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I
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
FELIPE ISZLAJI DE ALBUQUERQUE
A METALINGUAGEM
EM ROGÉRIO SGANZERLA
APOIO: FAPESP
Bauru – SP
2008
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II
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
A METALINGUAGEM
NA OBRA DE ROGÉRIO SGANZERLA
Exame de qualificação para Defesa de Dissertação
de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação Área de
Concentração: Comunicação Midiática, da
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” - Campus de Bauru, como requisito parcial
para obtenção do Título de Mestre em
Comunicação, orientada pelo Prof. Dr. Marcelo
Magalhães Bulhões.
Bauru – SP
2008
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III
BANCA EXAMINADORA
Orientador - Prof. Dr. Marcelo Magalhães Bulhões (UNESP)
_____________________________________
1º Examinador – Prof. Dr. Rogério Ferraraz (Universidade Anhembi-Morumbi)
_______________________________________
2º Examinador - Profa. Dra. Ana Sílvia de Lopes Médola (UNESP)
_______________________________________
Bauru, 01 de agosto de 2008.
IV
Ao casal Rogério Sganzerla e Helena Ignez
por fazerem de suas vidas, através de seus
trabalhos, um manifesto à liberdade.
V
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, prof. Dr. Marcelo Magalhães Bulhões.
Aos membros da Banca Examinadora, Prof. Dr. Rogério Ferraraz e Profa. Dra. Ana Sílvia de Lopes Médola.
À FAPESP
À Helena Ignês, pelo carinho com que me recebeu e por aceitar nossa entrevista.
Ao prof. Ismail Xavier
Aos funcionários da Secretaria da Pós-Graduação da Unesp
À equipe da cinemateca de São Paulo
Aos amigos Gabriel, Ana Paula, Olívia e Marcos
Aos amigos Felipe e Juliana
Aos amigos de república: Pedro (Jontex), Pedro (Xaveco), Michel (Gargamel), Mauro (Cafundó), Gabriel (Soneca) e Ariel
Aos meus pais, Levy e Rosemari, e à minha irmã Fabíola
Ao meu irmão Fernando
À minha mulher Dayana
VI
Os limites da minha linguagem são
também os limites do meu pensamento
Ludwig Wittgenstein
VII
RESUMO
O presente projeto visa a promover uma análise da filmografia ficcional de
Rogério Sganzerla do final da década de 1960. Tal análise busca compreender como o
cineasta faz uso da metalinguagem e articula os elementos cinematográficos em um
diálogo permanente com o cinema clássico e de vanguarda, com a cultura pop, com o
rádio, a televisão, a propaganda e as histórias em quadrinhos — para produzir as
desconstruções ideológicas que tanto caracterizam suas obras.
Palavras-chaves: Metalinguagem; Cinema; Cinema Marginal; Impressão de Realidade;
Comunicação de Massa.
VIII
ABSTRACT
The project intends to make an analysis of Rogério Sganzerla’s fictional movies
on period between 1968 and 1969. Such analysis try to understand how this film
director uses the metalanguage and articulate cinematography elements in a constant
dialog with the classic and vanguard cinema, with the pop culture, with the radio, the
television, the propaganda and comics to produce the ideological deconstructions
that characterize his work.
Key-words: Metalanguage; Cinema; Cinema Marginal; Impression of Reality; Mass
Communication.
IX
Introdução ......................................................................................................................... 1
PRIMEIRA PARTE: ........................................................................................................ 5
Cinema e Linguagem ........................................................................................................ 5
1.
De uma problemática clássica ............................................................................... 6
1.1.
Sobre o ato psicológico da identificação ........................................................... 9
1.2.
Sobre o dramatismo aristotélico e o conceito de catarse ................................ 11
2.
A propósito de Brecht e do efeito de distanciamento .......................................... 13
2.1.
O espectador contemplativo e o espectador ativo ............................................ 17
3.
Noções de Cinema Moderno ............................................................................... 21
3.1. O espectador do cinema moderno .................................................................... 30
3.2. Os filmes modernos ......................................................................................... 32
SEGUNDA PARTE: ...................................................................................................... 39
Cinema e Metalinguagem ............................................................................................... 39
1.
O que é metalinguagem? ..................................................................................... 39
2.
A crise da figuratividade e as vanguardas européias .......................................... 46
3.
A metalinguagem no cinema ............................................................................... 48
4.
Metalinguagens .................................................................................................... 54
4.1. Intertextualidade ................................................ Erro! Indicador não definido.
TERCEIRA PARTE: ...................................................................................................... 61
Cinema Marginal ............................................................................................................ 61
1.
A conjuntura Marginal......................................................................................... 63
2.
Cinema Novo versus Cinema Marginal............................................................... 67
3.
A estética Marginal .............................................................................................. 72
QUARTA PARTE: ......................................................................................................... 78
Análise dos filmes .......................................................................................................... 78
1.
Análise de O Bandido da Luz Vermelha (1968) .................................................. 78
2.
Análise de A Mulher de Todos (1969) ............................................................... 105
Considerações Finais .................................................................................................... 135
Bibliografia Básica ....................................................................................................... 138
Bibliografia Complementar .......................................................................................... 139
Anexos .......................................................................................................................... 140
1.
Entrevista com Helena Ignês ............................................................................. 141
2. Manisfesto "Cinema fora da lei" ....................................................................... 144
3.
Catálogos e Mostras .......................................................................................... 146
X
Lista de figuras
Figura 1 - Metacinema: a linguagem do cinema não é desdunada......................................52
Figura 2 - “Metalinguagem de forma”: a linguagem do cinema é desdunada.....................53
Fotogramas de O Bandido da Luz Vermelha
Figura 3 - 21´30” – cena do liquificador: fragmentação e mistura de gêneros................... 77
Figura 4 - 00’09” – voz off do bandido: “Quem sou eu?”................................................78
Figura 5 - 1’50” – take da antena......................................................................................82
Figura 6 - 28’03” – bastidores de um programa de debates...............................................84
Figura 7 - 28’30” – apresentador em plano médio e olhando para a câmera......................85
Figura 8 - 57’56” – bastidores do estúdio do Canal 13......................................................86
Figura 9 - 56’30” – estética televisiva: olhando para a câmera, em plano fechado............87
Figura 10 - 32’55” – o bandido de binóculos no cinema...................................................88
Figura 11 - 33’36” – procedimento de colagem: filme de guerra.......................................89
Figura 12 - 35’02” – fachada de cinema pornô.................................................................90
Figura 13 - 35’10” – sem relação com o take anterior........................................................90
Figura 14 - 82’35” – colagem: homenagem a Orson Welles...............................................91
Figura 15 - 27’35” – citação ao filme musical brasileiro Coisas Nossas............................92
Figura 16 - 30’50” – membro da equipe cruza a frente da câmera.....................................93
Figura 17 – câmera apontada para JB................................................................................94
Figura 18 – JB captado pela câmera diegética...................................................................94
Figura 19 e 20 - 39’00” - “adorava baile de formatura e falar de Cinema Novo”...............95
Figura 21 - 66’00” – Jorge falando com os “ladrões de todo o Brasil”..............................97
Figura 22 e 23 - 88’00” – suicídio de Jorge: citação a Pierrot Le Fou de Godard...............99
Fotogramas de A Mulher de Todos
Figura 24 - Passagem da primeira para a segunda cena em efeito que imita as HQs.........104
Figura 25 - Jornal A Folha de São Paulo em primeiro plano.............................................105
Figura 26 - Ângela olhando para a câmera.......................................................................105
Figura 27 - Banca de jornal: referência à cultura midiática...............................................108
Figura 28 - Referência à tradição dos filmes de terror ‘classe B’......................................109
Figura 29 - Doktor Plirtz: industrial das HQ´s.................................................................110
Figuras 30 e 31 - Cena da carona: elementos que imitam a estética dos quadrinhos...........111
Figura 32 - frame “tratado”..............................................................................................112
Figura 33 - HQ Calvin e Haroldo.....................................................................................112
Figura 34 - Polenguinho: desdramatização por meio do humor.......................................114
Figura 35 - Referência à tradição da pornochanchada.....................................................115
Figura 36 - Take em travelling lateral que diáloga com a publicidade televisiva..............116
Figura 37 - HQ americana em primeiro plano...................................................................123
Figuras 37 e 38 - Caracterização de um herói de histórias em quadrinho.........................125
Figuras 39 e 40 - Ângela, heroína de um HQ: “a ultra-poderosa inimiga no. 1 dos homens”..125
Figuras 41 e 42 - Efeitos gráficos que se referem ao universo dos quadrinhos................129
1
Introdução
O presente trabalho busca promover a análise dos dois primeiros longas-
metragens do cineasta Rogério Sganzerla, conhecido como um dos principais
representantes do chamado Cinema Marginal. Os dois filmes a serem analisados foram
produzidos no final da década de 1960, período de adensamento dos conflitos da luta
política, ideológica, cultural e militar no Brasil. São eles: O Bandido da Luz Vermelha
(1968) e A Mulher de Todos (1969).
Nossa análise procurou investigará a utilização insistente de inúmeros recursos
metalingüísticos dentro desses dois filmes e identificando, ao mesmo tempo, as maneiras
pelas quais outros “textos” são incorporados (citação, colagem, paródia, pastiche etc.),
considerando o laborioso trabalho com a linguagem cinematográfica, e os principais
“alvos” de tais incorporações: o cinema clássico e de vanguarda, a cultura pop, o rádio, a
televisão, a propaganda e as histórias em quadrinhos.
É na primeira metade da década de 60, marcada pela esperança reformista de
uma parcela da sociedade brasileira, que nasce o chamado Cinema Novo. No entanto,
o golpe de 1964 e o enrijecimento do governo militar no final da cada acabam por
colocar por terra grande parte da esperança progressista de outrora. E é justamente de
dentro deste clima de tensão e horror que emerge o que se convencionou chamar
Cinema Marginal. Com o fechamento político do regime no final da década de 60, em
especial a partir da instauração do AI-5 (Ato Institucional no. 5), o ideal de utilizar o
cinema como porta-voz em prol de uma ação política nos termos estabelecidos pelo
Cinema Novo passa a ser impraticável na visão de alguns cineastas.
O final da década de 60 é também marcado por uma intensa agitação cultural de
que são expressões o movimento Tropicalista, a encenação de O Rei da Vela por José
Celso Martinez Corrêa, a partir do texto de Oswald de Andrade e o próprio Cinema
Marginal.
O desprendimento do Cinema Marginal com relação a formas de compromisso e
expectativas sociais parece ser o ponto de partida para a sua diferenciação com o
Cinema Novo. Enquanto este utiliza alegorias que cifram mensagens que visam a
transformações políticas na sociedade, as obras do Cinema Marginal partem da
verificação de um mundo caótico e fazem uso da irreverência, do deboche, do kitsch, do
grotesco e da ironia para reforçar essa impressão.
2
A vocação para deglutir”, isenta de um juízo de valor para com os elementos
que são assimilados, caracteriza a estética marginal e a distingue prioritariamente da
estética cinemanovista. E é justamente esta aptidão para a antropofagia oswaldiana
que trará ao grupo marginal a possibilidade de promover inúmeras citações, colagens,
intertextualidades e incorporações sem que os seus autores passem por impostores. O
“programa” marginal, embora nunca tenha sido sistematizado pelo grupo em algum
tipo de manifesto, possui a coerência necessária para dar respaldo às experimentações
estéticas das quais a experiência metalingüística é um dos principais pilares.
O recurso metalingüístico não era uma novidade para o quadro cultural dos anos
60. No início do século XX, com a crise da figuratividade, as artes plásticas dão o
primeiro passo para o que seria a aventura metalingüística moderna. A partir das
vanguardas européias é possível identificar experimentações de linguagem que
caminham no sentido de incorporar o processo de produção na fatura da obra.
Em 1955, surge de dentro das páginas da Cahiers du Cinéma
1
, a partir de um
artigo de François Truffaut, a “política dos autores”. Este termo abarca um conjunto de
idéias e teorias que não apenas pleiteiam um cinema autoral, como discutem novas
formas e estratégias narrativas e de linguagem cinematográfica. Estes jovens críticos
franceses posteriormente se tornariam diretores-autores agrupados em torno da chamada
Nouvelle Vague. As idéias da “política de autor” e o exemplo da Nouvelle Vague
influenciariam jovens cineastas de todo o mundo, produzindo no início dos anos 60 a
explosão de Cinemas Novos.
Entre as experimentações de linguagem engendradas pelo grupo da Nouvelle
Vague destaca-se o emprego da metalinguagem como possível artifício capaz de romper
com a “impressão de realidade” do cinema
2
. Tal recurso baseia-se na idéia de que,
desvelando os bastidores do cinema dentro do próprio filme, o público estaria
convencido a todo o momento de que aquele objeto ao qual assiste trata-se na verdade
de um espetáculo e não da realidade. Esta solução teria a capacidade de romper com a
catarse
3
a qual os espectadores estariam destinados quando depositam suas emoções e
expectativas nas personagens e na trama do filme. Rompendo com a catarse, o público
1
Importante revista de cinema francesa fundada nos anos 1950, tinha entre seus críticos e colaboradores
nomes como François Truffaut, Jean-Luc Godard, André Bazin e outros.
2
Termo cunhado para designar a capacidade que o cinema tem de reproduzir a realidade com bastante
realismo, valendo-se da imagem fotográfica em movimento, com profundidade e acompanhada de sons.
(METZ, 1972).
3
Conceito que pode ser traduzido, muito simplificadamente, por descarga emocional. Trataremos dele
ainda no primeiro capítulo deste trabalho.
3
estaria suficientemente distanciado da obra, para lhe competir uma posição crítica e
racional.
No Brasil, o Cinema Marginal contém em suas produções exemplos claros da
opção pela metalinguagem
4
. O cineasta Rogério Sganzerla, um dos ícones do Cinema
Marginal, possui em sua cinematografia uma das fontes mais ricas do cinema brasileiro
em se tratando da experimentação estética da metalinguagem.
No entanto, para estudarmos o fenômeno da metalinguagem dentro do cinema é
necessário, antes de tudo, fazermos alguns importantes apontamentos com relação à
teoria e à linguagem cinematográfica de forma geral. Por isso, o primeiro capítulo deste
trabalho apresenta alguns fundamentos teóricos indispensáveis para a futura análise dos
filmes. A primeira metade do capítulo se detém sobre o conceito de impressão de
realidade, a problemática da identificação, a idéia aristotélica de catarse e o papel do
espectador. Em seguida, apresentaremos algumas noções de cinema moderno, com base,
em grande parte, em material teórico produzido pelo próprio Sganzerla. Discutiremos,
nesta segunda metade, o conceito de câmera cínica, de divisibilidade, questões de
tempo, o papel do ator, entre outras coisas.
O segundo capítulo se dedica a estudar o que é a metalinguagem, a princípio
respondendo a questões gerais para, depois, examinar as peculiaridades do artifício
aplicado ao cinema. Portanto, na primeira metade do capítulo falaremos da função
metalingüística, tal como foi proposta por Roman Jakobson em seu livro Lingüística e
Comunicação
5
e avançaremos esta discussão, ainda mais geral, com base no livro A
Metalinguagem
6
, de Samira Chalhub. Em seguida, na metade final do capítulo, faremos
a distinção entre as inúmeras possibilidades de aplicação do recurso metalingüístico e
levaremos a discussão para dentro do universo cinematográfico.
O terceiro capítulo deste trabalho analisa o contexto histórico, social, político e
cultural do final da década de 1960. É fundamental trazer à tona as intersecções entre o
cinema produzido por Sganzerla e as manifestações das artes plásticas, com Hélio
Oiticica e Lygia Clark, das artes cênicas, com o Teatro Oficina, e da música, com o
Tropicalismo. É preciso marcar o contraponto entre essa vanguarda “libertária” e a
chamada “arte engajada”, defendida pelos centros de produção cultural como o CPC, o
4
“A tendência do Cinema Marginal de se maravilhar com o próprio umbigo ou, em outras palavras, de se
voltar para as condições mesmas da filmagem e para o mundo cotidiano de seus participantes faz com que
na narrativa de Audácia a intriga apareça como pano de fundo, em meio de uma caleidoscópica ficção-
documental sobre o universo dos próprios cineastas.” (RAMOS, 1987).
5
JAKOBSON, R. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1961.
6
CHALHUB, S. A Metalinguagem. São Paulo, Ática, 1986.
4
Teatro de Arena e o Cinema Novo. No segundo tópico deste capítulo, falaremos
exatamente do vigor com que o cinema de Sganzerla rompe com o modelo proposto
pelo Cinema Novo e, principalmente, por Glauber Rocha.
O capítulo final dedica-se ao objetivo central da pesquisa que é a análise efetiva
dos filmes O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos. Nosso projeto original
previa a análise de ainda dois outros filmes de Sganzerla: Sem Essa aranha (1970) e
Copacabana, Mon Amour (1970). No entanto, ao longo do desenvolvimento da
pesquisa, constatou-se que estes últimos constituíam um par de filmes bastante diferente
dos dois primeiros e ficou evidente que, ainda que se reconheça neles o mesmo autor, o
par apresenta-se como material de análise para uma nova pesquisa, talvez não mais
dedicada a questões metalingüísticas.
A presente dissertação continuidade à pesquisa, ao nível de Iniciação
Científica, desenvolvida por mim, sob orientação do prof. Dr. Marcelo Magalhães
Bulhões, ao longo do ano de 2005 e que teve como financiadora a Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
5
PRIMEIRA PARTE:
Cinema e Linguagem
Por definição o cinema é ritmo e movimento, gesto e continuidade.
Em tudo o que vemos, temos que considerar três aspectos: a posição
do olho que olha, a do objeto visto e a da luz que ilumina a realidade.
Assim, o cinema não tem a função de preencher um buraco na parede,
já que a sua missão é bem maior – ser uma janela sobre o mundo.
Rogério Sganzerla
Nessa primeira parte serão apresentados os fundamentos teóricos que dizem
respeito à linguagem cinematográfica e que serão indispensáveis para as futuras análises
dos filmes de Rogério Sganzerla.
Veremos essa primeira parte se dividir em três grandes tópicos que, por sua vez,
se dividem, muitas vezes, em subtópicos. Os dois primeiros (identificados pelos
numerais 1 e 2) tematizam, de maneira geral, amplas e importantes discussões que se
referem ao aparato e à linguagem cinematográficos e às suas concernentes
problemáticas de recepção.
O primeiro tópico, em especial, retoma o clássico debate em torno da impressão
de realidade no cinema e as problemáticas relacionadas a ela, como os conceitos de
identificação e catarse.
Para a discussão em torno da impressão de realidade, escolhemos incorporar
especificamente algumas contribuições de um artigo de Christian Metz que perfaz a
síntese do debate anterior a ele e acrescenta novas questões que nos serão importantes.
A problemática da identificação será abordada por meio de observações e
apontamentos de teóricos do cinema como And Bazin, Edgar Mourin e o próprio
Christian Metz; e não se estenderá para áreas afins, como a Psicologia e os Estudos da
Recepção. Isto porque, como veremos, a contribuição dos autores supracitados, somada
ao entendimento do conceito aristotélico de catarse, será mais que suficiente para
fundamentar esta parte do trabalho e subsidiar as futuras análises.
O terceiro tópico (identificado pelo numeral 3) caminha em direção bastante
diversa e se concentra na tarefa de embasar o leitor com algumas noções de cinema
moderno. Nele, serão apresentadas as principais características da linguagem
cinematográfica moderna — ou seja, o que faz o cinema moderno ser cinema moderno?
6
De uma problemática clássica
Um dos problemas clássicos da teoria cinematográfica é o da impressão de
realidade experimentada pelo espectador diante do filme. O termo refere-se à
capacidade que determinados meios possuem em menor ou maior medida de
fazerem o seu público tomar a representação pelo real. Portanto, a aplicação desse
conceito não é exclusiva ao filme, mas nele encontra o seu ponto culminante, como
veremos agora.
Um dos mais famosos textos que abordam a questão é o artigo A respeito da
impressão de realidade no cinema, de Christian Metz, publicado primeiramente na
revista Cahiers du Cinéma, 166-167 (1965: 75-82), e depois em 1972 como parte do
livro A Significação no Cinema. Em seu artigo, Metz desenvolve uma teoria
fenomenológica sobre a impressão de realidade, baseada em aspectos psicológicos do
processo de fruição, bem como em elementos referentes à própria natureza do
dispositivo cinematográfico.
Mais do que os romances e as peças de teatro, mais do que a pintura e a
fotografia, o filme nos transmite, segundo Metz, a sensação de estarmos assistindo a
algo real. Ele adquire quase que de imediato uma credibilidade perante o público como
nenhum outro meio de representação até hoje conseguiu. Nas palavras de Cristian
Metz
7
, a impressão de realidade “desencadeia no espectador um processo ao mesmo
tempo perceptivo e afetivo de ‘participação’
8
”.
Em relação ao desenho e à pintura figurativa, sabemos que a fotografia possui
um maior grau de impressão de realidade por sua qualidade em capturar formas e cores
da cena real com extrema fidelidade. Se tirássemos uma foto de um cachimbo e a
expuséssemos para o público com os dizeres ao lado “isto não é um cachimbo”, seria
ainda mais difícil de convencê-lo do que ao público diante da pintura de René Magritte.
Isto porque cada meio “carrega em si uma maior ou menor quantidade de indícios de
realidade
9
, e a fotografia possui maior indícios de realidade que a pintura.
Dando seqüência ao seu artigo, Metz percorre uma análise comparativa entre o
cinema e a fotografia com base em considerações de Roland Barthes, para referenciar
7
METZ, C. A significação do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 16.
8
grifo do autor.
9
Ibid., p. 19, grifo do autor.
7
um meio em relação ao outro em termos espaço-temporais. De acordo com Barthes
10
, a
fotografia concentra a noção de um “ter-sido-aqui”, na medida em que nela “concretiza-
se uma conjunção ilógica do aqui e do outrora”. Por mais que se apresente uma
impressão de realidade e se perceba um tom de evidência incontestável, a fotografia
pode apenas ser considerada um “vestígio do real”, pertencente a uma “realidade contra
a qual estamos protegidos”. “O isto-foi supera o sou eu
11
”. Para Barthes, a fotografia
tem um fraco “poder projetivo”, ao contrário do cinema, onde o espectador apreende a
noção de um “ser-aqui” vivo.
Mas por quê? Por que a impressão de realidade é tão mais forte no filme do que
na fotografia? Sem dúvida, a principal diferença entre os dois suportes é o movimento,
presente no filme e ausente na fotografia. Mas por que será que o movimento é capaz de
emprestar tão alto grau de realidade ao que é representação?
Edgar Morin, em seu livro Le cinema ou l´homme imaginaire, constata que “a
conjunção da realidade do movimento e da aparência
12
das formas motiva o sentimento
da vida concreta e a percepção da realidade objetiva. As formas emprestam seu
arcabouço objetivo ao movimento, e o movimento consistência às formas”
13
. O
movimento confere maior grau de realidade ao que se está representando também
porque os acontecimentos do mundo objetivo são móveis, mas não por isso. O
movimento também devolve aos objetos de uma cena o volume e a “corporalidade” que
o fotograma imóvel lhes subtrai. Na fotografia, reconhecemos as figuras representadas
por meio de atributos como forma, cor e volume. No entanto, o volume só pode ser
percebido por meio de outros atributos. Se pararmos para pensar, chegaremos
acertadamente à resposta “perspectiva, luz e sombra” mas não é só. Porque, na
verdade, para percebermos o volume em sua completude e assim podermos tomá-lo
como real precisamos do movimento. Pois o movimento possibilita aos objetos
seu descolamento do fundo, como figuras livres do seu suporte.
Portanto, o movimento do filme acarreta um índice de realidade suplementar
que no mundo objetivo, como dissemos, os eventos são móveis mas também, para
além disso, confere maior volume e relevo aos objetos representados.
10
BARTHES, Roland (1964). “Retórica da Imagem” in Communications, nº 4, p. 40 a 51.
11
grifos de Roland Barthes.
12
grifos de Edgar Mourin.
13
MOURIN, E. apud METZ, op. cit., p. 20.
8
Há ainda aqui uma questão a se considerar com relação ao movimento dentro do
cinema. Sendo a fotografia “vestígio de um espetáculo passado”
14
, seria possível
imaginarmos que o cinema — a sucessão de 24 fotografias por segundo — fosse
compreendido de maneira semelhante, ou seja, como indício ou rastro de um
movimento pertencente ao passado. Porém, isso não acontece — como constata Metz —
, pois “o espectador percebe sempre o movimento como atual
15
, e ele assim o percebe,
porque “o movimento é ‘imaterial’, ele se oferece à vista, nunca ao tato. Por isso não
pode aceitar dois graus de realidade fenomenológica, a ‘verdadeira’ e a cópia”.
(...) como o movimento nunca é material, mas sempre visual, reproduzir-lhe a
visão é reproduzir-lhe a realidade; em verdade o movimento não pode ser
“reproduzido”, pode ser re-produzido, por uma segunda produção, que
pertence para quem olha à mesma ordem de realidade que a primeira.
Não se trata apenas, portanto, de constatar que o filme é mais “vivo”, mais
“animado” que a fotografia, nem mesmo que os objetos são mais
corporalizados; vai além disso: no cinema, a impressão de realidade é
também a realidade da impressão, a presença real do movimento.
No que diz respeito aos índices de realidade, poderíamos nos questionar, então,
se o teatro não possuiria um nível de impressão de realidade maior ainda que o do
filme, por possuir mais indícios de realidade que este último. Afinal, no teatro não
assistimos a criaturas fantasmagóricas tecidas de luz e sombra como no cinema, mas a
atores, objetos e espaços reais. No entanto, segundo Metz, é “por ser o teatro
excessivamente real que as ficções teatrais dão apenas uma leve impressão de realidade
16
. Sobre essa questão, Metz recorre, ainda, a um artigo de Henri Wallon intitulado
L´acte perceptif et le cinéma, que diz:
O espetáculo teatral não consegue ser uma reprodução convincente da vida
porque o próprio espetáculo faz parte da vida, e de modo muito visível; os
intervalos, o ritual social, o espaço real do palco, a presença do ator; o peso
disso tudo é demais para que a ficção desenvolvida pela peça seja percebida
como real; a cenografia, por exemplo, não tem o efeito de criar um universo
diegético, não passa de uma convenção dentro do próprio mundo real
17
.
Podemos dizer, portanto, que o filme situa-se entre a fotografia e o teatro e que
representa uma espécie de ponto “ideal”, a partir de onde a impressão de realidade,
aquém ou além dele, só tende a diminuir. Com isso, concluímos que o filme é o meio de
14
BAZIN, A. apud METZ, C., Ibid., p. 21.
15
METZ, C., Idem.
16
METZ, C., Ibid., p. 23.
17
WALLON, H. apud METZ, C., Idem.
9
representação com maior grau de impressão de realidade e, conseqüentemente, é o que
tem maiores chances de causar no espectador o ato psicológico da identificação.
1.1. Sobre o ato psicológico da identificação
18
A linguagem cinematográfica possui alguns recursos que permitem que as
relações entre o filme e o imaginário social se efetivem. É possível, por exemplo,
reconhecer uma identificação entre a vida dos personagens e a nossa vida, ou uma
oposição entre os valores de alguns personagens e os nossos valores: “Na identificação,
o sujeito, em vez de se projetar no mundo, absorve-o. (...) A identificação com outrem
pode vir a acabar na ‘posse’ do sujeito pela presença estranha de um animal, de um
feiticeiro ou de um deus”
19
.
Graeme Turner
20
afirma que nós, espectadores, nos identificamos com o filme a
ponto de enxergarmos a nós mesmos na tela. Para Metz, a natureza do ato de ir a uma
sala de projeção é tal que o próprio aparato do cinema nos convida à identificação. (...)
Quando é recebida como perspectiva de visão numa série de imagens projetadas, a
câmera torna-se um substituto dos olhos
21
. Segundo ele, mesmo que a câmera mostre
uma série de imagens do ponto de vista da personagem do filme, ela geralmente toma a
perspectiva da autoridade narradora, que identificamos como sendo o do público, ou
seja, o de nós mesmos.
André Bazin também argumenta no sentido de identificar uma espécie de
vocação vicária do cinema, quando fala em “satisfazer por procuração”. Comparando
teatro e cinema, ele diz que neste
a mulher, mesmo nua, pode ser abordada pelo parceiro, expressamente
desejada e realmente acariciada, pois diferentemente do teatro lugar
concreto de uma representação fundada na consciência e na oposição —, o
18
Na verdade, existem diversas correntes que se dedicam a estudar o fenômeno da identificação com
abordagens, metodologias e nomenclaturas diferentes. A questão é abordada, inclusive, fora da grande
área da Comunicação como, por exemplo, por determinadas áreas da Psicologia. Já, dentro da
Comunicação, os Estudos da Recepção é, de certa maneira, a corrente que mais se dedica ao tema e que
pode oferecer subsídios apropriados aos que se interessarem em aprofundar-se no assunto. Deixo aqui
também a indicação de leitura Fascínio e Distanciação fílmica - Teoria Semiótica, LAVRADOR. Para
nós, é suficiente a breve explanação deste tópico continuando na linha de raciocínio dos teóricos do
cinema (Metz; Morin; Bazin; etc.) —, e o conceito de catarse, explanado no próximo tópico (1.2.).
19
MORIN, E. apud XAVIER, I. (org.) A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal/ Embrafilme, 1983.
20
TURNER, G. Cinema como Prática Social. São Paulo: Summus, 1997.
21
METZ, C. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.
10
cinema desenrola-se num espaço imaginário que demanda a participação e a
identificação. Conquistando a mulher, o ator me satisfaz por procuração. Sua
sedução, sua audácia não entram em concorrência com os meus desejos, mas
os realizam
22
.
Quando estamos diante de um filme, nós nos identificamos com os personagens
em vários pontos da narrativa, uma conseqüência de vermos a tela do cinema como se
fosse uma extensão de nossas vidas reais. Isto porque o discurso fílmico possui uma
espécie de credibilidade que se estabelece de imediato com o espectador e que é
facilmente conservada — quando não intensificada — ao longo da projeção.
(...) (o cinema) encontra o meio de se dirigir à gente no tom da evidência,
como que usando o convincente “É assim”, alcança sem dificuldade um tipo
de enunciado que o lingüista qualificaria de plenamente afirmativo e que,
além do mais, consegue ser levado a sério. um modo fílmico da presença,
o qual é amplamente crível. Este “ar de realidade”, este domínio tão direto
sobre a percepção têm o poder de deslocar multidões (...)
23
.
É importante fazer um parêntese aqui para esclarecer que este “ar de realidade”
em nada se confunde com qualquer espécie de realismo. No cinema, mesmo histórias
fantásticas se contaminam com esse “ar de realidade” e escapam do domínio do delírio
para o da constatação de um fato. O cinema atualiza o irreal e torna as fábulas mais
insólitas aceitáveis. Este esclarecimento é necessário para não confundirmos o conceito
de impressão de realidade — e todas as suas causas e conseqüências (inclusive a
problemática da identificação) — com escolas, tendências ou propostas “realistas”.
Respaldando-se em observações de Jean Mitry
24
, Metz constata que nenhuma
das explicações a respeito do “estado fílmico” por “hipnose, mimetismo ou outros
processos puramente passivos”
25
é suficiente para determinar o processo de projeção-
participação do espectador. Tais explicações apenas satisfazem uma condição onde a
“participação não é impossível”. O estado hipnótico do espectador passivo diante de um
filme é pré-condição para que se efetive o processo de identificação, mas não se
confunde com ele. Nas palavras de Metz,
(...) o espectador é “desligado” do mundo real, é verdade; mas ele ainda tem
de se ligar a uma outra coisa, cumprir uma “transferência” de realidade
26
;
22
BAZIN, A. apud XAVIER, I. (org), op. cit., p. 140.
23
METZ, C., op. cit., p. 16.
24
MITRY, J. Esthétique et psychologie du cinema, Édtions Universitaries, 1963, vol. I, pp. 182 a 192.
25
METZ, C., op. cit., p. 25.
26
MITRY, J. apud METZ, C., Idem.
11
esta implica uma atividade afetiva, perceptiva e intelectiva, cujo impulso
pode ser dado por um espetáculo parecido com o do mundo real
27
.
E estamos de volta à impressão de realidade: “Meio mais perfeito do imaginário
humano jamais criado, o cinema é a coisa-sem-vida mais parecida com a vida que
existe”
28
.
A impressão de realidade e o ato psicológico da identificação são, portanto, os
dois lados de uma mesma moeda, mas que, no entanto mais uma vez aqui —, não se
confundem, apenas correlacionam-se em um processo retroalimentativo: “Uma
reprodução bastante convincente desencadeia no espectador fenômenos de participação
participação ao mesmo tempo afetiva e perceptiva que contribuem para conferir
realidade à cópia”
29
.
1.2. Sobre o dramatismo aristotélico e o conceito de catarse
Pode-se definir como dramatismo aristotélico todo o dramatismo que se
enquadre na definição de tragédia contida na Poética
30
de Aristóteles. Ou, como quer
Bertold Brecht, podemos ampliar o seu significado para toda composição dramática
que, mesmo não se utilizando dos princípios prescritos na obra, alcance os mesmos
resultados descritos pelo filósofo:
(...) A nosso ver, o mais interessante do ponto de vista social é o final que
Aristóteles atribui à tragédia: a catarse, a depuração do espectador de todo o
medo e compaixão, através de atos que provocam medo e compaixão. Essa
depuração se dá por obra de um ato psíquico muito particular: a identificação
emotiva do espectador com as personagens do drama recriado pelos atores.
Dizemos que um dramatismo é aristotélico quando produz esta identificação,
utilize ou não as regras ministradas por Aristóteles para conseguir esse
efeito
31
.
Aristóteles descreve a tragédia como imitação de uma ação completa e elevada,
em uma linguagem que possui ritmo, harmonia e canto. Afirma que suas partes se
constituem de passagens em versos recitados e cantados, e nela atuam os personagens
27
METZ, C., Idem.
28
NAZÁRIO, L. As Sombras Móveis. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p.93.
29
METZ, C., op. cit., p. 19.
30
ARISTÓTELES. Arte Poética. E-book. Rocket, 2001.
31
BRECHT, B. Estudos sobre Teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977, tomo I, p.121.
12
diretamente (através do trabalho dos atores), não havendo relato indireto. Por isso é
chamada — tanto quanto a comédia — de drama.
A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa
extensão; deve ser composta num estilo tornado agradável pelo emprego
separado de cada uma de suas formas; na tragédia, a ação é apresentada, não
com a ajuda de uma narrativa, mas por atores
32
.
O filósofo grego diferencia a tragédia da comédia, essencialmente, dizendo que
esta “se propõe a imitar os homens, representando-os piores; a outra os torna melhores
do que são na realidade”
33
.
A tragédia, segundo Aristóteles, é composta de seis partes, classificadas por ele
da seguinte maneira: a fábula, os caracteres, a elocução, o pensamento, o espetáculo
apresentado e o canto (melopéia). Esta última, Aristóteles define como “a força
expressiva musical”, enquanto a elocução é definida apenas como “composição
métrica” dos versos. O “espetáculo apresentado” vem a ser o próprio jogo cênico; o
trabalho dos atores: “é pela ação que as personagens produzem a imitação”. As outras
três partes são definidas assim por Aristóteles:
A imitação de uma ação é o mito (fábula); chamo fábula a combinação dos
atos; chamo caráter (ou costumes) o que nos permite qualificar as
personagens que agem; enfim, o pensamento é tudo o que nas palavras
pronunciadas expõe o que quer que seja ou exprime uma sentença
34
.
Para Aristóteles, a essência da tragédia é a fábula, pois a ação não se destina a
imitar os caracteres; mas através da ação, os caracteres são representados. Conclui-se
daí que “sem ação não há tragédia, mas poderá haver tragédia sem os caracteres”.
A parte mais importante é a da organização dos fatos, pois a tragédia é
imitação, não de homens, mas de ações, da vida, da felicidade e da
infelicidade (pois a infelicidade resulta também da atividade), sendo o fim
que se pretende alcançar o resultado de uma certa maneira de agir, e não de
uma forma de ser. Os caracteres permitem qualificar o homem, mas é da ação
que depende sua infelicidade ou felicidade
35
.
E, em seguida,
Se o autor alinhar uma série de reflexões morais, mesmo com sumo cuidado
na orientação do estilo e do pensamento, nem por isso realizará a obra que é
32
Arte Poética. Cap VI.
33
Ibid., Cap II.
34
Ibid., Cap. VI.
35
Ibid., Cap. VI.
13
própria da tragédia. Muito melhor seria a tragédia que, embora pobre
naqueles aspectos, contivesse, no entanto, uma fabula e um conjunto de fatos
bem ligados.
No entanto, para nós assim como para Brecht o que mais interessa é o
final que Aristóteles atribui à tragédia: a catarse. Na Poética, Aristóteles afirma que a
tragédia tem a função última de provocar, por meio “da compaixão e do terror”, a
expurgação ou purificação dos sentimentos do espectador. Este é, pois, o conceito de
catarse: “suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação
dessas emoções”. No Novo Dicionário Eletrônico Aurélio
36
, a palavra catarse significa
“purgação; purificação; limpeza”. Ou ainda, segundo Tomás Gutiérrez Aléa: “(...)
catarse equivale à depurão, descarga, tal como identificação nos conduz à idéia de
alienação, de entrega. Ou seja: descarga emocional através de uma entrega afetiva”
37
.
2. A propósito de Brecht e do efeito de distanciamento
Em oposição às idéias de Aristóteles, o dramaturgo alemão Bertold Brecht
elaborou, no início do século XX, o seu Teatro Épico, sistematizado em sua obra
Estudos sobre Teatro, da qual nos utilizamos, prioritariamente, para desenvolver este
tópico.
Brecht era radicalmente crítico em relação à forma do teatro clássico que,
baseado na catarse, privilegia a emoção em detrimento da razão. Para ele, esta forma de
teatro serve exclusivamente às classes dominantes, como instrumento de manipulação e
de dominação. Em contraponto à dramaturgia ilusionista do teatro clássico, Brecht
desenvolveu um método para que o espectador pudesse manter-se distanciado da obra e,
desta forma, desenvolver uma postura crítica em relação ao que assiste. No entanto,
diferentemente do que muitos pensam, o método brechtiano não combate as emoções,
apenas investiga-as, pretendendo elevá-las a um nível de consciência.
Por meio da leitura de suas obras teóricas e dramáticas, é possível perceber que
Brecht desenvolveu as técnicas do efeito de distanciamento como solução estética capaz
de produzir consciência social adequada à transformação da sociedade. O dramaturgo
36
Novo Dicionário Eletrônico Aurélio, versão 5.0, 2004.
37
ALÉA, T. Dialética do Espectador. São Paulo: Summus, 1984, p. 57, grifos do autor.
14
alemão sistematizou o efeito de distanciamento para um fim didático-político. É por este
motivo que suas idéias e o seu método são tão importantes para a nossa pesquisa.
O efeito de distanciamento transforma a atitude aprovadora do espectador,
baseada na identificação, numa atitude crítica. [...] Uma imagem distanciante
é uma imagem feita de tal modo que se reconheça o objeto, porém que, ao
mesmo tempo, este tenha um jeito estranho
38
.
