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Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
Campus de Bauru
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Área de Concentração: Comunicação Midiática
A TV e as suas linguagens na produção de sentido
Uma investigação de programas de comportamento:
Casos de família e Programa Silvia Poppovic
Dimas Alexandre Soldi
Profª. Dr.ª Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz (orientadora)
BAURU/SP
2008
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2
Dimas Alexandre Soldi
A TV e as suas linguagens na produção de sentido
Uma investigação de programas de comportamento:
Casos de família e Programa Silvia Poppovic
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação, Área de
Concentração em “Comunicação Midiática”, da
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
da Universidade Paulista Júlio de Mesquita
Filho”, Campus de Bauru, como requisito para a
obtenção do Título de Mestre em Comunicação,
sob a orientação da Profª. Dr.ª Maria Lúcia
Vissoto Paiva Diniz
.
BAURU/SP
2008
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3
Agradecimentos
À Profª. Dr.ª Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz, orientadora e incentivadora;
Aos amigos do GESCom-Unesp, sempre muito presentes;
Aos professores doutores Ana Sílvia Lopes Davi Médola e Cláudio Bertolli Filho
que, além de participarem do Exame de Qualificação, contribuíram enormemente
para este trabalho;
À FAPESP que amparou esta pesquisa;
Ao parecerista da FAPESP que, além de recomendar “fortemente” a aprovação
do relatório parcial, contribuiu decisivamente para a finalização deste trabalho
através das sugestões contidas no parecer emitido;
A todos que contribuíram direta ou indiretamente durante mais esse momento, o
de pós-graduação;
À minha família.
4
Sumário
Resumo
06
Introdução
07
1. Programas e gênero televisivos
1.1. O programa Casos de família
15
1.2. O Programa Silvia Poppovic
23
1.3. Os gêneros televisivos
31
1.4. Programas de comportamento
33
2. Produção de sentido em programas de
comportamento
2.1. Formatos e análise audiovisual
37
2.1.1. Formatos televisivos 37
2.1.2. Semiótica sincrética e linguagem audiovisual 39
2.1.3. Análise de programas de comportamento 51
2.2. A dimensão narrativa/discursiva
55
2.2.1. Composição audiovisual 55
2.2.2. Composição narrativa-actorial 76
2.2.3. Composição do estilo visual 85
2.3. A dimensão patêmica
95
2.3.1. Semiótica das paixões 95
2.3.2. A passionalidade em Casos de família 99
2.3.3. A passionalidade no Programa S. Poppovic 119
2.4. Situações semióticas
126
5
3. Hibridismo de padrões na sociedade midiatizada
136
3.1. Inversão de padrões e “sociedade do espetáculo” 137
3.2. Pensando sobre a “sociedade do espetáculo” 143
3.3. Pensando sobre a contemporaneidade: “Idade Mídia” 145
3.4. Hibridização de padrões 148
3.5. A experiência simultânea do público e do privado 151
Considerações finais
155
Referências Bibliográficas
158
Anexos
162
6
A TV e as suas linguagens na produção de sentido
Uma investigação de programas de comportamento:
Casos de família e Programa Silvia Poppovic
RESUMO: Investigamos, nesta pesquisa, programas de comportamento da TV
brasileira, tendo como corpus o programa Casos de família, exibido diariamente pelo
SBT e apresentado pela jornalista Regina Volpato, e o Programa Silvia Poppovic,
versão exibida semanalmente pela TV Cultura nos anos de 2005 e 2006. O objetivo
principal foi determinar os elementos que os constituem, verificando como suas
linguagens são sincretizadas no processo de significação e como fazem para que o
telespectador vivencie passionalmente experiências alheias, estabelecendo contratos
capazes de garantir o sucesso de um e o fracasso de outro. Através dos procedimentos
metodológicos da teoria semiótica francesa, tais como o percurso gerativo de sentido, a
semiótica das paixões e o conceito de tensividade, verificamos como esses programas
são construídos. Embora esse tipo de produção, não represente significativo interesse
econômico para as emissoras (e talvez por isso não tenha despertado a devida atenção
da academia), a análise desses programas pode oferecer contribuição ao estudo da
televisão e sua relação com a cultura contemporânea. Enquanto programa temático com
a participação de sujeitos “reais”, esses produtos apresentam mais do que simples
relatos de experiências individuais, pois evidenciam o modo de vida das pessoas, seus
valores, tipos de relacionamento, práticas, protocolos, hábitos presentes na sociedade,
que permitem definir o mundo contemporâneo e destacar o movimento reflexivo
existente entre mídia e sociedade que evocam questões de ordem social e cultural.
PALAVRAS-CHAVE: Televisão; Programas de comportamento; Semiótica francesa;
Produção de sentido; Sociedade.
7
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃOINTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
Pesquisa em comunicação
Durante muito tempo, os estudos sobre televisão e, mais precisamente, sobre a
televisão de massa, concentraram-se em seu caráter alienante, tratando-a como um meio
“popularesco” e de “massa”, a partir de uma visão maniqueísta e totalizante, que
considerava o telespectador manipulado de tal forma que era incapaz de escapar do
poder “alucinógeno” de um televisor. Essas pesquisas abordavam o meio a partir dos
seus efeitos sociais, políticos e culturais. Nesse paradigma de comunicação de massa, a
Teoria Crítica, de Frankfurt, talvez tenha sido a grande vedete da pesquisa na área
1
.
Ainda hoje alguns estudos se inspiram nesse paradigma massivo e manipulatório, mas
começa a haver um olhar crítico sobre a própria crítica
2
.
De qualquer forma, esses estudos vêm mudando o enfoque da pesquisa. Hoje,
eles têm se voltado cada vez mais para a própria programação, insistindo nas
experiências singulares que podem ser obtidas pela TV, bem como em sua produção
cultural diversificada. Assim, busca-se empreender análises mais atentas aos diferentes
papéis que a TV desempenha e, principalmente, voltadas aos seus programas e
conteúdos específicos. Como afirma Vera Veiga França,
substitui-se uma imagem sintética e análises globais da televisão - boa
ou má, inofensiva ou maléfica - por leituras mais atentas às diferentes
produções, programas, fases. Já não se pergunta "o que a televisão faz
à sociedade", mas busca-se entender o movimento reflexivo que
marca suas relações: as produções televisivas tanto refletem a vida
social quanto incidem e orientam sua dinâmica. As visões
deterministas (em um e outro sentido) cedem lugar a uma perspectiva
mais processual. Este foi um avanço considerável, que estimulou
estudos de programas específicos, formatos, momentos conjunturais
da TV. Nessa perspectiva, desenvolvem-se distintos caminhos ou
recortes analíticos, em que as ênfases oscilam entre a análise do
produto (mensagem ou forma discursiva) ou da audiência (condições
de recepção) (FRANÇA, 2004, p. 02).
1
Embora a Escola de Frankfurt não tenha tratado especificamente sobre televisão, é possível pensá-la
através desse embasamento teórico, de modo que muitas pesquisas ainda hoje apresentam essa vertente.
2
Outros textos, embora recentes, parecem não dar conta desse avanço metodológico e ainda insistem
nesse viés ideológico. Para isso, basta ver os textos de P. Bourdieu (Sobre a televisão, 1997); M. Sodré e
R. Paiva (O império do grotesco, 2002); Ciro Marcondes Filho (Televisão, a vida pelo vídeo, 1992).
8
Trata-se evidentemente, como bem destacou Arlindo Machado, de “levar a TV
a sério” (2001), do mesmo modo, como demonstrou Dominique Wolton (1996) ao
afirmar que a televisão geralista atende aos direitos da democracia. Assim, abre-se o
caminho para a pesquisa semiótica aplicada às produções, para os estudos de recepção e
para o desenvolvimento do conceito de “mediações”.
No entanto, França admite que o abandono de análises globais, na medida em
que os estudos centram-se nas particularidades, embora constitua um passo relevante,
provoca “problemas novos” e “sérios limites”, “que podem ser traduzidos pelo
afunilamento das abordagens e uma cisão comprometedora entre produção e consumo,
entre o discurso e sua recepção” (Ibidem, p. 03). E a autora exemplifica:
do lado da análise dos produtos, encontramos estudos que pecam pelo
tecnicismo ou por um caráter muito descritivo (radiografias
minuciosas de produtos, que não se conectam com seu entorno). Na
análise da recepção, vale ressaltar os limites dos métodos etnográficos
para, isoladamente, promoverem análises comunicacionais, bem como
a dificuldade enfrentada por esses estudos para ultrapassarem a
separação entre texto e recepção, e de fato, alcançarem sua
confluência e interseção (Ibidem, p. 03).
A partir desse dilema decorrente de uma adequação teórica em relação ao
objeto de estudo, a autora demonstra um caminho possível, o da interlocução, do
diálogo entre os diferentes momentos do processo comunicativo. Trata-se de um viés
analítico que confere e investiga a “natureza comunicativa do fenômeno”.
Um enfoque que não é da técnica, não é da linguagem etc.... mas é da
comunicação. A comunicação refere-se à situação interlocutiva, à
relação entre sujeitos interlocutores, mediada discursivamente; ela diz
respeito ao momento de confluência, de confronto e reconfiguração
recíproca dos elementos em co-presença (dos sujeitos, da estrutura
discursiva). O problema não é escolher entre as partes e o todo, ou
articular o particular e o global - mas entender a costura, flagrar a
interseção (Ibidem, p. 03).
Como resposta a essa problemática, a autora arremata:
Com essa perspectiva, entendemos que podemos tomar situações
comunicativas pontuais como ponto de partida para nossas análises:
recortar interlocuções, analisar as falas que as sedimentam, e ler
nessas falas os fios. Traduzindo de forma mais concreta: a análise de
um programa de TV (enquanto estrutura discursiva) pode nos falar
dos sujeitos envolvidos (o que fala, aquele ao qual se fala), do mundo
falado; a análise das falas dos telespectadores, processando
informações, estímulos, experiências, nos situa (ou nos remete)
9
igualmente para esse debate assimétrico e vivo entre a televisão e a
sociedade. Uma situação comunicativa não se resume a um discurso,
mas a um emaranhado de pequenas narrativas. Esses fragmentos nos
mostram o mundo social sendo construído, modificado, mantido pelos
homens que o habitam e falam; é nesses pequenos momentos que
papéis, desejos, valores são estabelecidos e negociados. Sujeitos,
discursos, mundo construído: essa é a equação que a análise
comunicacional nos revela (Ibidem, p. 05, grifo da autora).
Do mesmo modo, pensando nessa interlocução entre os diferentes momentos
do processo comunicativo, Arlindo Machado destaca que os “sub-textos” devem ser
lidos durante a análise de um enunciado audiovisual para uma melhor compreensão do
fenômeno. Sem negar o exame minucioso da realidade material da obra e os seus
recursos de linguagens empregados, o autor critica uma leitura apenas do “texto”, como
faziam os estruturalistas, e fala da necessidade de se avaliar o contexto em que uma obra
é produzida e consumida, bem como, as molduras econômicas, ideológicas e
psicológicas que norteiam sua leitura. Segundo ele, deve-se levar em conta
as restrições (econômicas, políticas, institucionais, tecnológicas)
impostas ao processo de realização, o diálogo do trabalho com o
espaço e tempo de sua produção, a maneira como ele foi “lido”
(aceito, rejeitado, criticado, interpretado) pelas diferentes parcelas do
seu público e assim por diante. Alguns detalhes fundamentais para a
análise de um programa de televisão, por exemplo, podem não estar
dados no próprio “texto” do programa, mas precisam ser buscados em
outros materiais (documentos de produção, textos jornalísticos
relacionados ao trabalho, depoimentos da equipe produtora, análise de
recepção, análise de conjuntura etc.) (MACHADO, 2007, p. 2-3).
Quanto aos métodos de análise de um texto audiovisual, Machado parece
comungar com o pensamente de França ao afirmar que não há um método estanque para
a investigação da TV. Não é possível, por exemplo, tomar pesquisas bem aceitas
como modelos e aplicá-las esquematicamente em outros programas da televisão como
se fossem métodos genéricos e universais. O autor ressalta que o método de
abordagem para cada programa não pode ser tomado como algo predeterminado por um
modelo ou teoria, mas deve derivar do próprio trabalho examinado” (Ibidem, p. 09). Por
fim, é preciso levar em conta a singularidade e a diferença do objeto analisado.
Sob essa perspectiva epistemológica, o presente trabalho dialoga diferentes
abordagens teóricas, salientado contribuições da comunicação e da semiótica.
Evidentemente, essa interlocução é possível a partir de um determinado olhar sobre o
objeto proposto.
10
Objeto
A proposta inicial deste trabalho é investigar programas de comportamento da
TV brasileira, objeto de estudo pouco discutido no meio acadêmico. Uma rápida
pesquisa sobre o tema mostra claramente a escassez da produção científica que tem
como corpus programas dessa categoria.
Por um lado, é grande o número de trabalhos que tratam de telejornais ou
telenovelas, produções obviamente já consagradas como “produtos nacionais” dignos de
premiações das mais diversas. No entanto, a televisão brasileira não pode ser resumida a
dois tipos de gêneros pelo fato de serem campeões de audiência e ocuparem o horário
nobre da principal emissora do país. Outras experiências televisivas, embora não
representem vultosos interesses econômicos, podem oferecer contribuições singulares à
televisão e à cultura contemporânea.
Desse modo, optamos por estudar programas de comportamento, pois mesmo
não sendo vedetes de uma emissora, eles sempre estão presentes e, de certa forma,
contribuem para o entendimento desse universo que se chama televisão. Sendo assim
tomamos como objeto empírico de pesquisa dois programas da TV brasileira:
Casos de família Programa vespertino exibido diariamente, de segunda à
sexta-feira, desde 2004, em rede nacional pela emissora privada do grupo Silvio Santos,
SBT - Sistema Brasileiro de Televisão. Trata-se de um programa temático em que os
participantes discutem assuntos íntimos, relacionados ao tema comportamento familiar.
É apresentado pela jornalista Regina Volpato.
Programa Silvia PoppovicVersão exibida pela TV Cultura, emissora pública
de televisão, dos tradicionais programas apresentados por Silvia Poppovic. Estreou, em
rede nacional, no início de 2005 com exibição inédita e com reprise semanais. Os
assuntos discutidos no programa faziam parte do tema “qualidade de vida no mundo
contemporâneo”. Saiu do ar no final de 2006, com apenas um ano e meio de duração.
Optamos por Casos de família e Programa Silvia Poppovic pois os dois
apresentam características semelhantes, o que permite uma análise comparativa: ambos
pertencem ao mesmo gênero (programas televisivos de comportamento), possuem os
mesmos tipos de participantes (apresentadora, convidados, platéias e especialista), são
programas temáticos e mantêm semelhanças em seu modo de discussão
3
(recorremos,
inicialmente, a outros programas. No entanto, como essas características não estavam
3
Estas e outras questões serão aprofundadas no primeiro e segundo capítulos deste trabalho.
11
presentes, concordamos em manter apenas os dois programas em questão para melhor
desenvolver a análise empírica comparativa).
Algumas das características dos dois programas são essenciais para podermos
afirmar que, a partir deles, é possível estar em contato com experiências televisivas
singulares que permitem verificar as muitas facetas da cultura contemporânea. Há, por
exemplo, a presença marcante de pessoas desconhecidas quando comparadas às
celebridades televisivas, mas que se tornam protagonistas na TV quando exibem suas
histórias de vidas e seus aspectos mais íntimos. São programas temáticos que, mais do
que relatar experiências individuais, evocam questões de ordem social, cultural etc.,
destacando o movimento reflexivo entre TV e sociedade e, mais do que isso, dizendo
muito sobre o modo de vida das pessoas, sobre os valores presentes na sociedade, sobre
os tipos de relacionamentos, enfim, sobre o mundo contemporâneo. Seus formatos são
constituídos de tal modo a fazer o telespectador vivenciar passionalmente essas
experiências alheias ou não, estabelecendo contratos capazes de garantir o sucesso de
um programa e o fracasso de outro. Por fim, em entrevista
4
, a apresentadora de Casos de
família, Regina Volpato, relata essa “experiência singular” da seguinte maneira:
no início, em 2004, me deparei com um Brasil totalmente
desconhecido para mim. Fui repórter da Fundação Roberto Marinho e
minhas matérias eram com adultos que estudavam pelo Telecurso.
Tive a oportunidade de viajar pelo interior de vários estados e
conhecer histórias de pessoas muito especiais e sofridas. Eu achava
que conhecia um pouco do nosso país... Hoje esse impacto do começo
do Casos [de família] ainda aparece, que é um pouco mais raro.
Mas continuo me surpreendendo com os sotaques, expressões,
costumes, senso de estética e ética, bom humor, padrões de
comportamento, sonhos, necessidades, aflições, angústias do nosso
povo. No jornal leio as notícias. No estúdio vejo as conseqüências dos
fatos na vida dos brasileiros (VOLPATO, 2007, anexo 01).
Para realizar a análise empírica do nosso objeto de pesquisa, privilegiamos a
concepção de formato, ou seja, os aspectos recorrentes de um determinado programa.
Para tanto, tomamos como corpus quatro edições de cada programa (Casos de família e
Programa Silvia Poppovic). O número restrito implica uma abordagem mais profunda,
destacando detalhes que num corpus muito extenso não seria possível investigar neste
trabalho, aspecto pertinente à teoria empregada (semiótica francesa) que visa a uma
análise exaustiva do conteúdo.
4
A entrevista com a apresentadora Regina Volpato foi concedida a este mestrando por e-mail em
dezembro de 2007. Em anexo consta a sua resposta na íntegra (anexo 1).
12
As edições de cada programa foram escolhidas tendo em vista os períodos de
exibição. Casos de família está no ar desde 2004 (mais de quatro anos) e o Programa
Silvia Poppovic manteve-se no ar apenas durante os anos de 2005 e 2006 (um ano e
meio). Sendo assim, optamos por selecionar edições que pudessem ser representativas
de cada período a fim de verificar o formato, as características principais dos
programas, e compará-los.
Os temas das edições do programa Casos de família são: “Ele tem vergonha de
me apresentar para a família dele” (26/06/2006), “Só você não percebe o quanto é
esquisito” (08/06/2007), “Minha mãe morre de ciúmes da minha sogra” (16/01/2008) e
“Você não aceita a minha condição sexual” (24/01/2008). Quanto ao Programa Silvia
Poppovic as edições o: “Assédio sexual no trabalho” (24/11/2005), “Ejaculação
precoce” (01/12/2005), “A difícil tarefa de encontrar a alma gêmea” (30/03/2006) e
“Violência praticada pelos jovens” (06/06/2006)
5
.
Objetivos e abordagem
A partir das orientações dispostas nessa introdução, para compreender como se
a articulação de diferentes linguagens em programas televisivos de comportamento
propomos a seguinte organização da pesquisa:
CAPÍTULO 1 Gêneros e Programas Televisivos: No primeiro capítulo, a
tarefa principal é caracterizar os programas que compõem o objeto de pesquisa deste
trabalho, numa tentativa de definir um tipo de gênero televisivo capaz de abarcar a
pluralidade de categorias que os constituem, tais como, o destaque concedido às
entrevistas e à participação de convidados (especialistas e participantes) e platéia, o fato
de serem programas temáticos, comandados por apresentadoras e terem a presença de
anônimos relatando experiências íntimas etc. Arlindo Machado, Ciro Marcondes Filho e
François Jost são alguns teóricos que discutem em suas obras as denominações de
gêneros televisivos, que são resgatadas na tentativa de nos direcionar para uma
definição desse tipo de produção. Para complementar esse enfoque, realizamos algumas
5
Vale destacar que as edições do Programa Silvia Poppovic selecionadas para este trabalho foram
reprisadas pela emissora no período de férias (junho e julho/2006). Acreditamos que por terem sido
reprisadas, essas emissões mereceriam ser estudadas. Além das edições gravadas, também faz parte do
material de pesquisa uma listagem contendo 30 temas de cada programa, consultas ao site do Ibope,
matérias jornalísticas publicadas sobre os programas, informações nos sites das emissoras e entrevistas
realizadas com as equipes de produção dos programas (parte desse material consta em anexo que será
informado no decorrer do texto sempre que necessário).
13
reflexões acerca da audiência, do público-alvo e da análise dos anúncios veiculados nos
intervalos de cada programa.
CAPÍTULO 2 - Produção de Sentido em Programas de Comportamento: No
segundo capítulo, verificamos como as especificidades de linguagens são articuladas
nos programas e qual o tipo de relação firmada com o telespectador (enunciatário).
Assim, a finalidade é realizar, com o auxílio da teoria semiótica francesa, uma análise
dos formatos dos programas televisivos selecionados, realizando um movimento inverso
ao do capítulo anterior, em que buscávamos comparar os dois programas destacando as
características em comum para a consolidação de um gênero televisivo englobante.
Agora, é preciso especificar os critérios de análise e verificar quais são os elementos
que os distinguem consolidando em distintos objetos significantes. Para tanto,
dividimos o capítulo em quatro partes: 1. Em Formatos e análise audiovisual,
apresentamos a concepção de formato, a teoria semiótica francesa (método de análise do
conteúdo e da expressão) e alguns princípios de análise para o texto audiovisual
empregados neste trabalho; 2. Em A dimensão narrativa/discursiva de programas de
comportamento realizamos uma investigação detalhada dos aspectos relativos ao
formato dos programas. Dividida em três subtítulos: (i) Composição audiovisual, (ii)
Composição narrativa-actorial e (iii) Composição do estilo visual, que visa a mostrar
como são articuladas as especificidades de linguagens de um texto sincrético; 3. A
dimensão patêmica de programas de comportamento: tem por objetivo compreender
como essas especificidades de linguagens se articulam num processo final de
significação, produzindo sentidos passionalizados e conquistando seus telespectadores;
4. Finalmente em Situações semióticas em programas de comportamento, a partir das
investigações realizadas, apontamos algumas considerações insistindo no fato de que as
diferentes articulações de linguagens adotadas por cada programa produzem verdadeiras
estratégias semióticas.
CAPÍTULO 3 - Hibridismo de Padrões na Sociedade Midiatizada: Após a
investigação sobre o gênero, o formato e a produção de sentido dos dois programas,
surge uma questão teórica voltada ao fenômeno comunicacional, na tentativa de melhor
compreender o objeto de pesquisa. Esse gênero televisivo merece um capítulo a parte ao
priorizar a participação de anônimos, sujeitos “reais”, desconhecidos para o grande
público, que relatam assuntos de suas vidas íntimas num universo público. Diversas
14
questões norteiam esse aspecto, como por exemplo, o tipo de fenômeno que explica o
interesse do telespectador em acompanhar pela TV a intimidade de um sujeito
desconhecido, o motivo que leva um indivíduo a sair de sua casa e ir à TV expor fatias
de sua vida para uma massa amorfa de espectadores ou, ainda, o tipo de relação que
pode ser estabelecida entre “mídia e sociedade”. Numa tentativa de responder a essas
questões, evidenciamos uma hipótese que intitulamos de “hibridismo de padrões nas
relações entre público e privado”.
15
1.
1. 1.
1. P
PP
PROGRAMAS
ROGRAMAS ROGRAMAS
ROGRAMAS E GÊNERO TELEVISIVOS
E GÊNERO TELEVISIVOSE GÊNERO TELEVISIVOS
E GÊNERO TELEVISIVOS
1.1. O programa Casos de família
Audiência e público-alvo
Prestes a completar quatro anos, Casos de família é um dos pouco programas
do SBT (Sistema Brasileiro de Televisão) que permanece no “ar” com certa
“tranqüilidade”
6
, embora seu horário de exibição tenha sofrido algumas mudanças desde
sua estréia em 18 de maio de 2004, quando era transmitido diariamente (de segunda à
sexta) às 16 horas.
Como toda programação do SBT, rapidamente passou por mudanças de horário,
sendo exibido às 16h30, 17 h, 17h30 e até às 18 horas. Apenas, no dia 07 de janeiro de
2008, o programa voltou para o horário inicial, talvez pela concorrência que sofria com
as outras emissoras, principalmente com a Rede Globo.
Seguindo a orientação proposta por Machado e Vélez, segundo a qual
alguns detalhes fundamentais para a análise de um programa de
televisão, por exemplo, podem o estar dados no próprio “texto” do
programa, mas precisam ser buscados em outros materiais
(documentos de produção, textos jornalísticos relacionados ao
trabalho, depoimentos da equipe produtora, análise de recepção,
análise de conjuntura etc.) (2007, p. 03),
recorremos, neste trabalho, à entrevistas com a produção dos programas, a textos nos
sites da emissora, entre outros, obviamente para nos auxiliar nessa investigação.
6
No início de 2006, o tradicional programa da apresentadora Hebe Camargo transmitido às segundas-
feiras passou a ser exibido aos sábados até voltar para as noites de segunda. O apresentador Ratinho,
depois de inúmeras críticas, viu seu programa mudar de horário e formato, até ser extinto pela emissora.
Mais recentemente, a apresentadora Adriane Galisteu teve seu programa (Charme) tirado do ar sem
nenhum aviso, para depois voltar com outro formato. Isso sem mencionar as inúmeras mudanças dos
programas comandados pelo próprio Silvio Santos e tantas outras programações que simplesmente
“caem”, retornam ou são extintas da grade de exibição. Algumas dessas informações constam em matéria
do site IstoÉGente acessado em 15/01/2008, no seguinte endereço eletrônico:
http://www.terra.com.br/istoegente/344/reportagens/capa_silvio_02.htm.
16
Vejamos então os números do Ibope
7
. De fato, houve oscilações. Em sua
estréia o programa registrou seis pontos de audiência, como mostra matéria do
Observatório da Imprensa, publicada em 25 de maio de 2004, que considerou “uma boa
audiência para o horário e para a emissora”
8
. Rapidamente o programa atingiu índices
mais elevados, registrando médias de 10 pontos e picos de até 13, segundo dados
divulgados por sites especializados em programas de TV
9
. Mas, talvez pelas sucessivas
mudanças nos horários e pelos concorrentes não habituais, nos últimos tempos, os
índices demonstraram um declínio, retornando a média de seis pontos.
Quanto ao público-alvo desse programa, uma pida investigação dos
anunciantes pode dizer muito sobre o assunto. Verificando o corpus do nosso trabalho,
as quatro edições (“ele tem vergonha de me apresentar para a família dele”, “só você
não percebe o quanto é esquisito”, “minha mãe morre de ciúmes da minha sogra” e
“você não aceita a minha condição sexual”), constatamos os seguintes anunciantes,
divididos por categorias de públicos
10
:
7
É preciso ressaltar que a investigação dos índices de audiência não apresentou um rigor científico,
justamente porque a maior parte dos dados necessários não são divulgados pelas agências de pesquisa.
Sendo assim, recorremos, principalmente, às divulgações realizadas pelas próprias emissoras (tanto para
Casos de família quanto para o Programa Silvia Poppovic), o que deixou lacunas nessa investigação. De
qualquer maneira, este não é objetivo centrar desta pesquisa, apenas contribui para melhor compreender o
objeto proposto.
8
Matéria jornalística publicada em versão on-line. Acessada em 17/01/2008 no seguinte endereço
eletrônico: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=278ASP022.
9
Essas e outras informações podem ser obtidas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://tevenoticias.wordpress.com/2007/12/17/confirmado-casos-de-familia-volta-as-16hs/ (acessado em
17/01/2008); http://www.areavip.com.br/home/noticia.html?id=5165 (acessado em 17/01/2008);
http://tele-visao.zip.net/index.html (acessado em 17/01/2008).
10
Essa divisão por públicos (geral, feminino, masculino, jovem e idoso) não apresenta um rigor
científico, seria necessária uma análise sistematizada do conteúdo de cada anúncio para verificar qual
seria seu público-alvo específico. Mesmo assim, os aspectos mais representativos de cada anúncio foram
levados em conta (por exemplo, ao atribuirmos o produto de limpeza Vanish ao público feminino,
verificamos que o anúncio trazia mulheres lavando roupas e atribuindo um saber-fazer a outras
mulheres). Vale lembrar, ainda, que desconsideramos nessa investigação as propagandas políticas e as
chamadas de programações da própria emissora.
17
Anunciantes Casos de família
Categorias de públicos Anunciantes Número de
recorrência
Total de inserções por
públicos
01 Casas Bahia 07
02 Tele Sena 12
03 Colombini 02
Geral
04 Baú da felicidade 04
25 ou 41%
01 Redufim 06
02 Seda verão 02
03 Sfera 03
04 Descon 01
05 Sorvete kibon 02
06 Tenda 01
07 Xarope Vick 01
08 Mortein 01
09 Vanish 03
10 Colgate 01
Feminino
11 Speedy 01
23 ou 38%
01 Gillette 01
Masculino
02 Cerveja Itaipava 01
02 ou 3,5%
01 UOL 02
02 IG Banda Larga 02
Jovem
03 Frutare 03
07 ou 11%
01 Pan-Americano 03
Idoso
02 Cacique 01
04 ou 6,5%
Total
22 anunciantes
61
Nas quatro edições analisadas, encontramos 23 inserções (38%) que são
destinadas diretamente ao público feminino. Essa identificação é possível a partir da
análise de cada anúncio que revela o seu público no próprio enunciado, seja concedendo
um saber-fazer às mulheres, seja ressaltando a figura e a beleza femininas etc. Vejamos
alguns aspectos de cada anúncio isoladamente
11
:
Redufim substância destinada ao emagrecimento. Descrição do
anúncio: o anúncio destaca mulheres em “boa forma” se alimentando e
fazendo uso do produto. Objeto valor: “boa forma”; objeto modal:
redufim; sujeito: mulheres que precisam emagrecer;
Seda verão produtos para serem usados nos cabelos durante o verão.
Descrição do anúncio: mulheres em “boa forma” na praia usando o
produto nos cabelos que, apesar de estarem em contato direto com os
raios solares, continuam bonitos. Objeto valor: cabelos bonitos; objeto
modal: Seda verão; sujeito: mulheres que se expõem ao sol;
11
Não se trata de uma análise exaustiva dos anúncios, que não fazem parte do corpus deste trabalho. Mas
por acreditar que são significativos, levantaremos alguns aspectos mais relevantes que possam nos ajudar
na compreensão dos programas, mais especificamente em seu público-alvo.
18
Sferaprodutos para o cabelo. Descrição do anúncio: o anúncio mostra
uma mulher realizando atividades que habitualmente não lhe
concederiam prazer (cuidar da casa, trabalhar como telemarketing,
almoçar com a sogra, assistir ao futebol com o marido), mas está feliz
por estar com os cabelos bonitos. Isso é reforçado pelo texto em
primeira pessoa: “sou uma mulher feliz. A família renova minhas
energias. Também amo o meu trabalho, a minha sala é enorme. Sábado
é na minha sogra, não sei por que mas acho que ela gosta de mim.
Domingo não perco o futebol, é emocionante”. Para finalizar, um outro
narrador arremata “Se você está bem com o seu cabelo, tudo está bem.
Chegou a nova linha Sfera de tratamento e transformação de cabelos.
Sfera: seu cabelo, sua vida”. Objeto valor: cabelos bonitos e vida feliz;
objeto modal: linha Sfera; sujeito: mulheres que realizam atividades
comuns;
Descon remédio para gripes e resfriados. Descrição do anúncio:
um jovem casal em que a mulher explica ao marido a distinção entre
gripe e resfriado quando ele lhe apresenta o Descon. Assim a sabedoria
feminina se completa com o poder do remédio no tratamento de
doenças. Objeto valor: poder tratar de gripes e resfriados; objeto modal:
Descon; sujeito: mulher que cuida da família;
Kibon sorvete. Descrição do anúncio: trata-se de um comercial que
anuncia uma promoção da marca “mãe não é tudo igual”. Destinado às
mães, elas têm que responder à pergunta: “qual o sorvete que toda
geladeira de mãe tem que ter?”. Junto com o narrador que questiona
“mãe coruja, mãe atlética, mãe moderninha...”, aparecem imagens de
mulheres abrindo a geladeira e pegando sorvete. Objeto valor: agradar
aos filhos; objeto modal: sorvete kibon na geladeira; sujeito: mães;
Tenda construtora que financia a compra de imóveis. Descrição do
anúncio: com imagens de crianças e casas, o narrador em off (voz
feminina) comenta que “com a construtora Tenda você só vai querer
passar o verão em casa”. Objeto valor: ter casa própria e se divertir com
a família; objeto modal: construtora Tenda; sujeito: mãe;
19
Xarope vick remédio para tosse. Descrição do anúncio: filhos e pai
com tosse. A mãe chega e rapidamente o xarope para todos. Objeto
valor: uma família feliz e sem tosse; objeto modal: xarope vick; sujeito:
mulher (mãe);
Mortein inseticida. Descrição do anúncio: baratas estão entrando em
uma casa, quando surge uma mulher na porta com o produto em mãos e
diz “na minha casa não!”. Objeto valor: uma casa livre de insetos;
objeto modal: mortein; sujeito: mulher protetora;
Vanish produto para lavar roupas. Descrição do anúncio: como
estivesse produzindo uma matéria jornalística, uma mulher de frente
para uma suposta câmera anuncia os testes que serão feitos para
comprovar a eficácia do produto na ação contra as manchas. Outras
mulheres estão presentes para comprovar o resultado. Objeto valor:
roupas limpas e brancas; objeto modal: vanish; sujeito: mulheres que
lavam roupas;
Colgate creme dental. Descrição do anúncio: uma mulher representa
dois papéis: o de dentista e o de mãe. Por isso, ela toma cuidados na
escolha do creme dental para o seu filho. Objeto valor: saúde bucal dos
filhos; objeto modal: colgate; sujeito: mulher mãe e dentista;
Speedy banda larga da Telefônica. Descrição do anúncio: crianças
pesquisando na internet. O narrador em off inicia o texto com a
afirmação: “com speedy seus filhos vêem o mundo com muito mais
conhecimento”. Objeto valor: filhos em conjunção com o
conhecimento; objeto modal: speedy; sujeito: mãe.
Na categoria geral”, através da análise aqui realizada, a priori o público-alvo
parece não estar tão bem definido. Não mulheres nos comerciais (ou quando há, as
características femininas não são exacerbadas) e também não um saber-fazer
destinado diretamente às mulheres. No entanto, parece que esses comerciais evocam um
público feminino.
Evitando parecermos preconceituosos, nessa categoria, o objeto valor está
muito relacionado com a idéia de “bem estar no lar”, perceptível através da oferta de
objetos e produtos que culturalmente parecem fazer parte do “universo feminino”.
20
Numa velha e ultrapassada alusão de que se reserva às mulheres o zelo com a casa, a
compra dos utensílios domésticos e o sonho da casa própria (nessa mesma concepção o
universo masculino sonharia com o carro próprio), os produtos oferecidos são: nas
Casas Bahia, sofá, guarda-roupa, beliche, cama de casal e cama de solteiro e; na
Colombini, guarda-roupa e cozinha (armários, mesas). Nessa mesma concepção, os
comercias da Tele Sena (prêmios por título de capitalização do Grupo Silvio Santos) e
do Baú da Felicidade (compra antecipada do Grupo Silvio Santos) também enfatizam a
idéia de casa própria.
Se considerarmos, portanto, que essas duas categorias (geral e feminino) têm
como público-alvo as mulheres, fica claro então que a grande maioria dos anunciantes
(e com isso a própria emissora) acredita que o público-alvo de Casos de família é
composto pelo sexo feminino. Trata-se de 48 anúncios dos 61 transmitidos em quatro
edições do programa, ou seja, 79%.
Além disso, as mulheres presentes nesses comerciais compõem o estereótipo
das /mulheres mães/ e, principalmente, /donas-de-casa/. Três comercias dizem respeito à
beleza feminina (Redufim, Seda Verão e Sfera), o restante enfatiza valores ligados à
maternidade e ao trabalho doméstico: toda mãe deve agradar o filho com kibon na
geladeira, deve saber cuidar da família com remédios anti-gripais (Xarope Vick e
Descon), deve pensar na saúde, na educação e no futuro das crianças (Colgate e Speedy,
Tenda) e deve saber cuidar da casa (Mortein e Vanish). Sem falar evidentemente que
são elas que devem preocupar-se com o lar da família e com todos os utensílios
presentes nele (Tele Sena, Baú da felicidade, Casas Bahia e Colombini).
Quanto à classe social desse público, majoritariamente composto por mulheres,
fica evidente que pertence às classes menos favorecidas financeiramente, que a maior
parte dos comerciais enfatiza que as vendas dos produtos (populares) podem ser feitas
por formas parceladas ou financiadas. Casas Bahia e Colombini destacam que seus
produtos podem ser parcelados em até 10 vezes; o sonho da casa própria advém pela
possibilidade de ganhar com a Tele Sena ou com o carnê do Baú, ou de financiar junto à
Tenda; inclusive os aposentados podem fazer empréstimos (Cacique, Pan-Americano).
Sendo assim, podemos afirmar que o público-alvo dos anunciantes do
programa e, num certo sentido, o público-alvo que o próprio programa almeja é
composto, principalmente, por mulheres de baixa-renda, talvez corriqueiramente
entendido como “donas-de-casa”. No entanto, pela análise realizada, só é possível
pressupor esse público, uma vez que não temos acesso aos reais índices de audiência
21
que poderiam comprovar essas afirmações. De qualquer modo, se os anunciantes
persistem (investigamos quatro edições de anos diferentes: 2006, 2007 e 2008) isso
pode significar que o público corresponde.
Temas
O texto apresentado no site do programa Casos de família diz que se trata de
um “talk show diferente que retrata a vida de cidadãos comuns com realidade e
sensibilidade”. E ainda, “o programa traz temas do cotidiano que vão ressaltar as
emoções dos participantes presentes no palco, da platéia convidada e dos
telespectadores que estão em casa, resgatando valores sem apelar para provocações ou
escândalos”
12
.
Assim, como o próprio título sugere, os temas são do cotidiano familiar, de
certo extrato social, são “casos” familiares, marcados por intrigas, brigas, preocupações,
violência, sempre envolvendo pais, mães, maridos, mulheres, filhos, parentes, amigos.
São evidentemente temas que tratam em suma de comportamentos: “não me entendo
com o meu padrasto”, “você coloca os meus filhos contra mim”, “você faz promessas
demais”, “ela não sai do salão de beleza”, “você me trocou por sua religião”, “só caso se
for no papel”, “nossos filhos atrapalham o nosso relacionamento”, “gosto de você, mas
não suporto a sua família”, “meu ex não deixa eu ter outro relacionamento”, “ele diz
que trabalha, mas eu não vejo o dinheiro”
13
.
Em entrevista, José Ailton Soares Júnior, membro da equipe de produção do
programa Casos de família, fala sobre a definição dos temas:
Nós somos divididos em grupos, cada grupo liderado por um chefe,
que tem a mesma função dos demais, mas é um líder. Toda segunda
feira, diretor, assistente de direção e produtores se reúnem para definir
quais vão ser os temas. Chamam os deres de grupo e lhe passam os
temas, é comum entrar um tema para cada grupo por semana para
substituir o que foi gravado na semana passada. Os temas podem ser
sugeridos por todos da produção, cabe a produção chefe ver se serve
ou não, se não servir eles fazem adaptações para um tema semelhante
(trecho da entrevista, anexo nº. 03)
14
.
12
Em anexo (04), o texto impresso na íntegra, que pode ser encontrado acessando o link:
(http://www.sbt.com.br/casos_familia/programa/ acessado em 14/08/2007).
13
Para a realização dessa investigação contamos com 30 temas extraídos do Casos de família, que faz
parte do corpus desse trabalho. A lista completa consta em anexo (06 e 07).
14
A entrevista deste mestrando com o profissional de Casos de família foi realizada em janeiro de 2008.
Em anexo (03), consta o texto na íntegra.
22
Convidados
Em Casos de família, percebemos claramente a presença de uma categoria de
indivíduos pertencentes a camadas sociais menos favorecidas (numa categorização
televisiva, compõem as classes C e D). São indivíduos moradores da capital paulista
que, em sua maioria, são migrantes do nordeste brasileiro que viviam (e vivem) em
situação de pobreza nas regiões menos abastadas economicamente. Utilizam uma forma
coloquial de fala, fazendo uso de gírias e expressões regionais.
Essa observação a partir do corpus é confirmada pelos dados fornecidos pela
equipe de produção do programa. Segundo o entrevistado que trabalha na equipe do
programa, são escolhidas pessoas que vivem em bairros carentes de São Paulo, pois são
pessoas “mais flexíveis a participar”. A seleção ocorre da seguinte maneira:
Quando um estagiário entra na nossa produção, ele é encaminhado
para um dos grupos e tem como função inicial fazer um “contato”.
Este contato tem que ser alguém da comunidade em questão com o
perfil de que conheça bastantes pessoas e seja comunicativo, pois ele
será a nossa fonte de casos, pois não adiantaria nada ir batendo de
porta em porta para procurar os casos, pois muitos nem dariam
atenção para nós, já com este contato seria mais fácil, pois por ser
conhecido na região seria mais fácil convencer as pessoas. O contato
trabalha para nós sem nenhum vínculo empregatício, ele recebe por
caso que indicar, recebe quarenta reais por caso (vinte por pessoa),
quando o caso é em trio, que é mais incomum, o contato recebe
sessenta reais (vinte por pessoa também). Cabe ao contato indicar a
quantidade de casos, quanto mais casos, mais cachê. contatos que
estão conosco quase quatro anos, faz disso uma renda mensal. É
importante lembrar que todos os casos têm que ser verdadeiros. O
contato indica o caso, alguém do grupo em questão vai entrevistar o
caso. É como uma investigação, pedimos documentos para confirmar
a veracidade dos casos e conversamos com cada parte em separado
para ver se as informações coincidem (trecho da entrevista, anexo nº.
04).
Por fim, questionado sobre a retribuição dada ao convidado por participar do
programa, José Ailton explica:
Cada convidado recebe oitenta reais de cachê (cento e sessenta reais
por caso e duzentos e quarenta no caso de trio). Além disso, o SBT
busca os convidados em casa de carro, tanto para a entrevista na
produção com nossa produtora chefe quanto para a gravação do
programa. No SBT, almoçam e se ocorrer de um convidado não ter
dentes, levamos ao dentista para colocar uma prótese para que ele não
tenha vergonha de aparecer na televisão (trecho da entrevista, anexo
nº. 04).
23
1.2. O Programa Silvia Poppovic
Audiência e público-alvo
O Programa Silvia Poppovic, transmitido em rede nacional pela TV Cultura,
estreou em 31 de março de 2005. Foi exibido semanalmente por volta das 22 horas e
reprisado todos os finais de semana, à tarde. A jornalista Silvia Poppovic, cujo nome
tornou-se título do programa, comandava as apresentações que tinham como tema
englobante “qualidade de vida no mundo contemporâneo”, como era sempre frisado
pela apresentadora. Após várias mudanças do formato original, principalmente com a
extinção de quadros gravados previamente, o programa saiu do ar em 28 de setembro de
2006, quando estava reduzido apenas a uma pequena reportagem sobre o tema da
emissão e as entrevistas com os participantes.
Em matéria publicada na revista Época
15
, da editora Globo, a TV Cultura, sob
direção de Marcos Mendonça, a partir de 2004, estaria entrando numa disputa pela
audiência com vistas a solucionar déficits financeiros, aderindo a publicidades e a
programas menos elitistas, cujo abre-alas seria Silvia Poppovic. No entanto, foi
criticado por conservar o formato elitista, como afirma uma matéria do Jornalismo
Anhembi Morumbi
16
, ao constatar que não conseguira ultrapassar dois pontos de
audiência.
De fato, o formato original passou por adaptações. Inicialmente havia, além das
entrevistas com os participantes, quadros específicos sobre humor, comportamento,
inclusive um sobre comportamento de animais. Nas últimas apresentações do programa,
esses quadros não existiam, prevalecendo apenas o formato tradicional com
entrevistas sobre um tema e uma pequena reportagem (de cunho jornalístico) sobre o
assunto. A mudança obviamente procurou deixar de lado assuntos mais elitizados e
centrou-se mais no tema “qualidade de vida no mundo moderno”. De qualquer forma, a
crítica da imprensa se funda em dois aspectos: a audiência do programa não atingiu o
nível esperado e essa audiência sempre foi elitizada, mesmo numa emissora pública.
15
Matéria publicada na versão on-line da revista, acessada em 18/06/2007, no seguinte endereço
eletrônico:
http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT944199-1661,00.html
16
Matéria online, acessada em 18/06/2007, no seguinte endereço eletrônico:
http://www2.anhembi.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=44921&sid=1925
24
De acordo com entrevista concedida pela produtora executiva do Programa
Silvia Poppovic, Rose Favero, o público-alvo do programa era amplo
17
: “tentávamos
não fazer um programa para públicos específicos, para isso fazíamos programas com
temas direcionados para homens, mulheres e crianças, sem distinção de classe social”.
Contudo, segundo divulgação da própria TV Cultura, na estréia (31/03/2005) do
programa, houve um declínio vertiginoso da classe D/E (14%) em compensação a um
crescimento da A/B (10%) sintonizada no horário, como mostra a tabela abaixo
18
:
Perfil da audiência do Programa Silvia Poppovic – em %
Classe social Média do horário no mês de
março
Estréia do Programa Silvia
Poppovic
AB 36 46
C 37 42
DE 26 12
Outro dado, divulgado também pela TV Cultura
19
, mostra, no entanto, que
depois de quatro meses da estréia houve um aumento do público das classes D/E em
decorrência do declínio da audiência da classe A/B, fazendo a audiência praticamente se
igualar com a do período anterior ao programa:
Perfil da audiência do Programa Silvia Poppovic – em %
Classe social Sexo Idade
A/B C D/E masculino feminino 04/11
12/17 18/24
25/34
35/49 50+
35 43 22 46 54 8 7 10 12 23 40
Dessa forma, pode-se dizer então que o programa deixou de ser elitista? Num
certo sentido, sim. Houve uma diversificação dos seus telespectadores, como mostram
os dados, todas as classes estavam incluídas nesse público. Além disso, houve
alterações no formato original, obviamente numa tentativa de fazer o programa “cair no
gosto popular”. Todavia, ele continuou a ser assistido por poucos. Fato que não estava
apenas relacionado ao programa, mas a toda a programação da TV Cultura, cujos
índices mais altos do Ibope não ultrapassavam dois ou três pontos de audiência
20
. Na
semana de estréia de Silvia Poppovic (28/mar./2005 a 03/abr./2005), por exemplo, os
17
A entrevista deste mestrando com a produtora executiva foi realizada em agosto de 2008, por e-mail, e
não apresentou um critério formal. Em anexo (02), consta o texto na íntegra.
18
Fonte: Ibope/Telereport SP/divulgação TV Cultura/ Abril 2005.
19
Fonte: Ibope/ Telereport - Jul/Set 2005/
Acessado em 18/06/2007 no endereço:
http://www.tvcultura.com.br/publicidade/media/noticia_SILVIA%20POPPOVIC.SPE.perfil.JUL2006.pdf
20
Ver Almanaque Ibope – www.almanaqueibope.com.br
25
cinco programas no ranking do Almanaque Ibope, na TV Cultura, foram: com três
pontos, Viola minha viola, Religioso, Rupert, Teletubbies; e com dois pontos, Os sete
monstrinhos
21
. De acordo com a produtora Rose Favero, “levando em consideração o
Ibope da emissora onde era veiculado, nós conseguíamos muitas vezes quadruplicar a
audiência”.
Hoje, certamente a emissora passa por novas transformações que acusam bons
resultados, percebidos pelos recentes números do Ibope que chegam até oito pontos.
Transformações essas trazidas pelo diretor Marcos Mendonça, que reformulou a grade
da programação e aderiu à publicidade. Em relação ao período de 30/jul./2007 a
05/ago./2007, os dados divulgados em 15 de agosto de 2007 mostram que o programa
De onde vem obteve sete pontos de audiência; os programas Cyberchase, Castelo Rá-
Tim-Bum e Charlie e Lola cinco pontos; e Camundongos quatro. Essa guinada da
emissora com crescentes aumentos dos números de telespectadores sintonizados na
programação certamente está relacionada com uma tentativa de torná-la mais popular,
menos elitista. Uma investigação das mudanças na programação no período considerado
certamente ajudaria a explicar esse progressivo aumento dos pontos do Ibope.
De qualquer forma, vale a pena verificar o público-alvo dos anunciantes.
Vejamos como ocorre nas quatro edições que fazem parte do corpus deste trabalho,
“ejaculação precoce” (29/06/2006), “violência praticada pelos jovens” (09/07/2006), “a
difícil tarefa de encontrar a alma gêmea” (13/07/2006) e “assédio sexual no trabalho”
(27/07/2006):
21
Fonte: Telereport. Programas de maior audiência na Região da Grande São Paulo. Todos os dias das
06:00 às 05:59 hs. Universos: 5.232.600 domicílios e 17.059.700 indivíduos. Um ponto de audiência
corresponde a 1% destes respectivos universos. Data de Publicação: 18/abr/2005. Endereço:
www.almanaqueibope.com.br
.
26
Anunciantes Programa Silvia Poppovic
Categorias de públicos Anunciantes Número de
recorrência
Total de inserções por
públicos
01 Ocean Air 01
02 Agora 04
03 Qualy Sadia 02
04 Estadão 02
05 Sedex Correios 01
06 TAM 01
07 Arroz Camil 04
08 Papel Chamex 01
09 Casas Bahia 12
Geral
10 Colgate sensitive 02
30 ou 48,5%
01 Neosaldina 10
02 Amaciante Ypê 12
03 Renew Alternative 03
04 Intimus Gel 01
05 Nescafé 01
Feminino
06 Revista Cabelos e
Cosméticos
01
28 ou 45%
01 Alumni 01
02 Refrigerante Schin 01
Jovem
03 Havaianas 01
03 ou 5%
Criança
01 Ri happy brinquedos 01 01 ou 1,5%
Total
20 anunciantes
62
No Programa Silvia Poppovic, os anúncios são destinados a dois grandes
públicos: às mulheres com 45% das inserções e ao público “geral” (toda a família) com
48,5%. Mas 50 % dos tipos de anúncios (ou 10 dos 20 tipos) são destinados ao “geral”,
enquanto 30 % (06 tipos) são destinados às mulheres. Em ambos os casos (quantidade
de inserções e tipos de anúncios), mesmo sem se tratar de uma diferença tão expressiva,
a maior parte dos anúncios são destinados a toda a família, não exclusivamente ao
público feminino. Fato que corrobora a versão de Rose Favero, segundo a qual o
programa não tinha um público específico.
De qualquer maneira, destacamos alguns anúncios para verificar qual o tipo de
público-alvo acionado e quais os valores propostos por eles:
Camil: marca de arroz. Descrição do anúncio: uma cozinheira afirma
que “adora preparar uma comidinha com o arroz Camil”. Após falar das
qualidades do arroz, a família entra na cozinha e a mulher diz “nós que
não sabemos o que seria da gente sem você, Edilene”. Objeto valor:
um bom arroz feito pela cozinheira; objeto modal: Camil; sujeito:
família;
27
Chamex office: papel para impressão. Descrição do anúncio: uma
executiva em seu escritório fala sobre as vantagens de usar o papel. Faz
uma relação com “marido ideal” que, segundo ela, deveria ser igual à
Chamex, “ter um papel ideal para cada situação de uso”. Objeto valor:
ser bem sucedida profissionalmente e pessoalmente; objeto modal:
Chamex; sujeito: mulheres;
Neosaldina: remédio contra dor de cabeça. Descrição do anúncio: em
casa pela manhã e no trabalho uma mulher sente dor de cabeça, até que
um homem, num restaurante, lhe oferece Neosaldina. Os dois sorriem e
conversam. Objeto valor: vida feliz sem dor de cabeça; objeto modal:
Neosaldina; sujeito: mulher que trabalha fora de casa;
Amaciante Y: amaciante de roupas. Descrição do anúncio: a atriz
Susana Vieira apresenta o comercial em meio a toalhas e tecidos que
dão sensação de maciez e narra parte do texto em off com imagens de
bebês e mães. É como se a maciez conseguida pelo uso do produto
fosse similar à maciez da pele de bebês. Além disso, a voz da atriz
complementa o sentido de /maciez/ pois se apresenta bastante
/aveludada/. Objeto valor: maciez nas roupas; objeto modal: Amaciante
Ypê; sujeito: mulheres que desejam roupas macias como à pele dos
filhos;
Renew Alternative: cosmético contra o envelhecimento da Avon.
Descrição do anúncio: uma voz feminina em off questiona: “quem diz
que não existe alternativa contra o envelhecimento da pele?”. E
imediatamente responde: “na Avon existe”. Segundo o texto, o produto
é “uma inovação que reúne o melhor dos dois mundos: o poder das
plantas orientais com as mais recentes descobertas da ciência
ocidental”. Mulheres exuberantes ilustram o texto. Objeto valor: tornar-
se uma mulher exuberante; objeto modal: Renew alternative; sujeito:
mulheres acima dos 30;
Intimus gel: absorvente feminino. Descrição do anúncio: Um narrador
em off faz a seguinte pergunta: “o que os homens mais reparam numa
mulher?”. Em tom de ironia, alguns homens respondem: “as
bochechas”, “eu gosto das que falam muito”, “eu procuro ver a beleza
28
interior”. Mas um off feminino desmente a ironia e afirma qual a
“preferência nacional” no momento em que um close toma uma mulher
de costas e vários homens a miram. Objeto valor: ter um corpo bonito
para exibir-se aos homens; objeto modal: Intimus gel; sujeito: mulheres;
Nescafé: café instantâneo. Descrição do anúncio: uma mulher é
abordada num supermercado por um promotor de vendas. Ele lhe
pergunta o nome e a profissão e ela responde: “Maria do Carmo, sou
dona-de-casa”. Em seguida, ele lhe apresenta o café que pode ser
tomado com leite e diz que “o marido vai gostar tanto que vai até te
ajudar em casa”. Objeto valor: agradar o marido para que ele a ajude
nas tarefas domésticas; objeto modal: Nescafé; sujeito: donas-de-casa;
Revista cabelos e cosméticos. Descrição do anúncio: exibindo páginas
da revista, o narrador cita algumas chamadas: “Confira como a atriz
Vanessa Giácomo mantém o cabelo cheio de vida; conheça 35 cortes de
cabelos sensacionais (...); loiras ou morenas? Descobrimos qual é a
preferência dos homens”. Objeto valor: tornar-se linda como as atrizes
para conquistar os homens; objeto modal: revista cabelos e cosméticos;
sujeito: mulheres.
