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ANJO OU DEMÔNIO:
posições dos conselheiros tutelares na
atuação junto a crianças e adolescentes
vítimas de violência sexual
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MÔNICA VIEIRA DE SOUZA
ANJO OU DEMÔNIO:
posições dos conselheiros tutelares na atuação junto a
crianças e adolescentes vítimas de violência sexual
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Pernambuco,
como requisito parcial para a obtenção
do grau de Mestre em Psicologia.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Felipe Rios do Nascimento
RECIFE
2008
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Ninguém pode descobrir novos
caminhos até que tenha
coragem de perder de vista
a terra firme.
(ANDRÉ GIDE)
DEDICATÓRIA
Às crianças de todas as idades, àquelas que,
mesmo a guisa de angústias e sofrimentos, não
fogem à fantasia e acreditam poder construir um
mundo novo e maravilhoso, desde que cada um
realize com esmero o seu papel nessa história,
além da imaginação, que é a vida.
AGRADECIMENTOS
Este é, com certeza, o momento mais difícil de todo este trabalho, porque são tantos os
motivos e pessoas que as páginas destinadas serão mínimas para descrevê-los.
A Deus, que escreve certo, por linhas certas, pelo dom da vida e desejo de aprender
sempre;
Aos meus pais, Edvaldo e Zita, que com suas presenças marcantes e constantes em
minha vida, ensinaram-me, silenciosamente, os caminhos do amor, da solidariedade e
da busca constante na qualidade de aprendiz;
Aos meus irmãos (ãs), cunhados (as) e sobrinhos (as), que souberam respeitar e
compreender meus momentos de isolamento e distância para conclusão de mais esta
etapa de crescimento pessoal;
E, mais especialmente, a Luiz Felipe Rios, orientador-amigo, que com sua competência
e compreensão, pacientemente, me acompanhou e se fez presente nesta jornada de
crescimento e descobertas;
Aos professores Jaileila Menezes, Marion Teodósio, Benedito Medrado e Lady Selma
Albernaz, que compuseram as bancas de qualificação e examinadora, pelo apoio e
orientações que ajudaram na construção e desenvolvimento do projeto inicial;
A Tânia Falcão, amiga querida, que incentivou e ajudou para que esta história se
tornasse realidade;
A Ana Cristina, Irageu e Ana Cláudia, pelo companheirismo nas incansáveis reuniões
de construção deste projeto;
A Ana Izabel Corrêa, constante incentivadora e as amigas e funcionários da Clínica de
Psicologia da Facho, pela participação coadjuvante em todo processo de gestação e
efetivação deste sonho;
A Leila, Salete, Fátima, Jaciara, Sandra e Ricardo, adjuvantes nesta história sem fim
que é viver e aprender com a diversidade;
A Mildred Vance, sempre carinhosamente me socorrendo nos momentos difíceis da
digitação;
A Thaís Alves, cunhada-amiga, pela disponibilidade e paciência no árduo processo de
correção ortográfica e textual;
A Gerard e Giovanna, que me ensinam em outra língua os caminhos do respeito, da
justiça e do afeto mútuo;
A Dulcinea Araújo, que pacientemente vem fazendo com que reescreva minha própria
história;
A todos os amigos não nomeados que mesmo sem saber, contribuíram e participaram
deste projeto;
Aos professores e colegas da primeira turma do mestrado do PPGP/UFPE, pelo desafio
constante que é construir conhecimentos;
A Alda e Bruno, funcionários do PPGP/UFPE, pela disponibilidade, atenção e carinho
sempre presente em nossos contatos;
Aos conselheiros tutelares, com quem dividi a angústia que é adentrar neste terreno
doloroso da violência contra crianças e adolescentes, bem como a estes sujeitos sem
voz, vítimas silenciosas da crueldade humana;
Enfim, à magia e ao encantamento que é dividir a vida com outras pessoas, transpondo
limites e possibilidades para nos tornarmos pessoas melhores.
ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Lápis e Caneta – rabiscos...........................................................
13
Figura 2 Choro de Menina........................................................................
21
Figura 3 Corpo..........................................................................................
40
Figura 4 Marcas de Dor............................................................................
70
Figura 5 Encontro.....................................................................................
108
Quadro 1 Lógica que orienta a interpretação da violência sexual entre os
conselheiros tutelares – criança.................................................
90
Quadro 2 Lógica que orienta a interpretação da violência sexual entre os
conselheiros tutelares – adolescente..........................................
91
Tabela 1 Características sociais dos conselheiros.....................................
48
LISTA DE ABREVIATURAS
CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
CT Conselho Tutelar
CEBIA Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência
CECRIA Centro de Referência, Estudos e Ações sobre a Criança e o
Adolescente
CENDHEC Centro Dom Helder Câmara
CP Código Penal
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
GPCA Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IML Instituto de Medicina Legal
MP Ministério Público
ONU Organizações das Nações Unidas
RPA Região Político-Administrativa
SAM Serviço de Assistência a Menores
SIPIA Sistema de Informação para a Infância e Adolescência
UNICEF
Fundo das Nações Unidas para a Infância
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
ILUSTRAÇÕES
LISTA DE ABREVIATURAS
SUMÁRIO
RESUMO
RÉSUMÈ
INTRODUÇÃO.....................................................................................................
14
CAPÍTULO 1
VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL INFANTIL:
bases teóricas do estudo.......................................................
22
1.1
Políticas Públicas para a Infância no Brasil e o lugar
do Conselho Tutelar...................................................
23
1.2
Interpretações, Sexualidade e Operação do Direito...
32
1.3
Sublinhando - o objeto...............................................
37
CAPÍTULO 2
CARACTERIZAÇÃO DO CAMPO..................................
41
2.1
O Método...................................................................
44
2.2
Os Instrumentos.........................................................
46
2.3
Análise dos Dados......................................................
47
2.4
Os Informantes...........................................................
47
2.5
Desvelando o Conselho Tutelar em Recife................
60
CAPÍTULO 3
“PERIGOSAS SÃO AS FERIDAS QUE NÃO DOEM,
NÃO ARDEM, NEM SANGRAM”: sexualidade,
infância e violência ..............................................................
71
3.1
Violência Sexual: um breve panorama do Recife......
73
3.2
A “vítima” do abuso: Anjo ou Demônio....................
82
3.3
Violência sexual e responsabilidade..........................
92
3.4
‘Eu posso até acompanhar, mas não é minha
responsabilidade’.......................................................
96
3.5
Autonomia para decidir..............................................
103
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................
109
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................
117
ANEXOS...............................................................................................................
124
Apêndice A - Roteiro de Entrevista..............................................................
125
Apêndice B - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - Entrevista...
127
Anexo A - Diagnóstico Estrutural – Informações sobre os Conselheiros....
129
Anexo B - Resolução 75 do CONANDA....................................................
130
Anexo C - Decreto N° 19.742/2003 – Regimento Interno...........................
133
Anexo D - Ficha de Identificação................................................................
136
RESUMO
Esta dissertação objetiva analisar as narrativas dos conselheiros tutelares, que atuam nos
Conselhos Tutelares de Recife/PE, no que se refere às violações remetidas à
sexualidade. Estamos em busca, através destas falas, das interpretações sobre
sexualidade infantil e sobre os fatores que concorrem para tanto. Desse modo, busca-se
analisar, nos relatos dos profissionais, na descrição e interpretação de seus atos, as
marcas dos dispositivos de sexualidade (FOUCAULT, 1996; RUBIM, 1993; e
PARKER, 2000), e de outros sistemas, por exemplo, gênero e erótico (cf. SCOTT,
1999; RUBIM, 1993; e PARKER, 1991) que se imbricam para a construção do sexual.
O material foi coletado segundo metodologia de cunho qualitativo pautado nos
referenciais teóricos de Daniel Bertaux (1997), através dos relatos de vida. A amostra
foi construída por saturação e conveniência e se desenvolveu calcada em entrevistas em
profundidade. Os resultados mostrados através dos discursos dos informantes, indicam
sentimentos de desamparo e falta de conhecimento sobre questões relativas ao
desenvolvimento sexual, como também sobre as concepções de infância e adolescência,
que contribuem para o aumento das dificuldades nos encaminhamentos dos casos de
abuso sexual infantil. A proposta deste trabalho é de contribuir para a ampliação do
conhecimento sobre a atuação dos Conselhos Tutelares, a partir de novas pesquisas e
indagações, que daí venha emergir.
Palavras-Chaves: Conselho Tutelar, Abuso, Violência, Criança, Adolescente.
RÉSUMÈ
Cette dissertation a pour objectif analyser les narratifes des conseillers tutélaires quell
agissent dans Conseils Tutélaires de Recife/PE, et qui a pour function assister les
garantie et promotion des droits de l’enfant et le adolescent, les qui référ la violation
rapporter la sexualité. Étion en recherche à travers de ce palores, de l’interprétations sur
la sexualité infantile et sur les facteures qui concurrence par tant. Celui façon
rechercherai trouver les discours des professionnels, les descrption et l’interprétation de
ses actions, les marques des dispositifs de sexualité (FOUCAULT, 1996 ; RUBIM,
1993 ; PARKER, 2002) et aussi d’autres systèmes ( genre et érotique par exemple, cf.
SCOTT, 1999 ; RUBIM, 1993 ; PARKER, 1991) en lutte pour la construction du
sexuel. matériel on cueilleé second méthodologie de caractere qualificatif est basée
les références théoriques de Daniel Bertaux (1997), à travers des discours de vie. Les
données ont é recueilles à travers des entretiens menés en profondeur, suffisants et
satisfaisants. Les résultats obtenus à travers les discours des informants indiquent des
sentiments d´abandon et montrent le manque de connaissances sur les questions
relatives au développement sexuel, ainsi que sur les conceptions de l’enfance et de
l’adolescence, ce qui contribue à l´augmentation des difficultés dans l acheminement
des cas d´abus sexuels infantils. L´objet de ce travail est de contribuer à l´augmentation
des connaissances et à l´action des Conseils Tutélaires, à partir de nouvelles recherches
et de propositions, qui de lá vont apparaître.
Mots-Clés: Conseils Tutélaires, Abus, Violence, Enfant, Adolescent
Nada escrever que não tenha sido pronunciado;
Nada pronunciar que não seja destinado a ser escrito.
(autor desconhecido)
INTRODUÇÃO
Esta proposta de investigação trata do modo como se organiza e atua o Conselho
Tutelar em Recife/PE, um dos órgãos responsáveis pela garantia dos direitos de crianças
e adolescentes, no que se refere ao abuso sexual infantil. Considerando este contexto
institucional, o trabalho tem por objetivo investigar as concepções de sexualidade
infantil, abuso e violência e ações dos conselheiros tutelares acerca das crianças e
adolescentes vítimas de abuso sexual. Para tanto, tomou-se como base os estudos sobre
sexualidade realizados no Brasil (cf. PARKER, 1991, 2002; PAIVA, 2000; RIOS, 2002,
2003, 2004), os conceitos sobre infância e violência (CORAZZA 2000, 2002), sobre os
dispositivos de sexualidade e poder (FOUCAULT, 1996; RUBIN, 1993), bem como de
outros sistemas, por exemplo, gênero e erótico (cf. SCOTT, 1999; HEILBORN, 1984,
1992, 1996) que se imbricam para a construção do sexual.
Vale destacar que este projeto se insere no bojo de dois projetos “guarda-
chuvas” realizados no âmbito da Pós-Graduação em Psicologia, a saber: 1) o projeto
“Pesquisa avaliativa das respostas relacionadas ao sexual, com atores de instituições
governamentais responsáveis pela garantia dos direitos da criança e do adolescente no
Recife”, apoiado pelo CNPq e coordenado pelo Prof°. Dr. Luis Felipe Rios; 2) o
“Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Infanto-
Juvenil no Território Brasileiro”, apoiado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos,
do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e da Agência Norte
Americana para o Desenvolvimento Internacional USAID, e coordenado localmente
pela Profª. Dra. Jaileila Araújo e pelo Prof°. Dr. Luis Felipe Rios. Os referidos projetos
tratam da questão da sexualidade infantil, violência sexual e das respostas institucionais
à questão.
A idéia desta pesquisa surgiu da escuta clínica de crianças e adolescentes vítimas
de violência, no lastro do trabalho que desenvolvo na Clínica-Escola de Psicologia da
15
Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO), e da atuação na Secretaria de
Educação e Desporto de Olinda, onde desenvolvo a função de Coordenadora da Divisão
de Educação Infantil. Essas aproximações possibilitaram verificar perspectivas,
vivências e providências frente às situações de abuso sexual infantil. Possibilitaram
também levantar questões acerca das concepções de infância e adolescência que
perpassam as relações conselheiros/vítimas, principalmente àquelas relacionadas ao
desenvolvimento psicossocial e sexual dos mesmos; bem como, a influência político-
partidária que burocratiza e emperra a concretização de ações que visam a garantia dos
direitos das crianças e adolescentes.
Assim, a falta de esclarecimentos quanto ao funcionamento dos Conselhos
Tutelares, muitas vezes pelos próprios conselheiros, aguçou meu interesse em investigar
como exercem suas atividades estes atores e até que ponto suas ações, atravessadas por
todas essas problemáticas, além dos aparatos socioculturais que perpassam suas
concepções e interpretações sobre o sexual (abuso, violência, iniciação sexual,
contracepção, aborto etc.) interferem na relação conselheiro/vítima, culminando no
distanciamento das reais implicações do ato de violência na vida da criança e do
adolescente e, conseqüentemente, os encaminhamentos previstos pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).
Neste sentido, essa vivência profissional me dava a impressão da existência hoje,
de uma banalização dessas iniqüidades, como também das atitudes e práticas que
hierarquizam as diferenças, que a aplicação do discurso dos direitos humanos no
Brasil tem privilegiado a classe média (observe-se o pânico desencadeado quando das
notificações de violência e maus tratos contra crianças e adolescentes dessa classe
social). Por outro lado, vulgarizam-se essas mesmas queixas quando oriundas das
classes menos favorecidas. Trata-se da banalização da exploração do direito, para o qual
os crimes sexuais contra menores tomam características e encaminhamentos
diferenciados a partir da origem de suas denúncias. Quando oriundas das classes menos
favorecidas são, por vezes, negligenciadas e interpretadas como sedução e/ou
provocação da criança/adolescente frente o agressor. Neste mesmo sentido, a pedofilia
por sua vez, é reconhecida quando essas mesmas queixas são originárias da classe
média dominante.
16
Acrescente-se ao tratamento desigual da questão do abuso o fato de que a
violência, o abuso e os maus tratos à criança/adolescente estarem entre os mais graves
problemas de Saúde Pública no Brasil (MINAYO E SOUZA, 1998). Segundo dados
levantados pelo UNICEF, 49,3% do total de óbitos em crianças, de 05 a 09 anos, são
por causas violentas. Estas situações, nas quais são vítimas as crianças e adolescentes,
ferem os princípios de tolerância e direitos são estabelecidos pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente, a Declaração do Milênio das Nações Unidas para a Infância pela e pela
Constituição Federal de 1988 que, em seu artigo 227, estabelece: “É dever da família,
da sociedade e do Estado, zelar pelo respeito aos direitos das crianças e adolescentes”.
Vale, neste ponto, nos adiantar em relação à contextualização dos Conselhos:
Trata-se de uma instância relativamente nova, criada pela lei, visando dar concretude à
diretriz constitucional da democracia participativa (SEDA, 1991). Neste sentido,
constatando a dificuldade de implantação dos Conselhos e as concepções arraigadas na
sociedade brasileira sobre infância e sexualidade, a Rede de Monitoramento Amiga da
Criança sugere:
A implantação e implementação, junto ao Ministério Público, de
políticas de atendimento à criança e ao adolescente, fortalecendo os
Conselhos dos Direitos, Tutelares e Fundos, combatendo a
fragmentação e setorialização das ações como estratégia para o pleno
cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente e controle do
fenômeno da violência, assim como, assegurar a centralidade da
família da efetivação dos programas respeitadas as diversidades
sociais, étnicas, culturais, de gênero, geração e condições sicas e
mentais
(REDE DE MONITORAMENTO AMIGA DA CRIANÇA, 2004,
p. 95).
Do mesmo modo sugere a realização de pesquisas que possam monitorar o
funcionamento e atuação dos Conselhos já existentes.
Tais questões são aqui confrontadas com uma perspectiva teórica que pensa a
sexualidade como uma construção social, onde os diferentes aparatos concorrem para
dar-lhe sentido. Em outras palavras, perspectivas que olham os acontecimentos sexuais
como ganhando sentido através de estruturas conceptuais, e propõem como caminho
para o entendimento dos aspectos culturais e psicossociais relativos aos agravos sexuais,
a realização de análises contextuais do processo de significação, que se realiza sempre
de modo contingencial e histórico (RIOS, 2004; 2005).
17
Isto porque, o mundo de hoje tem sofrido mudanças profundas. O Século XX foi
marcado pela industrialização, urbanização e modernização, levantando
questionamentos acerca da tradição, da legitimidade da família, da Igreja e do Estado.
Esses questionamentos favoreceram a abertura de caminhos para transformações
fundamentais na sociedade, nos campos políticos, da comunicação e das relações
interpessoais.
O que percebemos hoje, são as profundas mudanças nas organizações sociais,
nos costumes, nas relações, nas subjetividades, que repercutem nos mais diversos
setores da vida do homem. Conceitos como os de sexualidade e o de identidade sexual,
assim como o de violência e gênero, passaram a ser entendidos como uma construção
social, aberta a variações infindáveis e construções que se em diversos âmbitos da
vida do homem.
Imersas neste contexto, as teorias sobre sexualidade, gênero, violência e abuso
sexual infantil se entrecruzam na perspectiva de explicar o alto índice de violência
contra mulheres, crianças e adolescentes, na sociedade atual.
Muraro e Boff (2002) afirmam que a violência é recente na história evolutiva
humana. A relação homem/mulher nas sociedades de caça é marcada pelas relações de
força e poder, no masculino, e de passividade, no feminino. Ao homem é destinado o
domínio público, ficando o privado para a mulher. Com a segunda Revolução Industrial,
no final do Século XX, a mulher entra no domínio público e detém 50% da força de
trabalho. Essas transformações implicaram profundas mudanças no caráter simbólico da
cultura ocidental, assim como na evolução do conceito de sexualidade observada ao
longo do tempo.
Até a metade do Século XVII, a concepção ocidental de sexualidade estava
imersa na doutrina religiosa cristã. A partir de então e durante o período de 1890 a 1980,
portanto longos 90 anos predominaram a influência do modelo médico e a tentativa de
controlar cientificamente a sexualidade. Esse período foi caracterizado pelo paradigma
que se pautava sobre algumas idéias sobre sexualidade: o sexo entendido como força
natural, oposta à cultura; a crença nas diferenças naturais entre feminino e masculino; a
defesa da sexualidade masculina e da prática heterossexual como norma; a crença no
18
conhecimento científico positivo, que defende a natureza da sexualidade é a mesma em
todos os tempo e lugares (CORAZZA, 2000).
Neste contexto, as idéias de Foucault (2006), quanto às aplicações do poder nos
dispositivos que organizam a sexualidade, foram fundamentais para o entendimento da
relação sexualidade X nero X discriminação e da desnaturalização da sexualidade (cf.
PISTELLI, GREGORI, CARRARA, 2004). Para Foucault (2006), a construção
moderna da pessoa está diretamente relacionada à construção da sexualidade como nova
instância da verdade do sujeito.
Hoje, o processo histórico em curso, coloca-nos novos parâmetros sociais
através da ideologia, com sua proposta de igualdade e, conseqüentemente, de dissolução
das desigualdades sexuais e de gênero.
Nesta perspectiva, essa categoria de gênero desnaturaliza as idéias de homem e
mulher. Masculinidade e feminilidade, portanto, não são sinônimos de homem e mulher,
mas metáforas de poder. Poder que atribui à categoria de homem, prestígio e controle
sobre o feminino, visto como inferior e dependente (cf. HEILBORN, 1992). Essas
perspectivas teóricas sobre nero perpassam os estudos realizados sobre violência nas
diversas áreas do conhecimento, visitados para a elaboração desta dissertação, bem
como os discursos dos conselhos tutelares investigados. Remetem também à construção
social das desigualdades de gênero, em que são estabelecidos ingredientes diversos de
poder em função de uma situação tida como realidade biológica.
Talvez isso explique, em parte, o alto índice de violência intrafamiliar,
principalmente contra crianças e adolescentes do sexo feminino. Pesquisas realizadas
em diversas áreas do conhecimento apontam essas categorias como alvos principais da
violência, abuso sexual e maus tratos. Paralelo a isso, o aumento da violência e suas
diferentes formas de manifestações, coloca-se hoje como uma questão crucial para a
sociedade brasileira. A necessidade do enfrentamento dessa situação tem levado
diversos autores a discorrer sobre o tema, apontando como principal fator as imensas
desigualdades econômicas, sociais e culturais, como também o aumento do consumo de
drogas, o desemprego, o alcoolismo e os efeitos perversos da chamada cultura de massa.
19
A violência doméstica, na qual venho a me deter, apresenta-se de forma explícita
ou velada e é praticada dentro de casa. É também chamada de violência intrafamiliar
por estar diretamente relacionada às relações de parentesco. Inclui a violência e o abuso
sexual contra crianças e adolescentes e obedece a um ciclo violento em que são
envolvidos pais (biológicos ou não), mães, avós, tios vizinhos. Sendo o abuso sexual
uma das formas mais comuns de violência contra crianças e adolescentes, este é, na
maioria das vezes, praticado sem o uso da força física, o que dificulta sua comprovação.
É uma forma de violência que envolve poder, coação e/ou sedução. Envolve também
desigualdades básicas de gênero e geração. De gênero porque é praticado em sua
maioria com crianças e adolescentes do sexo feminino e de geração porque envolve
sempre um adulto como agressor e uma criança como tima. Esta é considerada uma
prática “abusiva”, porque vai de encontro aos direitos da criança e do adolescente que,
em uma instância maior, a caracterizam como “sujeitos de direitos”.
