trabalhadores como Sansão, acordam mais cedo, trabalham nas horas
de folga e assumem as máximas elaboradas pelos donos do poder: “trabalharei mais
ainda” e Napoleão tem sempre razão”. Como a maioria dos animais não aprendeu a
ler, os mandamentos são alterados na medida em que Napoleão e seus assessores
assumem posições contrárias aos princípios que nortearam a revolução: os porcos
começam a comerciar a produção da granja, passam a residir na casa do Sr. Jones,
dormem em camas, usam roupas, bebem uísque, se relacionam com homens. A maioria
dos animais é facilmente convencida dos seus “equívocos de interpretação” e os poucos
que conseguem ler e interpretar as adulterações do poder se omite.
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Napoleão representa o desejo da onipotência, do poder absoluto, e para
conseguir seus objetivos tudo passa a ser válido: mentiras, traições, mudanças de regras.
Instaura-se na Granja uma verdadeira Ditadura, o regime em que não liberdade de
expressão, direito a opiniões etc. Alguns animais são executados sob a alegação de alta
traição. Tudo o que ocorre de errado na granja é de “responsabilidade” de Bola-de-neve.
Sua história é enterrada na lama de mentiras e manipulação imposta pelo novo regime.
As reuniões de domingo são proibidas e a canção “Bichos da Inglaterraé censurada.
Os bichos trabalham mais e não são reconhecidos por seus esforços. Todas as
condecorações são dadas ao líder.
Os animais passam privações e suas rações são diminuídas em prol do bem
comum, enquanto os porcos são agraciados com os privilégios do poder. Uma segunda
batalha com os humanos surpreende os animais enfraquecidos, mas apesar das muitas
perdas, eles vencem e permanecem sob a ditadura imposta por Napoleão. Infelizmente
perderam os parâmetros para avaliação, perderam a memória da história antes do
governo de Napoleão.
Na sede pelo poder e pela riqueza, Napoleão entra em contato com os homens
para com eles negociar, comprar, vender, enfim, acumular riquezas e tudo graças ao
trabalho dos animais, verdadeiros empregados mal remunerados que ajudam o “patrão”
a ter regalias, bens materiais, capital. A situação fica mais crítica do que quando Jones
era o dono da Granja porque, mais do que nunca, os direitos dos animais foram violados
de forma cruel e com conseqüências gravíssimas, tais como a morte de alguns, o
desaparecimento de outros e torturas.
Os homens destroem o moinho de vento e os animais trabalham mais ainda para
reconstruí-lo. A dedicação do cavalo Sansão é assustadora, abdica da própria saúde em
prol do ideal. Depois de alguns dias é vencido pela fragilidade da avançada idade e do
pulmão debilitado. Os porcos simulam uma internação num grande hospital, mas
entregam o velho cavalo ao matadouro – fabricante de cola. Os direitos do trabalhador e
do aposentado se encerram na indiferença dos poderosos.
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O burro Benjamim, que aprendeu a ler apesar de ter preferido o silêncio durante
todo o período, tenta alertar os demais animais, mas é tarde. O porco Garganta convence
os bichos de que a carroça que levou o cavalo foi comprada pelo grande veterinário,
mas continuou com os letreiros do velho dono. Poucos dias depois, o anúncio da morte
de Sansão chega à granja e os porcos recebem uma caixa de uísque.
Os animais escravizados ganham alento nas palavras do corvo Moisés que
garante que, finda esta vida de sofrimentos haverá a “Montanha de Açúcar Cande”,
“o lugar feliz onde nós, pobres animais, descansaremos para sempre desta nossa vida de
trabalho”. As atitudes dos porcos com Moisés são ambíguas: afirmam aos bichos que a
história de Moisés é uma grande mentira, porém deixam-no permanecer na granja sem
trabalhar e ainda com direito a um copo de cerveja por dia. A religião arrebanha
algumas “ovelhas”.
Passaram-se anos. As estações vinham, iam embora e a curta vida dos bichos se
consumia. A nova geração conhecia esta realidade, exceto Quitéria, Benjamim, o
corvo Moisés e alguns porcos. A vida era muito difícil, mas existia a certeza de que
todos os animais eram iguais. Não tardou para os bichos espantados presenciarem os
porcos andando sobre duas patas com chicotes nas mãos.
Só restava um único mandamento e mesmo assim adulterado: “Todos os animais
são iguais, mas alguns animais são mais iguais que outros”. Depois disto nada mais se
estranhava, os porcos fumavam, bebiam e andavam vestidos haviam se assenhorado
dos hábitos do Sr. Jones. Uma noite, os porcos receberam os vizinhos humanos para
uma reunião na casa. Os demais animais ficaram à espreita na janela da sala de estar.
Seguiram-se pronunciamentos, declarações de mútuo afeto e admiração por parte dos
porcos e dos homens. Os vizinhos humanos parabenizaram os porcos pelos métodos
modernos de ordem e disciplina impostos: ... os animais inferiores da Granja dos
Bichos trabalhavam mais e recebiam menos comida do que quaisquer outros animais
do condado.” Todos os alicerces da revolução estavam corrompidos nas palavras de
Napoleão, até mesmo a granja voltaria a ter o mesmo nome da época do Sr. Jones:
“Granja do Solar”.
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Em suma, A Revolução dos Bichos” de Orwell é na verdade uma alegoria em
relação à Revolução Russa de 1917. Major (Lenin); Napoleão (Stalin); Bola-de-neve
(Trotsky); as ovelhas, que repetem sem consciência os lemas; os cavalos com seus tapa-
olhos que só conseguem olhar para o trabalho; as galinhas que se perdem na dispersão;
o burro empacado em suas verdades, impossibilitado de denunciar aos demais os abusos
praticados; e, os cães fiéis à guarda de seus donos. Todos personagens históricos
personificados nos bichos, escravos da própria revolução, prisioneiros dos sonhos
depauperados.
Com base nos fatos ocorridos podemos concluir que a História nos mostra os
dois tipos de dominação existentes a dominação pela sedução: Garganta persuadia os
animais com seus argumentos convincentes e eles aceitavam pacificamente as mudanças
efetuadas; e a dominação pela força bruta: quem se rebelasse contra as ordens era
punido fisicamente, torturado por cães treinados e levado até a morte. O que estava no
horizonte utópico se tornava realidade, mas uma realidade institucionalizada por um
grupo que comanda e detém o poder em detrimento da imensa maioria. Métodos de
convencimento por meio da oratória ou pela força deturpam de vez a utopia. Essa é a
principal contribuição legada por George Orwell: o risco da utopia não estar travestida
do sonho diurno do qual nos falará Ernst Bloch.
Uma verdadeira utopia construída e que encanta é aquela que tem o aparato e
participação do maior número possível de segmentos da sociedade. Para Morin (2005),
ainda estamos na pré-história do espírito humano e essa é uma idéia otimista porque ela
nos abre para o futuro, e conseqüentemente, para a criação de horizontes e imaginações
utópicas.
O conceito utopia dificilmente irá se esgotar, tendo em vista que é da condição
humana criar esse limiar da existência. Ela é construída e desconstruída, num processo
ininterrupto de ordem e desordem, encantamento e desencantamento. Sempre surgem
novos grupos, religiões, discursos, pensamentos, éticas que tem por objetivo acalentar
novas esperanças de uma sociedade mais justa e igualitária. As vias de acesso a isso são
recheadas de bifurcações e ramificações. A institucionalização destas propostas e
rupturas, como é demonstrada na obra de George Orwell, faz com que percamos as
referências e possibilidades concretas de mudança.
99
Pensar a utopia é pensar a crítica da sociedade vigente, é a interrupção do
presente, não se conformar com o que está dado, fazer girar a roda da história, projetar,
contestar, superar, criar a esperança e alavancar o novo. Não existe realidade perfeita,
mas como o sonho é algo intrínseco ao ser humano, uma sociedade deve sim pensar em
ser diferente e mais digna, estabelecida em parâmetros morais e éticos condizentes com
o convívio humano. A falta de esperança é o insuportável.
A História faz as utopias e as utopias fazem a História. O incessante construir de
utopias serve para expressar a dinâmica histórica. No entanto, há uma permanente
tensão entre utopia e história, entre sonho e realidade. A grande questão é saber se é
possível manter esses dois pólos articulados. Penso que na utopia está contida a
realidade, assim como a realidade não pode abrir mão da utopia. A realidade é permeada
de infinitas possibilidades, desejos, esperanças e é a partir dela que se faz a utopia, isto
é, dentro dela existe a utopia em potência. O real precisa ser problematizado, não
podemos perder o universo da crítica, caso contrário a utopia se esvai e perdemos a
liberdade de criar o novo. Como dizia Oswald de Andrade, “no fundo de cada utopia,
não há somente um sonho, há também um protesto”.
Para fazer essa necessária crítica, parto da visão de dois filósofos alemães, Ernst
Bloch (1885-1977) e Hans Jonas (1903-1993), cujas filosofias têm em comum a
formulação de princípios que têm características completamente diferentes, mas
extremamente complementares para pensarmos os horizontes utópicos que se avizinham
atualmente. Bloch enaltece o pensamento utópico e Jonas o rechaça. Como a concepção
de utopia da qual trato vincula-se à perspectiva de liberdade, de negação do
totalitarismo, resultado de uma época marcada por grandes mudanças tecnológicas,
entendo que tanto a filosofia de Bloch quanto a de Jonas, não configuram uma
dicotomia, mas uma complementaridade não excludente e que são significativas para
uma construção utópica que é alimentada fortemente pela racionalidade técnica e pela
sociedade de consumo.
100
O princípio esperança de Ernst Bloch
Ernst Bloch nasceu a oito de julho de 1885, em Ludwigshafen, Alemanha. Filho
de uma família de origem judaica viveu intensamente o drama dos judeus alemães no
século XX. A antropologia filosófica contida nos textos de Bloch, afirma uma
concepção do ser humano como ser de pulsões, que pressionam na direção de sua
satisfação
.
Ele foi uma espécie de exceção na filosofia dos começos do século XX, visto
o que atraiu sua reflexão não foram os ascendentes aspectos científicos e tecnológicos,
como no caso dos marxistas evolucionistas ou dos neopositivistas em geral. O que
fascinou Ernst Bloch, pensador judeu-alemão falecido em 1977, foram os elementos
imaginativos, os “sonhos diurnos” de todos nós e como eles tinham o poder de modelar
o comportamento e a cultura dos homens. Filósofo de tendência marxista tratou de
ressaltar o quanto a doutrina de Marx, ainda que produto histórico do iluminismo e da
revolução industrial, foi também herdeira dos movimentos cristão-milenaristas da
Europa Ocidental.
Bloch distinguia duas correntes do marxismo, uma marcada pela herança utópica
que liga imaginação e conquista do poder, crítica ideológica e crítica da cultura, dos
valores, das mistificações, da alienação; e outra caracterizada pela linha detectiva,
científica, econômico-política. Seu objetivo era alcançar o equilíbrio entre essas duas
correntes distintas. Afastando-se da pretensão científica do marxismo, procurou
enfatizar o conteúdo messiânico e salvacionista que a doutrina revolucionária era
portadora. Seguramente, para ele, o atrativo dela estava nos seus elementos emocionais-
redentores e não nos racionais-evolucionistas. Na verdade, ele realizou uma complexa e
uma tanto estranha síntese que envolvia o messianismo judaico-cristão com o
marxismo, tudo interpretado ao viés da filosofia hegeliana.
Sua proposta era identificar os elementos subjetivos nos combates coletivos e o
potencial utópico de cada indivíduo como uma espécie de força antecipante. Essa
consciência antecipante expressa no coletivo é que dará o impulso para a liberdade
individual e as realizações. Para Bloch, a busca objetiva e determinista do socialismo
não tem qualquer referência se não levar em conta a esperança intrínseca em cada
indivíduo. A utopia, portanto, não é uma imagem acabada do amanhã. Não é a imagem
do paraíso que Bloch se refere, mas a utopia ativa, concreta que lança a esperança para o
101
futuro. Trata-se de uma esperança que é muito diferente do que ficar simplesmente à
espera. Bloch combate as utopias que enaltecem o paraíso do progresso ou as meras
utopias contemplativas, essas são engodos. A verdadeira utopia é um pensamento que
não tem lugar hoje, mas que pode ser entrevisto e redescoberto em cada movimento
concreto. Propõe assim, uma dialética entre o real e o possível, pois a verdade não pode
contemplar tudo o que existe. muitas verdades que estão para além do possível e do
que existe hoje. verdades que estão no possível, como processo e alargamento dos
horizontes da vida.
A utopia de Bloch é ampla e genérica. É, por assim dizer, todo e qualquer
pensamento maravilhoso que brota da mente humana. Pode ser a constituição de uma
sociedade perfeita, arquitetura intelectual de uma infinidade de reformadores religiosos
e de filósofos sociais, ou um simples desejo de que ocorram coisas melhores no futuro.
Pode por igual surgir nos versos do poeta, no sonhar acordado de um Goethe, de um
Klopstok, de um Hölderlin, ou ainda nos castelos no ar das histórias infantis e das
aventuras de Karl May, e os tantos “sonhos diurnos” que nos acometem em diversos
instantes ao longo da vida. É uma manifestação intelectual “do pressentimento da
esperança”, um quadro imaginário e impreciso do porvir, e que ao contrário de
manifestar-se como uma inconseqüente fabulação, é fato fundamental na construção do
futuro. O utópico encontra-se espalhado por todos os lados, não uma cultura
conhecida que ignore a sua presença visto que se converteu numa “dimensão
antropológica essencial”. Uma sociedade sem utopia é tão impossível como a um ser
humano não sonhar.
Perguntas que leva em conta o significado da nossa existência são constantes e
sempre perturbadoras, pois muito do que fazemos e as formas como agimos passam a
não ter o mínimo sentido diante dessas grandes questões. Segundo Bloch, o que
realmente importa é aprender a esperar, ao invés do medo e do temer. Esperar significa
um ato apaixonado pelo êxito em lugar do fracasso, embora a vocação da utopia seja
muito mais voltada para o fracasso e por isso não perde a sua potência. No próprio
mundo pode-se encontrar uma vida melhor e que seria possível. O esperar não permite a
resignação. Todo ser humano tem sonhos diurnos. O grande desafio é que estes se
tornem mais claros e menos confusos. Compreendê-los enfim, é a tarefa primordial.
Pensar é transpor, afirma Bloch, e essa transposição não leva ao mero imaginado
102
abstratamente, mas ao transpor concreto que o futuro contém o esperado. Muito se
fala sobre o declínio do Ocidente, mas existe saída para a decadência. A esperança se
contrapõe ao medo nesse sentido. Para Bloch, a falta de esperança é o mais insuportável
e intolerável para as necessidades humanas, por isso ele vai criticar veementemente a
posição niilista.
Bloch introduz os conceitos Não e o Ainda-Não. O “Não” é a “falta dee a
expressão da vontade de superar essa falta. O “Ainda-Não” exprime o que existe como
simples tendência, é o modo como o futuro se inscreve no presente, numa espécie de
consciência antecipatória. Por um lado, capacidade (potência) e, por outro, possibilidade
(potencialidade). O fundamento de toda ação humana é o sonho de uma vida melhor.
Bloch analisa a ontologia do ser-ainda-não, capaz de determinar de modo novo o ser,
que constitui um “modo da possibilidade para frente”. A função do “não” da ontologia
do “ser-ainda-não” não coincide com os do niilismo ou do existencialismo do tipo
heideggeriano ou sartriano. O conceito do nada em Bloch está amarrado a uma
qualidade positiva, a da percepção que se eleva progressivamente. Como um elemento
da dialetização no processo real de produção do utópico, o nada perde os atributos da
negação da vida. A consciência antecipadora constitui o fenômeno subjetivo decisivo
dessa função antecipadora do utópico.
O ser humano fabula desejos e somente ele é capaz de entrar na efervescência
utópica. Com isso, Bloch aponta dois tipos de esperança: a esperança fraudulenta, que
denigre o sonho humano e a esperança autêntica, que produz benfeitoria e irrompe
contra o medo. O ainda-não-consciente, o que-ainda-não-se-tornou, não teve uma
verdadeira conceituação nem mesmo uma insinuação filosófica. Ele está para o
“inconsciente” freudiano assim como o “sonho diurno” está para os “sonhos noturnos”.
As possibilidades humanas, dimensões do humano ainda não bem realizadas,
apresentam-se e se antecipam nos sonhos acordados, sonhos diurnos, dos quais Bloch
desenvolve ampla fenomenologia, assim como os sonhos noturnos são interpretados
pela psicanálise
.
O sonho diurno é o sonhar para frente, quer dizer um sonhar carregado com
conteúdos de consciência e com material proto-utópico que brota do interior do futuro.
São conteúdos da consciência de algo futuro/vindouro e ao mesmo tempo, momentos
103
desencadeadores de produtividade criadora. O “sonhar para frente ainda não foi
refletido. sonhos que adormecem e sonhos que acordam. A esperança, segundo
Bloch, não aparece na história das ciências. Por isso, ele propõe entendê-la como um
princípio que faz parte do processo do mundo enquanto o princípio utópico vai além,
porque diz respeito à dignidade humana e à defesa que a filosofia deve ter a consciência
do amanhã. Para Bloch, o que é desejado utopicamente guia todos os movimentos
libertários. O ser humano é visto como ser de pulsões que busca sua satisfação, e suas
carências são sintomas de suas possibilidades ainda não realizadas.
(...) o princípio utópico não chegou a se manifestar nem no mundo arcaico-
mítico, apesar do êxodo para fora dele, nem no mundo urbano-racionalista,
apesar da dialética explosiva. A razão disso será sempre que tanto a
mentalidade arcaico-mítica quanto a urbano-racionalista são idealistas em sua
apreciação, pressupondo conseqüentemente um mundo feito, acabado,
apreciado apenas de modo passivo, incluindo o supramundo projetado para
além, no qual se reflete o que já veio a ser. (BLOCH, 2005:18 – vol. 1)
Segundo Bloch, a esperança é a mais humana de todas as emoções e acessível
apenas a seres humanos, remete ao horizonte mais amplo e mais claro. A partir dessa
premissa ele formula o conceito de sonhos diurnos que constituem uma etapa preliminar
do utópico, cujo significado remete a um ainda-não-consciente. Nunca nos livramos dos
desejos. A “mania de querer o melhor” continua presente no homem como motivo de
despertar e de futuro. Mesmo de olhos abertos as pessoas sonham, mas isso infelizmente
ainda não é muito valorizado. Os sonhos de uma vida melhor fazem parte do gigantesco
campo da consciência utópica. O sonho diurno encontra-se na dimensão utópica e o
interesse revolucionário é o reconhecimento de quanto o mundo poderia ser bom ou a
construção de outro mundo possível. O mais próximo do pensamento utópico é sem
dúvida o revolucionário social que luta para destruir as relações dominantes e construir
novas no lugar, cuja característica básica consiste no divórcio entre o ideal e a realidade.
Será utópico todo revolucionário que desconhecer a idéia de um período intermediário,
que imaginar uma transformação social que introduza uma quebra na continuidade
histórica, como substituição direta de relações más por boas. O pensamento utópico é,
pois, entendido como o grande motor das revoluções, no qual o real transcorre com um
ainda-não nele contido. A esperança afoga a angústia, ela tem o conteúdo intencional do
“ainda há salvação” no seu horizonte.
104
Os sonhos despertos, na medida em que contêm um futuro autêntico,
rumam para esse ainda-não-consciente, para o campo utópico ou daquilo que
não veio a ser, que não foi planificado. (BLOCH, 2005:114 – vol. 1)
O espírito do sonho para a frente é o espírito repleto do ainda-não-consciente
como forma de consciência de algo que se aproxima. A partir dessa afirmação, Bloch
questiona o fato do consciente e do subconsciente serem descobertos, enquanto o campo
psíquico do ainda-não-consciente passou despercebido por muito tempo e ainda não foi
descoberto.
Para Bloch, viver o aqui-agora, o carpe diem não tem nada de utópico, remete a
ficar apenas pulando de um instante para o outro. o poder-ser pode ser considerado
para o conteúdo do existir imanente. Para o filósofo alemão, o “carpe diem”, aproveite
o dia, é o pior legado do mundo romano, a mais negativa forma de estruturação de
valores que se possa ter hoje, especialmente em relação aos jovens porque, em outras
palavras, estaríamos dizendo aos jovens que não haverá futuro. O carpe diem está
voltado para o fugidio, um estar-aí meramente aparente e superficial, diferentemente do
estar-aí integral e indiviso, da percepção real de um instante bom, significativo;
exatamente neste não nada de fugidio, mas ao contrário, tudo que é próprio e assim
duradouro está mesclado nele.
Em tudo que é realizado aparece uma fenda do existir não concebido. Bloch
afirma que nenhum paraíso terreno, ao ingressar, fica isento da sombra projetada pelo
seu próprio ingresso. A realização em si nunca esgota por completo o efeito de uma
realização total, sempre há algo que ainda não se realizou em lugar algum. A utopia é o
não como ainda-não processual (o mundo como processo). O não é o impulsionador de
todo devir, é o impulsionador contínuo da história. Caracteriza-se no processo como um
ainda-não utópico-ativo. Segundo Bloch, a tomada de consciência do “ainda não
existente”, no sentido da antecipação, deveria tornar possível, em virtude de seu
desenvolvimento, a existência de uma sociedade em que não existisse repressão nem
exploração dos homens ou da natureza.
“Todo sonho permanece sendo sonho pelo fato de ter tido muito pouco
êxito, de ter conseguido levar pouca coisa a termo. Por isso, ele não pode
esquecer o que falta, e mantém a porta aberta em relação a todas as coisas. A
porta no mínimo entreaberta, quando se dirige para objetos agradáveis, chama-
105
se esperança. Sendo que, como vimos, não esperança sem angústia nem
angústia sem esperança; ambas se mantêm mutuamente em suspenso, por mais
que a esperança prepondere para o valente, por meio do valente. No entanto,
também ela, sendo possivelmente ilusória qual fogo fátuo, deve ser uma
esperança sabedora, uma em si mesma previamente refletida”. (BLOCH,
2005:326 - vol. 1)
Segundo Bloch, um sonhador sempre quer mais. A demanda pela falta nunca
acaba e o sonhar sempre sobreviveu ao fugaz cotidiano individual. Apesar de a vida ser
dura, sempre houve uma sensação de escape, e de que este seria viável. Nas utopias
sociais mais de dois mil anos foi abolida a exploração do ser humano pelo ser
humano, a qual reflete diretamente na abolição da propriedade privada. Como exemplo,
Bloch ressalta o papel das utopias federativas com Fourier e Owen e das utopias
centralistas com Cabet e Saint-Simon no século XIX, denominadas por Marx e Engels
como socialismo utópico, além das utopias técnicas.
Fourier
13
foi um dos maiores utopistas, sua obra é recheada de imagens do
futuro, pré-marxista na acuidade de sua análise. Foi o primeiro a ver que na sociedade
presente a pobreza brota da própria abundância; o remédio é partir para ilhas
comunistas, as ilhas sociais (falanges). Existe, segundo Fourier, quatro períodos, dos
quais o anterior sempre se encaminha para o posterior, e o posterior não pode mais ser
revertido: 1) feliz época protocomunista do instinto; 2) pirataria e economia direta de
troca; 3) patriarcado e desenvolvimento do comércio; 4) época da barbárie e dos
privilégios econômicos. O quinto período seria a era da civilização capitalista. Projeta
pequenas comunas chamadas falanstérios, de fácil supervisão e entrosamento, formadas
por mil e quinhentas pessoas ou um pouco mais. O socialismo admitido é o federativo-
pessoal. Duas horas de trabalho são suficientes com intensa variação de atividades.
13
Filósofo e economista francês, Charles Fourier (1772-1837) foi um dos teóricos do socialismo utópico
do século XIX. Nasce em Besançon, filho de um rico comerciante de tecidos. Trabalha no comércio, mas
acaba falindo em 1793 e decide então alistar-se no Exército. Vive algum tempo na instituição até ser
obrigado a afastar-se por problemas de saúde. Volta a trabalhar no comércio e começa a escrever sobre as
questões econômicas e sociais dos franceses. Para tanto, lança o jornal O Falanstério, em 1822, depois
denominado A Falange, por meio do qual passa a defender a proposta de reconstrução social baseada no
idealismo de Jean-Jacques Rousseau. Sugere a criação de falanstérios para organizar a vida em
comunidade. Os falanstérios, espécie de comunas de produção e moradia, deveriam abrigar cerca de 1,6
mil pessoas e não só dedicar-se à produção agrícola e industrial local, mas também dar conta das
atividades lúdicas e de aprendizado intelectual. Seu projeto pregava o fim da separação entre trabalho e
lazer e a adaptação da educação às inclinações e habilidades de cada criança. Também preconizava que os
bens fossem distribuídos de acordo com a necessidade de cada morador e que o sexo fosse liberado de
restrições morais.
106
Prega o amor cristão ao semelhante e procura harmonizar o mundo industrial e o mundo
moral-afetivo. Quer descobrir as leis da ordem e da harmonia universais.
Owen
14
voltou-se diretamente aos trabalhadores e atuou no meio deles, não
somente como fabricante. Para ele a propriedade privada, a Igreja e a forma do
matrimônio aniquilam a felicidade humana. Pensando quase integralmente em termos
aistóricos, foi um dos primeiros utopistas do século XIX com alvos socialistas
federativos. Organizou seu comunismo filantrópico como plano de uma comunidade
futura em que cada pessoa chega a fruir plenamente a quantia de valor produzida por
ela, eliminando-se o lucro capitalista, oriundo de trabalho não remunerado. Tinha o
sonho de constituir uma nova humanidade.
Étienne Cabet (1788-1856)
15
, autor de Voyage en Icarie (1840; Viagem a
Icária), tentou sem sucesso a fundação de colônias nos Estados Unidos, na época o país
da liberdade e das possibilidades ilimitadas. Alguns de seus adeptos e outros utopistas
fundaram, entre 1830 e 1860, várias colônias americanas, mas todas elas malograram.
No entanto, a Icária de Cabet representa o modelo das utopias comunistas do século
XIX. Para ele, o homem é bom por natureza, portanto, as desordens, os crimes, os
massacres, as guerras, as revoluções são oriundas de uma organização social. Todos
os grandes sábios da humanidade demonstraram a necessidade de uma verdadeira
democracia fraternal, baseada na comunidade dos bens. A Icária, país idílico criado pelo
bom Ícaro, é precisamente essa sociedade igualitária de onde o dinheiro e a propriedade
14
Industrial e reformador galês Robert Owen (1771-1858) foi um dos idealizadores do socialismo utópico
no século XIX com a proposta de cooperativas. Nasce em Newtown, no País de Gales. Começa a
trabalhar como ajudante numa indústria têxtil que emprega 500 operários. Passa a gerente em 1791 e, em
1799, compra uma fiação com dois sócios em Lanarkshire, na Escócia. Convencido de que a mão-de-obra
pode ser mais bem aproveitada em uma sociedade cooperativa, propõe, em 1819, a criação de associações
nas cidades com até mil pessoas, para ocupar os desempregados. Cria duas cooperativas desse tipo, uma
no Reino Unido, em 1839, e outra nos Estados Unidos (EUA), em 1825. As tentativas - em New
Harmony, Indiana (1825-1827), e em Queenwood, Hampshire, na Inglaterra (1839-1845) - fracassam em
poucos anos, devido a brigas entre os participantes. Owen passa o resto da vida divulgando suas idéias
sobre educação, religião e família. Entre os livros que escreve estão Nova Visão da Sociedade (1813-
1914) e Relato do Condado de Lanark (1821), sobre a experiência da cooperativa de empregados. Morre
em sua cidade natal.
15
Etienne Cabet (1788-1856), filho de um mestre tanoeiro de Dijon. Advogado instalado em Paris depois
dos Cem Dias, suas idéias republicanas e liberais o levam, primeiro a filiar-se à Carbonária, da qual se
torna um dos principais dirigentes, com La Fayette e o advogado Manuel. Como a maioria dos utopistas
de sua geração, Cabet não distingue a reforma social da democracia, nem esta das tradições da Grande
Revolução. Para ele, o sufrágio universal, a educação popular, o direito ao trabalho constituem etapas
para a fase final da sociedade: a comunidade ou comunismo.
107
privada desapareceram totalmente, onde não senhores nem escravos, opressores ou
oprimidos.
O conde Henri de Saint-Simon
16
(1760-1825) foi considerado o fundador do
positivismo e o primeiro socialista moderno. Acreditava no fim do Estado na medida
em que aumentava o conhecimento e a produção, amparados pelas conquistas
científicas. Saint-Simon tinha ódio contra as receitas obtidas em trabalho e as misérias
que as pressupõe, era contra os senhores feudais e burgueses que vivem de renda.
Devotava todo o amor ao trabalho. Concebia o industrial como um funcionário público;
a sociedade se transformaria em Igreja da inteligência. A exploração desapareceria,
substituída pelo planejamento. Sem dúvida, as idéias de Saint-Simon exerceram uma
grande influência sobre Marx.
Augusto Comte (1798-1857) possibilitou transformar o positivismo numa
espécie de religião com a cega na engenharia social. Tanto Comte como Saint-Simon
herdaram esta iluminista do marquês de Condorcet
17
, que afirmava a perfectabilidade
da natureza humana e a bondade inata dos homens. A crença generalizada a partir do
positivismo era de que somente a ciência construía o conhecimento do mundo. A
evolução de uma visão de mundo científica era considerada o caminho natural para o
progresso humano. A ciência seria, portanto, o motor da mudança histórica,
determinando novas formas de vida social. A aplicação prática do conhecimento
científico promoveria uma profusão de novos valores. Entretanto, a ciência gerou uma
ilusão de que a humanidade pode assumir o controle de seu destino. A na
industrialização fora enaltecida como promotora da emancipação humana.
O socialismo teve por base o sonho por um mundo sem fronteiras, unificado na
comunidade de classes dos trabalhadores. Rosa Luxemburgo, Trotsky e o próprio Marx
foram os principais visionários desse mundo unificado e socialista. Para Bloch, o
16
Saint-Simon (1760-1825), socialista reformista francês nascido em Paris, um dos principais socialistas
utópicos e um dos fundadores do socialismo moderno, ao conceber uma sociedade futura dominada por
cientistas e industriais, entre os quais incluiu negociantes, banqueiros, comerciantes e operários, e famoso
graças aos seus seguidores.
17
Marquês de Condorcet (1743-1794). Nome completo: Marie Jean Antoine Nicolas Caritat. Político e
matemático francês. Aderiu com entusiasmo à Revolução Francesa. Foi defensor dos direitos das
mulheres, dos judeus e dos pretos. Em 1777, foi nomeado secretário da Academia das Ciências, e em
1782, secretário da Academia francesa.
108
marxismo foi o pioneiro em proporcionar ao mundo um conceito de saber que não tem
mais como referência essencial àquilo que foi ou existiu, mas a tendência do que é
ascendente. Bloch entende que o marxismo introduz o futuro na nossa abordagem
teórica e prática da realidade, além de resgatar o núcleo racional da utopia e o da
dialética da tendência, ainda de cunho idealista, trazendo-os para o concreto. É o que
Bloch chamou de maturidade da utopia, isto é, ter um possível-real como referência que
estabelece o ponto de contato entre sonho e vida. Faz assim a distinção entre o utópico-
concreto (função utópica positiva) e o utópico-abstrato (socialismo imaturo). Em suma,
a verdade do marxismo teria dado força e concretude ao sonho para a frente. Nesse
sentido, não se deve abrir um abismo de separação entre o marxismo e a utopia. O
marxismo não quer fugir para a ilha da Utopia, mas tampouco quer prender-se ao
presente. Ele aparece entre dois extremos: o princípio reformista e a corrida utópica. Os
sonhos sociais acordados são, portanto, ao lado das utopias tecnológicas, a manifestação
mais prática do panorama dos desejos humanos.
Quanto às utopias técnicas é preciso novamente destacar o fato de que o ser
humano é o único animal fabricante de ferramentas. Tem a capacidade inventiva que
aos poucos vai fornecendo bens de consumo e conforto. Quase tudo o que existe foi
sonhado como uma espécie de conto de fadas. Cabe aqui ressaltar a capacidade
imaginativa do ser humano. Isso se desenvolve de tal forma que A Volta ao mundo em
oitenta dias de Júlio Verne está muito ultrapassado, diante do avanço da
imaginação técnica e da realização humana. O relógio passa a ser algo carregado de
simbolismo nesse novo mundo da técnica. Parece que o ser humano vivo é um relógio
que corda a si mesmo. Em meio às invenções lucrativas, a burguesia ascende e
surgem os fazedores de projetos. Claro era que o que estava por trás de tudo isso, a mola
propulsora dessas invencionices é, sem dúvida, a produção barateada. Na alquimia era
vislumbrada a transformação do mundo ou uma “reforma geral”. Preparar ouro e
promover o humanitarismo eram as diretrizes básicas. O próprio Iluminismo como
forma de luta da luz contra a superstição é oriundo da alquimia. Ganha força aqui os
rosa-cruzes, numa mistura entre maçonaria e iluministas. Alquimia e milenarismo
prenunciam o nascimento do novo ser humano. O próprio Thomas More atribuía à
alquimia o status de uma “mitologia da libertação”. Isso em contraposição à astrologia,
o sistema orientador característico da utopia autoritária de Campanella. O ouro passou a
representar o signo solar de um mundo desabrochado, harmonioso e cheio de luz. A
109
produção de ouro era ritualística e necessitava de uma postura interior de propensão à
fabricação desse metal precioso. O ouro e o paraíso convergem para um mesmo fim
(laboratório de Deus). O sonho do ouro representou, além da metalurgia, uma espécie de
mitologia da libertação (sonho desejante técnico).
Sonhos técnicos e de ampliação das ferramentas são raríssimos antes de 1500.
Apenas com o advento do capitalismo é que se encaminharam projetos técnicos de
muito maior magnitude. Somente na Renascença com o interesse comercial e a busca de
lucros é que a fantasia técnica teve um grande interesse público. Nesse período
começaram grandes invenções técnicas assim como o desabrochar da ciência. Leonardo
da Vinci foi o primeiro inventor e pesquisador a se basear na mais pura necessidade. No
entanto, a mecânica matemática que seria a base das invenções de Da Vinci vieram a
se desenvolverá efetivamente após a sua morte. Segundo Francis Bacon, somente pela
experimentação tornam-se verdadeiros os antigos contos de fada. Saber é poder,
inclusive o poder de concretizar os velhos sonhos dos inventores e de realizar a magia.
Ao propor a união da magia com a ciência, Bacon mostrou um quadro que se
desenvolvia rapidamente para pavimentar o caminho da moderna ciência natural. No
entanto, mesmo sendo sonhador, o inventor é uma pessoa prática, não pode realizar
nada de supérfluo.
A tecnologia se tornou coletiva e surgiram fábricas com centenas de milhares de
indivíduos, efetivando-se novos meios de vida. Para Bloch, a invenção voltará a ter
verdadeira utopia nas entranhas quando se praticar a economia para cobrir necessidades,
e não para gerar lucros, quando o atendimento das necessidades substituir a gica do
máximo lucro, a sociedade de consumo conseguirá absorver tudo o que é produzido sem
se preocupar com os riscos e a rentabilidade privada. O pensamento burguês se afastou
das substâncias de que trata, não se interessando mais pelo arroz, mas pelo seu preço.
uma transformação de todos os bens de troca em mercadorias abstratas e da
mercadoria em capital. Todo o conteúdo capitalista da técnica evidencia mais o dominar
que o travar amizade.
Luis Buñuel, cineasta espanhol, em 1971 fez uma crítica ácida e irônica a esse
pensamento burguês desinteressado, em seu filme “O Discreto Charme da Burguesia”
(FRA/ITA/ESP, 1972). Premiado com Oscar de Filme Estrangeiro (concorreu também
110
como Roteiro), nessa comédia, Buñuel retorna ao melhor do espírito crítico surrealista.
Faz uma divertida e inteligente “brincadeira de salão”. Seu alvo é a respeitabilidade e a
hipocrisia burguesas, particularmente a Francesa. É nisto que se resume o “charme”
dessa burguesia, discutir trivialidades do horóscopo, trocar mesuras e gentilezas e
discutir profundamente sobre “qual a melhor maneira de se servir um carneiro ou tomar
um vinho Borgonha”. A crítica de Buñuel ainda é surpreendentemente atual. A
burguesia aprimora a técnica e exerce o domínio sobre o outro. O ócio e tempo livre
agora é o luxo dessa burguesia despossuída e o domínio da técnica é hoje o seu elixir.
Toda intervenção técnica contém vontade de mudar, mas esta deve estar
relacionada conosco, que nos pertença e, portanto, como algo que não esteja destituído
de sujeito. Na mecânica não-euclidiana, a natureza se torna um conjunto de leis
(tornadas relativas) que pairam no ar. Em lugar do mero técnico enganador é preciso o
sujeito mediado socialmente consigo próprio e que media o problema do sujeito com a
natureza. O risco que se corre é o mesmo que foi alardeado por Aldous Huxley, no seu
livro O Admirável Mundo Novo (1932) que retrata como conseqüência um futuro
sombrio ao descrever uma sociedade homogênea, composta por pessoas
despersonalizadas. Mostra uma sociedade em que os seres humanos são fabricados em
linhas de produção e são predestinados geneticamente para exercerem determinadas
funções nessa mesma sociedade. Na década de 30, quando o livro foi escrito, o espectro
de um governo autoritário, armado de recursos de alta tecnologia, obcecado com a
uniformidade e com o controle total da população, eram temas comuns na literatura,
devido, evidentemente, ao surgimento apavorante de ideologias totalitárias modernas,
tais como o fascismo/nazismo e o comunismo de Estado. É a história de uma sociedade
utópica que começa aproximadamente 600 D.F. (Depois de Ford). Ford, o pai do
Modelo T da Ford, substitui o Deus, no romance de Huxley. Os personagens aclamam
“Ford” em momentos de grande emoção, e trazem o sinal do T no pescoço. Nesta
sociedade de déspotas, todos os elementos culturais e a perseguição intelectual da
ciência, na verdade é sacrifício para um mundo de conforto e conveniência, nos quais
guerra, pobreza, fome e doença deixaram de existir.
Huxley profetizou em Admirável Mundo Novo, uma civilização de excessiva
ordem em que todos os homens eram controlados desde a geração por um sistema que
aliava controle genético (predestinação) a condicionamento mental, tornando-os
111
dominados pelo sistema em prol de uma aparente harmonia social. Não havia espaço
para questionamentos ou dúvidas, nem para os conflitos, pois até os desejos e
ansiedades eram controlados quimicamente pelo “Soma”, sempre no sentido de
preservar a ordem dominante. A liberdade de escolha estava restrita a poucas matérias
da vida. A obra é uma “fábula” futurista de uma sociedade completamente organizada,
sob um sistema científico de castas, na qual a vontade livre fora abolida por meio de um
condicionamento metódico, a servidão tornou-se aceitável mediante doses regulares de
felicidade quimicamente transmitida pelo “Soma(a droga liberada do futuro), que as
ortodoxias e ideologias eram “propagandeadas” em cursos noturnos ministrados durante
o sono.
A sociedade “perfeita” é mostrada por Huxley através da história de uma jovem
típica, pertencente a uma das castas altas, que, em uma crise existencial, conhece uma
reserva de selvagens e particularmente um selvagem (a reserva é uma alegoria para o
mundo real). Os dois personagens representam o antagonismo entre a nova e a velha
sociedade, os novos e os velhos padrões.
Ela vive em uma sociedade formada por pessoas pré-programadas genética e
psicologicamente para desempenhar um papel social e gostar deste, sem questionar ou
desejar, nem mais nem menos, simplesmente ser o que lhe foi designado pelo Estado,
mantenedor do bem-estar geral. O selvagem, por outro lado, vive em um mundo cheio
dos antigos valores e costumes, dogmas e tradições. Nesta ficção, os seres humanos são
criados em laboratórios e classificados em categorias hierárquicas que desempenhariam
funções determinadas de acordo com sua predestinação social. Assim eram divididos
em Alfas mais, Alfas, Betas, Gamas, Ípsilons e Ípsilons menos, que durante todo seu
crescimento e vida adulta, passariam por um elaborado processo de condicionamento
realizado através de instituições oficiais. Este controle “não violento” tornava as pessoas
suscetíveis a aceitarem com felicidade e gratidão seus papéis sociais. Portanto, nada era
realmente natural, mas antes, construído em função de uma dominação para se manter a
ordem estabelecida.
Huxley cria um mundo onde impera o determinismo científico. Não espaço
para conflitos, brigas ou desentendimentos. O ser humano é criado de uma maneira que
possa ficar resignado com sua própria condição. Não há o sonhar adiante ou o projeto de
112
vida, nem objetivos construtivos de uma outra realidade, que a realidade está posta
desde o nascimento. Há, portanto, um domínio profundo da tecnologia no sentido do
deslocamento da personalidade do humano para algo estritamente utilitarista e
pragmático. É uma tecnologia totalmente descolada da condição humana. É essa a
crítica que faz Bloch com o mau uso do saber técnico a serviço de um domínio
legitimador das desigualdades ou forjador de uma igualdade artificialmente construída.
Como escapar dessas armadilhas do saber técnico? Bloch está convencido que o
marxismo deva avançar para a descoberta do sujeito desconhecido, mediando as pessoas
consigo, a si com as pessoas, e a si consigo próprio (um sujeito conhecido socialmente).
A utopia concreta da técnica deve vir acompanhada da utopia concreta da sociedade e se
faz sua aliada. Para Ernst Bloch, a utopia concreta era o socialismo, a luta de
emancipação socialista, pela afirmação de novos direitos e a conquista de novas
condições humanas de igualdade, dignidade, felicidade. Em sua hipótese de trabalho da
“utopia concreta”, Bloch exprime a esperança numa futura supressão de todas as
contradições.
A felicidade de caráter individualista é ideológica, enganosa e precária; a
busca da felicidade coletiva, de caráter altruísta, é também utópica, mas, em outro
sentido, verdadeira e real: verdadeira e digna, digamos, moralmente, porque altruísta, e
também verdadeira porque, sendo expressão coletiva, indica de modo concreto -
digamos, politicamente, a possibilidade real.
Bloch ressalta que o ponto forte do ser humano é a vontade. Todo povo
beligerante tem traços espartanos claramente reconhecíveis. Fica a esperança de que no
ser humano está a alavanca a partir da qual o mundo pode ser tecnicamente livre de suas
amarras. Esperança de que na matéria humana possa existir uma potência dormente que
não tem noção de suas próprias forças. O campo de atuação possível do ser humano é
muito mais espaçoso do que o mundo mecanicista faz crer. Cria a possibilidade do
sujeito da natureza que se engendra e se dinamiza utopicamente não apenas de modo
subjetivo, mas também objetivo.
A técnica burguesa, apesar de todos os triunfos, aparece simultaneamente como
mal administrada e mal relacionada, tanto ao material humano quanto à natureza.
113
Capitalismo e mercadoria maquinal destruíram as antigas cidades. um aspecto
cadavérico da mercadoria produzida em comparação com os antigos produtos
artesanais. Em toda parte é pago o preço pela não-mediação do homo faber burguês com
a substância de suas obras. Somente quando o sujeito da história, o ser humano
trabalhador, compreender-se como fabricador dela e seu destino é que poderá chegar
mais perto do forno de produção na natureza, isto implica na relação dos seres humanos
entre si e com a natureza de forma mais elaborada, é o que Bloch entende como o
marxismo da técnica.
Paradoxalmente, é possível que aos progressos do “domínio sobre a natureza”
correspondam retrocessos muito grandes da sociedade, tais como o fenômeno de uma
sociedade violenta. Engels prega o salto do reino da necessidade para o da liberdade.
Salienta primeiro, o paralelo entre necessidade meramente social exterior e necessidade
física, quando as pessoas se tornam senhoras de sua própria socialização, isto é,
mediadas consigo mesmas como sujeitos geradores da história; em segundo, quando
acontece uma crescente mediação com a previamente obscura base geradora e
condicionadora das leis da natureza. Existência em liberdade social e existência em
harmonia com as leis reconhecidas da natureza andam de mãos dadas.
“Transformação e autotransformação das coisas em bens, natura
naturans e supernaturans em lugar de natura dominata: é isso, portanto,
que significam os rudimentos de um mundo melhor, no que diz respeito à
técnica concreta”. (BLOCH, 2005:252 – vol. 2)
Desde cedo desejamos encontrar a nós mesmos. Mas não sabemos quem somos
e ninguém é o que gostaria ou poderia ser. Daí vem a inveja, mas também a vontade de
começar algo novo. O vir-a-ser está dentro de nós mesmos. O interior busca se colocar
em movimento, busca uma ação. Desejamos externar o que somos e o que pensamos
ser. Segundo Bloch, a juventude deve ser educada. Ressalta o adestramento na casa e na
escola. Do ponto de vista burguês, são servos o que se espera, levar o aluno ao
estamento ao qual pertence, uma espécie de modelo “funcionário” põe meio de uma
preparação que passa mais pelas utilidades onde o ser humano é sempre considerado um
recruta. Para Bloch, a educação continuará sendo até o fim a mais conformada de todas
as atividades: nenhum de seus modelos chegou a ser um modelo do amanhã. se pode
114
educar verdadeiramente para o modelo “camarada”, o único tipo de educação utópica
que compreende e aprende o antigo a partir do novo e não o contrário.
