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LUDMILA RODE DE CAMPOS
CARMILLA e SABELLA: em busca de uma identidade feminina em
Joseph Sheridan Le Fanu e Tanith Lee
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LUDMILA RODE DE CAMPOS
CARMILLA e SABELLA: em busca de uma identidade
feminina em Joseph Sheridan Le Fanu e Tanith Lee
Dissertação apresentada para obtenção do
título de Mestre em Letras, área de Teoria da
Literatura junto ao Programa de s-
Graduação em Letras do Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio
Preto.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Álvaro Luiz Hattnher
Professor Assistente Doutor
UNESP – São Jodo Rio Preto
Orientador
Profª. Drª. Nícea Helena de Almeida Nogueira
Professor Doutor
CES de Juiz de Fora - MG
Profª. Drª. Carla Alexandra Ferreira
Professor Assistente Doutor
UNESP – São Jodo Rio Preto
São José do Rio Preto, 22 de agosto de 2008
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Dedico este trabalho à minha avó
Maria Victória da Silva Campos,
pelo exemplo maior de força e
coragem ao longo de toda sua
vida, pela perspicácia ao lidar
com a família e pelo amor de mãe
e avó. Uma mulher de atitude.
4
AGRADECIMENTOS
A Deus e à N. Srª. Aparecida, que guiaram minha mente e meu espírito para a direção da
razão e me elucidaram sobre a importância de se concluir os ciclos da vida. Pelas orações
diárias e pelo clamor, sinto hoje que fui abençoada com a graça de seguir adiante com o sonho
do saber e da conquista.
À minha família, pela força, companheirismo, paciência e presença constante em minha vida,
pois sem eles essa conquista não seria tão doce e verdadeira.
Aos meus pais, Ana Maria e Murilo, pois a eles devo o meu viver e a minha retidão;
companheiros de labutas diárias para as conquistas da vida, pessoas de minha extrema
confiança e dignas de meu maior apro e respeito.
Aos meus irmãos Martina e Murilo Júnior, a quem devo o aprendizado da convivência e do
respeito às idéias diversas. Pessoas íntegras e leais, cujos interesses pessoais nos mantêm
distantes fisicamente, mas com laços afetivos eternos que nos unem cada dia mais e nos faz
admirarmo-nos uns aos outros.
Aos meus tios queridos Márcia e Moysés, pilares e mentores ao longo de minha jornada de
estudos, sem os quais também, hoje, eu não teria como orgulhar-me de mais essa conquista
profissional.
Ao meu orientador, professor Álvaro Luiz Hattnher, pela confiança em mim depositada ao
longo de nossos trabalhos, por sua compreensão e solidariedade, por sua paciência e
companheirismo, e por acreditar em meu potencial de estudos e pesquisas.
Aos meus amigos queridos, companheiros de vida (pessoal e acadêmica), meus confidentes:
Rogério S. Munhoz, Glaucia A. Chiarelli, Marcelo B. M. Carmo, Bartira C. Neves, Maisa
Pini Flores, Nayna G. Nunes, pela compreensão e paciência de sempre. A todos dedico minha
real admiração e eterna amizade.
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SUMÁRIO
RESUMO 6
ABSTRACT 7
0. INTRODUÇÃO 8
1. MULHERES NA LITERATURA: o ser e o estar 21
1.1. A Mulher em busca de uma definição própria 22
1.2. Feminismo: os espaços delimitadores 27
1.3. A representação, a autoria e a crítica feminista 31
2. VAMPIRO(A) NA LITERATURA 43
2.1. De Vampiro(a) a Vamp 57
3. CARMILLA: Joseph Sheridan Le Fanu e uma vampira vitoriana 64
3.1. Enredo, espaço e representações em Carmilla 69
4. SABELLA: Tanith Lee, a ficção científica e uma vamp pós-moderna 91
4.1. Enredo, espaço e representações na ficção científica de Tanith Lee 94
4.2. Personagens femininas de Tanith Lee em Sabella 103
4.3. Sabella, a vamp da era pós-moderna 111
5. CARMILLA e SABELLA: (des)encontros nas representações femininas 117
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 129
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 134
6
RESUMO
Este trabalho teve como objetivo realizar uma análise comparativa entre duas obras literárias
que têm como foco a questão da representação literária feminina. Ao analisar os textos
Carmilla (1872), de Joseph Sheridan Le Fanu, e Sabella (1980), de Tanith Lee, buscamos
apontar alguns traços comuns característicos quanto às descrições das personagens femininas
e as posturas que assumem diante da sociedade na qual estão inseridas, a fim de encontrar
alguns possíveis aspectos norteadores para a construção da identidade feminina literária. A
partir de um olhar mais aprofundado para as personagens-título Carmilla e Sabella ambas
vampiras e representativas de dois momentos distintos da literatura de ficção inglesa
retratamos os contextos hisrico-sociais em que os autores se inserem. A análise baseou-se
em algumas teorias feministas desenvolvidas e disseminadas ao longo dos anos 70 e 80, que
visam discutir os novos posicionamentos da mulher dentro de contextos sociais até então
“proibidos”, tais como trabalho, política e sexualidade. Interagimos também com textos que
relacionam a representação social da mulher ligada à figura mitológica do vampiro
representação essa diretamente associadas às transformações emocionais que tratam do
embate primitivo do bem vs. o mal.
Palavras-chave: mulher, vampira, representação feminina, Carmilla, Sabella
7
ABSTRACT
The aim of this study was to make a comparative analysis focusing on the female literary
representations present in two English novels. Through the study of the novels Carmilla
(1872), by Joseph Sheridan Le Fanu, and Sabella (1980), by Tanith Lee, we examined the
main common characteristics from female characters and their attitudes within the society to
which they belong, and with the purpose of finding some possible points leading to a literary
female identity construction. From a deep contact with the title-characters Carmilla and
Sabella both female vampires and also representatives of distinct English literary fiction
periods we depict the social-historical contexts to which each author belongs. The analysis
is based on some feminist theories developed and propagated along of the 70’s and the 80’s,
which discuss the new places occupied by women in social contexts so far known as
“banned”, like out-of-house works, politics and sexuality. We also interact with texts related
to social female representations linked to the mythological vampire figure a kind of
representation directly associated to some emotional transformations dealing with the
primitive opposition between good vs. evil.
Key-words: women, female vampire, female representation, Carmilla, Sabella
8
0. INTRODUÇÃO
Não há nada mais intrigante e incompreensível para a mente humana do que o próprio
ser humano. Talvez por isso, surjam a todo o momento tantas teorias e manifestações
artísticas: as primeiras, na tentativa de explicar, compreender; e as segundas, na tentativa de
aliviar a carga de angústias e anseios que assolam a alma e a mente humanas. Isso se revela
em maior ou menor intensidade na arte, conferindo a algumas obras quase uma “vida
própria”, o que as torna insumos tão ricos quanto os próprios criadores.
Na literatura, ao contrário do que se imagina, essa humanidade, esse enigma, não está
nas palavras, mas nos ‘espaços em branco’, no(s) jogo(s) entre elas, nos ‘entre-palavras’, no
indivel. E quanto maiores as lacunas do racionalmente lógico, quanto maiores esses espaços
(em branco?), mais densa a obra, mais atraente e mais viva, pois enquanto ela se cria, também
se desconstrói, se recria incessantemente. Segundo Paixão (1997, p.72), “na verdade, o texto
literário provoca um diálogo com o leitor, com o contexto histórico e social, estabelecendo
um encontro com a cultura, podendo reformular toda uma visão de mundo.”
Assim, as mudanças no pensamento humano, que acontecem em conjunto às
transformações sociais e culturais, são apresentadas na literatura por meio de ilustrações de
situações cotidianas, mas que modificadas aos toques do inusitado proporcionam momentos
de reflexão sobre os ideais humanos.
Diante disso, encontramos lacunas discursivas dentro dos padrões instituídos que
possibilitam reivindicações novas a cada geração e permitem o confronto entre conceitos pré-
estabelecidos e o novo, ou a busca por uma melhor adaptação do ser humano às novas
condições sociais surgidas frente às transformações comportamentais ocasionadas pela
mutabilidade cíclica e constante do mundo onde vivemos. E é em uma dessas lacunas
discursivas que a representatividade feminina social encontra a abertura necessária para
9
reivindicar o reconhecimento da colaboração e influência da mulher em esferas denominadas
“públicas”, ou de acesso único e restrito aos homens, ao longo dos tempos. Dessa forma,
verifica-se a luta para que a voz feminina na sociedade seja aceita.
O resgate das formas de representação da mulher e a conseguinte busca pela
delimitação de uma identidade feminina em textos literários, portanto, passa a espaço de
reivindicação e reconhecimento da importância em se (re)considerar o papel de grande valor à
figura da mulher na sociedade, sem que a ela sejam apenas atribuída as funções
tradicionalistas ligadas ao patriarcalismo conservador, de objeto doméstico.
Nos estudos sobre a literatura romântica e suas formas de representação do
pensamento e das emoções humanas, encontramos alguns textos ligados à literatura gótica.
Esta se refere a uma forma peculiar de romance popular do final do século XVIII, e que
evoluiu das explorações do eu interior, com toda a sua emotividade, racionalidade e seus
aspectos intuitivos, sendo então caracterizada figurativamente como uma literatura do
pesadelo. Os autores de romances góticos tinham por princípio o questionamento da sabedoria
da sociedade contemporânea, principalmente durante o período do s-Iluminismo,
desafiando as estruturas sociais e intelectuais por meio de temas que levavam ao o-racional,
à desordem e ao caos.
Algumas das personagens monstruosas, portanto, são figuras que aludem às
manifestações do subconsciente para retratar a desordem, o caos, e o não-racional como
forças incontroláveis; e motivadas por essas figuras surgem as discussões sobre crenças,
desejos, liberdade individual e sexualidade. Essas imagens mascaram o desejo inconsciente de
liberdade de expressão dos sentimentos mais íntimos do ser humano que, durante o período
entre os séculos XVIII e XIX, era vigiado e oprimido por uma sociedade muito conservadora.
Além disso, esses questionamentos relacionam-se de forma direta à condição da
mulher na sociedade e são abordados no decorrer do século XX por meio da revolução
10
feminina ocorrida nas décadas de 60 a 80, cujo objetivo está em elevar e reconhecer a posição
da mulher na sociedade.
É com base nesses questionamentos, ainda, que buscamos reconhecer, neste trabalho,
os traços fundamentais constituintes da construção de uma identidade feminina e da
representação da mulher em dois contextos diferentes expressos por meio de dois textos
literários escritos em diferentes períodos — romântico e pós-moderno. Nota-se também o fato
de os textos terem autorias diferentes, sendo o primeiro texto romântico escrito por um
homem e o segundo texto, s-moderno, escrito por uma mulher. Contudo, é importante
salientar que não intentamos discutir, de modo aprofundado, a questão da autoria feminina e
masculina, mas apenas citar, quando necessário, as difereas de percepções entre os gêneros.
Dentre a produção literária, produzida no período entre os séculos XIX e XX, e que
retrata uma personagem vampiro”, foram escolhidas para o corpus de análise deste trabalho:
Carmilla, do autor irlandês Joseph Sheridan LeFanu publicada em 1872 história que
revelou à literatura da época uma jovem vampira com tendências homossexuais descritas sob
uma intensa atmosfera de erotismo e lesbianismo; e Sabella, de Tanith Lee, publicada em
1980, com a história de uma jovem perigosa e sedutora que vive em uma colônia da Terra em
outro planeta Novo Marte. Trata-se de uma interessante história que mistura o sobrenatural
à ficção científica e traz à luz uma nova condição da personagem vampiro: a luta para se
manter “vivo” e “livre” na sociedade em que vive.
A primeira narrativa foi escolhida por representar uma das primeiras e principais
caracterizações do mito do vampiro como personagem ficcional de uma obra literária e que,
portanto, inaugura a interação entre o vampiro e a sociedade humana; além do fato de as
personagens envoltas pela trama serem mulheres. Já a segunda narrativa aqui apresentada foi
escolhida porque retrata a figura de uma mulher-vampiro, que expõe o mito em uma
representação revisitada e bastante atualizada, apresentando-o de uma forma mais humana e
11
de certa forma também mais racional, porque questionador, fazendo-o aproximar-se do ser
humano pós-moderno.
Foi no século XIX que escritores românticos se propuseram a explorar o lado obscuro
da mente humana e, então, passaram a descrever e retratar todo o sentimento de mal-estar”
vivenciado ao longo da Era Iluminista marcada principalmente pelo excesso de
racionalidade. A importância subjetiva da arte e das ciências, que se acentuou no Ocidente
com o declínio da sociedade medieval, permitiu a substituão dos dogmas religiosos pelo
culto à arte, e esta passou a nova alternativa de expressão da espiritualidade entre os
intelectuais do ocidente.
Dessa liberdade intelectual alcaada nasce a possibilidade de exposição dos
questionamentos acerca do ideal social vigente até então, e diante das vidas e também da
liberdade individual conquistada, conseqüência do excesso de materialismo, o desejo de fuga
idealizado pelo ser humano até a época das revoluções racionalistas transforma-se em um
vazio existencial: há uma conjuntura das diversas formas de esgotamento do pensamento
racional que faz do ser humano um ser tão materialista a ponto de sentir falta da
espiritualidade. Daí surge a arte voltada para as manifestações da alma e que traduz o conflito
existente entre o Eu e o Outro – e o mundo ao seu redor.
É, portanto, a literatura de “imaginação criativa” que busca um novo misticismo capaz
de reavivar as crenças espirituais do ser humano: (re)nascem, neste momento, as figuras do
mundo sobrenatural dentre elas o vampiro estabelecendo uma nova relação entre o ser
humano e suas crenças.
Todorov (1975) desenvolveu um estudo sobre o fantástico em que o define como a
hesitação que o leitor, conhecedor das leis da natureza, experimenta ao detectar fatos ou
conhecimentos sobrenaturais e que lhe permite a escolha entre o “mundo do maravilhoso”,
12
onde não explicações naturais para as ocorrências; ou o “mundo do estranho”, onde se
admite uma explicação, por meio das leis da física, ao final do mistério.
Todorov ainda discute sobre um modelo de classificação dos temas do fantástico em
que uma distinção entre os denominados “Temas do Eu cuja idéia está na ruptura do
limite existente entre matéria e espírito (passagem da palavra à coisa) e “Temas do Tu”
ou Temas do Discurso, ligados à sexualidade. Neste último, encontra-se a descrição do desejo,
tentação da carne (sexual), marcado principalmente pela figura do diabo e do vampiro, e que
nos faz entender com mais clareza a relação existente entre o sobrenatural e o desejo sexual,
ao considerar-se que ambas as figuras representam forças relacionadas à experiência dos
limites. São essas imagens do sobrenatural que mascaram o desejo de liberdade de expressão
dos sentimentos mais íntimos do ser humano e que fazem do demoníaco o símbolo do período
romântico.
Assim, dentre todas as narrativas que compõem a hisria da humanidade, as histórias
de vampiro, por sua proximidade psicológica e mesmo física que os vampiros
assemelham-se aos humanos se destacam e perduram ao longo dos tempos; o que justifica
ainda sua constante presença na literatura, especialmente a partir do século XIX. Conforme
explicita, ainda, Lecouteux (2005) “O vampiro faz parte da história desconhecida da
humanidade, desempenha um papel e tem uma função; não brotou do nada(...) Ele se inscreve
num conjunto complexo de representações da morte e da vida, que sobreviveu até nossos
dias(...)” (p.15). Ou seja, o mito do vampiro e suas representações literárias permitem ao leitor
uma identificação e proximidade com os sentimentos de medo e desejo, além do ideal de
dominação sobre questões naturais como morte e vida. que se lembrar também que uma
das principais características do ser vampiro, tão idealizada pelo ser humano, é a vida eterna.
Contudo, ao pensarmos no mito do vampiro e em suas representações dentro da
literatura de um modo geral, e em especial ao longo dos séculos XIX e XX, notamos certa
13
escassez na representão deste em personagens femininas de destaque em obras literárias.
Conforme aponta Melton (1995), a vampira literária surgiu ainda no século XVIII, época em
que as personagens vampiras existentes eram mulheres como as que encontramos em textos
de Goethe ou S. T. Coleridge: mulheres vilãs, tomadas pelo demoníaco que as faziam vozes
do mal, do ameaçador.
Após esse período, os personagens vampiros passaram a ser representados somente
por homens. Em grande parte do século XIX, o vampiro literário mais conhecido era
representado em sua forma masculina pelo personagem aristocrata “Lord Ruthven”, de John
Polidore (1819) — que atacava mulheres indefesas e frágeis. Contudo, seu “reinado” chega ao
fim com o advento de um vampiro que viria a ser ainda mais famoso, o conde Drácula, de
Bram Stocker (1897), cuja representatividade transformou a imagem do vampiro em ícone das
histórias de terror.
Essa predominância da figura masculina do vampiro em narrativas de terror somente
foi quebrada, ao longo do século XIX, por alguns poucos escritores, tais como Theophile
Gautier, e sua personagem Clarimonde do poema homônimo, em 1836; Alexandre Dumas e
seu texto The Pale Lady (1848); e principalmente Joseph Sheridan Le Fanu, com o seu mais
popular conto Carmilla (1872). Após estas ocorrências isoladas, somente mais tarde, ao longo
do culo XX, é que encontramos novamente algumas novas personagens femininas,
ressurgidas com maior freqüência nas histórias de terror.
Na segunda metade do século XX, com a movimentação política e social caracterizada
pela necessidade de se destacar a posição da mulher na sociedade, nasce uma voz literária
feminina que apresenta a voz da mulher em discursos intelectuais. Os conceitos sobre
identidade e representação femininas passaram a ser trabalhados e definidos por diferentes
linhas de pesquisa, tais como: a crítica feminista, a sociologia da mulher e os Women Studies,
cujo principal objetivo é lutar contra as instituições patriarcais dominantes, buscando, por
14
exemplo, interpretar na palavra as possibilidades de sentido presentes nos discursos dos
indivíduos e, dessa forma, encontrar os constituintes da formação da identidade do sujeito
feminino (PIRES, 2003).
Outra perspectiva ainda é a exemplo de Elaine Showalter, com sua proposta de
investigar as maneiras pela qual a autoconsciência da mulher traduziu-se na literatura por ela
produzida num tempo e espaço determinados e como ela se desenvolveu, segundo a
recorrência de determinados padrões, temas, problemas e imagens (ZOLIN, 2003).
Assim, é por meio dos estudos e análises dos textos literários compostos por uma voz
e ou por representações femininas que se torna possível a identificação da presença da mulher
como protagonistas nas narrativas dos séculos XVIII e XIX mais significativas sobre as
transformações ocorridas na trajetória das mulheres. Embora por muito tempo a autoria da
mulher tenha sido camuflada ou “abandonada” pela literatura e pela sociedade como um todo,
o resgate de manifestações a respeito dessa participação feminina, ainda que velada,
possibilita a identificação do ser feminino e de suas influências na estrutura das sociedades ao
longo dos tempos.
Com as movimentações feministas do século XX, principalmente nas décadas de 70 e
80, encontramos recursos suficientes para uma análise literária capaz de apresentar traços que
colaborem para a construção de uma identidade feminina. Em ambos os textos narrativos
escolhidos para corpus deste trabalho, as descrições de espaço e tempo os faz divergir no que
concerne a representação da mulher na sociedade, por tratar-se de períodos bastante distintos
de ambientalização de escrita e representação, mas que, no entanto, aproximam-se ao
descrever imagens de mulheres que tentam conquistar para si a liberdade social.
Diante disso, deparamo-nos com o processo de transformação sofrido pela mulher
desde suas primeiras manifestações de contraposição às estruturas dominantes
15
patriarcalistas no século XIX, até a mais atual força de representatividade conquistada em
finais do século XX.
Com aparato teórico nas discussões sobre a representatividade social da mulher aliado
as caracterizações ligadas à mitologia do vampiro, buscamos fazer uma análise literária
pautada nas discussões a respeito da necessidade em se abrir espo maior para questões
relacionadas às constantes mudanças sociais que tratam das transformações ocorridas no
comportamento social feminino nos últimos culos. Destacamos as representações femininas
modificadas por meio das influências dessas transformações ligadas especialmente às lutas
feministas contra submissão e opressão.
No primeiro capítulo, tratamos de maneira abrangente sobre as teorias feministas e
algumas de suas principais autoras e críticas literárias. A fim de localizarmos no tempo e no
espaço as personagens femininas analisadas em cada um dos romances escolhidos para corpus
de trabalho, discorremos, no primeiro capítulo, sobre as condições gerais da mulher na
sociedade e suas reivindicações, ao longo dos tempos, por reconhecimento social.
Das teorias e críticas surgidas desde o primeiro manifesto a favor da liberdade e da
igualdade entre mulheres e homens com Marie Olympe Gouges e sua “declaração dos
direitos da mulher e da cidadã” (1791) até os dias atuais, deparamos-nos com um ideal
cujo interesse está no equilíbrio da contribuição social: por meio da igualdade no trato e nos
direitos e deveres sociais para ambos os sexos.
Diante dos discursos voltados ao reconhecimento e defesa do sujeito feminino e suas
particularidades, citamos a importância dos trabalhos da autora e crítica francesa Simone de
Beauvoir, com especial trato no que concerne ao seu livro intitulado O segundo sexo (1949),
obra de especial relevância para o icio dos debates sobre a questão do feminino e as
limitações vividas pela mulher dentro da sociedade. Neste livro a autora fala sobre elementos
16
que contribuem para a formação de um conjunto de características próprias à condição da
feminilidade, ou reconhecimento da alteridade feminina.
Além de Beauvoir, outras tantas e importantes autoras de diversos países colaboram
para as discussões sobre as mudanças ligadas à questão do feminino, dentre elas: Virgínia
Wolf, Kate Millet, Betty Friedman, Elaine Showalter e outras. Por meio da leitura do artigo
“Ctica Feminista”, de Lúcia O. Zolin (2003), buscamos aparato inicial para traçarmos uma
perspectiva a respeito das diversas linhas de pesquisas voltadas a questão do gênero feminino
na literatura e na sociedade como um todo; a partir daí, diante da diversidade de trabalhos
desenvolvidos acerca do tema “mulher na sociedade” selecionamos alguns dos pontos
relevantes para as discussões e análises dos textos literários abordados neste trabalho.
Diante da proposta de delimitar alguns traços sobre a identidade feminina nos textos
Carmilla, de Joseph Sheridan Le Fanu e Sabella, de Tanith Lee, acreditamos que a leitura de
textos que tratam das delimitações de espaços sociais entre gêneros e das diferentes condições
de representatividade da mulher na literatura, seja fundamental para nossas reflexões sobre os
papéis da mulher na modernidade.
Para tanto, consideramos os textos “Autor+a”, de Norma Telles (1992), “A Identidade
do Sujeito Feminino: uma leitura das desigualdades.”, de Vera Lúcia Pires (2003), “Tornar-se
mulher: um árduo aprendizado”, de Elódia Xavier (1997), “A crítica feminista no território
selvagem”, de Elaine Showalter (1994) e “Feminismo em tempos s-modernos”, de Heloísa
B. Hollanda (1994) como alguns dos delineadores das discussões sobre a existência de um
conjunto de características próprias ao gênero feminino e que mostra a consciência de ser da
mulher diante do mundo e diante de si mesma.
Em seguida a essas leituras a respeito das condições e representações da mulher na
literatura, tratamos da história e influência do mito do vampiro em representações literárias,
focalizando sua especial influência acerca da mulher, de maneira a representar a busca da
17
individualidade, da liberdade e do reconhecimento de sentimentos antes (des)considerados por
certa conotação imoral.
Sobre o vampiro literário, recuperamos por meio da leitura do mito, os principais
pontos de influência na representação das condões psicológicas e emocionais capazes de
interagir com as necessidades humanas de lidar com sentimentos íntimos reprimidos, tanto
aqueles ligados aos medos que envolvem o relacionamento íntimo de auto-conhecimento
indivíduo quanto no trato com o com o Outro, ou seja, a necessidade do reconhecimento da
alteridade que faz o sujeito expandir sua visão de mundo para tudo aquilo que é diferente ao
indivíduo.
Apoiando-nos principalmente nas leituras dos textos de Melton (1995), em O livro dos
vampiros: a enciclopédia dos mortos-vivos; de Torrigo (2002), em Vampiros: Rituais de
sangue; e Lecouteux (2005), em História dos vampiros: autópsia de um mito, fazemos um
apanhado geral sobre as origens e influências do mito do vampiro na cultura popular e, enfim,
delimitamos algumas das características principais do mito que foram (re)consideradas e
determinantes para a construção das personagens femininas nos textos de nossa análise.
É fundamental destacar, ao longo dos estudos sobre a origem do mito do vampiro e
sua influência na literatura, a origem do mito à luz da imagem feminina, que as primeiras
representações literárias do mito aparecem em personagens femininas bestiais. Assim sendo,
uma importante figura feminina relacionada à representação da vampira (mulher vampiro) é
Lilith: a mulher que renegou o paraíso em nome da liberdade, recusando-se a ser submissa. A
partir dessa explicação é que se popularizou a idéia de que Lilith foi a primeira mulher a se
opor ao sistema patriarcal.
Com esses apontamentos acerca das condições de representatividade feminina e das
influências do mito do vampiro na literatura, encontramos, ao longo de nossa pesquisa, as
muitas possibilidades para releitura do mito em situações diversas e instigantes; contudo, não
18
se pode negar a intimidade sugerida para os relacionamentos humanos que lidam com os
sentimentos mais fortes e íntimos, tais como paixão e desejo, e que atingem seu ápice ao
retratar as relações de poder.
Diante disso, torna-se cada vez mais claro aos nossos olhos a representação da mulher
como vampira, pois que nesta posição ela assume o poder sobre situações nunca antes
imaginadas. A vampira encontra em si as expectativas do novo e a ânsia por “sugar” toda
forma de energia que lhe permita conquistar, a cada dia, um território a mais.
Com base na premissa sobre a analogia entre a conquista de novos “territórios”
(físicos e emocionais) da vampira literária como representação da conquista de espaços
sociais da mulher ao longo dos tempos, nos terceiro e quarto capítulos, apresentamos a análise
do corpus em busca da ilustração de apontamentos relacionados ao reconhecimento de uma
identidade feminina própria, capaz de representar a singularidade do gênero sem que se limite
à comparação dos espaços do macho e da fêmea no âmbito social, mas que vise o encontro de
diferenças que componham o quadro da completude entre os sexos.
Em Carmilla, de Joseph Sheridan Le Fanu, há o retrato institucional da primeira visão
sobre as condições da mulher na sociedade: o embate entre a representão primitiva da
mulher casta e virginal, apresentada pela personagem Laura, e a representação da mulher
pecadora (que corrompe e amaldiçoa), vivida pela personagem-título da narrativa.
Com a análise dessa obra, buscamos reconhecer algumas das transformações
comportamentais femininas por meio das ações e pensamentos expostos pelas personagens do
primeiro plano da narrativa, que estes são alguns dos principais apontamentos que vêm ao
encontro dos interesses primeiramente discutidos neste trabalho e que tratam da evolução do
pensamento feminino e sua busca por liberdade e poder.
em Sabella, de Tanith Lee, uma tentativa de renascimento do mito do vampiro,
mas com vistas à representação de um sujeito em busca de si mesmo: a personagem central da
19
trama, Sabella, é uma mulher em busca de entendimento sobre sua própria condição de
existência frente à sociedade que a cerca.
À luz de uma representação futurística da sociedade humana e seus questionamentos
sobre individualidade e alteridade, a narrativa de Tanith Lee apresenta-nos uma personagem
mulher que não se difere apenas porque vive à margem da sociedade devido à sua condição de
“ser diferente aos demais; mas antes, a autora mostra-nos uma personagem feminina em
busca do autoconhecimento e da aceitação própria. Confusa e insegura, Sabella guarda para si
o medo e a incerteza a respeito de sua origem e luta para sobreviver, ora como caça, ora como
caçadora.
Da análise do corpus e dos apontamentos sobre cada uma das narrativas — Carmilla e
Sabella propomo-nos a trabalhar com algumas comparões entre as personagens de cada
uma das obras literárias citadas a fim de traçar uma linha evolutiva que aponte as conquistas e
as diferenças contextuais vividas pelas personagens em suas buscas por inserção e aceitação
social e individual.
Assim, no quinto capítulo deste trabalho, propomo-nos a delimitar algumas das
características específicas de cada uma das personagens femininas de maior relevância para as
narrativas analisadas e, com isso, apresentamos alguns pontos de convergência e divergência
entre as representações dadas.
Destacamos em cada personagem as qualidades sensitivas, físicas e emocionais
colaborativas ao reconhecimento da voz feminina que clama por atenção e se destaca ao
apresentar, apesar do preconceito e da marginalização, força necessária para seguir em frente
na luta pelos ideais. Estes, então, ligados ao reconhecimento das diferenças entre os gêneros
como fator principal para o respeito à igualdade de vozes discursivas entre homens e
mulheres.
20
Para concluir, lançamos um olhar reflexivo sobre a importância do contínuo estudo a
respeito do posicionamento feminino na sociedade ao longo dos tempos. Essa necessidade se
impõe e busca manter viva a idéia de se dedicar espaço considerável dentro das discussões
literárias para o tema relacionado à trajetória de conquistas e de criação de uma identidade
feminina social e literária que acompanhe e represente a evolução social ocorrida ao longo
dos tempos em decorrência da crescente contribuição ativa da mulher na sociedade.
A seguir, damos início ao nosso trabalho com o capítulo que nos abre as portas para as
reflexões a respeito das questões de gênero e representatividade social, espaço em que se
encontra o embasamento teórico para a proposta de trabalho de nossa pesquisa.
21
1. MULHERES NA LITERATURA: O SER E O ESTAR
As discussões acerca do papel da mulher na sociedade são bastante instigadoras,
principalmente diante dos fatos históricos que permeiam toda a formação da civilização
humana. Os diversos tipos de representações femininas que fazem parte da hisria nos levam
a reconhecer um ciclo de importância dos papéis sociais de macho e de mea, dentro dos
espaços de dominação e das estruturas de poder.
Neste primeiro capítulo, buscamos contextualizar o papel da mulher no espaço social
da burguesia aristocrática, de modo a reconhecer a diversidade da condição feminina em
diferentes momentos sociais de nossa história e cultura, focalizando suas principais conquistas
e transformações comportamentais. Em seguida, tratamos de algumas das principais escritas
teóricas relacionadas aos estudos de gênero e crítica feminista, em que nos deparamos com as
questões relacionadas à representação da mulher e seu papel social, e o estudo da autoria de
mulheres, quando finalmente revela-se a voz feminina na literatura e crítica literária.
No entanto, a partir do reconhecimento da existência de fatos que colaborem para a
presença atuante da mulher na sociedade, deixamos as questões de autoria feminina para um
outro momento oportuno de análise e estudos, que esta não é a questão de maior
importância para o desenvolvimento deste nosso estudo analítico.
Entre meados do século XIX e ao longo de todo o século XX, tem havido diversas e
constantes discussões acerca da importância e da necessidade de se atribuir novamente um
papel de destaque para a figura da mulher na sociedade, sem que esta seja tão somente
relegada à função que lhe fora imposta pelo conservadorismo patriarcal, de objeto doméstico.
Diante disso, uma das formas encontradas para tratar dessa questão sobre a relevância
histórica da mulher na sociedade e, acima de tudo, para reivindicar um olhar mais atento para
22
sua ajuda na formação das estruturas sociais seja de que forma for é que surgem os
estudos focalizados na questão do gênero e suas fuões.