Assim, pesquisar as interpretações dos responsáveis nos sistemas de proteção
pelo cuidado à infância violentada possibilitou o levantamento de subsídios para
aprofundar reflexões acerca do referencial de infância e adolescência e dos indicadores
de qualidade de vida estabelecidos pelos órgãos oficiais, assim como, sobre as
iniqüidades sociais com as quais nos deparamos. Possibilitando inclusive dados e
análise que permitem identificar aparatos institucionais que, de fato, garantam o bem-
estar de crianças e adolescentes.
Por fim, são muitas as interrogações que a presente dissertação se propõe a
ensaiar respostas e pretende fazê-lo a partir das narrativas dos conselheiros tutelares
sobre suas atuações, suas concepções e encaminhamentos dos casos específicos de
abuso sexual infantil.
Em termos de estrutura, esta dissertação está subdividida em três capítulos, além
da introdução, considerações finais, bibliografia e anexos. O primeiro capítulo investiga
a doutrina jurídica e apresenta as bases teóricas nas quais está fundado este trabalho.
Assim, a primeira sessão do capítulo apresenta a organização e fundação dos Conselhos
Tutelares; a segunda sessão situa as linhas teóricas dos estudos sobre violência e abuso
sexual infantil, bem como sobre as interpretações de sexualidade e operação do direito,
que marcam os discursos dos conselheiros tutelares e os fatores que concorrem para
tanto.
20
O segundo capítulo discorrerá sobre aspectos metodológicos: os critérios de
seleção da amostra, a caracterização do campo e da pesquisa, os instrumentos utilizados,
as características gerais dos informantes e os eixos teóricos utilizados para análise dos
dados.
O terceiro capítulo, “PERIGOSAS SÃO FERIDAS QUE NÃO DOEM, NÃO
ARDEM NEM SANGRAM: sexualidade, infância e violência”, apresenta a análise das
categorias trabalhadas, baseadas principalmente, nas concepções teóricas dos vários
autores que se dedicaram ao tema, tais, como: Foucault, Freud, Heilborn, Parker,
Saffioti, Rios, entre outros.
Nas considerações finais retorno às idéias-chave deste trabalho para traçar
algumas reflexões sobre tudo o que foi visto neste percurso, bem como, para apontar
algumas sugestões de intervenção, para os profissionais que atuam nos Conselhos
Tutelares, a fim de que possam contribuir para a melhoria do atendimento,
encaminhamentos e garantia dos direitos primordiais das crianças e adolescentes vítimas
de abuso sexual.
A menina estava na escola, aprendendo a ser o que um dia seria plenamente: ela mesma, m
A menina estava na escola, aprendendo a ser o que um dia seria plenamente: ela mesma, mA menina estava na escola, aprendendo a ser o que um dia seria plenamente: ela mesma, m
A menina estava na escola, aprendendo a ser o que um dia seria plenamente: ela mesma, maior
aior aior
aior
e mais sabida. Era tão alegre que até incomodava. Mas a alegria é assim, ruidosa, mesmo se a
e mais sabida. Era tão alegre que até incomodava. Mas a alegria é assim, ruidosa, mesmo se a e mais sabida. Era tão alegre que até incomodava. Mas a alegria é assim, ruidosa, mesmo se a
e mais sabida. Era tão alegre que até incomodava. Mas a alegria é assim, ruidosa, mesmo se a
cultivamos só dentro de nós, nos abafados do coração.
cultivamos só dentro de nós, nos abafados do coração.cultivamos só dentro de nós, nos abafados do coração.
cultivamos só dentro de nós, nos abafados do coração.
Então, o susto de uma lição nova. Estava sozinha em casa. A mãe, nas compras. O pai chegou.
Então, o susto de uma lição nova. Estava sozinha em casa. A mãe, nas compras. O pai chegou. Então, o susto de uma lição nova. Estava sozinha em casa. A mãe, nas compras. O pai chegou.
Então, o susto de uma lição nova. Estava sozinha em casa. A mãe, nas compras. O pai chegou.
Ela correu
Ela correuEla correu
Ela correu, feliz, e se pendurou no pescoço dele. Mas, estranhamente, ele não a soltou. Não. E,
, feliz, e se pendurou no pescoço dele. Mas, estranhamente, ele não a soltou. Não. E, , feliz, e se pendurou no pescoço dele. Mas, estranhamente, ele não a soltou. Não. E,
, feliz, e se pendurou no pescoço dele. Mas, estranhamente, ele não a soltou. Não. E,
depois que o fez, ela se viu como uma boneca quebrada. E aí aprendeu que a dor na memória arde
depois que o fez, ela se viu como uma boneca quebrada. E aí aprendeu que a dor na memória arde depois que o fez, ela se viu como uma boneca quebrada. E aí aprendeu que a dor na memória arde
depois que o fez, ela se viu como uma boneca quebrada. E aí aprendeu que a dor na memória arde
mais do que no corpo.
mais do que no corpo.mais do que no corpo.
mais do que no corpo.
A mãe não notou a verdade em seu rosto, nem ninguém n
A mãe não notou a verdade em seu rosto, nem ninguém nA mãe não notou a verdade em seu rosto, nem ninguém n
A mãe não notou a verdade em seu rosto, nem ninguém na escola, em parte por miopia, em
a escola, em parte por miopia, em a escola, em parte por miopia, em
a escola, em parte por miopia, em
parte porque a alegria tem muitos disfarces. Achavam que a menina era a mesma. andava
parte porque a alegria tem muitos disfarces. Achavam que a menina era a mesma. andava parte porque a alegria tem muitos disfarces. Achavam que a menina era a mesma. andava
parte porque a alegria tem muitos disfarces. Achavam que a menina era a mesma. andava
menos falante.
menos falante.menos falante.
menos falante.
Quando o pai chegava em casa sorrindo, ou entre outras pessoas, agia como antes, e ela emudecia.
Quando o pai chegava em casa sorrindo, ou entre outras pessoas, agia como antes, e ela emudecia. Quando o pai chegava em casa sorrindo, ou entre outras pessoas, agia como antes, e ela emudecia.
Quando o pai chegava em casa sorrindo, ou entre outras pessoas, agia como antes, e ela emudecia.
Era o seu avesso: uma
Era o seu avesso: umaEra o seu avesso: uma
Era o seu avesso: uma menina na calada do dia! E aprendeu que o silêncio era o seu medo no
menina na calada do dia! E aprendeu que o silêncio era o seu medo no menina na calada do dia! E aprendeu que o silêncio era o seu medo no
menina na calada do dia! E aprendeu que o silêncio era o seu medo no
último volume.
último volume.último volume.
último volume.
Ele se repetiu outras vezes nela, esmagando, aos poucos, o que restava de sua incômoda alegria.
Ele se repetiu outras vezes nela, esmagando, aos poucos, o que restava de sua incômoda alegria. Ele se repetiu outras vezes nela, esmagando, aos poucos, o que restava de sua incômoda alegria.
Ele se repetiu outras vezes nela, esmagando, aos poucos, o que restava de sua incômoda alegria.
E já quase sem voz, a menina aprendeu o que era a solidão.
E já quase sem voz, a menina aprendeu o que era a solidão.E já quase sem voz, a menina aprendeu o que era a solidão.
E já quase sem voz, a menina aprendeu o que era a solidão.
Assim estava
Assim estavaAssim estava
Assim estava, tão dolorida, tão sem esperança...
, tão dolorida, tão sem esperança..., tão dolorida, tão sem esperança...
, tão dolorida, tão sem esperança...
quando, de repente, se inflou de coragem
quando, de repente, se inflou de coragem quando, de repente, se inflou de coragem
quando, de repente, se inflou de coragem
uma coragem que uma menina triste é capaz de ter.
uma coragem que uma menina triste é capaz de ter. uma coragem que uma menina triste é capaz de ter.
uma coragem que uma menina triste é capaz de ter.
E, então, mostrou a todos que reaprendera a primeira e mais difícil lição.
E, então, mostrou a todos que reaprendera a primeira e mais difícil lição.E, então, mostrou a todos que reaprendera a primeira e mais difícil lição.
E, então, mostrou a todos que reaprendera a primeira e mais difícil lição.
Reaprendera a falar. E falou. Tudo.
Reaprendera a falar. E falou. Tudo.Reaprendera a falar. E falou. Tudo.
Reaprendera a falar. E falou. Tudo.
(Fala
(Fala (Fala
(Fala -
--
- João Anzanello Carrascoza)
João Anzanello Carrascoza) João Anzanello Carrascoza)
João Anzanello Carrascoza)
CAPÍTULO 1 VIOLÊNCIA E ABUSO SEXUAL INFANTIL:
investigando a doutrina jurídica e estabelecendo
as bases teóricas do estudo
1.1 – Políticas Públicas para a Infância no Brasil e o lugar do Conselho Tutelar
A preocupação com o lugar da criança na sociedade não é nova. Em todas as
culturas concepções sobre o que no olhar da ciência ocidental, chamamos de
desenvolvimento humano (LEITE, 2001). Não obstante, o modo como são
categorizadas as fases da vida e o que é inerente a cada uma destas varia cultural e
historicamente (ÁRIES, 1981). Sem querer fazer uma recuperação histórica sobre isso
(para a qual remetemos o leitor a Ariès (1981), Corazza (2002), Leite (2001)) e trazendo
esta discussão para o contexto das políticas públicas brasileiras, é importante lembrar
junto com Corazza (2002) e Leite (2001) os principais momentos e mudanças no modo
como as políticas públicas sobre a infância foram percebidas na história braseira mais
recente.
Desde a época do Brasil Colônia até os dias de hoje, o Estado tem assumido
quatro atitudes em relação às questões relativas à infância e a adolescência em situação
de risco. Segundo Corazza (2002), até o inicio do século XX, os programas destinados à
proteção de crianças e adolescentes eram de responsabilidade de entidades religiosas e
filantrópicas, o que caracterizava uma nítida omissão por parte do Estado na garantia
dos direitos dessas pessoas. Em 1738, foi instituída no Brasil a Roda dos Expostos,
considerada uma solução para o problema da filiação indesejada, pois garantia o
anonimato e restabelecia a tranqüilidade e felicidade familiar. Estas persistiram até
meados do século XX quando o discurso médico-higienista toma força e elege a
assistência às crianças expostas como um de seus alvos prioritários para intervir nas
condutas da família patriarcal assentada em uma sociedade escravocrata (COSTA,
1989).
Com o fechamento da Roda dos Expostos, um novo modelo de recolhimento é
instituído no Brasil: os internatos e asilos destinados às crianças e adolescentes
abandonados. É neste contexto que, em 1927, foi criado o primeiro Código de Menores,
24
que objetivava consolidar e unificar as leis de assistência e proteção aos menores de 18
anos. Em 1934, durante a ditadura Vargas, o Governo Federal toma a iniciativa de
investir na educação e cria inúmeras escolas públicas com o objetivo de manter as
crianças educadas e preparadas para o trabalho. Cria também em 1940 o Serviço de
Assistência aos Menores (SAM), com o objetivo de normatizar as instituições públicas
que desenvolviam ações com os menores (LEITE, 2001). Porém, o SAM não conseguiu
cumprir sua função e foi substituído em 1960, pela Fundação Nacional do Bem-Estar do
Menor (FUNABEM), caracterizando assim a terceira fase
1
.
Ainda segundo Leite (2001), embora trazendo a premissa de bem-estar, esta
instituição também não apresentou mudanças em relação à política de assistência à
criança e ao adolescente. Com o passar do tempo a preocupação com o bem-estar foi
deixada de lado e a Fundação passou a configurar o quadro das instituições destinadas a
prisão e/ou internatos para menores. Em 1982, a FUNABEM realizou debates com
diversas camadas da sociedade, o que culminou com o primeiro texto do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), sancionado lei em 1990. Nasce assim o Centro
Brasileiro para a Infância e Adolescência (CBIA), que embora tenha herdado os
aparatos repressores dos antigos internatos, tem procurado desenvolver uma política de
atendimento e garantia dos direitos das crianças e adolescentes a ele destinados.
Embora o Brasil não tenha uma prática de política do bem-estar de crianças e
adolescentes, encontram-se diversos relatos de instituições destinadas ao acolhimento
destes em “situação de abandono”
2
. Estas instituições eram destinadas ao confinamento,
o que revela a opção do Brasil pelo modelo asilar que perdura até hoje e a compreensão
que se tem por política pública de atenção às crianças e aos adolescentes.
Este modelo de atendimento a crianças e adolescentes segue modelos originários
no Século XVIII, no contexto de uma política de organização do país que
buscava/defendia a hierarquização da população por raça e condição social, em um
modelo de democracia conservadora, na qual o poder estava centralizado em uma única
figura o rei. Hoje, o Brasil segue um modelo de democracia participativa, na qual as
1
Irene Rizzini (2004) divide em fases a organização das políticas públicas para a infância e adolescência
no Brasil, sendo a fase representada pelas instituições religiosas de recolhimento de órfãos, desvalidos
e bebês abandonados, no Brasil Colônia; a fase é caracterizada pela criação da Roda dos Expostos,
seguida do discurso médico-higienista e a fase é caracterizada pela criação do primeiro Código de
Menores, que deu origem ao SAM e à FUNABEM.
2
A terminologia “risco social surgiu por ocasião da discussão que deu origem ao ECA.
25
decisões políticas passam, de certo modo, pela população, e são tomadas segundo a
participação dos diversos segmentos sociais que compõem a sociedade brasileira,
através de seus representantes legais, nomeados pelo voto direto para o poder executivo
e legislativo. Nesse contexto é que são pensadas as políticas públicas para a infância e
adolescência. Contudo, percebe-se que, em termos de atenção à criança e ao
adolescente, o Brasil o tem tradição, ou seja, não tem em sua história, situações de
atenção na qual prevaleça a garantia de direitos dessas pessoas. Ao contrário, na
história brasileira, são comuns os casos de violação e desinteresse para com os direitos
de crianças e adolescentes.
Conforme Azevedo (2005), as discussões sobre políticas públicas para a infância
e adolescência tomam novo fôlego com o processo de redemocratização, nos momentos
de discussão para a construção da Constituição de 1988. É trazida a cena legislativa para
discussão a “Política Nacional do Bem-Estar do Menor” e o “Código de Menores”,
então vigentes. Ao lado disso, “ampliam-se as denúncias sobre a gravíssima situação
enfrentada pela infância brasileira, bem como, a constante violação de seus direitos”
(AZEVEDO, 2005, p. 177).
no final da década de 80 pode-se perceber uma modificação na forma dos
textos normativos lidarem com a infância e adolescência, o que culminou com a criação
do ECA. A constatação da ineficácia do “Código de Menores” e os projetos daí
derivados levaram a busca de uma abordagem inovadora que tiveram como
conseqüência a criação de inúmeros serviços de atendimento de crianças e adolescentes
vítimas de violência e abuso sexual.
Direito conquistado, é hora de partir para a elaboração de uma nova lei que
revogasse a velha legislação do período autoritário. O resultado da luta travada pela
sociedade em busca de seus direitos é a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), instituído pela Lei nº. 8069/90. Marco normativo histórico que tem inspirado e
servido de exemplo para outros países do continente (AZAMBUJA, 2005).
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é um instrumento legislativo que
objetiva dar maior proteção à infância e adolescência. Fundado nos princípios da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), na Declaração Universal dos
Direitos da Criança (1959) e na Constituição Federal (1988) é visto como uma
26
legislação inovadora que vem substituir o ultrapassado Código de Menores. O ECA
a criança e o adolescente como “cidadãos” e seres em desenvolvimento” que, dessa
forma, são passíveis de direitos e necessitam de proteção integral (BRASIL, 1990).
O aprofundamento dos debates leva à criação, pelo Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), dos Conselhos Tutelares. O Órgão,
fundado pelo ECA, dispõe: “É obrigação de todos os municípios, mediante Lei e
independente do número de habitantes, criar, instalar e ter em funcionamento, no
mínimo, um Conselho Tutelar enquanto órgão da administração municipal” (BRASIL,
1990, p. 65).
Trata-se de um órgão criado pela lei, visando a imprimir concretude à diretriz
constitucional da democracia participativa (cf, ART. 227, § 7º, c/c ART. 204, Inciso II),
sistema de governo que não se contenta com a existência dos requisitos formais, mas
que reclama a participação do cidadão na administração das questões públicas
(GARRIDO DE PAULA, 1993). A adoção deste novo paradigma inaugurou no país
uma forma completamente nova de perceber a criança e o adolescente que vem, ao
longo dos anos, sendo assimilado pelo chamado “Estado de Direito”. Ainda assim, a
realidade das crianças e adolescentes vítimas de violência e abuso sexual estão longe do
que preceitua o ECA e a Declaração das Nações Unidas para a Infância, criada pela
ONU em setembro/2000, na qual os Estados Membros das Nações Unidas, da qual o
Brasil é signatário, firmaram um compromisso de cuidar da pobreza que incapacita e da
miséria que se propaga no mundo.
O Conselho Tutelar, conforme reza o art. 131 do ECA, “É um órgão permanente
e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento
dos direitos da criança e adolescente definidos por lei” (BRASIL, 1990, p. 65). Sua
principal atribuição é:
atender as crianças e adolescentes cujos direitos estejam ameaçados
ou violados por ação ou omissão do Estado ou da sociedade, por falta,
abuso ou omissão dos pais ou responsáveis; ou em razão da própria
conduta das crianças e adolescentes, tomando imediatamente as
providências cabíveis para a cessação dessa ameaça e a restituição do
direito
(BRASIL, 1990, p. 65).
Para desempenhar a missão de proteger em nome de todos, os direitos das
crianças e adolescentes, esses conselhos passaram a ter a faculdade de ampliar as
27
medidas que constituem suas atribuições, exercendo uma parcela de poder (não-
jurisdicial) que tem por objetivo a execução de medidas nas áreas de serviços públicos
tais como: saúde, educação, previdência e assistência social, trabalho e segurança, bem
como, a medidas de abrigamento, quando da violação dos direitos das crianças e
adolescentes, previsto no Art. 220, § da Constituição Federal (GARRIDO DE
PAULA, 1993).
Segundo o Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (SIPIA)
existem cerca de 3.814 Conselhos Tutelares no Brasil, o que demonstra, por si só, a
enorme necessidade de ampliação e implementação de novos Conselhos. Dado o
número de municípios (IBGE, 2002) que compõe a Nação, implicaria na existência de
um total de aproximadamente 5.560 Conselhos em todo o país. Percebe-se, neste
sentido, que apesar das dificuldades de implementação e atuação dos Conselhos
Tutelares, estes representam um marco na história jurídica do país, como também, uma
conquista da sociedade brasileira na busca pela cidadania. Cidadania esta, ameaçada
constantemente pelo alto índice de exploração, maus tratos e violência contra crianças e
adolescentes, dentre elas, o abuso sexual infantil.
Historicamente, a emergência do termo “abuso sexual infantil” está diretamente
relacionado e favorecido pela construção da noção de infância. É a partir do lugar que se
atribui à criança no culo XVI na Europa, que foi possível em meados do século XX,
caracterizar a relação sexual entre um adulto e uma criança como “abuso sexual”. Esta é
considerada uma prática abusiva porque vai de encontro aos direitos da criança, que em
uma instância maior, a caracteriza como “sujeito de direitos”. Esta noção de infância,
porém, é tardio, como nos coloca Áries (1981). Embora o sentimento de infância, onde
a criança passa a ser olhada como diferente do adulto tenha surgido no século XVI,
no século XX é que a infância e a adolescência receberam atenção especial.
No Brasil, a idéia de que “investir em crianças abandonadas e pobres é pouco
lucrativo” (LEITE, 2001) que predominou durante todo século XIX, se mantém, se não
legalmente, ao menos nos ideários sociais, até hoje. Isto implica a dificuldade de
investimento em políticas públicas de proteção à infância que garanta o cumprimento da
lei, no que se refere aos direitos das crianças e adolescentes vítimas da violência que
impera no país.
28
Particularmente no que se refere à violência sexual, pesquisas recentes realizadas
pelo Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho do Adolescente do Paraná (FETI-PR)
em 2006, com crianças e adolescentes entre 05 e 17 anos, apontam para o aumento do
número de casos de crianças abusadas sexualmente no espaço doméstico e familiar.
Apontam também, para o aumento do número de denúncias recebidas pelo Governo
Federal, no mesmo período, o que demonstra que esta forma de violência está presente
em 937 municípios brasileiros, sendo: 31,8% em cidades do Nordeste, 25,7% no
Sudeste, 17,3% no Sul, 13,6% no Centro-Oeste e 11,6% na região Norte. Outro ponto
observado é a predominância de homens agressores (pais, padrastos, tios, avós) e da
mulher como vítima. Neste sentido, Araújo (2002) refere que quando a vítima é
menino, este ocorre, em sua maioria, fora do espaço doméstico (ou não) e é realizado
por adultos não parentes. Isto porém, não descarta a condição da mulher como
agressora, fato que será tratado no Capítulo 3, quando da análise das entrevistas
realizadas com os conselheiros tutelares.
Segundo o Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à
Violência Infanto-Juvenil no Território Brasileiro (PAIR): “a realidade da sociedade
brasileira tem revelado que durante as situações mais graves de exclusão,
vulnerabilidade e risco social, a que estão submetidos crianças e adolescentes,
encontram-se as situações de exploração sexual” (PAIR, 2000, p.06).
Para Faleiros (2006), pesquisadora do CECRIA (Centro de Referência, Estudos
e Ações sobre a Criança e o Adolescente) esta situação de exploração e abuso sexual, a
que estão submetidas as crianças e adolescentes, toma força porque as instituições de
garantia dos direitos atuam sobre dois paradigmas:
O referido na Constituição Federal, no ECA e na Normativa
Internacional, através da Declaração do Milênio, assinada em
08/09/2000, onde o Brasil é signatário, que adotam referenciais teóricos
dos direitos humanos universais e dos direitos peculiares da infância e da
juventude, como sujeitos em desenvolvimento e objetos de proteção
integral, em que todas as formas de violência são violação dos direitos
humanos e transgressão, portanto são tratados como crimes;
O paradigma jurídico, que tem por base a teoria penal atual, que
considera os crimes sexuais como crime contra a pessoa. Aqui a
29
violência não é considerada uma violação de direitos humanos
individuais, mas transgressões aos costumes sexuais coletivos.