Em Estudos sobre Teatro, encontramos sistematizados muitos dos princípios
elaborados por Brecht para o seu teatro épico, baseado no chamado efeito de
distanciamento ou efeito V. Sua proposta com o efeito de distanciamento é provocar no
espectador um estranhamento para que as coisas que, por força do hábito, se lhe
afiguram como familiares e, por isso, naturais e imutáveis passem a ser vistas com
outros olhos, com um olhar crítico. O efeito de distanciamento almeja convencer o
espectador da necessidade de sua intervenção na realidade objetiva, onde a estrutura
social é historicamente construída sendo, portanto, passível de transformações pelo
sujeito histórico.
Os recursos empregados por Brecht para alcançar o distanciamento da obra com
o público são inúmeros. Ele utilizava-se, por exemplo, da ironia nas falas dos
personagens. Outro recurso que Brecht cita em seus escritos é o recurso da paródia, que
é uma espécie de inadequação entre forma e conteúdo, tornando cômica a narrativa
dramática. A combinação entre o elemento cômico e o didático resulta, muitas vezes, no
grotesco, usado por Brecht para desfamiliarizar e, com isso, explicar seu conteúdo e
orientar o espectador.
Outra técnica desenvolvida largamente em seu livro Estudos sobre Teatro
propõe um distanciamento do ator em relação ao personagem. Para Brecht, o ator não
deve colocar-se no lugar de seu personagem, mas tomar uma posição frente a ele.
Brecht propõe que o ator mostre o personagem de forma distanciada, como que
narrando o seu papel e dialogando não com seus companheiros de cena, mas também
com o público, separando-se, por vezes, do personagem e abandonando, desta forma, o
espaço e o tempo fictícios da ação. Com isto, Brecht almejava causar um estranhamento
no espectador de forma que este não se envolvesse emocionalmente com o enredo. Para
ele, o espectador individualizado deve deixar de existir para dar lugar a uma platéia, o
coletivo sobrepondo-se ao individual. O emocional atinge os seres individualmente,
38
BRECHT, B. Pequeno Organun, l963 § 42, apud DAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo:
Perspectiva, 2001.
15
criando uma massa de espectadores passivos que não dialogam entre si nem com a peça.
O estranhamento causado pelo efeito de distanciamento tem a função de trazer o público
à reflexão, mostrar para a platéia que aquilo a que ela assiste não é gido, petrificado e
expressão de uma verdade absoluta, mas uma representação da realidade que é mutável
e na qual ela pode e deve intervir e transformar. Diferentemente do teatro burguês, que
nos apresenta uma totalidade fechada, o teatro de Brecht “é uma montagem que recusa a
unidade orgânica, é um produto descontínuo, aberto e sujeito a modificações”
39
.
Outro princípio importante que Brecht propunha para a interpretação dos atores
no teatro épico era o de vontade e contra-vontade. Brecht dizia que cada gesto de uma
personagem deveria conter o seu oposto, a fim de aludir que tal ato foi conseqüência
de uma decisão. Isto, para mostrar novamente à platéia que não existe uma verdade
dada e que tudo é fruto das escolhas tomadas pelos indivíduos e pelo coletivo,
enquanto sujeitos históricos.
Ainda muitos outros recursos, no que diz respeito a questões técnico-estéticas,
foram desenvolvidos por Brecht para se alcançar o efeito de distanciamento. O cenário
no teatro brechtiano deve ser antiilusionista, ou seja, estilizado e reduzido ao
indispensável, indicando apenas o que caracterize socialmente o espaço. A
iluminação, geralmente com os refletores à mostra, deve ser clara e evitar cores,
efeitos e penumbras, a fim de não perturbar os intuitos didáticos da encenação.
Brecht usava, ainda, às vezes, um ator, no palco ou na platéia, para interromper
o desenvolvimento da peça e criar um momento de reflexão dentro do espetáculo. Para
ilustrar tudo o que falamos neste pico e, mais especificamente, este último artifício
brechtiano, transcrevemos abaixo o início de uma das peças de Brecht intitulada De
nada, nada virá
40
:
De nada, nada virá
(comédia)
(início da peça, canção, coro)
OS ATORES CUMPRIMENTAM PUBLICAMENTE O PENSADOR
Os Atores carregam o Pensador, sentado em uma cadeira, para o palco e postam-se
diante dele.
39
FREDERICO, C. Luckács: um clássico do século XX. São Paulo: Moderna, 1997, p. 45.
40
BRECHT, B. Teatro Completo, volume 12. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
16
OS ATORES Há muito tempo, pensador, você não aparece no teatro. Neste meio
tempo, trabalhamos e progredimos muito.
O PENSADOR Se vocês progrediram o suficiente, podemos finalmente iniciar! O
que vão representar hoje?
OS ATORES Hoje à noite íamos apresentar a peça “Uma tragédia americana”. Mas
como veio inesperadamente, pensador, representaremos uma peça para você.
O PENSADOR É bom saber que é indiferente o que irão apresentar.
OS ATORES Explique aos espectadores o se passa aqui em cima. Não estamos
acostumados com o pensamento no teatro. E nós não sabemos fazer isso.
PRIMEIRO ATOR — Atores como nós existem muitos.
SEGUNDO ATOR — Nem tantos.
PRIMEIRO ATOR — Ainda assim, existem alguns, masblico existe aos montes.
SEGUNDO ATOR — Nem sempre.
PRIMEIRO ATOR — Às vezes. Mas raramente um pensador vem aaqui.
O PENSADOR Vou pensar alto, se isso o atrapalhar meu próprio pensamento.
Então, o que querem representar?
OS ATORES — Vamos apresentar hoje a vida dos homens entre os homens.
O PENSADOR O que querem provar com isso?
OS ATORES Não sabemos. O que vo acha que poderá ser provão, se
apresentarmos a vida dos homens entre os homens?
O PENSADOR De nada, nada virá.
OS ATORES — ???
O PENSADOR Como o homemo é nada, ele podevir a ser tudo.
Os atores vão para as suas mesas de maquiagem.
A FALA DO PENSADOR DIRIGIDA AOS ATORES
O PENSADOR Tenho algumas indicações a fazer. Se quiserem que eu leve a sério
as suas ações, não atuem com aquela empolgação que observamos em pessoas que
acreditam dizer, através da emão, quase tudo.
No desenvolvimento de suas ações, não mostrem um ódio excessivamente forte, para
que eu possa me dar o tempo de comparar suas ações com as que guardo em minha
memória e para que eu possa comparar as iias que vocês manifestam com aquelas
que eu conheço.
17
Não mostrem aquilo que o homem faz como se fosse evidente. Não o aproximem
demais de mim, prefiro que o tornem estranho, para que eu possa conhecê-lo melhor.
Pois, acima de tudo, desejo assumir aquela atitude, sentado em cima da cadeira,
adequada a um pensador, ou seja, uma atitude de busca do conhecimento.
PRIMEIRO ATOR Sabemos o quanto lhe devemos. Quando pedimos para que
sente em nosso palco, é porque queremos melhorar a reputação deste palco.
Como podemos ver, o icio desta pequena peça de Brecht praticamente
resume, metalingüisticamente, todos os princípios do teatro épico.
2.1. O espectador contemplativo e o espectador ativo
Minha primeira pesquisa dentro da universidade foi ainda no meu primeiro ano
da graduação e se ocupava justamente das idéias de Brecht, mais especificamente do seu
Teatro Épico e o conceito de efeito de distanciamento. Naquela época, havia na
universidade um grupo de teatro, do qual eu fiz parte, que se estruturava em torno das
idéias do Teatro do Oprimido que, por sua vez, era também bastante influenciado pelos
conceitos proclamados por Brecht. Ao mesmo tempo, através das disciplinas do meu
curso de Rádio e TV da graduação, fui conhecendo melhor os filmes e as idéias do
cinema moderno e me interessei especificamente pelo cinema da Nouvelle Vague
francesa. Não demorou muito para eu relacionar as duas experiências e, já no ano
seguinte, apresentei para o meu orientador na época a proposta de desenvolver uma
pesquisa correlacionando as idéias do dramaturgo com a prática dos cineastas franceses.
No entanto, fui alertado por ele a tomar grande cuidado com a transposição dos
conceitos de um meio para o outro. Afinal, o teatro e o cinema são dois meios de
expressão diversos, com características próprias como, por exemplo, as que falamos
quando tratávamos da questão da impressão de realidade. É verdade, concordei. Mas
estava convencido de que naquela questão em específico a correlação era possível de ser
feita. Saí da sala do meu orientador e segui direto para a biblioteca, onde encontrei dois
livros sobre cinema que dedicavam algum capítulo para a questão brechtiana. O
primeiro deles chama-se Cinema e Ideologia escrito pelo professor francês Jean-
18
Patrick Lebel e do qual ainda trataremos. O segundo, escrito pelo famoso cineasta
cubano Tomás Gutiérrez Aléa e intitulado Dialética do Espectador, é o livro no qual
nos baseamos para desenvolver este tópico. Contrapondo os conceitos de espectador
contemplativo e de espectador ativo, pretendemos amarrar tudo ou quase tudo do
que vimos até aqui.
No auge da sua carreira como cineasta, Tomás Gutiérrez Aléa escreveu, em
1978, um artigo a respeito da confusão em torno do que se convencionou chamar de
cinema-espetáculo:
Uma interpretação superficial da tese de que a função do cinema — e da arte
em geral na nossa sociedade é a de proporcionar uma fruição estética’ e
ao mesmo tempo contribuir para ‘elevar o nível cultural do povo’ levou
reiteradamente à promoção de fórmulas aditivas nas quais o conteúdo ‘social’
(o que se entende como o aspecto educativo, formador de uma consciência
revolucionária e às vezes também a simples difusão de uma palavra de
ordem) deve ser introduzido sob uma forma atrativa, isto é, deve ser ornado,
temperado de tal maneira que seja agradável ao paladar do consumidor. Algo
parecido a proporcionar uma espécie de alimento ideológico de fácil digestão,
o que evidentemente não passa de uma solução simplista que considera a
forma e o conteúdo como dois ingredientes separados que podem ser
misturados numa proporção correta de acordo com uma receita ideal que
considera o espectador como um elemento passivo. Isto não pode conduzir a
outra coisa que não seja a burocratização da atividade artística e nada tem a
ver com uma concepção dialética do processo de integração orgânica forma-
conteúdo, no qual ambos os aspectos encontram-se indissoluvelmente unidos
e, ao mesmo tempo que se contrapõem, se interpenetram, podendo ocorrer a
superação dos mesmos através da realização de um jogo recíproco
41
.
Em seu livro Dialética do Espectador, Gutiérrez contrapõe a teoria do efeito de
distanciamento brechtiano àquela identificação emotiva com os personagens do drama
aristotélico para tentar apontar o caminho para um CINEMA anti-ideológico. No
entanto, o cineasta e, a partir de então, o teórico cubano se preocupa, ao longo da
sua argumentação, justamente com o que nos foi alertado, ou seja, não aplicar a teoria
do distanciamento de maneira mecânica ao cinema, para impedir equívocos e
deformações, ou mesmo para que a contribuição brechtiana não venha a se converter em
um dogma.
Vale colocar aqui que, assim como nós, o autor entende o cinema “como meio
de comunicação de massa e meio de expressão artística”, duas maneiras de encarar o
cinema que de maneira alguma se anulam e que servirão para nos orientar dentro do
esforço teórico do cineasta cubano.
41
ALÉA, T. Dialética do Espectador. São Paulo: Summus, 1984, p. 15.
19
Gutiérrez começa se questionando “até que ponto um certo tipo de espetáculo
pode contribuir para provocar uma tomada de consciência e uma atividade conseqüente
no espectador”. E também, “no que consiste essa tomada de consciência e essa atividade
que deve ser gerada no espectador uma vez que este deixa de sê-lo”
42
. No entanto, para
responder a estas questões no universo cinematográfico, Gutiérrez precisa antes
encontrar o momento e as condições que levaram um certo tipo de cinema a se
aproximar do espetáculo a ponto de se confundir com ele.
Para começar, o autor afirma que, desde sua origem, o cinema segue dois
caminhos paralelos: o documento e a ficção:
Desde o primeiro momento abriram-se dois caminhos paralelos: de um lado
(o cinema) foi documento “verídico” de alguns aspectos da realidade, e, por
outro, foi fascinação mágica. Entre esses dois pólos o documento e a
ficção — tem-se movimentado o cinema
43
.
Ao autor, e a nós mesmos, interessa sem dúvida estudarmos o percurso que vem
trilhando o cinema de ficção. Isto porque é nele que vamos dar com o que estamos
chamando aqui de cinema-espetáculo. Toda a nossa discussão até agora teria uma
abordagem completamente diversa se a problemática em questão fosse abordada dentro
do cinema de documento. Talvez, nem mesmo se justificasse.
Convém-nos, portanto, explorar a via do cinema de ficção, pois é nela que
encontraremos a vicinal do cinema-espetáculo que, desde o início, consolida-se como
principal acesso das massas a este novo meio de comunicação e expressão artística que
é o cinema:
(...) o certo é que o cinema constituía uma atividade humana que cumpria
melhor que outras uma necessidade elementar de diversão. Sendo dirigido na
prática fundamentalmente para este objetivo, o cinema foi amadurecendo a
linguagem e foram sendo descobertas novas possibilidades de expressão que
o valorizaram esteticamente
44
.
Podemos ver hoje com clareza que o cinema norte-americano, por meio de uma
indústria cinematográfica cada vez mais forte, foi o que melhor desenvolveu-se por este
caminho, trazendo na esteira de suas experiências industriais importantes avanços
técnicos e estéticos para o meio. Porém, o cinema produzido em Hollywood criou e
42
Ibid., p. 22.
43
Ibid., p. 25.
44
Ibid., p. 26.
20
consolidou também esquemas formais (gêneros) que, ao mesmo tempo em que alçavam
o cinema a um novo patamar expressivo, rapidamente, por força da usura de sua própria
indústria, transformavam-se em estereótipos. Para Gutiérrez, o cinema de gêneros é a
expressão máxima de um cinema que pressupõe as poltronas vermelhas ocupadas por
espectadores passivos:
O cinema norte-americano, com seu sentido pragmático, foi o que mais
avançou por este caminho. [...] Desde os primeiros anos do século foi dando
origem a diferentes gêneros (comédias, westerns, filmes de gangsters,
superproduções históricas, melodramas, etc) que rapidamente se converteram
em “clássico”, ou seja, se consolidaram como modelos formais e alcançaram
um alto nível de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que se
transformavam em estereótipos vazios. Foram a expressão mais eficaz de
uma cultura de massa produzida em função de um consumidor passivo, de
um espectador contemplativo e desgarrado, na medida em que a realidade
reclama do próprio uma ação e ao mesmo tempo fecha-lhe todas as
possibilidades de atuação
45
.
O espectador passivo é definido pelo autor como aquele que não excede
o nível da contemplação. Ele está, pela identificação e pela catarse, preso àquela
fascinação fílmica da qual falamos, enquanto o espectador ativo seria aquele que, livre
do estado hipnótico, produziria a apreensão crítica da realidade e, por conseguinte, seria
capaz de adotar uma postura pragmática e assumir plenamente a responsabilidade
histórica e social que lhe compete: a transformação do seu universo social.
Assim, quando falamos de espectador “contemplativo” referimo-nos àquele
que não supera o nível passivo-contemplativo; enquanto o espectador “ativo”
seria aquele que, tomando como ponto de partida o momento da
contemplação viva, gera um processo de compreensão crítica da realidade
(que inclui, claro o espetáculo), e, conseqüentemente, uma ação prática
transformadora.
Dito isto, Gutiérrez recorre às idéias brechtianas para defender o efeito de
distanciamento dentro do cinema, por entender que este recurso teria a capacidade de
romper com a catarse a qual os espectadores estariam destinados quando depositam suas
emoções e expectativas nas personagens e na trama do filme. Rompendo com a catarse,
o público estaria suficientemente distanciado da obra, para lhe competir uma posição
crítica e racional.
45
Idem.
21
3. Noções de Cinema Moderno
“uma rosa é uma rosa é uma rosa...”
Gertrude Stein
Tratamos até aqui de algumas problemáticas básicas no que diz respeito à
relação filme-espectador. Alguns poderão dizer que o que vimos falando até então não
se restringe aos problemas da linguagem cinematográfica, fecho teórico desta nossa
primeira parte. Certamente que não. A problemática da impressão de realidade, e suas
conseqüências, é uma questão tão central na discussão do objeto fílmico que nos parece
impossível acomodá-la em algum tópico específico: cinema e linguagem, problemas do
aparelho cinematográfico, cinema e ideologia, cinema e recepção? Ela habita, sem
dúvida, a intersecção formada por estes grandes conjuntos temáticos. No entanto, não se
conclui que, por conta disso, alocamos a questão onde bem entendemos, sem qualquer
critério. A verdade é que a problemática da impressão de realidade interessa mais a este
trabalho quando entendida, prioritariamente, dentro dos domínios da linguagem
cinematográfica. E veremos isso, com clareza, mais à frente.
Este introdutório serve para indicar que, a partir daqui, entraremos de fato na
discussão da linguagem cinematográfica, já que discutiremos o Cinema Moderno não no
seu viés histórico — que não nos interessa aqui, por ser amplamente abordado e
universalmente disponibilizado —, mas no âmbito da construção de sua linguagem,
confrontando-a, sempre que possível, com os cânones do cinema clássico.
Por sorte, temos no cineasta Rogério Sganzerla autor dos filmes que são
objeto de estudo deste trabalho — também um crítico prolífero e talentoso que produziu
inúmeros ensaios sobre o cinema moderno.
Abordar o Cinema Moderno através destes textos de Rogério reunidos no
livro Por Um Cinema Sem Limites
46
parece-nos uma maneira coerente e econômica,
no melhor sentido da palavra, de darmos prosseguimento ao nosso trabalho. Isto porque,
ao mesmo tempo em que estaremos tratando da linguagem empreendida pelos cineastas
modernos de maneira geral, estaremos trilhando as especificidades que interessavam ao
nosso autor.
46
SGANZERLA, R. Por um cinema sem limites. Rio de Janeiro: Azougue, 2001.
22
a) A câmera cínica
Tanto na arte quanto na ciência moderna, passa-se pela descrição do exterior dos
objetos e seres para se chegar aos seus significados. O olhar o olhar distanciado
como o de um fotógrafo da Nathional Geografic passou a ser o critério adotado para
a apreensão da realidade. Não mais a subjetividade dos românticos, nem a sociologia —
ou a antropologia — de grande parte dos modernistas; mas o olhar.
No romance moderno, por exemplo, as palavras estão a serviço das imagens.
Objetivas e livres de simbolismos, essas imagens representam um mundo exterior, que
existe por si só. O nouveau roman designação que se refere à renovação romanesca
ocorrida no panorama da literatura francesa da década de
50 —, não à toa, é também
referido pelo termo école du regard. Os autores desta “escola” da qual o francês
Alain Robbe-Grillet é expoente recusam a História, a psicologia das motivações e a
significação dos objetos.
Roland Barthes
47
cunhou também a expressão “romance de superfície” para
designar as obras do nouveau-roman. Para Barthes, este “novo romance”, de
características anti-humanistas, traz de inédito a recusa em representar sentidos para o
mundo, instituindo o “nada humano do objeto”.
Os romances de Robbe Grillet caracterizam-se por manterem-se à superfície dos
objetos e seres, o que resulta, como temos dito, na supervalorização do olhar. A
polêmica causada pelos seus romances obrigou Robbe-Grillet a dissertar sobre suas
teorias no livro Por Um Novo Romance. Nele, o autor afirma: “Ora o mundo não é
significante nem absurdo. Existe, muito simplesmente”
48
.
No fundo, sua escrita também reproduz um certo “estranhamento brechtiano”,
no sentido em que o mundo apresentado de maneira absolutamente objetiva representa o
“carácter inabitual do mundo que nos rodeia”
49
.
As proposições do autor são antitradicionalistas e se coadunam com as idéias de
uma poética da obra aberta tal como Umberto Eco a concebe em Obra Aberta
50
.
Segundo Eco, a “experiência direta” defendida por Robbe Grillet assemelha-se à
estética televisiva, caracterizada pela transmissão direta de acontecimentos. Sganzerla,
no capítulo em que fala do cinema e sua dúvida, recorre a uma frase de Albert Camus
47
BARTHES, R. Ensaios Críticos, Edições 70: Lisboa, 1977.
48
ROBBE-GRILLET, A. Por um Novo Romance. Publicações Europa América: Lisboa, 1965.
49
Idem.
50
ECO, U. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1971.
23
para se referir a esse espírito do tempo: "nossa época é mais da reportagem que de obras
de arte"
51
.
E, no capítulo em que trata propriamente da câmera cínica, Sganzerla inicia o
seu texto referindo-se textualmente ao nouveau roman e à questão do olhar como baliza
da arte e da ciência moderna para, a partir daí, discutir estes mesmos pressupostos no
cinema moderno.
Verifica-se, tanto no cinema como no romance contemporâneo, uma
acentuada preocupação pela visão, pelo olhar, como forma de captação da
realidade. O mesmo acontece com a fenomenologia e a ciência moderna; e o
grupo de escritores do nouveau-roman foi chamado de "école du regard"
devido à importância da visão em seus romances. Tanto no romance moderno
como na fenomenologia parte-se da descrição da superfície e da aparência
dos objetos a fim de se encontrar o significado dos mesmos
52
.
E, em seguida: “já é um chavão dizer que o cinema ‘é a arte da imagem’, mas
não é por isso que a frase deixa de ser verdadeira. Que arte, melhor que o cinema,
consegue captar os objetos em sua aparência, dependendo fundamentalmente da
visão?”
53
.
A câmera cínica é a câmera que não dramatiza a ação. É a câmera que registra
as cenas com ar de indiferença, evitando dar qualquer ênfase, a fim de registrá-las
através apenas da visão: de um olhar cínico. Desta forma, consegue tão captar “o
estado bruto dos seres e objetos”. Na definição do próprio Sganzerla, “a câmera cínica é
a câmera que deixou de participar do movimento dramático, distanciou-se dele; olha-o
indiferentemente, olha-o apenas”
54
.
A câmera cínica tenta capturar “a aparência pura dos seres e dos objetos” e, para
tanto, renuncia a "qualquer referência ao falso mistério, a sugestão ilusória do
inexistente 'coração romântico' dos objetos"
55
.
Sganzerla acrescenta, citando Godard, que a partir da câmera cínica "os seres e
os objetos não são situados psicologicamente, nem moralmente, e ainda menos
sociologicamente"
56
; estariam restritos, exclusivamente, ao plano visual. E reforça essa
visão quando acrescenta outra característica da câmera cínica que é o esvaziamento do
heroísmo das personagens:
51
Albert Camus citado por SGANZERLA, R., op. cit., p. 29.
52
SGANZERLA, R., Ibid., p. 35.
53
Idem.
54
Ibid., p. 37.
55
Alain Robbe-Grillet, em entrevista a J.G. Merquior, citado por SGANZERLA, R., Ibid., p. 36.
56
Jean-Luc Godard citado por SGANZERLA, R., Idem.
24
a câmara realiza, então, um trabalho difícil: o esvaziamento do heroísmo das
personagens. São esvaziadas de qualquer inteligência, de moral, de psicologia,
de sociologia, de utilitarismo, de dependência ao espaço e ao tempo. O que
subsiste é a pura visão delas
57
.
Sganzerla exemplifica essa “reintegração dos seres e dos objetos na dimensão
ocular” com o título de um célebre filme de Godard: "uma mulher é uma mulher". Esse
exemplo é notório para demonstrar a recusa de adjetivações como, por exemplo, "a
mulher fatal", "a mulher é misteriosa"
58
etc. A câmera cínica recusa, portanto, atribuir
predicados sejam eles quais forem aos seres e objetos; sua função é apenas
registrar o encadeamento de episódios visuais.
Em determinado momento do capítulo, Sganzerla associa o conceito da
distanciação brechtiana, tal como o vimos anteriormente, com o conceito de câmera
cínica, chegando mesmo a definir este em relação àquele:
para melhor possibilidade da visão pura dos objetos, a câmera afasta-se deles
e observa-os de longe, procurando não alterá-los. Assim como na
distanciação brechtiana, este recuo impõe uma certa indiferença em relação
aos seres e objetos enfocados: é a câmera cínica
59
.
E, logo em seguida: “com essa distanciação, rompe-se a relação dramática
câmara-personagem; obtém-se a visão desdramatizada dos seres e dos objetos, e nessa
passagem reintroduzem-se eles em si mesmos”.
Concluindo com o exemplo abaixo:
normalmente, em uma cena dramática, o uso do close-up funciona como
descrição psicológica da personagem; a mera cínica filmaria esta cena de
longe, geralmente em plano médio, a fim de captar não a psicologia da
personagem, mas um acontecimento visual.
A câmera cínica é um recurso da linguagem cinematográfica moderna que
encontra maior reverberação nas obras de cineastas como Howard Hawks, Samuel
Fuller e Jean-Luc Godard. Não se pode falar em cinema moderno como um todo coeso;
nem no que se refere à temática, nem no que se refere à linguagem. Nem todos os
cineastas modernos utilizaram-se do recurso da mera cínica. Muitos como Fellini
e Bergman, por exemplo caminharam exatamente no sentido oposto, como veremos
57
Ibid., p. 38.
58
Exemplos do próprio Rogério.
59
Ibid., p. 36.
25
adiante. Interessa para nós, no entanto, dizer que o cineasta Rogério Sganzerla —
enquanto realizador dos filmes aqui analisados filia-se claramente àqueles primeiros,
que têm a estética da câmera cínica como pressuposto para um “cinema livre”.
b) Divisibilidade
Enquanto o cinema clássico se propõe indivisível em seu conjunto, o cinema
moderno apropria-se do recurso da divisibilidade amplamente exercido pela arte
contemporânea de forma geral — para autonomizar cada um de seus elementos:
se o filme clássico pretende ser um todo indivisível e irreversível, o filme
moderno, pelo contrário, baseia-se nas noções de divisibilidade da arte
contemporânea. A atual estrutura cinematográfica é fragmentária,
incompleta, barroca - fundamentando-se na independência e autonomia de
seus elementos
60
.
O filme moderno é um quebra-cabeça onde cada peça é percebida isoladamente
sem dificuldades; seja porque o desenho impresso em cada uma delas o se acerta (o
que pressupõe que estão ali misturados quebra-cabeças de diferentes temas), seja porque
nelas o contorno é de tal forma grosseiro que é impossível não perceber os encaixes. Ou
seja, o filme moderno pode ser entendido como a reunião de diferentes estilos montados
de forma livre e sem a pretensão de suavizar os momentos de transição entre um e
outro:
a integração de estilos diferentes num filme se opõe a um antigo conceito
do estilo irreversível e totalitário. Um filme moderno, de certa maneira, pode
ser uma reunião de curtas metragens diferentes; livre montagem de
momentos de euforia e momentos de depressão numa forma que vai do
tímido ao revolucionário
61
.
Essa mistura de diferentes estilos autoriza Sganzerla a qualificar de barroca a
estrutura cinematográfica moderna. A mixagem de gêneros, a sobreposição de estilos e
a coabitação de linguagens diversas são, de muitas maneiras, características barrocas.
Se no cinema clássico a linguagem está a serviço de um todo que se propõe
ideal e absoluto —, no cinema moderno a linguagem abandona essa condição
60
Ibid., p. 63.
61
Ibid., p. 64.
26
subterrânea; quer ser ela mesma protagonista do filme. Uma das formas de consegui-lo
é unindo forças, agrupar diferentes linguagens. Pois é no choque entre suas diferenças
que se produz o reconhecimento. E o reconhecimento da linguagem é sempre um
estranhamento para o espectador.
O cinema moderno rejeita o desenvolvimento lógico da narrativa clássica,
pautada pelo ordenamento de elementos combinados, dependentes, integrados e
condicionados pelo final.
O filme moderno é um filme “de arestas”. Cada uma de suas partes está para
ser divisada. Godard, mais uma vez, é exemplo notório do que estamos dizendo. O
Desprezo é um filme composto de 15 seqüências que integram um todo, mas que
também são autônomas. O seu Viver a Vida, mais um exemplo, é dividido em outras 12
seqüências, separadas por letreiros que trazem, em texto branco sobre fundo preto, a
síntese do que se verá na seqüência seguinte. O recurso aos letreiros marca, pois,
nitidamente, a divisão entre cada uma das partes.
c) Questões de tempo
Com relação ao tempo, são características do cinema moderno: a recusa do
flashback; o tempo morto, o olhar insistente; a duração concreta; a fragmentação/
unilinearidade; e a repetição.
O cinema moderno recusa os artifícios do monólogo interior e o flashback
decorativo”
62
. Em coerência com a estética da câmera cínica, o filme moderno trata as
cenas como quadros independentes que refletem o presente. O tempo não deve ser
simbolizado. A linguagem do cinema moderno renuncia a qualquer manipulação do
tempo que o torne visível ou eloqüente. “No máximo, sentimos a ação do tempo
(interior) que se manifesta no espaço (exterior) nas mutações sofridas pelos seres e
objetos e suas relações”
63
:
Antonioni, Godard, Hawks recusam o flashback, monólogo interior ou
câmera subjetiva, qualquer recurso literário de falsificação cronológica. (...).
Exploram a duração das cenas (o cinema é uma arte muito mais temporal do
que espacial embora envolva as duas coisas ao mesmo tempo)
62
Ibid., p. 32.
63
Idem.
27
funcionalizando os instantes restantes após gestos importantes, aqueles em
que aparentemente não acontece nada: os tempos mortos (...)
64
.
O tempo morto, momento onde a câmera parece registrar acontecimentos
desimportantes, corrobora para a desdramatização. Enquanto a câmera apreende o
tempo “excedente” à ação principal, a relação dramática fica em suspenso e o
espectador é levado a olhar para aquilo que a câmera insistentemente mostra. O tempo
morto recondiciona o olhar do espectador para o mundo exterior. Fá-lo voltar a enxergar
o mundo objetivo, desdramatizado:
a desdramatização ou distanciamento crítico significa visão do objeto
destituído de dramatismo anedótico, moral, parcial, psicologia ou sociologia
do passado. Olhando insistentemente, a câmera contemporânea reflete sobre a
cor, largura e espessura de paredes, personagens, ruas. Impondo a presença
física do mundo, o "tempo morto" esfria a emoção romanesca, evita o
acidental anedótico, promove o essencial registro da presença do homem no
mundo, destituído de relação dramática
65
.
Outro conceito utilizado por Sganzerla para dar conta das questões temporais
dentro dos filmes modernos é o de duração concreta, assim definido por ele:
a duração concreta se caracteriza pela singularidade e irreversibilidade é o
tempo da História, portanto da verdade e do documentário, ao contrário do
tempo mítico de um Resnais ou Fellini que é uma idealização ou facilidade
definida pela igualdade teórica de suas partes e pela livre reversibilidade
66
.
A duração concreta é quase um “tempo sem tempo”, na medida em que não
particulariza diegeticamente nenhum tempo específico. É sempre o tempo presente da
personagem. A câmera seguindo o homem. O tempo que não aparece, não simboliza,
não representa, não dramatiza. Ao contrário do cinema clássico, onde a ação dramática
prevalece, manifesta no “jogo de campo/ contracampo de um tempo mítico”
67
.
De maneira geral, essa forma de encarar o tempo tende a resultados onde a
duração diegética do entrecho coincide com o tempo de projeção, como no proeminente
exemplo do filme Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock.
Muito provavelmente por influência da técnica documental é que o filme
moderno tende à narração unilinear, “concentrando-se no personagem durante um
64
Ibid., p. 47.
65
Ibid., p. 48.
66
Ibid., p. 32.
67
Idem.
28
determinado momento de sua existência”
68
. Noutros casos, porém, a narração unilinear
apela à fragmentação temporal para melhor se concentrar sobre a personagem, como no
clássico moderno Cidadão Kane, de Orson Welles, onde depoimentos contraditórios
desenham a personalidade e a vida do personagem título.
“O filme aberto, contemporâneo, relativo não foi feito para eternizar-se; é um
objeto incompleto, móvel e provisório”
69
. A narrativa moderna não se constrói em um
crescente, como à maneira clássica. Não mais a tensão dramática como telos para
impor um ritmo ascendente aos conflitos. Não clímax. Não há fim. O tempo é livre e
homogêneo, sem gargalos dramáticos. O uso da repetição de falas, de gestos, de
ângulos, etc. — dissipa a idéia de progressão, marca a sensação de um vagar perene:
a construção atual diverge daquela convencionada pelo uso porque a intriga
se desenvolvia em "crescendo". Em Yoshida, Godard, Sugawa ou Resnais,
não aquele desenvolvimento progressivo: o tempo é solto. Usam a
repetição constante, que não evolui e é um eterno errar, retornar, continuar
em círculo vicioso. Com este processo o herói está preso numa sucessão
circular, vale dizer, encarcerado no tempo
70
.
d) O papel do ator
Sganzerla afirma que toda mise-en-scène moderna fundamenta-se no ator. Mas
não no ator que quer falsear e simular emoções em prol de uma perfeita representação.
O ator do cinema moderno é a presença do homem diante de câmera. Nas palavras do
autor, “se os atores são sofríveis, a mise-en-scène moderna não vive da beleza ou da
qualidade dos atores (em re-presentar, isto é, falsear e simular), mas simplesmente da
presença do homem (diante da câmera) no mundo”
71
.
O papel do ator dentro do cinema moderno segue os mesmo princípios dos
demais elementos estéticos modernos, pautados pela objetividade. O filme moderno não
pretende explicar e definir o interior do personagem. Dessa forma, “diante do herói
fechado o máximo que se pode fazer é olhá-lo”
72
.
No cinema tradicional, onde impera a dramaturgia clássica, as personagens estão
acima dos atores, no sentido de que para ele interessa mais as personagens e suas
68
Ibid., p. 33.
69
Ibid., p. 51.
70
Ibid., p. 43.
71
Ibid., p. 50.
72
Ibid., p. 60.
29
relações anedóticas (narrativo-dramáticas) do que a presença física do ator. Na clássica
dramaturgia, o ator deve reduzir ao máximo sua presença corpórea como homem, como
indivíduo, para dar lugar e voz a sua personagem. Isto porque, nesse tipo de dramatismo
as personagens “têm muito o que dizer”: seu passado, seus objetivos, seus medos e
receios, suas impressões de mundo, enfim, seus dramas. No cinema moderno não.
Como vimos, nos filmes modernos o herói (personagem) é fechado. Ele não estabelece
complexas relações psicológicas e afetivas com outras personagens ou com o mundo.
Ele simplesmente o habita e nele age. Neste sentido, Sganzerla dá o exemplo do
personagem Michel, de Acossado, onde as causas de seu suicídio não são dadas, apenas
os efeitos. Ou seja, nos filmes modernos não nos interessa saber “tudo ou quase tudo”
sobre as personagens. Não nos é dado o percurso completo de seus dramas. E abre-se
espaço para a presença física do ator, para os seus gestos e ações fundamentais
desdramatizados. Citando o diretor John Cassavetes, Sganzerla resume este nosso
parágrafo dizendo:
John Cassavetes diferenciou o cinema moderno e o cinema tradicional
dizendo que "aquele emana dos personagens enquanto neste e os personagens
provém do enredo". A matéria-prima do filme moderno é o ator. Daí a
predominância atual do close-up, de cenas longas e diálogo abundante, além
do interesse pelos gestos fundamentais: andar e falar e se possível amar
73
.
Esse tipo entendimento com relação ao papel do ator dentro do filme nos remete
às técnicas de distanciação elaboradas por Brecht para os seus próprios atores. O ator
dos filmes modernos deve transparecer para a câmera sua consciência ator. A câmera do
cinema moderno quer capturar não o “homem representado” (personagem), mas o
“homem representando” (ator). Tal postura implica também numa maior liberdade do
ator e do diretor que podem, no momento das filmagens, recriar aspectos da personagem
não previstos anteriormente:
herói: o homem representado e homens representando. É nesta dialética entre
o artificial (personagem) e o real (ator) que se processa a moderna ficção.
Com autonomia para criar, corrigir, montar um personagem durante o ato da
filmagem
74
.
73
Ibid., p. 61.
74
Idem.
30
3.1. O espectador do cinema moderno
Como temos visto, o cinema moderno desenvolveu uma série de recursos de
linguagem: a posição da câmera, a mistura de gêneros, a franqueza temporal, o papel do
ator, etc. Tais artifícios estéticos possuem uma coerência interna, filosófica até, que se
traduz em grande complexidade para uma análise que se proponha totalitária e
definitiva. Com certeza, tal revolução no interior da linguagem cinematográfica não
pode mirar a apenas um objetivo. Seria por demais simplório e leviano dizer que o
florescimento de todos os recursos estéticos do cinema moderno possuem tal ou qual
propósito. Porém, por outro lado, não podemos pecar por excesso de cautela e deixar de
afirmar que um desses objetivos com certeza dentre os mais proeminentes é o de
um espectador consciente; consciente de sua condição de espectador.
Pleitear um espectador consciente de sua condição exige do autor (cineasta) sua
total consciência de autor: “A ‘mensagem’ é essa: situar o espectador, conseqüentemente
o ator e o autor, no seu lugar, consciente de sua condição”
75
.
O cineasta moderno não é mais o Deus de um mundo pprio. Articulando uma
linguagem que se quer explícita ou seja, uma linguagem que quer ser ela mesma
consciente; metalinguagem! , o cineasta moderno desce do Olimpo, abandona o
ponto de vista ideal, onisciente, privilegiado, completo de mundo, para organizar, o
mais criativamente possível, as informações do mundo objetivo, tal qual um rerter o
faria:
dramatizando ou adjetivando, o diretor do passado procurava destruir toda
resistência do espectador diante do mundo onírico que apresentava. Impunha
uma relação hipnótica através do enfeite e da falsificação da realidade,
porque não lhe interessava a realidade, mas a imagem da realidade
76
.
A consciência do ator é o nexo da consciência da linguagem que, por sua vez, é
reflexo da consciência do autor. O papel do ator, como vimos, é o de corporalizar a
presença do homem no mundo. Ele deve ser consciente de sua condição de ator e, por
isso, não se confunde com sua personagem. A personagem não fala através do ator; o
ator fala da sua personagem. Como diz Sganzerla, “uma das formas mais eficazes de
distanciamento é aquela realizada no ator, pelo próprio ator, através da consciência do
75
Ibid., p. 71.
76
Ibid., p. 55.
31
ator de que não está "vivendo" nenhum drama, mas simplesmente trabalhando num
filme”
77
. E, ainda,
nota-se que o distanciamento não é o problema do autor, mas dos
personagens, que afirmam sua liberdade através do universo de representação
teatral, exprimindo a consciência do trabalho, de que estão participando de
um filme e nada mais: eis um distanciamento dentro do distanciamento
78
.
É por isso que Sganzerla afirma, logo no começo do seu livro, que “o fim último
do cineasta contemporâneo não é o cinema, mas o espectador que junto com o ator
— constitui tese e antítese do cinema moderno”
79
.
O espectador do cinema moderno é livre para refletir sobre a obra da qual
desfruta. Ele não é mais obrigado a tomar as idéias de um filme como verdades
absolutas, que, agora, as idéias se apresentam como idéias, e não mais como
verdades. O público que assiste a um filme moderno tem consciência de que o filme é
um filme e, por conseguinte, tem consciência de que ele próprio possui papel ativo
enquanto espectador, atribuindo valor e importância a esta ou aquela idéia, rejeitando
outras, concordando ou discordando dos juízos do autor, que agora existe um autor.