Os estudos de gênero, tomados por discussões que permeiam teorias chamadas
feministas, tratam da abertura e influência das mulheres em esferas denominadas “públicas”,
que até então eram espaço exclusivo ao homem, e mostram para a sociedade a importância
dos papéis assumidos pela mulher na política, na economia, na cultura e na educação.
A questão do gênero, em todas as esferas acima citadas, trata primordialmente da
desmitificação do papel de inferioridade atribuído à mulher. Conforme Pires (2003):
Desde a cultura greco-romana, a condição feminina é representada como passiva e
inferior, tomando como parâmetro o padrão anamico, fisiológico e psicológico
masculino. Toda a carga histórica de valores e comportamentos diferenciados e
discriminatórios entre homens e mulheres fundou o que se convencionou chamar
relações de gênero, constituídas e perpetuadas social e economicamente e
determinadas pela cultura e pela história. (p.207)
O objetivo é resgatar as formas de representação da mulher e, conjuntamente, trabalhar
a construção de uma identidade feminina ao longo da história.
1.1. A Mulher em busca de uma definição própria
Desde as últimas décadas do século XVIII, período em que a mulher havia sido
decididamente confinada ao espaço doméstico, algumas poucas e iniciais movimentações
que despertam interesse a respeito do papel da mulher e sua influência na estrutura familiar e,
por conseqüência, social. Sobre as condições de vida e as conseguintes transformações
ocorridas diante da organização social que entremeia o período do final do século XVIII e
início do século XIX, a autora Sandra Guardini Vasconcelos afirma — na sétima lição sobre o
romance inglês, em seu livro Dez lições sobre o romance inglês do século XVIII (2002) – que:
23
Viajantes como o francês Béat de Mulrat consideravam a sociedade inglesa do final do
século anterior [século XVIII] pouco refinada, descreviam Londres como uma cidade
onde os homens se entregavam aos vícios e demonstravam um comportamento
grosseiro e brutal e se espantavam com a reclusão e o abandono em que viviam as
mulheres inglesas, cujas qualidades e possibilidades eram aniquiladas por suas
condições de existência e pela vontade dos homens. A organização da vida social
dividia os sexos, obrigava as mulheres a uma situação de dependência, as privava de
educação e as condenava à indiferença masculina e a um cotidiano aborrecido e vazio.
(p.105)
Contudo, algumas das mulheres dessa época não estavam mais dispostas a viver em
reclusão nos espaços domésticos e sob os domínios de seus pais e maridos, mas ainda sim,
muitas delas viviam à margem dos acontecimentos relacionados ao espaço público, ou alheio
aos domínios do lar. Somente poucas mulheres desse período começam a unir forças e passam
a lutar por uma causa própria: a retomada de uma função social da mulher e a busca por sua
integração completa e real à noção de cidadania noção dada como pertinente e exclusiva do
homem nesse período.
Uma das maiores transformações sociais ocorridas à época e que colaborou de maneira
direta e enfática para essa disposição da mulher em romper com tradições a tanto enraizadas e
dominadoras foi a ascensão da burguesia. Sobre isso, a autora acima citada afirma ainda:
A ascensão da burguesia, no entanto, provocando uma profunda transformação na vida
inglesa, trouxe não apenas prosperidade mas permitiu importantes mudanças nos
costumes e na vida cotidiana de homens e mulheres, cujo melhoramento passa a ser
visível nas ruas e nas casas e no refinamento do gosto e das maneiras. Para isso
contribuíram em larga medida os esforços de periódicos como o Spectator,
empenhados em reformar os costumes e defender novas tarefas e papéis para as
mulheres (...) (p.105).
Após estas primeiras manifestações de questionamento sobre a condição feminina, e
ao longo de todo o século XIX, a defesa dos direitos da mulher assume uma expressão mais
organizada e o discurso reivindicatório expande suas metas, buscando por uma extensão dos
direitos políticos também para as mulheres. Como exemplo de expansão dessas manifestações
da época pode-se citar o texto Vindication of the rights of woman (1792), de Mary
24
Wollstonecraft: texto enviado pela autora à assembléia da revolução francesa como
documento complementar ao que se votava ser os direitos “do homem e do cidadão”, a fim de
demonstrar o interesse e a necessidade de uma melhor acolhida à figura pública e socialmente
ativa da mulher. Este texto foi conhecido no Brasil com o seguinte título: “Direito das
mulheres e injustiças dos homens”, em 1832, por Nísia Floresta; sendo que a este se considera
uma “versão livre” do original, por conter idéias outras, diferentes e além observadas das
descritas no original.
Contudo, nosso intuito não é apresentar e/ou tratar das diversidades de tradução para o
texto de Wollstonecraft, mas elucidar o fato de que a esse momento político-social vivenciado
ao longo do século XIX, somam-se, ainda, às lutas das mulheres, outros movimentos político-
sociais, que corroboram para as constantes transformações sócio-econômicas e político-
culturais da época, tais como as lutas sociais decorrentes da revolução industrial, e que uniram
suas forças para conquistar espo e atenção pública.
Essa primeira grande manifestação do feminismo dura até as primeiras três décadas do
culo XX, e por toda sua caminhada almeja a condição de igualdade humana: igualdade no
trato e nos direitos e deveres entre homens e mulheres: ideal este pautado na questão do
humano universal. Além disso, essa luta enfatiza a necessidade do reconhecimento da
maternidade como uma contribuão social específica da mulher, e de importância ímpar para
a consolidação da estrutura familiar.
a segunda metade do século XX (mais especificamente nas décadas de 60, 70 e 80)
as movimentações feministas foram marcadas pela retomada das lutas das mulheres por
reconhecimento e representatividade paralisada ao longo da Primeira Guerra Mundial. No
entanto, neste novo período de lutas e transformações, as bases que questionavam as
estruturas político-sociais da época passaram à liderança de mulheres mais bem instruídas:
25
mulheres que viveram em um período de maior abertura e progresso educacional, e que
tomaram consciência da distância que as separava da autonomia individual.
Em meio a esse novo momento de abertura do pensamento humano surgem os
discursos voltados para o reconhecimento e defesa do sujeito feminino, e para a construção de
uma identidade própria deste, que busca consolidar uma trajetória da história das mulheres a
partir de uma revisão de sua condição de ser social.
A autora e crítica francesa Simone de Beauvoir em seu livro O segundo sexo,
publicado em 1949, trata do conflito existente entre os limites que são estabelecidos para a
liberdade e a autonomia das mulheres. Nesta obra, há ainda a discussão a respeito dos
elementos que contribuem para a formação de uma representação da feminilidade, o que
caracterizaria a condição de alteridade feminina. Sobre isso, a autora afirma que:
O homem esquece soberbamente que sua anatomia também comporta hormônios e
testículos. Encara o corpo da mulher sobrecarregado por tudo o que o especifica: um
obstáculo, uma prisão. (...) A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao
homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O
homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro. (BEAUVOIR, 1960, p.10)
O feminismo existencialista de Simone de Beauvoir apresenta, sobretudo, um estudo a
respeito da opressão da mulher, delineado pela constatação de sua condição biológica, ou seja,
apresenta o fato de que a mulher sofre determinadas limitações físicas e mesmo espaciais em
alguns momentos, como é o caso ao dar à luz. Essas limitações não permitiriam que ela se
afirmasse diante da natureza como um ser capaz de enfrentar todo e qualquer percurso e
obstáculo de sobrevivência. Daí o fato de a mulher ter o papel do “outro”: o outro do ser
masculino, ou aquele “contra quem os sujeitos masculinos se afirmam” (ZOLIN, 2003,
p.167/168).
Além de Simone de Beauvoir, autoras de diversos países, tais como Virginia Wolf,
Kate Millet, Betty Friedman, Elaine Showalter, entre outras, colaboraram para as constantes
26
discussões e o divulgamento de textos que apresentavam à sociedade uma nova visão sobre o
comportamento humano e as mudanças voltadas à questão do gênero feminino. Esse processo
buscou afirmar uma voz discursiva feminina que permitisse a construção e a constituição de
uma identidade do novo sujeito feminino que emergia, e (re)afirmasse a necessidade, cada vez
mais pulsante, em se considerar a reformulação de ideais e costumes que permeavam o espaço
tão limitado atribuído à mulher.
Dessa comunhão entre as vozes surgidas nos textos literários e críticos produzidos a
partir de então é que nascem os estudos dedicados ao pensamento feminino. O encontro
dessas mulheres bem instruídas e focadas no objetivo de consagrar uma nova posição do ser
feminino social assume o encargo de apresentar ao público leitor uma visão crítica e literária
diferenciada, que viria a constituir parte do que temos conhecido como crítica literária
feminista. Essa nova visão opõe-se à condição da mulher representada discursivamente como
um reflexo da visão conservadora e discriminatória que engendra formas de silenciamento e
exclusão (PIRES, 2003, p.202).
Com as discussões acaloradas acerca dos aspectos que delineariam a criação de uma
identidade feminina, o movimento que se unira para discutir as relações interpessoais e
interssociais da mulher acabou se dissipando, devido ao surgimento de novas manifestações
de caráter fanático de luta pela igualdade de poder a todo custo.
Nesse período, por volta da década de 80, o que se viu foi a formação de grupos
radicais feministas que, na luta pelos direitos iguais, acabaram por transformar a figura da
mulher moderna em uma figura com características masculinas. Conforme afirma Darlene J.
Saddlier, em seu artigo Os debates sobre a mulher/gênero na teoria e crítica literária
feminista nos Estados Unidos”(1996), nos anos de 70 e 80 o feminismo floresceu sob a luz de
um novo conceito de posição social, onde há uma divisão de opiniões e interesses quanto ao
ideal feminista: há uma feminista que se revolta contra a marginalização das mulheres e exige
27
acesso a posições que requerem conhecimento e poder a mulher como sujeito; e um
feminismo que não mais trata da idéia de a mulher ser vista como sujeito social, mas antes,
ataca “as chamadas quantidades privilegiadas falocêntricas”, ou subverte a noção do sujeito
(mulher) para apoiar a idéia de marginalidade, de diferença.
Como conseqüência desse radicalismo novas manifestações anti-feminismo surgiram,
e um conseguinte período de rivalização entre os grupos foi suficiente para demonstrar o quão
frágil ainda eram as políticas de institucionalização de um quadro de igualdade para a questão
dos direitos das mulheres.
Apesar das intensas e constantes discussões a respeito da condição feminina na
sociedade, o que notamos é a real busca pela definição de uma teoria feminista capaz de
abordar novas perspectivas a respeito do que se conceitua como gênero.
1.2. Feminismo: os espaços delimitadores
Desde a origem dos tempos, a presença da mulher tem funcionado como uma “peça-
chave” para a organização e o equilíbrio do corpo social (COELHO, 2000). Foi a partir do
domínio das leis patriarcalistas (pelas quais o homem tem o poder de comando), que as
mulheres foram confinadas ao ambiente doméstico sem qualquer direito à esfera pública de
relacionamentos.
A nascente burguesia que se instaurava neste período delimitou uma completa
separação dos espaços ocupados por homens e mulheres: os homens, em busca de dinheiro e
bens materiais, ficaram responsáveis pela esfera pública espaço das relações políticas e
econômicas e as mulheres, por conseqüência, ficaram responsáveis, ilusoriamente, pelo
ambiente doméstico que também era reconhecido como espaço privado.
28
Diz-se ilusória essa condição de poder domésticoda mulher porque, mesmo nesse
espaço, o homem detém o direito de comando.
Moreira (1998, p.18), em sua leitura do artigo “Autor+a”, de Norma Telles, ressalta
que com essa delimitação dos espaços, exigida pela formação da família burguesa, surge
“uma atmosfera propícia para a elaboração de princípios filosóficos que limitavam, cada vez
mais, o raio de circulação da mulher.
E sobre a definição da natureza da mulher burguesa e a delimitação de seu espo
artístico, Norma Telles aponta que:
(...) a mulher, quando maternal e dedicada, [é definida] como força do bem – o anjo do
lar. Mas ela é também a potência do mal, quando sai de sua esfera privada ouusurpa’
atividades que não lheo culturalmente atribuídas. Torna-se então um monstro:
bruxa, malvada, devoradora, decaída, ou tudo isto a um só tempo. Esse discurso, que
naturalizou o feminino, colocou-o além e aqm da cultura. Seguindo esse rastro, a
tradição estética definiu o dom da criação artística como essencialmente masculino.
Tal qual o Deus-Pai, que criou e nomeou, o artista é progenitor e procriador de seu
texto – um patriarca estético. (TELLES, 1992, p. 50)
Diante dessa delimitação dos espaços pertencentes aos homens e mulheres, deparamo-
nos com um discurso segregacionista, que define o papel da mulher exclusivamente como
esposa, mãe e dona-de-casa.
Contudo, ao longo do século XIX, essa realidade da mulher confinada ao lar e
inteiramente submissa ao domínio do homem sofre suas primeiras transformações. As
relações sociais modificam-se, nesse período, e uma nova realidade econômica traz à tona a
necessidade de que muitas mulheres pertencentes à classe social mais pobre busquem trabalho
fora do espaço doméstico.
Em conjunto às turbulências econômicas surgidas com o advento da burguesia, houve
a necessidade de que muitas mulheres, principalmente as muito pobres, abandonadas por seus
maridos e viúvas, buscassem empregos remunerados para que pudessem melhorar as
condições de vida de suas famílias.
29
Em condões extremas de necessidade, essas mulheres desfavorecidas passaram a
exercer funções de baixa remuneração, e mesmo fora de casa suas primeiras colocações no
trabalho assalariado ainda pertenciam ao espaço doméstico, pois muitas das funções
atribuídas a elas eram as de empregadas domésticas, lavadeiras, costureiras, cozinheiras.
Somente com o passar do tempo e a expansão das fábricas, devido à Revolução Industrial, é
que outras funções foram surgindo e mulheres, dentro de uma economia industrial nascente,
tiveram a oportunidade de ocupar, em maior escala, cargos em fábricas e indústrias.
Apesar de disputarem espaço no ambiente blico e vagas de trabalho com os homens,
essas mulheres trabalhadoras estavam sempre sujeitas à discriminação do sexo e relegadas à
remuneração muito diferente e bastante inferior à masculina.
Mulheres de classe média e com certa instrução também ocuparam algumas posições
de trabalho. Estas passaram a lecionar para crianças em residências de famílias mais
abastadas; ou exerciam funções de governanta, tutora, acompanhante. A necessidade
econômica obrigou a sociedade machista patriarcal a permitir a entrada da mulher no mercado
de trabalho e revelasse um novo olhar sobre os domínios de espaço até então marcados
incisivamente pelos homens. Mesmo que algumas dessas novas funções femininas não
fugissem, em sua grande maioria, ao espaço doméstico de outros lares.
que se ressaltar ainda o grande preconceito atribuído a essas mulheres que se
expunham ao trabalho, mesmo que por necessidade.
Contudo, algumas mulheres desse período, inconformadas com a situação de
prisioneiras do lar, dão início à luta contra a repressão e partem em busca de seus direitos:
direito à educação, à liberdade de ação, de ir e vir, de manter um contato direto e aberto com a
realidade do espaço que se convencionou chamar “domínio público”, dentro da sociedade que
as cercava.
30
Diante das primeiras manifestações por liberdade e igualdade surgidas a partir da
Revolução Francesa, as ativistas do nascente feminismo encontraram um espaço para
reivindicações e discussões sobre os direitos e deveres da mulher. Nesse primeiro momento,
um exemplo de mulher ativista é Marie Olympe Gouges, autora da Declaração dos direitos
da mulher e da cidadã” (1791), cujas diretrizes defendem a liberdade de expressão e os
direitos político, econômico e civil das mulheres. Com sua primeira manifestação pública
sobre as reivindicações femininas, surge a oportunidade para que outras manifestações na
Europa Ocidental e na América apareçam.
Ativistas aliadas às essas mesmas lutas em outros países ampliam suas reivindicações
por melhores condições de vida e lutam ainda por uma maior representação da mulher
também na vida política: nascem as lutas a favor do sufrágio e também pelo direito à
propriedade, conquistas estas que permitiriam certa igualdade de decisão e poder entre
homens e mulheres. Ao longo de todo seu período de formação e atividade, o movimento
feminista destacou-se pelas difíceis conquistas tanto no domínio público, como no privado
porque demonstrou grande poder de embate contra as estruturas estabelecidas na Era
Vitoriana, em que o papel da mulher era preterido ao do homem, e com isso, constantemente
discriminado.
Muitas das mulheres inglesas que sofreram com a discriminação são aquelas
pertencentes à classe mais pobre porque, apesar da submissão institucionalizada à época, elas
não podiam ficar restringidas ao espaço doméstico, pois por necessidade e sobrevivência
precisavam trabalhar fora. Diante disso, vemos que a oposição feita ao modelo familiar
burguês foi impelida por dois motivos: os valores ideológicos e a necessidade de
sobrevivência. (ZOLIN, 2003)
Com a agitação promovida pelo feminismo crescente em finais do século XIX e suas
primeiras conquistas nesse período finissecular, a opinião pública sensibilizou-se com as
31
necessidades de mudança nos modelos sociais, principalmente no tocante a questão do direito
ao voto nas eleições políticas.
As discussões sobre a igualdade de direitos políticos tiveram início no ano de 1919,
gerando uma conquista nunca antes imaginada, pois o fato de a opinião pública considerar a
discussão como possível nos revela um momento ápice de transformação no pensamento da
época. Contudo, somente muitos anos após essa primeira reivindicação, nas décadas de 60 e
70 do século XX, é que o tema sobre a igualdade de direitos políticos entre homens e
mulheres foi retomado. A partir de então, surgiram as primeiras conquistas definitivas do
espaço da mulher na esfera pública, relacionadas à política.
Neste mesmo período entre séculos, muitas dessas mulheres fizeram da escrita sua
profissão e escreveram romances de importância. Porém, pela falta de credibilidade, muitas
delas precisaram adotar pseudônimos masculinos para que pudessem publicar suas histórias,
já que a profissão de escritor era apenas atribuída aos homens. Sob a assinatura de George
Sand, Amandine Aurore Lucile Dupin publicou Valentine (1832); também George Eliot, ou
Mary Ann Evans publicou The Mill on the Floss (1860) e Middlemarch (1872); ou mesmo as
irmãs Brontë, que no início assinaram como irmãos Brontë, publicaram textos de notório
reconhecimento por seu grande valor literário.
Com esse importante passo também dentro do território literário, as mulheres
estabeleceram-se para sempre em um terreno até então atribuído unicamente ao domínio
masculino e deram início a uma tradição literária de autoria feminina.
1.3. A representação, a autoria e a crítica feminista
Dentro de uma tradição literária androcêntrica, vista como base de toda a cultura que
compõe nossa civilizão, a emergência de uma literatura voltada para a representação do ser
32
feminino e das ânsias deste, permite que a presença da mulher no meio social tenha uma
grande repercussão diante do sistema até então estabelecido com bases fincadas na ideologia
do patriarcado.
A presença da mulher traz à luz o “ser diferente”, uma nova visão sobre os aspectos
que culminam na construção das representações gerais de papéis institucionais os quais eram
tidos como padrão de organização e equilíbrio do sistema social.
O surgimento de textos relacionados à presença da mulher e suas necessidades nos
remete ao reconhecimento de manifestações que expressam o conflito vivenciado por elas
desde a origem dos tempos históricos, e que reportam aos tros e aspectos da crise de valores
que se dá até hoje quando se trata de sua representação na sociedade.
Conforme Nelly N. Coelho (2000), a literatura de autoria feminina, ao longo do século
XX, assume um papel de grande valor por apresentar a extraordinária evolução sofrida pela
mulher diante de sua própria consciência de ser, tanto em relação ao mundo quanto a ela
própria. O reconhecimento de sua função única no mundo, agora vista não pela perspectiva de
uma posição inferior, como lhe era imposta antes, é que permite às mulheres uma perspectiva
de realidade mais ampla das instituões sociais e culturais, dando abertura à luta contra a
discriminação, o segregacionismo pelo sexo.
Dessa forma, podemos observar, hoje, as diferentes visões que épocas distintas têm no
que concerne à presença da mulher na sociedade; e também podemos reconhecer, diante
disso, traços característicos da imagem criada por autores e autoras em momentos tão
significativos dessa evolução vivenciada pela representação feminina, principalmente na
literatura.
Como exemplo das diferentes representações femininas, idealizadas sob a ótica de um
autor e uma autora, este trabalho apresenta uma leitura analítica sobre as figuras femininas
centrais de dois romances escritos em momentos diferentes desse panorama que nos apresenta
33
a evolução da presença do feminino em âmbito social: o primeiro deles, Carmilla (1872), foi
escrito pelo autor irlandês Joseph Sheridan Le Fanu, e apresenta as perspectivas apreendidas
por um homem, diante das transformações ocorridas no período e no que trata do
comportamento da mulher no final do século XIX. O segundo romance, Sabella (1980),
escrito pela autora inglesa Tanith Lee, apresenta-nos as perspectivas de uma mulher na
segunda metade do século XX; período de conseqüentes transformações e revoluções, não
no mundo feminino, mas também em toda a organização cultural que nos remete ainda às
discussões do pós-moderno.
Com o advento do fenômeno literário denominado literatura de autoria feminina, cuja
base está nas diversas formas de representação feminina, reconhecidas e delimitadas pela
própria perspectiva da mulher diante dos fatos sócio-culturais que a cercam, surgiu a
necessidade da construção de uma base crítica especializada capaz de absorver as modernas
manifestações literárias ligadas à cultura e ao domínio do feminino e que atendesse às
exigências para o reconhecimento dessas transformações.
Para tanto, essa crítica não poderia se reduzir ao confronto entre “literatura feminina”
e “literatura masculina”, ou mesmo ao julgamento de que uma delas seja superior à outra. Mas
antes, essa crítica atraída pela produção literária da mulher deve preocupar-se em descobrir o
que é essa literatura, como ela se constrói e por quais caminhos ela trilha, além de procurar
entender de que maneira essa escrita pode marcar a presença da mulher em seu tempo
histórico e cultural (COELHO, 2000).
Na década de 1960, em meio a diversas novas questões ligadas à condição da mulher
na sociedade, o pensamento feminista desenvolve-se de modo amplo e decisivo, passando a
atuar em novas áreas de estudo tais como a sociologia, a psicanálise, a antropologia e também
na literatura e crítica literária (ZOLIN, 2003). A partir daí, a evolução desses estudos acerca
34
do domínio feminino acarretou novas perspectivas sobre os temas ligados ao comportamento
humano e estes passaram a conjugar o processo histórico-literário.
Com o desenrolar dos estudos críticos feministas surgiram diversas teorias que se
propuseram a delimitar metodologias e ideologias para abarcar a escrita feminina. De fato, o
que ocorreu foi o surgimento de estudos com bases teóricas diferenciadas que apresentaram
múltiplas perspectivas sobre o texto literário feminino, gerando um período de acirrados
debates entre teóricos da Europa e dos Estados Unidos, em busca de uma definição sobre o
posicionamento da Crítica Feminista diante de todas aquelas novas teorias surgidas
(SHOWALTER, 1994).
Dentre as diversas linhas teóricas, temos a teoria existencialista de Simone de
Beauvoir; a teoria política do patriarcado, de Kate Millet; o feminismo psicanalítico de
Hélene Cixous, Julia Kristeva e Luce Irigaray. Todos esses estudos trilharam o caminho para
muitas e diversas discussões sobre a condição da Crítica Literária Feminista. Porém, diante do
pluralismo teórico que inicialmente tomou conta dos estudos feministas, tornou-se “inegável
no quadro da reflexão teórica das ciências sociais e humanas a evidência de uma progressiva e
sistemática desconfiança em relação a qualquer discurso totalizante e a certo tipo de
monopólio cultural dos valores e instituições ocidentais modernas” (HOLLANDA, 1994).
A crítica literária feminista passa a assumir uma posição política na medida em que
apresenta uma nova literatura que busca desconstruir as posições discriminatórias que estão
ao redor das questões de gênero. Esta crítica abre espaço para o contexto em que o foco das
discussões e debates seja o espaço da mulher na sociedade, suas conquistas, transformações e
conseqüências. Para Pires (2003),
Embora saibamos que a luta das mulheres em busca de mudanças na sua posição
social tenha provocado a mais significativa revolução cultural do século XX, a
contradição existente entre a posição alcançada por elas na sociedade contemporânea e
sua respectiva representação, faz-se presente em quase todas as áreas sociais como um
35
reflexo das relações de gênero, relações de desigualdade entre os seres humanos,
construídas socialmente, e determinadas histórica e culturalmente. (p.202)
A crítica literária feminista busca o rompimento do ideal sacralizado pela literatura
canônica, em que o papel da mulher é sempre secundário, a fim de apresentar uma nova visão
de mundo, cuja condição secundária seja substituída por uma posição de igual importância e
responsabilidade.
Assim, esse volume de textos e discussões teóricas sobre a questão da mulher e sua
representatividade levou, por fim, a dois pólos divisores dos estudos e da produção teórica
feminista, que privilegiam campos epistemológicos diferentes, a saber: uma linha anglo-
americana, interessada nas questões políticas e pragmáticas que envolvem a representação
feminina, e a linha francesa que se volta aos estudos de uma possível subjetividade feminina e
suas leituras da psique principalmente voltadas à s-modernidade.
A linha trica anglo-americana emprenha-se em uma leitura de caráter identitário,
que busca denunciar o domínio da ideologia patriarcal sobre a crítica tradicional e o cânone
literário, apontando questionamentos sobre o que é considerado literário dentro dessa
produção e sobre os paradigmas que determinam os critérios estéticos e interpretativos dessa
crítica tradicional. Essa corrente teórica também visa a um trabalho de resgate das obras de
autoria feminina, historicamente excluídas da tradão literária, para a constituição de uma
tradição literária feminina, am de aprofundar estudos na produção literária feminina
contemporânea, com o intuito de demonstrar o espo literário como um espaço privilegiado
para a socialização da mulher.
Uma importante teórica nessa linha de pesquisa é Kate Millet. Em sua obra intitulada
Sexual Politics (1970), a autora trata de uma visão não só literária, mas também política sobre
a questão da representação da mulher e recupera o olhar sobre a posição de destaque atribuída
a esta figura em romances de autoria masculina com o objetivo de “educar”. Além disso, a
36
autora trata das relações com a escrita de autoras e críticas literárias. Toda sua análise pauta-
se nas discussões sobre o conceito do patriarcado, em que as leis estão envoltas ao poder
delegado à figura masculina do pai: o homem é a maior autoridade, e as pessoas que não se
identificam fisicamente com ele (isto é, que não são adultos do sexo masculino) são
subordinadas a ele, prestando-lhe obediência.
Millet oe-se aos estudos que acatam o papel submisso e subjugado das figuras
femininas e afirma, em acordo com Simone de Beauvoir, que a opressão se a partir do
consentimento do ser oprimido, pois os papéis femininos dessas condições estão de tal forma
culturalmente enraizados, que passam a ser perpetuados não pelos homens como também
pelas próprias mulheres. Diante disso, ela chama de política sexual a necessidade que se
instaura, no âmbito social, de uma representação dessa imposição do homem sobre a mulher
de uma política de força e repressão.
As marcas da repressão e do domínio masculino afetam também a literatura, na
medida em que suas narrativas — em grande parte de autoria masculina – ressaltam os modos
e atitudes masculinos como que sendo estas escritas direta e exclusivamente direcionadas aos
leitores do sexo masculino. Por meio dessas constatações Millet nos aponta, em suas análises
sobre o cânone literário “masculino”, a crítica quanto ao domínio da cultura patriarcal.
Outra teórica de destaque nessa linha crítica é Elaine Showalter, que se destaca nas
pesquisas anglo-americanas, com estudos voltados às questões de uma recuperação da
identidade feminina e, segundo Hollanda (1994), “desenvolve mesmo a idéia de uma cultura
feminina enquanto uma experiência coletiva no interior da cultura Latu sensu e que
promoveria uma ligação entre as mulheres para além dos limites do tempo e do espaço ’”
(p.12)
Segundo Lúcia Osana Zolin (2003), a linha de estudos norte-americana sistematiza
dois tipos de crítica: uma voltada para a mulher como leitora, denominada “Crítica Feminista”
37
e que se dedica à análise dos estereótipos a que o condicionadas as representações
femininas na literatura canônica, à análise do sexismo subjacente à crítica literária tradicional,
e à análise da pouca representatividade da mulher na história literária; e uma crítica voltada
para as escritoras, a “Ginocrítica”, cujos modelos teóricos, pautados na experiência da própria
escritora como mulher, resulta em um discurso especializado e reconhecido por meio do
estudo de suas obras.
Zolin aponta que a Ginocrítica faz um estudo da história, do estilo, dos gêneros e da
estrutura dos textos de autoria feminina, da psicodinâmica da criatividade feminina, da
trajetória da carreira literária feminina e da evolução e das leis da tradição literária feminina.
(p. 172-173)
Além de Elaine Showalter, outras críticas feministas seguiram essa corrente teórica
que trata da constituição de uma identidade feminina, salientando sua representação na
formação de uma tradição literária feminina, tais como Patrícia Meyer Spacks (The Female
Imagination, 1975), Sandra Gilbert e Susan Gubar (The Madwoman in the Attic, 1979), Ellen
Moers (Literary Women, 1976), Nina Bayam ( Woman’s fiction, 1978), entre outras.
Segundo Showalter (1994, p.30), em meio às mudanças ocorridas na crítica literária
feminista, uma das primeiras teóricas que notaram a mudança da crítica feminista para uma
nova vertente preocupada com a escrita da mulher ginocrítica, de Showalter foi Patrícia
Meyer Spacks. Spacks, ao chamar a atenção de toda a academia para o fato de que quase não
havia estudos teóricos sobre a escrita feminina, lançou uma nova era na história e na crítica
feminista dedicada essencialmente a essa questão da escritura feminina e sua expressão
criativa.
Quanto à vertente teórica francesa, esta trata do feminismo vinculado à psicanálise e a
leituras pós-modernas das teorias de Lacan. Seu pressuposto é o de que as diferenças sexuais
o construídas a partir da união entre o psicológico do ser e o contexto social que o submete.
38
Os debates que seguem essa linha teórica “tratam da sexualidade da mulher, da
construção da diferença sexual, e, mais especificamente, das relações da mulher com a
linguagem e com a escrita” (CLARKE, 1998). Dessa forma, ao tomarem a psicanálise como
uma teoria capaz de explicar as origens e a formação dos gêneros, as estudiosas francesas, em
geral, seguiram em busca de um caminho para a identificação da opressão da mulher, por
meio da exploração do inconsciente e do reconhecimento da construção de um sujeito
feminino.
Como o embasamento teórico deste trabalho o está focado nas leituras da vertente
francesa sobre as discussões do feminismo na literatura, lançamos olhar rápido sobre algumas
das descrições encontradas a respeito dos questionamentos e problematizações analisadas por
algumas autoras dessa vertente.
Seguindo o pensamento pós-estruturalista de Derrida e de Lacan, as feministas
francesas trabalham com base em dois conceitos: différance (conceito desenvolvido por
Derrida, cuja proposta é a da desconstrução da gica binária) e o imaginário de Lacan
(conceito que trata das relações do ser em uma fase conhecida como “fase edipiana”, ou a pré-
simbólica), para delimitar o espaço de busca e definição de uma écriture féminine, ou seja, a
busca do reconhecimento de uma suposta escritura singular feminina.
A francesa Luce Irigary desenvolveu um estudo sobre as relações existentes entre a
sexualidade e a textualidade do autor e, dessa forma, transformou a escrita em um importante
espaço para discussões sobre a noção de feminino como o lugar do silêncio, da falta, ou da
“errância” (HOLLANDA, 1994).