Faleiros (2006) refere que a violência e o abuso sexual devem ser vistos e
tratados de forma diferente: a violência é entendida como “a violação de direitos
universais e de direitos peculiares à pessoa em desenvolvimento envolvendo
transgressão e relação de poder explorador, desestruturante e perverso” (FALEIROS,
2006, p. 12); o abuso sexual infantil, por sua vez, é definido como “o contato ou
interação entre uma criança ou adolescente e um adulto, quando são usados para
estimulação sexual de executor ou outra pessoa, quando numa posição de poder e
controle sobre a vítima” (FALEIROS, 2006, 13). A autora lembra ainda que a atuação e
combate a esse tipo de violação têm que se dar em rede e envolver iniciativas do Poder
Público e da sociedade civil articulada.
Para os pesquisadores do CECRIA (2006), as desigualdades sociais atreladas à
situação de miséria da maioria da população brasileira, mostram a incapacidade do
Estado de incorporar sua população no âmbito da cidadania e na garantia de direitos
políticos, civis e sociais. Nestes casos, a pobreza e a indigência são vistas como
condições de propiciamento e possibilidade de exploração e abuso sexual, tanto pela
falta de condições da família e a forma de relacionar-se, como pela forma como se
estrutura para viver. Algumas vezes, o abuso está relacionado ao alcoolismo, onde a
falta de esperança aliada a uma cultura autoritária, o que acaba provocando a violência
intrafamiliar. Assim, não se pode isolar a exploração e o abuso do contexto social e
familiar no qual a criança ou o adolescente está inserida (o).
A desigualdade estrutural da sociedade brasileira é constituída não pela
dominação de classes, mas também de gênero e raça, sendo ainda marcada pelo
autoritarismo nas relações adulto/criança, crianças e adolescentes não são considerados
sujeitos, mas objetos de dominação dos adultos. Conforme os estudos de Araújo
(2002), Mello (2006) e Faleiros (2006), estas questões de classe e gênero situam a
condição das timas, em sua maioria, meninas pobres, negras ou mulatas. As
desigualdades sociais e econômicas têm dificultado para grande número da população, a
compreensão do que venha a ser cidadania e direitos de cada um, além de contribuir
para o aumento da exploração, da violência e da exclusão social. Neste mesmo sentido,
o Relatório Anual da UNICEF (1986) traz como principais desafios no combate à
30
violência e ao abuso sexual infantil, a incompatibilidade da base paradigmática do
Direito Penal Brasileiro, ainda presente no Código Penal de 1940, revisto em 2005, com
a doutrina da Proteção Integral instituída na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto
de Criança e do Adolescente (ECA), de 1990. Esta dificuldade se faz sentir, em
especial, na responsabilização do autor do crime de abuso sexual, devido à falta de
clareza quanto aos objetivos, prioridades e indicadores da resolubilidade das situações
de violência denunciadas e da definição e possibilidades de utilização dos fluxos a
serem seguidos pelas denúncias em cada situação concreta.
O Código Penal Brasileiro, no Livro II, Título I Dos Crimes contra a Pessoa,
traz-nos no art. 163 Coação Penal e no art. 172 Abuso Sexual de Crianças, que o
crime de violência e abuso será punido com pena de 01 a 08 anos de prisão. Assim, o
funcionamento das instituições do Sistema de Garantia dos Direitos, com diferenciados
níveis de compreensão de suas funções, com diferentes modos de operação e níveis de
articulação com as outras instâncias do Sistema, alcançaram diferentes níveis de
resolubilidade. O resultado disto foi a adoção de uma concepção teórico metodológica
de enfrentamento da violência sexual, considerando-a isoladamente e não como parte
integrante de um processo e uma dinâmica violentos. Ou seja, desconsiderando, como
mostram as diversas pesquisas realizadas (UNICEF, 2004 e 2005; CECRIA, 2006;
SAFFIOTI, 1997; e AZEVEDO E GUERRA, 2000; 2005), a violência sexual é muitas
vezes precedida de violências físicas e psicológicas, e que estes são, na maioria das
vezes, indicadores de risco de violência sexual.
Ainda sobre esta questão, Mello (2006) comenta que o Código Penal Brasileiro,
(aprovado em 1940 e revisto em 2005) não trata do abuso sexual infantil e intrafamiliar,
nem mesmo no artigo Dos Crimes Contra a Família”. Porém, estes vão ser citados no
Título VI, “Dos Crimes Contra os Costumes”, diz ele:
A relação sexual mantida com menor de 14 anos, mesmo com o
consentimento da vítima, corresponde à conduta criminosa prevista
nos artigos 213 e 224 do Código Penal (CP) que, interpretados em
conjunto, correspondem a figura do estupro presumido
(MELLO,
2006, p. 192).
Os artigos 213, 214, 215, que figuram no Capítulo I “Dos Crimes contra a
Liberdade”, indicam respectivamente: “constranger a mulher à conjunção carnal,
mediante violência ou grave ameaça” (artigo 213, relativo ao estupro); “constranger
31
alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele
pratique ato libidinoso diverso na conjunção carnal” (artigo 214, atentado violento ao
pudor); “ter conjunção carnal com mulher honesta
3
mediante fraude” (artigo 215, posse
sexual mediante fraude).
o art. 225, indica a pena para quem pratica estes atos com menores de 14
anos, de 01 a 08 anos de reclusão. Indica também que, se o crime é cometido com abuso
de pátrio poder ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador, a ação penal pode
proceder mediante denúncia de terceiros ou ainda da própria criança ou adolescente,
devidamente acompanhado por um adulto. Nestes casos, a pena pode ser ampliada em
caso de “abuso comprovado”, por “agente ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão,
tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima ou qualquer outro que tenha
autoridade sobre ela” (Art. 226).
Todos esses aspectos levaram a revisão do Código Penal Brasileiro em 2005,
que até então tratava o abuso sexual como um crime contra os costumes e não contra a
pessoa. Com a revisão foi levado em conta o princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana, contido no Art. 1º, Inciso III, da Constituição Federal de 1988. Isto
levou a legislação brasileira a se tornar mais atenta às situações descritas como abuso
sexual infantil e a elaborar dispositivos legais que regulem, atuando inclusive de forma
a “determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum”
(ECA, 1990, Art. 130). Isto porque, todos os denunciantes esperam providências e
soluções às situações denunciadas. Trata-se, então, de ter objetivos claros e indicadores
que remetam à questão da resolubilidade. Para a legislação brasileira, a violência sexual
e o abuso sexual infantil é uma violação de direitos e um crime. A partir dessa
concepção, há dois caminhos a serem seguidos, de ações diferenciadas e articuladas face
à situação concreta: as de defesa de direitos e as de responsabilização dos responsáveis
pela violência. Contudo, o que percebemos é a morosidade dos órgãos da justiça muitas
vezes citada pelos conselheiros tutelares, como entrave na resolução dos casos
registrados de abuso. Voltaremos a isso.
3
Neste caso, o termo “honesta” foi abolido do Código Penal, durante revisão realizada em 2005.
32
1.2 – Interpretações, Sexualidade e Operação do Direito
A questão da resposta à violência sexual contra crianças e adolescentes é
multidimensional e envolve, além dos aspectos legais acima mencionados, questões
relacionadas à organização social, aos sistemas conceptuais socialmente construídos que
orientam a ação de homens e mulheres no mundo (SAHLINS, 1999) - elementos que
vão atravessar a própria formulação e operação das leis. Assim, a questão em tela -
quando se desloca de um campo do direito percebido enquanto emanação natural da
humanidade do ser humano se desloca para uma compreensão de que o direito é fruto de
disputas e consensos (CORREIA, 2004) pode ser pensada à luz dos estudos
desenvolvidos sobre gênero e sexualidade (cf. PARKER, 1991; GAGNON, 2006;
RUBIN, 1993; e HEILBORN, 1996), no que se refere à sua construção social. Em
outras palavras, investigar como as normas e regras legais são atravessadas por crenças
e concepções sobre sexualidade infantil e na adolescência e apreensões de gênero, no
momento mesmo em que são atualizadas na vida prática.
Neste sentido, não é demais destacar junto Gagnon (2006) o caráter histórico dos
marcos jurídicos sobre a sexualidade, e lembrar que as mudanças sociais ocorridas ao
longo do tempo influenciaram comportamentos e práticas que possibilitaram sua
inserção no âmbito da cultura e a compreensão da nova organização da vida sexual.
Estas idéias revolucionaram os estudos sobre sexualidade e gênero, porém confrontou-
se com concepções passadas de que tantas liberações poderiam conduzir ao colapso da
vida em família, particularmente no que se refere à perda do poder masculino. Segundo
Gagnon (2006):
O movimento maciço das populações para as cidades, as influências
perturbadoras da vida urbana nas culturas imigrantes, o declínio do
controle da família e da vizinhança sobre os processos de namoro e
casamento, o aumento acentuado da afirmação popular de ideologia
do amor romântico e a crença democrática no valor da escolha pessoal
dos parceiros foram fatores que contribuíram para um desgaste das
normas culturais anteriores sobre relações sexuais, principalmente as
anteriores ao casamento
(GAGNON, 2006, p. 79).
Neste contexto, Costa (1995) afirma que quando se trata de sexualidade, a
noção de um sexo “absoluto, onipotente e onipresente”, se tornou culturalmente
obrigatória quando foi criada a noção da bissexualidade originária. Esta “divisão”
existiu no Século XIX e foi constituída com o objetivo de hierarquizar as
33
“desigualdades entre sujeitos, que na forma da lei deveriam ser iguais” (COSTA, 1995,
p. 290). Assim, a sexualidade, classificada em tipos e subtipos, acabou sendo
moralmente dividida, a fim de estabelecer critérios entre o que deve e o que não deve
ser, entre o que é desejável e o que é condenável, entre o que é certo e o que é errado.
Também instituiu o que Costa (1995) chamou de “cultura da sexualidade”, que cria
normas e estimula o preconceito no que se refere às escolhas do sujeito. Culminando
dessa forma, com o desenvolvimento de uma cultura de intolerância às práticas sexuais
que fogem aos preceitos normais” da constituição familiar, desencadeando assim os
processos de violência, abuso e maus tratos contra crianças, adolescentes, mulheres e
homossexuais. Todos esses fenômenos possibilitaram a compreensão de aparatos
sociais e culturais que se imbricam para dar sentido ao sexual (PARKER, 1999).
Para aprofundar a discussão que articula sexualidade e violência (e infância) vale
chamar à cena Chauí (1985) que define violência não como violação ou transgressão de
normas, regras e leis, mas sobre dois outros ângulos:
Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma
assimetria numa relação hierárquica de desigualdades com fins de
dominação, de exploração e de opressão. Em segundo lugar, como a
ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma coisa.
Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio do
modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou
anuladas, há violência
(CHAUÍ, 1985, p. 35).
Para Chauí (1985), a violência é caracterizada pela dominação e pela
coisificação. Também, pela violação do direito de ser sujeito livre e constituinte de sua
própria história.
Ainda que seja exercida, sobretudo como um processo social, a violência contra
crianças e adolescentes também é objeto de investigação na área da saúde, visto que se
tornou um dos mais graves problemas da Saúde Pública no Brasil. Dados levantados
pela UNICEF (2004) revelam que 49,3% do total de óbitos em crianças de 05 a 09 anos,
são por causas violentas.
Devido ao grande número de atingidos e à magnitude de suas seqüelas, a
violência adquiriu um caráter endêmico. No Brasil, desde a década de 60, o quadro
geral de mortalidade revela a transição das doenças infecto-parasitária para a violência
como um fenômeno relevante. Durante os anos 80, foi registrado um aumento de 29%
34
na proporção de mortes violentas, passando a ser a segunda causa de óbitos, perdendo
apenas para as doenças cardiovasculares (MINAYO E SOUZA, 1998).
Neste contexto, Minayo e Souza (1998) distinguem diversas formas de violência
contra crianças e adolescentes: a violência estrutural, cujas expressões mais fortes são o
trabalho infantil e o abandono; a violência social, cujas manifestações configuram-se na
violência doméstica; e a violência deliqüencial, na qual as crianças são vítimas e atores.
A violência doméstica apresenta-se de forma explícita ou velada e é praticada
dentro de casa. É também chamada de violência intrafamiliar por estar diretamente
relacionada às relações de parentesco. Incluem a violência e o abuso sexual contra
mulheres, crianças e adolescentes, maus tratos a idosos e violência sexual. Obedece a
um ciclo violento com movimentos de extrema agressão e calmaria. A violência contra
mulheres, crianças e adolescentes parece fazer parte da tradição brasileira, sendo
legitimada pela justiça como elemento da sociedade e representada por juristas que
fazem parte de um grupo elitizado de dominação social. O Código Civil de 1916 refere
que crianças, velhos e mulheres são tutelados perante a lei. Particularmente, com
relação às mulheres, como principal persona social, a virgindade pode fazer parte de
duas características básicas de reconhecimento social: a mulher honesta, no privado e a
mulher prostituta, no público.
Com a reformulação do Código Civil, em 1940, a emoção e a paixão não
excluem a responsabilidade criminal, todos são iguais perante a lei. Porém, mantém a
posição de tutela para as crianças, índios, loucos e mulheres, na família, com o marido e
nas relações sociais de trabalho. A mulher é vista como menoridade social, ou seja,
cidadão de segunda categoria (CORRÊA, 1981).
Porém, uma das formas mais comuns da violência praticada, principalmente
contra crianças e adolescentes do sexo feminino é o abuso sexual. Este, na maioria das
vezes é praticado sem o uso da força física, o que dificulta sua comprovação. É uma
forma de violência que envolve poder, coação e/ou sedução. Envolve também duas
desigualdades básicas: de gênero e de geração.
35
De gênero porque é praticado em sua maioria com crianças do sexo feminino e
de geração porque envolve sempre um adulto como agressor e uma criança como vítima
(ARAÚJO, 2002).
Ainda conforme Araújo, nas famílias vítimas de abuso, dois fatores se destacam:
a questão de gênero e o fator econômico.
A dominação masculina e a submissão feminina, cristalizadas,
neutralizam a produção e a repetição de comportamentos abusivos por
parte do homem detentor do poder do pai, provedor material e chefe
de família. Ao se colocarem na condição de inferioridade, as próprias
mulheres delegam poderes aos seus maridos, companheiros e pais. E é
nesse lugar que eles produzem comportamentos abusivos. Denunciar
implica questionar esses próprios lugares, ou seja, desconstruir essa
relação de poder desigual, que não é natural, mas sim construída
socialmente
(ARAÚJO, 2002, p. 9).
Para Mello (2006) “a temática do abuso infantil está diretamente relacionada à
sexualidade. Esta não é uma constante biológica, mas se constitui como um campo de
práticas que, proibidas ou não, ao longo da vida, são criadas com maior ou menor
visibilidade social”. São, portanto, práticas que se constroem culturalmente e que têm
como fundo a premissa de que vivemos em uma sociedade marcada pela hierarquia de
gênero, onde a agressão e a dominação masculina, condição considerada inata no
homem, está na raiz de toda forma de opressão à mulher (CORRÊA, 1981; também
RUBIM, 1993).
Essas perspectivas teóricas sobre gênero podem iluminar os estudos realizados
sobre violência nas diversas áreas do conhecimento. Remetem também à construção
social das desigualdades de gênero em que são estabelecidos ingredientes diversos de
poder em função de uma situação tida como realidade biológica. No estudo realizado
sobre a dominação masculina e a relação de poder estabelecida entre gêneros, Pirotta
(2005), inspirada em Bourdieu (1999), observa que:
O processo de construção da idéia de
superioridade masculina possui força especial por acumular duas operações, a legitimação de
uma relação de dominação por sua inclusão numa natureza biológica que é, por sua vez, uma
construção social”
(PIROTTA, 2005, p. 79).
Essa relação gênero/violência levou Saffioti e Almeida (1995) a proporem o
termo “violência de gênero”, para designar um tipo especifico de violência que visa à
preservação da organização social de gênero, fundada na hierarquia e desigualdade de
36
lugares sociais sexuais. Para estas autoras, a categoria de gênero não existe de forma
abstrata, ela articula-se com as categorias de classe e raça/etnia. Na legitimação do
poder, da exploração e da dominação, o homem adulto, branco e rico tem
predominância sobre as mulheres, crianças, pobres e negros. Estes se tornam vítimas
potenciais diante da dominação do homem detentor do poder absoluto.
Saffioti (1993) afirma que a violência e o abuso sexual infantil acontecem em
menor escala contra crianças e adolescentes do sexo masculino, o que é mais um
indicador que aponta para a relação de poder estabelecida entre os sexos, colocando a
mulher na condição de vítima em potencial. Consolida também a concepção de lugar de
passividade destinado à mulher pela sociedade em geral, contribuindo de certa forma
para o aumento do índice de mortalidade feminina. O aumento da violência e suas
diferentes formas de manifestações colocam-se, hoje, como uma questão crucial para a
sociedade brasileira. A necessidade do enfrentamento dessa situação tem levado
diversos autores a discorrer sobre o tema, apontando como principal fator às imensas
desigualdades econômicas, sociais e culturais, como também o aumento do consumo de
drogas, o desemprego e os efeitos perversos da chamada cultura de massa. Porém, por
si só, esses fatores não explicam tais fenômenos.
Estas concepções talvez expliquem o desencadeamento das diversas formas de
violência contra crianças e adolescentes, além de envolverem uma reflexão sobre como
estes aparatos e suas interpretações interferem na relação conselheiro/vítima,
culminando no distanciamento das reais implicações do ato de violência na vida da
criança e, conseqüentemente, os encaminhamentos definidos em seu regimento.
Se o atributo natural, nascer homem ou nascer mulher, quando apreendido pelos
sistemas de gênero de determinado contexto social, tem traçados destinos, determinado
vantagens e/ou desvantagens segundo o individuo esteja categorizado num ou noutro
sexo biológico, essa “naturalização” tem possibilitado questionamentos acerca dos
estudos levantados a partir de segunda metade do século XX, que versam sobre a
elaboração do conceito de gênero, levando a crer que os fatores socioculturais são
assumidos como responsáveis pela persistência das idéias de subordinação feminina e
ascendência masculina, dentro do campo social.
37
Albernaz (2006) explica em relação à concepção de gênero, “houve um longo
percurso de elaboração deste conceito até que se desprendesse do significante mulher
(ainda preso ao sexo biológico), vindo a substituir este último termo entre feministas, na
passagem da cada de 1970 para 1980”. Por outro lado, Heilborn (1992), discutindo
gênero e condição feminina, afirma que gênero significa a distinção de atributos
culturais que são atribuídos a cada um dos sexos, à dimensão biológica dos seres
humanos. Nesta perspectiva, essa categoria de gênero desnaturaliza as idéias de homem
e mulher. Masculinidade e feminilidade, portanto, não são sinônimos de homem e
mulher, mas metáfora de poder. Poder que atribui à categoria de homem prestígio e
controle sobre o feminino, visto como inferior e dependente (HEILBORN, 1996). Isso
parece fortalecer a idéia de que qualquer tentativa de explicar as diversas formas de
violência que atingem crianças e adolescentes hoje, só terão eco a partir de uma
mudança de paradigma que possibilite a instituição de uma sociedade sem hierarquia de
gênero (RUBIM, 1993).
As diversas teorias sobre sexualidade, gênero, violência, abuso, revisitada para a
elaboração desta dissertação, convergem para explicar o porquê do alto índice de abuso
sexual contra crianças e adolescentes e o encaminhamento dado pelos conselheiros
tutelares, frente aos registros destes casos. De outro modo, a reflexão até agora
apresentada aponta que o fenômeno do abuso sexual infantil está margeado pelas
concepções de gênero e sexualidade que dominam a sociedade atual. A idéia da mulher
e da criança como seres menores, cidadão de segunda categoria fortalece a concepção
de dominação masculina e consolida o lugar de vítimas vulneráveis às diversas formas
de violência (CORRÊA, 1981).
1.3 – Sublinhando - o objeto
Vale mais uma vez destacar que o nosso olhar está voltado não propriamente
para a criança violentada, mas para os conselheiros tutelares que atuam nos Conselhos
Tutelares de Recife e que têm por função ajudar na garantia e promoção dos direitos da
criança e do adolescente, no que se refere às violações remetidas à sexualidade. Ou seja,
estamos em busca, através da fala dos conselheiros, de suas interpretações sobre
sexualidade infantil, e sobre os fatores que concorrem para tanto.
38
Neste ponto, é importante lembrar que no âmbito das instituições do direito,
como em outros setores sociais, questões relacionadas ao sexual são matérias da ação
social, vários dos aparatos socioculturais entram em cena para constituir-lhe e dar-lhe
sentido (RIOS, 2005). Nessa perspectiva RUBIM (1993), PARKER (1991), RIOS
(2004) mostram que a experiência sexual toma forma plural, vários componentes ou
subsistemas têm sido identificados como concorrendo na “definição” do que é
sexo/sexualidade. Como sugere Parker (1991), por coexistirem e, muitas vezes, se
interligarem no contexto da vida cotidiana, estabelecer ligações ou distinções analíticas
entre eles não é tarefa fácil.
Revendo os estudos sobre sexualidade realizados no Brasil (cf. PARKER, 1991;
2002; PAIVA, 2000; RIOS, 2002; 2003; 2004), é possível identificar quatro matrizes
conceptuais de penetração abrangente:
a) as hierarquias de gênero, com seus cálculos de masculinidade e feminilidade;
b) o discurso científico sobre sexualidade, com ênfase em prescrições para uma
vida sexual saudável;
c) o moralismo religioso cristão, que foca no pecado e na culpa, na implicação do
corpo e seus atos para a alma;
d) a ideologia do erótico, enfatizando os corpos e os prazeres que estes podem
oferecer, transgredindo as proibições que os outros discursos impõem à vida
sexual.