Após uma rápida investigação, é possível verificar como os vários universos
femininos são retratados nas publicidades. A /mulher “dona-de-casa”/ aparece em
Amaciante Y e Nescafé; a /mulher profissional/ aparece em Neosaldina, Chamex e
Camil e a /mulher vaidosa/ está presente em Renew alternative, Intimus gel e Revista
cabelos e cosméticos. Assim, a diferença do público dos anúncios deste programa é
bastante significativa em relação ao público dos anúncios de Casos de família, que
prevalecia a “dona-de-casa”.
No programa analisado anteriormente, as mulheres deveriam conhecer os anti-
gripais (xarope Vick e Descon) para pode cuidar dos filhos e dos maridos; neste, a
mulher conhece Neosaldina através de um homem com quem tem um encontro num
restaurante. Naquele, a mulher deveria conhecer produtos domésticos (Mortein e
Vanish) para melhor cuidar da casa; aqui basta instruir a cozinheira (Camil). Em Casos
de família, Sfera, Seda Verão e Redufim serviam para deixar a mulher bem consigo
mesma; aqui além da mulher estar bem consigo mesma, ela tem o poder de conquistar
os homens (Intimus Gel, Revista cabelos e cosméticos, Neosaldina, Chamex). Enfim, o
29
público-alvo feminino mudou. Nos anúncios do Programa Silvia Poppovic predomina,
não apenas uma mulher “dona-de-casa”, mas uma mulher que trabalha fora e que
conquista seus parceiros. A ênfase dada aos anúncios consolida ideais de beleza,
prestígio e poder femininos.
Além da diferença substancial do público feminino, a classe social também é
outra. Nos anúncios do Programa Silvia Poppovic publicidade de companhias aéreas
(Ocean Air e TAM), de jornais impressos (Agora e Jornal do Estado de São Paulo). No
entanto, ainda existem comercias das Casas Bahia com todos os produtos parcelados.
Desse modo, parece haver uma heterogeneidade de classes sociais almejada
pelos anunciantes do programa, composta por quem viaja de avião e compra em lojas
populares e, também, parece haver uma heterogeneidade de tipos de sujeitos, não
apenas as “donas-de-casa”, mais variados tipos de mulheres e variadas famílias. Isso
confirma a proposta do próprio programa: não fazer distinção nem de classe nem de
sexo, fato comprovado pelos números do Ibope que exibimos acima.
Temas
Questionada sobre como os temas dos programas eram definidos, a produtora
Rose Favero afirma que os temas em Silvia Poppovic foram selecionados a partir dos
assuntos relevantes na sociedade naquele momento.
Nós fazíamos reuniões periódicas, onde toda a equipe participava.
Cada um levava sugestões retiradas de leituras, conversas com amigos
etc. Nesta reunião os temas eram discutidos e focados nos casos que
gostaríamos de ter. Para a colocação na grade de gravação
procurávamos intercalar temas médicos, factuais, ligados a mulheres,
homens e crianças (trecho da entrevista, anexo nº. 02).
Parece que os temas eram aqueles que, de alguma forma, estavam presentes no
seio da sociedade, atentando a uma realidade extra-televisiva, e obviamente fazendo
uma seleção daqueles que seriam mais significativos para serem exibidos. No programa,
predominaram:
Temas que mostram uma mudança na sociedade decorrente das novas
tecnologias “viciados em tecnologia”, “traição virtual”, “perversão na
internet”;
30
Temas diretamente relacionados com algum fato (ou data
comemorativa) da semana da exibição “desarmamento” (quando do
plebiscito sobre essa questão), “o carnaval mudou a minha vida”, “ano
novo”, “copa do mundo”, “catástrofes naturais”;
Temas que tratam da saúde na sociedade moderna e todas as suas
especificidades “compulsão pós-cirurgia de redução no estômago”,
“zumbido no ouvido”, “viciados em cirurgia plástica”, “fobias
estranhas”, “distúrbios alimentares”, “dietas radicais”, “hiperatividade”,
“ejaculação precoce”, “célula tronco”, “poluição sonora”, “obesidade
infantil”, “dor”, “depressão pós-parto”; “procrastinação”, “alcoolismo”,
“violência doméstica”, “assédio sexual”, “violência contra a mulher”;
Temas diretamente ligados à mudança de comportamento da sociedade
atual, estabelecendo uma oposição à sociedade “anterior a atual” –
“mães diferentes”, “invasão de privacidade”, “sexo na terceira idade”,
“valores na adolescência”
22
.
Obviamente que a organização em quatro categorias de temas, embora útil, não
consegue abarcar a complexidade das relações entre um tema e outro, uma vez que a
maioria deles apresenta características de mais de uma categoria, de modo que todos
eles manifestam aspectos comuns. O mesmo contexto sócio-econômico, a tendência tão
debatida intitulada de pós-modernidade, a própria modernidade, o mesmo fenômeno
cultural, enfim, algo difícil de conceituar, mas possível de caracterizar. Encontramos
neles algo que nos remete a “mudanças”, seja de ordem tecnológica, social, econômica
ou cultural, mas algo que inspira uma nova tendência uma nova tendência
contemporânea, como um novo estilo de vida. Essa talvez seja a proposta principal do
programa, produzir um debate atento às mudanças ocorridas na sociedade, numa
tentativa de discuti-las e encontrar “soluções” para resolver possíveis “problemas”.
Obviamente, assim como no outro programa, todos os temas encontram-se ligados ao
grande tema “comportamento”. Uma proposta que talvez dialogue com a descrição da
própria empresa. No texto encontrado no site da TV Cultura
23
, a Fundação Padre
Anchieta a define como uma emissora pública “cujo principal objetivo é oferecer à
22
Para a realização dessa investigação contamos com 30 temas extraídos do Programa Silvia Poppovic,
que faz parte do corpus desse trabalho. A lista completa consta em anexo (08).
23
Em anexo (05), o texto impresso na íntegra, que pode ser encontrado acessando o link:
(http://www.tvcultura.com.br/detalhe_institucional.aspx?id=39 acessado em 14/08/20007).
31
sociedade brasileira uma informação de interesse público e promover o aprimoramento
educativo e cultural de telespectadores e ouvintes, visando a transformação qualitativa
da sociedade”. Nesse sentido, parece haver uma coerência entre o que a emissora almeja
e prioriza em sua grade de programação e o que o próprio programa em questão
transmite.
Convidados
No Programa Silvia Poppovic, uma relação bastante estreita, seja
econômica, cultural ou social, entre a apresentadora e seus convidados, que pertencem
às camadas mais elevadas da sociedade (A e B, possivelmente). Desse modo, os
participantes têm mais fluência nas entrevistas, suas frases são mais bem estruturadas,
quase não apresentam timidez. Segundo Rose Favero, os convidados, que não recebiam
nenhum tipo de cachê para participar do programa, eram selecionados da seguinte
forma:
depois do tema definido nós fazíamos uma grande pesquisa, jornais,
revistas, internet e boca-a-boca’. Assim surgiam nomes de possíveis
convidados. Entrávamos em contato com a pessoa e fazíamos uma
pré-entrevista. Sendo aprovada, ou seja, se a pessoa realmente se
encaixasse no tema, se ela tivesse testemunhos da história e se falasse
bem, seria convidada e viria no palco conversar com a Silvia
Poppovic (trecho da entrevista, em anexo).
1.3. Os gêneros televisivos
Ao percorrer os estudos que se centram em gêneros, de imediato surge uma
constatação um tanto desanimadora: a discussão sobre o conceito e a dificuldade na
classificação das obras parecem nunca chegar ao fim. De fato, há quem diga que a
questão é anacrônica ou mesmo irrelevante. É bem verdade também que toda a
diversidade e a criatividade das produções artística e intelectual dificilmente poderão ser
classificadas por categorias englobantes. Além disso, como estabelecer taxonomias se a
cada dia as produções midiáticas tendem a um maior hibridismo e decorrem de uma
maior fecundidade de fenômenos de ordem principalmente tecnológica?
Entretanto, a definição encontrada por Mikhail Bakhtin parece, por sua
abrangência, conceder uma diretriz bastante coerente sobre o fenômeno. Segundo ele,
32
todos esse três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção
composicional estão indissoluvelmente ligados no todo do
enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um
determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado
particular é individual, mas cada campo de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais
denominamos gêneros do discurso. (...) Os enunciados e seus tipos,
isto é, os gêneros discursivos, são correias de transmissão entre a
história da sociedade e a história da linguagem (261-269, 2003, grifos
do autor).
Pesquisador do meio audiovisual atento à complexidade da questão, Arlindo
Machado sintetiza o pensamente de Bakhtin.
Para o pensador russo, gênero é uma força aglutinadora e
estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, um certo modo
de organizar as idéias, meios e recursos expressivos, suficientemente
estratificado numa cultura, de modo a garantir a comunicabilidade
dos produtos e a continuidade dessa forma junto às comunidades
futuras. Num certo sentido, é o gênero que orienta todo o uso da
linguagem no âmbito de um determinado meio, pois é nele que se
manifestam as tendências expressivas mais estáveis e mais
organizadas da evolução de um meio, acumuladas ao longo de várias
gerações de enunciadores (MACHADO, 2000, p. 68).
Além disso, Machado preocupa-se em ampliar o emprego de gênero aos
produtos televisuais. Segundo ele, existem algumas modalidades relativamente estáveis
de organizar os elementos televisivos (conteúdos verbais, figurativos, narrativos,
temáticos, códigos televisuais) garantindo o que ele chama de conceito televisivo, ao
passo que, “existem esferas mais ou menos bem definidas, no interior das quais os
enunciados podem ser codificados e decodificados de forma relativamente estável por
uma comunidade de produtores e espectadores até certo ponto definida” (Ibidem, p. 70),
sem, contudo, negar a metamorfose que os faz evoluir na direção de novas e distintas
possibilidades. “O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo
tempo” (Ibidem, p. 69). E conclui que esses modos de trabalhar a matéria televisual são
chamados de gêneros.
Para Machado (Ibidem, p. 71), não é possível enumerar todos os gêneros
televisivos, que são ilimitados devido às inúmeras possibilidades de realização.
publicidade, programas dos mais variados tipos, vinhetas, reportagens e uma infinidade
de formas híbridas e de outras que ainda surgirão. Entretanto, nessa pluralidade de
enunciados, o estudioso propõe algumas classificações acerca de gêneros televisivos: as
33
formas fundadas no diálogo, as narrativas seriadas, o telejornal, as transmissões ao vivo,
a poesia televisual, o videoclipe e outras formas musicais.
Numa linha de raciocínio semelhante a esse respeito, Ciro Marcondes Filho
(2001), classifica os seguintes grupos de gêneros: 1. o telejornal, o documentário, a
revista da semana; 2. as telenovelas, as mini-séries, os longa-metragens; 3. o humor; 4.
programas de entrevistas com auditório; 5. os programas esportivos; 6. os musicais; e 4.
a publicidade na TV.
Por fim, François Jost (2004), no entanto, propõe um modelo classificatório
mais sintético e, ao mesmo tempo, mais abrangente no momento em que faz referência a
apenas três gêneros englobantes: o real, o fictício e o lúdico. A diferença entre eles está
diretamente relacionada ao tipo de contrato firmado entre produtor e espectador, o que
vai determinar o modo como este deve apreender o conteúdo de um programa. Os dois
primeiros opõem-se pela forma como é aceito pelo telespectador, se deve ser visto como
algo real, que realmente acontece do mundo (telejornalismo, documentário, por
exemplo), ou ficcional (novelas, minisséries, seriados); enquanto o último não tem
comprometimento nenhum com esses dois efeitos, sendo híbrido (pensemos, por
exemplo, no gênero reality show, que é composto pela mescla de diferentes formatos de
diferentes gêneros).
1.4. Programas de comportamento
Os dois programas televisivos (Casos de família e Programa Silvia poppovic),
objeto de estudo deste trabalho, podem ser chamados de programas de entrevistas, talk-
shows, programas femininos e mais uma séria de outras formulações, fato que
demonstra uma imprecisão na definição da própria nomenclatura que os especifica. É
possível dizer então que eles pertencem a um mesmo gênero, tendo em vista as
definições propostas no item anterior?
Comecemos então a verificar as principais semelhanças dos dois programas e,
posteriormente, correlacioná-las às categorizações de gêneros:
Basicamente, as presenças marcantes de uma entrevistadora, que
comanda o programa, e de vários entrevistados;
34
também a presença de ouvintes, no caso, de platéias. Nos dois
programas as pessoas da platéia interagem quando solicitadas pelas
respectivas apresentadoras;
Além de apresentadora, entrevistados e platéia, os dois programas contam
com a presença de especialistas. Trata-se de profissionais que têm um
conhecimento científico sobre o tema: médico, terapeuta, psicólogo etc.;
Os dois programas têm por objetivo produzir um conteúdo que esteja em
comprometimento com a realidade, com a verdade, de modo que o
telespectador os apreenda dessa forma;
Os cenários são compostos por “espaços”: espaço da platéia, espaço dos
convidados, espaço da apresentadora, que são formados por poltronas,
degraus, arquibancadas etc.
Desse modo, as características presentes nos dois programas organizam-se e os
aproximam de uma mesma modalidade de produção televisiva. Resta saber que
modalidade é esta.
Na esteira dos estudos desenvolvidos por Arlindo Machado, os dois programas
pertenceriam ao que ele chama de formas fundadas no diálogo”, equivalendo-se aos
talk shows”, “reality shows” ou “programas de auditório” (2000, p. 71). Segundo o
autor, a televisão brasileira conta em sua origem com os profissionais atuantes do rádio,
de modo que, também por esse fato, a linguagem oral sempre esteve em evidência. Em
suas palavras, talvez pelos imperativos técnicos e econômicos, a TV “paradoxalmente, é
um meio bem pouco ‘visual’” (Idem, p. 71), que usa na maior parte da programação
apenas “cabeça falante” (Ibidem).
De qualquer maneira, o autor explica o gênero: “dizemos ‘formas’ em geral e
no plural, porque, na televisão, o diálogo pode assumir as mais variadas modalidades: a
entrevista, o debate, a mesa redonda e até mesmo o monólogo que pressupõe algum tipo
de interlocução com um diretor oculto ou com o telespectador” (2000, p. 72). Quanto à
questão sobre “diálogo”, o autor faz um raciocínio baseado no método socrático, em que
“ele era o alicerce de toda uma cosmovisão filosófica que acredita na natureza dialógica
(plurívoca, contraditória) da verdade” (idem, p. 73).
Assim, os dois programas enquadram-se na teorização proposta por Machado,
que visam à discussão de um tema por uma pluralidade de olhares, tornando-se um
35
produto, nesse sentido, bem pouco visual, preocupado acima de tudo com a linguagem
oralizada. A presença dos vários tipos de participantes (apresentadora, entrevistados,
platéia e especialista) corrobora com a idéia de “diálogo” presente na definição.
O pensamento de Jost (2004) e o de Ciro Marcondes Filho (2001) parecem
também comungar dessa teorização. Para o primeiro, a idéia de construir um efeito de
realidade, de verdade, relaciona-se a exposição feita por Machado acerca da natureza
dialógica da verdade. A finalidade de cada programa é problematizar um assunto,
confrontar opiniões e apontar soluções para determinados problemas sociais, em suma,
buscar “uma verdade”. Nessa concepção, a idéia de realidade, de atualidade, de não-
ficção, torna-se muito evidente em ambos os programas. Para o outro teórico, fica claro,
também, que os “programas de entrevistas com auditório” relacionam-se diretamente
com os dois programas em questão.
No entanto, as teorizações dos três autores não levam em conta outras duas
especificidades desses programas, que, acreditamos ser, as suas principais
características. Trata-se de:
Programas temáticos. Como demonstramos anteriormente, os dois
programas trazem um tema novo em cada edição: um enfatiza conflitos
familiares e o outro, qualidade de vida, assuntos diretamente relacionados
ao grande tema “comportamento”;
Entrevistados anônimos. Os entrevistados são sujeitos anônimos da
sociedade, desconhecidos pela maior parte da população, pessoas “comuns”
que não possuem notoriedade televisiva. Mas, que se tornam protagonistas
de sua narrativa pessoal; suas histórias, facetas de vida e comportamentos
ganham destaque
24
.
Embora reconheçamos a dificuldade na busca por uma classificação, as
características apontadas acima estão presentes nos dois programas e, de certa forma,
juntamente com as demais, tornam-se uma força aglutinadora tendo em vista a
24
Parece que esse fato de levar anônimos à TV, embora não muito recente na televisão brasileira, ocupa
cada vez mais o espaço das programações. Sujeitos “reais”, sem o brilho consagrado pela mídia,
aparecem diariamente na cena televisiva e adquirem notoriedade. São muitos os tipos de programas que
utilizam essa estratégia, como exemplo, citemos alguns dos mais recentes: Na TV Globo, No limite, Big
Brother, Fama, Programa do ; no SBT, Programas de Silvio Santos, Programa do Ratinho, Ídolos; na
Rede Record, O melhor do Brasil.
36
concepção de Bakhtin, a partir da qual, podemos concebê-los como pertencentes a um
mesmo gênero, o que os torna cada vez mais passíveis de comparações. Sendo assim, na
busca por uma categoria que seja mais adequada à especificidade do objeto, optamos
por chamá-los de “programas de comportamento”, pois parece ser um termo que
consegue abarcar ou, pelo menos, pressupor as principais características dos dois
programas.
Para entender melhor o termo “comportamento”, é preciso pensar nos temas e
nos tipos de entrevistados. Como corpus deste trabalho, propomos quatro temas de cada
programa. Os temas de Casos de família (“ele tem vergonha de me apresentar para a
família dele”, “só você não percebe o quanto é esquisito”, “minha mãe morre de ciúmes
da minha sogra” e “você não aceita a minha condição sexual”) e do Programa Silvia
Poppovic (“ejaculação precoce”, “violência praticada pelos jovens”, a difícil tarefa de
encontrar a alma gêmea” e “assédio sexual no trabalho”) têm em comum o fato de
revelarem uma proposta de programa televisivo que visa à discussão de
comportamentos, seja familiares ou sociais. Trata-se acima de tudo de verificar como
esses sujeitos anônimos e reais interagem e se relacionam com as demais pessoas.
Evidentemente cada programa adota determinadas estratégias para a sua consolidação
tendo em conta públicos distintos. Em relação aos anunciantes, por exemplo, é possível
perceber que um almeja um público feminino constituído por donas-de-casa e o outro
um público heterogêneo e de variado poder aquisitivo. No entanto, ambos os programas
utilizam os mesmos artifícios: exibir sujeitos “reais” a fim de que eles próprios relatem
(ou vivenciem num palco) suas experiências mais pessoais, seus conflitos, seus dramas
enfim seus “comportamentos” mais íntimos, num espaço público que é a televisão.
Por fim, como exposto na introdução deste trabalho, acreditamos que esses dois
programas, mesmo tendo a finalidade de conquistarem audiências (o que não é
necessariamente um paradoxo, ao contrário de como muitos pensam), tornam-se
bastante significativos do ponto de vista da identificação e consolidação de uma cultura
contemporânea. Através deles, vemos sujeitos “reais”, que se assemelham em muito a
qualquer telespectador, sujeitos que apresentam conflitos familiares, pessoais, que têm
opiniões, idéias, valores parecidos com qualquer outro telespectador. Trata-se
evidentemente num dos mais completos exemplos televisivos que destaca o movimento
reflexivo entre TV e sociedade.
37
2
22
2.
. .
. PRODUÇÃO DE SENTID
PRODUÇÃO DE SENTIDPRODUÇÃO DE SENTID
PRODUÇÃO DE SENTIDO EM
O EM O EM
O EM
PROGRAMAS DE COMPORTAMENTO
PROGRAMAS DE COMPORTAMENTOPROGRAMAS DE COMPORTAMENTO
PROGRAMAS DE COMPORTAMENTO
2.1. Formatos e análise audiovisual
2.1.1. Formatos televisivos
No capítulo anterior, vimos que os dois programas televisivos, Casos de
família e Programa Silvia Poppovic, fazem parte de um mesmo gênero televisivo e que,
a partir da investigação de categorias semelhantes, denominamos ambos de “programas
de comportamento”. No entanto, embora pertençam a um mesmo gênero, eles
apresentam significativas diferenças. A forma como a apresentadora conduz o
programa, o modo de interação dos demais participantes, os objetos presentes no
cenário, a iluminação e as cores etc., são alguns aspectos que estão diretamente
relacionados ao formato, ou seja, às características peculiares de um programa.
Embora seja um termo corriqueiro usado por produtoras audiovisuais, no meio
acadêmico pouco foi discutido sobre o assunto, de modo que a sua definição ainda é
incerta, talvez até mais do que a própria definição de gênero. De qualquer maneira, o
formato de um programa televisivo deve ser investigado a fim de verificar como os
diferentes mecanismos textuais, visuais, sonoros se articulam num processo de
significação.
Aronchi define o formato como “a forma e o tipo da produção de um gênero
de programa de televisão” (2006, p. 8-9). Definição não muito precisa, mas que
demonstra a capacidade de atualização, de uso, dos diferentes gêneros, de modo que um
mesmo gênero pode ser constituído por diversos formatos. O gênero telejornal, por
exemplo, pode atualizar-se com formatos diferentes. Basta comparar rapidamente o
Jornal Nacional da Rede Globo com os outros telejornais da mesma emissora ou de
emissoras diferentes, o resultado mostrará que, por mais parecidos que eles possam ser,
apresentarão significativas diferenças em relação aos usos dos diferentes elementos
verbais, visuais, sonoros, videográficos.
38
Em relação aos programas que intitulamos de “programas de comportamento”,
o autor os classifica de forma bastante equivocada como pertencentes ao gênero
“debate” (2004, p. 143). No texto, Aronchi exemplifica o gênero citando o próprio
Programa Silvia Poppovic, objeto desta pesquisa. No entanto, por falta de um rigor na
análise do conteúdo, o autor não se dá conta de que o debate propriamente dito
raramente está presente no programa, justamente porque todos os sujeitos participantes
comungam a mesma opinião sobre um assunto qualquer (fato que veremos no decorrer
deste trabalho).
Mas, desconsiderando essa discussão proposta pelo autor sobre as
classificações de gênero, ele consegue apontar algumas características relacionadas ao
formato desse tipo de programa ao analisar o antigo programa da mesma apresentadora.
Segundo ele, por exemplo,
o programa Silvia Poppovic (Bandeirantes) desenvolveu uma fórmula
de sucesso, reunindo apresentadora experiente, alguns debatedores
fixos (psicólogos, médicos, artistas) e convidados com currículos
variados, além de ter como pano de fundo o auditório, para eventuais
intervenções.
O programa de debate pode ainda apresentar pequenas reportagens
que ilustram o tema, ou ainda entrevistas com um convidado
principal, que vai debater com um público ou convidados, sempre
com a mediação do apresentador.
A duração do programa é outro elemento característico do formato.
Por se tratar de um gênero que tem a intenção de quase esgotar um
assunto com opiniões distintas, a duração também é mais elástica,
com o mínimo de trinta minutos e até mais de uma hora. A dinâmica
de produção e a variedade dos temas apresentados determinam a
duração (Ibidem, p. 144-145).
Dessa maneira, é certo que o modo como se relacionam os participantes dos
programas, o tipo de mediação realizada pelo apresentador, a presença ou ausência de
pequenas reportagens ou a duração do programa determinam o seu formato. É por isso
que, quando um programa não vai bem, antes de tirá-lo do ar, a equipe decide por fazer
adaptações no próprio formato, de modo a torná-lo mais atraente ao seu público.
Neste trabalho, portanto, temos o objetivo principal de verificar como os dois
programas articulam suas especificidades de linguagens para produzirem diferentes
formatos e, com isso, diferentes sistemas significantes.
Assim, para compreender o processo de textualização audiovisual é preciso, de
início, passar por dois procedimentos de investigação: 1. um primeiro diz respeito à
39
compreensão da própria natureza do objeto, neste caso, a audiovisual e; 2. a partir das
concepções teóricas adotadas, é preciso posteriormente buscar meios de abordar o
objeto.
Trata-se de dois objetivos que requerem uma metodologia capaz de fornecer
um aparato necessário, pelo menos, ao início de uma investigação. Nesse sentido, a
teoria semiótica francesa, método adotado para este trabalho, demonstra uma relação
bastante profícua com a comunicação, como bem têm demonstrado às inúmeras
produções científicas que articulam os dois campos de estudo.
2.1.2. Semiótica sincrética e linguagem audiovisual
Para entender o conceito de linguagem e mais precisamente o de linguagem
audiovisual que aqui será invocado, é preciso resgatar a base da própria teoria semiótica
que deve à lingüística moderna seus principais conceitos.
É do pensamento saussuriano que a semiótica francesa extrai os princípios
fundadores de sua metodologia. Ferdinand de Saussure, em sua obra póstuma publicada
em 1916, intitulada Curso de lingüística geral (1989), inaugura o pensamento
lingüístico moderno marcado pelo caráter binário de seus termos: paradigma e
sintagma; diacronia e sincronia; langue e parole; significante e significado. Sendo que,
desse último par conceitual, o lingüista depreende o conceito de signo. Segundo ele, o
signo é um todo composto pela semiose de um significante com um significado, de
modo que a existência de um pressupõe obrigatoriamente a existência do outro, sendo
indivisíveis. Entende-se por significante, a imagem-acústica do signo e, por significado,
o conceito de caráter semântico que se tem dele, a própria idéia. É essa união de
imagem acústica e de conceito que produz o signo.
Mais tarde, em 1943, Louis Hjelmslev publica a obra intitulada Prolegômenos
a uma teoria da linguagem (2003), na qual ele amplia essa definição dicotômica entre
significante e significado ao afirmar que toda linguagem é formada por dois planos: o da
expressão e o do conteúdo. Assim o significante e o significado de Saussure
equivaleriam, respectivamente, à expressão e ao conteúdo hjelmslevianos, de modo que
a função semiótica é composta obrigatoriamente por esses dois funtivos. Além disso,
“expressão e conteúdo são solidários e um pressupõe necessariamente o outro. Uma
expressão é expressão porque é a expressão de um conteúdo, e um conteúdo é
conteúdo porque é conteúdo de uma expressão” (HJELMSLEV, 2003, p. 54).
40
Hjelmslev diz ainda que “é mais adequado utilizar a palavra signo para
designar a unidade constituída pela forma do conteúdo e pela forma da expressão e
estabelecida pela solidariedade que denominamos de função semiótica” (Ibidem, p. 62).
Além disso, ele propõe uma nova divisão, ampliando os conceitos de Saussure, cujos
desdobramentos são forma e substância. No campo das ciências da linguagem a
expressão e o conteúdo podem ser apreendidos como forma, ou seja, pela semiose
entre as formas dos dois planos. A semiótica tem como objeto de estudo a relação de
pressuposição recíproca entre as duas formas, que são elas que produzem sentido. A
substância fica reservada a outras ciências. Entende-se por substância da expressão e
substância do conteúdo um emaranhado complexo, sem forma, dos diversos elementos
que compõem uma linguagem, que estão coexistindo antes de serem enunciados, antes
de serem formatados por uma forma e; entende-se por forma, uma sistematização, uma
configuração dessa substância; de modo que aquela depende exclusivamente desta, sem
a qual não se pode em sentido algum atribuir-lhe existência.
Na esteira de Hjelmslev, J. –M. Floch desenvolveu seus estudos aprofundando
análises que permitiram uma melhor compreensão teórica. Em suas palavras:
a forma é a organização, invariante e puramente relacional, que
articula a matéria sensível e ou a matéria conceitual de um plano,
produzindo assim a significação. É, portanto, a forma que, para a
semiótica, é significante. A substância é a matéria, o suporte variável
que a forma articula. A substância é pois a realização, num
determinado momento, da forma (FLOCH, 2001, p. 11).
Para esclarecer, na mesma concepção hjelmsleviana, Fechine os define assim:
A substância do conteúdo es identificada, segundo Hjelmslev, às
ideologias e ao conjunto genérico das idéias que circulam
socioculturalmente. A substância da expressão designa, por sua vez a
“matéria” por meio da qual se manifesta uma forma (os sons, no caso
da língua, por exemplo). A função semiótica une uma forma da
expressão com uma forma do conteúdo, de tal modo que não se pode
analisar, em qualquer dos planos, a substância per si. A substância é
resultado da forma. A forma corresponde às oposições, combinações e
relações que produzem o sentido justamente a partir dessa substância,
do conteúdo ou da expressão, “enformada” (2005, p.03).
Desse modo, a concepção de expressão e conteúdo, e sua interação na função
semiótica são fundamentais na estrutura da linguagem, o que permite a abordagem não
apenas da linguagem verbal, mas também da não-verbal (plástica, sonora, gestual etc.)
41
enquanto linguagens formadas pelos dois planos. O quadro abaixo exemplifica como os
dois planos se relacionam na linguagem verbal (língua natural):
Saussure Hjelmslev Linguagem
verbal oral
Linguagem
verbal escrita
Forma Fonema Grafema Significante Expressão
Substância Sons (cadeia
fônica)
Matéria gráfica
Forma Conceitos Conceitos
Signo
Significado Conteúdo
Substância Idéias Idéias
Cabe agora, tratar de outros sistemas sígnicos, talvez mais complexos que os
dois primeiros, mas que ajudam a definir a complexidade da linguagem audiovisual.
São os sistemas sincréticos.
Greimas e Courtés os definem como sendo aqueles que “acionam várias
linguagens de manifestação” (1983, p. 426). Neles, um conteúdo tem o seu plano de
expressão constituído por diferentes expressões, que podem ser de ordem verbal ou não-
verbal. No dicionário II de semiótica, encontramos uma definição corrente hoje de
objeto semiótico sincrético, verbete proposto por Floch, em que caracteriza o plano da
expressão da linguagem sincrética como sendo constituído “por uma pluralidade de
substâncias para uma forma única” (1991, p. 234). Nesse sentido, a forma do plano da
expressão de uma linguagem sincrética deve ser constituída por pelo menos duas
substâncias (a sonora e a visual, por exemplo, no caso do texto audiovisual) articuladas
de modo a produzir uma única forma, cujo conteúdo é um “todo de sentido”.
Mas antes de prosseguirmos nessa orientação teórica, é preciso recorrer às
teorias do cinema, notadamente aos estudos desenvolvimentos pelas vanguardas russas,
cujas bases da produção cinematográfica foram firmadas.
Vsevolod Pudovkin (1991), ao tratar da produção cinematográfica, expõe a
seguinte sucessão fílmica: frame take cena seqüência produto audiovisual,
em que este último é formado por um conjunto de seqüências, que por sua vez é
composto por um conjunto de cenas, que é constituído por um conjunto de takes.
O frame é a menor unidade de um produto audiovisual, trata-se de apenas um
quadro estático, que não obedece à lógica de uma linguagem audiovisual. Na TV, por
exemplo, são exibidos cerca de 30 frames por segundo. A ilusão de movimento do
objeto (mais adiante trataremos desta e de outras categorizações de movimento), que se
42
obtém a partir da projeção de um filme (ou qualquer produto audiovisual), acontece pela
sucessão ordenada de frames. Quando, em qualquer aparelho receptor, apertamos a tecla
pause, a imagem que fica “congelada” é a de um único frame. Assim, pode-se dizer que
um produto audiovisual é constituído por milhares deles.
Evidentemente, em um estudo audiovisual, a análise do frame deve ser
descartada, justamente porque através dele não se “enxerga” o movimento das imagens
e não se ouve o som, aspectos fundamentais nesse tipo de texto. Mas, com as devidas
restrições, podemos recorrer a ele, numa tela pausada, para “enxergar” melhor os
aspectos que, numa “imagem em movimento” acelerado, não conseguiríamos perceber
em sua plenitude.
Um frame isolado talvez seja, nas devidas proporções de composição da
imagem, o que mais se aproxima de uma fotografia ou de uma pintura, que pode
comportar diversos sistemas de linguagens em sua forma da expressão. J.-M Floch,
nesse ponto de vista, avançou os estudos em direção à análise imagética. A maior
parte das obras que tratam do texto sincrético direciona seus enfoques na plasticidade e
na poeticidade de seus sistemas a fim de identificar as relações semi-simbólicas
subjacentes. Em Petites mithologies de l´oeil et de l´esprit (Pequenas mitologias do olho
e do espírito) (1985), por exemplo, Floch analisou fotografia, pintura, história em
quadrinho, arquitetura e publicidade, ou seja, textos que têm o elemento estático como
categoria do planto da expressão do significante plástico, tal como os frames
audiovisuais.
Numa tentativa de compreender essa tipologia textual (pintura, fotografia,
frames etc.), a qual nós denominaremos de visual-estático, para melhor situar o
desenvolvimento deste trabalho, recorremos a uma formulação proposta por A. J.
Greimas (1984) acerca do significante plástico. Em artigo intitulado “Semiótica
figurativa e semiótica plástica”, conceitos como figuratividade, iconização, abstração,
representação, plasticidade, semi-simbolismo, entre outros, tornam-se a base para a
consolidação de uma semiótica visual. Adotando as concepções teóricas realizadas por
Greimas em tal trabalho, sem aprofundar tais definições, e homologando-as ao conceito
de sincretismo de linguagens, propomos um gráfico que visa a ilustrar os componentes
de significação do sincretismo de um texto visual-estático:
43
Constituição do sincretismo visual-estático
Expressão Conteúdo
Categorias
plásticas
Significantes
plásticos
Topológicas
Alto/baixo;
Direito/esquerdo;
Central/periférico;
Cincunscrevente/
Cincunscrito etc.
Cromáticas
Claro/escuro;
Brilhante/opaco;
Focado/desfocado;
Nuança;
Contraste;
Luminosidade etc.
Forma da
expressão
da linguagem
sincrética
Visual
Eidéticas
Horizontal, vertical,
diagonal, quadrado,
circular, oval, curvo,
reto, piramidal,
retangular etc.
Toda
figuratividade
icônica ou
abstrata
referente a
sujeito,
espaço e
tempo:
Pessoas
Sujeitos
Gestos
Expressões
faciais
Cenários
Proxêmica
Objetos
Figurinos
Maquiagem
Perspectivas
Profundidade
Linguagem Sincrética
Forma do
conteúdo da
linguagem
sincrética
Todo de sentido sincrético
Comecemos a explicação pelo termo estático que, intencionalmente, não
aparece no quadro. Como dissemos, uma pintura, uma fotografia ou um frame não têm
movimentos (diferente dos textos que constituem nosso corpus e traremos a seguir), são
objetos estáticos, cuja totalidade dos elementos da expressão “mostram-se”
instantaneamente ao espectador. Embora o tempo de exibição de uma fotografia ou de
um frame (pausado) seja único, o tempo de observação, evidentemente, pode variar de
acordo com o espectador.
De acordo com Greimas, os significantes plásticos de uma imagem (estática)
são de três tipos: topológicos, cromáticos e eidéticos. Qualquer imagem tem a sua
figuratividade composta pela organização dessas três categorias, que são exatamente os
formantes do plano da expressão. Assim, uma figura qualquer pode ser reduzida a esses
três formantes. Como exemplo, numa fotografia (“Um nu de Boubat”), como
teorizado por Floch (1985), os três componentes atuam, a partir de uma certa
organização, de modo a produzir figuras do plano do conteúdo, tais como cabelos, busto
44
e tecido, que são nada além de topologia, formas e cores. De acordo com Greimas, “é a
apreensão simultânea que transforma o feixe de traços heterogêneos num formante,
numa unidade do significante que pode ser reconhecida como a representação parcial de
um objeto do mundo natural” (1984, p. 25). No entanto, essas mesmas figuras do plano
do conteúdo tornam-se, a partir do sincretismo de linguagens, não mais do que a própria
forma da expressão de uma outra linguagem, a sincrética que, no exemplo proposto, tem
no plano de conteúdo o todo do nu de Boubat.
Para concluir, os formantes do plano da expressão de uma primeira
linguagem, a não-sincrética, organizam-se de forma a produzir figuras do conteúdo
relacionadas às categorias de ator, espaço e tempo. Elas podem constituir-se em figuras
a partir de uma figuratividade mais icônica e, assim, ser representativa do mundo
natural, como numa fotografia. Mas elas podem ser constituídas também numa
figuratividade mais abstrata, como, continuando com os exemplos tomados por Floch, a
Composição IV de Kandinsky. De qualquer forma, todas as figuras de conteúdo (de
uma primeira linguagem) como os cenários, os sujeitos, os objetos etc., sincretizam-se
de modo a se tornarem, juntas, a forma da expressão da linguagem sincrética. Desse
modo, os conteúdos dessas figuras isoladamente perdem seus primeiros significados e, a
partir de um procedimento de sincretização, ganham um novo significado, o conteúdo
do texto sincrético. O nu de Boubat não é um cabelo, um busto ou um tecido, nem
mesmo (ou muito menos) a somatória destes elementos, ou dessas figuras de conteúdo;
o nu de Boubat é simplesmente o nu, como um todo, sincretizado e apreendido estética
e estesicamente.
Da mesma maneira, o frame audiovisual pode ser reduzido a essas três
categorias de formantes do plano da expressão: topologia, formas e cores. Como
dissemos, nele não movimento e nem a manifestação do áudio, o que o aproxima, do
ponto de vista da semiose das categorias do plano da expressão com o plano do
conteúdo, de uma fotografia ou de uma pintura. No entanto, diferente destas, cujas
análises começam e terminam no próprio objeto visual-estático, a análise do frame
muito pouco pode contribuir para a investigação do produto audiovisual como um todo.
Isso acontece porque o sincretismo no audiovisual, além de possuir outros formantes em
seu plano de expressão, passa por outros processos de significação, que trataremos
agora.
De imediato uma pergunta se impõe: qual a diferença entre os objetos
sincréticos analisados por Floch e os objetos sincréticos audiovisuais? Para responder à
45
questão, vamos avançar o procedimento adotado até agora, que visa homologar o
conceito de sincretismo de linguagens ao conceito de produto audiovisual, da teoria do
cinema, partindo da compreensão do frame ao take.
De acordo com Comparato, o take pode ser entendido como uma “tomada”,
que se inicia “quando se liga a câmera e dura até que se desliga” (2000, p. 477). Trata-
se, do ponto de vista do observador, da menor seqüência audiovisual sem cortes. É a
junção de vários takes que vão constituir uma cena.
Como dissemos, do ponto de vista da composição da imagem, o frame, visto
de forma isolada, está mais próximo de uma fotografia do que de um produto
audiovisual, que nele não notamos os demais elementos expressivos de uma
linguagem audiovisual (os movimentos e o som). Entretanto, a união de dezenas deles
produz um take, cerca de 30 por segundo. E, concordamos, a partir de agora, que a
ruptura inicia-se, ou seja, é na exibição ordenada de frames que se consolida o
audiovisual, notadamente o take. Em outras palavras, vários quadros estáticos produzem
um take dinâmico, o que não é nenhuma novidade, pois se trata do próprio princípio da
ilusão de movimento de qualquer imagem televisiva ou cinematográfica. De qualquer
maneira, vale a pena verificar como ocorre o sincretismo de linguagens no take e quais
os elementos do plano da expressão devem ser incorporados.
46
Constituição do sincretismo no take audiovisual
Expressão Conteúdo
Categorias Significantes
Topológicas
Alto/baixo;
Direito/esquerdo;
Central/periférico;
Cincunscrevente/
Cincunscrito etc.
Cromáticas
Claro/escuro;
Brilhante/opaco;
Focado/desfocado;
Nuança;
Contraste;
Luminosidade etc.
Eidéticas
Horizontal, vertical,
diagonal, quadrado,
circular, oval, curvo, reto,
piramidal, retangular etc.
Visual-
cinético
Dinâmicas
Ritmado/pausado;
Intensidade/extensidade;
Aceleração/desaceleração;
Contínuo/descontínuo etc.
Toda
figuratividade
icônica ou
abstrata
referente a
sujeito, espaço
e tempo:
Pessoas
Sujeitos
Gestos
Expressões
faciais
Cenários
Proxêmica
Objetos
Figurinos
Maquiagem
Perspectivas
Profundidade
Videografismo
Forma da
expressão
da
linguagem
sincrética
Áudio
Freqüência
Intensidade
Extensidade
Ritmo
Timbre
Entonação etc.
Verbal oral;
Trilha sonora;
Ruído;
Ausência de
som;
Som
ambiente;
Demais efeitos
sonoros
Linguagem Sincrética
Forma do
conteúdo da
linguagem
sincrética
Todo de sentido sincrético
O quadro demonstra o processo de sincretização num take, que apresenta
diferenças substanciais em relação ao frame. Greimas havia denominado três categorias
de formantes plásticos presentes na constituição de uma imagem estática (topológicos,
eidéticos e cromáticos). No entanto, quando observamos uma imagem televisiva ou
cinematográfica, talvez a principal característica seja o movimento que a imagem, ou
apenas alguns elementos, parece exercer. As folhas nas árvores se movimentam, os
sujeitos realizam movimentos com braços, pernas, expressões faciais, os automóveis se
movem, enfim, tudo parece dinâmico, de modo que as demais categorias estão
47
intrinsecamente relacionadas a esta que chamamos categoria dinâmica. Trata-se do
movimento interno de uma cena, dos sujeitos, dos objetos captados por algum
dispositivo.
Esse tipo de movimento interno, o dinâmico, pode ser identificado por
determinadas aspectualizações dos formantes plásticos. Podemos perceber, no plano do
conteúdo, por exemplo, como são suaves os movimentos dos objetos no espaço onde
não gravidade a partir, no plano da expressão, do movimento desacelerado e ritmado
dos objetos voando por conta própria, como no filme “Uma odisséia no espaço”; por
outro lado, podemos perceber a presença invisível da gravidade, no plano de conteúdo,
através do movimento brusco (acelerado, intensificado plano de expressão) da queda
de algum personagem, como corriqueiramente acontece nos filmes Superman; podemos
também verificar como o movimento intensamente acelerado tomando todas as demais
categorias do plano da expressão corresponde, no plano de conteúdo, a idéia de tempo e
causalidade, como no filme “Corra Lola corra”. Enfim, os efeitos decorrentes dos
movimentos dos objetos (sujeitos, cenários, enfim, figuras de conteúdo do mundo
natural) são muitos e variados, apenas uma análise exaustiva das produções poderia
dizer ao certo quais formantes derivam da categoria dinâmica, de qualquer forma, fica
claro a sua necessidade imprescindível para o estudo audiovisual.
Além das categorias dinâmicas, passamos a tratar de um outro tipo de
movimento presente também no take. Trata-se do visual-cinético. No quadro anterior,
sobre o sincretismo no frame, denominamos a substância do plano da expressão de
substância visual. Para tratarmos do sincretismo no take, entretanto, é necessário refletir
sobre essa substância, que inserimos na nomenclatura, não por acaso ou por pura
convenção terminológica, o termo cinético.
No dicionário, encontramos as definições de dinâmico e cinético, termos que
fazem parte do estudo da ciência física. De acordo com o Aurélio, entende-se por
dinâmica a “parte da mecânica que estuda os movimentos dos corpos, relacionando-os
às forças que os produzem” (FERREIRA, 2001, p. 237). E, por cinética ou cinemática, a
“parte da mecânica que se ocupa do movimento, independentemente de suas causas e da
natureza dos corpos”. (Ibidem, p. 154). Desse modo, podemos afirmar que o movimento
dinâmico está diretamente relacionado aos corpos, enquanto o movimento cinético
independe dos corpos. Isso nos leva a concluir que os movimentos dos próprios objetos
(corpos) são os dinâmicos, por isso os denominamos de categorias dinâmicas; os outros
48
movimentos, que independem do movimento dos objetos, fazem parte do visual-
cinético, substância audiovisual.
Mas, afinal de contas, o que é o visual-cinético? Nada mais do que o recorte
visual. Como define Squirra, é a variação dos pontos do espaço a partir dos quais são
captadas as informações a serem transmitidas (1990, p. 60). Em outras palavras, são os
diversos tipos de enquadramentos e movimentos visuais que vão selecionar um conjunto
de elementos constituintes do significante visual. Trata-se de um procedimento cuja
finalidade é recortar, dentro de um campo visual (substância), os elementos
constituintes da imagem. É a partir do visual-cinético que as demais categorias dos
formantes plásticos (topologia, formas, cores e movimento interno dinamismo) são
recortadas e enquadradas constituindo um campo perceptivo. Elas serão visíveis ao
espectador dependendo da forma como serão recortadas. Num programa de televisão,
por exemplo, o telespectador não tem acesso, ou pelo menos em raros takes, à totalidade
do cenário. Só a partir de uma seqüência de imagens que o cenário como um todo vai se
constituindo ao telespectador, mas depende exclusivamente dos tipos de
enquadramentos que são selecionados.
Segundo Squirra (idem, p. 137-140), os planos podem ser divididos em dois
grupos: movimentos óticos e movimentos mecânicos. Estes correspondem à panorâmica
e ao travelling e dão movimento à cena. A panorâmica ou PAN compreende o
movimento no eixo da câmera, sem deslocá-la de seu lugar, ou seja, a câmera capta
imagens da esquerda para a direita, e vice-versa, ou ainda de cima para baixo e vice-
versa, ou misturando os dois casos. o travelling refere-se ao movimento que
compreende o deslocamento tanto da câmera como de seu operador, de um ponto a
outro, imitando o olhar do espectador.
O outro grupo, dos movimentos óticos, aproxima ou distancia os objetos. O
zoom é o principal recurso que seleciona o grau de detalhe da cena; o de aproximação é
o zoom in, e o de distanciamento é o zoom out. A partir deles é possível um série de
enquadramentos, como mostra a imagem abaixo:
49
Além destes recursos, a técnica dos 180 graus, em que uma câmera
focaliza o rosto de um entrevistado e a outra focaliza o entrevistador, de modo que na
edição é possível mostrar o rosto deste no momento em que o outro fala, ou vice-versa.
Este recurso e os demais tipos de enquadramentos podem ser associados ainda à
angulação. O plongée, mergulho” em francês, toma uma cena de cima para baixo; e o
contra-plongée, o inverso.
Desse modo, qualquer produto audiovisual apresenta-se ao espectador através
de um recorte, que o emoldura e lhe concede movimento. Um take em zoom in, por
exemplo, pode ir de um plano geral a um close, dando a sensação de que o espectador
está se aproximando do objeto captado pela câmera; ao mesmo tempo, o próprio objeto
pode estar se movendo. Eis aís, portanto, dois tipos de movimentos que se sincretizam,
os movimentos cinéticos e os movimentos dinâmicos, respectivamente.
Além das categorias dinâmicas e do visual-cinético, uma outra
característica presente no take que não é perceptível no frame. Trata-se da substância
sonora, o áudio. Longe de esgotarmos o estudo sobre os elementos que compõem o som
de um texto audiovisual, propomos alguns aspectos que devem ser considerados para a
consolidação da forma da expressão sincrética de tais textos. Consideramos que as
Plano geral
Plano de conjunto
Médio
American
o
Próximo
Close
50
unidades constituintes do áudio relativas ao plano da expressão dizem respeito à
entonação, freqüência, intensidade, extensidade, ritmo, timbre etc., que, quando
correlacionadas, manifestam no plano de conteúdo os significados do verbal oral, da
trilha sonora, do som ambiente, dos ruídos e até mesmo da ausência de som.
Assim, o sincretismo no take, unidade mínima que concentra as principais
características de uma linguagem audiovisual, carrega consigo duas substâncias, a
visual-cinética e a sonora, sendo que ambas adquirem existência semiótica quando seus
elementos (expressão e conteúdo) sincretizam-se constituindo a forma da expressão da
linguagem sincrética do take. Em outras palavras, as categorias da expressão visual-
cinética (topologia, formas, cores e movimentos dinâmicos) sincretizam-se entre si e
entre os demais componentes sonoros. Dessa forma, seus conteúdos primeiros anulam-
se ou perdem parte de seus sentidos iniciais e adquirem uma nova existência semiótica
no momento em que se tornam expressão de um conteúdo novo e único, o do take.
Desse modo, portanto, o conteúdo não está no conteúdo da trilha sonora, no conteúdo
do verbal oral, tão pouco no conteúdo proveniente das figuras icônicas ou abstratas, mas
está na sincretização dos planos da expressão desses conteúdos.
Tratamos até agora de duas distintas modalidades significantes de um produto
audiovisual, o frame e o take, e de seus elementos que se sincretizam na produção de
sentido. No entanto, ainda não tratamos do sincretismo do próprio produto audiovisual,
que na concepção de Pudovkin (1991), é entendido pela somatória das demais
modalidades (seqüências, cenas). Sendo assim, do ponto de vista da expressão da
linguagem sincrética, um outro elemento é indispensável para a compreensão da idéia
de linguagem audiovisual. Trata-se não mais dos takes, mas da ligação de um take a
outro, o que produz as cenas e as seqüências, é a própria continuidade.
Analisar um produto audiovisual implica em analisar a sua continuidade. Não
basta investigar cada take isoladamente, mas verificar como eles se articulam na
composição de uma cena e de uma seqüência. Implica necessariamente responder por
que um determinado take está justaposto em uma determinada lógica e não em outra.
Recorremos a um exemplo bastante corriqueiro para tornar isso mais claro.
Imaginemos uma cena com apenas dois takes: take 1- um homem com um olhar aflito e
take 2- um disparo de revolver. Se a continuidade for na ordem 12, teremos a
impressão de que o homem foi a vítima; mas se a continuidade for na ordem 21,
acreditaremos que o homem foi apenas testemunha ocular. Isso mostra obviamente que
51
dois takes podem produzir cenas com sentidos completamente diferentes, dependendo
da ordem de montagem.
Desse modo, o sincretismo do produto audiovisual apresenta esse outro
dispositivo, que ordena o visual-cinético do plano da expressão. A continuidade é então
entendida como um elemento visual que pode contribuir para os mais variados efeitos
de sentidos, inclusive para dar uma nova sensação de movimento. Se assim for, três
efeitos de movimentos estariam presentes numa cena: os dinâmicos (movimentos dos
objetos), os cinéticos (movimentos de câmera) e os movimentos decorrentes da
continuidade (pela quantidade de cortes presentes num determinado tempo). Num
videoclipe, por exemplo, os cortes muitas vezes estão em perfeita sincronia com a
música, dando visualidade à própria sonoridade. É preciso ainda fazer uma observação:
A continuidade engloba apenas os elementos visuais, não os sonoros, que podem
perfeitamente sobredeterminar um corte e outro, até mesmo uma cena e outra.
2.1.3. Análise de programas de comportamento
Nessa perspectiva, nos estudos da semiótica sincrética, sobretudo de um texto
audiovisual, uma problemática, apontada por Floch, impõe-se: como são realizados
os procedimentos de sincretização de um texto? A questão gira em torno do modo como
essa multiplicidade de linguagens em interação se efetiva no processo final de
significação produzindo um todo de sentido, investigando como essas diferentes
linguagens em manifestação interagem, sobredeterminam umas às outras, anulam-se,
contrastam-se e produzem sentido.
Ao conceber o texto sincrético como um todo de sentido, a discretização dos
diferentes elementos pode acarretar num paradoxo. Nos textos audiovisuais o verbal
escrito permanece verbal escrito, a música não se confunde com o som do ambiente, o
videografismo difere das imagens que fazem referência ao mundo natural, enfim, cada
uma das linguagens presentes no texto sincrético mantém suas características sistêmicas
mesmo estando em relação com outras linguagens. Nesse sentido, como dizer que tais
textos constituem um todo de significação?
Em resposta a essa questão, seguindo a perspectiva hjelmsleviana de
sincretização textual, Médola aponta uma elucidação:
Quando nos referimos às diferentes linguagens estamos tratando da
forma do plano de conteúdo, unidade plena, semantizada. Estas
52
linguagens estão discretizadas na forma, estão articuladas umas com
as outras, e são apreendidas pelo inteligível. É também a percepção
inteligível que apreende a substância do conteúdo, isto é, as idéias, os
conceitos transmitidos, que sincretizados, uma vez que o texto,
mesmo sincrético, constitui um todo de significação. No plano da
expressão, a substância enquanto matéria sensível está sincretizada, e
quando tomada por uma forma, está discretizada em unidades
mínimas abstratas, não-semantizadas, que são apreendidas pela
percepção sensível. (...) A análise semiótica não considera as unidades
significantes de maneira isolada, e sim as relações que elas
estabelecem entre si (2006, p. 7-8).