Ao espectador do cinema moderno foi dado o direito de duvidar quanto a tudo ao que a
tela lhe depara e, por fim, de concluir por si próprio:
hoje o espectador não é iludido pela tela: passou a época da fascinação e do
deslumbramento alienante. De certa maneira, ele tem consciência de sua
situação - de que é um espectador, nada mais ("Bandido Giuliano", "Viver a
Vida"). O público não precisa aceitar em bloco o filme e as idéias contidas: é
preciso dar-lhe liberdade para que possa pensar e concluir por si mesmo.
Desde "Cidadão Kane", o espectador é um homem livre, seja para refletir
estes fenômenos sociais (Visconti, Rosi), seja para observar o mecanismo da
tragédia (Welles, Losey), ou simplesmente para deixá-lo livre (Godard).
Além da verdade do autor, na relatividade do cinema moderno impõe-se a
verdade do espectador
80
.
O recurso ao distanciamento crítico que passa também, além de tudo do que
falamos, pelo uso insistente da metalinguagem, como veremos no capítulo seguinte
situa o espectador do cinema moderno no lugar de espectador. O cinema moderno,
com seus planos longos, seus tempos mortos, seu estilo barroco e contraditório, suas
77
Ibid., p. 30.
78
Ibid., p. 72.
79
Ibid., p. 28.
80
Ibid., p. 31.
32
referências, citações, colagens e etc., descontenta o espectador que até então esteve ali
para viver outra vida que não a sua:
a moderna mise-en-scène institui o recuo crítico, procurando situar o
espectador no seu devido lugar, resguardando sua liberdade para aceitar ou
recusar as idéias do autor (pois na arte relativista ninguém é... perfeito, nem
lugar para o arbítrio moral-psicológico-sociológico ou para a ditadura da
ilusão disfarçada de real). Através de cenas longas, misturando estilos e
recursos teatrais, os diretores lembram ao espectador que ele não passa de
espectador de um sonho verdadeiro (somente) a 24 quadros por segundo
81
.
O cinema moderno não simplesmente diz, ele diz que diz, como se dissesse ao
espectador: eu estou lhe dizendo isto, o que me diz? Ou o espectador escolhe não
participar desse diálogo, ou ele é obrigado a dizer (para si mesmo, é claro) alguma
coisa. Quieto ele não pode ficar. Não ninguém para falar por ele. Ele está órfão de
verdades. É claro que estar sempre apto para formular uma opinião pode não parecer, e
não é, uma condição que se possa chamar de confortável. Mas esse é, quase sempre, um
revés da liberdade.
3.2. Os filmes modernos
a) A propósito de Welles e o seu Citizen Kane
Qualquer um que conheça um pouco a trajetória de Rogério Sganzerla sabe que
ele sempre teve fascínio pela figura e pela obra de Orson Welles. Noves fora todas as
citações e elogios ao cineasta americano em suas críticas e entrevistas, Sganzerla dirigiu
quatro filmes em homenagem a Welles: dois documentários A Linguagem de Orson
Welles (1993) e Tudo é Brasil (1997) e duas ficções — Nem Tudo é Verdade (1986)
e o seu último longa-metragem intitulado O Signo do Caos (2003).
Assim como Rogério e o seu Bandido, Welles estreou na direção com um longa-
metragem tão apurado e revolucionário em termos de linguagem que nenhuma obra
subseqüente conseguiu superar o estardalhaço provocado pela debutante. Citizen Kane é
a “obra máxima do cinema moderno”, “um marco”, “um divisor de águas” etc. Não é
preciso reproduzir os inúmeros adjetivos atribuídos ao filme pela crítica internacional ao
81
Ibid., p. 55.
33
longo de quase sete décadas. Interessa abordar aqui as características de linguagem que
fazem dele, segundo François Truffaut, o "filme que resume todos e antecipa todos os
outros".
Welles abre as perspectivas do cinema moderno, fechando definitivamente o
período mudo do cinema e do clássico sonoro que, por volta de 1935, segundo alguns
críticos, alcançou seu apogeu. Em 1941, com Citizen Kane, Welles condensa e leva ao
extremo as experimentações iniciadas aqui e ali por alguns cineastas, além, é claro, de
engendrar experiências próprias que iriam marcar as futuras gerações dentro e fora dos
Estados Unidos:
o criador de "Citizen Kane" muito influenciou a geração norte-americana de
após-guerra (Losey, Nicholas Ray, Ray Enright, Fuller, Preminger, Stanley
Kubrick), a "nouvelle vague" francesa e todas as outras da década de sessenta
em diante, inclusive e sobretudo o novo cinema no Brasil todo um cinema
baseado na recusa da montagem clássica, no amor pela cena longa (o que
supõe a liberação de ator, personagem, diálogo, música, mera e
microfone)
82
.
A cena longa
83
e a profundidade de campo são dois recursos apontados por
Sganzerla, recorrendo ao celébre crítico André Bazin, que marcam profundamente a
transformação dentro da linguagem cinematográfica. O primeiro porque, como diz
Rogério, libera o ator, os diálogos, a câmera, o microfone etc. Na medida em que você
tem cenas mais longas o controle sobre a cena é inevitavelmente menor. A rigidez do
cinema clássico perde espaço para improvisações dos atores e de toda a equipe de
técnicos. Mesmo com improvisações pequenas (aqui ainda estamos longe de um
radicalismo como o de Sem Essa Aranha), o clima da cena fica mais solto, mais realista.
o segundo recurso, a profundidade de campo, introduz uma “nova
perspectiva”, um novo olhar sobre a imagem cinematográfica:
a nova decoupagem (cenarização ou roteiro, forma de apresentar o conflito),
segundo o grande crítico André Bazin, é estabelecida por Orson Welles
através de dois recursos fundamentais (em suas mãos viram sinônimos de
duração concreta): a cena longa e a profundidade de campo (instituindo uma
nova perspectiva)
84
.
Em um artigo para o Suplemento Literário d'O Estado de S. Paulo, de 28 de
agosto de 1965, Sganzerla escreve que Welles “introduz um novo tratamento do
82
Ibid., p. 56.
83
Sganzerla usa o termo “cena longa” muito provavelmente como equivalente de “plano longo”.
84
Idem.
34
personagem”: o "herói fechado". Enquanto o herói clássico “requisitava a sua ilustração
frente à platéia, sendo-nos generosamente ofertado através de análises clínicas, lavagens
cerebrais, dissecações psicológicas ou intimistas”, o ‘herói fechado’, ao contrário,
“distancia-se de nós até tornar-se um núcleo inatingível”. E é exatamente isto o que se
passa com o personagem-título de Citizen Kane. A “ilustração” que Welles produz do
personagem é antes um mosaico de peças que não se encaixam e que sequer sabemos se
são verdadeiras.
Para Sganzerla, uma das poucas maneiras de apresentar, portanto, esse
personagem é, na verdade, aniquilando-o. Destruído o herói, “a câmera busca
depoimentos, remexe e fiscaliza o passado”. O herói é dado ao público através de
depoimentos de ‘terceiros’. Esse ‘olhar do outro’ é caro ao cinema moderno. Através
dele elimina-se todo o psicologismo dos personagens. O herói é rebatido em um jogo de
espelhos para longe de si, através da pessoa que relata que não é ele, é o outro e
através do tempo. Não se trata do Eu sou, mas do Ele era ou Ele foi. Tal recurso
dessacraliza o discurso, exatamente como o quer o cinema moderno. Ainda dentro do
artigo de 1965, Sganzerla diz:
Kane é apreendido em fragmentos independentes; vive através de flashbacks,
isto é, no passado, e neste processo o tempo assume importância capital; o
herói é rompido no tempo. Esta dialética repete-se em inúmeras obras do
cinema moderno.
No seu jogo de “fornecer múltiplos pontos de vista sobre uma mesma incógnita”,
a fita de Welles institui “uma técnica cinematográfica da reportagem”. Para Sganzerla,
não à toa “o fio condutor da história seja um jornalista” “a fita parece, de fato, uma
imensa reportagem sobre uma grande personalidade”.
Outro fator que evidencia a modernidade de Citizen Kane é a sua proximidade
com a linguagem e o universo do teatro. Welles aproveitou a sua carreira anterior, na
Broadway e arredores, para proporcionar novas “experiências sonoras” ao cinema de
sua época. Juntando ainda a sua carreira no rádio famosa pelo episódio em que
causou frison nos ouvintes numa adaptação radiofônica do texto A Guerra dos Mundos,
de George Orwell —, Welles conseguiu levar o "estilo radionovela" para algumas
seqüências de seu Citizen Kane. Segundo Rogério, “esquematicamente, pode-se definir
esta fita como uma híbrida junção entre reportagem e teatro... a serviço do cinema”.
35
No entanto, Sganzerla observa que, apesar de tudo, “o cineasta (Welles) não se
desligara completamente do cinema clássico da época”. No final de seu artigo, Rogério
reconhece que a visão ideal e absoluta do cinema clássico divide espaço, na fita, com a
visão relativista e inacabada do cinema moderno:
Ao mesmo tempo que a fita oferece uma visão relativa e condicionada do
universo (a impossibilidade de conhecer Kane, as limitações do nosso
mundo), pretende, no desenlace, oferecer uma visão ideal, absurda própria
de um Deus ou de um psicanalista... (nos momentos em que revela o segredo
da palavra). Idêntica ruptura observa-se na representação física da mise-en-
scène diante do real; em alguns momentos a mera localiza-se numa altura
sóbria, junto ao décor (especialmente nas entradas), em outros ela projeta-se
de alturas inimagináveis, talvez dos "céus da RKO", destacando os momentos
em que o diretor pretende penetrar diretamente, com a câmera, em segredos
indevassáveis (...)
Independente, porém, dessa coabitação de visões de mundo, os elementos que
dão forma à fita de Welles fazem jus à afirmação de Truffaut e preconizam, sem dúvida,
todo o movimento do cinema moderno — fundado, mais do que qualquer outra coisa, na
consciência da representação. Citizen Kane é o "filme que resume todos e antecipa
todos os outros" porque:
estão lá, na fita de 1941, todas as virtudes e vícios do cinema contemporâneo:
o excesso de diálogos, a mara subjetiva, a multiplicação de pontos de vista,
flashbacks em cadeia, plano-seqüência e plano-flash, montagem descontínua,
o ritmo variável, mistura de estilos, corte sonoro, abuso da lente grande-
angular, complexidade dos personagens, o protótipo do “herói fechado”, a
confusão da história, inúmeros personagens anônimos, voz off e os tempos
mortos, desdramatização pelo humor, os travellings e movimentos de câmara
intermináveis, foto-fixa e presença de anúncios luminosos, displays, out-
doors, cartazes e efeitos tipográficos, cine-jornal e falso-documentário, o
filme dentro do filme com a reflexão sobre o cinema, que nos leva indagar:
"Citizen Kane": começo e fim do cinema moderno? - Sim, simplesmente
porque, antes do neo-realismo e mais que todo cinema moderno, Welles sabe
que um filme é um filme e nada mais...
85
b) A propósito de Godard e o seu Vivre sa Vie
A consciência da representação, de certa maneira, aparece também até por
isomorfismo com o quase-aforisma “um filme é um filme” — em um dos títulos da obra
de Godard: Une femme est une femme. Já citamos este mesmo título quando tratávamos
da questão da câmera nica. Não à toa. A objetividade, a expressão de consciência e a
85
Ibid., p. 56.
36
simplicidade da fita muito bem sintetizadas no tulo são qualidades que
representam os principais avanços do cinema moderno.
Em uma frase, o filme narra o golpeque a herna (interpretada pela atriz
Anna Karina) aplica no amante a fim de realizar a sua vontade de ter um filho. No
final da fita, o amante — já ciente do golpe, porém resignado com o desejo de
maternidade de Anna Karina declara: “Vous êtes infame”. Com que ela responde:
“Non, je suis une femme”. Como quem diz: o lobo mau não é mau, o lobo mau é lobo!
Desadjetivação pura. Bem ao estilo de Godard, que sempre recusou os ‘excessos
literários e os simbolismos que procuram, através de psicologismos e melodramas,
alcançar uma suposta essência dos objetos e seres. Em Godard, a consciência do autor,
do ator e, conseqüentemente, do espectador como falamos acima alcaa
patamares nunca antes vistos no cinema:
mais do que ninguém, em Godard todos são livres: autor, ator (es) e
espectador(es). Valorizando a aparência das coisas, rompe com a convenção
e a tradição do artista que procura a essência do mundo através de recursos
espúrios de associação; simplesmente não trai nem submete as aparências a
aprisionismos estetizantes, obrigando-as (através de símbolos e acúmulos
literários) a dizer aquilo que não podem dizer. Um objeto não diz isto nem
aquilo; diz-se a si próprio; ele é
86
.
Godard declarou certa vez que o "verdadeiro cinema consiste somente em
colocar coisas diante da câmera". Vivre sa Vie, seu quarto longa-metragem, talvez seja
dos seus filmes o que melhor consubstanciou esse axioma na tela.
Sumariamente, Vivre sa Vie é o clichê não levado a sério, evidentemente
da mulher que apela à prostituição para conseguir sobreviver. Godard, no entanto,
desvia-se da armadilha que seria abordar tal chavão através de pontos de vista
psicológicos, morais ou sociológicos. O mérito do filme está justamente na habilidade
do diretor francês em “colocar coisas diante da câmera”; ou seja, compor o filme no
plano da pura visibilidade.
Para tanto, Godard recorre a um arsenal de efeitos "ingênuos", típicos do cinema
mudo: câmera constantemente fixa, longa duração dos planos, letreiros etc. A fita
compõe-se de doze quadros, doze seqüências curtas separadas pelos letreiros que
resumem o que será apresentado na seqüência seguinte. Em um estilo que lembra a
fotonovela, Godard subtrai passagens de tempo (narrativo-dramáticas) consideráveis
86
Ibid., p. 70.
37
entre uma seqüência e outra, ao mesmo tempo em que, nelas, focaliza instantes do
cotidiano através de planos longos e ‘tempos mortos’.
De estrutura teatral, dividida em quadros, a narrativa é estruturalmente
parcial; as seqüências focalizam breves momentos do cotidiano sem obedecer
uma continuidade narrativa. Entre uma e outra há consideráveis períodos
temporais que o filme não abrange; a tragédia permanece nas entrelinhas
87
.
Não são oferecidos ao espectador os detalhes da tragédia de Nana (a heroína). O
público desconhece as causas e os efeitos do que lhe acontece. A lógica dramática sofre
cisões propositais, a fim de que o espectador nunca se identifique com a tragédia da
protagonista. Aliás, todos os recursos dos quais falamos no parágrafo acima, e ainda o
humor de algumas passagens, impedem tal identificação.
Para alcançar a absoluta ausência de sentido dos seres e objetos e evitar a
ingerência da psicologia, da moral, da sociologia e da dramaticidade, Godard deu ao
filme um tratamento econômico, espartano. Desde a câmera até a elaboração dos
personagens, prevalece um certo despojamento: os movimentos de câmera foram
reduzidos ao essencial, o aparelho se limita ao estritamente necessário; os
enquadramentos mais abertos economizam as panorâmicas; abundância de planos
fixos, longos e estáticos; desconhecemos o passado e até os projetos das personagens.
Há, pois, “um extremo depuramento estilístico, ausência de aparatos dramáticos; a ação
é perfeitamente integrada na dimensão ocular, na pura visibilidade”
88
.
Por outro lado, o recurso freqüente aos close-ups, ao ‘escurecimento’, aos
silêncios, ao resumo da ação antes de cada seqüência pelos letreiros etc. remete
claramente à estética do cinema mudo.
Na verdade, Vivre sa Vie tal qual o Bandido, como veremos adiante é um
claro exemplo da tendência do cinema moderno em reunir e “cozinhar” diferentes
estilos e gêneros cinematográficos existentes e, ainda, somá-los com experiências
estéticas de outros campos artísticos. Vivre sa Vie vive dessa interação de estilos: a
comédia, o musical americana, o cinema mudo, o documentário, fotonovelas. E, ainda,
das inúmeras citações: ao filme de Dreyer (Joana D´arc), trechos de Poe, romances-
folhetins, piadas e drama italiano.
87
Ibid., p. 104.
88
Ibid., p. 106.
38
O coroamento da desdramatização em Vivre sa Vie se no final do filme, com
o assassinato da heroína, filmado em um plano-seqüência de quase três minutos, com a
câmera distanciada dos personagens. Sequer a morte da protagonista é dramatizada!
Jean-Luc Godard talvez seja o cineasta mesmo quando comparado com os
seus colegas da nouvelle vague francesa que melhor consubstanciou em seus filmes
a variedade de recursos estéticos apontados neste capítulo como pertencentes à
gramática do cinema moderno: a câmera cínica, a divisibilidade, a desdramatização, o
distanciamento crítico, a fusão entre ficção e documentário, o tempo morto, a mixagem
de gêneros etc., além, é claro, da consciência da linguagem: a metalinguagem.
39
SEGUNDA PARTE:
Cinema e Metalinguagem
1. O que é metalinguagem?
Metalinguagem é a propriedade que tem a língua de voltar-se para si mesma. Ou,
segundo o Novo Dicionário Eletrônico Aurélio
89
, é a linguagem utilizada para descrever
outra linguagem:
metalinguagem. [De met(a)- + linguagem.] S. f. 1. E. Ling. A linguagem
utilizada para descrever outra linguagem ou qualquer sistema de significação:
todo discurso acerca de uma língua, como as definições dos dicionários, as
regras gramaticais, etc. Ex.: Chover é um verbo defectivo. [Cf. função
metalingüística.]
Chover é um verbo defectivo é um exemplo de metalinguagem dentro da
linguagem escrita. Temos uma frase da língua portuguesa, escrita tais quais as regras
gramaticais desta língua, e, no seu significado, temos a exposição de uma regra
gramatical dessa mesma língua. É divertido perceber a função metalingüística, dentro
desse exemplo, ao observarmos, por exemplo, que a palavra verbo é, dentro da oração,
um substantivo.
Chover é um verbo defectivo
verbo verbo artigo substantivo adjetivo
89
Novo Dicionário Eletrônico Aurélio, Op. cit.
40
Perceba que a oração desvela o seu modo de construção. Nela, as estruturas da
linguagem escrita (verbo, artigo, substantivo, adjetivo e etc...) se articulam para gerar o
significado que disserta sobre a própria estrutura. No caso, esse significado conta da
palavra Chover, dizendo-lhe que é um verbo, e ainda, um verbo defectivo.
Chover é um verbo defectivo
verbo verbo artigo substantivo adjetivo
defectivo
No exemplo apontado, a função metalingüística tem a característica de expor o
que freqüentemente está velado. É interessante observar que essa qualidade, quase
sempre, vem acompanhada de um segundo predicado: o didatismo. Falaremos
demoradamente desta característica mais à frente.
Conforme nos diz Samira Chalhub, “para transmitir mensagens, o fundamental é
que haja uma fonte e um destino, distintos no tempo e no espaço. A fonte é geradora da
mensagem e o destino é o fim para o qual a mensagem se dirige”
90
. Este é um princípio
básico da lingüística moderna. Sem uma fonte e/ou sem um destino, não existe processo
comunicacional. Simplesmente porque não QUEM (fonte) ou PARA ONDE
(destino) se produzir a mensagem.
O modelo elucidado por Bühler para as funções da linguagem contava com a
primeira pessoa, o emissor ou remetente, com a segunda, o destinatário, e acrescentava
uma “terceira”, alguém ou algo do que se fala, a que se refere. Quando predominantes
dentro do processo comunicacional cada um desses fatores determina uma função da
linguagem, no caso, as funções emotiva, conativa e referencial, respectivamente.
No entanto, o famoso modelo de Roman Jackoson acresce três outros fatores.
Para ele, a comunicação verbal pressupõe necessariamente a interação de seis "fatores
inalienáveis", que podem ser assim esquematicamente representados:
CONTEXTO
EMISSOR... MENSAGEM... DESTINATÁRIO
CONTATO
CÓDIGO
90
CHALHUB, S. A Metalinguagem. São Paulo, Ática, 1986, p. 11.
41
Quando o fator CÓDIGO é predominante dentro do processo comunicacional
Jakobson diz que estamos diante da função metalingüística
91
.
Podemos dizer, portanto, que “a função metalingüística pode ser percebida
quando, numa mensagem, é o fator código que se faz referente”
92
. Ou seja, quando
aquilo do que se fala é, na verdade, o próprio código utilizado para se falar.
a função metalingüística, em síntese, centraliza-se no digo: é código
"falando" sobre o código: façamos um trabalho substitutivo, uma operação
tradutora: é linguagem "falando" de linguagem, é música "dizendo" sobre
música, é literatura sobre literatura, é palavra da palavra, é teatro "fazendo"
teatro
93
.
No caso da literatura brasileira, por exemplo, o código é a língua portuguesa. Por
isso, sempre que o texto de um poeta ou de um prosador brasileiro se referir à própria
língua portuguesa, estaremos diante de um texto metalingüístico. Vejamos este exemplo
dado por Chalhub:
quando João Cabral diz que "flor é a palavra flor", convida-nos a
sensibilizarmo-nos primeiramente com a realidade física do signo e com
toda a variação textual que essa "idéia" de flor recebeu, percorrendo as
tradicionais metáforas que se criaram a seu respeito
94
.
Quando lemos este verso de João Cabral de Mello Neto, ao contrário do que
normalmente fazemos, que é associar a palavra FLOR com a idéia geral que temos de
uma flor, somos levados a enxergar a crueza do código FLOR é a palavra FLOR,
formada pelas letras F, L, O e R. Como no esquema abaixo:
FLOR
idéia de flor
(que causa também uma profusão de relações: imagem de
flores, campo, rosas, buquê, margaridas, girassóis, abelhas,
tango, romance, perfumes etc.)
FLOR
=
FLOR
(palavra flor; de 4 letras; substantivo feminino etc.)
Enquanto a idéia de flor pode se relacionar, através de analogias no campo
semântico, com outras idéias que podem ser concretas como a de pétalas, rosas,
91
JAKOBSON, R. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1961, p. 118-32.
92
CHALHUB, S., op. cit., p. 27.
93
Ibid., p. 32.
94
Ibid., p. 21.
42
margaridas etc. ou abstratas como romance, por exemplo —, a palavra FLOR é vizinha
da palavra FLÚOR. As duas palavras nada têm de comum semanticamente, mas o têm
visual e sonoramente que é exatamente o que a palavra é, quando destituída de
sentido, conforme, por exemplo, a primeira acepção do dicionário Aurélio
95
:
1. Unidade mínima com som e significado que pode, sozinha, constituir
enunciado; forma livre.
Ou podemos colocá-la, conforme a sua segunda acepção no dicionário, ao lado
da palavra CAIXA, que também é um substantivo feminino.
2. Unidade pertencente a uma das grandes classes gramaticais, como, p.
ex., substantivo, verbo, adjetivo, advérbio, abstraídas as diferentes
realizações (marcas flexionais) que ela possa apresentar; lexema.
Enquanto a idéia de flor se relaciona com diversas idéias onde os significantes
são absolutamente estranhos (FLOR ABELHA ROMANCE), a palavra FLOR se
arrola numa lista de significantes análogos, porém estranhos no significado.
Perceba-se que no meu esforço em diferenciar a idéia de flor da palavra FLOR,
tenho me utilizado de capitulares para esta última. Isto porque quero deixar marcada a
grafia da palavra. Preciso destacá-la de algum modo, pois a tendência do leitor é de
relacionar a grafia “flor” com seu respectivo significado. Como nesse caso, eu,
remetente, não quero que você, destinatário, recorra ao seu repertório de sentidos para
atribuir significado à “flor”, preciso criar certo ruído na nossa comunicação para que a
palavra FLOR seja-lhe apenas a palavra FLOR. Este ruído poderia ser qualquer forma
de destaque (cores, aspas etc.). Escolhi as capitulares porque este recurso ajuda a
ressaltar a grafia da palavra.
Arnaldo Antunes obtém o mesmo efeito metalingüístico que João Cabral
que no caminho contrário — quando diz que “os nomes dos bichos não são os bichos”
96
.
Em vez de dizer que macaco é a palavra MACACO (como fez João Cabral com a
‘flor’), ele diz que a palavra MACACO não é o bicho macaco. É o mesmo propósito,
que a partir da negação. Vejamos, porém, a enrascada em que se mete o poeta ao tentar,
agora de forma afirmativa, dizer ‘quem são os bichos’:
95
Novo Dicionário Eletrônico Aurélio, Op. cit.
96
ANTUNES, A. Tudos. São Paulo: Iluminuras, 1990.
43
Os bichos são:
macaco gato peixe cavalo vaca elefante baleia galinha
97
Tudo bem dizer que “o nome dos bichos não são os bichos”. Causa o mesmo, ou
até menos, espanto do que quando João Cabral diz que “flor é a palavra flor”. O contra-
senso está no poeta que acaba de questionar o código e, na verdade, possui o
próprio código (ou seja, a palavra) para se expressar querer em seguida dizer o que
“os bichos são”. Evidentemente, a ironia de tal intento é o que constitui a ‘graça’ do
poema. O poeta ironiza o seu próprio ofício e, por tabela, todo o processo
comunicacional. Afinal, a única maneira de dizer o que “os bichos são” que não o
palavras, desenhos, fotografias ou qualquer outra forma de representação — é levando o
leitor a um zoológico. Feito isso, o leitor não seria mais leitor e o poeta não seria
mais poeta; seria o fim de qualquer processo comunicacional. Vemos, assim, que riscos
corre o emissor que questiona o seu próprio código. Obviamente, no mais das vezes, o
poeta (ou emissor) faz uso de tal recurso, valendo-se de seu domínio sobre o código,
com o objetivo de desautomatizar o repertório do leitor (ou destinatário), tendo por
finalidade última suscitar um efeito poético:
a mensagem poética, aquela que é cuidadosa e conscientemente codificada
pela emissão, introduz elementos ruidosos no canal, com o pressuposto de
que a recepção tenha um repertório desautomatizado que o incline
sensivelmente ao mesmo cuidado e à mesma consciência na decodificação,
na leitura do objeto artístico
98
.
No entanto, em casos extremos, ou por falta de domínio ou por um radicalismo
excessivo, o emissor chega mesmo a truncar o processo comunicacional e a desmerecer
a sua função de emissor. Quanto ao último caso, refiro-me a algumas experiências
´desvairadas´ da arte moderna que chegam mesmo a apregoar a morte desta ou daquela
forma de representação.
Vejamos outro exemplo. A palavra LIXO e a palavra LUXO possuem
significantes (grafias e sonoridades) muito próximos e significados, a princípio, muito
distantes. Porém, no famigerado poema concreto da figura abaixo, o poeta concretista
Haroldo de Campos recorre à semelhança gráfica dos dois significantes para produzir
um significado amplo, de contraste. Trabalhando o significante LUXO como pixels
97
Idem.
98
CHALHUB, S., op. cit., p. 17.
44
(gigantes) para dar forma ao significante LIXO, o poeta fez uso da metalinguagem
(chamando a atenção para o código) para produzir uma crítica de caráter lúdico:
O trabalho com a grafia dos significantes não pára por aí. Podemos perceber que
a palavra LUXO é desenhada com uma fonte serifada, rebuscada, que remete à
ostentação, enquanto a sua disposição na página constrói a palavra LIXO com o
desenho das letras bem simples, como a da trivial fonte ARIAL.
As observações que fizemos até aqui não são objeto exclusivo da teoria da
comunicação. Trata-se, em verdade, de um diálogo intenso entre diversas áreas do
saber. O citado livro Lingüística e Comunicação, de Roman Jakobson, opera um
estudo detalhado dessas relações, forjando uma ampla acepção do aspecto
comunicacional. As contribuições interdisciplinares de Jakobson as relações
dialéticas entre som e sentido, a função poética, os estudos sobre metáfora e metonímia,
os pontos de vista diacrônico/sincrônico etc. deve interessar a quem quiser
aprofundar-se na intersecção formada pelos campos da teoria da comunicação, da
lingüística e da semiótica.
Para não complexificar a questão mais do que o devido e não perdermos o foco
do nosso trabalho, continuaremos fazendo apenas os apontamentos necessários para que
o leitor persiga junto conosco os argumentos que levarão ao esclarecimento do termo
metalinguagem.
45
Samira Chalhub nos diz que, na mensagem de função metalingüística, “a
emissão organiza os signos para expor um modo de construção, seu aspecto sensível,
material, significante”
99
.
Saussure define o signo como uma unidade de significado e significante, sendo o
significado o conceito e o significante a imagem acústica/sonora do conceito.
Significado e significante possuem, portanto, uma forçosa relação entre si. No exemplo
dado por Samira Chalhub, “dizer relógio simultaneíza, na mensagem do falante, o
objeto relógio, qualquer que seja a sua forma particular, e não o objeto óculos, por
exemplo”
100
. O arbitrário do signo (a imagem acústica/sonora de relógio o
compartilha qualquer semelhança com o objeto relógio) “coloca-se na relação
convencional com o referente, em situação extralingüística”
101
. No entanto, o emissor-
poeta, quando seleciona o seu material para compor sua mensagem estética, “o faz
combinando os signos nas suas formas de equivalência, onde não existe a possibilidade
do gratuito, arbitrário, excessivo”
102
.
No poema ‘Relógio’, de Oswald de Andrade, a palavra relógio nem aparece. No
entanto, o poema como um todo procura, no ritmo sonoro de um movimento de ir e vir,
uma semelhança com o objeto relógio — o pêndulo, os ponteiros:
As coisas são
As coisas vêm
As coisas vão
As coisas
Vão e vêm
Não em vão
As horas
Vão e vêm
Não em vão
A composição sonora do poema imita uma característica do objeto relógio: a
circularidade, o eterno retorno, o ir-e-vir. Tal efeito é obtido por meio da repetição de
palavras, versos inteiros e sonoridades (rimas), ordenadas no espaço de uma
determinada maneira:
- os quatro primeiros versos repetem a expressão ‘as coisas’;
- a rima por adição no 3º. verso, resgatando os dois primeiros (
são + vêm = vão
);
99
Ibid., p. 19, grifo da autora.
100
Idem.
101
Idem.
102
Idem.
46
- o 4º. e o 5º. versos repetem, de maneira concisa e invertida, o sentido dos dois
versos anteriores (
As coisas vêm + As coisas vão = As coisas Vão e vêm
);
- os três versos finais repetem os três versos do meio, mudando apenas a palavra
coisas pela palavra horas;
A repetição, no entanto, por si não determina um ritmo de ir-e-vir. Por isso, o
poeta dispôs as palavras e rimas em alternância, bastando, para percebermos isso,
acompanharmos a palavra vão a partir do 3º verso:
As coisas são
As coisas vêm
As coisas vão
As coisas
Vão e vêm
Não em vão
As horas
Vão e vêm
Não em vão
A disposição da palavra vão ao longo do poema captura o movimento pendular
que satisfaz a idéia de um relógio. Segundo Chalhub, esse pequeno poema de Oswald
engendra uma “metalinguagem da mensagem poética, auto-reflexiva”
103
, na medida em
que “no dizer sobre o relógio, algo desse objeto se faz no texto”
104
.
Insistimos no argumento de que a relação ‘não-arbitrária’ existente entre o
poema ‘Relógio’ e o próprio objeto relógio se a partir de uma analogia sonora e
rítmica, tão somente para diferenciá-la da analogia gráfico-visual, menina dos olhos dos
poetas concretos — como veremos mais adiante.
2. A crise da figuratividade e as vanguardas européias
No quadro cultural dos anos de 1960/70, o recurso metalingüístico não era uma
novidade. No início do século XX, com a crise da figuratividade, as artes plásticas dão
o primeiro passo para o que seria a aventura metalingüística moderna. A partir das
vanguardas européias é possível identificar experimentações de linguagem que
caminham no sentido de incorporar o processo de produção na fatura da obra.
103
Ibid., p. 39.
104
Idem.
47
No entanto, isso não quer dizer que o recurso à metalinguagem seja um
fenômeno surgido na modernidade. Ela apenas se intensifica com a arte moderna,
qualitativamente, é verdade. Isto porque grande parcela da arte de fins do século XIX e
início do século XX coloca em pauta para si mesma a questão da linguagem. A arte
moderna não se propõe a discursar sobre a metalinguagem, não é ela o seu telos, mas a
linguagem. Contudo, sendo ela própria a arte linguagem, o saldo obtido no final
do processo é, conseqüentemente, um produto metalingüístico.
O advento da fotografia e a sua conseqüente popularização ao longo do século
XIX é o principal responsável pela chamada crise da figuratividade que transformou o
cenário das artes visuais ainda no final desse mesmo século. O encargo pelos retratos da
fidalguia e da emergente burguesia industrial saiu das mãos dos pintores e ficou como
encargo da fotografia. Tudo o que se quisesse representar fielmente, tendo por objeto o
mundo natural exterior, poderia ser representado utilizando-se desse novo processo. Já
não fazia parte da competência do pintor reproduzir, pura e simplesmente, as formas
existentes na natureza, o que lhe era, antes, quase que a totalidade de suas atribuições,
executando-as uns com maior gênio, outros com menor.
São exatamente nesses momentos de crise que o artista pára para refletir sobre o
seu papel e o papel de sua obra. No momento em que o artista produz refletindo sobre
sua obra, ele está executando um procedimento metalingüístico.
É verdade, portanto, que a metalinguagem se tornou um dos principais alicerces
da arte moderna. Nenhum pesquisador que estude quaisquer das diversas manifestações
artísticas do século XX, e queira ser levado a sério, pode deixar de abordar, mesmo que
em diferentes escalas de importância, a questão da metalinguagem.
Iremos encontrar este mesmo tipo de pesquisa que tende a tomar o próprio
código como objeto de seu discurso em muitas manifestações artísticas do início do
século XX, que será retomado no binômio 50/60. O movimento construtivista dos anos
1920, liderado pelo poeta e intelectual russo Vladímir Maiakovski, vai influenciar o
movimento concretista brasileiro da metade do século que, por sua vez, influenciará os
compositores tropicalistas e os autores marginais da década de 60.
48
3. A metalinguagem no cinema
A arte do século passado, como dissemos, tem uma impressionante capacidade
de auto-reflexão. Com o cinema, arte que nasce junto com o século XX, o que se viu
não foi diferente. Ou seja, o cinema nasce com experiências, não raras, de auto-
reflexão.
A metalinguagem aparece no cinema como estratégia de auto-referência
através, basicamente, de duas formas: os filmes que se referem ao universo
cinematográfico atras da temática e os filmes que explicitam o discurso
cinematográfico propriamente dito. Neste último caso, o recurso da metalinguagem é
parte integrante e indissociável da trama
105
do filme.
Ana Lúcia Andrade, em seu livro O filme dentro do filme
106
, ilustra este
argumento com dois filmes da década de 1910: The Countryman and the
Cinematograph, de Robert W. Paul e Those Awful Hats, de D. W. Griffith. O primeiro
filme se passa em uma sala de cinema onde um countryman
107
, estupefato com a
novidade do cinematógrafo, esboça reações de acordo com as imagens do filme que
aparece na tela grande. O filme faz alusão às primeiras reações dos espectadores diante
de uma projeção cinematográfica. De acordo com Ana Lúcia Andrade, neste exemplo,
o filme dentro do filme é essencial para o desenrolar da trama”, pois o caipira interage
diretamente com as imagens do ‘segundo’ filme. Ou seja, nós, espectadores de The
Countryman and the Cinematograph, assistimos a dois filmes simultaneamente: o filme
ao qual o caipira assiste e, obviamente, o próprio The Countryman and the
Cinematograph.
O outro filme do qual falamos se passa também em uma sala de cinema, mas
desta vez é a platéia a protagonista da trama. O público assiste ao filme At the
Crossroads of Life, de Wallace McCuttcheon, contudo, não é este filme que está no
centro da ação. O que chama a nossa atenção são as mulheres que chegam com seus
grandes chapéus atrapalhando a visão do resto da platéia e provocando confusões. Ou
seja, a trama de Those Awful Hats possui, efetivamente, como elemento central uma
105
Usaremos sempre o termo trama para designar a estrutura do enredo (análogo ao primeiro sentido da
palavra é que o da construção de um tecido a partir do entrelaçamento de fios). E utilizaremos a palavra
enredo no seu sentido mais corrente que é o de fábula.
106
ANDRADE, A.L. O Filme dentro do Filme: a metalinguagem no cinema. Belo Horizonte: UFMG,
1997.
107
O equivalente a homem do campo ou da roça; caipira; sertanejo.
49
platéia, mas não necessariamente uma ‘platéia de cinema’. A trama poderia muito bem
desenrolar-se com quase qualquer tipo de platéia, como a platéia de um teatro, por
exemplo. É claro que a opção de Griffith pela ‘platéia de cinema’ não é arbitrária
pode ser uma homenagem ou outra intenção qualquer —, mas devemos admitir que o
‘cinema’ não passa de um motivo acessório à trama. Conforme nos diz Ana Lúcia
Andrade, At the Crossroads of Life “não interfere diretamente na ação, servindo apenas
como referência para o espectador de Those Awful Hats”.
Retornaremos a essa diferenciação entre dois tipos de metalinguagem no tópico
seguinte, onde pretendemos aprofundar a questão, que é do nosso maior interesse.
Porém, a introdução do tema torna-se imperativa ainda neste tópico pelos motivos que
se apresentam a seguir.
O livro de Ana Lúcia Andrade é importante e mesmo o único a abordar com
exclusividade a questão da metalinguagem no cinema. No entanto, a abordagem feita
pela autora, apesar de conter relevantes contribuições para o esclarecimento da questão,
tende à cinefilia e ao deslumbramento. A tese principal do livro é possível dentro de
tal tendência, visto que não podemos deixá-la de perceber como parcial, como se
olhasse para apenas um lado da moeda. Dizer que
a metalinguagem como elemento criativo 'liberta' o espectador passivo,
através da ilusão de participação estabelecida. O espectador acompanha uma
suposta 'construção' do filme que se utiliza deste recurso e a participação se
dá através da decodificação do discurso
108
é, de fato, uma redução. E não se trata aqui de uma frase fora do contexto, que a tese
de que a metalinguagem cria “uma situação de projeção/identificação para com o
espectador” é clara e repetidamente defendida ao longo do livro.
A metalinguagem é sim capaz de produzir um efeito de projeção/identificação
ainda maior do que o já causado pela impressão de realidade. Mas só um tipo de
metalinguagem é capaz de produzir tal resultado. Uma metalinguagem que é a menos
metalinguagem de todas. Uma metalinguagem que, em verdade, nem metalinguagem é;
preferimos denominá-la de metacinema e, tão somente, se por metacinema entendermos
o cinema que fala do cinema ao nível do discurso e não ao nível da linguagem!
Sabemos que a questão é polêmica, mas é principalmente em torno dessa polêmica, que
consideramos essencial para o nosso trabalho, que se desenrola todo o restante deste
capítulo.
108
Ibid., p. 141.
50
É verdade que a maioria dos filmes analisados pela autora se encaixa exatamente
nessa categoria de “metalinguagem”, dando assim uma aparente sustentação para a tese
do livro.