Igualmente importante, temos a autora Julia Kristeva. Seus estudos unem a
psicanálise, literatura e lingüística, e aludem à questão da linguagem e sua definição diante
das regras que dominam o nosso código social. Segundo Kristeva, a base ideológica e
filosófica da lingüística moderna é um tanto quanto autoritária e opressiva porque, ao
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apresentar-nos estruturas monolíticas e monogênias, reprime, em um discurso comum, o
estado de instabilidade que representa fonte de criatividade e do sofrimento próprio do
indivíduo. Assim, Kristeva nos oferece uma teoria do sujeito em processo e que nos permite
(...) uma investigação da escritura da mulher a partir de uma perspectiva anti-
essencialista e anti-humanista. Se aplicarmos esta teoria à questão do nero e da
diferença sexual, temos, então, uma visão feminista duma sociedade dentro da qual o
sujeito humano seria livre de exprimir-se, além e fora das oposições binárias como
eu/outro, sujeito/ objetos, homem/mulher, que são apenas manifestações de códigos
sociais restritos que reprimem a poesia e a criatividade. (CLARKE, 1998)
Além dessas escritoras, outra importante autora e crítica literária é Hélène Cixous. Seu
estudo parte do pressuposto da “solidariedade do logocentrismo ao falocentrismo”, em que a
autora define a oposição homem/ mulher como peça fundamental à história da cultura
ocidental e que, portanto, aparece subjacente a todos os tipos de oposição que aludem o
inferior ao feminismo e o superior ao masculino. Em seu artigo “O sorriso da Medusa”
(1988), Cixous afirma que a ‘não-racionalidade’ atribuída à mulher precisa ser policiada pelas
leis patriarcalistas, sobre pena de ocasionar a desconstrução dos valores falocêntricos, capazes
de promover sua liberação.
Para Cixous, a “escritura feminina”, que subverte o domínio falocêntrico e das leis do
patriarcado, não se deve a uma condição biológica feminina, mas à sua condição psicológica,
contudo, ainda uma possibilidade de que os homens possam eventualmente produzi-las. O
que Cixous considera como uma escrita feminina é antes a escrita subversiva que a mulher
tem em mente, pois a escrita que está marcada pela opressão é “claramente masculina”
(ZOLIN, 2003).
No entanto, umas das autoras de maior expoente é Simone de Beauvoir uma das
pioneiras no campo da crítica feminista. Com seu livro intitulado O segundo sexo,
mencionado anteriormente neste trabalho, a autora lança mão de novas idéias que surgiram
40
em uma espécie de resposta à teoria marxista da época, “que, segundo ela, não explicou o
sexismo a contento” (ZOLIN, 2003).
Por uma ótica existencialista, Beauvoir propõe um estudo sobre a opressão vivida
pelas mulheres, justificando essa situação com base no conceito da predisposição a que cada
ser humano está (pré-)destinado. Segundo Martinez e Sousa (2001), o que Beauvoir nos
oferece é uma teoria sobre a mulher e a cultura em um contexto de pessoa (homem) e escolha,
delineando uma posição singular da mulher e do homem na cultura.
A situação da mulher na sociedade provém de sua condição primeira de mulher e mãe,
pois o seu destino de mulher choca-se com a vocação de ser humano à medida que impede a
mulher de afirmar-se diante da natureza como o fez o homem. A mulher, impossibilitada de
ausentar-se da casa para a caça ou para a realização de trabalhos mais pesados, se sujeita às
condições de vida que lhe são oferecidas pelo homem, e por isso diz-se uma condição de
imanência (seu destino de mulher prevalece).
Em contrapartida, o homem não encontra obstáculos para a sua realização vocacional
de macho e ser humano e, afirmando-se na natureza como o ser forte e capaz de matar, ele
passa a uma condição de transcendência (sua vocação de ser humano prevalece).
Assim sendo, predisposição do ser humano a uma determinada escolha devido às
circunstâncias de vida e de sobrevivência: a mulher, por sua própria condição biológica, é
reprimida e vive à luz da passividade; a ela o mundo nega as condições normais de
humanidade e frustra seu projeto humano de auto-afirmação e auto-criação. Em condição
oposta surge a presença masculina, uma presença forte, de imposição, carregada de marcas
próprias e de dominação. Aos homens, corresponde o encargo de “remodelar a face da Terra,
impondo-lhe sua marca” (ZOLIN, 2003, p.168).
Assim, a mulher passa a submeter-se à condição de “outro” do masculino, ou aquele a
quem os homens se reafirmam. Conforme Martinez e Souza (2001), “a mulher assumiu a
41
condição de outro exigida dela pela cultura e falha ao afirmar a si mesma como uma pessoa
livre e autônoma”.
Contudo, Beauvoir questiona essa submissão da mulher e acaba sugerindo algumas
formas de livrá-las dessa opressão imposta pela sociedade patriarcal. Primeiramente, a autora
invoca o pressuposto sobre a liberdade do ser humano e, partindo do princípio de Sartre de
que o ser humano pode enganar-se a si próprio, fingindo-se preso, uma condição para que haja
a opressão é a aceitação da parte oprimida. Beauvoir nos mostra que os meios colaboram para
que a mulher sinta-se fraca e incapaz, entregando-se a essa condição de oprimida. Assim, a
mulher torna-se cúmplice de sua condição social.
Simone de Beauvoir propõe, então, uma reviravolta dessa condição feminina,
instigando as mulheres a reverterem essa situação de dominadas e oprimidas para uma
situação de opressoras, assumindo o mesmo papel do homem na sociedade. Trata-se da luta
pela igualdade e semelhança de todos os seres humanos, o que constitui o ponto fundamental
do feminismo existencialista de Beauvoir.
Diante do exposto, concluímos que a necessidade latente de uma delimitação dos
espaços de gênero implica discussões amplas e significativas para a formação de uma
identidade feminina dentro das representações sociais. As diversas leituras possíveis para o
comportamento humano frente as transformações vividas ao longo dos séculos permite-nos
vislumbrar o reconhecimento das necessárias diferenças entre os gêneros, sendo estas
importantes peças de construção de uma sociedade mais igualitária e equilibrada.
Assim, as discussões sobre as formas de representação do feminino no meio social, o
trabalho de autoria com a voz feminina muito silenciada e a crítica de reconhecimento
dessas manifestações particulares, permitem à sociedade discutir e clarificar novos ideais e
novas formas de pensamento, capazes de enaltecer a convivência entre a pluralidade de vozes
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e a necessidade de regras sociais, estabelecendo um parâmetro do que parece estar presente,
ou ser a presença da mulher na literatura.
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2. VAMPIRO(A) NA LITERATURA
Ao pensarmos sobre os símbolos e significados que compõem a mitologia do vampiro,
temos, em primeiro plano, características de personalidade que lidam com os desejos e os
sentimentos mais íntimos e desconhecidos do próprio ser humano. Algumas das
características singulares que se destacam nas descrições de um “ser vampiro” são: a
valorização da individualidade, a liberdade de ação, a experimentação dos sentidos (de novos
sentidos), e o tributo à imortalidade e à beleza, pois que o vampiro busca manter-se jovem e
belo por toda a eternidade; sua busca está na quebra das barreiras do tempo, sem que estas lhe
imponham fragilidade e submissão.
Diante das muitas leituras possíveis sobre esse mito, as principais e mais recorrentes
formas de associação entre o mito e uma realidade social estão no fato de que aquele permite
ao ser humano transcender valores sociais e pensamentos estagnados.
Vale lembrar que o mito do vampiro, por seu grande apelo emocional, durante muito
tempo na cultura eslava serviu apenas para que as pessoas soubessem como lidar com alguns
dos processos naturais do próprio ser humano, tais como a morte, ou mesmo o nascimento de
crianças. Somente com o passar do tempo e as transformações ocasionadas pelas influências
da cultura ocidental é que o mito do vampiro passou a abranger novos processos de
identificação humana relacionados a posse e dominão.
De acordo com a acepção do substantivo, vampiro é um ser sobrenatural que “vive”
sua morte-vida vagando por entre os homens a fim de sugar o sangue das pessoas. Ainda que
simples, esta é realmente a definição mais (re)conhecida por todos desde os primórdios desse
mito.
A definição dos dicionários mostra-nos os vampiros como um cadáver reavivado que
levanta do mulo para sugar o sangue dos vivos e dessa forma conservar sua aparência de
44
juventude, força e vitalidade. Essa definição é bem representada pelos principais personagens
literários que encarnam essa figura mitológica, como o caso de Drácula, de Bram Stocker, ou
mesmo Carmilla, personagem-título do romance de Joseph Sheridan Le Fanu; ou ainda Lestat
de Lioncourt, de Anne Rice e Sabella, de Tanith Lee; além do pavoroso Nosferatu,
personagem cinematográfico de F. W. Murnau. Estes são alguns dos exemplos mais
importantes para a história da literatura gótica de horror.
Em Melton (1995), vemos a seguinte descrição sobre o que é um vampiro:
O vampiro é um tipo peculiar de morto retornado, uma pessoa morta que retorna à
vida para uma continuada forma de existência bebendo o sangue dos vivos. No
pensamento popular, o vampiro é considerado um “morto-vivo”, tendo completado a
vida terrena, mas ainda ligado a essa vida e ainda não-recebido no reino dos mortos.
(p.796)
Muito embora o que vejamos nas descrões sobre vampiro seja a figura de um ser
morto que volta à vida, diversas histórias folclóricas tratam dos vampiros como espíritos
demoníacos desencarnados, a exemplo do que se nota na mitologia indígena, ou ainda nos
lamiai da Grécia. ainda a possibilidade de uma descrição literária moderna, em que os
vampiros possam aparecer como um espécie de vida inteligente, relacionada à vida extra-
terrena, ou mesmo como fruto de uma mutação genética, o que nos mostra a infinidade de
releituras para o mito ao longo dos tempos, desde as histórias folclóricas ancestrais, até os
dias atuais.
Para tratarmos do mito do vampiro em nosso trabalho, dentre todas as lendas e
histórias que se conhece ao redor do mundo, escolhemos a dinâmica oferecida pelo Leste
Europeu, que consiste em apresentar o vampiro como um ser sobrenatural, cujas atitudes estão
intimamente relacionadas às situações de medo e dominação. A lenda do vampiro relacionada
às políticas de dominação dos povos dessa região oferece à leitura que nos propomos a fazer,
diante das descrições de situações em que o sujeito se vê oprimido, uma melhor adaptação dos
45
conceitos que lidam com o embate entre modelos sociais estagnados e modelos sociais novos
e modernos. Como no caso do texto de Joseph S. Le Fanu, Carmilla, em que o sentimento de
medo se dá diante da intimidação do feminino pelo masculino.
Conforme Torrigo (2002, p. 21) discorre sobre as origens do vampiro, “não lugar
mais associado ao vampiro que o Leste Europeu”, pois mesmo convivendo com diferentes
religiosidades todos os povos daquela região, compartilharam ao longo dos tempos de uma
mesma mitologia e de centenas de casos de vampirismo. Toda a região dos Montes Cárpatos
propiciava uma mescla de culturas e folclore devido ao fato de unir todos os povos vizinhos
que conseguiam atravessar a região, conhecida como zona de perigo constante por suas matas
fechadas e de difícil acesso.
Os povos carpatianos tinham uma grande mitologia ligada ao vampiro e, por isso, são
diversas as crenças que o caracterizam: um vampiro pode ser um criminoso que assombra o
local de sua morte, atacando as pessoas que estão ao seu redor; também pode ser uma criança
nascida num bado e que morre sem batismo; ou, ainda, um lobisomem que após sua morte
passa a vampiro; talvez o vampiro seja a alma de alguém que retorna em busca de sangue e
que poderia atacar um parente, ou não.
Entre as diversas características atribuídas aos vampiros está a capacidade de andar à
luz do dia — adquirida por um vampiro após os trinta anos, sem que então este seja
descoberto a partir daí, ele passa a ter uma “vida humana”. também a crença da
destruição do vampiro por uma estaca de madeira (a chamada “via tradicional”), pelo fogo ou
ainda por lobos, além daquelas relacionadas à simbologia cristã, que lidam com a imagem da
cruz e banhos de água benta.
Em suma, o vampiro é um ser sobrenatural que vive da vida dos outros e, por isso, é
um ser dependente de suas vítimas. Esse fato explica as várias estratégias utilizadas para
dominar: seja pela sedução, seja pela força física o vampiro atrai e é atraído, e estabelece com
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sua vítima uma relação de dependência que os liga eternamente. Eternamente, ou até o
momento em que a vítima também passa à condição de vampiro, e daí em diante é ela que
estabelecerá esse vínculo de dependência, porém com outros seres vivos.
Contudo, essa é tão somente uma das muitas definições/explicações para o fenômeno
“vampiro”, visto que o mito existe no contextocio-cultural de praticamente todas as
civilizações do mundo. Além disso, a representação do mito passa, ao longo dos tempos, por
releituras que o transformam e o atualizam diante das necessidades da representação social
que ele pode figurativizar, incluindo a dominação do indivíduo por aquilo que o aflige.
Uma das releituras freqüentes para a figura do vampiro na sociedade, no caso uma
apresentação desta figura na sociedade pós-moderna, é a do vampiro como um ser em busca
de sua identidade própria e do seu lugar como indivíduo dentro da sociedade em que vive.
Esse ser sobrenatural não mais se importa em amedrontar e tomar o poder daqueles ao
seu redor, mas busca respostas para os questionamentos do que diante de si e de tudo ao
seu redor: agora, o vampiro se reconhece como um ser imortal e imutável, “alguém” de corpo
jovem, forte e eterno, porém sem espírito pois não possui alma própria e que sobrevive à
custa da energia sugada de outrem. Ele é um ser à deriva sob um mar de dúvidas, sendo a
mais importante delas relacionada à busca ao significado de sua condição de morto-vivo e de
conseqüente marginalização social.
Diante disso, deparamo-nos com a principal característica compartilhada por todas as
diferentes entidades vampíricas ao longo dos tempos, que é a sua necessidade constante de
“sangue”, ou ainda “energia vital”. De modo tradicional, o que vemos no mito do vampiro é a
necessidade que este tem de consumir o sangue de suas vítimas, para que possa manter sua
morte-vida por toda a eternidade. Contudo, muitas das representações do mito na literatura
apresentam-nos uma nova condição de dependência não mais baseada somente na questão
física, mas, principalmente, na dependência psicológica.
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Vampiros nascidos por volta do século XIX estão envoltos às tradições do ocultismo
amplamente divulgadas por autores românticos, que mostravam exatamente essa questão da
perda de energia psíquica como sendo peça-chave dos relacionamentos entre os vampiros e
suas vítimas. Bram Stocker, com seu Drácula, descreve esse tipo de relacionamento entre o
personagem, Conde Drácula, e suas vítimas, apresentando-nos a idéia de que o sangue não
seja tão somente uma fonte física de alimento, mas, além disso, seja portador da força vital
que move o ser humano, e por isso a necessidade de consumi-lo para manter-se vivo.
Esse fato justifica ainda a idéia que surgiu para a manutenção do relacionamento
simbiótico que há entre outras personagens vampiro desse período, tal como a condessa
Carmilla, de J. S. Le Fanu. Em seu texto, a vampira muitas vezes alimenta-se de outros seres-
vivos para manutenção de sua condição de “morta-viva”, contudo também usa de sua relação
de dependência tua e troca de fluídos para dominar suas “escolhidas”, roubando-lhes a
inocência e relegando-as a viver conjuntamente a ela a experiência de um relacionamento de
dependência psíquica, afetiva e sexual.
Melton (1995) apresenta-nos, ainda, a idéia de que a metáfora do psiquismo vampírico
pode ser facilmente estendida a vários outros tipos de relacionamentos que retratem formas de
dominação e tomada de elementos que sejam fundamentais à vida. Exemplos podem ser
vistos em relacionamentos amorosos doentios tomados por excesso de ciúme ou medo de
perda, ou ainda em situações de governança, em que autoridades “minam a força dos povos
que dominam” (p.xxxvi).
Apesar de as primeiras figuras conhecidas de vampiro serem representadas por
personagens masculinos, tais como o Conde Drácula de Stoker e o vampiro cinematográfico
(como citado anteriormente o exemplo de Nosferatu), ou ainda o vampiro de John Polidori,
diversos estudos folclóricos, históricos e literários apontam a primeira representação da figura
do vampiro para uma mulher: Lilith.
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Lilith é uma figura mitológica conhecida como um demônio feminino da noite e que
teve sua origem na antiga Mesopotâmia. O mito de Lilith era associado ao vento e, por isso,
as pessoas atribuíam a ela todos os mal-estares, doenças e mortes. Lilith figura, ainda, como
um demônio da noite nas escrituras hebraicas. A ela também se refere a Cabala, descrevendo-
a como a primeira mulher do personagem bíblico Adão. Na mitologia da Cabala, Lilith é
acusada de ser a serpente que levou Eva a comer o fruto proibido.
Conforme leitura de Eduardo A. Duarte sobre Lilith, em seu artigo “A mãe obscura ou
o diabo de saias no cordel Nordestino”(1997), apoiando-se no texto de Barbara B. Koltuv,
explica-se as diversas imagens usadas por Lilith como disfarce, tais como a própria serpente:
“com seus disfarces e ornamentos mágicos, Lilith é associada às bruxas e a toda mulher
impura, devassa ou, simplesmente estrangeira, ligando-se ainda às figuras da coruja, do cão
do asno e, como não poderia deixar de ser, da serpente.”(p.95)
A apresentação de Lilith pelo folclore popular hebreu medieval é aquela em que ela é
descrita como a primeira esposa de Adão. Segundo esse folclore, ela foi a esposa que
abandonou Adão, partindo do Jardim do Éden por causa de uma disputa de poder sexual entre
eles, e após esse episódio ela tornar-se-ia a mãe dos demônios. Sobre esses fatos, ainda no
texto acima mencionado, de Duarte (1997), encontramos a seguinte descrição:
Deus criou Lilith, a primeira mulher, do mesmo modo que havia criado Adão, que
usou sujeira e sedimento impuro em vez de ou terra. Adão e Lilith nunca
encontraram a paz juntos. Ela discordava dele em muitos assuntos e recusava-se a
deitar debaixo dele na relação sexual, fundamentando sua reivindicação de igualdade
no fato de que ambos haviam sido criados da terra. Quando percebeu que Adão a
subjugaria, proferiu o nome inefável de Deus e pôs-se a voar pelo mundo. Finalmente,
passou a viver numa caverna no deserto, às margens do Mar Vermelho. Ali, envolveu-
se numa desenfreada promiscuidade, unindo-se aos demônios lascivos e gerando,
diariamente, centenas de Lilith ou bebês demoníacos. (p.94)
Também no texto de Rosane Volpatto (2008), a autora discorre sobre a origem e os
símbolos relacionados ao mito de Lilith, descritos acima. Além, o texto Lilith (2007), e na
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enciclopédia dos vampiros de Melton (1995) — já citada e sempre presente em nosso texto
trata de algumas das interpretações da criação humana no livro do Gênesis: no Antigo
Testamento, Lilith, ao saber que havia sido criada por Deus da mesma matéria-prima que
Adão, rebelou-se e recusou-se a ficar em posição de submissão, principalmente durante as
relações sexuais. Foi a partir dessa explicação que, na modernidade, popularizou-se a noção
de que Lilith fora a primeira mulher a rebelar-se contra o sistema patriarcal.
Além do mito de Lilith, em produções literárias, muito antes da divulgação do
vampiro como uma figura de sexo masculino, textos poéticos apresentavam o personagem
vampiro como sendo uma mulher (uma vampira). Por exemplo: os textos Braut von Korinth
(1774), de Johann W. Goethe; Christabel (1816), de Samuel Taylor Coleridge, e o próprio
texto analisado neste trabalho Carmilla (1872), de Joseph Sheridan Le Fanu. Todos eles são
textos cujos temas estão focalizados nas atitudes e ações da mulher representadas pela figura
de uma vampira. São textos que apresentam não só a mulher em posição de dominação, mas
também sua luta pela libertação das amarras sociais e culturais, que a mantinha em constante
estado de repressão.
Somente com o surgimento e domínio dos ideais patriarcalistas é que o gênero
masculino passa a exemplo único de poder e força; neste momento surgiram também
personagens masculinos estampados sob o mito do vampiro, e que foram divulgados por meio
da literatura, visto este ser um campo dedicado quase que exclusivamente ao espaço
masculino, de escrita e representação, durante muito tempo e de modo enfático ao longo dos
culos XVIII e XIX.
Foi ao longo do período do século XIX que os vários escritores românticos, tomados
por certa influência ocultista, trataram do vampirismo como uma perda de força psíquica da
vítima para o vampiro, e então se estabeleceu um relacionamento de dependência que pouco
tinha a ver com a troca de sangue em si: o que o vampiro desse período procura não é
50
necessariamente o sangue da vítima, mas a energia pquica ou “força vital” que se acreditava
ser levada por ele, e desse modo, os escritores traziam à tona as discussões a respeito dos
relacionamentos de poder.
Essa metáfora para o psiquismo humano pode ser facilmente percebida em vários
outros relacionamentos humanos e sociais sempre que houver a dominação de elementos
essenciais à vida de uma pessoa, por outra. Assim, diz-se de uma relação vampírica, quando,
por exemplo, há exploração de uma pessoa por outra, ou mesmo quando instituições ou
governos sugam a força dos povos dominados.
Durante todo o século XIX, os escritores românticos se propuseram a explorar o lado
obscuro da mente humana e, dessa forma, o vampiro na literatura interagiu com a sociedade
humana de muitas maneiras, pois se tornou o foco da atenção dos escritores, principalmente
na França e na Inglaterra. Os escritores transformaram o vampiro folclórico da Europa
Oriental (o vampiro nessa região era figura constante em algumas das lendas rurais) em vilão
ocidental, selecionando os atributos aceitáveis à sociedade em questão.
Não por acaso a figura do vampiro surge neste momento de transição da sociedade
entre os culos XVIII e XIX, como elemento representativo de domínio e transformação,
pois este é um grande período de transformações, tanto na economia, quanto no
comportamento social da época. Trata-se de um importante período de transição entre a era
Iluminista e a Romântica, que permite a retomada de algumas crendices populares como
forma de resgate de uma sensibilidade humana que havia sido posta de lado ao longo de toda
era iluminista e que trata principalmente da questão mística e dos sentimentos humanos.
O pensamento iluminista retratou uma época conhecida por “época da Luz” ou
“período da Razão”, em que todas as formas de pensamentos estavam voltadas às
comprovações cienficas de fatos e acontecimentos. Foi um grande momento para os estudos
científicos, principalmente aqueles voltados para a medicina. O ser humano buscava, por
51
meio das teorias materialistas, afastar-se das salvações religiosas e dessa maneira retomar o
poder sobre si e sobre suas idéias e vontades. Daí o fato de as idéias racionalistas serem a base
do Iluminismo, e virem à tona para contrapor as antigas idéias religiosas dominantes. Seus
ideais político-filosóficos foram os impulsionadores do capitalismo e da sociedade moderna
que se formou ao longo de todo o século XIX, chamada burguesia.
Assim, conforme Claude Lecouteux (2005), a figura mítica do vampiro (re)aparece
como um vínculo às crenças antigas.
(...) Sob as invectivas da Razão, a religião recuou e sua concepção da vida e da morte
volta a ser posta em causa. A ciência é o novo dogma que deve explicar as
engrenagens do mundo e livra-lo doamontoado de superstições’. Entretanto, os
homens continuam a comungar nas antigas crenças... (...) Essas noções que os
racionalistas atacam não desaparecem porque estruturam o pensamento, veiculam uma
mensagem de esperança, consolação e justiça, em suma desempenham importante
papel no seio da sociedade. A negação da transcendência foi, de fato, substituída pela
‘religião da humanidade’, pela ‘utopia de um futuro radioso’ próprio das doutrinas
materialistas. (p. 158)
Autores como John Polidori, Samuel Taylor Coleridge, Alexei Tolstói, Alexandre
Dumas, Théophile Gautier, J. S. Le Fanu e Bram Stoker, que viveram este contexto cio-
cultural de transição entre séculos, cuja economia capitalista domina e a sociedade burguesa
ascende contrapondo-se às antigas estruturas feudais até então implantadas
transformaram-se em importantes pilares do desenvolvimento do mito do vampiro em todo o
Ocidente; bem como abriram espaço para um novo estilo literário que abrange a nova
identificação e reconhecimento do ser humano em sua realidade repleta de inovações
psicológicas, morais, sentimentais e intelectuais.
Diante disso, temos, então, o vampiro não mais apenas como uma lenda do antigo
Oriente, onde o misticismo e as crendices dominavam, mas agora como um modelo para a
narrativa de terror, em que representa o isolamento do homem. Antes, o vampiro fazia parte
somente do folclore rural e funcionava como um alerta aos perigos existentes fora das vilas
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campestres. Depois, ao povoar o imaginário dos escritores do século XIX, o vampiro passou a
símbolo da opressão, pois ele também se mostra vítima de uma força maior (sobrenatural),
que o domina.
Sua condição de “ser sobrenaturalfaz do vampiro a própria vítima do poder, que
para manter-se vivo ele precisa sugar a força vital” de outros seres vivos. Esse
relacionamento de dependência o condiciona a dispersar esse estado sobrenatural de morto-
vivo, e dessa maneira haverá sempre um outro alguém que para sobreviver precisará
inquestionavelmente dominar o outro. A condição de vida simbiótica representada pelo
vampiro é que nos faz compreender melhor a necessidade de manutenção de poder daqueles
que o tem, pois representa a ânsia pela dominão e o prazer da conquista mútua.
no século XX, a representação do vampiro alia-se aos novos questionamentos do ser
humano sobre questões de identidade e passa a lidar com as ânsias do indivíduo que busca o
reconhecimento diante de si e do contexto em que vive. A figura do vampiro moderno
representa não a condição de ser oprimido e marginalizado socialmente, mas passa a tratar
também das discussões sobre a necessidade do ser humano em libertar-se de tudo aquilo que o
prende às suas ânsias internas; além de representar ainda o inconformismo diante da falta de
respeito no convívio com as diferenças.
O vampiro moderno torna-se agressivo porque o aceita sua própria condição de vida
e se revolta diante da consciência de suas limitações e de suas fraquezas, sentindo-se por
vezes marginalizado diante de uma sociedade que o oprime pelas diferenças. Não mais como
o vampiro antigo, relegado ao instinto animal, o vampiro agora é muitas vezes apresentado
como ser tomado de emoções e consciente das diferenças que o cerca. Assim, ele se apresenta
como um ser forte, belo e amoral, que concede a si mesmo o poder de tomar aquilo que o
compromete ou ameaça e mata para se alimentar e se defender, embora muitas vezes sinta
remorso por sua atitude selvagem.
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Em muitas das descrições dos vampiros modernos, a relação de dependência entre os
seres não está relacionada somente a posse física e psicológica do outro, pois o vampiro não
es preocupado em dominar o outro para manter sua juventude e vitalidade. O vampiro
moderno alimenta-se do sangue, pura e simplesmente porque esta é sua necessidade de
sobrevivência; para esse vampiro o que importa é compreender sua própria condição de
“subvida”. Melton (1995) ainda afirma com relação a isso que
Para os entusiastas, o vampiro de hoje simboliza elementos importantes de suas vidas
que eles sentem estar sendo reprimidos ou ignorados pela cultura. O papel mais óbvio
colocado no vampiro contemporâneo tem sido o do erudito rebelde, um líder
simbólico advogando padrões alternativos de vida numa cultura que exige
conformidade. (p. xxxix)
Na verdade, essa é uma descrição que não modifica muito a idéia da
representatividade do mito do vampiro na literatura como símbolo de situações de
aprisionamento interno e busca por liberdade pessoal.
Com as várias releituras do mito ao longo dos tempos, surgem também as
oportunidades de uso deste para as narrativas do mito do vampiro cinematográfico e musical.
Nesse caso, em muitas das representações dramáticas, o vampiro deixa de ter apenas a
imagem obscura e mórbida como a que fora difundida ao longo de suas aparições literárias —
segundo influências da literatura gótica e romântica e passa a apresentar, em suas novas
aparições (cinematográficas e afins) um toque de sentimento humano, capaz de aumentar a
identificação do telespectador com a personagem, mesmo quando este aparece em situações
de vilão.
Dentro dessa característica assumida pelo personagem, em atribuir ao mito alguns
sentimentos humanos, estão em destaque as expressões relacionadas ao erotismo e à
sensualidade. Em muitas das encenações, tanto teatrais quanto cinematográficas, a mordida do
vampiro sugere ao expectador um momento de grande intimidade e entrega. Muitas vezes,
54
esse gesto simboliza algo como a própria relação sexual, o momento de “penetração” do
vampiro em sua vítima, quando então a possui por completo. Este momento singular entre o
vampiro e sua vítima descreve sensações de intenso prazer para ambos: para o vampiro, o
prazer da conquista e da retomada de sua vida, e para a vítima, o prazer misto entre
sentimentos e sentidos, muitas vezes descrito como o próprio orgasmo sexual.
Para ilustramos alguns exemplos de produções artísticas voltadas à contemplação do
mito do vampiro e suas releituras em diferentes momentos sociais, citaremos alguns título dos
quais perpassam e representam as diferentes eras de envolvimento do público leitor, e ou
telespectador, com o mito. Melton, em seu livro intitulado Livro dos Vampiros: a
enciclopédia dos Mortos-Vivos (1995) faz ampla referência sobre as produções literárias,
cinematogficas, teatrais e musicais que lidam com o tema. É desta completa fonte de
informões variadas que tiramos muitas das referências sobre a influência do mito do
vampiro na arte, tais como as que se seguem, quanto às produções mais (re)conhecidas e
antigas sobre o mito.
que se considerar, neste momento, algumas citações de trabalhos cinematográficos
sobre o tema vampiro, pois a moderna imagem desse mito, atuante na fantasia do leitor e
telespectador atual, nasce no cinema. Desse modo, torna-se este, o mito do vampiro, em um
mito sempre revisitado e adaptado para a realidade dos tempos em que se insere.
Dos muitos vampiros literários, o personagem vampiro que fora e ainda é mais vezes
representado no cinema, sem dúvida é o conde Drácula. Os primeiros filmes baseados no livro
de Bram Stocker, segundo Melton (1995) são: uma produção russa, de 1920 e uma húngara,
de 1921. Porém, não sobreviveram cópias dessas produções primitivas (p. 880/881).
Com o passar dos anos, após essas tais primeiras produções primitivas, surgiu uma
nova representação do mito do vampiro no cinema: Drácula (1931), um vampiro à luz da
interpretação do ator Bela Lugosi, produzido pela Universal Pictures, que acabara de comprar
55
os direitos sobre a obra. Na década de 50, a produtora Hammer Films em negociões com a
Universal Pictures adquiriu os direitos para produções com a obra de Bram Stocker depois e
então fez com que os filmes de vampiro retornassem ao mercado cinematográfico (MELTON,
1995, p.353/354).
A partir de então, foram produzidos vários filmes focalizados na personagem vampiro,
interpretados durante muito tempo pelo mesmo ator que criou os trejeitos mais conhecidos da
personagem.
As primeiras apresentações do vampiro de Bela Lugosi foram feitas em peças teatrais,
contudo, sua aparição no cinema permitiu ao personagem vampiro transformar-se popular
mais amplo. No entanto, foi o ator Christopher Lee o responsável por transformar a imagem
do vampiro em ícone e ganhar um reconhecimento mundial. Com sua interpretação também
nos filmes, a imagem do conde Drácula tornou-se ainda mais pública, muito embora bastante
diversa daquela interpretação apresentada originalmente no romance.