Nesse campo de análise blochiana é interessante abrir um parêntese para os
desafios desse processo educacional, principalmente em um mundo midiático. A mídia
está a serviço de quem? Tudo é culpa da mídia? É ela que educa em “tempos pós-
modernos”? Penso que George Orwell, no romance 1984”, possa trazer muitas
referências para pensarmos a dimensão da construção do utópico num mundo de
tecnologia e meios de comunicação muito avançados.
Orwell na obra “1984” visualiza uma perspectiva de futuro para a humanidade,
sob a influência direta dos avanços tecnológicos. Criou um mundo imaginário como
uma metáfora da opressão pública e uma advertência à humanidade. “1984" mostra um
personagem central que vive em um ambiente socialmente mediano, com suas
necessidades básicas satisfeitas. Tem um emprego bom, sem trabalho braçal, pode
comprar algumas coisas e tem acesso a algumas informações. Leva, porém, uma vida
entediante e medíocre, demonstrando uma certa indiferença inicial para com os
acontecimentos exteriores à sua personalidade, até o momento no qual passa a dar
atenção aos seus questionamentos.
A história se passa no futuro” ano de 1984 (o livro foi escrito em 1948) na
Inglaterra, ou Pista de Pouso Número 1, parte integrante do megabloco da Oceania. A
transformação da realidade é o tema principal de “1984”. Disfarçada de democracia, a
Oceania vive um totalitarismo desde que o IngSoc (o Partido) chegou ao poder sob a
batuta do onipresente Grande Irmão (Big Brother).
Narrado em terceira pessoa, o livro conta a história de Winston Smith, membro
do partido externo, funcionário do Ministério da Verdade. Winston questiona a opressão
que o Partido exercia sobre os cidadãos. Se alguém pensasse diferente do interesse do
Partido cometia crimidéia (crime de idéia em novilíngua) e fatalmente seria capturado
pela Polícia do Pensamento e desaparecia em seguida.
Winston Smith e todos os cidadãos sabiam que qualquer atitude suspeita poderia
significar seu fim. Os vizinhos e os próprios filhos eram incentivados a denunciar à
115
Polícia do Pensamento quem cometesse crimidéia. Algo estava errado, Winston não
sabia como, mas sentia e precisava extravasar. Com quem seria seguro comentar sobre
suas angústias? Não tendo respostas satisfatórias, Winston compra clandestinamente um
bloco e um lápis (artigos de venda proibida adquiridos num antiquário). Para verbalizar
seus sentimentos, Winston atualiza seu diário usando o canto “cego” do apartamento.
Desta forma ele não era alvo de comentários nem era focalizado pela teletela do
apartamento. O próprio ofício de Winston era transformar a realidade. No Miniver
(Ministério da Verdade) ele alterava dados e jogava os originais no incinerador (Buraco
da Memória) a fim de eliminar tudo que pudesse contradizer as verdades do Partido. A
função de Winston é uma crítica à fabricação da verdade pela mídia e da ascensão e
queda de ídolos de acordo com alguns interesses.
Na obra de Orwell, o Estado é absoluto. Controla os meios de produção, a mídia,
o comportamento privado das pessoas e até mesmo a história. Um partido é o
instrumento utilizado para direcionar a movimentação política e uma figura
mitologicamente real, o “Big Brother”, é utilizada para influenciar a subjetividade das
pessoas. A administração dos acontecimentos públicos em “1984” segue os ditames
totalitários: “quem controla o passado, controla o futuro, quem controla o presente,
controla o passado”.
Uma discussão muito interessante suscitada pelo livro é sobre o papel da mídia a
qual Orwell mostra como uma provável controladora da mente das pessoas. O Grande
Irmão usa-a para destilar suas informações pseudo-científicas e impedir o surgimento da
crítica. Para alcançar o seu êxito, o Big Brother não se importa de refazer informações,
distorcer os fatos e torturar os números. Sem dúvida, a obra de Orwell serve como um
alerta para estarmos sempre atentos para a transgressão das pseudo-normas estipuladas
pelo poder midiático do “Grande Irmão”.
Não um sequer entre nós que não possa ser também outro. Um ser humano
pode-se tornar tudo porque ele é inacabado. Os seres humanos ainda podem fazer
experimentações em busca de seu verdadeiro rosto. Segundo Bloch, há dois modelos
visíveis: o da libertação socialista e o modelo do funcionário presente nos países
americanizados. também tipos canônicos (o guerreiro, o sábio, o gentleman etc.).
116
os modelos e mesmo as figuras exemplares juntamente com os paradigmas é que
mantêm as questões desejantes do melhor ser-assim no nível da postura moral.
O comodista busca a felicidade amena, o corajoso, a vida perigosa. Bloch
enaltece Nietzsche: “a coragem e o prazer do incerto, do ainda-não ousado me
parecem ter sido toda a pré-história do ser humano”.
Em nosso caminho tudo é ambíguo. Ser livre é poder escolher entre duas ou
mais coisas. Bloch destaca aspectos negativos do homem que se decide muito
rapidamente e do homem escrupuloso, que pensa demais. Pisar de mansinho é tão
abstrato quanto arrombar portas.
Na mesma proporção em que os seres humanos são obscuros e indefinidos, estão
divididos. Bloch cita Nietzsche que, com sua antítese “Dioniso-Apolo”, deu uma nova
vida utópica à tensão entre felicidade dos sentidos e paz de espírito, que havia assumido
um caráter filisteu e corriqueiro. A imagem do desejo dionisíaco conhece a volúpia do
futuro, está na companhia de um deus enigmático do devir. Apolo é o patrono da
domesticação e do apequenamento. Nietzsche foi obrigado a fazer de Apolo o porta-voz
de Dioniso e a contrapô-lo ao intelecto meramente raso. Para Bloch, Dioniso e Apolo
nem de longe são concebidos de modo suficientemente processual-utópico. Ainda não
se encontram na correnteza utópica para qual os seres humanos são chamados. Os
conceitos antitéticos “carne-espírito”, “Dioniso-Apolo” fazem sentido se eles
próprios forem tomados como inconclusos e não como resposta fixa, mutuamente
excludente (caminho entrelaçado no dionisíaco que é determinado apolineamente, no
apolíneo que comporta todo o conteúdo dionisíaco). Toda a questão entre ser humano
natural e ser humano moral é reflexo da história de classes. O ser humano ainda não foi
encontrado nem como apolíneo nem como dionisíaco.
Bloch vai refletir sobre a vida ativa e vida contemplativa (o modo do fazer e o
do silêncio contemplativo). Ação ou contemplação, primado da vontade ou do intelecto.
A vida ativa se tornou trabalho forçado dos espoliados e agitação incessante que os
fazedores de lucro produzem para si mesmos. A vida contemplativa está fundamentada
na esmola. Bloch entende que o fim dessa dicotomia está na práxis revolucionária que
117
envolve tanto a observação quanto à ação, unidas e preservadas na oscilação entre teoria
e práxis.
“Como uma condição social sem classes deixa para trás a oposição
‘criatura-disciplina’, ‘Dioniso-Apolo’ numa automovimentação, auto-
identificação progressivas, assim deixa para trás também a tensão entre
virtudes teóricas e virtudes práticas”. (BLOCH: 2006:39 – vol. 3)
Desde sempre os seres humanos nascem sós e morrem sós. Bloch faz uma
distinção entre abandono e solidão. O elogio da solidão é aceitável enquanto vida
contemplativa. O risco apontado por Bloch é a solidão que surge como felicidade da
fuga, do asilo. A solidão também dominou o empresário ativo no mundo de maneira tal
que o tornou um eremita de seu próprio interesse. O início orgânico é o corpo eu,
contudo o início histórico é formado pela comunidade. Bloch aqui ressalta a amizade. A
maioria dos casamentos não acaba por falta de amor, mas por falta de amizade. A
amizade está acima do amor porque pressupõe a reciprocidade, produz sem coerção.
Bloch destaca a utopia aristotélica que privilegia a amizade, ou seja, o bem-querer,
concórdia, bem-fazer. No capitalismo, a amizade empírica tornou-se rara, mesmo nas
relações de compra e venda. Para Adam Smith, a mola propulsora da ação humana não
era constituída somente de interesses, mas também de simpatia. No entanto, a amizade
se tornou pouco efetiva no sistema capitalista. A amizade, justamente na figura de uma
sociedade sem classes, propaga-se com novas dimensões de desejo e vida.
Não é de se esperar que os seres humanos se apresentem pobres de ego. Existe
em cada ser humano uma vontade de alguma maneira frustrada, que deseja ser
independente e não subordinada. Procura-se no esporte, na guerra, os poucos campos
em que o homem individual vale alguma coisa, em que se distingue. Ao redor de todo
ser humano existem diferenciais, que são vistos no sistema capitalista como fins
meramente utilitários. Bloch critica o eu atrofiado na economia privada (o eu
capitalista) e a idéia de criação de um coletivo específico seja em países com idolatria
do Estado ou em países puramente democrático-capitalistas.
O coletivo sem classe é quando o indivíduo, por ter a possibilidade de tornar-se
humano, alcança nele sua liberdade. Indivíduo e coletivo estão entrelaçados como
momentos que interagem, uma espécie de solidariedade rica em pessoas, altamente
118
polifônica. O coletivo utópico-concreto faz-se quando cada um produz conforme suas
capacidades e consome conforme suas necessidades. Coletivo ideal não mais seria o do
rebanho, tampouco o da massa, muito menos o da empresa, mas precisamente principia
como solidariedade intersubjetiva, como unidade polifônica de direcionamento das
vontades, que estão repletas no mesmo conteúdo final humano concreto.
Segundo Bloch, até agora ainda não floresceram autênticos eus nem autênticos
nós. Depois que as classes desaparecem, pela primeira vez os indivíduos encontram
espaço em seu caminho rumo a uma comunidade mais humana e nessa casa muitos
aposentos. Trocar o indivíduo parcial pelo indivíduo totalmente evoluído, para quem as
diversas funções são modos operativos que se alternam, rumo à dignidade do indivíduo
e a generalidade da verdadeira moral (ser-consigo-mesmo-autônomo). o coletivo
novo ou autêntico garante a dignidade de cada pessoa e um coletivo sem opressão e sem
coletividade vazia e manipulável.
O ser-consigo-mesmo ou ser-em-conjunto é a elucidação do incógnito humano,
identificação de nosso si-mesmo e de nosso nós. Solidão e amizade, indivíduo e coletivo
são preservados na condição sem classes, são preservados como contraponto, não como
encruzilhada. Aparece a identidade do nós consigo mesmo e com seu mundo, no lugar
da alienação.
Doutor Fausto
18
, segundo Bloch, é o transgressor de limites por excelência.
Representa o máximo do ser humano utópico. A poesia da vida chamada Fausto move-
se em direção de uma idéia muito concreta, ocorre um abrir de olhos do mundo
experimentado e o teor da aposta faustiana é o tema do instante preenchido. Fausto testa
a si mesmo, a sua ação é a de uma viagem dialética que se modifica junto com seu
mundo e o mundo se modifica junto com seu Fausto, tal com a vontade de chegar ao
agora e ao ser-para-si plenos, essa é a utopia de ser-aí.
18
Na verdade, o Fausto de Goethe é baseado em um personagem real que virou lenda e alimentou a
literatura popular de fins do Renascimento. O mundo do doutor Johannes Georg Faust, nascido por volta
de 1497 na cidade de Knittinglen, era uma zona de fronteira entre as antigas artes esotéricas medievais e o
universo da ciência moderna. Nas universidades, estudavam-se lado a lado, em um contínuo
desconcertante, Astronomia e Astrologia, Química e Alquimia, Biologia e Magia natural.
119
A poesia de Goethe se nutre do ataque ao mundo e da educação restaurada por
parte dele. Na dinâmica de Fausto ocorre o movimento de um consciente inquieto por
uma galeria chamada mundo, o insuficiente como devir rumo ao acontecimento. Em
Fausto, assim como na Fenomenologia do Espírito de Hegel, o desejo de perceber a
si como pergunta e o mundo como resposta, mas também o mundo como pergunta e a si
como resposta. O plano de Fausto, sujeito-objeto-sujeito, é o modelo basilar do sistema
utópico-dialético da verdade material. Segundo Bloch, é na aposta faustiana que está
caracterizada a metafísica perfeitamente cabível da proximidade, para a qual rumam as
transgressões de limites configurando-se como uma metafísica autenticamente utópica.
Em suma, o ponto alto de Fausto é o pressentimento inconfundível do instante supremo,
no lugar certo.
Já o mundo de Hamlet, segundo Bloch, se resume à turvação, à melancolia, a um
saturnino estar-trancafiado-em-si-mesmo. Trata-se de uma palidez de pensamento cuja
filosofia corresponde aos humores da noite. O desgosto do mundo impede qualquer
possível acercamento do aqui-e-agora, do estar-presente no ser-aí. Hamlet se torna o
paradoxo de um grande sonhador que não acredita em suas esperanças nem em seus
alvos. Seu distanciamento trancafiado e exacerbado constitui o movimento contrário ao
da investida de Fausto na direção do instante confrontado. Hamlet evitou o aqui-e-
agora, sua natureza fraca apenas sonha e fica imersa em si mesma enquanto a corajosa
age, sua força volta-se para fora.
Para Bloch, Dom Quixote, dentre os sonhadores incondicionais, foi o mais
inflexível. Alheio ao mundo, antiquado e utópico, corre atrás de uma imagem que em
parte já passou, em parte nunca existiu. Considera a cavalaria andante e seu ideal
compatíveis com qualquer forma econômica da sociedade. Não limites para a utopia
abstrata, para a esperança cega para o mundo. Cria hipóteses para encantar um mundo
enfadonho. O mundo das esperanças de Dom Quixote é, para ele, o mundo real por
assim dizer, um querer-estar-presente no instante significativo. Sua realidade é a utopia
das lendas como ser, e o ser como utopia das lendas. O plenamente exitoso existe no
sonho acordado e no mundo utópico-antiquário que lhe sobreveio, que por ele foi
inundado. Dom Quixote é um exemplo demasiado comovente da consciência
utopicamente ativa, um dos iniciadores em utopia. Para Bloch, Dom Quixote é
condizentemente também o patrono dos idealistas sociais honestamente abstratos.
120
Quase todos os utopistas sociais idealistas são do gênero de Dom Quixote,
especialmente aqueles que colocavam na consciência dos detentores do poder os ideais
extraviados. Marx descreve Dom Quixote como uma encarnação do consciente falso, da
interpretação do mundo por meio de princípios abstratos. O dom quixotismo permanece
no pré-mundo, no romantismo político, na utopia idealista, o sonho não aterrissa ou o
faz por pouco tempo. Enquanto o mundo histórico for composto da possibilidade
objetiva e do fator subjetivo, o fator subjetivo, para não ser derrotista, possuirá sempre
um elemento de quixotismo corretamente compreendido.
O imediatismo que quer pular por cima da sociedade, dos aspectos da história e
do mundo, para chegar mais rapidamente ao final, torna-se utopia abstrata na sua
abstração extrema. Na antítese, a utopia concreta significa percurso, bússola, ordem. Por
isso, segundo Bloch, Fausto, nesse tocante, surge tão acima de Dom Quixote, como um
sujeito de abstração e de sua fenomenologia.
O caminho rumo ao melhor é primordialmente um caminho humano, e isto
significa aqui um caminho ousado. Ele conduz para fora das circunstâncias inatas, bem
como para fora daquelas que estão postadas em torno da vida. O quixotesco e o
faustiano se unem numa mesma linha de fogo previamente traçada, apesar das
diferenças entre abstração de um lado, experiência de mundo do outro.
Para Bloch, o ser humano passa uma vida apetecendo e desejando, mas quando é
chamado a dizer o que quer a todo custo e de qualquer maneira - o que quer de fato -,
mostra ser um leigo no assunto. Não haveria nem modelos nem paradigmas, se não
fossem precedidos de um ato fundamental, impulsionado pela necessidade de uma vida
melhor, voltado para a sua forma mais aperfeiçoada. É esse ato fundamental que
começam a produzir modelos, virtudes, valores, por mais que o conteúdo de cada um
desses ideais seja determinado ideologicamente e historicamente substituído por outro.
A função utópica confere a todas as coisas em que põe a mão o selo do bem
desejado ou torna a pessoa receptiva para elas quando o que corresponde ao bem
desejado estiver contido objetivamente na coisa. É considerado ideal quando a meta
parece conter não o desejável ou o almejável, mas também o pura e simplesmente
perfeito. Os valores morais só são considerados ideais e estéticos na medida e na
121
proporção em que se distanciarem da chamada contemplação isenta de interesse. Cada
época tem necessidade de cultivar ou dar forma a desejos de uma existência mais nobre.
O bem supremo é a estrela polar de toda utopia. O bem supremo, como foi
imaginado sob o conceito “Deus”, situa-se também por si no vel do indefinido em
termos reais ou na linha de frente.
“O próprio bem supremo é esse alvo ainda não formado, definitivamente
significado na tendência do processo, definitivamente possível-real na latência
do processo. Assim, uma perspectiva cósmica-utópica em meio à subjetiva e
existencial-intensiva surge quando se pode estatuir que aquilo depois que se
pensou ser o bem supremo, que antigamente se chamava Deus, depois reino de
Deus, e que por fim é o reino da liberdade, não perfaz apenas o ideal final da
história humana, mas também o problema metafísico da latência da natureza”.
(BLOCH, 2006:409 – vol. 3)
Os juízos de valor do tipo moral nunca foram homogêneos nas diferentes épocas
e sociedades, eles sempre foram dependentes da base social cambiante, mas justamente
por isso foram constantemente tomados segundo o critério do respectivo modelo
comum, um modelo típico e, dentro dele, para além dele, o principal: um modelo com
conteúdo e objeto. Nesse caso, portanto, o critério com validade geral de modo algum
reside apenas na consciência ou numa razão normativa genérica; ele reside na própria
coisa objetiva.
Segundo Bloch, o mundo material é perfeitamente capaz de ser portador de um
bem, sim, de ser o único lugar da práxis de todos os bens e valores. O mundo não é
nenhum museu e ainda não é uma catedral; ele é um processo. O valor final do bem
supremo corresponde ao clímax de uma perspectiva final processual-temporal, que
desenvolve valorativamente ser humano e processo para si em termos axiológicos. A
relação com a vontade abrange o conceito dos bens e valores como um todo: a
finalidade. Toda finalidade pressupõe a referência de uma intenção consciente. A
história humana, como história da satisfação das necessidades, é perpassada
essencialmente por atividades finais.
A única coisa verdadeira na teoria axiológica-objetiva é a matéria latente-utópica
do sujeito descoberto no mundo. A esperança do valor mais alto ou bem supremo, o
122
ideal mais extremo que se pode conceber, contém tanto o si-mesmo quanto o mundo
acostumados e em equilíbrio um com o outro, de modo a indicar a todos os demais bens
um rumo utópico. O mero desejar não saciou ninguém, de nada adianta se a ele não se
junta um querer enfático, isto é, mostrar ao querer o que pode ser feito. Isso vem à
luz no dia em que o indivíduo não der tanta importância ao seu chamado interesse
particular à maneira pequeno-burguesa. O sujeito demasiado privado torna a recolher-se
à sua comodidade até segunda ordem.
Bloch entende que o Marx não-falsificado é insuperável. Trata-se do espírito
humanitário (concreto) que se compreende ativamente. O marxismo vulgar insiste
apenas na economia. A realização filosófica de Bloch propõe uma necessária
revalorização da problemática ontológica de Marx, apoiada nos aspectos da ontologia e
da utopia no marxismo. Neste caso, fica afastada a “bondade fingida”. A miséria torna-
se a força ativa na revolta contra aquilo que a causa, transforma-se na própria alavanca
revolucionária. O inimigo é a alienação, desumanização, reificação, devir-mercadoria de
todos os seres humanos e todas as coisas, na forma como o capitalismo o produziu em
grau crescente. O marxismo corretamente praticado é, para Bloch, o espírito
humanitário em ação, a atividade, a transformação do mundo, o sonho para diante
corrigido no marxismo sempre aberto. O marxismo criativo é o tempo formulado em
idéias, um tempo simultaneamente produtivo, herdador, realizador, no qual o espírito
humanitário não mais permanece restrito ao coração ou a encorajamentos ideais. Tem
início no horizonte do espírito humanitário marxista uma secularização da filosofia.
Nenhum sonhar pode ficar parado. Desde o princípio exige-se das pessoas que se
adaptem ao tamanho do cobertor e elas aprendem a fazer isso; que os seus desejos e
sonhos não obedecem. Até o pensar desejante mais privado e insciente é preferível ao
marcha-soldado inconsciente, pois esse pensar desejante é capaz de obter uma
consciência revolucionária. Sonho acordado da vida perfeita associado com um apego-
a-si-mesmo é condição preponderante de pessoas que pensam muito, mas conhecem
pouco numa sociedade sem perspectivas. O fato de não ser possível ver o que se passa
além da curva e a ausência de sonhos chamada destino atrapalha ainda mais. Em lugar
da esperança cria-se o medo e, segundo Sartre, o medo é uma condição que anula o ser
humano.
123
Para Bloch, o marxismo não é uma compreensão contemplativa, mas uma
instrução para agir. o marxismo é o detetive tanto quanto o libertador, a solução
teórica quanto à solução prática para a mais renitente de todas as contradições. Foi o
único que promoveu a teoria-práxis de um mundo melhor, não para esquecer o mundo
presente, como era comum na maioria das utopias sociais abstratas, mas para
transformá-lo em termos dialético-econômicos. Tem início o débito e o crédito efetivo
da esperança real. A esperança legítima, como esperança mediada no nível da tendência
e da história, é que menos se detém no espaço vazio, a partir do qual nada lhe viria ao
encontro, no qual por isso em algum ponto se poderia partir para a aventura.
O otimismo se justifica como otimismo militante, jamais como otimismo
preconcebido. Está muito claro que a consciência da utopia concreta não se prende de
modo positivista ao fato da visibilidade imediata. O mundo inacabado pode ser
finalizado. O propriamente-dito ou a essência é aquilo que ainda não existe, que anda
em busca de si mesmo no cerne das coisas, que espera a sua gênese na tendência-
latência do processo. Não se encontra na tendência-latência do processo material, que é
dialética e aberta para o novum, nenhuma finalidade preordenada.
Segundo Bloch, um mundo sem um planejamento que possa ser executado nele e
com ele, sem metas, finalidades, significações executáveis de modo algum seria um
mundo marxista. O tom utópico em tantas ontologias, se não na maioria delas, está
oculto apenas porque a verdade final de todas as coisas foi descrita como uma verdade
existente de modo absoluto e assim cabalmente demonstrada. O amanhã vive no hoje
e sempre se está perguntando por ele. Uma esperança não esclarecida, não guiada,
facilmente pode levar apenas ao ermo, pois o verdadeiro horizonte não vai além do
conhecimento da realidade, esperança informada como uma esperança correspondente a
essa realidade. Quando o ser humano tiver apreendido a si mesmo e ao que é seu sem
alienação, surgirá no mundo algo que brilha para todos na infância e onde ninguém
esteve ainda: a pátria.
A utopia é um processo histórico e dialético que é construída em torno dos
conflitos e contradições de uma dada época por meio de um projeto que se concretiza
em ações, que os homens precisam de sonhos e símbolos para viver em sociedade. A
utopia significa os desejos e aspirações individuais ou pelo menos de uma ampla parcela
124
da sociedade, afinal as sociedades humanas são produto de angústias, fantasias e sonhos
projetados nas utopias que elabora.
As razões da esperança vêm também do fato de que nós estamos na pré-história
do espírito humano, o que significa que as capacidades mentais humanas ainda são sub-
exploradas, principalmente no plano das relações com os outros. Nós somos bárbaros
em nossas relações com os outros, não somente entre religiões e povos diferentes, mas
no próprio seio da família, entre parentes, onde a comunicação é falha.
O pensamento de Bloch é de fundamental importância e esclarecedor quanto à
necessidade da utopia e o nosso estado de pré-consciência, o qual define como uma
“nova classe de consciência” capaz de produzir um “sonhar para a frente”, indicando
“algo futuro” e “vindouro”. No atual estágio em que nos encontramos, como
salientado no primeiro capítulo, com o fim das certezas e a necessidade de rompimento
com o paradigma cartesiano, é salutar pensar em outro princípio que complemente o
princípio esperança de Ernst Bloch. Por isso, penso que o princípio responsabilidade de
Hans Jonas possa vir de encontro a essa necessidade. Jonas busca a compreensão de
uma ética para a civilização tecnológica a partir de um ponto de vista ontológico. As
transformações que vêm ocorrendo trazem consigo uma necessidade de mudança no
agir humano e consequentemente uma modificação na ética. A presença do homem no
mundo implica hoje no dever de conservar o mundo e preservar as condições dessa
presença. Embora Hans Jonas seja contrário e crítico do pensamento utópico, parece-me
pertinente pensar um princípio responsabilidade num mundo marcado pela pluralidade,
diversidade e proliferação dos meios de comunicação. Como Bloch propõe a ontologia
do ainda-não, penso que na nossa realidade essa ontologia deve vir acompanhada da
responsabilidade para fundamentar o pensamento utópico que se configura atualmente.
Acredito que a concepção de utopia em Mannheim (1972) é coerente e eficaz
para unir o princípio esperança de Bloch e o princípio responsabilidade de Jonas, porque
leva em conta o caráter dinâmico da realidade, na medida em que não assume como
ponto de partida uma “realidade em si”, mas, antes, uma realidade concreta, histórica e
socialmente determinada, que se acha em constante processo de mudança. Além disso,
propõe-se a atingir uma concepção de utopia qualitativa, histórica e socialmente
diferenciada, e, finalmente, manter a distinção entre o “relativamente” e o
125
“absolutamente utópico”. A relação entre a utopia e a ordem existente aparece como
uma relação “dialética”. Mannheim afirma que cada época permite surgir, em grupos
sociais diversamente localizados, as idéias e valores que se acham contidas, de forma
condensada às tendências não-realizadas que representam as necessidades de tal época.
Segundo Mannheim, a utopia, vista como “comunidades ideais” na linha da
Utopia de Thomas More, não é a única abordagem dos fenômenos históricos. Devido a
que a determinação concreta do que seja utópico procede sempre de um certo estágio de
existência, é possível que as utopias de hoje venham a ser as realidades de amanhã. A
utopia da burguesia ascendente consistia na idéia de “liberdade”. Sabemos, hoje em dia,
exatamente em que medida essas utopias se tornaram realidades e até que ponto a idéia
de liberdade daquela época continha não apenas elementos utópicos, mas igualmente
elementos ideológicos. Portanto, Mannheim considera utópicas todas as idéias
situacionalmente transcendentes (não apenas projeções de desejos) que, de alguma
forma, possuam um efeito de transformação sobre a ordem histórico-social existente.
O princípio responsabilidade de Hans Jonas
Hans Jonas nasceu em 10 de maio de 1903, na Alemanha, onde estudou com
Husserl, Heidegger e Bultmann e teve como companheiros de estudo Hannah Arendt e
Günther Anders. Graduou-se em Marburg, obteve a livre docência em 1928.
Empreendeu-se por essa razão ao estudo do gnosticismo, do qual se tornou um dos
especialistas mundiais. Constitui um referente pensador no campo das éticas
deontológicas, com repercussão na bioética, tecnoética e ética ecológica. Em 1933, com
o advento do nacional-socialismo, emigrou para a Palestina, depois se transferindo para
a Itália, onde, como soldado da brigada judaica, ajudou a combater o fascismo. Em 1949
transferiu-se para o Canadá e, em seguida, para os Estados Unidos, onde desde então
passou a viver e lecionar. Tornou-se conhecido, primeiramente, por sua obra histórico-
filosófica sobre a Gnose e, mais tarde, por seus trabalhos sobre a filosofia da biologia;
desde o final dos anos 60, Hans Jonas voltou sua atenção para as questões éticas
suscitadas pelo progresso da tecnologia. Sua obra principal, O Princípio
Responsabilidade, foi publicada em 1979 e constituiu a razão principal para a outorga
do título de doutor honores causa em filosofia, concedido em julho de 1992 pela Freie
Universität Berlin. Em fevereiro de 1993, depois de receber em Udine, Itália, uma
126
homenagem e um prêmio pela tradução italiana de sua obra principal, Hans Jonas
faleceu em New Rochelle, Estado de New York em cinco de fevereiro de 1993. Ele é
provavelmente aquele que apresenta a proposta mais sistemática de uma tentativa de
fundamentar uma ética a partir da ontologia fundamental.
Pensar nas gerações atuais e naquelas que ainda nem existem é uma
necessidade prioritária. Segundo Jonas, a ausência de uma perspectiva teleológica
impede de conceber eticamente a integração da humanidade com a natureza, assim
como conduz o pensamento para o relativismo. Para ele, o problema de nossa época não
é tanto a carência de qualquer finalidade, mas a substituição de uma vida boa (em
termos ético-políticos, tal como defendiam os clássicos antigos e medievais) pela
preservação e reprodução da vida (em termos biológico-materiais). Desse modo, a
premissa para a destruição da natureza se constitui a partir da redução da finalidade
humana à reprodução da espécie.
A experiência fundamental de Jonas é, pois, a desse vácuo ético a que responde
sua tentativa de fundar uma ética da responsabilidade, cujo ponto de partida e de
chegada é o reconhecimento do caráter de dever-ser da autêntica vida humana sobre a
terra, e, por conseguinte, do dever de preservar as condições sob as quais o
autenticamente humano veio a ser e se revelar na história. Trata-se, em última instância,
da confissão de que o poder humano é ínfimo e insignificante em relação à
incomensurável potência natural, que produz um excesso, uma desmesura excessiva de
nosso poder de agir sobre o poder de prever, valorar e julgar.
Segundo Jonas, a ética tradicional funda-se e acontece dentro dos limites do ser
humano, ou seja, uma ética do aqui e agora que não responsabiliza o homem pela
natureza. Essa ética tradicional é antropocêntrica. Refere-se aos resultados imediatos
dos meus atos e não conhece dimensões temporais que ultrapassam o tempo das
relações humanas. O contexto sob o qual o homem está hoje inserido não comporta
mais essa ética tradicional. Isso ocorre devido ao surgimento da “civilização
tecnológica”. A técnica moderna trouxe mudanças significativas para o comportamento
humano e a ética agora deve se adaptar a esses novos desafios tecnológicos. Apesar da
ética do próximo ainda ter sua validez, o futuro da humanidade no seu habitat planetário
127
exigiria, todavia, uma “ética da responsabilidade”. O homem moderno teria que assumir
sua responsabilidade sobre o destino da terra, enquanto ecossistema e moradia.
Consequentemente deve assumir a responsabilidade sobre o futuro da humanidade.
Como a destruição ou a manutenção da terra está embasada, sobretudo no poder técnico,
o homem criador da técnica torna-se o principal responsável. É nesse sentido que Hans
Jonas formula uma ética da civilização tecnológica. Uma época de inovação tecnológica
exige um grau muito maior de conhecimento e também de responsabilidade ética, por
isso o conhecimento ganha status de dever ético, mas o maior problema é o
desconhecimento das conseqüências dos nossos atos entrelaçados com a tecnologia.
Assim como os imperativos categóricos kantianos, Jonas propõe um novo
imperativo: “Age de tal maneira que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a
permanência de uma vida humana autêntica” (imperativo de responsabilidade tornado
princípio). A teoria da responsabilidade de Jonas propõe o entrelaçamento de três
categorias: de bem, de dever e de ser.
Como fundamentar normas e deveres em tempos pós-modernos? Uma ética
menos antropocêntrica é o preceito básico. O Bem não estaria somente presente no
campo onde as relações humanas se cruzam, mas também no pensamento científico
sobre a natureza. Para que haja responsabilidade é preciso existir um sujeito consciente,
mas a tecnologia é alienante e é determinista, alimentada pela hiperespecialização do
conhecimento que afasta a reflexão ética.
Para Jonas, estamos hoje frente ao imenso desafio de assegurar a presença do
homem na terra. A possibilidade de extinção do homem enquanto espécie é nova. Aos
poucos se perde a referência do que é natural e do que é artificial. O mundo artificial
aparece como uma segunda natureza. O filme Doze Macacos” (EUA, 1995), dirigido
por Terry Gilliam é uma ficção que retrata com maestria um futuro à beira da extinção e
marcado pela artificialidade radical da vida. O ano é 2035. Após uma epidemia de um
vírus desconhecido e de grande poder letal, a população mundial foi reduzida a apenas
1%, com mortes registradas de mais de cinco bilhões de pessoas. Os pequenos grupos
que sobraram são obrigados a viver em abrigos subterrâneos, pois o ar está contaminado
com o vírus fatal. A sobrevivência da raça humana está comprometida, a não ser que um
plano extravagante e perigoso, tramado por um grupo de cientistas, resultado. Os
128
especialistas inventaram uma máquina do tempo capaz de enviar uma pessoa ao ano de
1996, para que ela possa rastrear a origem do vírus desconhecido e, assim, impedir a
eclosão do futuro apocalíptico. Toda a concepção visual suja, escura, enferrujada,
desgastada – foi feita como se os humanos tivessem que reconstruir o mundo a partir de
um ferro-velho. Em um cenário devastado, nada é mais real do que isso, a promessa da
tecnologia moderna se converteu em ameaça. Para tanto, faz-se necessária uma ética do
respeito que se estende até a metafísica, ao perguntar-se porque, afinal, os homens
devem estar no mundo e qual a sua existência no futuro. A ameaça é o grande que,
igualmente, a reflexão ética deve ser extremada.
Hans Jonas profetizará o fim da utopia como passo necessário à ética da
responsabilidade. Faz a crítica a um ideal utópico específico que alia marxismo e
técnica. Ele nesse utopismo uma ameaça. A partir das referências de Ernest Bloch,
entendo que a construção de uma ética da responsabilidade não exclui a utopia, pelo
contrário, ela é um dos suportes da construção utópica nos dias de hoje.
A utopia hoje, diante da perspectiva de fim do projeto iluminista, do
antropocentrismo e da necessidade de construção de uma nova cosmologia, ao repensar
a relação da biosfera e da antroposfera, cria novas dimensões, bifurcações e
ramificações. A utopia faz-se então numa interação dialógica de perspectiva construtiva.
Não mais como totalidade, mas como referência de horizontes imaginários. Morin
(1995) ressalta que a
descoberta da solidariedade ecológica é uma grande e recente
descoberta. Nenhum ser vivo, mesmo humano, pode libertar-se da biosfera. A história
continua a se fazer, mas sua interpretação não é unilateral. A perspectiva relativista da
história nos conduz a essa dialogia necessária. A ordem, desordem e organização estão
nesse processo dialógico contínuo, cuja utopia é construída e desconstruída a partir
desses pontos de vista aparentemente incongruentes.
O Princípio da Responsabilidade de Jonas é uma avaliação extremamente crítica
da ciência moderna e da tecnologia, além de mostrar a necessidade do ser humano de
agir com parcimônia e humildade diante do extremo poder transformador da
tecnociência. O choque causado pelas bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki seria
o marco inicial do abuso e promoção da destruição do domínio do homem sobre a
natureza. A moderna intervenção tecnológica coloca a natureza para uso humano e
129
passível de ser alterada radicalmente. Assim, para Jonas, o homem passou a manter com
a natureza uma relação de responsabilidade, pois ela se encontra sob seu poder. É
necessária uma nova proposição ética que contemple a natureza e não somente a pessoa
humana. Esse novo poder da ação humana impõe alterações na própria natureza da
ética, pois a natureza submetida à intervenção tecnológica do homem torna-se
vulnerável. Nada menos que toda biosfera do planeta torna-se passível de ser alterada,
é, portanto, imprescindível considerar que não somente o bem humano deve ser
almejado, mas também o de toda a natureza extra-humana. Diante de um poder tão
extraordinário de transformações estamos desprovidos de regras moderadoras para
ordenar as ações humanas.
A tecnociência produz conhecimentos que, sem sofrer qualquer reflexão crítica,
transformam-se em regras impostas à sociedade. Ocorre uma separação entre a
subjetividade humana, reservada à filosofia, e a objetividade do saber, que é próprio da
ciência; o conhecimento científico ficou assim, alheio à subjetividade humana,
obstinado apenas com a própria ciência e essa não pode se conhecer, não pode auto-
analisar-se com os métodos de que dispõe hoje em dia. É o que Morin denomina
“ignorância da ecologia da ação”, ou seja, toda ação humana, a partir do momento em
que é iniciada, escapa das mãos de seu iniciador e entram em jogo as múltiplas
interações próprias da sociedade, que a desviam de seu objetivo e às vezes lhe dão um
destino oposto ao que era buscado inicialmente.
É fundamental nesse processo a conscientização e compreensão por parte do ser
humano quanto à lógica que está ao seu redor, mas ocorre que a hiperespecialização das
ciências mutila e desloca a noção de homem e a desintegra. Esse divórcio entre os
avanços científicos e a reflexão ética fizeram com que Jonas propusesse novas
dimensões para a responsabilidade.
O saber moderno marcado, sobretudo, pela técnica, tem alto poder de
transformação, porém carente de uma reflexão ética que exerça moderação sobre o
irrefutável poder da tecnociência. Nesse sentido, falar em responsabilidade significa
dizer que a responsabilidade que cada ser humano tem para consigo mesmo é
indissociável daquela que se deve ter em relação a todos os demais. Trata-se de uma
solidariedade que o liga a todos os homens e à natureza que o cerca.
130
O que caracteriza o imperativo de Jonas é a sua orientação para o futuro que
ultrapassa o horizonte fechado no interior do qual o agente transformador pode reparar
danos causados por ele ou sofrer as conseqüências e assumir a responsabilidade por
eventuais delitos que ele tenha perpetrado. Com o supremo uso da técnica, o homem
tornou-se um risco para si próprio e isso ocorre na medida em que ele põe em perigo os
grandes equilíbrios cósmicos e biológicos que constituem a base suplementar da
humanidade.
Nossa obrigação de preservação da condição de existência da humanidade torna-
se incomparavelmente maior em função de nosso poder de transformação e a
consciência que temos de todos os eventuais danos oriundos de nossas ações. Obriga-
nos a recuperar a noção de moradia comum numa ordem cosmológica que fora perdida
com o advento e incremento da tecnociência. O que o imperativo de Jonas estabelece,
com efeito, não é apenas que existam homens depois de nós, mas precisamente que
sejam homens de acordo com a idéia vigente de humanidade e que habitem este planeta
com todo o meio ambiente preservado. Isso significa o respeito à dignidade própria da
natureza e ao destino solidário.
A moral da sociedade capitalista incentiva o individualismo e a competição entre
as pessoas, mais do que a solidariedade e a cooperação. O resultado disso tudo é que a
esfera da responsabilidade ficou igualmente restrita ao âmbito das intenções e ações
individuais, que não vai além das minhas relações familiares e do meu círculo de
amizades. Algo muito semelhante ocorre em relação à crise ecológica. Os países julgam
que não estão fazendo nada de errado em perseguirem metas de crescimento cada vez
mais altas assim como os cidadãos, por sua vez, não acham que estão fazendo nada de
errado ao irem de carro para o trabalho ou em aumentar o seu padrão de consumo.
Do ponto de vista filosófico, o problema tem origem no conceito restrito de
responsabilidade da moral moderna que se refere apenas às ações do indivíduo,
deixando de lado as ações sistêmicas (governos, mercados, empresas, etc.), cujas
decisões afetam muito mais os rumos da sociedade e da vida no planeta.
Como sair dessa lógica tão perturbadora? Para Jonas, somos responsáveis não
pela situação presente, mas também pelas gerações futuras, pois elas têm igual direito à
131
vida. Isso implica que tomemos decisões coletivas que imponham limites à sociedade
tecnológica que nós mesmos criamos. Como conseqüência, é preciso entender que as
decisões que afetam a vida no planeta não podem ser tomadas unilateralmente por uma
empresa ou país.
A construção de uma ética voltada para o futuro é de grande complexidade e
demandará grandes esforços e revisões de condutas e olhares sobre si e sobre os demais
criando uma ecologia cognitiva que contemple o significado e o profundo debate sobre
o agir humano. Faz-se necessária a utopia de um mundo menos antropocêntrico e mais
ecocêntrico. Isso requer a compreensão da agonia planetária que nos acomete.
A preocupação de Jonas é entender como a técnica moderna afeta a natureza do
nosso agir e o que isso difere dos tempos anteriores. É fato que a violação da natureza e
a civilização do homem são simultâneas, caminham juntas, mas o homem confrontado
com os elementos tem apenas um pequeno controle. O seu domínio deve, portanto, se
pronunciar sobre a responsabilidade humana.
Toda ética tradicional é antropocêntrica, tem a ver com o aqui e agora e como as
ocasiões se apresentam aos homens, confinada ao círculo imediato da ação. Admite-se o
máximo de futuro ao limite do tempo de nossas vidas. Age em conformidade com a lei
moral vigente a partir do conhecimento não-teórico do aqui e agora, conhecimento
próprio da virtude preso às circunstâncias imediatas. Tudo isso se modificou devido ao
advento da técnica moderna. As diretrizes da ética “do próximo” ainda são válidas, mas
agora acrescidas de uma nova dimensão, o crescente domínio do fazer coletivo através
do imperativo da responsabilidade. O homem, devido à intervenção técnica, legou à
natureza uma extrema vulnerabilidade, agora a natureza como responsabilidade humana
é o novo preceito ético fundamental. O saber torna-se um dever prioritário e, em
particular, o saber técnico ganha significado ético. Compete agora considerar a condição
global da vida humana e o futuro distante, assim como a própria existência da espécie.
Isso exige um novo modo de agir humano, menos antropocêntrico e que leve em conta
as coisas extra-humanas. Na época moderna a techné transformou-se no
empreendimento humano mais significativo numa espécie de triunfo do homo faber. A
tecnologia hoje ganha um significado ético dada a sua representatividade na esfera do
humano.
132
Segundo Jonas, se a esfera do produzir invadiu o espaço do agir, então a
moralidade deve invadir a esfera do produzir na forma de política pública. Foi
suprimida a dicotomia entre “Estado” (pólis) e “natureza”. Desapareceu a diferença
entre o artificial e o natural. A presença do homem no mundo tornou-se um objeto de
dever. Dever de criar um universo moral no mundo físico do futuro. Corre-se o risco de
que a felicidade das gerações presentes possa ser paga com a infelicidade das gerações
posteriores e ainda não existentes.
Para Jonas,
Um imperativo adequado ao novo tipo de agir humano e voltado para o
novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: Aja de
modo a que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência
de uma autêntica vida humana sobre a Terra”; ou expresso
negativamente: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam
destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”; ou,
simplesmente: “Não ponha em perigo as condições necessárias para a
conservação indefinida da humanidade sobre a Terra”; ou, em um uso
novamente positivo: “Inclua na tua escolha presente a futura integridade
do homem como um dos objetos do teu querer.” (JONAS, 2006:48)
Esse novo imperativo pressupõe que podemos arriscar a nossa própria vida, mas
não a da humanidade. Não temos o direito de escolher a não-existência das futuras
gerações para que as atuais atuem a seu bel-prazer. Temos um dever diante daquele que
ainda não é nada. O imperativo categórico de Kant era voltado para o indivíduo. o
novo imperativo clama pelos efeitos finais para a continuidade da atividade humana no
futuro. Estende-se para um previsível futuro concreto e não uma compatibilidade
abstrata tal qual no imperativo kantiano.
Com isso, Jonas ataca a utopia apregoada pela técnica. Entende a política da
utopia como um fenômeno inteiramente moderno e que pressupõe uma escatologia
dinâmica da história desconhecida no passado. Somente com o progresso moderno,
como fato e idéia, surge a possibilidade de se considerar que todo o passado é uma etapa
preparatória para o presente e de que todo o presente é uma etapa preparatória para o
futuro.
133
Os poderes da técnica sobre o destino humano ultrapassaram o poder do próprio
comunismo. Trata-se de um sonho ambicioso do homo faber onde o homem quer tomar
em suas mãos a sua própria evolução, a fim não meramente de conservar a espécie em
sua integridade, mas de melhorá-la e modificá-la segundo seu próprio projeto. Saber se
temos o direito de fazê-lo, se somos qualificados para esse papel criador, tal é a
pergunta mais séria que se pode fazer ao homem que se encontra subitamente de posse
de um poder tão grande diante do destino, como por exemplo, a manipulação genética.
Jonas destaca a perspectiva utópica que se apresenta sob as condições da técnica
moderna. O poder tecnológico transformou o que era antes hipóteses em projetos
executáveis, levando-nos a viver sob a sombra de um utopismo indesejado e automático
que provoca uma nova natureza do nosso agir, a qual exige uma nova ética de
responsabilidade de longo alcance. Segundo Jonas, precisamos da ameaça à imagem
humana para, com o pavor gerado, afirmarmos uma imagem humana autêntica. O saber
se origina daquilo contra o que devemos nos proteger, nos ensina a enxergar o valor
cujo contrário nos afeta tanto. A filosofia da moral tem de consultar o nosso medo antes
do nosso desejo.