Um dos filmes abordados por Ana Lúcia Andrade, por exemplo, é o Quando
Paris alucina (1964), de Richard Quine. As personagens desse filme estão escrevendo
o roteiro para um segundo filme, chamado A garota que roubou a Torre Eiffel. As cenas
deste segundo filme vão sendo mostradas para nós ao mesmo tempo em que as
personagens de Quando Paris alucina as escreve. Ou seja, enquanto na diegese de
Quando Paris alucina a história A garota que roubou a Torre Eiffel está ainda em
fase de roteirização, para nós, espectadores, ela está pronta, em som e imagem. No
entanto, a história do primeiro filme não se restringe a escrever a história do segundo. O
filme de Quine é uma típica comédia romântica da época, na qual os protagonistas
Richard Benson (William Holden) roteirista famoso, preguiçoso e perdulário
contratado para escrever o tal roteiro e a sua secretária Gabrielle Simpson (Audrey
Hepburn) se apaixonam. Existem, portanto, duas histórias, sendo que a primeira contém
a segunda; a segunda não contém nenhuma outra história além da sua própria: meta-
história, meta-narrativa, meta-cinema.
É importante frisar que essa nossa tentativa de diferenciação não pretende
desmerecer ou ignorar o inteligente jogo de referências e citações que o roteiro de
Quando Paris alucina promove com o universo cinematográfico. Pelo contrário.
Quando, na tentativa de distinguir os diferentes tipos de metalinguagem, dizemos que o
filme de Quine se encaixa na categoria de metacinema, estamos reconhecendo e
salientando as qualidades do seu roteiro e dos seus propósitos. Se Quando Paris alucina
quisesse fomentar uma reflexão profunda sobre a linguagem cinematográfica, o filme
teria sido um fracasso. No entanto, o que o filme quer, e consegue, é promover um
diálogo, principalmente através do chiste, com o universo do cinema. Não de maneira
crítica, mas também não de maneira acessória, que a referência ao repertório
cinematográfico é indissociável da trama do filme. O universo do cinema é, portanto,
para o roteiro de Quando Paris alucina, material abundante para a comédia. As
saborosas paródias ao universo dos gêneros hollywoodianos o western, o gangster
etc. provam isso. Podemos dizer ainda, para concluir essa pequena análise, que tais
paródias possuem um humor comedido que, sem dúvida, tem como efeito o riso da
platéia. Não é o humor debochado, zombeteiro ou ácido como, por exemplo, o presente
nos filmes do ciclo marginal, assunto do nosso próximo capítulo. É um humor dosado e
51
‘responsável’, haja vista que tais paródias ao universo do gênero não ‘maculam’ o
próprio filme — ele mesmo de gênero: o da comédia romântica.
Assim, podemos concordar com Ana Lúcia Andrade ao afirmar que, no caso de
Quando Paris alucina, o fenômeno da projeção/identificação do espectador para com o
filme se intensifica, mais ou menos como na gica de “o que não mata, engorda”. Ou
seja, todo filme (e os exemplos são muitos) que se refere tematicamente ao cinema e
não o questiona enquanto linguagem terá sempre grandes chances de aumentar a
fascinação do espectador para consigo.
Outro exemplo de metacinema, mais recente, analisado pela autora é o famoso A
Rosa púrpura do Cairo (1985). Neste filme, de Wood Allen, vemos a protagonista
realizar o feito ‘absurdo’ de entrar em um filme através da tela, no momento da
projeção. A “metalinguagem”, neste caso, é de fato aplicada de maneira mais audaciosa
do que no exemplo anterior. Não são mais personagens que escrevem e imaginam um
segundo filme que se materializa em imagem e som para nós. Aqui, mais um elemento
da cadeia cinematográfica é incorporado à metalinguagem: o espectador. Não nós,
espectadores de A Rosa púrpura do Cairo, mas a protagonista deste, que faz o papel de
espectadora na diegese. Na verdade, a metalinguagem, neste caso, está mesmo centrada
sobre ela, personagem-espectadora.
Segundo a autora, a protagonista é ‘premiada’ com a possibilidade ‘surrealista’
de entrar fisicamente em um filme que está sendo projetado porque é uma espectadora
atenta uma cinéfila. Este exemplo é, pois, o melhor para a tese da autora. Ele ilustra
metaforicamente o processo de projeção/identificação dos espectadores com o filme: o
espectador projeta-se no filme, quer participar dele.
Estes dois exemplos mostram apenas que o livro optou por um caminho que é
parcial e tendencioso. E que, dentro deste caminho, os argumentos da autora se valem.
O problema aparece quando a autora analisa exemplos mais complexos, filmes que se
valem de outro tipo de metalinguagem.
Em 8 ½, o filme dentro do filme pertence à “categoria das obras de arte
desdobradas, refletidas em si mesmas”
109
. Ora, não se trata mais do filme que fala de
outro filme, mas do filme desdobrado em si mesmo. A distinção é tão cara para nós
quanto o é para o debate cinematográfico e estético de forma geral. Tanto que, em
109
METZ, C., op. cit., p. 217.
52
1966, em um artigo para o periódico Revue d´Esthétique, Christian Metz
110
dedica-se
integralmente a argumentar o sentido de tal diferenciação.
No artigo, Metz afirma — no sentido que estamos aqui tentando defender — que
não basta falar do filme dentro do filme: “8 ½, é o filme 8 ½ sendo feito; o filme dentro
do filme é aqui o próprio filme”.
Em nenhum momento do artigo Metz cita o termo metalinguagem, mas o
conceito está lá, ilustrado nesse caso específico de metalinguagem — pela expressão
“construção em abismo”, tomada da linguagem da ciência heráldica
111
. Na heráldica,
fala-se em “construção em abismo” quando, no interior de um brasão, um segundo
brasão reproduz fielmente o primeiro em menor tamanho. Este tipo de experiência
visual não deve ser estranha à maioria de nós. Alguns designers de embalagem de
produtos atestam essa experiência no nosso cotidiano: um pote de margarina que traga a
ilustração de uma personagem segurando o mesmo pote de margarina que, por sua vez,
deve trazer a mesma ilustração na qual a personagem segura um pote de margarina e
assim por diante.
Em seguida, sustentado por estudos predecessores, Metz irá dizer que,
diferentemente de outros diretores que também se utilizaram da “construção em
abismo” em seus filmes
112
, Fellini foi o primeiro que “construiu todo o seu filme e que
organizou todos os elementos em função desta estrutura”
113
. Advertindo que os outros
“parcialmente merecem esse nome”, pois neles o filme dentro do filme aparece como
“um processo marginal ou pitoresco”, como “mero truque de roteirista” ou como “uma
construção fragmentária”.
Com base nisso, Metz i dizer que 8 ½ é, então, “um filme duas vezes
desdobrado, e se for tido como construído em abismo é de uma dupla construção em
abismo que se trata”
114
. E argumenta:
Não temos apenas um filme sobre o cinema, mas um filme sobre um
filme que, ele também, teria tratado do cinema; não apenas um filme sobre
um cineasta, mas um filme sobre um cineasta que reflete ele próprio sobre
seu filme. Uma coisa é mostrar, num filme, um segundo filme cujo assunto
110
Republicado em METZ, C., Ibid., p.217-224.
111
Arte ou ciência dos brasões.
112
Os filmes citados no artigo são La fête à Henriette de Jeanson e Duvivier; Le silence est d’or de René
Clair; e La prison de Ingmar Bergman.
113
Ibid., p. 218, grifos do autor.
114
Ibid., p. 219, grifo do autor.
53
tem pouca ou nenhuma relação com o primeiro (...); outra é falar, num filme,
desse mesmo filme sendo feito
115
.
Nesse momento, Metz faz uma consideração em nota de roda-pé que para nós é
importante destacar para justificar nossos esforços de nomenclatura (ainda que não
tenhamos bibliografia suficiente para “dar nome aos bois” com relativa tranqüilidade,
por isso, vale a intenção primeira que é a da distinção dos conceitos). Observa o autor:
Podemos também considerar é antes uma questão de vocabulário que a
expressão “construção em abismo” se aplica a estas obras que definimos
como duas vezes desdobradas, e não ao conjunto dos casos habituais em que
aparece um filme dentro do filme, um livro dentro do livro ou uma peça
dentro da peça. Um brasão não é considerado em abismo todas as vezes que
reproduz um outro brasão, mas apenas quando o reproduzido, sem considerar
o tamanho, é idêntico ao primeiro
116
.
É nesse sentido que falamos que Quando Paris alucina, A Rosa púrpura do
Cairo e exemplos semelhantes se enquadram na categoria de metacinema, pois o filme
representado dentro do primeiro filme tem pouca ou nenhuma relação com este. Dessa
forma, somos obrigados a reconhecer que tais exemplos nada têm a ver com a
construção em abismo, tampouco com o conceito de metalinguagem entendido como a
mensagem que chama a atenção para o código, ou na qual o código se faz referente
117
.
De volta ao artigo de Metz, o que fica evidente é que em 8 ½ o filme dentro do
filme se distancia do seu uso corrente inclusive nos pormenores. O filme que o
protagonista de 8 ½ — o personagem de Guido, que se confunde com a figura de Fellini
vai realizar nunca nos é mostrado, nem mesmo em fragmentos. Desta forma, para o
bem da verdade, não existe nenhum outro filme dentro da diegese de 8 ½. Existem
apenas as contundentes intenções da personagem de Guido que pretende fazer um filme
exatamente como o filme que Fellini realiza: o próprio 8 ½. Um fragmento que fosse do
filme de Guido dentro da diegese do filme de Fellini efetuaria uma distância entre um e
outro. No entanto, não é isso que acontece. Nas palavras de Metz, “o filme de Fellini é
feito com tudo o que Guido teria gostado de colocar no seu, e é por isso que este último
nunca nos é mostrado separadamente”. Esta é, pois, uma imposição do método de
“construção em abismo” levado às últimas conseqüências. Para Metz, é justamente
115
Idem, grifo do autor.
116
Idem, nota de rodapé no. 10, grifo do autor.
117
Mais uma vez, não queremos abolir o uso, que é corrente e sistemático dentro da língua, da palavra
metalinguagem para todos os casos em que aparece um filme dentro do filme, um livro dentro do livro
etc. Apenas faz-se necessária a distinção dentro deste trabalho. Examinaremos a questão com ainda mais
cuidado e apreço no tópico seguinte, no qual pretendemos definir melhor as categorias metalingüísticas.
54
“porque o filme dentro do filme nunca aparece separadamente no primeiro filme que ele
pode a tal ponto coincidir com ele”
118
.
Acreditamos que o que foi dito até aqui é o suficiente para distinguir dois tipos
de metalinguagem. Ou seja, os exemplos aqui fornecidos demonstram claramente que a
aplicação do recurso metalingüístico pode ser bastante diversa. No entanto, o assunto
não está esgotado. Faz-se necessário, ainda:
a. Definir com maior esforço teórico e objetividade os dois tipos de
metalinguagem no cinema dos quais falamos até aqui;
b. Acrescentar ainda outras tantas variantes do recurso metalingüístico;
c. Definir, para o uso dentro deste trabalho, o que se entenderá por cada uma
das nomenclaturas e conceitos a serem abordados.
4. Metalinguagens
Neste tópico, nosso esforço será o de esclarecer o que entendemos por cada um
dos diferentes tipos de metalinguagem e como eles serão aplicados no interior deste
trabalho, principalmente quando efetuarmos as análises dos filmes propostos. Que fique
claro que não pretendemos esgotar a questão que, como se pode notar, é bastante
complexa e denota um amplo conhecimento, inclusive de diferentes áreas. Nosso
esforço, portanto, deve ser entendido como mais um dentre tantos que o necessários
nessa direção.
Fizemos até aqui a distinção entre o que chamamos de metacinema e o que
estamos denominando de “construção em abismo”. No entanto, ainda falta uma terceira
categoria de metalinguagem a ser tratada.
Esta terceira categoria se quando a mensagem efetivamente chama a atenção
para o código que está a transmitir aquela mesma mensagem. Ou seja, quando a
linguagem de determinado meio salta aos olhos do receptor, quando ela deixa de estar
velada pelo discurso.
118
Ibid., p. 221.
55
Lembremos a definição dada por Jakobson para a função metalingüística: “a
função metalingüística pode ser percebida quando, numa mensagem, é o fator código
que se faz referente”
119
.
Vejamos, agora, caso a caso, sob o prisma de tal definição, as três categorias. No
caso do metacinema, o que se faz referente não é necessariamente o código do cinema, a
linguagem cinematográfica, mas, as inúmeras facetas da “instituição” Cinema: a
indústria, as formas de produção, a vida dos atores, a sala de projeções, o espectador etc.
Se analisarmos rapidamente, veremos que nada disso tem a ver com a linguagem
cinematográfica propriamente dita. Pensemos, para simplificar, no caso de um escritor,
no caso de uma obra literária. Falar sobre a caneta que o escritor usa em suas obras, seu
caderno, o lugar onde se senta para escrever, se é canhoto ou se é destro, nada disso dirá
uma vírgula sobre a linguagem escrita.
No metacinema, ainda que em alguns momentos pareça que o código esteja
sendo tomado como referente, é de um código “tematizado” que se trata, um código que
passa como que desapercebido em meio ao discurso, um código “acessório”, “objeto de
cena”. Por exemplo, se estou fazendo um filme sobre um diretor de cinema qualquer, o
código do cinema deverá ser “tematizado” de vez em quando e, ainda assim, isso não
causará o menor espanto no espectador: corta!”, “e aquele close que eu pedi?”, “não
temos grana pra tomada aérea!”. No entanto, não causará nenhum espanto se
permanecer “tematizado”, sempre ao nível da diegese, pois se chegar a “contaminar” a
linguagem do filme primeiro, aquele que efetivamente está sendo visto, aí então teremos
o “choque”, e estaremos falando daquele terceiro tipo de metalinguagem citado.
É por isso que, realmente, como afirma Ana Lúcia Andrade, este tipo de
metalinguagem é capaz de produzir um efeito de projeção/identificação. Porque, no
fundo, a linguagem não está sendo desnudada, é o universo daquela instituição que está
sendo enriquecido na medida em que é explorado.
119
JAKOBSON, R. op. cit., p. 118.
56
Poderíamos representar o metacinema pela figura abaixo:
Metacinema: a linguagem do cinema não é desdunada
No caso da “construção em abismo”, também não é o código que se faz referente
necessariamente. A “construção em abismo”, na maioria das vezes, é uma
metalinguagem ao nível da narrativa, ou seja, uma metanarrativa. Metanarrativa é o
nome dado a todo o discurso que se vira para si mesmo, como no caso de Oito e meio.
Nesse sentido, o artifício da “construção em abismo” também não é capaz de gerar
espanto no espectador, podendo, em certos casos, cooperar, mais uma vez, para um
maior efeito de projeção/identificação — pensando no caso do próprio Fellini.
Por fim, o terceiro tipo de metalinguagem do qual falamos, que passaremos a
chamar de “metalinguagem de forma”. Sob o arco desse conceito inserimos todo o
discurso que, de fato, incide sobre o código, que lhe coloca em evidência. É o momento
em que a linguagem abandona os subterrâneos do processo comunicacional para
encontrar a consciência cognitiva do “leitor”. É como quando o personagem Neo
“enxerga” a matrix, no primeiro filme da série Matrix
120
. Quando o significante troca de
lugar com o significado
121
.
Há inúmeras maneiras de se produzir tal resultado. A “metalinguagem de forma”
acontesse, por exemplo, quando ocorre um “erro” na aplicação da linguagem. No caso
do cinema, existem diversos artifícios capazes de produzir o mesmo tipo de efeito.
120
filme americano de 1999 realizado pelos irmãos Andy e Larry Wachowski.
121
Muitos lingüistas usam a metáfora de uma “moeda” (duas faces) para explicar que significante e
significado são indissociáveis. Pensemos, dentro desta metáfora, no ato de girar essa moeda com a face do
significante para cima.
57
Como exemplo, poderíamos citar os casos em que um ator olha para a câmera e
demonstra sua condição de ator. Ou quando o maquinário pertencente à produção
daquele mesmo filme, e não de outro, vaza para dentro da tela. Ranhuras e defeitos na
película, descompasso entre som e imagem, descompasso entre estilos etc., tudo isso
chama a atenção do espectador para o código, faz do código o “protagonista” do filme.
Nesses casos, e em outros tantos, o que transparece não é o filme-objeto
produzido, mas a engenharia da linguagem cinematográfica operando sobre o filme,
como se pudéssemos “enxergar” através dele. Na verdade, os exemplos que demos são
aqueles mais simples, capazes de serem “reconhecidos” por qualquer um que tenha o
mínimo de conhecimento sobre o que é assistir a um filme. Sim, porque é imperioso que
o leitor do “texto” metalingüístico identifique o artifício, por meio, obviamente, dos
seus conhecimentos sobre aquela linguagem.
Não é possível citar todas as possibilidades da aplicação desse tipo de
metalinguagem no cinema, mas veremos algumas quando da análise efetiva dos filmes
no último capítulo.
Poderíamos representar, esquematicamente, a “metalinguagem de forma” no
cinema pela figura abaixo:
“Metalinguagem de forma”: a linguagem do cinema é desdunada
Nesse tipo de aplicação da metalinguagem no cinema, o espectador é distanciado
da obra, havendo um efeito contrário ao da projeção/identificação. Na medida em que o
espectador identifica o mecanismo da linguagem cinematográfica atuando, o discurso
58
perde certa força. A impressão de que ele carrega uma “verdade do mundo” é desfeita e
o espectador é levado a se distanciar.
4.1. Intertextualidade
A palavra intertextualidade significa relação entre textos e, se entendermos
“texto” como um recorte no conjunto de significações culturais, podemos aplicar o
conceito de intertextualidade não ao texto escrito ou verbal, mas também ao cinema,
à música e outras produções culturais.
Referências, citações, colagens, paródias ou pastiches são algumas das formas de
intertextualidade a partir das quais é possível que se estabeleça um diálogo entre um
texto e outras produções pré-existentes. Esse diálogo pode servir à ratificação daquilo à
que se refere, mas também pode formar o contraditório, negando tudo aquilo a que se
remete.
Numa produção simbólica é importante considerar que a significação está em
potencial, terminando de ser construída quando da leitura por parte do destinatário
daquele texto. Dessa forma, é preciso levar em conta que a intertextualidade não se
apenas na produção, mas se manifesta também na recepção. Nesse momento são criadas
novas conexões, as quais são guiadas por percepções que são baseadas em repertórios
específicos. Dessa forma, conceitos como os de cópia e influência começam a se
relativizar. Com o estudo da intertextualidade é possível entender que todo texto pode
ser lido como parte integrante de outros textos, que contribui tanto para sua composição
quanto para sua transformação.
Como dissemos, a intertextualidade pode tomar diferentes formas: citação,
colagem, paródia, pastiche etc. Falaremos agora de cada uma delas em separado.
Falamos de citação sempre que um determinado locutor reproduz, no seu ato de
enunciação, um outro ato de enunciação originário de um locutor diferente (ou de si
próprio, num outro momento).
A citação é a forma mais corriqueira de intertextualidade. No dia-a-dia, em
conversas informais, estamos sempre nos referindo ao que outros disseram sobre o
assunto. No entanto, raramente reproduzimos exatamente, palavra por palavra, este
outro discurso. Nas obras culturais, de maneira geral, a proporção é a mesma. Podemos
59
dizer que quase todas citam, em algum momento, obras alheias, ao passo em que são
raras as obras que incorporam ipsis literi o texto ao qual se referem.
Estou, aqui, desde já, querendo fazer uma distinção entre o conceito de citação e
o de colagem. Para fins deste trabalho, usarei o termo citação sempre que a apropriação
do discurso alheio seja livre. Ou seja, sempre que o autor evocar ou reproduzir um
determinado enunciado em função de sua significação, de maneira ampla, tendo em
conta, não o texto original tal como ele foi efetivamente “escrito”, mas da sua
interpretação nas condições de enunciação. No caso de incorporações de trechos
inteiros, ipsis literi, usarei o termo colagem, tendo em vista que a palavra e seu arco de
associações semânticas servem melhor a este propósito: recorta-se um pedaço do
original e “cola-se”, sem diluições, no espaço reservado a ele na nova obra.
Apesar do escasso material bibliográfico específico sobre estes termos ainda
que existam muitos que tratem da intertextualidade de forma genérica — e, até por isso,
de algumas confusões acerca da delimitação de tais conceitos, podemos dizer que, de
maneira geral, nossa proposta de utilização dos termos é a mais bem aceita.
Portanto, falaremos em colagem, no caso específico do cinema, quando trechos
inteiros de outros filmes, ou qualquer texto audiovisual, forem incorporados de maneira
a que se reconheça o “procedimento de colagem”, efetivado no momento da montagem
do filme. Desta forma, todo material que, entre um corte e outro, for reconhecido como
pertencente a outro texto audiovisual, será uma colagem.
a citação, como dissemos, é algo mais corriqueiro, o que a torna mais difícil
de ser identificada. Existem citações mais explícitas e outras menos, no entanto, pelo
processo de reconhecimento e/ou reidentificação da relação com o texto original por
parte do leitor é que ela se efetiva.
Existem inúmeras intenções possíveis por trás das aplicações de procedimentos
intertextuais. O artista raramente procede à intertextualidade para recuperar um sentido
perdido ou oculto. Na maioria das vezes, ela é utilizada ou para homenagear o original
ou para parodiar sentidos esperados ou convencionais.
A paródia é uma intertextualidade de fundo humorístico, jocoso, zombeteiro
que, na maioria das vezes, tem por finalidade a crítica e a contestação. Por sua própria
característica, a paródia é sempre irônica, na medida em que a citação é colocada em
um contexto que a distorce e, normalmente, a torna ridícula.
Outro termo subjacente aos conceitos de metalinguagem e intertextualidade é o
de pastiche. Originalmente, o termo deriva da palavra italiana pasticcio (massa ou
60
amálgama de elementos compostos), e era utilizado, durante a Renascença, para referir-
se às imitações, produzidas com intenções fraudulentas, de quadros de grandes mestres
italianos. O conceito chegou à França no século XVIII como pastiche, e com menor
carga pejorativa.
Hoje o termo é comumente entendido como imitação dissimulada do estilo de
um ou mais autores, conseguida por meio da manipulação de linguagens. No pastiche,
o textooriginal torna-se reconhecível através da temática ou da tônica autoral. Ou
seja, no caso do pastiche, a intertextualidade não se dá exatamente sobre um outro
texto, mas sobre um estilo, uma estética, uma “escola”. A relação que o pastiche
mantém com o texto-fonte possui um caráter ambíguo, pois oscila entre a homenagem e
a subversão, mostrando-se um recurso eficaz em ambas possibilidades.
Com relação às condições que concorrem para o sucesso do pastiche como recurso
intertextual, é fundamental que no texto original seja visível um conjunto de traços
peculiares, de temas recorrentes, um estilo autoral passível de ser apreendido,
compreendido e convertido.
61
TERCEIRA PARTE:
Cinema Marginal
O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema
como tamm da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso
sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos.
Nesse país, tudo é possível e, por isso, o filme pode explodir a qualquer momento.
Rogério Sganzerla, maio de 1968.
Neste capítulo, iremos tratar de três aspectos que envolvem o Cinema Marginal,
matriz estética heterogênia na qual, segundo diversos autores, se situa a filmografia de
Rogério Sganzerla, ainda que possamos fazer uma ressalva, a respeito de tal classificação,
para o caso dos filmes que analisaremos. O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de
Todos são os dois primeiros longas de Sganzerla e inserem-se no que Ismail Xavier
chamou de “situação-limite”
122
, curto período de tempo em que se adensaram os
conflitos da luta política, ideológica, cultural e militar. Período, portanto, propício a
confluências entre o que vinha se fazendo e projetos absolutamente novos. Dessa forma,
os contornos não são claros, mas difusos. Por conta disso, tanto é difícil chamar um
filme como Terra em Transe de Cinema Novo, como é difícil classificar estes dois
filmes de Sganzerla com o rótulo Cinema Marginal. De qualquer modo, este capítulo
servirá menos ao debate em torno destes rótulos do que à discussão que efetivamente
nos leva até eles.
Em primeiro lugar, falaremos da conjuntura sócio-estético-política em que se
insere o Cinema Marginal. Tal exposição se faz necessária pela razão, quase auto-
evidente, de que a análise dos filmes propostos ficaria bastante prejudicada caso
omitíssemos tais informações. Está claro para nós que seria impossível empreender uma
análise satisfatória dos filmes de Sganzerla sem explicitarmos algumas questões
estético-ideológicas acerca do que se tem chamado, não sem muita polêmica, de Cinema
Marginal. Isto porque muito do que iremos tratar em nossa análise faz eco com estas
formulações históricas: a polaridade ideológica da Guerra Fria; no Brasil, o soterramento
de expectativas progressistas pela instaurão, e depois pelo enrijecimento, da ditadura
militar; o florescimento de respostas estéticas das mais diversas; o pleno desenvolvimento
122
XAVIER, I. Alegorias do Subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993.
62
dos meios de comunicação de massa, com a sedimentação da indústria da televisão, o
estouro da atividade publicitária etc.
A seguir, trataremos da conflituosa relação entre o Cinema Marginal e o Cinema
Novo. Nesse tópico, iremos discutir como o desinteresse do Cinema Marginal com
relação às expectativas sociais do começo da década 60, explicado pelo agravamento da
conjuntura sócio-política ao final dela, parece ser o ponto de partida para a sua
diferenciação com o Cinema Novo. O grupo do Cinema Marginal defendia uma
experimentação que, pelo teor agressivo e quase “ilegível”, era associado à idéia de
cinema underground daí o apelido pejorativamente cunhado pelo grupo do Cinema
Novo, udigrudi.
O rótulo Cinema Marginal é também uma designação pejorativa. Muitos autores
e críticos tentaram, posteriormente, criar novos “nomes” para esse conjunto de filmes e
cineastas: Cinema Experimental, Cinema de Invenção (Jairo Ferreira), etc. Mas, apesar
dos esforços, o termo mais corrente, inclusive no meio acadêmico, continua sendo
Cinema Marginal.
O rótulo, como disse Ismail Xavier
123
, teve seu lado confuso também, podendo
parecer a designação de um tipo de cinema que aborda o tema da marginalidade, no seu
viés sociológico, o que, apesar de parecer corresponder a alguns exemplos específicos,
não é válido para todo o conjunto. Na realidade, como veremos no terceiro tópico deste
capítulo, esta é uma característica que nem deve ser levada em conta. A experiência
Marginal tem mais a ver com certo imaginário e suas correspondentes atitudes,
traduzidas antes em aspectos formais do que temáticos.
O terceiro tópico, portanto, tratará dos elementos estéticos apontados como
comuns entre os filmes associados à matriz Marginal. Veremos como a estética Marginal
supera o esteticismo cinemanovista ao incorporar elementos tidos como ‘menos nobres’ e
outros até considerados ‘anti-estéticoscomo o sujo, o feio, o grotesco, o cafajeste, o
ruim, o lixoso etc. Veremos também a valoração, por parte dos “marginais”, do choque,
do estranhamento e da agressão, como estratégia central na relação obra-público. Por fim
— e é o que mais nos interessa discutiremos o diálogo permanente dessa estética com
os meios de comunicação de massa (TV, rádio, cinema) e a indústria cultural (histórias
em quadrinhos, romances policiais, propaganda etc.), além de apontar sua insistente
utilização de recursos metalingüísticos (colagem, citação etc.).
123
Idem.
63
A redação desses ts tópicos deve ser suficiente para dar suporte à futura análise
dos filmes de Rogério Sganzerla. Quem necessitar ou tiver interesse de se aprofundar nas
questões aqui apresentadas pode consultar a bibliografia sobre o Cinema Marginal
devidamente destacada no final deste trabalho. De dentro dela se sobressaem as obras
Cinema Marginal (1968/1973), de Fernão Ramos; e Alegorias do Subdesenvolvimento,
de Ismail Xavier. Ambos renderam a maioria das idéias e informações necessárias para a
redação deste capítulo e foram também muito importantes para a efetiva análise dos
filmes no catulo 4.
1. A conjuntura Marginal
O início dos anos 60 foi marcado por forte entusiasmo, dadas as expectativas de
que o Brasil e toda a América Latina figurariam, ao lado de outros países do chamado
Terceiro Mundo, no epicentro das transformações que os levariam à tão sonhada
Revolução. Hoje sabemos que o curso da história foi outro, completamente diverso. As
ditaduras no continente latino-americano instauradas, quase todas, em meados dessa
mesma década soterraram amargamente essas esperanças progressistas, ao mesmo
tempo em que radicalizaram a condição periférica da região.
Para estudar a produção cultural brasileira no final daquela década
notadamente a partir da promulgação do AI-5 no ano de 1968 é necessário levar em
conta o papel do artista frente o descompasso entre expectativas nacionais e a realidade,
esta sim, cada vez mais pungente na negação de uma suposta predeterminação do país a
avançar para um possível estágio pós-capitalista.
No entanto, dentro da esfera cultural, o “balde de água fria” ativou respostas
estéticas autenticamente revolucionárias, de que são expressões, por exemplo, o
movimento Tropicalista, a encenação de O Rei da Vela por José Celso Martinez
Corrêa a partir do texto de Oswald de Andrade —, Terra em Transe (1967), de Glauber
Rocha, e o próprio Cinema Marginal.
No cinema, tornou-se clara a disposição dos diretores em diagnosticar a
condição do país naquele momento. Nesse aspecto, os termos subdesenvolvimento e
terceiro mundo ganham relevância e passam a ser insistentemente citados pelos
diretores dentro de seus filmes.
64
Por outro lado, esses mesmos cineastas tinham pela frente o desafio de produzir
respostas, em termos de linguagem, à complicada questão da relação obra-público. Era
pungente a preocupação de se fazer, ou não se fazer, as concessões necessárias para a
comunicação com o grande público. Faz eco com esta questão o debate, muito em voga
na passagem dos anos 1950 para os 1960, sobre o cinema de autor, formulação que
surge de dentro das páginas da Cahiers du Cinéma
124
, a partir de um artigo de François
Truffaut, que opunha, implicitamente, arte e mercado. O chamado cinema de autor
questionava a valoração de um filme pelo seu sucesso ou seu fracasso comercial.
Segundo Ismail Xavier, essa questão da eficiência de mercado
foi um dos divisores na polêmica que envolveu cineastas do Cinema Novo e
uma nova geração que exigia a continuidade de uma estética da violência, de
um cinema mais empenhado na expressão radical do autor do que nas
concessões viabilizadoras dos filmes como mercadoria
125
.
O período, rico em debate e militância, propiciou formas de produção
alternativas, emancipadas da custosa produção industrial, possibilitando experiências
estéticas radicais. Tal emancipação atingiu seu ‘ponto ótimo’ no final da década de 60,
período em que foram produzidos O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos:
No final da década de 60, a negação do cinema como instituição (=
organização industrial + convenções de linguagem + consagração crítica e
publicitária no mercado) atingiu seu ponto culminante, digamos assim,
referindo a prática de alguns cineastas brasileiros à das vanguardas dos anos
20, numa retomada contemporânea à dos europeus, como Jean-Luc Godard e
Jean Marie Straub
126
.
Ao mesmo tempo, a problemática da Indústria Cultural e dos meios de
comunicação de massa que, nas primeiras décadas do século XX, gerou intenso
debate entre os teóricos e filósofos da Cultura adquire, nos anos 60, uma nova
envergadura. No Brasil, a urbanização, o avanço tecnológico dos meios audiovisuais e a
escalada da indústria da publicidade e propaganda deflagram o processo de
adensamento desta problemática.
124
Importante revista de cinema francesa fundada nos anos 1950, tinha entre seus críticos e colaboradores
nomes como François Truffaut, Jean-Luc Godard e André Bazin.
125
XAVIER, I. Alegorias do subdesenvolvimento, op. cit., p. 10.
126
Ibidem, p. 15.
65
Na segunda metade dos anos 60, tivemos uma nova inflexão na consciência
de artistas e críticos quanto à questão da industria cultural no Brasil, gerada
pela urbanização, pelo desenvolvimento dos meios audiovisuais e pelo boom
da propaganda. O mercado cultural e o da informação crescem em
importância e se transformam em área privilegiada de interesse. É o momento
em que são criadas as faculdades de Comunicação e se aceleram as traduções
de livros clássicos de análise da cultura de massa e da sociedade do
consumo
127
.
No plano estético, a Tropicália é a expressão clara e evidente dessa “nova
consciência” de que fala Ismail Xavier. Ainda segundo o autor, “o movimento em
direção à Tropicália envolve a elaboração de uma crítica acerba ao populismo anterior a
64, o político e o estético-pedagógico”. Na medida em que nega o discurso populista, os
projetos de poder e a alegoria pedagógica, a Tropicália é a expressão de uma crise. Crise
que envolve a figura do intelectual e o seu fracasso.
O Tropicalismo demonstra fortes marcas de influência da herança oswaldiana e
se utiliza do seu característico antropofagismo para reavaliar as naufragadas esperanças
progressistas da geração anterior.
Na interrogação, na pesquisa e na agressão, o tropicalismo de 68 se fez
confluência de inspirações; enquanto experiência de montagem do diverso,
trouxe múltiplas tradições para o centro da cultura de mercado. Abrangente
em seu diálogo, afirmou uma poética muito peculiar que o auxiliou a cumprir
esse papel de síntese, pois, no seu retorno a Oswald de Andrade, fez da
intertextualidade o seu maior programa, completando, deste modo, o arco de
reposições do Modernismo de 20 realizado no binômio 50/60
128
.
No entanto, a antropofagia do tropicalismo de 68 se insere nesse contexto
completamente diverso de que estamos tratando, no qual uma indústria cultural vigorosa
e presente tornara-se hábil em absorver “a subversão e o veneno da paródia”
129
. O
programa intertextual tropicalista deveria, portanto, se reinventar a todo tempo para não
perder sua força de contestação.
É difícil hoje, no momento em que a citação é programa rotineiro da mídia,
recuperar o contexto em que se fez possível um programa intertextual com
aquele sentimento de ruptura que lhe deu a Tropicália, tendo como focos,
simultaneamente, a questão nacional e a questão de uma estética dos meios,
esferas onde interviu disposta a submeter
130
.
127
Ibidem, p. 16.
128
Ibidem, p. 20.
129
Idem.
130
Idem.
66
O programa tropicalista, na medida em que opera insistentemente com os
recursos da intertextualidade, da citação e da colagem, demonstra uma vocação
metalingüística intrínseca. Tanto em suas composições musicais sem dúvida as mais
características do movimento — quanto nas artes visuais, o procedimento metalingüístico
ocupa papel central.
No seu jogo de contaminações nacional/estrangeiro, alto/baixo,
vanguarda/kitsch o Tropicalismo pôs a nu o seu próprio mecanismo. Ou
seja, chamou a ateão para o momento estrutural das composões,
lembrando um tipo de efeito de estranhamento que ganha maior nitidez nas
artes visuais e de mise-en-scène; as que, não por acaso, tiveram papel
fundamental para o impacto das canções. Pela função que cumpriu no
procedimento tropicalista, a citação se articulou a um outro protocolo de
modernidade, igualmente programático e variado em suas acepções: a
reflexividade, a exibição dos materiais e do próprio trabalho da
representação
131
.
Essa “vocação metalingüística” do tropicalismo, quando encarada dentro do
cinema, assume uma outra dimensão, muito particular, dada a forte relação da técnica
cinematográfica com a fascinação, tal como explicitamos no primeiro capítulo deste
trabalho.
Podemos dizer, com certa liberdade, que o Cinema Marginal é a expressão
tropicalista em suas vestes cinematográficas. Tal afirmação não é conclusiva, que a
confluência de inspirações deste novo cinema abarca ainda outras experiências, como a
da Nouvelle Vague, notadamente as experiências conduzidas pelo citado cineasta
francês Jean-Luc Godard.
São estes, pois, os vértices que se destacam na conjuntura daquele final da década
de 60 e que propiciam o surgimento dessa nova visão de cinema e aplicação da linguagem
cinematográfica que é o Cinema Marginal: no plano político-ideológico, o soterramento
das expectativas progressistas do início da década e o conseqüente abandono dos projetos
de poder; no plano sócio-cultural, o pleno estabelecimento de uma sociedade de consumo
de massa e o forte papel exercido por uma cada vez mais presente indústria cultural; no
plano tecnológico, os avanços dos meios audiovisuais; e, por fim, no plano estico, o
movimento da Tropicália, em sua retomada ao antropofagismo de Oswald de Andrade, e
as experiências mais radicais da Nouvelle Vague francesa e do cinema de Godard.
Sabemos que, em termos histórico-contextuais, existe, entre tais vértices, uma
infinidade de acontecimentos os quais, no entanto, somos obrigados a negligenciar aqui.
131
Ibidem, p. 21
67
Demos destaque ao que, para nós, pareceu mais importante ao objetivo final deste
trabalho que é a análise dos dois primeiros filmes de Sganzerla. A década de 60 é famosa
no mundo inteiro como “a década que nunca acabou”, pela efervescência dos seus
acontecimentos históricos, alguns dos quais devem ser aqui citados, para que fiquem
como imagens mentais, em um espetacular pano de fundo a serviço de nossos propósitos:
a polaridade bélico-ideológica da Guerra Fria, a efetiva Guerra do Vietnã, o Maio de 68
na França, a contracultura, a conquista do espaço, a morte de Che, as ditaduras latino-
americanas, a promulgação do AI-5, a Tropicália, os festivais da Record, o trágico
desfecho da encenação de Roda Viva etc.
2. Cinema Novo versus Cinema Marginal
O desprendimento do Cinema Marginal com relação a formas de compromisso e
expectativas sociais parece ser o ponto de partida para a sua diferenciação com o
Cinema Novo. O Cinema Marginal não traz consigo as esperanças de nenhuma fração
da sociedade:
A problemática da marginalidade no cinema brasileiro quando situada
historicamente por volta de 1970 tem, a meu ver, a singularidade de não
conter em seu horizonte o discurso, extremamente reincidente no começo da
década, em torno da necessidade efetiva de uma intervenção da obra na
realidade concreta de maneira a transformá-la
132
Este discurso reincidente no começo da década”, ao qual Fernão Ramos se
refere, é o discurso do Cinema Novo e de Glauber Rocha: “[...] o autor é o maior
responsável pela verdade: sua estética é uma ética, sua mise-en-scène é uma política.”
133
A conjuntura do final da década de 1960 obriga a nova geração a repensar essas
premissas cinemanovistas. Nesse novo quadro, a efetiva intervenção social do cinema,
tão cara aos autores do Cinema Novo, passa a ser questionada pela geração marginal.
[...] temos, então, um quadro em que determinadas prioridades com relação à
efetiva realização “social” da obra cinematográfica e que eram encaradas
como prioritárias inclusive para a definição da qualidade estética destas
132
RAMOS, F. Cinema Marginal (1968/1973): A Representação em seu Limite. o Paulo, Brasiliense, 1987, pg.28.
133
ROCHA, G. Crítica do Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, p. 14.
68
aparecem agora como secundárias e distantes do centro nevrálgico do
universo ideológico destes novos autores.
134
Como foi apontado acima, o Cinema Marginal não pode e não quer trilhar o
mesmo caminho do Cinema Novo. Enquanto este se utiliza, prioritariamente, das tais
alegorias-pedagógicas para comunicar uma mensagem que visa a transformações
políticas na sociedade, o Cinema Marginal faz uso da irreverência, do deboche, do
kitsch, do grotesco e da ironia para formular um cinema provocativo que, no entanto,
não tem como objetivo primeiro a intervenção na realidade político-social do país.