Dos tantos filmes produzidos sobre o mito, citamos alguns poucos, tais como a versão
americana Dracula (1931), quarta tentativa de produzir o filme sobre o personagem e a
primeira versão sonora, inspirado em uma peça da Broadway que transformou Bela Lugosi
em um astro de cinema; Horror of Dracula (1958) produção da Hammer Films, refilmagem
do original feito no Reino Unido com o nome Dracula, com o papel do conde vampiro
interpretado por Christopher Lee; além da versão mais popularizada pela mídia, que recebeu
três prêmios Oscar, Bram Stocker’s Dracula (1992), de Francis Ford Coppola.
muitas outras versões filmadas sobre essa personagem ao redor do mundo; no
entanto, não somente vampiros homens são representados no cinema. Algumas versões
apresentam como foco personagens femininas do mito, sendo várias delas representadas
também como personagens lésbicas. É o caso, por exemplo, de Dracula’s Daughter (1936)
produzido pela Universal Pictures; Blood is my Heritage (1957), cuja personagem adolescente
56
ataca suas colegas em um internato; Lust of the Vampire (1957) baseado em fatos que contam
sobre a vida da Condessa Bathory, conhecida por sanguinária, que mantinha sua juventude
banhando-se em sangue de mulheres virgens.
Para citar exemplos de filmes que tomam por base a história da personagem Carmilla
de J. S. Le Fanu citamos: o filme de Roger Vadin Blood and Roses (1960); e a trilogia que
destaca o cKarnestein: Vampire Lovers (1970), Lust for a Vampire (1971) e Twins of Evil
(1971). Segundo Melton (1995, p.779), essa trilogia somente é considerada lésbica por
apresentar parâmetros bastante liberais para a época
Outros filmes mais recentes sobre o mito que poderiam ser citados são: Interview with
the Vampire: The Vampire Chronicles (1994), que apresenta o vampiro Lestat de Anne Rice;
The Queen of Damned (2002), que é baseado também no livro homônimo de Anne Rice, e
que faz parte ainda de sua série denominada The Vampire Chronicles; a trilogia Blade (1998),
Blade II (2000) e Blade Trinity (2004). Posteriormente, a trilogia Blade originou um seriado
de televisão, no ano de 2006; e os filmes Underworld (2003) e sua continuação Underworld:
Evolution (2006), que tratam da guerra entre clãs de vampiros e de lobisomens.
Além dos títulos acima, que se lembrar ainda alguns seriados da televisão que
tratam especificamente do personagem vampiro e que permitem um convívio diário do
telespectador com o mito. São eles: Buffy, the Vampire Slayer, seriado norte-americano
produzido entre 1997 e 2003, e que traz como personagem central uma jovem adolescente
bastante ativa, uma personagem que luta contra a força dos vampiros e representa a força
jovial; Angel, seriado também norte-americano produzido entre 1999 e 2004, tem história
parecida com a de Buffy, contudo, o personagem Angel é um vampiro que luta contra o mal
em busca de redenção própria; e a mais atual série na televisão, Moonlight, que está em
exibição nos dias atuais, também é uma produção norte-americana e conta a história de um
vampiro detetive, que fora trasnformado em vampiro por sua noiva no dia do casamento e ao
57
separar-se dela passa a viver em meio aos humanos e tratando de casos investigativos, os
quais misturam-se a seus pensamentros.
De fato, os títulos citados acima como exemplos de produção cinematográfica e
televisiva são bastante reduzidos quanto a quantidade de produções sobre o tema do vampiro,
sendo apenas os mais conhecidos. Muitas outras produções foram lançadas, devido ao fato de
o mito permitir representações diferentes e sempre atuais.
A diversidade proporcionada pelo mito influenciou também a produção de histórias
em quadrinhos, desenhos animados, sicas, novelas e peças teatrais. A identificação do
público é tamanha que permite às diversas e modernas leituras do mito em uma tentativa ideal
de aproximar cada vez mais as simbologias do mito ao ser humano.
Apesar das caractesticas primárias dominadas pela obscuridade e a sensação de
medo e pavor, percebemos que ao longo dos tempos a representação social do mito permite ao
ser humano um melhor trato com suas frustrações, além da liberação dos sentimentos
reprimidos e o questionamento sobre os comportamentos institucionalizados que colaboram
para o descontentamento ou insatisfação do eu próprio.
2.1. DE VAMPIRO(A) À VAMP
Como vimos acima, a imagem da mulher vampira surge antes mesmo da própria
versão masculina do mito, em um momento cujo interesse é apresentar a personagem
feminina como um ser ameaçador e pavoroso, capaz de enfraquecer o homem por meio da
sexualidade. A mulher sob a perspectiva de uma personagem vampira passa a carregar em si o
estigma de mulher monstruosa, indigna e perversa, porque seduz e faz com que o homem
exemplo de dignidade e segurança — seja corrompido pelos seus próprios instintos.
58
Dentro do contexto em que surge a figura do vampiro, tanto na literatura quanto no
cinema e afins, há uma enfática recorrência de descrições comportamentais relacionadas à
sexualidade: imagens que lidam com a exposição de partes do corpo, com cenas em que a
sensualidade e o poder estão intimamente ligados à presença e às atitudes do vampiro,
principalmente porque envolve toda uma atmosfera de dominação. As idéias que remetem à
figura desse mito sempre nos trazem à mente situações exóticas e de contexto liberal, diversas
das ações cotidianas e que também se referem a imagens fantasiosas e, portanto, ricas em
simbologias.
O mito do vampiro, portanto, também nos abre uma grande perspectiva com relação à
representatividade feminina, que nas diversas representações da mulher como vampira,
encontramos descrições de personagens exóticas, com grande apelo sexual, fortes e livres. As
personagens das mulheres vampiras são bastante diferentes das representações femininas
habituais, visto que, em geral e por muito tempo, as descrições femininas estiveram
relacionadas diretamente às imagens institucionalizadas da mulher protetora, angelical e
submissa.
As personagens vampiras são mulheres que lidam diretamente com os desafios, são
irresistíveis aos olhos de cobiça masculina, e mostram-se donas de uma força física muito
acima de qualquer expectativa; sua característica de mulher sedutora transforma-a em
dominadora, sendo que pode até mesmo ser perversa e cruel, chegando ao ápice de seu poder
com a destruição do homem e sua masculinidade, por meio da morte.
As primeiras e mais destacadas ocorrências da descrição de uma personagem feminina
como vampira aparecem no início da era romântica, na literatura do período vitoriano
período em que surgem as vampiras literárias apresentadas como damas de uma sociedade
falida e cujo poder sobrenatural colabora para que possam ludibriar aqueles que estão ao seu
redor. Todas essas damas, vampiras vitorianas, são mulheres capazes de manifestar sua força
59
de dominação também em uma força de destruição de outros seres inclusive e
principalmente o homem para que possam proteger a si mesmas contra possíveis
repressões e exclusão social.
Das primeiras imagens de mulher perversa e destruidora é que nasce o medo da
liberação social da mulher. Essas imagens representam o medo do sistema patriarcal em
perder a estrutura familiar que sustentava a formação da sociedade burguesa. A mulher ideal é
aquela que deveria preocupar-se apenas com a criação de seus filhos e a manutenção da
família, para que o homem demonstrasse ter o poder em mãos; exatamente o oposto do que é
descrito nas personagens vampiras, que, por isso mesmo, passam a ser descritas como figuras
monstruosas.
Dessa imagem da mulher voluptuosa e dominadora nasce o estereótipo de mulher
cujas premissas são as de que sejam atraentes, misteriosas, perversas e cruéis: a vamp. Muitas
das figuras femininas rebeldes que surgem na literatura são reconhecidas como vamps.
A palavra vamp deriva do vocábulo inglês vampire e traz em seu significado essa
conotação de mulher sexy, sedutora, porém cruel, e que se utiliza de seu poder de atração
sexual sobre os homens, em geral, para capturá-los e dominá-los; contudo, em algumas de
suas aparições essa mesma mulher vamp surge como sedutora, mas com dominação sobre
outras mulheres. Há, nesta sua busca pelo poder, uma necessidade em saciar-se por completo,
uma necessidade primeira de dominação e, por isso, várias das situações em que aparece com
poder sob seu controle, a destruição do homem ou sua essência masculina passa a
condição necessária de sua imposição de poder.
As primeiras vamps são mulheres que tomam o poder para si e fazem de tudo para
mantê-lo em mãos, por isso suas descrições como seres monstruosos acabam por representar,
aos olhos do homem, os perigos. As mulheres com domínio sobre posições de poder são
apresentadas como seres sobrenaturais e perversos porque retomam a idéia de que são
60
emocionalmente despreparadas para a vida pública, e portanto impossibilitadas de mantê-las e
praticá-las.
A essa visão sobre o domínio falho do poder nas mãos das mulheres é que são
atribuídas as discussões sobre a eficácia e coerência do poder de domínio público nas mãos
delas, que o discurso primeiro da voz patriarcal justifica-se no fato de que as mulheres não
o preparadas para as vicissitudes do poder. Assim, essa falta de controle no poder foi o que
permitiu por tanto tempo manter a mulher à margem do meio público.
Sobre as visões históricas de reconhecimento da origem do termo, vemos que para
Claude Lecouteux (1999), o termo vamp moderno origina-se da personagem de mulher
vampira que encontramos em Carmilla, de J. Sheridan Le Fanu, e também com as
personagens Lucy, em Drácula de Bram Stoker e Clarimonde em A morta amorosa de
Theophile Gautier. Segundo Lecouteux (1999), “as mulheres vampiro são sedutoras
irresistíveis e morrer sob seus beijos é um prazer” (p.30).
Para Melton (1995), a vamp é uma figura estereotipada que se originou como uma
extensão do mito do vampiro, mas com analogia ao relacionamento masculino/feminino. A
imagem da mulher vamp funciona como uma projeção de temores, objetivos e atitudes
masculinas diante do mundo. A partir dessas imagens surgiram interpretações tanto
psicológicas quanto feministas sobre o mito do vampiro que acabaram enfatizando um tom de
machismo na lenda do vampiro, que as personagens femininas, com suas descrições
sensuais, passam a representações da fúria contra o ser masculino e da destruição da imagem
até então inatingível do poder exercido pelos homens.
A primeira imagem da mulher vamp nos mostra, como assinalado por Melton (1995),
uma mulher misteriosa, obscura e imoral, tomada por forte apelo à sexualidade e que se torna
capaz de dominar os homens da era vitoriana, fazendo-os escravos de sua própria energia
sexual até então restrita às regras culturais da sociedade da época. Dessa forma, essas
61
mulheres conquistavam o poder para si por meio de suas habilidades sexuais, destruindo
gradativamente a imagem de foa e poder dos homens que seduziam.
A figurativização dessa mulher vamp se dá com a representação de uma mulher
vestida sob roupas escuras, apertadas, decotadas e algumas vezes decoradas com figuras de
cobras e aranhas; roupas bastante provocantes, por revelarem nas formas o objeto de desejo
masculino. Essa vamp convencional tem cabelos escuros e unhas longas em ponta fina, usam
maquiagem contrastante que evidencia palidez e ressalta olhos e boca; além disso, muitas
delas aparecem fumando em longas e charmosas piteiras, demonstrando modos refinados que
sugeriam ser elas mulheres estrangeiras. O elemento estrangeiro aparece, portanto, como
representativo dos modos que corrompem.
Ao longo dos tempos a personalidade da mulher vamp mostrou-se consistente e
interessante para as representações de dominação feminina, principalmente no que concerne a
tomada de dinheiro e poder. Como bem sabemos, a representação da mulher tanto na
literatura como no cinema está ligada à clássica dicotomia entre a casta e a pecadora e, nesse
caso, a representação da mulher vamp nos a perfeita construção da imagem da pecadora-
sedutora: aquela mulher de natureza transgressiva, que corrompe os homens por meio de sua
sexualidade e em cuja personalidade aflora a mentira, a traição, a ganância, o poder de
destruição e o desejo sexual.
Contudo, nada disso ocorre pura e simplesmente para que a figura da mulher liberte
seu lado mais agressivo, ou mais erótico e dominador, ou mesmo para que ela possa apenas
apresentar ao mundo esse seu lado mais forte e instintivo. As representações femininas sob
esse aspecto também expressam a ânsia pela busca por liberdade de vida, de atos e ações, de
decisões. É sob a imagem de pecadora-sedutora que primeiro a figura feminina nos mostra
sua vitalidade, sua necessidade de uma vida completa, com direito a todos os sentidos e
sentimentos expostos, sem que seja obrigada a viver e demonstrar fragilidade ou fraqueza.
62
Diante dessa necessidade em expor modos e comportamentos mais fortalecidos para a
função social da mulher é que notamos, por meio das descrições de personagens femininas,
uma grande evolução na representação da mulher sob a figura do vampiro: esta passa de mera
descrição sob as inventivas do mito, à imagem de mulher com características próprias, fortes e
que se convencionou chamar vamp: mulher de opiniões e ações próprias, com poder sobre si e
sobre o outro, e que trata de seus modos como únicos e necessários para tomada de poder.
Desde suas primeiras aparições como ser sobrenatural movido por instintos, até suas
representações modernas com poder de persuasão psicológico-emocional, a personagem vamp
mudou seu foco de conquistas para que pudesse afirmar uma posição sólida de
representatividade feminina. Os modos de representação selvagem, domado por forças
desconhecidas que a leva a matar para proteger-se e alimentar-se, sendo próprio do
comportamento do mito, iconiza uma imagem de mulher dominadora até então encoberta pela
opressão da sociedade patriarcalista, a imagem de mulher dona de si permite a construção
de um discurso novo onde ela passa a ter também força de ação.
Com a imagem de mulher “dona-de-si” vista como uma evolução do comportamento
vamp de domínio, a imagem da mulher dominadora veste a scara da mulher ambiciosa e
passa a ser denominada femme fatale: mulher que seduz e engana os homens a fim de
conquistar poder ou qualquer outra coisa que seja de seu desejo e que não lhes seria dado
livremente. A femme fatale surge como vilã ou anti-heroína, é inescrupulosa e age de acordo
com suas vontades próprias, ignorando regras e costumes sociais. Sua primeira atitude é
torturar psicologicamente suas vítimas, negando-lhes a confirmação de seu afeto e fazendo-os
homens obcecados e exaustos, incapazes de opiniões e decies racionais sobre suas pprias
vidas pessoais.
A imagem da femme fatale, retratada principalmente pelos filmes holywoodianos,
também possui uma caracterização cuidadosamente detalhada. Mulheres de corpos
63
delineados, formas curvilíneas, loiras e muito sensuais, vestidas com decotes provocantes para
que pudessem tentar os homens pela carne muito mais que por qualquer outro meio. A
imagem da femme fatale o mais nos remete às mulheres vampiras por sua essência
sobrenatural ou por suas vestes e sua imoralidade obscura, como as que nos eram
apresentadas na época vitoriana, mas agora essas mulheres sedutoras do século XX
manifestam suas personalidades fortes e muitas vezes imorais, por meio de seu poder de
sedução. São elas as representações modernas da vamp, mostrando-nos a ambição e a ânsia da
mulher pelo poder no século XX.
Com as transformações da representação feminina literária e cinematográfica de vamp
a femme fatale, notamos que não mais tamanha ênfase na busca pela destruição do homem
como forma de libertação das amarras sociais e familiares, mas sim, busca pela tomada do
poder social e mesmo econômico, para que se torne possível um reconhecimento da presença
da mulher no espaço além da propriedade privada.
Assim, o mito do vampiro que por sua essência transgressiva e libertadora permitiu
primeiro a construção da imagem feminina de mulher corrompida, permite posteriormente
seguir para além dessa condição, mostrando a evolução dessa imagem de mulher mítica para a
de uma mulher real em busca de espaço próprio dentro das relações de poder na sociedade,
sem que seja ignorada ou banalizada.
64
3. CARMILLA: Joseph Sheridan Le Fanu e uma vampira vitoriana
Joseph Thomas Sheridan Le Fanu (J. S. Le Fanu) nasceu em Dublin, Irlanda, em 1814.
Filho de um capelão da Royal Hiberian Military School, freqüentou esta mesma escola e, em
seguida, estudou no Trinity College, onde se formou em Direito.
Durante o curso, J S. Le Fanu também contribuiu para com a Dublin University
Magazine, publicando seus contos do gênero de horror e suas poesias; um tempo depois se
tornou editor da revista e finalmente, em pouco tempo, veio a proprietário desta, quando então
desenvolveu um grande trabalho ao transformar a revista em um importante título na Europa.
Aos 14 anos J. S. Le Fanu compôs seu primeiro poema, que deu início a sua carreira
literária. Porém, foi em 1838, com a publicação de “The Ghost and the Bone Setter”, na
Dublin University Magazine, que J. S. Le Fanu deu início à sua carreira literária formal e ao
longo dos quinze anos seguintes, ele escreveu vinte e três contos e dois romances que em
grande parte eram ambientados na Irlanda, focalizando aspectos do caráter e da sociedade
irlandesa.
O gosto por personagens sobrenaturais tais como fantasmas e vampiros, ou ainda
imagens góticas envoltas por temas diabólicos, permitia ao autor tratar de assuntos diversos e
que, em suma, faziam oposição às crenças e regras morais do período em que viveu: o peodo
vitoriano.
A era vitoriana teve marcos importantes para a história social, pois é considerada o
auge da revolução industrial inglesa e do império britânico. Naquele momento, a sociedade
tomada pelo ideal burguês vivia à sombra da superficialidade, falsidade e preconceito cujo
domínio permitia a poucos o controle econômico e aos homens, chefes de família, o total
domínio social. O período vitoriano, dessa forma, permitiu certo cultivo à inocência e a
sociedade passou a idealizar a inocência e, com isso, evitar situações e sentimentos
65
desagradáveis pertencentes ao mundo real era meta para a educação dos jovens, ainda mais no
que concerne ao mundo feminino.
Alguns autores contemporâneos à época, que se opunham a idéia de uma sociedade
ingênua e ignorante, tomada ao poder por alguns poucos, passaram a transportar para suas
histórias certa preocupação em elucidar e abrir a mente das pessoas para o que realmente
acontecia ao seu redor. Uma sociedade tão inocente, aos olhos de autores como J. S. Le Fanu,
não seria propriamente um crime contra os tempos modernos, mas quase sempre apresentava
a idéia de que esse tipo de comportamento levaria ao desastre social.
Assim, o que vemos em histórias desses autores, conhecidos por tal motivo como
sensacionalistas, são personagens cujo excesso de inocência apresenta características que
certamente uma pessoa madura, cética e mais despreocupada não teria. Os heróis dessas
histórias são construídos sob a inflncia de uma ingenuidade extrema, capaz de ressaltar a
ignorância existente por trás dessa necessidade de ingenuidade cultivada.
J. S. Le Fanu, em especial, por não ter um bom relacionamento com o povo irlandês,
devido a desentendimentos religiosos, muitas vezes o estereotipava, causando grande mal-
estar. Foi a partir de então que ele começou a desenvolver um interesse maior pelo horror
sobrenatural e, ao escrever o conto “Strange Event in the Life of Schalken the Painter”(1839),
para a Dublin University Magazine, o autor tratou de temas que viria a desencadear, mais
adiante, em sua obra de maior sucesso: Carmilla.
Após a morte de sua esposa em 1858, Le Fanu tornou-se recluso em sua casa,
dedicando-se exclusivamente às suas obras e, desde então, por causa desse “desaparecimento
social”, ele passou a ser chamado de “Invisible Prince”.
No ano de 1866, J. S. Le Fanu teve sete dos seus contos publicados em uma
importante revista da Inglaterra chamada All the Year Round que pertencia a Charles Dickens,
fazendo deste um ano decisivo para o autor. Foi nesse período também que, tornando-se
66
extremamente pessimista com a vida de um modo geral e com os rumos que a política
irlandesa tomava, Le Fanu parece tirar inspiração para escrever dos aspectos mais negativos
de sua vida e escreve algumas das grandes obras de horror sobrenatural daquela época. Dentre
suas obras publicadas, Uncle Silas (1864), Guy Deverell (1865), e a coleção de contos In a
Glass Darkly (1872), que fora aclamada pelos críticos como a melhor, a mais expressiva
quanto ao uso do estilo gótico vitoriano de escrita, tomado por imagens do sobrenatural e do
horror. Nessa coleção estão histórias mais vivamente reconhecidas do autor, tais como o conto
Green Tea, The Room in the Dragon Volant, The Familiar e a história que lhe rendeu fama
longínqua, o conto que introduziu o mito do vampiro na literatura inglesa de forma inovadora
e expressiva: Carmilla.
Carmilla foi a terceira história sobre vampiros publicada em inglês. A primeira foi o
poema Christabel, de Samuel Taylor Coleridge, em 1780 e, a segunda, o conto The Vampire,
de John Polidori, em 1819. Carmilla também é a primeira publicação em que o mito aparece
focalizado em uma representação feminina e é tida como uma das melhores histórias de
vampiro, transformando-se em importante referência para o mito do vampiro e sua versão
feminina, na literatura.
A história se passa em um castelo isolado de uma antiga região da Europa Oriental,
chamada Stýria e que era afastada das grandes movimentações sociais; vive a jovem e
inocente Laura e seu pai, um inglês decadente, descendente de uma família tradicional. É
neste castelo que se o encontro entre Laura e Carmilla, a jovem desconhecida que fora
trazida ao castelo em decorrência de um acidente de viagem. E é também, onde se passa a
história do envolvimento emocional, físico e sobrenatural entre elas. Somente após certo
tempo de convivência íntima com a família é que a verdadeira natureza sobrenatural de
Carmilla é descoberta.
67
J. S. Le Fanu não foi tão conhecido em meio aos escritores de fantástico e sobrenatural
de horror como o foram, por exemplo, Edgar Allan Poe, ou Bram Stocker e Mary Shelley
cujos trabalhos são marcas de um estilo e reconhecidos mundialmente. Contudo, seu trabalho
é precursor do gênero e é de grande influência sobre a escrita de autores que o sucederam,
pois foram seus trabalhos inovadores com temas relacionados ao terror e ao medo que
permitiram a caracterização de elementos para a construção das histórias modernas de terror e
sobrenatural.
Após sua morte, em 1873, J. S. Le Fanu foi esquecido por quase um século, mesmo
tendo como admiradores escritores famosos como Henry James e Dorothy Sayers. Isso se deu
em primeiro lugar porque suas obras abordam assuntos que por décadas os críticos literários
marginalizaram, especialmente por se tratar de ficção de horror e sobrenatural. Este gênero
literário apenas veio a ser reavaliado pela crítica à medida que a ficção gótica, que também
tem como tema situações de horror e medo, foi se estabelecendo, ao longo dos tempos, por
trazer histórias que divertem e incitam o imaginário popular.
É a partir dessa observação, com relação à especificidade da escrita e dos temas
escolhidos por J. S. Le Fanu — temas tidos como não-tradicionais ou clássicos — que
surgiram as primeiras discussões sobre o gênero dessa escrita tão peculiar e que nos levou a
desenvolver neste trabalho uma análise literária interessada em reconhecer os aspectos
norteadores do estilo e aprofundar conhecimentos a respeito de algumas das visões críticas
desenvolvidas pelo autor neste conto denominado Carmilla, com especial atenção no que
concerne às suas visões sobre as relações sociais existentes em sua época e as conseguintes
transformações ocorridas em decorrência das grandes revoluções vividas no período de
transição entre os séculos XVIII e XIX.
O foco de leitura para esta análise, e que nos levou a escolha específica do conto
acima mencionado, está no fato de que o tema principal do enredo trata do envolvimento
68
homossexual entre duas jovens mulheres que estão ambientalizadas por completo às
influências da cultura vitoriana: uma cultura inteiramente tomada por traços considerados dos
mais conservadores no trato para com a formação pessoal e familiar na Europa e
fundamentalmente na Inglaterra.
As transformações comportamentais das personagens femininas que aparecem no
primeiro plano da narrativa, m ao encontro dos interesses primeiramente discutidos neste
trabalho e que tratam das discussões acerca da evolução e das transformações ocorridas no
comportamento feminino ao longo dos séculos, desde as primeiras movimentações com
relação a necessidade da liberdade de expressão da mulher surgidas no século XIX até
as conquistas e contínuas lutas por liberdade e acesso ao espo público que nos remete ao
espaço de expressão dos sentimentos mais íntimos e à ão vinculada ao trabalho: a
possibilidade de se ter um emprego fora do ambiente doméstico.
Com a leitura desse conto, buscamos reconhecer e mesmo delimitar alguns traços que
permitam caracterizar o contexto cultural e social, além da percepção sobre uma nascente voz
feminina ao longo desse período final do século XIX, mesmo que esta ainda esteja sob a
sombra de figuras que pertençam ao domínio do sobrenatural; para então, diante das primeiras
marcas textuais que apontem as transgressões do sistema social vigente, possamos apresentar
as necessidades da mulher da época em exteriorizar de maneira mais aberta e notável, os seus
pensamentos mais íntimos, sua ânsia, seus medos, sua sexualidade e sua força.
Para a construção de uma personagem transgressora dos métodos, modos e
comportamentos contemporâneos à sua época, J. S. Le Fanu inspirou-se no mito do vampiro e
com este buscou trabalhar a questão do poder e da transformação, resgatando as
características da monstruosidade de maneira a mantê-las ligadas à imagem da mulher que
foge aos padrões comportamentais vitorianos. A mulher vampiro é a mulher intimidadora,
aquela de quem não se pode resistir, ou fugir.
69
A escolha por esse mito não se dá ao acaso, pois o mito do vampiro revela ao
consciente humano sua constante necessidade de conseguir uma identificação entre o Eu, sua
própria consciência, e o Outro, relativo à sua subconsciência. Ao mesmo tempo, o ser humano
quer uma identificação com o meio em que vive e, por conseguinte, permite a si mesmo,
como indivíduo, questionar-se sobre suas necessidades e desejos. O mito do vampiro permite
ao ser-humano reviver e optar por um novo caminho.
Assim, no ano de 1872, J. S. Le Fanu publicou sua primeira história de vampiro que se
propunha a tratar desse assunto, ainda considerado novo, de forma mais inovadora, pois ele
criou em texto a primeira personagem vampira da literatura fantástica, com algumas
características do estilo gótico e fortes insinuações de lesbianismo e eroticidade.
A história é narrada em primeira pessoa e contada por uma mulher, a personagem que
atua de modo co-referente à personagem-título; ambas as personagens convivem por meio de
um envolvimento amoroso, cuja ligação faz com que nos deparemos com um relacionamento
homossexual — visto como doentio aos olhos da sociedade de sua época, já que está baseado
somente na troca de prazeres. Neste tipo de relacionamento também dominação e entrega:
uma das partes domina e a outra é dominada física e psicologicamente; no entanto, uma das
partes, aquela reconhecida como corruptora, é punida no final.
3.1. Enredo, espaço e representações em Carmilla
Neste conto, a personagem que narra toda a história é chamada Laura, trata-se de uma
personagem que não somente narra a história, mas acima de tudo testemunha cada um dos
fatos, pois esteve o tempo todo ligado a eles. Ela apresenta-nos todas as situações de modo
bastante intenso, de maneira a deixar às vistas do leitor o quão forte foi para ela essa
experiência de amor-troca e entrega total. Contudo, a leitura do texto está à luz do foco
70
traçado pela narradora Laura, que apesar de também se caracterizar como peça fundamental
para o desenrolar da trama, nos deixa a par de situações limitadas às suas percepções e
sentimentos: o leitor esentregue a tudo aquilo que caracteriza a experiência pessoal vivida
por ela.
Para esta jovem e inocente moça criada aos moldes daquela sociedade tradicionalista e
conservadora, como o foi a vitoriana, suas atitudes e mesmo os sentimentos que a dominaram,
caracterizam-se como motivos de medo e pavor. Tudo aquilo que se opunha ao que lhe era
dito ser por natureza o certo e o moral, é visto como confuso e amedrontador. Para ilustrar o
ambiente que circundava a jovem Laura, narradora do conto, temos o trecho abaixo, que trata
sobre as condições de vida de sua família desde seu nascimento à época dos acontecidos:
Sem possuir uma fortuna principesca, movamos, na Stýria, em um desses castelos
que na região o chamados schloss. Lá, magros rendimentos permitem levar uma
vida confortável. Com o que ganhávamos, mal teríamos passado por ricos na
Inglaterra, pátria de meu pai. Mas nesse país primitivo (Áustria), onde a fartura está ao
seu alcance, nosso conforto e nosso luxo eram tão grandes quanto podiam
materialmente ser.
Meu pai havia servido o exército austríaco. Sua pensão, reunida ao seu patrimônio,
permitira-lhe retirar-se e adquirir, por uma soma reduzida, essa moradia feudal e o
domínio à sua volta.
1
(LE FANU, 1985, p.11)
É diante da atmosfera frágil tomada pelo contexto de tentativa de manuteão de
costumes e certa hipocrisia que a história se passa dentro de uma pequena propriedade rural
da Stýria, pximo às ruínas do castelo de uma tradicional e falida família aristocrática que
havia habitado aquela região séculos antes.
Com as descrições físicas do ambiente em que vive a jovem Laura e sua pequena
família – composta por ela, seu pai e três empregadas é que podemos apontar os primeiros
1
In Styria, we, though by no means magnificent people, inhabit a castle, or schloss. A small income, in that part
of the world, goes a great way. Eight or nine hundred a year does wonders. Scantily enough ours would have
answered among wealthy people at home. My father is English, and I bear na English name, although I never
saw England. But here, in this lonely and primitive place, where everything is so marvelously cheap, I really
don’t see how ever so much more money would at all materially add to our conforts, or even luxuries.
My father was in the Austrian service, and retired upon a pensio and his patrimony, and purchased this feudal
residence, and the small estate on which it stands, a bargain. (Le FANU, 2005, p.7)
71
traços de influências das características góticas: a começar pela descrição do espo físico da
história, que colabora de maneira bastante expressiva para a atmosfera de terror que se quer
como pano de fundo para toda a história.
A influência gótica é o principal artifício utilizado pelo autor para desenvolver a
função transgressora com relação às estruturas sociais e intelectuais da época, pois na
literatura gótica desenvolveram-se algumas das mais importantes convenções para descrição
dos espaços físicos e sociais em decadência; além dos traços delineadores dos tipos de
personagens que melhor caracterizariam sua necessidade de subversão da realidade, com o
intuito de desorientar o leitor. Assim, temos nos textos de ficção gótica, em geral, ambientes
construídos sob uma atmosfera medieval, gubre e obscura, com a presença de castelos
abandonados, sujos, ou em ruínas, repletos de passagens secretas, muitos modos e
escadarias, calabouços, pouca iluminação (geralmente velas ou lamparinas) e cercados por
florestas densas e fechadas, algumas vezes esses castelos abrigam ao lado de seu terreno a
cova dos falecidos pertencentes à família proprietária das terras.
É exatamente com essa descrição gótica que nos é apresentada a imagem do espaço
em que a família de Laura vive:
O lugar era isolado e pitoresco. O castelo se erguia sobre uma elevação no meio da
floresta. Uma estrada estreita e antiga passava diante da ponte levadiça, que nunca
levantávamos, e no fosso flutuavam cisnes e vagavam nenúfares. O castelo projetava
na água sua fachada de inúmeras janelas, suas torres, sua capela gótica. Diante da
grade de entrada, uma clareira irregular abria-se na floresta e a estrada atravessava
uma ponte sobre um pequeno riacho serpenteando na sombra do bosque.