Rios (2002 e 2005) lembra que outras referências, de origem mais recente, vêm
trazendo (re)descrições de sentido para a sexualidade e merecem ser mencionados,
como o discurso científico contemporâneo (no qual se alternam essencialistas e
construcionistas na disputa pelo que seria o sexo/sexualidade e o seu lugar na ordem do
mundo) e a voz questionadora de alguns movimentos gay e lésbico, o movimento
feminista e o movimento de resposta à AIDS.
Ainda conforme Rios (2002 e 2005), estes outros “discursos” se articulam e
dialogam na constituição das representações e práticas (cf. também Rubin, 1993 e
Parker, 1991). O autor sugere que alguns deles estão mais enraizados na sociedade
brasileira e tem maior força na eclosão dos eventos e na disputa por interpretações,
outros estão por ganhar penetração; alguns são mais conservadores, outros mais
39
relativistas e questionadores do papel do sexual na organização do mundo social; alguns
propõem e possibilitam estruturações de eventos mais eqüitativos, outros continuam a
vitimizar de diferentes modos mulheres e homens, carecendo ser denunciados,
desconstruídos, abolidos ou re-ordenados de modo a proporcionar relações sociais mais
justas.
Assim, na abordagem do sexual em suas múltiplas facetas, como apreendidas
pelos operadores do direito, é importante considerar que o poder regulador dos
supracitados sistemas, cada qual montado em gicas próprias, mas que, como foi
mencionado, de diferentes modos se articulam, exerce forte pressão (ainda que
inconsciente) nos atores, marcando os enunciados e as práticas (RIOS, 2005).
Para efeito do que aqui interessa, pode-se supor que estes aparatos, muitas vezes
(e a despeito de regulamentações, como as contidas no ECA) contribuem para o
julgamento de questões relativas ao sexual. Julgamentos que, frequentemente, podem
comprometer o bem estar e a qualidade de vida de crianças e adolescentes, tendo
implicações para o desenvolvimento psicossocial dos indivíduos.
Desse modo, este estudo objetiva encontrar nos relatos dos profissionais, na
descrição e interpretação de seus atos, as marcas dos dispositivos de sexualidade
(FOUCAULT, 1996; RUBIN, 1993; e PARKER, 2002), bem como de outros sistemas
(gênero e erótico, por exemplo, cf. SCOTT, 1999; RUBIN, 1993; e PARKER, 1991) em
disputa para a construção do sexual.
Ou então cada paisano e cada capataz
Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades, caatingas e nos gerais
Será que apenas os hermetismos pascoais
E os tons e os mil tons, seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão dessas trevas e nada mais?
Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Morrer e matar de fome de raiva e de sede
São tantas vezes gestos naturais
Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo
Daqueles que velam pela alegria do mundo
Indo mais fundo
Tins e bens e tais...
(Podres Poderes Caetano Veloso)
CAPÍTULO 2 – CARACTERIZAÇÃO DO CAMPO
Entrar no mundo da pesquisa de campo pode ser árduo, mas também é
fascinante, instigante e surpreendente. Enquanto psicanalista, com alguma experiência
no campo da pesquisa clínica, mas com pouca vivência na área da pesquisa etnográfica,
isso não foi fácil. Sair do predomínio do mundo interior do individuo enquanto objeto
de estudo e ir ao encontro de informantes, vinculados a uma instituição pública e com
vasta experiência, no que se refere aos movimentos sociais, buscando compreender o
seu modo de vida e sua relação com o universo da violência contra crianças e
adolescentes, é uma mudança de foco intelectual e de posição de análise teórico-prática,
no mínimo desafiadora. Embora a minha formação intelectual e profissional revele
certa pertinência social, essa ampliação de horizontes, exercitada ao longo do mestrado
e na elaboração desta dissertação, é importante tanto para minha atuação como
psicanalista quanto para a pesquisadora em formação.
Os sujeitos que compõe o universo desta pesquisa foram pensados e recrutados a
partir do levantamento do número de Conselhos Tutelares existentes na Cidade do
Recife e do número de conselheiros existentes em seu quadro. Inicialmente, pretendia
entrevistar 18 conselheiros (três de cada um dos seis Conselhos) para obter o maior
número possível de informações que me levasse a compreensão da situação destes
profissionais, no que se refere ao atendimento às crianças e adolescentes vítimas de
abuso sexual. Porém, com o avanço dos contatos e as dificuldades encontradas diante da
recusa de alguns profissionais, este número foi reduzido para 07 conselheiros, o que
possibilitou uma análise mais detalhada das entrevistas realizadas.
Vale neste ponto destacar que, desde o começo, tinha em conta que, mais
importante que o número de informantes, seria a qualidade dos dados no atendimento ao
critério da saturação teórica, que delimitariam o “N desta pesquisa. Vale ainda
sublinhar que os contatos nem sempre foram fáceis, alguns entrevistados revelavam
desconfiança, medo de se expor, dúvidas quanto a importância da pesquisa e, por vezes,
descaso, deixando-me a espera por horas para retornarem dizendo que não
43
participariam, sem maiores explicações. Alguns, diante da insistência e exposição da
necessidade e importância da pesquisa, rendiam-se ao convite.
Meus informantes são homens e mulheres que atuam nos Conselhos Tutelares do
Recife, localizados em 04 das 06 RPAs (Regiões Políticas Administrativas) da Cidade.
Dois outros estavam listados inicialmente, porém não foi possível realizar entrevistas
nestes locais. Em um dos Conselhos Tutelares, as dificuldades se referiram às questões
de horário e disponibilidade dos conselheiros para serem entrevistados. No outro, a
recusa constante (foram realizadas 03 visitas ao espaço) dos conselheiros e o descaso
quando ouviam as informações levaram-me à reflexão quanto ao fechamento desses
profissionais em falar de suas experiências como conselheiros em uma RPA mergulhada
em problemas de ordem social.
Embora este Conselho esteja localizado em uma área central do bairro, de fácil
acesso e com uma boa estrutura física, os profissionais que ali atuam estiveram pouco
disponíveis para falar do trabalho que realizam. Revelaram certa desconfiança quanto à
necessidade e importância da pesquisa, negando-se sem justificativa e de forma
grosseira. Esta forma de abordagem foi percebida apenas em um dos Conselhos
Tutelares onde não foram realizadas entrevistas. Vale salientar que nos outros espaços, a
disponibilidade e participação dos profissionais se deram de forma tranqüila e
acolhedora. O que me levou a refletir sobre as leituras que venho realizando sobre o
universo da pesquisa de campo e suas interpretações.
Nesses trabalhos, a metodologia qualitativa tem um papel fundamental, e objeto
e campo são intrinsecamente ligados. Segundo Minayo (1996), as pessoas ou sujeito de
investigação são em um primeiro momento construídos teoricamente enquanto
componentes do objeto de estudo. Quando no campo, fazem parte de uma relação de
intersubjetividade, de interação social com o pesquisador que resulta em um processo
amplo de construção de conhecimento. Isso é possível porque o campo social não é
transparente ou neutro e tanto o pesquisador como os atores (sujeitos-objetos da
pesquisa) interferem dinamicamente no conhecimento da realidade.
Neste sentido, a experiência do campo é pontilhada por momentos de desânimo,
angústia, sensação de fracasso, raiva, solidão. É uma experiência única, na qual os
sentimentos e as emoções aparecem no trabalho de campo do pesquisador, revelando a
44
subjetividade e a carga afetiva que ele traz consigo, ou seja, o elemento humano que o
constitui. Paralelo a isto, sensações de revolta durante a escuta de alguns conselheiros
permearam minha experiência enquanto psicanalista, quando da impossibilidade de
poder intervir em alguns relatos. Na prática clínica, intervenções e interpretações fazem
parte do contexto de escuta do sujeito, como possibilidade de fazer surgir um novo
sentido, além do manifesto, ou seja, de apresentar ao sujeito novas significações. O que
era impossível de se concretizar no rumo e tipo de pesquisa que com eles realizei.
Além disso, o pesquisador surge diante de seus objetos (sujeitos) como um
intruso desconhecido, inesperado e, na maioria das vezes, indesejado. Neste contexto,
Lago-Falcão (2003:73) refere que “o plano existencial da pesquisa de campo é marcado
pelas possíveis lições que podem ser extraídas do relacionamento com os informantes
no trabalho de investigação e do relacionamento consigo próprio”.
Por outro lado, mais do que um conjunto de métodos e técnicas, a pesquisa de
campo se configura como a possibilidade do pesquisador se posicionar com relação ao
outro, ao saber e ao mundo social. (LEVY, 2001). Esta tomada de posição permite a
análise dos fatos que envolvem a pesquisa, buscando contribuir com a efetivação de um
processo de mudança que visa à queda de paradigmas estigmatizantes de um
determinado grupo social.
2.1 – O Método
Baseada neste princípio, optei por trabalhar com relatos de vida, método pautado
na referência teórica do antropólogo francês Daniel Bertaux (1997) que, segundo
Kornblit (2007):
são narrações biográficas ligadas em geral ao objeto de estudo do
investigador. Podem abarcar a amplitude de toda a experiência de vida
de uma pessoa, entretanto se centram em um aspecto particular de sua
experiência. Por regra geral, se realiza uma entrevista a um número
variado de pessoas que transitam pela mesma experiência
(KOMBLIT, 2007, p. 16).
Os relatos de vida resultam de uma forma especial de entrevista, na qual o
pesquisador solicita ao informante que narrem determinada experiência de sua vida – no
caso dos conselheiros tutelares suas experiências com relação ao atendimento a crianças
45
e adolescentes vítimas de abuso sexual. Estas narrativas me permitiram entender e
identificar: as relações sociais estabelecidas, a lógica de atuação frente às situações de
abuso e violência contra menores, bem como os contextos sociais e as práticas que
contribuem para reproduzir ou transformar os padrões sociais vigentes.
Para Bertaux (1997, p. 45), as narrativas ou relatos de vida têm como
especificidade narrar práticas sociais, o que implica dizer que são métodos que tentam
extrair das experiências vividas pelos sujeitos informações e descrições que, quando
analisadas em conjunto, permitem a compreensão de processos, práticas e valores dos
grupos sociais.
Se por um lado as narrativas ou relatos de vida, no que se refere às pesquisas
etnográficas, oferecem subsídios para a compreensão dos fenômenos e práticas sociais.
Por outro lado, para a psicanálise, ela representa a possibilidade de recompor a
trajetória de um sujeito perpassado por seus sonhos e utopias, mas limitado em suas
paixões mortíferas pela sanção da lei. Todas essas questões me fazem pensar que, no
que diz respeito às narrativas e/ou relatos de vida, todo ser humano parte mascarado
para sua relação com seu semelhante, uma vez que é perpassado pelo desejo de se fazer
amar ou reconhecer. Neste sentido, o psicanalista, quando de seu contato com o sujeito,
não acrescenta um novo dizer. Ele permite, através da transferência, que as forças
emocionais encobertas, em jogo conflitivo, encontrem uma saída, ficando a cargo de o
sujeito dirigi-las por si mesmo. Ao analista/pesquisador cabe a função de devolver ao
sujeito, como dádiva, a sua verdade.
Diferentemente das entrevistas etnográficas, as entrevistas com o
psicólogo/psicanalista representam a possibilidade de encontro, através do outro, do
sujeito com a sua mentira. Mentira esta, apresentada através do seu sintoma, do não-dito
e dos “dramas” que não podem ser traduzidos em palavras. Em outras palavras, permite
ao sujeito reconhecer em seu sintoma, a verdade inconsciente que orienta seus atos. Isto
porque, o sintoma nada mais é do que aquilo que alude e ilude o conflito. Daí a questão
verdade/mentira que perpassa a relação do sujeito com o psicólogo/psicanalista nos
momentos de entrevistas.
Nesta dimensão teórica, a entrevista clínica se caracterizaria pela possibilidade
de, segundo Lévy (2001), levar a pessoa
46
a explorar e a rememorar sua experiência passada lembranças,
observações, impressões, acontecimentos... e a comunicá-la, no
quadro privilegiado de uma entrevista, que se é capaz de ter acesso a
uma compreensão aprofundada da pesquisa e precisa das situações
sociais em relação às quais essas experiências tiveram lugar
(LÉVY,
2001, p. 90).
Dentro das perspectivas expostas acima, e pela proposta da pesquisa, isto é,
registrar as relações entre os conselheiros e vítimas de abuso sexual, senti que era
fundamental usar um método que me permitisse captar não dados “secos” e impessoais,
mas as experiências, reflexões, aprendizados e sentimentos dos informantes. Daí a
opção por trabalhar com relatos de vida, ou mais especificamente, com narrativas de
vida.
2.2 – Os Instrumentos
Utilizei como instrumento para coleta dos dados necessários à minha pesquisa, a
entrevista narrativa, semi-estruturada segundo um roteiro pré-elaborado (anexo), com
gravação em fita cassete. Durante as entrevistas, as intervenções foram feitas com o
propósito de provocar respostas e favorecer o processo de inter-relação entre
pesquisador e pesquisado, fato que possibilita uma melhor interlocução e compreensão
dos dados.
As entrevistas foram realizadas nos próprios Conselhos Tutelares. A opção por
realizar as entrevistas nos próprios Conselhos estava embasada na idéia de que não
os dados coletados em situação de entrevista seriam relevantes para a análise, mas
também observações quanto a estrutura física e organizacional dos Conselhos, serviram
de base para esta pesquisa.
No início o teor da fala dos informantes era muito formal, focadas nos princípios
éticos do trabalho que realizam, bem como dos pressupostos legais que direcionam a
atuação dos conselheiros. Porém, no transcorrer das entrevistas, salvo um ou dois
informantes, o discurso se informalizava e a “conversa” ficava mais coloquial, com
questões pessoais e emoções aflorando.
47
As transcrições destas entrevistas foram realizadas por mim e por três alunos do
curso de Psicologia da UFPE, escolhidos por estarem desenvolvendo pesquisas relativas
a atuação dos conselhos tutelares na Cidade do Recife. É importante frisar a diferença
básica quando se analisa uma entrevista transcrita por outra pessoa e a entrevista
transcrita pelo próprio pesquisador. A riqueza da experiência das transcrições permite
ao investigador o contato com entonações vocais, que são, muitas vezes, expressões de
sentimentos e sensações vividas pelo informante, como também o acesso a detalhes de
expressões verbais que as notas de campo não fornecem. Paralelo a isso, o momento da
transcrição pode ser único para a compreensão do envolvimento, ou não, do informante
com o objeto da pesquisa. Por fim, todo o acervo resultante desses instrumentos,
constituiu o corpus de dados trabalhado para esta dissertação.
2.3 – Análise dos Dados
Nas entrevistas narrativas a metodologia utilizada para análise dos dados
coletados se constitui pela comparação entre os diversos depoimentos. Essa comparação
segundo Bertaux (1997) pode identificar recorrências de situações e/ou desempenhos
semelhante de ações tradutoras dos processos sociais ali representados e permite
também que as hipóteses levantadas no decorrer da pesquisa sejam confirmadas ou
modificadas pela busca sistemática de casos negativos.
Com base nas transcrições das narrativas, procurei agrupar as categorias de
análise a partir do quadro de atores da amostra estudada. Optei então por trabalhar com
quatro categorias principais de eventos, dentro da dinâmica de atendimento dos
conselheiros tutelares: a concepção de infância e adolescência, sexualidade, abuso
sexual e responsabilidade.
2.4 – Os Informantes
Seleciono este momento da escrita para descrever, brevemente, alguns dados
sobre os informantes. Assim, apesar dos nomes fictícios, recurso importante para
manter a privacidade dos mesmos, refiro a idade, estado civil, formação profissional,
48
além de alguns aspectos históricos, familiares e econômicos. Além desses dados,
alguns elementos da inserção social dos informantes, seus comentários e reflexões
foram organizados de forma que situassem as grandes linhas do trabalho, as relações de
poder e de produção na sua atuação como conselheiro. Ao mesmo tempo, permeio suas
falas com intervenções e observações que vão delineando e direcionando a análise que
farei.
Com a finalidade de condensar as informações sobre os atores da pesquisa,
apresento no quadro abaixo, características dos conselheiros tutelares, que nos permitem
algumas reflexões e observações.
Tabela 1 – Características sociais dos conselheiros
Nome Idade
Estado
civil
Natura-
lidade
Escola-
ridade
Profissão Religião
Classe
social
Tempo
de
mandato
Trajetória
Ana 36 casada PE Superior Teóloga Evangélica Média 2 anos Movimento
Religioso
Mário 34 casado PE Ensino
Médio
Conselheiro Evangélica Média 2anos Movimento
Religioso
Diana 49 casada PE Ensino
Médio
Conselheiro Ecumênica Média 2anos Movimento
Social
João 35 solteiro PE Ensino
Médio
Conselheiro Católica Média 4anos Movimento
Estudantil
Paula
42 casada PE Superior Pedagoga Evangélica Média 4anos Movimento
Social
Maria
59 viúva PE Superior Professora Católica Média 2anos Movimento
Religioso
Ivo 45
divorciado
RJ Superior Jornalista. Espírita Média 4anos Movimento
Social
Fonte: Entrevistas da pesquisa
Ao analisar o quadro acima, verifica-se que a faixa etária dos conselheiros varia
entre 34 e 59 anos, sendo quatro casados, uma viúva, um divorciado e um solteiro. Suas
histórias mostram que a maioria é natural de Recife/Pernambuco e apenas um é
procedente do Rio de Janeiro, migrando para o Recife ainda criança, devido a
transferência profissional dos pais. Quatro deles têm o curso superior completo e três
concluíram o Ensino Médio com formação técnico-profissionalizante. Os três que ainda
não concluíram o ensino superior indicam que sua profissão é de conselheiro tutelar,
embora atuem também em sua área de formação profissional (técnicos em
administração e contabilidade). Quanto à religião, três são evangélicos , dois católicos,
um espírita e uma que se coloca como “ecumênica convicta”.
49
Dado interessante, a questão da religião se imbrica com a trajetória de alguns
profissionais quando referem que suas atividades na comunidade iniciaram no “seio da
igreja”, ou seja, dos movimentos religiosos evangélicos ou católicos. Porém, esta
indicação aparece na fala dos conselheiros como “movimentos sociais”, e não
religiosos. Isto me faz pensar que princípios ordenadores e controladores permeiam as
relações entre estes profissionais e aqueles que buscam suas intervenções, no que diz
respeito à violação dos direitos das crianças e adolescentes. Leva-me a refletir também,
sobre a penetração da religiosidade nas diversas instâncias do Estado.
Com relação ao tempo de mandato, as entrevistas apontam para a prevalência de
conselheiros em seu primeiro mandato. Isto levou Maria Paula (conselheira em seu
segundo mandato) a referir sobre a “falta de experiência” de alguns colegas quando
colocados frente ao atendimento de casos de abuso sexual:
Procuro sempre ajudá-los, pois tenho mais “estrada” nestes casos, porque
é difícil. Veja, o é fácil para quem nunca foi conselheiro, se depara com
uma criancinha de dois anos, que é abusada pelo pai, por exemplo. Eles (os
conselheiros) precisam sempre da ajuda de um colega mais experiente
(MARIA PAULA).
Quanto à condição sócio-econômica dos entrevistados, todos estão inseridos na
chamada classe média e residem em bairros que fazem parte da RPA que representam.
Quase sempre são proprietários das casas em que residem e contam com contribuições
financeiras de seus cônjuges ou outros membros da família para completar a renda
familiar.
Aqui chamo a atenção para os estudos realizados por Heilborn (1984) sobre o
conceito de camadas médias da população, que confirmam a condição plural desses
segmentos sociais. Para ela, a compreensão da vida social é o resgate e a valorização de
uma lógica classificatória própria, que reflete seu lugar no mundo, pois estabelecem
fronteiras simbólicas com os “outros”. Neste sentido, o lugar de residência desempenha
papel relevante na construção da identidade de grupos sociais, em especial de
segmentos médios e a localização geográfica seria mais um elemento definidor na
estratificação social. Isto porque, no que se refere às denúncias dos casos de abuso e
exploração sexual de crianças e adolescentes, é perceptível nas falas dos conselheiros,
50
que estas são mais oriundas das classes menos favorecidas. O que me leva a pensar que
em se tratando dos crimes de natureza sexual, o agente agressor situa-se em todas as
classes sociais, porém, o processo de vitimação atinge com mais freqüência as crianças
das famílias economicamente desfavorecidas. Enquanto que o de vitimização não
privilegia fronteiras econômicas e de classes sociais, cortando verticalmente a sociedade
e revelando o aspecto mais sombrio da organização social brasileira.
Por outro lado, viver na comunidade, fazendo parte e dividindo com ela seus
conflitos, coloca o conselheiro em um patamar de igualdade, no que se refere a condição
social, com os sujeitos que necessitam de suas intervenções e, penso, favorece às
diversas dificuldades relatadas pelos conselheiros, por ocasião dos atendimentos e
encaminhamentos às vítimas de abuso, maus tratos, negligência e exploração de
menores.
Trago por fim, alguns dados e relatos obtidos nas entrevistas com cada
informante, a fim de poder apresentar e refletir sobre suas atuações, posteriormente.
ANA: a pastora de ovelhas
Ana, conselheira tutelar dois mandatos, é casada, teóloga com atuação em
uma igreja evangélica do bairro em que reside, onde exerce a função de pastora. Ela
relata que sua trajetória como conselheira teve inicio nos trabalhos desenvolvidos na
comunidade a partir de suas atribuições como pastora evangélica. A situação de vida em
um universo de dificuldades sociais enfrentadas pela comunidade em que vive,
especialmente no que se refere às crianças e adolescentes (falta de escolas, de creches, o
uso abusivo de drogas, violência sexual...), foi, segundo Ana, o motivo principal de sua
opção em candidatar-se ao cargo de conselheira. Isto porque, acreditava (e acredita) que
só assim pode intervir e aprofundar seu trabalho na igreja e na comunidade.
Ana refere-se sempre ao seu “compromisso” com a igreja e a causa religiosa.
Seu discurso, embora solto e bem elaborado, é sempre permeado por este princípio. É a
51
partir de sua atribuição como pastora
4
, que desenvolve seus trabalhos na comunidade e
se “inspira” na execução das tarefas a ela atribuídas, a partir do artigo 136
5
.