Tratar-se-ia de um certo desengano que fica muito bem ilustrado com uma das frases
inicias de O Bandido da Luz Vermelha: “Quando a gente não pode fazer nada, a gente
avacalha”.
O Bandido, aliás, é muitas vezes citado como um divisor de águas. Ele pode ser
entendido, segundo Fernão Ramos, como “o ponto de partida para o que mais tarde seria
o Cinema Marginal”
135
. O Bandido da Luz Vermelha é um daqueles filmes em estado de
adensamento de que falamos, assim como Terra em Transe. Não podemos chamá-lo
simplesmente de ‘marginal’. A própria Helena Ignês, em entrevista, nos manifestou essa
recusa. No entanto, concordamos com Fernão Ramos quando ele diz que O Bandido,
não sendo a encarnação do Cinema Marginal, “pode ser compreendido como o
deflagrador deste processo, que se apresenta como uma ruptura que parte do bojo do
Cinema Novo e vai, aos poucos, se distanciando dele”
136
.
Terra em Transe, por outro lado, não é mais Cinema Novo. Na verdade, o
filme de Glauber é a própria representação da crise desse cinema. E é aqui que os dois
filmes, o de Glauber e o de Sganzerla, se tocam. Não em equivalência, em parecença,
mas como uma espécie de passagem do bastão em corrida de revezamento.
Os dois filmes são produtos de uma mesma crise, mas vasculham horizontes
opostos. Apoiados sobre o mesmo terreno de adensamento, se escoram de costas um
para o outro. Glauber procura o equívoco deixado pelo caminho, enquanto Sganzerla
tem os olhos no futuro.
É o fim das ilusões. O poeta de Terra em Transe procura pelo erro cometido.
Talvez ainda acredite poder salvar seus sonhos. O bandido já não os tem.
não pensa em construir; autodestrói-se. (...) Sganzerla escolhe uma estratégia
134
RAMOS, F, op.cit., p. 29.
135
Ibidem, p. 78.
136
Ibidem, p.76.
69
radicalmente diferente, diria aoposta, da do Cinema Novo. (...) Questionar
o poder do discurso da arte leva a questionar a própria arte e o lugar do
artista. Não mais a certeza da nobre missão política do artista engajado. Não
mais a certeza do poder do discurso cinematográfico. Talvez esteja a razão
profunda do conflito entre marginais e cinemanovistas
137
.
Em Alegorias do Subdesenvolvimento, Ismail Xavier analisa exatamente estes
dois filmes e, com muita propriedade, discute a relação entre eles dentro desse quadro
de adensamento que ele chamou de “situação-limite”. Não temos como sequer fazer um
resumo das suas idéias aqui, pois o exercício teórico do professor é vasto, complexo e
bem amarrado. No entanto, gostaríamos de fazer duas longas citações deste livro com o
propósito de amarrar, dentro do que para nós é suficiente, essa nossa exposição sobre o
par Terra em Transe/ Bandido. O primeiro trecho pertence ainda à introdução do
trabalho e expõe a cisão provocada a partir destes dois filmes:
A partir de filmes como Terra em Transe e O Bandido da Luz Vermelha, as
alegorias se fizeram expressões encadeadas, ou da crise da teleologia da
história, ou de sua negação mais radical, marcando um corte frente a figurações
anteriores da história, passagem que encontrou seu termo final nas expressões
apocalípticas saídas da nova geração que rompeu com o Cinema Novo no final
da década. Em tais expressões, a perplexidade e o sarcasmo se traduzem em
estruturas agressivas que, negando horizontes de salvação, afirmam uma
antiteleologia como princípio organizador da experiência. Ao descartar a feição
programática do nacionalismo cinemanovista, a nova estética da violência traz
o desconcerto e obriga a repensar toda a experiência
138
.
No segundo trecho, que pertence já ao último parágrafo de sua análise do
Bandido depois de também operada a análise de Terra em Transe —, Ismail, de
certa forma, conclui:
[...] acentuar a passagem dos emblemas, da fome ao lixo, no movimento que
nos leva de Glauber a Rogério, é propor uma formulação econômica da
mudança de perspectiva face ao quadro brasileiro. Dentro do contexto da
estética da fome, o sertão de Deus e o Diabo é assumido como lugar de uma
teleologia e a profecia da Revolução coloca a experiência nacional no centro
da ordem mundial. O traço distintivo do presente face à história seria a
vocação do Terceiro Mundo para cumprir uma tarefa universal, operar
transformações essenciais à humanidade em seu caminho rumo à liberdade.
Terra em Transe (...) é a versão glauberiana da crise destes pressupostos
históricos; versão dramática deste empurrão para a periferia que reitera, no
entanto, o lado revolucionário da violência como resposta do oprimido plena
de sentido. O bandido dessacraliza de vez o tempo, se aloja no vácuo gerado
pela crise da história. Sua paródia à teleologia tem como parâmetro
organizador o próprio senso de periferia, assumido agora não mais como
anomalia insuportável.
137
Carim Azeddine em artigo intituladoA estética do lixo do bandido SganzerlaIn www.contracampo.com.br
138
XAVIER, I. Alegorias do Subdesenvolvimento, op. cit.
70
Distanciando-nos desse ponto de saturação que foi Terra em Transe/ Bandido e
partindo propriamente para a comparação entre o Cinema Novo e o Cinema Marginal,
quando observados de longe, com limites melhor definidos, veremos que a diferença
entre os programas determina as grandes divergências que vamos encontrar na temática
e, principalmente, na linguagem cinematográfica empregada pelos dois grupos.
O ‘purismo’ estético dos cinemanovistas, que tinham como referência apenas os
cineastas de inquestionável ‘bom gosto’, é substituído pelo processo marginal de
incorporações mil, que vai do clássico aos filmes considerados ‘classe B’, com
acentuada predileção por estes últimos.
Interessa aos marginais exatamente uma crítica à linha “esteticista” do
Cinema Novo que tinha como referências cineastas evidentemente com uma
obra maiúscula e um lugar garantido na história do cinema. A atração por
cineastas e produções classe B”, assim como a atração pelo estilo kitsch, se
desenvolve neste sentido
139
.
A metalinguagem como realização estética programática é outra destacada
característica que está presente no Cinema Marginal e não se vislumbrava no Cinema
Novo. A colagem, a citação, o pastiche e outras inúmeras manifestações intertextuais,
como veremos no próximo tópico, ocupam lugar central no “programa” marginal, ao
passo que são raras essas mesmas manifestações nas obras cinemanovistas.
O dimensionamento da cultura da fome em termos de uma elaboração
intertextual, assim como toda problemática metalingüística em torno da
“curtição” de gêneros e estilos cinematográficos, está de forma geral ausente
do horizonte do Cinema Novo. Não se vislumbra em “Uma Estética da
Fome” a possibilidade de questionamento do universo que se combate,
através do aproveitamento lixoso de seus detritos
140
.
O Bandido marca as principais diferenças entre os dois cinemas. Podemos
sinalizar as disparidades mais relevantes entre os dois movimentos apenas com
exemplos extraídos do primeiro longa de Sganzerla. Os cenários tipicamente rurais e
sertanejos com grandes planos gerais do Cinema Novo, por exemplo, dão lugar a uma
urbanidade desconstruída e fragmentada. Enquanto Glauber e o pessoal do Cinema
Novo se utilizam de uma cultura popular regionalista, volta e meia identificada como
139
RAMOS, F., op. cit., p. 76.
140
Ibidem, p. 75.
71
baliza de resistência à cultura importada, Sganzerla aproveita os restolhos da indústria
cultural e dos meios de comunicação de massa para representar uma ‘identidade
brasileira’ completamente diversa no seu tratamento.
[...] não utilização da cultura popular rural ou mesmo urbana, como matriz da
“identidade cultural” brasileira, mas sim a utilização de “resíduos” urbanos
da cultura de massa, no que ela possa possuir de mais anacrônico, grosso e
colonizado.
141
A postura ‘esteticista’ do Cinema Novo, muito similar à que se encontra nas
rodas literárias que, com raras exceções, possui um medo enorme de se contaminar
com a cultura industrial —, é completamente rechaçada por Sganzerla. O Bandido é
mundano; não tem medo de se infectar com os detritos de uma cultura de massa barata.
Na verdade, ele não não teme como parece se sentir atraído por essa cultura. Possui
uma espécie de tara pelo vulgar, pelo kitsch, pelo universo da indústria, pela cultura
massificada. Ele não foi feito para ser colocado em um pedestal. Não quer ser tomado
como sagrado, nem como herói de nada.
Como veremos em nossa análise, existe no Bandido uma vocação para deglutir.
Com essa aptidão antropofágica, o Bandido incorpora um sem número de referências
culturais sem valorar sua origem. Ao contrário do Cinema Novo que assim como a
tribo da famigerada passagem do romance O Guarani, de José de Alencar, só canibaliza
heróis de elevada coragem —, Sganzerla deglute todo um universo cultural tido como
de segundo ordem.
A capacidade de deglutição é exatamente o que, a meu ver, distingue de
forma radical O Bandido do Cinema Novo, em cujo estômago objetos menos
apetecíveis eram imediatamente expelidos e ainda acompanhados de toda
uma ladainha sobre as impurezas de sua constituição. A atração antropofágica
de O Bandido por todo um mundo industrial, urbano, cinematográfico, que
circunda a realidade da metrópole, não contém em si um discurso valorativo
que intervenha dispondo este universo numa hierarquia de importâncias
142
.
Outra diferença com o Cinema Novo que encontramos no Bandido e que,
como dissemos, se estenderá pela vasta produção marginal é o abandono daquela
abordagem séria e reflexiva dos dilemas nacionais. O Bandido, no seu deboche e no seu
141
GRAÇA, M; AMARAL, S; GOULART, S. Cinema Brasileiro: Três Olhares. Niterói, EDUFF, 1997. pg.76
142
RAMOS, F., op. cit., p. 78.
72
avacalho, é o “reflexo distorcido da realidade”, “espelho ironicamente deformado pelo
subdesenvolvimento”
143
.
A cisão provocada pelo O Bandido da Luz Vermelha junto ao Cinema Novo
pode muito bem ser resumida por este depoimento de Carlos Ebert, operador de câmera
e diretor de fotografia do filme:
Mais do que romper com a hegemonia do Cinema Novo, que havia se
transformado num sonolento cinema de teses socio-políticas, O Bandido
incorpora definitivamente à nossa cinematografia a "contribuição milionária
de todos os erros" de que falava Oswald de Andrade o chefe dos
antropófagos e pai dos tropicalistas.
3. A estética Marginal
Em oposição à “Estética da Fome” de Glauber Rocha, o parônimo “Estética do
Lixo”, cunhado para definir a estética do Cinema Marginal, nos uma boa idéia do
que esses novos autores pensavam esteticamente para as suas produções. Como foi dito
acima, enquanto o Cinema Novo incorpora a precariedade para lhe ter o controle e dela
fazer um tipo de estética dentro dos padrões de “bom gosto”, o Cinema Marginal quer
expor e ressaltar esta precariedade trazendo-a para dentro do filme. O resultado é uma
mistura de elementos considerados anti-estéticos: o sujo, o feio, o grotesco, o cafajeste,
o ruim, o lixo etc.
A vocação para deglutir, isenta de um juízo de valor para com os elementos a
serem deglutidos, é o que caracteriza a estética marginal e a distingue, prioritariamente,
da estética cinemanovista. E é justamente esta aptidão para o antropofagismo
oswaldiano que trará ao grupo marginal a possibilidade de promover inúmeras citações,
colagens, intertextualidades e incorporações sem que os seus autores passem por
impostores.
Ao falarmos sobre a conjuntura do Cinema Marginal e da sua diferenciação com
o Cinema Novo, acabamos falando um pouco de suas características formais. No
entanto, queremos salientar uma dessas características. A vocação intertextual das
produções marginais é a sua característica mais complexa e, para nós, é a que mais
interessa. A análise da estética metalingüística dos filmes marginais deve ser encarada
143
GRAÇA, M; AMARAL, S; GOULART, S, op. cit., p. 76.
73
por dois ângulos: (1) quais são e de onde se originam os elementos por eles
incorporados e (2) de que maneira estes elementos se incorporam às obras.
As duas principais origens das incorporações perpetradas pelo Cinema Marginal
são, sem dúvida, a indústria cultural (quadrinhos, publicidade, romances policiais etc.) e
os meios de comunicação de massa (rádio, televisão e cinemão). Em seguida, vem o
cinema de vanguarda e o experimental produzido ao redor do mundo (o underground, a
nouvelle vague etc.).
os alvos de suas incorporações são exatamente os personagens, os cenários e
as ações mais características de cada uma dessas matrizes. Ou seja, aqueles elementos
que melhor lhe definem. Do rádio e da televisão, por exemplo, os elementos
incorporados vão desde os “cantores de iê-iê-iê, locutores cafajestes, mocinhas
apaixonadas, galãs cafonas, etc.”
144
até os clichês do “jornalista abutre”, do apresentador
de programas de platéia, etc.
Nos filmes marginais, esses personagens se misturam a todo um repertório de
personagens tipificados, pertencentes ao imaginário popular mais imediato, como a
bicha, a madame, o grã-fino, a puta, o malandro etc. O diferencial marginal está no
tratamento dado a estas personagens, em múltiplos processos de estilizão.
Estas figuras são recortadas de uma matriz que é cultural, para serem
coladas ao lado de outras personagens e sobre cenários subtraídos de outras matrizes
culturais. Interessa aos marginais não mais a realidade, mas os meios. As personagens,
os cenários e as ações o se inspiram em uma realidade objetiva e particular, mas sim
em objetos culturais massivamente disseminados. Segundo Fernão Ramos, a ficção
marginal “se distancia de qualquer parâmetro realista e caminha, através de
procedimentos de estilização diversos, para o universo do gênero, onde as atitudes dos
personagens são exageradas, deformadas ou caricaturais”
145
.
Outra questão importante que Fernão Ramos identiica é a “extrema rarefação da
intriga e o completo descaso para a construção do universo diegético”
146
dos filmes
marginais. A maneira pela qual as referências são incorporadas contribui para esse
universo diegético “capenga”, desdramatizado e anti-catártico. A colagem’ das
personagens, dos cenários e das ações é feita de maneira a não esconder o seu caráter de
‘colagem’. É possível divisar os limites entre uma referência e outra, o que enfraquece o
144
RAMOS, F., op. cit., p. 81.
145
Ibidem, p. 127.
146
Ibidem, p. 132.
74
universo diegético. As referências são janelas na estrutura diegética de um filme, na
medida em que interliga dois mundos. Na grande maioria dos filmes, elas estão bem
distribuídas, entreabertas e possuem uma cortina translúcida que harmoniza o pouco que
se vislumbra através delas com a fachada do edifício (metáfora para a diegese do filme).
O filme marginal é um ‘queijo suíço’ de enormes janelas escancaradas e descortinadas.
A sua diegese não se sustenta. A arquitetura do edifício marginal foi projetada de
maneira a priorizar suas janelas e não para ostentar uma bela fachada.
As maneiras pelas quais as referências são incorporadas no filme marginal são
inúmeras. Pode ir de uma simples citação textual à colagem de trechos inteiros extraídos
de outro filme. Nas obras marginais, todos os diferentes elementos que compõe a
linguagem cinematográfica podem ser lugar de uma referência: os diálogos, as trilhas
sonoras, os cenários, a fotografia, o estilo da encenação, os personagens etc. Não
regras. A única característica comum entre as incorporações é a sua assumida condição
intertextual.
A forma pela qual a narrativa marginal se apropria da narrativa clássica é a
“citação”, ou seja, a inserção dentro da tessitura do filme de trechos inteiros
característicos de outras obras. Ou, então, esta incorporação é realizada
através da reprodução, de forma estilizada, do universo ficcional próprio da
narrativa clássica: a fotografia, a trilha musical, cenários, personagens. Nesta
reprodução, raramente paródica, são aproveitados determinados traços
marcantes do universo do nero que, acentuados, passam a existir enquanto
elementos estéticos de comunicação intertextual. A “estilização” para se
constituir depende da existência de um texto original marcado enquanto
estilo (conjunto de normas e procedimentos narrativos) aonde vai buscar sua
referência
147
.
Por esse motivo, o trabalho de linguagem executado pelos autores marginais é
complexo. Longe de serem simples pilhagem de obras alheias, os filmes marginais
revelam vasto conhecimento da linguagem e do repertório cinematográficos. Jogar com
as referências ora no áudio, ora na imagem, ora na cena, na construção da personagem,
ora no estilo da fotografia etc. é uma tarefa que exige domínio da linguagem
cinematográfica. Na realidade, por conta do diálogo formal com outros meios de
comunicação, os autores precisavam conhecer também a linguagem destes outros
meios: da televisão, do rádio etc. Afinal, cada meio possui sua linguagem. O
enquadramento na televisão, por exemplo, é um, no cinema é outro. Se os autores
147
Ibidem, p. 129.
75
marginais não possuíssem pleno domínio das incorporações efetuadas, seus filmes
pareceriam apenas caricaturas ridículas.
Por outro lado, o volume das incorporações demonstra o vasto repertório cultural
desses autores. Ainda que a maioria das referências pertença, como dissemos, a um
imaginário coletivo mais imediato, o trabalho de manejá-las necessita de um acurado
conhecimento sobre elas. Sganzerla, por exemplo, antes de fazer A Mulher de Todos
filme que, como veremos na análise, dialoga enormemente com o universo das histórias
em quadrinhos fez um documentário sobre as HQs no Brasil. A consulta do arquivo
pessoal de Sganzerla, permite perceber o quanto ele conhecia de música, literatura,
cinema e outras tantas manifestações culturais e artísticas. É preciso reconhecer essas
qualidades dos autores marginais para defender o caráter programático de suas obras,
para deixar claro que a tal “estética do lixo” não se deve à incompetência de alguns
cineastas despreparados, mas faz parte de um programa maior.
Da maneira como são feitas as incorporações resulta o rompimento do vínculo
catártico. Como dissemos acima, o volume das incorporações e, principalmente, a forma
como elas são feitas enfraquece o universo diegético do filme, principal responsável por
criar o vínculo catártico com o espectador. Mas não são só os procedimentos intertextuais
escrachados que prejudicam a catarse dos filmes marginais. Os próprios elementos anti-
estéticos citados anteriormente contribuem para a não aceitação afetiva da obra. O
deboche, o avacalho e a provocação, por fim, distanciam de vez o espectador, incapaz
de criar um vínculo de projeção-identificação com o filme.
O vínculo catártico, próprio à narrativa clássica, não se estabelece e, em seu
lugar, se instaura uma relação em que o espectador se sente incomodado pelo
deboche-agressivo, não conseguindo projetar sentimentos agradáveis no
ficcional representado
148
.
Podemos enxergar isso claramente no Bandido, no qual, a identificação possível
é combatida por um personagem que se assume a todo tempo um ‘boçal’ e que é
construído de forma a colorir sua face mais detestável. O nculo catártico nunca se
constrói. O espectador permanece distanciado da obra.
A relação agressiva com o espectador tem a ver com aquele discurso estético
brechtiano de que tratamos no Capítulo 1. No entanto, o principal recurso aqui não é
mais o didatismo, mas o choque. Na visão de Fernão Ramos,
148
Ibidem, p. 127.
76
a função do choque seria a de acordar as massas (e a própria burguesia) de
sua letargia, confrontando-as com um discurso agressivo que em sua própria
forma narrativa colocasse em xeque expectativas de uma possível “redenção
pela mimese e a instauração, através dela, da “boa consciência”
149
.
O Cinema Marginal, portanto, abandona o didatismo revolucionário típico do
Cinema Novo e passa a valer-se do que Fernão Ramos chama de “choque profanador”,
“como maneira de questionamento da forma ‘burguesa’”, visto que esta forma está
“comprometida inevitavelmente com o conteúdo veiculado mesmo que se pretendendo
‘popular’
150
.
Os autores marginais especialmente Sganzerla possuíam também uma forte
atração pelo universo dos gêneros. E isto não de espantar ninguém, visto que é
evidente a ligação deste fato com tudo o que temos dito sobre o programa marginal até
aqui. Os gêneros são conjuntos de atributos técnicos e estéticos, mais ou menos estáveis,
acompanhados de um rótulo e que são utilizados pela indústria para promover os filmes
no mercado de massa, na medida em que os reveste com a idéia de que ali se encontra
algo conhecido, previamente aprovado pelo gosto do consumidor. O tal “de que tipo de
filme você gosta?” sempre ajudou a indústria cinematográfica a vender seus filmes, tanto
quanto o “qual seu ator/atriz favorito?”. A questão dos neros não deve ser confundida
com a idéia, necessariamente pejorativa, de ‘fórmulas’. Não neros bons ou ruins.
Mas há, certamente, filmes bons e filmes ruins dentro de cada gênero. No entanto, o que
importa para nós é a definição de gênero como um conjunto estável de atributos técnicos
e estéticos. Por conta disso é que dizemos que não é surpresa essa atração do Cinema
Marginal pelo universo do gênero, na medida em que o diálogo com este universo é um
caminho natural para o diálogo com a indústria e, sobretudo, para a plena execução de
procedimentos intertextuais. Assim como os filmes marginais se apropriam, por meio de
artifícios metalingüísticos, da estética de outros cinemas (Cinema Novo, Nouvelle
Vague), de outros meios (rádio, televisão, quadrinhos), de outras épocas (cinema mudo)
etc., também se apropriam da estica dos neros (musical, comédia, faroeste). Toda
linguagem, estável o suficiente para se tornar distintiva dentro de certo imaginário
coletivo, torna-se alvo de incorporações pelos marginais.
Mais uma vez o Bandido pode ser tomado como exemplo do que estamos dizendo.
Em seu manifesto intitulado Cinema fora da lei
151
, de maio de 1968, Sganzerla declara
149
Ibidem, p. 122.
150
Idem.
151
Anexo 2.
77
ser O Bandido da Luz Vermelha “um far-west sobre o terceiro mundo”. E continua: “uma
fusão e mixagem de diversos gêneros pois para mim não existe separação de gêneros. Fiz
um filme-soma: um far-west mas também musical, documentário, policial, comédia (ou
chanchada?) e ficção científica”.
Segundo Fernão Ramos,
esta declaração deve ser tomada, em sua excessiva abrangência, como a
caracterização do Cinema Marginal em face da relação intertextual em
especial com a narrativa clássica completamente fora dos horizontes do
Cinema Novo. A somatória, frisada atrás por Sganzerla, transparece no filme
através de mecanismos de citação onde outros discursos, não
cinematográficos, são incorporados na narrativa antropofagicamente. Isto é
claro no estilo da voz offque narra o filme nos remetendo diretamente ao
universo da transmissão radiofônica sensacionalista; na velocidade e na
forma, características do filme policial, através da qual a narrativa se
desenrola; na citação de filmes de ficção cientifica, através de imagens de
discos voadores; com o próprio Cinema Novo (Terra em Transe), em um
singular, mas significativo aproveitamento irônico do discurso.
O Bandido é, pois, em toda sua complexidade, um ponto de condensação na
história do cinema brasileiro. Ao mesmo tempo em que dialoga com o cinema que o
antecedeu e com o cinema de sua época, o primeiro longa-metragem de Rogério
Sganzerla funda as bases de um cinema absolutamente novo.
Analisar O Bandido da Luz Vermelha é discutir, antes de tudo, linguagem
cinematogfica. O Bandido e A Mulher de Todos o dois filmes que transpiram cinema.
Não porque, a exemplo de tantas outras obras, homenageiem a história do cinema, mas
porque levam a experimentação com a linguagem cinematogfica ao seu pontoximo. E
esse trabalho com a linguagem é o que importa. Não a mimese, não o drama, não o enredo,
o a psicologia, mas a linguagem. A linguagem é a personagem, o cenário e a ação nestes
dois filmes. Neles, a mensagem es no tratamento com a linguagem. Daí resulta nosso
desejo em estudar a metalinguagem nestas duas obras-primas do cinema brasileiro.
o devemos cair no engano de que, no diálogo com os meios de comunicação de
massa, estes dois filmes sejam um produto híbrido, algo que não cinema. Nas obras de
Sganzerla, o diálogo entre as diferentes linguagens é um processo dialético no qual a
síntese é sempre cinematográfica. E é isso que torna suas obras tão interessantes.
Sganzerla o ‘junta simplesmente um ‘monte de coisas’. Ele incorpora outras
linguagens e as usa cinematograficamente. E está uma grande habilidade. Se algum
elogio que se possa fazer a estes dois filmes de Sganzerla é este: O Bandido da Luz
Vermelha e A Mulher de Todos são cinema.
78
QUARTA PARTE:
Análise dos filmes
1. Análise de O Bandido da Luz Vermelha (1968)
O Bandido da Luz Vermelha data de 1968, ano de agitações políticas e culturais
no mundo inteiro, o qual está ideologicamente polarizado e vive sob o jugo de um
conflito potencial, ilustrado pela guerra do Vietnã. Na França, os estudantes ocupam as
ruas e, ao lado de setores da classe operária, entram em confronto com a polícia durante
o mês de maio. É o famoso maio de 68. No Brasil, a política sofre o enrijecimento do
regime militar com a decretação do Ato Institucional n
o
5. No âmbito cultural estão em
voga manifestações ousadas, como o movimento Tropicalista, melhor representado por
suas composições musicais, os grupos Arena e Oficina, nas artes cênicas, e o Cinema
Novo, no cinema.
No entanto, com o endurecimento do regime militar e a nova conjuntura
mundial a partir de 1968, discursos homogêneos e de uma pretensa inclusão
totalizadora, como os do Cinema Novo e do Teatro de Arena, perderão força diante de
discursos heterogêneos, fragmentários e relativizados, como o do Teatro Oficina e do
Tropicalismo. Além do chamado Cinema Marginal, que surge, como sugere a maioria
da crítica, exatamente em 1968 com o lançamento de O Bandido da Luz Vermelha.
O Bandido é um filme marco que, se quisermos traçar linhas demarcatórias,
pode ser considerado como o ponto de partida para o que mais tarde seria o
Cinema Marginal. (...) Sua produção se localiza dentro do quadro ideológico
do Brasil dos anos 60, onde a falência dos projetos revolucionários de
transformação social permite a emergência de um discurso ainda referente
e ao mesmo tempo descentrado com relação ao embasamento da prática
política que em 1968 se esvaeceu. O tropicalismo é um dos exemplos mais
patentes desta relativizão de discursos antes homoneos e de pretendida
abrangência totalizadora.
152
Retomamos estas observações históricas, pois queremos deixar claro o
contexto em que se deu a produção e o lançamento do Bandido para que o leitor possa
152
RAMOS, F. Cinema Marginal (1968/1973): A Representação em seu Limite. São Paulo: Brasiliense,
1987, pg. 78.
79
enxergar na nossa análise os elementos sociais e historicamente determinados que
comem a estrutura do filme analisado.
Feita esta ressalva, gostaríamos de começar a análise fílmica de O Bandido da Luz
Vermelha pelas declarões do próprio Rogério Sganzerla acerca do seu primeiro longa-
metragem. Uma decisão que, no caso de Sganzerla, facilita e enriquece o nosso trabalho
por ter sido ele crítico de cinema antes de cineasta. Como dissemos, aos 19 anos,
Sganzerla escrevia críticas de cinema para o suplemento literário do jornal O Estado
de São Paulo. No entanto, não citaremos aqui os seus escritos da época de crítico, mas
suas declarações para os jornalistas quando do lançamento de seu longa de estréia.
O enxerto abaixo foi extraído de uma de suas declarações para o jornal Tribuna
da Imprensa de 5 de dezembro de 1968:
Fiz O Bandido da Luz Vermelha porque todos os cineastas que admiro
fizeram filmes policiais, mas no meio do projeto percebi que não poderia
parar, que tinha que incorporar outros estilos sem sair da poesia noturna do
policial classe B, para procurar a verdade dos espaços externos do western,
nos interiores pobres da chanchada, na estilização do musical.
Neste trecho, Sganzerla nos declara que, por um lado, o Bandido foi
originalmente pensado para ser um filme do gênero policial, mas que, por outro, o filme
não deixa de congregar outros gêneros como o western e o musical. Entretanto, mais do
que incorporar e misturar gêneros, Sganzerla funde, na composição do Bandido,
diversos estilos e influências, não sendo fiel a nenhuma delas, como observou Jean-
Claude Bernardet: “Se o policial classe B se apresenta com uma importância
determinante, por outro lado não um ou uns poucos cineastas em que Sganzerla se
fixe”
153
.
Considero importante frisar, a esta altura, que, na composição do Bandido,
existem dois tipos de influência. A primeira é aquela que todo artista desde que
consuma os produtos culturais de sua época possui e aplica ao seu trabalho. Não
falaremos desta, já que ela não compete exclusividade ao nosso caso. Falaremos de
outra, esta sim, restrita ou pelo menos mais fechada aos contornos do nosso
objeto. A influência sobre a qual nos interessa versar aqui é esta inflncia declarada
de Sganzerla. Uma espécie de macro-influência, “macro” não apenas no tocante à
pluralidade de autores em que ele se apóia e cita, mas também no tocante ao próprio
153
BERNARDET, J.C. O Vôo dos Anjos. São Paulo: Brasiliense, 1991, pg. 198.
80
tamanho das citações. Queremos dizer com isso que, pelo menos no que diz respeito ao
Bandido, Sganzerla não despedaça suas citações a ponto de diluí-las em um pretenso
estilo próprio, como o fazem a maioria dos artistas. Pelo contrário, seu estilo pauta-se
em fazer citações cada vez maiores como em um puzzle de peças gigantes e em
maior número. Vejamos esta concepção consolidada nas próprias palavras do autor, em
uma declaração para o jornal Folha de São Paulo, de 28 de maio de 1968:
meu estilo é arbitrário como Pasolini, Orson Welles, Miguel Borges ou
Godard (...) não tenho medo dos cineclubistas recalcados que falarão em
influências de Buñuel, Welles, Eisenstein, Godard, Rosselini, Fuller. À
medida que filmo, sinto necessidade de citar o mais livremente possível o
cinema em geral, de utilizar o cinema num mesmo movimento sintético. Vou
do plano fixo ao travelling agitado com a mesma segurança que fundo
Hitchcock com Luís Buñuel (...)
Nas palavras de Bernardet:
Um dos aspectos surpreendentes dessas declarações não é tanto a clareza de
Sganzerla quanto ao processo de incorporações, nem a facilidade com que
confessa roubos que o preconceito da originalidade autoral tenderia a ocultar,
mas o volume monumental dessas incorporações
154
.
Quando Sganzerla afirma que sente “necessidade de citar o mais livremente
posvel o cinema em geral, de utilizar o cinema num mesmo movimento sintético”,
ele esadmitindo, noves fora o emprego de outros elementos anti-ilusionistas, a sua
predileção pelo artifício da metalinguagem, como veremos ao longo desta análise.
Apesar de estarmos aqui, neste começo, oferecendo um panorama geral dos
principais aspectos do Bandido, ao se falar das misturas de gêneros, não podemos deixar
de enveredar, desde já, na análise de um trecho específico do filme que é a cena do
liquidificador
155
. Em um de seus escritos, publicado no suplemento literário do O
Estado de S. Paulo em 28 de agosto de 1965, intitulado O Legado de Kane, Sganzerla
afirma:
(...) Welles recusa a construção clássica (clara e unitária) linearmente
progressiva das películas de então. Cidadão Kane apresenta uma estrutura
voluntariamente fragmentária. (...) O imenso ‘puzzle’ de que fala o repórter e
que Susan simbolicamente monta parece ser a fita em si; ao compor um
extenso painel histórico-humano, o filme-objeto ou o filme-‘puzzlenão
chega a se completar. Falta um último fragmento: ‘Rosebud’ (...)
154
Idem.
155
Esta cena aparece aos 21´30” do início do filme.
81
Conforme afirma Jean-Claude Bernardet, essa mesma relação cena/fita que
Sganzerla diz existir em Cidao Kane também está presente no Bandido. A cena do
liquidificador, em que o bandido mistura uma grande variedade de ingredientes, constitui
um microcosmo
156
da própria fita que, como já vimos, foi composta como uma mistura de
rios gêneros e influências.
Figura 3 - 21´30” - cena do liquificador: fragmentação e mistura de gêneros
Na continuação do artigo, referindo-se ao filme de Orson Welles — e aqui
estendendo-se, conforme o quer Bernardet, para a estrutura do Bandido —, Sganzerla
afirma que “a fita possui uma forma aberta (como na arte barroca e na arte
contemporânea), ‘incompleta’; trata-se de um jogo a ser mentalmente organizado pelo
espectador”.
É interessante observar que a mistura e a brincadeira com os neros é algo
proposto por Brecht
157
como forma de se alcançar o efeito de distanciamento, que o
descompasso entre um gênero e outro possibilita o desvelamento da linguagem para o
público.
No entanto, a cena do liquidificador o se restringe a metaforizar apenas essa
característica, de fragmentação e mistura de gêneros, do Bandido esse aspecto
formal da fita, como acertadamente apontou Bernardet. Ela também evoca o tema da
identidade de Jorge (o protagonista): fragmentada, incompleta, obscura e incongruente.
A cena começa com Jorge experimentando diferentes armações de óculos e se
olhando no espelho, enquanto a narração em off dos locutores
158
diz: “Ninguém sabe
realmente a nacionalidade e muito menos a identidade desse jovem criminoso
subdesenvolvido. Paraguaio? Brasileiro? Cubano? ou Mexicano?
O tema é recorrente no filme. A todo o momento as vozes em off dos locutores
tentam projetar a identidade deste “jovem criminoso subdesenvolvido”. Inclusive as
inserções em off do protagonista colaboram nesse sentido. Somando, ainda, aos
comentários verbais, a vasta coleção de imagens, cenas e objetos-símbolo que
pontuam a queso ao longo da fita, o filme projeta uma rie de atributos e conjeturas
156
Mundo pequeno, resumo do universo.
157
BRECHT, B. Estudos sobre Teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
158
O filme é inteiramente permeado pela narração em off de uma voz masculina e uma voz feminina que
evidentemente representam uma dupla de locutores radiofônicos.
82
identitários onde, a rigor, “a imagem do bandido nunca chega a harmonizar seus
cacos”
159
.
“Quem sou eu?é a primeira inserção verbal da fita. É a voz (off) do bandido
que, por cima da imagem de um cartaz que reproduz o desenho da esfinge egípcia,
questiona a si próprio.
Figura 4 - 00’09” – voz off do bandido: “Quem sou eu?”
E assim, ao longo do filme, a identidade de Jorge é projetada, fragmentada e
contraditoriamente, em relação a sua origem, nacionalidade, filiação, suas motivações
etc.
Não iremos, no entanto, aqui, aprofundarmo-nos na análise destas questões que
foram tão bem abordadas por Bernardet e Xavier em seus respectivos trabalhos.
Iremos sim, sempre que necessário, recorrer a estas duas abordagens para dar
prosseguimento à nossa análise que pretende, antes de mais nada, dar conta dos
procedimentos metalingüísticos presentes no interior do Bandido.
A primeira incursão metalingüística do Bandido aparece ainda nos créditos de
abertura que, em vez de aparecerem escritos graficamente por sobre a imagem do filme
— como na maioria das fitas da época —, são mostrados dentro da diegese do filme, em
um luminoso animado comum nos grandes centros urbanos daquela época
destinado ao noticiário da imprensa. Nele aparece escrito “um filme de cinema”, como
159
XAVIER, I. Alegorias do Subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993, pg. 75.
83
querendo dizer que aquele filme ocupar-se-á do assunto “cinema”, se entendermos o
“de” como no lugar de “sobre”. Ou ainda, se quisermos, podemos entender esta
expressão como um filme feito de cinema.
Em qualquer dos casos a metalinguagem está dada e, com ela, um primeiro
passo para o distanciamento. Façamos aqui um exercício para entendermos a suspensão
do ilusionismo do espectador a partir da expressão escolhida por Sganzerla para abrir o
seu filme: se identificarmos a realidade objetiva, esta em que nós vivemos, com um
sinal positivo (+) e a representação, ou seja, o filme ou o cinema, com um sinal negativo
(-), trocamos a expressão “um filme de cinema” pela sua imagem desreificada “a
representação (-) da representação (-)”. Dada a inversão de sinal, pela multiplicação dos
termos, voltamos à realidade objetiva (+) ou, pelo menos, caminhamos para ela.
Outra aplicação metalingüística que podemos identificar no Bandido trata-se de
uma citação à música de Terra em Transe, filme de Glauber Rocha, de 1967. Uma
citação que se apresenta bastante conflituosa, que Sganzerla rejeita o Cinema Novo;
mesmo que, às vezes, ressalve a figura de Glauber, como podemos ver na declaração
dada ao periódico O Jornal, em 23 de janeiro de 1970, onde afirma que não tem “nada
com o chamado movimento do Cinema Novo”, pois não gosta de seus filmes, fazendo
“uma pequena exceção para Glauber Rocha". Sobre esse conflito entre rejeição e
assimilação, nos diz Bernardet:
O aproveitamento da música de Terra em Transe parece ter assim um duplo
sentido: uma citação homenageia Glauber, Terra em Transe e o Cinema
Novo; outra celebra a morte de Glauber, Terra em Transe e o Cinema Novo.
Aceitando essa interpretação, o duplo sentido da citação musical estabelece
relações de assimilação e rejeição, de homenagem e repúdio, de amor e morte
entre Terra em Transe e O Bandido da Luz Vermelha
160
.
Para Bernardet, a citação de Terra em Transe deve ser vista diferentemente das
outras citações e paródias do Bandido, que existe uma relação direta entre os autores
dos dois filmes que produz um significado que não pode ser estendido a nenhuma outra
incorporação forjada por Sganzerla:
Vimos várias incorporações praticadas pelo Bandido (...), mas nenhuma tem
o caráter conflituado que apresenta a de Terra em Transe. O problema da
assimilação e da rejeição só se dá com Glauber, o que o constitui como figura
160
BERNARDET, J.C., op. cit., p. 191.
84
de pai-modelo e o diferencia de todas as outras citações, incorporações,
enxertos, paródias etc.
161
No caso desta referência a Terra em Transe, entendemos que uns poucos
iniciados é que poderiam, ou puderam, reconhecer a citação. E, dentre eles,
pouquíssimos poderiam lhe dar o significado que lhe deu Bernardet.
Abandonando temporariamente a análise linear, gostaríamos de tecer alguns
comentários acerca da questão musical no Bandido. O Bandido não possui uma trilha
sonora original. Seu universo musical é construído a partir da colagem de um número
muito grande de músicas famosas e muito diferentes entre si, como observa Jo Carlos
Avellar no Jornal do Brasil, em 17 de maio de 1969: “Todos os diversos componentes
do som brasileiro dos últimos anos estão reunidos: boleros, macumbas, O Guarani,
música de fundo de filmes americanos, choros, rock and roll, o baião, batucadas (...)”
Além da música nacional, Sganzerla incorpora e mistura, sem qualquer reserva ou
pudor nacionalista, diversos gêneros, de diferentes nacionalidades e épocas.
Não tive pudor em fundir a Sinfonia, de Beethoven, com Asa Branca, de
Luiz Gonzaga, e, em certos momentos, sobrepor três ou quatro músicas. A
narração é outro elemento original, pois restitui o filme a uma de suas origens
fundamentais – o rádio
162
.