A partir dessa consideração, para compreensão desse procedimento de
sincretização, é preciso atentar para o que Floch diz sobre “uma estratégia global de
comunicação sincrética que administra o contínuo discursivo” (Greimas e Courtés,
1991, p. 234). Nas palavras de Fechine, “na busca de descrição de tais procedimentos é
preciso, antes de mais nada, resistir à tentação de identificar e ‘separar’ os enunciados
verbal, visual, gestual ou musical, entre outros, para analisá-los isoladamente e, depois,
correlacioná-los” (2005, p. 03). É preciso, portanto, identificar as relações de
interdependência que constroem um enunciado único, pleno de sentido.
No entanto, acreditamos que devemos ponderar o que Fechine recomenda
mesmo estando ela ancorada no texto de Floch. Numa análise de um texto sincrético,
podemos, primeiramente, identificar os elementos que produzem sentido, já que analisar
pressupõe investigar os traços constitutivos de um texto. Obviamente que, seguindo sua
orientação, é preciso tomar cuidado para não ferir a enunciação única constituinte de um
texto sincrético. Nesse sentido, vale a pena pensar sobre os procedimentos de análise de
um texto sincrético adotados por Médola.
Chamamos a atenção para a complexidade da manifestação televisual
com a possibilidade de inscrição de diferentes sistemas semióticos e a
necessidade do analista identificar as linguagens presentes no texto.
Embora o que interessa à semiótica sejam as relações que as
linguagens estabelecem na geração de sentido, perceber os tipos de
manifestações presentes na textualização facilita ao analista chegar ao
modo como as diferentes linguagens estão colocadas em relação.
Argumentamos que reconhecê-las no texto facilita detectar os arranjos
sincréticos do plano da expressão para então refletir sobre os efeitos
obtidos no plano do conteúdo.
Identificar esses sistemas é um procedimento inicial em função da
necessidade de operacionalização da abordagem em um texto
sincrético. A etapa seguinte consiste em verificar como um sistema de
linguagem está em relação com o outro, o que um faz com o outro.
Por exemplo: o verbal retoma o visual, nega, contradiz, ilustra?
Somente as estratégias de sincretização utilizadas pela enunciação é
53
que vão determinar isso em cada texto. E quando semiotizamos os
arranjos sincréticos tratamos como formas e substâncias da expressão,
o que complica o trabalho de análise, uma vez que potencializa a
pulverização dessas combinatórias, dificultando tangenciar a
totalidade das articulações textualizadas. Temos aqui um problema
que somente será transposto com o avanço teórico e metodológico na
abordagem do texto sincrético a partir do plano da expressão (2002, p.
142).
Ressaltadas as problemáticas que envolvem a textualização sincrética, Médola
admite, num primeiro momento da análise, a possibilidade de uma segmentação e de
uma identificação dos diferentes elementos que compõem um texto sincrético. Num
segundo momento, é necessário correlacionar as diferentes linguagens, verificando a
natureza de suas relações para, finalmente, elencar os sentidos decorrentes das
implicações sincréticas. Todavia, a autora ainda admite a deficiência dos procedimentos
teóricos e metodológicos para a investigação de um texto audiovisual, constituído por
uma pluralidade de substâncias de expressão.
Sem desconsiderar o aparato conceitual da semiótica-sincrética, mas
multiplicando os enfoques de abordagens, Fontanille (2005), na esteira de Greimas,
menciona que a primeira operação necessária à análise é a segmentação da semiótica-
objeto (o texto). Não se trata de uma segmentação das diversas linguagens que
compõem um texto audiovisual analisando-as separadamente, mas da divisão de
determinada produção em partes ou no que ele chama de “seqüência”.
A maioria dos textos fornece, graças a um conjunto de elementos codificados,
elementos indispensáveis à sua leitura. Segundo ele,
no interior de gêneros determinados, a combinação desses diferentes
elementos permite reconhecer e distinguir alguns segmentos-tipo,
como no romance, a descrição e o diálogo; ou no teatro, a troca verbal
e as indicações dramáticas; ou ainda, no artigo da imprensa, o título, o
chapéu, os subtítulos e as colunas (FONTANILLE, 2005, p. 125).
Seguindo essa orientação, que veremos sistematizada a seguir, bem como o
aparato metodológico da semiótica francesa, nosso trabalho leva em consideração a
possibilidade de segmentar o texto em partes, evitando ao máximo ferir a enunciação
sincrética. Nos próximos itens deste capítulo, demonstraremos alguns princípios de
análise de programas televisivos.
Para realizar a análise empírica do nosso objeto de pesquisa, privilegiamos a
concepção de formato, ou seja, os aspectos recorrentes de um determinado programa.
54
Para tanto, tomamos como corpus as quatro edições de cada programa (Casos de
família e Programa Silvia Poppovic) evidenciadas no início deste trabalho:
Os temas das edições do programa Casos de família são: “Ele tem vergonha de
me apresentar para a família dele” (26/06/2006), “Só você não percebe o quanto é
esquisito” (08/06/2007), “Minha mãe morre de ciúmes da minha sogra” (16/01/2008) e
“Você não aceita a minha condição sexual” (24/01/2008). Quanto ao Programa Silvia
Poppovic as edições o: “Assédio sexual no trabalho” (24/11/2005), “Ejaculação
precoce” (01/12/2005), “A difícil tarefa de encontrar a alma gêmea” (30/03/2006) e
“Violência praticada pelos jovens” (06/06/2006).
Dividimos a análise em duas etapas, salientando duas dimensões do objeto. A
primeira (A dimensão narrativa/discursiva de programas de comportamento) trata-se de
uma investigação detalhada dos aspectos relativos ao formato dos programas. Dividida
em três subtítulos (1. composição audiovisual, 2. composição narrativa-actorial e 3.
composição do estilo visual) que visa a mostrar como são articuladas as especificidades
de linguagens de um texto sincrético. A segunda parte (A dimensão patêmica de
programas de comportamento) tem por objetivo compreender como essas
especificidades de linguagens se articulam num processo final de significação,
produzindo sentidos e conquistando seus telespectadores.
55
2.2. A dimensão narrativa/discursiva de programas de
comportamento
Para compreender o formato de programas de comportamentos, realizamos
três etapas de análise:
1. Composição audiovisual - as seqüências genérica, de conteúdo e de
encerramento demonstram como se constrói um texto a partir da justaposição de
elementos audiovisuais. O objetivo é mostrar como os formatos televisivos são
constituídos e como as diferentes seqüências são apreendidas pelo telespectador;
2. Composição narrativa-actorial - neste item procuramos entender como são
articuladas as tramas narrativas dos programas de comportamento, a fim de verificar a
relação entre sujeitos e objetos e os temas presentes no discurso;
3. Composição do estilo visual por fim, examinamos as formas como são
dispostos os atores em cena, investigando a proxêmica e os efeitos expressivos do
cenário, bem como de todo o significante plástico.
2.2.1. Composição audiovisual
Como dito anteriormente, a segmentação do objeto por partes e não por
linguagens pode ser um caminho seguro para a análise audiovisual. A tarefa de
compreender a composição audiovisual, ou seja, o conjunto dos procedimentos que
sincroniza as linguagens englobantes (visual/sonora), quando homologada com a
segmentação do texto, que ocorre de acordo com o próprio desenrolar do texto, pode
contribuir na perspectiva de um método de análise.
Sendo assim, os dois programas de comportamento que fazem parte do corpus
deste trabalho foram segmentados para análise em três seqüências: 1. genérica, 2. de
conteúdo e 3. de encerramento. A primeira trata do início de um programa e busca
identificar as promessas que envolvem enunciador e enunciatário; na segunda, busca-se
compreender como os programas estruturam seus conteúdos e qual a relação que se
estabelece com o telespectador; por fim, na terceira seqüência, é o momento de fazer um
balanço dos atos enunciativos propostos inicialmente.
56
Seqüência genérica
Ao pensar a complexidade do início de uma emissão de televisão que agrega
diferentes elementos e situações, Fontanille o define como seqüência genérica. Em suas
palavras, trata-se do “conjunto da seqüência que precede o início de uma emissão
propriamente dita, isto é, o primeiro plano da cena ou da filmagem em condições de
excelência do desenvolvimento da emissão” (2003, p. 123). Trata-se, em suma, dos
segmentos do início de uma transmissão, basicamente daqueles que se repetem sempre
que houver a emissão do programa, compondo uma característica fixa do próprio
programa.
Nesse momento inicial, organizado para conduzir o telespectador “pelas
mãos”, a complexidade da seqüência instaura determinados “atos de enunciação”, que
têm por finalidade propor, anunciar ou prometer algo (sobre o conteúdo). Através deles,
ficam presentes os valores que apontam a maneira como o telespectador vai apreender o
desenvolvimento da emissão.
Fontanille (idem, p.125-130) estabelece cinco tipos de segmentos da seqüência:
1. telas-título, 2. genérico stricto sensu, 3. aparição do animador, 4. sumário e 5.
introdução. As telas-título apresentam a denominação da emissão, que podem ocupar a
seqüência genérica inteira ou limitar-se a um único plano. O genérico stritu sensu é uma
tela-título desenvolvida que pode acolher especialmente o nome do realizador e do
animador. Essas duas primeiras geralmente apresentam animação visual e podem ser
entendidas como a própria vinheta de um programa. A aparição do animador também
faz parte da seqüência que pode ser colocada antes mesmo do início da emissão. O
sumário é o momento em que convidados, sujeitos ou reportagens são evocados. E, por
fim, a introdução é quando o conteúdo da emissão é evocado.
A partir dessa segmentação, Fontanille (Idem, p. 130-139) formula uma
hipótese segundo a qual a seqüência genérica da televisão solicita quatro dimensões que
evocam a emissão de acordo com a estratégia adotada: 1. conceito, 2. conteúdo, 3.
regime de crença e 4. papel do animador. O conceito é o conjunto de regras que define,
ao mesmo tempo, o desenvolvimento da emissão e os atos enunciativos dominantes do
programa. O conteúdo é o conjunto das temáticas a propósito das quais se aplica o
conceito. “O conceito é estável de uma emissão a outra e caracteriza um programa,
ainda que os conteúdos caracterizem cada emissão de um mesmo programa”. O regime
de crença determina o modo como o programa deve ser recebido pelo telespectador,
57
evoca as expectativas de ordem narrativa e emocional. Por fim, o papel do animador diz
respeito à sua função no desenrolar do programa.
Dessa forma, a diversidade de possibilidades combinatórias desses elementos é
significativa do ato de enunciação dominante e dos valores propostos aos espectadores.
Ou seja, a articulação dos tipos de segmentos da seqüência genérica com as dimensões
evocadas aciona determinados atos enunciativos. Em síntese, “a seqüência genérica
gerencia a entrada da emissão. Essa entrada é um reconhecimento progressivo do
conceito, do regime de crença, do conteúdo e do papel do animador, graças à
distribuição dos segmentos-tipo que sustentam essas diferentes dimensões” (idem, p.
141). Vejamos como ocorre nos programas deste trabalho.
Casos de família
Neste programa, pela combinação dos diferentes elementos temos a seguinte
seqüência genérica: introdução
genérico stricto sensu e tela-título (vinheta)
aparição do animador.
O programa Casos de família se inicia mesmo antes da vinheta de abertura,
quando a apresentadora introduz o tema da emissão, é a introdução. A seqüência abaixo
mostra esse momento que tem cerca de 30 segundos de duração construído por um
efeito de zoom in que vai de um plano americano a um plano próximo, sem cortes.
Áudio
Sua amiga tem um bom emprego e um salário razoável, mas, mesmo assim, sente vergonha do
que faz. Ela diz que se sente humilhada porque tem que usar uniforme e que lidar com o público é muito
desagradável. Você acha que ela deveria se orgulhar do trabalho que tem, que é honesto, e pensar que é
com ele que ela consegue viver dignamente. Você não pode ter vergonha do seu trabalho é o nosso tema
de hoje.
Vídeo
Embora seja a apresentadora quem introduz essa abertura, não se trata ainda de
sua aparição no programa, que se dará preferencialmente num outro momento, com uma
mise-en-scène específica, como a dos estereótipos que acentuam a entrada de um
animador num programa de auditório. De qualquer forma, esse trecho inicial evoca a
emissão pelo conceito, conteúdo e regime de crença.
58
O conceito assemelha-se muito à noção de formato, é o que caracteriza a
identidade de um programa, ou seja, as marcas visuais, narrativas, discursivas que são
recorrentes. Nessa introdução fica muito claro a idéia de que o programa destina-se a
um público feminino, corroborando com os objetivos dos próprios anunciantes do
programa. Trata-se de uma apresentadora introduzindo o programa e um cenário que
remete à decoração de uma casa. Além disso, a introdução evidencia o caráter de
discussão temática que instaura os valores em jogo (não se pode ter vergonha do
trabalho). Soma-se a isso o conteúdo, que é justamente o tema da emissão. Através de
sua evocação, estabelece-se o que a emissão vai trazer de concreto ao telespectador.
Em relação ao regime de crença, o zoom in e o olhar direto da apresentadora
para a mera estabelecem uma afinidade entre esta e o telespectador, que “se
aproximam” e “olham-se”. Neste momento, a produção de um ato enunciativo que
gera um efeito de confiança, de cumplicidade, no momento em que a apresentadora
“recebe” o telespectador em sua casa. Efeitos que serão reconhecidos e resgatados
sempre que a figura da apresentadora intervier.
Por fim, é pelo regime de crença que se estabelecem os valores em jogo e o
modo como eles devem ser “lidos”, concordando ou discordando, assumindo como
seus, identificando-se ou não. Nesse sentido, há a consolidação de um contrato patêmico
entre apresentadora e telespectador, em que este tem um saber-fazer e um saber-ser que
podem ser colocados em prática durante o programa. A valorização do saber do
telespectador é evidente graças à oposição de idéias presente na introdução, é ele que
vai decidir “em quem acreditar” e em quais valores se apoiar.
Após a introdução, aparece a vinheta seguida da tela-título (genérico strictu
senso) do programa:
Áudio
Música
Vídeo
As figuras de conteúdo presentes nela conduzem a uma isotopia temática da
/mulher dona-de-casa/ e da /mulher moderna/, que deve ser capaz de trabalhar dentro e
59
fora de casa, de cuidar dos filhos e ainda de cuidar-se de si mesma, temas novamente
sugeridos pelos anúncios do programa. Embora, essas figuras não estejam todas
representadas nas imagens acima, pela vinheta é possível ver cenas da apresentadora
realizando atividades do dia-a-dia, tais como, cuidar da casa e dos filhos, passear com
cachorro, fazer exercícios, fazer compras e sair para trabalhar. Na realidade, todas essas
figuras têm a finalidade de estabelecer uma aproximação entre apresentadora e
telespectador, contribuindo para um efeito de identificação que leva o enunciatário a se
inserir num mesmo sistema de valores que o do enunciador no momento em que ambos
compartilham das mesmas práticas sociais. Trata-se, evidentemente, de um ato
enunciativo que leva a um efeito de intimidade, notadamente passional entre os sujeitos
enunciativos. Enfim, mais um ato relacionado ao regime de crença, já que há um
compartilhamento de uma suposta intimidade vivida pela apresentadora, conferindo um
laço afetivo com o telespectador.
Sem entrar nos detalhes dos elementos figurativos da vinheta, a última cena
mostra uma inversão de papéis. Num primeiro momento, é evidenciada a vida comum
da apresentadora realizando atividades corriqueiras; num segundo, o que é evidenciada
é a vida do telespectador, que pode se tornar um dos “casos” do programa. A
apresentadora e a câmera voltam-se ao telespectador, delegando a ele o papel de
enunciador, fazendo menção ao fato de que ele pode levar a sua vida à televisão.
Obviamente isso é mais um efeito de sentido, pois não interatividade no
sentido de participação efetiva do enunciatário. Mas, mesmo assim, um
compartilhamento de intimidades. A apresentadora exibe ao telespectador a sua vida
íntima, cotidiana, real (mais um efeito de sentido, claro!), depois, este é convidado a
exibir a sua própria vida. E duas possibilidades: a primeira é virtual, o telespectador
pode identificar-se com os temas e com os assuntos do dia, pode compartilhar das
opiniões e idéias apresentadas no programa; e a segunda é real, o próprio telespectador
pode, num outro momento, ser protagonista e ir ao programa relatar a sua própria vida.
Após a aparição da tela-título, tem-se o momento inicial do programa com a
aparição da apresentadora:
Áudio
Olá! Bem vindos ao nosso programa. E a nossa primeira convidada de hoje é a Carina que
está com 18 anos e diz: a Andréia morre de vergonha das fantasias que precisa usar para divulgar os
produtos no supermercado. Tudo bem Carina?
Vídeo
60
No primeiro quadro, um plano geral que centraliza a apresentadora
envolvida por duas câmeras, que se abrem como uma cortina de teatro simultaneamente
a um efeito de zoom in, aproximando a apresentadora, até focá-la num plano próximo.
Há novamente uma aproximação entre telespectador e apresentadora, mas agora o que é
evidenciado é o seu papel de animadora do programa. Trata-se de um ator que gerencia
o andamento da emissão, fazendo a mediação entre platéia, convidados e telespectador.
Literalmente ela está “atrás das câmeras” que só se abrem para, certamente, focalizarem
as verdadeiras vedetes que vão contar suas histórias de vida (a própria disposição do
cenário vai corroborar com essa interpretação).
Ao final dessa seqüência, o fim da embreagem que liga as duas instâncias
enunciativas, encerrando o momento de acolhimento do telespectador ao programa. É o
início da emissão com a primeira entrevista.
Programa Silvia Poppovic
Diferente do outro programa, neste a introdução mantém-se no final da
seqüência genérica, o que concede destaque à figura do animador, que intitula o próprio
programa: tela-título (vinheta)
aparição do animador
introdução
A vinheta de abertura representada abaixo evidencia o nome da apresentadora
que título ao programa. “Poppovic” aparece em matiz azul que vai se contrastando
com o fundo também azul até compor o restante do nome. Os efeitos luminosos
destacam ainda mais o nome da apresentadora.
Áudio
Música
Vídeo
61
Na realidade a constituição de um símbolo que remete ao conceito.
Fontanille já atentara para isso:
O título é portador do conceito, da mesma forma como um plano da
expressão é portador de um plano do conteúdo em uma semiótica
não-convencional (...). Trata-se, assim, de uma relação semiótica do
tipo simbólico (o título de uma emissão não pode se opor a um outro
para formar um sistema semi-simbólico), mas essa relação simbólica
carece ser sustentada por algum tipo de uso ou convenção (idem, p.
155).
O formato de programa apresentado por Silvia Poppovic tornou-se, a partir do
uso, uma marca registrada da apresentadora, repetindo-se em todos os seus programas.
Desse modo, o nome dela como título do programa evidencia o próprio conceito, que
diz respeito a um programa temático, com discussão, debate, presença de especialista
etc. Além disso, se denuncia a vedete do espetáculo, a própria Silvia Poppovic, que
deixa a posição de apresentadora, de entrevistadora ou de jornalista para assumir o papel
de protagonista.
Após a vinheta de abertura, do alto, uma câmera estanque toma o cenário em
plano geral e plongée. A apresentadora Silvia Poppovic é flagrada entrando no cenário
por detrás do espaço ocupado pela platéia, até ser tomada por uma outra câmera em
plano de conjunto (imagem 4), como mostra a seqüência abaixo.
Áudio
Palmas da platéia
Vídeo
No outro programa, há uma tentativa de conceder destaque ao telespectador: na
própria vinheta, uma câmera volta-se a ele, como já demonstramos; e o papel da
apresentadora resume-se, na maior parte do programa, a acolhê-lo e a direcionar o
conteúdo (certamente esse destaque ao telespectador é apenas um efeito de sentido
inscrito no enunciado que não interatividade feedback ou retorno ao vivo por
parte do telespectador).
62
Neste outro, no entanto, não há, ou pelo menos acontece em freqüência menor,
uma aproximação entre telespectador e apresentadora no momento inicial, de modo que
não podemos falar em “acolhimento”. Silvia Poppovic torna-se a própria vedete: 1. é ela
quem o tulo ao programa; 2. sua entrada no cenário é aguardada pela platéia, que a
recebe com palmas, e pelo telespectador; 3. as luzes só se acendem no momento em que
a apresentadora surge no cenário; 4. como mostra as três primeiras imagens da
seqüência, a visão do telespectador é distanciada no momento em que a apresentadora
surge no cenário, a sua função é apenas de observar o espetáculo; 5. para a passagem do
último quadro da seqüência, um corte e outra câmera toma a apresentadora em plano
de conjunto, sem zoom para aproximar. Tudo isso, demonstra a ênfase concedida à
apresentadora, que, em contrapartida, dificulta um efeito de sentido que daria mais
destaque ao telespectador.
Após a aparição do animador, a apresentadora é tomada em plano médio para
a introdução. É o início da apresentação do tema do dia, que dura cerca de 1 minuto:
Áudio
Nosso assunto de hoje é um assunto muito, muito, muito importante. Nós vamos ta falando de
assédio sexual no trabalho e a boa notícia é que assédio sexual no Brasil é crime. Nós somos o primeiro
país no mundo a ter uma lei desse tipo e não é pra menos. Milhares de brasileiros o vítimas dessa
violência. A grande maioria é mulher, mas o homem também é assediado. Apesar da lei, as denúncias
ainda são raras e com tanto desemprego as pessoas ficam com medo de serem demitidas, então elas não
vão procurar a justiça. Os assediadores, de outro lado, se aproveitam e fazem a festa e quando percebem
que a vítima não vai ceder partem pro um outro tipo de ataque, que é o chamado assédio moral. Então se
a moça fica insistindo em dizer não pra ele sexualmente, aí ele começa a gritar com ela, começa a
assediar moralmente e isso ta começando auma nova área do direito, s vamos ta falando disso aqui
no programa hoje. Nós apuramos que mais da metade das trabalhadoras brasileiras foram assediadas.
Vamos ver.
Vídeo
Com pouca mudança de enquadramento durante a introdução, o que prevalece
é um plano médio, a partir do qual a animadora introduz o tema da emissão. Sem
estabelecer uma interlocução direta com o telespectador (não há acolhimento, há poucos
cumprimentos, sendo que neste caso específico não houve nenhum), o regime de crença,
modalidade que determina as expectativas do telespectador, aciona, pela introdução, um
querer-saber quase desprovido do componente afetivo.
63
Evidentemente, dispositivos passionais: uma memória intertextual que
faz o espectador também se interessar pelo programa pelo fato de reconhecer a figura da
apresentadora; uma passionalidade presente no próprio conteúdo do assunto tratado
etc. Mas, mesmo assim, o programa enfatiza contratos cognitivo e pragmático entre os
sujeitos enunciativos, evitando discursos mais sensibilizados, como os do outro
programa. Assim, o tipo de contrato firmado diz respeito ao fato de que o espectador
poderá adquirir um saber se acompanhar o desenrolar da emissão. Vale ressaltar que o
saber aqui é apenas destinado de uma enunciação dominante (representada pela
apresentadora) em direção a uma enunciação dominada (o telespectador), o que reforça
seu caráter informativo, percebido pelo seu conteúdo de engajamento social.
A tabela seguinte sintetiza os aspectos principais das dimensões da emissão
dos dois programas.
Seqüência genérica
Dimensões Casos de família Programa Silvia Poppovic
Seqüência genérica introdução
tela-título (vinheta)
aparição do animador
tela-título (vinheta)
aparição do animador
introdução
Conceito Programa voltado ao público
feminino/
temática familiar
Silvia Poppovic - programa
temático, de comportamento,
com discussão, debate,
presença de especialista etc.
Conteúdo “Você não pode ter vergonha do seu
trabalho”
“Assédio sexual no trabalho”
Regime de crença Saber-fazer e saber-ser
Contrato patêmico
Valorização do telespectador
Querer-saber
Contrato pragmático
Valorização da apresentadora
Papel do animador
25
Animador-controle Guia/participante
Seqüência de conteúdo
Como o próprio nome diz, a seqüência de conteúdo está diretamente
relacionada ao conteúdo do programa, especificamente ao modo como ele é organizado.
Trata-se do momento posterior à seqüência genérica em que os assuntos e os
convidados do dia ganham destaque.
25
Fontanille enumera alguns papéis de animadores, entre eles o animador-controle e o guia/participante.
O primeiro lança os assuntos, suscita as intervenções em cena, faz as transições entre os diferentes tipos
de segmentos. O segundo é uma instância de representação simbólica ou metonímica do universo inscrito;
ele valida, cauciona e representa os conteúdos propostos, valores os quais ele assume em sua própria
personagem.
64
No entanto, é preciso ponderar e restringir apenas ao programa e não à
emissão, ou seja, deve-se levar em conta o caráter de recorrência entre as várias
emissões de um mesmo programa, aquilo que se repete e a forma como se repete. Ou
seja, num programa televisivo os assuntos do dia, o momento em que cada convidado
pode falar, a forma como a apresentadora conduz o programa, tudo isso obedece a
determinados critérios que, de uma emissão a outra, tornam-se regulares e não se
alteram mais, caracterizando o próprio formato. Portanto, a modo como o conteúdo é
desencadeado, de forma ordenada, é o que denominamos de seqüência de conteúdo.
Do mesmo modo que é possível segmentar a seqüência genérica, a seqüência
de conteúdo também pode ser segmentada. Na realidade cada semiótica-objeto vai
elencar um conjunto de mecanismos estruturantes, de modo que uma análise
sistemática de diferentes programações poderá enumerar categorias englobantes. Aqui,
embora o corpus seja reduzido a dois programas, é possível traçar alguns segmentos-
tipo dessa seqüência que podem ser obviamente transpostos a outros programas.
São três os segmentos-tipo que recorrem nos dois programas: 1. aparição dos
convidados, 2. aparição do especialista e 3. aparição da platéia. Cada um desses
segmentos aciona determinadas dimensões que dizem respeito ao programa, tais como,
papéis dos participantes, modos de discussão e estabelecimento de regime de crença.
Casos de família
A seqüência de conteúdo deste programa é estabelecida na seguinte ordem:
aparição dos convidados aparição da platéia aparição do especialista
O momento das entrevistas com os convidados corresponde a quase totalidade
do programa e acontece de forma sucessiva, entra no cenário um convidado por vez. O
principal recurso de câmera empregado são os cortes em plano próximo, sem zoom, que
acompanham o áudio da apresentadora e dos entrevistados. O primeiro convidado é o
único que já está posicionado em sua poltrona no início do programa:
Áudio
Regina - Tudo bem, Carina?
Carina - Tudo bom.
Regina - A Andréia então é promotora de vendas?
Carina - Isso.
Regina - Ela fica lá no supermercado dando aquelas coisas que a gente gosta de provar?
Carina - Isso.
Regina - E por que que ela tem vergonha disso?
Carina - Pelos tipos de uniformes que ela tem que usar...
Regina - Como assim?
65
Carina - É porque ela o gosta dos modelos dos uniformes, pra ela não ta de bom gosto o modelo do
uniforme...
Vídeo
Todas as entrevistas com os convidados são realizadas em planos próximos,
com perguntas curtas e respostas curtas. Dessa maneira, pelos rápidos cortes que
enquadram apresentadora e convidados adquire-se um dinamismo da cena do ponto de
vista do telespectador.
Na segunda entrevista, a apresentadora chama o convidado para o palco. Neste
momento, um outro recurso empregado, que o efeito de um plano geral que
termina num plano próximo. A entrada da convidada é acompanhada por uma câmera
em plano geral, trata-se de uma panorâmica. Após um corte, uma outra câmera resgata a
cena em plano médio e fecha no convidado, até o plano próximo com zoom in. Nesta
entrada, o áudio mantém apenas o som de palmas da platéia, até dar início à entrevista
em planos próximos. E assim o programa segue até todas as duplas serem entrevistadas.
Vídeo
A participação da platéia ocorre em dois momentos: 1. logo após uma dupla ser
apresentada, quando a apresentadora permite que apenas um participante da platéia faça
uma pergunta ou comentário e 2. quando todas as duplas se apresentaram. Neste
último caso, três ou quatro integrantes da platéia se manifestam.
Áudio
Platéia –
É...fala uma coisa pra
mim. Se você trabalha,
se você ganha o seu
dinheiro honestamente,
por que ter vergonha
Regina –
É um trabalho de atriz!
Regina –
Quer responder
Andréia?
Entrevistada -
Respondo. Eu posso
muito bem ganhar o
mesmo dinheiro que eu
ganho ou mais sem ter
que por esses
66
dos uniformes? Você
tem que pensar só na
criatividade, que você
vai ganhar o seu
dinheiro pra ter o seu
sustento, ter tua vida.
uniformes, assim como
tem muitas pessoas que
ganham dessa forma,
sem ter que por
uniforme nenhum.
Vídeo
Por fim, após a manifestação da platéia, é a vez do especialista fazer seu
comentário:
Áudio
Regina - Diga, Dr. Ildo!
Especialista - Bom, acho que tem uma coisa bem legal colocada por todos vocês que talvez
valesse a pena, Andréia, você perceber uma coisa: você está com o balde na cabeça, sem o balde, isto ou
aquilo, se você se posiciona como profissional, você não sente o que vovem a sentir. que você nega
a sua condição de profissional, ai a sua pessoa aparece. A impressão que tem é que você ta na loja, lá no
supermercado, pagando o maior mico do mundo, mas as pessoas estão te vendo como profissional,
elas sabem que não vai pra casa, que não vai usar o balde, roupinha isso, roupinha aquilo. Mas quando a
pessoa se porta com dignidade, ela é respeitada. Agora, quando ela mesma não se aceita, ela abre
margens pra brincadeiras sem graças, pra piadinhas, porque o outro olha e o desconforto, então ele
tira proveito disso. Se vo se posiciona como profissional, a profissional te protege. Então valeria a
pena nas suas próximas campanhas aí, vo levar isso em consideração, não importa o look que o
estilista te propuser, faça com dignidade, ta bom?
Vídeo
Toda essa seqüência de segmentos que se inicia com a aparição do primeiro
convidado, passa pela platéia e termina com o especialista demonstra a forma como o
programa é organizado. A partir dela é possível estabelecer dimensões a partir das quais
se evidenciam os atos enunciativos. Comecemos pelos papéis dos participantes:
Em Casos de família, o especialista tem por papel construir um discurso
“científico” acerca do tema de um programa, mais especificamente concedendo um
dever-fazer a um convidado. Seu comentário pode discordar ou confirmar o dos demais
participantes, mas é tido pelo telespectador como o mais confiável que a inscrição do
GC é de um especialista (médico, psiquiatra, psicólogo etc.) que merece credibilidade.
67
No entanto, a sua participação se restringe a um único momento do programa, não
podendo se manifestar de acordo com o conteúdo, mas sim de acordo com o formato.
A platéia tem também o papel de opinar sobre o tema do programa e sobre os
convidados participantes, mas atribuindo juízo de valor com um conhecimento popular.
Igualmente ao especialista, sua participação é restrita.
Em relação ao estabelecimento do regime de crença, a sucessiva aparição de
participantes aguça a curiosidade do telespectador, que sempre espera uma intensidade
quando o relaxamento de uma entrevista torna-se demasiado extenso. a espera pelo
novo, pelo novo convidado sobre o qual se fala, pelo “julgamento” realizado pela
platéia, pelo “julgamento” realizado pelo especialista, enfim, pelo inesperado dentro do
esperado do formato. Nesse caso, predomina o querer-saber do telespectador que
depende da seqüência dos segmentos.
Soma-se a isso o seu próprio saber que, de forma enunciativa, é valorizado. Os
sujeitos em cena são pessoas comuns que mantêm uma estreiteza de relação com o
próprio enunciatário, do mesmo modo que os “casos” contados por eles. São pessoas e
assuntos comuns que podem fazer parte da vida do telespectador. Dessa forma, um
regime de identificações entre enunciadores e enunciatários, o saber de um não é
“superior” ao do outro. Cada participante e cada telespectador pode atribuir um juízo de
valor, justamente porque o conhecimento se constrói na medida em que os relatos se
sucedem.
O contrato de veridicção, responsável pela articulação dos efeitos
veredictórios (verdade, falsidade, mentira, segredo) é estabelecido pela sucessão das
entrevistas e comentários. Num primeiro momento, no enunciado, sujeitos e
destinadores vão interpretando os discursos uns dos outros. O julgamento se a partir
da interpretação do discurso desses sujeitos que, modalizados segundo um poder-fazer,
expõem no programa (na narrativa) seus problemas, desejos, medos, toda uma série de
combinações modais e afetivas, numa tentativa de convencer seu Destinador-julgador
de que seu discurso é verdadeiro e, portanto, crível, para serem sancionados (julgados
positivamente) com um dever-fazer, que corresponde à saída desejável para estabelecer
a ordem e conquistar um estado de junção com o objeto almejado, o próprio esquema
narrativo canônico. Nesse sentido, de um lado temos o discurso de um sujeito e de
outro, o de seu antagonista, o anti-sujeito. Dois discursos divergentes que serão julgados
através do quadrado de veridicção. Seus depoimentos são confrontados e o Destinador-
julgador (apresentadora, platéia e especialista) vai interpretá-los para, no final, atribuir o
68
status de cada sujeito e assim conceder-lhes um dever-fazer, eufórico para um e
disfórico para o outro.
Mas ocorre também fora do enunciado, na enunciação, a interpretação do
discurso dos participantes por parte do telespectador. Esse jogo de relações veredictórias
torna-se peculiar no programa Casos de família, em que a “verdade narrativa” vai se
construindo na medida em que os discursos vão se consolidando. E, nesse sentido, o
telespectador torna-se um sujeito participativo, mesmo que não participe diretamente da
construção do programa. Sua participação ocorre no momento de se identificar ou não,
de concordar ou não, com o discurso dos participantes. Seu saber, que não carece de
nenhum conhecimento específico acerca do tema, faz com que a participação
passionalizada do telespectador se efetive.
Tudo isso evidencia o modo de discussão do programa, marcado pela
confrontação de idéias, por oposições, por julgamentos, mas que ocorre de forma
seqüenciada. Ou seja, os “casos” são discutidos sob diversos olhares (popular,
científico) e de forma organizada, cada tipo de participante tem seu momento específico
para se pronunciar, o que torna o papel de cada um mais evidente.
Programa Silvia Poppovic
Diferente do outro programa, todos os participantes estão dispostos em seus
devidos lugares desde o início e os momentos de participação não são tão rígidos, como
mostra a seqüência de conteúdo
aparição dos convidados, especialista e platéia
. O
especialista pode intervir quando achar necessário, bem como algum convidado pode
fazer algum tipo de pergunta ao especialista. Obviamente a apresentadora “guia” o
programa e comanda a discussão, mas é possível que os demais participantes consigam
alguma brecha para se manifestarem mesmo quando não solicitados, fato impossível de
acontecer em Casos de família.
As duas seqüências a seguir mostram como é feita a discussão no programa. A
primeira uma conversa entre apresentadora, convidada e especialista. A outra, a
participação da platéia:
Áudio
Silvia Poppovic - A história da Neide Maria dos Santos que ta aqui com a gente, a nossa
primeira convidada... A Neide ela atualmente é dona-de-casa porque ela acabou desistindo da profissão
dela, mas ela trabalhava como faxineira num sindicato de São Paulo, e ela trabalhava como faxineira
dentro desse sindicato. aconteceu uma situação por parte de um dos diretores do sindicato, ou seja,
tipicamente um caso de assédio sexual. O que te aconteceu Neide?
69
Entrevistada Aconteceu que eu cheguei de manhã, abri a porta porque eu tinha a chave.
Abri a porta e fui fazer o café. Ele chegou batendo a porta dizendo que ia puxar o e-mail. Ele como
patrão, não podia dizer não. Abri a porta e ele perguntou “tem café pronto?”, eu disse “tem”. Daí servi
um café pra ele, e foi agarrando no meu seio, foi pegando na minha bunda, foi querendo pegar nas
minhas partes da frente, dizendo que eu tava com isso gostoso, essa baixaria todinha...
Silvia – E você fez o que?
Entrevistada Eu tremi de medo, ele perguntava “tá com frio?”, “não eu to com calor”. Mas
eu tava tremendo. Colocava o café na garrafa o café derramava todinho fora da garrafa. Fingi que eu
não tava com medo dele. Ai na hora que chegou a menina que trabalha comigo, eu fui pedir ajuda a ela,
ela me deu um copo de água com açúcar e disse que eu o podia fazer nada. Porque ele e os outros
diretórios falou que se algum funcionário fosse a meu favor ia ser mandado embora.
Silvia – É assim mesmo que acontece?
Especialista É sempre assim! Porque o funcionário que trabalha com ela é testemunha. Ou
ele presencia o fato ou ele fica sabendo pela reação dela que sai da sala totalmente em choque, às vezes
chorando, tremendo, como ela disse. que na hora de depor na justiça a favor dela, ele não vai porque
vai ser mandado embora. Estão todos na mesma situação que ela...
Vídeo
Áudio
Silvia Na nossa platéia s convidamos hoje estudantes e profissionais formados da área de
enfermagem. Era clássico na área de enfermagem, no mundo dos hospitais e da enfermagem, você ouvir
falar que o médico cantou a enfermeira, encostou a enfermeira num canto numa sala do fundo e foi
passou a mão na enfermeira ou exigiu isso e... também tem muito preconceito também. Vocês são o que?
Enfermeiras, assistentes de enfermagem, o que que você é?
Entrevista da platéia – Somos auxiliar de enfermagem.
Sílvia – Auxiliar de enfermagem! Você alguma vez foi assediada, viveu uma situação dessa?
Entrevistada – Fui sim!
Silvia – Foi?Por quê?
Entrevistada – Na salinha de curativos, a gente ficava lá sozinha...
Silvia – Ta vendo? A famosa salinha que eu tava falando...
Entrevistada Tinha um médico que ele falava barbaridades pra gente, ele abraçava, ele
beijava a gente sabe...Eu ficava com vergonha...
Vídeo
70
Vale ressaltar a flexibilidade desse programa. Primeiro, sobre o momento de
fala de cada participante que não é tão definido; segundo, quanto à duração da fala (os
trechos aqui são mais longos, tanto da apresentadora, como dos convidados); terceiro,
em relação aos tipos de enquadramentos que são os mais variados (closes, planos
próximos, americanos, de conjunto, plongées, contra-plongées, regra dos 180 etc.).
Em relação ao modo de discussão, neste programa não se realiza nenhum tipo
de “julgamento” como no outro. Os convidados tornam-se exemplos para melhor
discutir o tema proposto. O que dizem não será colocado em xeque, exatamente porque,
na maioria das vezes, o problema foi resolvido ou controlado, pertencendo a um
tempo não-concomitante. Dessa forma, o programa pretende apenas uma discussão
sobre o tema com os seus participantes.
Os convidados tiveram uma experiência empírica com o tema, vão narrá-la
de forma a explicitar como se deu a solução do problema (como mostra a seqüência
acima). O especialista (ou os especialistas que podem haver dois neste caso, cujo
tema é assédio sexual, uma procuradora do Ministério Público que trata o assunto de
forma jurídica e, uma psicóloga que mostra os efeitos psicológicos que um assédio pode
causar às vítimas) tem por papel oferecer um conhecimento científico sobre o tema. A
platéia, diferente do outro programa, é constituída por pessoas que, de certa forma, têm
ou tiveram alguma relação com o assunto (neste caso, sobre assédio sexual, a platéia é
formada por enfermeiros que, em sua maioria, sofreram ou presenciaram algum tipo
de assédio sexual).
Desse modo, todos os participantes do programa têm alguma relação com o
assunto tratado, cada um detém um tipo de saber. Os valores já estão propostos desde o
início do programa, bem como a forma como eles devem ser recebidos pelo
telespectador. O ponto de vista é único, não há oposição de idéias ou conflitos.
Algumas características podem ser ressaltadas em relação ao regime de
crença: 1. os participantes ocupam seus lugares desde o início do programa e isso faz
com que o telespectador não espere o inesperado já que tudo está à mostra. 2. todos os
participantes detêm um saber, um conhecimento científico ou prático sobre o tema e
isso compromete o envolvimento do telespectador, já que o seu saber não contribui em
nada no momento de sua apreensão, ou seja, o regime de crença modaliza o
telespectador a receber um discurso verdadeiro, acabado. 3. O conhecimento e os
valores acionados não são construídos de forma seqüenciada a partir dos discursos dos
participantes, desde o início eles contaminam todo o programa, de modo que não
71
pode haver novidades súbitas. Neste caso, o telespectador sabe o modo como deve
reagir a programação e sabe qual o conteúdo dela, seja no primeiro ou no último
minuto de transmissão. 4. Embora haja diversos pontos de vista discutindo um assunto,
os valores e as opiniões são de um tipo, todos compartilham o mesmo conhecimento
e o mesmo valor. Assim, o telespectador não tem grande escolha de identificação, ou se
identifica com os valores em jogo ou não.
Abaixo, o quadro sintetiza as dimensões da seqüência de conteúdo dos dois
programas:
Seqüência de conteúdo
Dimensões Casos de família Programa Silvia Poppovic
Seqüência Aparição dos convidados
aparição da platéia
aparição
do especialista
aparição dos convidados,
especialista e platéia
Papel da platéia Julgar os convidados Contribuir com experiência de
vida
Papel do especialista Participação restrita/ julgador Participação
interativa/comentarista
Modo de discussão Oposição de idéias Uma mesma idéia comum a todos
Estabelecimento do
regime de crença
1. Consolidação dos contratos
cognitivo/pragmático e patêmico;
2. Valorização do saber do
telespectador e dos demais
participantes;
3. O juízo de valor pode ser
formado pelo telespectador
(apenas como efeito de sentido);
4. Identificação plena por parte do
telespectador (ele pode, em sua
casa, realizar um “julgamento”, a
apresentadora mantém relações
diretas com ele como demonstra a
vinheta, o cenário assemelha-se à
decoração de sua própria casa);
5. Curiosidade (querer-saber)
renovada a cada novo “caso” e a
cada novo participante.
1. Consolidação do contrato
cognitivo/pragmático;
2. Valorização do saber da
apresentadora e dos demais
participantes;
3. O telespectador recebe um
valor (saber e dever-ser) que já
está consolidado no programa;
4. Identificação restrita por parte
do telespectador (a apresentadora
mantém pouco “contato” com o
telespectador, o cenário não
apresenta objetos icônicos
reconhecíveis etc.);
5. Curiosidade (querer-saber)
mais restrita, pois todos os
convidados já se exibem desde o
início do programa e o conteúdo é
o mesmo do início ao fim.
Seqüência de encerramento
No final do programa, a seqüência de encerramento vai resgatar o conteúdo da
programação, realizando uma espécie de balanço, além de agradecer a presença dos
participantes e a audiência do telespectador. Tudo isso a partir de uma seqüência
específica que depende também do formato do programa.
72
Em Casos de família e Silvia Poppovic, são evidenciados alguns segmentos-
tipo dessa seqüência: 1. O desfecho é momento em que a animadora resgata o conteúdo
da emissão, aquele apresentado na introdução, e tece algumas considerações finais. A
finalidade é, a partir de tudo o que foi discutido, realizar uma espécie de conclusão, de
modo a abarcar os principais temas e os valores mais aceitos. 2. Em contrapartida à
aparição dos participantes, aqui o seu desaparecimento que depende de uma
construção específica do programa. 3. Os créditos finais sinalizam que o programa
realmente chegou ao fim. Ele pode se dar de diferentes maneiras, concomitantemente
com o desfecho do animador ou com o desaparecimento dos participantes.
A partir dos modos de uso dos segmentos-tipo é possível direcionar o universo
de valores que será resgatado no final do programa. Esta seqüência deve confirmar ou
não os contratos firmados no início entre enunciador e enunciatário, na tentativa de
corroborar com as expectativas do telespectador. Assim, cada programa pode fazer um
tipo de encerramento, alguns utilizam imagens que estiveram presentes na emissão para
destacar alguns momentos “especiais”, bem como seus respectivos valores; em outros, a
apresentadora faz um resgate apenas verbal na tentativa de salientar alguns aspectos
relevantes; outros se voltam ao telespectador para agradecer-lhe, requisitar sua
audiência e adiantar o tema da próxima emissão. Enfim, os usos são os mais variados,
mas podem ser bastante significativos no sentido de fazer o telespectador voltar a se
interessar pelo programa que ele acabou de assistir, a querer mais. Vejamos como
ocorre nos programas.
Casos de família
A seqüência de encerramento é vista da seguinte forma: desfecho créditos
finais desaparecimento da animadora. Abaixo, há toda a seqüência do programa:
Áudio
Eu queria dar os parabéns pra todos vocês, porque a gente escuta tanta gente falar que
emprego ta difícil, que eu não consigo, que eu procuro, mas eu não acho e, assim, o Wellington que foi
com quem eu mais conversei sobre isso, engata um emprego no outro, né? No único dia de folga que tem
procura outro, mesmo tendo esse como único dia da semana pra descansar, pra curtir os amigos,
prefere buscar outro emprego. Então em primeiro lugar parabéns pra vocês, mesmo não gostando do que
fazem, fazem com afinco, com dedicação, tanto que sustentam o emprego de vocês. È... a gente muita
gente dando um monte de desculpa pra o trabalhar e é muito bom quando a gente ouve pessoas que
dizem “eu não gosto do que eu faço, mas faço o melhor que eu poço”. Agora não gostar do trabalho é
uma coisa, ter vergonha do trabalho é outra completamente diferente. Não gostar do trabalho é vono
momento não estar satisfeito com a função, ou como seu salário, ou com as suas coisas e ter como
projeto mudar de emprego. Beleza, um monte de gente não está satisfeita e quando pode muda. Agora ter
vergonha, eu acho que vocês estão sendo muito duros com vocês mesmos. Eu acho que vocês estão se
73
diminuindo, porque todos os trabalhos são importantes, né? A promoção de vendas, a auxiliar de
limpeza, telemarketing, lavar o carro, todas as profissões e tantas outras que a gente não falou aqui,
todas as profissões são importantes, não precisa gostar do trabalho. o gosta? Então vai fazer curso,
vai se aprimorar pra mudar, agora ter vergonha, vocês estão se desmerecendo e acho que é muita dureza,
eu acho que vocês têm sim que ter orgulho do que vocês fazem, orgulho da persistência de vocês, orgulho
porque mesmo não gostando vocês honram o salário de vocês e defendem o posto de trabalho que vocês
ocupam. Tem um monte de gente querendo um emprego e não consegue. Porque mesmo o gostando
vocês conseguem se superar e garantir o emprego. Então ter vergonha eu acho que é ser muito duro com
você mesmo, não precisa. Agora não ta satisfeito, mude! E mude mesmo. A gente tem q mudar tudo na
vida da gente que a gente não gosta, com responsabilidade, passo a passo. Eu acho que a transformação
é sempre bem vinda, seja de emprego, seja de qualquer outra coisa. Muito obrigada por todos vocês por
terem vindo. Sucesso na vida pessoal e profissional. Pra quem ta em casa, obrigada pela companhia e
fique com Deus.
Vídeo
Seqüência 1
Seqüência 2
Seqüência 3
Seqüência 4
Na primeira seqüência de imagens, a apresentadora deixa o local que ocupou
durante todo o programa para realizar o desfecho. A caminhada que faz (imagens 1 e 2)
indicam que o fim do programa está próximo. Seu texto final, longo em relação a todos
os trechos proclamados durante o programa, é disposto com imagens dos participantes
por alguns motivos: 1. a diversidade de imagens e enquadramentos (há uma panorâmica
na seqüência 2, e vários takes de convidados) tem a finalidade de quebrar com a
monotonia do texto longo da apresentadora, concedendo um novo atrativo ao
74
telespectador; 3. as imagens podem mostrar a reação dos convidados na medida em que
a apresentadora trata de algum caso mais específico, focalizando em algum deles; 3. é o
momento de resgatar todos os participantes que fizeram parte da edição, de modo a
reavivar na memória do telespectador os casos específicos tratados e retomar
determinados valores a partir das imagens.
Em relação ao conteúdo do verbal, trata-se justamente de uma conclusão sobre
os “casos” discutidos, indicando os principais problemas e apontando alguns
direcionamentos para resolvê-los. Tudo isso ocorre obviamente após todos os
participantes terem se manifestado, o que contribui no sentido de criar um discurso
englobante que dê conta das especificidades mesmo sem entrar em detalhes.
Assim, embora tenha vários pontos de vista acerca de algum “caso” ou assunto,
no final, um enfoque é privilegiado. Um convidado recebe uma sanção eufórica e o
outro disfórica, enaltecendo determinado valor ou conjunto de valores. É o discurso
final da apresentadora que vai dizer qual o valor privilegiado. Nesse caso específico que
serviu de exemplo para entender o formato, a mensagem final enaltece o próprio tema
(você não pode ter vergonha do seu trabalho). Com isso, há ao telespectador uma
reordenação dos assuntos e, principalmente, um ponto de vista confiável, que decorre
de um contrato passionalizado.
Na seqüência, a apresentadora resgata ainda esse contato afetivo com o
telespectador, olhando-o no olho, agradecendo-lhe a “companhia” (como se estivessem
juntos corpo a corpo), impondo-lhe um sistema axiológico ao dizer “fique com Deus” e
mandando-lhe um beijo sorridente. Ao final, simultaneamente a um zoom out (em
oposição ao zoom in do início), a apresentadora deixa o programa junto com o
telespectador, demonstrando mais uma vez um distanciamento com os convidados e que
(em relação com a vinheta) precisa voltar para casa, depois de mais um dia de trabalho.
Programa Silvia Poppovic
Assim como em Casos de família, a seqüência de encerramento obedece à
mesma ordenação: desfecho créditos finais desaparecimento da animadora.
Áudio
Esse tema como outros que a gente trata aqui no nosso programa são, às vezes, assuntos que
tão escondidos por baixo do pano, depende da gente realmente, da nossa capacidade de mobilização e da
nossa capacidade de indignação, mais do que qualquer coisa, de não aceitar que as coisas estejam do
jeito que estão para elas melhorarem. Queria cumprimentar toda a nossa produção que hoje juntou todos
vocês, agradecer a presença dos nossos convidados e especialistas. Para você que ta em casa, obrigada
75
pela audiência. Nós voltamos então todas as quintas-feiras, às nove da noite, e domingo uma da tarde.
Então um beijo pra todos, boa semana e até mais.
Vídeo
O desfecho, como dito, refere-se ao conteúdo discutido, que é retomado no
momento de encerrar o programa. Embora haja uma consideração final feita pela
apresentadora, não há, em termos de conteúdo, nenhuma novidade em relação a tudo o
que fui discutido. Os valores e o ponto de vista adotados durante toda a seqüência de
conteúdo apenas são reiterados nesta seqüência final, sem apresentar qualquer novidade.
Todo o programa organiza-se numa única opinião que é a da apresentadora,
dos convidados, da platéia e do especialista, de modo que no encerramento não mais
nada a acrescentar, apenas uma observação que não traz novidades que fora adotada
diversas vezes no decorrer da emissão.
Como no outro programa, um agradecimento aos participantes que são
retomados visualmente, reiterando os valores discutidos através das imagens dos
participantes. No fim, a apresentadora volta a se sentar ao deles, mostrando o contato
que os unem e os distanciam do telespectador. Restando a este, um zoom out e um
escurecimento do cenário.
76
2.2.2. Composição narrativa-actorial
Ambos os programas apresentam atores semelhantes, em número de quatro,
são assim figurativizados: 1. apresentadora, 2. especialista (este é o sujeito que vai até o
programa para discutir o assunto de acordo com o seu conhecimento científico,
geralmente tem formação em psicologia, psiquiatria ou psicanálise), 3. convidado
(sujeito que vai ao programa para discutir o assunto de acordo com seu conhecimento
empírico, relatando suas experiências mais íntimas, é o anônimo), 4. platéia. No
programa da TV Cultura, a jornalista Silvia Poppovic é quem direciona o programa; em
Casos de Família, é a jornalista Regina Volpato. O fato de as duas apresentadoras
serem jornalistas contribui para o efeito de sentido de “realidade”, de “verdade”, de não-
ficção, para a consolidação do gênero.
Casos de família: de acordo com as três seqüências analisadas: genérica, de
conteúdo e de encerramento, o programa começa antes mesmo da vinheta de abertura,
com a jornalista apresentando o tema da edição. Após a vinheta, a apresentadora está
posicionada em seu lugar, onde se manterá durante quase todo o tempo, e chama ao
palco o primeiro convidado, que é entrevistado. Após essa primeira entrevista, chama o
segundo convidado e segue assim até todas as poltronas ficarem ocupadas pelos oito
convidados. Durante esse tempo (40 minutos, aproximadamente) a platéia, algumas
vezes, pode se manifestar. Mas é no final, no último bloco, que alguns espectadores da
platéia mais se manifestam com intervenções seguidas da opinião do especialista e,
finalmente, do último comentário da apresentadora.
Programa Silvia Poppovic: no início do programa a apresentadora entra no
cenário, cumprimentando a platéia e (algumas vezes) o telespectador e, logo em
seguida, apresenta o tema do dia. Imediatamente vai até os convidados, que estão
todos posicionados em seus lugares, e senta-se. Começa a discussão sobre o tema. O
especialista intervém quando questionado pela apresentadora ou quando achar
necessário. Ela entrevista os convidados, discutindo o tema da edição até encerrar o
programa.
Narratividade
Os estudos desenvolvidos na obra Morfologia do conto maravilhoso serviram
como base para a proposta teórica da semiótica francesa relativa ao nível narrativo do
77
percurso gerativo de sentido
26
. Nessa obra, Vladimir Propp analisa uma centena de
contos de fadas eslavos de uma coletânea popular e observa uma estrutura única em
todos esses contos. “Trata-se de estabelecer a constância dos elementos (personagens e
ações) e das relações (encadeamento das ações) que constitui a forma do conto popular”
(BERTRAND, 2003, p. 270). Sua morfologia caracteriza-se por quatro teses: 1. as
unidades constitutivas dos contos são as funções, entendidas como ações das
personagens (afastamento, interdição, fuga, transgressão, informação, engano etc.); 2. o
número de funções é limitado, sendo 31; 3. a ordem de sucessão das funções é
constante; 4. todas as funções conhecidas do conto definem um tipo e se organizam
segundo uma única narrativa
27
.