Observei que a igreja (teóloga/pastora), a profissão (conselheira), o sexo-gênero
(mulher), são fatores que influenciam na forma como conduz os casos a ela destinados.
Estas marcações parecem ajudá-la também a entender porque as crianças e adolescentes
são submetidos ao abandono, negligência, abuso, drogas, entre outros tipos de violência.
Para ela, a falta de Deus, a descrença dos homens e a falta de políticas públicas são as
principais justificativas para a violência com a qual se depara no dia a dia do Conselho.
Ana é céptica quando o assunto é “Políticas Públicas”. Para ela, este termo
existe no papel: “é tudo muito bom, muito bonito, mas na prática... falta tudo:
estrutura, retaguarda, leis mais rigorosas, só há mesmo pessoas de boa vontade”.
Maria: Socorram Meu Bairro!
Maria tem 59 anos, é viúva, mãe e avó. Está em seu primeiro mandato e chegou
ao Conselho Tutelar devido ao trabalho que desenvolve na comunidade. Após sua
aposentadoria como professora de Educação Artística, foi convidada por algumas
amigas para formar um Clube de Mães, mas não obteve apoio dos governantes e
políticos locais e decidiu fechar o clube. Relata que este trabalho lhe deu visibilidade
frente a comunidade, pois congregava em torno de 200 senhoras, mães do bairro.
O fechamento do clube e a necessidade de continuar trabalhando instigou-a a
buscar novas alternativas. Resolveu então entrar para uma agremiação carnavalesca do
bairro (escola de samba) que desenvolve trabalhos com crianças e adolescentes visando
o enlaçamento destes jovens com a cultura local.
4
Foucault discute o poder exercido pelo cristianismo sobre seus seguidores, através da instituição do
pastorado. Diz: “o pastor deve prestar contas não só de cada uma das ovelhas, mas de todas as suas ações,
de todo o bem e o mal que são capazes de realizar, de tudo o que lhes aconteça”. E prossegue: “.ajudando
seu rebanho a encontrar a salvação, o pastor encontrará também a sua” (FOUCAULT, 1994, p. 26).
5
Artigo que relata as atribuições dos Conselheiros Tutelares.
52
Uma vez no grupo, foi solicitada pelos colegas a candidatar-se ao quadro de
conselheira. Fez a prova de seleção e foi eleita pela comunidade. Acha seu trabalho
árduo, mas se sente recompensada por estar trabalhando com crianças e adolescentes.
Maria é sensível, relata os casos com emoção e faz um “pedido de socorro” durante a
entrevista. Segundo ela, o bairro em que mora e atua é estigmatizado devido ao alto
índice de violência envolvendo crianças e adolescentes.
A líder comunitária critica a atuação das instituições acadêmicas, pois na sua
concepção, realizam entrevistas e partem sem respostas e propostas de intervenção que
venha a melhorar a vida no bairro: “aqui não mora bandido e traficante, gente de
bem também, e vocês que estão nas universidades deveriam pensar formas de intervir
para melhorar a vida do povo.” Neste momento, me convida a conhecer sua
comunidade para que possa “falar com os doutores do saber”, sobre os trabalhos que
são realizados.
Quando questionada sobre as ocorrências em sua RPA, Maria diz que
incidência maior dos casos de negligência, abandono e uso de drogas lícitas e ilícitas.
Mas, relata também o aumento dos casos de abuso sexual e exploração de menores
6
(sic). Ela aponta como causa principal para a ocorrência de abuso sexual contra crianças
e adolescentes, a “desestruturação familiar” (sic), a falta de atrativos para que as
crianças permaneçam em casa e a falta de uma política mais eficaz para o atendimento
das crianças e adolescentes do Estado.
A religião (católica) é apontada como fonte norteadora de todo seu trabalho,
amparado pela profissão e o fato de ser mulher, pois se sente linda e preparada para
ajudar o próximo(sic.). Maria tem um discurso solto, envolvente, emociona-se com
facilidade. Não se sente constrangida, ameaçada e é a única nesta RPA a revelar a
grande quantidade de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Lembro
que nas entrevistas com outros conselheiros desta RPA este tema foi tratado com
extrema dificuldade.
6
Aqui vale destacar que o termo “menor” foi abolido do vocabulário jurídico, porém permanece na fala
dos informantes, o que remete à cristalização de antigos paradigmas sociais oriundos dos reformatórios
destinados ao abrigamento de meninos e meninas de ruas.
53
João: Isto é mais presente na Zona Sul
O contato com João se deu no próprio Conselho Tutelar em que trabalha.
Inicialmente resistiu um pouco, mostrando-se arredio e desconfiado. Mas, à medida que
explicava o objetivo e os passos da pesquisa foi distencionando-se e respondendo às
perguntas que lhe foram dirigidas.
Apesar do distanciamento imposto pelo entrevistado, a conversa transcorreu com
tranqüilidade e João apresentou informações interessantes quanto ao funcionamento do
Conselho, as dificuldades oriundas da falta de retaguarda no que se refere aos
encaminhamentos de casos de violência contra crianças e adolescentes.
O conselheiro conta que sua trajetória, até o Conselho, teve início com a
participação em grêmios e movimentos estudantis desde os tempos de adolescente. Dos
grêmios escolares ao trabalho na comunidade em que vive “foi um pulo”, engajando-se
principalmente em grupos que lidavam com crianças e adolescentes. Aos 35 anos, tem
concluído o Ensino Médio e pretende cursar a universidade assim que for possível
(sic.), pois as dificuldades financeiras são muitas.
No que se refere a sua função como conselheiro tutelar, acha árdua e perigosa:
“estou satisfeito com o que faço e encaro como uma missão, pois estou no segundo
mandato”. João o Conselho Tutelar como um espaço de formação. Acredita que a
função do Conselho é de formar multiplicadores de opinião no combate a violência
contra crianças e adolescentes e, principalmente, de agentes na luta em favor de seus
direitos. Para isso, diz: “é preciso buscar diálogos junto a outros companheiros, aos
poderes Públicos (executivo, legislativo e judiciário), de fortalecimento das políticas
públicas para habitação, saúde e assistência social”. Indica como maior demanda no
CT em que atua, os casos de drogadição e aponta como maior consumidores os meninos
que estão na faixa etária entre 14 e 18 anos.
No que se refere as queixas relacionadas a sexualidade, diz que pouca
demanda em sua RPA: “isso é mais presente na zona sul”, e aponta as meninas como
maiores vítimas. Segundo João, o desajuste familiar”, os valores morais
desacreditados e a falta de políticas públicas são os principais fatores que contribuem
para o aumento dos de abuso e exploração sexual. A religião também é apontada como
54
fator importante na vida de uma pessoa, pois ensina a dividir as coisas e respeitar
direitos.
Investir em políticas públicas e em uma educação de qualidade são os pilares
para melhoria da situação atual. Também o trabalho com as famílias e um olhar mais
direto para as crianças e adolescentes, de forma a considerá-los como vítimas de uma
sociedade excludente, serão, segundo João, os primeiros passos para a construção de
uma sociedade mais igualitária.
João se mostra um bom informante claro, objetivo e direto. Porém, no que se
refere ao assunto sexualidade é sempre pontual. Sua colocação de que isso é mais
presente na zona sul, revela sua dificuldade em discorrer sobre o assunto, quando insisto
procura responder sem muita elaboração. Sua “fuga” fica clara e reflete a dificuldade
das pessoas de entrar em contato com o assunto, de deixá-lo para a “outra zona”.
Diana: A descrente
Diana, 59 anos, casada, duas filhas, ecumênica “por convicção”, está em seu
primeiro mandato no CT. Neste, refere que a maior demanda é de abandono e maus
tratos. A exploração e o abuso sexual são apontados como um a cada cem casos, tendo
como maiores agressores pais e padrastos e as crianças menores de 14 anos como
maiores vítimas.
Relata que isto se devido à falta de estrutura familiar e de ações públicas em
defesa do direito dessas crianças. Reclama da atuação do Poder Público, no qual
encaminhamentos são tomados, ou não, sem a participação dos conselheiros. Sua
trajetória tem inicio nos movimentos sociais, atuando na comunidade em que vive com
crianças e adolescentes. Criou um grupo de dança popular e participou da criação de
uma orquestra infantil, que acredita, é uma das formas de intervir para a “salvação”
dessas crianças e adolescentes sem futuro. A escola e a cultura como maiores
possibilidades de evitar que entrem para o tráfico e conseqüentemente, para a
marginalidade. Quando questionada sobre os casos de abuso e exploração sexual,
aponta que estes não passam pelo Conselho, vão direto para a GPCA e são
encaminhados ao CT quando precisam de abrigamento. Esta parte de abuso é com a
GPCA, porque aí já é crime”.
55
Acredita que os maiores casos são com “mocinhas” entre 06 e 10 anos de idade,
agredidas por pais e padrastos, em sua maioria, embora nunca tenha atendido nem
entrado em contato com estes casos. E, caso receba encaminhará de imediato à GPCA:
“eu requisito a GPCA para que e faça o exame psicológico e do IML, é tudo com
a GPCA, eu posso acompanhar, mas o é da minha... pego o papel e encaminho”.
Em sua opinião os maiores culpados nesses casos são os pais, “a mãe principalmente,
pois permite que suas filhas andem seminuas, não as educa, não cuida, não orienta e se
relacionem com qualquer um”. A negligência é apontada como maior fator para os
casos de abuso sexual infantil.
Para Diana, o carinho de seus pais, a educação que lhes deram e a formação
profissional (ela já atuou em algumas empresas como contabilista) ajudam na tarefa que
exerce e não acredita que o fato de ser mulher tenha grande influência, ajuda, mas não
determina.
Quanto às Políticas Públicas, ela destaca a omissão do Poder Público e diz que
nada funciona. Agente Jovem, Bolsa - Família, PET, Centro da Juventude são citados
como programas interessantes, mas ineficazes, que estão no papel. Não acredita em
seu funcionamento e sugere o investimento nos movimentos sociais, em ações que
nascem nas próprias comunidades, como saída para fazer valer os direitos de crianças e
adolescentes.
Diana tem um discurso normativo, mecanicista, pouco envolvente. Toda sua fala
é presa às normas e regras que regulam as ações dos conselheiros. Raramente se coloca
de forma solta, emitindo opinião própria, e quando o faz, afirma estar indo além do que
pode falar. Quando o assunto é sexualidade pouco fala, argumentando que não faz parte
de sua RPA. É omissa e não se vê como responsável pelos casos que lhe são destinados,
acha que seu papel se restringe aos encaminhamentos. Tal como outros entrevistados,
evita o contato com o tema optando por responsabilizar a família e o Poder Público
pelos casos e dificuldades nos encaminhamentos.
56
Maria Paula: A causa em função do desejo
Maria Paula iniciou sua trajetória como funcionária pública, atuando em
diversos órgãos da gestão municipal. É casada, 42 anos, tem formação em Pedagogia e
está cursando Psicologia. Estava trabalhando no CEDCA quando começou a entrar em
contato com a causa das crianças e adolescentes. Neste momento, sua visão quanto ao
funcionamento do CT era muito crítica: “achava que não funcionava”. Com a mudança
de gestão na Prefeitura Municipal do Recife, mudou as regras de seleção para a entrada
de novos conselheiros e sob insistência do marido, que é presidente de uma associação
de moradores, passou a pensar na possibilidade de candidatar-se.
Refere que sempre esteve ligada a políticos e à política devido à atuação do
marido, e diz que este foi um dos motivos que a levou a aceitar a candidatura. Acha que
tem uma prática amadurecida por estar no segundo mandato e se destaca frente aos
colegas por serem iniciantes. Diz que as dificuldades são maiores devido à falta de
retaguarda e por esta ter uma atuação pífia, não atendendo a contento os inúmeros casos
encaminhados pelos conselheiros, que terminam por ficar sem respostas quanto às
situações de abrigamento, acompanhamento psicológico, entre outros.
Como maior queixa aponta a drogadição e o tráfico envolvendo crianças e
adolescentes, em sua maioria meninos entre oito e dezoito anos. Recentemente uma
criança de 10 anos, atendida e encaminhada por ela, foi assassinada por traficantes da
comunidade após ser liberada de um internamento em hospital público, para
desintoxicação pelo uso de crak. Segundo Maria Paula, não houve tempo nem
envolvimento de responsáveis pelos espaços de retaguarda para protegê-la. Hoje,
acredita que com a chegada da ONG “Tortura Nunca Mais”, este tipo de problema será
em parte resolvido. Isto porque o grupo vai proporcionar abrigamento para crianças e
adolescentes em situação de risco e vítimas de violência e drogadição.
No que se refere às questões relacionadas à sexualidade, diz que o maior índice é
de abuso e exploração sexual (prostituição infantil), embora não cheguem muitos casos
na sua RPA e, quando chegam, sente dificuldade em atuar devido à falta de informação
da família, isto porque as denuncias partem de vizinhos e as famílias nem sempre
assumem os fatos. Casos como exploração e homossexualidade também são comuns na
comunidade onde atua. Nos casos de homossexualidade, aponta o preconceito e a
57
violência como maior empecilho para que os jovens continuem a viver na comunidade,
visto que muitos procuram o CT para que possa abrigá-los em outros espaços, como
forma de fugir da violência a qual são submetidos.
Segundo Maria Paula, as meninas entre 02 e 14 anos, é vítima em potencial do
abuso sexual, enquanto que os meninos entre 12 e 18 anos, da violência contra
homossexuais.
Para ela, o abuso e a violência são vistos como aberração, doença, maldade; não
consegue entender porque adultos buscam crianças para se satisfazerem sexualmente e
levanta a hipótese de que os agressores possam ter sido vitimas de abuso e violência
quando crianças: é a única justificativa que encontro para tanta maldade”. Porém,
acha que a GPCA falha quando recebe os casos encaminhados pelo CT e não comunica
o andamento dos trabalhos que realiza. Ela sabe que o órgão age, mas o se comunica
para que o trabalho se dê em rede.
Quanto às políticas publicas para a infância e adolescência, acha que deixam a
desejar por falta de incentivo, interesse e direcionamento dos recursos. Apesar de o
Estatuto prever o acompanhamento, por parte dos conselheiros, da distribuição dos
recursos, isto é vetado, o que atrapalha e impede o andamento dos trabalhos: “são
muitos programas, muitas demandas e poucos esclarecimentos”.
A religião adventista, a experiência de vida, a profissão e o fato de ser mulher,
são fatores apontados como relevantes na condução dos casos, principalmente de abuso
e exploração sexual. Acredita que o fato de não haver capacitações nesta área para os
profissionais, faz com que busquem outras alternativas para poderem atuar, apesar das
dificuldades. Diz que o exercício espiritual é vital para a compreensão do momento
atual e compara a humanidade a uma manada de bois em disparada. “A falta de Deus é
uma maldição, pois Deus é tudo na vida de uma pessoa, apesar de nosso livre arbítrio,
ele é o poder”.
Maria Paula é uma das entrevistadas que responde com mais clareza às questões
que lhes são colocadas. Seu discurso é solto, claro e objetivo. Quando alguma questão
lhe chama atenção, diz que não sabe ou não pensou a respeito. Porém, informa de forma
velada seus objetivos políticos e a importância dos conselhos nesta etapa de sua vida.
58
Como líder comunitária junto ao marido, o fato de estar exercendo a função de
conselheira favorece sua atuação na comunidade e o reconhecimento de sua liderança, o
que é perceptível também na relação que estabelece com os companheiros de trabalho.
A causa em função do desejo.
Ivo: conservadorismo e intelectualização
Professor, estudante de jornalismo e radialista, chegou ao CT a partir dos
movimentos sociais. É morador do bairro em que atua desde os 09 anos de idade e isto o
levou a entrar na luta e no movimento pelos direitos e controle social”. Sente-se
responsável pelas pessoas do bairro devido à escolha e confiança que lhe foi depositada.
É divorciado e pai de duas meninas que vivem com a mãe em outro país, pois acredita
que assim está oferecendo uma melhor qualidade de vida e um futuro mais promissor
para elas. Diz que o bairro sustenta um estigma devido à localização. Entre os fatores
que aponta aumentar e evidenciar os problemas estão: o alto índice de violência, a falta
de oportunidades para os jovens, de ações das autoridades e a falta de garantia dos
direitos dos que ali residem e dependem economicamente.
Quanto às queixas mais freqüentes refere à negligência e ao abandono dos pais
para com os filhos, às drogas e à exploração sexual. Neste ponto, indica que um
percentual elevado de casos de abuso e exploração, tendo as meninas entre 10 e 16 anos,
como maiores vítimas, sendo agressores, seus pais ou padrastos.
Ivo concorda com a opinião de seus colegas de outras RPAs, que afirmam que a
maior demanda de violência sexual encontra-se em sua RPA. Para ele, isto se deve
principalmente: ao alto índice de pobreza e a condição de miserabilidade da população
do bairro, à falta de informação por parte dos pais, à aproximação com o litoral e à
ostentação que ele apresenta, atraindo as jovens para um mundo imaginário e fora da
sua realidade diária.
Segundo o conselheiro, a menina abusada em casa pelo pai ou padrasto, mantém
junto com a mãe o segredo familiar para não perderem o sustento. Porém, este é o
caminho para que caia na prostituição e/ou nas drogas. Para Ivo, está formada a
59
“corrente do mal: abuso sexual, situação de risco, drogas e exploração, a corrente
começa aí, fecha-se um ciclo e outro se abre”.
A família é vista por Ivo como uma instituição falida, assim como a escola, que,
para ele, perdeu sua função. O Poder Público é outro “órgão” (sic) indicado como
inoperante frente às dificuldades que a população enfrenta, isto se deve aos interesses
individuais de seus representantes, que estão longe das necessidades desta mesma
população.
Apesar de concordar com seus colegas conselheiros quanto ao alto índice de
casos referentes à temática da sexualidade, Ivo o tem uma opinião formada quanto às
causas e aos encaminhamentos necessários para o atendimento das crianças e
adolescentes vítimas de abuso e/ou exploração sexual. Tem postura semelhante aos
outros, apontando a família e o Poder Público como responsáveis pelo problema. A
homossexualidade é percebida como doença, passível de tratamento por parte dos que a
contraiu: “é uma orientação que os caras absorvem por uma formação errada”.
Ivo tem uma postura conservadora. Seu discurso é articulado, claro, mas calcado
em concepções ultrapassadas e marcados por posicionamentos que demonstram sua
capacidade de intelectualizar e contextualizar as questões.
Mario: Tudo em nome do Senhor
Conselheiro tutelar em seu primeiro mandato, Mário iniciou suas atividades
sociais na Igreja Batista de seu bairro, e diz:
“Os evangélicos, historicamente, desenvolvem um trabalho social. Com a
comunidade então, eu tinha um grupo de adolescentes; um grupo de
jovens em que eu desenvolvia um trabalho social de orientação. Orientação
espiritual, de aprendizagem, da palavra de Deus, da Bíblia em si”
(MARIO).
Mário é casado, tem 34 anos e concluiu o Ensino Médio Profissionalizante, com
o objetivo de poder conhecer e ajudar sua comunidade com mais segurança. Coloca-se
60
como uma pessoa leve, risonha, mas que encara sua função no Conselho Tutelar com
responsabilidade e preocupação. Sabe que é uma função difícil que requer muita
disponibilidade, pois são muitos os casos de drogadição envolvendo os jovens de sua
comunidade. Relata que nesses momentos (de atuação) procura usar “a palavra de Deus,
que é o Senhor de nossas vidas”, para sensibilizá-los e tira-los do vício.
Para ele, a Bíblia Sagrada é seu melhor instrumento bibliográfico de trabalho,
pois nela “estão todos os princípios que precisamos”.
Acredita que as drogas é o flagelo da juventude e que é preciso que todos se
envolvam para resolver o problema. Como Ana, é céptico quando o assunto é Políticas
Públicas, referindo que “qualquer programa de política pública que se pense, no Brasil,
deve passar primeiro pela disposição política para se fazer acontecer e não apenas
pela mídia com o intuito de se conseguir estatística”.
Quando questionado sobre a ocorrência dos casos de abuso sexual infantil,
explica que a impunidade tem sido o maior problema que enfrentam, bem como, a ação
das instituições que compõem a retaguarda, pois estas nunca apresentam condição de
abrigar ou acompanhar a criança ou o adolescente, quando se faz necessário.
Compreende que a responsabilidade desses casos é dos pais que não assumem o papel
de educar e orientar: “É que a gente entra. A Igreja é quem acaba fazendo esse
papel, é nossa responsabilidade, e ela é grande demais” (MÁRIO).
Em sua opinião, outros profissionais deveriam fazer parte do Conselho Tutelar,
como psicólogos e assistentes sociais, para ajudar nos casos em que não sabem o que
fazer. Diz também: “a mídia representa o poder no país, pois é ela quem dita as
regras, e é preciso uma revisão deste poder, para que todos possam viver com
igualdade”.
2.5 – Desvelando o Conselho Tutelar em Recife
Em Recife, cidade escolhida para a realização dessa pesquisa devido ao alto
índice de violência, exploração e abuso sexual infantil, funciona, hoje, sete Conselhos
Tutelares: RPA 1 (Boa Vista), RPA2 (Encruzilhada) RPA3 (Casa Amarela), RPA4
61
(Madalena), RPA5 (Areias), RPA6a (Dois Rios) e RPA6b (Imbiribeira)
7
. Nestes
Conselhos a demanda de atendimento é grande, chegando a cerca de 400 mil habitantes
em algumas RPAs, sendo portanto, o dobro do recomendado, segundo recomendação do
CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente).