A incerteza tem de ser incluída na teoria ética e servir de motivo para um novo
princípio que possa funcionar como uma prescrição prática, pois o nosso saber é
caracterizado pela impotência com respeito a prognósticos de longo prazo. Para lidar
com o fato da incerteza dos prognósticos de longo prazo, a ética precisa dispor de um
princípio que não seja ele próprio incerto. Ignorar esperanças e temores vãos e não
permanecer especulando sobre o desconhecido é precondição da virtude capaz de agir.
O meu agir não pode por em risco o interessetotal” de todos os outros também
envolvidos, ou seja, o interesse das futuras gerações. A existência ou a essência do
homem, em sua totalidade, nunca podem ser transformadas em apostas do agir. Para
tomarmos uma decisão, precisaríamos tratar como certo aquilo que é duvidoso (inversão
do princípio cartesiano da dúvida).
A responsabilidade em relação à humanidade futura implica no dever para com a
existência da humanidade futura e um dever em relação ao seu modo de ser, à sua
condição. Em decorrência daqueles que virão, s temos o dever como agentes causais,
de assumir para com eles a responsabilidade por nossos atos. A primeira regra para o
134
modo de ser que buscamos depende apenas do imperativo de existir. Não somos
responsáveis pelos homens futuros, mas pela idéia do homem e a presença de sua
corporificação no mundo (responsabilidade ontológica pela idéia do homem). Isso
implica na proibição da aposta no tudo-ou-nada. Em suma, a ética do futuro remete a
uma doutrina do Ser da qual faz parte a idéia do homem.
A possibilidade de escolher o desaparecimento da humanidade implica a questão
do dever-ser “do homem”, isto é, a preferência do Ser diante do nada. A questão de um
possível dever-ser necessita de respostas independentemente da religião. É necessário
em termos de ética e dever o aprofundamento na teoria dos valores, pois somente a sua
objetividade pode deduzir um dever-ser objetivo, um compromisso com a preservação
do Ser e uma responsabilidade relacionada ao Ser.
Temos de esclarecer a relação entre valores e finalidade. Uma finalidade é o que
responde à questão “para quê?” e os fins que definem as ações e coisas a que se
reportam fazem-no sem ter em conta o respectivo estatuto ou valor. Segundo Jonas,
todos os homens almejam a felicidade. Essa universalidade do objetivo de ser feliz não
é uma comprovação estatística, mas um fato. Entretanto, é preciso reconhecer que a
busca da felicidade não é fruto de escolhas voluntárias, não é uma obrigação, mas um
direito. Jonas tenta demonstrar que a natureza cultiva valores, uma vez que cultiva fins,
e que, portanto, ela seria tudo, menos algo livre de valores.
Fundamentar no Ser o “bem” e o “valor” significa diminuir a distância que
existe entre o Ser e o dever. A busca da finalidade pode ser encarada como uma auto-
afirmação fundamental do Ser que mostra na finalidade a sua razão de ser. A vida é essa
confrontação explícita do Ser com o não-Ser e somente o fundamento no Ser é que lhe
permite enfrentar a vontade, cujo bem independente torna-se um fim. O homem bom
não é aquele que se tornou um homem bom, mas aquele que fez o bem em virtude do
bem e este é a “causa” no mundo, na verdade, a causa do mundo. A moralidade,
portanto, jamais pode se considerar como um fim. Não é a forma, mas o conteúdo da
ação que é o mais importante. Para que algo me atinja e me afete de maneira a
influenciar minha vontade é preciso que eu seja capaz de ser influenciado por esse algo.
Nosso lado emocional tem de entrar em jogo, o apelo é o sentimento de
responsabilidade.
135
A teoria da responsabilidade exige o fundamento racional do dever e
fundamento psicológico da capacidade de influenciar a vontade, ou seja, a ética tem um
aspecto objetivo e um aspecto subjetivo. O sentimento é o único capaz de influenciar a
vontade: presença subjetiva de um interesse moral, quer dizer, o sentimento tem que se
unir à razão porque a moral necessita de emoções. No sentimento de responsabilidade
está presente uma ética de intenção subjetiva cujo objeto no mundo não comporta uma
reivindicação em relação a nós, mas recebe o seu significado da escolha apaixonada do
nosso interesse em que reina soberana a liberdade do eu.
Em Kant, ao lado da razão, também o sentimento tem de entrar em cena, de
modo que a lei moral se imponha sobre a nossa vontade (o sentimento de respeito
idéia de dever ou lei moral). Para Jonas, o sentimento de responsabilidade, que
prende este sujeito àquele objeto pode nos fazer agir em seu favor, isto é,
responsabilidade objetiva e sentimento de responsabilidade subjetivo.
O poder causal é condição da responsabilidade. Em primeiro lugar está o dever
ser do objeto; em segundo, o dever agir do sujeito chamado a cuidar do objeto -
responsabilidade e sentimento de responsabilidade –, a ética da responsabilidade futura.
pode agir irresponsavelmente quem assume responsabilidades (Ex.: o jogador que
arrisca todo o seu patrimônio no cassino, mas é pai de família). Encontra-se sob meus
cuidados o bem-estar, o interesse e o destino de outros, ou seja, o controle que tenho
sobre eles inclui, igualmente, a minha obrigação para com eles.
A responsabilidade natural ou constituída pela natureza não depende de
aprovação prévia, sendo irrevogável e não-rescindível. A responsabilidade artificial
instituída a partir da atribuição e aceitação de um encargo é delimitada pela tarefa. A
origem da responsabilidade do homem público é a assunção espontânea do interesse
coletivo como condição para executar atos causais no futuro, unida à concessão mais ou
menos voluntária por parte dos interessados. A origem da responsabilidade dos pais é a
causalidade direta no ato de procriação passado, juntamente com a total dependência da
criação. O que em comum entre ambas as responsabilidades pode ser resumida em
três conceitos: “totalidade”, “continuidade” e “futuro”.
136
Segundo Jonas, ser responsável efetivamente por alguém ou qualquer coisa é
inseparável da existência do homem. A primeira de todas as responsabilidades é garantir
a possibilidade de que haja responsabilidade. A existência da humanidade significa
simplesmente que vivam os homens. O primeiro imperativo é que vivam bem. Nesse
imperativo Jonas destaca o papel da obra de arte. Sem a obra de arte o mundo habitado
por homens se torna um mundo menos humano e mais carente de humanidade. A
criação da obra de arte faz parte do agir humano constituinte do mundo
19
.
A responsabilidade abarca o Ser total do objeto, todos os seus aspectos, desde a
sua existência bruta até os seus interesses mais elevados (totalidade). O sentimento de
solidariedade é análogo ao amor pelos indivíduos. É difícil, senão impossível, assumir a
responsabilidade por algo que não se ame, pois assumir a responsabilidade é algo
seletivo. A responsabilidade total tem de proceder de forma “histórica”, apreender seu
objeto na historicidade. A responsabilidade por uma vida, individual ou coletiva, se
ocupa antes de tudo com o futuro, bem mais do que com o presente imediato, não é
nada mais do que o complemento moral para a construção ontológica do nosso Ser
temporal.
A educação tem como finalidade a autonomia do indivíduo, que abrange a
capacidade de responsabilizar-se, mas isso não quer dizer que a História não tenha
algum fim predeterminado para o qual tenda ou deva ser conduzida. Só se pode falar de
uma “infância” da humanidade em um sentido mitológico ou poético, por isso o futuro
para Jonas não contém em si mesmo” nada menos e também nada mais do que o que
esteve presente em qualquer porção do passado.
Jonas faz referência à teoria marxista como uma teoria da história total, define o
futuro em união com a explicação do passado por meio de um princípio ininterrupto, ou
seja, daquilo que de vir a partir do que foi. Afirma que não se deveria levar muito
a sério a expressão “socialismo científico”, por meio da qual os marxistas pretendiam
diferenciar-se dos socialistas “utópicos”. Aqueles que lutaram sob a bandeira do
socialismo foram animados pela indignação moral, pela compaixão, pelo amor à justiça
19
No terceiro capítulo desta tese será abordada essa questão, principalmente no que se refere ao papel do
imaginário.
137
e pela esperança em uma vida melhor e mais digna para todos. A teoria marxista é a
única teoria da história que tem pretensão a fazer previsões e, ao mesmo tempo, tem
implicações práticas. A única, portanto, que deve ser considerada ao se tratar da
responsabilidade política e uma das principais responsabilidades do homem público é
garantir que a arte de governar continue possível no futuro.
Por que a responsabilidade não esteve até hoje no centro da teoria ética? Porque
o sentimento de responsabilidade nunca aparece como elemento afetivo da constituição
da vontade moral, sendo outros sentimentos bem distintos como o amor, o respeito e
outros os que exercem essa função? A responsabilidade é uma função do poder e do
saber, a relação entre ambas as faculdades não é simples. Abandonados ao “devir
soberano” (Nietzsche) e a ele condenados, após havermos “abolido” o Ser
transcendente, somos obrigados a procurar o essencial naquilo que é transitório. a
partir daí a responsabilidade se torna um princípio moral dominante.
se é responsável por aquilo que é mutável, ameaçado pela deterioração e pela
decadência, pelo que de mortal em sua mortalidade. Em Marx, pela primeira vez, se
inscreve no mapa ético, sob o signo da dinâmica, a responsabilidade pelo futuro
histórico, de forma racionalmente inteligível. Jonas, que se auto-declara pós-marxista,
acredita que o marxismo deve voltar a ser um interlocutor em nosso esforço teórico em
busca de uma ética da responsabilidade histórica. Isso se justifica devido à tomada do
poder por parte da tecnologia, ao invés de conduzir para a plena realização, poderia
conduzir à catástrofe universal. Não é mais possível confiar em nenhuma “razão da
história” imanente e não é possível falar em um “sentido” auto-realizável dos
acontecimentos.
Kant dizia: você pode, porque você deve. Hoje deveríamos dizer: você deveria,
porque você age, e você age, porque você pode, ou seja, seu poder exorbitante está
em ação. Para Jonas “poder” significa liberar no mundo os efeitos causais, que então
devem ser confrontados com o dever da nossa responsabilidade. O conceito de
responsabilidade implica um “dever” em primeiro lugar, um “dever ser” de algo, e,
em seguida, um “dever fazer” de alguém como resposta àquele dever ser. Jonas registra,
já na moral tradicional, um caso de responsabilidade e obrigação não-recíproca. Trata-se
exatamente da relação que o ser humano adulto tem com as crianças. Ele caracteriza
138
essa relação como parte constituinte de uma categoria comportamental altruística,
fornecida pela própria natureza. Dessa relação entre desiguais, entre adultos e crianças
que necessitam assistência, resulta para Jonas a responsabilidade como algo vivido e
prático antes de se tornar uma idéia. A idéia da responsabilidade entre iguais e adultos
seria impensável sem as suas raízes biológicas. O recém-nascido reúne em si a força do
existente, que se auto-reconhece, e a queixosa impotência do “não ser ainda”. Com
cada criança que nasce recomeça a humanidade em face da mortalidade, e nesse sentido
também está em jogo a sobrevivência da humanidade.
O futuro da humanidade é o primeiro dever do comportamento coletivo humano
na idade da civilização técnica. Dever para com o homem sem incorrer em um
reducionismo antropocêntrico. O dever em relação ao homem se apresenta como
prioritário, mas deve ser incluído o dever em relação à natureza como suporte evidente
de nossa integridade. Surge uma ética da preservação e da proteção em substituição a
uma ética do progresso ou do aperfeiçoamento. O perigo decorre da dimensão excessiva
da civilização técnico-industrial, isto é, o tradicional programa baconiano que coloca o
saber a serviço da dominação da natureza. Torna-se necessário que se imponha um
limite, um poder sobre o poder, caso contrário uma catástrofe se anuncia e o poder sobre
o poder tem de surgir da própria sociedade. É nesse sentido que Jonas sugere voltar os
olhos para o marxismo, porque lhe é peculiar a orientação em direção ao futuro do
empreendimento humano como um todo.
Pode-se dizer que o marxismo pretende colocar os frutos da herança baconiana à
disposição da humanidade, realizando a promessa de um gênero humano superior. É
uma escatologia ativa posta inteiramente sob o signo da esperança. Quanto à sua
origem, é um herdeiro da revolução baconiana, pois em todas as partes onde o
socialismo conquistou o poder, acelerar a industrialização foi a marca da sua política
efetiva e resoluta.
O planejamento centralizado de acordo com as necessidades coletivas seria
capaz de garantir o bem-estar material, além de economizar os recursos naturais, porém
com o riso eminente do burocratismo. O critério das necessidades constitui uma
premissa melhor para a racionalidade do que o critério do lucro.
139
Jonas ressalta a vantagem de um poder governamental total que adote medidas
que por contrariarem os interesses individuais dos sujeitos afetados, jamais se imporiam
espontaneamente. Defende a idéia de uma tirania bem-intencionada, bem-informada e
que possua uma visão correta da realidade. É condição essencial para o poder o fato de
que os dirigidos se sujeitem a serem governados e que seja criada uma identificação da
coletividade com o governo. Nesse sentido, o marxismo possui a grande vantagem de
um “moralismo” explícito. O socialismo poderia passar da ascese a serviço da riqueza
futura para uma ascese a serviço da prevenção contra uma pobreza ainda maior.
Pode o entusiasmo pela utopia transmudar-se em entusiasmo pela austeridade?
Segundo Jonas, o capitalismo necessitaria de um novo movimento religioso de massas
para poder romper voluntariamente com o hedonismo que lhe foi incutido graças ao
estilo de vida afluente.
O filme-documentário The Corporation” (CAN, 2004), dirigido por Mark
Achbar e Jennifer Abbott trata exatamente desta questão. O documentário, baseado no
livro The corporation - the pathological pursuit of profit and power, de Joel Bakan (que
também assina o roteiro do filme), é uma profunda e divertida análise do mundo
corporativo. Explica cronologicamente como as corporações chegaram a governar o
mundo e faz uma radiografia das corporações como seres autônomos. A 14ª Emenda da
Constituição dos EUA estabelece uma jurisprudência, segundo a qual, perante as leis
americanas, as corporações poderiam considerar-se como indivíduos.
Ira Jackson
20
, espécie de porta-voz dos capitalistas, faz um mea-culpa,
envergonhado com a situação caótica promovida pela ganância e apego ao lucro a
qualquer custo. no documentário a idéia implícita de que não possibilidade das
empresas seguirem adiante sem levar em conta a perspectiva da sustentabilidade, caso
contrário não teremos mais um planeta para habitarmos a curto ou médio prazo. Nesse
sentido tenta angariar adeptos ao consumo consciente. Nós queremos mostrar às
pessoas que elas ainda podem mudar as coisas”, disse, em entrevista à agência de
notícias IPS, o roteirista Joel Bakan. Centra ataque no lucro a qualquer custo, defende
um teto limite, assim como ocorre com o salário mínimo e acusa a privatização dos
20
Diretor, Center for Business on Government Kennedy School, Harvard.
140
seres vivos.
Existe, no ideal corporativo, algo próximo da diminuição do homem à
condição de máquina. Demonstra como gerenciamos de forma despótica os rumos de
vida do planeta. Podemos condenar aqueles que nem nasceram ainda a viver num
planeta caótico e falido. O documentário alerta também para o processo de alienação em
que estamos imersos, incapazes de enxergar além de nossos próprios umbigos.
Consumimos sem nos preocuparmos com o que está por trás de todo esse processo
que “não nos diz respeito diretamente”. Consumo desenfreado significa aumento da
degradação ambiental.
A certa altura do documentário um alto executivo de uma multinacional se diz,
em alto e bom tom, impotente para mudar qualquer ação da empresa onde trabalha,
mesmo considerando que muitas das práticas contrariam seus princípios e filosofia de
vida. Outro depoimento, de um destacado consultor do mercado financeiro, atesta que
graves crises, como o ataque terrorista ao World Trade Center, ou guerras, como
aquelas que são travadas no Oriente Médio, são um ótimo negócio para os investidores
que apostam suas fichas diariamente em ouro, petróleo, indústria bélica, água,
alimentos, etc. Preocupa e choca essa falta de solidariedade e sensibilidade para com as
pessoas e com o planeta. Como reverter essa situação?
Ira Jackson, entende que o Manifesto Comunista de Marx era, Ira Jackson,
entende que o Manifesto Comunista de Marx era, antes de qualquer coisa, um Tratado
Moral, por isso defende a criação de uma Manifesto Capitalista que regule as ações.
Acredita que o desafio é enorme, muito maior do que escalar o Monte Everest, mas é
necessário e imprescindível. Fiquei em dúvida se sua posição era a preocupação com a
sobrevivência da espécie humana ou com a sobrevivência do próprio sistema capitalista,
tendo em vista sua afirmação de que o capitalismo é o melhor de todos os outros
“ismos”, a história provaria isso, pois venceu a todos.
Quando chegamos a um ponto onde não mais espaço para a sensibilidade ou
para a solidariedade, estamos literalmente no fundo do poço e pouco conseguimos ver
da luz que ilumina a entrada desse buraco onde fomos parar. “The Corporation”
provoca a nossa reação de forma inteligente e hábil, mobiliza nossos sentidos e tenta
nos tirar dessa grande letargia que nos encaminha para a morte coletiva do Ser e do
planeta.
141
Na perspectiva de Jonas, diante de uma política futura de sacrifícios
responsáveis, a democracia seria, pelo menos momentaneamente inapta, pois nela
predominariam os interesses do presente. O socialismo oferece um alívio psicológico
inegável para a aceitação popular de um regime de sacrifícios impostos supondo-se que
os dirigentes sejam capazes de tomar o caminho correto e que aponta para uma
superioridade racional da lógica das necessidades em relação à gica do lucro. Para
Jonas, um regime socialista mundial poderá constituir uma solução. No entanto, na
história geral não se conhece nenhum exemplo de altruísmo coletivo. Quando isso
ocorrer, e reside a utopia, em breve a expansão econômica em escala mundial será
coisa do passado.
Desde o início o marxismo celebrou o poder da técnica, acreditando que a
salvação dependesse da união desta com a socialização. Não se trata de controlar a
técnica, mas de libertá-la dos grilhões da propriedade capitalista, pondo-a a serviço da
felicidade humana. De acordo com a doutrina marxista, o determinismo pode existir
na forma coletivista. O progresso técnico transformou-se no “ópio das massas”, papel
antes atribuído à religião. Segundo Jonas, a maior das tentações reside na alma do
marxismo – a utopia. A vantagem do marxismo é que ele conhece um caminho em
direção às condições para o homem superior e verdadeiro. O caminho é a revolução, e a
soma dessas condições é a sociedade sem classes. a sociedade sem classes pode
engendrar o homem bom. Essa é a essência da “utopia” marxista. Tese de que a
“bondade” depende das circunstâncias.
Segundo Jonas, a magia da utopia aponta para o “mais”, em vez de para o
“menos”. Em vez do crescimento, a palavra de ordem será a contração. Torna-se um
imperativo da maturidade a renúncia ao sonho acalentado pela juventude, que é o que
significa para a humanidade. Para Jonas é inegável o valor psicológico da utopia ao
inspirar enormes massas, mas ele propõe, como sinônimo de maturidade, renunciar à
ilusão; trocar a esperança altruísta pelo medo altruísta. Existiria algo como a “educação
moral do gênero humano?” Jonas conclui que não nenhuma analogia válida entre a
existência individual e a existência histórica.
142
O que Jonas entende como utopia da cnica e da tecnologia creio que possa ser
tratada hoje como antiutopia. É ela que alimenta e engendra toda a construção utópica
no sentido blochiano. Por isso, é fundamental lembrar-nos do paradigma da
complexidade e na relação dialógica ordem/desordem, harmonia/caos. A relação que
proponho nos determos com mais atenção é esta da utopia/antiutopia que promovem o
encantamento e desencantamento do mundo numa relação complexa e dialógica. A
sociedade de consumo e da racionalidade técnica transforma-se numa antiutopia na
medida em que traz sérias conseqüências sociais, psíquicas e ambientais ao indivíduo e
à própria biosfera. Tratar dessa antiutopia inevitavelmente incorre na criação de novos
horizontes utópicos que façam com que saíamos dessa lógica absurda do acúmulo e da
frugalidade.
Segundo Jonas, as circunstâncias de uma sociedade sem classes trará à luz a
verdadeira natureza humana, e com o “reino da liberdade” começará a verdadeira
história da humanidade. Diferentemente de outras utopias, o marxismo tem algo a dizer
não sobre o Ser, mas sobre a vinda da utopia. Parte da crença de que o “homem
verdadeiro” não teria surgido até os dias de hoje. O pathos da utopia marxista é uma
transformação radical do homem, graças a circunstâncias até então desconhecidas.
As condições para a utopia estão na abundância material de modo a satisfazer as
necessidades de todos e na facilidade em adquirir essa abundância. A essência formal da
utopia é o lazer, ou seja, estar livre da servidão do trabalho. Para uma economia
universal “de abundância com lazer” como prevê a utopia, seria necessária uma
extraordinária elevação da potência da produção e da técnica. Não se trata de saber
precisamente o que o homem ainda é capaz de fazer, mas o quanto a natureza é capaz de
suportar. Quais são esses “limites” e onde eles estão? A que distância nos encontramos
deles? Segundo Jonas, a incerteza poderá ser o nosso destino permanente o que
acarreta conseqüências morais. Se a utópica é mais do que uma nostalgia ela conduz
ao fanatismo, com todo o seu pendor para a inclemência.
A questão não é mais entender os males da utopia técnica e da facilidade da vida
humana diante desse quadro. Diante das explicações científicas é fato constatado a
problemática a qual nos envolvemos. Uma nova utopia se avizinha e essa como utopia
concreta, exigirá profundas mudanças comportamentais que hoje estão apenas na
143
dimensão do utópico dada as circunstâncias do mundo globalizado. O princípio
esperança está mais vivo do que nunca.
Por isso impressiona o fato do “quase futuro” presidente dos EUA Al Gore ter
ganhado o prêmio Nobel da Paz de 2007 juntamente com a IPCC (Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), um painel da ONU que reúne cerca de
três mil cientistas e especialistas de várias áreas e é tido como a principal autoridade
científica sobre aquecimento global. O comitê de premiação disse querer chamar a
atenção do mundo para a ameaça representada pelo aquecimento global.
O filme-documentário “Uma Verdade Inconveniente” (EUA, 2006)
protagonizado por Al Gore é uma severa advertência para a humanidade sobre a
responsabilidade do homem nas mudanças climáticas. É um documentário ambientalista
e, por isso mesmo, político. As imagens, chocantes, mostram as atuais alterações que o
nosso Planeta experimenta e elas são, também, a evidência da irresponsabilidade dos
políticos que se negam a reconhecer a urgência de tocar no assunto e o pouco tempo que
resta para evitar a catástrofe total.
O filme, protagonizado por Al Gore e dirigido por Davis Guggenheim, não
retrata a verdade do passado recente, mas a verdade do futuro imediato. Faz uma crítica
feroz ao estilo de vida do homem consumista, fundamento do desenvolvimento dos
países mais industrializados. Ataca frontalmente a causa principal: a cultura dos países
industrializados concentrada no consumo, na ganância e na expansão dos negócios em
níveis insustentáveis.
O filme narra, em duas histórias paralelas, a vida de Al Gore e uma de suas
palestras perante um público principalmente jovem. O diretor ênfase a três eventos-
chave na vida do ex-vice-presidente que ajudaram a moldar seu envolvimento com o
meio ambiente: o acidente de carro que quase tirou a vida de seu filho caçula; a morte
de sua irmã com câncer de pulmão, levando em consideração que sua família tinha uma
plantação de tabaco; e a derrota na campanha presidencial de 2000 contra George W.
Bush.
144
Quanto ao título original do filme, ele explica: “Algumas verdades são difíceis
de ouvir porque, se você realmente as ouvir, e entender que elas são realmente verdade,
então você tem que mudar. E mudar pode ser muito inconveniente”. “Uma Verdade
Inconveniente” é o primeiro depoimento franco e aberto de um dos protagonistas da
política mundial das duas últimas décadas a reconhecer a possibilidade da destruição do
Planeta.
As posições de Al Gore, expostas nas suas palestras que se transformaram em
filme, são ricas em dados estatísticos, históricos, comparativos e nos mostram a crueza
da realidade dos fatos, não nenhuma perspectiva fabulosa ou utópica em suas
demonstrações, a não ser o incômodo gerado pela impulsão ao agir. É esse impulso ao
agir que nos faz refletir profundamente. saída sob a égide do sistema capitalista?
possibilidade de acordos locais e globais? Como fica a questão da pobreza e
desigualdade social frente à necessidade de mudança comportamental de todos os
segmentos da sociedade? Talvez o marxismo ainda seja muito útil para alavancar o
pensar crítico, não no sentido da solução marxista tal qual a ditadura do proletariado,
mas no sentido do pensamento crítico através da práxis transformadora, tão necessária
como nos diz Al Gore. Assim, é interessante notar a crítica que Jonas faz a alguns
preceitos marxistas que são problemáticas frente à crise ambiental que nos assola.
Jonas, referindo-se a Bloch, alega que o marxismo não quer nada menos do que
a utopia, podendo considerar a justiça e outras virtudes como antecipações de sua vinda.
Ao contrário de Marx, Bloch reconhece que o lazer constitui um problema. Em última
instância será o problema da utopia tornada realidade. Para Bloch, a felicidade do Ser
utópico não é passiva, mas ativa, ou seja, não pode consistir na fruição do consumo de
bens, mas no Ser ativo (lazer ativo, não ócio). Jonas entende que é essa suposta troca da
dignidade pela realidade que expõe a falha fundamental de toda concepção utópica: o
equívoco de que o reino da liberdade começa onde termina o reino da necessidade. Para
Jonas sem necessidade não há liberdade. A ruptura com o reino da necessidade cria uma
liberdade vazia. Parece-me que a questão fundamental nessa discussão é problematizar a
questão das necessidades humanas. Não é o fato de resolver todas as nossas
necessidades, para direcioná-la no caminho mais digno e solidário possível. Para tanto,
concepções morais, éticas e até mesmo antropológicas deverão ser discutidas e
reelaboradas.
145
Segundo Jonas, a “humanização da natureza”, segundo a perspectiva marxista,
não passa de uma bajulação hipócrita que encobre a subjugação completa da natureza
pelo homem, com vistas à sua total exploração para as necessidades deste último. Todo
desejo de utopia, que persegue qualquer modelo ideal, alimenta-se da problemática do
que foi e do que é. A ética da responsabilidade tem ela própria, necessidade de examinar
a tese do “não ainda” para toda a história precedente.
Segundo a fórmula de Bloch, “S ainda não é P” (“o sujeito ainda não é o seu
predicado”), onde o ser-P é aquilo não só a que S pode chegar, mas deve chegar, de
modo a realmente ser S. Enquanto ele não for P, ele ainda não é ele mesmo (este é o
“não”). O futuro é a palavra chave no status provisório, no “ainda não” de toda história
passada, segundo Bloch. Todos os “ainda-não” que realmente estiverem ocultos naquilo
que foi (sobre o qual aquilo que foi não nos pode dizer nada a respeito) vão aparecer
como surpresa no momento da realização do projetado, e nada garante que seja
agradável aquilo que venha a ser.
A crítica da utopia de Jonas é a crítica da técnica levada ao extremo. Implica
uma crítica da tecnologia, na antecipação de suas possibilidades extremas. Na medida
em que a crítica da utopia possa exercer alguma influência como tentativa de retificar a
maneira de pensar e a vontade, ela própria se torna uma ação inserida na ética da
responsabilidade.
Ao princípio esperança, Jonas contrapõe o princípio responsabilidade, e não o
princípio medo, mas certamente, o medo pertence à responsabilidade, tanto quanto à
esperança. A esperança é uma condição de toda ação, pois ela supõe ser possível fazer
algo e diz que vale a pena fazê-lo em uma determinada situação (mas deve ser levado
em conta o fluxo imprevisível das coisas). O medo é uma das condições da ação
responsável não se deixar deter por esse tipo de incerteza, assumindo-se ao contrário, a
responsabilidade pelo desconhecido, dado o caráter incerto da esperança (coragem para
assumir a responsabilidade). O medo que faz parte da responsabilidade não é aquele que
nos aconselha a não agir, mas aquele que nos convida a agir. A responsabilidade,
portanto, é o cuidado reconhecido como obrigação em relação a um outro ser, que se
torna “preocupação” quando há uma ameaça à sua vulnerabilidade.
146
Ernst Bloch entende o medo como conseqüência da carência de sonhos em
relação ao futuro quando não se está preparado para as coisas que virão. Bloch quer
afastar a incerteza, Jonas quer combatê-la, mas numa nova perspectiva paradigmática a
proposta é convivermos com ela. Isso exige flexibilidade, tolerância, novas formas de
enxergar o mundo e a diversidade que nos cerca numa postura menos antropocêntrica.
Essa perspectiva pavimenta o caminho do utópico na Contemporaneidade.
O ambiente utópico hoje
Assim como a industrialização do século XVII causou fascínio frente à
possibilidade do progresso material humano e que trouxe uma verdadeira ambientação
utópica sob a crença de que a indústria e os industriais causariam um apogeu de
fertilidade de bens utilitários à realização humana, parece-me que estamos a presenciar
no século XXI um ambiente muito parecido, mas com outras peculiaridades. O
ambiente agora é de que outro mundo possível, através de um capitalismo menos
selvagem e mais humanizado. A utopia do reciclar, o fim do descarte e a valorização do
reaproveitamento, a utopia da qualidade de vida, a utopia do desenvolvimento
sustentável conciliando desenvolvimento social e econômico com preservação
ambiental, a utopia do mundo inteiramente diversificado onde cada um terá o seu
espaço, a utopia do mundo democrático, sem pensamento único e sem direções e a
utopia do mundo horizontal diferente do nosso mundo piramizado. Esse parece ser o
ambiente que dá a tônica do imaginário utópico de hoje.
Sociedades industriais são poluidoras e destruidoras por natureza. Nossa
sociedade moderna quase que intrinsecamente poluidora nos induz a consumir produtos
que são muito mais perecíveis do que décadas anteriores. É um sistema fundado para
produzir em larga escala e para poluir. Assiste-se hoje à falência das teorias
desenvolvimentistas sob as quais “desenvolvimento a qualquer custo é melhor que
nada”. A esperança de que dias melhores virão é contrastada com a realidade que é
mostrada cotidianamente caso não façamos nada ou não mudemos nossa postura.
Percorreu recentemente em muitas caixas de mensagens de e-mails de todo o
Brasil, um texto publicado na revista “Crônicas de los Tiempos”, de abril de 2002. Esse
147
texto é uma ficção com base em um indivíduo que habitaria o planeta no ano 2070. Um
indivíduo de 50 anos, mas com aparência de 85. Apresenta sérios problemas renais
porque toma pouca água, além de ser uma das pessoas mais idosas da sociedade
vindoura. Vive de forma nostálgica relembrando os encantos de sua infância com o
meio-ambiente ainda não degradado por completo. De forma irônica relembra os banhos
no chuveiro de uma hora de duração e o carro da família lavado com água que jorrava
pela mangueira. Ressalta os avisos contínuos da época para a população cuidar da água,
mas ninguém dava a devida atenção, pois a crença era num recurso natural infinito. O
texto traz um quadro distópico e desolador do ano 2070. As mulheres raspam os cabelos
para conservá-los limpos que a água é escassa, imensos desertos constituem a
paisagem, as infecções gastrintestinais, enfermidades da pele e das vias urinárias são
as principais causas de morte, a indústria está paralisada e o desemprego é dramático.
As fábricas dessalinizadoras são a principal fonte de emprego e pagam os empregados
com água potável em vez de salário. Os assaltos por um litro de água são comuns nas
ruas desertas. A comida é 80% sintética. A roupa é descartável, o que aumenta
grandemente a quantidade de lixo. Voltou-se a usar as fossas sépticas como no século
passado porque a rede de esgoto não funciona mais por falta de água. A aparência da
população é horrorosa e a idade média de vida é de 35 anos. O oxigênio também está
degradado por falta de árvores, o que diminuiu o coeficiente intelectual das novas
gerações. Alterou-se a morfologia dos gametas de muitos indivíduos, com isso há
muitas crianças com deformações, insuficiências e deformações. O governo cobra pelo
ar que é respirado porque ele deve ser ventilado. Em alguns países o exército exerce um
forte vigilância sobre poucas áreas verdes remanescentes e a água passou a ser mais
valiosa e cobiçada do que petróleo ou qualquer metal precioso. Em suma, todos
advertiram que era preciso cuidar do meio ambiente, mas foi dado pouco caso. Agora
em 2070 o quadro é desolação e só resta a melancólica lembrança de que o futuro estava
em nossas mãos, mas não nos preocupamos com as futuras gerações.
Por outro lado, se pensarmos a utopia de William Morris, ela pode nos dar um
alento ao fazer um contraponto muito interessante em relação a tantas obras e
pensamentos distópicos que presenciamos na produção cultural contemporânea. Refiro-
me ao livro Notícias de Lugar Nenhum Ou Uma Época de Tranqüilidade, publicado
por William Morris (1834-1896) em 1890. O lugar de que fala seu autor, existe no
espaço a Inglaterra e no tempo início do século 22, mais precisamente no ano de
148
2102, após a revolução socialista. O lugar nenhum fica por conta da comparação
obrigatória, que percorre toda a obra, com o mesmo lugar, no industrioso,
“progressista”, poluído e “selvagem” século 19. Tudo o que se projetava parecia um
sonho, um sonho ainda muito longe, no tempo, da realidade. A mola propulsora do
romance de Morris é o Princípio Esperança e o sonho acordado daquilo que ainda-não-
existe de que fala Ernst Bloch.
Um militante, depois de uma reunião partidária, dorme e acorda mais de 200
anos depois. O mundo mudara, muito mais do que ele seria capaz de imaginar: as coisas
funcionam, as diferenças entre as classes sociais foram abolidas, as pessoas são felizes e
vivem muito mais, ultrapassam com facilidade as barreiras dos cem anos, não por conta
de avanços técnicos, mas justamente porque têm de trabalhar apenas na medida em que
desejam.
Morris imagina uma sociedade igualitária e livre, na qual a produção terá
novamente um caráter artesanal, o tempo se desacelerará. Os indivíduos serão
finalmente libertados das tarefas entediantes e alienantes. Ficarão livres para atividades
criativas e prazerosas. Obrigações e coerções são reduzidas ao mínimo e cada um é livre
para seguir seu próprio caminho. O que é importante destacar é que Morris aparece
como um precursor da utopia ecológica ao imaginar uma sociedade sem cidades
poluídas, nas quais as casas estão rodeadas de espaços verdes e onde os bosques e as
florestas substituiriam os quarteirões decrépitos e insalubres da Londres de 1890.
Fica evidente nesse contexto o embate entre a utopia e a distopia. O imaginário
social faz-se alimentar dessa interessante dialogia contemporânea, pois ambas são
importantíssimas para pensarmos a esperança e a responsabilidade.
Isso implica em caminhar para uma fase de transformação, de metamorfose, para
substituir a palavra “desenvolvimento”, pois esta ainda carrega o sentido do “cripto-
colonialismo”. O verdadeiro conceito de desenvolvimento tem uma antropologia muito
particular, a de que o significado da vida é desenvolver, de uma maneira ou de outra. O
que aconteceria se reconhecêssemos que estamos falando em despertar e não de
desenvolvimento ou realização? O crescimento no mundo vivo não significa apenas
149
expansão. Significa, no ser humano, desenvolvimento para a maturidade. Significa
também crescimento interno, ou seja, o crescimento precisa ser qualificado.
Desde que o mundo foi visto como uma máquina, do século17 em diante, essa
atitude de dominação, controle e exploração prevaleceu. Hoje podemos dizer com
tristeza que a maior parte da ciência e da tecnologia é muito destrutiva, exploradora e
profundamente antiecológica. No novo ambiente utópico o homem tem um duplo papel,
olhar o potencial humano não como aquele que destrói, mas aquele que constrói. O
desafio tem ficado cada vez mais complexo. Hoje temos um potencial muito maior de
destruir do que na época da revolução industrial, mas por outro lado, o nosso potencial
de construir também é muito maior.
A nova utopia entende que é preciso mudar a estrutura de pensamento e que
possa gerar um novo tipo de comportamento. Desde o início do mundo civilizado houve
uma mudança da maneira de pensar. Quando optamos pela civilização nos apropriamos
da natureza e a expansão de poder foi se ampliando. Quando acabaram as florestas da
Europa, os europeus já tinham condições tecnológicas de atravessarem os oceanos.
Trata-se de um processo antigo decorrente de uma maneira de pensar.
Ao destruir as culturas tribais, destrói-se uma forma de enxergar e se relacionar
com a natureza, nomeada como “arcaica” pela civilização européia moderna. Os mitos
indígenas promovem uma simbiose de pensamento e percepção entre cultura e natureza.
Os aborígines australianos, os índios das Américas, todas as culturas tradicionais
afirmam que o mundo é basicamente um habitat espiritual, que ele está infundido de
espírito que emana de uma fonte extraordinária, misteriosa, maior do que nós e por
proximidade, dessa origem, de onde vem o próprio mundo. Em cada pequena pedra ou
folha reflete a glória do grande espírito ou do mistério autômato.
Existem formas inúmeras de se conhecer, através da música, da arte, dos
sentidos. O não-equilíbrio pode produzir coerências, estruturas, padrões muito
complexos que nos permitem enxergar e compreender muito melhor o tipo de estrutura
que vivemos no mundo que nos cerca. Por isso a nova utopia faz a crítica veemente ao
paradigma cartesiano preso aos conceitos. O apego à visão mecanicista de Newton e
Descartes nos levou perigosamente perto da destruição. Nossa educação ambiental
150
cartesiana ignora que a natureza tem a ver com sentimentos. Precisamos de mais
anarquia, de mais atividades variadas, mais visões múltiplas. Uma epistemologia que
tem como objetivo permanente o controle exclui a possibilidade da transcendência. A
transcendência nega a imanência. É um dos principais sentidos imateriais do ser
humano. Sentido de ir sempre mais além de si próprio como pessoa, como ser e como
espécie. Essa dificuldade e carência perceptiva faz com que nas sociedades modernas
vivêssemos alucinadamente, num ritmo frenético muito intenso. A observação da
natureza faz-se de forma muito rápida, não mais temos a contemplação e nem tempo
para sentir, ao contrário das culturas indígenas que sabem que estão no mundo para
gozar o mundo.
Combater a miséria é uma forma de tornar a vida um pouco mais razoável
porque as áreas degredadas sobram para as populações mais pobres. Subentende-se que
o que causa os problemas ambientais é a estrutura política de poder e de sociedade que
possibilita a exclusão e o mau uso das espécies. Indistintamente, é óbvio que estamos
todos na mesma condição, todos precisamos do mesmo ar, da mesma água,
independente das diferenças culturais. O problema do meio-ambiente não é uma
questão científica e de natureza, é também uma questão social e política. A ecologia não
é um problema em si mesma. Funciona muito bem sozinha, o problema deve-se a nós
porque pensamos de uma maneira muito fragmentada. Portanto, o problema ecológico
deve-se também ao pensamento. Vivemos a realidade de acordo com nosso pensamento,
pois ele participa constantemente ao dar contorno, forma e configuração a nós mesmos e
a toda a realidade. A física e a ciência moderna em geral nos conduzem a uma visão
profundamente ecológica. Ecológica no sentido que leva em conta a interconexão
fundamental, a interdependência de todos os fenômenos e o fato de estarmos
incorporados a sistemas maiores, nos processos cíclicos da natureza. A questão utópica
que se levanta é para saber se os homens podem se encontrar numa sociedade melhor
através do movimento ecológico. No entanto, o movimento ambientalista não faz uma
crítica radical dessa sociedade porque falta a visão sistêmica e do todo integrado às
partes, assim com as partes integradas ao todo. Perdemos o sentido da vida, o sentido do
religioso, o religar. A utopia pode nos ajudar a reencontrá-lo.
Mas como realizar a utopia em um mundo desprovido de utopias? Como
multiplicar, expandir, abrir espaços para todos que querem a mudança? Será que
151
podemos navegar no mar da vida sem bússola e ainda assim atingir a compaixão? A
palavra compaixão é sentir junto e se as pessoas sentirem juntas e forem responsáveis
umas pelas outras, então teremos a compaixão. Na compaixão autêntica um senso de
responsabilidade.
Segundo Ernst Bloch, “as utopias têm o seu horário”. A questão mais relevante
então não seria propriamente criar um mundo utópico, mas talvez um mundo que
permita a manifestação das utopias. Na globalização neoliberal o capitalismo apresenta-
se como um modelo civilizacional global, que subordina praticamente todos os aspectos
da vida social à lei do valor. Promover e discutir alternativas à ordem neoliberal
globalizada faz parte da dimensão utópica atual, numa espécie de posicionamento
contra-hegemônico. O desafio é revelar e dar credibilidade à diversidade e à
multiplicidade das práticas sociais, reconhecendo os diferentes saberes, as diferentes
perspectivas, as diferentes análises e o reconhecimento de diferentes práticas e atores
sociais. Em suma, combater o saber hegemônico que aprisiona o pensar utópico. Ernst
Bloch critica a filosofia ocidental pelo fato dela ter sido dominada pelos conceitos de
Tudo e Nada, nos quais tudo está contido em latência e nada novo poderia surgir.
Inscreve no presente uma possibilidade incerta, mas nunca neutra; pode ser a
possibilidade da utopia ou da salvação ou a possibilidade da catástrofe ou perdição. A
possibilidade é o motor do mundo.
O fato de algumas dimensões do mundo estarem tornando-se globais, na verdade
implica um aumento do papel das não-linearidades. Algo que soa esotérico é que todo
comportamento social é não-linear. Em outras palavras, o que qualquer pessoa faz
influencia outras pessoas. O que existe é ação coletiva. As não-linearidades conduzem a
instabilidade, a flutuações. Temos que procurar uma nova identidade e uma nova visão
global porque participamos de muitas coisas. É como uma sociedade de muitos atores. É
algo em que não um chefe único que determina o que todos devem pensar. E esse
tipo de universo é um universo com irreversibilidade e uma simetria de tempo rompida.
Então um aspecto que é como escrever um universo em que nunca podemos
acompanhar todas as correlações em que temos de abandonar a idéia da onisciência. E
isso evidentemente está relacionado a uma ampliação da racionalidade. A racionalidade
clássica foi um sonho sobre o conhecimento completo. Agora temos de admitir que não
enxergamos o mundo como Deus talvez possa enxergá-lo. Temos de levar em conta
152
nossa própria incorporação ao mundo que descrevemos. A nossa ação exigirá cada vez
mais o princípio responsabilidade, alimentado pelo princípio esperança e com a utopia
no horizonte. Uma utopia compartilhada como uma nova forma de estarmos com nossos
semelhantes.
153
CAPÍTULO 3
A ANTIUTOPIA DA SOCIEDADE DE CONSUMO E O IMAGINÁRIO
DISTÓPICO
“Da mesma maneira que a sociedade da Idade Média se equilibrava em
Deus. E no diabo, assim a nossa se equilibra no consumo. E na sua
denúncia. Em torno do Diabo, era ainda possível organizar heresias e
seitas de magia negra. Mas, a magia que temos é branca, e não é
possível qualquer heresia na abundância. É a alvura profilática de uma
sociedade saturada, de uma sociedade sem vertigem e sem história, sem
outro mito além de si mesma”
Jean Baudillard
Segundo Bauman (2007), vivemos a era da incerteza que traz consigo algumas
características muito peculiares. Passamos de uma fase “sólida” da modernidade para a
“líquida”, isto é, as organizações sociais não mantêm mais a sua forma por muito
tempo. uma separação e iminente divórcio entre o poder e a política que provoca a
redução da segurança comunal e o colapso do pensamento a longo prazo. A
responsabilidade em resolver os dilemas gerados por circunstâncias voláteis e instáveis
é agora dos indivíduos. Sugere que, no fundo de todas as outras (numerosas) diferenças,
está a nova “liquidez”, isto é, a incapacidade endêmica de nossa sociedade, e de
qualquer parte dela, de manter sua forma por algum período de tempo.
Bauman faz a crítica não tanto ao consumo (afinal, essa é a eterna necessidade
de todo ser humano), mas ao consumismo: a tendência a perceber o mundo como
basicamente um enorme recipiente dos potenciais objetos de consumo e de moldar todas
as relações humanas conforme o padrão de consumo. Assim, o outro (parceiro, amigo,
vizinho, parente) é “bom” desde que traga satisfação e pode (ou deve) ser descartado
quando a satisfação acabe ou se mostre não tão boa quanto se esperava ou quanto a que
outra pessoa talvez pudesse fornecer em seu lugar. Outros seres humanos se tornam
descartáveis e facilmente substituíveis - como os bens de consumo são ou deveriam ser.
Afinal, não fazemos juramento de eterna fidelidade a celulares, televisores,
computadores, carros, geladeiras e outros bens de consumo. Quando eles param de
154
funcionar ou são superados por ofertas novas e mais atraentes, nos separamos deles com
pouca tristeza e sem escrúpulos. Na verdade, tendemos a comemorar a substituição.