A partir da hipótese proppiana, Greimas estabeleceu o inventário dos actantes
e dos papéis actanciais. Após essa remodelagem, que culminou com a concepção do
nível narrativo do percurso gerativo de sentido, a teoria pôde ser aplicada em diferentes
objetos, o que a tornou mais abrangente, possibilitando estudá-la em produtos dos meios
de comunicação de massa
28
. Mas se voltarmos a Propp, a mesma estrutura narrativa
observada por ele nos contos de fadas continua predominando mesmo em gêneros
predominantemente “reais” (JOST, 2004). Do mesmo modo, as análises semióticas de
textos ficcionais podem ser transpostas integralmente para a análise dos programas de
entrevistas.
Através dos estudos realizados por Greimas acerca da narratividade, é possível
conceber três tipos de actantes, Destinador, sujeito/anti-sujeito e objeto, que, quando
concretizados em atores, assumem papéis temáticos, que nos contos de fadas são
facilmente reconhecidos: uma princesa, na busca por um príncipe encantado, é
surpreendida por um percurso de uma bruxa e o seu pretendente, o príncipe, é quem
pode ajudá-la, ou seja, sujeitos manipulados que estão em busca de objetos, mas que são
surpreendidos pelo percurso de anti-sujeitos.
Esse tipo de trama pode ser concebida por percursos narrativos decorrentes de
ações dos actantes definidos por Greimas: Entende-se por Destinador o actante que
26
O percurso gerativo de sentido é um modelo teórico-metodológico concebido pela semiótica francesa
utilizado em análises da forma do conteúdo.
27
Em busca dos contos perdidos (2000), Mendes realiza uma análise morfológica dos contos de Perrault,
comparando-a a análise realizada por Propp. A autora demonstra a relevância dos estudos do autor russo
mesmo quando aplicados à outra coletânea de contos.
28
O GESCom/Unesp/Bauru (Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação) desde 1999 vem aliando
semiótica francesa com estudos em comunicação: http://www.gescom-unesp.com/
78
comunica ao Destinatário-sujeito não somente os elementos da
competência modal, mas também o conjunto dos valores em jogo; é
também aquele a quem é comunicado o resultado da performance do
Destinatário-sujeito, que lhe compete sancionar. Desse ponto de
vista, poder-se-á, portanto opor, no quadro do esquema narrativo, o
Destinador manipulador (e inicial) e Destinador julgador (e final)
(GREIMAS; COURTÉS, 1983, p. 115).
Para Denis Bertrand (2003), o Destinador nas narrativas etnoliterárias (mitos,
contos, rituais etc.) é caracterizado pela estabilidade, nas quais seu papel de Destinador
é a tal ponto definido que não se espera outra atitude. Em suas palavras,
é ele quem atribui uma missão ao herói no momento do contrato, é
ele que reconhece e avalia a ação concluída no momento da sanção.
Papel cristalizado e permanente no universo do conto, o Destinador é
o grande regulador que encarna o pano de fundo axiológico,
definindo o desejável, o temível e o odiável logo de início, e
avaliando ao final do percurso a conformidade das ações realizadas. É
Deus, é o Rei e todas as instâncias delegadas da autoridade, que
formam tantos papéis típicos e estereotipados do Destinador (o pai, o
policial, o professor etc.) (2003, p. 342).
o sujeito é o actante que se define pela relação juntiva (junção ou
conjunção) com o objeto (objeto almejado pelas aspirações do sujeito) e que, no seu
percurso, revestido de valores modais (querer, dever, saber e poder-fazer) delegados
pelo Destinador, cumpre uma performance em busca desse objeto, através do qual entra
em conjunção ou disjunção com os valores descritos no enunciado. O sujeito recebe do
Destinador competência modal para realizar a performance, a partir da qual será julgado
pelo próprio Destinador (julgador).
Papéis narrativos: Casos de família
No programa Casos de família pode-se conceber, de forma bem definida e, na
maioria das vezes, figurativizada, os três actantes propostos por Greimas. O programa é
formado por quatro categorias de atores apresentadora, especialista, convidados e
platéia cada um desempenhando papéis actanciais do nível narrativo. Num primeiro
momento, é necessário explicitar como são organizados os convidados, as pessoas que
vivenciaram empiricamente o tema que será discutido em cada edição do programa.
Em Casos de família a participação ocorre sempre em dupla, quatro duplas em cada
edição. Em uma dupla, um indivíduo expõe o que o desagrada em relação ao parceiro,
não reciprocamente, apenas um se queixa e o outro ouve a queixa que lhe cabe, tentando
79
se defender, tudo isso com interrogações da apresentadora e julgamento dos demais.
Entra, no cenário, uma dupla por vez, até todas as duplas contarem seus “casos” e,
finalmente, serem julgadas pela platéia, pelo especialista e pela apresentadora que
arremata o julgamento.
O reclamante de uma dupla de convidados é o actante sujeito, que está em
busca de uma relação conjuntiva com o objeto, este sempre implícito no enunciado (no
tema). O reclamado (segundo integrante da dupla) é o anti-sujeito, que pelo seu
percurso torna-se o objeto disjunto em relação ao sujeito, é quem dissemina a desordem
inicial, opondo-se ao percurso do sujeito. O Destinador-manipulador dessa narrativa,
explícito no enunciado, é o actante figurativizado pela apresentadora, que leva o sujeito
a reclamar por seu objeto dentro da trama, é quem doa o poder-fazer ao sujeito. Este
actante desempenha, ainda, o papel de Destinador-julgador, que vai sancionar positiva
ou negativamente a atitude do sujeito, atribuindo-lhe juízos de valor. No entanto, este
não é concretizado apenas pela apresentadora, pois ela delega, em alguns momentos, a
função de julgador à platéia e ao especialista. O quadro abaixo ilustra essa composição:
Estrutura narrativa de Casos de família
Convidados
Participantes
do programa
Apresentadora
Reclamante
Reclamado
Implícito
no tema.
Platéia,
especialista e
apresentadora.
Actantes
narrativos
Destinador
manipulador
Sujeito Anti-
sujeito
Objeto
valor
Destinador
julgador
Para explicitar essa estrutura, que se repete na maioria das edições do
programa, tomamos o seguinte tema: “você coloca os meus filhos contra mim”, exibido
em 04/07/2006.
O principal percurso é o do sujeito (sempre em primeira pessoa, expresso
pelos termos “eu”, “meus” e “mim”) que, de acordo com o tema, está sendo prejudicado
por um percurso de um outro sujeito, no caso, o anti-sujeito (expresso por “você”). No
exemplo, um sujeito (pai ou mãe) reclama ao anti-sujeito (o cônjuge, geralmente) pela
relação disfórica de disjunção com o objeto, a própria relação com os filhos. O sujeito
aspira uma vida melhor, aqui, em família, e, para isso, “exige” que o outro não atrapalhe
sua relação conjuntiva com os filhos, entretanto, esse outro, o anti-sujeito, impede que
isso aconteça. Ao final do programa, a sentença, através da qual o destinador
julgador (platéia, especialista e apresentadora) interpreta a atitude do sujeito e do anti-
80
sujeito, julgando-os positiva ou negativamente, ao atribuir juízo de valor, e levantando
hipóteses para que a situação disfórica conseqüente da relação do sujeito com o objeto
torne-se uma situação eufórica.
É importante salientar que essa estrutura se repete na maioria das edições do
programa, não em todas
29
. O sujeito quase sempre aparece no tema em primeira pessoa
e seu interlocutor, o anti-sujeito, está presente como segunda pessoa (você). O objeto
aparece, inicialmente, em disjunção, numa relação disfórica com o sujeito, decorrente
do percurso do anti-sujeito. O Destinador-manipulador e o Destinador-julgador sempre
são os mesmos, são actantes fixos. Dessa forma, o que se tem é o esquema narrativo
canônico (manipulação, competência, performance e sanção) muito bem definido. Os
convidados (sujeito e anti-sujeito), após realizarem um contrato com a apresentadora
(Destinador-manipulador), recebem competência modal do poder-fazer (podem
reivindicar o seu objeto valor), realizam a performance (reivindicam) e, por fim, são
julgados pelos outros participantes dos programas (Destinador-julgador). Essa
organização, quando revestida por elementos semânticos, manifesta conteúdos
semelhantes aos das histórias investigadas por Propp, ou dos contos de fadas de
Perrault, nas quais sempre há o duelo entre sujeito e anti-sujeito.
Papéis narrativos: Programa Silvia Poppovic
Nesse programa, os personagens que compõem o cenário não resultam em
papéis actanciais perfeitamente delimitados, embora desempenhem papéis. Os
convidados não adentram o programa em duplas, não têm laços familiares e, desde o
início do primeiro bloco, se encontram nos seus devidos lugares, ao lado da
apresentadora e do especialista, cujas poltronas formam parte de um círculo. O objeto-
valor da narrativa não depende do tema diário do programa, que talvez fosse o objeto
29
Essa identificação actorial foi sistematizada tendo em vista 30 edições do programa Casos de família
exibidas entre os meses de julho e agosto de 2006, que constam em anexo no final deste trabalho (em
anexo consta uma lista apenas com os temas das edições). A maioria delas apresenta exatamente essa
composição actorial, em que os actantes sujeito e anti-sujeito são figurativizados em atores durante a
narrativa. Destas 30 edições, 76,66 % (23 edições) são concebidas deste modo (anexo 06). As sete
edições restantes (anexo 07), no entanto, não obedecem a essa identificação actorial. Nestas, o anti-sujeito
não está figurativizado em ator, ou seja, ele não participa diretamente da narrativa (não está presente
durante o programa), apenas é convocado: “nossos filhos atrapalham o nosso relacionamento”; “gosto de
você, mas não suporto a sua família”; “minha mãe é sempre enrolada pelos namorados dela”. Em outras,
o sujeito aparece em segunda e terceira pessoas e o anti-sujeito está implícito no próprio sujeito: “ela
gosta de homens mais velhos”; “você aprontou tanto que ninguém te respeita mais”; “você não aceita a
ajuda de ninguém”; “sua vida não pode parar”; “você se preocupa demais com o que os outros falam”. De
qualquer forma, o que interessa é que em todos os casos há a presença marcante do anti-sujeito, o que cria
o clima de dualidade.
81
modal, mas o grande objeto-valor, presente em todos os programas, relembrado pela
apresentadora em todas as edições, é a “qualidade de vida”. O ator Silvia Poppovic
sempre expõe, no início do programa, qual o tema da edição e logo em seguida reforça o
objetivo do programa: busca por uma melhor qualidade de vida no mundo moderno.
Dessa forma, pode-se compreender essa estrutura narrativa da seguinte
maneira: convidados, especialista, platéia e apresentadora são, em conjunto, o sujeito
que almeja o objeto-valor, que é produzir um programa com informações úteis para a
sociedade contemporânea, que todos, fazendo parte da mesma sociedade, são
passíveis de sofrer a disforia apontada pelo tema. Esse sujeito, num primeiro momento,
é motivado por um Destinador-manipulador abstrato: o desejo de estar em conjunção
com “qualidade de vida”. Mas, num outro nível, o sujeito é persuadido por um
Destinador figurativizado, que age individualmente, incitando-o a querer mais qualidade
de vida, pelas conseqüências negativas decorrentes do mundo moderno, aquelas que
sempre aparecem no tema: a própria apresentadora. Não Destinador-julgador
explícito, que a finalidade do programa é discutir temas, é tentar contribuir para
“qualidade de vida”, mesmo a platéia exerce uma função diferente do outro programa:
ela não faz perguntas, pelo contrário, ela expõe alguma experiência relacionada ao tema.
O anti-sujeito, no principal esquema narrativo, também não aparece figurativizado
30
.
Estrutura narrativa do Programa Silvia Poppovic
Participantes do
programa
Apresentadora
(que representa o
desejo de melhor
qualidade de vida).
Apresentadora,
especialista,
convidados e
platéia.
Qualidade de vida
Actantes
narrativos
Destinador
Sujeito
Objeto valor
Nesse sentido, evidentemente, os formatos dos programas são completamente
diferentes: no primeiro os convidados queixavam-se uns dos outros à apresentadora e à
platéia, de acordo com o tema do dia; no segundo, não queixas, não alguém
(figurativizado) em quem “colocar a culpa” do problema (tema) que o aflige, mas há um
desabafo, uma conversa, uma exemplificação. Neste, os convidados não vão ao
30
Também, para a compreensão deste programa, foram investigadas 30 edições, cujos temas seguem em
anexo (08). Em Silvia Poppovic a estrutura é a mesma em todas as edições. O anti-sujeito nunca está
concretizado em ator, é apenas sugerido, o problema está controlado (em “ejaculação precoce”, por
exemplo, os participantes embora ainda tenham o problema encontraram soluções para amenizá-lo) ou
resolvido (em “violência doméstica”, por exemplo, os participantes passaram pelo problema e se
recuperaram).
82
programa para encontrar os culpados pelos seus problemas e puni-los, mas para serem
exemplos que ilustrem o tema proposto, ou para, de alguma forma, serem úteis na
discussão do tema, contribuindo para a sua compreensão. Tem-se, desse ponto de vista,
dois modelos, talvez opostos, de formatos de programas de entrevista temáticos: em um,
os sujeitos culpam seus anti-sujeitos e esperam sua punição, particularizando o tema,
tornando-o específico apenas aos sujeitos e anti-sujeitos, que querem (apenas para eles)
deixar a situação disfórica rumo a uma situação eufórica, numa narrativa semelhante a
dos contos de fadas; no outro, os sujeitos não procuram resolver os seus estados de
junção/disjunção com seus objetos particulares durante o programa, o que eles
pretendem é realizar a conjunção com outro objeto, mais geral e de domínio público,
que é justamente o de garantir uma melhor compreensão do tema, o que torna suas
participações ilustrações dos temas, não propriamente o tema.
Da narrativa canônica à causa social
A estrutura narrativa torna-se mais perceptível quando conteúdos temáticos
mais concretos recobrem os percursos actanciais abstratos, revestindo-os de sentidos.
Os actantes da narrativa tornam-se atores do discurso. É o caso dos participantes dos
programas, que se tornam atores devido aos papéis temáticos que representam como
membros de um grupo social.
De acordo com os modos de discussão dos temas dos programas, é possível
pensar em uma oposição inicial que reside em domínio particular vs. domínio público.
Embora os dois programas tentem construir enunciados que se assemelhem ou que
mantenham relações intrínsecas com a vida real, a forma como isso se produz efeitos
opostos. Casos de família procura particularizá-los nas entrevistas com os convidados,
que “sofrem” diretamente o tema e apresentam como resultado efeitos diferentes em
cada programa. O Programa Silvia Poppovic, ao contrário, preocupa-se em generalizar
o tema, concedendo-lhe um caráter plural, que todos, de alguma forma, estão
envolvidos direta ou indiretamente com o assunto, da forma como sugere o slogan
“qualidade de vida”, reiterado em todos os programas pela apresentadora.
No primeiro, a tentativa é discutir o caso particular que se enquadra no tema,
procurando encontrar uma solução para o caso específico, talvez numa abordagem
particular do tema. No segundo, a tentativa é apenas discutir o tema, exemplificando-o
com a experiência dos entrevistados, que, na maioria das vezes, apresenta soluções
83
eufóricas para o tema, de uma forma geral, talvez num modelo público de abordagem.
Vamos ver:
Casos de família
No programa Casos de família, os papéis temáticos representados pelos
participantes conduzem a uma isotopia temática ligada ao /julgamento/ que, quer pela
figurativização espacial, quer pela figurativização actorial, contribuem para dar ao
programa um caráter de tribunal. Neste, os envolvidos são tipos sociais réu (acusado),
promotor (quem acusa), testemunha, juiz (quem sentencia) e júri nos quais os atores
se personalizam e, como figuras discursivas, desempenham seus papéis. O sujeito
reclamante torna-se, aqui, o promotor e a testemunha ocular; o sujeito reclamado, o réu;
a platéia e o especialista, o júri; e, por fim, a apresentadora, o juiz, que a sentença
final.
A organização espacial da cena predicativa também possibilita essa
comparação com um tribunal de justiça. A apresentadora, o especialista e a platéia
estão, todos, numa posição frontal em relação aos convidados, acentuando que seus
lugares são pontos estratégicos de observação e de análise, o que contribui com o efeito
de sentido de seriedade e distanciamento em relação aos suspeitos, para que suas
decisões (julgamento) o sejam “contaminadas” por uma possível intimidade com os
convidados. Além disso, os “suspeitos”, permanecendo numa posição distanciada dos
outros, acentuam uma oposição temática julgadores vs. julgados, que num sentido mais
profundo distingue os bons dos maus. Cada ator tem figurativização e tematização
própria. De um lado, figurativizado pela união de apresentadora, platéia e júri, encontra-
se o ator julgador que, assim instituído pelo saber popular, representa o povo, no sentido
mais popular do termo: “a voz do povo é a voz de Deus”. Já o especialista, também
membro do júri, desempenha o papel temático de representante do conhecimento
científico. Assim, “Deus” e “ciência”, e razão, juntos, têm o poder para julgar e
constituir o equilíbrio. A apresentadora torna-se também, até mesmo pela mediação que
realiza entre ambos os lados, a figurativização desse próprio equilíbrio, como um
pêndulo; alguns temas, como o da moderação e o da ponderação, contribuem para a
aspectualização desse ator. Do lado oposto, encontram-se, divergentemente, os temas do
caos, da desordem, do desequilíbrio, figurativizados pelos atores que estão em conflito,
e que devem ser julgados. Nota-se, em Casos de família, um maniqueísmo que articula
84
todo o processo de realização do programa: é a velha luta entre o bem o mal, entre o
certo e o errado, entre o sujeito e o anti-sujeito.
Programa Silvia Poppovic
Nesse programa, a actorialização e a espacialização contribuem para a
consolidação do tema harmonia, que significa, segundo o dicionário Aurélio: “1.
disposição bem ordenada entre as partes de um todo, 2. proporção, ordem e 3. paz
coletiva entre pessoas” (FERREIRA, 2001, p. 360). Embora as duas primeiras
definições sejam válidas, é na última que se apóia a tematização. O clima entre as
pessoas, exatamente por não haver julgamento entre as partes, é de cordialidade, de
amizade, de igualdade e de intimidade. Todos os atores, apresentadora, especialista,
convidados e platéia, desempenham o mesmo papel temático, o de colaboração para
uma melhor qualidade de vida. Ele se torna mais evidente principalmente em relação à
disposição dos participantes no cenário, cujos lugares, da apresentadora, do especialista
e dos convidados, formam parte de um círculo; todos se sentam lado a lado, como
iguais, cultural e socialmente.
85
2.2.3. Composição do estilo visual
Como afirma Fontanille, “é o conjunto dos elementos da decoração,
mobiliário, telas e objetos luminosos e coloridos, que realiza um dado ato enunciativo
(2003, p. 181)”. Ou seja, cada combinação dos diferentes elementos cênicos constitui
determinado dispositivo, advindo do plano da expressão, que corresponde a uma
modalidade de enunciação particular que forma o plano de conteúdo. Trata-se de
admitir que o significante plástico “significa” e que é preciso compreender como
significa” (Greimas, 1984, p. 40). Cabe agora investigar como ele articula suas
especificidades de linguagens na produção de sentido.
Cores, luzes e objetos
Na tentativa de buscar uma coerência entre as várias emissões do canal francês
TF1, Fontanille relaciona três aspectos que fazem parte de um cenário: luz, cor e
objetos. O autor afirma que “a luz confere à cor movimento, vibração e energia; e a cor
confere à luz efeitos de matéria e estruturas de objeto” (2003, p. 166). Vejamos como
esses elementos são organizados nos dois programas.
Programa Silvia Poppovic
O que se nota nessas imagens é uma gradação do escuro para o claro, que
corrobora com a forma estereotipada do início da maior parte das produções televisivas.
Trata-se do acender de luzes. uma gradação de matiz azul, que vai do negro ao
branco. No entanto, a suavidade que poderia ser obtida com essa nuança é sufocada pelo
contraste decorrente dos feixes luminosos (lasers, outros), que provocam um contraste
de forte intensidade produzindo um “choque cromático” (primeiro e segundo quadros),
e os “matizes” provocam um contraste de fraca intensidade (último quadro). No
exemplo, um matiz (pelo acender de luzes) sobreposto por um choque cromático
86
(feixes luminosos). O resultado é que no início se tem um contraste intenso e no final
pouco contraste.
A última imagem da seqüência mostra como será o restante do programa, até
que as luzes se apaguem novamente. O espaço torna-se, portanto, abstrato, múltiplo,
que os contrastes fracos vão predominar, dificultando que o telespectador tenha uma
visão completa dos detalhes do cenário. Vejamos as imagens abaixo:
O cenário é todo composto por formas geométricas: círculos (espaço das
poltronas) e, retângulos, quadrados e círculos dispostos verticalmente (colunas do fundo
do cenário). O que num primeiro momento poderia ser simples que se trata de formas
comuns, adquire complexidade pela justaposição dessas formas que produzem efeitos
de sombra e pelos feixes de luzes que desconstroem as formas presentes.
O azul que compõe todo o cenário se revela em matizes e choques cromáticos,
multiplicando as formas materiais existentes. Não se trata mais apenas de formas
geométricas, mas de outras formas híbridas decorrentes da iluminação, que ampliam a
materialidade do cenário. Assim, os objetos iluminados e coloridos do cenário recebem
uma textura de difícil identificação: não se sabe se é uma propriedade do objeto material
ou da própria iluminação, ou seja, os objetos iluminados se fazem passar por aquilo que
eles não são. Para o telespectador o que fica é uma confusão na identificação dos
elementos do cenário e do seu espaço que a materialidade dos objetos e a
profundidade cênica são desconfiguradas.
Casos de família
Completamente diferente do outro, o programa Casos de família apresenta
uma outra reordenação de cores, formas e luzes. Vejamos as imagens abaixo:
87
Aqui a iluminação é difusa e tênue, dando uma opacidade ao ambiente (em
oposição ao brilhante do anterior). Não misturas de cores, iluminação e objetos, nem
matizes ou choques cromáticos. O segundo plano (o próprio fundo do cenário) é
facilmente identificável pelo telespectador graças à iluminação que não mistura a
materialidade dos objetos com a intensidade de feixes luminosos. Naquele predominava
um fundo de conteúdo abstrato, neste as figuras de conteúdo são facilmente
identificáveis, tais como numa sala de visitas: com vasos, quadros e outros acessórios de
decoração. Neste, a figuratividade cênica garante que o telespectador veja uma sala,
talvez criando um efeito de identificação com a sua própria.
Cores, luzes e objetos: esquema tensivo
Voltando à teorização de Fontanille, na análise das transmissões da TF1 ele
propõe um modelo teórico ao tratar das “tensões do estilo cromático”, no qual cada
categoria está relacionada com o que há de mais perceptível: luz ou matéria
31
:
31
Sintetizamos o gráfico para melhor explicá-lo. Ver Fontanille (2003, p. 176-177).
(-) Manifestações materiais (+)
(+)
Energia
luminosa
(-)
Clarões
Nivelamentos
pastéis
Feixes projetores
Cores refletidas
88
Em que:
1. o reflexo ondulado (cores refletidas) permite perceber a matéria
por um movimento de luz instável e atenuado;
2. o feixe-projetor faz perceber, ao mesmo tempo, a luz e a matéria,
conferindo corpo material a um cone colorido e, com isso,
introduzindo a incerteza na percepção figurativa;
3. os nivelamentos pastéis enfraquecem, ao mesmo tempo, a
percepção da luz e da matéria, enquanto as cores sombrias e
profundas manifestam a matéria (graças à mistura com o negro);
4. os clarões de luz mais fortes neutralizam todo o efeito material,
enfraquecendo não apenas a percepção dos tons, como também o
conjunto da organização espacial em profundidade.
A partir dessas considerações é possível relacioná-las com os dois programas
de entrevistas deste trabalho. Como exemplo, a imagem abaixo mostra a oposição dos
programas garantida pela articulação da luz com a materialidade:
Segundo o esquema proposto por Fontanille, o Programa Silvia Poppovic se
apresenta entre “feixe-projetor” e “clarões de luzque a intensa luminosidade dos
feixes materialidade à luz deixando imprecisa a identificação dos objetos e, além
disso, a homogeneidade do azul claro obscurece a materialidade das formas
geométricas. Pela mistura dos dois casos, as formas tornam-se abstratas. No outro
extremo do esquema, está o significante plástico de Casos de família, que pela luz
difusa e tênue permite vislumbrar a materialidade dos objetos cênicos, aumentando o
grau de percepção de figuras do conteúdo. No primeiro caso, os efeitos luminosos e
cromáticos desestruturam o espaço da cena perturbando a leitura e interferindo na
89
visualização dos outros elementos cênicos (formas geométricas); no outro, eles
estruturam o espaço facilitando e até impondo a sua leitura. Como diria Fontanille, a
questão se desloca do “estilo visual” para “à enunciação televisual” (2003, p. 179).
Cenas predicativas
As disposições do mobiliário no cenário, principalmente das poltronas,
constroem dispositivos significantes que têm por função modalizar as relações entre os
participantes de um programa, hierarquizando e colocando em cena certa estrutura de
comunicação regrada por atos enunciativos dominantes (Ibidem, p. 183). Vejamos como
isso ocorre nos programas.
Programa Silvia Poppovic
A figura seguinte ilustra os traços mínimos que representam a construção do
cenário do programa, especificamente quanto aos dois grandes espaços onde se situam
os sujeitos na cena.
Tal disposição é responsável pela linguagem proxêmica que corresponde às
posições ocupadas por atores num determinado espaço. O de número 1 indica o lugar
ocupado pela apresentadora e pelos convidados (representado pelo semicírculo com um
círculo na ponta), e o de número 2 indica o espaço da platéia (representado pelos dois
paralelepípedos em diagonal). Através da forma como esses dois espaços são
construídos e dispostos na cena, é possível identificar quais os efeitos de sentido que
eles manifestam e, principalmente, inferir como tal disposição do cenário produz
sentido quando em sincronia com as demais manifestações textuais.
1
2
90
Dois grandes efeitos podem ser observados tendo em vista o espaço da
apresentadora e convidados e o espaço da platéia: 1. efeito de igualdade e 2. efeito de
inclusão/participação. O efeito de sentido de igualdade é construído através do espaço
da apresentadora e convidados, que é constituído por poltronas dispostas em um
semicírculo. Isso faz com que convidados (pessoas comuns convidadas para participar
do programa de acordo com o tema proposto), especialistas (especialista sobre o tema
discutido médico, psiquiatra, psicólogo, psicoterapeuta etc.) e apresentadora (Silvia
Poppovic) mantenham uma mesma posição, seja cultural ou social. Claro que isso é
apenas um efeito de sentido arquitetado de modo a garantir uma ilusão de igualdade,
como se todos pertencessem ao mesmo grupo e não houvesse quaisquer diferenças entre
eles. Não se trata de uma igualdade real, mas ilusória. Esse tratamento igualitário (por
parte principalmente da “protagonista” a apresentadora) é de tal forma eficiente que
possibilita um grau de intimidade ainda maior entre apresentadora e convidados
principalmente porque dessa forma é possível que haja inclusive contato físico entre os
sujeitos em cena. É o que se observa na terceira imagem da seqüência abaixo, na qual a
mão da apresentadora (sorridente) toca a perna do convidado, como se fossem amigos,
como se compartilhassem de certo grau de intimidade. As outras imagens mostram a
construção do cenário.
O outro efeito de sentido mencionado acima - efeito de sentido de
inclusão/participação é produzido por conseqüência do primeiro efeito. A disposição
das poltronas da apresentadora e convidados criando um semicírculo deixa uma abertura
(exatamente pelo não-fechamento do círculo), que representa a possibilidade de
“entrada” da platéia. De certa forma, a platéia também faz parte desse círculo “de
amigos”, “de iguais”, obviamente que não se concentra no mesmo espaço físico, mas a
abertura do círculo significa sua inclusão, ao mesmo tempo, sua participação. Tanto isso
é perceptível que a apresentadora cede” o microfone à platéia, para que esta seja
ouvida, como se percebe nas imagens seguintes:
91
A última imagem da seqüência acima exibe também parte da passarela por
onde Silvia Poppovic entra no palco no início do programa. Assim, o espaço concedido
à platéia torna-se mais significativo, dando a impressão de que a apresentadora faz parte
dessa mesma platéia e que seu trabalho consiste, mais especificamente, em representá-
la. As fotos abaixo mostram o início do programa, 1. quando a apresentadora entra no
cenário e 2. o ponto de vista da apresentadora em sua entrada:
Casos de família
Os efeitos de sentido mencionados acima tornam-se ainda mais significativos
quando comparados aos efeitos que podem ser depreendidos tendo em vista o outro
programa que compõe o corpus dessa pesquisa. A figura abaixo mostra a disposição do
cenário de Casos de família.
92
Na figura, o número 1 marca o espaço destinado aos convidados que
participam do programa (pessoas anônimas da mídia convidadas para participar do
programa de acordo com o tema proposto), o número 2 representa o espaço onde a
apresentadora se situa durante a maior parte da exibição do programa, e o número 3
representa o espaço destinado à platéia (vale ressaltar que o especialista que comenta
sobre o tema proposto senta-se na primeira fila, junto com a platéia). Vejamos as
imagens a seguir:
Neste programa, tal como foi dito, tem traços em comum com um tribunal, em
que a disposição espacial ou proxêmica não deixa margem para efeitos de intimidade ou
de igualdade. Muito pelo contrário, as poltronas da apresentadora e dos convidados
estão distantes umas das outras, de modo que jamais pode haver contato físico entre
eles. Tudo isso para acentuar o efeito temático do julgamento. A exibição da vida
narrada pelos convidados deve ser analisada pelos demais participantes com
distanciamento, para que seja objetiva a sentença final, no momento em que os “casos”
narrados serão comentados. Essa disposição corrobora a oposição de /julgadores/ vs.
/julgados/.
Comparando as figuras do plano do conteúdo presentes nos dois cenários no
que tange a categoria eidética da expressão, pode-se estabelecer as seguintes distinções:
1
2
3
93
Programa Silvia Poppovic Casos de família
Figuras do conteúdo Figuras da expressão
Espaço dos convidados
Semicírculo Reta na horizontal
Lugar ocupado pela
apresentadora
Junto (perto) dos convidados
no semicírculo
Longe dos convidados/ em
frente aos convidados
Enquanto o efeito de sentido do Programa Silvia Poppovic referente à
disposição das poltronas dos convidados em relação à apresentadora é de /igualdade/,
que todos estão inclusos no semicírculo; nesse outro programa, o efeito é o contrário, de
/distanciamento/. Os convidados pela disposição de suas poltronas não mantêm uma
relação de intimidade com a apresentadora. Esta está longe, embora esteja de frente para
eles. Estes não estão ao seu lado, não são seus “iguais”, semelhantes, são diferentes: são
aqueles que têm o problema que será discutido no assunto.
Desse modo, a proxêmica deixa mais evidente como são construídos os papéis
representados pelos participantes dos programas que conferem discursos completamente
diferentes. Enquanto o Programa Silvia Poppovic mantém, pela disposição do
cenário, um caráter de intimidade para discutir o tema proposto, Casos de família
tematiza o julgamento, ou seja, traz uma discussão que tem por objetivo encontrar
soluções e culpados para os casos específicos exibidos no programa. Em um, a
/igualdade/ permite a discussão, o entendimento; em outro, o /distanciamento/ permite o
/julgamento/.
Considerações
Essas considerações sobre a disposição espacial dos dispositivos plásticos
parecem comungar da análise realizada por Fontanille. Em seu texto (2003, p. 181-188),
o autor menciona alguns “predicados-tipo”, que basicamente agregam a correlação entre
poltronas e mesas. Nas suas análises foram depreendidos cinco diferentes tipos que
correspondem as seguintes funções: de “acolher”, de “interagir”, de “participar”, de
“controlar” e de “oferecer como espetáculo”. Trataremos aqui do primeiro e do último:
1. “o dispositivo concebido a partir de um canapé circular, segundo um estereótipo do
mobiliário doméstico, está destinado a acolher e homenagear os convidados”; e 2. “o
pódio, por sua vez, tem a função de elevar os atores e oferecê-los como espetáculo a um
público presente na sala”.
Esses dois tipos definidos por Fontanille, na verdade, assemelham-se,
respectivamente, aos dois programas deste trabalho, Programa Silvia Poppovic e Casos
94
de família. No primeiro, como foi dito, a disposição das poltronas confere um clima
de cordialidade e de intimidade. Como lembra o semioticista, no acolhimento o modo
de comunicação dominante “é a troca entre o animador e cada convidado”. no outro
programa do tipo espetáculo, os convidados posicionam-se à frente da platéia, separados
de todos e são oferecidos a um público interno, aquele do palco transformado em
espetáculo.
No que diz respeito aos valores propostos por esses dispositivos, o que
Fontanille revela no seu texto aplica-se sem nenhuma interferência ao nosso objeto:
“Os espaços de acolhimento e de convívio pressupõem uma igualdade
de tratamento entre os atores, com uma distribuição inegável do valor
(uma vez que os convidados são mais ou menos homenageados); os
espaços espetaculares propõem uma forma de transcendência e,
consequentemente, uma relação de dominação irredutível, visual e
espacial; com isso, eles consagram uma desigualdade pressuposta”
(idem, p. 185).
É importante ressaltar ainda que o mesmo sistema axiológico é acionado pelos
efeitos luminosos e cromáticos. O fato dos papéis actanciais em Silvia Poppovic
hibridizarem-se, fundirem-se por um objetivo, mantém relação direta com a
disposição espacial que, ao colocar todos os atores num mesmo círculo, concede-lhes
igualdade de tratamento. Do mesmo modo, os efeitos decorrentes da iluminação
acionam esse mesmo sistema de valor, que a partir dela também uma
homogeneização das formas geométricas, misturando luz e matéria. Em contrapartida,
os actantes de Casos de família mantêm seus papéis muito bem definidos como
demonstra a disposição de seus assentos, afastando uns dos outros e acionando
determinados efeitos temáticos. Igualmente, os efeitos da iluminação deixam
perfeitamente definíveis o restante do cenário, mostrando os limites exatos dos objetos
que o compõem.
95
2.3. A dimensão patêmica dos programas de
comportamento
2.3.1. Semiótica das paixões
Parte I – Dos estados de coisas aos estados de alma
O estudo da dimensão patêmica do sujeito, centrado em Semiótica das
paixões, originou-se a partir dos estudos realizados em semiótica geral, com suas
contribuições metodológicas e teóricas. Trata-se de “construir uma semântica da
dimensão passional nos discursos, isto é, a paixão não naquilo em que ela afeta o ser
efetivo dos sujeitos ‘reais’, mas enquanto efeito de sentido inscrito e codificado na
linguagem” (BERTRAND, 2003, p. 358). Ela emerge a partir da dimensão sintáxica da
semiótica da ação e é descrita na obra de A. J. Greimas e J. Fontanille intitulada
Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos estados de alma (1993).
A semiótica da ação está ligada ao modelo teórico da narratividade, ou o que
se entende por sintaxe narrativa, cujos estudos se desenvolveram a partir das
contribuições de V. Propp organizadas na obra Morfologia do conto maravilhoso
(1984), na qual se encontram as funções dos personagens que orientam a narrativa dos
contos eslavos por ele analisados e que, mais tarde, contribuíram ao modelo teórico
desenvolvido por Greimas, aspecto já evidenciado em item anterior. O nível narrativo
do percurso gerativo de sentido, de inspiração proppiana, apresenta os enunciados
mínimos (de estado e de fazer) sobre os quais se constroem as teias narrativas que,
organizadas, geram percursos narrativos que compõem o esquema narrativo canônico.
Cada enunciado baseia-se na natureza da relação do sujeito com o objeto, seja ela de
junção, de disjunção ou de seus contraditórios. Todos os textos estariam, dessa forma,
estruturados, sintaxicamente, por quatro grandes percursos narrativos, o da manipulação
(firmação do contrato entre Destinador-manipulador e sujeito), o da competência (o
fazer-fazer ou a doação de competência modal ao sujeito querer, dever, poder ou
saber-fazer), o da performance (a própria ação do sujeito) e o da sanção (o Destinador-
julgador interpreta a ação do sujeito e a sanciona positiva ou negativamente), que
descrevem a ação do sujeito na conquista de objetos e que são compostos de um feixe
de modalidades variáveis. No entanto, essa sistematização do agir de sujeitos em torno
de objetos, não leva em conta a modulação dos estados afetivos desses actantes,
96
despreza os efeitos passionais que explicam a conduta desses sujeitos que são
modalizados, acima de tudo, pelos estados de alma. O estudo pela dimensão passional
tem o intuito de observar essas variações patêmicas que orientam a ação dos sujeitos e o
de preencher esse hiato existente entre o momento anterior e o posterior à ação.
As paixões, do ponto de vista da semiótica, são efeitos de sentido de
configurações passionais, modalizações que modificam o sujeito de estado. De acordo
com Bertrand existem as boas e as más paixões que, quando “submetidas a regimes de
sensibilização e moralização variáveis, formas assim taxionomias conotativas que
permitem identificar e distinguir formas culturais” (2003, p. 373). Num primeiro
momento, a semiótica procurou
determinar qual o arranjo modal e qual a estrutura narrativa que
caracterizam e sustentam as denominações de paixões, como a cólera, a
frustração, o amor ou a indiferença. Trata-se, em suma, de descrevê-las
com uma sintaxe narrativa modal em que se examinem as combinações
de modalidades (BARROS, 2001, p. 47).
Contudo, essa abordagem presente na obra de Barros, condenada pela
simplificação excessiva que aproxima a semiótica da paixão à semiótica da ação,
necessitou de uma mudança de perspectiva. Nos últimos anos, a sintaxe narrativa que
descrevia os componentes passionais aproximou-se, cada vez mais, de uma sintaxe
tensiva.
Durante os anos 80, a análise das paixões era uma análise dos
lexemas ou dos papéis passionais: a cólera, o desespero, a nostalgia, a
indiferença, a avareza ou o ciúme. No curso dos anos 90, ela se
consagra cada vez mais ao estudo da dimensão passional do discurso
e, notadamente, às manifestações passionais não-verbais, ou ‘não-
verbalizadas’ (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p. 297).
O que os pensadores franceses querem dizer é que, na verdade, a paixão não
deve ser vista apenas sob o enfoque modal que caracteriza uma determinada
manifestação passional. Por exemplo, a paixão da ambição não pode ser entendida
apenas como a modalização de um querer, não deve ser entendida apenas pela redução
sintáxica dos termos que a regem, portanto, pela simplificação encontrada nos estados
de coisas. Ao contrário, os sintagmas passionais associam várias dimensões, não apenas
as modais, mas, principalmente, as aspectuais, as temporais etc. Na semiótica das
paixões encontra-se a complexidade dos elementos que, em conjunto, instauram um
97
universo passional regido pela timia. Fontanille e Zilberberg, nessa perspectiva de
associação de diferentes dimensões correlatas entre si num seio de um sintagma
discursivo, tendo em vista que as correlações são ao mesmo tempo sensíveis e
inteligíveis, propõem:
1. que as dimensões envolvidas seriam de dois tipos: modais e
fóricas; 2. que as modalidades implicadas se referem tanto à
existência (modalidades existenciais) quanto à competência (querer,
dever, saber, poder e crer); 3. e que a foria conjuga essencialmente a
intensidade e a extensidade, com seus efeitos induzidos por projeção
no espaço e no tempo, os efeitos de tempo e de ritmo (Ibidem, p.
298).
Acredita-se, portanto, que uma investigação dos caminhos afetivos percorridos
por um sujeito patêmico deve levar em conta, obrigatoriamente, essas duas dimensões,
modais e fóricas, que, juntas, podem ser traduzidas em efeitos de sentido passionais, em
que estes são eminentemente culturais. Identificar uma paixão significa reconhecer
elementos significantes de nossa própria cultura, de modo que ela deve ser percebida e
apreendida dentre de um crivo de leitura de um espectador que compartilha do mesmo
universo cultural sem o qual se corre o risco de não sentir o impulso passional do sujeito
do discurso.
É a práxis enunciativa que decide in fine o que é paixão e o que não é,
por meio de uma espécie de sanção intersubjetiva e social, uma
intencionalidade que deve ser reconhecida e partilhada para ser
operante. Isso significa que, assim que uma paixão é identificada e
denominada, não estamos mais na ordem da dimensão passional viva,
mas na dos estereótipos culturais da afetividade. Não podemos
portanto começar a descrição das paixões identificando ‘unidades’ ou
‘signos’ passionais, sobretudo lexicais, pois tal identificação está de
imediato submetida ao crivo cultural do observador; em
compensação, é lícito passar pelo campo intermediário de seus
‘efeitos de sentido em discurso’. De fato, a paixão em discurso será
caracterizada pela natureza e pelo número de dimensões correlatas,
como também pelos formantes sintáxicos capazes de sensibilizar a
manifestação discursiva (Ibidem, p. 299).
Parte II – Esquema passional canônico
Tal como no nível narrativo em que Greimas apresenta o esquema narrativo
canônico, em Semiótica das paixões a sistematização do esquema patêmico
canônico, que mantém relação muito próxima com o outro, mas que procura evidenciar
os estados de alma dos sujeitos patemizados: ao percurso do “fazer” do sujeito se junta,
98
entrelaçando-se a ele, um percurso do “ser”. “A uma semiótica do agir (narratividade)
se integra uma semiótica do sofrer (a dimensão passional)” (BERTRAND, 2003, p.
374). Bertrand (Ibidem) propõe a seguinte correlação entre os dois esquemas:
Disposição sensibilização emoção moralização
Contrato competência ação sanção
Dessa forma, a manipulação (contrato) equivaleria à disposição; a
competência, à sensibilização; a ação, à emoção; e a sanção, à moralização. Os sujeitos
passionais, cada qual a sua maneira, passariam por esses percursos.
Greimas e Fontanille definem cada uma das acepções, em sentido inverso ao
do esquema, da seguinte maneira:
A moralização intervém em fim de seqüência e recai sobre o
conjunto da seqüência, mas mais particularmente no comportamento
observável. Ela pressupõe, portanto, a manifestação patêmica,
denominada emoção, cuja aparição no discurso assinala que a junção
tímica está cumprida, dando a palavra ao corpo próprio. A
sensibilização é pressuposta pela emoção: é a transformação tímica
por excelência, a operação pela qual o sujeito discursivo transforma-
se em sujeito que sofre, que sente, que rege, que se emociona. Ela
própria pressupõe essa programação discursiva que denominamos
disposição, e que resulta da convocação dos dispositivos modais
dinamizados e selecionados pelo uso; ela aciona uma aspectualização
da cadeia modal e um “estilo semiótico” característico do fazer
patêmico. A constituição determina, enfim, o teto de seqüência, o ser
do sujeito, a fim de que ele esteja apto para acolher a sensibilização;
essa etapa obriga a postular, no nível do discurso, uma determinação
do sujeito discursivo anterior a toda a competência e a toda
disposição: um determinismo social, psicológico, hereditário,
metafísico, seja qual for preside, então, à instauração do sujeito
apaixonado (GREIMAS; FONTANILLE, 1993, p. 155).
99
2.3.2. A passionalidade em Casos de Família
32
Entrevista 1 – “Você tem que me apresentar para a sua família”
33
Parte I – A construção passional de um segredo: avanço à intensidade
Na narratividade, Cristiane é o actante sujeito que está em busca de um objeto-
valor, a conjunção com a família do marido, José, seu anti-sujeito. Ela não conhece a
família dele e se queixa da disjunção que o marido exige em manter. No percurso do
sujeito, o actante Cristiane, modalizado pelo Destinador, que é figurativizado pela
apresentadora Regina Volpato, com o poder e o saber-fazer (que garantem apenas sua
participação no programa), cumpre a performance de reclamar, num programa de
entrevista, o que impede à sua vida de ter mais qualidade. Tal trama, vista dessa maneira
simplista, esconde todas os desdobramentos passionais que implicarão no julgamento
que será proclamado no programa. Os estados de alma devem ser investigados na
tentativa de compreender as motivações patêmicas que orientam as ações dos sujeitos.
A apresentadora, ao chamar a convidada do programa, instaura o universo
passional que orientará a entrevista: “Agora a gente vai conhecer a Cristiane que tem 29
anos e diz: ‘Cada hora o José inventa uma desculpa para não me apresentar para a
família dele, eu acho que ele tem vergonha de mim’”. Do ponto de vista do julgamento,
(i) o percurso do anti-sujeito é revestido pela condição de segredo representada no
quadrado de veridicção, que ele “inventa desculpas”, não diz a verdade; (ii) o actante
é colocado na conjugação do ser com o não-parecer; (iii) essa condição levará a
narrativa na direção de tentar desvendar esse segredo para, a partir daí, realizar o
julgamento. De imediato, aparece uma elucidação: “ele tem vergonha de mim”, que,
ao tentar revelar o segredo, constrói uma verdade (veridicção) e figurativiza o anti-
sujeito como ser preconceituoso. O maniqueísmo se evidencia: um sujeito padece o
preconceito do próprio marido, o anti-sujeito. Nascem o herói e o vilão em uma
32
Para a realização desse item, analisamos as quatro edições de cada programa, corpus deste trabalho, e,
como exemplo, citamos uma entrevista de cada edição: assim quatro entrevistas de Casos de família e
quatro do Programa Silvia Poppovic.
33
A análise desse item foi dividida em três partes para ficar em sintonia com o formato do programa
Casos de família, no qual os convidados são entrevistados um de cada vez até formar uma dupla sobre o
mesmo caso. Na primeira parte, é realizada uma análise da primeira entrevista com um dos participantes
da dupla, a Cristiane; na segunda, a análise centra-se na entrevista realizada com o segundo membro da
dupla, o marido de Cristiane, José; e, por fim, na última parte, é realizada uma leitura sobre o
“julgamento”, que compõe o fim do programa. A transcrição das entrevistas e do “julgamento” analisados
constam em anexo deste trabalho (anexo 09), também divididos por partes e por tema. O restante das
entrevistas (2, 3 e 4) também constam transcritas nos anexos.
100
narrativa dita “real” (ou não-ficcional). As figuras e os temas que vão sendo
incorporados no enunciado vão tornando significativos os efeitos passionais decorrentes
das marcas discursivas.
Cristiane, revestida de traços semânticos que modulam suas especificidades de
linguagens, revela-se como um ator marcado pelo estereótipo do oprimido, ser
desprovido do poder e do saber, configurando a fase da disposição do esquema
canônico, em que concede as condições necessárias para que a sensibilização aja. As
diferentes linguagens que a compõem corroboram com esse estereótipo: (i) as figuras de
conteúdo e da expressão do significante visual, tais como, a cor negra de sua pele e a
ausência de elementos na vestimenta que concederiam à personagem requinte e
sofisticação (brincos, colares, cabelos luxuosos etc.); (ii) a gestualidade que mostra uma
mulher envergonhada, sem grande expressividade ao falar, com gestos comedidos; (iii)
a articulação verbal que mostra dificuldade em formular e em concluir frases,
dificuldade em responder às perguntas da apresentadora, falta de fluência na fala; (iv) a
linguagem verbal oralizada que demonstra uma fala excessivamente coloquial em
desacordo com uma norma culta (“nóis”, “aí ele pegou”, “minhas prima” etc.). Tudo
isso marca o não-poder e o não-saber que orientam a passionalidade do sujeito.
Posteriormente, é na sensibilização que o efeito de sentido passional começa a
ganhar forma. A disposição por si não é capaz de produzir esse efeito, a
sensibilização deve agir para produzir o componente afetivo; é a transformação do ser
propriamente dito que produz efeitos patêmicos em seu percurso sintático. Trata-se da
primeira fase enunciativa da colocação em discurso das paixões. “Verticalmente, de
alguma forma, ela constrói as taxonomias culturais que filtram os dispositivos modais
para manifestá-las como paixões no discurso; horizontalmente, ela se coloca na sintaxe
discursiva da paixão, como processo total” (GREIMAS; FONTANILLE, 1993, p. 143).
Em relação ao nosso objeto, tudo se inicia pela falta, aquela de origem proppiana
reconhecida em Greimas pela imperfeição (2002): Cristiane há “sete anos” espera
conhecer a família do marido. O sentimento de espera, de retardamento, subvalência do
andamento, modifica o ser do sujeito, o faz querer com mais intensidade e,
principalmente, reforça no discurso o efeito de opressão presente. Assim, o que se vê,
tal como Zilberberg (2006) afirma, o sensível controla o inteligível, a subdimensão do
andamento, da intensidade, regula a subdimensão da temporalidade, da extensidade:
Cristiane reforça seu estatuto de sujeito (em oposição ao do anti-sujeito) pela opressão
101
(anos em disjunção com a família do marido) que a caracteriza, opondo o marido à
condição de anti-sujeito, de opressor.
Entretanto, é na tentativa de desvendar esse retardamento, mostrar porque a
conjunção não se efetiva, que o discurso se modifica e aumenta sua passionalidade. É
quando temos o início da emoção propriamente dita. Segundo Bertrand, “à ‘emoção’
corresponde a crise passional que prolonga e atualiza a sensibilização; é o momento da
patemização propriamente dita, que manifesta, por exemplo, o discurso passional”
(2003, p. 374). Ela pode ser sentida nas palavras de Cristiane: “eu fiquei pensando que
ele tem vergonha de mim, por causa da minha cor...”. um sujeito que sofre
preconceito pelo próprio marido. Ocorre uma gradação disfórica: O marido de Cristiane
tem vergonha dela, tem preconceito e a humilha. “É porque sempre fala que as prima
dele são tudo loira, alta, tanto que a irmã dele é assim branca que nem ele, o sobrinho
também né...aí eu fiquei pensando, só pode ser isso, né! Talvez ele tem vergonha de
chegar e apresentar pra família dele (...)É...preconceito assim pela cor, pela nossa classe
social também, porque ele fala que um tio dele tem mercado, o outro tem açougue, tem
uma condição financeira boa, entendeu? E nóis não, nóis mora numa invasão, assim ele
trabalha, faz bico, ele se vira de tudo jeito, mas não chega de chegar a uma condição
assim... a gente já teve carro, tudo pra ir lá, ele não...”
Pronto! Enfim foi construída a imagem de Cristiane, tal como Cinderela, pobre
e humilhada
34
, o que configura a injustiça que marca sua trajetória. É importante
salientar a importância que isso significa: parece que somos impelidos, talvez em
decorrência dos interdiscursos judaico-cristãos que orientam o nosso pensamento
ocidental, a acreditar que o sujeito (ou o protagonista de qualquer narrativa de ficção ou
de “realidade”) deve ser sempre, ou pelo menos na grande maioria das vezes, um sujeito
humilhado, um sujeito injustiçado, carente de poder e de saber. Solidarizamos-nos com
esse tipo de julgamento e, em oposição, construímos a imagem do anti-sujeito, aquele
que é emancipado, que detêm o saber e o poder e faz-fazer.
A subdimensão espacial também é decisiva para reforçar a injustiça que sofre
Cristiane. Na indignação marcada pela intensidade (tonificação) da voz da
apresentadora ao se referir na curta distância que separa o sujeito de seu objeto: “Aqui
em São Paulo?!”.
34
J. Courtés (1979) analisa algumas edições da história de Cinderela que em muito se relaciona com a
história de Cristiane.
102
Na realidade, todos os efeitos passionais desse enunciado se desenvolvem a
partir do percurso do sujeito patêmico Cristiane, vítima da humilhação dispensada pelo
marido (pelo menos até a primeira parte do texto), que rompe com o esperado e instaura
o inesperado (GREIMAS, 2002). No termo de Zilberberg, o acontecimento (2007)
rompe com a continuidade e intensifica o discurso.
De acordo com o Micro-Robert, o acontecimento se define como
“aquilo que acontece e tem importância para o homem”. A primeira
indicação é mais legível que a segunda, por ser da ordem do sobrevir,
da subtaneidade, ou seja, do andamento mais rápido que o homem
possa experimentar. A segunda indicação, “e tem importância para o
homem”, refere-se à tonicidade, na medida em que esta é a
modalidade humana por excelência, estabelecendo o próprio estado
do sujeito de estado (2006, p. 181).
O esperado é o marido admirar a mulher, quando o inverso ocorre, principalmente, se
reforçado pelo lexema “vergonha”, uma intensificação do discurso gerada pelo
inesperado, pela subtaneidade, pelo acontecimento: pela quebra de protocolo. Isso
ocorre pelo modo de junção concessivo. Nas palavras de Diniz:
Zilberberg define como modos de junção a implicação e a concessão.
O modo implicativo é aquele conhecido como o da “causalidade
legal”, “o direito e o fato estão em concordância um com o outro”:
“se a, então b”. O modo concessivo é, segundo os gramáticos, aquele
da “causalidade inoperante”: “mesmo que a, no entanto não b.
Geralmente, a intensificação concessiva, por seu andamento vivo e
elevado, é mais intensa que a primeira; por isso mesmo é que a
concessão é tão preciosa. (2007, p. 07).