Estas músicas são, em sua grande maioria, utilizadas para indicar ou
complementar o sentido do espaço cênico, como podemos observar na trilha sonora
“caribenha” que ambienta a cena de um prostíbulo, ainda no primeiro terço do filme. Em
nenhum momento do Bandido, e isto é muito importante de se avaliar, Sganzerla utiliza-
se da música para produzir envolvimentos catárticos na plaia.
O uso autônomo do som ou seja, a utilização do som desvinculado da imagem
— é, também, uma maneira de se romper com o ilusionismo cinematográfico. Na medida
em que o espectador não enxerga um sincronismo entre som e imagem, passa a negar a
verossimilhaa e sua atenção é redirecionada da mensagem para o código:
Em lugar da trilha sonora em sincronismo com a imagem, auxiliar
imprescindível para a clareza da narração da história, ruídos, música e
diálogos correm paralelamente ao filme, quase por fora da imagem, como se
um programa de rádio fosse ouvido durante a projeção de um filme sem
som
163
.
161
Ibid., pg. 197.
162
Declaração feita ao Jornal do Brasil, em dezembro de 1968.
163
José Carlos Avellar para o Jornal do Brasil, em 17 de maio de 1969.
85
Fazendo um gancho com este último enxerto, enveredemos, agora, na análise do
material sonoro dos locutores radiofônicos que, ao longo de todo o filme, narram as
peripécias do bandido em voz off. Por entendemos que o melhor procedimento para esta
análise é perseguir o encadeamento dos processos técnico-estéticos basais (ou mínimos)
da obra cinematográfica, daremos continuidade ao exame dos elementos que compõem
o universo sonoro de O Bandido da Luz Vermelha.
As duas vozes em off, uma masculina e uma feminina, constituem,
evidentemente, uma paródia das locuções radiofônicas sensacionalistas e são utilizadas
por Sganzerla como recurso narrativo:
[...] outros discursos, não cinematográficos, são incorporados na narrativa
antropofagicamente. Isto é claro no estilo da voz offque narra o filme nos
remetendo diretamente ao universo da transmissão radiofônica
sensacionalista; na velocidade e na forma, características do filme policial,
através da qual a narrativa se desenrola
164
.
É por meio dessa transmissão radiofônica que o espectador recebe a maior parte
das informações a respeito do bandido. Por meio dos locutores de rádio, o bandido é
descrito e narrado. No entanto, enquanto os locutores o descrevem, as imagens que
vemos não estabelecem a menor relação com a descrição que nos é passada. A narração
fílmica não se preocupa em tornar verossímeis as informações dos locutores, e a
narração do bandido que o bandido também narra e exprime pensamentos em off
—, às vezes, até desmente o que nos foi conhecido pelos locutores..
Como podemos observar, no Bandido existem “três veis de narração: a
locução radiofônica independente da diegese, o monólogo do bandido relacionado com
alguns aspectos da diegese, e a narração fílmica, registro da diegese”
165
.
Quanto ao estranhamento gerado pela locução radiofônica, podemos afirmar que
ele existe. No entanto, ele não é maior porque o autor se preocupou em atribuir uma
origem, ou um sentido, para aquelas vozes em off, no momento em que, logo no início
do filme, inseriu um take
166
onde vemos uma grande antena claramente destinada à
transmissão de ondas de rádio.
164
RAMOS, F. Cinema Marginal (1968/1973) A Representação em seu Limite. São Paulo, Brasiliense,
1987. pg. 130.
165
GRAÇA, M.S.; AMARAL, S.B.; GOULART, S. Cinema Brasileiro: Três Olhares. Niterói: EDUFF, 1997.
166
Tomada; começa no momento em que se liga a câmara até que é desligada.
86
Figura 5 - 1’50” – take da antena
Segundo Sganzerla, “o rádio brasileiro é outra tradição que não pode ser
desconhecida, principalmente quando se tenta mergulhar nas origens e implicações do
subdesenvolvimento”
167
. Podemos dizer que a incorporação do universo do rádio no
Bandido constitui um tipo de metalinguagem, o mesmo tipo de metalinguagem que
teremos quando, mais para frente, ocuparmo-nos da referência à televisão, à
publicidade e ao jornal impresso. Ou seja, uma metalinguagem que se estabelece ao
vel do meio de comunicação de massa que “fala” dos meios de comunicação de
massa. Esta interpretação é endossada quando Sganzerla afirma que o tipo de narração
do Bandido “restitui o filme a uma de suas origens fundamentais o rádio”. Com esta
declaração, Sganzerla professa sua crença na influência do rádio na construção da
linguagem cinematográfica.
No Bandido, a referência aos meios de comunicação de massa é constante.
Contudo, o que interessa para esta análise não é tanto o número de referências a eles,
mas a forma como estas referências se dão.
O que caracteriza, no entanto, a ruptura de O Bandido com o universo do
Cinema Novo é a sua capacidade de um diálogo, não apenas crítico mas
também incorporador, com o mundo industrial e os modernos meios de
comunicação existentes neste mundo (entre os quais o cinema se inclui). A
partir do abandono da postura valorativa que uma ideologia centrada na
compreensão do universo social enquanto totalidade coerente permite —,
todo o universo fragmentário da realidade industrial-urbana que cerca o
167
Declaração feita ao Jornal do Brasil em dezembro de 1968.
87
sujeito se relativiza e a percepção deglutidora capta os impulsos múltiplos e
díspares desta realidade como alimento desejável para a representação
168
.
O rádio, a TV e o jornal não são empregados como objeto de cena. Também não
são apenas mais um assunto do filme. No Bandido, os meios de comunicação de massa
são incorporados como linguagem. E é isto o que mais nos interessa. Este talvez seja um
dos maiores feitos do Bandido em termos de metalinguagem: a combinação e a
explicitação da linguagem de todos os meios de comunicação de massa existentes na
época.
E, aí, então, cria um cinema rítmico, de montagem, cuja estrutura exatamente
refere-se àquela da comunicação de massas: rádio, jornal, cinejornal,
televisão, anúncios luminosos, publicidade, tudo calcado pela tônica do
sensacionalismo, utilizada como um recurso objetivo de enfoque das camadas
da realidade política e cultural
169
.
A linguagem radiofônica é incorporada na narração do filme de maneira que
temos a impressão de estar ouvindo um programa de rádio durante a projeção de um
filme mudo, como disse Avellar. A audição do programa radiofônico é interrompida
para a inserção de alguns poucos diálogos e da narração off do bandido. Interrupções
que, inclusive, validam a proposta metalingüística, na medida em que, se não
existissem, a incorporação estaria mais próxima de uma simples apropriação da
linguagem do rádio do que da criativa e antropofágica assimilação dela.
Este mesmo tipo de assimilação da linguagem se dará com o jornal e,
principalmente, com a televisão e com o cinema. Sganzerla está consciente do poder
que a indústria cultural, que amadurecia naquele momento no Brasil, possui. O avanço
dos meios audiovisuais — principalmente os eletrônicos (TV e vídeo) —, a explosão da
propaganda e a crescente importância dos mercados cultural e da informação
transformam radicalmente a experiência física e subjetiva dos que residem nos grandes
centros urbanos. É o mesmo momento em que intelectuais e pesquisadores se voltam
firmemente para a análise da cultura de massa e em que as faculdades de Comunicação
são criadas. Sganzerla está atento a tudo isso:
(...) ainda é preciso entender o poder do rádio no Brasil, a força das
chanchadas, o poder da difusão coletiva e do imaginário das grandes cidades,
168
RAMOS, F., op. cit., pg. 80.
169
José Lino Grünewald para o Correio da Manhã, em 13 de maio de 1969.
88
alimentadas pelas mesmas fontes de comunicação que são o rádio, a TV e o
cinema
170
.
Continuaremos com o desrespeito à ordem cronológica em que aparecem no
filme as manifestações metalingüísticas para analisarmos o caso da televisão antes do
caso do cinema.
As referências ao universo televisivo aparecem duas vezes ao longo do Bandido.
Na primeira, o filme nos apresenta os bastidores do que parece ser um programa de
opiniões. No cenário deste programa encontram-se apenas duas pessoas que,
possivelmente, estariam ali para um debate, e o apresentador do referido programa.
Figura 6 - 28’03” – bastidores de um programa de debates
A cena começa com um plano conjunto que desvela ao público os bastidores de
um estúdio de TV. Com este enquadramento podemos ver onde acaba o cenário e onde
começa o estúdio, um microfone direcional e, no canto esquerdo do quadro, um pedaço
da objetiva da câmera de televisão. Ela está apontada para o convidado que está falando
no momento. Com um movimento de zoom-in
171
, a câmera de cinema — esta que
registra o que nós, espectadores do Bandido, vemos enquadra o convidado em plano
médio
172
e se camufla na câmera de TV, que este tipo de enquadramento é
característico deste modelo de programa televisivo e não vemos os bastidores do
estúdio. O convidado fala olhando diretamente para a câmera. No entanto, em
170
Declaração de Sganzerla em artigo de Ruy Gardnier in http://www.contracampo.com.br/58, 2004.
171
Aumento na distância focal da lente da câmara durante uma tomada, o que dá ao espectador a
impressão de aproximação do objeto que está sendo filmado.
172
Plano que mostra uma pessoa enquadrada da cintura para cima.
89
determinado momento, a trilha musical do filme — e não do programa — encobre a fala
do convidado, ao mesmo tempo em que a câmera executa um movimento
panorâmico
173
, da esquerda para a direita, que volta a mostrar os bastidores do
programa aenquadrar, novamente em plano médio, o apresentador.
Figura 7 - 28’30” – apresentador em plano médio e olhando para a câmera
A câmera manm-se fixa por alguns segundos enquanto o apresentador
defende, olhando diretamente para a câmera, a pena de morte. Antes que ele termine
sua fala, a câmera volta a se mover, desta vez lentamente e tendo como eixo a figura
do pprio apresentador. Com o movimento, voltamos, mesmo que sutilmente, a
perceber os limites do cenário. No entanto, o apresentador continua olhando
diretamente para a “nossa” câmera, ao invés de manter os olhos fixos no mesmo lugar
de antes, onde, entendemos, estaria a câmera de TV. Não são característicos de um
programa de TV movimentos de mera como este. A esta altura, entendemos que as
duas linguagens se fundem. O apresentador de TV se conta de que es, na verdade,
dentro de um filme, ou dentro de um programa de TV que esdentro de um filme.
Desta forma, temos ao longo desta cena as duas linguagens se intercalando e
mesclando-se no final:
CINEMA > TELEVISÃO > CINEMA >TELEVISÃO > CINEMA/TELEVISÃO
173
Quando a câmara que se move, sobre o seu próprio eixo, em movimento lateral.
90
O plano aberto e os movimentos de câmera demonstram ser o registro do
Bandido, ao passo que a câmera fixa, o enquadramento em plano médio e o ator
olhando diretamente para a câmera demonstram ser uma referência à estética televisiva.
A brincadeira metalingüística com a televisão aparece ainda uma segunda vez
para compor uma cena com o gângster JB da Silva. A estrutura é quase a mesma da
explicitada acima. Enquanto JB da Silva faz suas propostas de governo e responde às
perguntas de dois jornalistas da emissora, a composição do quadro alterna-se entre o
registro do Bandido e o registro do programa de TV. Quando a câmera de cinema
registra os bastidores do estúdio de TV, podemos, inclusive, ver o nome da emissora
estampado no lado direito da câmera de TV: Canal 13.
Figura 8 - 57’56” – bastidores do estúdio do Canal 13
Desta vez, o áudio também corrobora para distinguir quando estamos assistindo
ao filme e quando estamos no lugar de telespectadores do programa em que JB da Silva
faz sua campanha. Quando a câmera de cinema nos mostra os bastidores, a equipe e os
equipamentos do programa, uma voz em off provavelmente do diretor do programa
de TV grita: “vai câmera 1” ou “atenção... agora”. Neste momento estamos
claramente no papel de espectadores do Bandido e assistindo a JB da Silva como mais
um personagem do nosso filme. No entanto, quando a câmera de cinema se coloca no
lugar da câmera de TV, a única coisa que podemos escutar é a fala de JB da Silva que
olha para a câmera e dirige-se para nós, agora, telespectadores.
91
Figura 9 - 56’30” – estética televisiva: olhando para a câmera, em plano fechado
É importante observar que em nenhum dos dois casos em que Sganzerla joga
com o universo da televisão temos um take antes ou depois das cenas para referenciar a
TV dentro do filme. Ou seja, diferentemente do rádio, referenciado pela antena, como já
falamos, a TV é incorporada sem receber nenhum tipo de motivação. Sganzerla não se
preocupou ou, de fato, esta não era a sua intenção em inserir um take onde uma
das personagens, mesmo que secundárias, do Bandido estivesse diante de um aparelho
televisivo. Isto é, ele nos referencia com os bastidores da TV, junto aos ‘produtores’,
mas não junto aos telespectadores de um programa televisivo.
Analisemos, agora, a relação metalingüística que o Bandido estabelece com o
próprio cinema, não com o cinema enquanto instituição que abrange os processos
cnicos, estéticos e culturais —, mas como meio de comunicação e espetáculo das
massas.
Esta incursão metalingüística pelo cinema como meio de comunicação de
massa se em três momentos distintos. Na primeira, nos é mostrada a platéia de uma
sala de cinema sendo que, em primeiro plano, aparecem três cineastas. Muitos filmes
da época do Bandido tinham cenas de platéia de cinema. No entanto, na cena do
Bandido aparecem, como figurantes na platéia, o próprio cineasta Rogério Sganzerla e
dois outros colegas: Carlos Reichenbach e Antônio Lima. Em outro momento do filme
também aparecerá Ozualdo Candeias, cineasta marginal, autor de A margem.
92
A cena começa com um travelling
174
, que vai dos “ilustres figurantes” até o
bandido, que assiste ao filme comendo milho e com um binóculo. Para a nossa análise, é
importante observar que o binóculo tem a função de preparar a entrada do take da tela de
cinema. Ou seja, há uma preocupação, por parte de Sganzerla, de referenciar a entrada do
take do filme, ao qual o bandido assiste, na nossa tela espectadores do Bandido. Esta
preocupação é a mesma que identificamos para o take da antena de rádio, que existe
para dar sentido aos locutores radiofônicos.
Figura 10 - 32’55” – o bandido de binóculos no cinema
Quando o bandido coloca o binóculo e aponta para a tela, nós, espectadores,
somos induzidos a esperar um take da tela. E é o que acontece. Atras de um
procedimento de colagem, Sganzerla coloca na nossa tela um ‘outro’ filme. Vemos, então,
que o bandido assiste a um filme de guerra. Concluímos, com isto, que este tipo de
metalinguagem não proporciona um estranhamento no público. Pois, se o espectador
reconhece o filme ao qual ele assiste como “real”, não nada de inverossímil em
algm, dentro deste filme, ir ao cinema, olhar para a tela e nela ver um filme de guerra.
174
qualquer deslocamento horizontal da câmara
93
Figura 11 - 33’36” – procedimento de colagem: filme de guerra
Analisemos esta cena com mais calma. Primeiro, nos é mostrada a sala de cinema
e os “ilustres figurantes”. Entendemos que esta imagem causaria estranhamento em
quem conhecesse e identificasse os cineastas. Depois, dentro do mesmo take, nos é
mostrada a figura do bandido comendo milho. Congelemos a imagem neste e ponto e
vamos verificar as possibilidades de entrada do take da tela de cinema e suas respectivas
potencialidades de estranhamento, começando pela maneira como Sganzerla de fato
executou a cena:
1º.) o bandido olha atras do binóculo para a tela; corte para a tela que preenche
todo o quadro.o há estranhamento.
2º.) o bandido não olha para a tela; corte para a tela que não preenche todo o
quadro, ou seja, conseguimos ver os limites da tela. o há estranhamento.
3º.) o bandido não olha para a tela; corte para a tela que preenche todo o quadro.
Ocorre o estranhamento.
O estranhamento ocorre, neste último exemplo, porque o take do segundo filme
“invade” o nosso quadro sem que antes fôssemos alertados disso. Ou seja, o filme que
deveria ser objeto da representação e, para tanto, ocupar um segundo plano no filme,
seja imageticamente (aparecer os limites da tela), seja narrativamente (o bandido olha
para a tela) passa a ser o sujeito da representação, na medida em que se apropria do
primeiro plano da narrativa fílmica.
94
Existem níveis de estranhamento. Certamente, ficaríamos ainda mais chocados
se o segundo filme invadisse a nossa tela quando o bandido não estivesse nem na sala
de cinema. de ele estar lá, mesmo que não olhando para a tela, atribuímos um
certo sentido àquele filme que nos invade o quadro. Ele se justifica em alguma
medida.
Na segunda vez em que o bandido vai ao cinema, muito rapidamente, sofremos
este estranhamento maior de que estamos falando. Primeiro, nos é mostrada a fachada
de um cinema pornô, onde o bandido entra. Depois, um corte seco traz à nossa tela a
imagem de um filme que se passa em uma taberna. No filme vemos muitos homens,
mulheres e alguns carneiros. Mas, apesar de insinuar uma orgia, o filme que nos é
mostrado não tem relação com os cartazes da fachada do cinema.
Figura 12 - 35’02” – fachada de cinema pornô
Figura 13 - 35’10”sem relação com o take anterior
Temos apenas dois takes. E muito pouca relação entre eles. Primeiro,
vemos o bandido entrar no cinema. Desta vez, não vemos a platéia do cinema. Depois,
como dissemos, o filme não corresponde à fachada do cinema, repleta de cartazes com
mulheres nuas. Somos impelidos, portanto, a um certo estranhamento.
Na terceira incursão metalingüística do Bandido pelos espaços do cinema,
vemos o bandido na platéia assistindo a um filme estrelado por Orson Welles. Neste
caso, também o estranhamento, pois, mesmo que desta vez o bandido não esteja
utilizando o binóculo, vemos claramente que os seus olhos se dirigem para a tela.
Neste terceiro caso, o interessante é perceber a homenagem ao cineasta que
influenciou, através do estilo de seus filmes, algumas cenas do Bandido e que depois,
hoje sabemos, iria influenciar e ser tema de grande parte da cinematografia de
Sganzerla.
95
Figura 11 - 82’35” – colagem: homenagem a Orson Welles
Retomemos a análise linear do filme do Bandido para investigar uma
determinada aplicação metalingüística que, agora sim, refere-se ao cinema enquanto
instituição cultural. Há, no início do segundo terço do filme, uma cena que começa com
a apresentação de uma claquete de cinema. Nela, em vez de constar, no lugar do título, o
nome O Bandido da Luz Vermelha, podemos ler, claramente, Coisas Nossas
175
, filme
brasileiro da década de 30:
Um plano apresenta uma claquete: no lugar do título não está escrito O
Bandido da Luz Vermelha, mas Coisa Nossas, em referência a um filme
musical brasileiro do início do cinema sonoro. É mais uma maneira, além das
referências explícitas à chanchada e ao Cinema Novo, de se inserir dentro da
tradição do cinema brasileiro
176
.
Esta aplicação metalingüística tem duas motivações ou, no mínimo, dois
resultados. A primeira, como afirma Bernardet, consiste em fazer uma citação ao
filme Coisas Nossas para estabelecer um diálogo do Bandido com a tradição do
cinema brasileiro.
175
filme de Wallace Downey lançado no Cine Eldorado, Rio de Janeiro, em 1931.
176
BERNARDET, J.C. op. cit., p. 216.
96
Figura 15 - 27’35” – citação ao filme musical brasileiro Coisas Nossas
A segunda motivação, ou conseqüência, desta aplicação metalingüística é a
quebra da impressão de realidade, na medida em que o autor traz para dentro do filme
um objeto que pertence aos bastidores do cinema: a claquete. Sabemos que a história do
Bandido não compreende a aventura de personagens produzindo um filme. Sabemos,
também, que uma claquete está sempre relacionada à produção de um filme. Logo,
quando vemos a claquete na diegese do Bandido tentamos, imediatamente, relacioná-la
à “idéia” de filme mais próxima que temos que, no caso, é o próprio Bandido. A
claquete pode constituir na interpretação do espectador uma falha, algo que deveria ter
sido escondido e que não foi. Na medida em que o público é capaz de perceber os
procedimentos e materiais que compõem o filme, a impressão de realidade é quebrada e
o público, mais uma vez, é levado a distanciar-se da obra.
No entanto, quando lemos Coisas Nossas na claquete, voltamos a acreditar no
discurso do filme, afinal, não se trata da claquete do Bandido, mas de uma outra
claquete que alguém es usando para fazer o filme Coisas Nossas. Contudo, mais
uma vez ficamos desacreditados com o filme, que não se preocupa em nos convencer
desta nossa última hipótese.
Outra aplicação da metalinguagem, que identificamos no Bandido, com este
caráter de desvelar para o blico os processos que envolvem a produção de uma obra
cinematográfica, é a cena em que o protagonista faz a barba em frente ao espelho.
Nela, aparece, abruptamente, um membro da equipe de filmagens do Bandido. Ele
atravessa a cena, em primeiro plano, ao mesmo tempo em que dobra um lençol branco
97
que, possivelmente, estaria sendo usado como rebatedor de luz. Não há indícios — em
qualquer cena precedente, ou dentro da própria cena que nos faça acreditar que esta
figura trata-se de um personagem. Ele é claramente um membro da equipe que surge,
desvelando para o público os bastidores de um set de filmagens.
Figura 16 - 30’50” – membro da equipe cruza a frente da câmera
Temos todos os motivos para acreditar que este articio foi empregado com a
clara intenção de provocar um estranhamento no espectador do Bandido e torná-lo,
como estamos tentando provar nesta nossa análise, distante e, portanto, consciente
— da obra como tal.
Continuando na mesma linha, passaremos a analisar a cena que talvez seja a
mais complexa em termos de metalinguagem no Bandido: o discurso de JB da Silva
no automóvel clube. A apreciação desta cena satisfaz a investigação deste tipo
específico de metalinguagem que se caracteriza por incorporar na fatura do filme
os materiais e procedimentos que assinalam o processo de produção cinematográfico
e introduz novos desafios para a nossa análise, na medida em que o objeto
colocado à mostra é a própria câmera de cinema.
Nesta cena, temos a personagem de JB da Silva encostada no canto de um
auditório e, em primeiro plano, uma platéia sentada de lado para ele e olhando para
frente. Na verdade, este grupo de pessoas parece ser uma platéia de cinema.
Analisemos a cena por completo. Como vimos, existe uma platéia, em primeiro
plano, que reconhecemos por algumas poucas cabeças. Atrás dela, está JB da Silva
98
olhando diretamente para a câmera e discursando inflamado. Junto com ele estão alguns
assessores e repórteres. No lado direito do quadro vemos uma câmera apontada para o
personagem de JB da Silva. Ao longo do filme, algumas câmeras aparecem em cena,
mas fora as câmeras de TV, que foram analisadas nenhuma delas precisou ser
investigada, que não constituíam mais que um objeto de cena necessário (sempre
caracterizando repórteres). Neste caso, também poderíamos entendê-la apenas como um
objeto de cena que caracteriza a figura do jornalista (cinegrafista), não fosse pelo corte
subseqüente que coloca na nossa tela a imagem registrada por esta câmera. Vejamos:
1º.) temos a imagem de JB da Silva e, à direita, vemos uma câmera apontada
para ele (fig. 17).
2º.) um corte seco introduz a imagem de JB da Silva que está sendo captada pela
câmera que estávamos vendo no take anterior. Podemos afirmar isso pelo ângulo da
imagem que condiz perfeitamente com o ângulo da câmera (fig. 18).
Figura 17 – câmera apontada para JB
Figura 18 – JB captado pela câmera diegética
É importante ressaltar que nenhum repórter aparece em frente à câmera para
conclamá-la sua. Nem, tampouco, aparecem na imagem registros técnicos da câmera
como “REC” ou informações de luz e bateria, o que poderia tornar a câmera um
personagem ou, no mínimo, dar-lhe uma explicação de ser. No entanto, isto não ocorre,
seu registro é o registro do Bandido. A câmera que vimos era uma segunda câmera do
Bandido. Esta intervenção metalingüística é mais definitiva que a aparição da claquete
ou do assistente. Afinal, foi a própria câmera de cinema que vimos. Sabemos, agora, de
onde vêm as imagens às quais assistimos. A ilusão foi completa e definitivamente
desfeita. O próprio filme nos disse, como diz uma fala do bandido: “me perdoe se o que
99
estou dizendo não passa de uma simples mentira”. JB da Silva não é mais JB da Silva,
mas um ator que representa o papel de JB da Silva, a tipificação do político corrupto.
Aqui, o efeito de distanciamento brechtiano foi terminantemente alcançado e o
espectador, convencido de que, se quiser continuar a acompanhar a história, será a um
nível racional e consciente.
Passemos, agora, a analisar pequenas intervenções metalingüísticas forjadas nas
falas em off do bandido. Em determinado momento do filme, o protagonista apresenta
suas ex-amantes com uma narração em off, enquanto aparecem as respectivas imagens
das mulheres. De uma delas, o bandido fala que “adorava baile de formatura e falar de
Cinema Novo”.
Figura 19 e 20 - 39’00” - “adorava baile de formatura e falar de Cinema Novo”
Segundo Bernardet, aqui Sganzerla faz mais uma provocação ao grupo do
Cinema Novo:
(...) o Cinema Novo é nominalmente referido no Bandido. Na apresentação
das ex-amantes do bandido, sua voz off faz breves comentários sobre cada
uma. De uma delas, é dito que era “do tipo intelectual, formada pela
faculdade de Assis, adorava baile de formatura e falar do Cinema Novo”.
vai uma alfinetada, pois longe de ter a aparência de uma intelectual
interessada no Cinema Novo, a moça em questão parece claramente uma
prostituta
177
.
Em outro momento, o bandido cita “Mandrake” e “os filmes da Atlântida”. Mas,
uma das falas mais curiosas do bandido em todo o filme, em se tratando de
metalinguagem, é quando ele diz:
Neste país o cara tem que ser grosso para ser forte. Vi isto naquele bang-bang
italiano, do Gringo. O cara era grosso pra burro, batia nas mulher, cuspia,
177
Ibid., p. 191.
100
matava todo mundo. O público, ao invés de reagir, não, achava o máximo.
Daí eu vi que o negócio é ser grosso.
Sganzerla coloca na voz do bandido a sua crítica ao cinema ilusionista. Neste
trecho, o personagem entende que se a platéia gosta de um filme em que “o cara é
grosso” é porque “o negócio é ser grosso” mesmo. Segundo o esforço teórico que
fizemos no início deste trabalho, podemos dizer que a grande maioria dos espectadores
não assiste aos filmes com um juízo crítico. O público, normalmente, é envolvido pelo
cinema ilusionista de tal maneira que as relações entre bem e mal são fundadas e
desenvolvidas todas durante a exibição do filme. Neste tipo de cinema, o espectador não
mantém um distanciamento suficiente para que os seus valores entrem em choque com
os valores dos filmes. Ele os assimila como se fossem naturais.
Mas sabemos que este tipo de cinema, apesar de dominante, não é o único. E os
filmes da Nouvelle Vague, dos Cinemas Novos e do Cinema Marginal estão para
provar isso. Cristian Metz disse uma vez: “(de 1895 até encontrar a sua rmula hoje
dominante, o cinema tateou bastante), regulagens que a evolução social produziu e que
ela poderá substituir.”
178
Em outro momento do filme, o protagonista olha para a câmera e dirige-se a
“todos os bandidos do Brasil”. Não podemos negar que tal recurso chama a atenção dos
espectadores para o código: o cinema. Podemos afirmar, também, que este artifício
justamente por chamar a atenção para o código — é altamente antiilusionista. Ele rompe
com a quarta parede e faz com que o filme assuma uma postura de obra aberta. Desta
forma, o Bandido está dizendo que tem “consciência” de que foi feito para que um
público o assistisse. E o público, por reflexo, toma consciência, mais uma vez, de que
assiste a algo que não é real, e sim, um objeto cultural que representa uma realidade
mediada pela consciência de um outro homem, ou pela ideologia de uma determinada
classe social, como diz Bernardet
179
. Ao contrário, o cinema dominante nunca rompe
com esta quarta parede e sempre finge que não existe um público:
O filme sabe, mas não sabe que é olhado. (...) para dizer a verdade, quem
sabe e quem não sabe não se confundem inteiramente (já que é de toda
denegação implicar também uma clivagem). Quem sabe é o cinema, a
instituição (e a sua presença em todos os filmes, ou seja, o discurso sob a
história); quem faz que não sabe é o filme, o texto: a história
180
.
178
METZ, C. apud XAVIER, I.(org.) op. cit., p. 404.
179
BERNARDET, J.C. O que é Cinema? São Paulo: Brasiliense, 1980.
180
METZ, C. apud XAVIER, I.(org.) op. cit., p. 407.
101
No entanto, talvez para que o público mantenha alguma relação de crença com
o Bandido, Sganzerla sente necessidade, mais uma vez, de atribuir algum sentido
gico (para o universo diegético do filme) para este disparate do bandido. Para tanto,
uma moça que esabraçada a ele se indigna e fala: “mas o que é isso? Está louco?”.
Esta fala da moça atribui à fala do bandido ao fato de ele estar louco. Desta forma, o
público, depois do impacto, é convidado a reingressar ao enredo do filme. É como se,
em vez de romper com a quarta parede, o bandido apenas houvesse aberto uma janela
que, tão logo, a moça fechou.
Figura 21 - 66’00” – Jorge falando com os “ladrões de todo o Brasil”
relatamos nesta análise as inúmeras facetas do procedimento metalingüístico,
dos diversos níveis de citação e paródia até o artifício de incorporar, na fatura da obra, os
materiais empregados no seu processo. No entanto, não tratamos ainda do método da
colagem.
O procedimento da colagem caracteriza-se por introduzir, quando da
montagem da película, um trecho inteiro de outro filme no meio da fita que se está
montando. No Bandido há, pelo menos, dois momentos distintos em que este
procedimento foi empregado claramente. Do primeiro, na verdade, já falamos. Trata-
se das cenas em que o bandido vai ao cinema. Nelas, quando o bandido olha para a
tela, um corte seco introduz em nossa tela o filme ao qual ele assiste. Estes trechos de
outros filmes foram incorporados ao Bandido por meio do procedimento da colagem.
102
E, como vimos, isto ocorre nas ts vezes em que o bandido vai ao cinema: com o
filme de guerra (Marrackech), no cine-pornô e com a adaptação de Shakespeare de
Welles.
O segundo momento refere-se às imagens dos discos-voadores que aparecem
no final do filme. Estas imagens certamente pertencem a outro filme, mas que,
infelizmente, o pudemos identificar. Sabemos, no entanto, que estas imagens,
somadas ao discurso dos locutores radiofônicos, fazem uma alusão ao famoso
programa de dio Guerra dos Mundos, que notabilizou a figura de Orson Welles
ainda antes de ele entrar para o cinema.
Há, ainda, as incorporações/colagens de takes muito pequenos (de poucos
frames), onde a identificação do original fica inviabilizada. Muito provavelmente,
essas pequenas inserções são propositadamente mínimas para que, neste caso, o
espectador não reconha o material original, mas tão somente reconheça a colagem
como colagem.
Para concluirmos esta nossa análise falta apenas investigarmos a cena final do
Bandido, quando o protagonista morre eletrocutado envolto a fios elétricos, numa
referência clara à morte do personagem-título do filme Pierrot Le Fou, de Jean-Luc
Godard:
Pierrot le fou em São Paulo não mais se suicida com dinamite num cenário
idílico. Morre eletrocutado num lixão. Ao multiplicar as referências ao
cinema de Godard, Sganzerla faz mais que uma deglutição carnavalesca,
inversão paródica de um cinema de primeiro mundo, esteticamente
ambicioso
181
.
Esta última citação à cinematografia de Godard talvez seja a mais explícita e
fecha um arco de citações no qual estão presentes os cineastas prediletos de Sganzerla.
Vejamos o que diz José Lino Grünewald, em sua crítica para o Correio da Manhã de 13
de maio de 1969, a respeito da cena final do Bandido:
Restaria dizer que, apesar de tudo, o filme não deixa de ser uma homenagem
às aberturas que o Godard, de À Bout de Souffle ou Pierrot le Fou, deu ao
cinema, sendo que, através da última fita, foi deveras citado no final por
Sganzerla, quando troca o enroscar-se nas bananas de dinamite de Belmondo
pelos fios elétricos de Villaça.
181
trecho do artigo intitulado A estética do lixo do bandido Sganzerla de Carim Azeddine in
http://www.contracampo.com.br/58, 2004.
103
Figura 22 e 23 - 88’00” – suicídio de Jorge: citação a Pierrot Le Fou de Godard
Como resultado desta análise, podemos concluir
182
que, em seu longa-metragem
de estréia, Sganzerla se utilizou, conscientemente, do artifício da metalinguagem para
romper com a impressão de realidade, própria da obra cinematográfica, e, desta forma,
inserir O Bandido da Luz Vermelha no conjunto de filmes antiideológicos e
revolucionários, seja pelo seu potencial didático, seja pelo “estilo violento” que se
coloca “à altura da violência dos acontecimentos históricos”
183
.
Pudemos observar também como a mistura de gêneros, da chanchada ao far
west, caracteriza a estética do Bandido e como esta estética é capaz de promover um
certo distanciamento do público com o filme, na medida em que o descompasso entre
um gênero e outro possibilita o desvelamento da linguagem para o blico:
O universo do gênero exerce (...) um inegável fascínio sobre Rogério
Sganzerla. Numa de suas frases mais conhecidas, o autor declara ser O
Bandido da Luz Vermelha ‘um far west sobre o terceiro mundo, (...) uma
fusão e mixagem de diversos gêneros, pois para mim não existe separação de
gêneros. Então fiz um filme soma: documentário, policial, comédia ou
chanchada (não sei exatamente) e ficção científica’.
184
Ou, nas palavras de Sônia Goulart, o Bandido resulta “num filme-soma ou
colagem que funda uma nova alegoria totalizante do terceiro mundo”
185
.
Gostaríamos, ainda, de ressalvar que, para além da metalinguagem, o Bandido
possui um arsenal invejável de artifícios capazes de romper com o vínculo catártico,
próprio do cinema clássico. Concluímos que todas as intervenções metalingüísticas que
182
Observação para a banca: se trata aqui de uma conclusão parcial, fundamentada pelas leituras e
análises feitas até o momento.
183
Walter Benjamin in RAMOS, F., op. cit., p. 142.
184
RAMOS, F., Ibid., p. 130.
185
GRAÇA, M.S.; AMARAL, S.B.; GOULART, S., op. cit., p. 78.
104
explicitamos nesta análise configuram apenas uma das frentes antiilusionistas do
Bandido. Elas se somam a outras diversas estratégias de distanciamento como a
construção de personagens e relações detestáveis e os descuidos de produção para
que o espectador do Bandido não consiga projetar sentimentos agradáveis no
ficcional representado
186
:
(No Bandido) a identificação redentora é combatida por um personagem que
se declara diversas vezes um ‘boçal’ e que é construído de maneira a realçar
o seu lado mais sórdido. A relação com o espectador não passa mais pela
catarse através da compaixão, mas permanece a um certo nível de distância,
onde a irritação com o representado, propositadamente disforme e abjeto,
aparece como identificação possível
187
.
E, ainda: “O deboche e o avacalho atingem a tessitura da imagem e a própria
película é atingida: negativos riscados, fotografia suja, pontas de montagem aparecendo,
erros de continuidade, descuido na produção, etc.”
188
.
Para amarrarmos os conceitos chaves da nossa pesquisa, gostaríamos de concluir
esta análise dizendo que o Bandido como o disse Fernão Ramos a respeito do
Cinema Marginal como um todo “se situa dentro de um contexto ideológico onde a
relação de agressão com o espectador é valorada como tentativa de questionar sua
posição social e despertá-lo do universo reificado”
189
. E que um dos pilares estratégicos
desta relação é a utilização exaustiva do artifício da metalinguagem.
186
RAMOS, F., op. cit., p. 121.
187
Ibid., p. 81.
188
Ibid., p. 43.
189
Ibid., p. 123.
105
2. Análise de A Mulher de Todos (1969)
O filme A Mulher de Todos data de 1969 e é o segundo longa-metragem de
Rogério Sganzerla, produzido logo após O Bandido da Luz Vermelha. Segundo Helena
Ignês
190
, esposa de Sganzerla e protagonista do filme, A Mulher de Todos é uma
produção que derivou do Bandido. Os dois filmes possuem uma forte relação. “A
mulher de todos é a parceira do bandido”. Os dois filmes são como yin e yang”. Ainda
nas palavras de Helena, eles são “um casal de filmes”, “uma dupla”, “foram feitos com
a mesma inspiração”.
Os dois filmes tiveram uma produção bastante organizada para os padrões da
época e foram, ambos, sucesso de público. Tanto o Bandido quanto A Mulher de Todos
lotaram as salas de cinema da época e tiveram grande êxito comercial. Hoje, o Bandido
gera mais debates, dissertações e teses, e é também mais exibido tanto aqui quanto no
exterior. Porém, quando foram lançados em salas comerciais no final dos anos 60, o
segundo rendeu, em termos monetários, ainda mais que o primeiro:
E esse filme [A Mulher de Todos] foi mais barato que O Bandido da Luz
Vermelha e rendeu mais. É um filme que eu acho o filme comercial mais
sofisticado do cinema brasileiro, disparado. Acho um escândalo. Um filme de
uma sofisticação cinematográfica e ao mesmo tempo completamente
popular
191
.
De fato, este segundo longa de Sganzerla tem forte apelo popular. Nele,
segundo Jairo Ferreira, “Rogério liberta-se mais das influências, satisfaz mais ao
público, afasta-se da inteligentzia colonialista”
192
. Sganzerla proe-se a explorar, sem
críticas ou rearranjos puramente intelectuais, os elementos ditos chulos e
popularescos: o mau gosto, o erotismo barato e folhetinesco, a cafonice, a grossura e a
sujeira. Carlos Frederico, em crítica para o jornal O Dia de . de março de 1970, definiu
A Mulher de Todos como um filme “excessivamente anárquico e excessivamente cafona,
que “não analisa o cafonismo e a anarquia, mas envolve-se com eles e torna-se neles
próprios”.
É, portanto, um filme que, no seu deboche e no seu avacalho, tem grande apelo
popular, atingindo as classes menos abastadas da população, de nenhuma ou quase
190
Em entrevista concedida especialmente para esta pesquisa, no dia 15 de outubro de 2007. A entrevista
completa encontra-se anexada no final deste trabalho.
191
Idem
192
Jairo Ferreira para o periódico São Paulo Shimbum, São Paulo, de 18 de dezembro de 1969.
106
nenhuma preocupação intelectual. Evidentemente, tal ousadia desafiou os postulados da
classe intelectual do momento, mesmo daqueles que se consideravam a vanguarda
daquela classe:
É um filme por demais classe C. É um filme debochado e, o que é pior, o
deboche no caso atinge mais que qualquer outra a classe dita "intelectual",
exatamente por ser realizado fora dos padrões por ela consagrados. É um
filme que atinge e, à sua maneira, se comunica barbaridades, com um público
também classe C (de pouca ou nenhuma preocupação intelectual e também de
menor poder aquisitivo), podendo mesmo dizer-se que é dirigido a ele (já
viram maior desaforo!?)
193
.