Ainda conforme o CONANDA (2007), em 10 de julho de 2007, por ocasião das
comemorações dos 17 anos do ECA, entre as atribuições dos conselheiros tutelares que
atuam nesses Conselhos, descritos nos Arts. 136 e 137 estão:
atender crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105,
aplicando as medidas previstas no art. I a VII;
atender e aconselhar os pais ou responsáveis, aplicando as medidas previstas
no art. 129, I a VII;
promover a execução de suas decisões, podendo para tanto:
a) requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, segurança, serviço
social, previdência e trabalho ;
b) representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento
injustificado de suas deliberações;
encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração
administrativa ou penal contra os direitos da criança ou adolescente;
encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência;
providenciar a medida estabelecida pela autoridade judiciária, dentre as
previstas no art. 101, de I a VI, para o adolescente autor de ato infracional;
expedir notificações;
requisitar certidões de nascimento e de óbito de criança ou adolescente
quando necessário;
7
RPA – Regiões Político-Administrativas – forma que a municipalização encontrou para dividir
a Cidade do Recife em micro regiões que facilitam a atuação política e administrativa de seus
gestores
.
62
assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária
para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do
adolescente;
representar, em nome da pessoa e da família, contra a violação dos direitos
previstos no art. 220, § 3, II da Constituição Federal;
representar ao Ministério Público, para efeito das ações de perda ou
suspensão do pátrio poder.
Art. 137 As decisões do Conselho Tutelar somente poderão ser revistas pela
autoridade judiciária a pedido de quem tenha legítimo interesse (BRASIL, 1990).
Porém, segundo dados colhidos nas entrevistas que compõem esta pesquisa,
algumas dessas atividades não são desenvolvidas devido às dificuldades enfrentadas
pelos Conselhos, dentre elas: a falta de infra-estrutura física dos espaços e de apoio das
instituições que compõem a retaguarda no atendimento às crianças e aos adolescentes
vitimizados. A falta de infra-estrutura é um fato real. Carências como: espaços
adequados para o atendimento a crianças e adolescentes em situação de risco nas ruas,
alimentação e equipamentos necessários ao andamento dos trabalhos, são relatados
pelos conselheiros que atuam nas diversas RPAs do Recife. Para eles, isso se deve à
falta de vontade política, desinteresse e/ou descompromisso do Poder Público para com
os Conselhos. Vejamos o que dizem sobre isso:
“Veja bem, é muito difícil, falta tudo. Agora mesmo eu pedi um beliche ao
pessoal da prefeitura. É para os meninos porque, às vezes, eles chegam
muito drogados, porque cheiraram cola, com fome, e a gente não tem o que
fazer. Acho que os locais não são apropriados para atender e a gente não
pode fazer milagres. Acho que é porque faltam políticas públicas para
melhorar o trabalho da gente” (MARIA).
“Eu diria que ser conselheiro é um pouco de tudo. Muitas vezes a gente
além do papel de conselheira, faz o lugar da mãe, do pai e, por a gente não
ter equipe técnica, somos obrigados a sermos psicólogos, assistentes
sociais... não que isso seja correto, foge às nossas atribuições, foge
completamente. Mas devido à falta de estrutura a gente tem que fazer tudo.
63
E até para ajudar a gente faz um pouco de tudo, né? Foge do artigo 136,
que é o das nossas atribuições. Sempre acaba faltando tudo: retaguarda,
estrutura, cama, berço e até comida. Isso tudo compromete nosso trabalho.
Também quando chegamos nos abrigos, a recepção é horrível, em 100%
dos abrigos, você aponta um que recebe bem. É complicado, chega a ser
triste” (ANA).
Porém, outras questões atravessam esta problemática, tais como: problemas de
representatividade (isto é, representantes governamentais como os conselheiros não têm
poder de decisão e sofrem com interferência político-partidária); baixa qualificação da
representação da sociedade em termos de competência técnica, de conhecimento da
legislação sobre a infância: mesmo sobre questões relativas ao desenvolvimento afetivo-
emocional; desconhecimento das atribuições do Conselho, do fundo destinado a sua
manutenção e do orçamento público.
“Me decepciona muito a falta de estrutura, de parceria, de investimento,
como os demais atores que trabalham em parceria. O processo não anda e
atribuo isso ao órgão responsável, que é a Prefeitura do Recife e à falta de
políticas públicas de investimento no Conselho Tutelar, é pouco o fundo
destinado a ele” (ANA).
“Eu acho que muita gente nem sabe o que é o Conselho Tutelar, nem para
que serve. As pessoas acham que o conselho é um órgão que tira os filhos
dos pais e por isso não procuram. Falta informação e investimento para o
atendimento melhorar” (DIANA).
“Eu acho complicado falar nisso. Acho que cada um de nós deve dar sua
parcela de colaboração para melhorar. É um trabalho de formiguinha
tentar conscientizar as pessoas de seus direitos e acho que assim a gente
muda o país e a forma de cuidar das pessoas” (JOÃO).
Em sua maioria, o Conselho Tutelar é composto por 05 conselheiros titulares e
05 suplentes, eleitos pela comunidade em que vive, através do voto direto, secreto e
facultativo, para um mandato de 03 anos, sendo permitida a reeleição uma única vez.
Esta eleição é conduzida pelo Conselho Municipal de Direitos, sob supervisão do
64
Ministério Público. Para candidatar-se, os conselheiros passam por um processo
avaliativo que inclui prova específica sobre a legislação, no que se refere aos direitos
das crianças e adolescentes, alvos de suas atuações.
Uma breve reflexão se faz necessária quanto à concepção filosófica do Conselho
Tutelar. Esta, segundo Ana
8
(conselheira tutelar), remete à tradição de solidariedade do
povo brasileiro, de ajuda mútua entre os membros de uma mesma comunidade e à idéia
de cuidado e responsabilidade pelas crianças e adolescentes. Porém, não é isto que
demonstram alguns de seus membros. É perceptível que hoje, o Conselho Tutelar, em
alguns casos, têm uma atuação pífia devido às várias dificuldades apontadas pelos
próprios conselheiros e que serão descritas quando da análise das entrevistas realizadas
com eles.
Analisando as entrevistas, verifica-se que uma das maiores dificuldades é
exatamente a falta de compreensão sobre o desenvolvimento infantil e adolescente, além
da falta de preparo para lidar com questões relativas à sexualidade, estas, permeadas por
concepções ultrapassadas e aparatos sócio-culturais que dificultam o atendimento. Faz-
se necessário também citar a dificuldade de alguns conselheiros de se situarem na
função que exercem, de reconhecerem o lugar que ocupam e a importância deste para o
enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes.
Neste sentido, para Paiva
9
:
Grande parte da violação de direitos das crianças e adolescentes em
países como o Brasil, onde ainda se morre de fome, tem
condicionantes estruturais relacionados a desigualdades e à injustiça
social, que se mesclam a outros determinantes políticos e culturais. Ao
Conselho Tutelar, mais do que a visão restrita aos casos individuais,
descortina-se um cenário amplo de violações, em que se imbricam as
questões sócio-econômicas, de raça, de gênero e de orientação sexual.
A ele cabe a mediação desses conflitos de interesses e uma atuação
contra hegemônica, atuando pelo “empoderamento” dos segmentos
excluídos e oprimidos, na ótica da sua apropriação dos direitos
expressos no Estatuto da Criança e do Adolescente
(PAIVA, 2004,
p. 9).
8
Nome fictício.
9
Subsecretária de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos
Humanos, da Presidência da República.
65
Isto significa que os Conselhos Tutelares têm o compromisso não apenas de
garantir os direitos de crianças e adolescentes, mas também de atuar enquanto órgão
extensor de direitos e promotor de cidadania. Como se trata de um órgão dotado de
poderes legais, colocados à disposição dos conselheiros para que façam concretizar
direitos de crianças e adolescentes, certamente avizinham-se dificuldades na relação
com a sociedade e o Poder blico em geral, o que dificulta e atrasa as decisões quanto
aos encaminhamentos dos casos registrados de violência e maus tratos contra menores.
Mas estas não são as únicas dificuldades encontradas. A falta de capacitação dos
profissionais que atuam nos conselhos, aliada à falta de estrutura e organização de
alguns espaços, são pontos referenciados por usuários e profissionais envolvidos no
processo. Por outro lado, o desconhecimento da população com relação às funções do
Conselho Tutelar e dos direitos que a ela o outorgados, também tem dificultado o
acesso e cumprimento da lei, no que tange ao atendimento das crianças e adolescentes
vítimas de violência.
Embora cercado por aparatos jurídicos, os Conselhos Tutelares de Recife vêm
passando por dificuldades também, no que se refere à compreensão de sua atuação
frente à sociedade, não apenas nas questões relativas à violência contra crianças e
adolescentes. Alguns conselheiros, atuando em um primeiro mandato, reclamam da falta
de envolvimento do Poder Público quanto ao acompanhamento, orientação e
encaminhamentos dos casos por eles atendidos. Relatam também que a falta de uma
equipe técnica, formada por profissionais especializados
10
, dificulta o acolhimento, pois,
nem sempre se sentem preparados para atender, principalmente os casos de violência,
exploração sexual e drogadição.
Estes conselheiros são, em sua maioria, oriundos dos movimentos sociais (ou
religiosos?), como descrito neste capítulo, quando relato os informantes da pesquisa.
Daí percebo a contradição em que se situam suas atuações enquanto conselheiros e
líderes comunitários e/ou religiosos, remetendo, neste caso aos estudos realizados por
Da Matta (1997) sobre a relação da sociedade com o público e o político e a forma de
fazer política nos espaços públicos. Nesse ensaio sobre a distinção entre indivíduo e
pessoa, Da Matta aponta que: “No Brasil, vivemos certamente a ideologia das
10
Profissionais especializados são: psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros, que foram deslocados dos CT para a
GPCA e para os CRAS. Vale salientar que antes estes profissionais faziam parte do quadro de profissionais dos
Conselhos Tutelares.
66
corporações de ofício e irmandades religiosas, com sua ética de identidade e lealdade
verticais, do que as éticas horizontais que chegaram com o advento do capitalismo ao
mundo ocidental e à sociedade” (DA MATTA, 1997, p. 195).
Dessa forma, conforme o autor, a aplicação do sabe com quem está falando?”,
revela a estrutura social em que uma hierarquização implícita, própria aos sistemas
hotistas tradicionais, metaforizada pelo autor como relações “da casa”, se revela nos
espaços públicos onde deveriam preponderar relações igualitárias, nas quais todos
seriam iguais perante a lei.
Nas situações particulares do cotidiano, as classes se comunicam por meio de
um sistema de relações entrecortadas, em que o individualismo é visto como sinônimo
de egoísmo, um sentimento social condenável e pejorativo dizem respeito aos perigos
da “rua”. Há, assim, a existência de um “código duplo”, no qual a sociedade brasileira
se organiza sobre um sistema de pessoas que conduzem o sistema social, ou seja, um
sistema hierarquizado em que as leis, quando conveniente aos gestores, ora se aplicam a
indivíduos (na inversão das premissas da revolução Francesa: nominalmente iguais, mas
na vida comum brasileira, por serem desconhecidas, sem referência familiar
11
casa -
“cidadãos de segunda” - rua) ora se aplicam a pessoas (privilegiadas por conseguirem
recorrer às referências familiares) (DA MATTA, 1997).
Assim, a distinção entre pessoa e indivíduo, existe no nível da vida prática,
levantando à hipótese de que, no Brasil, é utilizada tanto uma quanto outra categoria
para orientar as interações, a depender da situação, do contexto. Sobre isto se em Da
Matta
É nesse sistema de pessoas que sustenta o universo social segmentado
em famílias, bairros e a famosa e sempre presente ideologia ariana e
racista que hierarquiza ou ajuda a hierarquizar nossas relações entre
pessoas, que as leis são feitas e se estabelece a confusão entre a regra
e o seu autor que, por realizá-la materialmente, pode, é óbvio, deixar
de segui-la. É nesse universo de pessoas que encontramos os
medalhões, os figurões, os ideólogos, as pessoas-instituições (com o
perdão da redundância): aqueles que não nasceram, foram fundados. É
aqui que encontramos os líderes, eles mesmos encarnando as correntes
sociais que defendem e desejam implementar
(DA MATTA, 1997,
p. 232-233).
11
Familiar, tomado por Da Matta (1997), como um valor que extrapola as relações consangüíneas de
parentesco.
67
A partir das colocações de Da Matta (1997), observa-se no discurso dos
conselheiros tutelares que estes partem dessa lógica dupla, na qual a ordem “da casa” é
levada para significar as relações “da rua”. Pessoas, como líderes comunitários e/ou
religiosos, que aglutinam em torno de si, cidadãos que na condição de “povo”, vão
garantir-lhes um lugar mais alto na escala social. Ou seja, a ocupação de um lugar onde
poderá por em prática suas ideologias político-partidárias (grifo meu) e, ao mesmo
tempo, ao falar em nome do povo, e supostamente representá-lo, legitimar assim uma,
também suposta, superioridade. É neste caso, como nos diz Da Matta (1997, 2004) que
“a massa se faz gente”, recebendo destes representantes legais a promessa de uma
atuação em que a garantia e manutenção dos direitos das crianças e adolescentes serão
pautas prioritárias de seus mandatos como conselheiros.
No entanto, o que observamos na prática (salvo algumas exceções) é a ocupação
de um espaço público para a manutenção de seus interesses políticos e garantia da
hierarquização das posições de autoridade e poder. Ser conselheiro sinaliza a uma
posição hierárquica de poder na comunidade, contribui para solidificação de uma
identidade, visto que, alguns conselheiros, quando indagados sobre sua profissão, dizem
(mesmo tendo uma formação profissional outra) ser Conselheiro Tutelar.
“Como eu disse, eu trabalhava numa prefeitura e meu marido que está na
política muito tempo porque ele foi presidente de uma associação de
moradores perto de nossa casa e trabalhava com muitos políticos, tem
muito conhecimento, principalmente em nossa RPA, é líder comunitário...
Ele me incentivou para entrar. Eu tinha uma idéia errada de conselho e
pensava que era um bicho papão, mas me identifiquei com a causa e agora
estou em meu segundo mandato, e isso é bom para a comunidade” (MARIA
PAULA).
“Bom, eu trabalhava na comunidade e esse foi o motivo para me
candidatar e me tornar conselheira, porque a comunidade sentia a
necessidade de ter alguém de lá no conselho e foi pela comunidade que me
elegi e hoje sou conselheira” (DIANA).
Todas estas dificuldades relatadas têm levado, em alguns casos, ao descrédito e
crítica quanto à atuação do Conselho Tutelar. Porém, apesar delas, o Conselho Tutelar é
68
um órgão vital na luta pelo reconhecimento e cumprimento dos direitos das crianças e
adolescentes, que vão além das questões relacionadas ao abuso e à exploração sexual
infantil.
Percebo que, apesar das dificuldades surgidas no âmbito da atuação dos
conselheiros, podemos dizer que, do ponto de vista da gestão pública, uma nova
instância de interlocução política se materializa na criação e fortalecimento dos
Conselhos. Vale ressaltar a importância do Conselho Tutelar no mapeamento das
violações de direitos e da detecção das fragilidades das políticas públicas para a infância
e adolescência, programa e entidades de atendimento das áreas prioritárias para
investimento na formulação de políticas públicas, que garantam o cumprimento dos
direitos da criança e do adolescente.
Mesmo se distanciando dos parâmetros que regularizam sua criação e
funcionamento, os Conselhos Tutelares atuam de forma a garantir na sociedade um
espaço de interlocução entre o Poder Público e os indivíduos vitimizados ou não. Isto
significa que este órgão tem por dever fiscalizar, apurar e acompanhar todas as
entidades de atendimento às crianças e adolescentes, incluindo escolas, creches,
instituições públicas e/ou privadas que acolham crianças e adolescentes, bem como, de
zelar pelo cumprimento dos direitos garantidos por lei, na família e na comunidade.
Segundo estes mesmos parâmetros, os conselheiros tutelares deveriam
desempenhar suas atribuições legais, superando o senso comum e o comodismo
burocrático, ocupando novos espaços de ação social, com criatividade e perseverança,
superando desafios e tomando seu lugar para além das denúncias, do testemunho, do
encaminhamento e da ocupação de um espaço que vise apenas às compensações
políticas. Neste sentido, cabe aos conselheiros tutelares se tornarem uma referência
comunitária segura e respeitada que ajude a criar um movimento compartilhado de
ações sociais eficazes, aglutinando todos os setores da sociedade, bem como, seus
atores, tais como: pais, mães, filhos, juízes, promotores, delegados, gestores,
professores, médicos, psicólogos, assistentes sociais..., na busca e construção de uma
sociedade que respeite e garanta os direitos de crianças e adolescentes que dela fazem
parte. E que, por conseguinte, faça valer o ECA, contribuindo desta forma para a
construção de uma Política Municipal de Proteção às crianças e aos adolescentes,
conforme o art.131 (ECA) e CF, art. 227, § 7°,c/c art. 204, inciso II, que opere de forma
69
igualitária não hierarquizada, e que a passagem indivíduo-pessoa, aconteça respeitando-
se valores e ideologias sociais, como indica Da Matta (1997).
Independentemente desta imensa instabilidade que está sendo
vivida neste início de década depois de um decênio perdido, registra-se,
historicamente, uma tendência dos homens para a destruição de sua própria prole.
O abuso sexual intrafamiliar não é senão uma das maneiras, talvez a mais cruel, de
o homem destruir seu próprio produto.
(Heleieth Saffioti)
CAPÍTULO 3 – “PERIGOSAS SÃO AS FERIDAS QUE NÃO DOEM,
NÃO ARDEM, NEM SANGRAM”: sexualidade,
infância e violência
Ao ler um artigo sobre a questão da violência na contemporaneidade, tomei por
empréstimo o título que ilustra este capítulo: “Perigosas são as feridas que não doem,
não ardem, nem sangram”. Nele, o autor José Luiz Caon, psicanalista e professor da
UFRS, faz uma análise, à luz da psicanálise, sobre as diversas formas de violência que
aterrorizam e seduzem o homem moderno. Diz ele:
a violência não é somente violência quando se manifesta de forma
devastadora, quando inflige mutilações, dores e sofrimentos cruentos e
palpáveis, mais fáceis de serem vistos do que serem descritos, ela se
faz presente no campo da psique, da vida e da matéria. Não como
não aceitar esse fato e essa verdade
(CAON, 2005, p. 100).
Nesse estudo, José Luiz Caon refere ainda que a violência mais fingida e
dissimulada aconteça, via de regra, no contexto da família e do matrimônio, sendo o
abuso sexual infantil uma das formas de violência mais difíceis de serem enfrentadas.
Isso porque o silêncio e o segredo tornam-se os maiores vilões nas histórias de abuso.
Pais e crianças vitimizados vêem a denúncia como uma revelação de um segredo
familiar que põe em risco toda a sua estrutura. (ARAÚJO, 2002).
O enfrentamento desta problemática envolve questões legais de proteção à
criança e punição do agressor. Como já mencionado no capítulo 1, na legislação
brasileira, o Código Penal de 1940, revisto e aprovado em 2005, não trata
especificamente sobre o abuso, mas os casos registrados são incluídos no Título VI
“Dos Crimes contra os Costumes”, prevendo pena para quem pratica estes atos
(MELLO, 2006). O ECA (1990), no Art. 130, prevê medidas clara contra o abuso
sexual infantil, facultando inclusive a separação da criança dos pais ou responsáveis
como medida cautelar, caso haja risco para a criança. A Constituição Federal de 1988,
no Art. 27, & 4, diz: “A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração
sexual da criança e do adolescente” (MELLO, 2006).
73
Apesar de todo aparato legal, percebe-se que na maioria dos casos, a
reprodução de uma cultura familiar na qual a violência e o abuso sexual continuam a
acontecer protegido pela lei do silêncio que impera sobre as famílias. Este silêncio, por
vezes, se mantém por várias gerações com casos de repetições sem serem denunciados.
Nestas famílias, a preservação do segredo familiar prevalece sobre a lei moral e social.
A criança, vítima em potencial, reluta na denúncia por medo da destruição de uma
suposta harmonia familiar ou pelas constantes ameaças às quais é submetida pelo
agressor (AZAMBUJA, 2005).
Segundo alguns conselheiros, ouvir essas crianças ou adolescentes não é um
trabalho fácil, pois essa escuta exige empenho, dedicação e disposição para lidar com o
lado mais sombrio do ser humano. Neste capítulo, pretendo discutir alguns aspectos que
envolvem a relação conselheiro/vítima, quando da denúncia de abuso sexual infantil.
Essa discussão se baseia nas falas dos informantes, particularmente no que diz respeito
às concepções, aos atendimentos, aos encaminhamentos realizados a partir das
denúncias bem como a repercussão disto no desenvolvimento e na vida da criança ou
adolescente vitimizados.
3.1 – Violência sexual: um breve panorama em Recife
Em Três Ensaios sobre a sexualidade Infantil, Freud (1905) diz que o abuso
sexual contra crianças realizado por um adulto acontece simplesmente porque a eles se
oferece a melhor oportunidade para isso. Incapaz de lutar contra seu agressor, a criança
acaba por tornar-se presa cil para a satisfação de seus impulsos sexuais. Esse tipo de
“desvio” da pulsão sexual adulta é denominado por Freud como “aberração
esporádica”, pois o objeto sexual escolhido são pessoas sexualmente imaturas. Isto
porque, na infância, a pulsão sexual não está centrada em nenhum objeto específico, ela
apresenta-se pelo auto-erotismo. Logo, a experiência sexual precoce pode provocar o
rompimento prematuro da latência e até a supressão dela, prejudicando a educabilidade
da criança (FREUD, 1988, p. 221), ou seja, o seu desenvolvimento sexual normal. Na
criança vítima de abuso sexual, o prazer e a angústia se presentificam. Se por um lado, a
manipulação e a estimulação sensorial provocam excitação e satisfação sexual, por
outro lado, o prazer e a satisfação obtida por esta estimulação, geram a angústia
74
provocada pela vergonha, pelo asco e pelas construções sociais da moral e da
autoridade, diz Freud. Estas experiências inter-geracionais, vividas precocemente pelas
crianças ou adolescentes vítimas de abuso, acabam por dificultar o desejável domínio
posterior da pulsão sexual pelas instancias anímicas superiores.