Mas, segundo Bauman, esse “padrão consumista” é contrário aos princípios que
conduzem nossos relacionamentos amorosos.
Assim como devolvemos uma mercadoria imperfeita à loja, exigindo nosso
dinheiro de volta, tendemos a ter esse comportamento frente a qualquer mínima
desavença e inquietação, queremos resolver rapidamente e de forma prática os
problemas quando os justificamos como consumidores que somos. As relações humanas
tornam-se superficiais, descartáveis e fulgazes. Sob a pressão do consumismo, as
relações amorosas se transformam em episódios amorosos: tornam-se frágeis,
quebradiças, não confiáveis, antes uma fonte de medo ao invés de alegria.
O progresso ora considerado utopia, manifestado com extremo otimismo, agora
caminha em direção oposta. Representa uma ameaça antiutópica que não traz paz nem
sossego, mas crise e tensão. Traz exclusão, competição e, ao invés de um sonho
acordado, um pesadelo acordado. Fica cada vez mais difícil a possibilidade de uma
segurança existencial que se baseie em alicerces coletivos e ações solidárias. Estamos
num período e contexto histórico marcados pela fragmentação e atomização da
realidade, consequentemente incerta e totalmente imprevisível. Flexibilidade hoje é
palavra de ordem.
Bauman entende que as pessoas caíram num grande descrédito quanto à
perspectiva de mudança. Cada indivíduo é abandonado à própria sorte e as pessoas são
vistas como meios para atingir fins individualistas. Os vínculos humanos se afrouxam e
consequentemente um enfraquecimento da solidariedade e das virtudes morais. Esse
quadro é o que Bauman chama de “globalização negativa”.
Para esse sociólogo polonês estamos num contexto em que há um embate entre a
figura do jardineiro e a figura do caçador. Os jardineiros são os construtores de utopias.
Eles sabem que tipos de plantas devem e não devem crescer no lote sob seus cuidados.
Hoje se fala em “a morte da utopia”, “o fim da utopia” ou “o desvanecimento da
imaginação utópica”. Isso demonstra que a postura do jardineiro cede espaço para a do
caçador. E em que consiste o caçador? Bauman entende que o caçador não a menor
155
importância para o equilíbrio das coisas. Sua única preocupação é buscar outra
“matança” para encher suas bolsas. Seríamos agora todos caçadores, convocados a agir
desta maneira sob o risco de sermos expulsos da caçada. Segundo Bauman, num mundo
povoado de caçadores pouco espaço para devaneios utópicos. um arrefecimento
dos projetos utópicos e mesmo alguém que assumisse a tarefa, talvez não tivesse força
suficiente para tocar tal empreitada.
Assim como Bauman, existem vários autores que ao analisar o quadro
contemporâneo tem uma visão cética, a qual muitos chamam de realista. A grande
questão é saber a que se atribui essa perspectiva. Creio que a sociedade de consumo,
uma globalização que transforma todos em cidadãos consumidores presos a signos que
nos identificam apenas nesta realidade traz um legado de problemas que pode ser
considerado como uma antiutopia contemporânea. Afinal, se todos nós tivermos que
crescer economicamente, desenvolver, progredir e consumir, não teremos muito mais
tempo para usufruir o planeta Terra, daí a necessidade de criação de consciência e
cidadania planetária. Impõe-se então a discussão sobre utopia e antiutopia, ou como diz
Bauman, jardineiro e caçador.
Hoje a visão utópica esmoreceu e desperta pouco interesse. É comum associar
este aparente desinteresse ao colapso dos Estados comunistas iniciado em 1989. O
fracasso do comunismo soviético implicou o fim da utopia. Enquanto o culo XVI nos
deu o termo “utopia”, o século XX nos deu a “distopia” ou utopia negativa. O
movimento da utopia para a distopia é a marca da sociedade contemporânea. Enquanto
as utopias buscam a emancipação ao visualizar um mundo baseada em idéias novas que
tem por característica comum serem negligenciadas ou rejeitadas; as distopias procuram
demonstrar tendências contemporâneas que podam a liberdade humana.
Qual a diferença fundamental entre o utópico e o distópico? O utópico remete à
idéia alargada de utopia como representação e projeção factível de uma situação futura
na qual os valores, regras e instituições estejam acordados com aquilo que se considera
ideal; o viés da distopia inverte a perspectiva utópica, uma vez que o futuro é previsto
como pior que o presente, decorrência nefasta de um projeto coletivo. Mas a distopia é
importante. Ela traz um incômodo e uma mensagem intrínseca de fazermos algo. Uma
156
propensão à ação. É nesse sentido que o imaginário distópico tem um papel relevante.
Serve como alerta e como crítica.
A realidade que nos cerca e sob a qual estamos inseridos é uma construção
social e, como tal, pode ser desconstruída e reconstruída. O mesmo se faz com o
caminho da utopia, isto é, uma sucessão de construções e descontruções,
encantamentos, desencantamentos e reencantamentos. A construção das utopias é
alimentada pelas desconstruções antiutópicas. Trata-se de um processo de reciclagem e
retro alimentação incessante e constante. Procuro demonstrar que as utopias continuam
mais vivas do que nunca. Entendo que a utopia contemporânea e de caráter
universalizante, compreende a perspectiva ecológica e ambiental que se constrói através
da antiutopia da sociedade de consumo de viés fortemente ideológico. Como dizia
Heráclito em sua máxima: “vive-se de morrer e morre-se de viver”.
É muito importante definirmos corretamente o sentido e significado da utopia,
pois muitas vezes ela foi apropriada por líderes políticos, intelectuais, religiosos e
muitos aventureiros. Por isso, ela recebeu a companhia no século XX de sua antítese: a
distopia. A distopia ou a utopia negativa (o mau lugar) é atual porque reflete o pesadelo
em que vivemos. Ela também é chamada de antiutopia, ou seja, a anulação da fronteira
entre o ser e o dever ser, entre a realidade e o ideal.
As sociedades distópicas são essencialmente aquelas nas quais o Estado absoluto
controla a vida e as mentes de seus cidadãos. Podemos arriscar a dizer que a distopia
hoje é a metáfora do capitalismo financeiro e a nova sociedade de consumo
generalizado.
Críticos do pós-modernismo e da contemporaneidade alegam que esta época
caracteriza-se pela utilização da força da imagem na construção de novas identidades e
no reforço do consumismo no novo estágio do capitalismo. O indivíduo transforma-se
também em mercadoria e se despersonaliza. Assim, a sociedade contemporânea é
marcada pelo excesso de superficialidade. Ao não aceitarmos o homem como criador
de sua vida, teremos de atribuir essa criação a uma vontade consciente dissimulada.
Quem é este criador oculto? Talvez o “Deus Mercado”. Supõe-se que o mercado
regularia a vida das pessoas e a sua existência individual e coletiva. Esse princípio,
157
marco das últimas décadas, representa a revalidação política e social do ideário liberal
que tem como conseqüência imediata a revalorização da subjetividade em detrimento da
cidadania. uma distorção do papel da cidadania diante das formas repressivas de
felicidade “oferecidas” à maioria da população através do consumo compulsivo de
mercadorias. Os sujeitos acabam por serem transformados em objetos de si mesmo.
Tornam-se receptáculos passivos de estratégias de produção, enquanto consumidores e
de estratégias de dominação enquanto cidadãos de democracias de massa. A
subjetividade sem cidadania conduz ao narcisismo e ao autismo.
Ao seguir nesta toada crítica admite-se que a proposta do atual momento de
globalização abandona a perspectiva da união de todos os trabalhadores do mundo, para
a realidade de vivermos em um mundo dominado pelos ideais neoliberais de um
capital e com a proposta explícita de sedução e “facilidade” em consumirmos produtos
do mundo todo. Esses ideais partem do princípio de que o crescimento econômico
ilimitado, o livre comércio e a flexibilização das relações de trabalho proveriam todos
os habitantes da Terra de uma era de abundância e bem-estar. As leis do mercado
substituiriam as Escrituras Sagradas e o mercado ganha definitivamente uma dimensão
mítica. Para os neoliberais, não há alternativa viável ao sistema de mercado capitalista.
A utopia neoliberal aos poucos é desconstruída pelos fatos. Em termos políticos,
muitos autores admitem que o projeto hegemônico neoliberal começa a dar sinais claros
de exaustão e prognosticam o fim da ideologia desenvolvimentista. As políticas
neoliberais, ao reduzir os valores humanistas e trocá-los pelos valores de mercado
causam indignação, revolta e teriam reacendido a utopia perdida.
No novo horizonte utópico surge a real necessidade de construção de uma
alternativa ao individualismo absoluto e monetarista e ao sistema econômico neoliberal.
A criação de uma economia e de uma sociedade solidária aparece no horizonte utópico.
Muitas ações efetivas são tomadas nesse rumo, ainda midas, mas com certa
visibilidade. ONG’s, movimentos sociais, alguns sindicatos e partidos políticos que têm
por meta a integração dos povos em âmbito sócio-cultural e a defesa da pluralidade e a
diversidade dos estilos de vida, contrapõem-se aos agentes da globalização que
pressionam a integração com o vil objetivo da maximização de lucros, aumento da
produção e níveis de consumo. Esses agentes ignoram os princípios da democracia
158
participativa e responsabilidade cidadã da universalização. Os movimentos “de baixo
para cima” ambicionam um futuro mais digno em sentido planetário. Seria o embate
entre a racionalidade econômica da globalização contra a sensibilidade ética da
universalização.
Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto
prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como pode um ser humano
desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de
episódios e fragmentos? Valores consumistas que transformam cidadãos em
consumidores parece ser o grande empecilho.
Consumismo e Antiutopia
Bloch, quando escreveu “O Princípio Esperança”, já apontava para a invenção
de um novo divertimento, ou seja, o consumo. Para ele, a rua do comércio está
carregada de sonhos. Uma vitrine pode alimentar vários de nossos desejos, numa
espécie de fábula. Em lugar da liberdade para comprar, o que surge é a liberdade
resultante do comprar. O eu transmuta-se em mercadoria (apresentar mais do que ser).
Não é como se deseja a si mesmo, mas como os outros desejam que você seja (quem se
põe a venda tem de agradar). Em cada canto a vitrine forma sonhos desejantes e cria
uma imagem sedutora capitalista que surge entre o homem e a mercadoria. Os anúncios
comerciais são como chamarizes, fazem da mercadoria, por mais secundária que seja,
uma magia que soluciona toda e qualquer coisa, basta comprá-la. Mania de transformar-
se; desejo de colocar uma máscara; a máscara possibilita ao burguês aparentar o que
quer ser. A conseqüência negativa é que as grandes revoluções políticas dos séculos
XVIII e XIX causaram alguns transtornos e angústias de toda ordem ao indivíduo,
sobretudo a angústia psicológica. É um paradoxo, pois a riqueza material da
humanidade foi elevada a níveis extraordinários. Esse fato é caracterizado pela falência
do projeto burguês de promoção da igualdade de condições a todos e que mais tarde se
caracterizou como uma falácia.
Pensar a utopia hoje significa pensar a realidade que nos cerca, ou seja,
questionar os valores que imperam nas sociedades de consumo e capitalismo avançado.
Neste tipo de sociedade prevalece o círculo vicioso da produção e venda de mercadorias
159
e em torno delas os homens se relacionam. Ninguém escapa à sociedade de consumo
porque tudo é transformado em mercadoria, inclusive o trabalho humano. Dessa forma o
consumo se transformou na nova moral contemporânea.
O nascimento dos mercados de massa se nos anos 1880 e se consolida na
primeira metade do século XX. Surgem os mercados nacionais em detrimento dos
mercados locais. Avança-se nos processos de logística com a modernização de infra-
estrutura de transporte e comunicação. Surgem as gerências científicas de produção na
esteira do taylorismo. As grandes lojas de departamento consolidam as grandes marcas.
É uma fase de construção cultural, que requer a “educação” dos consumidores. Ir às
compras se torna passatempo e estilo de vida das classes médias.
A conseqüência desse processo é a criação da “sociedade de abundância”,
construída no pós-guerra. Aumenta o poder de compra dos salários, e parcelas antes
excluídas da sociedade de consumo passam a ter acesso a uma série de produtos
destinados à apenas uma elite econômica, tais como os bens de consumo duráveis:
carro, TV, eletrodomésticos, etc. A rede varejista com supermercados e hipermercados
se expandem velozmente. Diminui o ciclo de vida do produto e surge a “ditadura da
moda”.
Segundo Lipovetsky (2007), o hiperconsumo é a fase iniciada nas últimas
décadas do século XX, em que o consumo se associa de forma cada vez mais forte a
critérios individuais. Entramos numa fase do capitalismo em que o bem estar imediato
(e pouco durável) tornou-se uma verdadeira “paixão de massa”. Nenhum outro discurso
acerca da felicidade seja na religião, na ciência ou na filosofia tem mais apelo,
atualmente, do que aquele que promete prazeres imediatos e instantâneos. O discurso da
lógica do consumo tem como referência a busca da felicidade. Trata-se de uma
felicidade mensurada por objetos e signos de conforto e bem-estar fundamentada nos
princípios individualistas.
A estética se sobressai em relação à ética e cria-se uma nova
forma de vínculos emocionais entre indivíduos e mercadorias. As marcas ganham vida e
se personalizam. O produto transforma-se num conceito e num estilo de vida associado
à marca, que são representadas por slogans em marcas de alcance mundial. A ansiedade
pelo consumo cresce, juntamente com a necessidade de consumir. O hiperconsumismo
160
passa a ser visto como uma forma de lutar contra a fatalidade natural da vida, como um
antidestino. É a sociedade de consumo assumindo a forma da distopia contemporânea.
Vivemos hoje uma nova forma de consumo, marcada pela oferta incessante de
produtos em escala e intensidade absurdas. Nesta sociedade de consumo, foi suprimida
a fronteira entre o necessário e o supérfluo, ninguém é mais capaz de estabelecê-lo com
nitidez. Nesse universo as referências se evaporaram e o apelo do consumismo tomou
conta do cotidiano de todas as classes sociais indistintamente. Isso faz gerar uma forma
inédita de relacionamento do indivíduo consigo mesmo e com o outro. O hiperconsumo
teria encurtado as diferenças entre as classes sociais, mas, ao mesmo tempo, passou a se
nutrir delas, pois afirma que ao estimular a compulsão pela compra como objeto de
desejo, a sociedade de hiperconsumo leva as pessoas com menos renda a se tornarem,
na ausência de meios materiais, consumidoras apenas potenciais “na imaginação”.
A conseqüência disso é a delinqüência, violência, criminalidade.
Os homens encontram-se rodeados por objetos e suas relações sociais são
impregnadas de uma publicidade cotidiana que alimenta os sonhos mais taciturnos.
Nessas novas relações sociais começamos a priorizar os objetos em detrimento dos
outros. Tornamo-nos cada vez mais funcionais, operatórios e utilitaristas, impulsionados
pelas leis do valor de troca. Abundância de objetos, equipamentos, utensílios é sinal de
prosperidade e faz brilhar os olhos mais famintos. 50 anos, o consumo era algo
relativamente pequeno na vida das pessoas. Vivia-se com muito pouca coisa, hoje as
pessoas foram levadas a serem “escravas” do consumo. A sociedade de consumo cresce
paradoxalmente com o crescimento das desigualdades. No entanto, as pessoas mais
desfavorecidas também são hiperconsumidoras, embora apenas na cabeça. Se você não
tem os produtos de consumo, você está excluído da sociedade. O hiperconsumidor é
alguém em busca de si mesmo, alguém que não vive o dionisíaco; apenas o consome.
O Shopping Center hoje parece um templo de consumo, é análogo à antiga
ágora grega onde os cidadãos atenienses se reuniam para discutir política, com a
diferença que agora os cidadãos-consumidores reúnem-se sem contato uns com os
outros, para visualizar vitrinas, preços e imergir em seus devaneios consumistas. Todo o
ambiente do shopping é no sentido de proporcionar segurança e tranqüilidade para o
cidadão-consumidor. O consumo invade toda a vida e promove um envolvimento total.
161
Tais templos se prestam a um novo modo de viver. Fazer compras num lugar agradável,
climatizado, homogeneizado, longe da sujeira, da confusão e da violência das ruas é
realmente sedutor. Além disso, comprar num espaço provisões alimentares, objetos
destinados à casa, roupas, maquiagens, flores, brinquedos, assistir a um filme, almoçar
ou jantar, fazer ginástica, tudo isso representa a praticidade, rapidez, liberdade e
independência que respondem à lógica e à própria cultura do sistema na vida pós-
industrial. Trata-se de uma estratégia muito frutífera de racionalização do consumo.
A sociedade de consumo é recheada de signos de “felicidade”, mas é uma
felicidade fugaz que desaparece tão rápido como surgiu. Como saciar essa felicidade tão
frugal? Consumindo aleatoriamente e sonhando acordado com uma época de
prosperidade em que será possível a aquisição sonhada? Nesse sentido, trata-se de uma
esperança louca que alimenta uma banalidade cotidiana. Cria-se uma boa fé no consumo
e a exigência do direito à abundância.
Vivemos sob a batuta dos signos e da recusa do real. Pode-se com isso afirmar
que a dimensão do consumo é a do desconhecimento. Apreendemos rapidamente os
signos pouco nos preocupando com os significados. O consumo invade a vida cotidiana
e faz uma ruptura radical entre o que é privado e o que é público. Diante desse quadro, o
indivíduo organiza sua vida e cria seus vínculos sociais num ambiente totalmente
fundamentado no privado. Alimenta-se das imagens e dos signos, mas vive numa
espécie de simulacro de mundo que criou a partir de suas referências pessoais e
enclausura-se. a realidade “lá fora” como algo que não lhe pertence já que está na
segurança do lar e de sua cotidianidade. Em uma vida que é completamente hedonística,
tudo leva à facilidade. Os modos de vida são recheados de excessos por todos os lados.
O sistema de hiperconsumo hedonístico desregulou totalmente o sistema de
educação. Os pais têm hoje medo de frustrar os filhos e essa é uma conseqüência do
hiperconsumo. Os valores hedonistas, o culto da felicidade, se tornaram centrais e ser
feliz significa a satisfação completa dos desejos de consumo. Tudo é consumível para
satisfazer todos os gostos e preferências e o prazer torna-se a medida da felicidade. O
consumo virou uma espécie de terapia cotidiana, faz esquecer, transcender, como uma
forma de expulsão da angústia e da ansiedade.
162
O fetiche do consumo produz uma nova pobreza material. Por isso ouvem-se
hoje os críticos da miséria social que permanece dentro do horizonte do capital a clamar
por mais dinheiro para os pobres, “lutar” pela absorção desses à sociedade de consumo,
porém sem enfocar a contradição fundamental do capital. Uma das principais
características da nova forma do capital é a redução do indivíduo e do cidadão à figura
de mero consumidor, despolitizando-o, porque o reduz a uma figura do espaço privado,
isto é, do mercado. Se aceitarmos a definição grega do idiota
21
como um totalmente
privado, poderemos concluir então que muitos homens de muitas sociedades são
realmente idiotas. No que se relaciona com o papel das ideologias, a freqüente ausência
e legitimação compromissada e a prevalência da apatia da massa são, sem dúvida, dois
dos fatos políticos centrais das sociedades ocidentais de hoje. O consumo cria um
imaginário sólido que nos afasta das mazelas do mundo e nos lega uma pseudo
felicidade e segurança. Não história para essas pessoas, consequentemente não
culpa. Mas e quanto à passividade? Ela traz em si uma “dor moral” que
corriqueiramente embute a contradição de que afinal, algo precisa ser feito.
Não é mais novidade que uma sociedade da abundância traz conseqüências
gravíssimas para a coletividade, tais como: ruído, poluição do ar e da água, destruição
das paisagens e lugares, etc. Exemplo emblemático dessa situação é o carro. Objeto de
desejo de muitos indivíduos, área urbanas parecem ser planejadas prioritariamente para
os automóveis e em segundo lugar para as pessoas. Se for contabilizar todo o gasto que
é envolvido com a sociedade do automóvel, incluindo combustível, acidentes,
equipamentos, etc., daria para resolver grande parte de todos os problemas sociais do
mundo. Paradoxalmente, quanto maior a abundância cresce proporcionalmente estes
tipos de problemas. O relatório do Clube de Roma
22
apontava limitações para o
crescimento. No ano de 1972 Dennis L. Meadows e um grupo de pesquisadores
publicaram o estudo Limites do crescimento, concluindo as seguintes teses:
21
Idiota, na Grécia antiga era empregado para classificar pessoas não integradas na pólis, que não se
interessavam ou participavam dos assuntos públicos, de grande importância naquela época e só se
ocupavam de si próprios. Idiota, na acepção atual é o individuo pouco inteligente, estúpido, imbecil.
22
O Clube de Roma nasceu em 1968, congregando cientistas, economistas e altos funcionários
governamentais, com a finalidade de interpretar o que foi denominado, sob uma perspectiva ecológica,
“sistema global”.
163
1 - Permanecendo as tendências atuais de crescimento em 100 anos haveum declínio
súbito e incontrolável tanto da população quanto da capacidade industrial.
2 - É possível modificar essas tendências, estabilizando a economia e a ecologia, prega
também a satisfação das necessidades básicas humanas igualitariamente.
3 - Quanto mais cedo se começar esse equilíbrio, mais êxito teremos.
É a relação com o não-econômico que falta à ciência econômica. O saber
economicista que se fecha no econômico torna-se incapaz de prever as suas
perturbações e futuro, deixando de ver até o econômico. O crescimento econômico,
desde o século XIX, tem sido não motor, mas regulador da economia, aumentando a
procura ao mesmo tempo que a oferta. Trouxe melhorias consideráveis ao nível de vida,
mas simultaneamente também originou perturbações no modo de vida. Os efeitos
civilizacionais que a mercantilização de todas as coisas produz, provocou o quase
desaparecimento do não-monetário e a conseqüente erosão de outros valores que não
sejam o apetite do lucro, o interesse financeiro e a sede de riqueza.
O preço mais elevado da sociedade de consumo é o sentimento de insegurança
generalizada. A pressão psicológica e social da mobilidade, a competitividade acirrada e
a disputa por empregos escassos são representações máximas desse tipo de sociedade.
Isso afeta sorrateiramente os graus de sociabilidade de uma sociedade e afrouxa os
níveis de solidariedade. Além disso, o problema do aumento do uso de drogas e da
criminalidade como um todo.
Produtividade, crescimento e consumo são as obsessões contemporâneas. Como
conseqüência cria-se uma sociedade de abundância associada com o desperdício. Como
disse Baudrillard: “Diz-me o que jogas fora e dir-te-ei quem és!” Hoje cresce a
indústria da reciclagem e do reaproveitamento, no caso brasileiro isso acabou sendo
“benéfico”, pois fez com que várias pessoas sobrevivessem do lixo. É comum vermos
nas lixeiras ou pelas ruas as pessoas disputando com os cães quem vai fuçar” o lixo
primeiro.
Diante desse quadro, Sérgio Bianchi em seu filme “Cronicamente Inviável”
(BRA, 2000) faz um retrato ácido do Brasil, o qual representa “um soco na boca do
estômago da sociedade brasileira”. Bianchi investe contra a hipocrisia social e o mito de
164
harmonia racial que somente serve para mascarar a tragédia brasileira, ao mesmo tempo
uma sociedade injusta e incompetente que não ataca de frente a distribuição dos
privilégios.
Sua idéia é a de que a classe dominante alimenta o monstro social. Bianchi faz
uma exposição nua e crua da realidade. Sabemos que a cena que estamos vendo
mendigos se alimentando na lixeira do restaurante, estará à nossa frente ao vivo na saída
do cinema ou, no máximo, no dia seguinte. Seu objetivo é problematizar uma sociedade
inviável que reforça a omissão e a apatia gerada pelo ceticismo pós- moderno e
justifica a opressão diária da barbárie capitalista
A marca fundamental da sociedade da abundância não é a apropriação do
necessário, mas é a posse do supérfluo que orienta todo o sistema. A publicidade
engaja-se nesse processo com a intenção de acelerar o consumo do supérfluo e do
descarte do que não é mais atraente, além de alimentar o círculo vicioso da sociedade da
abundância. Em suma, a sociedade de consumo precisa dos seus objetos para existir e
sente, sobretudo, necessidade de destruí-los. A sociedade do descarte que começou a
ficar evidente durante os anos 60; significa também ser capaz de atirar fora valores,
estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios, lugares, pessoas e
modos adquiridos de agir e ser, as pessoas foram obrigadas a lidar com a
descartabilidade, a novidade e as perspectivas de obsolescência instantânea. Baudrillard
(1972) alega que a análise marxiana da produção de mercadorias está ultrapassada,
porque o capitalismo agora tem preocupação predominante com a produção de signos,
imagens e sistemas de signos e não com as próprias mercadorias.
A busca pela democratização do consumo se sobressai em relação às
contradições e desigualdades sociais numa espécie de ideologia democrática global.
Reina o princípio da satisfação das necessidades e todos os homens parecem ser iguais
neste caminho, porque ao nível do consumo não existe distinção de classes. Segundo
Baudrillard, todo o jogo político do consumo tem uma poderosa função ideológica de
reabsorção e supressão das determinações objetivas sociais e históricas da desigualdade
que consiste em ultrapassar as contradições ao promover o equilíbrio através do
consumo. A “Revolução do Bem-Estar” toma o lugar da revolução social e política. O
princípio do crescimento não se vê abalado com qualquer retórica da
165
igualdade/desigualdade, que o que alavanca a sua dinâmica é a abundância de
mercadorias geradora de empregos e geradora de riquezas. O aumento da produção
ocuparia o lugar da redistribuição. Cria-se um discurso de que na escala da produção os
que se encontram nas escalas mais baixas serão contemplados com uma melhora
significativa desde que a economia cresça a níveis consideráveis. É muito mais fácil
discutir números na sociedade da abundância do que analisar em termos de estruturas,
mas o fato é que o crescimento não nos aproxima nem nos afasta da abundância porque
ele encontra-se logicamente dela separado por toda a estrutura social. O crescimento em
si é função da desigualdade, é um elemento estratégico que mascara princípios
democráticos igualitários, mas que mantém e até mesmo legitima uma ordem de
privilégio e de domínio, é um forte álibi que tem a função de dar viabilidade ao sistema.
A ideologia do consumo é similar a ideologia que se apregoa na escola. Assim
como todos têm condições de aprender a ler e a escrever, todos também têm condições
de estar sintonizados em seus aparelhos de TV. Ela segue a mesma lógica social de
outras instituições, ao naturalizar uma condição que é inerente ao indivíduo, isto é,
somos todos naturalmente consumidores em potencial. Nem todos possuem os mesmos
objetos, da mesma maneira que nem todos têm idênticas possibilidades escolares, mas
as regras do jogo estão aí, a disposição, basta se inserir nesta dinâmica. Ser capaz ou
incapaz é uma determinação estritamente particular.
A lógica social do consumo segue a lógica da produção e da manipulação dos
significantes sociais. O consumidor em si não se vê como condicionado por um sistema,
mas antes como um ser livre e que tem aspirações. No entanto, o processo de produção
das aspirações não é igualitário e isso se agrava nas classes sociais mais baixas que
vêem na compulsão do consumo uma compensação frente a falta de realização na escala
social vertical. Não existem limites para as “necessidades” do homem enquanto ser
social e é nesse ponto que a publicidade mostra suas garras ao criar uma exigência de
diferenciação e consequentemente um crescimento das “necessidades”. Não se distingue
mais com clareza as necessidades mais “racionais” tais como a instrução, a cultura, a
saúde, os transportes e os lazeres, das necessidades derivadas do crescimento. As
necessidades da ordem da produção e não as necessidades do homem é que constituem
o objeto de satisfação neste tipo de sociedade. O homem dotado de necessidades é
impelido a satisfazê-las através da aquisição de objetos, mas como o homem parece ser
166
insaciável, nunca suas necessidades plenamente satisfeitas, pelo contrário, parece ser
ofensivo dizer que se está plenamente satisfeito. Alguns autores, tais como Pascal
Bruckner (1999), afirmam que quando o consumidor aceita o estilo de vida de
determinada sociedade particular, não mais possibilidade de escolha, por isso não se
pode falar em autonomia e soberania individual, mas de um modelo de conformidade.
um condicionamento das necessidades, principalmente através da publicidade, uma
junção do sonho libertário com o sonho publicitário, ou seja, a libertação de todas as
pulsões mais a profusão das mercadorias. O que é um cliente? Na ordem do serviço, é
para Bruckner, o análogo do que é a criança mimada na sua família, um reizinho que
proclama: desejo e exijo. Cria-se o Cogito do consumidor: “faço compras, logo existo”,
para esconjurar a melancolia ou a “dificuldade de ser”. As nossas paixões não são
republicanas ou nacionais, mas culturais, comerciais ou privadas. Porém, segundo
Baudrillard,
(...) as necessidades o passam da forma mais avançada da sistematização
racional das forças produtivas ao nível individual, em que o “consumo”
constitui a seqüência lógica e necessária da produção. (BAUDRILLARD,
1972:75).
As necessidades e o consumo, portanto, constituem uma extensão organizada
das forças produtivas. A verdade do consumo, para Baudillard, reside no fato de não ser
função de prazer, mas função de produção que não é individual, mas imediata e
totalmente coletiva.
O consumo assegura a ordenação dos signos e a integração do grupo. O prazer
do consumo não tem essa racionalização individual e autônoma. Quando se consome
nunca é isoladamente. Há por detrás um sistema generalizado de troca e produção de
valores que constitui e elabora uma ordem de significações. O sistema de consumo se
baseia num código de signos e de diferenças que tem a função de assegurar um
determinado tipo de comunicação.
A circulação, a compra, a venda, a apropriação de bens e de
objetos/signos diferenciados constituem hoje a nossa linguagem e o
nosso código, por cujo intermédio toda a sociedade comunica e fala. Tal
é a estrutura do consumo, a sua língua em relação à qual as
necessidades e os prazeres individuais não passam de efeitos de palavra.
(BAUDRILLARD, 1972:80)
167
O consumo se apresenta hoje não como direito ou como prazer, mas como dever
do cidadão. O ser consumidor se frente a uma “ditadura” da felicidade, obrigado a
gozar e ser feliz e será sempre lembrado por isso. O sistema industrial depois de
socializar as massas como forças de trabalho, vão mais longe para se realizar e as
socializar como forças de consumo. Segundo a ideologia do consumo estamos prestes a
entrar numa época eufórica de prestígio do homem ao ver finalmente os seus desejos
saciados como questão de justiça aos seus esforços.
A abundância e o consumo não podem ser entendidos como a realização da
Utopia. Na verdade constituem uma nova realidade objetiva, mas como uma nova moral
adaptada a um novo tipo de condutas coletivas que segue a mesma gica milenar do
sistema produtivo. Esse sistema precisa de homens principalmente no papel de
consumidores a fim de criar um poderoso elemento de dominação social cujo nível de
consumo de um indivíduo é relacionado ao mérito social. Considerar o consumo como o
supra-sumo da liberdade humana é a tarefa universal dessa ideologia, entretanto é o que
fomenta as novas crises e as novas contradições. O consumo isola e não promove
nenhuma coalizão social, pois se trata de uma esfera estritamente privada que impede
qualquer solidariedade coletiva, pois os consumidores o inconscientes e
inorganizados.
Entendido como ideologia, o consumismo é objeto de crítica em Surplus (SUE,
2003) - documentário dirigido pelo italiano Erik Gandini -, ao relacioná-lo com os
danos ao meio ambiente e ao jeito de viver e ser da humanidade. O diretor opta por
fazer uma mistura de videoclipe intercalado com frases de grandes líderes mundiais, tais
como George Bush, Fidel Castro, Tony Blair, etc.
O programa tem como ponto de partida o espanto do mundo diante da onda de
protestos como os registrados em Gênova, em 2001, quando jovens saíram às ruas
destruindo shoppings, carros e bancos. E investiga o porquê do estilo de vida
consumista estar atiçando a ira de populações em várias partes do planeta.
168
O documentário faz referência ao escritor John Zerzan (o anarquista norte-
americano que ganhou destaque a partir da década de 1980). Ele escreveu um livro
23
dizendo que para salvar o mundo devemos voltar à idade das pedras (primitivismo), e o
modo de chegar é destruir a indústria e tudo o mais. Zerzan acha estranho ter sido
considerado o arquiteto da tática de destruição da propriedade ou o ativismo Black
Block
24
. Zerzan tinha uma vida modesta e por muito tempo sua única fonte de renda
vinha a partir da doação de seu próprio sangue.
No documentário está implícita a idéia de que o desejo de consumo nos
aterroriza, somos aterrorizados para nos tornarmos consumidores. A liberdade que
temos é a de escolher entre a marca A ou B. Além disso, alerta para a distorção do
mundo do consumo onde 1/5 da população mundial consome 4/5 dos recursos do
planeta Terra e produz 86% de todo desperdício.
O diretor procurou explorar uma contradição muito interessante no que concerne
ao consumismo. Enquanto o exagero de um lado, onde até mesmo podemos comprar
corpos feitos por encomenda, com qualquer característica física que o consumidor
deseje para seu próprio deleite, por outro lado, o ambiente em Cuba é de penúria e
limitação exacerbada do consumo reduzido a estritamente o necessário. Ao mesmo
tempo em que mostra imagens do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush,
num discurso encorajando as compras, o documentário apresenta uma garota de Cuba
que sonha com um Big Mac, mostrando os excessos de uma cultura mundial que
privilegia o consumo exagerado. A crítica à manutenção da ordem estatal está acima de
qualquer defesa ideológica no documentário.
O que Gandini não oferece é a pista para uma saída segura. Assim, escapa à
pretensão das soluções fáceis e coloca a solução do impasse sob a responsabilidade de
23
John Zerzan (1943-), anarquista americano que se destaca na segunda metade da década de 1980
enquanto filosofo e escritor de aspirações primitivistas, foca em Futuro Primitivo (1994) a civilização
agrícola e sua inerente opressividade, defendendo formas inspiradas no modo de vida das sociedades
humanas pré-históricas como modelos de sociedades plenas de liberdade. Algumas de suas críticas mais
desafiadoras se estendem ao processo da domesticação, à linguagem, ao pensamento simbólico (como
matemática e arte) e à conceituação de tempo. Seus escritos mais conhecidos são Elementos da Rejeição
(1988), Futuro Primitivo (1994), Contra a Civilização: Um Leitor (1998) e Correndo no Vazio (2002).
24
A rigor, não chega a ser um grupo constituído. É o “velhomovimento anarquista, repaginado depois
dos distúrbios de Seattle, em novembro de 1999. Mascarados (para dificultar o reconhecimento pela
polícia), seus integrantes alinham-se aos inúmeros grupos anticapitalistas e desprezam a não-violência.
169
cada um. No final fica a mensagem utópica parodiada e sampleada por partes da fala de
discursos dos grandes líderes, como Bush e Chirac em formato parecido com
videoclipe: “Neste novo mundo, as pessoas recuperariam sua própria cultura.
Teríamos um novo conjunto de valores. Uma mudança de paradigma. Uma grande
mudança mental global, em que as pessoas rapidamente diriam: ‘Eu não quero um
carro da moda’; ‘Eu o quero outro Big Mac’; ‘Eu quero ter uma vida simples e
prazerosa’”.
Personalização é um dos imperativos da sociedade de consumo. A pessoa é o
valor absoluto que constrói sua individualidade no rompante dos signos de consumo,
não há sentido, apenas significações. Criam-se artificialmente modelos personalizados
de indivíduos. A personalização assemelha-se à naturalização onde se restitui a natureza
como signo depois de tê-la eliminado na realidade. Embora todos sejam iguais perante
os objetos enquanto valor de uso, não o são diante dos objetos enquanto signos e
diferenças, que estes mantém uma profunda hierarquização. A personalização se
funda na diferenciação que alimenta o prestígio. Aos indivíduos é incentivada a
diferenciação ao produzi-los como personalizados, isto é, diferentes uns dos outros a
partir de modelos e códigos que são gerais. Partilhar os mesmos signos tem como
premissa diferenciar um grupo em relação a outro, como sinais de reconhecimento. Na
sociedade de consumo os indivíduos “aceitam” essas determinações e seguem as regras
do jogo. O indivíduo é insistentemente seduzido e convidado a gozar os prazeres
oferecidos pela sociedade de consumo.
Outro imperativo da sociedade de consumo é a transitoriedade. Se você não
descartar e não renovar seu consumo não é considerado um verdadeiro cidadão. O
efêmero permeia todos os segmentos da sociedade inclusive o conhecimento. Nada se
produz para durar, mas para evaporar, pois todas as significações se tornaram cíclicas. O
que alimenta a sociedade de consumo é a sua comunhão com o mass-media. A
comunhão não se passa mais por um suporte simbólico, mas por um suporte técnico. No
entanto, a comunicação de massa exclui a cultura e o saber. A reprodução industrial
como se sabe toma o lugar da verdadeira obra de arte e até mesmo o artesanato se
industrializa. Se viajarmos para uma região distante do país encontraremos os mesmos
objetos “artesanais” vendidos como os da loja da esquina de nossas casas. Uma obra de
arte multiplicada por mil perde o sentido de obra de arte, uma vez que ela entra na
170
mesma lógica dos objetos de consumo que podem ser descartados e reciclados. O kitsch
surge como categoria cultural resultante da multiplicação industrial e da vulgarização ao
nível do objeto e cria uma estética da simulação que, na verdade, traduz a aspiração de
uma classe. Assim, a lógica do consumo é entendida como vimos como manipulação de
signos, ela elimina o estatuto sublime tradicional da representação artística, já não existe
o privilégio de essência ou de significação do objeto sobre a imagem. O consumo
aparece como a possibilidade real de suprir as carências afetivas humanas em busca da
satisfação permanente. uma espécie de fast-food das sensações na qual a indústria
cultural reproduz e enfatiza tudo como mercadoria e provoca a idolatria do indivíduo.
Segundo Bruckner (1999), ser consumidor é saber que haverá sempre mais nas
montras e nas lojas do que se poderá levar. O consumo seria, portanto, uma religião
degradada, a crença na ressurreição infinita das coisas de que o supermercado constitui
a Igreja e a publicidade os Evangelhos.
A linguagem do consumo está escrita sob a forma mágica: ela procede por
sincretismo selvagem, acolhe nos seu panteão os resquícios dos mitos, lendas, religiões
e ideologias que combina a seu jeito. A lógica consumista é também e antes de tudo
uma lógica infantil que, além do infantilismo atribuído às coisas, se manifesta sob
quatro formas: a urgência do prazer, a habituação à dádiva, o sonho de onipotência, a
sede de divertimento.
Para Bruckner isso fez com que criássemos uma espécie de individualismo
infantil,o qual considera a utopia da renúncia à renúncia. O indivíduo passa a conhecer
apenas uma palavra de ordem: o que és para toda a eternidade; não escutes senão a
sua singularidade; cultiva e afeiçoa a tua subjetividade que é perfeita pelo simples fato
de ser tua; o teu desejo é soberano; toda a gente tem deveres exceto tu.
O homem produtor é subordinado ao homem consumidor, este ao
produto vendido no mercado, e este último a forças libidinais cada vez
menos controladas num processo em que se cria o consumidor para o
produto e o o produto para o consumidor. (...) Os indivíduos vivem
o dia-a-dia, consomem o presente, deixam-se fascinar por mil
futilidades, palram sem nunca se compreenderem na torre de
Bugigangas. Incapazes de se manterem num lugar, atiram-se em todos os
sentidos. (MORIN, 1995:69)
171
O processo de tecnologia das comunicações de massa promove a
espetacularização. O que é recebido, assimilado e “consumido” através da TV não é
tanto o espetáculo quanto a virtualidade de todos os espetáculos. Há implicitamente uma
mensagem totalitária da sociedade de consumo. A TV veicula a ideologia da
onipotência de um sistema de leitura do mundo transformado em sistema de signos. Na
crise das metanarrativas, a TV pretende ser a metalinguagem de um mundo ausente. Por
detrás do consumo de imagens encontra-se o imperialismo do sistema. Toda a matéria
do mundo surge tratada industrialmente em produtos e em material de signos, em
detrimento de todo conteúdo cultural ou político. Os códigos operantes da TV têm ao
mesmo tempo uma estrutura ideológica e uma estrutura técnica que carrega em seu
interior um sistema de valores morais, políticos e sociais. A generalização da
substituição do código ao referencial é o que define o consumo dos meios de
comunicação de massa. Ele mascara a realidade ao tentar evitar a interpretação de que
os objetos e acontecimentos que invadem a nossa existência cotidiana são desnaturados
ou não são conteúdos autênticos. Em suma, o consumo nos meios de comunicação de
massa tem como conseqüência o desvio de sentido, a despolitização da política, a
desculturação da cultura e a desssexualização do corpo. Substitui-se o real pelo
espetáculo em forma de real num processo de simulação constante. A publicidade é
estratégica nesse processo de manipulação formal. Transforma o objeto em
acontecimento e edifica-o como modelo e como espetacular. Os publicitários são
identificados como operadores míticos, apóstolos da modernidade. Não o mentirosos,
nem ilusionistas, mas procuram estar para além do verdadeiro e do falso, o seu maior
prazer é seduzir através do seu processo criativo. Idealizador de profecias sem a
preocupação de verificar a veracidade dessas. Sua preocupação é apenas com o
acontecimento por meio da compra.
“O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a
vida social (...). A produção econômica moderna espalha, extensa e
intensivamente, sua ditadura”. (DEBORD, 1997: 31)
Segundo Debord, a abundância da produção de mercadorias produz a
preocupação da classe dominante com o proletário enquanto consumidor, criando o
“humanismo da mercadoria”, encarregado do “lazer” do trabalhador. “Assim, ‘a
negação total do homem’ assumiu a totalidade da existência humana” (DEBORD,
172
1997:32). Neste contexto, o consumo deve aumentar sempre, mas este aumento é
possível pelo motivo de que contem em si uma privação, “a privação tornada mais rica”.
O consumismo derivado daí leva a uma “sobrevivência ampliada”, produzindo também
a produção de pseudonecessidades para garantir esse processo de expansão da produção
e do consumo. Para satisfazer as necessidades, consumimos. Assim, o consumo coloca-
se como um instrumento de acumulação do capital. Ao gerar a sociedade da abastança e
da abundância será que o ser humano participa dela?
25
A cultura de massa é hoje marcada pelo capitalismo flexível e pelo mercado pós-
moderno procurando pensar nas diferenças e não impondo o produto para todos de
forma homogeneizante. Além disso, a cultura de massa aproxima a alta cultura dos
indivíduos que não tinham acesso à chamada cultura mais elevada. No entanto, o
objetivo básico da cultura de massa de transformar todos os indivíduos em potenciais
consumidores despertando nestes o desejo de consumir continua operante. A cultura se
tornou um negócio e ela se mercantilizou, houve uma transformação da economia em
cultura e da cultura em economia. Produtos de consumo passaram a ser considerados
bens culturais. Com isso a cultura de massa se sofisticou, objetos de todos os tipos
puderam ser transformados em mercadoria numa espécie de “coisificação”. A liberdade
de mercado não proporcionou a liberdade de não consumir. A produção cultural hoje
estaria totalmente integrada e, portanto, subordinada à lógica da mercadoria. O
entusiasmo pelo modo de vida que valoriza o materialismo, pelo mundo dos negócios e
do mercado e pela meritocracia toma conta dos jornais e da mídia em geral. Marx
dizia que “as idéias dominantes de cada época são sempre as idéias da classe
dominante”, refletem os interesses daqueles que estão no comando do sistema.
Morin (1995) entende que a multiplicação dos meios de comunicação pode estar
ligada ao empobrecimento das comunicações pessoais. Algo ameaça por dentro a nossa
civilização. A degradação das relações pessoais, a solidão, a perda de certezas junto
com a incapacidade de assumir a incerteza, tudo isso nutre um mal subjetivo cada vez
mais espalhado. Os males da civilização que se infiltram nas almas e ganham formas
25
Lançado na França em 1967, o livro de Debord, “A Sociedade do Espetáculo serviu de referência
teórica e política para os jovens e operários revoltosos de Maio de 68, em Paris. Em 221 aforismos,
Debord retoma teses do chamado “primeiro Marx” para diagnosticar uma forma reelaborada de coerção e
de alienação do capitalismo em sua forma avançada.
173
subjetivas nem sempre são apercebidos. O mal da instabilidade, da pressa, da
superficialidade instala-se no amor e reintroduz nele o mal de civilização que o amor
recusa. O que se chamava de “públicos” nos século XVIII e XIX está sendo
transformado numa sociedade de “massas”. Além disso, a relevância estrutural dos
públicos está declinando, à medida que os homens, em geral, se tornam “homens de
massa”, cada qual preso a um contexto pessoal bastante impotente. Conforme a
observação de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, "tudo na sociedade de consumo
assumiu uma dimensão estética".