A floresta estendia-se por léguas ao redor. A aldeia habitada mais próxima ficava a
cerca de sete milhas e o castelo menos afastado, o do velho general Spielsdorf, a quase
vinte milhas. Existia também, a três milhas, na direção do castelo do general, uma
aldeia deserta com casas em ruínas. Na sua igrejinha sem telhado encontravam-se as
sepulturas deterioradas da orgulhosa família dos Karnstein, agora extinta, mas outrora
proprietária do castelo que domina a aldeia.
2
(LE FANU, 1985, p.11-12)
2
Nothing can be more picturesque or solitary. It stands on a slight eminence in a forest. The road, very old and
narrow, passes in front of its drawbridge, never raised in my time, and its moat, stocked with perch, and sailed
over by many swans, and floating on its surface white fleets of water lilies.
Over all this the schloss shows its many-windowed front; its towers, and its Gothic chapel.
72
Além do aspecto físico, uma interessante retomada do estilo gótico está no tipo de
“presa” escolhida para ser dominada. Em geral, as vítimas das assombrosas situações
descritas neste estilo de literatura são pessoas que pertencem a uma tradicional, porém falida,
família da ordem social anterior a vigente e que resiste às mudanças vividas; esse contexto
permitia ao leitor da época algum tipo de identificação com a obra. Exatamente diante dessa
situação é que se encontra a família da personagem Laura: descendentes de uma família
aristocrática inglesa falida, cujo pai, após servir o exército austríaco, somente teria posses
suficientes para viver com certo luxo e manter as antigas aparências, na região rural em que se
instalou com sua querida filha e algumas poucas empregadas.
Além desses aspectos, também há, na narrativa de estilo gótico, certos tipos de
personagens que se contrapõem por completo: as histórias estão sempre calcadas na disputa
entre uma personagem ingênua e inocente, que é protegida por defensores da ordem vigente,
contra as forças do mal representadas pelo sobrenatural, e que pode ser figurativizado por um
fantasma, um monstro, um vampiro etc. A exemplo do que temos em nosso objeto de análise,
visto que a personagem central é uma vampira e, portanto caracterizada como
monstruosidade, ou ser capaz de causar toda sorte de malefícios e perversidades.
A personagem-título, Carmilla, é inicialmente descrita como uma jovem atraente,
sensível e delicada que seduz as pessoas ao seu redor, com sua beleza singular e seus
mistérios. À primeira vista, esta linda jovem não representa ameaça alguma e se porta como
qualquer moça de sua idade e época diante daquele a que se apresenta. Ela somente passa a
The forest opens in an irregular na very picturesque glade before its gate, and at the right a steep Gothic bridge
carries the road over a stream that winds in deep shadow through the wood. I have said that this is a very lonely
place. Judge whether I say truth. Looking from the hall door towards the road, the forest in which our castle
stands extends fifteen miles to the right, and twelve to the left. The nearest inhabited village is about seven of
your English miles to the left. The nearest inhabited schloss of any historic associations, is that of old General
Spilsdorf, nearly twenty miles away to the right.
I have said “the nearest inhabited village,” because there is, only three miles westward, that is to say in the
direction of General Spilsdorfs schloss, a ruined village, with its quaint little church, now roofless, in the aisle
of which are the moldering tombs of the proud family of Karnstein, now extinct, who once owned the equally
desolate chateau which, in the thick of the forest, overlooks the silent ruins of the town. (LE FANU, 2005, p.7-8)
73
despertar a desconfiança de algumas pessoas, quando está prestes a consumar” seus atos de
velada violência sobre a vítima escolhida, pois causa principalmente em sua “presa” um
estado de êxtase tão profundo que dificulta a percepção quanto a sua verdadeira identidade.
Carmilla se relaciona com moças da mesma faixa etária que a sua quando de sua
morte-transformação: época da juventude, de abertura para o novo e para as descobertas. Com
algumas dessas suas vítimas, ela vive um relacionamento de grande paixão. No pprio texto
há uma passagem que justifica essa necessidade de envolvimento que a toma e que é
justificada como sendo própria de sua natureza, parte integrante de suas necessidades como
um todo.
O vampiro é inclinado a experimentar em relação a certas pessoas uma fascinação de
intensidade crescente, análoga à paixão do amor. Para se aproximar dessas pessoas,
empregará estratagemas de um luxo inaudito, e demonstrará uma paciência
inesgotável a fim de atingir seus objetivos. Ele não renunciará antes de ter saciado
suas paixão, de ter bebido até a última gota do sangue da vítima cobiçada. Nesse caso,
cultivará e prolongará seu prazer criminoso com o refinamento de um epicurista,
entregando-se a uma conquista assídua para seduzir pouco a pouco o objeto de seu
desejo. Aspira, então, a receber, da parte deste, um sentimento de simpatia e de
consentimento, enquanto nos casos ordinários, vai direto ao objetivo, violentando sem
rodeios as suas vítimas e muitas vezes estrangulando-as ao fartar-se delas.
3
(LE
FANU, 1985, p. 76)
Ao longo de sua história, Laura conta-nos tudo o que lhe acontecera desde o primeiro
dia em que chegou a sua nova casa, logo quando ainda criança até os dias em que vivenciou
sua experiência de quase morte. Ela descreve todo seu envolvimento com Carmilla desde a
primeira aparição, quando ainda era criança, até o momento em que a vampira é finalmente
destruída pelo general Spilsdorf, um velho amigo da família, cuja sobrinha também havia sido
vítima dos encantos sobrenaturais de Carmilla.
3
The vampire is prone to be fascinated with an engrossing vehemence, resembling the passion of love, by
particular persons. In pursuit of these it will exercise inexhaustible patience and stratagem, for access to a
particular object may be obstructed in a hundred ways. It will never desist until it has satiated its passion, and
drained the very life of its coveted victim. But it will, in these cases, husband and protract its murderous
enjoyment with the refinement of an epicure, and heighten it by the gradual approaches of an artful courtship. In
these casas it seems to yearn for something like sympathy and consent. In ordinary ones it goes direct to its
object, overpowers with violence, and strangles and exhausts often at a single feast. (LE FANU, 2005, p. 105)
74
Para descrever a relação com Carmilla (a vampira), Laura começa narrando seu
primeiro encontro com aquela mulher de formas encantadoras; fato que a marcou
profundamente, desde sua mudança para aquele castelo isolado. Ainda criança, ela diz ter
conhecido Carmilla em uma noite aos pés de sua cama, porém, à época, não seria capaz de
identificar esta mulher.
Eu não tinha mais de seis anos quando, acordando uma noite em meu quarto, não vi
em torno de mim nem minha babá, nem minha governanta. Pensei que estava sozinha.
Eu não tinha medo, não era dessas crianças criadas no temor dos fantasmas e na
crença dos contos de fada. Mas fiquei descontente de me ver abandonada e me pus a
choramingar. De repente, vi com surpresa alguém ao lado de minha cama: uma jovem
mulher ajoelhada, de rosto grave mas muito bonito, me olhando. Vendo-a parei de
chorar. Ela me acariciou, depois estendeu-se ao meu lado, apertando-me contra ela e
sorrindo. Imediatamente acalmada voltei a dormir. Mas fui acordada de novo pela
sensação de duas agulhas me transpassando simultaneamente a garganta, e gritei de
dor.
4
(LE FANU, 1985, p.12-13)
Logo após esse fato, esse primeiro encontro surpresa com aquela mulher tão
sedutora, Laura ficou durante muito tempo sem vê-la novamente e por todo esse tempo de
distanciamento, foi levada a crer que tudo não passara de um sonho ruim, pois era criança e
suas criadas não a queriam assustar. Além do fato de que situações como essa, descrita pela
menina, não eram levadas a sério por seu pai, pois ele acreditava que não passaria de uma
história fantasiosa, uma crendice popular.
Era comum àquela época o choque de crenças e interesses que surgia entre as
pessoas da parte rural e urbana, e principalmente entre homens e mulheres. A crença em fatos
sobrenaturais era dominada pelo conhecimento popular e considerada desprezível diante das
4
I can’t have been more than six years old, when one night I awoke, and looking round the room from my bed,
failed to see the nursery maid. Neither was my nurse there; and I thought myself alone. I was not frightened, for I
was one of those happy children who are studiously kept in ignorance of ghost stories, of fairy tales, and of all
such lore as makes us cover up our heads when the door cracks suddenly, or the flicker of an expiring candle
makes the shadow of a bedpost dance upon the wall, nearer to our faces. I was vexed and insulted at finding
myself, as I conceived, neglected, and I began to whimper, preparatory to a hearty bout of roaring; when to my
surprise, I saw a solemn, but very pretty face looking at me from the side of the bed. It was that of a young lady
who was kneeling, with her hands under the coverlet. I looked at her with a kind of pleased wonder, and ceased
whimpering. She caressed me with her hands, and lay down beside me on the bed, and drew me towards her,
smiling; I felt immediately delightfully soothed, and fell asleep again. I was wakened by a sensation as if two
needles ran into my breast very deep at the same moment, and I cried loudly. (LE FANU, 2005, p.9-10)
75
novas mentes dominantes daquela sociedade burguesa completamente tomada pelas idéias
religiosas. E mesmo para os homens, senhores do saber, parecia irreal e ridículo acreditar na
possível existência de uma antiga lenda sobrenatural.
É diante desse fato também que para tratar de temas tidos como polêmicos e, na
maioria das vezes, proibidos para sua época, os autores de literatura fantástica (gótica e de
horror) utilizavam-se dos motivos apresentados (os elementos sobrenaturais) para
metaforizar, relações impróprias de poder, relações amorosas de caráter proibidas e de
preferência aquelas descritas por meio de perversão. Na maioria das vezes, o desejo ligado à
violência extrapola seus limites de torturas e aparecem sob forma de uma violência pura, em
que o desejo sexual aparece sob a scara das forças sobrenaturais, e é neste estágio que se
transforma em crueldade, capaz de levar à morte.
Além do fato de que a figura do vampiro também representa, em sua grande parte
das aparições em histórias de terror e afins, uma busca insana do ser-humano pelo poder, pela
juventude e pela eternidade. O ser humano transformado em vampiro assume uma forma
animalesca de proteção e fuga, e busca saciar sua vontade em libertar-se de todas as rédeas
que o mantém reprimido.
Toda essa ordem de temas descritos é classificada por Tzvetan Todorov, em seu livro
Introdução à Literatura Fantástica (1975), como Temas do Tuou “Temas do Discurso”,
que exploram todas as formas de sexualidade: tanto sua forma “natural”, quanto suas formas
transgressivas, e dizem respeito à interação existente entre o ser humano e seu inconsciente.
Por meio dessa rede de temas, Todorov ainda nos mostra a possibilidade de uma função social
para o sobrenatural, pois ao abordar temas tão condenados e proibidos, o fantástico na
literatura permite a transgressão da censura imposta pela sociedade em seus próprios atos e
que, conseqüentemente, afeta o indivíduo.
76
Com base nesse reconhecimento de uma função social para o sobrenatural, podemos
notar a necessidade da presença de um anti-herói na literatura de influência gótica, visto que
este passa a representar “as forças do mal” e contrapõe a incessante busca da vitória do bem
sobre o mal. O anti-herói passa a questionar as convenções e, então, figurativiza-se em
personagens mais sexualizados e afetados psicologicamente, como ocorre com a figura do
vampiro em especial.
Em Carmilla, a personagem-título é a própria característica do anti-herói: o monstro
que se opõe às convenções adotadas pela família da heroína e, por extensão, a ela própria –
e leva Laura a questionar-se e mesmo libertar-se de muitas das amarras que a condenam a
uma vida cheia de regras e à clausura (sob o domínio de seu pai). No entanto, essa figura do
anti-herói vista no conto de Le Fanu não foge à ilusão de falso poder e iniciativa própria da
mulher, que a personagem Carmilla, além de caracterizada como ser sobrenatural e,
portanto maléfico, também não tem voz própria ao lidar diretamente com as personagens
masculinas do texto.
Esse afastamento entre vozes – a do poder vigente e patriarcal e a da mulher
transgressora demonstra (no texto) certa resistência social: apesar da inovação de
caracterização do gênero, com a presença central de personagens femininas, e o delineamento
de situações de confronto e medo, no tocante à autonomia da mulher que embate às forças
patriarcalistas ainda encontramos questionamentos ligados a necessidade de se manter certo
equilíbrio entre o certo e o errado, o bem e o mal.
Em seu segundo e definitivo (re)encontro com Carmilla, a jovem e inocente Laura
ainda não é capaz de reconhecer o perigo a que se expõe e, tentada pela chance de uma nova
companhia, uma nova amiga, ela se entrega por completo à suposta amizade oferecida por
Carmilla. Assim a jovem narradora da história nos descreve o momento da chegada daquela
que a princípio seria sua nova amiga:
77
(...) um ruído insólito de rodas de carro e de cascos de cavalo na estrada atraiu nossa
atenção. O ruído se aproximou e logo vimos surgir dois cavaleiros, seguidos de uma
carruagem puxada por quatro cavalos e dois outros cavaleiros, que fechavam a
marcha.
Essa comitiva atravessou a ponte e nós a observamos com curiosidade, pois parecia
tratar-se do carro de uma pessoa de alta posição. (...) Seguiu-se um galope desenfreado
e os animais, atropelando os dois cavaleiros que precediam, desceram a estrada em
nossa direção. (...) Gritos de mulher elevaram-se da carruagem. (...)
Quando olhei de novo, uma cena confusa se ofereceu à minha vista. Dois dos
cavalos estavam caídos e a carruagem estava tombada. (...) Pela portinhola, tiravam
agora uma moça inanimada. (...) Felizmente a jovem estava desmaiada;(...)
5
(LE
FANU, 1985, p.17-18)
Desse momento em diante, a personagem Laura passa a viver a experiência mais
diferente e inesperada de toda sua jovem vida. Após conseguir com que seu pai permitisse a
estada da nova amiga em sua casa, Laura em sua ânsia por companhia passa a se envolver a
cada minuto mais e mais, pelos encantos da nova companheira. O encanto era tamanho diante
da nova hóspede, que Laura mal podia se manter longe por alguns instantes que fosse daquela
jovem estrangeira.
E não somente a jovem Laura se entregou aos encantos de Carmilla, mas também
todos da família, que a descreviam como bonita, gentil, doce. Laura pergunta à senhora
Perrodon, a governanta, o que esta achava de Carmilla: “Ela me agrada imensamente, diz ela.
É, creio, a criatura mais bonita que encontrei. É gentil e doce, e mais ou menos de sua
idade”
6
(LE FANU, 1985, p.22).
5
(…) the unwonted sound of carriage wheels and many hoofs upon the road, arrested our attention.
They seemed to be approaching from the high ground overlooking the bridge, and very soon the equipage
emerged from that point. Two horsemen first crossed the bridge, then came a carriage drawn by four horses, and
two men rode behind.
It seemed to be the traveling carriage of a person of rank; (…) after a plunge or two, the whole team broke into
wild gallop together, and dashing between the horsemen who rode in front, came thundering along the road
towards us (…) the excitement of the scene was made more painful by the clear, long-drawn screams of a female
voice from the carriage window.
Curiosity opened my eyes, and I saw a scene of utter confusion. Two of the horses were on the ground, the
carriage lay upon its side with two wheels in the air; (…)
Through the carriage door was now lifted a young lady, who appeared to be lifeless. () the young lady was
apparently stunned, but she was certainly not dead. (LE FANU, 2005, p.17-18)
6
“I like her extremely,” answered Madame, “she is, I almost think, the prettiest creature I ever saw; about your
age, and so gentle and nice.” (LE FANU, 2005, p.24)
78
A imagem descrita para o vampiro é em grande parte das vezes a de um ser dotado
de espndida beleza, capaz de encantar a todos sem distinção de sexo, e com um poder de
sedução e de atração irresistíveis. Foi o que aconteceu diante da presença de Carmilla no seio
da família de Laura; sua chegada abriu os olhos do inconsciente de todos para o belo, o
misterioso, o imprevisível.
Ao recuperar, em seu texto, o mito do vampiro tão disseminado no Leste Europeu,
Le Fanu inovou a literatura de horror ao retratar temas sexuais sob um formato que
normalmente não apareceriam por outros meios, ou seja, ele expõe, por exemplo, o retrato de
um comportamento homossexual, como ocorre entre as personagens principais do conto
Carmilla. Neste caso, o autor trabalha com uma atmosfera erótica de intensa paixão entre
duas jovens, estabelecida por meio da relação de dependência entre a vampira e sua vítima;
relação esta que foi constituída pela sedução por meio do elemento libertador de toda a
opressão social vivida naquela época: o reconhecimento da mulher como um ser humano
dotado de sentimentos e desejos; a sexualidade.
Do seguinte trecho depreendemos a imagem de uma cena de grande intensidade,
capaz de ilustrar os momentos de sensualidade envolvendo as jovens Laura e Carmilla, sob
uma atmosfera de acalorada paixão:
Eu teria querido libertar-me desses abraços loucos, de resto muito pouco freqüentes.
Mas toda resistência parecia abandonar-me. O murmúrio de sua voz era uma borboleta
volteando no meu ouvido, minha energia se esvaía, e eu cedia a uma espécie de êxtase
para sair dele no instante em que seus braços me soltavam.
7
(LE FANU, 1985,
p.30)
Nesse ponto é importante notarmos que até o momento do (re)encontro entre
Carmilla e Laura, esta vivia somente com o pai, com uma governanta e com a aia, e às vezes a
7
From these foolish embraces, which were not of very frequent occurrence, I must allow, I used to wish to
extricate myself; but my energies seemed to fail me. Her murmured words sounded like a lullaby in my ear, and
soothed my resistance into a trance, from which I only seemed to recover myself when she withdrew her arms.
(LE FANU, 2005, p.33)
79
jovem recebia a visita da sobrinha de um dos amigos de seu pai, o general Spilsdorf. Assim, a
garota vivia em certa clausura e tinha sua imagem “preservada” pelo pai. Laura vivia longe da
realidade do mundo, longe do que era considerado pecado, perigo. Este era um dos fatores de
opressão da sociedade da época em que o conto foi escrito: na era vitoriana, a mulher, era
vista somente como esposa, mãe e dona-de-casa, sem nenhuma função social que
correspondesse à esfera pública.
A própria caracterização das jovens oe-se por completo e representa o que seria o
estereotipo da mulher boa e da mulher má. Ao descrever a imagem de Laura, por sua
ingenuidade e descendência, por sua pureza, o autor mostra-nos a personagem com
características de uma figura angelical. Do conto tiramos a seguinte passagem em que
Carmilla descreve a imagem de Laura quando a encontrou pela primeira vez: “(...)Uma bela
moça de cabelos loiros e grandes olhos azuis, e de lábios seus lábios... sim, vointeira
como está aqui.”
8
(LE FANU, 1985, p. 25)
Em oposição a essa imagem de candura e inocência, ao descrever Carmilla, o autor
utiliza-se da primeira descrição vamp da mulher fatal e maldosa, a irresistível e que é tomada
pelo poder da sedução. Assim Laura descreve Carmilla:
Ela era mais alta do que a maioria das mulheres, magra e de uma graça surpreendente.
Apesar da languidez da extrema languidez de seus gestos, nada fazia supor que
fosse doente. Tinha uma pele brilhante, traços de enorme finura, grandes olhos
cintilantes e escuros, cabelos magníficos. Eu nunca tinha visto cabelos o espessos,
tão longos, quando caíam sobre seus ombros.
9
(LE FANU, 1985, p.28)
Esse jogo de imagens serviu durante muito tempo para ilustrar as diferenças
existentes entre as mulheres consideradas mães, esposas, boas filhas, pelo ar de inocência que
8
(…) a beautiful young lady, with golden hair and large blue eyes, and lips – your lips – you as you are here.
(LE FANU, 2005, p.28)
9
She was above the middle height of women. I shall begin by describing her.
She was slender, and wonderfully graceful. Except that her movements were languid very languid indeed,
there was nothing in her appearance to indicate an invalid. Her complexion was rich and brilliant; her features
were small and beautifully formed; her eyes large, dark, and lustrous; her hair was quite wonderful, I never saw a
hair so magnificently thick and long when it was down about her shoulders; (LE FANU, 2005, p. 31)
80
transmitiam por sua imagem angelical e também, para apontar aquelas que seriam
possivelmente motivos de preocupação, pois estavam na contramão daquilo que representaria
bondade, o que no caso caracterizar-se-ia como submissão.
Dessa forma, Le Fanu, ao mostrar a mulher em posição de dominação como
ocorre com Carmilla e em um relacionamento homossexual, causou certo desconforto às
instituições e mesmo revolucionou o pensamento sobre alguns tipos de comportamentos
sociais. O autor chocou a sociedade vigente, ao apresentar a possibilidade de a mulher
moderna ser capaz de exteriorizar seus sentimentos, sua libido, e aflorar dentro do espaço
público, visto como meio social de dominação masculina.
O fato de Carmilla ter sido vampirizada na juventude e manter um relacionamento
com “presas” que sejam jovens de sua mesma idade, quando de sua transformação em
vampira, também é algo significativo: se pensarmos a juventude como um período de abertura
para tudo que é novo, um período de novas e intensas descobertas, repleto de boas e más
experiências, muitas dúvidas e curiosidades, temos então um período de busca por respostas e,
por conseqüência, um momento em que a mente assimila com mais facilidade as diferenças,
assume uma postura mais liberal. Assim, Carmilla havia se entregado à sedução de um
vampiro por estar envolvida, apaixonada, e da mesma forma Laura entregou-se à sedução de
Carmilla.
Segundo Torrigo (2002), se pensarmos ainda que o homossexualismo não possui
caráter reprodutor, função primeira imposta pela sociedade crispara o sexo, tem-se que a
relação entre pessoas do mesmo sexo está ligada tão somente a um caráter erótico, à
manifestação de desejo, e por isso, reflete unicamente o prazer pelo prazer; reflete um
relacionamento narcisístico, em que se busca o prazer no reflexo de si mesmo.
Em uma sociedade conservadora, como a sociedade cristã, o homossexualismo é tido
como tabu, ou ainda, algo imoral, portanto, ao ser reprimido acarreta um acúmulo de energias.
81
Daí o fato de que as energias sexuais, energias poderosas, passam a se manifestar como
aspectos do subconsciente, e que podem vir à tona. São as manifestações dessas energias
acumuladas que permitem, então, o surgimento da irresistível e sedutora imagem do vampiro,
a imagem de um ser capaz de libertar seus desejos e sua libido, expondo de maneira livre sua
sexualidade e formas de expressão.
Desse modo, o relacionamento homossexual entre Carmilla e Laura também aponta
para o fato de que a mulher deve ser vista como ser humano e não apenas como anjo ou
qualquer outra denominação que a posicione como santificada, e mesmo como incauta ou
pervertida, ao demonstrar sentimentos de desejo sexuais. Em verdade, busca-se a imagem da
mulher completa, meio Laura, meio Carmilla, capaz de toda sorte de sentimentos e
conquistas.
Ao propor uma nova abordagem de temas literários, Le Fanu foi um dos grandes
responsáveis pela introdução do vampiro como personagem central da literatura gótica. Muito
embora, alguns autores tivessem abordado o tema vampírico, o que se tornou relevante e
diferencial em seu conto foi o fato de ter retratado o mito do vampiro como sendo uma
mulher, pois os vampiros em geral, na Literatura tica, eram homens. Desse artifício, ele
tirou a oportunidade para expressar uma nova visão sobre o comportamento da mulher diante
do mundo em que vivia e questionar os modelos familiares de conduta e formação moral,
que revelou aos olhos do público uma realidade feminina ligada a eroticidade.
No mais, o autor singulariza sua vampira não somente pelo fato de ser uma mulher,
ou ainda por manter uma relação de fascínio e paixão — próxima a paixão do amor – por uma
outra mulher, caracterizando um comportamento lésbico com sua vítima, mas também por
utilizar-se de outros meios para delinear sua construção identitária. Carmilla não é tão
somente a imagem da mulher desmistificada de toda a pureza cristã, mas também e
principalmente é a caracterização da mulher livre, sem impedimentos ou pudores; ela é uma
82
mulher idealizada pelo desejo do homem: bela, atraente, delicada, bem educada, com uma
postura social digna das necessidades puritanas da época, contudo, na intimidade ela se
mostra forte e devastadora.
Não podemos nos abster da posição do próprio autor diante das descrições sobre a
postura e imagem que a personagem apresenta. Apesar de seu distanciamento como autor, ele
é, em verdade, um ser tomado pela formação e cultura imposta à educação dos homens
regidos pelo sistema patriarcalista. Le Fanu apresenta-nos por meios dos olhos de sua
narradora Laura uma visão sobre a sexualidade feminina bastante tomada por traços de prazer
carnal, posse física; contudo não deixa de lado o envolvimento emocional. Assim, também se
caracteriza na descrição do envolvimento entre as jovens moças uma fantasia masculina da
posse de uma mulher por outra, como sendo a imagem da entrega total do prazer pelo prazer.
Ao nomear as personagens assumidas por sua vampira em situações diversas, o autor
trabalha com um jogo de anagrama, em que o nome Carmilla, nome cuja vampira utiliza-se
para apresentar-se à Laura e sua família, seria uma das formas originadas do primeiro nome
referente à condessa Mircalla; este mesmo nome serviu ainda como base para a outra forma
apresentada à vítima anterior a Laura, que conheceu a mesma vampira com o nome de
Millarca. Assim os nomes de apresentação das várias faces da vampira eram escolhidos por
anagramas: nomes derivados do original (Mircalla) e correspondiam a três faces de uma
mesma mulher. Três faces que completariam uma tríade da perfeição.
Ao pensarmos no número três como um número cabalístico e que, por sua vasta
simbologia, nos leva ao reconhecimento de uma manifestação próxima à perfeição da tríade
cristã para referir-se a um todo, ou a um único ser dotado de poder e força, as três faces de
uma mesma mulher que veste diferentes máscaras sociais: Carmilla, Mircalla e Millarca
permitem-nos reconhecer as diferentes manifestações da vampira para infiltrar-se em meio à
nova sociedade que ameaça as estruturas mantidas como parâmetro do que é certo.
83
Carmilla, ao representar uma personagem de descendência aristocrática, também
pode nos levar a pensar em uma postura de dominação sobre possíveis modos culturais novos,
que possam abalar as estruturas do antigo poder das famílias tradicionais de sua região.
O conto Carmilla é uma história vista por Richard Davenport-Hines (2000), como
uma alegoria política do contexto vivido pela Irlanda no culo XIX após a Grande Fome de
1845-49 (embora toda a história seja ambientada em uma região do império austríaco: a
Styria), que causou o abandono de muitas vilas do país e que extinguiu toda a sociedade
feudal da época abalada pelo “Act of Union de 1800. Após toda aquela devastação era
preciso reconstruir a Irlanda e, para tanto, seria necessário extinguir de vez a antiga política
dominante e implantar uma nova sociedade: a burguesa. Assim, Carmilla e suas duas outras
faces Millarca e Mircalla, representavam a resistência da antiga sociedade (a aristocracia) em
admitir uma nova organização social, com novas divisões políticas (a burguesia): para criar a
nova sociedade era preciso exterminar a antiga, ou seja, exterminar a vampira.
Tendo em vista esse contexto, a personagem Laura, descrita como a filha de um
funcionário público aposentado inglês, seria um dos meios encontrados pela personagem
aristocrática representada pela vampira para atingir diretamente a dominação do povo vindo
do “mundo moderno” para formar a nova sociedade burguesa, bem como acontecera antes
com a filha do coronel Spilsdorf. Ambas as famílias se mudaram para aquela região a fim de
reconstruírem suas vidas e manterem uma estrutura de poder e domínio. Dessa forma, o
interesse da vampira pelas jovens justificaria ainda a resistência às novas regras surgidas junto
com a estrutura burguesa, por simbolizar um ataque direto ao cerne fundamental da sociedade
burguesa que se embasava como um todo sobre a estrutura familiar.
Diante disso, temos que a vampira se sente intimamente atraída pela jovem recém
chegada à região e tão logo encontra um meio de se aproximar da garota já começa a seduzi-la
com sua aparente ingenuidade. Carmilla deixa transparecer um grande sentimento de paixão e
84
desejo por Laura, mas, em princípio, de maneira reservada, afetando de forma direta apenas
sua escolhida; desse momento em diante, ela passa a sugar o sangue de sua amada
“consumindo-a” aos poucos, o que lhes permite a sensação de prazer mútuo. Ela segue com
sua intenção (ou sina) de alimentar-se e saciar a própria libido, mas também com o desejo de
manter uma relação de dependência tua que despertasse a doce e ingênua Laura para as
diferentes sensações da vida.
Ao mesmo tempo em que Carmilla permite à Laura a descoberta da liberdade para os
sentimentos do amor e do desejo, ela a domina pela paixão e a necessidade de entrega e
satisfação pessoal.
Para descrever as ações de sua vampira, Le Fanu retoma algumas das características
e ações mais conhecidas do mito. Dentre elas, Carmilla, como vampira, tem hábitos
basicamente noturnos, embora não estivesse confinada à escuridão. Um exemplo disso é a
passagem a seguir, em que Laura nos descreve suas primeiras impressões ao reencontrar
Carmilla no dia seguinte à inesperada chegada:
O dia seguinte chegou e nós nos encontramos. Eu estava encantada com minha
companheira, que me agradava em muitos pontos. A luz plena não ofuscava o seu
aspecto. Ao contrário, jamais alguém tinha me parecido tão bela.
10
(LE FANU, 1985,
p.26)
A jovem vampira podia movimentar-se em um período do dia: após o meio dia,
porém suas forças, nesse período, estão debilitadas e Carmilla, portanto, é a própria imagem
de fraqueza, da falta de proteção. Oposto do que ocorre a noite e especialmente ao longo de
toda a madrugada, quando ela recupera o seu poder por completo e assume uma força
imensurável, capaz de dominar toda forma de resistência física.
10
Next day came and we met again. I was delighted with my companion; that is to say, in many respects.
Her looks lost nothing in daylight she was certainly the most beautiful creature I had ever seen, and the
unpleasant remembrance of the face presented in my early dream, had lost the effect of the first unexpected
recognition. (LE FANU, 2005, p.29)
85
Carmilla possui uma força sem igual, capaz de imobilizar até mesmo um homem
muito forte, como ocorre em uma das tentativas de sua destruição. No trecho a seguir vemos a
descrição a respeito da força sobrenatural da jovem vampira, quando com sua “mãozinha”, ela
segura o pulso do general Spilsdorf que tentava golpeá-la com um machado, imobilizando-o
por algum momento, tempo suficiente para que Carmilla fugisse:
Uma das características do vampiro é a força de sua o. No presente caso, a
mãozinha de Mircalla apertou como um torno de aço o punho do general, quando ele
brandiu o machado para ataca-la. Mas o poder dessa mão não se limita a isso. Ela
deixa uma certa paralisia no membro tocado, de que acontece jamais haver cura.
11
(LE
FANU, 1985, p.78)
Além desse fato, outro que caracteriza Carmilla como um ser sobrenatural, está
relacionado à sua capacidade em entrar e sair do caixão sem que movimentasse qualquer parte
do túmulo, ou mesmo da terra que o cercava, como descreve a seguinte passagem dos estudos
do barão Vordenburg, responsável pela captura da vampira em cena:
Quando são descobertos nos seus caixões, apresentam todos os sintomas do
vampirismo, semelhantes aos constatados na condessa de Karnstein quando de sua
exumação.
O meio pelo qual escapam da sepultura e voltam a ela regularmente, sem deslocar a
terra em torno nem deixar vestígio de desordem, permanece um mistério.