“Porque com tanta mulher disponível no mundo, o homem chama a atenção
para aquela inocência? Ele deve ter sido abusado quando criança, pode ser isso,
não tem outra justificativa; é uma aberração”. Esse comentário de Maria Paula,
conselheira tutelar em seu segundo mandato, abre possibilidades várias de reflexões
acerca do abuso sexual infantil. Nestes casos, a sexualidade está a serviço de
necessidades não sexuais, ou seja, a criança ou adolescente é destituído de seu lugar de
ser desejante, de sujeito, e forçado a ser objeto de um jogo perverso. São usados para a
gratificação sexual de um adulto ou até mesmo de um adolescente mais velho, baseado
em relação de poder que pode incluir desde carícias, manipulação de genitália,
exploração sexual, voyeurismo, pornografia, exibicionismo, conversa sobre atividades
sexuais, assédio sexual, ato sexual com ou sem penetração. Por vezes, esta prática inclui
elementos de sadismo como flagelação, tortura, surras e exploração sexual visando fins
econômicos (GALLI E VIDAURRE, 2004).
A aberração citada por Maria Paula, também faz parte das reflexões de Ivo.
Quando indagado sobre a questão do abuso sexual infantil, ele diz:
“Eu tenho casos de meninas que foram abusadas pelos padrastos e foram
ameaçadas de morte por eles. Elas se calam porque têm medo, e as mães,
pasme, não acreditam nas filhas, elas acabam se prostituindo. É um caso
sério de Saúde Pública, eu diria, é uma verdadeira aberração o que a gente
encontra aqui. Um número muito grande de denúncias e a gente não tem
pernas para acompanhar e nem sempre a gente sabe o que fazer” (IVO).
O depoimento é revelador quando relata as causas e conseqüências do abuso
sexual infantil, apontando a prostituição como resultada da violência familiar da qual a
criança é a maior vítima.
O abuso sexual infantil é uma situação bastante complexa à medida que envolve
um menor, seus pais, o sigilo profissional e as relações com a justiça. A maioria dos
75
conselheiros entrevistados ressalta a importância de um olhar mais atento dos órgãos
públicos para esta questão, revela também o aumento do número de denúncias de abuso
sexual contra crianças e adolescentes, como relata Mario e, em outro momento, João:
“Tem tido muitos casos. As crianças e adolescentes que chegam foram
vítimas de abuso pelos próprios, entenda-se pai, padrasto, tios..., ou estão
sendo exploradas pela comunidade; chega aqui a partir de oito, nove
anos. É uma covardia” (MARIO).
“Hoje nós temos uma dificuldade muito grande de atender. É muita criança
sendo abusada, é constrangedor demais, porque além dela sofrer o abuso,
exploração sexual por parte do seu agressor, ela tem que passar por todo
um procedimento, pelo GPCA, pela equipe técnica; é constrangedor”
(JOÃO).
Para a maioria desses profissionais, lidar com o abuso sexual não começa com a
família ou a vítima, mas com a própria atitude da equipe em relação ao sexo e ao abuso
da criança. Uma das principais dificuldades é a própria comunicação:
“Quando a criança é abusada, ela vai primeiro para o GPCA. Tem que
contar pra equipe técnica, depois vem para o Conselho, vai para o
psicólogo, que tem de ouvir dela o relato e cada vez que ela conta aquilo é
mais traumatizante pra ela que tem que falar, e para a pessoa que escuta,
porque não sabe o que fazer” (JOÃO).
A natureza sexual do abuso pode tornar muito difícil para os profissionais uma
comunicação apropriada e explícita, na qual a vergonha, o embaraço e as próprias
concepções acerca da sexualidade interferem e, às vezes, inviabilizam os atendimentos e
encaminhamentos. Por outro lado, a questão do incesto, temática que atravessa as
relações de abuso, é de difícil compreensão por grande parte dos conselheiros. Por
vezes, relatam que aparece nas falas dos autores da violência a idéia de que as crianças
pertencem aos pais e que, portanto, podem fazer o que quiser com elas, cabendo a eles
toda a responsabilidade pela vida desses meninos e meninas.
“Às vezes, os pais abusam as filhas por achar que são donos delas. Lembro
de um pai que disse que a filha pertencia a ele e, portanto, ninguém tinha
76
nada com isso. Ele podia fazer o que quisesse com ela. Isso também
acontece” (MARIA PAULA).
Porém, há também casos de abusos praticados pela própria mãe da criança:
“Chegou um caso de uma genitora que acusava o marido de abusar da
Filha de 03 anos. Ela dizia que a menina tinha um problema no ânus, que
era por conta do abuso do esposo e, essa criança foi tirada da família e foi
abrigada, porque no momento do exame do IML, foi constatado que
realmente havia fissura. Chegamos a pensar que a própria mãe poderia
estar fazendo isso. Depois o Juiz pediu que tirasse o menino também. Ela (a
mãe) falava assim: o pipiu da minha filha, a bitola do meu filho, eu puxo,
eu olho, eu abro”. As fissuras eram conseqüências da manipulação dela nos
órgãos das crianças, mas ela culpava o marido. Fizemos o encaminhamento
psicológico para essa mãe. É aquela questão que coloquei, nem sempre o
abuso sexual é do pai; tem vezes que a mulher também abusa sexualmente.
Uma mãe pode abusar, uma tia pode abusar; apesar de se ter a idéia de que
abusador é só do sexo masculino, né? É a mesma coisa quando uma menina
se envolve com um homem mais velho, mas também acontece de um rapaz
de 14 anos, se envolverem com mulheres mais velhas. É a mesma coisa. A
mulher também faz coisas erradas” (ANA).
Aqui nos deparamos com dois pontos interessantes: o primeiro diz respeito ao
incesto provocado pela mãe e o segundo, a mulher sendo apresentada como algoz e não
como vítima em potencial da violência sexual.
No primeiro caso, quando o incesto ocorre por parte da mãe, é mais difícil de ser
detectado, pois, é ela quem naturalmente tem um contato mais íntimo com o corpo da
criança. Então, esconder o abuso sob a máscara dos cuidados maternos torna-se mais
fácil
12
.
12
Vale destacar que mãe incestuosa, segundo Françoise Dolto (PIZÁ, 1999) é aquela que se recusa a
deixar nascer a alteridade da criança. Nestes casos, “observamos uma fusão do corpo da mãe que vai além
da realidade orgânica nutriente, para se cristalizar, para bloquear todo o processo de organização libidinal
da criança” (PIZÁ, 1999, p. 75). O abuso sexual incestuoso materno coloca a criança numa situação de
risco extremo, no qual as marcas psíquicas são profundas e a imagem corporal torna-se dilacerada. A
77
Com relação às mulheres que se apresentam como agentes da violência e não
como vítimas, Saffioti (1993) considera que as mesmas são portadoras da “síndrome do
pequeno poder”. Esta síndrome é representada pela necessidade do agressor de se trinar
para o exercício do grande poder, que o que almeja é fazer valer sua autoridade e seu
lugar de destaque na hierarquia das categorias sociais subalternas. Neste contexto, a
síndrome do pequeno poder vem revelar a desigualdade social que permeia as relações
entre os atores de um determinado grupo social, especialmente quando se trata da
violência contra crianças e adolescentes. Assim, o homem branco, adulto e rico ocupa
lugar de destaque no sistema de dominação-exploração, enquanto que mulheres, negros,
pobres e crianças são colocados em último lugar na escala de poder e considerados
socialmente inferiores. O pequeno poder em função de sua pequenez leva, segundo
Saffioti (2000), à “síndrome caracterizada pela mesquinhez”, na qual o agressor(a)
trata de ampliá-lo ou criá-lo na relação interpessoal que estabelece, efêmera ou
duradouramente, com outra pessoa” (Saffioti, 2000:18).
Porém, a autora chama atenção para a natureza desta síndrome, revelando que a
mesma é de caráter social e não individual, pois, é a estrutura social quem fornece os
elementos para a ocorrência da síndrome, além de respaldar com amplitude seu
protagonista. Percebe-se também a fragilidade dos indivíduos que detém a síndrome,
por se tratar de pessoas que na tentativa de agigantar seu poder sobre àqueles que lhes
estão submetidos, conseguem apequená-los ainda mais. Isto porque, os inúmeros casos
de violência contra crianças e adolescentes são protagonizados, em sua maioria por
adultos que têm a função de protegê-las.
Neste contexto, Saffioti (2000) afirma que utilizando o conceito de síndrome do
pequeno poder, é possível
compreender que a estrutura social oferece condições propícias à
perpetuação do status quo em que o poder é macho, branco, rico e
adulto e em que, por conseguinte, a síndrome do pequeno poder
acomete pessoas não idealmente situadas em todas essas esferas.
destruição de espaços psíquicos torna-se um processo sem volta, além de ser extremamente doloroso,
culminando com a perda dos referenciais básicos de constituição familiar, diga-se, a tríade pai, mãe, filho.
A proibição do incesto (FREUD, 1988; LEVI-STRAUSS, 1961) regra geral originária na natureza e
fundada na cultura, lei universal que regula em todas as sociedades as trocas matrimoniais que é o
principio fundador do Complexo de Édipo e organizador das relações sociais; não se constitui,
comprometendo todo o processo de subjetivação da criança.
78
Assim, a mulher branca e rica tem possibilidades de exercer seu
pequeno poder exorbitado frente a um homem negro ou a uma criança
(SAFFIOTI, 2000, p. 20).
Nestes casos, a violência contra crianças e adolescentes constitui um fenômeno
extremamente “democrático”, pois homens e mulheres de diferentes classes sociais
contribuem para sua legitimação.
Levantamento realizado nos BOs (Boletins de Ocorrências), das delegacias de
mulheres de São Paulo, nos finais da década de oitenta e início dos anos noventa
(SAFFIOTI, 1993, p. 165), por uma equipe de pesquisadores do Programa SOS Criança
de São Paulo revelaram um aumento no número (40%, em 1988; 43,2%, em 1989;
48,2%,em 1990; 43,1% em 1991 e 52,1%, em 1992) de denúncias de violência e maus
tratos contra crianças e adolescentes. Nas referidas denúncias, a mulher aparece como
agressora, revelando um aumento de quase quatro pontos percentuais. Embora esses
dados apontem para uma presença rarefeita da mulher nessa condição, indicam, porém
que ela não ocupa o lugar de vítima, mas também de algoz, quando se trata de
violência doméstica (agressões físicas, negligência, maus tratos, abandono, violência
sexual). Welzer-Lang (SAFFIOTI, 1993) levanta a hipótese de que o crescimento da
violência física e sexual materna se deve, em parte, ao agravamento da crise econômica,
ao esfacelamento das relações familiares e à delegação de poderes. Neste sentido, a
mulher, dominada pelo homem, atua em defesa da organização social de gênero que a
subalterniza. Ela acaba por perpetuar, através da violência doméstica, a dominação
masculina.
Embora os dados apresentados tenham sido levantados na Cidade de São Paulo,
em Recife, a situação não é diferente. Em alguns Conselhos Tutelares visitados para
elaboração deste trabalho, também as mulheres foram citadas como autoras ou co-
autoras de crimes contra crianças e adolescentes. Os relatos de Mário, com relação a
esta temática faz essa indicação:
“É menos, né? Passa por maus tratos, né? Os maus tratos implica-se a
questão física, psicológica e às vezes sexual também. No sentido dos
palavrões que às vezes determinadas mães propõem aos filhos. A
negligência também, porque algumas mães dizem não maltratar os filhos,
mas não orienta o menino nem a menina, não registra os filhos, não vai à
79
escola. As mães jovens vão pra balada e deixam os filhos com avós,
vizinhos... E digo também, a exploração, né? A mãe de alguma forma
incentiva, favorece, faz vista grossa, né? Na prática, a filha começa a
chegar com algum valor e ela faz vista grossa, sabendo que foi produto de
alguma coisa assim... de sexo, né? Então esse tipo de exploração tem o
consentimento e a conivência da mãe, ou pelo menos, a falta efetiva de
efetivo controle, no sentido dos horários dos filhos e do que eles fazem
quando não estão em casa. Outra vez, foi um caso de abuso que detectamos
aqui. Era uma babá que dava banho, ela era quem cuidava da criança,
dava banho e começou a usar a criança, começou a praticar atos que a
criança identificou numa cena de televisão. Ela disse: ‘fulaninha faz isso
comigo’. A mãe soube e procurou uma psicóloga, que encaminhou ela e a
gente deu todo o procedimento” (MARIO).
A indicação de Mario fortalece a tese de que a mulher, quando não agressora
direta, atua como fiel cumpridora da “lei da dominação masculina”, auxiliando na
exploração e na violência contra crianças e adolescentes. Porém, mesmo participando
ativamente ou como coadjuvante nos casos de violência, maus tratos, abuso e/ou
exploração, mesmo que os dados indiquem o aumento do número de denúncias da
mulher como agressora esta continua a ocupar o lugar de vítima em potencial da
violência sexual e doméstica. Segundo Saffioti (1993):
A sedução das filhas e o estupro de mulheres em geral não constituem
ação isolada de anormais. Ao contrário, integra visceralmente a
organização social de gênero, ou seja, faz parte desta gramática sexual
que regula as relações homem-mulher. Ainda que a parcela de
mulheres estupradas ou seduzidas constitua minoria, a ameaça paira
sobre todas como uma espada de Dâmocles, sujeitando-as às leis
asseguradoras da supremacia masculina. Desta sorte, todos os tipos de
violência, especialmente a sexual, são peças fundamentais de uma
sociedade que controla de perto a sexualidade feminina
(SAFFIOTI,
1993, p. 182).
E conclui, traçando um paralelo entre a condição da mulher na sociedade, no que
se refere à sexualidade feminina e o conto de fada de Branca de Neve e os Sete Anões:
“O domínio da domesticidade é um reino miniaturizado no qual a melhor das mulheres
não é apenas uma anã, mas uma serviçal de anões” (SAFFIOTI, 1993, p. 184).
80
De qualquer modo, ainda que apontem a existência de mulheres como autoras
da violência sexual e, como veremos adiante, de meninos como vítima, prevalece nas
falas, em termos do mais recorrente, é que são os homens os autores e as mulheres as
vítimas. Assim, quando indicam as meninas como vítimas em potencial do abuso e da
exploração sexual e os homens adultos como principais agressores, os conselheiros
tutelares escutados durante as entrevistas, de certo modo, corroboram os achados dos
estudos realizados sobre o tema (HEILBORN, 1992; SAFIOTTI E ALMEIDA, 1995,
entre outros).
Lembremos que os conselheiros/as apontam como principal fator para esta
problemática, as imensas desigualdades econômicas, sociais e culturais, o aumento do
consumo de drogas, o desemprego, a falta de informações e os efeitos perversos da
chamada cultura de massa. Ivo, conselheiro de uma RPA, apontada por conselheiro de
outras RPAs como lugar onde existem os maiores índices de exploração sexual infantil,
coloca que alguns adolescentes buscam a droga e o sexo como forma de escapar da
miséria a que estão submetidos:
“O problema está na condição de miséria em que vivem e na falta de
informação. Veja, o mar está aqui perto, com todos os seus encantos, apelos
e promessas. É uma diferença muito grande: aqui a pobreza, a fome, a
violência; lá está o dinheiro fácil, a beleza, a alegria, a liberdade. Que mais
vão querer? As meninas pensam que se prostituindo podem ter uma vida
melhor, encontrar um gringo para casar e ir embora do país; viajar,
conhecer lugares novos e bonitos, longe da miséria em que são obrigadas a
viver; é um problema social sem solução” (IVO).
Neste contexto, Ivo coloca nas mãos das adolescentes a responsabilidade total
sobre seus atos e seu corpo, segundo essa concepção, o sexo é visto como saída para a
resolução de problemas, tal como afirma Pirotta (2006). Já com relação às crianças, o
conselheiro e a responsabilidade nos pais: “Porque não cuidam nem orientam seus
filhos para esses males. Fazem isso porque também não têm orientação”. Diz que
um ciclo atravessado pelas crianças e adolescentes, o qual ele denomina corrente do
mal:
81
“Tudo começa com o abuso. Então a criança ou adolescente abusada
pelo pai ou pelo padrasto é culpabilizada pela mãe, que a obriga a
manter o silêncio, é conivente, porque teme perder o marido provedor;
ela entra naquilo que chamamos situação de risco: vai para as ruas, se
envolve com drogas e se prostitui. a prostituição vai fazer bem a
todos, porque passa a ser o sustento da casa. É isto que acontece!”
(IVO).
Ivo põe em um mesmo patamar de igualdade o abuso, as drogas e a exploração;
sugere que um acontece em função do outro, como se não houvesse distâncias nem
particularidades nestas categorias. Ao que parece, diante desta situação de angústia
gerada pelo confronto com uma realidade tão cruel, os conselheiros paralisam diante da
situação. Dizem não saber o que fazer nem a quem recorrerem, e utilizam-se do senso
comum para justificar o ato de violência, o que leva, na maioria das vezes, a
interpretações e atitudes que dificultam os atendimentos e encaminhamentos dos casos
de abuso sexual infantil.
Porém, sabemos que por si sós esses fatores não explicam tais fenômenos.
Conforme Saffioti e Almeida (1995), a “violência de gênero” tem sua especificidade.
Ela visa à preservação da organização social de gênero, fundada na hierarquia e
desigualdade de lugares sociais sexuais.
Heilborn (1992) adota a posição de que um persistente diferencial entre os
gêneros se mantém como elemento hierárquico, ordenador do mundo social. Neste
sentido, ela se opõe à posição de Rubin (1993), segundo o qual o sistema de gênero
tornou-se obsoleto para operação da reprodução social, podendo ser descartado.
Heilborn (1992) afirma que isso é impossível, pois, “o gênero é um elemento
constitutivo da razão simbólica, determinando assim a impossibilidade de superação
desse constrangimento” (HEILBORN, 1992, p. 22). Em contrapartida, se a hierarquia
de gênero é defendida por alguns autores como constitutiva e inevitável, outros que
contestam se não propriamente a sua inevitabilidade, propõe a possibilidade de uma
organização mais eqüitativa entre os termos que a compõe.
Não obstante, se podemos perceber um viés de gênero marcando o abuso sexual,
elementos advindos de um outro sistema de dar sentido ao sexual, contribui para
82
organizar o agravo, com rebatimentos na atuação prática dos conselheiros (e outros
profissionais) na disposição e resposta a casos concretos. Estou falando no sistema de
sexualidade, na interface com idade-geração, no modo como se tem concebido a
emergência da sexualidade ao longo das idades.
3.2 – A “vítima” do abuso: Anjo ou Demônio
Anjo ou demônio? Qual o lugar que a criança ocupa no imaginário das pessoas
que fazem o Conselho Tutelar? Uso esta interrogativa com a intenção de delinear neste
capítulo, as concepções de infância e adolescência que marcam e atravessam as relações
entre os conselheiros e as crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual.
Hoje em dia, um debate constante sobre o lugar da criança na sociedade, seus
direitos e deveres e a qualidade das relações que estabelece, em especial na família e na
escola, com foco nos adultos que estão em seu entorno (CORAZZA, 2000; FEIG, 1993;
JERUZALISNK, 1993; ARIÈS, 1981; LAJONQUIÈRE, 2003). Por outro lado, não se
pode mais ignorar a polêmica tanto histórica quanto sociológica que foi aberta através
dos trabalhos de Philippe Ariès (1981) sobre o aparecimento do “sentimento de
infância”. De fato, podemos pensar que a infância é uma invenção da sociedade, com
data de iniciação mais ou menos certa, então ela bem pode deixar de existir em um
segundo momento histórico e social. Assim, nos deparamos com diversos escritos sobre
a origem e os ditos fatores sociais responsáveis tanto pelo surgimento quanto pelo
desaparecimento da infância, ou, se preferimos, das infâncias, no plural (CALVILLA,
2003; ARIÈS, 1981; CORAZZA, 2000; LAJONQUIÈRE, 2003).
O que vemos é que, na sociedade ocidental, quando um desses pequenos seres, a
quem chamamos criança, de fato chega ao mundo, faz um tempo que o adulto o
habita. Sua chegada implica uma reordenação do mundo, que a criança, segundo
Lajonquière (2003, p. 142), “não sendo um adulto em miniatura, instala uma diferença,
que, feita tensão temporal, moverá o devir adulto”.
Por outro lado, a condição de dependência que lhe é imputada implica na não
responsabilização por seus atos e a ocupação do lugar de tutelado por pais e/ou
responsáveis. Neste sentido, Kátia Pirotta (2006) coloca que:
83
a lógica da construção do conceito de incapacidade provém de uma
interseção entre duas vertentes históricas: de um lado, a tradição
familiar autoritária, regida pelo pátrio poder, de outro lado, observa-se
a busca de instrumentos legais de proteção dos indivíduos nitidamente
sentidos pela sociedade como mais desprotegidos em relação ao
adulto
(PIROTTA, 2006, p. 03).
No que se refere ao adolescente, este tem sido percebido de forma ambígua. Ora
visto como mais independente e autônomo do que a criança (sendo já considerado capaz
de discernir entre o bem e o mal e de assumir o controle e o cuidado com seu próprio
corpo e sua sexualidade) ora sendo considerado incapaz de assumir socialmente a
responsabilidades pelos seus atos (FLEIG, 1993; RODULFO, 1997; CALLIGARIS,
2000; RIOS, PIMENTA, et ali, 2007). Percepção que chega ao campo das leis que o
mantém, juridicamente, na condição infantil de incapacidade (CÓDIGO PENAL
BRASILEIRO, 2005) (HIRONAKA, 2001).
Todos esses dados me fazem pensar a condição de subalternidade em que são
colocadas as crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, na relação com os
conselheiros tutelares, quando o deslocamento das discussões aponta para a égide do
tema da sexualidade. Há, inevitavelmente, certa ambigüidade nesta relação
proteção/tutela, visto que este tema é tratado como pertencente ao mundo adulto
visando apenas o controle social, como nos diz Pirotta (2005).
O processo de construção social dos corpos, revestidos de um caráter
biofisiológico, atribui às crianças e aos adolescentes características
que os colocam em situação desigual em relação aos adultos e o
processo social de distribuição do poder na sociedade age sobre essas
diferenças colocando as crianças e os adolescentes em posição
hierárquica inferior
(PIROTTA E PIROTTA, 2005, p.79).