Na epopéia do consumo o mais belo e ostentoso de todos os objetos é o corpo,
cultuado na publicidade, na moda e na cultura das massas. Ele substitui a alma numa
nova função moral e ideológica. É, talvez, a maior de todas as propriedades privadas,
segundo a lógica do sistema capitalista. Administra-se e regula-se o corpo como
patrimônio; manipula-se como um dos múltiplos significantes de estatuto social. A
sexualidade e a beleza é que orienta hoje o consumo do corpo, pois o corpo, a beleza e o
erotismo ajudam a vender. O corpo é assim explorado para fins produtivistas. O
indivíduo deve se tomar a si mesmo como objeto e como material de troca para que se
institua um processo econômico de rentabilidade. Ao invés da ética tradicional a qual
deseja que o corpo sirva, o indivíduo hoje parece pôr-se a serviço do próprio corpo.
Na produção real ou imaginária da sociedade de consumo o tempo também
ocupa uma espécie de lugar privilegiado. Ter tempo livre agora significa ter qualidade
de vida. Diante disso, o lazer constituiria o reino da liberdade e também ganha o status
de propriedade privada na sociedade de consumo. O tempo encontra-se regulado pela
abstração total do sistema de produção. Em cada objeto consumido e em cada minuto de
tempo livre o homem acredita realizar seu desejo. Ao contrário, nas sociedades
primitivas, não faz sentido falar em tempo livre, já que o tempo reside no ritmo das
atividades coletivas repetidas. O tempo nestas sociedades é, portanto, simbólico. Nas
sociedades de consumo o tempo é análogo ao dinheiro. É uma mercadoria rara, preciosa
e submetida às leis do valor de troca. No sistema do valor de troca ele se integra como
qualquer outro objeto. O tempo livre aparece como a liberdade de perder tempo, ou seja,
matar o tempo sem maior comprometimento com o sistema. As férias constituem a
busca de um tempo que se possa perder. O tempo livre das férias é o tempo conquistado
com o suor do ano. Já o tempo do consumo é o tempo da produção. O trabalho, por sua
174
vez, também pode transformar-se em objeto de consumo. Na medida em que se prefere
ao tempo livre o tempo utilizado através do trabalho estamos no campo do consumo de
trabalho. Nestes termos, o lazer tem a função de consumo de tempo improdutivo e o
tempo livre consumido surge na verdade como tempo de produção. Ele se justifica na
lógica da distinção e da produção do valor. Trata-se de uma libertação do consumidor.
Em suma, o lazer se caracteriza pela ausência do tempo de trabalho.
Na sociedade de consumo tudo que se apresenta ao consumidor é aparentemente
para servi-lo, ou como gratificação ao consumidor. Parece que todos estão prontos para
nos servir, estamos sempre bem amparados e com uma prestação social completa.
Diante do paraíso do consumo muitos indivíduos vêem-se excluídos dessa dinâmica
gerando as frustrações e crises. Por outro lado, muitos se vêem repentinamente aptos à
aquisição dos bens materiais e conquistam sua individualidade abstrata. Essa é a
ideologia reativada na economia de mercadorias que impregna boa parte do globo
terrestre e compõe-se como uma das causas fundamentais de todo o histerismo de
mercado contemporâneo. Por ideologia, Mannheim (1967) caracteriza a noção de que,
em certas situações, o inconsciente coletivo de certos grupos obscurece a condição real
da sociedade, tanto para si como para os demais. Corre-se o risco da criação de uma
ideologia global consumista que pode gerar um tremendo processo de dupla vitimização
aos indivíduos: primeiro pela privação do consumo efetivo e, em segundo lugar, pelo
aprisionamento do desejo de o ter. O maior dilema é que grande parte da população
mundial não está dentro da sociedade de consumo, mas também não pode se considerar
fora dela.
Sem a ideologia total de prestação pessoal, o consumo não seria o que é.
Embute-se na mentalidade coletiva o mito de uma ordem social, onde tudo se vende e
tudo se compra, mas que tudo é inteiramente voltado para a ordem social e ao bem-estar
dos indivíduos. É o mito da gratificação coletiva. Faz-se uma rede de comunicação
personalizada que transborda dentro do consumo cotidiano. Dentro das relações
humanas da sociedade de consumo perde-se a espontaneidade da convivência. Ensinam-
se técnicas de bom atendimento, de desferir sorrisos e agradar ao cliente/consumidor.
Estudam-se formas de comunicação que possa trazer o convencimento ao consumidor,
agradando-o, bajulando-o, num processo afetivo institucionalizado. Simula-se uma
aproximação e intimidade que tem como pano de fundo promover a proximidade entre
175
homens e produtos. É o jogo da espontaneidade insincera que se estrutura sob fracos
laços de solidariedade e comprometimento humano. Segundo Baudrillard,
(...) essa é uma superestrutura tentacular que ultrapassa em muito a simples
funcionalidade das permutas sociais para se erigir em “filosofia” e em sistema
de valores da nossa sociedade tecnocrática. (BAUDRILLARD, 1972:172)
Apesar das aparências, esse sistema é um sistema de produção de comunicação
e de relação humana de serviço que produz sociabilidade, mas limitada pela gica e
seguindo as mesmas regras do modo de produção dos bens materiais. A publicidade faz
as vezes de relações públicas com a função de estabelecer um tecido social
ideologicamente unificado. Através dela, todos os produtos se apresentam como
serviços que produzem conforto pessoal e relação afetiva, isto é, um serviço social
desinteressado. A sociabilidade ou a capacidade de criar contato torna-se nesta
sociedade uma característica da personalidade. Entrar no ciclo de consumo e da moda é
mudar de ser e de determinação. A pessoa desaparece para dar lugar à personalização
num processo de inter-relações móveis. O objetivo é se encontrar na intersecção dos
outros. Nesta rede de relações não há valor absoluto, apenas a compatibilidade funcional
e a aprovação social. uma relatividade generalizada. A sociedade de consumo surge
ao mesmo tempo como sociedade de produção de bens e de produção acelerada de
relação, isto é, as relações se produzem assim como se produzem os objetos de
consumo. A tolerância deixou de ser traço psicológico e virtude e passou a ser uma
modalidade do próprio sistema.
A sociedade da abundância constitui uma nova situação objetiva regulada por
nova moral, não constitui um progresso. Traz consigo um novo tipo de condutas, de
constrangimentos coletivos e normas. Está longe de inaugurar a sociedade ideal,
introduz apenas um diferente tipo de sociedade. Tudo se cumpre na orientação positiva
do sujeito para o objeto da necessidade. A violência na sociedade da abundância se
com a negativa do desejo. Um potencial de angústia que se aguça com a ruptura da
lógica ambivalente do desejo e a perda da função simbólica. Com o consumo
encontramo-nos numa sociedade de consumo generalizada e totalitária, que não dá
trégua e atua em todos os níveis, econômico, saber, desejo, corpo, signo e pulsões, tudo
produzido como valor de troca num processo incessante de diferenciação. Diante de
tantas pressões o indivíduo desintegra-se. Toda a negatividade do desejo vai impor-se
176
na somatização incontrolável da violência. A multiplicidade de fenômenos discordantes
tais como a abundância, a euforia e a depressão, em conjunto caracterizam a sociedade
de consumo.
Alguns autores admitem que o consumo é importante para combater as
frustrações cotidianas, mas neste século, ele está se tornando uma forma de totalitarismo
“que coloniza as existências” dos indivíduos. Se por um lado, o consumo ajuda a afastar
as frustrações diárias, por outro, ele se transforma num mecanismo de ansiedade em um
mercado cuja razão de ser é a contínua oferta de “novidades”. O que significa colonizar
a existência? Quando pessoas pobres não têm como pagar a eletricidade, mas compram
um aparelho de TV, quando as pessoas não conseguem comer bem, mas gastam
dinheiro para comprar produtos de marca, vive-se uma situação louca. É o dinheiro
transformado em novo Leviatã. É o totalitarismo do consumo, que impede o
desenvolvimento dos outros aspectos necessários à existência. O homem é alguém que
pensa, crê e que deve se superar. Ele não pode ser simplesmente um “homo
consumericus”.
Simbolicamente, no caso de a imagem nos vir a faltar, é sinal de que o mundo se
torna opaco e os nossos atos nos fogem, encontrar-nos-íamos sem perspectiva sobre
quem somos ou podemos ser. Tornar-nos-íamos outro em relação a nós próprios,
estaríamos alienados de si mesmos. A vida, por conseqüência, perde o sentido a não ser
pela ótica da lógica da mercadoria e do valor de troca. O homem aparece como alienado
de si próprio e o que é mais grave é que ele se manifesta como inimigo de si mesmo e
revoltado contra si próprio. A alienação, portanto, constitui a autêntica estrutura da
sociedade mercantil. Segundo Baudrillard, a era do consumo é a era da alienação radical
por meio da generalização da lógica da mercadoria que regula tanto os processos de
trabalho quanto a sexualidade, as relações humanas e as pulsões individuais. Todas as
necessidades se encontram objetivadas e manipuladas em termos de lucro onde tudo é
espetacularizado por meio de imagens e signos. Esse processo de consumo marca o fim
da transcendência, da finalidade e do objetivo. A marca principal deste tipo de
sociedade é a ausência de reflexão e de perspectiva sobre si próprio. O sujeito do
consumo é a ordem dos sinais. Assim o lúdico do consumo tomou progressivamente o
lugar do trágico da identidade (BAUDRILLARD, 1972:207).
177
Pode-se dizer que a sociedade de consumo é um tipo de organização social que
se apropria não do trabalho, mas também da consciência do homem. Funda um tipo
de vida urbano com base na impessoalidade das relações humanas, no individualismo e
na competitividade que influem diretamente na subjetividade humana e no inconsciente
coletivo de uma sociedade. “Ter” ou sonhar em “ter” constituem condições onde a
fronteira que as separam são sutis e pouco precisas em nível do imaginário. O marketing
e a propaganda tornaram-se o oráculo de Delfos na nossa sociedade de consumo. Os
indivíduos não apenas consomem os produtos, mas se “identificam” com o grupo aos
quais pertencem. Há uma personificação das marcas, as mercadorias vão além do
caráter meramente utilitário, elas passam a satisfazer desejos insólitos e comunicar
sentidos. Assim, os sonhos e esperanças ficam submersos numa névoa espessa que
transformam os símbolos-mercadorias em falsos horizontes utópicos. As marcas e
mercadorias agora estão ao alcance das mãos. Fortalece-se a discussão sobre o Ter e o
Ser. Eu sou o que eu tenho” passa a ser o comportamento predominante, isto é, para
ser reconhecido eu preciso Ter determinados bens de consumo. Consumir algo é Ser
alguém. Consumir é uma ação humana, sem dúvida, mas quando ela se torna um valor
fundamental na sociedade é sinal que alguma coisa está errada. Em sentido
durkheimiano, configura-se como anomia social.
26
A sociedade de consumo transforma o valor de troca em valor de uso e enche o
mercado de imagens e símbolos que o homem compra na ilusão de ser feliz. Produz
símbolos e preenche carências reais com imagens fantásticas e coloridas. As diferenças
de classe, consumo e cultura são diluídas nesse processo de massificação e
pasteurização. A sociedade de consumo configura-se assim como a antiutopia
26
Basta uma rápida observação do contexto histórico do século XIX, para se perceber que as instituições
sociais se encontravam enfraquecidas, havia muito questionamento, valores tradicionais eram rompidos e
novos surgiam, muita gente vivendo em condições miseráveis, desempregados, doentes e marginalizados.
Ora, numa sociedade integrada essa gente não podia ser ignorada, de uma forma ou de outra, toda a
sociedade estava ou iria sofrer as consequências. Aos problemas que Durkheim observou, ele considerou
como patologia social, e chamou aquela sociedade doente de “Anômana”. A anomia era a grande inimiga
da sociedade, algo que devia ser vencido, e a sociologia era o meio para isso. O papel do sociólogo seria,
portanto, estudar, entender e ajudar a sociedade.
Na tentativa de “curar” a sociedade da anomia, Durkheim escreve “A divisão do trabalho social”,
onde ele descreve a necessidade de se estabelecer uma solidariedade orgânica entre os membros da
sociedade. A solução estaria em, seguindo o exemplo de um organismo biológico, onde cada orgão tem
uma função e depende dos outros para sobreviver, se cada membro da sociedade exercer uma função na
divisão do trabalho, ele será obrigado através de um sistema de direitos e deveres, e também sentirá a
necessidade de se manter coeso e solidário aos outros. O importante para ele é que o indivíduo realmente
se sinta parte de um todo, que realmente precise da sociedade de forma orgânica, interiorizada e não
meramente mecânica.
178
contemporânea. Seus valores são completamente contrários à criação de uma nova ética
e de uma nova concepção de cidadania planetária. Sua esperança é direcionada para
caminhos obscurecidos pela falta de conscientização e alienação radical da sociedade de
consumo da qual nos fala Baudrillard. No entanto, se fortalece no imaginário coletivo
alguns horizontes utópicos que são alimentados justamente devido às novas crises que
são conseqüentes da sociedade de consumo.
Kurz (1992) usa uma metáfora para explicar o momento distópico que estamos
vivenciando: Os passageiros do Titanic querem ficar no convés, e que a banda
continue tocando. Se tivermos de viver mesmo o ‘fim da história’, não será um final
feliz”. Essa situação caótica é apontada por Kurz como fruto do sistema de troca de
mercadorias caso esse insista em se perpetuar. Aponta para a impossibilidade de
conceber o mundo dentro da lei de troca de mercadorias. O Marx da crítica ao
fetichismo da mercadoria torna-se muito mais coerente enquanto sistema interpretativo
da atualidade do que o Marx da luta de classes. Para Kurz, o sistema capitalista está
em crise algum tempo e caminha a passos largos para a sua derrocada em todo o
globo. A moderna sociedade de trabalho estaria no seu final assim como as categorias
que Kurz chama de forma-mercadoria e forma-dinheiro.
Acreditar numa comunicação perfeita e na cidadania plena são construções
utópicas. Esse é um assunto presente na maioria das instituições, igreja, escola,
empresa, etc. O discursivo é o da promoção da cidadania, a busca pela justiça e
igualdade de direitos. A ação comunicativa é a construção da cidadania. A prática e a
realidade, no entanto, o mais fortes e esta não se estabelece em definitivo. O caráter
principal da cidadania é a participação de todos os sujeitos nas questões de interesse
comum. Mas como construir cidadania numa perspectiva atual tão individualista? O
maior desafio é promover o reequilíbrio da cidadania em suas dimensões macro e
microssocial e recuperar os seus padrões básicos de dignidade e possibilitar a real
democratização da sociedade.
O racionalismo estreito, mecanicista, utilitarista e instrumental da ciência
moderna, combinado com a expansão da sociedade de consumo minou a capacidade de
indignação e de surpresa e, consequentemente, a vontade de transformação pessoal e
coletiva, daí a urgente tarefa de reconstrução. Percebe-se na maior parte dos habitantes
179
do planeta a dificuldade na mudança de seu comportamento, moldado hoje pelo homo
economicus. A inserção desses na sociedade de consumo parece ser a ambição maior a
ser alcançada, uma espécie de sinônimo de civilização. No entanto, uma série de
armadilhas nessa cidadania desvirtuada. Rever as necessidades implica em novas
formas do saber viver e a criação de uma cidadania responsável pelo mundo.
A função do imaginário
Como fazer refletir sobre questões de tamanha magnitude? Como fazer com que
possamos rever o papel da cidadania dentro de perspectivas tão fragmentadas? Como
pensar em horizontes utópicos que nos deslocam como parte do todo? O campo do
imaginário não é a solução definitiva nem a resposta para todas as perguntas, mas é o
maior fomento de construções utópicas. O imaginário não é apenas cópia do real; seu
veio simbólico agencia sentidos, em imagens expressivas. A imaginação liberta-nos da
evidência do presente imediato, motivando-nos a explorar possibilidades que
virtualmente existem e que devem ser realizadas. O real não é um conjunto de fatos
que oprime; ele pode ser reciclado em novos patamares.
Segundo Durand (1997), o imaginário é o “conjunto das imagens e das relações
de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens”, o grande e fundamental
denominador onde se encaixam todos os procedimentos do pensamento humano. Parte
de uma concepção simbólica da imaginação, que postula o semantismo das imagens,
que conteriam materialmente, de alguma forma, o seu sentido. Em Durand, não existe
verdadeira diferença entre simbólico e imaginário, uma coisa contamina a outra, tanto
que sua investigação se dá sobre a imaginação simbólica.
A imaginação contribui significativamente para a compreensão e superação da
realidade. Além de permitir atingir o real ela possibilita enxergar aquilo que ainda não
se tornou realidade. As imagens são construções que tem por base as nossas
experiências visuais anteriores. Como o nosso pensamento é de natureza perceptiva
tendemos a produzir imagens em abundância. Elas são, dessa forma, parte integrante do
ato de pensar.
180
A existência das coisas e dos homens nos remete a entender que a realidade já é
algo dado, basta ser percebida e interpretada. O imaginário possui um compromisso
com o real e não com a realidade. Mas o que é o real? Ele é a interpretação que os
homens atribuem às coisas e à natureza. É, portanto, uma realidade percebida através
dos sinais ou signos de referência. Tanto a imagem como o símbolo constituem
representações. Os homens atribuem significado aos objetos e isso é o elemento
consciente do universo simbólico. Como conseqüência, as imagens e a dinâmica do
imaginário são identificadas aos símbolos. Talvez 1968 tenha sido o ano das maiores
transformações do século XX. Um ano que mudou nossa maneira de ver o mundo
principalmente sob a ão do imaginário. Foi o ano da livre experimentação de drogas,
das formas de vestir mais ousadas, da nova maneira de enxergar o sexo, sem o pudor do
moralismo, inclusive com a liberdade sexual proporcionada pelo uso da pílula
anticoncepcional. Enalteceu-se também nesse período o psicodelismo impulsionado
pela música e pelo rock. Movimentos feministas, de defesa de homossexuais,
manifestações contra o racismo e protestos contra a Guerra do Vietnã, revolta dos
estudantes em Paris, a primavera de Praga e a radicalização da luta estudantil levaram
os indivíduos a imaginar um mundo melhor com muita paz e amor. Segundo Edgar
Morin, foi, em suma, o ano do “êxtase da História”. Um ano que, por seus excessos e
força do imaginário coletivo, marcou a humanidade. Pode até ser que as utopias criadas
em 68 não tivessem se realizado completamente, mas o sonho imaginário de grande
parte do planeta marcou para sempre a forma como encaramos a vida. Para o cantor
americano Bob Dylan, 1968 foi o último ano em que todas as utopias eram permitidas e
que hoje em dia “ninguém mais quer sonhar”. Creio que as pessoas não perderam a
capacidade de sonhar, a força do imaginário ainda está presente, apenas é preciso
averiguar o contexto histórico. O sonho está canalizado para a distopia da sociedade de
consumo, o imaginário está dominado pela técnica. A utopia está viva e se
reestruturando. A utopia na contemporaneidade reaparece na necessidade de o homem,
individual e coletivamente, buscar em seu imaginário uma saída para a angústia
existencial que a desordem provoca na formulação da ordem social estabelecida e na
desestabilização de suas referências.
É comum opor o imaginário ao real, ao verdadeiro. O imaginário seria uma
ficção, algo sem consistência, algo totalmente distinto da realidade econômica, política
ou social, considerada palpável e tangível. Essa tradição é quebrada principalmente a
181
partir dos anos 1930 e 1940 com a obra de Gaston Bachelard, o Bachelard da
“psicanálise do fogo”, dos sonhos, das fantasias, das construções do espírito. Ele
procurou demonstrar que as construções mentais poderiam ser eficazes em relação ao
concreto. Na esteira de Bachelard, surge Gilbert Durand. Gilbert Durand trabalhou na
confluência da tradição literária romântica e da antropologia, tendo escrito uma obra-
prima: As Estruturas antropológicas do imaginário. A sua reflexão recuperou o que
tinha sido deixado de lado pela modernidade e indicou como o real é acionado pela
eficácia do imaginário, das construções do espírito. Bachelard e Durand aliam
imaginário ao vivido.
O imaginário tem algo de imponderável, carrega um certo mistério da criação ou
da transfiguração. Segundo Maffesoli (2001), ele é uma força social de ordem espiritual,
uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável. É
algo que envolve e ultrapassa a obra. Esta é a idéia fundamental de Durand: nada se
pode compreender da cultura caso não se aceite que existe uma espécie de “algo mais”,
uma ultrapassagem, uma superação da cultura. Esse algo mais é o que se tenta captar
por meio da noção de imaginário.
O imaginário apresenta um elemento racional, ou razoável, mas também outros
parâmetros, como o onírico, o lúdico, a fantasia, o imaginativo, o afetivo, o não
racional, o irracional, os sonhos, enfim, as construções mentais potencializadoras das
chamadas práticas. De algum modo, o homem age por que sonha agir. É fato que a
prática condiciona as construções do espírito, mas não se pode ignorar que estas
também influenciam as práticas. Em suma, o imaginário é ao mesmo tempo impalpável
e real. Ele contamina tudo. Encarna uma complexidade transversal. Atravessa todos os
domínios da vida e concilia o que aparentemente é inconciliável. Mesmo os campos
mais racionais, como as esferas política, ideológica e econômica, são recortados por
imaginários.
Para muitos críticos o imaginário seria uma espécie de retorno a uma ideologia
romântica, ou mística, com forte apego ao telúrico. Segundo Maffesoli, não nenhum
mal em associar o imaginário com a aura romântica. não aceita a idéia de retorno já
que para ele, esses elementos imaginários nunca desapareceram, apenas foram
colocados em posição secundária ou latente.
182
sempre algo de romântico no político, na defesa das utopias, no
sonho de uma sociedade perfeita, na esperança de um mundo redimido de suas
falhas, na perspectiva de uma sociedade perfeitamente igualitária, etc. Creio
que há, de fato, reaparecimento de uma sensibilidade romântica. Na ecologia,
por exemplo, com a revalorização da natureza. No desejo de interação,
colocando o holismo acima das perspectivas binárias ou do individualismo. Na
convicção de que o homem deve negociar com a natureza, não dominá-la.
Aquilo que o romantismo centrava na literatura, na poesia, torna-se, agora,
mais abrangente, englobando o cotidiano. Trazer a poesia para a vida, eis a
síntese desse novo romantismo. (MAFFESOLI, 2001:77)
Dizer que o imaginário atua nos processos revolucionários é limitá-lo. Sua
atuação se em qualquer situação, contra ou a favor das revoluções. Uma de suas
características principais é a sua autonomia. Em As Estruturas antropológicas do
imaginário, de Gilbert Durand, o imaginário é definido como a relação entre as
intimações objetivas, ou seja, os limites que a sociedade impõe a cada ser (coerções
sociais) e a subjetividade. então uma interdependência nessas duas situações e o
imaginário que vai fazer essa mediação.
O imaginário é determinado pela idéia de fazer parte de algo. Partilha-se uma
filosofia de vida, uma linguagem, uma atmosfera, uma idéia de mundo, uma visão das
coisas, na encruzilhada do racional e do não-racional. Embora exista sem dúvida o
imaginário individual, ele está atrelado a um aspecto grupal, que possa ser
compartilhado por um agrupamento humano, a uma comunidade de destino.
Como uma das características principais hoje é o predomínio da tecnociência e a
valorização da técnica na existência, é importante destacar o papel das tecnologias do
imaginário, tais como o cinema, a televisão, a literatura, consideradas os instrumentos
ou tecnologias de criação de imaginários. O imaginário é alimentado e estimulado por
essas tecnologias, por isso tanta repercussão do termo imaginário hoje, sobretudo nos
meios de comunicação.
Durand acredita encontrar a permanência dos símbolos arquetípicos na
modernidade das sociedades industriais contemporâneas. Nessas sociedades modernas,
subsiste a continuidade das grandes imagens míticas nos objetos mais comuns do
183
cotidiano, como os deuses do Olimpo grego. Os astros de cinema, por exemplo, seriam
os deuses do Olimpo contemporâneo.
O imaginário, como evocador e mobilizador de imagens, utiliza o simbólico para
exprimir-se e existir, assim como o simbólico pressupõe a capacidade imaginária. Ele
tem a incumbência de colocar-se sob a forma de apresentação de algo ou incentivar o
aparecimento de uma imagem e uma relação que não são dadas diretamente na
percepção. O imaginário estimula a percepção a criar novas relações inexistentes no
real. Ultrapassa um processo mental que vai além da representação intelectual ou
cognitiva. Como processo criador, ele reconstrói ou transforma o real, não de forma
concreta, mas no sentido de uma tradução mental dessa realidade exterior. Quando ele
se liberta do real, é capaz de inventar, fingir, improvisar e estabelecer conexões entre
coisas aparentemente inconciliáveis. O imaginário também é capaz de prevenir
situações futuras ao antecipar um provir não suspeitado ou previsto. Dirige-se à
consecução de um possível não realizável no presente, mas que pode vir a ser real no
futuro. Apóia-se no real para que esse se veja abalado e deslocado, isto é, que sofra um
processo de transfiguração, tendo como fundamento último o real de um passado ou de
um futuro. Imaginário não significa ausência da razão, mas apenas a exclusão de
raciocínios demonstráveis e prováveis, os quais constituem o fundamento da
imaginação científica.
Bloch distingue a imaginação da fantasia: a primeira tende a criar um imaginário
alternativo a uma conjuntura insatisfatória; a segunda nos aliena num conjunto de
“imagens exóticas” em que procuramos compensar uma insatisfação vaga e difusa. a
imaginação permite à consciência humana adaptar-se a uma situação específica ou
mobilizar-se contra a opressão. O ato de imaginar aclara rumos e acelera utopias.
Estamos sempre nos deparando com a intenção de refazer percursos, numa busca
incessante das rachaduras e fendas que fomentam as utopias sociais. Como ativadora do
campo do imaginário, a imaginação não pode prescindir de um código operacional de
comunicação, ao qual compete perfilar vozes que simulam harmonias no conjunto.
Quando o significado não é reconhecido no processo de decodificação, o símbolo cai no
vazio, não se efetiva a troca imaginária. Mas os símbolos não são neutros, uma vez que
os indivíduos atribuem sentidos à linguagem, embora a liberdade de fazê-lo seja
limitada pelas normas sociais. No extremo oposto, a sociedade constitui sempre uma
184
ordem simbólica, que, por sua vez, não flutua no ar tem que incorporar os sinais do
que já existe, como fator de identificação entre os sujeitos.
As fantasias do homem estão diretamente ligadas ao mundo no qual ele vive. Em
outras épocas a imaginação era fértil em sereias e outros monstros marinhos, dragões,
ciclopes e gigantes, para constatarmos como foi criado todo um folclore a partir da
ausência: seja da razão, seja da comunicação. Esse imaginário perde fôlego de acordo
com o desenvolvimento do conhecimento momento, sobretudo o conhecimento
científico. É claro que o antigo imaginário não desapareceu, mas houve uma migração
para outras possibilidades, mais adequadas e prováveis para a época. A imaginação não
pode se expressar de outra forma a não ser em sincronia com seu tempo.
Onde está o imaginário hoje onde quase todo o mistério é revelado? Diante de
tanta tecnologia o que ainda pode ser considerado desconhecido pelo ser humano? Com
ênfase no desenvolvimento desenfreado de descobertas e cenários do mundo
contemporâneo, podemos perceber a ascensão de um imaginário distópico, voltado para
o descontrole e para a radicalização daquelas experiências que nos pareciam tão
familiares e que caminha no sentido oposto ao da utopia. Esse imaginário prioriza o
desprazer, o incômodo e até mesmo o aterrorizante. No mundo contemporâneo, seres de
natureza fantástica foram praticamente excluídos do pensamento em prol de outros, que
habitam um mundo cada vez mais urbano, científico, tecnológico e sitiado.
Na literatura, no romance encontramos a dimensão humana subjetiva e afetiva
que não existe nas ciências. Ela nos ensina a conhecer melhor o outro enquanto a poesia
é uma introdução a qualidade poética da vida que nos ajuda a entender que se nos
emocionamos com poemas é porque fala de nossas esperanças, de nossas verdades
profundas, é dizer que o conhecimento não se encontra nas ciências.
A
literatura é
uma escola de vida, uma escola do entendimento humano, e a escola da complexidade
humana. Levemos em conta os romances históricos do século XIX, bem como os de
nossa época. Eles têm essa superioridade sobre as ciências humanas por nos mostrarem
seres que são sujeitos que sentem, pensam e vivem, enquanto as ciências humanas
“destroem” o sujeito, a individualidade. A poesia é uma escola para a qualidade poética
da vida e a escola do entendimento, porque quando lemos notícias criminais cotidianas
nos jornais, para nós, criminosos são criminosos e os rejeitamos, mas ao vermos esses
185
personagens nos romances, como o Raskolnikóv (protagonista de Crime e Castigo, é
um estudante miserável que mora em São Petersburgo, num pequeno quarto alugado, e
um dia mata sua avarenta senhoria), em Crime e Castigo, de Dostoiévski, nos damos
conta de que é algo complexo e que esse indivíduo pode se redimir caso encontre as
pessoas que o ajudem. Portanto, a literatura é a escola do entendimento da vida, algo
muito importante se aliada às outras chamadas ciências humanas. É um erro limitar a
literatura unicamente às estruturas narrativas, à semiologia, às técnicas.
Muitas incompreensões dominam o mundo. Como imaginar que vamos
progredir se não educamos a compreensão? A literatura registra de modo muito especial
as imaginações de um modo de vida social sem desigualdades, pela ordem ou na
liberdade. A história literária das utopias, sobretudo na modernidade, é uma história rica
e nada inócua, cheia de criatividade positiva, que tem ligação muito estreita com a
realidade moderna, posta em contínuo movimento, atrás da realização da utópica idéia
de progresso, com o que este contém de processo de mudança, avanço científico-
tecnológico, mas também de promessa de mais felicidade.
Um exemplo de obra literária utópica é o romance “O jogo das contas de
vidro”, publicado em 1946, com o qual o autor Herman Hesse ganhou o prêmio Nobel
de Literatura. Hesse é considerado por muitos, um dos “pilares” do moderno
esoterismo. Meio “new age”, meio “profeta”, neste livro ele trata de uma “ordem
monástica” não religiosa, que se dedica ao estudo pelo estudo. Seus membros não têm
obrigações para com o mundo, limitando-se a aprofundar-se em estudos de várias
matérias como matemática, física e etc. Mas o principal interesse da Ordem é o “Jogo
de Avelórios”. Hesse não descreve como ocorre tal jogo deixando, porém os indícios de
que o jogo se basearia em criações e improvisações musicais.
O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse é uma fábula sobre o jogo
como utopia total. Para Hesse, “O Jogo das Contas de Vidro é um jogo que joga com
todos os conteúdos e valores da nossa cultura, um pouco como nos tempos áureos das
artes um pintor terá brincado com as cores da sua paleta”, como um órgão é tocado
(em inglês, “jogado”) por um organista. Acrescentaríamos hoje: como um computador é
jogado por um matemático. Continua Hesse a sua descrição do “Jogo das Contas de
Vidro”:
186
“Uma partida podia, por exemplo, partir duma dada configuração astronômica,
ou do tema duma fuga de Bach, ou duma frase de Leibniz ou dos Upanishads e,
segundo a intenção ou o talento do jogador, prosseguir e desenvolver a idéia
condutora por ela evocada ou enriquecer a expressão dessa mesma idéia com a
evocação de idéias próximas. Se o principiante era capaz de estabelecer um
paralelo, por meio dos símbolos do jogo, entre uma melodia clássica e a
fórmula duma lei da Natureza, o conhecedor e o mestre conduziam a partida
desde o tema inicial até combinações ilimitadas.”
O funcionamento do jogo das contas de vidro implica um jogo de analogias e
equivalências entre as diferentes áreas do conhecimento; uma proposta para o
entendimento multidisciplinar, para as interseções e interfaces entre os saberes, isto é,
uma visão holística do conhecimento. Jogar o jogo é uma habilidade resultante da arte
de contemplar e meditar. Os jogos se dão na forma de debates solenes e públicos,
dirigidos pelos Mestres dos Jogos, e podem durar dias ou, até mesmo, semanas. Ainda
que esse estágio complexo e sofisticado do saber seja indicado no livro como o último
estágio de uma cultura dita inútil, pois o que ocorre em seguida é o abandono de todo o
conhecimento, trata-se de um patamar importante, porque busca a unidade na
diversidade. A linguagem do jogo das contas de vidro é uma linguagem particular; uma
linguagem nova, estranha, oculta e desconhecida que busca a essência, a similaridade e
a associação por analogia.
O Jogo das Contas de Vidro é um livro do Ocidente, porém deixa antever
reminiscências do Oriente e simboliza a reaproximação de Hesse ao Cristianismo,
figuradamente a amizade entre José Servo, herói da história, e a Ordem de São Bento.
Como é ressaltado no prefácio da obra, aqui se mostra a reconciliação do escritor com o
mundo de sua infância, a casa paterna e a austeridade religiosa de sua família de
pastores protestantes, e marca o fim do conflito que opôs o autor, desde tenra idade, ao
ambiente doméstico, conflito que o levou ao ceticismo religioso e, depois, à revolta.
Muitos personagens desse intrincado jogo, possuem nomes simbólicos. Um dos
funcionários da Castália o fictício país da castidade, onde se passa a trama se
chama Dubois, nome da família do avô de Hesse. Thomas von der Trave é Thomas
Mann e o padre Jacobus esconde o perfil de Jacob Burckhardt.
187
O romance de Hesse está situado num futuro remoto, o ano de 2200. Não
existem aparatos que caracterizam o progresso científico e tecnológico desse futuro.
Castália é a comunidade espiritual onde se passa a história, um mundo perfeito e
imóvel, sem a pressão do tempo e com a vida dos jovens voltada para o estudo e o
refinamento mental. A música, a astronomia e a matemática são as principais
ferramentas de interação e entrelaçamento desses conhecimentos aparentemente
diversos. Hesse faz um elogio a todo e qualquer movimento espiritual que tenha
procurado a aproximação entre as ciências exatas e as mais liberais ou a conciliação
entre a ciência e a arte, ou entre a ciência e a religião.
A narração do romance em seu início fala de nossa época (lembre-se que o
narrador está em 2200) como uma época de aparentes vitórias e prosperidade, mas que
as pessoas invariavelmente encontravam-se diante do nada, com desconfiança de sua
própria força e dignidade, e até mesmo de sua própria existência. Em suma, nossa época
seria marcada pela pobreza de espírito com as seguintes características: a mecanização
insossa da vida, a profunda queda da moral, a falta de crença dos povos, a falta de
veracidade da arte. Mas existem também heranças positivas do passado, a principal
delas é a música. Quando o mundo está em paz, quando todas as coisas estão em
calma, obedecendo em suas transformações ao seu superior, então a música pode
atingir a perfeição”. A música fora em tempos pré-históricos um ato de magia.
O Jogo dos Avelórios teve origem simultaneamente na Alemanha e na
Inglaterra. No início não passava de uma insignificante maneira de memorização entre
estudantes e musicistas. Esse jogo mais tarde se transferiu dos seminários de música
para os de matemática. O Jogo passou a ser usado e imitado, temporariamente, por
quase todas as ciências. Não consistia apenas em um exercício ou divertimento: era a
vivência consciente e concentrada de uma disciplina do espírito. Representou
importante papel na completa superação do folhetim e no renovado entusiasmo pelas
disciplinas exatas do espírito. A universidade como instrução superior se encontrava
ultrapassada. Toda a pompa que era oferecida a intelectuais, cientista e outras
celebridades desapareceram. As profissões intelectuais em profunda decadência faliram
e deram lugar à dedicação dos jovens ao espírito. Muito tempo se passou até que o
homem reconhecesse que a técnica, a indústria e o comércio também necessitam de base
comum e de uma moral e honradez espirituais.
188
A literatura vista como utopia tem a sua razão de ser na criação de um mundo
perfeito, de beleza, ordem, coerência retratada nas grandes obras literárias. A utopia
deve ser vivida com esse tipo de perfeição na música, na pintura, na poesia. Dessa
forma, a literatura é necessária para manter viva a imaginação e o espírito crítico, para
enriquecer a linguagem. Se for substituída pela literatura superficial, de entretenimento,
de consumo imediato, vai haver um empobrecimento da cultura, e da vida.
Bloch considera as fantasias, as idéias religiosas, os sonhos e as utopias que se
entendem também enquanto realizações técnicas e artísticas como possibilidades e
impulsos para a evolução da humanidade. A esperança bem-fundada é mediada pelo
possível real; representa justamente a porta no mínimo entreaberta que parece levar a
objetos agradáveis, num mundo que não se tornou e não é uma prisão. É como no mito
de Pandora em que a esperança é o bem que restou aos homens, que de forma alguma já
ficou maduro, mas que também de forma alguma foi destruído.
O desejo é o alimento da esperança. O desejo é o pai do pensamento, não de um
pensamento tolo, mas de um pensamento precursor. Não pensamento sem privação,
mas a estupefação e a admiração o fazem avançar. O mundo se apresenta estranho e é
isso que nos motiva a refletir sobre ele. O pensamento verdadeiro, justamente por isso
ainda não perfeito, é a arte do caminho correto para casa nesse estar-a-caminho.
Na vitrine, no conto, na viagem, no teatro e nos filmes, Bloch apontava a
imagem do desejo como se reproduzida no espelho. As vitrines formam sonhos
desejantes, imagens sedutoras capitalistas que surgem entre o homem e a mercadoria. A
vitrine é o lugar da operação consenso, da comunicação e da troca de valores através da
qual toda uma sociedade se torna homogênea por meio da incessante aculturação
cotidiana à lógica, silenciosa e espetacular, da moda. A vitrine configura uma permuta
simbólica entre o objeto oferecido e o olhar, funciona como uma estratégia poderosa e
uma ferramenta fundamental para o marketing de uma marca e é responsável por uma
boa parcela das vendas, além de ser o primeiro contato entre o consumidor e o produto.
As vitrines tornam-se extremamente marcantes na constituição das paisagens e,
sobretudo, dos imaginários urbanos contemporâneos. Criar vitrines é uma tarefa
planejada cuidadosamente e funciona como sinalizadora de tendências. Ela deve sempre
189
“contar uma história” que cative o consumidor com o intuito de interligar as campanhas
publicitárias e os lançamentos de produtos da marca, além de funcionar como um
convite para o cliente entrar naquele ambiente e se deixar levar pelo clima da loja. A
vitrine é tão importante que pode até se tornar ponto turístico. As lojas de departamento
de Nova York, como Saks, Macy’s e Bergdorf Goodman são famosas por suas vitrines,
sobretudo na época do Natal quando atraem turistas do mundo inteiro que ficam
fascinados com a criatividade daquele cenário de sonhos. O cinema também imortalizou
a importância da vitrine na cena mais célebre de “Bonequinha de Luxo” (EUA, 1961),
quando a personagem de Audrey Hepburn toma seu café admirando a vitrine da Tiffany,
também em Nova York. O que predomina na comunicação da vitrine é a emoção, a
linguagem indireta e sugerida, como quem está querendo vender sonhos,
comportamentos e atitudes, acaba funcionando como uma sala de visitas que dirá o que
a loja tem a oferecer. Sua função é seduzir, porque a efetivação da compra acontece no
interior do estabelecimento. Imagens são forças psíquicas e hoje, mais do que nunca, a
iconografia é a linguagem corrente. O homem moderno atua mediante imagens (ícones)
publicitárias.
Nos contos desaparece o que está indiferentemente próximo, aproxima-se o
distante. Apresenta-se um outro lugar mais vistoso ou mais agradável. Existe felicidade
suficiente à disposição. Nele, os pequenos heróis e os pobres conseguem chegar até o
lugar em que a vida tornou-se boa. O conto, assim como o romance popular são castelos
no ar, uma mera obra do desejo. Nos contos desaparece o que está indiferentemente
próximo, aproxima-se o distante.
Calcula-se que o hábito de ouvir e de contar histórias venha acompanhando a
humanidade em sua trajetória no espaço e no tempo. Todos os povos, em todas as
épocas, cultivaram seus contos. Contos anônimos, preservados pela tradição,
mantiveram valores e costumes, ajudaram a explicar a história, iluminaram as noites dos
tempos. Segundo Ricardo Piglia, O conto se constrói para fazer aparecer
artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma
experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade
secreta.”
27
27
PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. Caderno MAIS, Folha de São Paulo, domingo, 30 de dezembro
de 2001, p. 24.
190
O contista Machado de Assis produziu quase trezentos contos no final do século
XIX até início do XX. No Brasil, é com Machado de Assis que essa forma ficcional
revela todas as suas possibilidades. Nos contos machadianos, revela-se uma sociedade
habitada por seres solitários capazes de alcançar tão somente uma felicidade mesquinha.
A vida desenrola-se como alguma coisa que escapa ao controle dos personagens, alheia
a suas vontades. A sociedade de convenções a todos esmaga e a eles impõe vidas
inautênticas, vazias. Machado de Assis mostra extrema habilidade na elaboração de seus
contos de observação e psicológicos, com foco narrativo autobiográfico, em que o ponto
de vista do personagem narrador e suas motivações tornam-se exclusivas. A ironia vai-
se expandindo não na análise dos hábitos sócio-culturais da sociedade do Rio de
Janeiro, mas na observação da própria natureza humana, apresentada em seus vícios e
limitações permanentes. A apresentação dos personagens atende ao desenvolvimento
dessas que foi a sua temática mais constante e se projeta no aspecto psicológico que os
revela.
Dá-se também, o nome de conto, às narrativas folclóricas orais (conto popular).
Em sua manifestação oral, o conto aparece já nas antigas civilizações, sob a forma de
narrativas imaginárias e fantásticas, que viriam a constituir o fundo comum do folclore
da maioria dos países ocidentais. A literatura árabe possui a coletânea mais famosa no
gênero: As Mil e Uma Noites. É uma coletânea de fascinantes histórias inventadas e
preservadas na tradição oral pelos povos da Pérsia e da Índia. Sua origem é nitidamente
popular. É nesse sentido que as Mil e Uma Noites adquirem maior grandeza. Seu caráter
popular faz que mergulhem na alma do povo, em sua psicologia. As narrativas, entre as
quais estão as famosas viagens de Simbad, o marujo, as aventuras de Aladim e a
lâmpada maravilhosa e a mirabolante história de Ali Babá e os quarenta ladrões, são
contadas por Sahrazad, uma jovem corajosa que se sacrifica pelo seu povo para salvá-lo
da ira do sultão Shariar. Extremamente habilidosa na arte de contar histórias, a
protagonista consegue, ao final de mil e uma noites, salvar o seu reino e transformar o
pensamento de seu esposo. O motor da história é simples: traído pela esposa, um rei
decide proteger-se do adultério das suas próximas mulheres através de uma solução
radical, a de matá-las ao final da primeira noite que passem juntos. Quando chega a vez
da hábil Sahrazad, para contornar a execução ela resolve contar ao rei um conjunto de
histórias que, uma se encadeando à outra, não teria fim, o que então a pouparia. É dessa
191
maneira que o mundo viu surgir um conjunto de textos deliciosos de serem lidos. Livros
como as Mil e Uma Noites dão muita margem à mistificação literária. O que é que as
Mil e Uma Noites ensinaram ao mundo? O que é determinante em sua mensagem é que
o mundo não pare, determina que o mundo não se estagne. As Mil e Uma Noites trazem
a grande lição do sonho.
Bloch ressalta também o prazer de viajar, pois viver as mesmas coisas mata aos
poucos. A felicidade da viagem representa a fuga momentânea da casa. No mundo
privado-burguês, a viagem é a primavera que renova tudo. A viagem de núpcias é a
primeira verdadeira viagem de amor. A saudade de casa significa a saudade por causa
da perda do mundo de referência habitual. Antes da invenção do turismo, ao final do
século XIX, viajar por puro prazer e conhecimento era algo restrito aos sábios e
aristocratas Escrever sobre viagens passou a ser algo bem atraente. Hoje o turismo
tornou-se a principal causa das viagens humanas. O propósito é de conhecer novos
lugares como uma forma de lazer e aprendizado sobre novas culturas e regiões. Mas as
viagens também serviram ao imaginário como formas de contestação,
questionamentos e novas formas de enxergar a realidade. O maior exemplo disso é o
que se passou com a chamada geração beatnik.
Em 1947 Kerouac resolveu sair viajando pelo mundo e pegou a estrada. Jack
Kerouac (1922-1969), um dos principais expoentes dessa geração, tentava escrever
sobre as surpreendentes viagens que fazia com o amigo da Universidade de Columbia,
Neal Cassady. Seu método consistia em formas mais livres e espontâneas de escrever,
contando as suas viagens exatamente como elas tinham acontecido, sem parar para
pensar ou formular frases. O resultado disso foi um manuscrito “Pé na Estrada” (On The
Road) que sofreu sete anos de rejeição até ser publicado. Com esse método, Kerouac
escrevia vários romances, que ia guardando em sua mochila, enquanto vagava de um
lado a outro do país. Somente em 1957, quando Allen Ginsberg e outros escritores de
sua categoria começavam a celebrizar-se como a “Geração Beat” (termo criado pelo
próprio Kerouac), os editores manifestaram o seu interesse pelos manuscritos de
Kerouac. “Pé Na Estrada” se tornou um grande sucesso popular. A partir dessa súbita
celebridade, ele passa por um declínio moral e espiritual. Este livro tornou-se o
manifesto da geração beat, que rompia com o compromisso do american way of life e
pregava a busca de experiências autênticas, um compromisso selvagem e espontâneo
192
com a vida até seus mais perigosos limites. Diante de uma sociedade que aniquilava o
indivíduo, os beatniks queriam uma consciência nova, libertada de padrões, escolhiam a
marginalidade. Eram totalmente contrários a uma sociedade sem vida, de ação e com
pouca liberdade de pensar e viver, cheia de padrões e regras normativas.