A concessão, na maioria das vezes, realiza-se pelo uso de um conectivo concessivo,
como, por exemplo, “apesar de”. Embora, no texto, não tenhamos esse conectivo
expresso lexicalmente, culturalmente, devido às circunstâncias presentes em toda a
extensão do enunciado, a concessão se realizada com igual “preciosidade”. Podemos
entender o enunciado da seguinte maneira: “apesar de ele ser o marido dela, apesar de
viverem há sete anos juntos, ele tem vergonha dela, ele a humilha, ele não lhe apresenta
a sua família”. Assim, por todas as linguagens (verbal, visual e sonora) que envolvem
Cristiane, houve um constante aumento da intensidade discursiva, responsável pela
passionalidade. A presença do segredo e a sua suposta revelação (vergonha), marcada
pela concessão, foram responsáveis, principalmente, pelo sentido patêmico presente no
enunciado. Tudo isso ocorre, evidentemente, pela construção de uma paixão
103
intersubjetiva que liga sujeito e anti-sujeito. A humilhação dispensada por José à
Cristiane, ancorada por todas as marcas discursivas mencionadas, caracteriza o
grande impacto passional e revela a paixão. O não-saber, o não-poder e o não-ser que
representam Cristiane estão em oposição ao poder, ao saber e ao ser quer representam
José. O diagrama seguinte mostra o avanço da intensidade durante a primeira entrevista:
Onde:
(i) a relação é do tipo conversa: quanto mais, mais...;
(ii) o efeito orientado pelo modo de junção concessivo intensifica-se
pela extensidade;
(iii) a vergonha relaciona-se apenas à cor e à classe social de Cristiane;
a humilhação, à cor, à classe social, ao tempo e ao espaço;
(iv) a humilhação é acionada em função do tempo e do espaço. Num
primeiro momento, José tem vergonha de Cristiane pela cor e pela
classe social; a humilhação só se inicia, de fato, a partir do
momento em que o tempo da disjunção torna-se longo (“sete
anos”) e o espaço curto (“aqui em São Paulo!”).
Para concluir, uma oposição semântica delineia-se na arquitetura do sentido,
responsável pelo efeito de /injustiça/ que marca o sujeito oprimido Cristiane:
humilhação
admiração
Pobreza/ cor
negra
Intensidade
Riqueza/
cor branca
Tempo breve
Espaço longo
Tempo longo
Espaço curto
Extensidade
104
Parte II – a revelação do segredo: retorno a extensidade
No entanto, durante a segunda entrevista, com o marido de Cristiane, José, o
anti-sujeito, percebemos uma atenuação da intensidade e um retorno a extensidade, de
modo que o efeito de sentido passional diminui. Quando a apresentadora chama Jo
para ser entrevistado: “Então vamos conhecer o José que tem 31 anos e diz ‘eu não
tenho muito contato com os meus familiares, eles me procuram quando precisam de
alguma coisa’. José, por favor, entre”. Já, nesse texto introdutório, o sentimento de
vergonha que orientou toda a primeira entrevista, deixa de ter sentido, pois nem é
mesmo citado. O modo de junção concessivo que sensibilizou a primeira parte não
existe mais. O segredo recomeça a ser revelado, mas num outro rumo. È a quebra
isotópica dada entre uma entrevista e outra que vai garantir o retorno à extensidade.
Num primeiro momento, José diz que não leva Cristiane para conhecer seus
familiares por falta de tempo: uma tentativa frustrada de revelação, pois faz sete anos”
que estão juntos, que é reforçada pela sonoridade, cuja falta de fluência na fala maquia o
efeito de verdade. após outra pergunta da apresentadora que o segredo,
definitivamente, começa a ser revelado. Nas palavras dela: “E é falta de vontade
também sua de visitar a sua família, porque tem família que não se bem, não tem
aquela história de família que fica bem na porta retrato e tal, tem gente que não gosta de
visitar a família, que não se dá bem, que se sente diferente da família?”.
José começa então a orientar uma nova passionalidade intensiva que vai
tomando forma. São os atritos com a família, no passado, que impedem a conjunção tão
almejada por Cristiane; não é mais a suposta vergonha (concessiva) que definiu a
intensidade passional num primeiro momento, mas a rejeição e o conseqüente desejo de
Orgulho
(riqueza/ cor branca)
Vergonha
(pobreza/ cor negra)
Admiração
(riqueza/ cor branca/
tempo/ espaço)
Humilhação
(pobreza/ cor negra/
tempo/ espaço)
Justiça Injustiça
105
vingança que modalizam o anti-sujeito. José é rejeitado pela família (“...eles chegaram e
nem abriram o portão, foram no portão aí.../O que que eu refleti: eles não me
receberam...”) e deseja vingar-se (“eu to tentando ou eu to pensando ao menos retribuir
o mínimo que eles fizeram por mim”). Vale lembrar que José tenta em vão construir
uma boa imagem de si mesmo, substituindo o termo “vingança” por “retribuição”. Mas
o seu discurso, por mais que se pretenda envolvente e persuasivo, não convence nem
mesmo o próprio sujeito que o enuncia, surgindo assim as contradições e ambigüidades.
Ocorre um declínio da intensidade pela quebra isotópica marcada pelo fim da
junção concessiva, tematizada pela “vergonha”, com o retorno à extensidade.
Posteriormente, inicia-se uma tentativa de retorno à intensidade, na qual os sentimentos
de rejeição e de vingança se destacam. Podemos pensar no seguinte diagrama que marca
a variação patêmica durante as duas entrevistas.
O número 01, no alto da primeira curva, indica o momento de maior
passionalidade durante a primeira entrevista, em que aparece a concessão marcada pela
vergonha, pela humilhação (tempo e espaço), é o pico da intensidade, é a “emoção” que
segue até o final da entrevista de Cristiane. O número 02, alta intensidade ainda, é
quando José participa do programa, quando o segredo começa a ser revelado por José,
configurando a tensão presente. No entanto, a partir da fala de José, ocorre uma
diminuição da intensidade pelo fim da concessão, chegando até o número 03, próximo
da extensidade. A partir disso, uma nova intensidade começa a ser estabelecida depois
da quebra isotópica, quando José fala da “rejeição” da família e de suposta “vingança”,
intensidade que segue até o final da entrevista.
Evidentemente, é impossível estabelecer com precisa exatidão as ondulações
desse diagrama, ele apenas trata dos aspectos mais relevantes sem rigor matemático.
Extensidade
01 02
03
04
Intensidade
106
Entretanto, é possível perceber, por toda a análise representada no diagrama, que a
segunda curva é menos intensa que a primeira, isso porque as paixões que orientam José
(rejeição – vingança) não são marcadas pela concessão, tendendo sempre à extensidade.
Parte III – O julgamento
Por fim, após ouvirem os envolvidos, Cristiane e José, é o momento da
“sentença”, é o momento do julgamento, é o momento da moralização, última etapa do
esquema canônico do sujeito patêmico. Ela ocorre quando um observador social
encarrega-se de interpretar o percurso passional realizado por um sujeito, pressupondo e
ao mesmo tempo mascarando a sensibilização, que foi responsável pela patemização do
discurso. Nas palavras de Fontanille e Greimas, ela se realiza da seguinte forma:
O avaliador estabelece seu julgamento a partir de considerações
veredictórias (o falso para a vaidade, mas também a mesquinhez, o
segredo para a hipocrisia), epistêmicas (para a suficiência ou a
presunção), aspectuais (o excesso) etc. Mas qualquer que seja a
categoria modal em nome da qual o julgamento é enunciado, o
motivo que parece suscitar o próprio julgamento é sempre da ordem
do “demais” ou do “pouco demais” (1993, p. 150-151).
Em Casos de família, quem sentencia é o Destinador-julgador, figurativizado
pela apresentadora, pela platéia (“conhecimento popular” - fé) e pelo especialista
(“conhecimento científico” - razão). O julgamento aparece na tentativa de: (i) interpretar
as falas dos dois entrevistados; (ii) identificar qual posição do quadrado de veridicção o
discurso de cada entrevistado deve ocupar; (iii) finalmente, moralizar, ou seja, atribuir
um juízo de valor após a interpretação, levando em conta a aspectualização das
modalizações.
Pela interpretação, durante a primeira entrevista, podemos perceber que
Cristiane construiu uma verdade (ser + parecer) inicial opondo-a ao segredo (ser + não-
parecer) que representava o marido. A verdade era a humilhação dispensada a ela; o
segredo referia-se a todos os desdobramentos passionais que marcariam a trajetória do
marido, descobertos apenas na segunda parte. Com o início da segunda entrevista, o
discurso de Cristiane foi colocado em xeque, ocupando a posição de falsidade (não-ser
+ não-parecer); por fim, o discurso de José, após denunciar a rejeição de sua família e o
seu sentimento de vingança, deixa de ocupar a posição de segredo e ocupa a posição de
verdade.
107
Na fase da moralização propriamente dita, momento de atribuir um juízo de
valor aos dois convidados, podemos perceber com precisão o julgamento das paixões
em jogo e principalmente as suas aspectualizações. Nas falas da especialista, Anahy
D´amico, (i) Cristiane é julgada pelo “erro” cometido (“É incrível como mulher tem
esse movimento de puxar pra si o que ta errado (...) e isso é um erro né!”); (ii) Cristiane
tem um querer intenso demais (“então quando a gente fica forçando a barra, a gente
acaba encurralando o outro numa situação que ele não ta preparado”; “começam a
pressionar para serem apresentadas”); (iii) a paixão de Cristiane deve ser menos intensa
(“não adianta ficar pressionando, essas coisas acontecem na hora que tem que
acontecer”). Finalmente, a apresentadora Regina Volpato expõe ao longo de seu
arremate, reforçando o que a especialista disse, a intensidade da paixão de Cristiane
que deve ser amenizada, deve tender à extensidade (“apresentar pra família pode
acontecer ou não, mas tem o seu devido tempo, naturalmente”; “não adianta pressionar,
calma, forçar a barra não resolve nada, aí sim pode prejudicar a vida do casal”).
Entrevista 2 – “Minha mãe morre de ciúme da minha sogra”
Parte I – o universo passional do ciúme
Nessa narrativa, Neuza é o sujeito que está em disjunção com seu objeto-valor,
uma boa relação com a mãe, seu anti-sujeito. Segundo Ruth, sua mãe tem ciúme de sua
relação com a sogra e isso complica o relacionamento entre mãe e filha. Mas, desde o
início da narrativa, mesmo na apresentação de Neuza, é o percurso do anti-sujeito que se
firma e que se converte em sujeito patêmico.
A apresentadora, ao chamar Neuza, a primeira convidada da dupla, instaura o
universo passional que orientará toda a entrevista. “Agora a gente vai conhecer a Neuza
que está com 31 anos e diz ‘eu organizei uma festa surpresa para a minha sogra e a
minha mãe ficou arrasada’. Neuza, por favor, entre!”.
Essa introdução, quando aliada ao tema do programa (“minha e morre de
ciúme da minha sogra”), deixa evidente a sensibilização da paixão que orientará o
percurso patêmico do sujeito. O “ciúme” se evidencia na fase mais passional: “minha
mãe ficou arrasada”.
Greimas e Fontanille (1993) mostram que a paixão do ciúme é decorrente da
articulação de duas configurações, a rivalidade e o apego, de modo que “o apego é
reforçado pela rivalidade, e a rivalidade se aguça pelo apego que a motiva(Ibidem, p.
173). E as definem:
108
A rivalidade não será nunca, para o ciumento, alegre e conquistadora,
mas se apresentará de preferência como dolorosa e amarga, tendo por
perspectiva a perda do objeto; por outro lado, o apego será
profundamente inquieto e preocupante, porque ameaçado pelo rival:
no momento mesmo em que conta apenas a relação com o ser amado,
por exemplo, por inquietude guarda o vestígio ameaçador e mais ou
menos imaginário de um anti-sujeito (Ibidem).
Durante a primeira entrevista, o percurso de Neuza vai sendo exposto, ao
mesmo tempo em que demonstra as “causas” que provocam ciúme em sua mãe. Nos
oito primeiros anos de seu casamento, Neuza não tinha contato com sua sogra (“a gente
não se dava bem”), mas depois se aproximaram e passaram a ter uma boa relação
(“depois ela ficou um pouquinho longe né, a gente começou a se dar bem, depois ela
mudou perto e eu acostumei ir na casa dela, sábado, domingo. Agora não, agora ela
mora bem pertinho e eu vou todos os dias”). A partir dessa proximidade, o ciúme de
Ruth pela filha começa a se manifestar.
Trata-se do início da rivalidade que marca a relação de Ruth com a sogra.
Num primeiro momento, a situação de rivalidade vai se firmando pelo sentimento de
emulação, que corresponde à comparação entre as competências de um actante e outro.
uma comparação entre o saber-fazer e o poder-fazer de Ruth em relação à sogra
(anti-sujeito para Ruth). A sogra apresenta as mesmas competências de Ruth: ela é mãe
e mora perto de Neuza.
Mas, mesmo apresentando as mesmas competências, Neuza prefere a
companhia da sogra (“antes de eu subir pra casa da minha sogra, eu passo na casa dela”,
Regina Volpato: “e dia das mães, natal, aniversário, como é que funciona?”/ Neuza: “eu
passo na casa dela (mãe), subo, passo na casa dela e falo ‘oi’ e subo pra casa da
minha sogra”). Inicia-se, então, uma outra fase da rivalidade: a inveja, que pode ser
vista a partir de duas perspectivas (Ibidem, p. 176):
1- “sentimento de tristeza, de irritação ou de ódio que nos anima contra quem
possui um bem que não temos”;
2- “desejo de gozar de uma vantagem, de um prazer igual ao de outrem”.
Ruth, desse modo, parece, durante a entrevista de Neuza, apoiar-se nessa
segunda perspectiva, invejando a sogra pela companhia da filha. Evidentemente, o
ciúme se manifesta, pois a junção entre o rival e o objeto e o ciumento torna-se,
109
enquanto observador, excluído da relação de junção (“as duas conversam, mas que
não se vêem em festa, uma na casa da outra não vão”, “eu convido a minha mãe e minha
mãe fala assim “eu não vou”). Ciúme manifestado é o momento da emoção: “ela até
chora. Ela fala que eu tenho que ir mais na casa dela, que ela é minha mãe”.
Ocorre, durante essa primeira entrevista, a junção concessiva caracterizada
pela proximidade de filha e sogra e pelo distanciamento de mãe e filha, de modo que a
paixão do ciúme tratada até aqui parece ser legítima e justificada. E, de fato, Neuza
deixa a posição de sujeito (pelo menos por enquanto) e passa para a posição de objeto.
Parte II -
A segunda entrevista confirma, desde seu início, a paixão presente no percurso
de Ruth, o sujeito patêmico (Regina Volpato: “você é uma mulher ciumenta, assim no
geral?”/ Ruth: “Muito!”/ Regina Volpato: “tem ciúme de tudo?”/ Ruth: “tenho ciúme
dela e de todos os filhos, só que mais dela”/ Regina Volpato: “e das outras coisas? Você
também tem ciúme?”/ Ruth: “dos meus filhos tenho de todos..”/ Regina Volpato: “e de
outra coisa? Marido?”/ Ruth: “tenho também”/ Regina Volpato: “das suas coisas você
tem ciúme?”/ Ruth: “tenho”/ Regina Volpato: “tem algum animal de estimação?”/
Ruth: “tenho”/ Regina Volpato: “tem ciúme?”/ Ruth: “tenho”/ Regina Volpato: “então
você é ciumenta?”/ Ruth: “sou muito ciumenta!”.
Desse modo, a narrativa acentua um confronto entre mãe e filha: se de um
lado, Neuza apresenta uma disposição a se aproximar da sogra; de outro, Ruth
apresenta-se como sujeito ciumento. Se Ruth não tivesse disposição ao ciúme, a
trajetória de Neuza seria eufórica (teria uma boa relação com a mãe) e; se Neuza tivesse
um distanciamento da sogra, a trajetória de Ruth seria eufórica. No entanto, os dois
percursos tendem a lados opostos e são intensificados pela concessão (relação de mãe e
filha prejudicada pela sogra).
A passionalidade intensifica-se na medida em que Neuza se aproxima da
sogra: ([ciúme] “mais com a Neuza porque fica mais na casa da sogra do que em casa.
Faz festinha de aniversário pra sogra, pra mim nunca fez”/ “ ‘já chamei minha sogra pra
vir, a senhora não vai vir?’. Daí deixa eu em segundo lugar...Daí eu fico triste, até
choro”/ “muito grudado com a sogra!”).
Parte III – O julgamento
110
No momento final do programa, o especialista e a apresentadora vão
identificar, através de um discurso “politicamente correto”, quem é o verdadeiro sujeito
da narrativa e quem é o anti-sujeito. Após a confusão de papéis durantes essas
entrevistas, o discurso final concede um dever fazer.
Para o especialista, um dos Destinadores-julgadores, Neuza é o sujeito, mesmo
estando ausente da e: “eu acho que essa ajuda [para a sogra] tem que continuar”. E
para Ruth, a sentença indica a necessidade de diminuir a intensidade da paixão. Se, por
um lado, o ciúme aviva uma situação de rivalidade, por outro, intensifica a situação de
apega, o sujeito ciumento necessita de uma aproximação mais intensa do objeto. Mas o
especialista arremata: “agora não dá pra ficar cobrando. Amor não se cobra”.
E, finalmente, aprofundando as palavras do especialista, a apresentadora
explica o motivo de não poder cobrar, de ter que diminui a intensidade do ciúme:
...porque quando a pessoa ta com a gente, a gente nunca sabe se está
por livre e espontânea vontade ou se ta ali por pressão, se ta ali
obrigada. Então esse tempo que a pessoa fica com a gente, a gente
nem consegue curtir porque acha...tudo a gente interpreta do jeito que
a gente quer, então a gente vai achar que ta louca pra ir embora, que
ta ali só por obrigação, que ta ali mas ta pensando na sogra, que só foi
ali porque a sogra não podia. Então a gente fica o tempo todo
desqualificando a companhia da pessoa porque a gente não entende
que ela está ali porque ela quer, pela nossa companhia, ta ali porque
deu vontade. Então quando a gente pára de cobrar o que vem é sempre
bem-vindo, é espontâneo. E conforme vai ficando espontâneo, vai
ficando mais gostoso, vai ficando mais gostoso e a gente vai ficando
mais tempo juntas. Quanto mais a gente cobra, mais a gente afasta
(trecho em anexo).
E, nesse sentido, as palavras da apresentadora, que tratam do apego junto com
a rivalidade, mesmo usando de “bom senso” parecem comungar com a semiótica da
paixão do ciúme realizada por Greimas e Fontanille:
É evidente que o que impede o sujeito de sentir prazer com seu objeto
é a rivalidade: é ela que adquire a forma patêmica da inquietude e da
sombra, no contato com o apego (1993, p. 191).
Sob a influência da rivalidade, o apego transforma-se, pois, em dúvida
(Idem, p. 192).
Incapaz de gozar serenamente o objeto, entravado em seus combates
contra o rival, o ciumento agita-se em lugar de agir e desconfia em
vez de confiar (Ibidem).
111
Entrevista 3 – “Você não aceita a minha condição sexual”
Parte I e II – o universo passional do preconceito
Nessa narrativa, Alan é o sujeito que está em busca de um objeto-valor, a
relação conjuntiva com a família, representada pela tia, Maria Cristina. Esta se
apresenta como anti-sujeito porque ainda não aceitou a “condição sexual” do sobrinho,
está em disjunção.
Desde a pergunta da apresentadora (“com que idade você assumiu a sua
condição sexual, Alan?”) a narrativa segue destacando aspectos da orientação sexual de
Alan com certa linearidade cronológica. Ele se assumiu jovem (“eu tinha 16 anos de
idade”) e “descobriu” ser homossexual ainda mais cedo (“desde pequeno assim eu
sempre tive uma atração por homens”). Mas, por não se aceitar, resolveu construir uma
imagem de heterossexual, ao ponto de namorar uma menina (“eu tentei gostar. Eu
pensei assim: ‘eu quero provar pra ver se é disso mesmo que eu gosto’”). Até que teve
certeza de sua sexualidade (“eu vi que minha opção era ser gay, ser homossexual”) e
passou a se relacionar com outras pessoas, fato que levou sua família a ter certeza de
sua sexualidade e, a partir disso, a rejeitá-lo.
O quadrado de veridicção abaixo mostra a correlação entre o ser e o parecer
que marca a trajetória de Alan e, por conseqüência, de sua família:
Alan, desde pequeno, sente atração por homens, mas encobre sua
homossexualidade, pois não a aceita, e mantém relações afetivo-sexuais com mulher.
Ser
(homossexualidade)
Parecer
(exercício da homossexualidade)
Não-parecer
(não-exercício da
homossexualidade)
Não-ser
(não-homossexualidade)
Segredo
/Tolerância/
Mentira
/Intolerância/
Falsidade
/Aceitação/
Verdade
/Rejeição/
112
Isso o coloca na posição de segredo que é gay, mas não parece, não exerce sua
sexualidade. No entanto, a posição de segredo não é confortável para o sujeito patêmico.
Nas palavras da própria especialista sobre o assunto, “eu acho que quem se assume
como homossexual sabe das conseqüências, mas é tão forte que não pra lutar contra
aquilo”. Assim, Alan deixa essa posição de segredo e caminha em direção à verdade,
exercendo sua sexualidade (conquista amigos e participa de eventos para o público gay).
Trata-se de um caminho eufórico para Alan que deixa uma posição de
segredo em direção à posição de verdade, no entanto, para a família o percurso do
sujeito concentra valores disfóricos. Devolve-se assim o percurso patêmico, não do
sujeito, mas da família (figurativizada pela tia), que desenvolve a isotopia do
/preconceito/.
Em todo o texto, é possível perceber duas oposições temáticas ligadas ao
/preconceito/: /tolerância/ vs. /intolerância/ e /aceitação/ vs. /rejeição/, que, de acordo
com o percurso do sujeito, torna-se nítida uma ou outra configuração temática do ponto
de vista do anti-sujeito, a tia:
Segredo - /tolerância/: Trata-se da situação inicial em que Alan,
embora tenha conhecimento de sua orientação sexual (ser), não a
coloca em prática (não-parecer). A tia já desconfia do segredo
inutilmente encoberto por Alan. Em suas palavras: “[desconfiava]
quando ele foi crescendo. eu falei ‘ai meu Deus, será que o meu
sobrinho vai ter o jeito né, o jeito dele falar, tudo’. (...) Eu perguntei,
mas ele... Ele falou ‘aí tia, no tempo a senhora vai saber’. eu falei
assim ‘eu vou saber o quê? Fala logo o que é que ta acontecendo com
você!’. Aí meus vizinhos né perguntou pra mim ‘o que é que ta
acontecendo com o Alan que o Alan ficou assim, o jeito dele?’. eu
falei ‘eu não sei, ele não me conta’. ele conheceu uma moça, ele
começou a namorar com a moça. A moça era da nossa família, colega,
tudo né”.
Verdade - /rejeição/: Nesse momento, Alan inicia o exercício de sua
homossexualidade e revela o segredo, passando a ocupar a posição de
verdade. “Aí ele largou da moça. Daí ele chegou em mim e falou ‘tia,
eu não gosto de mulher’ (...) ‘Eu vou ter que falar a verdade pra
senhora, eu gosto de homem’”. Se, na posição de segredo, a família
/tolerava/ a suposta sexualidade de Alan justamente porque ele não a
113
praticava (não-parecer), agora, não posição de verdade, o ser e o
parecer agem no sentido de qualificar o sujeito (ele pode, sabe e
adquire o querer): Alan é homossexual e age como homossexual. Isso
leva a família à deixar a posição de /tolerância/ e fixar-se na posição
de /rejeição/, como mostra o esquema tensivo do /preconceito/:
O sentimento de rejeição, de não-aceitação, está muito presente no texto e fica
claro no discurso do anti-sujeito: “Aí eu fiquei revoltada com ele, fiquei triste. eu
falei ‘então você não fala mais comigo, não olha mais pra mim, que eu criei você como
homem, como menino, desde que você nasceu’ (...) Porque a gente não aceita”.
Tudo isso, no esquema passional canônico, refere-se à disposição e a
sensibilização do discurso, fases que antecedem à emoção. Esta, entendida como o
momento de maior passionalidade, está bem figurativizada pelas roupas que são
queimadas no quintal. O fogo torna-se figura emblemática nesse discurso do
preconceito, é o momento da crise passional. As chamas ardentes supostamente
extinguiriam o parecer do sujeito, aspecto fundamental da /rejeição/ presente no
discurso do /preconceito/. Mas, mais do que isso, o discurso apresenta-se demasiado
“intenso”, instaurando uma nova configuração temática: /agressão/ vs. /proteção/ ou
/aprovação/. Evidentemente, a emoção intensa presente na paixão do /preconceito/ do
anti-sujeito desencadeia a /agressão/.
Do ponto de vista enunciativo, tal como nas análises realizadas anteriormente
sobre esse programa, é perceptível as tensões que modificam o interesse de um
enunciatário. O gráfico abaixo tenta ilustrar essa curvatura tensiva:
Aceitação
Rejeição
Ser
Intensidade
Não-ser
Parecer
Não-parecer
Extensidade
Intolerância
Tolerância
114
O número 01, no alto da primeira curva, indica o momento de maior
passionalidade durante a primeira entrevista (com Alan), em que a isotopia do
/preconceito/ tematizada pela rejeição e pela agressividade (fogo nas roupas) manifesta-
se. Somam-se a isso as características do próprio Alan, que figuram um sujeito carente
de poder e de saber para enfrentar a situação que se encontra. O sentimento de
abandono, de não-conjunção que caracteriza a relação da família com o filho, torna-se
concessivo, passional, intenso. Mas, no decorrer entrevista, a repetição dos temas e o
bate-papo prolongado tornam o diálogo menos intenso, culminando no número 02.
O número 03, entretanto, indica uma nova passionalização e alta intensidade.
Trata-se do momento em que a tia (Maria/anti-sujeito) participa do programa,
acentuando o interesse por saber/conhecer a motivação da trama central: o /preconceito/.
A intensidade aumenta no momento em que a apresentadora pergunta ao primeiro
convidado quem é o outro participante. O tom de voz característico e a expressão facial
de indignação denunciam que o “clima vai ficar tenso”:
Regina: E quem é a Maria Cristina que veio aqui com você?
Alan: A Maria Cristina é a minha tia, que me criou desde os sete anos de idade.
Regina: É essa que queimou ou não?
Alan: Foi.
Regina: Essa que queimou as coisas?
Parte III
Para manter um “bom-senso”, o julgamento proferido no final considera a
isotopia do preconceito algo /triste/ (“eu acho muito triste ver o preconceito assim na
forma mais cristalina”), concedendo valoração ao quadrado de veridicção proposto
sobre esse assunto. De um lado, a /aprovação/, a /aceitação/ e a /tolerância/
Extensidade
01
02
03
04
Intensidade
115
correspondem numa axiologia atual ao sentimento de euforia, tematizado por semas
como /correto/, /bom/, /feliz/. E, por outro lado, a /agressão/, a /rejeição/ e a
/intolerância/ correspondem ao sentimento de disforia, cujos semas são /incorreto/,
/mau/, /triste/.
Mas, o texto enfatiza uma nova condição que deve ser levada em conta no
discurso do preconceito. Trata-se do /respeito/ que aparece de duas maneiras: 1.
julgando negativamente o anti-sujeito: “ninguém é obrigado a aceitar que o familiar seja
homossexual, mas é obrigatório sim que se respeite essa pessoa. (...) Então ele tem que
ser respeitado, isso tem que acontecer”. 2. Julgando negativamente o sujeito: “porque eu
acho que quando a gente fala ele tem que aceitar, ela tem que aceitar’, é tão agressivo,
é tão duro, é tão preconceituoso quanto o outro que fala ‘eu não aceito’. Será que tem
que aceitar? Se a gente acha que alguém tem que aceitar, a gente também ta sendo
preconceituoso porque a gente quer colocar o nosso ponto de vista acima do outro. Se
aceita ou se não aceita é uma questão de cada um, agora se se respeita você até
consegue ir numa festa familiar, você consegue, todo mundo junto, se tratar com
elegância, com decência, com respeito. É isso que a gente precisa conseguir na vida”.
O julgamento realizado pela especialista e reiterado pela apresentadora
instaura, na verdade, um discurso do “bom-senso”, manifestado pela /moderação/ e
tematizado pelo sema /respeito/. No texto, prevalece o argumento de que é possível não
aceitar, não entender a homossexualidade, mas “é obrigatório respeitar”.
Entrevista 4 – “Só você não percebe o quanto é esquisito”
Parte I e II – a passionalidade do dever-fazer
Priscila, a primeira entrevistada, não representa nenhum papel actancial: não
está em busca de nenhum objeto valor, portanto não pode ser considerada nem como
sujeito, nem como anti-sujeito. O seu papel consiste em apenas narrar o fato que traz
como protagonista sua mãe, Mirian.
Segundo a filha, Mirian apresenta um “habito esquisito”, ela lambe as roupas
para saber se precisam ser lavadas. A fala de Priscila denuncia um “hábito” que
apresenta uma aspectualização temporal incoativa, que nunca cessa. Há anos Mirian age
dessa maneira (“quando eu era pequena eu não cheguei a perceber tanto né. Mas quando
eu fiz os meus treze, quatorze anos assim, eu fui começar a perceber” [...] Sempre foi [o
jeito dela]. Toda a vida” [...}Pra ela sempre ta salgada, nunca a pessoa... não pode parar
de suar, a pessoa sempre ta suando pra ela). Além disso, já denuncia uma intensidade no
116
querer de Mirian que se eleva a um dever-fazer: todos que entram em sua casa devem
tomar banho, mesmo não querendo; suas roupas devem ser lavadas mesmo limpas;
devem colocar roupas “de casa”, devem tirar os sapatos.
Enfim, Priscila denuncia uma patemização no percurso de Mirian marcada por
uma aspectualização temporal incoativa e um dever-fazer demasiado intenso. Os termos
“sempre”, “toda a vida”, “nunca”, “todo dia”, entre outros, denunciam a reiteração do
“hábito”; e “mesmo a pessoa não querendo”, “tem que tomar!”, “não, você não vai
dormir sem tomar banho”, “Ela tem que...não sei o que acontece, tem que lavar!”
mostram a intensidade do “hábito”.
Mas, é durante a segunda entrevista que tudo o que foi narrado por Priscila
ganha “existência patêmica”, ganha concretude no discurso. Quando a apresentadora
chama Mirian ao palco, ela destaca a intensidade do “habito” de Mirian que diz: “eu não
consigo dormir enquanto souber que tem uma roupa suja esperando para ser lavada”.
Não se trata de uma sensibilização orientada pelo querer-fazer, mas por um dever que
se desenvolve no percurso do actante.
À medida que se prolonga a entrevista com Mirian, é perceptível um aumento
da intensidade de seu discurso, culminando na fase da emoção propriamente dita.
Ocorre uma intensidade de todas as figuras discursivas, verbais e não-verbais: o tom de
voz da entrevistada se altera, torna-se, talvez, um pouco agressivo e, com certeza, mais
ríspido; sua expressão facial também muda, os olhos tornam-se mais ágeis, ficam mais
abertos; seu corpo se inclina para frente toda vez que fala, colocando-se numa posição
mais “ativa”, demonstrando reação às perguntas; responde algumas perguntas antes
mesmo da apresentadora terminar de pronunciá-las. Esse /exagero/ perceptível no plano
da expressão visual e verbal corresponde ao próprio /exagero/ presente no conteúdo, é a
própria aspectualização da paixão decorrente do dever-fazer, o exagero do dever.
Em relação ao conteúdo verbal, há uma gradação do sentido dos termos
usados por Mirian. No início, são mais brandos, educados, correspondendo a um bate-
papo informal, com elogios em relação ao programa e trato carinhoso com a
apresentadora (“Adoro este programa”, “Aí eu preciso arrumar né, filha”, “Eu quero
trabalhar sempre, não quero ficar dependendo de filho não”). Posteriormente, à medida
que defende a maneira que se comporta (em relação ao exagero para manter roupas
limpas), à medida que as perguntas relacionam-se ao “hábito”, os termos começam a
parecer mais rudes, denunciado o dever-fazer que prolifera em seu comportamento (“Eu
não gosto de ver a roupa suja não. Eu odeio”, “Pra mim é serviço de gente preguiçosa
117
que gosta de ver roupa amontoada, jogada, suja, eu não gosto!”, “Todo dia eu lavo e
brigo com ela também pra ela lavar a roupa todo dia”, “Eu não gosto não. Eu gosto de
lavar, porque eu gosto de lavar tudo na mão”, “Se tiver suja eu conheço, já tiro tudinho
e ponho pra lavar”, “Se ela provou tem que por pra lavar tudo!”, “Não, eu não
consigo não [dormir]. Eu fico olhando, olhando, tiro tudo e ponho tudo pra lavar e
enquanto eu não ponho tudo no varal e lavo tudo eu não sossego”, “Pior ainda!”,
“Quando chegar alguém, meus parentes que chega né, mando logo tomar banho,
mando logo tirar aquela roupa e ponho pra lavar”, “Eu digo ‘vai tomar banho que aqui
não entra não!’”, “Ninguém manda em mim. Eu vou, tiro e lavo”, “Odeio! Boné, orelha
furada, brinquinho... Odeio esse negócio! Na rua eu chamo atenção”, “Qualquer pessoa
de boné eu não gosto! Eu odeio!”, “Meio esquisito! Ai, eu odeio, eu não gosto!”.
Durante essa entrevista, a apresentadora cede o microfone a uma pessoa da
platéia que, em poucas palavras, diz que Mirian precisa procurar ajuda de um
especialista. E com isso a gradação tensiva continua. É a fase em que a emoção atinge
seu pico, pois a patemização do sujeito se efetiva, demonstrando todos os seus aspectos:
Eu não sou esquisita. Se todo mundo fosse igual a mim, não existia sujeira nas casas, roupa
imunda que hoje cada casa que você entra é balde de roupa no canto, é máquina lotada, não sabe se...
Varal você não roupa, uns trapos pendurados. Roupa encardida... é conhecida quando a pessoa lava
bem lavada. (...) Eu não tenho nada! Que eu andei em psicólogo, andei em todo o lugar. Eu sou de
parar bem graças a Deus. O que eu sou eu tenho que morrer assim, ninguém me tira. (...) Eu acho, é gente
que não gosta de fazer nada. Gente imunda, que dorme até meio dia, onze horas, roupa de tanque lá, é
prato dentro do tanque, é imundice de dentro de uma casa... (...) Gente mole, gente porca, imunda que é
isso! Pra mim é! Imundice! Eu do jeito que eu sou eu quero ser assim ana hora que Deus me levar. Eu
gosto de limpeza, eu não gosto de sujeira. Psicólogo! Eu nunca vi pessoa ser louco, trabalhar de diarista.
Se eu não fosse procurada assim, eu não trabalhava, eu era porca e fica em casa cuidando das minhas
porcarias.
A partir disso, é possível descrever o seguinte esquema tensivo:
Extensidade
01
02
03
Intensidade
118
O número 01, no alto da primeira curva, indica a apresentação de Mirian por
Priscila, não muito intenso, pois se trata de um relato, nada muito passional. Isso
culmina até o número 02, quando Mirian é convidada a entrar. O número 03 indica o
momento em que a emoção do esquema passional canônico se prolifera e se torna cada
vez mais intensa, até a apresentadora interromper essa fase e encerrar a entrevista.
Parte III
No momento da moralização, aparece uma elucidação de toda a narrativa. É
possível entender porque Mirian é sujeito, que está em constante busca pelo objeto
valor limpeza e pelo objeto modal lavar roupas. Isso fica claro nas palavras do
especialista: “a senhora é obsessiva por limpeza e compulsiva no ato de lavar”. No
entanto, o discurso que prevalece evidencia o anti-sujeito, que está explícito no próprio
sujeito: “[isso] ta te impedindo de levar o curso normal da vida”. Assim, Mirian ocupa
os dois papéis, de sujeito e anti-sujeito. Priscila ainda não é um anti-sujeito para a mãe,
já que “acaba tendo paciência pra não brigar, pra não se indispor”.
A paixão de destaque na narrativa trata-se de uma exacerbação de um querer
(talvez a casa limpa) que se eleva a um dever. Algumas frases deixam isso muito
evidente: “eu acho a senhora muito rígida”, “onde é que ta o seu sossego?”, “Uma
mania se torna uma coisa desagradável quando ela começa a impedir coisas na vida
da gente, comportamentos normais, a ficar tranqüilo, a ficar em paz”. Desse modo, o
dever prevalece.
Quanto à nomenclatura dessa paixão, há uma gradação de termos que acionam
diversos temas. Trata-se de “jeito” (“a senhora não quer mudar, é seu jeito, não tem
problema”), de “mania” (“eu acho que mania, Regina, todo mundo tem em menor ou
maior grau, em dimensões diferentes”), de “habito” (“porque eu tenho o hábito de pegar
e passar a língua”), de “compulsão” e de “obsessão” (“é obsessiva por limpeza e
compulsiva no ato de lavar”). Mesmo sem precisar os limites entre um termo e outro,
fica claro que de “jeito” a “obsessão” uma intensidade da aspectualização dessa
paixão, trata-se da reiteração, do exagero, que transformam Mirian num anti-sujeito em
seu próprio percurso, já que se torna “desagradável”, “rígido”, “sem sossego”.
119
2.3.3. A passionalidade no Programa Silvia Poppovic
Fontanille e Greimas apontam, em Semiótica das paixões, a sutil diferença
entre papel temático e papel patêmico, cuja problemática surge do fato de que, em
ambos, o ator é investido de segmentos de papéis sensibilizados e moralizados, o que
dificulta a distinção. Essa elucidação teórica será imprescindível para que entendamos a
diferença pontual entre os dois programas em questão. Podemos dizer de imediato que
os actantes-entrevistados do programa Casos de família cumprem papel patêmico;
enquanto que os do Programa Silvia Poppovic é revestido por papel temático. Essa sutil
e tão significante diferença faz com que no primeiro os sujeitos “sintam” as paixões
recorrentes e, no segundo, os sujeitos apenas as “relatam”.
A aspectualização de uma paixão define o modo de ser de um sujeito. O papel
patêmico afeta o ator em sua totalidade, ele é permanente; e o papel temático é iterativo.
Um ator patêmico deve apresentar, através de todas as marcas discursivas, elementos
que o constituirão como tal, modos de falar, modos de agir, detalhes em sua expressão,
enfim, o seu ser e o seu parecer devem constituir-se única e permanentemente de
manifestações da paixão. Cristiane, por exemplo, a nossa protagonista de Casos de
família, como foi dito, apresenta todas as características de um ator oprimido, de modo
que a humilhação sofrida constitui parte de seu próprio ser. Cristiane sente e sofre, suas
emoções emanam e contaminam todo o seu percurso, patêmico por excelência. Por
outro lado, o ator que cumpre um papel temático não precisa constituir-se unicamente
de elementos que dizem respeito a uma determinada configuração passional. Nas
palavras dos franceses, “A manifestação do papel temático obedece estritamente à
disseminação do tema no discurso, enquanto a do papel patêmico obedece à lógica dos
simulacros passionais, a uma disseminação imaginária independente do tema
(FONTANILLE, GREIMAS, p. 161, 1993).
Entrevista 1 - “Ejaculação precoce”
Na entrevista realizada por Silvia Poppovic
35
, cujo tema foi “ejaculação
precoce”, o entrevistado cumpre papel temático, ou vários papéis temáticos. Juan, que
passou por disfunção erétil, é o sujeito que vai ao programa exemplificar o tema do dia,
35
As transcrições das entrevistas analisadas do Programa Silvia Poppovic também constam em anexo,
divididas por temas (anexo 10).
120
cumprir uma perfomance para contribuir com a construção de um programa que tem por
objetivo (objeto valor) “melhorar a qualidade de vida”. Juan não é um sujeito
apaixonado, não cumpre um papel patêmico, ao contrário, cumpre vários papéis
temáticos: papel temático de um profissional locutor (“ele é, com esse vozeirão todo, ele
é locutor, de várias oportunidades, se quiser convidar ele pra um rodeio ele vai, bingo
também, ta certo?”); papel temático da virilidade masculina (“‘homão’ desses, do seu
tamanho”; “vozeirão”; o machão tem que dar certo sempre”; “‘quero ver se esse Dom
Juan funciona’”); papel temático da frustração sexual (“duas vezes aconteceu de ele
justamente não conseguir transar porque ficou nervoso”; “eu não não estava assim...com
tesão!”). Nenhum desses papéis temáticos chega a ser tão significativo capaz de mudar
o estado de alma do sujeito, não temos aqui, portanto, uma paixão sendo desenvolvida,
apenas um papel temático reiterado.
Contudo, embora não haja a sensibilização decorrente da carga emotiva de
uma paixão e com isso uma diminuição de seu impacto discursivo, efeitos passionais
decorrentes de outros elementos enuncivos. A junção concessiva, por exemplo, citada
anteriormente reaparece neste programa. Juan é um ator que cumpre vários papéis
temáticos que reforçam o tema da virilidade masculina, porém, apesar de toda
masculinidade que emana dele, ele teve disfunção sexual, o que nega a masculinidade
anterior, colocando-o, pelo menos por um momento, na posição de não-masculino.
Entrevista 2 - “A difícil tarefa de encontrar a alma gêmea”
Numa outra edição do programa, tematizada por “a difícil tarefa de encontrar a
alma gêmea”, Rosangela vai ao Programa Silvia Poppovic para, como todos os sujeitos
participantes, servir como exemplo do tema. Sua história pessoal de vida é relatada para
exemplificar o assunto do dia: após anos de casamento, Rosangela descobre que foi
vítima de traição pelo marido que, de “alma gêmea”, como era considerado,
transformou-se em “sapo”.
Há, em seu relato, a formação de uma junção concessiva principalmente ligada
à temporalidade. Algumas frases indicam o estado inicial do sujeito: “Ele [o marido] era
o meu príncipe, realmente eu jamais esperava qualquer coisa desse tipo”, “ela poderia
estar aqui no nosso programa, se não tivesse acontecido do jeito que aconteceu,
[dizendo] ‘como eu fui feliz’, ‘como eu achei o meu príncipe’”. Entretanto, não foi isso
o que aconteceu. Embora tivessem um relacionamento duradouro, passados 15 anos de
relacionamento, ela foi traída. O tempo cumpre fator determinante para conceder uma
121
maior passionalidade ao percurso do sujeito. “Apesar de” terem um casamento longo,
um relacionamento duradouro, houve traição, de modo que a decepção seja ainda mais
sentida. Em outras palavras, quanto mais longo é o tempo (extensidade), maior será a
intensidade configurada pela decepção de ser traída.
No entanto, esse percurso passional não se completa em sua plenitude,
justamente porque Rosangela não cumpre papel patêmico, apenas temático. Vamos
explicar: outros papéis adquirem mais representatividade durante a entrevista do sujeito
do que o próprio papel de sujeito traído (decepcionado). Rosangela cumpre papel
temático de mulher bem sucedida profissionalmente (“é tradutora e professora de
inglês”), de mulher sensual (cabelos bem cuidados, roupa exibindo o colo, maquiagem
marcante) e, juntamente com os outros, de superação (muito sorridente, demonstrando
descontração). Desse modo, a paixão advinda pela frustração de um relacionamento (um
não-poder-ser) não se concretiza, ou fica num tempo passado. O presente, que deve
acentuar a aspectualização permanente de uma paixão, demonstra o oposto de uma
mulher traída. Desse modo, poderíamos descrever o seguinte diagrama passional:
Em que:
01 indica o momento inicial, quando a apresentadora anuncia Rosangela,
apontando uma passionalidade marcada pela “decepção” de um amor mal-resolvido:
“Longe das capas de revistas e da televisão, os casais levam, às vezes, muito tempo pra
reconhecer que o conto de fadas acabou, em primeiro lugar. E, às vezes, quando
descobrem que acabou, eles não podem acreditar que acabou porque aquela pessoa se
fazia passar por alguém que ela não era...”;
02 – é o momento em que a entrevistada começa a falar e acentua uma
ambigüidade: como uma mulher traída, decepcionada, pode parecer diferente dessa
Extensidade
01 02
Intensidade
03
122
configuração passional? Há um “ser” conjugado com um “não-parecer”, o que configura
um “segredo”;
03 o decorrer da entrevista, até uma estabilização da curva, em que o
“segredo” é revelado substituindo a configuração passional da “decepção” pela da
“superação”. Todas as isotopias figurativas presentes no sujeito o constroem como um
sujeito desprovido de um “não-poder-ser” (decorrente da frustração), ao mesmo tempo
em que o tema da superação torna-se evidente. Isso deixa claro que o sujeito não se
tornou um sujeito patêmico, apenas sujeito que cumpre papéis temáticos.
Ocorre, na realidade, uma frustração do telespectador em relação ao texto
inicial. Rosangela, de início, representa o estereótipo da mulher traída, decepcionada,
que, em muitos casos, desenvolve um querer vingar-se, no entanto, toda a caracterização
do sujeito é constituída tendo em vista a superação e o não desejo de vingança. Desse
modo, parece haver um engodo, uma quebra isotópica, uma promessa de um relato que,
aos poucos, vai se tornando falsa. Assim, a passionalidade discursiva (como mostra o
diagrama) tende a ser menos intensa.
Entrevista 3 - “Violência praticada pelos jovens”
No Programa Silvia Poppovic, os sujeitos dificilmente poderiam caracterizar-
se como sujeitos patêmicos, principalmente porque as ancoragens temporais situam-se
num tempo já passado, na maioria das vezes, quebrando a duratividade de uma paixão e
contribuindo apenas a uma aspectualização terminativa. É o que acontece nas
entrevistas analisadas anteriormente e nesta que vamos investigar agora.
O tema “violência praticada pelos jovens” coloca em cena Marilani, mãe de
Ellen, morta na porta da escola. O sujeito Marilani relata a trágica história de sua filha,
assassinada por uma colega. A construção do discurso é envolvente, passional,
principalmente no nível profundo que opõe /vítima/ vs. /assassina/, num evidente
maniqueísmo. Ellen é caracterizada pelos seguintes temas: jovialidade (“garota”,
“estudante”, “17 anos”, “menina”), pacifismo (“uma pessoa muito calma”, “muito
tranqüila”), companheirismo (“tinha muitas amizades”), obediência, ordem (“com a
minha filha eu nunca tive problema nenhum”). Por outro lado, a “assassina”, é descrita
pelos temas: covardia (“resolveu matar a sua menina da maneira mais covarde”),
violência (“ela sofreu violência por parte dessa menina”), agressividade (“apanhou,
ficou com o dedo do quebrado, várias escoriações pelo corpo, hematomas”),
ociosidade (“essa aluna não ia pra escola constantemente” e “ela [a mãe] já tinha
123
problemas com essa filha em casa”), frieza (“ela se sente autorizada pra ir na porta da
escola, na luz do dia, pegar uma arma e matar uma outra menina na frente de todo
mundo”), impunidade (“ela deve achar que não vai acontecer nada com ela”), falta de
valores ([a questão] “é de que cultura que a gente ta criando, do que pode ou do que não
pode ser feito, do que constrange ou não constrange, do que a gente sente vergonha, do
que a gente não sente vergonha” e “parece que o que ta errado é certo, o que ta certo se
torna errado”). No quadro abaixo, há os principais temas que envolvem os dois atores:
Temas envolvendo os actantes
Ellen Outra menina
/Vítima/ /Assassina/
Jovialidade
Pacifismo
Companheirismo
Obediência
Ordem
Covardia
Violência
Agressividade
Ociosidade
Frieza
Impunidade
Falta de valores
Dessa forma, a consolidação de concessões a partir dos temas que
compreendem os dois atores citados. Ellen, a tima, era jovem, amiga, obediente e,
mesmo assim, foi assassinada. A outra menina, a assassina, ainda que fosse jovem e sua
colega, foi capaz de cometer o assassinato. Além dessas, também uma concessão
espacial a partir da fala inicial de Silvia Poppovic: “foi assassinada na porta da escola”.
O texto constrói, na realidade, um sentimento de indignação a partir das oposições
temáticas e figurativas, a ponto dos atores colocarem em xeque a correspondência dos
valores para os adolescentes, sobre o que é certo e o que é errado.
No entanto, apesar de toda a carga emotiva presente no texto, de uma mãe ir a
um programa de TV expor o assassinato da filha, de responder a questões do tipo “como
é que ela matou a sua filha?”, apenas a consolidação de papéis cujos temas são
emotivos. O principal tema diz respeito aos relatos de uma mãe que perdeu a filha
brutalmente assassinada. Assim, embora, evidentemente, poucos temas trariam uma
condição tão passional a uma narrativa, não se consolida de fato nenhum papel
patêmico. O sujeito da narrativa, a mãe de Ellen, expõe temas relacionados à
indignação, à tristeza pela perda de uma filha, à injustiça, à falta de impunidade. Mas,
mesmo desenvolvendo um discurso passional, não vai além de temas passionais, não se
consolida um percurso patêmico do sujeito. De tal modo, o discurso, mesmo
124
envolvente, torna-se menos sensibilizado principalmente porque a carga emocional
situa-se num tempo já passado e as paixões são escassas.
Entrevista 4 - “Assédio sexual no trabalho”
Nesta última edição analisada, também um sujeito que descreve um
percurso passional. Neide, faxineira de um sindicato, foi assediada por um dos diretores
de onde trabalhava.
Seu discurso mostra-se coerente na junção do ser com o parecer, manifestando
um discurso verdadeiro e contribuindo para acentuar uma oposição com seu anti-
sujeito, o assediador. A partir das marcar figurativas, Neide preenche o estereótipo do
sujeito desprovido de poder: “A Neide ela atualmente é dona-de-casa porque ela acabou
desistindo da profissão dela”, “Eu tremi de medo, ele perguntava “tá com frio?”, “não
eu to com calor”. Mas eu tava tremendo. Colocava o café na garrafa o caderramava
todinho fora da garrafa”, “eu não podia fazer nada”, “ela acabou desistindo da
profissão”, “Perdi o emprego. Com a idade que eu tava, 47 anos, eu não consegui mais
emprego. Eu não tenho estudo, então pra mim ficou tudo mais difícil”.
Essas figuras quando aliadas a outras da expressão e do conteúdo (pronúncia
tímida, contida nas palavras, pouca gestualidade, pouca expressividade facial, roupas
simples e discretas etc.) conduzem a uma mesma configuração isotópica. O não-poder
constitui o ser e o parecer de Neide, que se firmam a partir dos temas da injustiça, do
medo, da fraqueza, da submissão, enfim, da impotência.
De tal modo, como exceção aos outros casos analisados, a formação de um
sujeito que cumpre papel patêmico. O ser e o parecer de Neide estão em conjunção com
seu percurso passional marcado por um não-poder-ser que se acentua ao se opor ao do
anti-sujeito, quem detém o poder.
Diante desse panorama, quanto maior a extensão da impotência de Neide
advinda por toda a isotopia figurativa, maior a intensidade passional de seu percurso.
Ou seja, a construção de configurações passionais pelos sentimentos de indignação e
de injustiça que marcam a trajetória do sujeito, como mostra o gráfico abaixo:
125
No entanto, embora o sujeito cumpra papel temático, a sensibilização de seu
percurso não se torna tão significativa, justamente porque a extensividade não acentua a
impotência de Neide. Em outras palavras, o tempo da entrevista com Neide é
demasiadamente curto para garantir que o sujeito manifeste a sensibilização de sua
paixão (a impotência).
Impotência
Sensibilização
Injustiça
126
2.4. Situações semióticas em programas de
comportamento
O processo de significação de um programa televisivo deve ser compreendido
além sua concepção enquanto conteúdo audiovisual. Devemos considerá-lo como
objeto-semiótico inserido numa situação semiótica.
De acordo com Fontanille, a situação semiótica permite ao texto (no caso,
programas de comportamento) “funcionar segundo as regras de seu próprio gênero e
regular principalmente sua interação com os percursos e usos dos espectadores” (2005,
p. 19). Trata-se, em suma, “de uma configuração que comporta todos os elementos
necessários à produção e à interpretação da significação de uma interação
comunicativa” (Ibidem).
Isso não significa abdicar da análise os diversos procedimentos de linguagens
de um texto e partir em direção ao seu contexto, mas significa considerar outros
elementos que, de algum modo, agem na produção de sentido.
Assim, o percurso gerativo do plano da expressão (FONTANILLE, 2005)
desenvolvido pela semiótica francesa demonstra como os níveis de pertinência de um
texto se organizam e se relacionam. Trata-se de um conjunto de níveis significantes
(Signos Textos enunciados Objetos Cenas predicativas Estratégias
Forma de vida) que, a partir do qual, tratemos
das estratégias.
Estratégias semióticas: sucesso ou fracasso
Segundo o dicionário Aurélio, entende-se por “sucesso” “livro, espetáculo, etc.,
que alcança grande êxito ou autor, artista, etc., de largo prestígio e/ou popularidade”
(FERREIRA, 2001, p. 651). Nesse raciocínio, o sucesso depende da intensidade de seu
“êxito” e/ou da extensidade de seu “prestígio” e/ou da sua “popularidade”.
Como estamos tratando de televisão e, no Brasil, ainda estamos tratando de
televisão de massa (conteúdo unidirecional, um para todos), embora não desconhecemos
as alternativas (paga, fragmentada, digital), o êxito de um programa depende
diretamente de sua popularidade (prestígio). Ou seja, ter um bom êxito significa ser
assistido por todos (na TV de massa) e quando isso ocorre significa que há sucesso.