12
(LE
FANU, 1985, p.76)
Ela assumia uma forma etérea. Muitas vezes, esta era a forma de um espectro e o
fazia para vagar durante as madrugadas ao longo das estradas e bosques da região sem que
pudesse ser reconhecida; também dessa forma tinha a liberdade para atacar suas presas e
saciar sua fome de sangue. Vemos uma situação de mudança como essa, quando o general
11
One sign of the vampire is the power of the hand. The slender hand of Mircalla closed like a vice of steel on
the General’s wrist when he raised the hatchet to strike. But its power is not confined to its grasp; it leaves a
numbness in the limb it seizes, which is slowly, if ever, recovered from. (LE FANU, 2005, p.107)
12
When disclosed to light in their coffins, they exhibit all the symptoms that are enumerated as those which
proved the vampire-life of the long-dead Countess Karnstein.
How they escape from their graves and return to them for certain hours every day, without displacing the clay
or leaving any trace of disturbance in the state of the coffin or the cerements, has always been admitted to be
utterly inexplicable. (LE FANU, 2005, p. 105)
86
amigo do pai de Laura descreve o exato momento em que presenciou um ataque da vampira à
sua sobrinha: “(...) Por volta de uma hora da madrugada, percebi uma forma negra, de
contornos indefiníveis, rastejar para a cama e saltar na garganta de minha sobrinha,
transformando-se numa grande massa palpitante.”
13
(Le FANU, 1985, p.70).
Assim, uma das mais fortes e recorrentes características de um vampiro que,
portanto, também ocorre nesta história é o poder de transformação em diferentes corpos, seja
um animal, seja um corpo etéreo. Uma das formas animais preferidas por Carmilla é a de gato
como temos exemplificado no trecho a seguir:
(...) eu distinguia alguma coisa imprecisa que movia-se em volta da minha cama.
Logo me dei conta de que se tratava de um animal negro como carvão, semelhante a
um gato monstruoso.(...) Eu o senti subir com um salto ligeiro para a minha cama.
Os dois olhos enormes se aproximaram do meu rosto. E, de repente, uma dor
penetrante me atravessou, como se duas grandes agulhas (...) tivessem perfurado
profundamente minha garganta.
14
(LE FANU, 1985, p.44)
O gato, por seu comportamento ambíguo, oscila entre tendências benéficas e
maléficas notáveis principalmente por sua atitude terna e dissimulada ao mesmo tempo.
Dotado de grande sagacidade: é observador, malicioso e ponderado; o gato preto possui
qualidades mágicas e, por isso, sempre atinge seus objetivos. Às vezes, o gato preto é visto
como um servidor dos infernos e simboliza, então, a obscuridade e a morte; assim, a forma de
um gato, que também é atribuída, em muitas culturas à forma da mulher (principalmente por
seu caráter dissimulado), é uma perfeita representação do poder de transformação de Carmilla
em uma manifestação animal.
13
(…) I saw a large black object, very ill-defined, crawl, as it seemed to me, over the foot of the bed, and swiftly
spread itself up to the poor girl’s throat, where it swelled, in a moment, into a great, palpitating mass. (LE
FANU, 2005, p. 95)
14
I saw something moving round the foot of the bed, which at first I could not accurately distinguish. But I soon
saw that it was a sooty-black animal that resembled a monstrous cat. (…) I felt it spring lightly on the bed. The
two broad eyes approached my face, and suddenly I felt a stinging pain as if two large needles darted, an inch or
two apart, deep into my breast. (LE FANU, 2005, p. 51-52)
87
Todas essas descrições vistas para demonstrar Carmilla como uma vampira, e que
descrevem seus atos e poderes sobrenaturais, mostram-nos a influência do mito na narrativa e
apresentam-nos um grande exemplo de trabalho com as metáforas que o mito permite
construir: metáforas ligadas à descrição dos relacionamentos e a questões comportamentais do
ser humano em situações de medo e de grande pressão.
Assim, outras hisrias, posteriores, que também retratam o mito do vampiro, porém
sob a ótica das diferentes gerações, conseguem do mesmo modo recuperar a cada geração os
mesmos sentimentos de confusão e medo, questionando a cada época os sistemas que
permitem ao ser humano sentir-se de alguma forma oprimido, ou mesmo punido por expressar
idéias antagônicas.
Temos, então que, para Le Fanu, em Carmilla, o mito do vampiro é descrito como
um morto retornado, alguém que foi mordido por um outro vampiro (como no caso de
Carmilla), ou alguém que cometeu suicídio:
Faz parte da natureza dos vampiros crescer e multiplicar-se, segundo uma espécie de
lei de hereditariedade. Tomemos de início um território isento desse flagelo. Como ele
nasce e se expande ali? Eu vou lhes dizer. Se um ser mais ou menos corrompido se
suicida, poderá, em certas circunstâncias, tornar-se vampiro. E na sepultura, a maior
parte das suas vítimas se transformará em vampiro por sua vez. Este foi o caso da bela
Mircalla, que um desses demônios havia perseguido.
15
(LE FANU, 1985, p.77)
Com isso, o autor recupera, em sua narrativa, várias crenças do folclore europeu
sobre o mito do vampiro, tais como: I) Carmilla é um morto retornado, pois havia sido
mordida primariamente por outro vampiro da dinastia dos Karnstein; II) em decorrência ao
fato de ser um morto retornado Carmilla poderia atacar pessoas de sua família ou não no
caso de Laura, ela é descendente da condessa Mircalla Karnstein (ou Carmilla) por parte de
15
Assume, at starting, a territory perfectly free from that pest. How does it begin, and how does it multiply
itself? I will tell you. A person, more or les wicked, puts an end to himself. A suicide, under certain
circumstances, becomes a vampire. That specter visits living people in their slumbers; they die, and almost
invariably, in the grave, develop into vampires. This happened in the case of the beautiful Mircalla, who was
haunted by one of those demons. (LE FANU, 2005, p. 106)
88
sua mãe; III) na condição de vampiro, Carmilla repousa em seu próprio caixão, onde
permanece, uma parte do dia, imersa em sangue, para que possa recompor seus poderes (o que
justifica, ao longo da história, o fato de Carmilla trancar-se em seu quarto de hóspedes e logo
em seguida sumir); IV) ela precisa, portanto, voltar para seu mulo (ou covil) todos os dias,
pois para se revitalizar Carmilla precisa repousar sob “domínio familiar”.
A questão do “domínio familiar” corresponde ao fato de que toda a família de
Carmilla estava enterrada nas terras que lhes pertenciam em vida e, portanto sua permanência
naquele território simboliza o domínio de sua família sobre toda aquela região onde viveram
no passado; (os ataques da vampira limitam-se aos arredores da propriedade, como forma de
perpetuação do domínio da família Karnstein e, também, como representação da imponência
de toda aquela antiga falia aristocrática, que embora tenha falido, com o passar dos tempos,
insiste em manter suas tradições e seu poder).
Enfim, ao longo de todo o conto encontramos uma perspectiva bastante pessimista
com relação às estruturas sócio-econômicas vividas à época, pois vemos claramente algumas
críticas às relações de poder existentes e às falsas aparências sociais de poder mantidas. A
necessidade de manter-se dentro da cultura vitoriana, onde se preza primordialmente pela
riqueza e a moral, faz com que para manter o poder, famílias que faliram com a nova estrutura
burguesa fugissem para outros territórios, a fim de manter a aparência e tentar resgatar um
pouco da sensação de poder.
Vemos ainda, a questão do ser feminino neste momento de transformações como
uma discussão sobre a presença (ou ausência) da mulher no meio social, sempre presa à
imagem imaculada que lhe fora imposta para que pudessem ser consideradas dignas e
respeitáveis. O fato de apresentar-nos uma figura de mulher tomada pelo sobrenatural trata de
dois aspectos diferentes: uma mulher que se rebela diante de suas amarras sociais; ou ainda,
89
uma mulher que oferece perigo constante à estrutura social, por agir de forma velada,
influenciando outras mulheres para que lutem por liberdade.
Neste ponto retomamos a idéia de que uma representação feminina intimidadora,
capaz de questionar os padrões sobre o que lhe pode ou não ser visto como pecado. uma
nova imagem de mulher em iminência e esta ainda encontra-se na vida quanto ao próximo
passo a ser dado: se adiante, em busca da liberdade e cometendo os “pecados” humanos do
questionamento e exposição pública de suas formas de pensar e agir, ou se estática,
prevenindo possíveis punições aos impulsos e desmandos ocasionados pela escolha daquilo
que até então era visto como impuro e devasso.
Desse modo, ao apresentar-nos uma figura de mulher corrompida e tomada por
modos voluptuosos e liberais, J. S. Le Fanu trata da necessidade em se dar abertura para a
mulher que acompanha as transformações de sua época e apresenta sinais de cansaço e
revolta sobre sua condição. No entanto, aponta essa mesma personagem que quebra as
expectativas de comportamento esperadas à época e demonstra a vontade em expandir seu
espaço, sua capacidade de poder e conquista, como digna de punição por suas transgressões.
Mas por que ainda há punição, se a narrativa caracteriza-se principalmente por
apresentar idéias e imagens inovadoras de quebra e conquista?
Porque o final do século XIX apresenta ainda forte apelo vitoriano em seus modos e
costumes, e apesar das imagens inovadoras e transgressivas, encontramos ainda na estrutura
do romance o espaço de instrução: o romance, uma narrativa de grande apelo às leitoras da
época, exerce ainda sua função educativa de estabelecer parâmetros de comportamento. Como
nos aponta Vasconcelos (2002):
A escolha do romance como gênero literário ainda em formação, sem convenções ou regras
formais rígidas, sem tradição ou rzes e, depois de Richardson, tratava do mundo da casa, da
família e dos sentimentos. Um gênero feito sob medida para elas, justamente por centrar-se
sobre a vida privada e os assuntos domésticos, experiências centrais para as mulheres, como
constataria Virginia Woolf, buscando explicar o interesse feminino pelo romance. (p.108)
90
Portanto, sendo este conto Carmilla escrito por um autor cujo público leitor mais
provável seria o feminino, apresentar a punição a essa personagem mulher que corrompe
parece ser ainda a melhor opção, pois esse comportamento punitivo causa sensação de bem-
estar e justiça social. A corrupção do meio familiar, base do patriarcado desestabilizaria as
vigas que sustentavam o ideal de poder desse período do século XIX, caracterizado por
manter a mulher como personagem secundária de todas as formas de atuações sociais, e
apesar dos passos iniciais em busca da libertação feminina, ainda não há espaço, neste
momento finissecular, para grandes e agressivas modificações.
91
4. SABELLA: Tanith Lee, a ficção científica e uma vamp pós-moderna?
Tanith Lee Kaiine (T. Lee) é autora inglesa nascida em North London no ano de 1947.
Filha de dançarinos, T.Lee não aprendeu a ler até os oito anos de idade, e atribui essa situação
em parte à formação escolar e, em parte, a um pequeno quadro de dislexia que afetou seu
aprendizado. Contudo, seu pai persistente ensinou-a a ler e com nove anos de idade Lee
começa também a escrever.
Ao longo de sua caminhada como escritora, T.Lee escreveu alguns textos infantis, os
quais foram publicados pela editora Macmillan. Com o tempo, passou a escrever textos para o
público adulto, e desde então é conhecida como uma das melhores escritoras de literatura de
fantasia e horror da atualidade.
Apesar da nacionalidade britânica, seus livros de ficção científica, compostos por
temas góticos, somente foram publicados, inicialmente, por editoras estadunidenses. Portanto,
o trabalho de T.Lee é mais famoso entre leitores aficionados por ficção científica e magia, nos
Estados Unidos, do que na Inglaterra. Autora contemporânea, T.Lee é bastante aclamada por
seus trabalhos, tendo sido premiada inúmeras vezes no World Fantasy Award e também no
August Derleth Award, importantes premiações do gênero.
Entre os anos de 1975 e 1980, a autora dedicou-se a escrever romances para o público
jovem com temas de ficção científica e alguns toques de sensualidade e mesmo de eroticidade
sobre o comportamento de seus personagens. Foi durante esse novo período de criação que ela
descobriu um estilo de escrita pprio, peculiar e sedutor, tomado de forte sensibilidade
gótica, sombrio e excitante.
Em sua vasta produção literária, que ultrapassa a marca dos cinqüenta títulos, dentre
romances e coleções de contos e novelas, há uma das mais aclamadas séries do gênero de sua
produção chamada Tales from the Flat Earth, escrita em um período de dez anos, entre os
92
anos de 1976 e 1987. Esta fora considerada uma coleção best-seller em sua hisria de
produção literária e tem como característica geral textos que lidam de modo peculiar com
detalhes estruturais da narrativa, acrescentando senso de humor às situações de medo
apresentadas.
Em narrativas anteriores a essa série, a autora focava seus trabalhos somente em
ambientalizações medievais, cheias de lutas de espadas e com um toque de magia. Contudo, a
partir desse trabalho na série Tales from the Flat Earth, T. Lee inova ao trazer como foco
central de suas narrativas hisrias relacionadas a situações mais atuais envolvidas no tema da
ficção científica, nas quais o sentimento de medo está diante de situações mais próximas à
realidade, porém prováveis, e as personagens do mundo sobrenatural colaboram para que se
mantenha a atmosfera de medo do desconhecido.
Conforme Gene Hargrove (1996), em resenha sobre a série Tales from the Flat Earth,
esta pode ser considerada uma série diferente, porque apresenta indícios de que inicialmente
as histórias o foram trabalhadas pela autora com certa estrutura de dependência entre elas;
tanto que os três primeiros volumes podem ser lidos indistintamente, porque possuem
narrativas completas, com desfecho para toda a trama desenvolvida. Contudo, na medida em
que a autora organizava as histórias seguintes segundo uma mesma linha temática, apresentou
entre os terceiro, quarto e quinto volumes, uma relação de dependência entre as personagens e
as referências narrativas. Neste momento, surgiu o título de série Tales from the Flat Earth e
que organizou o conjunto de narrativas composto por “Night’s Máster” (1978), “Death’s
Máster” (1979), “Delusion’s Máster” (1981), “Delirium's Mistress” (1986) e Night’s
Sorceries” (1987).
Outras tantas séries foram escritas pela autora, tais como, Birthgrave com três volumes
escritos entre 1975 e 1978, uma série também bastante conhecida por leitores do gênero e que
traz à luz, dentre os títulos da autora, a primeira imagem de uma mulher na condão de
93
“morto-vivo”; Four-BEE, com dois volumes de 1976 e 1977; Novels of Vis, com três volumes
entre 1976 e 1983; Castle of Dark, com três volumes entre 1978 e 1986; Secret Book of
Paradys, série com quatro volumes, escrita entre os anos de 1988 e 1993, e que também foi
uma das séries mais procuradas por leitores do gênero; além da série Blood Stone, composta
por dois volumes, ambos escritos no ano de 1980, entre outras.
É nesta última série citada que encontramos uma das narrativas que escolhemos como
objeto de nossa análise: o livro Sabella, segundo volume da série, precedido por Kill the
Dead. Em seu enredo, notamos que Sabella surge a partir de alguns motivos desenvolvidos
pela autora em um dos capítulos do primeiro volume da rie, e também em uma das hisrias
da série The Birthgrave.
A série Blood Stone apresenta em seus volumes a temática da ficção cienfica e do
vampirismo e faz alusão a imagens que remetem ao obscuro, ao medo, aos estranhos
demônios que se apossam da vida de outros seres vivos. Sabella, or the Blood stone, o livro
que compõe o segundo volume da série, como mencionado, é apresentado ao leitor como
um companheiro de outras duas histórias narradas por Tanith Lee porque seu enredo é
composto principalmente pela trama que envolve uma personagem considerada um “morto-
vivo”, uma vampira.
A influência dos outros textos escritos pela autora surge a partir do capítulo
“Sometimes, after sunset”, dentro da narrativa de Kill the Dead. Este capítulo apresenta a
história de duas irmãs que desafiaram o “fantasma-assassino”, um ser sobrenatural notívago;
além disso, também nesta mesma narrativa uma das personagens, uma das irmãs, pertence a
outro planeta, alusão clara a uma das temáticas da ficção cienfica que trata da conquista do
espaço pelo “homem”. o conto The Brithgrave, da série homônima, T.Lee escreve sobre
uma personagem feminina que acorda de seu sono de anos incontáveis e surge diante das
94
pessoas com uma beleza indescritível, capaz de fazer qualquer homem morrer de desejo por
ela: uma vampira.
Ambas as histórias descritas acima apresentam o tema e as características principais da
personagem-título desenvolvida em Sabella: possibilitam a caracterização de um tipo ímpar
de história de ficção científica com inspiração em alguns temas góticos como a presença
do sobrenatural — em conjunto à temática bastante recorrente da ficção científica que envolve
seres extraterrestres. Essas mesmas narrativas, ainda, nos revelam uma personagem feminina
que ocupa posição central na trama, o que nos permite lidar com a questão do feminismo e
suas reivindicações, tão presente à época da escrita.
A personagem central Sabella instiga e inova porque é protagonista e também descrita
ao leitor como uma vampira, ou ainda uma habitante de um outro planeta além de vampira.
Uma mulher com hábitos e comportamentos relacionados ao de um morto-vivo, como vistos
no mito do vampiro e ainda descendente de uma falia da Terra, porém, que vive em uma
colônia de “terráqueos”, em Novo Marte.
Neste romance temos uma história em que o leitor se depara com a fusão entre dois
tipos de gêneros literários: a ficção científica e a fantasia. Ambos permitem a reflexão sobre o
lugar do sujeito social e abre espaço para que este enfrente seus medos interiores diante das
transformações vividas e do desconhecido, e lute para reconhecer o espaço do que é novo e
real.
4.1. Enredo, espaço e representações na ficção científica de Tanith Lee
Em seus textos de ficção científica, Tanith Lee muitas vezes exalta tanto a imagem
quanto a função da mulher na sociedade, oposto do que se dá, em geral, nesse tipo de
narrativa, em que há certa predominância da imagem masculina. Até meados do século XX, a
95
figura da mulher somente aparecia em papéis secundários nas histórias do gênero; contudo, a
partir da década de 70, surgem autoras que desenvolvem de forma mais expressiva os temas
ligados à realidade da mulher e agregam a essas histórias personagens femininas que revelam
um novo olhar mais igualitário sobre a questão do posicionamento social da mulher –
principalmente no que concerne a suas limitações e superações, questionando principalmente
seu papel como mãe.
Tanith Lee estabelece relações diretas entre a mulher e o poder de transformação, e
revela a imagem de uma mulher um pouco mais forte e determinada a se (re)encontrar. É por
meio dessa ênfase no poder feminino que a autora busca mudar a imagem estereotipada da
mulher como ser inferior tanto na literatura quanto na vida real.
Em suas histórias, notamos as diversas possibilidades de disfarce que a autora constrói
para suas personagens, cuja predominância é de personagens com algumas características de
heroínas, pois lutam contra um mal que as persegue. Contudo, essas mulheres heroínas fazem
uso de sua sensualidade e eroticidade, e até mesmo magia, para driblar e enfraquecer seus
inimigos, que em grande parte das vezes são representados por homens.
O fator erótico permite não o domínio sobre a necessidade sexual masculina (o que
representa certa fraqueza e, portanto, sensibilidade do gênero), como permite ainda à mulher
libertar-se das rédeas comportamentais instituídas que as reprime da liberação sexual. A
autora mostra para o leitor moderno as possíveis e as constantes transformações
comportamentais do ser humano e suas expectativas diante das perspectivas de futuro, além
de explorar os questionamentos humanos de maneira a revelar os sentimentos de insegurança
e medo como constantes relacionadas à busca do auto-conhecimento.
Desde o seu surgimento no século XIX, a Ficção Científica tem como principal
característica a função crítica que trata de questões presentes no nosso cotidiano, fazendo um
entrelaçamento entre a ciência, a ética e a sociedade. Um dos principais temas discutidos pela
96
ficção científica é o comportamento humano diante da evolução dos tempos, ou seja, diante
das descobertas científicas, das modificações sociais surgidas a partir dessas descobertas e dos
questionamentos sobre as relações de poder na sociedade, que, na verdade, baseiam-se
principalmente na força política e econômica.
Ao longo dos tempos, as representações da ficção científica passam de uma
perspectiva futurística tomada por ideais de automação e projeção da artificialidade do
mundo, para uma ficção científica voltada ao pensamento humano com ênfase nos
questionamentos comportamentais que deslocam o leitor para outro espaço e tempo e o faz
refletir sobre a realidade em que vive.
Dentre os diversos questionamentos apresentados nessas histórias está também a
problemática da representação feminina. A partir dos anos 60, surgem autoras de ficção
científica que lançam um olhar feminista às suas obras e apresentam discussões sobre o papel
da mulher na sociedade, retratando certa fragilidade na posição da mulher como co-
participante da sociedade.
Em Sabella, temos exemplo dessas caracterizações, pois o foco da história é uma
personagem em busca de seu auto-conhecimento: uma mulher forte que vive sob condões
adversas e luta por seu espaço. Para proteger-se dos olhares preconceituosos, ela vive à
margem da sociedade, sempre afastada dos centros urbanos e escondida em meio aos lobos de
Novo Marte, planeta em que vive. Somente após a perseguição de sua tia Cassi e de Jace é
que Sabella abre-se novamente ao mundo e passa a aprender a lidar com suas diferenças
diante do meio em que vive.
Desses questionamentos sobre idéia futurísticas, sobre convivências entre as
diferenças e mudanças comportamentais, encontramos o espaço necessário e aberto às
representações dos novos conceitos sociais que surgiam ao longo dos tempos e que
97
permitiram as discussões sobre as transformações ocorridas nas estruturas dos
relacionamentos humanos; e que levou ao reconhecimento do período chamado pós-moderno.
Uma das características do período que inicia a chamada s-modernidade é a busca
por uma redefinição dos acontecimentos contemporâneos. Trata-se de um período de
questionamentos, que visa à atualização das formas estabelecidas pelo modernismo canônico
e, dessa forma, no campo estético, trabalha com o ideal do fim da fronteira existente entre a
“alta cultura” e a “cultura de massa”.
Um dos mais importantes teóricos sobre questões da s-modernidade, Frederic
Jameson, afirma que os-moderno faz uma redefinição dos acontecimentos sob um aspecto,
ao mesmo tempo estético e político, já que suas posições implicam em uma avaliação do alto
modernismo e do modernismo clássico em busca de uma “‘semelhança familiar’ entre
produtos e estilos tão heteroneos, não neles mesmos, mas sim em algum impulso ou estética
comum do alto modernismo, contra o qual eles reagem de uma forma ou de outra” (1997,
p.80).
Diante destes questionamentos sobre as identidades estabelecidas, deparamo-nos com
a fragmentão do indivíduo moderno. Uma fragmentação que leva à descentralização do
sujeito diante do mundo, das relações cio-culturais e também do sujeito em si. De acordo
com Hall (1999), uma busca pela nova identidade do sujeito s-moderno que fragmenta
as paisagens culturais, de classe, de gênero, a sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no
passado nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais.
Como exemplos desses questionamentos, vemos as histórias de ficção científica, onde
encontramos espaço privilegiado para tais discussões e também para a construção de retratos
dessa era pós-moderna, pois esta, caracterizada como uma literatura que permite uma visão
futurística, reflete, ainda, um olhar nostálgico do contemporâneo, não como possibilidade
efetiva do porvir, mas como simulação (PEIXOTO; OLALQUIAGA, 1995).
98
De acordo com Sod(1988), “este gênero [a ficção cienfica] cerebral e imaginativo,
que tem como “pais” modernos Julio Verne e H. G. Wells, concentra-se na identificação do
ser humano como espécie, diante da tecnologia e da ciência” (p.49). A literatura de ficção
científica permite a simulação de uma sociedade moldada e desenvolvida segundo as leis da
natureza tecnológica, e que se diferencia da nossa, por fixarem-se a tipos, costumes e a um
linguajar tomado pelo jargão científico e pela lógica. Com isso, vemos que a base da ficção
científica constitui-se de elementos racionalmente explicados, mesmo quando trata de temas
de fantasia, folclore ou bula.
Hall (1999), ao tratar do nascimento e morte do sujeito moderno, aponta que a
conceptualização do sujeito mudou três vezes em pontos estratégicos durante a modernidade:
o sujeito do iluminismo, o sociológico e o pós-moderno. São essas transformões que
libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e estruturas.
Incluso nestas, o impacto do feminismo, tanto como uma crítica teórica quanto
como um movimento social. O feminismo fez parte de um conjunto de movimentos que
trouxe à luz a “política de identidade” e teve uma relação mais direta com o descentramento
conceitual do sujeito cartesiano e sociogico.
Os questionamentos do movimento feminino discutem sobre a clássica distinção entre
o “públicoe o “privado”. Trouxe para a política temas ligados à vida social, tais como a
família e a sexualidade, além de politizar a subjetividade, a identidade e o processo de
identificação (homem/mulher, pai/mãe, filho/filha).
Diante da nova posição que a representa a mulher na sociedade moderna, também fica
claro o medo quanto ao comportamento e às reivindicações da mulher. Na literatura de ficção
científica, vemos a figura da mulher associada à imagem da sexualidade e representadas,
muitas vezes, por monstruosidades; já que por muito tempo esse tipo de literatura fora
considerada quase como exclusividade masculina, tanto de escrita como de leitura; assim,
99
uma representação da liberdade feminina sob as características de algo amedrontador (como
em imagens relacionadas a monstruosidades) refere-se ao temor masculino da igualdade de
poder entre os gêneros.
Como já vimos, a representação feminina surge na literatura do gênero nas décadas de
60 e 70, com o aparecimento de algumas autoras que inserem temas e personagens femininos
em histórias de ficção científica, ate então campo reservado apenas aos devaneios, sonhos,
interpretações e alusões do ser masculino.
Dentre as diversas representações apresentadas, o “temor” manifesto pelo corpo
feminino, origem clássica dos males do homem. A representação do feminino está ligada a
imagens negativas, e muitas vezes imagens destrutivas das forças masculinas. No geral, em
histórias de ficção científica as representações do corpo feminino aparecem relacionadas a
monstros, insetos mutantes e seres sobrenaturais, pois tomado de um mistério indecifrável o
corpo feminino suscita no homem a gana pela dominação e ao não atingi-la, este toma seu
fracasso não como derrota, mas como uma luta contra o impiedoso, o mal, o desconhecido.
Escrita na década de 80, Sabella é uma história de ficção científica escrita sob tom
obscuro, com temas góticos de profunda solidão e medo, que traz à tona uma personagem-
título transformada em vampiro logo quando se descobre na puberdade:
Nós nos mudamos de Easterly porque uma noite, quando eu tinha catorze
anos, saí para um passeio com um garoto que tinha encontrado na estrada
perto da cervejaria. Fora um impulso insano de minha parte e imaturidade da
parte dele. Ele merecia algo, mas não exatamente aquilo que conseguiu. A
patrulha rodoviária encontrou seu corpo nos arbustos. Todos pensaram que ele
havia saído do carro pelo motivo de costume e que um gato selvagem o havia
atacado, o que causou um tumulto porque Easterly não é região de caça. Ele
morrera de insuficiência cardíaca, como sempre. Mas eu fizera um estrago em
seu pescoço. Se vo deixa os dentes se juntarem na veia, a hemorragia é
instantânea. Minha mãe esperou por mim naquela noite, e quando cheguei em
casa, com estranhas cores quentes no vestido, ela se fechou comigo em meu
quarto e me interrogou. Seis horas de interrogatório, mas com a mesma
pergunta, que eu respondia com a verdade; ela então fazia a pergunta
100
novamente, implorando em silêncio que eu negasse tudo, que dissesse que
havia mentido.
16
(LEE, 1985, p.38)
Após descobrir-se nessa condição sobrenatural, Sabella passa a viver sob forte pressão
psicológica, tomada por seu instinto selvagem, porém reprimida pelas condões sócio-
culturais. Sendo que, a todo o momento reflete quanto a seu comportamento, mas sempre sob
tom de culpa: “Sua filhinha fizera uma coisa que mamãe não podia admitir, em que não podia
sequer acreditar, e mamãe ainda tinha que escondê-la de todos”
17
(LEE, 1985, p.39).
Quando sua mãe morre, Sabella sente-se ainda mais culpada, pois acredita ser a única
responsável, que ao longo de sua vida fez com que a mãe abdicasse de si mesma para que
vivesse e suportasse aquela situação a que ela Sabella fora submetida: uma vida de
privações, de solidão, de fuga. Ela e sua mãe viveram escondidas, fora do meio social, porque
sua condição sobrenatural poderia despertar aos outros seres, humanos que também viviam
em Novo Marte, certa desconfiança, curiosidade e medo. É diante dessa situação de solidão e
fuga que Sabella, ao relembrar a vida de sua e diz: “Ela não tinha com quem se abrir,
aqueles anos acabaram com ela. Os três anos, quando tudo começou, em Easterly e os quatro
anos em Hammerstead Plateau.
18
(LEE, 1985, p.39).
Ao longo de sua nova exisncia, Sabella se forte e indestrutível diante das
situações que a cercam, ela aprende a lidar com suas próprias limitações e a conhecer sua
força; ela sempre viveu para si e sempre soube que somente alguém igual e, ou, mais forte do
que ela poderia domar seus instintos selvagens de predadora. Quando então ela se depara com
16
We moved away from Easterly because one night when I was fourteen, I went for a drive with a boy I picked
up on the highway near the bearshop. It was insane instinct on my part, callousness on his. He deserved
something but not what he got. The highway auto-patrol found his body in the bushes. Everybody thought he’d
left his car for the usual reason, and a wildcat had attacked him, which caused a stir since Easterly isn’t hunting
country. He’d died of heart failure, as always. But I’d made a mess of his neck. If you allow your teeth to meet in
the vain there’s a hemorrhage at once. My mother waited up for me that night, and when I came home with
strange hot colors on my dress, she locked us in my bedroom, and she questioned me. Six hours of questioning,
but the same question, which I answered truthfully, which she would then ask me again, imploring me, mutely,
to recant, to say I’d lied. (LEE, 1980, p.36)
17
Her little daughter had done something momma couldn’t admit, couldn’t even believe, and momma still had to
hide it from everyone. (LEE, 1980, p.36)
18
She’d had nobody she could confide in. those years ate her away. The three years when it was starting in
Easterly, and the four years on Hammerhead Plateau. (LEE, 1980, p.37)
101
o personagem Jace, é que realmente sente que pode fraquejar, e a partir dé enfrentada de
maneira nunca vista ou vivida por ela anteriormente.
Desse encontro surgem revelações surpreendentes sobre sua condição de vampira, pois
a partir desse contato com Jace é que Sabella (re)encontra a si mesma e a sua verdadeira
origem: por meio das revelações de Jace é que finalmente ela compreende como havia se
tornado aquele ser tão diferente dos outros e o porquê dessa transformação ainda muito
jovem. O encontro de Jace e Sabella revela-nos a transformação de ambos em seres até então
vistos apenas como “mortos-vivos”, mas na verdade eles haviam sido transformados em
vampiros como forma de resgate das origens dos nativos do planeta Novo Marte, um resgate
do povo em extinção devido a colonização humana dos últimos tempos.
O trecho a seguir nos mostra uma das conversas entre Sabella e Jace, em que
finalmente ele traz à tona toda a verdade sobre a transformação de ambos em seres nativos:
Ele pegou minha mão de leve, como se meu disfarce de um rosto de dois
olhos distraídos pudesse fugir de seu propósito. – Você está assustada, porque
acha que esta morta. Você não está mais morta do que eu. Nós saímos do
túnel, mas não entramos nele. Não fomos nós, você ou eu, que matamos
aquelas crianças que pensávamos ser durante todos esses anos.