A Mulher de Todos tem forte relação com uma tradição específica do cinema
popular brasileiro que é a chanchada. As chanchadas foram comuns no Brasil entre as
décadas de 1930 e 1960. São produções em que prevalece o humor ingênuo, burlesco,
de caráter bastante popular. As chanchadas ficaram para a história do cinema brasileiro
muito ligadas à produtora carioca Atlântida, que viu nesse tipo de filme um filão de
mercado bastante lucrativo.
Na década de 1960, com a revolução dos costumes, as chanchadas passaram,
cada vez mais, a incorporar elementos eróticos. Essas produções começaram, então, a
ser chamadas de ‘pornochanchadas’.
Jairo Ferreira definiu A Mulher de Todos como uma “pornochanchada
visionária”
194
. E o próprio Sganzerla fez muitas declarações endossando a aproximação
de seu filme com essa tradição do cinema brasileiro:
Depois de ter visto alguns filmes sobre mulheres resolvi fazer um também
para tentar provar que o gênero não é necessariamente medíocre. O
assunto não importa muito, o que vale é o tratamento. A novidade do
filme é ser uma homenagem à chanchada e aos primitivos pastees
americanos (Mack Senneth, Buster Keaton) que são os gêneros que mais
influenciam hoje em dia
195
.
O que separa o filme de Sganzerla de uma pornochanchada qualquer, o que o
torna uma “pornochanchada visionária” e não só mais um filme de apelo pornográfico, é
mais uma vez o talento artesanal de Sganzerla em misturar uma série de referências, ao
lado desta mais evidente, para criar uma obra totalmente nova. Além da “chanchada e os
193
Carlos Frederico para o jornal O Dia, Rio de Janeiro, 1 de março de 1970.
194
FERREIRA, J. Cinema de Invenção. São Paulo: Limiar, 2000.
195
Declaração de Rogério Sganzerla em Catálogo da Mostra Rogério Sganzerla, Por Um Cinema Sem
Limites, CineSesc/SESC-SP, São Paulo, 25 a 26 de agosto de 2004.
107
primitivos pastelões americanos”, Sganzerla declara também uma “homenagem às fitas
alemãs e suecas classe B”
196
.
Mais uma vez, como no Bandido, nas suas declarações, Sganzerla oferece-nos as
pistas para trilharmos os elementos que o influenciaram e que por ele foram deglutidos
antropofagicamente para criar o seu segundo longa-metragem. Novamente, Rogério não
se envergonha ao declarar influências ‘pouco nobres’. Pelo contrário, o diretor parece
regozijar-se com tais declarações. Para ele, essas decorrências e homenagens em
específico possuem um “pejorativo cujo estilo obsceno serve para melhor retratar nossa
realidade — não por moralismo mas por ideologia”
197
.
No entanto, esse segundo filme de Sganzerla o trabalha com tantos grandes
blocos de construção paradigmáticos como o primeiro. Há menos citações, colagens e
incorporações diretas. Todas as referências citadas acima (e ainda muitas outras, como
veremos) são bastante claras no filme, mas estão diluídas ao longo dele. Continua
havendo uma profusão de referências, mas elas não são tão marcadas como no
Bandido.
As citações ao universo pop continuam com toda força: “Arte pop, A Mulher de
Todos é irmão emprestado de Roy Lichtenstein, dos seriados de televisão, dos pornôs
suecos, das histórias em quadrinhos, de Godard (...)”
198
. Entretanto, as histórias em
quadrinhos (HQs), ícones da cultura pop dos anos 60, ganham aqui uma dimensão
maior. O universo das HQs está para A Mulher de Todos como a tríade cinema/ rádio/
televisão está para o Bandido.
Sganzerla era fascinado por histórias em quadrinhos. Era uma de suas paixões,
ao lado do cinema, da música e da literatura. Em 1969, mesmo ano em que realizou A
Mulher de Todos, Rogério dirigiu também, junto com Álvaro de Moya, um curta de sete
minutos sobre a história dos HQs no Brasil
199
.
Provavelmente o assunto estava particularmente fascinando Sganzerla naquele
ano. Em A Mulher de Todos, os HQs se fazem presentes temática e formalmente. Não se
tratando mais, como no Bandido, de apenas mais uma referência à cultura pop. Aqui, o
universo das histórias em quadrinhos faz parte da estrutura do filme.
Para este filme, tentaremos fazer a análise da maneira mais linear possível. Pois,
diferentemente do Bandido, os demais filmes que são objetos de estudo deste trabalho
196
Declaração para o artigo de Alex Viana no O Jornal, de 23 de janeiro de 1970.
197
Idem.
198
Ruy Gardnier em artigo intitulado “Quem vai ficar com Ângela?” In www.contracampo.com.br/58
199
Quadrinhos no Brasil, Brasil, 1969, Cor, 7 min., 35mm.
108
não foram antes apreciados por outros autores e, também, são mais difíceis de serem
encontrados no circuito comercial ou mesmo em circuitos especializados. A linearidade
da análise, por isso, contribuirá para o melhor entendimento da história por parte
daqueles que estiveram impossibilitados de apreciar os tais filmes.
A tal ‘mulher de todos’ do tulo é Ângela Carne e Osso (Helena Ignez), casada
com Doktor Plirtz (Jô Soares), magnata da indústria dos quadrinhos no Brasil. Ângela
está decidida a passar o final de semana na Ilha dos Prazeres. Doktor Plirtz não pode
acompanhá-la, pois está ocupado com a finalização de uma de suas histórias em
quadrinho. Durante a viagem, Ângela se envolve com homens de diversos tipos e, com
eles, vive extravagantes e bizarras aventuras.
O filme começa com Jô Soares numa praia vestido com uma espécie de
uniforme militar. No cap a figura de uma caveira. Ele entra no mar atrás de uma
imensa bola inflável e negra. Segundo José Lino Grünewald, aqui Sganzerla “cita em
tom satírico o peixe misterioso do final de La Dolce Vita, na forma do imenso balão que
bóia à beira-mar”
200
.
O ator, então, tenta abraçar a imensa bóia e começa a mordê-la ao mesmo tempo
em que entra uma narração em off dizendo: “Será esse o marido do século XXI ou do
século XVI?”.
A cena fecha com um efeito de fade, no qual o recorte em forma de ‘balão de
explosão’ remete claramente ao universo das HQs.
Figura 24 - Passagem da primeira para a segunda cena em efeito que imita as HQs
200
José Lino Grünewald em artigo intitulado “A Mulher de Todos” para o Correio da Manhã, s/d, In
www.contracampo.com.br/58.
109
Vamos para a cena então em que Ângela está brigando com um de seus amantes
(Stênio Garcia). Eles estão na escada rolante de um aeroporto. Ela o agride com socos e
pontapés. Durante esta seqüência há três cortes secos dentro do mesmo ângulo. O que
causa certo estranhamento, uma vez que parece um erro. também uma brincadeira
com os efeitos de slow motion e fast motion. Entra, então, novamente, a narração em off
e apresenta o filme: “As aventuras sexuais de Ângela Carne e Osso. Uma das dez mais
megalomaníacas”.
Na cena seguinte, eles estão no banheiro do aeroporto. Ângela seduz e provoca o
amante, sempre com uma postura superior, mas debochada. Depois vai para um dos
mictórios enquanto Stênio Garcia abre A Folha de São Paulo e começa a ler. Pelo
enquadramento, pode-se ler claramente a manchete: “Delfim Neto: 1969 será o ano de
ouro”. Aparecerão outros jornais ao longo do filme, quase sempre sendo possível
identificar o nome deles e as principais manchetes. Em alguns momentos, eles quase
chegam a preencher a tela.
Figura 25 - Jornal A Folha de São Paulo em
primeiro plano
Figura 26 - Ângela olhando para a cãmera
Quando volta, Ângela agarra o amante, olha pra câmera e fala: “Esse final de
semana, vou me dedicar aos bossais. É mais fácil”. O recurso de olhar para a câmera e
romper com a quarta parede seutilizado neste filme com maior freqüência do que no
Bandido.
Na fala de Ângela, reencontramos o termo ‘boçal’, tão recorrente no Bandido.
Nele, lembremos, o protagonista se declara por diversas vezes um ‘boçal’. Em sua fala,
Ângela afirma: “vou me dedicar aos boçais”. Este arrolamento endossa a declaração de
Helena, presente em nossa entrevista realizada com a atriz, de que Ângela é a ‘parceira’
110
do bandido. Evidentemente, a relação entre os dois personagens, e entre os dois filmes,
vai muito além disso. Estamos apenas usando este trecho para ilustrar e marcar tal
relação. Em tantos outros momentos do filme, Ângela voltará a dizer que pretende se
“dedicar aos boçais”.
Na cena seguinte, o casal anda por um aeroporto. Flávio, o amante, apregoa em
tom de manchete jornalística: “Mulher dá luz a um peixe. Quinta guerra mundial à vista.
Os antropófagos invadem a Guanabara”. Esse comportamento de Flávio é insistente.
Alguns minutos depois, após se despedir de Ângela, ele declara no mesmo tom: “Na
Mooca, cão faz mal a moça”. que agora a voz é em off. Em seguida: “Um cara se
atira do oitavo andar”.
Na mesma cena, Flávio vai até um telefone público do aeroporto e, agora em
tom de mistério, conversa com alguém do outro lado da linha: “Destrua todos os
documentos. América do Sol. Consiga atestado de óbito”. E, em seguida, uma frase
curiosa: “Não me envolva no atentado de mister Welles”.
Enquanto isso, depois de despedir-se de Flávio, Ângela se encontra com um
personagem negro que ela chama de Vampiro (Antônio Pitanga). Ele declara: “Sou o
único negro milionário do Brasil. Sou o maior!”. Eles entram em um jipe e conversam:
“Dizem que cantar mulher de dia dá azar. Mas eu estou aqui com uma sensacional. Uma
das melhores do país. Nunca se sabe, pode ser uma das dez mais”.
Essas últimas cenas e seus diálogos, declarações, profusões sonoras etc. —,
focadas em Flávio e depois no Vampiro, não servem em nada para avançar a história do
filme. Os dois personagens não têm importância para a trama. Flávio não voltará a
aparecer na história, e o seu mistério ao telefone não se prolonga. Não a menor
referência a ele no resto do filme. E o outro, o Vampiro, permanece apenas até a
próxima cena, quando Ângela, enfim dando continuidade à história, o convida para
acompanhá-la em sua viagem à Ilha dos Prazeres.
Nesse ínterim, onde não ocorre avanço na trama, o propósito parece ser não
caracterizar os personagens, mas caracterizar o filme. Assinalar a forma anárquica e
desdramatizada da película. Sim, porque se os cânones da dramaturgia clássica
apregoam que toda cena diálogo ou ação serve exclusivamente para avançar a
história ou caracterizar os personagens, Sganzerla vai evidentemente de encontro a isso.
Ele usa metade dos dez minutos iniciais do filme para caracterizar Ângela e a
outra metade para dizer ao público que aquele filme não prosseguirá de forma clássica.
Que nem todas as falas ou ações das personagens possuem um sentido exclusivo dentro
111
da trama. Que existem cacos, pedaços soltos e sem sentido aparente. Fragmentos que só
fazem sentido em conjunto. Um conjunto que tem como propósito adornar o filme com
certa ‘falta de sentido’. E isso, sim, ‘ajuda’ a história. Porque, para que a “aventura
pornográfica” de Ângela Carne e Osso seja contada, faz-se necessário esse pequeno
caos, esse redirecionamento do olhar. De outra forma, a história pareceria apenas
ridícula. Como Sganzerla disse: “O assunto não importa muito, o que vale é o
tratamento”. Sem esse “tratamento”, o filme desmorona. sim, ele não passaria de
uma chanchada qualquer, das mais “bocós”. Por isso, faz todo sentido quando Helena
diz: “Não vejo outro autor fazendo esse filme”
201
.
A Mulher de Todos é um filme de direção (e montagem), não de roteiro. O
Bandido, por exemplo, possuía um roteiro, mesmo que não tradicional. Começou com
umas folhas de papel cheias de anotações que Rogério carregava pra lá e pra cá, e
terminou em um roteiro muito bem estruturado
202
. A Mulher de Todos não. Sganzerla
sabia que a novidade do filme seria o seu “tratamento”. Ele admitiu: “Quis aprender a
filmar sem nenhum roteiro, escrevendo à medida que filmava, aproveitando diretamente
a realidade”
203
.
Mesmo o Bandido, é claro, não poderia ter sido feito por outro autor. Sganzerla
sempre realizou seus filmes com uma visão muito particular. Seus filmes são
essencialmente ‘de autor’. Mas A Mulher de Todos exacerba tal característica autoral
que se no Bandido. Afinal, não roteiro. É impossível dizer como filmá-lo! Foi
um filme feito diante das câmeras e na sala de montagem. Um trabalho artesanal de
Sganzerla com a forma fílmica.
A cena em que Ângela convida o Vampiro para ir à Ilha dos Prazeres é inteira
contrastada. estão os dois atores em cena. Ele segura um spot (equipamento que
pertence aos bastidores do cinema e que serve para iluminar as cenas) com o qual
ilumina Ângela. Ela faz um strip-tease para ele. O áudio é confuso, misturando uma
trilha de ritmos tribais (tambores) com os gemidos e risadas do Vampiro. Ele diz não
poder ir até a Ilha com ela e eles se beijam como animais.
A próxima cena abre com uma pan vertical que começa na torre de uma igreja e
acaba em um novo personagem: outro amante de Ângela. Este, como os outros, também
201
Entrevista com Helena Ignês, op. cit.
202
O roteiro de O Bandido da Luz Vermelha pode ser encontrado nos arquivos da Cinemateca de São Paulo.
203
Declaração para o artigo de Alex Viana, op. cit..
112
se diz impossibilitado de ir até a Ilha dos Prazeres com ela. Ele prometeu “terminar a
capa do Cavaleiro Negro pra segunda-feira”.
A cena se desenrola em frente a uma banca de jornal. Esse tipo de locação ajuda
a compor a textura “barroca” que Sganzerla gosta de imprimir em seus filmes. Além, é
claro, de fazer parte daquele grande campo semântico de que o autor se utiliza, desde o
Bandido, para referir-se à cultura midiática: jornal, revistas, rádio, quadrinhos etc.
Figura 27 - Banca de jornal: referência à cultura midiática
É tida a intenção do autor em compor ambientes poldos visualmente,
com a marca da urbanidade, onde diversos elementos (fotos, textos, objetos) se
sobrepõem. É uma estética diametralmente oposta àquela asséptica de um Antonioni,
por exemplo, diretor com o qual, inclusive, Sganzerla guarda grandes diverncias,
por conta do subjetivismo, da preocupação com os “conflitos interiores do
homem aquilo que Rorio acusa de ser “literatura filmada
204
.
Já essa estética do palimpsesto’, em que camadas de imagens significantes
se interpõem do primeiro ao último plano, está, evidentemente, muito mais ligada ao
cinema de Godard, com toda sua urbanidade, seus cartazes, seus luminosos, suas
fachadas etc.
Na cena seguinte, o casal está em uma cama. Referindo-se ao marido de Ângela,
Doktor Plirtz, ele pergunta: “De quem você gosta mais?”. Ela responde: “Quando?
Agora? De você, claro”. Em seguida, ela o morde no pescoço e apaga o seu charuto nas
costas dele. Escorre muito sangue e ele grita. A cena possui um tom bizarro e se vincula
204
SGANZERLA, R. Por um cinema sem limites. Rio de Janeiro: Azougue, 2001, pg. 78.
113
à tradição dos filmes de terror ‘classe B’, devendo também uma homenagem ao
cinema de José Mojica Marins.
Falando sobre sua esposa, Helena Ignez, em A Mulher de Todos, Sganzerla
disse: “Pela primeira vez em nosso cinema, uma mulher canta, berra, bate, dança, deda,
faz o diabo. Neste filme ela é Marlene Dietrich co-dirigida por Mack Sennet e José
Mojica Marins, isto é, por mim"
205
.
Figura 28 - Referência à tradição dos filmes de terror ‘classe B’
Ângela se despede do amante e telefona para o marido. Ela inventa desculpas
nas quais ele acredita. Os dois trocam palavras de carinho. Enquanto conversam ao
telefone, no escritório de Doktor Plirtz vemos uma revista em quadrinhos, posicionada
de maneira que o público possa ler com clareza: Cavaleiro Negro. Em seguida, Doktor
Plirtz pede para a esposa: “Me chama de ‘bitolado’”. Depois, uma risada ridícula,
caricata, como de um desenho animado. E continua: “Você vai indo pra ilha. Depois eu
te encontro lá. Eu vou ter que levar um funcionário aqui do escritório. Ele é meio
intelectual, mas tem valor”. Nesse momento, entra em cena o amante de Ângela, o
mesmo sujeito do qual ela acabou de se despedir. Ele entra junto a outros empregados.
Fica claro que ele é o tal funcionário “intelectual”.
Todos cantam parabéns para o patrão e dão a ele, como presente, uma garrafa de
coca-cola. Depois que todos saem de cena, Doktor Plirtz abre a garrafa com os dentes e
procura na tampa algum tipo de promoção. Entra a mesma voz off do começo: “Será
esse o brasileiro do século XXI? Do século XVI ou do XXI?”. Enfim, olhando para a
205
Alex Viany, O Jornal, 23 de janeiro de 1970.
114
tampinha da garrafa, Doktor Plirtz diz: “É o tal negócio, eu procuro cultura e só me sai
dinheiro”. Em seguida, olha para câmera e continua: “Eu sei que eu sou um bitolado,
mas o que eu posso fazer?
A próxima cena abre com Jô Soares dando uma ordem ao seu pistoleiro. Ele o
chama de POLENGUINHO. A vítima, não se sabe do que ainda, será sua mulher. Ele
apenas ordena: “Não me mate ninguém”. Em mais um take grotesco, a cena acaba com
o pistoleiro comendo o chocolate que Jô Soares joga no chão.
Segue-se, então, mais um momento de caracterização da personagem e do filme
como um todo. Ângela nos é mostrada modelando um vinil na cabeça. Ela dança de
calcinha e sutiã em cima de um telhado. Ela morde o vinil. Berra como uma louca.
Enquanto isso, a voz off, em outra forte semelhança com o Bandido, caracteriza a
personagem com profissões e adjetivos insólitos: “Ângela Carne e Osso, cantora bêbada
e hipnotizadora fracassada. Atual profissão: striper internacional”.
O mesmo acontecerá na cena seguinte com o personagem de Soares. Na
forma de um relatório, o narrador começa apresentando informações gerais da
personagem: Idade: ignorada; profissão: todas; identidade: Doktor Plirtz”. E continua:
“proprietário do truste das histórias em quadrinhos do país, das minas de prata no
Guarujá e da rádio emissora El Dólar”. Depois, segue com as adjetivações de uma
literatura barroca e absurda: “célebre colecionador de pessoas; psicanalista amador que,
segundo certas más línguas, teria uma paixão obscena pelas semi-virgens adolescentes e
traidoras fatais”.
Figura 29 - Doktor Plirtz: industrial das HQ´s
115
A cena apresenta Soares sentado em sua mesa, fumando charuto e cercado de
jovens mulheres. Elas o beijam e lhe fazem agrados. Sua atitude é debochada. Depois da
narração completa, que tenta dar conta de sua identidade, ele se vira para a câmera e diz:
“Sou eu mesmo. É com ele que vocês estão falando. Plirtz, o grande bitolado. É assim
que meus amigos costumam me chamar.”
O filme prossegue com Ângela na estrada a caminho da Ilha dos Prazeres. Ela dá
carona para um desconhecido. Os dois dialogam sempre em close-up. O conteúdo da
conversa e, principalmente, as expressões e entonações das personagens parecem
caricatos para o olhar destreinado. Na verdade, não se trata de caricatura. O
enquadramento e o desenho das feições dos personagens procuram expressar na tela
uma estética dos quadrinhos.
Figuras 30 e 31 - Cena da carona: elementos que imitam a estética dos quadrinhos
Nas histórias em quadrinho, pela própria limitação da técnica privada de
movimento —, é necessário que as informações de cada quadro sejam bastante claras.
Aliás, existe uma relação muito direta entre os quadrinhos e o chamado story-board,
pranchas desenhadas que servem de orientação para o diretor de cinema na hora de
filmar. O story-board é a representação gráfica do filme em seus quadros-chave. Nesses
quadros-chave são desenhadas as informações principais das seqüências que virão a ser
filmadas. Por exemplo, se uma personagem se apresenta triste em determinada
seqüência do filme, o seu quadro-chave deve representá-la ‘evidentemente’ triste, sem
as nuances que a efetiva interpretação do ator dará nas filmagens.
Portanto, nas histórias em quadrinhos, como nos story-boards, os elementos
representados pelos quadros precisam ser icônicos, dizer o que precisam dizer, sem
ambigüidades. Qualquer bom manual de histórias em quadrinho ensinará ao aspirante: o
que este quadro diz? No que ele serve para o bom andamento da história? Qual sua
116
função dentro do todo? Se ele não condensa um número suficiente de informações que
lhe torne necessário para o encadeamento lógico-dramático do conjunto, jogue-o fora!
Evidentemente, não estamos dispondo em equivalência as duas técnicas. As HQs
são obras acabadas, muitas são verdadeiras obras de arte, enquanto os story-bords, por
melhor executados que sejam, são apenas a etapa de um processo maior, servem como
ferramenta, como arrimo à técnica cinematográfica.
Essa resumida digressão com relação à técnica dos quadrinhos é importante para
dar suporte à nossa análise. Pois, é exatamente esta estética do quadro-chave que
Sganzerla aplica na cena da carona’. Os atores usam muito poucas nuances em suas
interpretações. Passam rapidamente de uma expressão-chave para outra, sem os matizes
necessários à encenação dramática realista. Por isso, o olhar que não identifique essa
incorporação proposital da linguagem dos quadrinhos tomará a cena como uma simples
caricatura.
Figura 32 – frame “tratado”
Figura 33 – HQ Calvin e Haroldo
Ao lado, modificamos um dos
frames pertencente à cena que estamos
analisando, com alguns poucos efeitos
de um software de imagens (Figura 32),
e comparamo-lo a um quadro extraído
realmente de uma revista de história em
quadrinhos (Figura 33). Os efeitos
aplicados serviram apenas para (1)
retirar o excesso de sombras e tons de
cinza próprios da fotografia; (2) reforçar
as linhas negras (para imitar a técnica
de desenho à nanquim) ; e (3) reticular a
imagem (tal como acontecia com as
imagens das HQs por conta do processo
utilizado na impressão das revistas).
Fizemos isso para mostrar a
forte relação entre a cena da carona’ e
alguns elementos estéticos da arte
seqüencial.
117
O leitor poderia argumentar que, com os efeitos aplicados, qualquer imagem, de
qualquer cena, de qualquer filme, poderia ficar parecida com as imagens das histórias
em quadrinhos. O que não é verdade. Os elementos que nós inserimos por conta própria
no frame do filme são os elementos que ‘faltavam’, pois outros elementos já estavam lá:
a forma icônica como a figura e sua expressão facial é representada; os próprios traços
fisionômicos do ator; o enquadramento e o controle sobre os elementos enquadrados, dois
procedimentos absolutamente diferentes. O enquadramento refere-se essencialmente a
duas decisões do diretor: em que plano e de qual ângulo os atores e objetos serão
enquadrados. O plano define que porção dos atores e objetos devem ocupar a tela — se,
por exemplo, devem ser enquadrados em plano geral ou em plano conjunto, ou se em
plano médio ou em close-up —, enquanto que o ângulo define qual será o ângulo da
câmera em relação aos atores e objetos a serem filmados (ex.: plongé, contra-plongé,
ângulo plano).
Já o que chamei de “controle sobre os elementos enquadrados” não possui
relação com esses vocábulos puramente técnicos. Tal conceito tem a ver com a
disposição e/ou competência do diretor de querer e/ou conseguir colocar na tela apenas
os elementos significantes que, de fato, façam parte do seu projeto. Denota, portanto, a
habilidade do diretor, se ele assim realmente o desejar, de colocar ‘em quadro’ apenas
signos sobre o seu controle, assim como faz um pintor diante de seu quadro.
Tal conceito pode parecer inócuo, sem sentido mesmo, em um primeiro olhar.
Afinal, porque um diretor, ou qualquer outro artista, haveria de depositar em sua obra
elementos que não sejam de seu desejo? De fato, o pintor aplica na tela as tintas que
lhe interessam, o músico só compõe com as notas que melhor lhe soam e o teatrólogo só
leva ao palco os atores, o cenário e o figurino que se justificam. Mas o mesmo não se
passa com o cinema, ainda mais com o cinema fora dos estúdios. Na sua vocação para
capturar o real, o cinema muitas vezes deixa ‘vazar’ para dentro do quadro elementos
que não pertencem ao projeto, que escapam ao controle do diretor.
Fizemos este esclarecimento para marcar essa forte diferença entre o cinema e a
arte seqüencial, que os quadrinhos — assim como a pintura, a música e o teatro
considera informações realmente projetadas pelo artista. Nada entra no quadro do
desenhista sem que ele queira. E, podemos dizer que, especificamente nessa cena, é
exatamente isso que Sganzerla faz: controla os elementos significantes, limpa o quadro
da profusão de informações que, inclusive, é característica marcante do seu cinema. Ele
mantém apenas o ‘desenho’ das personagens no quadro. E mais: Sganzerla se preocupa
118
ainda em não utilizar elementos formais e efeitos tipicamente cinematográficos — como
planos desfocados, efeitos de lente etc. justamente para não distanciar-se do diálogo
pretendido com a estética dos quadrinhos.
Ou seja, Sganzerla atua ativamente para produzir a relação da sua cena com
aspectos formais das HQs quando: (1) escolhe os atores, com seus biótipos e
fisionomias característicos; (2) quando pede a eles que interpretem de forma resumida,
sem muitas nuances, privilegiando as expressões-chaves; (3) quando enquadra em um
close-up pouco corrente no cinema da época, mais atrelado às necessidades da televisão
e da própria arte seqüencial (forçosamente pelo espaço efetivo de que dispõem); e (4)
quando exime a cena de elementos tipicamente cinematográficos como planos
desfocados ou efeitos de lente, o que torna a imagem mais ‘limpa’, mais ‘desenhada’,
mais próxima mesmo da estética das histórias em quadrinhos.
É necessário dizer, ainda, que fizemos a simulação do frame como ‘quadrinho’
para orientar o olhar do leitor para a efetiva relação entre as escolhas estéticas de
Sganzerla na cena e aspectos da técnica da arte seqüencial. Fizemo-lo, pois, com a
liberdade própria das finalidades didáticas, sem justificativas maiores.
O casal chega, então, à praia. Os dois são seguidos por Polenguinho, o pistoleiro
de Doktor Plirtz. Portando uma arma, ele os fotografa e espiona. O que deveria ser um
momento dramático, de suspense, dentro de um filme convencional, torna-se, mais uma
vez, uma passagem descontraída, humorística, dada a representação patética que é feita
do pistoleiro. Mais uma vez, o humor como estratégia de desdramatização.
Figura 34 - Polenguinho: desdramatização por meio do humor
119
Ângela dirige o carro pelas areias da praia. O narrador, em off, diz: “é o weekend
de um medíocre e uma vampira histérica”. A utilização despropositada de uma palavra
em inglês como weekend, no meio da narração, reforça a tonalidade cafona que o filme
se propõe a incorporar. Tanto na época em que o filme foi feito como hoje, esse tipo de
construção soa logo como ‘brega’. Talvez pela forma mesma como a ngua inglesa
penetrou em nosso imaginário lingüístico, pelos meios de comunicação de massa, pela
publicidade, pelo consumo, atingindo todas as camadas da população, diferentemente
do francês, por exemplo, que, quando citado apropriadamente, remete-nos rapidamente
à idéia de que nosso interlocutor é alguém culto, letrado, erudito.
A cafonice, na verdade, vai muito além, cena adentro. No momento em que
Ângela desce do carro, entra uma trilha sonora extremamente “brega”, com coros
femininos que evocam uma atmosfera epopéica. Ela se despe da parte de baixo da roupa
e entra no mar. O canto em coral vai dando lugar gradualmente ao som de um saxofone
igualmente “brega”. Essa trilha, evidentemente cafona, se sobre a imagem de Ângela
fumando um charuto e se banhando no mar, com os seios aparecendo sob a camiseta
branca molhada. Esta é, talvez, a cena que melhor represente o diálogo, pretendido por
Sganzerla, com a tradição da pornochanchada. É uma cena propositadamente cafona, de
conteúdo erótico e recheada de clichês.
Figura 35 - Referência à tradição da pornochanchada
Ângela passa quase 1’30” da cena se banhando no mar, fumando o charuto e
fazendo poses eróticas. O sujeito que a acompanha entra também na água e, em um take
120
que parece um comercial de televisão de mal gosto, os dois se aproximam e começam a
se agarrar.
Esse é um take em plano geral, que mostra a praia e as duas personagens na
porção rasa do mar. A câmera se movimenta em travelling lateral, deixando passar
objetos e banhistas no primeiro plano e mantendo as personagens enquadradas
simetricamente no plano do fundo.
Figura 36 - Take em travelling lateral que diáloga com a publicidade televisiva
As escolhas de linguagem cinematográfica para este take, principalmente a
simetria dos personagens no enquadramento, resultam em um plano ‘óbvio’, marcado
pelo clichê, bem ao sabor do gosto popular, acostumado com a estética pasteurizada dos
meios de comunicação de massa.
O casal chega, enfim, à Ilha dos Prazeres. Em um take isolado, temos Ângela
olhando diretamente para a câmera e declarando, performaticamente: “Sou Ângela
Carne e Osso. A ultra poderosa inimiga número 1 dos homens. Nós... não gostamos de
gente”.
Em seguida, o narrador apresenta a ‘fauna’ da Ilha dos Prazeres novamente por
meio de profissões e adjetivos insólitos:
121
Para a Ilha dos Prazeres, PARADISE NOW, vem todos os neuróticos,
macumbeiros, macartistas, esfarrapados, disponíveis, imposveis, boxers,
mancos, frouxos, devoradores, trogloditas, picaretas, enfermeiras,
pistoleiras, secretárias, empregadinhas, taxidermistas, beatos, naufragas,
ratos, peitudas, bundudas, astecas, beis, grossas, pernas grossas, chatas,
coxos, piranhas, duros, verdugos, aleijados e recalcados de São Paulo.
A locução do narrador se sobre imagens igualmente incomuns, com o intuito
provável de nos apresentar os predicados anarco-pornográficos da famigerada Ilha dos
Prazeres: mulheres correm pela praia arrancando os biquínis; um bêbado cercado de
garrafas, livros, um sapato e uma vitrola; personagens que dançam tresloucados como
num ritual religioso; um homem abraçando duas mulheres nuas; uma “bunduda”
dançando a dança do ventre.
Sobe uma música pop suingada que logo dá lugar novamente à narração:
Ângela, ou simplesmente a rainha dos bossais, tarados, telegrafistas,
suicidas pernambucanos, colonizados, tucanos, aves raras, apopléticos,
cdulos, anõezinhos, choferes de táxi, turcos, leiteiros, magros,
importadores, foles, orelhudos, embandeirados, sambistas, radialistas,
Cleópatras, turistas, botocudos, amanicos em geral.
Como dissemos acima, este tipo de narração está presente na cinematografia de
Sganzerla desde o Bandido e segue, em maior ou menor grau, por toda sua obra
ficcional.
Não encontramos em nenhuma crítica ou análise aos filmes de Sganzerla uma
tentativa direta e objetiva de esclarecer esse recurso tão corrente em sua filmografia. As
melhores análises (Bernardet, Xavier, Ramos) tocam neste assunto quando tratam de
questões como a da identidade/não-identidade, principalmente no Bandido, onde esta
questão é fundamental. Ou seja, no Bandido, as diferentes profissões, motivações, locais
de origem e adjetivações têm o propósito de construir a incerta, ambígua e fragmentária
identidade do personagem-título. E esta construção/desconstrução da identidade é de
fundamental importância para a trama e o conceito do filme.
Aqui, em A Mulher de Todos, não há, na verdade, essas contradições com
relação à identidade da personagem-título e, no entanto, o recurso às adjetivações
exageradas e pouco comuns continua.
Tal recurso pode ser enxergado como o equivalente verbal da linguagem
propriamente cinematográfica do autor. Imagética e verbalmente, narrativa e
cinematograficamente, Sganzerla faz ‘poucas escolhas’, que é o mesmo que dizer
122
como temos dito insistentemente ao longo deste trabalho que, por um lado, o autor
trabalha sempre com uma profusão de elementos audiovisuais e, por outro, incorpora,
em seus filmes, inúmeras referências, influências, escolas, estéticas etc.
Existem, ainda, outros fatores que influem cada vez que Sganzerla utiliza esse
recurso. Fatores mesmo de estilo, de expressividade. Sabemos, por exemplo, que
Sganzerla quer captar o mundo objetivo, supostamente real, e não o mundo subjetivo
das idéias. Por isso, dizer “Ângela, ou simplesmente a rainha dos bossais, tarados,
telegrafistas, suicidas pernambucanos, colonizados, tucanos, aves raras, apopléticos,
crédulos, anõezinhos (...)” é muito mais válido e coerente para a proposta do autor do
que fazer algum tipo de generalização que abarcasse todos esses elementos de uma
vez. Vejamos: mesmo que a construção frasal do exemplo acima seja pouco ou nada
“realista”, os substantivos e adjetivos usados são restritivos, marcam uma presença mais
próxima do mundo objetivo do que do mundo das idéias, universo das generalizações
como, por exemplo, se disséssemos “Ângela, rainha dos homens comuns, triviais,
ordinários etc.”. É latente a diferença conceitual e estilística entre as duas construções:
enquanto a primeira, efetivamente construída pelo autor, marca uma presença corpórea
no mundo real, ainda que seja, e certamente é esta mesma a intenção, a construção de
um mundo ‘bizarro’ —, a segunda, criada por nós, possui uma espécie de elevação, por
conta da utilização de categorias mais gerais, que se aproxima do mundo mais subjetivo
e que, por isso mesmo, dentro do contexto do filme poderia se tornar pedante e
expressivamente mais fraco.
Agora, como dissemos, o recurso pode ser sempre muito parecido, mas as
intenções e motivações são particulares para cada caso. No Bandido é uma proposta,
muito ligada à própria trama do filme, aqui a proposta é outra, mais ligada a questões
formais, expressivas mesmo.
Duas seqüências para frente, uma tomada, assim como houve algumas no
bandido, em que aparecem em quadro equipamentos pertencentes aos bastidores da
produção cinematográfica. Neste caso, uma mulher dança girando um lençol branco
entre dois rebatedores de luz, um deles em primeiríssimo plano e o outro mais ao fundo.
Novamente, não nenhum argumento narrativo que leve o espectador a justificar a
presença de tais equipamentos dentro da história do filme. Há, portanto, aqui, mais um
exemplo de quebra da impressão de realidade por meio de um dos muitos possíveis
recursos da metalinguagem.
123
A cena seguinte é também muito válida para nossa análise. Ela começa já
bastante esquemática, com uma narração estereotipada que cria como que umtulo, um
cabeçalho para a cena: “Como se diverte o paulista no fim de semana”. Vemos, então,
um casal enquadrado simetricamente em plano conjunto. Apesar da narração, veremos
pelos diálogos que se trata, especificamente, de um casal de ‘paulistanos’. O sujeito em
cena diz: “Nunca mais volto pra São Paulo, com aquele trânsito, com aquelas passeata,
com aqueles comunista. Que paisagem, que cenário”. E conclui: “Eu quero um
123aste”. O sujeito come animalescamente. Enquanto isso, sua mulher pede,
insistentemente: “Paga uma cuba, bem”.
Uma análise importante desta cena, em termos de simbologia, foi feita por Ruy
Gardnier em seu artigo intitulado Quem vai ficar com Ângela?:
Os coadjuvantes do filme, pobres coadjuvantes, parecem tão retardados
quanto os retrógrados filmes da época. “Benhê, paga uma cuba!” (Telma
Reston e Abrahão Farc como turistas paulistas no balneário da Ilha dos
Prazeres) é a resposta à cafonice pseudo-européia do cinema “elegante”
paulista da época
206
.
Cabe-nos ressaltar o caráter esquemático da cena. A câmera não se move um
centímetro ao longo dela. Não movimentos de câmera, não há mudanças de ângulo,
não há um corte sequer. É um plano-seqüência estático, com as duas personagens
enquadradas simetricamente, próximas ao centro do quadro.
A cena fica, assim, como se fosse um quadrinho, um só quadrinho, com o
cabeçalho “Como se diverte o paulista no fim de semana...” e, no desenho, o homem e a
mulher com seus respectivos “balõezinhos”: “Que paisagem, que cenário” e “Benhê,
paga uma cuba!”.
Depois de algumas imagens mostrando a anarquia que reina na ilha, Ângela
surge novamente. Ela se droga ao lado de um novo amante. A cena é particularmente
densa no aspecto ideológico. É o primeiro, e talvez único, momento no filme em que a
personagem principal expressa verbalmente, de maneira mais ou menos clara, o que
parece ser, em meio ao contexto, impressões ideológicas, ou melhor, anti-ideológicas.
Ela começa dizendo, subjugada à alucinação provocada pela heroína: “Sou um mistério
pra mim mesma. Ninguém no resto do mundo sabe que eu existo. Não tenho pista, não
sei quem são meus verdadeiros inimigos, nem meus amigos”. E, então, a declaração que
206
Ruy Gardnier em artigo intitulado “Quem vai ficar com Ângela?” In www.contracampo.com.br/58
124
nos parece a mais importante: “Sou uma heroína sem mensagem como qualquer outra
mulher do meu tempo”. Aqui, floresce a consciência extra diegética da personagem.
Qualquer crítico de A Mulher de Todos, dado os argumentos que nós mesmos
explanamos ao longo dessa nossa análise, poderia ter escrito: “Ângela é uma heroína
sem mensagem”. E, com a distância do tempo, poderia, tranquilamente, acrescentar:
“Como muitas mulheres e homens (personagens) de seu tempo”. É o que são a maioria
dos personagens do ciclo Marginal, do teatro de Zé Celso, assim como muitos eu-líricos
da poesia tropicalista: heróis sem mensagem! Mas Sganzerla rouba essa constatação da
boca dos críticos e coloca na boca de sua própria personagem: “Sou uma heroína sem
mensagem como qualquer outra mulher do meu tempo”.
Temos, então, aqui, dois aspectos a serem analisados: I) a afirmação em si, que
expressa um conteúdo anti-ideológico e II) a forma com que tal afirmação foi exposta
no filme, por meio da consciência extra diegética da personagem principal.
Com relação à primeira questão, temos a expressão verbal anti-ideológica, na
medida em que nega proposições objetivas, afirmando a inexistência de qualquer
projeto ideológico.
É importante ressalvar que se trata de uma dupla incredulidade que, no entanto,
não chega a provocar a inação. A falta de proposições objetivas não gerou, como
poderia se esperar, uma paralisação artística e intelectual dos incrédulos. Pelo contrário,
incitou respostas estéticas autenticamente libertárias, das quais o filme A Mulher de
Todos é um bom exemplo. A avacalhação, o anarquismo e a ‘simples sensação de estar
no mundo’ vivendo, rindo e fazendo amor são as poucas possíveis traduções do
espírito libertário. E aqui se encaixa a próxima frase de Ângela: “Simplesmente tento
ser uma mulher de classe com classe. Bom apetite, o lance é esse!”