127
Em contrapartida, o mesmo dicionário apresenta em uma de suas acepções
sobre “fracasso” a seguinte definição: “mau êxito; malogro; ruína” (Ibidem, p. 331), de
modo que, quanto menor a popularidade (prestígio), menor será o êxito (“mau êxito”),
sendo reconhecido, portanto, o fracasso, o que nos faz colocar num mesmo esquema
tensivo as duas grandezas correlatas:
A questão central presente nessa dicotomia (televisiva), tendo em vista o
esquema tensivo acima, deve buscar entender os motivos que levam um programa
televisivo a ter sua popularidade mais ou menos extensa. Em outras palavras, é preciso
buscar entender por que um telespectador se interessa por um programa e por que não se
interessa por outro.
Cada tipo de abordagem metodológica pode, à sua maneira, segundo seus
critérios e especificações, apontar diretrizes que explicariam parte da questão, de modo
que um trabalho multidisciplinar poderia solucionar o problema. Muitos aspectos
deveriam ser observados, tais como, o contexto sócio-econômico, o mercado, o público-
alvo, a concorrência, as estratégias de marketing, o próprio produto televisivo etc., fato
que demonstra a complexidade desse tipo de procedimento.
Sem desconsiderar a necessidade de um enfoque multidisciplinar sob os
diversos critérios que obrigatoriamente precisam ser analisados, mas adotando um
caminho possível de análise, nosso trabalho priorizou determinados aspectos que dizem
muito sobre os “produtos televisivos”, corpus deste trabalho. E, depois de realizadas
essas análises a partir do viés da semiótica francesa, um fato nos chama a atenção:
Casos de família estreou em 2004 e hoje, quatro anos depois, ainda ocupa o horário das
tardes do SBT; e Programa Silvia Poppovic não conseguiu ficar no ar por mais de um
ano e meio.
Segundo os dados presentes no primeiro capítulo deste trabalho, Programa
Silvia Poppovic não conseguiu ultrapassar dois pontos de Ibope, enquanto que Casos de
Prestígio e/ou popularidade
Êxito
Sucesso
Fracasso
128
família chegou a atingir picos de até 13 pontos. Se, segundo nosso diagrama, o sucesso
e o fracasso equivaleriam ao eixo tensivo que correlaciona popularidade e êxito,
poderíamos afirmar que índices de audiência estão diretamente ligados a essa relação.
Apresentamos, neste trabalho, uma série de semelhanças (principalmente
primeiro capítulo) e diferenças (segundo capítulo) entre um programa e outro. Dissemos
que eles constituem, cada um a sua maneira, formatos de um mesmo gênero televisivo
(programas de comportamento). Sendo assim, ao expor os aspectos dessemelhantes dos
programas, poderíamos considerar que Casos de família, exatamente pelas diferenças
em relação ao outro programa, ocupa no eixo tensivo acima a posição de “sucesso”
que é exibido diariamente mais de quatro anos. Por outro lado, poderíamos afirmar
também que o Programa Silvia Poppovic, justamente por não apresentar as mesmas
características do outro programa, ocupa no eixo tensivo a posição de “fracasso” que
teve baixo Ibope e não está mais no ar.
No entanto, tal afirmação poderia ser equivocada, pois, como dissemos, o
nosso trabalho apresenta uma abordagem semiótica possível, outras abordagens seriam
necessárias para avaliar o sucesso e o fracasso de programas televisivos, num esforço
multidisciplinar. Todavia, é lícito, após todas as observações e análises evocadas neste
trabalho, levantar hipóteses que explicariam, a partir de uma leitura semiótica, por que
um programa consegue manter um envolvimento com seu telespectador e um outro não.
Verificar o conjunto dos procedimentos adotados por um programa na
constituição de um produto final referente a uma situação semiótica consiste, em suma,
em investigar as estratégias utilizadas por cada programa no intuito de conquistar seu
público.
Ajustamento e programação
No primeiro capítulo deste trabalho, vimos algumas semelhanças quanto ao
gênero dos dois programas, mas percebemos também algumas diferenças relacionadas à
forma de transmissão, tais como, periodicidade, horário de exibição, emissora e público-
alvo. Essas categorias, embora não constituam prioridade para esta pesquisa, podem
contribuir para uma melhor compreensão de cada programa, que fazem parte das
estratégias de ajustamento e programação de um determinado objeto.
Esses dois termos dizem respeito às relações decorrente da organização de um
objeto. Isso significa dizer que um programa de televisão está em relação com outros
programas do mesmo canal (fluxo televisivo) e de outros canais, está diretamente
129
relacionado com o seu público-alvo, com o horário de transmissão etc. È preciso que
haja um ajustamento e uma programação bem sucedidos que visem a uma melhor
adequação do enunciado com o intuito de ser bem recebido pelo seu público. Vejamos:
Programas Categorias
Casos de família Programa Silvia Poppovic
Periodicidade Diário Semanal
Horário de exibição Vespertino Noturno
Emissora SBT TV Cultura
Público-alvo Sexo: Feminino
Classe C, D, E
Sexo: Heterogêneo
Todas as classes sociais
Emissora: Os dois programas em questão são transmitidos por emissoras
diferentes, uma pública e outra privada, ambas de recepção gratuita. A primeira
consolidou-se como sinônimo de cultura, que supostamente transmitiria conhecimento,
informação e reflexão. No entanto, ela apresenta, na média de todos os programas,
baixos índices de audiência. O SBT, emissora paulista, comandado pela popularidade de
Silvio Santos, sempre ocupou a vice-liderança em número de telespectadores, posição
hoje disputada pela TV Record.
Periodicidade: A periodicidade está diretamente relacionada ao hábito. Ver
televisão significa consolidar hábitos entre telespectadores e emissoras. Casos de
família é exibido diariamente, Programa Silvia Poppovic foi exibido uma vez por
semana. Certamente um programa diário não corre o risco de ser esquecido pelo seu
telespectador, consolida hábito e firma contratos (não é a toa que a Rede Globo mantém
há anos a mesma grade de programação!).
Horário de exibição: A televisão brasileira conta com o “horário nobre” ou
prime-time através do qual as emissoras atingem os maiores índices de audiência.
Trata-se do horário da noite em que a maior parte das pessoas encontram-se em suas
casas e com os televisores ligados. O Programa Silvia Poppovic foi exibido exatamente
nesse horário, por volta das 21 e 23 horas, contudo não registrou altos índices de
audiência. Um fator pode ajudar a explicar isso: concorrência. É no horário nobre que
são exibidas as produções mais tradicionais e com maior Ibope, tais como o Jornal
Nacional e as telenovelas da Rede Globo, isso sem contar os Reality-Shows, campeões
de audiência. O programa Casos de família, porém, é exibido, mesmo com as oscilações
de horário, no período da tarde, enfrentando uma menor concorrência, já que seu
130
público-alvo não conta com atrações dessa categoria em outras emissoras, nem com
programas campeões de audiência.
Público-alvo: Pela análise dos anunciantes, pela entrevista com a produtora
executiva (anexo 02) e pelos dados do Ibope, o Programa Silvia Poppovic não possuía
um público-alvo específico: era visto por homens e mulheres de diferentes faixas etárias
e classes sociais. Em contrapartida, Casos de família, de acordo com seus anunciantes,
requisitou um público-alvo bastante específico: mulheres das classes C, D e E,
principalmente. Isso demonstra a importância do direcionamento durante o processo de
produção de um programa. É preciso verificar a quem ele se destina e a partir disso
adequar o formato a esse público, ao seu receptor. Um público-alvo específico deve
contribuir para uma melhor audiência, como no Casos de família.
Resumindo, as escolhas relacionadas ao ajustamento e à programação
(situações estratégicas) parecem ser desfavoráveis ao Programa Silvia Poppovic: a
emissora sempre enfrentou baixos índices de audiência, a periodicidade semanal não
contribuiu para a consolidação de um hábito, o horário de exibição enfrentou
concorrência de programas tradicionais e consolidados na televisão brasileira e o
público-alvo foi disperso. Em contrapartida, Casos de família é exibido em uma
emissora que busca audiência, sua periodicidade consolida um hábito (sabemos que
todos os dias, naquele mesmo horário, naquele mesmo canal, o programa estará no ar) e
seu horário não enfrenta concorrência acirrada para o público-alvo bem definido.
Estratégia narrativa e discursiva
Na estrutura da enunciação é possível depreender os contratos, ou seja, as
relações firmadas entre enunciador e enunciatário estabelecidas por convenção
fiduciária e baseadas principalmente por regimes de crença. Os contratos enunciativos
dizem respeito à maneira pela qual o espectador vai apreender um determinado
conteúdo.
A partir da análise realizada neste trabalho, torna-se evidente que cada
programa de comportamento concebe, além de dois distintos enunciados (ou formatos),
dois distintos universos contratuais que talvez regulem o grau de “comunicabilidade”
(entendido aqui como “troca”) entre os sujeitos enunciativos. Vejamos a tabela abaixo
que sintetiza as principais relações enuncivas e enunciativas depreendidas neste
trabalho:
131
Programa Silvia Poppovic
Casos de família
Objeto valor priorizado
“Qualidade de vida” Específico (depende do tema)
Tema
Destinado a todos e de conteúdo
social
Destinado a um caso específico e
de conteúdo familiar
Papel do animador
Guia/participante Animador-controle
Conceito
Silvia Poppovic - programa
temático, de comportamento,
com discussão, debate, presença
de especialista etc.
Programa voltado ao público
feminino/
temática familiar
Regime de crença
1. Consolidação do contrato
cognitivo/pragmático;
2. Valorização do saber da
apresentadora e dos demais
participantes;
3. O telespectador recebe um
valor (saber e dever-ser) que já
está consolidado no programa;
4. Identificação restrita por parte
do telespectador (a
apresentadora mantém pouco
“contato” com o telespectador, o
cenário não apresenta objetos
icônicos reconhecíveis etc.);
5. Curiosidade (querer-saber)
mais restrita, pois todos os
convidados já se exibem desde o
início do programa e o conteúdo
é o mesmo do início ao fim.
1. Consolidação dos contratos
cognitivo/pragmático e
patêmico;
2. Valorização do saber do
telespectador e dos demais
participantes;
3. O juízo de valor pode ser
formado pelo telespectador
(apenas como efeito de sentido);
4. Identificação plena por parte
do telespectador (ele pode, em
sua casa, realizar um
“julgamento”, a apresentadora
mantém relações diretas com ele
como demonstra a vinheta, o
cenário assemelha-se à
decoração de sua própria casa);
5. Curiosidade (querer-saber)
renovada a cada novo “caso” e a
cada novo participante.
Papel dos convidados
Contribuir com experiência de
vida
Contribuir com experiência de
vida e ser julgados
Papel da platéia
Contribuir com experiência de
vida
Julgar os convidados
Papel do especialista
Participação
interativa/comentarista
Participação restrita/ julgador
Sendo assim, entendemos que o Programa Silvia Poppovic prioriza os
contratos cognitivo e pragmático. Segundo Diniz, o primeiro designa o universo do
saber:
Basta que dois sujeitos disponham de um mesmo saber sobre um
objeto para que ele se transforme em objeto-valor e o contrato seja
firmado. Permite descrever a construção do ponto de vista, a maioria
das manipulações por identificação e a sanção (2001, p. 199).
o contrato pragmático designa o universo da ação, em que os sujeitos da
enunciação entram em relação intersubjetiva por meio do enunciado. “A dimensão
pragmática compreenderia as descrições dos comportamentos somáticos organizados
em programas narrativos” (Ibidem).
132
Quanto ao cognitivo, um fazer-saber do enunciador ao enunciatário, no
Programa Silvia Poppovic. Como vimos, todos os participantes do programa
(especialistas, convidados, platéia e apresentadora) têm um saber sobre o tema
específico de cada dia, alguns com conhecimento científico, outros empírico. Assim,
pelo conceito do programa evidencia-se um caráter jornalístico que tem como
pressuposto a “verdade”. A emissora TV Cultura, do mesmo modo, tornou-se símbolo
de “cultura”, de “conhecimento”, na televisão. Tudo isso orienta a consolidação do
contrato cognitivo, através do qual o papel do telespectador é o de “receber” em sua
casa um conhecimento produzido, sem qualquer participação efetiva ou afetiva. No
entanto, é inegável que, além de um saber, o enunciatário dispõe de outros elementos.
Além de informar, o programa promete, anuncia, sugere, recomenda, situações típicas
de um contrato pragmático que ultrapassa o domínio do fazer-saber em direção ao do
dever-fazer. De qualquer forma, em ambos os casos, a transferência é de mão única,
unilateral, o telespectador tem como única alternativa assistir ao programa e acatar ou
não as propostas discutidas nele.
Diametralmente oposto desse, Casos de família instaura esses e outros
universos contratuais. sim um contrato cognitivo inicial, através do qual o
telespectador deve acompanhar a aparição dos convidados, conhecendo-os e avaliando
seus discursos. No entanto, como parte de um julgamento, afetivo por excelência, o
contrato pragmático desenvolve-se num sentido inverso. Ao invés do telespectador
receber um dever-fazer, é ele quem o concede (evidentemente como um efeito de
sentido, que não interatividade). Os sujeitos julgados recebem uma valoração
eufórica ou disfórica de forma enunciva (dos demais participantes que julgam platéia,
especialista e apresentador), e também de forma enunciativa, evidenciando o contrato
pragmático em que o enunciatário também julgará os casos exibidos no programa (como
efeito de sentido).
Através principalmente da consolidação do contrato pragmático, outro contrato
se evidencia. O envolvimento passional, revitalizando “reações naturais e culturais”, se
firma até culminar num contrato patêmico. Nas palavras de Diniz,
as primeiras compreendem a pulsão de vida, sensações corpóreas que,
provisoriamente, poderíamos chamar de prazer/desprazer. As culturais
seriam a aceitação/reprovação (sem, a ocorrência do saber cognitivo),
decorrentes de fatores culturais, inclusive míticos (2001, p. 200).
133
O envolvimento passional do telespectador se efetiva, bem como um outro grau
de participação, através da sensibilização decorrente: 1. do julgamento (reações
culturais). É preciso que o contrato de veridicção seja traduzido enunciativamente, ou
seja, o telespectador deve acompanhar os casos e julgá-los de acordo com as categorias
do ser e do parecer e de suas oposições. A priori não se sabe quem tem razão ou não
tem em relação aos sujeitos dos casos exibidos, é preciso uma interpretação, uma
construção intersubjetiva da “verdade”. 2. Do querer-saber (reações naturais). Cada
participante tem seu momento específico de se pronunciar ou mesmo de entrar no
cenário. Por conta disso, a curiosidade do telespectador sempre recorre ao eixo
intensivo, sensível, relaxando só no final de cada entrevista. 3. Da emoção propriamente
dita (reações naturais e culturais). Os sujeitos participantes são sujeitos patêmicos,
apaixonados, de modo que sua emoção contamina todo o enunciado, favorecendo uma
participação afetiva do enunciatário.
Estratégia patêmica
A partir da análise dos efeitos patêmicos presentes nos dois programas, é
possível inseri-los em dois distintos grupos, de acordo com as diferentes práticas
passionais adotadas, como mostra a tabela abaixo:
Práticas Patêmicas
Casos de família Programa Silvia Poppovic
Actantes cumprem papel temático e
patêmico
Actantes cumprem papel temático
Tempo concomitante (agora) Tempo passado (então)
Entrevistas longas (são relatados detalhes
variados)
Entrevistas curtas (poucos detalhes)
Pontos de vista opostos no conteúdo e
heterogêneos nos tipos de participantes
Pontos de vista semelhantes no conteúdo e
heterogêneos nos tipos de participantes
Os sujeitos (convidados anônimos) no Programa Silvia Poppovic apenas
relatam suas experiências passadas, que se situam num tempo do então, da forma como
os verbos no pretérito indicam: Juan, por exemplo, teve disfunção erétil, Rosangela foi
traída pelo ex-marido, Ellen foi assassinada na porta da escola e Neide foi assediada no
trabalho.
Assim, o que percebemos nas narrativas analisadas é que esses sujeitos não se
encontram mais na situação disfórica do tempo do relato, isso porque o problema (a
134
disforia) foi, ao menos, amenizado. Juan já solucionou seu problema de disfunção erétil,
Rosangela aparenta ter superado a traição no casamento, a mãe de Ellen reagiu à morte
da filha (a ponto de poder participar de um programa de comportamento na TV) e
Neide, embora seja a única que desenvolva um papel patêmico, não eleva o assédio
sexual sofrido à sensibilização, à patemização do discurso.
Ainda sobre Silvia Poppovic, o tempo passado retira de uma configuração
passional a aspectualização de algo que não acaba nunca” (interminável),
transformando o percurso do sujeito em papel temático, não patêmico. Desse modo, não
um “sentir” das paixões que poderia contagiar todo o discurso do sujeito, não um
mergulho em direção ao estado de alma desses participantes, apenas o “relato” de
experiências (passionais) passadas.
Além disso, as entrevistas realizadas com esses convidados são curtas em
relação ao tempo de duração, o que dificulta um aprofundamento no estado do sujeito
pelos poucos detalhes narrados. Como o especialista e a apresentadora podem emitir
opiniões (comentários) a qualquer momento, o relato do entrevistado acaba se
misturando com as demais vozes e sempre ocorre, a partir disso, um deslocamento da
atenção. A discussão deixa de ser centrada no entrevistado e em sua experiência pessoal
para ser generalizada, fato ligado evidentemente ao próprio formato do programa que
procura não discutir um caso específico, mas sempre generalizar o assunto para um
público heterogêneo que eventualmente esteja passando pelas mesmas situações.
Soma-se a isso a ausência de pontos de vista opostos, embora haja pontos de
vista heterogêneos. Um mesmo assunto é discutido a partir de opiniões que concordam
entre si e que se complementam: Silvia Poppovic, especialista, platéia e convidados têm
as mesmas opiniões sobre o tema, embora cada um relate um aspecto diferente (todos
compõem um único sujeito narrativo, o que impede ainda mais a consolidação de
sujeitos patêmicos).
Assim, o que se diz de um programa vale, em oposição, ao outro. Casos de
família apresenta idéias opostas, vários pontos de vista que confundem a distinção entre
sujeito e anti-sujeito. Trata-se da narrativa canônica semelhante à dos contos de fadas,
nas quais os personagens ocupam posições ideológicas, morais, éticas, uns em oposição
aos outros. Isso faz com que o assunto (tema da edição) seja tratado por diversos
ângulos e posicionamentos, ouvindo todas as partes que possam ter algo a dizer sobre
um assunto, demonstrando evidentemente a pluralidade de opiniões, de idéias, de senso,
de atitudes, de comportamentos. E, assim, um discurso tende a ser menos monótono,
135
pois incita o diálogo, a confrontação e, em última instância, a própria construção da
“verdade”.
Do mesmo modo, Casos de família parece permitir que o discurso torne-se
mais passional. As entrevistas são mais longas, são apresentados mais detalhes dos
casos, contribuindo a uma maior figurativização e tematização dos assuntos propostos.
Mas, o que mais é preciso ressaltar quanto às estratégias discursivas passionais é a
revelação de papéis patêmicos. Os sujeitos não apenas relatam suas histórias e facetas
de vida, eles as vivenciam no palco. Prova disso, é o tempo verbal no presente:
Cristiane acredita que o marido, José, sinta vergonha de sua cor e de sua condição social
e que, por isso, não lhe apresenta a sua família. José tem problemas mal-resolvidos com
sua família e por isso não tem contato com ela. Em outra história, Neuza deixa sua mãe
para fazer companhia à sogra, mas Ruth sofre pelos ciúmes, pelo medo da rejeição, pelo
apego, pela falta que o carinho da filha lhe faz. Alan sobre com o preconceito de sua
família. Mirian sente na pele sua obsessão por limpeza. São todos sujeitos patêmicos
que, aqui e agora, sentem, sofrem e contagiam o discurso e o tornam intensamente
passional.
136
3.
3. 3.
3. HIB
HIBHIB
HIBRIDISMO DE PADRÕES NA
RIDISMO DE PADRÕES NA RIDISMO DE PADRÕES NA
RIDISMO DE PADRÕES NA
SOCIEDADE
SOCIEDADE SOCIEDADE
SOCIEDADE MIDIATIZADA
MIDIATIZADAMIDIATIZADA
MIDIATIZADA
A mídia é a expressão de nossa
cultura, e a nossa cultura funciona
principalmente por intermédio dos
materiais propiciados pela mídia
(Castells, 2002, p. 422).
Pelas análises realizadas neste trabalho tratamos principalmente da relação
entre enunciado (programas de comportamento) e enunciatário (telespectador).
Investigamos os efeitos de sentido decorrentes da articulação das diversas linguagens de
manifestação, das estratégias adotadas por cada programa para persuadir seu público e
dos contratos firmados entre eles. No entanto, toda a discussão proposta neste trabalho,
que tem no cerne o tema comportamento, evoca uma outra dimensão, mais abrangente e
englobante. Trata-se do movimento reflexivo entre TV e sociedade.
Os convidados, participantes dos programas, são sujeitos anônimos,
desconhecidos pela maior parte da população, mas se tornam protagonistas em
programas de comportamento. A questão diz respeito à motivação que leva esse sujeito
“comum” à TV para falar sobre sua vida íntima, para expor aspectos particulares em um
universo público.
Várias hipóteses norteiam uma resposta: adquirir notoriedade televisiva,
destacar do grupo do qual faz parte, receber um cacpela participação, prazer apenas
pela exibição pública etc. Enfim, as hipóteses são muitas, mas todas elas levam a um
denominador comum que diz respeito ao fato de que relatar experiências íntimas num
espaço público é cada vez mais corriqueiro e “natural” na atual sociedade. Basta ligar a
TV para ver a quantidade de fatias de histórias de vidas “reais” que são, muitas delas,
banalizadas num programa.
No sentido de tentar entender essa “naturalização” do fenômeno, recorremos a
alguns autores das teorias da comunicação que tratam da relação entre mídia e
sociedade. A hipótese é que se trata de um hibridismo de padrões nas relações sociais
quanto às denominações de domínio público e domínio privado naturalizado pela
comunicação.
137
Inversão de padrões e “sociedade do espetáculo”
Dizer que o "moderno ficou fora de moda”
36
não é nenhuma novidade
(ROUANET, 2000, p. 229), muito pelo contrário, hoje é uma realidade comum. Para
muitos teóricos, escritores e artistas, estamos vivendo um período pós-moderno. Alguns
vêem o fenômeno como algo recente, outros remontam aos anos 50. quem diga
também que cada época tem a sua própria s-modernidade. Uns aplicam o termo à
arte, outros o direcionam para a esfera econômica e política, outros ainda abrangem toda
a esfera cultural e filosófica. De acordo com Rouanet, "se o termo é tão indefinido, é
porque reflete um estado de espírito, mais que uma realidade cristalizada" (Ibidem, p.
230). No entanto, todos os intelectuais estão de acordo com a seguinte afirmação: "a
modernidade envelheceu" (Ibidem).
Para Maria Rita Kehl (2004), a burguesia do terceiro milênio não é a mesma
daquela que ditou as regras entre os séculos XIX e XX. Isso devido a uma profunda
transformação e inversão dos padrões nas relações entre o público e o privado tidos
como indiscutíveis nos séculos passados. Nesse período, o bom gosto burguês, imitando
a nobreza decadente, orientou a conduta da sociedade prescrevendo o que não devia ser
dito, nem mostrado, nem tornado público.
Na coleção intitulada História da vida privada, é destacada a concepção sobre
o que é uma sociedade burguesa e sobre seus padrões tidos como privados, íntimos. De
acordo com os autores, “não existe uma vida privada de limites definidos para sempre”
(ARIÈS; DUBY, 1992, p.15). Mas, segundo eles, é possível realizar um recorte da
atividade humana entre a esfera pública e a esfera privada. Sendo assim, essa separação
era organizada por uma densa teia de prescrições. Para a burguesia da Belle Époque, por
exemplo, os autores explicam:
A baronesa Staffe, por exemplo, enumera-as em detalhes: ‘Quanto
menos relações mantemos com a vizinhança, mais merecemos a
estima e a consideração dos que nos cercam...’, ‘no trem ou em
qualquer outro local público, as pessoas bem-educadas jamais travam
conversa com desconhecidos...’, ‘não devemos falar de assuntos
íntimos com os parentes ou amigos que viajam conosco na presença
de desconhecidos
37
. O apartamento ou a casa burguesa, aliás, se
caracteriza por uma nítida diferença entre as salas para as visitas e os
demais aposentos. De um lado, o que a família mostra de si, o que
pode vir a público, o que ela julga ‘apresentável’; de outro, o que ela
36
Theodor W. Adorno, Mínima Moralia (Frankfurt: Suhrkamp, 1975), p. 292.
37
Baronesa Staffe, Usages du monde. Règles du savoir-vivre dans la société moderne. Paris: Victor-
Havard, 1983, pp. 342, 317 e 320.
138
conserva ao abrigo de olhares indiscretos. O lugar da família
propriamente dita não é no salão: as crianças não entram no aposento
quando há visitas e, como explica a baronesa Staffe, as fotos de
família ficariam deslocadas nesse recinto. (...) As salas de recepção
estabelecem, portanto, um espaço de transição entre a vida privada
propriamente dita e a existência pública (Ibidem, p. 16).
Ampliando esse raciocínio, para Sennett “o público era uma criação humana; o
privado era a condição humana” (1988, p.128) e conclui que “a intimidade (...) não é
criação forçada, mas o aparecimento de uma crença num padrão de verdade para se
medir as complexidades da realidade social. É a maneira de se enfrentar a sociedade em
termos psicológicos” (Idem, p. 412).
No entanto, não é possível precisar todos os limites entre um domínio e outro e
também nem seria preciso para entender a concepção de sociedade burguesa (bem como
a concepção de íntimo, privado e público) na qual Kehl se apóia. De qualquer modo, o
que vale a pena destacar neste trabalho é que esses mesmos preceitos morais, antes
condenadas pelo pudor do bom senso e da moralidade burguesa, tornam-se hoje cenas
recorrentes e banais transmitidas a milhares de telespectadores.
A onipresença do olho mágico da televisão no centro da vida
doméstica dos brasileiros, com o poder imaginário de tudo mostrar e
tudo ver que os espectadores lhe atribuem, vem provocando curiosas
alterações nas relações entre público e privado (BUCCI; KEHL, 2004,
p. 141).
Assuntos que pertenciam ao domínio privado, íntimo, hoje, atingem um
público heterogêneo de forma generalizada. Trata-se de uma inversão de padrões que
está alinhada a uma nova sociedade: a sociedade pós-moderna, para alguns, ou segundo
Kehl, a "sociedade pós-burguesa", que em ambos os casos têm como veículo propulsor
a televisão.
Desse modo, o objetivo central deste capítulo é identificar qual o fenômeno
responsável por essa “inversão de padrões”, que eleva a intimidade (o privado) ao
espaço público. Kehl acredita que o fenômeno esteja relacionado ao fato de a sociedade,
majoritariamente, não ser mais regulada pela política ou pela religião, que impunham os
padrões de vida a serem seguidos, mas sim pelo espetáculo, o espetáculo midiático.
Trata-se, em suma, da sociedade do espetáculo”. Nela, os fatos perdem seus efeitos
reais ao serem transplantados para o domínio da mídia, o espaço onde as coisas
acontecem é deslocado para o espaço da cena televisiva, a visibilidade e o show ganham
139
destaque, a história fica à mercê da linguagem midiática. Tudo isso regulado pela lógica
do capital, justamente porque se trata da própria sociedade de consumo. "Os objetos e
imagens da sociedade do espetáculo convocam o sujeito a aparecer enquanto
consumidor: sua visibilidade é reconhecida no ato do consumo, e não na ação política"
(Ibidem, p. 158).
A expressão “sociedade do espetáculo”, cunhada pelo filósofo e cineasta
francês Guy Debord, na década de 60, tornou-se título emblemático de um conjunto de
aforismos que disseminam a hipótese segundo a qual “tudo o que era vivido diretamente
se esvai na fumaça da representação” (DEBORD, 2005, p. 13). A obra publicada em
1967 traz, como frase de abertura, uma paráfrase das linhas iniciais de O Capital de
Karl Marx
38
: “toda a vida das sociedades em que dominam as condições modernas de
produção aparece como uma imensa acumulação de espetáculos(Ibidem, p. 13). Além
disso, já na introdução do primeiro capítulo, apresenta um trecho de Feuerbach
39
,
nosso tempo, sem dúvida... prefere a imagem à coisa, a cópia ao
original, a representação à realidade, a aparência ao ser... O que é
sagrado para ele, não passa de ilusão, pois a verdade está no profano.
Ou seja, à medida que decresce a verdade a ilusão aumenta, e o
sagrado cresce a seus olhos de forma que o cúmulo da ilusão é
também o cúmulo do sagrado (Ibidem, p. 13)
.
Sob essa orientação marxista, na contemporaneidade, os meios de comunicação
são interpretados como instrumentos de realização de desejos, afirmação de identidades
e conhecimento de mundos. A hipótese trata-se, na verdade, de um conjunto de teses
através do qual Debord retoma, sem conceder as devidas referências, o pensamento
crítico da Escola de Frankfurt.
Conceito criado por Theodor Adorno e Max Horkheimer, entende-se por
“indústria cultural” a conversão da cultura em mercadoria, em que o processo de
conscientização estaria subordinado ao processo de racionalização capitalista. Trata-se
de uma prática social, na medida em que “a produção cultural e intelectual passa a ser
orientada em função de sua possibilidade de consumo no mercado” (HOHLFELDT,
MARTINO e FRANÇA, 2002, p. 138). Nesse sentido, a partir do desenvolvimento das
empresas e aglomerações midiáticas cada vez mais especializadas em tecnologias de
38
“A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma imensa
acumulação de mercadorias” (Marx, 1a. frase de O Capital).
39
Da obra intitulada Essência do cristianismo.
140
produção e difusão de bens culturais amplia-se o princípio do consumo estético
massificado.
Dessa forma, os pensadores do grupo foram os primeiros a ver que,
em nosso século, a família e a escola, depois da religião, estão
perdendo sua influência socializadora para as empresas de
comunicação. O capitalismo rompeu os limites da economia e
penetrou no campo da formação da consciência, convertendo os bens
culturais em mercadoria. A velhíssima tensão entre cultura e barbárie,
arte série e arte leve, foi superada com a criação de uma cultura de
mercado em que suas qualidades se misturam e vêm a conformar um
modo de vida nivelado pelo valor de troca das pessoas e dos bens de
consumo (Ibidem, p. 139).
Nas palavras de Adorno e Horkheimer,
o mundo inteiro é obrigado a passar pelo filtro da indústria cultural. A
velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como
um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende
reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se
a norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas
duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão
de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo
que se descobre no filme (in MORETZSOHN, 2007, p. 73).
A respeito dessas considerações sobre a “indústria cultural”, sobre o processo
social regulado pela lógica do próprio capital envolvendo todos os tipos de relações,
Sylvia Moretzsohn, resgatando trechos de Adorno e Horkheimer, expõe um panorama
desse pensamento:
[os frankfurtianos] fecham de tal modo o círculo que não deixam
margem a qualquer vislumbre de mudança. O público é
irremediavelmente passivo – “democrático, o rádio transforma a todos
igualmente em ouvintes”, “a produção capitalista os mantém tão bem
presos em corpo e alma que eles sucumbem sem resistência ao que
lhes é oferecido”, as particularidades do eu são mercadorias
monopolizadas e socialmente condicionadas, que se fazem passar por
algo de natural” rádio e cinema “não passam de um negócio”, os
produtos da indústria cultural têm apenas valor de troca, o mundo
inteiro está esquadrinhado de acordo com os interesses do capital: os
poderosos executivos nada produzem ou deixam passar “que não
correspondam a suas tabelas, à idéia que fazem dos consumidores e,
sobretudo, que não se assemelhe a eles próprios” (2007, p. 73).
Voltando ao nosso ponto de partida, Debord não estaria inaugurando nenhuma
teoria ou hipótese, mas concedendo notoriedade a um trabalho iniciado anos pela
141
Escola de Frankfurt. De qualquer forma, trata-se de um trabalho que reflete um
momento histórico, o de 1968, marcado por profundas desordens políticas e sociais.
O caráter contestatório da obra de Debord trata-se de uma luta acirrada contra a
vida moderna que, segundo esse pensamento, prefere a imagem e a representação ao
realismo concreto e natural, prefere a aparência ao ser, prefere a ilusão à realidade,
prefere a imobilidade à atividade de pensar e reagir com dinamismo. Trata-se de uma
crítica à relação de mediação provocada pelas imagens que levam os indivíduos à
passividade e à aceitação das contradições sociais decorrentes do capitalismo. Nas
palavras de José Arbex Jr.,
o espetáculo
- diz Debord - consiste na multiplicação de ícones e
imagens, principalmente através dos meios de comunicação de massa,
mas também dos rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo, de
tudo aquilo que falta à vida real do homem comum: celebridades,
atores, políticos, personalidades, gurus, mensagens publicitárias tudo
transmite uma sensação de permanente aventura, felicidade,
grandiosidade e ousadia. O espetáculo é a aparência que confere
integridade e sentido a uma sociedade esfacelada e dividida. É a forma
mais elaborada de uma sociedade que desenvolveu ao extremo o
‘fetichismo da mercadoria’ (felicidade identifica-se a consumo). Os
meios de comunicação de massa diz Debord são apenas ‘a
manifestação superficial mais esmagadora da sociedade do espetáculo,
que faz do indivíduo um ser infeliz, anônimo e solitário em meio à
massa de consumidores’ (ARBEX, 2001, p. 68).
A sociedade transforma-se numa sociedade do espetáculo, na qual a contínua
reprodução da cultura é feita pela proliferação de imagens e mensagens dos mais
variados tipos. A conseqüência é uma vida contemporânea super-exposta e invadida
pelas imagens, operacionalizando um novo tipo de experiência humana, caracterizada
por um modo de percepção que torna cada vez mais difícil separar-se ficção de
realidade. Todas as estratégias de dominação, política ou econômica, deslocam-se do
lugar real onde acontecem e adquirem visibilidade e, num sentido mais profundo,
adquirem a própria existência no momento em que são codificadas por imagens e
transmitidas a milhões de pessoas. Claro que esse trabalho de codificação em imagens
adquire um fator irônico. Nem tudo pode ser mostrado, apenas aquilo que pode ser
transformado em imagens ou simplesmente captado, sendo que o espetáculo não é um
conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens. “A
realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria unidade geral como um
pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação” (DEBORD, 2005, p. 13). Dessa
forma, há uma inversão em que o mundo construído por uma natureza puramente
142
simbólica torna-se mais real do que a própria realidade e, assim, a própria verdade
adquire outro estatuto: a verdade aparece enquanto representação (não-realidade).
A hipótese lançada por Debord surge num período em que o consumo
desenfreado de imagens tem como expoente máximo a televisão, de modo que,
passados cerca de quarenta anos após a publicação do texto inaugural, uma questão vem
à tona exatamente pelo fato da teoria dar ênfase no impacto tecnológico. Ainda hoje,
quando a cultura da televisão e da publicidade vem sendo rapidamente substituída pela
da internet, dos games on-line, do sexo virtual, dos celulares, da interatividade, da
mobilidade, da usabilidade, é possível empregar o termo “sociedade do espetáculo” para
tentar definir o atual estágio da interação entre meios e indivíduos?
De acordo com Kehl (2003), as novas tecnologias não introduzem um novo
paradigma, que isso tudo é uma característica própria da “hipermodernidade”. A
sociedade de massa, longe de entrar em decadência, ainda abarca grande parte da vida
social, que o “fetichismo da mercadoria” não está presente apenas na televisão, mas
em toda a produção midiática.
Diferentes temporalidades, marcadas por diferentes modos de inserção
dos indivíduos no laço social recursos materiais, formações
ideológicas, referências culturais etc. convivem sem se anular. Essa
imensa tolerância das sociedades hipermodernas não é, como parece,
uma abertura para o novo, e sim prova do triunfo do individualismo
de mercado. Diferentes manifestações do mesmo convivem
pacificamente no mundo contemporâneo sob uma mesma forma
dominante: a forma mercadoria (KEHL, 2003, s.n.).
Desse modo, parece que a “sociedade do espetáculo” está afinada com as
propostas teóricas de muitos autores contemporâneos que mostram a sociedade atual
como a modalidade contemporânea do capitalismo, marcada pela intensa presença e
convergência da comunicação, da informação, das telecomunicações, da informática e
pela aceitação de que elas tornaram-se as mercadorias diferenciais, as zonas
privilegiadas de acumulação e os setores de ponta do desenvolvimento científico e
tecnológico dessa etapa. Tudo isso demonstra a atualidade de tais formulações. No
entanto, como observa Rubim (2002, p. 02), isso não pode significar a aceitação integral
da elaboração teórica. “Além da flutuação conceitual, natural em uma obra-manifesto, a
construção de Debord encontra-se prejudicada, pois atribui ao espetáculo, como
dispositivo imanente, uma conotação sempre negativa”. Vejamos.
143
Pensando sobre a “sociedade do espetáculo”
Rubim (2002), apesar de compreensivo com a “obra-manifesto” de Debord,
não deixa de apontar algumas limitações básicas. Em primeiro lugar, “a redução do
espetáculo a um determinismo econômico intrinsecamente mercantil e capitalista”, que
impede qualquer alternativa de realização fora de uma dinâmica capitalista e suprime
até mesmo a perspectiva da existência de contradições em seu processo de produção”.
Nesse sentido, Moretzsohn (2007, p. 83) afirma que “tal redução derivaria do
esquecimento de que o espetáculo é inerente a todas as sociedades humanas (dado seu
caráter imanente à vida societária, com suas ‘encenações, ritos, rituais, imaginários,
representações, papéis, máscaras sociais etc.’)”.
Outro equívoco está relacionado com a contraposição entre real e
representação.
Apesar de, em certos instantes de sua exposição, Debord assinalar que
“a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real”, a composição
majoritária do texto e a interpretação prevalecente, (...) constroem-se
com base em um problemático confronto entre real – tomado em
conotação positiva, porque assegurando uma relação “direta” com o
mundo - e espetáculo, marcado por um viés pronunciadamente
negativo, porque representação que implica em uma relação mediada,
“não direta”, com o real (RUBIM, 2002, p. 03, grifos nossos).
Aqui o autor identifica três problemas nos textos de Debord: 1. o de “pensar a
representação como se ela não fosse parte indissociável e construtora da realidade”; 2. o
de “conceber a representação como tendo um estatuto de realidade inferior ao (restante
do) real; e o de 3. “supor a possibilidade de um acesso ao real sem o recurso obrigatório
de mediações, inclusive das representações”.
Para arrematar a sua crítica e tecer mais considerações, Rubim afirma que essa
valorização positiva da pretensa relação direta com o mundo” e a valorização negativa
atribuída às relações mediadas “fragilizam enormemente uma reflexão que pretenda
pensar, de maneira crítica, a atualidade”, principalmente em uma contemporaneidade
“marcada exatamente pela complexidade e profusão de mediações”.
Debord vai adiante nessa trajetória e chega até a assinalar: “As
imagens que se destacam de cada aspecto da vida fundem-se num
fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida não pode ser
restabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se em
sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de
mera contemplação” (Debord). O estatuto de pseudomundo à parte”
144
certamente o se configura como o mais adequado para uma
elucidação satisfatória do espetáculo, nem do mundo contemporâneo
(Ibidem, p. 03).
Nessa mesma perspectiva, Moretzsohn sintetiza que “a rigor não
possibilidade de uma relação direta com a realidade, e o que marca o desenvolvimento
do ser social é justamente o desenvolvimento crescente de mediações” (2007, p. 83) e,
além disso, propõe seguir a teorização de Rubim sobre a possibilidade de falar de uma
“sociedade do espetáculo” num sentido distinto do que confere Debord. Entretanto, uma
definição bastante coerente sobre realidade é apresentada por Castells (2002, p. 459) ao
dizer que se trata de uma “cultura da virtualidade real” e a afirmar, portanto, que não
distinção entre realidade e representação simbólica. Segundo ele, “a realidade, como é
vivida, sempre foi virtual porque sempre é percebida por intermédio de símbolos
formadores da prática com algum sentido que escapa à sua rigorosa definição
semântica” (CASTELLS, 2002, p. 459) e conclui que toda a realidade é percebida de
maneira virtual.
Para finalizar, o autor define o sistema de comunicação que gera a virtualidade
real:
É um sistema em que a própria realidade (ou seja, a experiência
simbólica/material das pessoas) é inteiramente captada, totalmente
imersa em uma composição de imagens virtuais no mundo do faz-de-
conta, no qual as aparências não apenas se encontram na tela
comunicadora da experiência, mas se transformam na experiência
(Ibidem, grifo do autor).
A partir desse debate, este trabalho coloca em xeque as vertentes
“catastróficas” da Escola de Frankfurt e, principalmente, a teorização de Debord que
concebe a realidade como um “pseudomundo à parte”. No entanto, dentre esse conjunto
de aforismos de Debord, não podemos deixar de citar sua significativa contribuição para
o estudo da comunicação, mesmo sendo em dados momentos demasiadamente
apocalíptica, como observamos. E, assim, um pressuposto em especial nos orienta
nesse estudo cujo objetivo é compreender o fenômeno comunicacional que abrange a
atual inversão de padrões presente na sociedade (e na mídia). No aforismo de número
quatro, ao definir o “espetáculo”, Debord, na década de 60, apresenta uma visão
bastante atual sobre a contemporaneidade. Segundo ele, “o espetáculo não é um
conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”
145
(2005, p. 14). É a partir principalmente deste postulado que nosso trabalho dialoga com
a “sociedade do espetáculo” e a toma como referencial teórico, ao passo que, coloca em
xeque determinados aspectos, tais como essa visão negativa da “realidade”. Desse
modo, a teorização de Debord coloca em cena a questão de mediação e de
midiatização que evidencia a atual relação do homem com o mundo, tornando-se um
dos precursores a introduzir a complexa questão da contemporaneidade. Trata-se,
portanto, de aprofundar a questão sobre “midiatização”, de modo que a “inversão de
padrões nas relações entre o público e o privado” presente na obra de Kehl (2004) seja
compreendida além do fenômeno televisivo.
Pensando sobre a contemporaneidade: “Idade Mídia”
Podemos afirmar com toda a certeza que a “sociedade do espetáculo” o é a
mesma, diferente como afirma Kehl (2003), dada à complexidade decorrente das novas
tecnologias da informação e da comunicação cuja codificação se em bits e não mais
em sinal analógico. Nesse processo de midiatização, no qual a comunicação e, mais
precisamente, a rede de mídias assumem papel preponderante para a consolidação
social, Rubim (2000) compreende a contemporaneidade como uma “sociedade
estruturada e ambientada pela comunicação” definindo-a numa verdadeira Idade
Mídia”.
Para explicar a questão que trata a sociedade contemporânea como estruturada
pela mídia, Rubim, como exemplo, fala sobre a representatividade da marca pela
publicidade. Na fase atual da concorrência capitalista o que regula o preço e a
competitividade do produto não é o seu valor como tal, mas como uma marca. Essa
transmutação introduz a comunicação e, mais especialmente, a publicidade, “no cerne
da dinâmica de reprodução do próprio capitalismo” (RUBIM, 2000, p. 27). E chega a
afirmar que sem a marca e, portanto, sem a comunicação um produto não se torna
mercadoria no atual estágio da economia. E mais, “por conseqüência, a realização do
valor e a própria reprodução capitalista encontram-se comprometidas em um patamar
comunicacional” (Ibidem), o que torna a informação na mercadoria mais valiosa”.
Trata-se, enfim, de uma revisão do lugar atribuído à comunicação na sociedade, em que
“a convergência entre comunicação, telecomunicações e informática aparece entre os
setores econômicos mais dinâmicos do capitalismo na atualidade” (Ibidem, p. 26).
146
Indo além, as redes midiáticas tornam-se uma das mais significativas marcas da
contemporaneidade que configuram a estruturação da sociedade. Nesse sentido, alguns
aspectos podem se elencados para o entendimento do fator estruturante da mídia: “1.
espaços geográficos e eletrônicos; 2. convivências (vivências em presença) e
televivências (vivências à distância); 3. tempo real e espaço planetário; 4. local e global,
enlace, nesse caso, tão bem apreendido e sintetizado na expressão glocalidade e, enfim,
5. realidade contígua e telerrealidade” (RUBIM, 2001, p. 04).
De acordo com Rubim (Ibidem, p. 03 - 04), essas formulações para explicar o
fenômeno vêm sendo desenvolvidas por muitos autores, que, embora apresentem
divergências sobre muitos posicionamentos, manifestam em comum a idéia de
midiatização como estruturante. São denominações evocadas para dizer o
contemporâneo:
“Aldeia Global” (McLuhan, 1974), “Sociedade da Informação”
(Lyon, 1988; Kumar, 1997, dentre outros), “Sociedade Conquistada
pela Comunicação” (Miège, 1989), “Capitalismo de Informação”
(Jameson, 1991), “Sociedade Informática” (Schaff, 1991), “Sociedade
da Comunicação” ou “Sociedade dos Mass Media” (Vattimo, 1991),
“Era da Informação” ou “Sociedade Rede” (Castells, 1996),
“Sociedade da Informação ou da Comunicação” (Soares, 1996),
“Planeta mídia” (Moraes, 1998) e Idade Mídia” (Rubim, 2000)
(Ibidem)
40
.
De fato, Castells (2002) afirma que as novas tecnologias da informação foram
os instrumentos essências para o capitalismo das últimas décadas, acelerando a
produtividade e a lucratividade. “Uma nova economia surgiu em escala global no último
quartel do século XX. Chamo-a de informacional, global e em rede para identificar suas
características fundamentais e diferenciadas e enfatizar sua interligação (idem, p. 119)”.
40
Ver: LYON, David. The information society: issues and illusions. Cambridge, Polity Press, 1988;
KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo
contemporâneo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997; MIÈGE, Bernard. La société conquise par la
communication. Grenoble, PUG, 1989; JAMESON, Fredric. Postmodernism, or, the cultural logic of late
capitalism. Durham, Duke University Press, 1991; SCHAFF, Adam. A sociedade informática. São Paulo,
UNESPBrasiliense, 1991; VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Lisboa, Edições 70, 1991;
CASTELLS, Manuel. The information age: economy, society and culture. Cambridge, Blackwell
Publishers Inc, 1996- 1998 (três volumes); SOARES, Ismar de Oliveira. Sociedade da informação ou da
comunicação? São Paulo, Editora Cidade Nova, 1996; MORAES, Denis de. Planete mídia. Campo
Grande, Letra Livre, 1998 e RUBIM, Antonio Albino Canelas Rubim. A contemporaneidade como idade
mídia. Trabalho apresentado no V Congresso da Associação Latino-americana de Investigadores da
Comunicação – ALAIC. Santiago do Chile, 26-29 de abril de 2000.
147
Contudo, observamos com Castells que parte da consideração de Rubim parece
estar equivocada, na medida em que a sociedade é estruturada não apenas pela
comunicação (e pelas redes), mas pelas decisões políticas e, principalmente, pelo
próprio capital.
Embora o modo capitalista de produção seja caracterizado por sua
expansão contínua, sempre tentando superar limites temporais e
espaciais, foi apenas no final do século XX que a economia mundial
conseguiu tornar-se verdadeiramente global com base na nova infra-
estrutura, propiciada pelas tecnologias da informação e da
comunicação, e com a ajuda decisiva das políticas de
desregulamentação e da liberalização postas em prática pelos
governos e pelas instituições internacionais (CASTELLS, 2002, p.
142).
É o desempenho do capital nos mercados globalmente interdependes
que decide, em grande parte, o destino das economias em geral. Os
mercados financeiros são mercados, mas tão imperfeitos que
atendem parcialmente às leis da oferta e da procura (Ibidem, p. 147).
Os agentes decisivos da geração de uma nova economia global foram
os governos e, em especial, os governos dos países mais ricos (Ibidem,
p. 178).
Essa opinião parece comungar com o pensamento de Moretzsohn, segundo o
qual é um exagero conferir à comunicação esse papel estruturante, ainda que considere a
relevância do setor no capitalismo atual. “Afinal, no capitalismo, o que estrutura a
sociabilidade é o capital, que se manifesta como um sortilégio, escondendo-se nas
relações sociais reificadas entre as quais, certamente, figura essa entificação da
comunicação” (MORETZSOHN, 2007, p. 36).
De qualquer forma, embora não o único, a comunicação juntamente com outras
esferas, com mais ou menos intensidade, apresenta-se como um elemento estruturante
da sociabilidade. Além disso, por meio de sua onipresença nos mais diversos segmentos
sociais através da fabricação e mediação dos sentidos pela mídia, a comunicação realiza
a ambientação da sociedade que, segundo Moretzsohn, é uma percepção “muito
profícua” (Ibidem). Segundo Rubim, a manifestação da ambiência provocada pela
midiatização se realiza através:
1. da expansão quantitativa da comunicação, observada pelo número
de meios disponíveis, pelas tiragens e audiências, pela dimensão de
redes em operação etc; 2. da diversidade das mídias existentes; 3. da
mediação que realiza, tornando-se o modo dominante de experienciar
e conhecer a vida, a realidade e o mundo; 4. da presença e abrangência
148
das culturas midiáticas como circuito cultural dominante, que
organiza e difunde socialmente comportamentos, percepções,
sentimentos, ideários e valores; 5. da ressonância social da
comunicação midiatizada sobre a produção da significação
(intelectiva) e da sensibilidade (afetiva), social e individual; 6. da
prevalência da mídia como esfera de publicização (hegemônica) na
sociabilidade, dentre os diferenciados “espaços públicos” socialmente
existentes, articulados e concorrentes; 7. da ampliação vertiginosa dos
setores voltados para a produção, circulação, difusão e consumo de
bens simbólicos; 8. do crescimento (percentual) dos trabalhadores da
informação e da produção simbólica no conjunto da população
economicamente ativa e 9. do alargamento do consumo e dos gastos,
públicos e privados, com as comunicações (RUBIM, 2001, p. 04 - 05).
Hibridização de padrões nas relações entre público e privado
Numa sociedade ambientada pela comunicação em que as relações sociais são
em sua maioria mediadas, constituindo uma verdadeira “Idade Mídia”, o cerne da
discussão sobre inversão de padrões e comportamentos nas relações entre o público e o
privado necessita de um esclarecimento, que começa paradoxalmente com os seguintes
questionamentos: Em que sentido a contemporaneidade pode ser caracterizada por uma
inversão de padrões, como confere Kehl? Isso é sintomático da própria
contemporaneidade midiatizada ou não?
Para responder à questão, Kehl compara o atual estágio da sociedade (pós-
burguesa) com a sociedade anterior (burguesa). Nesta, a gica opera segundo uma
relação do líder com a massa, pautada nos ideais. Num processo de identificação, o
indivíduo assume como seu os valores manifestados pela figura de um der quase
sempre compreendido como um líder político ou religioso, de modo que ele possa se ver
na imagem do Outro, para que este realize ou represente os ideais que individualmente
ele é incapaz de sustentar. “Ainda que esses ideais possam se apresentar sob as versões
mais sinistras, como nos casos dos anseios de ´pureza´ e ´beleza´ contidos no ideário
nazista, ou do uso do nome de Deus e seus desígnios para justificar as guerras étnicas e
religiosas da atualidade” (BUCCI; KEHL, 2004, p. 157).
Na sociedade pós-burguesa ou do espetáculo, no entanto, a gica não reside
mais na identificação da massa com o líder, mas na construção de identidades, ou seja, o
mecanismo de identificações (com o líder) é substituído pela tentativa de construção de
identidades. Segundo Kehl, “já não é mais com a imagem do Outro que o sujeito tenta
se identificar, mas com uma espécie de imagem de si mesmo apresentada pela televisão
como uma imagem corporal(Ibidem, p. 158), numa tentativa de definir a sua própria
identidade.
149
para dar fôlego a essa discussão, Castells teorizava sobre o
enfraquecimento da relação pautada nos ideais. A inclusão da maioria das expressões
culturais no sistema de comunicação integrado
enfraquece de maneira considerável o poder simbólico dos emissores
tradicionais fora do sistema, transmitindo por meio de hábitos
historicamente codificados: religião, moralidade, autoridade, valores
tradicionais, ideologia política (CASTELLS, 2002, p. 461).
Nesse sentido, é importante mencionar um teórico contemporâneo da
sociossemiótica, que trata sobre a questão da identificação (aqui não mais com o líder)
na construção de identidades. Eric Landowski discute o processo de construção de
identidades de duas formas: identificando-se com o que é semelhante no outro e não se
identificando com o que não é semelhante, num jogo de identificação (alteridade) e não-
identificação.
Com efeito, o que forma à minha própria identidade não é a
maneira pela qual, reflexivamente, eu me defino (ou tento me definir)
em relação à imagem que outrem me envia de mim mesmo; é também
a maneira pela qual, transitivamente, objetivo a alteridade do outro
atribuindo um conteúdo específico à diferença que me separa dele.
Assim, quer a encaremos no plano da vivência individual ou como
será o caso aqui da consciência coletiva, a emergência do
sentimento de identidade’ parece passar necessariamente pela
intermediação de uma ‘alteridade’ a ser construída (LANDOWSKI,
2002, p. 04).
Pode-se dizer de acordo com o pensamento do autor acima que o sujeito, para a
constituição de sua identidade individual, baseia-se nessas duas formas de experiência,
identificando-se e, ao mesmo tempo, não se identificando com algo. A televisão, por
exemplo, sempre fez uso disso na tentativa de captar seu telespectador. Segundo Vilches
(2003), a televisão cria um senso de comunidade e evita que o espectador sente-se e
sinta-se em frente à tela. Mais que assistir a um programa, o telespectador pertence a
uma comunidade que se identifica com certos valores culturais.