- O que então? Alguma coisa matou-os.
- Talvez não. Talvez apenas alguns pedaços deles tenham se separado. Ou se
não isso, apenas o choque de serem copiados. Andaram até o espelho e o
espelho tornou-se vivo. Eu diria que foi um impulso, algum tipo de gatilho
psíquico.
19
(p.157-158)
Essas revelações sobre a concepção e a transformação das personagens do texto,
revelam questionamentos que envolvem natureza, poder, controle, dominação e submissão;
todas essas questões esclarecem divergências e discussões sobre temas ligados à religião, ao
sado-masoquismo, às metáforas do pós-colonialismo e também a um tipo de feminismo
19
He took my hand lightly and looked at it, as if my mask of a face with the two distraught eyes in it, might
distract him from his purpose. You’re scared,” he said, because you think you’re dead. You’re not dead any
more than I am. We came out of the tunnel, but we didn’t go in. nor did we, you or I, kill those kids that we
thought we were all of these years.”
“What then? Something killed them.”
“Maybe not. Maybe just bits of them got discarded. Or if not, just the shock of being copied. They walked up to
a mirror and the mirror came alive. I’d say it was an impulse, a psychic trigger of some kind.” (LEE, 1980, p.
151)
102
simbiótico. Essas situações de mudança comportamental colaboram para a construção das
histórias de ficção cienfica, porque discutem em conjunção à temática das transformões
intelectuais, ligadas à tecnologia e a modernidade, a questão da posição do sujeito moderno
diante de sua fragilidade humana: os sentimentos.
O espaço sico em que a narrativa é apresentada também é exemplo expressivo de
uma das características principais dos textos de ficção científica: o planeta Novo Marte. Como
anteriormente visto, histórias de ficção científica, em geral, buscam por espaços novos,
desconhecidos; e uma das marcas do período em que se destaca a influência dos avanços e
conquistas tecnológicas do chamado “homem moderno” é a conquista do espaço. Assim,
muitas vezes nas narrativas desse gênero literário, vemos descritos ambientes que nos revelam
a conquista de um novo planeta, como ocorre em Sabella.
Neste caso, a história se passa em um planeta chamado Novo Marte, ou uma
reconstrução moderna do que sobrou das transformações ocorridas no antigo planeta Marte.
Com as modificações sofridas, o Novo Marte representa um ambiente de grandes mudanças e
influências tecnológicas, mas que ainda mantém alguma semelhança ao antigo planeta. “Novo
Marte é suficientemente parecido com o velho Marte para que lhe dessem esse nome, mas é
um planeta rosado e não vermelho, uma pérola e não um rubi”
20
(LEE, 1985, p.11).
Nesse ambiente, muitos elementos nos remetem à alta tecnologia tais como casas
tomadas por equipamentos eletrônicos e carros equiparados a espaçonaves, com controle
automático, totalmente robotizados. Um exemplo da rotina de vida nesse lugar é retratado em
uma das descrições mais simples do cotidiano de Sabella, quando esta toma um táxi: “Entrei e
fechei o carro. Liguei o automático e digitei as coordenadas. O carro acelerou, explodiu a
armação da noite”
21
(LEE, 1985, p. 52).
20
Novo Mars is enough like old Mars to have been dubbed with the name, but a pink planet rather than red, pearl
rather than ruby. (LEE, 1980, p.11)
21
I got in and shut the car. I switched on the auto and keyed in the directions. The car revved itself, exploding
the framework of the night. (LEE, 1980, p.49)
103
Também o ser humano é visto de forma mecânica pela ficção científica,
principalmente diante dessas revoluções tecnológicas a que o mundo se submete com a era
eletrônica e diante da transformação comportamental que todos sofrem com a nova realidade
surgida. O ser humano passa a compor a atmosfera do provável, do previsível e dessa forma,
também é visto como um elemento controlável. Em uma das passagens da narrativa, como
esta que se segue, vê-se o exemplo de controle do ser humano, por meio da modernidade:
(...) As bonecas hoje em dia são robóticas e podem fazer qualquer coisa para a
qual sua dona as programe. Comer, dormir, soluçar, dançar, urinar, contar
histórias. E como as bonecas, os humanos, uma vez que recebam certos
programas, farão... qualquer coisa.
22
(LEE, 1985, p. 17)
Dentre tantos elementos muitos outros cooperam para a discussão sobre o
comportamento humano na ficção da era pós-moderna. Contudo, diante das transformações
comportamentais do indivíduo social, o movimento de renovação do ser feminino foi um dos
mais intensos e marcantes dessa nova era, pois não desloca o indivíduo para uma nova
realidade, mas também o faz questionar o momento em que vive e a importância dos novos
papéis da mulher, assumidos dentro dessa estrutura social em que as posições de dominação e
submissão não mais são determinadas pelo sexo, mas pelas novas regras comportamentais
ligadas à auto-confiança e o conhecimento de si próprio.
4.2. Personagens femininas de Tanith Lee em Sabella
A respeito da escrita de Tanith Lee, vimos que em seus textos de ficção científica, a
autora abre espo considerável para as personagens femininas, de modo a caracterizá-las
como mulheres fortes e independentes, buscando sempre construir uma imagem diferente
22
Dolls nowadays are robotic and can do anything your child programs into them. Eat, sleep, sob, dance, urinate,
tell stories. And like dolls, humans, given a certain programming, will do… anything. (LEE, 1980, p.16)
104
daquela da mulher em tempos passados, em que esta era condenada a uma situação constante
de submissão.
Dentre as personagens existentes em Sabella destacamos além da personagem-título,
obviamente, duas outras personagens femininas que representam momentos diferentes da
formação cultural da mulher e suas influências diretas sobre a personagem principal: a mãe de
Sabella e sua irmã, Tia Cassi. Todas as três personagens, cada uma à sua maneira,
representam momentos culturais e comportamentais diferentes da mulher na sociedade, que,
no entanto, permanecem inerentes às expectativas da sociedade diante da função social da
mulher, mesmo que esta continue sua batalha por novas perspectivas de reconhecimento além
da questão de gênero.
Segundo Elódia Xavier em seu texto Tornar-se mulher: um árduo aprendizado(in:
SCHIMIDT, 1997), em grande parte dos textos de autoria feminina o cerne das discussões
esna estrutura familiar, que se caracteriza como espaço social dominante, em que há a raiz
de formação do sujeito, porque de fato traz ao ser adulto a identificação de origem, “fonte,
quase sempre dos conflitos presentes.” (p.169). No romance de Lee deparamos-nos também
com a questão familiar como coluna central para os questionamentos pessoais da personagem
protagonista, visto que todo seu movimento de ação está direcionado à busca do auto-
conhecimento e de sua inserção como membro de uma estrutura social que a aceite.
Das três personagens femininas que tratamos, temos: Sabella, a personagem-título que
sustenta toda a narrativa, que é de sua trajetória de vida e seus questionamentos internos
que o texto trata; Cassilda Koberman, a tia Cassi, que ao longo do texto reconhecemos como
um tipo de personagem rival porque persegue a sobrinha para que esta seja destruída,
eliminando assim o mal de sua família; e a mãe de Sabella, personagem cujo nome não é
citado e que se caracteriza justamente por sua função única de mãe.
105
Sabella vivia isolada em um pedaço de Novo Marte conhecido como Hammerhead
Plateau, um lugar distante de tudo e de todos. Com a morte de sua tia Cassi, finalmente ela se
vê frente a frente com a difícil realidade de que precisaria sair de seu “refúgio” e encarar
novamente o convívio social. Diante disso ela se sente apreensiva: “oh, Sabella Quey, a cruz
está pronta. O funeral, depois de amanhã, puxava-me, como que por sucção, de volta à
realidade”
23
(LEE,1985 ,p.11).
Em meio a essa situação de morte e reflexão, Sabella também reaviva na mente o
passado e recorda da vida e morte de sua mãe, o que intensifica o sentimento latente de medo,
já que a morte de sua mãe remete diretamente às culpas interiores que sente. Por muito tempo,
Sabella consegue deixar de lado as dúvidas quanto a sua verdadeira influência sobre a morte
da mãe. Agora, com essa nova experiência de morte familiar na vida, ela se na
desconfortante situação de reviver a dor da perda e a culpa.
No seguinte trecho retirado da narrativa vemos um exemplo sobre a questão da culpa
que envolve o relacionamento entre Sabella e sua mãe, ou melhor, as lembraas de sua mãe:
Então lembrei a morte de minha mãe, recordação esperada e inevitável, e uma dor
lúgubre passou por mim. Minha mãe, irmã de Cassi, me entendera. Entendera tão bem
que, numa manhã, quando cheguei em casa, ela estava morta, estirada acusadoramente
sob a mancha escarlate lançada pela janela de vidro colorido. Não sei se ela planejava
aquilo ou não (...) Mas minha mãe teve uma morte natural, se é que ataque cardíaco é
natural.
24
(LEE, 1985, p.13)
O relacionamento entre Sabella e a mãe é pa fundamental para que possamos
entender o conflito interno que domina os pensamentos da personagem e interfere de forma
23
But oh, Sabella Quey, the cross stands ready. The funeral, the day after tomorrow, drawing me, as if by
suction, back into the world. (LEE, 1980, p. 11)
24
Then I remembered my mother’s death, the memory also expected and inevitable, and a dreary pang swept
through me. My mother, Cassi’s sister, had understood me. Had understood me so well that one morning I came
home and she was dead, lying there accusingly under the crimson patch cast by the stained-glass window. I don’t
know if she’d planned that, or not. (…)But my mother died of natural causes, if heart attack is natural. (LEE,
1980, p.13)
106
direta em todos os seus relacionamentos de vida, inclusive no tocante a auto-confiança e
reconhecimento próprio.
A culpa que Sabella sente com relação à morte da mãe esno fato de que esta tenha
abnegado toda a própria vida em fuão de proteger a filha contra a perseguição daqueles que
não compreenderiam sua condição de ser sobrenatural e diferente dos demais. Somente por
causa da renúncia de vida de sua mãe é que Sabella pode viver por tanto tempo a salvo
daqueles que a pudessem machucar. Foi essa condição de fuga que as obrigou também a
viverem à margem da sociedade, longe de qualquer tipo de relacionamento social, e ainda
assim sujeitas aos comentários dos demais.
Assim, a culpa pela morte da mãe está no fato de que Sabella sente a dor de ter
relegado-a a uma vida de solidão e de exclusão social, longe da família e de amigos, que
ambas passaram grande parte da vida, reclusas “na velha casa colonial sob as colinas”
25
(LEE,
1985, p.13).
Ademais, as preocupações constantes da mãe com a filha fizeram com que Sabella
reconhecesse o quanto fraca e vulnerável emocionalmente ficou sua mãe, a ponto de o
desgaste emocional colaborar para com a morte da mãe... “A prudência veio muito depois da
culpa, mas antes disso a culpa pegou minha mãe. Fez com que uma veia fina em seu coração
inchasse e explodisse. Matou-a. Eu a matei
26
(LEE, 1985, p.13-14).
Com essa percepção sobre a influência das atitudes da e nas ações e reações de
Sabella, podemos aludir a este comportamento tão próprio de e: função de protetora, o
papel de “mãe perfeita”, um mito que ao longo do século XVIII e XIX descreveu o
comportamento materno como único e essencial ao papel da mulher na sociedade. Ao longo
de todo o tempo em que esteve viva e junto de sua filha, a mãe de Sabella exerce com
25
(...) in the old colonial house under the hills. (LEE, 1980, p.13)
26
Caution came long after guilt, but before then it got to my mother. It made a slim artery in her heart engorge
and burst. It killed her. I killed her. (LEE, 1980, p.13)
107
primazia esse papel de “mãe perfeita”, sendo capaz de dedicar sua vida exclusivamente aos
cuidados da filha, abrindo o de sua própria.
Como no mito da “mãe perfeita” que retoma ao período do século XVIII período
em que as mães abdicavam de suas próprias vidas em favor de uma boa e impecável criação
de seus filhos, sendo que todas eram capazes do extremo de abnegação para garantir o sucesso
de seu papel primeiro de mãe também aqui deparamo-nos com uma mãe capaz de vencer
toda sorte de obstáculos para garantir a segurança e a vida de sua cria. A mãe de Sabella, ao
reconhecer a natureza sobrenatural da filha opta por viver junto dela em um lugar distante e
isolado, para garantir a segurança de ambas.
Todas as situações conturbadas vividas por mãe e filha são marcadas, ainda, pelo
período de adolescência e juventude de Sabella, o que faz com que o relacionamento entre
elas seja ainda mais difícil. Mesmo diante de toda a dedicação da mãe, o instinto selvagem de
Sabella não a permitia reconhecer o quão difícil era para a mãe compreender seu
comportamento rebelde, suas fugas para a caça e sua necessidade em sentir-se livre para tudo.
A proteção materna traz à tona um senso de dominação ao qual Sabella não quer se submeter,
mas sim contornar e mesmo tomar para si.
Diante das muitas situações desconhecidas enfrentadas por Sabella e sua mãe há
também um sentimento de mal-estar que as envolve por quase todo o tempo em que se
mantiveram unidas, e que fora ocasionado, em grande parte, pelo comportamento diferente e
agressivo de Sabella para com os outros, em especial os homens, e para consigo mesma.
A personagem da mãe, nesta narrativa, recupera o papel reconhecido por séculos como
sendo fundamental e obrigatório da mulher: a mulher mãe, que deve dedicar-se
incondicionalmente aos filhos e manter-se distante das preocupações externas, a fim de
garantir uma boa formação social e educacional que sustentasse a estrutura da sociedade. No
entanto, é a esta função primeira de mulher que Sabella se opõe, pois ao perceber-se como
108
diferente (de origem diferente de sua mãe) ela não reconhece essa necessidade de submissão
imposta à função da mãe sua condição de protetora e almeja a liberdade de viver as
próprias regras, submetendo-se somente aos desejos e vontades próprios. Assim é que sua
vida compara-se a de “mulher rebelde” e em vários momentos ela descreve ter como próprio
um comportamento conhecido ao de uma vamp.
Além da personagem da mãe, uma outra personagem feminina que aparece no texto é
a da tia Cassi, irmã da mãe de Sabella, e que faz oposição direta à esta, por meio das crenças e
dogmas cristãos. Cassilda Koberman, ou tia Cassi, traz à narrativa a discussão sobre a
influência da religião crise sua oposição às crenças liberais da modernidade e que inclui
nesta a vivência em harmonia com o ser sobrenatural reconhecido primeiramente por sua
condição de demônio, como é o caso do vampiro.
Para melhor compreendermos a relação de oposição entre Cassi e Sabella,
recuperamos da narrativa alguns trechos que nos apresentam as condições às quais ambas se
submeteram e que as fizeram rivalizar.
Sabella sempre soube que sua mãe, de alguma forma desabafava sua vida “de
aprisionamento” interno e diante do fato de que não tinha muito com quem conversar, torna-
se claro para ela o envolvimento da tia Cassi em suas vidas, mesmo que à distância.
Eu disse que ela (a mãe) não tinha com quem se abrir? Não era bem assim. Sua irmã
Cassi estava sempre no planeta naquela época, vivendo com o marido em Ares: ele
estava construindo a Koberman Corporation. Mamãe deve ter escrito muito a Cassi.
Não creio que ela tenha lhe contado sobre o vasto e inacreditável terror que se havia
abatido sobre seus dias e suas noites. Mas creio que estava lá, nas entrelinhas: um
terrível medo. Cassi não tinha percebido, naquela época estava sintonizada com o
marido e com o dinheiro que ele tinha, embora escrevesse tão raramente que nunca
soubemos nada de certo sobre isso (...) Só no fim, suponho, Cassi releu ou imaginou
as cartas de minha mãe. E os anjos lhe haviam contado o que eu era, e ela aceitara sua
palavra.
27
(LEE, 1985, p.39)
27
Did I say she had no one to confide in? that wasn’t strictly accurate. Sister Cassi was permanently on planet by
then, living with her husband in Ares, and him building up the Koberman Corporation. Momma must have
written Cassi quite a lot. I don’t think she spelled it out, the huge unbelieved terror that lowered over her days
and her nights. But I suppose it was there, if you’d looked through the written lines at the howling fear behind.
Cassi hadn’t looked, then. Cassi had been tuned in to her man and his money, though she wrote so seldom we
109
Diante do fato de que tia Cassi teve acesso a informações sobre a condão de vida e
os acontecimentos que envolvem Sabella em atos obscuros, a personagem passa a fazer frente
à liberdade de ação de domínio de Sabella. Tia Cassi representa a necessidade de combater o
mal, de honrar a morte da irmã que tanto havia sofrido e finalmente destruir o monstro que
havia se apossado da alma de sua família. Sua perseguição à sobrinha vampira recupera na
narrativa o fator religioso que se opõe diretamente às relações de quebra e subversão
atribuídas ao mito do vampiro e que são representadas por meio da personagem de Sabella.
Inicialmente vemos a personagem de Cassilda Koberman descrita como sendo uma
mulher aventureira e um tanto distante da família, sendo que esteve ausente da vida de sua
irmã mesmo quando esta ficou viúva e passou a viver sozinha com a filha ainda pequena.
Apesar de viverem no mesmo planeta, Cassi fica por muito tempo deslumbrada com a vida de
mulher rica que havia conquistado junto ao marido e quase não se relaciona com a família. A
vivência com a irmã e a sobrinha é muito pouca e suas visitas a elas ainda mais raras que
qualquer outro tipo de comunicação, a ponto de Sabella pensar nunca ter sido notada pela tia,
como vemos na segunda passagem: Cassi tinha visitado Easterly, alguns anos antes de nos
mudarmos. Não creio que ela realmente tenha me visto. Minha mãe a aborrecia; era um
dever”
28
(LEE, 1985, p.28).
Com a morte de Cassi, no entanto, Sabella passa a ser tratada com uma atenção nunca
antes dispensada pela tia, principalmente quando é citada em seu testamento. Essa situação
tão inesperada a faz sentir desconfiança, porém desperta em seu íntimo curiosidade suficiente
para fazê-la sair de seu refúgio campestre em busca de mais informões sobre sua vida e
sobre toda a situação que levou a tia a lembrar-se repentinamente de sua existência: “Será que
didn’t really know about that. () Only at the end had Cassi presumably reread my mother’s letters or re-
dreamed them. And the angels had told her what I was, and shed accepted their word. (LEE, 1980, p.37)
28
Cassi had visited Easterly, in the years before we moved house. I don’t think she properly saw me. My mother
bored her; it was duty. (LEE, 1980, p.27)
110
aquilo que pensei ser o vento gelado da noite de Novo Marte era ela me alcançando com seu
dedo morto, apontando, chamando, me condenando?
29
(LEE, 1985, p.9).
Dá-se que, neste momento, Sabella depara-se com a verdade de que a tia havia
descoberto finalmente sua condição de vampira e que ao reler as cartas da irmã, decide
combater o mal que Sabella representa, perseguindo-a até sua destruição. Para Cassi, Sabella,
em condição de vampira, representa toda forma de perigo: perigo de morte e de
desmoralização. Sabella é o demônio, e este, conforme as leis cristãs, deve ser combatido e
destruído.
E Sabella então percebeu o perigo que a rondava: “Eu sabia qual era seu joguinho de
pós-morte, mas me pareceu que tinha tudo arranjado para me pregar a uma Cruz da
Renovação Cristã. Mas será que ela soube disso todos esses anos também?”
30
(LEE, 1985,
p.11),
A figura de Cassi revivendo as pregações cristãs faz com que a personagem represente
uma oposição direta às atitudes de liberdade e libertinas de Sabella, pois que se opõem ao
ideal do comportamento cristão voltado à unidade familiar e da mulher vista como imaculada
mãe e submissa ao papel de mantenedora da estrutura familiar.
Sabella, cujo comportamento de dominação principalmente sobre os homens revela
certa subversão da moral cristã, vive um momento de libertação sexual da mulher que sempre
fora combatido fortemente pelas estruturas sociais, principalmente àquelas sob o olhar
religioso e patriarcalista, pois representa o descontrole do poder do homem sobre a mulher e
uma condição de perigo iminente, que da mulher sempre fora esperada a submissão e a
condescendência.
29
And did I feel her reach out to me in the black eye-star-burning darkness, reach out with her dead finger,
pointing, beckoning, condemning me, me thinking it was only the chill night wind of Novo Mars? (LEE, 1980,
p.9)
30
I didn’t know either what her post mortem game was, but it seemed to me she had set out to nail me on a very
special Revivalist Christian Cross. But then, would she, all these years, have known that too? (LEE, 1980, p.10)
111
Diante do exposto sobre os papéis representados pelas personagens da mãe e da tia de
Sabella, ambas são exemplos de representações estereotipadas de mulheres submissas e
concernentes às regras de comportamento sociais relegadas as elas por tantos e tantos anos, e
cuja função jamais seria a de enfrentar o domínio masculino. Ambas representam, dessa
forma, tudo aquilo a que Sabella faz frente quando busca a liberdade. No entanto, são estes
papéis institucionalizados como padrões de comportamento da mulher que possibilitam
também à personagem Sabella questionar-se quanto à própria função dentro da sociedade em
que vive.
Mas afinal quem é Sabella? O que ela representa?
4.3. Sabella, a vamp da era pós-moderna
A sensualidade e o poder estão intimamente ligados à figura do vampiro, que nos traz
sempre à atmosfera do exótico e do liberal, cheio de imagens fantasiosas e ricas em
simbologias. A figura do vampiro também abre uma grande perspectiva para a representação
feminina do mito que nos apresenta a mulher como um ser humano mais forte que as
representações habituais, mulheres decididas, sedutoras e muitas vezes dominadoras,
chegando ao ápice com a destruição do ser masculino por meio da morte.
As mais destacadas e recorrentes ocorrências da figura feminina do vampiro se dão no
início da era romântica, com manifestações dessa força de destruição na literatura do período
vitoriano, ao longo dos 1900 até meados do século XX.
Em um dos trechos da hisria de Sabella, vemos de maneira clara o domínio e a
fascinação que esta jovem vampira exercia sobre os homens, um poder de atração que a fazia
sentir-se “dona da situação” o tempo todo: “Os rapazes assobiavam ao ver meus flancos
112
esbeltos, minha cintura esguia e cheia de balanço, meus seios fartos de garota. Naqueles dias
(noites) eu não tinha nenhum juízo. Nenhum”
31
(LEE, 1985, p.13).
Para Melton (1995), a vamp é uma figura estereotipada que se originou como uma
extensão do mito do vampiro, mas com analogia ao relacionamento masculino/feminino. A
imagem da mulher vamp funciona como uma projeção de temores, objetivos e atitudes
masculinas diante do mundo. A partir dessas imagens surgiram interpretações tanto
psicológicas quanto feministas sobre o mito do vampiro que acabaram enfatizando um tom de
machismo na lenda do vampiro.
Em Sabella, a metáfora do vampiro nos mostra diferentes perspectivas sobre a relação
dominação/submissão, tanto aos olhos do consentimento, quanto aos do indisposto, como por
exemplo, no relacionamento entre as personagens Sabella e Jace, em que uma inovação:
Sabella até então é poderosa e dominadora, porém, ao deparar-se com Jace, um homem forte,
um ser de mesma natureza que a sua, entrega-se à submissão, revelando encontrar nessa
situação certo conforto, pois com essa entrega, ela passa a reconhecer sentimentos nunca antes
vividos pela mesma, tais como a sensação plena de alívio e satisfação, e o prazer sexual.
Esse reconhecimento da necessidade de proteção masculina é que faz, no entanto,
ressaltar o tom de machismo, já que enfatiza a felicidade completa da mulher, mesmo a mais
independente, somente se esta estiver sob os cuidados e a proteção de um homem;
característica comportamental que marcaria, portanto, certa dependência do elemento
masculino e a continuação da representação do macho como “mais forte” e “mais poderoso”,
em um relacionamento.
Quando ele me ergueu, senti-me retirada de mim mesma, literalmente, como
se meu corpo tivesse escorregado para fora e o novo corpo dentro de mim
ficasse livre. Então ele colocou sua boca sobre a minha de maneira muito
suave e inegável, e começou a me beijar. Um sentimento maravilhoso
31
The boys would whistle after my lean long flanks, nipped-in swaying waist and heavy young-girl breasts. In
those days (nights) I had no wisdom at all. None. (LEE, 1980, p.13)
113
inundou-me. o era apenas sexo, que eu sentira verdadeiramente antes, era
uma sensação de paz, quase de bem-estar.
32
(LEE, 1985, p.152)
Daí a discussão quanto ao papel da mulher na sociedade e seu comportamento. Com a
revolução feminina, a mulher busca por uma independência ainda muito incompreendida e
vive situações precárias, mesmo no ápice do movimento feminista na cada de 80 século
XX. A vontade de se reestruturar na sociedade de maneira a encontrar espaço para decisões
próprias faz com que muitas mulheres sintam-se desorientadas diante de certas situações e
algumas vezes a tão esperada liberdade acaba provocando um sentimento de abandono e
insegurança.
Assim, temos que, apesar de a personagem Sabella fazer frente às condições de
feminilidade impostas por anos às mulheres condições estas que as subjugavam a
qualidade de ser inferior em momentos de confusão e medo, principalmente quanto à
definição de sua ppria condição de vida e de ser social, ela busca alento nos braços daquele
que se mostrou ser o único capaz de protegê-la, ou seja, um homem de sua mesma espécie,
capaz de compreender suas dúvidas e incertezas. Neste caso, as relações de dominão nos
levam a pensar não na questão de gênero, mas também na necessidade em demonstrar
poder e saber usá-lo.
No trecho a seguir encontramos a descrição que a própria Sabella nos dá sobre como
deve ser aquele a quem ela se deixa dominar, e o porquê dessa dominação.
Ele tem que dominar-me, isso é essencial; porque eu bebo o sangue da vida. A
vítima deve ser mais forte que o opressor caso contrário morre. Ele tem que
me dizer quando e como, e para onde ir, e se posso, e eu o obedeço, mas isso
não vai durar para sempre. Não tinha proteção há anos. Queria uma disciplina
além de mim mesma, e precisava dela para me mostrar como poderia me
controlar, e estou aprendendo isso também, ele está me ensinando. No final,
32
As he raised me, I seemed to be lifted out of myself quite literally, as if my body slipped away and the new
body inside rushed free. Then he brought his mouth down over mine very gently and undeniably, and began to
kiss me. A wonderful feeling washed through me. It wasn’t only sex, which I’d never truly felt before, it was a
sensation of peace, of comfort almost. (LEE, 1980, p.146)
114
talvez serei eu a dizer que esse planeta é o lugar para onde devemos voltar e
onde devemos permanecer.
33
(LEE, 1985, p.163)
Assim, temos em Sabella uma imagem de mulher sedutora que usa sua sensualidade
para atrair suas “presas”, mas que ao mesmo tempo vive sob o domínio do desconhecido: uma
força sobrenatural que a toma e gera insegurança, pois diante desse desconhecido é que a
personagem se fora de controle e questiona sobre o que seria seu verdadeiro “eu”. A busca
es diretamente relacionada a necessidade que ela tem em definir e encontrar seu espaço
dentro da realidade em que vive.
De seu encontro com Jace, nasce a oportunidade da revelação, do reconhecimento de
si, e da mudaa de seu comportamento diante das emoções e dos relacionamentos. Sabella
renasce ao compreender sua origem e conhecer a realidade sobre sua condição de vampira.
Quando aos poucos ela toma conhecimento sobre a sua verdadeira identidade e a história de
seu passado e de seus ancestrais, e diante do amor que vive pela primeira vez ao encontrar um
companheiro com sua mesma origem, Sabella finalmente encontra a paz:Sou algo que
matou Sabella, tomou sua forma, sua pele, suas memórias
34
(LEE, 1985, p.152).
Contudo, é importante lembrar que essa entrega à verdade e ao amor não a liberta de
sua condição selvagem e instintiva de vampira, de caçadora. Sabella é uma vampira que ataca
vítimas do sexo masculino para alimentar-se de sua vitalidade, muitas vezes levando-os a
morte. Uma morte que ao mesmo tempo a alimenta e dá um grande prazer às vítimas.
Assim, o fator sobrenatural representa um meio de libertação feminino, uma condição
que oferece a força necessária para o domínio, para a tomada de poder. Um momento de
revelação para os instintos selvagens, de luta e de conquista da mulher e que antes somente
fora atribuído ao homem.
33
He has to dominate me, that’s essential; for I take his life’s blood. The victim must be stronger than the
oppressor or he dies. He has to tell me when and how, and where to walk, and if I may, and I obey him, but
that’s not for always. Ive been anchorless for years. Ive wanted a discipline beyond myself, and I’m learning
this too, he’s teaching me. In the end, maybe I shall be the one to say that this planet is where we return to and
where we remain. (LEE, 1980, p.156)
34
Im something that killed Sabella, took her form, her skin, her memories. (LEE, 1980, p.145)
115
a caracterização de uma personagem sob descrições tais como a de uma vamp
mostra-nos tudo aquilo que uma mulher à moda tradicional – uma mulher vitoriana do século
XIX, e que reinou por século -, jamais suporia ser: agressiva, rebelde, destruidora e, ao
mesmo tempo, irresistivelmente bela e sensual.
Como podemos notar, em Sabella uma forte ilustração sobre o poder da mulher e a
força das imagens que tratam do feminino. Segundo Carol A. Senf (1999) não é necessário
uma profunda psicologia para vermos que a ligação existente entre as mulheres e os vampiros
origina-se do medo do “Outro que, nesse caso, remete ao medo da mulher poderosa e
predadora (p.199). Nesta narrativa, Tanith Lee nos leva a (re)conhecer uma atmosfera de
horror vivida pelo homem diante da sedução da mulher predadora e, ao mesmo tempo,
deparamo-nos com o medo vivido pela mulher diante do desconhecido.
O poder o deve ser visto sob a significação de uma “predação parasita”, ou mesmo
de uma relação inversa entre o predador e a presa, mas como uma troca, uma simbiose. A
autora trata das ansiedades do feminismo como sendo determinadas pelas regras
estabelecidas, e não pelo gênero.
Em Sabella, a sexualidade e as regras sexuais são elementos dominantes e colaboram
para que a narrativa explore profundamente a relação homem/ mulher, sendo que a descrição
da personagem Sabella como uma verdadeira “mulher fatal” condiz com sua primeira função
de extrair toda a energia vital dos homens, transformando-os em escravos e adoradores
pessoais até a morte. Sua caracterização como uma prostituta permite-lhe o envolvimento com
homens de forma mais prática e rápida, sendo este o momento descrito como ideal para sua
alimentação. Também, ao caracterizar-se como prostituta, Sabella liberta-se de sua condição
animal de caça e do seu isolamento social e passa a interagir com os outros seres de Novo
Marte, seres humanos. Daí a simbiose: eles lhe dão alimento e convívio social, enquanto ela
proporciona sensação de domínio e “prazer”.
116
Contudo, essa imagem adotada por Sabella, apesar da possibilidade de liberdade
sexual e dominação gera uma imagem depreciativa da qual ela somente consegue libertar-se
quando encontra um homem verdadeiramente mais forte do que ela, com quem esta divide o
fato de ser descendente de uma raça extinta de Novo Marte. A partir daí, a degradação vivida
por ela até o momento desse encontro com Jace transfigura-se em um recomeço, um momento
de renovação.
Segundo Joan Gordon, no artigo “Sharper than a Serpent’s tooth: The Vampire in
search of its mother” (GORDON; HOLLINGER, 1997) o comportamento vamp de Sabella
parece algo como uma paródia do feminismo visto como maledicente, pois sua imagem surge
exatamente como uma fêmea agressiva destruidora de homens e de seus comportamentos
masculinos, personificando uma das visões sobre fêmea fatal: são as ansiedades do feminismo
reveladas.