A anarquia é, sem dúvida, o tom do filme. Deste filme em particular e de toda
obra de Sganzerla. Não que o autor tenha a ‘anarquia’ como um tema recorrente. Ele a
tem como as lentes com as quais enxerga o mundo. Quando perguntamos à Helena
Ignês se Rogério tinha uma postura política declarada, ela respondeu pelos dois:
“Sempre tivemos uma postura anarquista”
207
.
Evidentemente, o termo carrega uma semântica controversa, com nuances e
matizes historicamente construídos. E, ainda, deve-se dizer que, o termo não se oferece
como rótulo. Um anarquista, por definição, não pode ser assim rotulado. Até por isso,
207
Entrevista com Helena Ignês, op. cit.
125
foi possível perceber em Helena, no momento que antecedeu sua resposta, certa
hesitação. Por isso, o mais importante é o contexto geral da entrevista, onde fica claro
que Helena Ignês não gosta de rótulos para o seu trabalho e o do marido: marginais,
tropicalistas, anarquistas.
O que nos vale no termo é, principalmente, o que ele carrega do significado de
‘libertário’, daquele que enaltece, como enaltece Ângela (ao seu modo), o conceito de
liberdade: “Para agüentar tudo isso, é preciso outros olhos, olhos livres. [...] Antes de
meter uma bala na cabeça é preciso sentir que a gente existe. [...] Quero agir como uma
cobra, como um pichador de paredes... e é só. Sou livre, posso fazer o que quiser”.
Outro aspecto importante do conceito de anarquismo é a ‘oposição’ que ele
automaticamente cria com o comunismo. Obviamente, é uma oposição bem diferente da
que existe entre comunismo e capitalismo, visto que estes dois podem ser considerados
como ‘projetos’ realmente antagônicos, enquanto o anarquismo se opõe aos dois no que
ele possui de ‘não-projeto’.
A oposição com o comunismo em particular nos é importante pelas razões
explicitadas em capítulos anteriores. Dada a dicotomia entre capitalismo e comunismo
que o mundo experenciava no momento em que o filme foi realizado, tornou-se comum
associar qualquer atitude vanguardista e de questionamento do status quo com o projeto
comunista associação que é efetivamente endossada no Brasil em exemplos como o
do Cinema Novo e do Teatro de Arena. No entanto, pelos argumentos que demos
anteriormente e pela análise que agora se efetiva, é preciso desfazer-se completamente
de tal associação.
É preciso confessar que nós mesmos, em um primeiro momento, fomos
vítimas desta confusão. Um dos motivos que nos fez incorrer em tal erro foi esta
declaração de Sganzerla, extraída de um artigo seu de 1970: “Ao contrário do que
pensam os piedosos culturalistas, não existe obra política reacionária na forma e
progressista na mensagem”
208
. A palavra ‘progressista’ designa, comumente, dentro
deste contexto, a proposta marxista e seus adeptos. E essa interpretação não pode ser
totalmente excluída. Mas o fato da afirmação dizer o que parece dizer não implica
concluir que Sganzerla abrace o projeto marxista. Ela constitui, antes de tudo, uma
crítica direta e contundente aos que ele chamou de “culturalistas”, onde estão incluídos
os cinemanovistas. E, ainda que se admita que sua crítica esteja fundamentada em uma
208
Rogério Sganzerla em artigo intitulado “A questão da cultura”, 1970, In www.contracampo.com.br/61.
126
concepção estético-filosófica proposta pela tradição hegeliana-marxista em que o
conteúdo é sempre determinante quando da sua relação com a forma
209
, e que dela
Sganzerla se utilize como premissa em seus trabalhos, daí também não se conclui que
sua ‘causa’ seja a ‘causa’ marxista, visto que a essência da concepção, tal como é
originalmente proposta, transcende a valoração de certos termos, podendo ser assim
reexpressa: Não existe obra política reacionária na forma e revolucionária na
mensagem. Se Sganzerla optou por especificar o termo de sua formulação, foi antes para
apontar aos seus contendores o próprio equívoco do que para reconhecer-se no
programa ideológico deles.
Peguemos, agora, o mote da concepção hegeliana-marxista para prosseguirmos
nossa análise. O segundo aspecto a ser analisado no momento do filme em que Ângela
declara ser “uma heroína sem mensagens” é o aspecto formal. E aqui estamos de volta
ao nosso tema principal: a metalinguagem.
Quando Ângela, a heroína do filme, anuncia verbalmente essa sua condição, está
expressando uma consciência que não é própria dos personagens de um filme ficcional,
pelo menos dentro do cinema e da dramaturgia clássicos. A consciência da personagem
que se sabe personagem reproduz a principal característica formal do filme de
Sganzerla: a consciência da linguagem.
A consciência da linguagem a metalinguagem é, como estamos vendo,
uma estratégia sistemática de Sganzerla para inviabilizar a relação catártica entre filme e
espectador. Vimos que esta estratégia, entre outras, foi anteriormente proposta por
Brecht com fins didáticos. A intenção do dramaturgo era manter a platéia de seu
espetáculo distanciada, racionalmente ligada à trama da peça, para, assim, transmitir
mensagens, sem excluir do processo o debate e o juízo do espectador.
Sganzerla faz o mesmo com o espectador de A Mulher de Todos, mas sua
mensagem não é objetiva, com fins ideológicos claros. E, apesar da personagem querer
afirmar que não exista ali nenhuma mensagem de fato, sabemos que há, por detrás de
todo riso e de toda avacalhação, um ideal de liberdade sendo cultuado. Só que o
tratamento que o cineasta a esse culto é por si próprio libertário, isento de
intelectualismos e qualquer espécie de fé.
209
FREDERICO, Celso. Lukács, um clássico do século XX. São Paulo: Moderna, 1997. pg 38.
127
O autor poderia ter colocado a frase na voz do narrador-off: “Ângela Carne e
Osso é uma heroína sem mensagem”. Mas, se tivesse feito isso, não estaria rompendo
radicalmente com o formalismo clássico. Sendo já, este nosso narrador, uma figura
extra-diegética, não haveria motivo para estranhamentos. O narrador extra-diegético é
como um sujeito que se senta ao nosso lado no cinema e procura conduzir nossa
percepção do filme. Ou seja, o papel que ele pode desempenhar desde que ele não
declare sua consciência de ser um narrador (e ainda assim deve haver ressalvas) está
completamente de acordo com a proposta clássica, fundada no princípio da catarse.
Rogério sabe que a sua ‘mensagem’ exige um formalismo diferente e, como
estratégia, utiliza-se sistematicamente do recurso metalingüístico, em todas suas
variantes: a personagem que se sabe personagem, que olha pra câmera, que fala com o
espectador; os bastidores que reclamam sua presença em quadro; a sujeira que atinge a
materialidade da película; o descompasso de gêneros e a incorporação de diferentes
linguagens; as referências, citações, homenagens etc.
Enquanto isso, a trama se desenrola. Polenguinho liga para o patrão e recebe
instruções para não matar. Do outro lado da linha, Doktor Plirtz as ordens ao lado de
uma moça que segura, em primeiro plano, uma HQ estrangeira: Iron Man and Captain
America.
Figura 37 - HQ americana em primeiro plano
128
Na cena seguinte, no banheiro das organizações Plirtz, o personagem de
Soares experimenta diante do espelho o mesmo uniforme com o qual aparece na
seqüência de abertura do filme. Com o uniforme vestido, ele toma uma postura militar e
faz um discurso que parece querer representar um discurso nazista. Depois, com ares de
nostalgia, diz: “É... bons tempos”.
Doktor Plirtz é uma personagem difícil de analisar. Evidentemente, para além de
seu papel na trama do filme, Doktor Plirtz é uma figura que carrega simbolismos, que,
no entanto, para nós, não são muito claros. Para Rui Gardnier
210
, “Plirtz é a vingança
contra os industriais graves da Vera Cruz e os decadentes burgueses pobremente
tipificados de um certo cinema novo”.
O que fica claro, no final do filme, é que Doktor Plirtz representa uma certa
ordem. Ainda que não seja aquele estereótipo de ordem que conhecemos, ele é a
personagem que vai fazer frente à anarquia presentificada em Ângela.
Mas voltemos a respeitar a cronologia da trama que, aliás, passa agora, neste
último terço do filme, a se tornar mais densa, com menos hiatos de pura extravagância
visual, simbolismos, informações estéticas e expressivas.
Polenguinho, o pistoleiro de Doktor Plirtz, tenta chantagear Ângela, mostrando-
lhe as fotos que provam suas infidelidades. Mas ele acaba sendo também seduzido pela
‘vampira devoradora de homens’. A cena acaba com o pistoleiro beijando os pés de
Ângela.
Duas seqüências à frente, temos uma nova cena que dialoga livremente com o
universo dos quadrinhos. Ângela está tomando banho de mar nua e um sujeito a
observa. Ele fica entre olhar Ângela se banhando e folhear páginas de uma revista
Playboy. Um take bem fechado mostra Ângela seduzindo o sujeito com o olhar. Ele
então se aproxima numa espécie de embarcação e aí vemos que ele carrega um capacete
e uma espada nas mãos, como se fosse um herói. Há ainda um daqueles tubos utilizados
para mergulhação pendurado em seu pescoço: é uma espécie de herói aquático.
210
Ruy Gardnier em artigo intitulado “Quem vai ficar com Ângela?”, op. cit.
129
Figuras 37 e 38 - Caracterização de um herói de histórias em quadrinho
Quando ele se aproxima, Ângela lhe pergunta: “Quem é você?”. E ele responde:
“Mais um falido transatlântico. Sou um dos náufragos do Titanic. E você, quem é?”. Em
um tom bastante épico, segurando em uma das mãos um charuto e na outra uma
metralhadora, Ângela responde: “Sou a ultra-poderosa inimiga no. 1 dos homens”. A
composição do fotograma, a dinâmica da montagem, a performance da atriz, enfim,
tudo nos transporta diretamente para o universo das histórias em quadrinhos.
Figuras 39 e 40 - Ângela Carne e Osso, heroína de um HQ: “a ultra-poderosa inimiga no. 1 dos homens”
Eles continuam dialogando como se fizessem parte de uma grande aventura. O
náufrago diz estar fugindo da polícia mexicana por ter sido envolvido em um grande
esquema de contrabando de armas e que veio para a Ilha dos Prazeres atrás de um
passaporte falso que o levará até a Bolívia. Quando Ângela questiona sua verdadeira
identidade, ele responde: “Zulu Anárquico”. E, ainda, antes de partir depois,
obviamente, de fazer amor com Ângela ele diz: “vou pegar meu submarino atômico
afundado aqui na Ilha dos Prazeres antes de ir para a Bolívia”. Parece ou não parece o
roteiro de uma HQ?
130
Doktor Plirtz chega à Ilha dos Prazeres trazendo com ele o tal funcionário
intelectual que, como vimos, é também um dos amantes de Ângela. Ele se livra de
Polenguinho, dizendo saber o que se passou entre ele e a sua mulher.
Todo o resto do filme se passa apenas com estas três personagens: Plirtz, Ângela
e o amante intelectual. Eles vão para uma casa de praia grande e luxuosa. Nela ocorre o
clímax e o desenlace da trama.
No entanto, antes do encadeamento de seqüências que irão motivar o insólito
desfecho da trama, há, ainda, uma última cena simbólica que devemos analisar. É a cena
em que as três personagens estão bebendo ao lado da piscina e Doktor Plirtz, bastante
embriagado, defende eloqüentemente suas idéias nacionalistas dirigindo-se ao
funcionário intelectual: “É preciso valorizar o que é nosso. É isso que eu sempre falo.
Aquela capa do Cavaleio Negro que vofez, por exemplo, nem lá fora eles fazem
aquela empinada do cavalo. Por isso que eu digo... eu choro quando vejo uma coisa
boa”.
Aqui, aquela percepção de Rui Gardnier sobre Doktor Plirtz poder ser encarado
como a alegoria dos “industriais graves da Vera Cruz” e de “um certo cinema novo”
ganha reforço. A maneira enfática com que Doktor Plirtz defende seu nacionalismo não
pode ser gratuita. A relação é direta. Sganzerla sempre criticou, entre outras coisas, o
nacionalismo ingênuo da classe intelectual dominante daquele momento:
O intelectual latino-americano, quando se julga "participante", é um cristão
ingênuo, deslumbrado e auto-complacente, exclusivamente racional e auto-
censurado (seu grande inimigo não é a ditadura mas... o irracional) com
acentuada tendência ao stalinismo que na América Latina acomodou-se
maravilhosamente ao tradicional populismo. Daí a criação de uma cultura
centralizada, "nacional", populista e de preconceitos, liberal-humanitária-
estetizante, conteudística, sentimental, individual, anti-industrial, anti-
antropofágica, anti-internacionalista
211
.
Toda a cena parece ter a exclusiva função de debochar dessa classe intelectual,
principalmente do seu nacionalismo ingênuo. Plirtz continua: “Uísque, por exemplo, eu
bebo nacional. Eu choro quando falam que não é bom”.
A postura nacionalista, intelectualista e esteticista é, ainda, evidentemente
ironizada na citação que a personagem faz ao clássico poema de Gonçalves Dias, ícone
do nacionalismo brasileiro: “Minha terra tem palmeiras,/ Onde canta o Sabiá... Eu choro
quando escuto isso. Porque é bonito. Eu sou louco pelo belo.”
211
Rogério Sganzerla, “A questão da cultura”, op. cit.
131
Esse “eu sou louco pelo belo” serve como caricatura da postura esteticista do
Cinema Novo que, ainda que pretensamente revolucionário nos seus discursos, era
guiado por formalismos assépticos, tendo como referência, como acusa Sganzerla, um
‘belo artístico’ já caduco, inspirado fortemente no ‘bom cinema’ europeu.
Segundo Rogério Sganzerla, “a consciência dividida entre a vanguarda e a
reação” estagnou o grupo do Cinema Novo “na tradicional consciência” que pode
ser “formalmente traduzida por um esteticismo autocomplacente e tardio”
212
.
Em seguida, Sganzerla ainda aproveita para apontar e zombar da contrafação
ideológica presente no discurso e na postura desta classe “culturalista” que, ao mesmo
tempo em que exalta a cultura nacional, despreza-a no confronto com os cânones
eruditos da cultura ocidental. E é assim, na fala de Plirtz, que Sganzerla engendra sua
denúncia: “Você pega um artista de valor... você pega o Beethoven. O Beethoven é o
Beethoven. O Beethoven tem valor. Ele tem talento, o Beethoven. Agora, o Lupicínio
Rodrigues... não sei não”.
É possível perceber a ridicularização do discurso “culturalista” inclusive pelo
aspecto expressivo da declaração. Plirtz repete, como um papagaio, o nome de
Beethoven, ícone da cultura erudita européia, enquanto duvida da qualidade de um
grande sambista brasileiro, como Lupicínio Rodrigues, com todo um gestual caricato
que o faz parecer um idiota.
Dentro do mesmo artigo citado, Sganzerla diz que “diante do incêndio universal, é
mesquinho, provinciano e reacionário querer defender o que é nosso; a partir da
destruição da cultura dos outros, tentar salvar o nosso pequenino patrimônio de idéias”.
No entanto, é importante perceber que a crítica de Sganzerla não é exclusiva à
idéia de ‘nacionalismo’, mas a todo um conjunto que, segundo ele, constitui uma
política “globalmente reacionária nas suas intenções”
213
.
À teoria ingênua de que "o elemento nacional nos basta" somam-se os
preconceitos e os complexos de culpa, o deslumbramento, o sentimentalismo
discursivo e a tradicional consciência, disfarçados pela política do
culturalismo, da cultura nacional, da colaboração com a burguesia nacional e
da teoria stalinista da revolução num só país
214
.
Não podemos aqui entrar fortemente nessa discussão ideológica entre os dois
tipos de cinema. Não é esta a natureza e a proposta central deste nosso trabalho. O que
212
Idem.
213
Idem.
214
Idem.
132
queamos deixar claro aqui é a possibilidade coerente de enxergar, pelo menos em
alguns momentos, as personagens de Sganzerla como alegorias de uma polêmica
maior.
Por essa óptica, a personagem de Ângela seria a encarnação do próprio cinema
de Sganzerla, em antagonismo ao par Plirtz/Cinema Novo. Assim como Sganzerla sente
“necessidade de citar o mais livremente possível o cinema em geral”
215
, sem conseguir
se ater a um estilo, também Ângela não consegue ficar com um homem, como ela
mesma admite: Hoje eu sei, eu preciso de todos os homens. Sem deixar de amar
nenhum”.
Todos os adjetivos que se podem dar a Ângela podem-se também atribuir ao
cinema de Sganzerla: indecente, sujo, anárquico, cafajeste, libertino, libertário, insano,
provocativo, debochado, devasso, insubordinado, despojado etc.
Tal como Sganzerla incorpora elementos chulos, popularescos, grotescos,
ridículos etc, Ângela ama os boçais: “No começo eu não sabia, mas eu preciso dos
boçais. [...] Eu nasci para os boçais”.
E o que dizer do nome da personagem? Ângela Carne e Osso. Alegoria do
cinema material de Sganzerla, “cinema do corpo”, em oposição ao que ele chama de
“cinema da alma”, aquele cinema “subjetivista” que ele critica em seu livro
216
.
Por esse prisma, fica ainda interessante enxergar aquela conflitada relação de
assimilação e rejeição de Sganzerla para com Glauber citada por Bernardet. Glauber
mas também o Cinema Novo como uma figura de pai-modelo que, no entanto, deve
ser questionada, ultrapassada, vencida, superada etc. Desta forma, quando Ângela,
depois das inúmeras traições ao marido, admite que ama Plirtz “apesar de tudo”, é como
se o cinema de Sganzerla reconhecesse sua dívida com o Cinema Novo e o cinema de
Glauber Rocha.
E, nisso tudo, podemos também analisar, por fim, simbolicamente, a figura da
própria atriz. Helena Ignez foi, por algum tempo, a musa do Cinema Novo. Depois, a
partir do Bandido, virou o rosto do cinema de Sganzerla e do Cinema Marginal.
Ângela é a própria Helena que troca o amor exclusivo’ de Plirtz/Cinema Novo, pelo
‘amor libertário’ do cinema de Sganzerla, pois só nele, tanto uma como outra,
poderiam ser ‘a mulher de todos’.
215
Declaração
para o jornal Folha de São Paulo de 28 de maio de 1968.
216
SGANZERLA, R. Por um cinema sem limites, op. cit.
133
E é por isso que Plirtz mata Ângela. Não por ciúme, pelo menos não é essa sua
justificativa. Mas porque “ela era muito perigosa”. Afinal, a liberdade de Ângelao é
um perigo para a instituição ‘casamento’, mas a todas as instituições que Plirtz
representa. E é assim que Plirtz se justifica, já no minuto final do filme: Mas quem
ela pensa que é? O que que ela quer? Afinal de contas, existe uma ordem. Ninguém
pode fazer o que quer assim sem mais nem menos. Ela era muito perigosa!”
Doktor Plirtz mata Ângela e o amante amarrando-os juntos em um “balão
tripulado” que ele lança em direção ao mar. O tal “balão tripuladoé aquela mesma
imensa bola preta que aparece na primeira cena do filme que, agora, percebemos que se
trata, na realidade, da última cena. E, assim como a primeira cena termina em um efeito
de quadrinhos, esta última começa com os mesmos efeitos de ‘balão de explosão’,
que com o recorte ao contrário.
Figuras 41 e 42 - Efeitos gráficos que se referem ao universo dos quadrinhos
O assassinato do casal de amantes é esquemático como todo o resto da história.
Não drama, nem suspense. Não nos entristecemos com a morte da protagonista, nem
coadunamos com a vingança de Plirtz. Não heróis, nem moral da história. Apenas a
anti-história imoral de Ângela Carne e Osso, uma das dez mais, vampira devoradora de
homens, a mulher de todos, afinal.
Como disse José Lino Grünewald, a história de A Mulher de Todos é
“intencionalmente esquemática para demonstrar mais uma vez que o cinema é a anti-
história: um minipotentado da imprensa dos comics, sub-Hearst, mas ultra-wellesiano
no físico”
217
. E o filme em si é o “deboche maravilhoso, a avacalhação revigorante”.
Sim, porque se alguma sensação experenciada durante os créditos finais de A Mulher
de Todos é a sensação de avigoramento, de libertação, do corpo e da alma.
217
José Lino Grünewald em artigo intitulado “A Mulher de Todos”, op. cit.
134
E o que dizer do autor? Depois de olharmos com “olhos livres” para essa
pequena ‘obra-prisma’ de Sganzerla, somos levados a fazer coro, mais uma vez, com
José Lino: “Ninguém no cinema nacional é mais moderno do que Rogério Sganzerla, no
sentido do acionamento da linguagem”.
Ângela diz, antes de morrer: “Eu sou simplesmente uma mulher do século XXI.
(...) Eu cheguei antes, por isso sou errada assim”. Rogério Sganzerla chegou antes. Não
sabemos ainda se do século XXI ou de mais longe. Suas idéias e seu cinema libertário
ainda estão para ser devidamente assimilados pela maioria. Muitos dos entraves que o
autor sofreu em vida, para conseguir realizar o seu cinema, são culpa dessa sua alma
que nasceu prematura. Mas, como disse Albert Camus, em prol da liberdade, “toda a
criação autêntica é um dom para o futuro”.
135
Considerações finais
Rogério Sganzerla nasceu em Joaçaba, estado de Santa Catarina, em 1946.
Ainda muito jovem, por volta dos 16 anos, estreou como crítico de cinema no
Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, com um texto sobre o filme Os
Cafajestes (1962), de Ruy Guerra.
Sganzerla continuou produzindo crítica e artigos sobre cinema até o final da
vida. Em 2001, seus principais textos teóricos sobre o cinema moderno foram
compilados no seu único livro, Por um cinema sem limites, obra que pudemos apreciar,
em partes, quando tratamos das noções de cinema moderno, em nosso primeiro capítulo.
No entanto, novos livros publicados atualmente tentam resgatar a enorme e esparsa obra
literária (ensaios, críticas, roteiros) do autor. Em outro sentido, o livro de Roberta
Canuto, intitulado Rogério Sganzerla, e parte da coleção Encontros a arte da
entrevista, procura reavivar o pensamento e o comportamento efervescente do cineasta
por meio de suas mais importantes entrevistas, dentre as quais, a famosa entrevista para
O Pasquim, em fevereiro de 1970, um marco na polêmica com o Cinema Novo.
Na época da entrevista, Rogério tinha acabado de lançar A Mulher de Todos e
era famoso pelo sucesso de O Bandido da Luz Vermelha, filme de estréia que lhe rendeu
os prêmios de melhor figurino, melhor diretor, melhor montagem e melhor filme no
Festival de Brasília de 1968. No entanto, sua primeira experiência com o cinema foi
com o curta-metragem Documentário. Realizado com o incentivo do presidente da
Cinemateca de Santos Maurice Legeard, o filme mostra as conversas e andanças de dois
jovens a que procura de uma sessão de cinema para passar o tempo. Mas o que o filme
manifesta, de fato, é a dúvida de toda uma geração: “que filme fazer?”. Muito
sintonizado com as discussões de sua época, Sganzerla discute sobre cinema e vida,
ficção e documentário (apesar do nome do curta ser Documentário, o filme é uma
ficção). Neste primeiro trabalho já é possível encontrar alguns traços marcantes do hábil
diretor de cinema que Sganzerla iria se tornar. Além da paixão pelo cinema e o gosto
pelo jogo com a metalinguagem, podemos constatar, desde já, seu completo domínio da
mis-en-scène dos atores e seu aprumado trabalho com a câmera.
136
Hoje, quarenta anos depois da estréia de O Bandido da Luz Vermelha nas salas
de cinema de São Paulo, a obra de Rogério Sganzerla continua viva. Além dos novos
livros que procuram resgatar a obra literária e o pensamento do cineasta, mostras,
exposições, restaurações e lançamentos buscam acudir à demanda de um grande número
de interessados na vida e, principalmente, na obra de Rogério.
No final do ano de 2007, no 40º Festival de Cinema de Brasília foi lançado o
DVD de O Bandido da Luz Vermelha, com mais de uma hora de extras, incluindo
curtas-metragens do diretor, trailers e depoimentos da atriz Helena Ignez, do fotógrafo
Carlos Ebert e do crítico Inácio Araujo.
Também em 2007, em Paris, foi realizada a mostra intitulada La femme Du
Bandit, na qual vários filmes de Helena e de Rogério foram exibidos para o público
francês e europeu. O casal e seus filmes receberam, ainda, homenagens no Festival de
Cinema de Turim e no Festival de Cinema de Fribourg, Suiça.
Em julho de 2008, o SESC-SP realizou, no Cinesesc em São Paulo, a mostra
Helena Ignez A Mulher do Bandido, na qual foi exibida a cópia restaurada de A
Mulher de Todos. A curadoria e a produção executiva da mostra ficaram sob a
responsabilidade, respectivamente, de Sinai e Djin Sganzerla, filhas do casal.
Rogério Sganzerla faleceu no dia 09 de janeiro de 2004, aos 57 anos, vítima de
ncer. Seu último trabalho na direção foi com o filme O Signo do Caos, vencedor dos
candangos de ouro de “Melhor Diretor” e “Melhor Edição” no 35º Festival de Cinema de
Brasília.
Nosso trabalho é mais um dentre certo número de dissertações e teses que
analisam a obra do cineasta. No entanto, a proposta de analisar os dois primeiros longas
do diretor tendo como foco a questão da metalinguagem nunca havia sido desenvolvida.
Da maneira como foi elaborado, este trabalho que ora se encerra transcende a análise
pontual dos filmes e espera contribuir, modestamente, com as pesquisas nas áreas de
Teoria do Cinema e Teoria da Comunicação.
As discussões, por exemplo, acerca da hipótese de que a utilização de recursos
metalingüísticos pode romper com a impressão de realidade do filme (e outros produtos
audiovisuais) é, ainda, de grande interesse para os que estudam e trabalham com cinema
e televisão, ocupando, em verdade, lugar de destaque em debates contemporâneos.
137
Nosso trabalho investigou a utilização insistente de grande número de recursos
metalingüísticos dentro dos filmes O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos,
identificando as formas pelas quais outros ‘textosforam incorporados e os principais
alvos de tais incorporações. Concluímos que o cineasta Rogério Sganzerla se utilizou,
dentro destes seus dois primeiros filmes, não de um grande número, mas também de
ampla variedade de artifícios metalingüísticos, cada qual com resultados estéticos
particulares. Como vimos, os alvos prediletos das incorporações efetuadas por Sganzerla,
foram o cinema (tanto o clássico quanto o de vanguarda), a cultura pop, o dio, a
televisão, a propaganda e as histórias em quadrinhos.
Diferentemente do que nos propusemos a fazer na Iniciação Científica, esta
nossa dissertação abordou, prioritariamente, os aspectos estéticos da obra do cineasta e
não questões ideológicas ou sociológicas. No entanto, a mudança de foco não se deu
somente pelo amadurecimento acadêmico que nos fez enxergar melhor o campo de
atuação da nossa área —, mas também pela melhor compreensão do nosso próprio
objeto de estudo. Como dissemos, algumas páginas atrás, no momento em que
desenvolvíamos a Iniciação Científica, acreditávamos que a utilização insistente da
metalinguagem em O Bandido da Luz Vermelha tinha por fundo uma estratégia política,
de inspiração brechtiana, que visava “despertar as multidões”. No entanto, ao longo da
nossa extensa pesquisa e por meio de nossas análises, hoje acreditamos que a aplicão da
metalinguagem na obra de Rogério Sganzerla é motivada, enormemente, por finalidades
estéticas.
Evidentemente que se pode questionar o quanto as escolhas estéticas de um
artista se separam de suas escolhas políticas. E, de fato, não estamos dizendo que, no
fundo, não são políticas, mas sim que não dizem respeito a uma ‘certa política’, ou
ideologia. A metalinguagem de Sganzerla nunca foi um meio para alcançar o ‘didatismo
da esquerda’, ela possui um fim em si mesma, a libertação da linguagem.
A ‘ideologia’ de Sganzerla reside aí. Na epígrafe deste trabalho, citamos esta frase
do filósofo Ludwig Wittgenstein: “Os limites da minha linguagem são também os limites
do meu pensamento”. Rogério Sganzerla conclama: por um cinema (e um pensamento)
sem limites.
138
Bibliografia Básica
ALÉA, T. Dialética do Espectador. São Paulo: Summus, 1984.
ANDREW, J. D. As principais teorias do cinema: uma introdão. Rio de Janeiro, 2002.
ANDRADE, A.L. O Filme dentro do Filme: a metalinguagem no cinema. Belo Horizonte:
UFMG, 1997.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. o Paulo: Hucitec, 1988.
BARTHES, R. Literatura e metalinguagem. In: Crítica e verdade. São Paulo:
Perspectiva, 1982.
BAZIN, A. O Cinema. Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.
BERNARDET, J.C. Brasil em tempo de cinema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
_________. O que é Cinema? São Paulo: Brasiliense. 1980.
_________. O Vôo dos Anjos: Bressane, Sganzerla. São Paulo: Brasiliense, 1991.
BRECHT, B. Estudos sobre Teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
FERREIRA, J. Cinema de Invenção. São Paulo: Limiar, 2000.
GOMES, P.E.S. Cinema: trajetórias do subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997.
LEBEL, J. P. Cinema e Ideologia. Lisboa: Editorial Estampa, 1975.
METZ, C. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.
NAZÁRIO, L. À margem do cinema. São Paulo: Nova Stella, 1986.
PÁDUA, E. M. M. Metodologia de pesquisa: Abordagem teórico-prática. Campinas, São Paulo:
Papirus, 1996.
RAMOS, F. Cinema Marginal (1968/1973): a representação em seu limite. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
RAMOS, F.; MIRANDA, L.F. Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: Editora Senac,
2000.
ROCHA, G. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981.
SGANZERLA, R. Por um cinema sem limites. Rio de Janeiro: Azougue, 2001.
TURNER, G. Cinema como Prática Social. São Paulo: Summus, 1997.
XAVIER, I. Alegorias do Subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993.
_______.(org.) A Experncia do Cinema (antologia). Rio de Janeiro: Graal/Embrafilme,
1983.
139
Bibliografia Complementar
ABREU, N.C.P. Boca do lixo - Cinema e Classes populares. Campinas, 2002 (tese de
doutorado, UNICAMP).
BARTHES, R. Ensaios Críticos, Edições 70: Lisboa, 1977.
BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.
BRECHT, B. Teatro Completo, volume 12. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
CAMPOS, H. Metalinguagem e outras metas. o Paulo: Perspectiva, 1992.
CHALHULB, S. A Metalinguagem. São Paulo, Ática, 1986.
DAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001.
ECO, U. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1993.
ECO, U. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1971.
FREDERICO, C. Luckács: um clássico do século XX. São Paulo: Moderna, 1997, p. 45.
FURHAMMAR, L., ISAKSSON, R. Cinema e Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1976.
JAKOBSON, R. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1961.
_____________. Lingüística, Poética, Cinema. São Paulo, Perspectiva, 1970.
KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
MACHADO, A. Pré-Cinemas e Pós-Cinemas. Campinas: Papirus, 1997.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematogfica. o Paulo: Brasiliense, 1990.
PAIVA, S. A figura de Orson Welles no cinema de Rorio Sganzerla. São Paulo, 2005 (tese de
doutorado, USP).
STAM, R. O espetáculo interrompido: literatura e cinema de desmistificação. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1981.
XAVIER, I. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1984.
SITIOGRAFIA
www.contracampo.com.br
140
Anexos
1. Entrevista com Helena Ignês
2. Manifesto “Cinema fora da lei”
3. Catálogos e Mostras
141
ANEXO
1. Entrevista com Helena Inez
Sobre o processo criativo de Rogério Sganzerla...
Helena (69: 2´20") : Eu não conheci o processo do Bandido desde o início. Os dois
primeiros filmes do Rogério, eu não conheci esse processo. Nem o Bandido, nem o
Documentário, seu primeiro curta. Do Bandido, o que eu conheci foi um roteiro muito
bem formulado, muito fiel. O roteiro é muito fiel ao filme . Não foi uma direção
improvisada, baseada na liberdade dos atores. Não foi. O filme veio concebido e
praticamente coreografado. Aqueles planos com a grande-angular. Os travelling e a
grande-angular. Um filme altamente coreografado. A profundidade de campo etc.
Você tinha me falado que não considera o Bandido como Cinema Marginal. Ou
seja, ele não seria, como muito se afirma na crítica, um divisor de águas entre o
Cinema Novo e o Cinema Marginal. Ele pertenceria, na sua opinião, ainda a um
tipo de Cinema Novo...
Helena (69: 4´30") : Essas divisões são sempre meio complicadas. São muito sutis. Mas
nada tinha a ver com o Cinema Marginal. Inclusive, essa foi a produção mais
organizada que tive até então. E eu já tinha feito vários filmes, já tinha ganhado prêmios
aqui e no exterior, pelo meu trabalho em O Padre e a Moça etc. E o Cinema Marginal,
as características de produção... eu tenho a impressão de que não eram as mesmas. E o
que eu posso também dizer é que eu nunca fiz um filme “marginal”. Nunca participei do
Cinema Marginal. E reitero completamente o que Rogério sempre afirmou, como no
artigo dele, ele não fez Cinema Marginal. O nome que ele a esse trabalho é
experimental. Eu não tenho nada a ver com Cinema Marginal!
Sobre A Mulher de Todos
Helena (70: 0'10") : A Mulher de Todos é a “parceira” do Bandido. É o yin e o yang”.
É uma dupla. São um casal de filmes. Foram feitos com a mesma inspiração. uma
produção derivou da outra. Também foi uma produção organizada, feita em Itanhaém.
Esse filme foi mais barato que O Bandido da Luz Vermelha e rendeu mais. É um filme
que eu acho o filme comercial mais sofisticado do cinema brasileiro, disparado. Acho
142
um escândalo. Um filme de uma sofisticação cinematográfica e ao mesmo tempo
completamente popular.
E Copacabana Mon Amour e Sem Essa Aranha foram feitos dentro da Belair, A
Mulher de Todos ainda não..
Helena (70: 3'15") : Isso. Os filmes em São Paulo tiveram essa característica e no Rio
tiveram uma outra característica, muito mais independente. Completamente diferente.
era uma produção nossa, com recursos pessoais, com prêmios recebidos pela A
Mulher de Todos. Não teve ninguém que colocasse dinheiro como aconteceu no
Bandido e na A Mulher de Todos.
A que você atribui essa guinada estética entre o par Bandido/A Mulher de Todos
para os filmes feitos no Rio: Copacabana Mon Amour e Sem Essa Aranha?
Helena (70: 4'30") : Eu vejo um mesmo autor. Não consigo conceber esses filmes sendo
feitos por outro autor senão Rogério. Uns filmes com a personalidade muito clara. Não
vejo tão diferente. São outros experimentos de linguagem.
Sem Essa Aranha, por exemplo, demonstra muito claramente a intenção de
Rogério de experimentar os planos-seqüências...
Helena (70: 6'00") : O que Rogério disse é que esse filme, feito com doze planos-
sequencias que era a idéia dele, vinha sendo acalantado muito tempo. Desde a sua
época como crítico, não ainda como cineasta. Mas acabou vindo depois do Bandido.
Acho que pela liberdade que a Belair lhe proporcionou. Foi uma conveniência artística.
E o Copacabana?
Helena (70: 6'30") : Copacabana, a mesma coisa. Copacabana é outro que é irmão do
Sem Essa Aranha. Eu poderia pensar dessa mesma maneira, como yin e yang”. E
Copacabana é um filme muito feminino. Eu vejo como o próprio bairro. Eu acho que o
personagem de Sônia (Helena) é Copacabana. Ela encarna o filme. Já o Aranha não. Ele
é um filme masculino. Onde as mulheres são várias e a força delas é dividida em duas
personagens, duas protagonistas femininas: o meu personagem e o da Maria Gladys, a
143
América. E também a outra... a Aparecida. Então, a força feminina se dilui. Fica
dividida. E o Zé Bonitinho, o Aranha, ele é o eixo do filme.
Qual era interesse específico de experimentação de linguagem que Rogério tinha
para Copacabana?
Ele queria aquela imagem cinemascope. Aquela distorção que puxa pros lados que eu
acho maravilhosa. Eu acho que naquele momento o grande interesse de Rogério era a
câmera na mão e cinemascope.
144
ANEXO
2. Manifesto “Cinema fora da lei”
1 Meu filme é um far-west sobre o III Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários
gêneros. Fiz um filme-soma; um far-west mas também musical, documentário, policial,
comédia (ou chanchada?) e ficção científica. Do documentário, a sinceridade
(Rossellini); do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Sennett,
Keaton); do western, a simplificação brutal dos conflitos (Mann).
2 – O bandido da luz vermelha persegue, ele, a polícia enquanto os tiras fazem reflexões
metafísicas, meditando sobre a solidão e a incomunicabilidade. Quando um personagem
não pode fazer nada, ele avacalha.
3 – Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime.
4 – Jean-Luc Godard me ensinou a filmar tudo pela metade do preço.
5 – Em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base de planos gerais.
6 – Fuller foi quem me mostrou como desmontar o cinema tradicional através da
montagem.
7 Cineasta do excesso e do crime, José Mojica Marins me apontou a poesia furiosa
dos atores do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente
banais. Mojica e o cinema japonês me ensinaram a saber ser livre e – ao mesmo tempo –
acadêmico.
8 – O solitário Murnau me ensinou a amar o plano fixo acima de todos os travellings.
9 É preciso descobrir o segredo do cinema de Luís poeta e agitador Buñuel, anjo
exterminador.
10 – Nunca se esquecendo de Hitchcock, Eisenstein e Nicholas Ray.
11 – Porque o que eu queria mesmo era fazer um filme mágico e cafajeste cujos
personagens fossem sublimes e boçais, onde a estupidez acima de tudo revelasse as
leis secretas da alma e do corpo subdesenvolvido. Quis fazer um painel sobre a
sociedade delirante, ameaçada por um criminoso solitário. Quis dar esse salto porque
entendi que tinha que filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido. Meus
personagens são, todos eles, inutilmente boçais aliás como 80% do cinema brasileiro;
desde a estupidez trágica do Corisco à bobagem de Boca de Ouro, passando por do
Caixão e pelos párias de Barravento.
145
12 Estou filmando a vida do Bandido da Luz Vermelha como poderia estar contando
os milagres de São João Batista, a juventude de Marx ou as aventuras de Chateaubriand.
É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política
e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo.
13 Tive de fazer cinema fora da lei aqui em São Paulo porque quis dar um esforço
total em direção ao filme brasileiro liberador, revolucionário também nas panorâmicas,
na câmara fixa e nos cortes secos. O ponto de partida de nossos filmes deve ser a
instabilidade do cinema como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos
nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os
personagens medrosos. Nesse país, tudo é possível e, por isso, o filme pode explodir a
qualquer momento.
Rogério Sganzerla, maio de 1968
146
ANEXO
3. Catálogos e Mostras
4.1. Catálogo da Mostra Rogério Sganzerla Por um cinema sem limites, CineSesc,
SESC-SP – São Paulo, 25 a 26 de agosto de 2004.
4.2. Catálogo da retrospectiva Helena Ignez A Mulher do Bandido, CineSesc, SESC-
SP – São Paulo, 14 de julho de 2008.
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