Foi o primeiro movimento de contracultura a surgir nos Estados Unidos, com
forte impacto histórico e cultural. O principal objetivo da Geração Beat, grupo de
jovens intelectuais americanos, era estar em movimento. Estar em grupo e desfrutar de
parceria nas viagens, tanto físicas quanto psicotrópicas. Em meados dos anos 50, já
estavam cansados da monotonia da vida ordenada e da idolatria à vida suburbana na
América do pós-guerra, resolveram então, regados a jazz, drogas, sexo livre e pé-na-
estrada, fazer sua própria revolução cultural através da literatura. Formavam um grupo
de jovens enérgicos e talentosos que se conheceram no campus da Universidade de
Columbia e estenderam sua convivência para dentro dos bares de jazz e apartamentos
pobres do subúrbio de Nova Iorque. Posteriormente se entregaram a diversas viagens
cruzando o país, sem outro sentido aparente, a não ser o de empreender uma busca por
uma nova maneira de ver e entender a vida.
On The Road apresentava uma alternativa ao modo de vida tradicional, e
propunha um rompimento com ele, que na visão dos beats, deveria ser feito através da
entrega completa a uma vida marginalizada e romântica, que incluía viagens pelo Oeste
americano e a busca por uma nova maneira de compreender a vida através de um
misticismo não muito definido. Essa nova moral é expressa no romance por uma
modificação em termos de conteúdo. O herói do livro é Dean Moriarty (personagem
inspirado em Neal Cassady), um jovem marginalizado, preso diversas vezes por roubos
de carros, bebedeira e vadiagem, que arruma uma série de subempregos para sustentar
seu estilo de vida boêmio e desgarrado. Moriary é um jovem rebelde e apaixonado pela
vida, que ao lado de Sal Paradise (alter ego de Kerouac), embarca em uma série de
viagens de carona através da América, sempre em busca da beleza no mundo, exaltando
a “pureza” inerente que ele via na população pobre do país. Essa identificação com
figuras marginais se tornaria o eixo central da literatura beat.
A mensagem dos beatniks a revolução na linguagem e nos costumes
repercutiria decisivamente sobre o comportamento dos jovens americanos uma década
193
mais tarde com o aparecimento das primeiras comunidades hippies no final dos anos 60.
Os beatniks desencadearam um dos maiores fenômenos culturais da segunda metade do
século, que culminaria com a explosão das movimentações revolucionárias dos anos 60
e 70. Considero que esta foi uma revolução do imaginário que teve as viagens como
suporte e fundamentação deste.
O filme “Sem Destino” (EUA, 1969), estrelado e dirigido por Dennis Hopper,
que conta ainda com a presença dos atores Peter Fonda e Jack Nicholson, também é
uma marca e referencial importante para a caracterização das viagens como uma
conquista do imaginário. Dois motoqueiros hippies viajando pelos Estados Unidos de
motocicletas e vivenciando plenamente a liberdade na estrada. A liberdade pula fora da
tela e envolve o espectador numa trama muita bem costurada por motos, sexo, drogas,
rock n’roll e a supremacia de poder ser você mesmo, falar, pensar e agir da maneira que
bem entender. Movidos pelo desejo de desvendar os caminhos inóspitos da América,
Wiatt & Billy, personagens de Peter Fonda e de Dennis Hopper, compram uma boa
quantia de cocaína de um mexicano, por uma ninharia, e vendem para um americano
pelo triplo do preço. Com a grana na mão, eles trocam suas motos velhas por duas
Harley Davidson modelo Chopper e caem na estrada apenas com a roupa do corpo,
degustando o sabor da liberdade, sem preocupações, sem fronteiras e sem limites.
Seguem viagem pelo simples prazer de estar rodando em cima de uma moto. Os nomes
dos personagens foram inspirados nos fora-da-lei mais conhecidos do velho-oeste
americano: Wiatt Earp e Billy The Kid. Isso tudo acontece em menos de três minutos,
sem abertura, sem letras, sem introdução ao filme. Então, logo após vem a cena que é
uma das mais importantes da história do cinema: assim que os dois rebeldes começam a
jornada, Wiatt, interpretado por Peter Fonda, em cima de sua Chopper, tira o relógio
do pulso, e arremessa no chão, dando o clima certo da aventura que virá pela frente.
Aceleram os motores, e as motos tomam conta do asfalto quente, e logo em seguida
começa a tocar o clássico dos anos 60, “Born To Be Wild” do Steppenwolf.
Ao longo do caminho, os dois motoqueiros passam por uma típica comunidade
hippie dos anos 60, onde a veia artística dos moradores é profundamente baseada no
haxixe e na maconha. Teatro, mímica e música mostram de uma maneira franca o
descontentamento da juventude da época com a Guerra do Vietnã. Entre uma
cidadezinha e outra, nos confins dos Estados Unidos, os dois são presos e discriminados
194
por serem cabeludos e barbudos. Nem se hospedar em hoteizinhos vagabundos na beira
de estrada eles conseguem, porque as pessoas os temem, e os repudiam. Na cadeia,
conhecem um advogado alcoólatra interpretado por Jack Nicholson, que resolve
embarcar na odisséia dos dois cabeludos. Um dos diálogos mais marcantes do filme sai
da boca de George Hanson, - o personagem de Jack Nicholson - a respeito da
discriminação, e do perigo que os dois motoqueiros pareciam representar para as
pessoas: Eles não têm medo de vocês, mas do que vocês representam. Para eles vocês
representam a liberdade. Mas falar dela e vivê-la são duas coisas diferentes. É difícil
ser livre quando se é comprado e vendido no mercado. Mas nunca diga a alguém que
ele não é livre... porque ele vai tratar de matar e aleijar para provar que é. Você é que
corre perigo.”
“Diários de Motocicleta” (EUA, 2004), de Walter Salles é outro filme de
viagem. Neste caso resulta na sensibilidade imaginária de um dos maiores ícones do
século XX, o revolucionário argentino Che Guevara. O filme é inspirado nos diários que
Ernesto Guevara escreveu em 1952, quando, com o amigo Alberto Granado, percorreu a
América Latina da Argentina à Venezuela, de moto, a pé, de barco ou de carona.
Em 1952, Alberto, com 29 anos, e Ernesto, com 23, saíram de Buenos Aires em uma
velha motocicleta. Atravessaram a América Latina da Patagônia à Venezuela, onde a
viagem se encerrou. Fim de um percurso e começo de outro. Depois da travessia, os
viajantes jamais foram os mesmos. Alberto foi para Cuba e lá vive até hoje. Já Guevara
tem o seu paradeiro bem conhecido. A experiência de Ernesto e Alberto é um momento
mágico, em que convivem as duas grandes aspirações das gerações que cresceram na
segunda metade do século 20: o anseio de liberdade individual e o anseio de viver numa
sociedade justa. As expedições foram, para Che, uma maneira de continuar a viagem, de
não se transformar num burocrata do poder. Duas paixões que o jovem Che, naquela
viagem, conseguiu juntar: a inquieta vontade de manter o na estrada e a decisão de
servir causas justas.
Há, no filme, um diálogo memorável entre Alberto e Ernesto, sentados nas
pedras de Machu Picchu no Peru. Nessa altura, os dois amigos sentem os efeitos da
viagem: a injustiça os assombra. Alberto tem a idéia de casar-se com uma descendente
de inca: “Fundaríamos um partido indígena (...). Incentivamos todo o povo a votar,
reativamos a revolução de Tupac Amaru, a revolução indo-americana, o que você
195
acha?”. Ernesto responde: “Uma revolução sem tiros? Você está louco”. Dureza, sim,
quando preciso, mas endurecer sem jamais perder a ternura, esse passou a ser o lema de
Che.
Qual o sentido dessa discussão hoje? Na nossa sociedade de consumo o Che com
sua boina é uma das imagens mais reconhecíveis de nossos tempos, mas agora sua
imagem serve como enfeite para quartos de estudantes, seu rosto aparece em camisetas,
xícaras, capas de caderno e até biquínis. Em sua grande maioria, os jovens que
escolhem Ernesto Che Guevara como inspirador de seu dia a dia não são leninistas e
não precisam ser e podem discordar de muitas das idéias que levaram o Che para Cuba,
para Angola e para sua execução na Bolívia. Mas eles conhecem a profundidade destas
idéias? Quais são seus sonhos? Para onde caminha o imaginário individual e coletivo?
Para Bloch,
“o aspecto pantomímico de um filme é, em última análise, o da
sociedade, tanto pelas diferentes maneiras com que se expressa, quanto
sobretudo pelos conteúdos intimidadores ou estimuladores,
prometedores que são enfatizados”. (BLOCH, 2006:397- vol.2)
Seria Hollywood uma “fábrica de sonhos?Para Bloch trata-se de uma fábrica
de veneno que produz utopias de fuga e propaganda da guarda branca. O cinema de
Hollywood pode ser visto como uma eficaz tecnologia do imaginário. Homens tiveram
a sua idéia do amor ou da mulher ideal forjada, para bem ou mal, por esse universo de
imagens. Muitos críticos atribuem a essa indústria cinematográfica o poder da
manipulação ou da homogeneização. Essa linha crítica foi fortemente influenciada pelas
posições marxistas, como as de Bloch, que considera o indivíduo como um fantoche a
mercê das imagens do cinema, da TV ou da publicidade. Embora Hollywwod seja
considerada uma indústria cinematográfica que produz filmes-modelos com forma
simplistas de fácil “degustação” por parte do público, já que seu interesse primordial são
as grandes bilheterias, seria injusto rotulá-la apenas por esses atributos. É possível
extrair do imaginário cinematográfico hollywoodiano boas referências para se pensar
alternativas à realidade que está posta ou vislumbrar novas possibilidades, novos
sonhos, novos horizontes utópicos.
196
o teatro é a instituição de uma realidade vivencial nova, em lugar algum
imediata, trazida à luz pela arte dramática e relacionada com ela. O palco é mais
aparência do que qualquer outro gênero de arte e torna essa aparência vivenciável na
realidade. Bloch critica a idéia de arte como ilusão. Não considera a aparência do teatro
uma aparência ilusória. Influencia a vontade deste mundo nas suas possibilidades reais –
como instituição paradigmática. O teatro promove a realidade por meio do divertimento
numa espécie de catarse ou purificação aristotélica com a intenção de provocar a
descarga dos afetos através da intensificação trágica, de modo que voltem ao seu nível
normal na vida. A própria origem do teatro refere-se às primeiras sociedades primitivas
que acreditavam nas danças imitativas como favoráveis aos poderes sobrenaturais para
o controle dos fatos indispensáveis para a sobrevivência. O próprio significado da
palavra teatro tem referência a sua forma física original, podemos traduzir como:
contemplo, vejo, visão por onde se vê um espetáculo.
O humor redime da extrema artificialidade ou insanidade das figuras mistas
abstratas e ainda assim representáveis, redime do reino sombrio da incontinência
técnica, da “utopia negra”. Desde tempos antigos narra-se a respeito da vida melhor
como se ela existisse em algum lugar. Nessa narrativa o happy end é o impulso tolo
rumo ao final feliz que pode tornar-se um impulso inteligente; a fé passiva pode
transformar-se numa ciente e instigadora. Bloch faz duras críticas ao pessimismo
incondicional. Ao contrário, um otimismo que passou por provações não renega a no
objetivo como tal. A quantidade de indiferença, a ausência da esperança, é para Bloch, o
inimigo mais renitente do socialismo. Portanto, o pessimismo é a paralisia pura e
simples, ao passo que o otimismo mais degenerado até pode ser a anestesia da qual
ainda se pode acordar. Os homens, assim como o mundo, carregam dentro de si a
quantidade suficiente de futuro bom; nenhum plano é propriamente bom se não contiver
essa fé basilar. O humor é a menos insistente de todas as utopias. Cria espaços de
despedida e também estabelece o ridículo. Pertence ao início da luz, aquilo em que está
em vias de emergir, naquilo que ainda é secreto e não-manifesto.
Bloch também um destaque especial para as construções que retratam um
mundo melhor, o que ele chama de utopias arquitetônicas. A arquitetura veemente
testemunho de ir em busca da realização da utopia, quer dizer, do sonho humano da
197
criação do espaço ideal para a felicidade e a representação da dignidade da vida
humana.
A época mais esplendorosa da celebração das festas foi o final da Idade Média
com o barroco. Riqueza, capital, comércio, nobreza, prazer, ostentação, exuberância
(barroco utopicamente ensaiado). Aparece a construção fictícia, mais precisamente
aquela que é evocada nos contos de fadas. A influência do mundo ornamental pode ser
verificada nas Mil e uma noites. Devoção romântica ao Oriente. Fantasia do conto de
fadas arquitetônico.
A pintura queria representar ela própria o edifício do desejo. As pinturas
arquitetônicas tinham a construção como único sujeito e as pessoas no máximo como
acessórios. Denotavam uma atitude romântica para com o estilo gótico tardio com a
forte concepção de uma arquitetura ideal. Pintar na parede significa adensar formas
arquitetônicas. Construção da torre simbolizava em parte o juiz infernal apontando para
cima, em parte uma escada celeste. Templo em estilo romano e clássico, uma espécie de
Jerusalém celestial.
Pintura e poesia podem preparar a casa, mas apenas a execução libera a fonte das
invenções duráveis. A imagem da construção guiava as guildas de construtores. O
modelo era o “justo fundamento dos construtores”, a aspiração artística era a fantasia,
paradigma da arquitetura canônica. Torres góticas eram sinais de orgulho da arrogância
burguesa. A utopia arquitetônica apontava para a réplica, imitação de uma construção
cósmica. O ápice da perfeição era o templo salomônico, considerado o exemplo sagrado
(sonho arquitetônico).
Segundo Bloch, na criação de um espaço utopizado, o Egito e o gótico são os
símbolos arquitetônicos mais radicais. O símbolo arquitetônico egípcio é o do cristal da
morte, o símbolo arquitetônico gótico é o da árvore da vida, o que ele chama de utopias
arquitetônicas esculturais. As pirâmides são réplicas cósmicas, do mesmo modo que as
construções sacras. O estilo gótico é uma configuração místico-urbana, anseia pelo
íntimo e pelo alto. Enquanto o Egito representa o cristal da morte como perfeição
pressentida, com a mesma determinação, o gótico está relacionado utopicamente à
198
ressurreição e à vida, quer expulsar a morte. A arte egípcia traria dentro de si um querer
vir a ser como pedra.
Construir não é apenas criar algo agradável para satisfazer a necessidade de
morar. O construtor desde sempre foi semi-técnico com exigências da construção
perfeita: firmeza, utilidade e graciosidade. A perfeição do mundo foi o correlato
arquitetônico de que a arquitetura mítico-astral retirou seu modelo. O sonho
arquitetônico de um mundo melhor tem como característica, em termos egípcios: a
adoração ao sol; em termos bíblicos proféticos: o êxodo.
Na ideologia bíblico-cristã era preciso rejeitar aquela direção do mundo em que
nasce o sol exterior e escolher cada vez mais aquela direção em que ele sai e desaparece
com toda a ordem existente do mundo. Hoje as casas em muitos lugares parecem estar
prontas para partir, expressa-se nelas a despedida como navios revelam o desejo de
desaparecer. As casas precisam ser novamente sonhadas. Somente os inícios de uma
nova sociedade tornam a viabilizar arquitetura genuína, impregnada de aspiração
artística. A arquitetura, segundo Bloch, é e continua sendo uma tentativa de produção da
terra-mãe humana.
Bloch entende que a paisagem dos sonhos também pode ser representada na
pintura, óleo e literatura. Apenas sentir de forma bela não leva a nada. Remete-se à
interioridade quando se cria artisticamente. Surge na pintura a paisagem dos sonhos de
distância aberta. O mundo como nave extensa. O observador parece estar olhando por
uma janela. Um quadro nos informa sobre o que nele se simultaneamente. Franz
Marc
28
afirmou que as pinturas são nosso próprio emergir em outro lugar. Toda uma
existência em outro lugar.
28
Franz Marc (1880-1916), pintor alemão, apaixonado pela arte dos povos primitivos, das crianças e dos
doentes mentais, o pintor alemão Marc escolheu como temas favoritos os estudos sobre animais,
conheceu Kandinski, sob a influência deste, convenceu-se de que a essência dos seres se revela na
abstração. A admiração pelos futuristas italianos imprimiram nova dinâmica à obra de Marc, que passou a
empregar formas e massas de cores brilhantes próprias da pintura cubista. Os nazistas destruíram várias
de suas obras. As que restaram estão conservadas no Museu de Belas-Artes de Liège, no Kunstmuseum,
em Basiléia, na Städtische Galarie im Lembachhaus, em Munique, no Walker Art Center, em
Minneapolis, e no Guggenheim Museum, em Nova York.
199
Para Bloch, o traço básico da estética classicista-burguesa não é esperança, mas
contemplação. O belo devora a substância como ilusória. A arte surge como um
sedativo, não uma convocação. A arte impele configurações do mundo. Apenas a ilusão
estética se desprende da vida. A probabilidade constitui a condição da arte. O fundo da
perspectiva é o fundo de ouro da arte, uma paisagem dos sonhos do real possível.
No campo do imaginário, sem dúvida a música é a que mais chama a atenção de
Bloch. Para ele, um som é capaz de expressar melhor que qualquer cor ou qualquer
palavra aquela transição em que não se sabe mais, embora o caminho da música seja
mais longo que o da pintura, e mais longo que o poético. A música é, para Bloch, uma
das referências da sua utopia concreta, é a arte que, para ele, mais influencia por ser
uma arte em que é fundamental a organização dos tempos e que põe em relevo a
memória do que passou com aquilo que não se sabe ainda, com o que virá ao virar da
nota, com o imprevisto. A música conseguiria ser, ao mesmo tempo, um lamento e uma
esperança, um abrigo e um protesto, a certeza clara e dinâmica do movimento e uma
intuição obscura do que virá. Bloch encontra nela um campo fértil para o
desenvolvimento das suas idéias fundamentais. A música seria a arte que obscuramente
contém os anseios de um mundo melhor e de uma comunidade outra, enigmaticamente
como num sonho, como palavras-chave ainda por desvendar.
futuros hoje. Não vivemos num tempo linear, mas num tempo feito de
tempos discordantes e sobrepostos, incoincidentes, de ciclos e de convulsões, de crises e
de saltos, mas também de novas visões do passado e de antecipações criativas do futuro.
Consciente dessa discordância dos tempos, Bloch pensa que o potencial utópico da
música ainda não pode ser apreendido totalmente.
A arte utópica da música, como lhe chama Bloch, vem carregada de esperança e
ela não está apenas nas grandes obras dos compositores eruditos. Pode estar numa
simples canção. Ela pode ser dotada de potencial emancipador. Não se pode deixar de
ouvir um chamado no cantar. A música como expressão humana nos remete a um
utópico-contraditório à presença de um desaparecido.
Para Bloch, todas as figuras de transgressão têm um fermento utópico
especialmente forte, mas especialmente a música, em virtude de sua capacidade de
200
expressão diretamente humana, tem simultaneamente, mais que todas as demais artes, a
propriedade de acolher o múltiplo sofrimento, os desejos e os pontos luminosos da
classe oprimida. O seu propósito mais fundamental é ser, encontrar e tornar-se
linguagem sui generis.
Segundo Bloch, a experiência musical proporciona o melhor acesso possível à
hermenêutica dos afetos, preferencialmente dos afetos expectantes. Como nenhuma
outra arte, a música tem como referência o sujeito latente e o objeto que lhe é
inteiramente correspondente. Em sua proximidade insuperável da existência, ela é o
órgão mais assemelhado e o mais público desse incógnito, o mundo que ainda está por
acontecer no futuro, na angústia, na esperança. Contém a moralidade e a universalidade
de um ponto central, um centro penetrante e intensivo impregnado. Por isso, ela é
retratada por Bloch como uma configuração utópica-fermentante.
O imaginário distópico da sociedade de consumo no cinema
Num ambiente de exacerbação de “realismos”, o que mais vigora é o imaginário
distópico. Distopias são frequentemente criadas como avisos, ou como sátiras,
mostrando as atuais convenções sociais e limites extrapolados ao máximo. Nesse
aspecto, diferem fundamentalmente do conceito de utopia, pois as utopias são sistemas
sociais idealizados e não têm raízes na nossa sociedade atual, figurando em outra época
ou tempo ou após uma grande descontinuidade histórica. Entendo que as distopias são
imprescindíveis. É ela que nos faz críticos e nos faz criar as perspectivas do ainda-não-
consciente como diz Bloch. Tal postura provoca o homem a operar com dados materiais
reais e com vontade consciente a direcionar e controlar o projeto utópico, como se vê na
utopia esperançosa de Ernst Bloch.
A distopia apresenta alguns traços que lhe são característicos: costumam
explorar moralmente os dilemas presentes que refletem negativamente no futuro,
oferecem crítica social e apresentam as simpatias políticas do autor, exploram a
estupidez coletiva, o poder é mantido por uma elite pela somatização e consequente
alívio de certas carências e privações do indivíduo, possuem discurso pessimista,
raramente “flertando” com a esperança.
201
Como exemplo clássico de distopia, destaco As Viagens de Gulliver” de
Jonathan Swift escrito em 1726. O mais importante nesta obra é o comentário geral que
o autor faz sobre a vida humana observada sob vários pontos de vista. Primeiramente,
sob a persperctiva de um Ser de forma agigantada frente os pequenos habitantes de
Liliput e que, sob esta ótica, a humanidade ridiculamente pequena. No segundo
momento inverte-se a perspectiva. Agora um Ser infinitamente pequeno a
humanidade grotescamente grande. No terceiro momento da obra o que impera é o
senso comum, pois a imensa maioria da humanidade demonstra ser louca e pervertida.
No quarto momento, talvez o mais emblemático da obra, uma clara distinção entre a
utopia e a distopia, pois os animais, no caso cavalos, são vistos como seres muito mais
racionais do que a raça humana inteira
29
. Gulliver fica encantado com o tipo de vida
desses animais, convive com eles durante vários anos e foi muito difícil voltar à
humanidade e seu modo de vida anterior apontado como irracional e bestial.
Na Parte I a raça humana é visualizada em miniatura, mas logo mostra a sua
ambição e crueldade. Na Parte II a raça humana é grosseira e repugnante cujo principal
interesse é o dinheiro e a briga pelo poder. Na Parte III vê o dom da razão desperdiçado,
a triste visão antiética de que o crime compensa, além de caracterizar a piora constante
da natureza humana. O autor vê-se completamente desestimulado quanto à suposta
integridade e sabedoria humana, passa a desconfiar do que fez avançar, o que motivou
as grandes empreitadas e revoluções no mundo. Na Parte IV, os yahoos, são os seres
humanos (sujos, gananciosos, perversos, lúbricos e estúpidos); os houyhnhnms são os
animais racionais. O personagem de Gullliver é impelido a informar sobre a Inglaterra
para os houyhnhnms e descreve uma tenebrosa realidade. Em suma, nessas quatro visões
do autor a raça humana é vista com aspecto extremamente desagradável.
O que chama a atenção na obra de Swift e a configura como uma distopia
literária são os passos dados nas viagens de Gulliver, o qual começa a primeira de suas
viagens de forma entusiasmada, cheio de esperança no encontro com novos habitantes e
culturas diferentes, mas que vai aos poucos se desencantando com tamanhas
desventuras e barbáries humanas a ponto de na última de suas viagens estar
profundamente desgostoso de ter que reviver a sua estada entre os seus semelhantes.
29
A expressão “raça humana” é usada por Swift. A Antropologia usa como referência a expressão
“espécie humana”.
202
Não consegue mais apreciar as virtudes dos indivíduos. Achava os seres humanos
completos idiotas e sentia-se também como tal. Ao invés da definição de animal
racional, Swift propõe entender o homem apenas como um animal capaz de pensar.
Esse imaginário distópico de Swift é bastante presente hoje. Vivemos um
período em que os meios de comunicação predominam. um bombardeio de imagens
e estéticas superficiais. As pessoas correm alucinadamente de um lado para o outro. O
tempo destinado à literatura e às experiências estéticas mais “nobres” está cada vez mais
exíguo. Parecemos fazer parte de um imenso vídeo-clip que sobrepõe imagens umas às
outras de forma avassaladora. Por isso entendo que, se Bloch coloca a música como a
arte utópica transgressora da realidade por excelência, creio que o cinema faz hoje esse
importante papel. Mas não é o cinema utópico que predomina. Como as imagens falam
por si só, é a distopia no cinema que causa maior impacto e repercussão. Isso parece ser
fruto de uma época niilista, mas como diz Vattimo, é que vigora o nosso poder de
efetiva emancipação. Em outras palavras, é a distopia que alimenta a utopia. No tempo
do homem transformado em coisa, quando as utopias não movem mais fantasias, o que
resta ao diretor de cinema, ao poeta, ao romancista, etc. é “ao menos acusar a distopia”.
Como os irmãos franceses Auguste e Louis Lumière poderiam imaginar que o
que estavam criando não seria utilizado exclusivamente para pesquisa científica, mas
sim para a criação de uma indústria do entretenimento e também para fazer refletir sobre
o nosso futuro comum? Os estudos sobre cinema têm sido amplamente dominados pela
perspectiva da análise estética, ou seja, a construção de imagens mágicas para a tela. É a
primeira arte que se auto-representa como imagem da realidade. É um signo da
realidade, porém não é real. Contribui significativamente para a construção mítica da
sociedade contemporânea. Gostar, degostar, ficar emocionado, enfim, tudo que se puder
pensar e sentir ao assistir a um filme acontece no intervalo entre as cenas e é história
social, individual e particular ao mesmo tempo. Desde a sua origem até a
contemporaneidade, os filmes conseguem dialogar com pessoas de todas as idades, de
todos os níveis sociais, culturais e econômicos. Há mais de um século o cinema encanta,
provoca e comove bilhões de pessoas em todo o mundo.
Pretender ver e possuir o mundo como indivíduos aparece progressivamente na
arte e nos espetáculos do século XIX. Provavelmene a figura mais importante na sua
203
época a explorar o potencial do cinema como arte expressiva foi o expoente russo da
montagem Sergei Eisenstein
30
, geralmente considerado um ponto de partida nas
histórias da técnica e teoria do cinema. Notabilizou-se pela sua tentativa de entender a
linguagem do cinema. Como cineasta, usou a edição como sua principal ferramenta para
transformar o filme exposto num enunciado. Einsenstein não estava interessado em
simplesmente reproduzir a realidade que tinha filmado: ele queria usar essas imagens
para criar algo novo. Na sua visão, dois pedaços de filme, de qualquer tipo, ao se
juntarem inevitavelmente combinam-se num novo conceito, numa nova qualidade que
surge da justaposição. Essa nova qualidade é construída pelo espectador.
Em primeiro lugar é preciso ver o cinema como comunicação e, em seguida,
colocar a comunicação do cinema dentro de um sistema maior, gerador de significado –
o da própria cultura, porque a cultura compreende os processos que dão sentido ao
nosso modo de vida. As imagens, assim como as palavras, carregam conotações. A
representação visual também possui uma “linguagem”. As imagens chegam até nós
como mensagens “codificadas”, já representadas como algo significativo em vários
modos.
As narrativas do cinema desenvolveram seus próprios sistemas de significado.
Em nível de significante, o cinema desenvolveu um rico conjunto de códigos e
convenções. Não é um sistema discreto de significação, assim como a escrita. O cinema
incorpora as tecnologias e os discursos distintos da câmara, iluminação, edição,
montagem de cenário e som – tudo contribuindo para o significado. A construção de um
universo social é autenticada pelos detalhes da mise-en-scène.
Música e imagens têm muito em comum como meios de comunicação, não são
entendidas pelo público de uma maneira direta, linear, mas irracionalmente,
30
Sergei Eisenstein (1898-1948) é um dos diretores mais inovadores e pioneiros da história do cinema.
Ele praticamente inventou a cnica de montagem e influenciou grandes cienastas como Orson Welles,
Jean Luc Godard, Brian de Palma e Oliver Stone. Filho de um engenheiro, estudou ciências para seguir os
passos do pai. Em 1915, foi para o Instituto de Engenharia Civil de Petrogrado, onde assistiu às
produções teatrais vanguardistas de Meyerhold e Yevreinov. Depois da Revolução de 1917, fez cartuns
políticos e entrou no corpo de engenharia do Exército Vermelho (formado por Trótski para defender a
Revolução) como voluntário. Seu pai juntou-se ao Exército Branco (formado pelos grupos interessados
em restabelecer o antigo regime monárquico). Mesmo soldado, encenou diversas peças, para as quais
desenhou os cenários e o guarda-roupa. Em 1920, ingressou na Academia Geral de Moscou.
204
emocionalmente, individualmente. Lévi-Strauss diz que o significado da música não
pode ser determinado por aqueles que a tocam, mas somente determinado por quem está
ouvindo
31
. foi dito que a música no cinema “sente por nós”, dizendo-nos quando
ocorre um momento forte e indicando o que devemos sentir por meio do estado
emocional da música.
Como filmes, os sonhos têm a capacidade de expressar o pensamento por meio
de imagens; e também tendem para estruturas narrativas (mesmo que genéricas), com a
impressão de serem mais do que reais. O cinema como o sonho é regressivo, pois evoca
os processos inconscientes da mente e favorece o que Freud chama de princípio do
prazer em detrimento de princípio da realidade.
A relação entre um filme e seu público, entre o filme e a cultura são todas elas
relações que precisam ser vistas como da máxima importância para o entendimento da
forma e função do longa-metragem. Compreender um filme não é essencialmente uma
prática estética; é uma prática social que mobiliza toda a gama de sistemas no âmbito da
cultura. O avião é uma invenção que nos leva a lugares longínquos, mas o cinema faz
esse serviço de forma muito mais ampla, através dos sonhos e do imaginário. Amplia a
função da fotografia, faz com que as imagens estáticas ganhem vida. As pessoas, apesar
de viverem o real e ter seu cotidiano exteriorizado, são atraídas pelas imagens do real. A
imagem é uma presença vivida e uma ausência real, uma presença-ausência. Ela atende
ao anseio mais subjetivo: a imortalidade. Na imagem, o homem projeta seus anseios e
temores, o seu ego e superego. Sombras e magia são algo intrínseco ao pensamento
primitivo e que está inerente a nós. O cinema viria a corporificar esses dois ingredientes
à nossa constituição individual na modernidade.
31
Arte e antropologia se cruzam na biografia e bibliografia de Lévi-Strauss. Nascido na lgica (1908) e
educado em Paris, provém de uma família de artistas: o pai e dois tios paternos foram pintores, o bisavô
violinista. Ele próprio, fascinado pela música, tomou lições de violino na infância (época em que
começou a compor uma ópera) e alimentou o sonho, logo abandonado, de ser compositor e regente.
O gosto apurado de Lévi-Strauss pela dimensão estética não o fez um artista propriamente dito.
Mas certamente forneceu-lhe uma ferramenta eficaz na formulação da teoria estrutural que caracterizou
sua obra antropológica, principalmente quando se considera que alguns dos temas centrais desta obra
referem-se às relações estabelecidas pela cultura entre o sensível e o inteligível, entre o inato, gerenciado
pela natureza, e o adquirido pela plasticidade do pensamento.
205
Espaço-tempo é a dimensão total e única num universo fluído chamado cinema.
Diferentemente do teatro, no cinema, objetos e cenários ganham uma alma e uma vida.
O filme implica antropomorfismo (carrega as coisas da presença humana) e
cosmomorfismo (tendência para carregar o homem da presença cósmica) - a
humanidade no mundo exterior e o mundo exterior no homem interior. Segundo Morin
(1997), o universo fluído do filme pressupõe recíprocas e incessantes transferências
entre o homem microcosmo e o macrocosmo. As paisagens são estados de alma e os
estados de alma paisagens. O cosmomorfismo pelo qual a humanidade se sente natureza
vem dar resposta ao antromorfismo pelo qual a natureza é sentida sob uma aparência
humana. As fontes do antropomorfismo e do cosmomorfismo são a projeção e a
identificação. O mundo existe no interior do homem e o homem existe por toda a parte,
espalhado pelo mundo. O universo do cinema deriva genética e estruturalmente da
magia, sem que seja magia; deriva também da afetividade, sem também ser
subjetividade. O sonho é projeção-identificação em estado puro. O universo mágico é a
visão subjetiva que se crê real e objetiva. Para Morin (1997), “os processos de
projeção-identificação que se desenvolvem no âmago do cinema, desenvolve-se
também, evidentemente, no seio da vida”.
O cinema responde a todas as necessidades (imaginário, devaneio, magia,
estética) que a vida prática não pode satisfazer. Necessidade de fugirmos a nós próprios,
fugirmos-nos para nos reencontrarmos e de nos reencontrarmos para nos fugirmos. O
cinema oferece, portanto, fugas e reencontros. Ao mesmo tempo que ele é mágico, é
estético e, ao mesmo tempo que é estético é afetivo. Cada um desses termos pressupõe o
outro” (MORIN, 1997:136).
A vida subjetiva é quem estrutura o cinema percorrendo o caminho do
imaginário. A concepção de realidade do movimento e da aparência das formas constrói
uma percepção da realidade objetiva. Subjetividade e objetividade; continuidade e
ruptura - é esse plano dialético que deve ser acompanhado no cinema. A sua alma é o
movimento, é a sua subjetividade e a sua objetividade. Segundo Morin (1997), o cinema
é o produto dessa dialética em que se opõem e se reúnem a verdade objetiva da imagem
e a participação subjetiva do espectador. A objetividade do mundo do cinema tem
necessidade da nossa participação pessoal para tomar corpo e essência.
206
As analogias entre o cinema e o sonho são evidentes. As sessões de cinema têm
características para a hipnótica. No entanto, no sonho há uma crença na absoluta
realidade enquanto o espectador sabe que assiste a um espetáculo inofensivo. O cinema
é um complexo de realidade e de irrealidade, localizado entre a vigília e o sonho, é o
mais próximo do sonhar acordado do qual nos fala Ernest Bloch. Ele opera uma espécie
de ressurreição da visão primitiva do mundo, ele apela, permite, tolera e inscreve o
fantástico no real. Enquanto para o primitivo a magia é reificada, no cinema, a magia
está liquefeita, transmutada em sentimento.
O cinema pode e deve deformar a nossa maneira de ver as coisas, não as
próprias coisas. O seu movimento inicial é o do fantástico e a característica essencial da
fantasia é a racionalização do fantástico. Quanto maior é a racionalização, mais realista
é o filme. O realismo é a aparência objetiva da fantasia, mas a ficção é a sua estrutura
subjetiva. O que importa do ponto de vista antropológico é a infinita possibilidade
dialética entre o irreal e o real.
A imagem representa, restitui uma presença. Ela é simbólica por natureza e por
função e tende a libertar um significado e, ao mesmo tempo, uma participação afetiva.
Por isso, no cinema existe uma unidade profunda entre sentimento, magia e razão.
Magia e sentimento são também meios de conhecimento. Einsenstein demonstra que o
sentimento não é uma fantasia irracional, mas um momento do conhecimento. Ele não
opõe a magia ao irracional. O cinema, tal como a música, contém a percepção imediata
da alma por si própria. Como a poesia, desenvolve-se no campo do imaginário.
O cinema é psíquico. As salas são autênticos laboratórios mentais em que se
concretiza um psiquismo coletivo. Esse psiquismo não elabora a percepção do real
como também segrega o imaginário. Segundo Morin,
“(...) o cinema mostra-nos, pois, o processo de penetração do homem no mundo
e o inseparável processo de penetração do mundo no homem”. (MORIN,
1997:233)
As fantasias do homem estão diretamente ligadas ao mundo no qual ele vive. Por
isso, com o impacto causado pela tecnologia, ciência e globalização, o imaginário de
hoje é muito diferente do universo dos seres fantásticos, das lendas e do folclore. A
207
partir da ausência, seja da razão ou da comunicação, foi criado todo um imaginário hoje
considerado “infantil”. Com o passar dos séculos, a humanidade avança em todos os
campos do conhecimento. O Iluminismo e o predomínio da razão desencantam esse
imaginário antes constituído. O antigo imaginário não desapareceu, mas houve uma
migração para outras possibilidades, mais adequadas para nosso contexto. Em nossa
sociedade quase todo o mistério é revelado. Onde está o espaço do imaginário? Se antes
a falta da ciência provocava a imaginação, agora é o excesso dela que povoa nossas
histórias mais fantásticas. Está em franca ascensão o imaginário distópico que faz a
crítica ao excesso e à falta de limites. No imaginário contemporâneo, seres de natureza
fantástica foram praticamente excluídos do pensamento em prol de outros, que habitam
um mundo cada vez mais urbano, científico, tecnológico e sitiado.
Seguindo essa perspectiva, não é difícil acenar para filmes que retratam a
preocupação com o devir. A preocupação com a relação homem/natureza e os impactos
da modernidade no modo de vida humano dominado pela técnica aparece no
documentário Koyaanisqats” (EUA, 1983)
,
que no dialeto da tribo Apache Hopi
significa “vida em desequilíbrio”, (filme de 1983, dirigido pelo cineasta e estudioso do
zen-budismo, Godfrey Reggio). É uma obra prima visual de imagens delirantes,
capturadas por Ron Fricke em várias partes do mundo,
que faz uma analogia sobre o
contraste entre o tempo da natureza e o tempo criado pelo homem, entre a tranqüila
beleza da natureza e o frenesi da sociedade urbana contemporânea. Propõe mostrar a
contradição entre a natureza em seu estado virgem e a montagem urbana do sonho
americano
.
Discute três grandes profecias Hopi: 1) Se escavarmos coisas preciosas da
terra, estaremos atraindo o desastre; 2) Perto do dia da purificação, haverá teias de
aranha de um lado a outro do céu; e, 3) Um recipiente de cinzas podeum dia cair do
céu, queimar a terra e agitar os oceanos.
É o filme mais conhecido da trilogia Qatsi, que
é composta juntamente com as seqüências Powaqqatsi (1988) e Naqoyqatsi (2002).
A trilha sonora deste documentário é de suma importância, pois o desenrolar tem
a velocidade e o tom ditados por ela. Não existem diálogos e também não são feitas
narrações durante todo o documentário. A música de Philip Glass
32
nos conduz através
32
Philip Glass (31/1/1937-), compositor norte-americano. Um dos criadores da corrente musical chamada
minimalismo, caracterizada pela repetição de elementos musicais mínimos. Seu trabalho é influenciado
pela música oriental, pelo serialismo e pelo aleatorismo.
208
das imagens, ora lentas, ora em profusão gigantesca por essa aceleração impetuosa da
vida. São apresentadas cenas em paisagens naturais e urbanas, muitas delas com a
velocidade de exibição alterada. Algumas cenas são transmitidas mais rapidamente e
outras mais lentamente que o normal, com isso criam juntamente com a trilha sonora
uma idéia diferente da passagem do tempo. O documentário trilha o caminho do homem
desde os seus primórdios da existência, ainda na pré-história, até a atualidade. O filme
indaga onde este caminho estaria nos levando verdadeiramente. Trata-se de um processo
evolutivo? O que teria promovido na ação humana esta mudança de estágio tão
definitiva? Como passamos da tranqüilidade e convívio com a natureza para a pilhagem
e destruição desenfreada desta? Critica a cegueira tecnológica que tira nossas vidas do
rumo. Sem nenhum diálogo, apenas com imagens e música, este documentário promove
uma viagem cósmica pelo universo e alerta para o destino da humanidade. Seria o
homem lobo do próprio homem, como diz Hobbes? O ritmo do documentário vai
aumentando de freqüência como um batimento cardíaco, de acordo com as épocas
históricas. Começa lento e cadenciado com imagens fantásticas dos quatro elementos
naturais: terra, água, fogo e ar. Aos poucos se prenuncia a civilização e o ritmo vai se
tornando frenético. O que era paz transforma-se em caos, a ordem em desordem. O
advento do capitalismo vai devastando a tudo e a todos como um enorme tsunami
desenfreado. A música avassaladora e o descarrilamento de imagens na tela leva a beira
do colapso e causa incômodos enormes. Fica a sensação de que a vida moderna e
civilizada cada vez mais contribui para afastar o ser humano do seu rumo interior. O
filme nos leva a refletir sobre os aspectos da vida moderna que nos fazem viver sem
harmonia com a natureza, bem como a pressão exercida pelas inovações tecnológicas
que tornam o cotidiano cada vez mais rápido.
O efeito devastador também se sobre a subjetividade humana. Um mundo
sem referências mais nobres que se escora sob valores da sociedade de consumo, visto
pela ótica da sensibilidade crítica da existência pode nos fornecer uma alta dose de
reflexão. No filme “O sol de cada manhã” (EUA, 2005), estrelado por Nicolas Cage,
vê-se a fragmentação do sujeito de nossa época. O filme é maduro emocionalmente e
foge dos clichês, demandando uma profunda reflexão. Trata-se da narração do
pensamento de um personagem em um filme, essa é a opção que o roteirista Steve
Conrad, juntamente do diretor Gore Verbinskim, tomou. Eles descrevem o pensamento
de um homem comum no personagem David Spritz (Nicolas Cage), revelando a porção
209
de bobagens que pensamos em questões de segundos. O personagem de Cage
teoricamente tem tudo para ser feliz, mas não é isso o que ocorre. Trabalha duas horas
por dia como “homem do tempo” e tem um salário relativamente alto, o qual lhe
proporciona boas condições materiais. Aparentemente tem uma vida estável e um bom
trabalho como o “homem do tempo” de uma emissora de TV de Chicago. No entanto,
quando o próprio David começa a fazer uma análise de sua vida chegamos à conclusão
de que ele vive pisando em cima de cascas de ovos. Ele é o típico produto de uma
sociedade fragmentada. David falhou como marido (se divorciou recentemente de sua
esposa), como pai (seu filho, o ator Nicholas Hout, se envolveu com drogas e agora
passa o seu tempo livre em um programa de reabilitação e sua filha, interpretada pela
atriz Gemmenne de la Peña, é uma menina acima do peso, profunda e constantemente
deprimida). Não bastasse isso, David questiona cada vez mais a importância de sua
função profissional ele não é meteorologista, não faz qualquer tipo de análise técnica
para exercer sua função, tudo o que faz é se movimentar com bastante habilidade e
desenvoltura na frente de uma tela verde, ler o tele-prompter da maneira certa e esgarçar
um sorriso quilométrico que conquista alguns telespectadores e irrita outros.
Q
uando a esposa do personagem David Spritz pediu para ele comprar molho
tártaro para o jantar ele saiu e foi até o armazém. Voltou para casa sem o tal molho
tártaro, pois pensou tantas baboseiras no caminho de sua casa para o armazém, que
acabou comprando outras coisas, menos o que foi pedido, isso causou uma discussão de
horas entre o casal, os dois filhos ficaram sem jantar e por causa deste mísero molho
tártaro decidiram se separar.
David passa a ter uma vida pessoal em frangalhos,
separado da esposa e com dois filhos insossos e sem perspectiva de futuro. Ele acorda
toda manhã, força um sorriso no espelho e pratica os movimentos que fará em frente à
tela na emissora. Ele mora sozinho em um apartamento frio no centro, sua ex-esposa
ficou com a casa no subúrbio e com o casal de filhos adolescentes. O personagem de
Cage vive o cotidiano com a esperança de reconciliação com a própria família, porém
sem sucesso. Dois personagens chamam a atenção. Sua filha Shelly, pré-adolescente, de
12 anos de idade, que não tem nenhum interesse específico, tem péssimos hábitos
alimentares, vive sempre infeliz e só dá seus primeiros sorrisos quando o pai lhe
presenteia com muitas roupas quando vão à Nova York. O outro personagem é seu pai
Robert, escritor premiado, sereno e coerente, porém está prestes a morrer em alguns
meses. Fica pasmo e preocupado com os hábitos de Shelly, e também com o que
210
acontece com o outro filho de David, chamado Mike, e não tem uma visão clara do que
acontece na contemporaneidade. O relacionamento com o pai, um jornalista, escritor e
ganhador do Pullitzer é tenso. Seu pai descobre que está com um câncer terminal, mas o
ator Michael Caine que interpreta Robert Spritzel atua como um homem tão centrado e
senhor de si que parece que é David quem está realmente doente. Não importa que
ganhe um salário invejável e, por isso seja considerado um cara bem sucedido, David
tem certeza de não despertar orgulho no seu pai Robert que valoriza a administração de
uma família e de uma carreira literária.