As pessoas assistem à televisão para ver imagens, para ver os
políticos, os jogadores de futebol e suas personagens de literatura
popular. (...) A televisão é uma forma de viver uma identidade e uma
legitimidade, embora não pertença à cultura dos escritores. As
imagens, do mesmo modo que as línguas, permitem aos emigrantes da
nova sociedade da informação reconhecerem uma identidade e
150
legítima aspiração – incluírem-se como parte de uma comunidade
(VILCHES, 2003, p. 120).
Daí decorre o argumento de que a necessidade de vislumbrar e vivenciar a
intimidade alheia (e, mais do que isso, outras experiências sociais e culturais) não é um
fato novo, decorrente da midiatização, mas indissociável do próprio sujeito, para a
construção de sua própria identidade. Na realidade, sem discordar de Kehl, mas
ampliando seu raciocínio, com as novas tecnologias da comunicação, uma
possibilidade cada vez mais infinita de vislumbrar e vivenciar o outro. A televisão
massiva e os novos dispositivos higt tech, sem falar de outros meios de comunicação
como o rádio, vêm confirmar esse argumento. A Internet (Wourld Wide Web,
messenger, blog, fotolog), a webcam, o celular, o smartphone, a televisão digital
interativa vêm confirmar a possibilidade infinita de experienciar o público e o
privado simultaneamente, de modo que podemos falar em hibridismo de padrões
ocasionado pelas experiências simultâneas de vivenciar o público e o privado. Contudo,
o dispositivo tecnológico por si não garante essa experiência de vivenciar a
intimidade alheia, é preciso mais, é preciso o interesse do espectador que se relaciona
com a construção de identidades. O que há de novo é que, na contemporaneidade, pode-
se experienciar o íntimo, o particular ou o obscurecido, como no caso de culturas
marginalizadas ou de nichos, em possibilidades infinitas, graças à digitalização dos
conteúdos e ao fácil acesso permitido pelos dispositivos eletrônicos
41
.
Com a presença decisiva de uma sociedade midiatizada, uma naturalização
desse hibridismo de padrões (talvez isso justifique a “inversão de padrões” de Kehl). O
público e o privado parece tornarem-se um só. A intimidade alheia torna-se algo natural,
na medida em que o seu acesso também se banaliza. Não há mais nada de incrível em
estar em casa e participar de um fórum em qualquer lugar do mundo. Do mesmo modo,
é possível ligar uma webcam e, conectado a um provedor, exibir-se a uma massa amorfa
de usuários. Tudo isso obviamente não está presente apenas numa cultura interativa
representada pela convergência midiática ou pela Internet (os dispositivos high tech
apenas ampliam essa possibilidade). A televisão, tal como a conhecemos, é precursora
desse processo. As novas tecnologias longe de exterminarem os meios de comunicação
41
“A cauda longa” (2006), livro que virou best-seller internacional, mostra exatamente a mudança de
uma economia de massa para uma economia de nichos, em que, devido à digitalização dos conteúdos e à
facilidade do acesso, propicia-se a visibilidade de produções até então totalmente obscurecidas.
Economicamente, o comércio digital de uma cultura não-massiva, em alguns setores, representa cerca de
25% de tudo o que é consumido, obrigando a cultura de massa a sobreviver com esse novo fenômeno.
151
anteriores, remodelam a sua práxis. Isso porque o espetáculo, como foi dito, não é
apenas uma cena espetacularizada pela mídia, mas uma relação social mediatizada por
imagens, o que equivale a dizer que toda a conseqüência de uma exibição televisiva, por
exemplo, tem como resultado uma reordenação da própria produção posterior. Do
mesmo modo, o crescimento de mídias móveis reordena a produção das outras. Castells
afirma isso, “a mídia é a expressão de nossa cultura, e a nossa cultura funciona
principalmente por intermédio dos materiais propiciados pela mídia” (Castells, 2002, p.
422). Enfim, a atual cultura é uma cultura midiatizada em que as relações entre público
e privado se confundem, constituindo uma forma híbrida de experiência e de vivência,
de tal forma tão naturalizada que constitui um verdadeiro “sincretismo cultural”
(Canevacci, 1996).
O que nos interessa é a questão sobre a mudança de comportamentos
relacionada ao público e ao privado, de modo que, nessa perspectiva, a centralidade da
discussão ultrapassa os aspectos relativos aos meios, em direção às conseqüências
sociais. Voltemos à televisão. Trata-se de uma mídia ainda massiva, cujo conteúdo é
unidirecional, de um para todos, dificultando alguma possibilidade de interação. No
entanto, a mesma televisão (fisicamente desconectada da grande rede) está plenamente
inserida no contexto da “Idade Mídia”. Numa sociedade em que, devido à sofisticação
tecnológica, não mais (ou pelo menos bem pouca) a possibilidade de se esconder, de
preservar a intimidade diante de um universo midiatizado, a televisão age na produção
de seus conteúdos com a mesma sofisticação de tudo mostrar que uma webcam pode
oferecer. Não mais, salvo pelo menos algumas raras exceções, algo (íntimo) que não
se possa mostrar em público, justamente porque não algo que não se tenha visto
íntima ou publicamente. Do mesmo modo, figura-se a dimensão do aparecimento, o
sujeito que se exibe na TV, tão naturalizado com a capacidade de tudo ver e de tudo
ter visto, transforma-se ele próprio, exibindo-se, em mais uma “cena” corriqueira, sem o
pudor de um senso e de uma moralidade burguesa (Kehl, 2004).
A experiência simultânea do público e do privado e os programas de
comportamento
Numa sociedade midiatizada ou, como prefere Debord, numa sociedade
espetacularizada em que as relações sociais são mediadas por imagens, o cerne da
discussão sobre inversão de padrões deve ser entendido pelo acesso aos dispositivos
152
tecnológicos e comunicacionais que ampliam a possibilidade de vivenciar aspectos até
então obscurecidos por uma tradição burguesa. Essa possibilidade infinita de vivenciar a
intimidade e, certamente, de vivenciar outras formas de sociabilidade são propiciadas
pelo desenvolvimento dos dispositivos tecnológicos.
Obviamente, como afirma Kehl, a televisão brasileira é ainda o principal meio
propulsor dessa tendência, mas com certeza não é o único. Como foi dito, a televisão e
mesmo as demais mídias eletrônicas e impressas adquirem uma nova práxis no
momento da produção de seus conteúdos de acordo com a contemporaneidade.
Identificamos aqui um hibridismo de padrões nas relações entre público e privado que
altera substancialmente a produção de qualquer conteúdo midiático, que a mídia é a
“expressão de nossa cultura”. Do mesmo modo, as relações sociais são modificadas
pelo próprio consumo desses conteúdos, numa troca simultânea e infinita graças à
mediação e à midiatização.
Desse modo, é imprescindível focalizar esses aspectos que tornam comum essa
dinâmica social, enriquecida pela “migração digital” (VILCHES, 2003). A Idade
Mídia” traz uma nova configuração temporal e espacial através das experiências
simultâneas ao agregar espaço geográfico e espaço eletrônico, local e global,
convivência e televivência, realidade contígua e telerrealidade. Trata-se de um caráter
imanentemente complexo da sociabilidade contemporânea (RUBIM, 2000, p. 32).
A expressão empregada por Muniz Sodré (1994) parece definir claramente esse
novo modo de sociabilidade marcado por televivência em abrangência globalizante. A
“telerrealidade” é um modo de reorganizar o espaço e o tempo sociais. Através da
telepresença, o indivíduo mantém uma “relação privada” com o mundo. “Instalam-se
possibilidades reais de controlar à distância, telematicamente, todo o espaço social,
inclusive a cena doméstica” (SODRÉ, 1994, p. 33).
O autor de A máquina de Narciso alguns exemplos, que podem, no atual
estágio da complexa mediatização, ser acrescentados a muitos outros. As transações
bancárias podem ser feitas sem sair de casa, do mesmo modo, as compras de
supermercado (ou hoje de qualquer produto). exemplos de votação à distância, sem
falar de videoconferência, que tem enchido salas de aulas por todo o país e a educação
on-line. Até a passa a ser mediada, basta ligar a TV. “A conexão à rede elétrica não
apenas liberou a mulher de sua múltipla natureza eletrodoméstica; também permitiu
liberar os corpos de sua materialidade espacial” (VILCHES, 2003, p. 66).
153
Ao consagrar a realidade na televivência, Muniz Sodré deixa claro também o
fato de não poder traçar fronteiras entre real e imaginário. “A ‘verdade’ lugar à
‘credibilidade’ do enunciado (...). De fato, um outro ‘real’ é gerado pela progressão dos
simulacros e com tanto poder que a imagem pode ser mais crível que o original
‘verdadeiro’” (Ibidem, p. 36).
Graças aos aparatos tecnológicos responsáveis por uma sociedade midiatizada,
uma maior possibilidade de hibridização dos padrões na relação entre público e
privado devido ao interesse do espectador de vivenciar experiências alheias para a
constituição de sua própria identidade. O cerne da discussão está em poder vivenciar os
espaços (público e/ou privado) num mesmo momento (tempo). Castells explica isso:
Localidades ficam despojadas de seu sentido cultural, histórico e
geográfico e reintegram-se em redes funcionais ou em colagens de
imagens, ocasionando um espaço de fluxos que substitui o espaço de
lugares. O tempo é apagado no novo sistema de comunicação já que
passado, presente e futuro podem ser programados para interagir entre
si na mesma mensagem. O espaço de fluxos e o tempo intemporal são
as bases principais de uma nova cultura, que transcende e inclui a
diversidade dos sistemas de representação historicamente
transmitidos: a cultura da virtualidade real, onde o faz-de-conta vai se
tornando realidade (CASTELLS, 2002, p. 462).
De fato, as novas tecnologias e a “sociedade em rede”, conectada globalmente
através de algum dispositivo eletrônico, acentuam essa experiência temporal e espacial.
No consumo de sincretismos culturais, como denomina Canevacci (1996), a expressão
“glocal” também contribui para a compreensão do fenômeno da contemporaneidade.
Em seus termos:
Essa palavra nova, fruto de recíprocas contaminações entre global e
local, foi forjada justamente na tentativa de captar a complexidade dos
processos atuais. Nela foi incorporado o sentido irrequieto do
sincretismo. O sincretismo é glocal. É um território marcado pelas
travessias entre correntes opostas e frequentemente mescladas, com
diversas temperaturas, salinidades, cores e sabores. Um território
extraterritorial (idem, p. 25, grifos do autor).
Sob esse contexto, em que conceitos como telerrealidade e glocalidade vêm
tentar explicar a sociabilidade contemporânea caracterizada pelas novas tecnologias da
comunicação e da informação, toda a estrutura social se molda nessa nova configuração
espaço-temporal. Como resultado há, cada vez mais, a possibilidade de vivenciar
154
simultaneamente o público e o privado, contribuindo para uma hibridização de padrões
e de comportamentos que podem ser identificados nos conteúdos da própria mídia e na
nova reordenação social. Vislumbrar a intimidade alheia e se exibir em público (de
forma mediada) tornam-se fenômenos naturalizados e banalizados. Contudo, trata-se
apenas de uma fatia das conseqüências da era digital, que pode ser sintetizada na
facilidade de vislumbrar e vivenciar a tudo e a todos e, consequentemente, na
naturalização que faz com que tudo (íntimo) possa ser dito e mostrado em público,
como acontece com os programas de comportamento.
O sujeito participante de um programa televisivo como Casos de família ou
Programa Silvia Poppovic pode estar interessado em um cachê (como acontece no
primeiro programa), em notoriedade televisiva (fama) ou em diferenciar-se do grupo do
qual faz parte. Mas, em todos os casos, há um comportamento diferente daquele que
representava a burguesia dos séculos passados, como constatado por Kehl.
Hoje, Ir à TV para expor detalhes íntimos, tais como, assédio sexual, traição,
preconceito, ciúme ou disfunção sexual, pode não acarretar nenhum pudor, nenhum
constrangimento para os sujeitos participantes. Isso evidentemente está aliado ao que
intitulamos de “hibridismo de padrões nas relações entre o público e o privado”. A
separação entre um domínio e outro, a partir da naturalização imposta pela “sociedade
do espetáculo” ou pela “Idade Mídia”, torna-se menos nítida no momento em que seus
limites se hibridizam, consolidando em mais um aspecto que marca a relação estreita
entre TV e sociedade.
155
CONSIDERAÇÕES FINAIS
CONSIDERAÇÕES FINAISCONSIDERAÇÕES FINAIS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Programas de comportamento, como os dois que fazem parte do nosso corpus,
apresentam em comum, além das características próprias do gênero, o atributo de
exibirem o privado, a intimidade alheia, num universo público, aspecto que intitulamos
de “hibridismo de padrões”. Como dissemos, não se trata de uma inversão de padrões e
comportamentos, mas de um hibridismo desses padrões quanto ao que é considerado de
domínio público e privado, naturalizado principalmente pela televisão. Esse aspecto,
cada vez mais presente na vida de todos, altera o modo de convivência, faz convergirem
num mesmo universo o público e o privado.
Na televisão não poderia ser diferente. Cada vez mais, questões íntimas são
exibidas sem nenhum (ou muito pouco) constrangimento e pudor. Haja visto os
inúmeros programas de diferentes gêneros e formatos que, cada vez mais presentes,
dilaceram as fronteiras que separam a intimidade do espaço público. E se cada vez mais
esses programas ocupam espaços (e os principais deles) das mais diversas emissoras é
porque certamente fazem sucesso. Em outras palavras, parece haver um interesse cada
vez mais crescente em vislumbrar a intimidade alheia e, ao mesmo tempo, em ser
vislumbrado.
Os dois programas Casos de família e Programa Silvia Poppovic adotam,
apesar de utilizarem diferentes práticas (de entrevistas, de apresentação etc.), a mesma
estratégia de exibir comportamentos (íntimos) num espaço público (TV). As fronteiras
quanto o que é permitido ou proibido mostrar em público deixam de ser tão gidas,
hibridizando todos os limites. É possível exibir-se num desses programas e relatar as
experiências mais íntimas, familiares, sexuais, pessoais, e não se constranger com isso.
Do mesmo modo, assistir a essas “intimidades” na TV parece não ser novidade e nem
conter nenhuma provocação com isso. Evidentemente, duas práticas que se nutrem uma
da outra, destacando o movimento reflexivo entre TV e sociedade: quanto mais acesso a
intimidades alheias um espectador por ter, mais facilmente ele pode exibir-se. Como
bem destacou Castells: “a mídia é a expressão de nossa cultura, e a nossa cultura
funciona principalmente por intermédio dos materiais propiciados pela mídia” (Castells,
2002, p. 422).
Quanto à análise empírica do objeto de pesquisa, vimos que cada programa
articula diferentes estratégias narrativas/discursivas/plásticas/patêmicas com o intuito de
apreender o seu telespectador num universo de valores e sentidos. A eficácia de cada
156
articulação de linguagens (ou de cada procedimento de sincretização) adotada pode ser
comprovada através dos dados de audiência, de veiculação, sobre cada programa e pode
ser explicada pelas relações firmadas entre enunciador e enunciatário.
Tais relações são acionadas, a partir das análises realizadas, pela constituição
do próprio objeto semiótico, capaz de convocar seu público e firmar contratos.
Evidentemente, isso pode também ajudar a explicar o sucesso ou o fracasso de um
programa. Casos de família, em oposição ao Programa Silvia Poppovic, parece permitir
a construção de laços afetivos com o telespectador, fortalecendo sua adesão: (i) a
exibição diária e o horário livre de concorrência para o seu público-alvo possibilitam
uma adesão através do hábito: todos os dias, naquela mesma hora, naquele mesmo
canal, o telespectador sabe que pode contar com aquela programação; (ii) a
apresentadora exerce uma identificação com o seu próprio público que, diferente do
outro, é bastante específico (mulheres que exercem diversas atividades: trabalham fora,
cuidam da casa, da família, cuidam de si etc.); (iii) a apresentadora convida o
telespectador a “participar” do programa, concordando ou discordando dos diferentes
valores e pontos de vista que são evidenciados, permitindo uma reflexão, uma
construção da “verdade”, em suma, valorizando o saber do telespectador que pode
“interagir” (mais um efeito de sentido); (iv) o tema, sempre específico (comportamento
familiar), possibilita também uma identificação por parte do público que pode ver seu
problema ou suas opiniões sendo representados na TV pelos múltiplos e distintos
argumentos e pontos de vista (cada tipo de sujeito participante apresentadora,
especialista, convidados e platéias tem uma opinião única sobre o assunto, o que
acentua o clima de dualidade); (v) a paixão da curiosidade, o querer-saber, também está
presente no programa, a começar pelo fato de que os participantes se exibem aos
poucos, um de cada vez, prevalecendo, num esquema tensivo, constantes picos
intensivos; (vi) a forma como as entrevistas são realizadas é decisiva para a
consolidação de contratos patêmicos: além das entrevistas serem longas, o que permite
um aprofundamento no estado de alma dos sujeitos envolvidos, a partir delas destacam-
se o tempo presente, a consolidação de papéis temáticos e patêmicos, aspectos decisivos
para discursos mais passionalizados. Tratam-se, enfim, de dois distintos programas que,
através de muitas práticas, compõem distintas estratégias televisivas e consolidam
distintas situações semióticas, que podem resultar em sucesso ou em fracasso.
Para a elaboração dessa etapa do trabalho, a escassez de análises sobre o
assunto, a dificuldade para conseguir fontes e dados sobre os programas e a ausência de
157
um método já consolidado de análise para o audiovisual tornaram-se os principais
complicadores. Contudo, acreditamos poder contribuir para o estudo de programas de
comportamento e, principalmente, poder refletir sobre a “análise comunicacional”, tal
como sugere Vera França (2004), na nossa introdução, ao revelar o “mundo social
sendo construído, modificado, mantido pelos homens que o habitam e falam”. Segundo
ela, “é nesses pequenos momentos que papéis, desejos, valores são estabelecidos e
negociados” (Ibidem).
158
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162
A
AA
ANEXOS
NEXOSNEXOS
NEXOS
Anexo 1 – Entrevista com Regina Volpato
Entrevista realizada em dezembro de 2007.
Entrevistada: Regina Volpato
Função no programa Casos de família: apresentadora
Como você se sente em comandar o programa Casos de família?
sugestões de perguntas nas fichas que ficam comigo e tenho liberdade de aceitar tais sugestões ou não. Muitas vezes a conversa
toma rumos inesperados e as perguntas sugeridas ficam sem valor.
Tomo conhecimento dos temas a serem gravados minutos antes de gravação. Gravamos mais de um por dia. Em média, três.
Tenho total liberdade para fazer os encerramentos.
Encaro o desafio de apresentar o Casos de família como um grande exercício de criatividade, superação, presença de espírito,
humildade e aprendizagem constantes. A liberdade de poder encerrar o programa me enche de responsabilidade. A necessidade de
falar a respeito de temas tão variados me obriga a estar bem preparada. E bem informada, também.
No início, em 2004, me deparei com um Brasil totalmente desconhecido para mim. Fui repórter da Fundação Roberto Marinho e
minhas matérias eram com adultos que estudavam pelo Telecurso. Tive a oportunidade de viajar pelo interior de vários estados e
conhecer histórias de pessoas muito especiais e sofridas. Eu achava que conhecia um pouco do nosso país... Hoje esse impacto do
começo do Casos ainda aparece, que é um pouco mais raro. Mas continuo me surpreendendo com os sotaques, expressões,
costumes, senso de estética e ética, bom humor, padrões de comportamento, sonhos, necessidades, aflições, angústias do nosso
povo. No jornal leio as notícias. No estúdio vejo as conseqüências dos fatos na vida dos brasileiros.
Sinto-me privilegiada por estar em contato com essas pessoas; privilegiada pela liberdade que tenho para exercer meu ofício.
Fico triste, em muitas situações. Alguns depoimentos carregarei comigo para sempre.
Em alguns dias sinto-me estrangeira no meu próprio país.
Sinto-me feliz por essa oportunidade.
Anexo 2 – Entrevista com Rose Favero
Entrevista realizada em agosto de 2007.
Entrevistada: Rose Favero
Função no Programa Silvia Poppovic: produtora executiva
Qual o objetivo do programa?
Entretenimento e informação
A quem o programa se destina? Qual o tipo de público? (classe social, escolaridade, idade etc.)
Tentávamos não fazer um programa para públicos específicos, para isto fazíamos programas com temas direcionados para homens
mulheres e crianças. Sem distinção de classe social.
Como era o Ibope do programa?
Levando em consideração o Ibope da emissora onde era veiculado, nós conseguíamos muitas vezes quadruplicar a audiência.
Como são definidos os temas das edições do programa? Quem os define? Há algum critério de seleção?
Nós fazíamos reuniões periódicas, onde toda a equipe participava. Cada um levava sugestões retiradas de leituras, conversas com
amigos etc. .. Nesta reunião os temas eram discutidos e focados nos casos que gostaríamos de ter. Para a colocação na grade de
gravação procurávamos intercalar temas médicos, factuais, ligados à mulheres, homens e crianças.
Como são selecionadas as pessoas que vão participar do programa? Como essas pessoas são encontradas?
Bem, depois do tema definido nós fazíamos uma grande pesquisa, jornais, revistas, internet e boca-a-boca. Assim surgiam nomes
de possíveis convidados, entrávamos em contato com a pessoa e fazíamos uma pré-entrevista. Sendo aprovada, ou seja, se a pessoa
realmente se encaixasse no tema, se ela tivesse testemunhos da história e se falasse bem, seria convidada e viria no palco conversar
com a Silvia Poppovic.
Há algum tipo de retribuição a essas pessoas, tais como cachê?
Em nosso programa nunca pagamos cachê. Os especialistas vinham porque a Silvia Poppovic sempre teve muita credibilidade, os
convidados eram avisados da repercussão do programa e da exposição que teriam, e se, mesmo assim, topassem participar eram
buscados em casa e levados de volta, sem nenhuma ajuda de custo.
Fala-se muito em armação, que algumas histórias são inventadas etc., é verdade?
Posso te garantir que durante todos os anos que trabalhei com a Silvia Poppovic, na TV Bandeirantes e TV Cultura não admitíamos
casos falsos, muito menos armados pela produção. Nossa equipe sempre foi formada por profissionais competentes que não
precisavam deste recurso para conseguir fechar o programa.
Por que o programa saiu do ar?
O contrato da apresentadora com a TV Cultura terminou, ela e a direção da emissora resolveram não fazer a renovação.
Anexo 3 – Entrevista com José Ailton Soares Júnior
Entrevista realizada em janeiro de 2008
Entrevistado: José Ailton Soares Júnior
Membro da equipe de produção do Casos de família
Qual sua função no Casos de família?
Trabalho na parte de pesquisa dos casos, entrevista dos convidados e produção interna do programa (gravação).
Como é sua rotina de trabalho? Você faz exatamente o que?
È um trabalho externo. Durante a semana ficamos na rua fazendo entrevistas de convidados e de quinta e sexta é feita a gravação
dos programas. Quando o trabalho é na gravação, fazemos a preparação dos convidados para a gravação incluindo: supervisionar
almoço para eles, cabelo, maquiagem, pré-entrevista antes da gravação (a pré-entrevista consiste em repassar o que foi conversado
na entrevista de seleção) e finalmente a gravação no estúdio em que orientamos os convidados como se portar diante as câmeras.
Como os temas são definidos?
Nós somos divididos em grupos, cada grupo liderado por um chefe, este tem a mesma função dos demais, mas é um líder. Toda
segunda feira, o diretor, assistente de direção e os produtores se reúnem para definir quais vão ser os temas. Chamam os líderes de
grupo e lhe passam os temas, é comum entrar um tema para cada grupo por semana para substituir o que foi gravado na semana
163
passada. Os temas podem ser sugeridos por todos da produção, cabe a produção chefe ver se serve ou não, se não servir eles fazem
adaptações para um tema semelhante.
Como os convidados são selecionados? Encontrados? Em quais regiões eles moram?
Funciona assim, escolhemos regiões carentes da grande São Paulo, pois são pessoas que são mais flexíveis a participar. Quando um
estagiário entra na nossa produção, ele é encaminhado para um dos grupos e tem como função inicial fazer um “contato”. Este
contato tem que ser alguém da comunidade em questão com um perfil de que conheça bastante pessoas e seja comunicativo, pois ele
será a nossa fonte de casos, pois não adiantaria nada ir batendo de porta em porta para procurar os casos, pois muitos nem dariam
atenção para nós, com este contato seria mais fácil, pois por ser conhecido na região seria mais fácil convencer as pessoas. O
contato trabalha para nós sem nenhum vínculo empregatício, ele recebe por caso que indicar, recebe quarenta reais por caso (vinte
por pessoa), quando o caso é em trio, que é mais incomum, o contato recebe sessenta reais (vinte por pessoa também). Cabe ao
contato indicar a quantidade de casos, quanto mais casos, mais cachê. contatos que estão conosco quase quatro anos, faz disso
uma renda mensal. É importante lembrar que todos os casos tem que ser verdadeiros. O contato indica o caso. Alguém do grupo em
questão vai entrevistar o caso, é como uma investigação, pedimos documentos para confirmar a veracidade dos casos e conversamos
com cada parte em separado para ver se as informações coincidem.
Por que você acredita que eles participam do programa expondo suas vidas particulares?
Depende muito, temas que acabam expondo mais a intimidade, outros já não, tem participantes que tem medo de expor sua vida
pessoal, mas explicamos que são apenas depoimentos, que é um programa sério que não quer denegrir a imagem de ninguém, assim
construímos tanto programas engraçados quanto emocionantes.
O que cada convidado recebe do programa pela participação?
Cada convidado recebe oitenta reais de cachê (cento e sessenta reais por caso e duzentos e quarenta no caso de trio). Além disso, o
SBT busca os convidados em casa de carro, tanto para a entrevista na produção com nossa produtora chefe quanto para a gravação
do programa. No SBT almoçam e se ocorrer de um convidado não ter dentes, levamos ao dentista para colocar uma prótese para que
ele não tenha vergonha de aparecer na televisão.
Anexo 4 – Apresentação do programa Casos de família no site.
Texto de apresentação do programa Casos de família no site do SBT. Acessado em 14/08/2007.
Endereço: http://www.sbt.com.br/casos_familia/programa/.
O programa
Casos de Família, apresentado pela jornalista Regina Volpato, é um talk show diferente que retrata a vida de cidadãos comuns com
realidade e sensibilidade.
Diariamente, o programa traz temas do cotidiano que vão ressaltar as emoções dos participantes presentes no palco, da platéia
convidada e dos telespectadores que estão em casa, resgatando valores sem apelar para provocações ou escândalos.
Os protagonistas de cada uma das histórias relatadas, são pessoas anônimas que revelam seus sentimentos com sinceridade e
verdade.
Além, dos convidados, a platéia também participa ativamente do programa com opiniões e perguntas sobre as histórias relatadas. A
intenção é orientar e até mesmo solucionar os casos apresentados contando com a participação de um profissional especializado em
comportamento.
A experiente jornalista Regina Volpato, conduz o bate-papo com uma postura sóbria e imparcial. Usando o bom senso, ela opina,
interage com a platéia e conversa sobre os casos com o especialista convidado pelo programa.
Casos de Família chega às tardes da televisão brasileira para inovar o formato dos “talk shows”, que já fazem sucesso na televisão
mundial há mais de 30 anos. Um programa forte, que vai mexer com a opinião do público telespectador.
Anexo 5 – Apresentação da Fundação Padre Anchieta no site.
Texto de apresentação da Fundação Padre Anchieta pelo site da TV Cultura. Acessado em 14/08/2007.
Endereço: http://www.tvcultura.com.br/detalhe_institucional.aspx?id=39.
Quem Somos
A Fundação Padre Anchieta - Centro Paulista de Rádio e TV Educativas, foi instituída pelo governo do Estado de São Paulo em
1967, é uma entidade de direito privado que goza de autonomia intelectual, política e administrativa. Custeada por dotações
orçamentárias legalmente estabelecidas e recursos próprios obtidos junto à iniciativa privada, a Fundação Padre Anchieta mantém
uma emissora de televisão - a TV Cultura - e duas emissoras de rádio: a Cultura AM e a Cultura FM.
Por inspiração de seus fundadores, as emissoras da Fundação Padre Anchieta não são nem entidades governamentais, nem
comerciais. São emissoras públicas cujo principal objetivo é oferecer à sociedade brasileira uma informação de interesse público e
promover o aprimoramento educativo e cultural de telespectadores e ouvintes, visando a transformação qualitativa da sociedade.
Anexo 6 – Temas de edições de Casos de família
Data de
exibição (2006)
Temas das edições de Casos de família
03/07 Não me entendo com o meu padrasto
04/07 Você coloca os meus filhos contra mim
05/07 Você faz promessas demais
06/07 Ela não sai do salão de beleza
07/07 Você me trocou por sua religião
11/07 Só caso se for no papel
14/07 Meu ex não deixa eu ter outro relacionamento
17/07 Ele diz que trabalha, mas eu não vejo o dinheiro
18/07 Não sei se quero me casar com você
20/07 Minha família não aceita o meu trabalho
21/07 O namorado da minha filha pensa que é o dona-de-casa
25/07 Tenho medo que meu filho se envolva com drogas
27/07 Minha irmã trata melhor as amigas do que a mim
28/07 Ela é a fofoqueira do bairro
31/07 Eu brigo muito com meu irmão gêmeo
01/08 Quero que meu pai participe mais da minha vida
03/08 Meu filho apronta, mas quem sofre as conseqüências sou eu
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04/08 Ele se dedica mais ao carro do que a mim
08/08 Minha mãe não me deixa viver
09/08 Eu namoro você e não os seus amigos
10/08 Eu quero morar com o meu pai
11/08 Meu ex não sai da minha casa
14/08 Meu marido não admite que é ciumento
Anexo 7 - Temas de edições de Casos de família (narrativa diferenciada)
Data de
exibição (2006)
Temas das edições de Casos de família
12/07 Nossos filhos atrapalham o nosso relacionamento
13/07 Gosto de você, mas não suporto a sua família
19/07 Ela só gosta de homens mais velhos
24/07 Você aprontou tanto que ninguém te respeita mais
26/07 Você não aceita a ajuda de ninguém
02/08 Minha mãe é sempre enrolada pelos namorados dela
07/08 Sua vida não pode parar
Anexo 8 – Temas de edições do Programa Silvia Poppovic
Temas das edições do Programa Silvia Poppovic
Alcoolismo Invasão de privacidade
Ano novo Mães diferentes
Assédio sexual O carnaval mudou minha vida
Catástrofes naturais Obesidade infantil
Célula tronco Perversão na internet
Compulsão pós cirurgia de redução de estômago Poluição sonora
Copa do mundo Procrastinação
Depressão pós-parto Sexo na terceira idade
Desarmamento Traição virtual
Dietas radicais Viciados em cirurgia plástica
Distúrbios alimentares Viciados em tecnologia
Dor Violência contra a mulher
Ejaculação precoce Violência doméstica
Fobias estranhas Violência praticada pelos jovens
Hiperatividade Zumbido no ouvido
Anexo 9 – Transcrição das entrevistas do programa Casos de família
Tema: Você tem que me apresentar para a sua família (Casos de família)
faz anos que vocês estão juntos e têm uma vida em comum, mas basta alguém da família dele aparecer que ele se afasta dando a
impressão que vocês mal se conhecem. Ele dá umas desculpas e você não sabe se ele tem vergonha de você ou se está tentando
esconder alguma coisa. Você tem de me apresentar para a sua família é o nosso tema de hoje.
Parte I
Regina Volpato: Agora a gente vai conhecer a Cristiane que tem 29 anos e diz: “Cada hora o José inventa uma desculpa para não me
apresentar para a família dele, eu acho que ele tem vergonha de mim”. Cristiane, por favor, entre.
Regina Volpato: tudo bem, Cristiane?
Cristiane: tudo bom.
Regina Volpato: Quanto tempo que vocês estão juntos?
Cristiane: Nóis...sete anos!
Regina Volpato: Sete anos?
Cristiane: Isso!
Regina Volpato: E vocês tiveram filhos juntos?
Cristiane: Eu tenho seis filhos: quatro é dele e... dois é do meu primeiro casamento...ai quando a gente se conheceu eu já tinha esses
dois, que é a Talita e o Willian.
Regina Volpato: Você não conhece ninguém da família do José?
Cristiane: Eu conheço uma irmã dele porque foi assim...ela precisava de um favor dele, ai ele pegou e... ela foi até a casa dele, a
nossa casa né. Nessa época, eu namorava com ele, então a casa era dele, entendeu?...
Regina Volpato: E já faz tempo?
Cristiane: Faz!...Sete anos atrás eu conheci ela. Entendeu? Ela precisava de um favor dele, foi na casa dele e assim eu fiquei
conhecendo ela.
Regina Volpato: E ele conhece a sua família?
Cristiane: Conhece! Conhece meu pai, meus primo, minhas prima e minha mãe...
Regina Volpato: E você acha que ele tem vergonha de você, Cristiane?
Cristiane: Então, eu acho que tem...Eu já pensei assim várias hipóteses, mais ai fiquei pensando que seria vergonha...
Regina Volpato: Mas vergonha do que Cristiane?
Cristiane: Ah! Ele sempre fala assim: “Ai minhas prima são tudo loira, alta...eu peguei, eu fiquei pensando que ele tem vergonha de
mim, por causa da minha cor...
Regina Volpato: Mas por causa da sua cor?
Cristiane: É porque sempre fala que as prima dele são tudo loira, alta, tanto que a irmã dele é assim branca que nem ele, o sobrinho
também né...aí eu fiquei pensando, só pode ser isso, né! Talvez ele tem vergonha de chegar e apresentar pra família dele.
Regina Volpato: Talvez a família dele seja preconceituosa?
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Cristiane: É...preconceito assim pela cor, pela nossa classe social também, porque ele fala que um tio dele tem mercado, o outro tem
açougue, tem uma condição financeira boa, entendeu? E nóis não, nóis mora numa invasão, assim ele trabalha, faz bico, ele se vira
de tudo jeito, mas não chega de chegar a uma condição assim... a gente já teve carro, tudo pra ir lá, ele não...
Regina Volpato: Onde a família dele mora, Cristiane?
Cristiane: Ó...tem em São Bernardo, tem na Freguesia do Ó...
Regina Volpato: Aqui em São Paulo?!
Cristiane: Aqui em São Paulo...ele tem uma irmã só que mora no Pernambuco, porque ele é pernambucano né. Ele tem uma irmã só
que mora lá.
Regina Volpato: As outras pessoas da família dele estão todas por aqui?
Cristiane: É..
Regina Volpato: E quando você pergunta pra ele...porque isso que você disse aqui, você já disse pra ele, que você acha que ele tem
vergonha de você?
Cristiane: Já...ele fala assim: “não é porque não tem carro”, mas nóis já tivemo carro, e eu já falei vamo, vamo lá conhecer seus tio,
leva as criança, ai ele “não, outro dia nóis vai”...
Regina Volpato: Mas e ele vai visitar a família sozinho sem você?
Cristiane: Não.
Regina Volpato: Então ele não tem contato com a família dele?
Cristiane: Não, ele não tem contato.
Parte II
Regina Volpato: Então vamos conhecer o José que tem 31 anos e diz “eu não tenho muito contato com os meus familiares, eles
me procuram quando precisam de alguma coisa”. José, por favor, entre.
Regina Volpato: Tudo bem, José?
Regina Volpato: Você acha que a sua família só te procura quando precisa de alguma coisa?
José: Uma irmã que eu tenho!
Regina Volpato: Ah... uma irmã!?
José: Uma irmã que eu tenho! Aqui em São Paulo.
Regina Volpato: Mas a Cristiane tava falando que você tem parentes que moram em vários bairros por aqui na cidade...
José: Sim, com certeza!
Regina Volpato: E que ela gostaria de conhecer os seus parentes, José...
José: Ela gostaria...mas, as vezes, a gente não tem tempo, né?! É...cidade grande...muito corrido, o dia-a-dia muito trabalho...
Regina Volpato: É falta de tempo?
José: Falta de tempo!
Regina Volpato: E é falta de vontade também sua de visitar a sua família, porque tem família que o se bem, o tem aquela
história de família fica bem no porta retrato e tal, tem gente que não gosta de visitar a família, que não se bem, que se sente
diferente da família?
José: No meu caso é o seguinte: eu fui...vim do norte com meus pais, com meu padrasto, minha mãe e eles morreram quando eu
tinha oito, nove anos de idade e...quando viemos de pra sempre ficamos na dependência desses nossos parentes, meu parente
da parte da minha família, que moram em todos os cantos, na Freguesia do Ó... e eles nos ajudaram bastante, entendeu...e veio esses
problemas na família, meus pais morreram, meu padrasto foi..., até aí tudo bem. que hoje, eles me ajudaram muito, hoje eu não
acho lógico eu ir e...é já voltei lá, né, pra visitar e...eles chegaram e nem abriram o portão, foram no portão aí...O que que eu
refleti: eles não me receberam. Por quê? Aí eu comecei a colocar, entendeu, todo aquele percurso anterior...então é isso daí.
Regina Volpato: Então você acha, veja se eu entendi direito, você acha que quando você foi lá, eles entenderam que você foi porque
estava precisando?
José: Como sempre né! Como sempre...
Cristiane: Mas eu penso assim, eu e as crianças, a gente não tem nada a ver com isso, entendeu? Isso foi uma coisa que passou.
Tem atritos que acontecem na família, mas depois...ele era criança! Agora ele já cresceu, já é adulto, já é um adulto responsável, tem
uma família, entendeu...isso é passado!
Regina Volpato: Será que se hoje você fosse lá, você não seria recebido de uma maneira diferente? Não vale a pena tentar ou o
trauma foi muito grande e você não quer nem saber?
José: Não...não houve trauma. O que ta havendo... o que é uma coisa do dia-a-dia...aquele lado financeiro, no caso, esse meu
tio, ele tem comércio. Um dia cheguei e falei assim: “me uma cerveja aí, me um maço de cigarro”. Ele ficou olhando pra
minha cara!
Regina Volpato: Ele achou que você estava pedindo e não comprando?
José: Compreendeu? ficou olhando pra minha cara...eu falei “me uma cerveja e uma maço de cigarro que eu vou fumar...Eu
vou pagar! Dá pra você pegar...Tá aqui ó, ta aqui! (referindo-se ao dinheiro)”
Regina Volpato: E fazer diferente. Convida-los pra ir até a sua casa, ou marcar de ir num outro lugar, ou simplesmente ligar pra
saber se ta tudo bem, pra dar notícias sua, tentar uma reaproximação devagarinho? Sem se aparecer lá, entendeu, com as crianças,
com a mulher, ligar pra saber se ta tudo bem, pra falar de você, saber deles?
José: Eu tenho vontade!
Regina Volpato: Tem vontade?
José: Tenho vontade de ir, mas eu espero estar muito bem...
Regina Volpato: Mas você ta bem! Você ta saudável...
José: Financeiramente! Porque daí eu quero chegar neles, falar “vem cá, faz a conta aí”
Regina Volpato: mas aí é vingança, não é?!
José: Não é vingança. Eu to tentando ou eu to pensando ao menos retribuir o mínimo que eles fizeram por mim, você entendeu? Em
qualquer caso, de qualquer maneira, se eu for pra casa deles, eu vou dar alguma despesa...
Cristiane: Se ele morrer então fazendo bico, então as criança também fica sem conhecer o resto da família. Apesar, eu já nem sei pra
quem eu vou falar que ele faleceu porque eu não conheço a família dele...
José: Eu não vou falecer!
Regina Volpato: (risos) um dia, José! Um dia...Um dia isso vai acontecer né...?!
Parte III
Regina Volpato: Mas isso é comum né doutora? Não é todo mundo que tem um relacionamento próximo e agradável com a família.
Anahy D´amico: Exatamente (...) É incrível como mulher tem esse movimento de puxar pra si o que ta errado, então se ele não me
apresentou é porque eu sou feia ou porque ele não gosta o suficiente ou porque ele tem outra... Mulher tem essa tendência e isso é
um erro né! Porque pode ter a ver com ele. (...) Então quando a gente fica forçando a barra, a gente acaba encuralando o outro
numa situação que ele não ta preparado, porque todos eles aqui, eles encontraram uma zona de conforto, que é qual? O
166
distanciamento. A partir do momento que vocês começa a pressionar para serem apresentadas, vai causando aquele desconforto,
aquele receio, o receio da não aceitação. No caso do José, por exemplo, ele tem claramente um problema com essa família, de
menos valia, de sentimentos do passado que ele precisa enfrentar, então não tem a ver com você, Cristiane (...) Não adianta ficar
pressionando, essas coisas acontecem na hora que tem que acontecer.
Regina Volpato: O tema do programa é “você tem que me apresentar pra sua família” e eu acho muito engraçado que quando a
gente coloca “você tem que” passa a ser obrigação e tudo que é obrigação não é do coração. Eu acho que apresentar pra família pode
acontecer ou não, mas tem o seu devido tempo, naturalmente, porque cada um teve uma história com a sua família, a sua história
Denis foi uma completamente diferente da do Joel (referindo-se aos demais convidados do programa), por exemplo, então ele vai
levar um certo tempo pra amadurecer tudo isso, pra conseguir se colocar com a maturidade, com toda a dignidade que você merece.
É uma opção sua, é uma orientação sua e assim com todos os casos. Vai saber o que aconteceu na vida dessa família no passado,
antes de vocês aparecerem, vai saber o que foi dito, vai saber aquele monte de coisa que a gente ouve e finge que esqueceu mas fica
machucando no coração da gente. É muito interessante o que o Olimar (referindo-se ao outro convidado) disse que o que importa é o
relacionamento entre os dois. Se o relacionamento entre os dois ta bom, mais cedo ou mais tarde, a família acaba se aproximando. O
importante é o casal se entender. Conhecer a família diz muito sobre a pessoa, foi o que vocês disseram aqui. Será? É claro que
quando você tem um relacionamento amigável, quando você tem um relacionamento próximo da sua família, como é o caso da
Teodora, é mais gostoso, claro que é! Você se sente amada, você se sente querida e aceita. Vai saber se acontece isso na família do
Moacir, vai saber se indo lá ele vai remexer numa porção de lembranças, vivências desagradáveis e que vão fazer com que ele sofra
e assim em todos os casos. O José a mesma coisa, “eu já passei por lá e sofri muito e quero voltar, mas quero voltar por cima”. Esse
“por cima”, não sei se tem a ver com dinheiro ou se tem a ver com você se sentindo bem com você, feliz, tranqüilo, resolvido,
porque as vezes a gente tem dinheiro, mas continuam os ressentimentos, né? Dinheiro não tapa todas as feridas que a gente teve na
vida. Então eu acho o seguinte, o adianta pressionar, calma, forçar a barra não resolve nada, sim pode prejudicar a vida do
casal. Muito obrigada a todos vocês por terem vindo e pra quem ta em casa muitíssimo obrigado pela companhia e fique com Deus.
Tema: Minha mãe morre de ciúme da minha sogra (Casos de família)
Você conseguiu o que muita gente acha ser impossível, se dar bem com a sua sogra. Mas a sua mãe não está nada satisfeita com
isso. Ela disse que você dá mais atenção para a mãe do seu marido e que já não a solicita como antes. Você ri de toda essa situação e
quer mostrar para a sua mãe que sogra nenhuma pode substituir o amor que você sente por ela. Minha mãe morre de ciúme da minha
sogra é o nosso tema de hoje.
Parte 1:
Regina Volpato: Agora a gente vai conhecer a Neuza que está com 31 anos e diz eu organizei uma festa surpresa para a minha
sogra e a minha mãe ficou arrasada”. Neuza, por favor, entre!
Regina Volpato: Tudo bem, Neuza?
Neuza: Bom.
Regina Volpato: Por que você resolveu organizar uma festa pra sua sogra?
Neuza: Ah, porque ela tinha feito aniversário e meu marido falou “vamos fazer uma surpresa pra minha e?”. Eu disse
“vamos”. A gente pegou e fez a surpresa pra ela.
Regina Volpato: Sua mãe foi convidada?
Neuza: Ela foi convidada, mas só que a gente convida e ela não vai. Porque ela falou assim que por qualquer coisa eu fico na casa da
minha sogra. Se eu convido, qualquer festa que eu faço em casa, “vamos, mãe, na festa!”, ela fala assim “ah não, você já fez a festa,
convida a sua sogra”. Ela não vem!
Regina Volpato: Faz quanto tempo que você ta com esse rapaz?
Neuza: 16
Regina Volpato: 16 anos?
Neuza: 16 anos!
Regina Volpato: E sua mãe sempre teve ciúme da sua sogra?
Neuza: Foi duns oito anos pra cá.
Regina Volpato: Por que começou assim?
Neuza: Porque quando eu morava perto dela, a gente não se dava bem.
Regina Volpato: Perto de quem?
Neuza: da minha sogra. Ai depois ela ficou um pouquinho longe né, a gente começou a se dar bem, depois ela mudou perto e eu
acostumei ir na casa dela, sábado, domingo. Agora não, agora ela mora bem pertinho e eu vou todos os dias.
Regina Volpato: Então no começo vocês não se davam bem, aí se afastaram um pouco, começaram a se entender, quando ela foi
morar pertinho de você, vocês continuaram com esse bom relacionamento?
Neuza: É... Agora é assim: eu levanto cedo, tomo cafezinho, dou uma limpadinha na casa e subo pra casa dela. Quando eu não subo,
ela manda a neta dela me chamar.
Regina Volpato: Então você ta sempre com ela?
Neuza: Sempre com ela! A gente toma café, almoça...
Regina Volpato: A sua mãe mora de perto de vocês ou não?
Neuza: Mora!
Regina Volpato: E você costuma ir na casa da sua mãe também ou não?
Neuza: Eu vou...antes de eu subir pra casa da minha sogra, eu passo na casa dela. Aí ela até fala pra mim assim “na mesma hora que
você ta conversando, você me deixa falando sozinha”. Porque ta um monte de gente conversando, eu passo, converso e subo né. Aí
ela fala assim “a Neuza subiu, ela nem falou nada, me deixou falando sozinha”.
Regina Volpato: E as duas se dão bem, a sua mãe a sua sogra?
Neuza: As duas conversam, mas só que não se vêem em festa, uma na casa da outra não vão...
Regina Volpato: Uma não vai na casa da outra?
Neuza: Não vai na casa da outra!
Regina Volpato: sua sogra fala alguma coisa da sua mãe ou não fala nada?
Neuza: Não fala nada. Porque ela faz festa na casa dela e fala assim “convida a sua mãe”. Eu convido a minha mãe e minha mãe fala
assim “eu não vou”. Aí minha mãe faz festa “convida ela”, ela não vai. Então ninguém...Ai quando a minha mãe fala assim “Neuza,
vamos almoçar na minha casa”. É porque sábado eu vou no supermercado com ela fazer compra, ela fala “Neuza, vem almoçar
em casa”. Então ela já me convida no sábado e a minha mãe sempre me convida no domingo. Então quando ela vai me chamar já
tenho que ir pra casa dela...
Regina Volpato: E dia das mãe, natal, aniversário, como é que funciona?
Neuza: Eu passo na casa dela (mãe), subo, passo na casa dela e só falo “oi” e subo pra casa da minha sogra.
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Regina Volpato: Então você fica na casa da sua sogra?
Neuza: Eu fico na casa da sogra!
Regina Volpato: Pra sua mãe você só dá um “oi”? Mesmo no dia das mães e tudo?
Neuza: É!
Regina Volpato: E aí? O que é que ela fala?
Neuza: Ela fala né...Ela até chora. Ela fala que eu tenho que ir mais na casa dela, que ela é minha mãe. Eu falo “não é assim”, não
tem que ter ciúmes porque, logicamente, ela é minha mãe, eu gosto muito mais dela do que da minha sogra né.
Regina Volpato: Você tem filhos?
Neuza: Tenho!
Regina Volpato: Quantos?
Neuza: Tenho cinco.
Regina Volpato: Tem alguma menina?
Neuza: Tenho
Regina Volpato: Já imaginou a sua menina passando mais tempo na casa da sua sogra do que na sua?
Neuza: Não..
Regina Volpato: Não?
Neuza: Não..
Regina Volpato: E se acontecer? Sua menina tem que idade?
Neuza: Tem 16.
Regina Volpato: Quando você se casou, você tinha que idade?
Neuza: 15.
Regina Volpato: Mas sua filha ainda ta solteira e você com idade dela já tava casada? Imagina a sua filha casando e passando mais
tempo na casa da sogra do que na sua...
Neuza: Ah..não vou por na minha cabeça isso não...
Parte 2
Regina Volpato: Então vamos conhecer a mãe dela. É a Ruth que está com 48 anos e diz “eu fico muito triste com essa situação
porque a Orlanda é sogra e eu sou a mãe da Neuza”. Ruth, por favor, entre!
Regina Volpato: Tudo bem, Ruth?
Ruth: Tudo bem!
Regina Volpato: Você é uma mulher ciumenta, assim no geral?
Ruth: Muito!
Regina Volpato: Tem ciúme de tudo?
Ruth: Tenho ciúme dela e de todos os filhos, só que mais dela.
Regina Volpato: E das outras coisas? Você também tem ciúme?
Ruth: Dos meus filhos tenho de todos..
Regina Volpato: E de outra coisa? Marido?
Ruth: Tenho também.
Regina Volpato: Das suas coisas você tem ciúme?
Ruth: Tenho.
Regina Volpato: Tem algum animal de estimação?
Ruth: Tenho.
Regina Volpato: Tem ciúme?
Ruth: Tenho.
Regina Volpato: Então você é ciumenta?
Ruth: Sou muito ciumenta!
Regina Volpato: E mais ainda com a Neuza?
Ruth: Mais com a Neuza porque fica mais na casa da sogra do que em casa. Faz festinha de aniversário pra sogra, pra mim nunca
fez.
Regina Volpato: Nunca fez?
Ruth: Não!
Regina Volpato: Mas ela disse que a idéia de fazer festinha de aniversário foi do marido dela, não foi dela...
Ruth: Mas ela tem que conversar com o marido pra fazer uma pra mim também né, pra me fazer um carinho, pra mim ficar mais
feliz, mais contente.
Regina Volpato: Você foi convida pra essa festa?
Ruth: Fui.
Regina Volpato: Foi na festa ou não foi?
Ruth: Não.
Regina Volpato: E por quê?
Ruth: Ah...eu fiquei triste porque ela não tinha feito pra mim e fez pra sogra.
Regina Volpato: E você pensa em fazer uma festa pra sua mãe, Neuza. Uma festa surpresa assim...no próximo ano e surpresa!
Neuza: Eu penso em fazer festa pra ela, mas só que as vezes a gente faz festa em casa e eu convido ela e ela não vai. Eu falo assim
“vamos, mãe, em casa...”
Regina Volpato: Nem na sua casa?
Neuza: Ela não vai porque ela fala assim pra mim “você convidou a sua sogra né”. Ela não vai.
Regina Volpato: Por que nem na casa da sua filha você vai?
Ruth: Ah... é muito difícil. Quando ela chamou eu pra ir na festa na casa dela eu não vou porque primeiro ela chama a sogra pra
depois chamar eu. Ela deixa eu em segundo lugar...
Regina Volpato: Mas como você sabe?
Ruth: Porque ela fala, “já chamei minha sogra pra vir, a senhora não vai vir?”. Daí deixa eu em segundo lugar...Daí eu fico triste, até
choro.
Regina Volpato: Aí eles ficam em festa, você da sua casa ouvindo tudo, sem participar?
Ruth: O marido dela vai mais na minha casa do que ela que é filha.
Regina Volpato: O marido dela freqüenta a sua casa?
Ruth: Freqüenta.
Regina Volpato: O marido dela freqüenta mais a sua casa ou a casa da mãe dele?
Ruth: A minha casa.
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Regina Volpato: Ah é?! Trocou?
Neuza: Ele vai mais na casa dela do que na casa da mãe dele. Tem vez que na casa dae dele, ele fica dois, três meses sem ir lá.
Ela não vê a cara dele. Ela pergunta pra mim “por que ele não vem aqui?”, “ah, ele ta na casa da minha mãe”.
Ruth: Ele vai em casa, me abraça, me beija, me chama de minha veia, minha veinha...
Regina Volpato: Aí você se sente vingada?
Ruth: É! Porque o que ela não faz... O marido dela faz carinho, eu fico contente, porque ela não liga pra mim, ele liga.
Regina Volpato: Então o casal se separou? Cada um na mãe do outro. Quando vocês ficam juntos? A família toda reunida, marido,
mulher e as mães e sogras? Nunca?
Ruth: Ela passa na minha casa, ela vai de vez em quando, mas é muito raro. Festa ela não vai. Fim de ano a gente chama pra passar
o natal, o ano novo com a gente, ela fala “eu vou”, daí ela não sobe, daí eu mando procurar ela, ou ela ta dormindo ou ta na casa da
sogra.
Regina Volpato: E o seu genro?
Ruth: Meu genro vai. Ele me chama pra dançar forró. Eu danço forró com ele a noite inteira. Nós dança forró. Chama ela, ela não
vai. Tem vergonha.
Regina Volpato: E nas festas, dia das mães, natal, ano novo, ele ta na sua casa e você ta na casa da mãe dele?... Que coisa! E a mãe
dele reclama?