Assim, percebemos em nossa leitura que o comportamento agressivo da personagem
faz parte de sua condição rebelde e ocorre somente em momentos de extrema pressão
emocional. Em grande parte das vezes ela demonstra certa preocupação em não apenas
“matar”, mas também proporcionar algum prazer em troca (o que faz referência inclusive à
relação simbiótica proporcionada entre ela e suas vítimas).
Sabella é uma narrativa carregada de forte sentimento de medo diante da força e da
sexualidade feminina que foge ao controle do homem, mas que nos revela a possibilidade de
uma nova regra social, em que as posições de dominação não mais sejam vistas sob a
perspectiva do gênero, e sim quanto à competência em manter o poder e a dominação.
117
5. CARMILLA e SABELLA: (des)encontros nas representações femininas
Os textos escolhidos para corpus de trabalho foram considerados de maneira tal que
pudéssemos exemplificar dois momentos distintos e marcantes das movimentações
feministas. Assim, por meio de suas simbologias buscamos reconhecer a visão de mundo de
cada uma das personagens femininas apresentadas e suas conseguintes vivências dentro da
sociedade contemporânea a cada um dos textos.
Em ambos os textos, deparamos-nos inicialmente com um fator ímpar: a personagem
central da trama é uma mulher e não por acaso são os seus próprios nomes que aparecem
como títulos de cada uma das obras. Essa particularidade sobre o título não as caracteriza
por sua importância na representação feminina, mas também por apresentar narrativas que
tratam principalmente de uma visão intimista sobre as situações expostas, pois ambos os
textos são narrados em primeira pessoa e da mesma forma descrevem situações de vida
relacionadas às impressões mais subjetivas e particulares possíveis.
Em Carmilla, texto datado de meados do século XIX, encontramos marcas referentes às
primeiras vicissitudes comportamentais da mulher e as conseguintes impressões ocasionadas
por essas mudanças no contexto social da época. A imagem que descreve uma mulher capaz
de ludibriar a expressão maior de poder da época o homem e de expor os sentimentos
femininos sobre paixão e desejo instiga na sociedade a preocupação quanto à impotência
daqueles que se justificam dominadores, embasados nas tradições e imposições de posturas
voltadas para a (re)afirmação da moral e da disciplina gida, como era o caso da sociedade
vitoriana.
Há, em Carmilla, duas representações de importância para a afirmação das modificações
comportamentais femininas da época: 1) a própria personagem título da obra, Carmilla, que
representada sob o mito do vampiro revela à sociedade todos os modos transgressores das
118
instituições da época, afetando de maneira direta as questões religiosas; e 2) Laura, a
personagem responsável pela representação do modelo ideal feminino para a sociedade da
época, por sua criação religiosa e tradicionalista, aos moldes do patriarcalismo vitoriano que
levou e elevou a condão de mulher-objeto-comum, ou mulher sem função social.
A todo o momento da narrativa, a condição de ingenuidade da personagem Laura é
posta como fator de primazia tanto no que concerne à manutenção dos modos tradicionalistas
que permitem o controle da estrutura familiar necessária para a sociedade vitoriana
como para que se possa apresentar a possibilidade em libertar-se dessa condição limitadora
camuflada por uma idéia protecionista. Na verdade, a proteção oferecida caracterizou-se como
opressora dos sentimentos da mulher, a fim de mostrar para essa mesma sociedade o quão
necessário era para as mulheres de a época libertar-se das amarras que as prendiam àquela
condição abjeta de invisibilidade e abstenção social.
É a partir da constatação de que uma idéia de nulidade de participação ativa da
mulher na sociedade, que se o questionamento sobre a eficácia e a durabilidade desse
sistema social: em um sistema social no qual a mulher, por sua dedicação integral à família, é
vista como suposta “peça-chave” para a formação e a estruturação da base que sustenta o
próprio sistema patriarcal, o que explica a sua marginalização?
Ao mostrar-nos em seu texto uma mulher vampira, J. S. Le Fanu apresenta à sociedade
de sua época o despertar da mulher para a condição de oprimida; com isso, além de permitir à
sociedade olhar para a condição da mulher em posição secundária e desfavorecida, o autor,
além de apresentar costumes da época, permite ainda a discussão sobre as possíveis
modificações que poderiam ocorrer a partir do momento em que as mulheres decidissem lutar
por liberdade e autonomia.
Uma das conseqüências apresentadas por meio da representação da mulher livre diz
respeito ao perigo que ela possa oferecer ao sistema familiar, político e econômico da era
119
vitoriana: a menos que esta deixe de lado ou mesmo ignore suas necessidades afloradas pela
ânsia de reconhecimento de uma função social relevante, a mulher que almeja uma posição
social no espaço público representa perigo à estrutura familiar patriarcal porque renega a sua
função primeira de “dona de casa” mãe e esposa. Não por acaso, como vimos
anteriormente, a representação da mulher livre e sexualizada se dá por meio de uma figura
monstruosa como a reconhecida no mito do vampiro, que de certa forma oferece perigo
latente às estruturas sociais da época.
Das dicotomias encontradas no texto de Le Fanu, as quais lidam com a questão da
oposição entre a representação da mulher casta vs. mulher pecadora, deparamos-nos
constantemente com a idéia geral de transformação do comportamento feminino diante de sua
condição submissa. Pois neste momento a necessidade está em ampliar os parâmetros de
formação de uma representatividade feminina e em elucidar a sociedade quanto à importância
da colaboração ativa da mulher também na esfera pública, para que esta então passe a não
representar perigo de desestruturação e sim idéia de renovação.
Essas primeiras movimentações de reivindicação da mulher buscam ainda a formação de
uma representatividade capaz de estabelecer características de uma identidade social
feminina, ou seja, primam pelo reconhecimento de idéias, atitudes e ações que demonstrem
aspectos de feminilidade como traços também capazes de conter força e poder.
Também reconhecemos nessa representação mítica do vampiro a abertura necessária
para os questionamentos íntimos não relacionados aos sentimentos de sexualidade e
dominação física e emocional, mas também encontramos espaço para as discussões
relacionadas ao auto-conhecimento do indivíduo com necessidades básicas que independem
de gênero, raça ou classe. Muitas das representações míticas do vampiro aludem às dúvidas
relacionadas ao reconhecimento do Eu próprio e de sua relação com o Outro, ou com tudo
aquilo que lhe é externo e o completa.
120
É dessa perspectiva sobre o autoconhecimento que em Sabella, Tanith Lee retrata uma
situação de vida na qual a personagem-título revela-nos os conflitos psicológicos que a
acometem ao lidar com novas estruturas comportamentais ainda não completamente
enraizadas. Sabella mostra a força da mulher no contexto s-moderno, e descrita sob olhares
de uma autora contemporânea ao auge dos movimentos feministas, a personagem surge com
representação de igualdade a de personagens masculinos.
Contudo, diante dessa representação de força e independência, ainda há certa
insegurança e fragilidade, pois em vários momentos a personagem demonstra sentimentos de
vingança e raiva contra os homens que a cercam, apesar dos sentimentos de solidão e
abandono. Por isso, ainda, é que ao longo de toda a narrativa a personagem parece buscar um
sentido à vida que a permitisse viver a completude de realização como mulher: ela busca a
proteção e a segurança de um relacionamento que lhe dê afeto e estabilidade emocional.
Com texto escrito no século XX e tomado por influências das décadas de 70 e 80, a
representação textual feminina lida com uma imagem de mulher um tanto quanto diferente no
que concerne às suas necessidades de reconhecimento social. Mesmo havendo duas outras
personagens femininas em toda a narrativa, o foco está quase que por completo nas ações e
sentimentos descritos por Sabella, que esta, por muitas vezes, se mostra ao leitor como
mulher solitária em busca de reconhecimento próprio.
Assim, ao apresentar-nos uma personagem feminina vampira, Tanith Lee retoma a
temática do mito que trata dos questionamentos internos para aludir aos próprios
questionamentos vividos pela personagem. No entanto, estes questionamentos não envolvem
apenas a idéia da transgressão social aos comportamentos tradicionalistas de religiosidade e
formação de estruturas familiares e sociais; mas, o mito do vampiro, em uma releitura
atualizada e relacionada às necessidades no mundo atual, depara-se com o cerne do
movimento s-moderno que trata da redefinição do sujeito do indivíduo dentro das
121
novas estruturas comportamentais que surgiram após as revoluções político-econômicas e
sociais dos últimos tempos.
Sendo também uma narrativa em primeira pessoa, Sabella diferencia-se primeiramente
de Carmilla porque é a própria personagem-título que narra sua história de vida, ou seja, as
impressões e sentimentos expostos são os mesmos que retratam os questionamentos
vivenciados pela personagem. Em Carmilla, a narrativa de Laura (também em primeira
pessoa) trata de apontar impressões dos fatos ocorridos e mostra uma posição de submissão
vivenciada pela personagem que também se caracteriza por reconhecer seu Outro, no
relacionamento com a vampira. Mas que, no entanto, retrata-nos as situações vivenciadas pela
vampira com as perspectivas de um observador também.
Enquanto Sabella é a própria testemunha de sua condição de marginalidade, que tem
consciência própria da diferença que a persegue sem, no entanto, compreender o porquê
dessa situação de fuga constante Carmilla preocupa-se apenas em seguir adiante com a
manutenção de seu domínio sobre aqueles que intentam alcançá-la. Carmilla não tem
consciência algum sobre sua condição de vampira e apenas age por instinto.
A imagem de mulher representada por Sabella faz jus à liberdade conquistada pela
mulher em finais do século XX, e exe certo poder de dominação que beira à extravagância
ao representar por vários momentos uma necessidade vingativa em destruir a condição de
masculinidade que a cerca. Sua personagem é representada como uma mulher dotada de
aparência muito sensual e por esse mesmo motivo — pela aparência atraente muitas vezes
ela se vê desejada apenas como um objeto sexual.
Também como Carmilla, Sabella fora transformada em vampira durante sua juventude,
no entanto ainda mais cedo que a primeira, sendo que nem mesmo teve a chance de saber
como isso lhe havia acontecido. Enquanto Carmilla fora transformada em decorrência de um
relacionamento amoroso, Sabella ainda muito menina e inexperiente fora tomada por uma
122
situação em que fora dominada e transformada sem que ao menos soubesse o que lhe tinha
acontecido. Um dia ela se viu nesta situação: desespero, fome de sangue e tomada por desejos
sexuais.
A insensibilidade que a havia tomado fez com que ao longo dos anos, Sabella
desenvolvesse um senso de liberdade próprio e consciente do poder que tinha em mãos,
principalmente sobre os homens, ela passa a viver a ilusão do poder. Ao longo de toda a
narrativa, exemplos de dominação dela sobre aqueles que a perseguiam por sexo, e como
forma de repreensão a essa atitude dos homens que a perseguem, ela os suga até a morte.
Alguns desses homens os que a atraem de alguma forma ela os mantêm por algum
tempo, sugando-os aos poucos até a morte; outros sem importância, ela os consome de uma
única vez. Ela mesma se permite a criação de uma imagem de mulher libertina e com o passar
dos anos isso a faz sentir-se cada vez mais só e marginalizada.
O contexto social descrito em Sabella se opõe àquele que vimos em Carmilla, pois
retrata uma era em que a posição da mulher na sociedade está difundida de maneira ampla e já
estabelece alguns papéis de certa representação pública social, em campos tais como a
economia, a política, e na sociedade como um todo: com mulheres em algumas funções de
destaque quanto a posições de trabalho, apoio político e representação literária e intelectual.
No entanto, ainda há preconceito diante do comportamento da mulher que se expõe de
maneira muito aberta e livre, principalmente em relacionamentos que envolvam sexualidade.
Mesmo em um ambiente futustico, com ideais voltados a novas conquistas e mudanças
comportamentais, ainda há certo preconceito ao lidar com o poder de dominão da mulher. A
menos que ela se justifique por uma vida regrada que visa um bom casamento como o que
acontecera a sua mãe e a sua tia Cassi Sabella estará sempre em posição de alvo: para
críticas, retaliações, preconceitos e julgamentos, pois não insere seu modo de vida ao
123
convencional e tradicional, mas passa a controlar suas decisões visando sempre à liberdade e
auto-suficiência.
A imagem de força e de poder que Sabella constrói para si e que mantém por toda sua
vida apóia-se na necessidade primeira de sobrevivência e proteção, que ao se reconhecer
como ser diferente dos outros ela reaviva em si a sensação constante de medo e de solidão.
Contudo, em vários momentos da narrativa nota-se a necessidade interna que ela tem em
sentir-se protegida por alguém. Há sempre uma busca inconsciente pela imagem masculina de
proteção, o que, por vezes, choca-se com sua resistência à idéia de submissão.
Em Sabella, os jogos de poder estão além da questão de gênero, pois lidam em suma
com a questão do reconhecimento do indivíduo social. A personagem principal dessa
narrativa busca para si a aceitação própria e social de sua condição: ela quer sentir-se parte do
todo, convivendo com as diferenças e particularidades das estruturas sociais que a cercam de
maneira a o sofrer mais discriminações. Sabella somente compreende todos os
acontecimentos de sua vida a partir do momento em que finalmente encontra um homem que
pertence à sua mesma raça e que se dispõe a ser seu companheiro em um relacionamento que
lhe oferece proteção e compreensão.
Com isso, das duas personagens vampiras analisadas neste trabalho, temos que ambas
Carmilla e Sabella representam momentos distintos da trajetória de libertação e
comprometimento da mulher com a sociedade. E ambas ainda vivenciam situações diversas
no trato com a cultura tradicionalista patriarcal enraizada. Tanto uma como outra precisam de
disfarces para infiltrar-se no meio público de convivência e conveniências: Carmilla, em seu
meio social tomado pela cultura vitoriana, prima pela aparência familiar de dama da alta
sociedade, com trejeitos e comportamentos sutis, capazes de mantê-la sempre fora de
suspeitas; Sabella, em contrapartida, para caminhar livremente por entre outros humanos, sem
que desperte qualquer desconfiança quanto a sua condição de vampira, assume por vezes a
124
imagem de prostituta, e dessa maneira garante para si o espaço de ão necessário para
manter-se ativa.
Ambas destacam-se pela beleza e sensualidade, capaz de deslumbrar a qualquer ser
humano, permitindo-lhes o poder de dominação necessário para os envolvimentos afetivos e
para saciar a fome de sangue. Seja como fonte de alimentação, seja como tomada de poder, o
envolvimento que une as vampiras e suas vítimas é sempre o fascínio irresistível de sucumbir
às tentações do prazer, do sexo e da entrega total.
No entanto, para Carmilla o relacionamento afetivo se dá apenas entre vítimas do sexo
feminino e com elas a vampira tem um relacionamento vido de troca de sentimentos e
sensações físicas, que as leva a vivenciar uma ardente paixão. um relacionamento
simbiótico de troca de energias, em que a vampira às suas vítimas mulheres o prazer da
descoberta sexual, livre de preconceitos e repressões, enquanto cada uma das vítimas permite
a ela, Carmilla, reviver a juventude e a mesma paixão que a levou à condição de ser
sobrenatural. Além do fato de que estas mesmas lhe oferecem a permanência eterna por meio
do sangue.
A idéia do lesbianismo voltado para o relacionamento entre Carmilla e Laura revela-nos
também o espo social recluso em que as mulheres estavam restritas: essa relação
homossexual sugerida pelo autor, por vezes, soa ainda como união de forças. Há nesta união
entre mulheres um espaço único de possibilidades para expressar sentimentos e opiniões,
espaço para compartilhamento de algo comum a tanto silenciado, espaço de completude e
companheirismo. Lembremo-nos, aqui, o fato de a mulher da época vitoriana estar à margem
do poder e, portanto da socialização. Dessa forma torna-se bastante pertinente o envolvimento
amoroso entre elas, já que não há espaço aberto e livre no meio social.
Em Sabella os relacionamentos vividos entre a vampira e suas vítimas denotam aspectos
um tanto diferentes, pois em grande parte das vezes ela não se envolve emocionalmente com
125
suas vítima. Todos os seus escolhidos são homens, sempre, e a intenção ao atacá-los é a de
alimentar-se do sangue e em muitas vezes também agredir, que todos se mostram dispostos
a tudo para tê-la em momentos de prazer. Sabella faz de sua beleza e sensualidade, armas de
destruição para reprimir e arruinar a característica de masculinidade dos homens que a
perseguem, usando para isso o sexo.
Há, em Sabella, um sentimento destrutivo forte e constante que domina a personagem-
título e a faz caçadora fugaz, pois ao mesmo tempo em que sente o impulso de caça ,
também, o remorso pela presa. Somente uma ocasião liberta Sabella dos sentimentos de
arrependimento: a caça ao homem, a caça àquele que a usa como objeto de prazer; a estes
Sabella o perdoa e segue com seu instinto animal até o fim.
Diferem-se as vampiras entre si, portanto, primeiramente pela característica do
envolvimento com suas vítimas, pois cada qual exterioriza sua necessidade de liberdade e
dominação de maneiras bastante diversas: Carmilla, a cada relacionamento, mostra sua
necessidade em manter-se viva e sentir-se forte estabelecendo laços de afetividade, em que
possa sentir a troca do prazer e o envolvimento emocional; enquanto Sabella, em sua ânsia
por manter o controle de tudo a sua volta, estabelece com suas vítimas uma relação de
dominação semelhante ao sadismo, que ao provocar a dor também proporciona prazer
mútuo.
Das relações de semelhanças e diferenças existentes entre os textos, podemos perceber o
intertexto de Carmilla em Sabella na medida em que lidamos com as descrições de
personagens femininas que transgridem modos e comportamentos pré-estabelecidos pela
sociedade; na medida em que percebemos a imagem da mulher em um processo de
transformação, o qual se deve considerar a reformulação da imagem de mulher casta,
submissa e resignada, para uma imagem de força e do reconhecimento desta como ser
126
humano dotado de pensamentos e sentimentos próprios, capaz de posicionar-se de modo
autônomo diante das circunstâncias que a cerca.
Apesar desses pontos de confluência que unem os textos quanto à temática feminista e
de retomada do mito do vampiro, notamos divergências ao tratarmos dos posicionamentos
particulares de cada uma das personagens no tocante aos relacionamentos que ambas mantêm
com as situações que vivenciam. Carmilla está em Sabella quanto à impulsividade e ânsia de
encontrar alguém que lhes permita viver a paixão, o desejo, mas enquanto Carmilla opta por
relacionamentos lesbianos que lhe permitam apenas a intensa troca de prazer; Sabella, ao
entregar-se à paixão por Jace, procura sentir-se desejada e protegida.
O contexto cultural e social que envolve cada uma das personagens é questão chave para
o entendimento de cada uma das diferentes entregas emocionais das personagens. Enquanto
Carmilla surge em meio à opressão da era vitoriana período em que a expressão livre dos
sentimentos é reprimida e até mesmo condenada, a depender da intensidade e origem que
podem ter Sabella vivencia os questionamentos do indivíduo s-moderno, que busca
reconhecer suas próprias particularidades, a fim de compreender a própria existência e
justificar sua participação no meio social a que está inserido.
Com isso, após a leitura reflexiva sobre ambos os textos literários e com apoio nos
textos teóricos que discutem sobre os posicionamentos da mulher na sociedade e sobre as
influências míticas do vampiro na literatura, deparamo-nos com a realidade de uma
representação feminina em constante busca por características próprias que sejam capazes de
apresentar uma pequena ilustração sobre a trajetória da incessante busca da (re)colocação da
mulher na sociedade, sendo que ainda há, mesmo que velado, o preconceito assombrado pelas
estruturas tradicionalistas que relutam em aceitar a igualdade de poder e decisão entre homens
e mulheres, e em abrir mão dos símbolos de estabilidade social relacionados ao papel da
mulher mãe, esposa e conservadora do lar.
127
Dos (des)encontros entre as representações femininas vistas em Carmilla e Sabella,
buscamos reconhecer algumas características que colaborassem para a descrição de uma
identidade feminina em ambos os textos, produzidos em momentos distintos, mas que aludem
à mesma temática de representação feminina.
Assim, ao delimitarmos as especificidades comportamentais de cada uma das
personagens centrais em ambos os textos, destacamos as qualidades sensitivas, físicas e
emocionais que colaboram para o reconhecimento de uma voz feminina que clama por
atenção e se destaca ao demonstrar, a despeito do preconceito e marginalização, a força
necessária para seguir em frente na luta pelos ideais que lidam com reconhecimento das
diferenças entre os gêneros como fator principal para o respeito à igualdade de vozes
discursivas entre homens e mulheres.
Ao longo de todo esse trabalho, buscamos apresentar e refletir as diferentes formas de
reconhecimento da função social da mulher na sociedade, seja em um primeiro momento em
que ela aparece somente como representativa do ambiente doméstico — ou espaço privado —
e vive à deriva dos desejos e anseios dos homens “donos do poder”; seja um segundo
momento, em que surgem expostas às tentativas constantes de se mostrarem dispostas a
mudar tal condição limitada, visando a cada geração uma conquista maior dentro do espaço
público de domínio social, econômico e político.
Com a análise dos textos apresentados nesse trabalho, intentamos discutir sobre a
necessidade particular do espaço literário em abrir-se para os novos direcionamentos
questionadores das constantes modificações sociais: que tratam das transformações ocorridas
no comportamento social feminino ao longo dos séculos, desde o momento em que houve os
primeiros sentimentos de esgotamento sobre as severidades do sistema patriarcal de
dominação, até os momentos mais atuais em que o ser humano busca o só tratar dos
posicionamentos sociais diante da esfera referente a nero, classe e condição social; mas
128
também e principalmente quanto aos questionamentos do indivíduo sobre si e sua inserção
particular no meio social.
Focalizamos a análise do posicionamento feminino na sociedade ao longo dos tempos
por acreditarmos que se trata de assunto relevante para os estudos sobre a formação social da
mulher; e também, porque notamos ainda hoje a necessidade em se dedicar espaço
considerável dentro das discussões literárias para o tema relacionado à observação da
trajetória de criação de uma identidade feminina social e literária capaz de representar as
modificações sociais ocorridas ao longo dos tempos em decorrência da crescente contribuição
ativa da mulher na sociedade.
129
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho, realizamos algumas reflexões sobre a questão da
representação literária da mulher e a construção de uma identidade feminina para o
reconhecimento das situações e características singulares ao comportamento feminino em
meio à sociedade.
Dos estudos acerca das teorias e críticas feministas, dos estudos sobre representações
do mito do vampiro e dos apontamentos encontrados nas análises de cada uma das obras do
corpus, depreendemos a importância da representação feminina conforme sua influência
direta aos modelos sociais instituídos, principalmente no que concerne à estrutura familiar.
que por toda a história da evolução humana o papel da mulher na formação das
civilizações revela-se peça-chave para a estruturação e solidificação das organizações sociais,
é imprescindível o reconhecimento da necessidade de discussões relacionadas ao trato das
modificações comportamentais vivenciadas pela imagem da mulher social ao longo dos
tempos.
Assim, dentre as diversas discussões possíveis sobre a representação social da mulher,
um estudo sobre sua influência e percepção na literatura nos permite enveredar pelos
caminhos da ficção com vistas a reconhecer o potencial discursivo e influenciador das
imagens femininas representadas sob a pele de personagens atrevidas, revolucionárias e por
vezes rebeldes, como as representadas pelas vampiras Carmilla e Sabella. São estas as
primeiras impressões de contraposição diante das instituições sociais amplamente difundidas
e fincadas solidamente no terreno do poder patriarcal.
Embora inicialmente as imagens femininas possam apenas ter apresentado situações
de realidade cultural, ou tentativa de exposição dos sentimentos como nos exemplos da
literatura vitoriana, em que as imagens de mulher apresentam, em suma, modelos a serem
130
seguidos. Com o passar dos tempo e as influências da transformação ocorrida na estrutura da
sociedade — devido à intervenção burguesa em conjunto com a Revolução Industrial
notamos que quebras nas regras de comportamento relacionadas ao trato para com a presença
da mulher no meio social, foram conseqüentes e necessárias.
Da representação feminina delineada pelo texto Carmilla, datado de finais do século
XIX, tem-se a nítida impressão sobre a questão do afloramento feminino diante das sensações
e sentimentos íntimos próprios da mulher e que a possibilitaria viver livre da repressão e do
medo. Contudo, a liberdade dessa exteriorização dos sentimentos e a dispersão dos desejos
por uma individualidade e poder de dominão ocasionariam a ruptura e o desmoronamento
do modelo familiar imponente construído pelo patriarcalismo, que dá base às estruturas
sociais ligadas às promissoras transformações político-econômicas da sociedade burguesa
eminente.
O julgo religioso somado às atitudes autoritárias relacionadas às leis de dominação da
“do pai” – chefe do poder familiar corroboram para a delimitação das rédeas sobre o
comportamento humano, de modo a estabelecer e manipular as diferenças entre homens e
mulheres no trato com os direitos e deveres atribuídos a cada um dos sexos, dentro da
estrutura social. Dessa forma, torna-se ainda mais forte a influência do poder limitador que
por gerações confina a mulher ao espaço doméstico.
Em Carmilla, as personagens que estabelecem o embate entre o perfil da mulher casta
ou ideal para o progresso social, e a representação da mulher pecadora que corrompe e destrói
as possibilidades de um contínuo e bom desenvolvimento da sociedade, permitem ao leitor
refletir sobre a questão das novas posições sociais assumidas diante das constantes revoluções
que acompanham o progresso social. O confronto entre as imagens do “bem” sendo aliciadas
e seduzidas pelas forças do “mal” possibilita o reconhecimento de uma nascente e ameaçadora
força de dominação que desestruturaria a harmonia da sociedade vigente.
131
Com isso, a primeira grande luta a favor da representatividade feminina social surge
diante do fato de as mulheres precisarem vencer as barreiras sociais que as fazem assumir
certo papel de vilãs, diante da possibilidade da conquista de poderes relacionados à igualdade
e liberdade, dentro do espaço público de domínio do homem.
Ao tratarmos das análises de representação da mulher no texto de Le Fanu, deparamo-
nos diretamente com a idéia de que a mulher livre, representada pela força do mal, a força
sobrenatural, a vampira, é perigosa e prejudicial ao meio, porque incita o desequilíbrio e
ocasiona o enfraquecimento do poder do homem. Daí o medo quanto à possibilidade de
liberdade feminina.
Somada a essa idéia de desequilíbrio social e retomando as lutas compulsivas por
direitos e deveres iguais entre os sexos, ocorridas nas cadas de 70 e 80 do século XX,
buscamos aparato teórico nas discussões sobre s-modernidade para refletirmos sobre as
representações femininas do texto Sabella, de Tanith Lee.
A partir da leitura sobre as influências contemporâneas no comportamento humano,
principalmente no tocante aos questionamentos internos do sujeito moderno e suas buscas por
reconhecimento individual, delimitamos algumas das características que nos permite discutir
sobre algumas reflexões acerca das posições assumidas pela mulher na sociedade atual.
Em Sabella as personagens femininas estão mais amplamente relacionadas às imagens
daquelas que seguem caminho pprio e mantém espaço definido dentro da sociedade em que
vive. Em finais do século XX a situação da mulher está bastante diferente e há certo equilíbrio
entre as posições assumidas no espaço público de domínio social: homens e mulheres dividem
funções relacionadas ao trabalho, à política e è representação familiar, com certa igualdade de
poder – embora ainda haja preconceito e insegurança na atribuição de poder à mulher.
A própria personagem-título da narrativa lida com experiências controversas de
aceitação social e vive quase toda sua vida à margem da sociedade. Contudo, seu
132
deslocamento social não está apenas relacionado ao fato de ser mulher, mas também diz
respeito aos questionamentos internos que a fazem sentir-se diferente dos demais.
Como exemplo das posições sociais assumidas pelas mulheres contemporâneas, as
personagens femininas em Sabella são bastante independentes diante das funções sociais que
lhes são atribuídas: são mulheres que, inseridas no contexto social da época, têm a liberdade
de tomar as próprias decisões e seguem adiante na busca por seus objetivos, seja no trabalho,
seja na vida pessoal.
Em nossa leitura do texto de Lee, encontramos, no entanto, um retrato de mulher cujo
excesso de confiança e poder escondem, na verdade, os medos internos relacionados ao
abandono, à solidão e à falta de proteção. Em sua releitura do mito do vampiro à luz das
discussões e dos questionamentos que permeiam o período da s-modernidade, Tanith Lee
apresenta uma imagem de mulher uma vampira — tomada por certa dor ao ver-se
completamente só no mundo.
A vampira solitária de Lee desenvolve um comportamento recluso, intimista, e por
vezes agressivo, principalmente no trato com os homens, que a todo o momento é vista e
tratada por eles como objeto de desejo sexual. Diante dessa sua reclusão, ao ver-se como ser
diferente, a personagem parece punir a si própria ao comportar-se como prostituta; ao mesmo
tempo, parece querer punir os homens ao seu redor, por buscá-la somente pelo sexo.
De fato, a personagem Sabella mostra-se atormentada por muitos questionamentos a
respeito de sua origem e existência, o que a faz sentir-se insegura diante das outras pessoas.
Em tempo, notamos que há uma leitura implícita de que a mulher da época – lembrando que a
imagem de Sabella está sendo relacionada à imagem da mulher dos anos 80 do século XX
agora livre e com poder em mãos, não o sabe administrar de maneira a construir uma
perspectiva de futuro segura sozinha. Para tanto ela precisa de uma ajuda masculina, aos
moldes da segurança e proteção oferecida pela imagem do “pai”.
133
Com isso, retoma-se a idéia do desequilíbrio social. No entanto, esse desequilíbrio não
esno fato de que o surgimento da mulher na esfera pública social seja prejudicial ao sistema
vigente, mas antes lida com a idéia de que os papéis sociais entre homens e mulheres são
diferentes e necessários. A exclusão das representações do homem protetor e provedor, ao
longo do texto de Lee, reafirmam a necessidade em se atribuir função social própria a cada
um dos gêneros sociais.
A partir desse percurso analítico, pudemos traçar alguns dos temas típicos
relacionados à representação da mulher na literatura de ficção, sendo que para o
desenvolvimento dos seus papéis institucionais foram levados em consideração os contextos
sociais vigentes a cada uma das épocas retratadas pelas narrativas.
As reivindicações por reconhecimento social, liberdade de expressão,
representatividade política, econômica e cultural, e o auto-conhecimento são os principais e
constantes temas de discussões que permeiam as queses do feminino e que retomam
constantemente as lutas sociais por conquistas relacionadas primordialmente às diferenças
existentes entre os sexos.
Em nossa busca por um reconhecimento da identidade feminina nos textos Carmilla,
de J. S. Le Fanu e Sabella, de T. Lee; buscamos tratar da necessidade de lidar com esse
reconhecimento das diferenças sociais entre os gêneros, que acresce ao convívio dos seres
humanos o exercício contínuo de tolerância e respeito.
Por fim, consideramos que para um melhor entendimento sobre as questões que
envolvam as representações da mulher na literatura, bem como a construção de uma
identidade feminina literária, é preciso o exercício connuo de leitura e análise dos textos
críticos e ficcionais relacionados ao tema, para que se torne possível a realização de uma
leitura concisa e responsável voltada para as (re)descobertas do papel social da mulher e suas
representações literárias.
134
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Autorizo a reprodução xerográfica para fins de pesquisa.
São José do Rio Preto, 16 / 10 / 2008
Ludmila Rode de Campos
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