Por essa preocupação constante em despertar orgulho no seu pai, de fazer com
que seus filhos possam ser crianças felizes, e de tentar recuperar o seu casamento de
volta, David está sempre em constante tensão, cometendo erros e com hesitações que
trazem identificação imediata, indo da serenidade ao nervosismo descontrolado em
poucos instantes. Apesar de ter uma renda acima da média e de ser uma espécie de
celebridade, David se sente um fracassado e está o tempo todo tentando consertar o que
está errado em sua vida. O problema é que, geralmente, suas tentativas acabam trazendo
mais problemas ainda. Sua filha rompe os ligamentos da perna quando ele a leva para
patinar e uma brincadeira com uma bola de neve com a ex-esposa tem resultados
desastrosos. Mas David continua tentando. O que David parece não se dar conta é de
não ser um absoluto fracasso como tem quase certeza. A ascensão profissional é um
exemplo disso e os esforços contínuos para dar algum significado à infância triste de
sua filha é outro, bem como as medidas extremas para que seu filho não se torne um
adolescente problemático. Certo é que as tentativas de recuperar sua mulher tropeçam
em certa infantilidade e egoísmo, mas David não se diferencia de um adulto normal,
com problemas normais tentando honestamente lidar com eles. É um personagem que
está ali no filme para mostrar o espanto e admiração em um mundo em que estamos
cada vez mais nos desterritorializando. Será tudo isso normal? Mas o que é o normal?
Todos os relacionamentos de David são extremamente delicados. Com os seus
telespectadores, por exemplo, o “homem do tempo” não sabe como se portar. David não
quer ter a obrigação de ser simpático sempre e de ter que responder as mesmas
perguntas sobre como será o clima no dia de hoje. Por causa disso ele recebe com
freqüência gestos de “carinho”, como por exemplo, serem atirados em sua direção restos
de bebidas e de comida. Sempre que está nas ruas leva algumas tortas, refrigerantes,
211
milk-shakes no rosto ou no corpo, que são atirados por garotos que passam de carro
gritando “Hei!Homem do Tempo!” Cage passa a refletir sobre os objetos que são
sempre atirados em sua direção e conclui que todos são comprados em fast-food. A
partir de então pensa sobre sua vida e seu trabalho. A previsão do tempo é algo que fica
a sabor dos ventos, ou seja, existe uma variação de 7ºC. Conclui que o próprio trabalho
é descartável e ele próprio é um “homem fast-food”. É um filme ambíguo, não cai nos
clichês hollywoodianos de superação ou alcance da felicidade, muito menos uma
definição de certo ou errado ou de um modo de vida pré-determinado a se seguir. Para
quem espera um mundo de perfeição que se diferencie de sua vida comezinha, “O Sol
de Cada Manhã” não é, portanto, o filme mais indicado. São problemas comuns de
pessoas comuns. É isso que chama a atenção. O diferencial é não propor nenhuma
fórmula de felicidade, nem de apontar caminhos para mostrar a facilidade de
reconstrução de uma família. Pelo contrário, é um filme que exige uma reflexão da
geração fast-food, superficial e descartável. Enxergo neste filme a futilidade da vida
cotidiana numa sociedade de consumo sob a ótica íntima de um personagem angustiado
por esse vazio, portanto considero um filme inteiramente distópico.
Uma grande referência de crítica à sociedade de consumo no cinema está no
filme “1,99 - Um Supermercado que Vende Palavras” (BRA, 2003) de Marcelo
Masagão. Ele faz uma investigação profunda ao consumismo. Não é um filme de grande
bilheteria e não é fácil de assistir, mas é uma obra extremamente crítica e ao mesmo
tempo poética que não se utiliza de nenhum diálogo. A trilha sonora composta por Win
Mertens e André Abujamra é um elemento fundamental para o filme, oscila entre a
melancolia e o humor e nos guia entre as emoções contidas em cada cena. É um filme
sobre o individualismo regado a Prozac, a felicidade nutrida pela Nintendo, a memória
gerenciada pela Microsoft e a consciência controlada pela CNN. É sobre uma massa
indiferenciada de hiper-consumidores que se enclausura num supermercado todo
branco, frio e asséptico, quedando-se ali por tempo indefinido para lotar seus carrinhos
de compra não exatamente com produtos utilitários, mas com caixas vazias onde o
único valor à venda são slogans digestivos reproduzindo a linguagem otimista da
publicidade, frases pré-fabricadas de efeito psicológico e toda uma subliteratura de
consolo ou auto-ajuda. Do lado de fora, outras pessoas aguardam a sua vez de entrar.
Como na sociedade de consumo, não cabe todo mundo
.
Do lado de fora outras pessoas
esperam por oportunidade em incluir-se naquela realidade maluca que simbolizam os
212
excluídos. De tempos em tempos, uma patinadora, a consultora do supermercado, saía e
selecionava novos consumidores. Quando o crédito se esgotava o segurança encostava-
se ao consumidor e parecia colocá-lo para fora.
O diretor retrata os valores do homem moderno, que se define pelo que possui, e
não pelo que é, a necessidade de sempre querer mais. Formas inusitadas de jogos
eletrônicos e toda sorte de máquinas de simulação de viagens alucinógenas,
todas movidas a cartão de crédito, completam o esforço de preencher o vazio
desses irremediáveis solitários, ao prometer a felicidade em doses
homeopáticas, o prazer sem risco e a saúde programada do corpo. As
paisagens do mundo exterior só penetram nesse recinto quando mediadas por
máquinas de projeção e simulação. Todo contato com o exterior se dá apenas
por câmera, e-mail ou celular. Para onde quer que se vá as câmeras de
vigilância são sempre uma onipresença e tudo vêem, tudo sabem, tudo
reprimem. Ao longo do período de clausura, várias micro-histórias ameaçam
acontecer a partir de encontros aleatórios, mas nenhuma delas chega a
desenvolver-se, esfacelando-se rapidamente na apatia preponderante do
ambiente. Qualquer forma de subversão, seja sob forma de grafitagem, roubo
ou assalto a mão armada é rapidamente detectada, controlada e absorvida
pelos dispositivos de segurança. O supermercado passa a ser um universo paralelo,
uma fuga da realidade, onde os personagens “encontram a felicidade” no ato de
comprar. O filme retrata muito bem o que o ser humano precisa para ser aceito na
sociedade: a cultura dos padrões de beleza, o “sou o que possuo”. Somente quem tem
“crédito” é aceito; além de questões raciais levantadas, como o tratamento inadequado
aos idosos, o único negro presente no supermercado é o empregado e outros que são
barrados na entrada do supermercado. Outro ponto interessante do filme é a seção do
supermercado “Escolha sua dívida” que vende embalagens de “um mês”, “doze meses”,
“seis anos”, simbolizando novamente como o homem pode se tornar escravo do
consumo e ficar preso às dívidas oferecidas.
Nesta mesma toada, como exemplo característico de discussão sobre a distopia e
a mercantilização das relações humanas a partir do imaginário distópico do cinema na
sociedade de consumo destacaria também o filme "As Invasões Bárbaras (CAN,
2003), dirigido por Denys Arcand. Entre outros prêmios, ganhou o Oscar de melhor
213
filme estrangeiro em 2004, além de ter sido indicado na categoria de Melhor Roteiro
Original. “As Invasões Bárbaras” surgiu em um momento muito particular, em que as
questões ligadas às ciências, às técnicas, ao desenvolvimento e progresso e ao
conseqüente enfraquecimento da solidariedade, à exacerbação da sociedade de consumo
e desprestígio da subjetividade humana trazem muito incômodo. Trata-se de um marco
para aqueles que não conseguiram assimilar totalmente a quebra das ideologias.
O filme é, basicamente, a construção da cerimônia do adeus de um intelectual
cínico, que flertou com todas as mulheres e todos os ideais da revolução esquerdista do
século 20. À beira da morte e com dificuldades em aceitar seu passado, Rémy (Rémy
Girard) busca encontrar a paz. Para tanto recebe a ajuda de seu filho ausente Sébastien
(Stéphane Rousseau), sua ex-mulher e velhos amigos.
As Invasões Bárbaras retrata um drama pessoal para representar a desconstrução
de ideologias nas mudanças do todo. O confronto pessoal de ideologias está no
reencontro de um pai e seu filho. “Ele é um capitalista puritano e eu sou um comunista
voluptuoso”, explica o enfermo, em determinado momento. O paradoxo, se quando
ao mesmo tempo em que Rémy critica ferozmente os sistemas capitalistas e suas
representatividades, seu conforto e comodidade (o que lhe permite uma certa felicidade
pré-morte mais digna) são adquiridos porque seu filho é um homem de negócios que
domina o capitalismo e, através do poder monetário, consegue privilégios que nenhum
enfermo negaria
O filme deixa transparecer o fim de uma utopia, pois Rémy, pensador socialista
e pai de Sébastien, o jovem milionário capitalista, está convencido que a civilização
ocidental está com os seus dias contados. A certa altura Rémy se pergunta, com seus
amigos, se houve algum “ismo” em que não se engajaram, passando pelo marxismo,
leninismo, maoísmo, trotskismo, entre outros. “Só faltou o cretinismo”, lembra alguém.
Rémy, com seu temperamento performático, protagoniza as conversas mais
interessantes. Num desses diálogos, protesta com uma freira sobre a omissão do
Vaticano durante a 2ª Guerra Mundial.
Sua teoria é que os ataques bárbaros como as drogas, o terrorismo e a
democracia entre outros, declinam com as esperanças e utopias dos anos 40 e 60, mas
214
ao mesmo tempo, o filme deixa margem para pensarmos que uma outra esperança e
uma outra utopia poderá emergir em breve.
O diretor Arcand aponta 11 de setembro como o primeiro ataque bárbaro, o
primeiro a atingir o grande império. Mas o filme não é sobre isso. A história é centrada
num professor de esquerda que está morrendo de câncer. Apesar do apoio dos amigos,
tem dificuldade de enfrentar a dor e a realidade do fim. Principalmente quando
reaparece o filho, que é um yuppie que não tem boas relações com ele. Mas é com o
dinheiro deste, que conseguirá ludibriar funcionários e o próprio sistema e até mesmo
obter a cocaína que tornará a doença suportável, que Rémy poderá contar com uma
“boa-morte”.
Sébastien, filho de Rémy, é o tipo do especulador financeiro que fez fortuna e
simboliza o capitalismo triunfante e sem fronteiras que vingou logo após a queda do
Muro de Berlim. Com seu dinheiro farto, compra tudo e todos para dar conforto aos
últimos dias do pai. Inclusive uma velha amiga de infância, agora junkie, que traz
heroína para aliviar as fortes dores de Rémy.
Sébastien que em determinado momento é chamado por Rémy de “príncipe dos
bárbaros”, após uma briga com o pai, reflete sua condição de futuro órfão. Ele corre
contra o tempo para que Rémy tenha um final digno. Para isso, ele tem de subornar o
sindicato e a direção do hospital para melhorar a sua estadia e consegue a conivência da
polícia para comprar heroína para aliviar o sofrimento de seu pai, procedimento
indicado por uma amigo médico. Possibilita ainda, sua irmã se comunicar com o pai;
paga a visita de alunos que esnobaram Rémy em sua despedida da universidade por
motivos de saúde e convoca os amigos antigos para fazer-lhe companhia. O grupo de
amigos e parentes que passa os últimos dias com Rémy é formado por professores,
antigas amantes, a ex-mulher e um casal de amigos gay. Nestes encontros são
memoráveis os diálogos da geração que acreditou nas mudanças e que agora convive
com guerras preventivas em nome da paz.
Mergulhando assim na amoralidade, o filme poderia seguir um outro caminho,
porém Arcand dá espaço para o humor inteligente, os diálogos são ricos e a emoção
215
profunda em muitas cenas desse pai, que está se despedindo da vida, aflora junto a seus
amigos, seu filho, sua ex-mulher (Dorotée Berryman) e suas duas amantes favoritas.
Este é um filme de volta ao lar, de ajuste de contas, de fazer o balanço e
reencontrar os amigos. Ou seja, de coisas cotidianas que todos nós somos capazes de
entender e viver. Também é uma crítica social aos canadenses. Ficamos espantados
como o Canadá (que hoje é “pintado” como um modelo para se viver, uma ilha de
prosperidade e tranqüilidade), possa ter problemas iguais aos nossos, como corrupção,
corporativismo, hospitais lotados, tráfico de drogas etc. Internado num hospital de
corredores superlotados, ele vive o inferno da assistência pública - o que deflagra a
crítica demolidora de Arcand contra as instituições. Faz uma certeira ironia dirigida
impiedosamente contra o Estado, a polícia, a Igreja e a família, esta representada pelos
parentes do professor que se organizam para lhe dar maior conforto, que sua morte
parece inevitável.
O celular de Sébastien, lançado ao fogo nas últimas cenas do filme, é uma ilustre
cena emblemática da representação e da reconstrução de algo novo. A certeza da
sociedade hedonista e narcisista que parece envolver a todos cai por terra. É como se
conseguíssemos voltar à superfície para retomarmos o ar que faltava para respirarmos
um novo horizonte.
Para alguns críticos, “As Invasões Bárbaras” mostra que Fukuyama estava certo
ao prever o fim da história e o triunfo do capitalismo. Segundo os autores de tais textos,
o filme trataria do fim das utopias e da crise do pensamento socialista. Se é assim, os
bárbaros venceram. Para outros mais otimistas, a mensagem do filme restaura nossa fé,
se não na humanidade, ao menos no cinema.
Esse filme é continuação de "O Declínio do Império Americano” (CAN, 1986)
do mesmo diretor. Nele estão os mesmos personagens do filme anterior que mais
novos. A história gira em torno de oito amigos, a maioria deles professores
universitários de História. Enquanto falam da vida, dos amores e relacionamentos,
aproveitam para tecer comentários ácidos sobre a situação do mundo ocidental na
década de 80.
216
O filme tem a capacidade de sintetizar uma geração, um grupo ligado à
universidade, aos pensadores de esquerda que viveram os loucos anos 60, a liberação
sexual, questionamentos de ordem existencial, humana, política etc. Roteiro sólido,
diálogos cortantes, humor totalmente sem preconceitos, liberdade de linguagem e uma
reflexão intelectual séria sobre a sociedade sem resvalar no maniqueísmo ou no
pedantismo são os ingredientes presentes no “Declínio do Império Americano”.
Em 1986, Arcand fez sucesso com esse filme que defendia a idéia de que o
domínio norte-americano estava chegando ao fim, porque já dava sinais de decadência.
Não era nenhum tratado, mas quase uma comédia de costumes, acompanhando a vida
sexual e pessoal de um grupo de intelectuais canadenses, em geral de esquerda, com
uma franqueza rara para a época.
“O declínio de uma civilização é um processo tão inevitável quanto o
envelhecimento de uma pessoa.” A frase de Dominique, personagem de “O Declínio do
Império Americano”, serve de deixa para o autor, o cineasta Denys Arcand. De “O
Declínio” a “As Invasões Bárbaras”, Arcand tenta surpreender, no envelhecimento e
morte de seus personagens, representantes (nem tão dignos) de uma geração, o início do
fim de uma civilização. Arcand parte da tese defendida por Dominique, professora e
historiadora que acaba de lançar novo livro: a degenerescência das elites e a busca
desenfreada pela satisfação individual são processos recorrentes ao declínio dos grandes
impérios.
O Império Americano está presente no pão que comemos, nos filmes que
assistimos e no estilo de vida que levamos. Esse Império encontra-se, porém, em
declínio. A ruína de um Império, qualquer Império, acontece na esfera física - social,
política e econômica - e na ideológica. O declínio acontece também nas nossas relações
sociais, afetivas e sexuais. A busca pela felicidade individual, a construção ideológica
deste anseio e a impossibilidade de sua realização configuram indícios deste.
Nos anos 80 de “O Declínio”, a geração sessenta-oitista de Dominique e Rémy
sobrevive das migalhas da “revolução sexual”. A Aids é uma realidade, mas ainda é
tida, pelos próprios personagens de Arcand, como doença de homossexuais. Ex-hippies
217
e ex-marxistas, estudantes rebeldes em 68, esses se tornaram acadêmicos aburguesados,
perderam os ideais, mas não parte do charme, o suficiente para atrair os mais jovens.
Em plena vigência da “geração saúde”, as mulheres do grupo, quarentonas, malham e
falam de casos, aventuras e amor. Enquanto isso, os homens cozinham e falam de casos,
aventuras e amor. Quando se encontram, os pontos de vista se chocam, verdades
emergem e, com elas, ilusões se despedaçam em mil cacos
Em O Declínio do Império Americano, os intelectuais ainda zombam da situação
desesperançosa em que se encontra o mundo, Na narrativa deparamo-nos com uma fina
ironia que desdenha da capacidade do sistema capitalista em degradar a civilização
ocidental, então a discussão sobre sexualidade masculina e feminina e as relações
humanas é que tem o maior destaque. Alguns aspectos da vida social são apontados
como sinais do tal declínio do Império a busca pela felicidade individual, a
construção ideológica deste anseio e a impossibilidade de sua realização configuram
seus indícios.
Em As Invasões Bárbaras, o diretor rendeu-se à situação caótica em que nos
encontramos, de invidualismos exacerbados, relações pessoais e sociais pouco
contundentes e estigmatizadas por contratos estabelecidos por puro jogo de interesses,
cedendo às relações contratualistas e normatizantes entre os indivíduos. A crítica é ácida
e a ironia é refinada. Mas, mesmo em meio ao aparente caos proporcionado pelas
Invasões Bárbaras, no final saímos mais humanizados e com uma chama de esperança
acesa
Os dois filmes ilustram não ser mais possível pensarmos em campos separados e
fazermos louvor à fragmentação do conhecimento. Uma nova utopia que tende a pensar
o cidadão planetário, com uma visão holística e conectado com o mundo encontra-se em
gestação. Não se trata da paz perpétua, mas de um novo caminho a trilhar na busca pelo
novo encantamento do mundo. No fim das contas, em meio à decadência de valores e
ideais, todos procuram o sentido da existência, a utopia possível. As respostas, pelo
jeito, vão continuar no ar.
Existem outros inúmeros exemplos de filmes que podem ser utilizados como
referências para ilustrar essa análise distópica da realidade da sociedade de consumo.
218
“Em Pequena Miss Sunshine” (EUA, 2006) de Jonathan Dayton e Valerie Faris, a
narrativa do filme diz respeito à história de uma família disfuncional que, a fim de levar
a filha mais nova para concorrer em um concurso de beleza, se obrigada a enfrentar
dois dias de viagem dentro de uma Kombi. No entanto, mais do que uma história
interessante o filme é uma reflexão sobre os anseios e ansiedades do homem
contemporâneo na cena pós-moderna dentro da sociedade de consumo. Os indivíduos,
privados de sua liberdade de ser antes de serem aceitos, perdem sua verdadeira
identidade e tentam construí-la através do consumo, porém este objetivo nunca é
alcançado. Frustrados, resta aos consumidores metamorfosear o próprio corpo em
objeto. Daí o culto à beleza esta também padronizada - e o consumo de alterações
físicas (cirurgias plásticas, próteses, etc.) na tentativa vã de preencher o vazio
consumista e de satisfazer à necessidade anterior de pertencimento inerente a cada ser
humano.
“O Show de Truman” (EUA, 1998) margem à inúmeras abordagens, suscita
muitas perguntas, enfim, nos faz pensar. Trata-se da estória sobre a história de um
homem chamado Truman Burbank. Sua vida foi filmada continuamente, desde que
nasceu, sendo transmitida para o mundo, sem interrupções, como a primeira experiência
de um “show real”, pois Truman desconhece ser um personagem. Truman é casado,
trabalha com seguros, possui um amigo de infância, que sempre chega em sua casa com
cervejas. Todos os dias cumprimenta seus vizinhos da mesma forma; vai ao jornaleiro
comprar revistas para sua mulher, encontra dois senhores que sempre prometem
procurá-lo na seguradora. Tudo acontece num grande estúdio/cenário: as ruas, as casas,
os automóveis, o mar, o céu, a lua, o anoitecer, a chuva... Tudo se passa dentro de uma
enorme cúpula, de uma redoma, mas Truman não conhece esses limites: ele nunca
viajou, nunca saiu de sua cidade, nunca ultrapassou suas margens. Até que ponto somos
verdadeiramente livres numa sociedade de consumo? Não estaríamos sendo o tempo
todo monitorados e manipulados enquanto potenciais consumidores? São estas questões
entre outras proporcionadas por este filme aparentemente despretensioso.
Algumas obras do cineasta brasileiro Jorge Furtado também se apóiam nesta
crítica à sociedade de consumo. No filme “O Homem que copiava” (BRA, 2002) o ator
Lázaro Ramos faz o papel de André, um moleque que “opera máquina de fotocópia”,
vulgo o “rapaz da xérox”. Em sua rotina entre o trabalho e sua casa, onde espiona os
219
vizinhos e, principalmente, a personagem da atriz Leandra Leal, Silvia, ele pensa numa
forma de se aproximar da moça, mas que isso é possível com dinheiro. O roteiro
propõe a partir de então reflexão sobre o meio social, comportamental e político. o
curta “Ilha das Flores” (BRA, 1989) se tornou referência nacional quando se quer fazer
a crítica ao consumismo exacerbado na sociedade contemporânea. A miséria é o tópico
principal deste curta. "Ilha das Flores" coloca em pauta a discussão acerca da pobreza,
da fome e da exclusão social. A exposição didática das idéias, de forma encadeada,
amarrada às informações, na medida em que elas aparecem na narração lida e segura
do ator Paulo José constituem o eixo em torno do qual acabam gravitando os
espectadores. O ritmo alucinado utilizado para que fiquemos sabendo sobre os tomates
do Sr. Suzuki, o perfume de dona Anete, o surgimento do dinheiro e as peculiaridades
dos seres humanos (o polegar opositor e o tele-encéfalo altamente desenvolvido), nos dá
subsídios mais do que suficientes para refletir sobre toda a informação. Depois dos
produtos passarem por todo o processo de apropriação e descarte, as sobras vão parar
num lixão e serão o alimento para seres humanos que estão fora desse processo,
excluídos da lógica do sistema e que sobrevivem no desamparo mais completo.
Por uma linha um pouco diferente, no sentido de retratar o absurdo de sentido da
existência trazido pela sociedade de consumo os filmes Um dia de fúria” e “Clube da
Luta” importunam e fazem refletir sobre a ineficiência deste sistema. No filme Um
Dia de Fúria” (EUA, 1993), Michael Douglas interpreta um cidadão comum,
consumido pelos excessos da modernidade, alucinado pela correria do dia a dia, que
chega a seu limite e explode toda a sua incontida fúria a partir de seu stress.
O filme
começa em um enorme engarrafamento numa avenida de Los Angeles (EUA). Suando
em bicas, um irritado anônimo abandona o carro para caminhar um pouco e espairecer.
Mas o personagem de Michael Douglas depara-se com circunstâncias pouco favoráveis
ao seu humor e dia difícil. A partir de então se nutre de uma fúria e desejo de destruir
todas as “facilidades” da vida moderna que não o está levando para lugar algum.
Quantos de nós não pensamos em “chutar o balde” como o personagem de Michael
Douglas? em “Clube da Luta” (EUA, 1999),
a
o contrário do que muitos pensam não
é um filme sobre banalização da violência, mas sim sobre ideologia, com uma crítica
bem ácida sobre a sociedade moderna. Clube da Luta mostra o questionamento do
homem na sociedade. "Fomos criados pela televisão para acreditar que um dia
seríamos ricos, estrelas de cinema e do rock. Mas não seremos. E estamos aos poucos
220
aprendendo isso”. Este é o argumento do personagem Tyler Durden (Brad Pitt). Vemos
claramente o inconformismo, a angústia e o medo do homem ao “cair na real”, e
perceber que sua vida é muito mais do que as regras que ele e a sociedade estabeleceram
para viver. É quando se percebe que (...) você não é o dinheiro que tem, nem o carro
que dirige...”, e nota-se que o consumismo é algo totalmente supérfluo. E é que está
uma das essências do filme: o questionamento das coisas supérfluas em nossas vidas.
“A propaganda nos faz correr atrás de coisas, trabalhos que odiamos, para acabar
comprando o que não precisamos”. São essas e outras características que se devem
enxergar em “Clube da Luta”.
Tudo que fora inventado para dar certo, as invenções, tecnologia, ciência, bens
materiais, etc. acabam por se transformar em verdadeiros martírios para a maioria, daí o
surgimento da distopia. Em geral, a distopia é causada em consequência da ação ou da
falta de acção humana, de um mau comportamento ou da estupidez. Por que então a
sociedade de consumo é uma anti-utopia? Primeiro, é preciso salientar que todas as
pessoas consomem, mas isso não significa que elas sejam consumidoras. Não existe
vida social sem consumo de algum tipo. Os objetos, como cultura material, são parte
integrante do existir de qualquer sociedade. A cultura material cria um ambiente
artifical na qual nós existimos e nós vivemos, isto é, o mundo material está inserido
dentro de um universo cultural. Nos ajuda na reprodução física, nos ajuda na reprodução
social e nos ajuda no processo de construção de nossa objetividade/subjetividade. O
consumo só é percebido quando se torna excessivo. Quando o consumo é cotidiano, não
percebemos que estamos consumindo. O ser consumista é uma categoria acusatória. A
grande questão é: como o consumismo se reproduziu socialmente? Não existem
necessidades básicas universais, ou seja, nenhuma necessidade humana é genérica, tudo
é feito debaixo de uma determinada lógica cultural. Ocorre que, com o hedonismo
contemporâneo, há uma mudança na subjetividade do homem, principalmente o homem
ocidental. No mundo tradicional o prazer estava ancorado nos sentidos, enquanto no
mundo moderno o prazer está ancorado nas emoções. O que promove essa lógica? Isso
se porque as grandes decisões sobre produção e consumo são deixadas nas mãos de
exploradores, isto é, nas economias de mercado ou de uma elite técnico-burocrática de
planejadores com objetivos claros que tem como destaque a instauração de uma
sociedade de consumo e de uma população consumista e emotiva. Essa opção conduz a
221
uma catástrofe ecológica sem precedentes, que tem na mudança do clima a expressão
mais dramática.
Nada como um imaginário catastrófico para mostrar o apocalipse. Os filmes
catástrofes são impactantes neste sentido. Como imaginar o que virá caso não tomemos
nenhuma atitude da área ambiental? O filme “O Dia Depois de Amanhã” (EUA, 2004),
direção de Roland Emmerich e roteiro de Jeffrey Nachmanoff e Roland Emmerich é
uma megatragédia para a vida sobre o planeta Terra. Assim como o filme “The Day
After” da década de 80 retratava como seria o dia seguinte a uma guerra nuclear, o filme
“O Dia Depois de Amanhã” mostra como será o mundo após a catástrofe ambiental.
Será que um filme consegue levar as pessoas a agirem e pensarem a respeito do caos
climático? A OMS (Organização Mundial da Saúde) estima que 160 mil pessoas estão
morrendo por causa do aquecimento global, número que poderia dobrar até 2020 -
contabilizando-se catástrofes naturais e doenças relacionadas a elas. O cinema não
precisa ter tamanha ambição, mas uma obra de ficção serve para alertar para um fato: o
aquecimento global precisa de nossa atenção. Já há pessoas morrendo e o mundo foi,
em certos aspectos, permanentemente alterado. Mas não é tarde para mudar esse quadro
e evitar boa parte dos impactos previstos sobre as futuras gerações. Embora o filme de
catástrofe ignore as leis da física e é repleto de referências científicas equivocadas,
todos acreditam que um filme é uma forma positiva de chamar a atenção para o
problema das mudanças climáticas.
“O Dia Depois de Amanhã” é um filme de ação espetacular que mostra a
interrupção da corrente do Golfo e, como conseqüência, o hemisfério norte entra em
uma nova era glacial. Os cientistas concordam que a mudança climática pode
enfraquecer a circulação térmica, o fenômeno que impulsiona a corrente do Golfo, mas
não esperam que ela cause uma interrupção completa como no filme. O fato é que
enquanto uma explicação científica sobre mudanças climáticas levaria muito tempo para
ser dada, o filme transmite a mensagem em poucas linhas de diálogo. Devido ao
aquecimento global causado pelo uso indiscriminado de poluentes, as geleiras de água
doce começam a derreter causando desordem nas correntes marítimas, alterando a
temperatura do mar, e, por conseguinte, modificando bruscamente o clima em todo o
planeta. Neve na Índia, chuva de imensas pedras de granito na China, tornados que
destroem quase toda Los Angeles. O mundo é tomado por alterações climáticas que
222
podem vir a destruí-lo. No filme, um revival da Era Glacial dos primórdios está prestes
a acontecer em nossos dias. E o que pode o homem e todas as suas máquinas contra a
força ainda mais poderosa da natureza?
A acusação é que a humanidade é vítima de si mesma, de seu progresso
desordenado que causou danos desmedidos à natureza, e de repente as conseqüências
estão diante de nossos olhos, escancaradas em ondas gigantes que destroem Nova York
e cercam a Estátua da Liberdade. O foco do filme não é dar atenção às teorias dos
cientistas nem às projeções, previsões e estatísticas, mas focar as imagens. Uma das
ironias do filme é ver os norte-americanos afoitos tentando entrar no México, cruzando
a fronteira em massa e de forma ilegal, quando a evacuação do Norte é aconselhada pelo
Governo dos EUA. Sim, são os países do chamado Terceiro Mundo, de clima
ensolarado e quente, que acabam por abrigar os fugitivos desta catástrofe climática e
ajudam a salvar a humanidade. Talvez aqui esteja a parte mais crítica e reflexiva do
filme. No entanto, fica claro que o objetivo é fazer chocar com imagens alucinantes,
uma vez que os discursos, debates, textos não parecem conscientizar plenamente tanto
ricos como pobres para a catástrofe ambiental que se avizinha.
que a sociedade contemporânea apresenta como uma de suas características
principais o poder crescentemente difundido do papel da imagem, uma das
possibilidades de se pensar em horizontes utópicos e pensamento crítico sobre a
realidade que nos cerca são os filmes como um instrumento para decifrar, interpretar e
criticar as imagens que saturam nossa cultura. As obras cinematográficas reúnem
diversos meios expressivos como a dança, a pintura, a música, etc., abrindo atalhos para
outras formas artísticas e para outros campos do conhecimento. Por isso creio que a
experiência estética do cinema deve ser expandida para o maior número possível de
pessoas como recurso didático, pedagógico, vivencial, etc. Para recuperar a utopia
perdida, não é o imaginário do cinema o único caminho, mas dado o poder tecnológico
da contemporaneidade, trata-se de um atalho de considerável importância. Por exemplo,
no filme Forrest Gump (EUA, 1994) vemos o herói apertando a mão do presidente
Kennedy. Hoje, pode-se fabricar uma impressão de realidade com meios ilusórios. Não
as crianças, mas também os cidadãos precisam de uma educação aprofundada para
serem capazes de ter a reflexão crítica.
223
Procurei utilizar o imaginário do cinema para ilustrar com exemplos de filmes
que foquem na crítica da sociedade de consumo. Por que considero distopias? Primeiro,
pelo fato de serem ficções, histórias, narrativas, portanto não podem ser generalizadas
nem apropriadas para todas as culturas, classes, regiões e, em segundo lugar, por
mostrarem contextos críticos que muitos interpretariam como irrealistas, mas na minha
concepção são situações não tão inverossímeis, não se pode afirmar que esta é a
sociedade contemporânea, ela se encaminha para estas situações e disposições e é aí que
se encontra a importância desses filmes, sejam comercais ou alternativos, eles nos
propiciam vivenciar uma experiência estética que causa incômodo, nos faz refletir de
algum modo e nos faz pensar que aos poucos a sociedade é contaminada por esses tipos
de situação e modelos de comportamento. Importuna a nossa subjetividade, mexe com
nossos valores, faz repensar a moral e consequentemente o significado da ética. Essa é a
maior riqueza do imaginário distópico do cinema, mostrar a desconstrução, o
desencantamento, não para nos deixar resignados, mas para nos deixar incomodados,
com a semente da utopia pronta a germinar.
224
CONSIDERAÇÕES FINAIS
"...A meta da mudança radical hoje é a emergência de seres humanos física e
mentalmente incapazes de inventar outro Auschuwitz. A objeção a esta meta grandiosa
que é feita, às vezes, a saber, a objeção segundo a qual esta meta é incompatível com a
natureza humana testemunha unicamente uma coisa. Testemunha o grau ao qual esta
objeção sucumbiu a uma ideologia conformista. Esta ideologia apresenta o continuum
histórico de repressão e agressão como uma lei da natureza. Contra esta ideologia,
insisto que não existe algo como a natureza humana imutável. Além e acima do nível
animal, os seres humanos são maleáveis, corpo e mente, até mesmo em sua própria
estrutura pulsional. Homens e mulheres podem ser computadorizados, e transformados
em robôs, sim- mas eles também podem se recusar a isso.”
Hebert Marcuse
O pensamento utópico não despreza ou destrói reformas reais. Muito pelo
contrário, essas dependem do sonho utópico, por isso o pensamento utópico nada mais
faz senão levar ao aperfeiçoamento das reformas. Reformas realistas ou mudanças
sociais coerentes coabitam com o utopismo e são alimentadas por ele. O utopismo não
pode ser confundido com o racismo ou com o nacionalismo. A história demonstra
claramente que a comunidade humana tem mais motivos para temer os defensores de
uma agenda étnica, religiosa ou nacionalista do que homens com projetos utópicos. Das
derrotas surgem idéias, pessoas transformadas e novos movimentos. Um mundo sem
anseios utópicos é um mundo desesperado como uma nau a deriva.
Uma utopia realista no final do século XX e início do século XXI é a utopia
ecológica e democrática. É realista pelo fato de que há uma contradição explícita entre o
ecossistema do planeta Terra, que é finito, e a acumulação de capital que é
tendencialmente infinita; mas é também utópica devido a sua realização estar atrelada à
transformação global, tanto dos modos de produção como também do conhecimento
científico, dos quadros de vida, das formas de sociabilidade, além de uma nova relação
paradigmática com a natureza. Trata-se de uma utopia democrática porque exige a
repolitização da realidade e uma nova concepção de cidadania individual e coletiva.
Além de democrática, também pode ser considerada uma utopia caótica, pois não tem
um sujeito histórico privilegiado.
225
O que chegou ao fim não é a esperança, mas a certeza do progresso histórico e a
confiança no futuro. É uma ilusão morta dizer que hoje é melhor do que ontem e
amanhã será melhor do que hoje”. A incerteza invadiu o futuro. Se pensarmos qualquer
tipo de progresso hoje ele não está mais atrelado a uma “lei” da história, e sim a uma
consciência e a uma vontade humanas, e mesmo assim não poderia ser considerada uma
situação irreversível. Devido ao fracasso de um modelo de socialismo e a pouca
representatividade humana do liberalismo econômico no s-1989, uma forte
tendência de uma grande parte do mundo, sobretudo quando o presente é angustiante, de
retornar às raízes, ao passado, à esperança religiosa, de se fechar na comunidade étnica
ou nacional. Segundo Morin, essa é uma resistência espontânea contra a prosa do
cotidiano, contra a banalização da vida. São as tentativas de resistir à ofensiva da prosa
generalizada própria da nossa civilização, de subtrair-se à quantificação de todas as
coisas e à mecanização das condições de vida. Aos poucos, por todos os lados, a
qualidade começa a resistir à quantidade.
Vivemos prosaicamente quando fazemos aquilo que somos obrigados a fazer
para sobreviver. Viver verdadeiramente é viver na intensidade da paixão, do amor, do
jogo, da comunidade. Propõe-se substituir a idéia de desenvolvimento, que se confia ao
progresso tecno-econômico para assegurar o progresso humano, pela idéia de uma
política de civilização, que nos conduza a reformar nossa própria civilização e a
reconsiderar os princípios que a comandam. A idéia de que um outro caminho é
possível suscitaria uma ressurreição da esperança. Não mais a antiga esperança, fundada
sobre a certeza do progresso, mas uma esperança consciente da aposta que ele
comporta.
O problema hoje é como ligar o pensamento utópico com a política cotidiana.
Em uma condição concreta para negar ou um contexto político específico, os impulsos
utópicos parecem vagos e sem substância. Ligar uma paixão utópica a uma política
prática é uma arte e uma necessidade. A utopia morre no empobrecimento dos desejos.
Os desejos utópicos precisam ser situados em contraposição a algo. Sem um impulso
utópico, a política se torna amorfa.
Pensar a utopia da cidadania planetária é pensar uma outra globalização. A
globalização que está, em seu aspecto mais tenebroso, reduz o mundo a um mercado,
226
na qual a condição de cidadão importa menos que a de consumidor. Tudo se transforma
em mercadoria: idéias, projetos, relações, objetos etc. O valor de troca de um produto
adquire mais importância que seu valor de uso. O homem desvaloriza-se em seu
conteúdo e condição. Tudo gira em torno do dinheiro que deve circular livremente no
mercado. Tudo é mercantilizado e reificado. O supérfluo passa a ser necessário e cria-
se a apoteose do consumo, alimentada por uma poderosa indústria comunicativa
publicitária. O consumidor é induzido à carência do que lhe é imposto como
supostamente necessário e indispensável.
Paradoxalmente, a globalização criou dois mundos distintos e ajudou a alimentar
ainda mais o imaginário utópico e distópico. Por um lado a globalização trouxe uma
perigosa desintegração do social por meio do aumento da miséria, desemprego, fome,
corrupção e violência, alimentando o imaginário distópico e relegando os pensadores
utópicos à irrelevância. Entretanto, a riqueza, as descobertas inimagináveis um
século, além de uma variedade de prazeres comerciais e culturais, trouxeram novos
parâmetros para se pensar a utopia, deixando para trás utopias tradicionais que ficaram
renegadas única e exclusivamente à história.
O desafio, agora, é procurar saber como quebrar a distância que existe entre
projetos sociais e dimensão subjetiva, causas coletivas e amorosidade pessoal,
transformação social e valores éticos. Como combater os vícios egocêntricos que
moldam em nós, o homem e a mulher velhos e, esvaziados de nós mesmos, plenos de
amor; como criar relações sociais e estruturas sociais solidárias e cuja emulação tenha a
sua fonte em nossa própria subjetividade. Creio que esse desafio possa ser gradualmente
vencido a partir de uma reforma constante do pensamento que nos faça religar a nossa
vida com o cosmos. Trata-se de uma visão holística que nasce da emergência do
fenômeno ecológico, mas também se alastra para o campo social e filosófico. Começa a
haver uma percepção dos limites da razão e um resgate da espiritualidade e a busca por
algo mais profundo para o sentido humano que o consumismo não consegue suprir.
Essa nova cidadania planetária procura o resgate da subjetividade humana, resgate de
valores onde o trabalho e o pragmatismo ceda lugar à contemplação, à reflexão, à
sabedoria, ao aprofundamento dos valores, além de propor um restabelecimento de
vínculos humanos que estão se perdendo com a aceleração da tecnologia. É preciso
227
contextualizar e não apenas globalizar. Conceber não unicamente as partes, mas o todo.
Esta é a razão pela qual somos cada vez mais incapazes de pensar o planeta.
Tomei como base para o entendimento da utopia na contemporaneidade o
pensamento de Edgar Morin que me parece muito mais plausível para compreensão
desse nosso contexto histórico e o espaço do horizonte utópico. Morin atreve-se, citando
Ernesto Sabato, a pegar a contramão e gritar: “Precisamos de mundiólogos”. Sua obra
reconhece o valor da religião, da arte, dos mitos, pois não humanidade sem
imaginário. O sonho também move o homem. A utopia não pode tornar-se
“reacionária”, ou seja, fechar-se à sua própria mudança. É essa também a crítica que é
possível fazer ao marxismo que este se tornou uma utopia reacionária. Apesar da
importância das proposições marxistas para a compreensão da sociedade
contemporânea, sob a dinâmica e estrutura lógica do sistema capitalista, Marx não
conseguiu visualizar a articulação entre a exploração do trabalho e a destruição da
natureza, e conseqüentemente, as contradições que ambas produzem. No entanto, a
vontade de utopia é a melhor maneira de honrar a brilhante tradição do legado marxista.
A vida é um equilíbrio de antagonismos. Pensar a utopia perfeita sem levar em conta
esses antagonismos corre o risco de descambar para o totalitarismo e reacionarismo. A
nossa civilização, tanto com diretriz capitalista quanto socialista, se relaciona com
violência com a natureza. Faz-se necessário a criação de um outro paradigma de
civilização em consonância com a natureza, que a contemple e estabeleça uma sinergia
com ela.
O futuro dos povos e o imaginário dos homens cobra projeções que revelam no
mínimo preocupações legítimas com o bem-estar das gerações do amanhã. Sofre-se no
presente a antecipação do devir, na qual a humanidade experimenta hoje a decadência
de um tipo de idéia de futuro. Cabe construir uma nova concepção de porvir passível de
acolher uma confluência de sonhos. O amanhã é um rio que corre desde sempre na
mente de cada ser banhado pelo sol da igualdade.
Pensar o futuro e a utopia a partir da complexidade foi a tônica deste trabalho. A
complexidade negocia com a incerteza, não para exorcizá-la, o que é impossível, mas na
perspectiva do estabelecimento de pontes provisórias entre o ser-que-busca e o
desconhecido. Enquanto o pensamento simplificador costuma ver na crise uma anomia,
228
a perspectiva complexa, holista, encontra na crise um fator de alimentação. A evolução
nutre-se da crise, tanto quanto a crise alimenta-se de evolução e de regressão. É por isso
que falar de utopia implica necessariamente falar sobre a distopia não para situá-las em
posições diametralmente opostas, mas para ressaltar a completude de ambas. Não existe
horizonte ou imaginação utópica sem a perspectiva dos ambientes distópicos, afinal é
deles que a utopia se retroalimenta.
Passada a época das utopias racionalistas, que prometiam o paraíso, mergulhadas
no irracionalismo metafísico e na arrogância de uma cientificidade insustentável,
espalhou-se que não havia mais grandes intelectuais para estudar a complexidade da
vida. O intelectual deve ser um problematizador, facilitador e construtor da
possibilidade do impossível. Intelectual é quem pensa o hoje com vistas a um amanhã
de compreensão. O melhor é um lugar que não existe, embora deva sempre ser buscado.
Para Morin a construção do presente passa pela descoberta de um novo amanhã e pela
ruptura com o projeto nostálgico de recuperação de um passado fracassado. Todo
intelectual permanece um sonhador do social.
Estamos num planeta de muitas comunicações e pouca compreensão. um
problema fundamental no mundo da comunicação: não basta multiplicar as formas de
comunicação, também é preciso a compreensão. A ilusão do progresso técnico,
mecânico, industrial que levam consequentemente ao progresso humano acabou. A idéia
de um futuro ideal e perfeito também se tornou um engodo. Hoje se tem mais
consciência de que não há o futuro feliz. Há a incerteza sobre o futuro.
O maior foco de resistência se faz contra a mercantilização da vida. A crítica à
homogeneização da dominação dos problemas econômicos e a crítica à idéia de que o
mundo não pode ser considerado como uma mercadoria. As idéias do socialismo de
base comunitária e emancipação são princípios fundamentais que os seres humanos
têm de si mesmos. Hoje, também essa aspiração, o que se vê nas idéias de
solidariedade planetária, nas correntes de vanguarda como Greenpeace e outros.
No planeta, podemos pensar um novo tipo de sociedade (sociedade-mundo).
Existem todas as possibilidades organizativas de uma sociedade-mundo. Significa que
não haveria mais a possibilidade de guerra, de luta, de destruição, de dominação e
229
opressão. O que falta é evidente: a consciência ética e política. Elas necessitam de um
sentido que pode se chamar de pertencer. Precisam deste fator de comunhão que existe
na palavra Pátria. Este é o sentido de pertencer à mesma comunidade humana, à mesma
diversidade. O sentido de unidade humana e comunidade de destino, porque todos os
problemas de vida e de morte sobressaem agora. Temos necessidade desse sentido e este
sentido aponta para o desenvolvimento dos sentidos ético e político e da reforma
espistemológica, em essência uma reforma do pensamento.
Na vida cotidiana, a comunidade é bloqueada, atrofiada, desviada daí o
sucesso da comunicação imaginária dos filmes e dos romances. Há uma assimilação do
espectador em compreensão. Ele pode abandonar facilmente seu egocentrismo e
etnocentrismo no imaginário: então ele se interessará verdadeiramente pelo outro. O
diálogo fecundo é o diálogo no qual o estranho torna-se um outro eu, em que eu me
torno o estrangeiro para mim mesmo processo múltiplo e contraditório que compõe a
dialética da comunicação com o outro, a qual não é possível sem a ênfase de uma
comunicação de si para si. A imagem do vídeo e do cinema permite essa forma de
dialética de uma maneira vertiginosa.
A partir da segunda metade do século XX começaram a aflorar os primeiros
vestígios de uma consciência planetária, fruto da eminência da destruição total do
planeta ocasionada pela ameaça nuclear e pelos desastres ecológicos. Por outro lado,
também uma maior conscientização sobre a unidade histórica do gênero humano e sobre
a unidade física do planeta. então o início de uma mentalidade cosmopolita ainda
incipiente. Essa tomada de consciência do nosso destino planetário e da agonia da Terra
pode gerar uma transformação global dando seqüência ao processo de humanização que
consiste no pleno desenvolvimento das nossas potencialidades psíquicas, espirituais,
éticas e sociais. Trata-se de duas tarefas complementares: conservação e revolução,
resistir em busca de um autêntico progredir, não no sentido de um aumento do bem-
estar material ou como percurso linear, mas no sentido de um desenvolvimento das
autonomias individuais e crescimento das participações comunitárias e planetárias.