Neuza: Não... É que eu fico mais na casa dela é porque ela tem problema nas pernas né, então ela tem uma neta que mora com
ela. A Neta dela fica pra casa dos vizinhos, das colegas, então não tem quem ajuda ela. eu fico na casa dela, toma café, almoça,
ajuda a limpar a casa, lavar a louça pra ela...
Regina Volpato: E na sua casa ela lava louça, Ruth?
Ruth: A Neuza não. Eu fico triste porque eu fiquei viúva com 30 anos, fiquei com seis crianças pra mim cuidar sozinha. Então o que
mais me deu trabalho foi ela, doente sabe, deu muito trabalho, então eu quero que fica bem pertinho de mim.
Regina Volpato: Se ela não estivesse na sogra, se ela estivesse em outro lugar, você acha que você ia sentir menos ciúme?
Ruth: Eu acho que sim...
Regina Volpato: O problema é que é...
Ruth: muito grudado com a sogra!
Regina Volpato: Outra mulher... Mas você acha que ela deixou de gostar de você, Ruth?
Ruth: Não. Porque ela fala que em ama muito. Mas mesmo assim eu tenho ciúme.
Regina Volpato: Entendi.
Parte 3
Especialista: A dona Neuza ta desafiada a perceber o que, dona Neuza? Que quando a gente ta numa relação com a mãe as
mágoas existem, os ressentimentos existem, aquelas lembranças de quando eu fui corrigida na adolescência, na minha infância,
muitas vezes quem teve uma infância muito dura no sentido de educação, de correção dos pais. E quando a gente conhece a sogra,
como você dizia, “a gente nem se dava tão bem, mas passamos a nos dar bem quando houve um afastamento”. Quando a gente se
afasta costuma a se enxergar, quando a gente ta muito perto a gente o vê. Por isso que beijar é bom, a gente ta pertinho a gente
não se enxerga. Mas quando a gente se afasta a gente o outro e quando vocês se afastaram vocês se viram e conseguiram
perceber coisas boas uma na outra e hoje se ajudam. Eu acho que essa ajuda tem que continuar. E a senhora, dona Ruth, quando
quiser ter uma festa, quando quiser comemorar seu aniversário proponha isso pra todo mundo. Dá pra fazer isso junto. Agora não dá
pra ficar cobrando. Amor não se cobra. Eu acho tão esquisito cobrar amor de quem quer que seja, de filho, de marido, de namorado,
de amigo, amor não se cobra, amor a gente doa se tiver e recebe quando doa. Eu acho que esse é o grande exercício, a grande
descoberta pra vocês, ta bom?
Regina Volpato: Qualquer tipo de ciúme que aprisiona, que cobra, que traz culpa eu acho que não é legal, seja entre mãe e filha,
entre marido e mulher, entre amigos porque quando a pessoa ta com a gente, a gente nunca sabe se está por livre e espontânea
vontade ou se ta ali por pressão, se ta ali obrigada. Então esse tempo que a pessoa fica com a gente, a gente nem consegue curtir
porque acha...tudo a gente interpreta do jeito que a gente quer, então a gente vai achar que ta louca pra ir embora, que ta ali por
obrigação, que ta ali mas ta pensando na sogra, que só foi ali porque a sogra não podia. Então a gente fica o tempo todo
desqualificando a companhia da pessoa porque a gente não entende que ela está ali porque ela quer, pela nossa companhia, ta ali
porque deu vontade. Então quando a gente pára de cobrar o que vem é sempre bem-vindo, é espontâneo. Econforme vai ficando
espontâneo, vai ficando mais gostoso, vai ficando mais gostoso e a gente vai ficando mais tempo juntas. Quanto mais a gente cobra,
mais a gente afasta. E mãe é isso mesmo quando a gente quer fazer um drama, a gente faz um drama mesmo, a gente repete sempre
as mesmas coisas. Outro dia aqui no programa eu falei, eu me vejo repetindo as coisas que a minha mãe dizia pra mim e que eu
falava “nossa que drama”, quando eu vejo eu to falando igual. Vocês são mães, vocês também vão repetir isso, é involuntário,
quando a gente vê, a gente ta fazendo aquele dramalhão. Como vocês se perceberem nessa situação, pára! Pára porque esse tipo de
drama enche o filho de culpa, não faz bem nem pra mãe, nem pro filho. Muitíssimo obrigada por terem vindo, eu espero que vocês
se entendam... E mais do que tudo isso. Todo mundo se gosta, todo mundo vive bem, todo mundo tem saúde, pra que ficar
separando quando dá pra juntar? Pra que ficar excluindo se dá pra incluir? É muito mais legal quando fica todo mundo junto, numa
boa. Espero que vocês consigam curtir, todo mundo junto, numa boa, ta bom? Pra quem ta em casa, obrigada pela companhia e
fique com Deus.
Tema: Você não aceita a minha condição sexual (Casos de família)
Você criou o seu irmão como filho, mas quando assumiu a sua homossexualidade, ele assim como toda a família não aceitou te
rejeitou. Ele diz que sente vergonha de você e acredita que Deus criou a mulher para se casar com homem. Você gostaria que ele te
entendesse e ajudasse a se reaproximar da sua família. Você não aceita a minha condição sexual é o nosso tema de hoje.
Parte 1:
Regina Volpato: E agora a gente vai conhecer o Alan que está com 19 anos e diz “eu assumi a minha condição sexual e agora pago o
preço de ser rejeitado pela família toda”. Alan, por favor, entre.
Regina: Tudo bem? É “Alan” ou “Alan”?
Alan: “Alan”
Regina: “Alan” do jeito que eu falei! Com que idade você assumiu a sua condição sexual, Alan?
Alan: Eu me assumi quando eu tinha 16 anos de idade.
Regina: E como você fez isso?
Alan: Então.. Aos sete anos a minha mãe faleceu, eu tinha uma tia que cuidava muito de mim. Meu pai trabalhava muito.
[cuidava] de mim e de um irmão meu. Aí tudo bem. E desde pequeno assim eu sempre tive uma atração por homens, essas coisas...
Regina: Desde pequeno você se percebe desse jeito?
Alan: Mas eu mesmo não me aceitei, sabe? Tipo..eu mesmo não aceitava a minha opção. O povo na rua zoando, o povo rindo...
Regina: Ninguém quer passar por isso né?
169
Alan: É muito complicado...
Regina: Ser apontado, ser motivo de chacota, ninguém quer isso...
Alan: Ninguém, ninguém gosta de passar por uma situação desagradável nas ruas, no mercado, dentro dos shoppings etc. Aí, ao
decorrer do tempo, eu conheci uma menina quando eu tinha 16 anos pra 17. Era amiga da família, tudo isso... E rolou um
envolvimento entre eu e ela.
Regina: Mas você se interessou mesmo por ela ou você tentou gostar?
Alan: Eu tentei gostar. Eu pensei assim: “eu quero provar pra ver se é disso mesmo que eu gosto”. Porque eu não vou falar é “eu não
como, eu não gosto de jiló sendo que eu nunca provei”. eu provei, vi tudo isso, aquilo. Acabou não rolando, eu vi que minha
opção era ser gay, ser homossexual. com isso tudo eu acabei conhecendo amigos, vizinho, que eu tenho vizinho que são gays
também..
Regina: Sempre longe da família, escondido da família?
Alan: Escondido. eu conheci. com o decorrer do tempo eu acabei saindo pra algumas baladas, conhecendo o mundo GLS. E
teve certo tempo que eu fui para a parada gay.
Regina: Aqui em São Paulo?
Alan: Aqui em São Paulo. Aí chegando na parada tudo bem, meus amigos foram em casa me chamar. Fui. Na hora em que eu voltei
em casa, no meu quintal tinha muita roupa minha queimada, minhas roupas sendo queimadas pelo meu pai e minha tia aplaudindo,
pondo lenha na fogueira, pondo mais fogo.
Regina: E por que é que eles fizeram isso?
Alan: Porque não aceitaram a minha opinião sexual.
Regina: Você disse que ia pra parada gay?
Alan: Não, eles ficaram sabendo pelos vizinhos da rua.
Regina: Aí antes de conversarem com você, eles fizeram a fogueira e queimaram tudo que é seu.
Alan: Queimaram. tudo bem. Queimaram... Quando cheguei em casa, meu pai perguntou “você é gay?”. Assim logo de cara.
“Onde você tava?” Eu falei: “eu tava na parada”. “Você é gay?”. “Se eu for gay, vai mudar alguma coisa pra você, eu vou ser outra
pessoa?”. ele pegou e se fechou, o respondeu nem que sim, nem que não. minha tia começou a falar um monte pra mim.
Falando que isso é um pecado, uma aberração e que ela não vai me aceitar nunca desse jeito. Aí eu peguei e falei. “não, não é assim.
Não é porque eu sou gay que você tem que me discriminar, você tem que me julgar. Eu continuo sendo a mesma pessoa de sempre,
só mudou a minha opção sexual”. E ela até hoje não se conforma com isso.
Regina: Você mora com ela ainda?
Alan: Não. Eu moro com meus pais, mas eu moro no quintal que tem quatro famílias.
Regina: O seu pai também não aceita?
Alan: O meu pai também não aceita.
Regina: Ele conversa com você?
Alan: Conversa. Hoje em dia ele ta um pouco mais conformado, mas mesmo assim ele não gosta dessa idéia, o entra na cabeça
dele.
Regina: E quem na sua família te aceita?
Alan: tenho... As minhas tias, uma que mora no quintal e os meus primos né, que eu convivi com eles desde pequeno,
estudamos na mesma escola, essas coisas...
Regina: E quem é a Maria Cristina, que veio aqui com você?
Alan: A Maria Cristina é a minha tia, que me criou desde os sete anos de idade.
Regina: É essa que queimou ou não?
Alan: Foi.
Regina: Essa que queimou as suas coisas?
Alan: E eu queria que ela mudasse a cabeça dela. Eu queria que ela visse que ser gay é ser gente também, não é ser uma repugnação,
sabe?
Parte 2
Regina Volpato: Então vamos conhecer a Maria que está com 40 anos e diz: “o meu maior desejo é ver o Alan feliz, mas, se for ao
lado de outro rapaz, eu sou contra”. Maria, por favor, entre.
Regina: Tudo bem, Maria?
Maria: Tudo.
Regina: Você queimou todas as coisas dele?
Maria: Queimei.
Regina: Queimou tudo?
Maria: Eu e o meu irmão.
Regina: Roupa?
Maria: Roupa, maquiagem, tudo.
Regina: Sapato? Tudo?
Maria: Tudo.
Regina: Por quê?
Maria: Porque eu não aceito ele ser gay.
Regina: E não seria melhor conversar com ele antes de queimar as coisas dele?
Maria: Ah..é porque quando a mãe dele morreu eu criei ele né que o meu irmão trabalhava, tudo. Aí quando ele começou assim com
16 anos se envolvendo...
Regina: Você já percebeu?
Maria: Eu percebi alguma coisa, mas...
Regina: Foi aí que você percebeu ou quando ele era pequenininho você já percebia um comportamento diferente?
Maria: Quando ele foi crescendo. eu falei “ai meu Deus, será que o meu sobrinho vai ter o jeito né, o jeito dele falar tudo.
quando foi passando, aí foi passando assim...aí ele foi se envolvendo, aí ele começou a falar diferente. Aí eu falei assim “o que será
que ta acontecendo com o Alan?”
Regina: Perguntou pra ele alguma vez?
Maria: Eu perguntei, mas ele... Ele falou “aí tia, no tempo a senhora vai saber”. Aí eu falei assim “eu vou saber o quê? Fala logo o
que é que ta acontecendo com você!”. Aí meus vizinhos né perguntou pra mim “o que é que ta acontecendo com o Alan que o Alan
ficou assim o jeito dele?”. eu falei “eu não sei, ele não me conta”. ele conheceu uma moça, ele começou a namorar com a
moça. A moça era da nossa família, colega, tudo né. ele largou da moça. Daí ele chegou em mim e falou tia, eu não gosto de
mulher”.
Regina: Então ele foi bem claro?
170
Maria: “Eu vou ter que falar a verdade pra senhora, eu gosto de homem”. eu fiquei revoltada com ele, fiquei triste. eu falei
“então você não fala mais comigo, não olha mais pra mim, que eu criei você como homem, como menino, desde que você nasceu”.
Regina: Mas Maria, você disse que o seu maior desejo é ver o Alan feliz.
Maria: ...Ver o Alan Feliz. Mas ele tem que voltar que nem era antes.
Regina: Mas ele não quer. Se ele for assim ele não vai ser feliz.
Maria: Eu... desejo ele assim...
Regina: Mas você não quer vê-lo feliz?
Maria: Eu quero, mas como homem.
Regina: Mas ele não quer ser feliz assim. Como é que faz então? Ou ele abre mão de ser feliz ou ele vai ser feliz e se distancia de
você?
Maria: É!
Regina: É? E aí quando você queimou todas as coisas dele, porque vocês fizeram isso?
Maria: Porque a gente não aceita.
Regina: E aí como é que você fez pra ter todas as suas coisas de volta Alan?
Alan: Com o tempo eu arrumei um serviço de auxiliar de cabeleireiro e fui comprando tudo de novo...
Regina: Tinha maquiagem, tinha tudo?
Alan: Tinha, porque o meu rosto é muito oleoso então eu uso um pó...E na época tinha a época dos Clubs, então eu tinha muita
coisa, pulseira, corrente, roupa colorida. Ela falava que era coisa de gay, na palavra feia, tipo viado, essas coisas...E queimou tudo e
ela lá aplaudindo. E ela fala que ser gay “pra mim é ser doente”, que eu tenho que se tratar, passar por psiquiatra, essas coisas, e eu
não concordo com isso, porque ser gay é ser humano, não é ser doente.
Maria: O meu irmão quando descobriu que ele virou gay né, ele ficou doente, ficou com começo de depressão, não queria ir
trabalhar mais. Eu falei “não, pode voltar a trabalhar que o Alan vai voltar a ser normal”.
Regina: Por que você acha que ele não é normal?
Maria: Não!
Regina: Não é normal?
Regina: Ta. Você conhece alguém assim como o Alan, só o Alan?
Maria: O Alan e os colegas dele.
Regina: E você acha que todos não são normais.
Maria: Não!
Parte 3
Especialista: É muito triste né, Regina. Eu acho muito triste ver o preconceito assim na forma mais cristalina. Eu acho também que a
gente não tem que usar de hipocrisia, porque o preconceito existe. Existe e eu acho que todo mundo sente em maior ou menor grau,
a própria pessoa que se descobre homossexual ela tem preconceito. Eu acho que quando uma pessoa descobre que ela tem uma
orientação afetivo/sexual diferente do que é socialmente aceito é um sofrimento... Gente vocês não têm noção! Sabe, muitos tentam
suicídio, muitos não conseguem se aceitar... E aí, a família, que teoricamente teria que dar todo o suporte, todo o apoio, é quem mais
vai contra. Dá o contra, não aceita, a vida fica um inferno. Eu acho que vocês têm que tomar um pouquinho mais de cuidado com as
coisas que vocês falam porque é muito doloroso ouvir. Porque tanta agressividade? Então eu ouvi palavras assim aqui “eu não
aceito”, “eu não admito”, “eu não quero”, sabe isso é de uma petulância incrível. Sabe, porque quem sou eu pra querer que o outro
seja do jeito que eu acho certo, como é que a gente vai conviver harmoniosamente com qualquer ser humano se a gente quer impor
ao outro como ele tem que se comportar, o que ele tem que sentir, quem ele tem que amar. Eu acho que tem que haver uma reflexão:
até que ponto a gente pode ir. Ninguém é obrigado a aceitar que o familiar seja homossexual, mas é obrigatório sim que se respeite
essa pessoa. Então é isso que vocês têm que se policiar. Não pra abrir a cabeça ou o coração e falar “não, você vai aceitar e
achar legal”. Acho que isso é um problema de cada um. Eu acho que quem se assume como homossexual sabe das conseqüências,
mas é tão forte que não dá pra lutar contra aquilo. Então ele tem que ser respeitado, isso tem q acontecer. Porque isso acontece com
o negro, com o albino, com o anão, com o pobre, com o obeso, com as mulheres. Então é uma disparidade, é uma coisa o louca.
Você pode matar mas você não pode amar um outro homem. Eu acho que a gente tem que fazer um balanço da vida: até que ponto a
gente pode ir. Ta tudo muito invasivo, eu to vendo muita invasão na vida do outro. Muita violência. Por que isso? Qual é a
vergonha? O que ta tão mal-resolvido dentro de vocês que vocês têm que agir com tanta agressividade assim? Eu acho que vale a
pena fazer uma reflexão.
Regina Volpato: E sabe do que mais? A gente ouviu, a gente discutiu sobre a aparência, sobre o que os outros vão pensar, sobre o
que eu aceito, o que eu não aceito, o que eu acho, o que não acho, mas em nenhum momento, a gente falou de caráter, de
qualidades, de coisas positivas, de colaboração, a gente não falou sobre isso. A gente ficou o tempo todo na aparência, sobre o que
os outros vão falar, ninguém falou qual é o caráter de um ou de outro, porque no fundo, no fundo, a gente vale pelo caráter que a
gente tem. A gente falou de educação de filhos, “eu to educando pra ser homem, pra ser mulher”, mas mais importante do que isso,
é a gente educar e formar o caráter da pessoa. O que ela vai fazer do corpo dela é uma coisa que a gente pode não entender, não
aceitar, mas deve respeitar. O bom caráter, o sujeito que trabalha, que honra as suas responsabilidades, o sujeito que trata todo
mundo com decência, isso sim é o que faz uma pessoa ter valor ou não ter valor. Aqui eu olho e vejo seis pessoas de caráter, umas
muito mais agressivas do que a outra, mas eu vejo todas com caráter. Então no fundo, no fundo, eu acho que vocês são muito iguais,
em muitas coisas, vocês se admiram em muitas coisas, mas não conseguem ver nada disso porque antes de chegar na essência vocês
ficam presos na aparência, na agressividade, no aceito ou o aceito, ele tem que aceitar. Porque eu acho que quando a gente fala
“ele tem que aceitar, ela tem que aceitar”, é tão agressivo, é tão duro, é tão preconceituoso quanto o outro que fala “eu não aceito”.
Será que tem que aceitar? Se a gente acha que alguém tem que aceitar a gente também ta sendo preconceituoso porque a gente quer
colocar o nosso ponto de vista acima do outro. Se aceita ou se não aceita é uma questão de cada um, agora se se respeita você até
consegue ir numa festa familiar, você consegue todo mundo junto se tratar com elegância, com decência, com respeito. É isso que a
gente precisa conseguir na vida. Agora o que cada um faz da sua vida, a gente muitas vezes não entende. Aliás, às vezes, a gente não
entende o que a gente faz com a gente mesmo, com a nossa própria vida, que dirá conseguir entender o outro. Muito obrigada por
terem vindo, obrigada mesmo porque apesar de todas as diferenças, todo mundo sentou junto, todo mundo conversou e aqui eu vi
todo mundo se respeitando. Parabéns, obrigada. Para quem ta em casa, obrigada pela companhia e fica com Deus.
Tema: Só você não percebe o quanto é esquisito (Casos de família)
Existem pessoas que têm hábitos ou manias diferentes, às vezes, difíceis de compreender e por isso acabam se tornando esquisitas
aos olhos da maioria. Essas pessoas acham que são normais e não vêem nada de diferente no comportamento que têm. Mas para
muita gente não é assim muito normal lamber roupas, gritar no banheiro ou se vestir com roupas diferentes. Só você não percebe o
quanto é esquisito é o nosso tema de hoje.
171
Regina Volpato: Nossa primeira convidada de hoje é a Priscila que está com 24 anos e diz “a minha mãe tem o hábito de lamber as
roupas pra ver se elas estão salgadas e assim saber se precisam ser lavadas”.
Regina: Tudo bem, Priscila?
Priscila: Tudo bem.
Regina: O que a sua mãe faz exatamente pra ver se a roupa precisa ir pro tanque ou não?
Priscila: Assim, se alguém chega em casa, visita, pra dormir, aí ela “vai tomar um banho”. Aí a pessoa vai tomar um banho, tudo. Aí
nesse intervalo, ela aproveita pra pegar a roupa da pessoa e põe a língua e “não, ta suja, ta suja”, mesmo a pessoa não querendo.
“Não, ta suja, ta suja” e põe pra lavar.
Regina: E se a pessoa não quer tomar banho?
Priscila: Tem que tomar! Ela fala “não, você não vai dormir sem tomar banho”.
Regina: E tem que deixar a roupa ali...pra ela pegar. E se a pessoa entra e trocar de roupa no banheiro e ela o tiver oportunidade
de pegar a roupa?
Priscila: Não. Ela vai no guarda-roupa dela, dá uma roupa pra pessoa trocar e a roupa da pessoa tem que ficar lá. Aí ela vai, coloca a
língua, fala “não, ta podre, eu vou colocar pra lavar”.
Regina: E lava?
Priscila: Lava, na mesma hora!
Regina: Quando a pessoa sai do banheiro, a roupa ta no tanque já.
Priscila: Ta. Mesmo a pessoa não querendo.
Regina: E no guarda-roupa, o que é que ela faz?
Priscila: Ela coloca a língua em todas as roupas.
Regina: Mas como assim, Priscila? A sua roupa ta lá, limpinha, na gaveta e tal. Ela abre..
Priscila: Isso, porque às vezes você coloca uma roupa e não gostou né, tira, dobra e guarda. Aí ela já vai olhando pra ver o que você
ta fazendo, ela fica em cima de você pra ver o que você ta fazendo. Aí pra ela já ta suja, já põe pra lavar.
Regina: E o jeito dela descobrir se precisa lavar ou não, pra ver se ta suja ou se ta limpa, é colocando a língua?
Priscila: Colocando a língua pra ver se ta salgada.
Regina: E sempre ta salgada?
Priscila: Pra ela sempre ta salgada, nunca a pessoa... não pode parar de suar, a pessoa sempre ta suando pra ela.
Regina: Ah ta. O salgado por causa do suor. Desde quando você vê a sua mãe fazer isso, Priscila?
Priscila: Assim, quando eu era pequena eu não cheguei a perceber tanto né. Mas quando eu fiz os meus treze, quatorze anos assim,
eu fui começar a perceber. Era esquisita, pra mim era esquisita, como é que eu vou por a minha língua nas roupas dos outros, nem
nas minhas eu coloco, quanto mais nas dos outros?
Regina: Mas no começo ela fazia isso escondido ou sempre foi o jeito dela?
Priscila: Não! Sempre foi. Toda a vida. que eu nunca tinha percebido né, porque eu era muito pequena. Depois que eu fui
crescendo, eu fui percebendo.
Regina: Então ela gosta de limpeza?
Priscila: Assim, não excessivamente a limpeza, com a casa não, sou eu que faço.
Regina: Você que cuida da limpeza da casa?
Priscila: Isso.
Regina: Ela reclama ou não?
Priscila: Não porque eu sempre limpo bem limpo, mas assim é questão de roupas. Ela não lava, eu gosto de ajuntar pra poder lavar,
ela não, ela tira, coloca a língua, “não, ta suja, eu vou por pra lavar”. Não gosta de boné, ninguém pode entrar em casa de boné que
ela fala que é maloqueiro. Se eu coloco boné nos meus filhos quando ta muito sol, ela fala que não, que eu to ensinando os meus
filhos a ser uma pessoa maloqueira e fala um monte de coisas. Meia também?
Regina: Ela lambe meia?!
Priscila: Não, não chega a lamber, mas assim, se uma pessoa, principalmente os meus sobrinhos, chega em casa, ela “tira o sapato,
tira o sapato, põe chinelo”. Aí ela já aproveita, põe pra lavar.
Regina: Mas qual o problema dela com meia?
Priscila: Ela tem que...não sei o que acontece, tem que lavar!
Regina: Ta. Então não é que ela gosta de ver tudo limpinho. O negócio dela é com roupa. Ela trabalha?
Priscila: Isso. Ela é diarista.
Regina: E você trabalhar também?
Priscila: Como diarista também.
Regina: Vocês vivem fazendo limpeza né, ou na casa de vocês ou na casa dos outros. E na casa da patroa dela, ela também tem esse
jeito de descobrir se a roupa ta limpa ou ta suja?
Priscila: Eu acredito que sim. Eu nunca cheguei nela e perguntei, mas eu acredito que sim, ela faz isso.
Parte 2
Regina: Vamos conhecer a mãe dela. É a Mirian que está com 65 anos e diz “eu não consigo dormir enquanto souber que tem uma
roupa suja esperando para ser lavada”. Mirian, por favor, entre.
Regina: Tudo bem com a senhora?
Mirian: Tudo.
Regina: Ficou meio receosa, em dúvida, se ia entrar não?
Mirian: Não, não é que eu to acostumada a assistir a esse programa...
Regina: É mesmo?!
Mirian: Adoro este programa!
Regina: Jura? Que parte a senhora mais gosta?
Mirian: De tudo!
Regina: Gosta de tudo? A senhora trabalha fora de casa de dentro de casa também?
Mirian: Trabalho. Trabalho de diarista.
Regina: Há quanto tempo dona Mirian?
Mirian: Há muitos anos.
Regina: Desde sempre! Não pensa em parar, se aposentar?
Mirian: Ai eu preciso arrumar né filha, eu nunca trabalhei fichada.
Regina: Nunca trabalhou? Então se a senhora se aposentar não vai ter rendimento nenhum, não vai ter dinheiro nenhum...
Mirian: Não. Eu quero trabalhar sempre, não quero ficar dependendo de filho não.
Regina: Quer trabalhar enquanto der!
Mirian: Até o dia em que Deus me levar, me tirar as pernas pra eu ir à luta.
172
Regina: Do serviço de casa, o que mais a senhora gosta de fazer?
Mirian: É ver a roupa limpa.
Regina: Ver a roupa limpa. E por que é que às vezes a senhora não consegue dormir se souber que tem uma roupa esperando pra ser
lavada?
Mirian: É mania né, eu não gosto de ver a roupa suja não. Eu odeio.
Regina: Mas não é bom quando acumula a roupa?
Mirian: Não, não, não. Pra mim é serviço de gente preguiçosa que gosta de ver roupa amontoada, jogada, suja, eu não gosto!
Regina: Lava roupa todo dia?
Mirian: Todo dia eu lavo e brigo com ela também pra ela lavar a roupa todo dia.
Regina: Lava e passa todo dia?
Mirian: Passar eu não sou muito não. É ela. Ela passa!
Regina: Mas lavar é com a senhora? E se a Priscila quiser lavar a roupa e não deixar a senhora lavar?
Priscila: Ela não deixa.
Mirian: Eu não gosto não. Eu gosto de lavar, porque eu gosto de lavar tudo na mão.
Regina: Calça jeans?
Mirian: Tudo na mão. Esfregar tudo na mão.
Regina: Tudo na mão?
Mirian: Tudo!
Regina: E como a senhora descobre se a roupa ta limpa ou ta suja?
Mirian: Ah...porque eu tenho o hábito de pegar e passar a língua [fazendo o gesto]. Pra ver se ta salgada! Vejo, olho no colarinho
pra ver se ta salgada. As blusas também no colarinho. Tudo! Se tiver suja eu conheço, já tiro tudinho e ponho pra lavar.
Regina: E, por exemplo, se a Priscila prova uma roupa e resolve que não quer ir com aquela blusa porque ta muito frio ou ta
muito calor ou não ta com vontade. Aí ela pega aquela blusa que ela acabou de tirar da gaveta, dobra e põe na gaveta de novo. Essa
blusa ta limpa ou ta suja?
Mirian: Se ela já provou tem que por pra lavar tudo!
Regina: Mas ela só provou?!
Mirian: Não, mas se eu vejo se ta suja assim, eu ponho logo pra lavar.
Regina: E quando chega roupa nova em casa? Tem que lavar?
Mirian: Eu sei lá se andou por aí.
Regina: E por que é que não pode acumular duas ou três camisetas, tem que lavar no dia, dona Mirian?
Mirian: Ah, eu gosto de ver tudo limpinho...
Regina: O que acontece na cabeça da senhora, a senhora deita e não consegue dormir se tiver roupa suja?
Mirian: Não, eu não consigo não. Eu fico olhando, olhando, tiro tudo e ponho tudo pra lavar e enquanto eu não ponho tudo no
varal e lavo tudo eu não sossego.
Regina: E quando chega alguém na casa da senhora?
Mirian: Pior ainda!
Regina: Como que é quando chega alguém na casa da senhora?
Mirian: Quando chegar alguém, meus parentes que chega né, mando logo tomar banho, mando logo tirar aquela roupa e ponho
pra lavar.
Regina: E se a pessoa não quiser tomar banho?
Mirian: Ah! Eu digo “vai tomar banho que aqui não entra não!”.
Regina: E se não quiser que a senhora lave a roupa?
Mirian: Ninguém manda em mim. Eu vou, tiro e lavo. Só entra meus parentes, meus neto...
Regina: E a pessoa vai usar que roupa?
Mirian: As de casa né, que é tudo família né.
Regina: Mas e se não servir dona Mirian?
Mirian: Não tem problema. Espera e vai colocar.
Regina: Dá um jeito e põe aquela? E boné por que...
Mirian: Odeio! Boné, orelha furada, brinquinho... Odeio esse negócio! Na rua eu chamo atenção.
Regina: Quando a senhora vê um garoto passando de boné...?
Mirian: Eu digo “ai, você não tem outro estilo pra por não? Tira esse boné da cabeça!”. Eu xingo, eu fico brava, na minha casa
ninguém entra com boné não.
Regina: Mas às vezes por causa do sol não precisa?
Mirian: Pior ainda. O sol Deus deu pra bronzear tudo por igual.
Priscila: Licença, Regina.
Regina: Diga, Priscila.
Priscila: Eu falo pra ela. Eu acho assim, “o tempo mudou, cada um se veste da maneira que gosta, cada um é da maneira que gosta”.
Na época dela, não existia brinco, esse estilo de roupa folgada, mas hoje em dia já existe. Ela quer mudar a maneira das pessoas, eu
acho que não é assim.
Regina: Até de quem ela não conhece, reclama também?
Mirian: Reclamo.
Regina: Mas a senhora acha pior homem de boné ou menina de boné?
Mirian: Qualquer pessoa de boné eu não gosto! Eu odeio!
Regina: Pôs boné pra senhora já e meio esquisito?
Mirian: Meio esquisito! Ai, eu odeio, eu não gosto!
Regina: E brinco?
Mirian: Pior ainda!
Regina: Mas mulher pode?
Mirian: Ah, mulher pode né. É lógico!
Platéia: O que eu vejo nela é uma compulsividade de algo que ela tem que dentro dela e gostaria de se livrar. É como se ela tivesse
expor pra fora algo que ela tem dentro e não consegue expressar. E tem forma sim de você fazer tratamento, existe hoje psicólogo,
terapeuta, pra você se aliviar porque no fundo, no fundo, acaba sendo um tormento pra você querer se livrar de algo e se esforçar
tanto numa coisa que acaba também dando um desgaste físico e mental ao qual a pessoa o sabe o porquê daquilo. E existe
profissional nessa área pra tentar te entender e mostrar realmente qual é essa compulsividade que você poderia se livrar e lutar nessa
compulsividade tão grande de querer fazer aquilo que ta te incomodando.
Mirian: Ah! Mas eu adoro. Eu adoro...
173
Regina: Priscila! O que você achou do que a moça falou?
Priscila: Ah! Eu achei certo mesmo, porque não é normal, é muito esquisito ela ser da maneira que ela é.
Mirian: Eu não sou esquisita. Se todo mundo fosse igual a mim, não existia sujeira nas casas, roupa imunda que hoje cada casa que
você entra é balde de roupa no canto, é máquina lotada, não sabe se... Varal você não roupa, uns trapos pendurados. Roupa
encardida é...conhecida quando a pessoa lava bem lavada.
Regina: A moça falou que tem a impressão que...
Mirian: Eu não tenho nada! Que eu andei em psicólogo, já andei em todo o lugar. Eu sou de parar bem graças a Deus. O que eu
sou eu tenho que morrer assim, ninguém me tira.
Regina: A senhora conhece alguém que a senhora acha meio esquisito?
Mirian: Eu acho, é gente que não gosta de fazer nada. Gente imunda, que dorme até meio dia, onze horas, roupa de tanque lá, é prato
dentro do tanque, é imundice de dentro de uma casa...
Regina: Gente mole?
Mirian: Gente mole, gente porca, imunda que é isso! Pra mim é! Imundice! Eu do jeito que eu sou eu quero ser assim até na hora
que Deus me levar. Eu gosto de limpeza, eu o gosto de sujeira. Psicólogo! Eu nunca vi pessoa ser louco, trabalhar de diarista. Se
eu não fosse procurada assim, eu não trabalhava, eu era porca e fica em casa cuidando das minhas porcarias.
Regina: Bom... Eu peço um minuto de silêncio pra vocês...
Parte 3
Especialista: Eu acho que mania, Regina, todo mundo tem em menor ou maior grau, em dimensões diferentes. Uma mania se
torna uma coisa desagradável quando ela começa a impedir coisas na vida da gente, comportamentos normais, a ficar tranqüilo, a
ficar em paz. E é o que eu vejo na dona Mirian, eu acho a senhora muito rígida, dona Mirian. A senhora não quer mudar, é seu jeito,
não tem problema. Só que aí tem que respeitar o jeito do outro. Eu concordo que cada um faz o quer, mas então onde é que ta o seu
sossego. Eu acho que mereceria uma investigação porque a senhora é obsessiva por limpeza e compulsiva no ato de lavar. Então
eu acho que se a senhora fizesse uma, procurasse um psicólogo pra ter uma orientação, eu acho que seria interessante no seu caso,
porque já ta impedindo de levar o curso normal da vida. E a Priscila acaba tendo paciência pra não brigar, pra não se indispor. Mas
tem que ter pé firme, né Priscila, senão invade completamente a tua vida né?
Regina: Eu vou fazer uma observação sobre essa palavra “esquisito”. Em espanhol, esquisito quer dizer diferente, único, peculiar, e
eu acho o que a gente tem de esquisito é o que faz com que a gente seja uma pessoa única. O que eu tenho de esquisito, diferente, é
o que faz com que eu seja Regina e não seja Mirian, e não seja Walter, e não seja Rosana, e não seja Rogério, enfim, o que eu tenho
de esquisito é uma coisa muito particular, minha, e por isso é que os outros acham esquisito, porque eu tenho, é o meu jeito.
Então eu acho que um pouco de esquisitice... Tem a música que diz que “de perto ninguém é normal”, um pouco de esquisitice é
necessário. Porque se você não for esquisito, você não é único, você não tem personalidade, você não se distingue. queria
algumas pequenas observações. Dona Mirian, a senhora falou que o sol foi feito pra gente se bronzear e tal, hoje em dia, por conta
de uma porção de coisas, poluição e tal, o sol pode sim fazer mal pra pele da gente. Então usar boné, especialmente nas crianças,
não é exagero, precisa porque o sol faz mal, ainda mais naquela pelezinha fininha, sensível, essas pintas que a gente tem isso não é
um sinal de saúde, nem de bronzeamento, isso é possivelmente uma doença. Então usar boné, se proteger do sol, é sim importante e
necessário.
Anexo 10 - Transcrição das entrevistas do Programa Silvia Poppovic
Tema: ejaculação precoce (Programa Silvia Poppovic)
Silvia Poppovic: O Juan Mortin que ta aqui com a gente é locutor de bingo. Essa é uma profissão que ta bem em moda hoje em dia
né, porque os bingos...se bem que agora ta autorizado o bingo, né Juan?
Juan Mortin: Mais ou menos...
Silvia Poppovic: Ta mais ou menos?
Juan: É melhor nem comentar o assunto...(risos)
Silvia: É melhor nem comentar... eu nem vou falar no assunto (risos). Mas ele é, com esse vozeirão todo, ele é locutor, de várias
oportunidades, se quiser convidar ele pra um rodeio ele vai, bingo também, ta certo? (risos) E o Juan teve um problema de disfunção
erétil por causa de ansiedade. Duas vezes aconteceu de ele justamente não conseguir transar porque ficou nervoso, porque ficou
ansioso. E também pra um “homão” desses, do seu tamanho, tudo quer dizer, não tem nada que ver...é uma coisa com a outra, mas é
que geralmente as pessoas não admitem...
Juan: Mas tem...Você falou nesse “homão”. Eu tenho dois pesos nas costas desde pequeno, porque o homem cresce, os amigos
forçam, o machão tem que dar certo sempre, a sociedade impõe né... o machão não pode falhar. Então esse é um peso. Do outro
lado, meu nome é Juan, então sempre tem essa coisa “Dom Juan” (risos) “vamos ver se é Dom Juan mesmo né”, “quero ver se esse
Dom Juan funciona”. Então é um peso nas costas...
Silvia Poppovic: (risos) Putz! Mas que nome que a sua mãe foi te dar. Agora você conta que você quando você tava fazendo um
curso e conheceu várias meninas, que você tava na sua fase Juan essencial assim né. E aí diz que você conheceu uma moça... foi a
sua primeira experiência mais desagradável na hora da da...
Juan: Então...quando eu fazia faculdade eu conheci uma garota, aí a gente combinou de ir pra um motel antes da aula. Fomos os dois
pro motel antes da aula. E na minha cabeça, eu tava “po..essa menina depois vai falar pras colegas como é que foi, se o cara é bom
de cama, se não é, vai falar tudo pras amigas né”. Então eu fique impressionado com esse pensamento. “bom então vou ter que
fazer um trabalho bem feito”. Aí chegamos no hotel, eu comecei a caprichar nas preliminares, eu fiz muito sexo oral na menina, tal,
caprichando, caprichando, quando eu me dei conta, eu só tava caprichando na menina, mas eu não não estava assim...
Silvia: Com tesão!
Juan: É! Com tesão! Aí você fica concentrado “vamos, vamos, você tem que funcionar” Tem que funcionar né! E nada! Aí eu falei
pra ela “só um minutinho, eu vou no banheiro”. no banheiro o homem...o órgão do homem conhece bem a mão do homem
(risos)...
Silvia: São grandes íntimos e velhos companheiros! Não ta certo?
Juan: Quando eu me dei conta, ela tava com a cara me olhando. É! “O que você ta fazendo, o que você ta fazendo?” “não, não... eu
vou, vou!” depois eu voltei pra cama e contei pra ela que eu tava ansioso, que eu achava que ela ia contar essas histórias
pras meninas e tal...Ela falou “nada, bobagem, eu não vou contar nada pra ninguém”. Ela começou a me acalmar. A gente ficou
um tempo e acabou acontecendo depois...
Silvia: Ai, graças a Deus! Deus é pai! (risos)
Juan: Ela me acalmou e acabou acontecendo e a gente voltou ali outras vezes...
Silvia: Antigamente se acreditava muito que quem tem ejaculação precoce é, na verdade, um aviso pra quem vai ter disfunção erétil
depois, é vai...ser impotente depois...
Especialista: Se não tratar, vai!
Silvia: Se não tratar?
174
Especialista: É raro ver um homem com cinqüenta anos com ejaculação rápida, porque de 25 a 40 o problema, se não for tratado, ele
vai se desgastando tanto, a qualidade do relacionamento, a estima pessoal, que chega um momento, o indivíduo começa a dormir
mais tarde que a mulher, ele começa a fugir do relacionamento, enfim, o desejo vai diminuindo de tal intensidade que chega uma
hora que ele tem uma falha.
Juan: Mas eu acho assim...Desculpa!
Silvia: Pode falar!
Juan: Aconteceu comigo já! Quando eu tenho muito desejo por uma mulher, você já acorda pensando nessa mulher, você já acorda
com tesão, ereto, você, eu ligo pra ela, no telefone você fica todo excitado; no caminho você vai encontrar com ela, vai no
caminho excitado; quando você encontra, a excitação ta muito grande. Eu...acontece essa ejaculação rápida porque você já ta
muito excitado.
Especialista: Não é só excitado sexualmente, é mentalmente. Você ta ansioso também. Você não ta relaxado, você não ta tranqüilo.
Ter desejo com tranqüilidade é uma coisa, você ter desejo com ansiedade é outra coisa. Porque você ta preocupado em agradar...
Silvia: Mas o que que faz? Chega na casa da moça e já pergunta “onde é toalete, por favor, pra eu já acalmar?” ou o que que faz?
Especialista: Não... É o que ele falou “eu vim assim idealizando uma relação ou, sei lá, preocupado em te fazer feliz”. Acho que o
indivíduo tem que descarregar essa tensão, ouvir sica, tem massagem, tem técnica de relaxamento, tem n coisa que você pode
fazer na intimidade que vai criar uma sensualidade extremamente elevada (fim da entrevista com Juan).
Tema: violência praticada pelos jovens (Programa Silvia Poppovic)
Silvia Poppovic: Agora no dia 29 de março uma notícia chocou os paulistanos. Uma garota, uma estudante, Elen Ferreira, de apenas
17 anos, foi assassinada na porta da escola. E não foi assalto, não foi briga de gangue, não foi nada disso, foi um crime passional
cometido por uma colega de escola, uma outra menina também de apenas 17 anos. E a Marilane Cândido Ferreira é a mãe da Elen e,
apesar de toda essa dor, ela ta aqui com a gente hoje pra falar justamente desse impacto que...se você é mãe, se você é jovem, dá pra
imaginar esse impacto que ela ta vivendo, que emoção, que desespero, que desamparo a Marilane não deve ta passando. Mas, de
qualquer forma, o fato dela ta aqui no nosso programa...Eu agradeço demais a sua presença aqui porque eu acho que é até uma
maneira de reagir, de um jeito positivo a essa situação. A sua filha foi morta por uma briga de mulheres, quer dizer, as duas
namoravam o mesmo rapaz. A sua filha namorava esse rapaz, essa moça que matou ela também namorou esse rapaz e, de repente,
ela por ciúmes resolveu matar a sua menina da maneira mais covarde como nós todos ficamos sabendo. A sua filha participava de
gangues, brigava com outras meninas na escola, quer dizer, ela era uma menina violenta, qual era o perfil da Elen?
Marilani Cândido Ferreira: Uma pessoa muito calma como eu, muito tranqüila, tinha muitas amizades, invejada por isso. Ela
namorou com essa pessoa em 2003, desmanchou esse namoro em começo de 2004 por intervenção dessa menina. Eu acho que ela
julgava que ela tava gostando dele e a minha filha continuou a vida. Depois disso, ela namorou duas outras pessoas, inclusive um
relacionamento terminou um mês atrás. Ela estava muito chateada porque ela gostava muito dessa pessoa. E simplesmente de lá
pra cá, desde essa época que ela namorou, ela foi visada por essa pessoa.
Silvia: por essa menina? Essa outra moça que matou ela? Ela foi visada do que?
Marilani: Ela simplesmente dizia que ia catá-la, pegá-la, tanto é que em 2005, ela sofreu uma violência por parte dessa menina.
Silvia: Uma vez ela já havia apanhado?
Marilani: Apanhou, ficou com o dedo do pé quebrado, várias escoriações pelo corpo, hematomas.
Silvia: E como é que vocês reagiram a isso, quer dizer, uma filha sua apanhar na rua já é uma coisa que você vai na polícia né? Quer
dizer você já não aceita uma situação dessas.
Marilani: Fui, fui a polícia, fiz ocorrência. Só que são menores. Nem pai, nem mãe, nem ninguém apareceu no dia, minha mãe e
ela, porque na época eu estava trabalhando. O ano passado ela não estudou pelo que ocorreu, ela ficou com medo e perdeu o ano.
Este ano ela falou “mãe, eu vou enfrentar, eu vou estudar”. Justo na escola que ela foi, no primeiro dia de aula, ela encontrou essa
menina lá. Ela chegou pra mim, no primeiro dia de aula, “mãe, não vai prestar, mas eu vou enfrentar”. Porque logo no primeiro dia
ela olhou feio pra minha filha e simplesmente foi uma coisa planejada, bem planejada, porque essa aluna não ia pra escola
constantemente, mais faltava do que ia, e nessa segunda-feira, dia 27, ela já foi armada e disposta a fazer o que ela cometeu.
Silvia: Como é que ela matou a sua filha?
Marilani: (ao choro) Ela levou uma facada, com certeza num lugar vital, pelo que dizem, a facada pegou assim (perto do coração),
deve ter pegado em alguma veia e ela morreu esvaindo em sangue, foi o que os médicos falaram pra mim quando eu cheguei no
hospital. Quatro médicos olharam pro meu rosto e falaram que não puderam fazer nada por ela, nada. Porque ela morreu
simplesmente jorrando sangue e não tinha nada pra ser feito. Segundo a mãe, pelos depoimentos, pelas pessoas que chegam em mim
e contam, disse que ela já tinha problemas com essa filha em casa, sempre teve e nunca tomou providência nenhuma, enquanto com
a minha filha eu nunca tive problema nenhum e acontece uma coisa dessa.
Silvia: Eu acho uma fatalidade, uma coisa que não tem, que o tem explicação lógica...E é uma sensação que... quantos outros
filhos você tem?
Marilani: Eu tenho só mais uma...
Silvia: Mais uma menina... como é que ela ta?
Marilani: Ela enfrenta melhor do que nós, talvez pela idade dela, ou talvez pela ingenuidade dela porque ela só tem seis anos. Ela ta
melhor do que todos nós em casa.
Silvia: Vocês estão impactados ainda né?
Marilani: Estamos!
Silvia: Porque é covarde, é uma surpresa, quer dizer é uma coisa que você não pode, isso não ta no script de nenhuma mãe, de
nenhuma família, de imaginar uma possibilidade, de uma filha ser morta com 17 anos por causa de briga de namorado e de repente a
pergunta: por que numa briga de namorado uma outra jovem acha que é tão fácil ir lá e matar uma outra menina na porta da escola?
Eu acho que é isso que começa a fazer parte do nosso dia-a-dia e que não era assim. Era na calada da noite, era escondido, um
crime... era uma coisa muito mais...hoje não! A menina tem quase que uma autorização, ela se sente autorizada pra ir na porta da
escola, na luz do dia, pegar uma arma e matar uma outra menina na frente de todo mundo.
Especialista: A impressão que dá é que no máximo pode acontecer uma vergonha, uma punição, mas culpa do estrago que foi feito...
essa noção, esse acesso a lei de achar que algumas coisas pode e outras não pode, essa é a grande dificuldade, o grande desafio da
nossa sociedade. Isso não começou assim. Vai aos poucos, cada vez mais vão piorando as situações de abuso e nunca é da noite pro
dia.
Silvia: É uma questão de impunidade, quer dizer, ela deve achar que não vai acontecer nada com ela, porque ela é mais jovem, ela
tem 17 anos e é a primeira vez que ela faz umas coisas dessas, quer dizer, deve passar esse tipo de raciocínio.
Especialista: E acho que tem a ver, se a gente olhar, com um contexto que é maior, a historia daquela dancinha que foi feita no
congresso... esse tipo de atitude vai mostrar que a impunidade ta ai e não tem problema pra todo mundo, ta dado. Então, às vezes,
nem é uma questão dos dados estatísticos de ta aumentando ou não. É de que cultura que a gente ta criando do que pode ou do que
não pode ser feito, do que constrange ou não constrange, do que a gente sente vergonha, do que a gente não sente vergonha.
175
Marilani: A gente não sabe mais o que é direito e o que é dever. O que é o certo, o que é o errado. Parece que o que ta errado é certo,
o que ta certo se torna errado (fim da entrevista com Marilani).
Tema: a difícil tarefa de encontrar a alma gêmea (Programa Silvia Poppovic)
Silvia Poppovic: Longe das capas de revistas e da televisão, os casais levam às vezes muito tempo pra reconhecer que o conto de
fadas acabou, em primeiro lugar. E às vezes quando descobrem que acabou eles não podem acreditar que acabou porque aquela
pessoa se fazia passar por alguém que ela não era. A Rosangela di Costa que é tradutora e professora de inglês achava que tinha
encontrado o príncipe encantado. A história toda de encontro com o marido que ela esteve casada 25 anos era de um jeito que...ela
poderia estar aqui no nosso programa, se não tivesse acontecido do jeito que aconteceu, que “como eu fui feliz”, “como eu achei o
meu príncipe”. Mas na verdade não foi bem assim. Por que vocês se separaram, Rosangela?
Rosangela: Quando nós estávamos com 15 anos de relacionamento houve uma traição. Onde ele era o meu príncipe, realmente eu
jamais esperava qualquer coisa desse tipo e houve uma quebra de confiança. E, a partir daí, durante esses dez anos foi um arrastar,
sabe. Sempre desconfiando, sempre...
Silvia: Mas Rosangela você caiu do cavalo?
Rosangela: Totalmente, totalmente...Ele entrou de sapo e eu saí de sapo, né.
Silvia: Aí foi péssimo pra você né que você ficou deprimida. Na verdade, ele já não era conto de fadas há oito anos. Ele já tinha uma
outra pessoa há oito anos...Será que você que não queria ver, é essa que é a pergunta?
Rosangela: Eu acho que o não querer ver, a falta de maturidade é que me levou a cair tudo, a abrir um buraco...
Silvia: Existe esse tipo de situação onde realmente a idealização da situação do casamento, a vontade de querer ta casada é o
grande que você não vê o que ta te acontecendo assim?
Especialista: Com certeza! A dor de perder tudo isso que você construiu, por um lado. Por outro lado, a gente gosta de acreditar no
que as pessoas mostram pra gente. Agora também eu preciso te lembrar de uma coisa: nunca é tarde pra gente poder rever as nossas
histórias e ver o quanto também teve coisa boa e quanto isso contribuiu para a vida da gente.
Silvia: Eu concordo com você, Denise. Puxa! Foram 15 anos bons, o resto foi ruim, mas foram 15 bons. (fim da entrevista com
Rosangela).
Tema: assédio sexual no trabalho (Programa Silvia Poppovic)
Silvia Poppovic: A história da Neide Maria dos Santos que ta aqui com a gente, a nossa primeira convidada... A Neide ela
atualmente é dona-de-casa porque ela acabou desistindo da profissão dela, mas ela trabalhava como faxineira num sindicato de São
Paulo, e ela trabalhava como faxineira dentro desse sindicato. Aí aconteceu uma situação por parte de um dos diretores do sindicato,
ou seja, tipicamente um caso de assédio sexual. O que te aconteceu Neide?
Neide Maria dos Santos: Aconteceu que eu cheguei lá de manhã, abri a porta porque eu tinha a chave. Abri a porta e fui fazer o café.
Ele chegou batendo a porta dizendo que ia puxar o e-mail. Ele como patrão, não podia dizer não. Abri a porta e ele perguntou “tem
café pronto?”, eu disse “tem”. Daí servi um café pra ele, e foi agarrando no meu seio, foi pegando na minha bunda, foi querendo
pegar nas minhas partes da frente, dizendo que eu tava com isso gostoso, essa baixaria todinha...
Silvia: E você fez o que?
Neide: Eu tremi de medo, ele perguntava “tá com frio?”, “não eu to com calor”. Mas eu tava tremendo. Colocava o café na garrafa o
café derramava todinho fora da garrafa. Fingi que eu não tava com medo dele. Ai na hora que chegou a menina que trabalha comigo,
eu fui pedir ajuda a ela, ela me deu um copo de água com açúcar e disse que eu não podia fazer nada. Porque ele e os outros
diretórios falou que se algum funcionário fosse a meu favor ia ser mandado embora.
Silvia: É assim mesmo que acontece?
Especialista: É sempre assim! Porque o funcionário que trabalha com ela é testemunha. Ou ele presencia o fato ou ele fica sabendo
pela reação dela que sai da sala totalmente em choque, às vezes chorando, tremendo, como ela disse. que na hora de depor na
justiça a favor dela, ele não vai porque vai ser mandado embora também. Estão todos na mesma situação que ela...
Silvia: Então como é que vai ser? Essa lei eu acho q não vai durar...É dessas leis, que nem as coisas que tem no Brasil, tem a lei mas
não se coloca em prática.
Especialista: Não! A gente já tem alguns casos que foram bem sucedidos. Não é que seja impossível, mas é preciso encontrar
pessoas que se disponham a testemunhar e, em determinados casos, ela pode levar, por exemplo, o marido dela, o filho, que também
toda vez que ela chegava do trabalho presenciava um estado dela, psicológico...
Silvia: Agora, um assediador assedia um dia a Neide, no outro a Maria, no outro... quer dizer...Eu acho que esse cara, um diretor,
hoje ele ta nessa amanha ele ta na outra. Geralmente é uma personalidade covarde, inclusive, porque eles fazem isso porque eles têm
o poder de poder assustar outra pessoa.
Especialista: E aí sim. Aí vão todas reclamar. Aí se forem todas, duas que já passaram por isso com relação ao mesmo chefe, já fica
bem mais fácil de provar o fato na delegacia.
Silvia: E você ganha o que se você prova o fato na delegacia?
Especialista: Aí se inicia um processo contra esse chefe e tem todo um procedimento penal que no final pode resultar numa pena pra
ele por assédio.
Silvia: Ai ele pode ir preso!
Especialista: Ele pode ir preso ou normalmente ele irá prestar serviços à comunidade, mas vai receber uma pena.
Silvia: E ela ganharia o que, por exemplo? Ela ganharia alguma coisa?
Especialista: na justiça do trabalho ela também entra com uma ação, ela pode pedir uma indenização por dano moral ou pode
também pedir a reintegração ao trabalho.
Silvia: O que aconteceu com a Neide, ela acabou desistindo da profissão. Você foi mandada embora? E ai o que aconteceu? Perdeu
o emprego...
Neide: Perdi o emprego. Com a idade que eu tava, 47 anos, eu não consegui mais emprego. Eu não tenho estudo, então pra mim
ficou tudo mais difícil (fim da entrevista com Neide).
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