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[...] no enquadrar um caso concreto em a norma jurídica adequada, submete às
prescrições da lei uma relação de vida real; procura e indica o dispositivo adaptável
a um fato determinado. Por outras palavras: tem por objeto descobrir o modo e os
meios de amparar juridicamente um interesse humano.
Para se ter uma idéia, trazem-se casos recentes e conhecidos em que o Supremo
Tribunal Federal afastou a aplicabilidade das sanções previstas em regras para prestigiar
princípios e outras regras que se conflitavam com a superada. Ávila (2006, p.45) apresenta,
por exemplo, o caso em que o STF afastou a incidência do crime de estupro presumido:
A norma construída a partir do art. 224 do Código Penal, ao prever o crime de
estupro, estabelece uma presunção incondicional de violência para o caso de a
vítima ter idade inferior a 14 anos. Se for praticada uma relação sexual com uma
menor de 14 anos, então deve ser presumida a violência por parte do autor. A norma
não prevê qualquer exceção. A referida norma, dentro do padrão classificatório aqui
utilizado, seria uma regra e, como tal instituidora de uma obrigação absoluta: se a
vítima for menor de 14 anos, e a regra for válida, o estupro com violência presumida
deve ser aceito. Mesmo assim, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o caso em que
a vítima tinha 12 anos, atribuiu tamanha relevância a circunstâncias particulares
não previstas pela norma, como a aquiescência da vítima ou a aparência física e
mental de pessoa mais velha, que terminou por entender, preliminarmente, como não
configurado o tipo penal, apesar de os requisitos normativos expressos estarem
presentes. Isso significa que a aquela obrigação, havida como absoluta, foi superada
por razões contrárias não previstas pela própria ou outra regra (grifos no original).
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Humberto Ávila (2006) traz outros exemplos:
A norma construída a partir do inciso II do art. 37 da Constituição Federal
estabelece que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação
prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos. Se for feita admissão
de funcionário público, então essa admissão deverá ser precedida de concurso
público; caso contrário essa investidura deverá ser considerada inválida. Além disso,
o responsável pela contratação terá, conforme a lei, praticado ato de improbidade
administrativa com várias conseqüências, inclusive o ingresso da ação penal cabível.
Mesmo assim, o Supremo Tribunal Federal deixou de dar seguimento à ação cabível
ao julgar o caso em que a prefeita de um município foi denunciada porque, quando
exercia a chefia do Poder Executivo Municipal, contratou sem concurso público um
cidadão para a prestação de serviços de gari pelo período de nove meses. No
julgamento do habeas corpus considerou-se inexistente qualquer prejuízo para o
Município em decorrência desse caso isolado. Além disso, considerou-se atentatório
à ordem natural das coisas, e, por conseguinte, ao princípio da razoabilidade, exigir
a realização de concurso público para uma única admissão para o exercício de uma
atividade de menor hierarquia. Nesse caso, a regra segundo o qual é necessário
concurso público para a contratação de agente público incidiu, mas a conseqüência
do seu descumprimento não foi aplicada (invalidade de contratação e, em razão de
outra norma, prática de ato de improbidade) porque a falta de adoção do
comportamento por ela previsto não comprometia a promoção do fim que a
justificava (proteção do patrimônio público). Dito de outro modo: segundo a
decisão, o patrimônio público não deixaria de ser protegido pela mera contratação de
um gari por tempo determinado. (grifos no original).
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BRASIL. STF, 2ª Turma, HC 73.662-9-MG, rel. Min. Marco Aurélio, j. 21.05.1996, DJU 20.09.1996, p.
34.535.
6
BRASIL. STF, 2ª Turma, HC 77.003-4-PE, rel. Min. Marco Aurélio, j. 16.06.1998, DJU 11.09.1998, p. 5.