A abordagem de Morin nos permite compreender a época atual como a época da
complexidade cuja característica marcante é a possibilidade de reconhecimento da
plenitude humana, pois as condições necessárias para acolher a riqueza do real, a
230
natureza dialógica entre o homem e o mundo e o pluralismo das interpretações como
expressão de maturidade. No horizonte da complexidade os grupos e os povos podem
realmente descobrir as raízes da convivência, as interdependências do seu futuro, os
desafios do futuro comum. A ética planetária suscita e requer a superação na busca por
uma comunidade mundial supranacional, cujo sujeito, segundo as indicações da própria
evolução da espécie, seja a humanidade. Esta humanidade precisa compreender-se como
parte de um todo complexo e inter-relacionado em que o homem é apenas um fragmento
deste todo, parte operante que vai de encontro com outros povos e com outras culturas.
Neste sentido, a perspectiva ecológica pode ser vista como um novo paradigma
ético, como um novo paradigma para a política e para a economia. A economia
capitalista e industrial do Ocidente tornou-se referência paradigmática para a
organização das relações sociais e internacionais. Isso causou um profundo
desequilíbrio não só econômico, mas espiritual, cultural e, sobretudo, ecológico em todo
o planeta. Aproximamo-nos rapidamente de um colapso, daí a necessidade da
instauração de uma revolução cultural que realiza a transição do paradigma econômico
ao paradigma ecológico e que comporte a redefinição da ética, da política e da própria
economia. Uma nova sabedoria que restabeleça os vínculos afetivos e espirituais entre
homem e natureza, atrelada a uma nova política que construa um estado direito que seja
concomitantemente social e ecológico. É necessário focalizar qual é no âmbito dos
diversos fatores de tal transformação, o papel específico de uma macroética política da
humanidade. Uma nova consciência política da humanidade requer um nexo
indissociável entre a própria responsabilidade, a ação e o pensamento, ou seja, trata-se
de uma organização do bem comum na co-responsabilidade de todos. Sem a
solidariedade na responsabilidade pelos outros, não é imaginável nenhuma reviravolta
abrangente no acontecer histórica da humanidade.
A transformação da civilização para superar a crise tornou-se um imperativo que
tem como carência o estabelecimento de uma ética global embasada numa consciência
planetária da humanidade. Faz-se urgente uma maturidade ética da consciência coletiva.
A condição histórica presente tem uma grande perspectiva utópica. Ela exige uma nova
postura ética que de encontro à construção de uma ética mundial dos povos. Superar
o pensamento único é tarefa imprescindível rumo a esta elaboração. Os seres humanos
231
são hoje chamados a assumir a co-responsabilidade de seu futuro por meio de uma
formulação ética vinculativa e democrática para todos.
Frente à agonia planetária, Edgar Morin aponta para a necessidade de
assumirmos a incerteza perante o futuro e criar a responsabilidade para interferir nele,
mas sem a falsa ilusão de que poderíamos determiná-lo. O homem criador da tecnologia
tem a capacidade de por em risco a vida do homem no planeta, mas também tem a
capacidade de contribuir para salvá-la e preservá-la. Para enfrentar as incertezas do
futuro e dosar excessos racionalistas precisamos imaginar outros níveis de realidade, um
universo mitológico, uma utopia.
A articulação entre mito e ciência ou entre arte e ciência é, em boa medida, a
necessidade básica para enfrentar a incerteza. Na construção da Terra-Pátria, o processo
civilizatório poderia ser fundado numa rede de irmãos que se unem para selar um pacto
social que tenha por objetivo enfrentar o desamparo diante de um futuro incerto e que se
estabeleça um compromisso para com o devir humano. Que cada um faça uma
micropolítica que tome a humanidade como fim último e abra caminho para o laço
social solidário.
A Carta da Terra
33
é o documento utópico do novo milênio. É um novo
paradigma de relação com a natureza que segue valores e princípios para um futuro
sustentável. A Carta da Terra é uma declaração de princípios fundamentais para a
construção de uma sociedade global no século XXI, que seja justa, sustentável e
pacífica. São princípios que conectam a espiritualidade com a ética numa visão holística
e integradora do mundo. O documento procura inspirar em todos os povos um novo
sentido de interdependência global e de responsabilidade compartilhada pelo bem-estar
da família humana e do mundo em geral. É uma expressão de esperança e um chamado
33
Qual é o histórico da Carta da Terra?
Em 1987, a Comissão Mundial das Nações Unidas para o Meio Ambiente e desenvolvimento fez um
chamado para a criação de uma nova carta que estabelecesse os princípios fundamentais para o
desenvolvimento sustentável. A redação da Carta da Terra fez parte dos assuntos não-concluídos da
Cúpula da Terra no Rio em 1992 e, em 1994, Maurice Strong, Secretário Geral da Cúpula da Terra e
Presidente do Conselho da Terra e Mikhail Gorbachev, Presidente da Cruz Verde Internacional, lançaram
uma nova Iniciativa da Carta da Terra com o apoio do Governo da Holanda. A Comissão da Carta da
Terra foi formada em 1997 para supervisionar o projeto e estabeleceu-se a Secretaria da Carta da Terra no
Conselho da Terra na Costa Rica.
232
a contribuir para a criação de uma sociedade global num contexto crítico na História.
Ela é o resultado de uma série de debates interculturais sobre objetivos comuns e
valores compartilhados, realizados em todo o mundo por mais de uma década. Seu
resultado é um tratado dos povos que estabelece importante expressão das esperanças e
aspirações da sociedade civil global emergente. Quando uma civilização entra em crise
é no âmbito da espiritualidade que se busca as novas utopias, os novos sonhos e que se
busca responder a questões como o sentido da vida e qual futuro podemos moldar.
Ultrapassaram-se os limites, quebraram-se as barreiras e a Terra entrou numa
nova fase. Teremos que fazer uma revolução se quisermos sobreviver? A humanidade
está diante de uma decisão que ela deve tomar: ou formar uma aliança global ou arriscar
a nossa própria sobrevivência. Qual é o nosso lugar no conjunto dos seres? Quais são os
desafios que essa nova situação nos coloca?o ser humano pode ser ético e cabe a ele
decidir se quer viver e não morrer.
Os caminhos espirituais são múltiplos, pois a espiritualidade compreende um
conjunto de valores, visões, princípios, que orientam a nossa vida cotidiana. São valores
intangíveis, não são valores materiais. Espiritualidade não é uma doutrina, é quando
passamos da mente para o coração. É uma vivência profunda que se traduz num ethos,
num comportamento ou numa atitude. É algo que está inerente no ser humano.
Basicamente são três as dimensões do ser humano: a dimensão da exterioridade (corpo);
a dimensão da intencionalidade (universo psíquico) e a dimensão da profundidade (que
emerge geralmente em momentos críticos). A crise tem a função de nos purificar, de nos
amadurecer. Espírito não é simplesmente sinônimo de alma, é o momento da nossa
consciência, que nós nos sentimos parte de um todo. O amor, a compreensão, a
amizade, são frutos da nossa profundidade. Não o ser humano é portador de
espiritualidade. O espírito antes de estar em nós está no Universo. Por razões
matemáticas, temos que admitir que o Universo é espiritual. Essa é uma compreensão
que vem da física quântica onde tudo está relacionado com tudo. Nesse sentido, o ser
humano é espiritual porque se relaciona com todas as coisas. Nós não existimos, nós
coexistimos; nós não vivemos, nós convivemos. Portanto, entre o espírito de uma pedra
e o espírito humano não há uma diferença de princípios, há uma diferença de grau. O ser
humano é aquele que pode dialogar com o espírito. Esse é dinamismo, expansão,
emergência, criação de ordem e organização. Em suma, espírito é vida, o que se opõe ao
233
espírito não é a matéria, mas a morte. Morte é tudo que aquilo que impede a vida. Com
isso, uma crítica coerente à sociedade de consumo é que ela implementou uma cultura
que fez por cobrir de cinzas a espiritualidade, daí a necessidade urgente de
promovermos a religação dos saberes, a conexão da filosofia com a ciência e da
espiritualidade com a racionalidade para pensarmos a utopia neste milênio.
Qualquer pessoa pode ser um cidadão planetário ao tomar responsabilidade por
sua família, pelo meio ambiente e trabalhar para fazer a coisa certa em cada área da sua
vida. Fazemos parte de uma grande família e habitamos o mesmo espaço comum. Criar
uma cultura de paz e não-violência é imprescindível para a construção dessa nova
utopia.
A noção de cidadania planetária surge a partir de uma concepção onde se afirma
que, independente da nacionalidade, habitamos o mesmo planeta ao qual devemos
cuidar e compartilharmos princípios, valores, atitudes e comportamentos comuns,
próprios de uma única comunidade, a comunidade dos seres humanos. É uma utopia
necessária para nós hoje, pois se trata de repensar os preceitos de uma nova ética
planetária, realmente sustentável para a casa comum dos seres humanos. E de nada
adianta pensarmos na ecologia e no meio ambiente se não pensarmos também no
homem enquanto ser ecológico e com pertença ao meio ambiente. Evidentemente que a
cidadania planetária é uma utopia, um caminho que se faz, e se faz caminho
caminhando - algo não realizado que historicamente poderá se realizar. É uma utopia
diante do modelo de produção capitalista e dos conflitos atuais no qual vivemos.
A planetaridade pode levar-nos a sentir e viver nossa cotidianidade em conexão
com o universo. Trata-se de uma opção de vida por uma relação saudável e equilibrada
com o contexto, consigo mesmo, com os outros, com o ambiente mais próximo e com
os demais ambientes, considerando seus elementos e dinâmica.
Criar o sujeito ecológico incumbido de reconstruir sua própria trajetória é o
maior desafio, isto é, fazer entender a condição humana e o orgulho de ser humano
como totalidade para poder despertar de vez o senso crítico em relação aos argumentos
puramente economicistas, que são dotados de uma roupagem de falsa democracia e
posições libertárias duvidosas. Ser humano é, antes de qualquer coisa, um compromisso
234
com a vida e não um ser dotado de racionalidade que pode fazer o que bem entender. O
horizonte utópico que se afirma aos poucos é a busca da reciprocidade, da autonomia e
da liberdade, mas com a plena consciência do compromisso com a vida planetária.
235
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1
ANEXOS:
Ficha Técnica dos Filmes Mencionados
A ILHA
Ficha Técnica
Título Original: The Island
Gênero: Ficção Científica
Tempo de Duração: 127 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 2005
Site Oficial: www.ailhaofilme.com.br
Estúdio: DreamWorks SKG / Warner Bros. / Parkes/MacDonald Productions
Distribuição: DreamWorks Distribution LLC / Warner Bros.
Direção: Michael Bay
Roteiro: Alex Kurtzman, Roberto Orci e Caspian Tredwell-Owen, baseado em estória
de Caspian Tredwell-Owen
Produção: Michael Bay, Ian Bryce, Laurie MacDonald e Walter F. Parkes
Música: Steve Jabonsky
Fotografia: Mauro Fiore
Desenho de Produção: Nigel Phelps
Direção de Arte: Jon Billington, Sean Haworth e Martin Whist
Figurino: Deborah Lynn Scott
Edição: Roger Barton, Paul Rubell e Christian Wagner
Efeitos Especiais: Industrial Light & Magic
Elenco
Ewan McGregor (Lincoln Six Echo / Tom Lincoln)
Scarlett Johansson (Jordan Two Delta / Sarah Jordan)
Djimon Hounson (Albert Laurent)
Sean Bean (Merrick)
Steve Buscemi (McCord)
Michael Clarke Duncan (Starkweather)
Ethan Phillips (Jones Three Echo)
Brian Stepanek (Gandu Three Alpha)
Siobhan Flynn (Lima One Alpha)
Max Barkes (Carnes)
Noa Tishby
A QUEDA: OS ÚLITMOS DIAS DE HITLER
Ficha Técnica
Título Original: Der Untergang
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 156 minutos
Ano de Lançamento (Alemanha / Itália): 2004
Site Oficial: www.downfallthefilm.com
Estúdio: Degeto Film / Rai Cinemafiction / Constantin Film Produktion GmbH / EOS
Entertainment / Arbeitsgemeinschaft der öffentlich-rechtichen Rundfunkanstalken der
Bundesrepublik Deutschland / Österreichischer Rundfunk
Distribuição: Newmarket Films / M.M. Marcondes
Direção: Oliver Hirschbiegel
2
Roteiro: Bernd Eichinger, baseado em livros de Joachim Fest, Melissa Müller e Traudl
Junge
Produção: Bernd Eichinger
Música: Stephan Zacharias
Fotografia: Rainer Klausmann
Desenho de Produção: Bernd Lepel
Direção de Arte: Gregor Mager
Figurino: Claudia Bobsin
Edição: Hans Funck
Efeitos Especiais: CA Scanline Production GmbH
Elenco
Bruno Ganz (Adolf Hitler)
Alexandra Maria Lara (Traudl Junge)
Corinna Harfouch (Magda Goebbels)
Ulrich Matthes (Joseph Goebbels)
Juliane Köhler (Eva Braun)
Heino Ferch (Albert Speer)
Christian Berkel (Prof. Ernest-Günter Schenck)
Matthias Habich (Prof. Werner Haase)
Thomas Kretschmann (Hermann Fegelein)
Michael Mendl (General Helmuth Weidling)
André Hennicke (Wilhelm Mohnke)
Ulrich Noethen (Heinrich Himmler)
Birgit Minichmayr (Gerda Christian)
Rolf Kanies (General Hans Krebs)
Justus von Dohnanyi (General Wilhelm Burgdorf)
Dieter Mann (Wilhelm Keitel)
Christian Redl (Alfred Jodl)
Götz Otto (Otto Günsche)
Thomas Limpinsel (Heinz Linge)
Thomas Thieme (Martin Bormann)
Gerald Alexander Held (Walter Hewel)
Donevan Gunia (Peter Kranz)
AS INVASÕES BÁRBARAS
Ficha Técnica
Título Original: Les Invasions Barbares
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 99 minutos
Ano de Lançamento (Canadá): 2003
Estúdio: Astral Films / Centre National de la Cinématographie / Cinémaginaire Inc. / Le
Studio Canal+ / Harold Greenbury Fund / Productions Barbares Inc. / Pyramid
Productions / Société Radio-Canada / Téléfilm Canada/ Société de Développement des
Enterprises Culturelles
Distribuição: Miramax Films / Art Films
Direção: Denys Arcand
Roteiro: Denys Arcand
Produção: Daniel Louis e Denise Robert
3
Música: Pierre Aviat
Fotografia: Guy Dufaux
Desenho de Produção: François Séguin
Direção de Arte: Caroline Alder
Figurino: Denis Sperdouklis
Edição: Isabelle Dedieu
Elenco
Rémy Girard (Rémy)
Stéphane Rousseau (Sébastien)
Dorothée Berryman (Louise)
Louise Portal (Diane)
Dominique Michel (Dominique)
Yves Jacques (Claude)
Pierre Curzi (Pierre)
Marie-Josée Croze (Nathalie)
Marina Hands (Gaëlle)
Toni Cecchinato (Alessandro)
Mitsou Gélinas (Ghislaine)
Johanne-Marie Tremblay (Irmã Constance)
Denis Bouchard (Duhamel)
Micheline Lanctôt (Enfermeira Carole)
Markita Boies (Enfermeira Suzanne)
Izabelle Blais (Sylvaine)
Denys Arcand
A VIDA É BELA
Ficha Técnica
Título Original: La Vita è Bella
Gênero: Comédia Dramática
Tempo de Duração: 116 minutos
Ano de Lançamento (Itália): 1997
Site Oficial: www.miramax.com/lifeisbeautiful
Estúdio: Melampo Cinematografica
Distribuição: Miramax Films
Direção: Roberto Benigni
Roteiro: Vincenzo Cerami e Roberto Benigni
Produção: Gianluigi Braschi e Elda Ferri
Música: Nicola Piovani
Direção de Fotografia: Torino Delli Colli
Desenho de Produção: Danilo Donati
Direção de Arte: Danilo Donati
Figurino: Danilo Donati
Edição: Simona Paggi
Elenco
Roberto Benigni (Guido Orefice)
Nicoletta Braschi (Dora)
Giorgio Cantarini (Giosué Orefice)
4
Giustino Durano (Tio de Guido)
Sergio Bini Bustric (Ferruccio Papini)
Marisa Paredes (Mãe de Dora)
Horst Buchholz (Dr. Lessing)
Amerigo Fontani (Rodolfo)
Pietro De Silva (Bartolomeo)
Francesco Guzzo (Vittorino)
A VILA
Ficha Técnica
Título Original: The Village
Gênero: Suspense
Tempo de Duração: 120 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 2004
Site Oficial: http://thevillage.movies.go.com
Estúdio: Touchstone Pictures / Scott Rudin Productions / Blinding Edge Pictures /
Convington Woods Pictures
Distribuição: Buena Vista Pictures
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan
Produção: Sam Mercer, Scott Rudin e M. Night Shyamalan
Música: James Newton Howard
Fotografia: Roger Deakins
Desenho de Produção: Tom Foden
Direção de Arte: Michael Manson e Chris Shriver
Figurino: Ann Roth
Edição: Christopher Tellefsen
Efeitos Especiais: Illusion Arts Inc. / Industrial Light & Magic
Elenco
Bryce Dallas Howard (Ivy Walker)
Joaquin Phoenix (Lucius Hunt)
Adrien Brody (Noah Percy)
William Hurt (Edward Walker)
Sigourney Weaver (Alice Hunt)
Brendan Gleeson (August Nicholson)
Cherry Jones (Sra. Clack)
Celia Weston (Vivian Percy)
John Christopher Jones (Robert Percy)
Frank Collision (Victor)
Jayne Atkinson (Tabitha Walker)
Judy Greer (Kitty Walker)
Fran Kranz (Christop Crane)
Michael Pitt (Finton Coin)
Jesse Eisenberg (Jamison)
BLADE RUNNER
Ficha Técnica
Título Original: Blade Runner
5
Gênero: Ficção Científica
Tempo de Duração: 118 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1982
Estúdio: The Ladd Company
Distribuição: Columbia TriStar / Warner Bros.
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Hampton Francher e David Webb Peoples, baseado em livro de Philip K. Dirk
Produção: Michael Deeley
Música: Vangelis
Direção de Fotografia: Jordan Cronenweth
Desenho de Produção: Peter J. Hampton e Lawrence G. Paull
Direção de Arte: David L. Snyder
Figurino: Michael Kaplan e Charles Knode
Edição: Marsha Nakashima
Efeitos Especiais: Dream Quest Images
Elenco
Harrison Ford (Deckard / Narrador)
Rutger Hauer (Roy Batty)
Sean Young (Rachael)
Edward James Olmos (Gaff)
M. Emmet Walsh (Capitão Bryant)
Daryl Hannah (Pris)
William Sanderson (J.F. Sebastian)
Brion James (Leon)
Joe Turkell (Tyrell)
Joanna Cassidy (Zhora)
James Hong (Hannibal Crew)
Morgan Paull (Holden)
BONEQUINHA DE LUXO
Ficha Técnica
Título Original: Breakfast at Tiffany's
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 115 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1961
Estúdio: Paramount Pictures / Jurow-Shepherd
Distribuição: Paramount Pictures
Direção: Blake Edwards
Roteiro: George Axelrod, baseado em livro de Truman Capote
Produção: Martin Jurow e Richard Shepherd
Música: Henry Mancini
Fotografia: Franz Planer e Philip H. Lathrop
Direção de Arte: Roland Anderson e Hal Pereira
Figurino: Hubert de Givenchy e Pauline Trigere
Edição: Howard A. Smith
Elenco
Audrey Hepburn (Holly Golightly)
6
George Peppard (Paul "Fred" Varjak)
Patricia Neal (Tooley)
Buddy Ebsen (Doc Golightly)
Martin Balsam (O.J. Berman)
José Luis de Villalonga (José da Silva Pereira)
Alan Reed (Sally Tomato)
Dorothy Whitney (Mag Wildwood)
Stanely Adams (Rusty Trawler)
Claude Stroud (Sid Arbuck)
Mickey Rooney (Sr. Yunioshi)
John McGiver (Vendedor da Tiffany's)
CAMA DE GATO
Ficha Técnica:
Título Original: Cama de Gato
Gênero: Drama
Duração: 92min.
Lançamento (Brasil): 2002
Direção: Alexandre Stockler
Roteiro: Alexandre Stockler
Produção: Prodigo Filme
Fotografia: Murilo Azevedo e Charly Spinelli
Direção de Arte: Sato
Figurino: Trauma
Edição: Doca Corbett
Elenco:
Caio Blat
Rodrigo Bolzan
Cainan Baladez
Rennata Airoldi
Val Pires
Claudia Schapira
Nany People
Alexandra Golik
Bárbara Paz
Cabeto Rocker
Carla Trombini
Élcio Rodrigues
Jairo Mattos
Janaína Kan
Lavínia Pannunzio
Luís Araújo
CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS
Ficha Técnica
Título Original: Cinema, Aspirinas e Urubus
Gênero: Drama
7
Tempo de Duração: 90 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2005
Site Oficial: www2.uol.com.br/urubus/pt/home.html
Estúdio: Dezenove Som e Imagens / Rec Produtores Associados
Distribuição: Imovision
Direção: Marcelo Gomes
Roteiro: Marcelo Gomes, Paulo Caldas e Karim Aïnouz, inspirado em relato de viagem
de Ranulpho Gomes
Produção: Sara Silveira, Maria Ionescu e João Vieira Jr.
Música: Tomás Alves de Souza
Fotografia: Mauro Pinheiro
Desenho de Produção: Dedete Parente Costa
Direção de Arte: Marcos Pedroso
Figurino: Beto Normal
Edição: Karen Harley
Elenco
Peter Ketnath (Johann)
João Miguel (Ranulpho)
Hermila Guedes (Jovelina)
Oswaldo Mil (Claudionor Assis)
Irandhir (Manoel)
Fabiana Pirro (Adelina)
Verônica Cavalcanti (Maria da Paz)
Daniela Câmera (Neide)
Paula Francinete (Lindalva)
Sandro Guerra (Homem da cabra)
Madalena Accioly (Mulher da cabra)
Arílson Lopes (Dono do posto de gasolina)
José Leite (Dono do restaurante)
Zezita Matos (Dona da galinha)
Francisco Figueiredo (Rapaz na estrada)
Mano Fialho (Caçador)
Lúcia do Acordeão (Sanfoneira)
Jorge Clésio (Funcionário dos Correios)
Nanego Lira (Funcionário da estação de trem)
CLUBE DA LUTA
Ficha Técnica
Título Original: Fight Club
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 140 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1999
Estúdio: Fox 2000 Pictures / Regency Enterprises
Distribuição: 20th Century Fox Film Corporation
Direção: David Fincher
Roteiro: Jim Uhls, baseado em livro de Chuck Palahniuk
Produção: Ross Bell, Cean Chaffin e Art Linson
Música: The Dust Brothers
8
Direção de Fotografia: Jeff Cronenweth
Desenho de Produção: Alex McDowell
Direção de Arte: Chris Gorak
Figurino: Michael Kaplan
Edição: Jim Haygood
Efeitos Especiais: Digital Domain
Elenco
Edward Norton (Narrador / Jack)
Brad Pitt (Tyler Durden)
Helena Borham Carter (Marla Singer)
Meat Loaf (Robert Paulson)
Jared Leto (Angel Face)
Zach Grenier (Chefe)
Richmond Arquette (Médico)
CRONICAMENTE INVIÁVEL
Ficha Técnica:
Título no Brasil: Cronicamente Inviável
Título Original: Cronicamente Inviável
País de Origem: Brasil
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 103 minutos
Ano de Lançamento: 2000
Site Oficial: http://www.inviavel.com.br
Estúdio/Distrib.: Europa Filmes
Direção: Sergio Bianchi
Elenco:
Cecil Thiré .... Luís
Betty Gofman .... Maria Alice
Daniel Dantas .... Carlos
Dan Stulbach .... Adam
Umberto Magnan .... Alfredo
Dira Paes .... Amanda
Leonardo Vieira
Cosme Santos
Zezé Mota
Zezeh Barbosa
Cláudia Mello
Rodrigo Santiago
DIÁRIOS DE MOTOCICLETA
Ficha Técnica
Título Original: The Motorcycle Diaries
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 128 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 2004
9
Site Oficial: www.motorcyclediaries.net
Estúdio: Southfork Pictures / FilmFour / Tu Vais Voir Productions / Senator Film
Produktion GmbH
Distribuição: Buena Vista International
Direção: Walter Salles
Roteiro: Jose Rivera, baseado nos livros de Che Guevara e Alberto Granado
Produção: Michael Nozik, Edgard Tenenbaum e Karen Tenkhoff
Fotografia: Eric Gautier
Desenho de Produção: Carlos Conti
Direção de Arte: Laurent Ott
Figurino: Beatriz de Benedetto e Marisa Urruti
Edição: Daniel Rezende
Elenco
Gael García Bernal (Che Guevara - jovem)
Susana Lanteri (Tia Rosana)
Mía Maestro (Chichina Ferreyra)
Mercedes Morán (Celia de la Serna)
Jean Pierre Nohen (Ernesto Guevara Lynch)
Rodrigo de la Serna (Alberto Granado)
Gustavo Pastorini (Passageiro)
Jaime Azócar
Ulises Dumont
Facundo Espinosa
FORREST GUMP
Ficha Técnica
Título Original: Forrest Gump
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 141 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1994
Estúdio: Paramount Pictures
Distribuição: Paramount Pictures / UIP
Direção: Robert Zemeckis
Roteiro: Eric Roth, baseado em livro de Winston Groom
Produção: Wendy Finerman, Steve Starkey e Steve Tisch
Música: Alan Silvestri
Direção de Fotografia: Don Burgess
Desenho de Produção: Rick Carter
Direção de Arte: Leslie McDonald e William James Teegarden
Figurino: Joanna Johnston
Edição: Arthur Schmidt
Efeitos Especiais: Industrial Light & Magic
Elenco
Tom Hanks (Forrest Gump)
Robin Wright (Jenny Curran)
Gary Sinise (Tenente Dan Taylor)
Mykelti Williamson (Bubba Blue)
10
Sally Field (Mrs. Gump)
Michael Conner Humphreys (Jovem Forrest Gump)
Haley Joel Osment (Forrest Gump Jr.)
ILHA DAS FLORES
Ficha técnica:
Gênero: Documentário, Experimental
Diretor: Jorge Furtado
Produção: Mônica Schmiedt, Giba Assis Brasil, Nôra Gulart
Fotografia: Roberto Henkin, Sérgio Amon
Roteiro: Jorge Furtado
Edição: Giba Assis Brasil
Direção de Arte: Fiapo Barth
Trilha original: Geraldo Flach
Narração: Paulo José
Ano: 1989
Duração: 13 min
Cor: Colorido
Bitola: 35mm
País: Brasil
Disponível em vídeo (na fita "Curta com os Gaúchos")
Elenco:
Ciça Reckziegel
Gozei Kitajima
Takehijo Suzuki
KOYAANISQATSI
Ficha técnica:
Título Original: Koyaanisqatsi – Life out of balance
Gênero: Documentário
Duração: 86 minutos
Ano: 1983
País: EUA
Direção: Godfrey Reggio
Roteiro: Godfrey Reggio e Ron Fricke
Produção: Francis Ford Coppola
Música: Philip Glass
Fotografia: Ron Fricke
O DECLÍNIO DO IMPÉRIO AMERICANO
Ficha Técnica
Título Original: Le Déclin de l'Empire Américain
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 101 minutos
Ano de Lançamento (Canadá): 1986
Estúdio: Malofilm / Corporation Image M & M / National Film Board of Canada /
11
Téléfilm Canada / Société Général du Cinéma du Québec / Societe Radio Cinema
Distribuição: Cineplex-Odeon Films / Art Films
Direção: Denys Arcand
Roteiro: Denys Arcand
Produção: Roger Frappier e René Malo
Música: François Dompierre
Fotografia: Guy Dufaux
Desenho de Produção: Gaudeline Sauriol
Direção de Arte: Gaudeline Sauriol
Figurino: Denis Sperdouklis
Edição: Monique Fortier
Efeitos Especiais: Les Productions de l'Intrigue Inc.
Elenco
Dominique Michel (Dominique)
Dorothée Berryman (Louise)
Louise Portal (Diane)
Pierre Curzi (Pierre)
Rémy Girard (Rémy)
Geneviève Rioux (Danielle)
Daniel Brière (Alain)
Gabriel Arcand (Mario)
Évelyn Regimbald
Lisette Guertin
Alexander Remy
Ariane Frédérique
Jean-Paul Bongo
O DISCRETO CHARME DA BURGUESIA
Ficha Técnica:
Títulos Alternativos: The Discreet Charm of the Bourgeoisie / The Discreet Charm of
the Bourgeoisie / Discreto encanto de la burguesía, El / Fascino discreto della borghesia,
Il
País de Origem: França, Itália, Espanha
Gênero: Comédia
Duração: 102 min.
Tipo: Longa-metragem / Colorido
Prêmios: Vencedor de 1 Oscar
Produtora(s): Dean Film, Greenwich Film Productions, Jet Films S.A.
Diretor(es): Luis Buñuel
Roteirista(s): Luis Buñuel, Jean-Claude Carrière
Elenco:
Fernando Rey
Paul Frankeur
Delphine Seyrig
Bulle Ogier
Stéphane Audran
Jean-Pierre Cassel
12
Julien Bertheau
Milena Vukotic
Maria Gabriella Maione
Claude Piéplu
Muni
Pierre Maguelon
François Maistre
Michel Piccoli
Ellen Bahl
O GRANDE DITADOR
Ficha Técnica:
The Great Dictator, EUA, 1940
Títulos Alternativos: The Dictator
Gênero: Comédia
Duração: 124 min.
Tipo: Longa-metragem / P&B
Distribuidora(s): Continental
Produtora(s): Charles Chaplin Productions
Diretor(es): Charles Chaplin
Roteirista(s): Charles Chaplin
Elenco:
Charles Chaplin
Paulette Goddard
Jack Oakie
Reginald Gardiner
Henry Daniell
Billy Gilbert
Grace Hayle
Carter De Haven
Maurice Moscovitch
Emma Dunn
Bernard Gorcey
Paul Weigel
Chester Conklin
Esther Michelson
Hank Mann
O HOMEM QUE COPIAVA
Ficha Técnica
Título Original: O Homem que Copiava
Gênero: Comédia Romântica
Duração:
Ano de Lançamento (Brasil): 2002
Site: oficial
Estúdio: Casa de Cinema de Porto Alegre
Distribuição: Columbia
13
Direção: Jorge Furtado
Diretora assistente: Ana Luiza Azevedo
Roteiro: Jorge Furtado
Produção: Luciana Tomasi e Nota Goulart
Assistente de Produção: Débora Peters
Direção de Produção: Marco Baiotto
Produção de Elenco: Cynthia Caprara
Fotografia: Alex Sernambi
Desenho de Produção: Marco Baiotto
Direção de Arte: Fiapo Barth
Figurino: Rosângela Cortinhas
Cenografia: Silvia Guerra
Direção de Animação: Allan Sieber
Direção Musical e Execução: Leo Henkin
Edição: Giba Assis Brasil
Elenco:
Lázaro Ramos (André)
Leandra Leal (Sílvia)
Luana Piovani (Marinês)
Pedro Cardoso (Cardoso)
Paulo José (Paulo)
Júlio Andrade (Feitosa)
Carlos Cunha Filho (Antunes)
Tereza Teixeira (Mãe de André)
Artur Pinto (Homem que dorme tarde)
Nélson Diniz
OS 12 MACACOS
Ficha Técnica
Título Original: Twelve Monkeys
Gênero: Ficção Científica
Tempo de Duração: 129 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1995
Estúdio: Universal Pictures / Atlas Entertainment
Distribuição: Universal Pictures / UIP
Direção: Terry Gilliam
Roteiro: David Webb Peoples e Janet Peoples, baseado no roteiro do filme "La Jetée"
Produção: Charles Roven
Música: Paul Buckmaster e Charles Olins
Direção de Fotografia: Roger Pratt
Desenho de Produção: Jeffrey Beecroft
Direção de Arte: William Ladd Skinner
Figurino: Julie Weiss
Edição: Mick Audsley
Efeitos Especiais: Mill Film / Peerless Camera Co. Ltd. / Hunter Gratzner Industries,
Inc.
14
Elenco
Bruce Willis (James Cole)
Madeleine Stowe (Dr. Kathryn Railly)
Joseph Melito (Jovem James Cole)
Joey Perillo (Detetive Franki)
Brad Pitt (Jeffrey Goines)
Christopher Plummer (Dr. Leland Goines)
Michael Chance (Scarface)
Vernon Campbell (Tiny)
David Morse (Dr. Peters)
Christopher Meloni (Tenente Halperin)
Simon Jones (Zoologista)
Bill Raymond (Microbiologista)
Bob Adrian (Geologista)
H. Michael Walls (Botânico)
O SHOW DE TRUMAN
Ficha Técnica
Título Original: The Truman Show
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 102 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1998
Site Oficial: www.truman-show.com
Estúdio: Paramount Pictures
Distribuição: Paramount Pictures / UIP
Direção: Peter Weir
Roteiro: Andrew Niccol
Produção: Edward S. Feldman, Andrew Niccol, Scott Rudin e Adam Schroeder
Música: Philip Glass e Burkhart von Dallwitz
Direção de Fotografia: Peter Biziou
Desenho de Produção: Dennis Gassner
Direção de Arte: Richard L. Johnson
Figurino: Marilyn Matthews
Edição: William M. Anderson e Lee Smith
Efeitos Especiais: The Computer Film Company / Cinesite Hollywood / EDS Digital
Studios
Elenco
Jim Carrey (Truman Burbank)
Ed Harris (Christof)
Laura Linney (Meryl)
Noah Emmerich (Marlon)
Natascha McElhone (Lauren Garland / Sylvia)
Holland Taylor (Mãe de Truman)
Brian Delate (Pai de Truman)
Blair Slater (Jovem Truman)
Peter Krause (Lawrence)
Heidi Schanz (Vivien)
Ron Taylor (Ron)
15
Don Taylor (Don)
Paul Giamatti (Diretor da Sala de Controle)
Philip Baker Hall (Executivo)
O SOL DE CADA MANHÃ
Ficha Técnica
Título Original: The Weather Man
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 101 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 2005
Site Oficial: http://weathermanmovie.com
Estúdio: Paramount Pictures / The Weather Man / Escape Artists
Distribuição: Paramount Pictures / UIP
Direção: Gore Verbinski
Roteiro: Steve Conrad
Produção: Todd Black, Jason Blumenthal e Steve Tisch
Música: James S. Levine e Hans Zimmer
Fotografia: Phedon Papamichael
Desenho de Produção: Tom Duffield
Direção de Arte: Patrick M. Sullivan Jr.
Figurino: Penny Rose
Edição: Craig Wood
Elenco
Nicolas Cage (David Spritz)
Michael Caine (Robert Spritz)
Hope Davis (Noreen)
Gemmenne de la Peña (Shelly)
Nicholas Hoult (Mike)
Michael Rispoli (Russ)
Gil Bellows (Don)
Judith McConnell (Lauren)
Dina Facklis (Andrea)
Joe Bianchi (Paul)
PEQUENA MISS SUNSHINE
Ficha Técnica
Título Original: Little Miss Sunshine
Gênero: Comédia
Tempo de Duração: 101 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 2006
Site Oficial: www2.foxsearchlight.com/littlemisssunshine
Estúdio: Deep River Productions / Bona Fide Productions / Big Beach Films / Third
Gear Productions LLC
Distribuição: Fox Searchlight Pictures
Direção: Jonathan Dayton e Valerie Faris
Roteiro: Michael Arndt
Produção: Albert Berger, David T. Friendly, Peter Saraf, Marc Turtletaub e Ron Yerxa
16
Música: Mychael Danna e Devotchka
Fotografia: Tim Suhrstedt
Desenho de Produção: Kalina Ivanov
Direção de Arte: Alan E. Muraoka
Figurino: Nancy Steiner
Edição: Pamela Martin
Efeitos Especiais: LOOK! Effects Inc.
Elenco
Abigail Breslin (Olive)
Greg Kinnear (Richard)
Paul Dano (Dwayne)
Alan Arkin (Avô)
Toni Collette (Sheryl)
Steve Carell (Frank)
Bryan Cranston (Stan Grossman)
Beth Grant (Oficial Jenkins)
Jill Talley (Cindy)
Justin Shilton (Josh)
Gordon Thomson (Larry Sugarman)
Paula Newsome (Linda)
Wallace Langham (Kirby)
Lauren Shiohama (Miss California)
Julio Oscar Mechoso (Mecânico)
SEM DESTINO
(Easy Rider, EUA, 1969)
Ficha Técnica:
Títulos Alternativos: The Loners
Gênero: Aventura
Duração: 94 min.
Distribuidora(s): Columbia Pictures
Produtora(s): Columbia Pictures Corporation, Pando Company Inc., Raybert
Productions
Diretor(es): Dennis Hopper
Roteirista(s): Peter Fonda (1), Dennis Hopper, Terry Southern
Elenco:
Peter Fonda
Dennis Hopper
Antonio Mendoza
Phil Spector
Mac Mashourian
Warren Finnerty
Tita Colorado
Luke Askew
Luana Anders
Sabrina Scharf
Robert Walker
17
Sandy Wyeth
Robert Ball
Carmen Phillips
Ellie Walker
SURPLUS
Ficha Técnica
Título Original: Surplus - Terrorized Into Being Consumers
Título Nacional: A sobra: Aterrorizado Em Ser Consumidores
Direção e roteiro: Erik Gandini
Música Original: Gotan Project, David Österberg, Johan Söderberg
País de Origem: Suécia
Gênero: Documentário
Tempo de Duração: 50 min.
Ano de Lançamento: 2003
Participantes:
John Zerzan
George W. Bush
Fidel Castro
Kolle Lasn
Matt McMullen
Steve Balmer
Tania – Cuba
Svante Tidholm
TEMPOS MODERNOS
Ficha Técnica
Título Original: Modern Times
Gênero: Comédia
Tempo de Duração: 87 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1936
Estúdio: United Artists / Charles Chaplin Productions
Distribuição: United Artists
Direção: Charles Chaplin
Roteiro: Charles Chaplin
Produção: Charles Chaplin
Música: Charles Chaplin
Fotografia: Ira H. Morgan e Roland Totheroh
Desenho de Produção:
Direção de Arte: Charles D. Hall e J. Russell Spencer
Edição:
Elenco
Charles Chaplin (Trabalhador)
Paulette Goddard (Ellen Peterson)
Henry Bergman (Proprietário da cafeteria)
Tiny Sandford (Big Bill)
Chester Conklin (Mecânico)
18
Hank Mann (Ladrão)
Stanley Blystone (Pai de Ellen)
Al Ernest Garcia (Presidente da Electro Steel Corp.)
Cecil Reynolds (Ministro)
Mira McKinney (Esposa do ministro)
Murdock McQuarrie (J. Widdecombe Billows)
Richard Alexander
THE CORPORATION
Ficha Técnica
Título Original: The Corporation
Gênero: Documentário
Tempo de Duração: 145 minutos
Ano de Lançamento (Canadá): 2004
Site Oficial: www.thecorporation.com
Estúdio: Big Pictures Media Corporation
Distribuição: Zeitgeist Films / Imagem Filmes
Direção: Jennifer Abbott e Mark Achbar
Roteiro: Joel Bakan e Harold Crooks
Produção: Mark Achbar e Bart Simpson
Música: Leonard J. Paul
Fotografia: Mark Achbar, Rolf Cutts, Jeff Koffman e Kirk Tougas
Direção de Arte: Henry Faber
Edição: Jennifer Abbott
Elenco
Mikela J. Mikael (Narrador - voz)
Jane Akre
Ray Anderson
Maude Barlow
Chris Barrett
Noam Chomsky
Peter Drucker
Samuel Epstein
Milton Freidman
Naomi Klein
Susan E. Linn
Luke McCabe
Robert Monks
Michael Moore
Vandana Shiva
Steve Wilson
TREM DA VIDA
Ficha Técnica
Título Original: Train de Vie
Gênero: Comédia
Tempo de Duração: 103 minutos
19
Ano de Lançamento (França): 1998
Sites Oficiais: www.paramountclassics.com/train
Estúdio: Hungry Eye Lowland Pictures BV / Raphael Films / 7IA / Noé Productions
Distribuição: Paramount Pictures
Direção: Radu Mihaileanu
Roteiro: Radu Mihaileanu
Produção: Marc Baschet, Ludi Boeken, Frédérique Dumas-Zajdela, Eric Dussart e
Cédomir Kolar
Música: Goran Bregovic
Direção de Fotografia: Yorgos Arvanitis e Laurent Dailland
Desenho de Produção: Christian Niculescu
Figurino: Viorica Petrovici
Edição: Monique Rysselinck
Elenco
Lionel Abelanski (Shlomo)
Rufus (Mordechai)
Clément Harari (Rabino)
Marie-José Nat (Sura)
Agathe De la Fontaine (Esther)
Bruno Abraham-Kremer (Yankele)
Michel Muller (Yossi)
Bebe Bercovici (Joshua)
Mihai Calin (Sami)
UMA VERDADE INCONVENIENTE
Ficha Técnica
Título Original: An Inconvenient Truth
Gênero: Documentário
Tempo de Duração: 100 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 2006
Site Oficial: www.climatecrisis.net
Estúdio: Lawrence Bender Productions / Participant Productions
Distribuição: Paramount Classics / UIP
Direção: Davis Guggenheim
Roteiro:
Produção: Lawrence Bender, Scott Burns, Laurie Lennard e Scott Z. Burns
Música: Michael Brook e Melissa Etheridge
Edição: Jay Lash Cassidy e Dan Swietlik
Elenco
Al Gore
UM DIA DE FÚRIA
Ficha Técnica
Título Original: Falling Down
Gênero: Suspense
Tempo de Duração: 113 minutos
20
Ano de Lançamento (EUA): 1993
Estúdio: Warner Bros. / Regency Enterprises / Alcor Films / Le Studio Canal+
Distribuição: Warner Bros.
Direção: Joel Schumacher
Roteiro: Ebbe Roe Smith
Produção: Timothy Harris, Arnold Kopelson e Herschel Weingrod
Música: James Newton Howard
Fotografia: Andrzej Bartkowiak
Desenho de Produção: Barbara Ling
Direção de Arte: Larry Fulton
Figurino: Marlene Stewart
Edição: Paul Hirsch
Elenco
Michael Douglas (William Foster)
Robert Duvall (Prendergast)
Barbara Hershey (Beth)
Tuesday Weld (Amanda Prendergast)
Rachel Ticotin (Sandra)
Frederic Forrest (Dono da loja)
Lois Smith (Mãe de William)
Joey Hope Singer (Adele)
Raymond J. Barry (Capitão Yardley)
D.W. Moffet (Detetive Lydecker)
Steve Park (Detetive Brian)
Kimberly Scott (Detetive Jones)
James Keane (Detetive Keene)
1,99 – UM SUPERMERCADO QUE VENDE PALAVRAS
Ficha Técnica
Título Original: 1,99 - Um Supermercado Que Vende Palavras
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 72 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2003
Site Oficial: www2.uol.com.br/umnovenove
Estúdio:
Distribuição:
Direção: Marcelo Masagão
Roteiro: Marcelo Masagão e Gustavo Steinberg
Produção: Clarissa Knoll e Gustavo Steinberg
Música: Wim Mertens e André Abujamra
Fotografia: Hélcio Alemão Naganine
Desenho de Produção: Vânia Monteiro
Figurino: Maite Chasseraux
Edição:
Elenco
Agnes Rosa (Faxineira)
Alex Ramalho (Dsempregado)
21
Alexandre Buci (Beijoqueiro)
Ana Liz (Gerente de patins)
Anderson Clayton (Garoto Settle)
André Ferreira (Mendigo)
André Figueiredo (Marido)
André Hosoi (Barbatuque)
André Venegas (Barbatuque)
Andréia Horta (Garota Settle)
Arthur Boniconte (Garoto Settle)
Betânia Betcher (Mulher elegante)
Bianca Turner (Garota Settle)
Binsk (Garoto Settle)
Bruno Buarque (Barbatuque)
Bruno Costomski (Homem do tênis)
Carlota Joaquina (Mendiga)
Caroline Rosa (Beijoqueira)
Chico Neto (Caixa automático sexual)
Cida Costa Manso (Idosa)
Dan Nk (Turista japonês)
Dani Zulu (Barbatuque)
David Rodrigues (Menino de rua)
Diana Costa (Garota Settle)
Douglas Franco (Mendigo)
Elisa Band (Garota Settle)
Erika Nigro (Executiva)
Erika Ribeiro (Engenheira robótica)
Fabiane Ribas (Desempregada)
Fabio Nassar (Desempregado)
Fernando Barba (Barbatuque)
Flávia Maia (Barbatuque)
Francisco Paciência (Executivo)
Franco Zampese (Turista japonês)
Geraldo Stocco (Idoso)
Geraldo Tucci (Idoso)
Gisele Penafieri (Esposa)
Giseli Duarte (Magra)
Gustavo Partel Young (Garoto Settle)
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