Neste sentido, a “infância”, também pensada como “tempo de espera”, a ser
fruído por seres mais ou menos pequenos, não é um mal necessário, simples pecado ou
fonte de erros. Também não é um poço de sinceridade ou de bondade natural. Não é
anjo nem demônio. Trata-se de um registro habitual de idade natural da vida humana,
passível de padecer representações sociais diversas, segundo a época na qual está
situada. Em outras palavras, é uma marca temporal, simples e pura diferença instalada
no discurso humano no decorrer dos tempos.
Segundo Freud (1988), a insatisfação pulsional, o mal-estar no discurso e na
cultura, levou o homem a insuflar a idéia de um futuro diferente aqui mesmo na terra.
84
Sendo assim, a criança, chegada ao mundo após o adulto, se faz rapidamente depositária
imaginária dessa diferença temporal produzida pelo próprio mundo adulto. Assim, a
diferença entre passado e história deu impulso à invenção de uma “infância moderna”,
responsável por embalar os sonhos adultos. Sonhos que remetem a criança ora a posição
de anjo ora a posição de demônio.
Para Ana, 36 anos, conselheira tutelar e teóloga:
“A criança é um poço de amor e ternura e toda mudança na relação com
ela, parte realmente da atenção e do amor que a criança tem do adulto. É
preciso ver e sentir a angústia das crianças vítimas de abuso. É importante
porque ela, a criança, não tem noção do que fizeram com ela. Elas às vezes,
não sabem dizer direito o que aconteceu, mas nós, os adultos, sabemos
muito bem e temos que intervir” (ANA).
Esta concepção de inocência e falta de compreensão da criança com relação ao
abuso, aparece também na fala de Diana, conselheira tutelar em seu primeiro mandato.
Porém, o lugar de inocência é atribuído apenas às crianças até doze anos de idade. A
partir daí, quando a marca da adolescência é instaurada, sua opinião muda, pois, embora
ressalve a responsabilidade dos pais para com seus filhos adolescentes, colocá-os como
responsáveis pelo comportamento “inadequado” dos mesmos. Vejamos o que ela diz:
“...percebo assim: uma criança pequena não sabe o que tão fazendo com
ela. Eu culpo os pais totalmente, porque deixam os filhos na casa de
vizinhos que não conhecem, com pessoas que nunca viram. As meninas de
doze anos em diante, não; andam praticamente sem roupas, vivem nas
danceterias, nas ruas, chegando em casa uma, duas horas da manhã; isso
eu não aceito. Se ela é assediada e isso (abuso) acontece, a culpa é dos
pais, porque não deram formação à filha” (DIANA)
Diana, quando se refere às crianças (meninas) vítimas de abuso sexual, coloca
claramente a idéia de anjo assexuado que nos fala Ariès (1981). A conselheira,
entretanto, instaura uma diferença de posição quando se refere às adolescentes que
passam pela mesma situação, colocando, na forma de vestir e no comportamento não
85
controlado pelos pais, a responsabilidade pelo problema. Bem como, indica que este
“comportamento” acaba por provocar e induzir o assédio e, conseqüentemente, o abuso.
Na medida em que conversávamos, ela ia tecendo considerações a respeito da
questão da sexualidade nas meninas, marcando diferenças que levam às concepções de
gênero e geração. Vejamos como Maria e Diana se referem às queixas de abuso sexual
infantil:
“(…) na área da sexualidade atinge mais a parte feminina até dez anos,
pelo menos nos casos que têm chegado aqui na minha mão, mas há meninos
também... Não posso dizer que é igual às meninas, mas há. Atendi um
menino de oito anos que está sendo seviciado por um senhor que mora na
casa dele, e eu não sei qual o parentesco que tem. A vizinha foi quem ligou
e disse, mas a mãe negou. Eu não sei o que fazer. E esse menino não me sai
da cabeça” (MARIA).
“... eu acho que geralmente acontece com as mocinhas entre seis e dez
anos de idade, e que geralmente são agredidas pelos pais, padrastos,
primos, tios ou vizinhos, e acho que o motivo é o que já falei” (DIANA).
Diana aponta aqui a condição da menina como vítima maior do abuso sexual e
os homens adultos como agressores, reforçando assim, a concepção de gênero e geração
que marca sua fala.
Foucault (2006) descreve como a Época Clássica transformou a conduta das
populações em relação à criança. Em meados do Século XVII, a sexualidade é
cuidadosamente encerrada. Trata-se agora de um assunto restrito a casa, onde a função
da família está condicionada apenas à procriação. As crianças são tomadas como
assexuadas, e esta é a deixa para proibi-las de falarem ou manifestarem sua sexualidade.
A lei do silêncio é aplicada com severidade. É a origem da Idade do Controle, que
coincide com o desenvolvimento do capitalismo e ascensão da burguesia. “Sem mesmo
ter que dizê-lo, o pudor moderno obteria que não se falasse dele exclusivamente por
intermédio de proibições que se completam mutuamente: mutismo que, de tanto calar-
se, impõe o silêncio. Censura” (FOUCAULT, 2006, p. 24).
86
Este novo regime de pensar a sexualidade infantil, de modo a colocá-la ao
serviço da nova ordem social vem, na verdade, coadunar-se a uma concepção anterior.
Lembremos que a concepção de inocência infantil era reconfirmada pelo sacramento
cristão do Batismo (CORAZZA, 2000) e fortalecido pelo entendimento de que a criança
era imune à corrupção sexual por não ter sensibilidade para sentir prazer nem dor. Puras
e bem-aventuradas, elas, por não terem pensamentos pecaminosos, eram consideradas
incontamináveis. Através da sexualidade infantil, tornada importante e misteriosa,
buscava-se “... construir uma rede de poder sobre a infância na encruzilhada do corpo e
da alma, da saúde e da moral, da educação e do adestramento, da confissão e do exame
de consciência sobre os segredos e as armadilhas do sexo” (CORAZZA, 2000, p. 275).
O que esse discurso fazia era aprisionar a criança em um tipo de “insalubridade
sexual” (FOUCAULT, 1990), na qual crescia a necessidade de dominar a si próprias
pelo domínio da emergência da sexualidade.
Freud (1988) vem revolucionar tal percepção nos Três Ensaios Sobre a Teoria da
Sexualidade (1905). Deslocando a sexualidade dos órgãos sexuais, numa concepção
difusa de prazer sexual corporal, ele mostra como as satisfações erógenas se apóiam em
diversas funções corporais. Por exemplo, o prazer bucal na nutrição, na mamada do seio
materno, seria então, representante deste prazer. Quando ocorre o desmame, e mesmo
antes, o sugamento se instala como atividade auto-erótica, voltada para o próprio corpo.
Porém, esta tese de sexualidade infantil, é talvez a mais conhecida e mais criticada da
psicanálise. No entanto, as crianças não podem viver uma sexualidade comparável a dos
adultos, não podem se realizar em uma relação de amor e desejo. Pode-se dizer apenas
que a libido na criança não está organizada como a do adulto, que não predomina nela a
primazia da genitalidade.
Para Freud, as crianças forjam “teorias sexuais” para si mesmas, sejam quais
forem as explicações que lhes sejam fornecidas. Essas teorias mais ou menos curiosas,
que nada mais são do que tentativas para responder a importantes perguntas, como as de
saber de onde vêm os bebês, constituem o fundo inconsciente de nosso saber sexual.
Embora tenha revolucionado os meios acadêmicos da época com sua teoria
sobre a sexualidade infantil, quebrando os fundamentos biológico, anatômico e genital,
e estendendo a noção de sexualidade a uma disposição psíquica (LOUREIRO, 2004, p.
87
84), Freud foi severamente criticado devido ao caráter normalizador de sua teoria. Neste
sentido, a sexualidade toma o caminho da normatização e é reduzida à função da
procriação, negando o acesso ao prazer.
Quando retorna à questão da pulsão sexual a serviço da procriação, com o
advento da puberdade, Freud é alvo da crítica de Foucault, de que a psicanálise
encontra-se atrelada ao dispositivo da sexualidade vigente no século XVIII. Em que
pesem as críticas, à psicanálise e sua noção de desenvolvimento sexual, a hipótese de
algo da ordem do sexual presente desde os primeiros tempos do ser humano no mundo
foi retomada por outros pesquisadores, a partir de diferentes vieses teóricos, sendo
corroborada na Antropologia (VANCE (1995), MALINOWISK, (1929)); na medicina
(KINSEY, 1948); na Filosofia (FOUCAULT, 2006); na Psicanálise (COSTA, 1992,
1995). Não obstante o pensamento do senso comum sobre a “pureza infantil”
permaneça recorrente, entre técnicos cientificamente orientados e a população mais
ampla.
Assim, quando Ana e Diana fazem referência à criança como ser inocente,
incapaz de dizer e saber o que lhe acontece quando é vítima de abuso sexual, remete-se
a uma concepção de infância e sexualidade que vão contra os pressupostos inaugurados
por Freud (1988), no que se refere à sexualidade infantil.
Freud (1988) considera um erro de graves conseqüências considerarem que a
pulsão sexual está ausente na infância. Para ele, esta premissa é a principal culpada pela
ignorância sobre as condições básicas e florescência da vida sexual infantil entre os três
e cinco anos de idade. Como também das mudanças operadas no período da puberdade,
que levam a vida sexual infantil a sua configuração definitiva. Porém, esta alusão à
inocência das crianças e provocação das adolescentes, não está apenas nos discursos de
Ana e Diana. Outros conselheiros também discorrem sobre essa questão.
Quando indagada sobre sua compreensão das causas da violência sexual contra
crianças e adolescentes, Maria comunga da mesa opinião de seus colegas conselheiros
de que as crianças são vítimas inocentes, enquanto que as adolescentes ocupam em sua
fala, um lugar ativo e provocador, pois já sabem fazer escolhas:
88
“Nessa parte da sexualidade, acho que os maiores culpados são os pais,
porque deixam os filhos desde criança a usar roupas assim [gesticula]:
Sexy demais, num é? Mas as meninas quando vão chegando aos dez, doze
anos, tão semi-nuas, né? As sainhas bem curtinhas (mostra o tamanho
com a mão: um palmo), (em cima). Então isso chama atenção do, do
cara... Acho que começa por aí... Os meninos, às vezes escolhem ser assim,
como é que eu diria? Ser assim, homossexual, né?” (MARIA).
Essa fala remonta à idéia da adolescente como vítima-sedutora, colocando-a
como responsável maior pelo abuso. O descrédito aparece como uma reação comum
quando a vítima é uma adolescente, pois estas já contam com o corpo sexuado de adulto
e evocam menos ingenuidade que as crianças. Porém, Maria e também Ivo, tocam num
ponto nevrálgico desta temática que é o abuso sexual em meninos, indicando a
homossexualidade como justificativa para o ato. De certa forma, Ivo coloca a menina
como vítima em potencial e o menino como objeto de satisfação de impulsos
homossexuais não cabendo a ele o lugar de vítima.
No que se refere aos meninos, vale aqui destacar, o chamamento feito por Maria
à sedução do adolescente que, quando homem, vai passar pela homossexualidade.
Lembrando, com Rios (2004), que nas classes populares brasileiras o termo biomédico
homossexual evoca conotações generizadas, se efeminando. Assim, posto na condição
feminina-sedutora, o menino, do mesmo modo que as meninas “Sexy demais”, parecem,
na visão de Maria, convidarem os homens adultos a abusá-las/los. Já Ivo, aponta:
“Aqui nessa RPA é muito grande a queixa de prostituição de adolescente.
Hoje, a gente tem meninas de doze, treze anos que têm filho porque
foram violentadas pelos companheiros das mães; as meninas são mais
abusadas, embora existam casos de abuso com os meninos também, mas aí,
às vezes, a coisa da homossexualidade já está presente” (IVO).
Essas questões levantadas por Maria e Ivo fazem-me lembrar as colocações de
Da Matta (1985) sobre as categorias “casa” e “rua” que regulam as relações sociais.
Neste sentido, o significado destas palavras para nós brasileiros, vai além da referência
geográfica e indicam “entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas
dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso,
89
capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente
emolduradas e inspiradas” (DA MATTA,1985, p. 12).
Assim, a idéia da casa como espaço privilegiado e protegido, reservado à
família, consolida as concepções dos conselheiros (as) tutelares de que é neste espaço
que deveria acontecer às orientações, cuidados e proteção às crianças e aos
adolescentes. Espaço onde a lei moral predomina e orienta as relações. Espaço sagrado
destinado à mulher-menina-adolescente, que demarca as atitudes, gestos,
comportamentos e ações que vão indicar sua condição de passiva e tutelada.
Por outro lado, o espaço da rua, separado da casa por fronteiras pré-estabelecidas
por seus membros, é destinado ao homem adulto e tutor, detentor do poder e da lei. A
rua é o espaço aberto, perigoso, lugar de passagem, de domínio e de posse, que se
apresenta como o objeto a ser desvelado, desafiado e demarcado com seus traços. É o
local da individualização, da luta e da malandragem. É o lugar onde é possível viver
todas as contradições que são negadas na casa (DA MATTA, 1985, p. 47). Pois, se a
casa é o lugar da calma e da hospitalidade destinado ao grupo social denominado
“família”, a rua pertence ao “povo”, ao “governo”, e está sempre repleta de movimento
(DA MATTA, 1985, p. 48).
Talvez seja isso que atrai os adolescentes apontados por Maria e Ivo, como
sedutores e co-responsáveis pelas diversas formas de violência a que são submetidos.
Neste sentido, trago Da Matta (1985), para ilustrar ou (quem sabe) confirmar a hipótese
de que é à saída da casa para a rua que demarca a passagem da infância para a
adolescência, ou seja, evidencia a saída da posição de anjo assexuado para a posição de
demônio sedutor.
Constitui um ritual muito importante e altamente sombrio a primeira
vez que alguém (menino ou menina) vai para a rua sozinha, seguindo
sua própria cabeça, acompanhado apenas das pessoas de sua idade
“naturalmente” sujeito a todos os perigos e tentações que recheiam
aquele espaço. Esse é um momento oposto ao da visitação, mas
igualmente dramatizado por conselhos, recomendações e aflições. De
fato, nada mais bem guardado do que essas passagens da rua para a
casa (no caso do ritual das visitas) e da cãs para a rua (nos momentos
em que se deixa a casa, sobretudo quando isso ocorre pela primeira
vez). É como se estivéssemos pondo em contato não dois espaços,
mas também dois tipos de temporalidade. O primeiro é o tempo da
casa, da família e dos amigos, duração cíclica que se reproduzem
todas as vezes que alguém deixa a casa ou entra em casa. Tempo que
90
se refaz a cada reunião de parentes, amigos e compadres nos almoços
de domingo e nas festas onde se celebram as próprias relações sociais.
O segundo é o tempo linear: duração cumulativa e histórica. Uma
temporalidade impessoal que não nenhum direito à saudade ou à
reversibilidade plena. Tempo da rua com seus movimentos
desordenados e suas “arruaças”: às vezes tempo imoral de mudanças...
(DA MATTA, 1985, p. 51).
Assim, para sistematizar as colocações de Da Matta, bem como as falas de Maria
e dos outros conselheiros e conselheiras sobre o lugar da criança na situação da
violência sexual, o Quadro 1 apresenta a lógica de gênero, na articulação com o sistema
etário e o dispositivo de sexualidade, categorias confluentes na interpretação do abuso
de crianças.
Quadro 1 Lógica que orienta a interpretação da violência sexual entre os
conselheiros tutelares - criança:
Gênero
Masculino Feminino
Âmbito/ethos
Rua Casa
Posição sexual
Atividade Passividade
Estatuto de
dependência
Tutor Tutelado
Discernimento
Capacidade para decidir Incapacidade para decidir
Posição no ato
violento
Autor da Violência Violentado
Sexo
Homem Mulher
Sistema etário
Adulto Criança
Orientação sexual
Heterossexual Assexuada/seviciada
Tipo de violência
perpetrada/sofrida
Abuso sexual
Valor
Demônio Anjo
Nessa linha o masculino é percebido como ativo, violento, atualizado, sobretudo,
no homem adulto heterossexual (percebido enquanto tal, mesmo quando tem interações
sexuais penetrativas com meninos). As mulheres/meninas são percebidas como
passivas, assujeitadas à violência. Destacamos que muitas vezes, essa lógica de articular
gênero, sexualidade e idade inviabilizam os meninos como timas do abuso pois ao
final das contas são homens. Por outro lado, as mulheres que podem ser, por diversas
razões, autoras ou co-autoras do abuso, aparecem sempre na condição de vítima em
potencial.
91
Os meninos, quando entram neste quadro não são percebidos como efeminados
ou homossexuais, mas como seviciados. Na infância, meninos e meninas são percebidos
como assexuais, não orientação sexual formada. A criança, menino ou menina pode
permanecer na condição de anjo a possibilidade dela sentir prazer com o acontecido,
se quer é cogitada, sob medo de se estar, também, sendo pervertido (RIOS, 2004).
Essa lógica sofre uma mutação drástica quando as meninas e meninos cruzam a
fronteira dos 12 anos, passam ao estatuto de adolescentes. O que foi retratado
esquematicamente no Quadro 2, abaixo:
Quadro 2 Lógica que orienta a interpretação da violência sexual entre os
conselheiros tutelares - adolescente
Gênero
Masculino Feminino
Âmbito/ethos
Rua Rua
Posição sexual
Atividade Atividade / Sedução
Estatuto de
dependência
Tutor Tutelado
Discernimento
Capacidade para decidir (In)capacidade para decidir
Posição no ato
violento
Co-autor da violência Co-autor da violência (junto
com a família)
Sexo
Homem Mulher / Homem
Classificação etária
Adulto Adolescente
Orientação sexual
Heterossexual Heterossexual / Homossexual
Tipo de agravo
Exploração sexual
Valor
Demônio Demônio
No caso dos adolescentes, parece haver dois demônios em interação. As
adolescentes, de certa forma, são jogadas no mundo da rua, a passividade na cama
espaço a uma atividade sedutora no mundo público. O caráter de ser tutelado, incapaz
para decidir, é apagado, talvez por que os que estão no âmbito da rua devem ter
discernimento suficiente das regras do jogo para se afastar da proteção da casa. De
vítima, as adolescentes (e contrariando as leis) passam simbolicamente ao estatuto de
co-autora, junto com suas famílias que não foram capazes de formar-lhes como seres
responsáveis. Nesse contexto, os adolescentes que se envolvem na situação de
abuso/exploração são percebidos como homossexuais de certa forma com uma
orientação sexual (ainda que percebida como inadequada) definida. O principal tipo de
violência percebido como perpetrado aos adolescentes é a exploração sexual.
92
Apresentadas as formas como o sistema de gênero e de sexualidade se configura
no modo como os conselheiros e conselheiras entendem e respondem à violência sexual
contra crianças e adolescentes, cabe aprofundar a discussão em relação a uma das
questões mais fundamentais no campo das instituições responsáveis pela garantia dos
direitos: a da responsabilização.
3.3 – Violência sexual e responsabilidade
Pensando a dialética indivíduo/sociedade nas sociedades nacionais modernas,
Foucault (2006) irá por um lado apresentar a sexualidade como um importante
dispositivo utilizado pelo Estado para intervir na vida privada e gerir as populações
sobre sua liderança. Neste contexto, a ciência, em especial as que se organizam em
atenção à vida as biociências ofereceria recursos para dizer a verdade que orientaria
intervenções sobre o corpo individual e coletivo, instância privilegiada de poder.
Sem querer retornar aqui os processos que concorreram para a emergência do
que o autor denominou de biopoder, vale brevemente caracterizar sua última fase, a
mais contemporânea, na qual os ideários neoliberais impedem uma intervenção explicita
do estado em relação ao indivíduo, nos moldes dos governos “autoritários”, (ou “semi-
autoritários”), em que o “progresso” da Nação justificaria, inclusive, a morte de
indivíduos, que também, a título de exemplo, a vacinação em massa para deter a peste,
ou o desmantelamento de criadouros de mosquitos se daria a partir da invasão dos lares
– como ocorreu no Brasil na virada do século 19 para o século 20.
Na contemporaneidade, a questão do controle do Estado sobre o indivíduo
parece ter “migrado” para a instância internalizada de cálculos, em que o risco e a
segurança assumem centralidade na manutenção da vida – da Nação (CALIMAN,
2006). Conforme Rios et ali (2007), o dispositivo de segurança tem se atualizado entre
os preocupados com a socialização sexual dos jovens, sejam religiosos ou agentes do
Estado, a partir de um discurso da responsabilidade individual.
Neste contexto mais amplo de pensar a interface entre Estado, Ciência e ações
coletivas, vale perguntar ao corpus de dados que arregimentamos entre os conselheiros
tutelares: o que vem a ser responsabilidade, quando esta se volta para a questão do
93
abuso sexual infantil? Quem responde por ela? Qual o lugar da família e das redes
profissionais responsáveis pela segurança de crianças e adolescentes vitimizados? De
outro modo, o objetivo deste capítulo é discutir, à luz das respostas dos informantes
desta pesquisa, a temática da responsabilidade vinculada à prática da violência contra
crianças e adolescentes.
Se por responsabilidade entendemos ser a capacidade de gerir e responder pelos
próprios atos ou pelos de outrem, bem como a capacidade de entendimento ético-
jurídico que regem a vida em sociedade, é cabível se perguntar como cada um dos
atores que compõem o quadro de proteção e cuidados às crianças e aos adolescentes
lida/atua frente às questões relativas à violência contra esta parcela da população.
Este fato é significativo, uma vez que o Estado, através da norma constitucional,
define as crianças e os adolescentes como prioridade, muito embora não explique como
se dá essa prioridade no âmbito da cidadania e garantia de direitos.
Se voltarmos ao Art. 227 da Constituição Federal de 1988 ou ao Estatuto da
Criança e do Adolescente, que cumprimento aos compromissos que as nações
assumiram na Convenção Internacional dos Direitos da Criança das Nações Unidas e
regulamenta o Art. 227 da Constituição, veremos que em todos eles as crianças e os
adolescentes são considerados sujeitos de direitos, independente das condições sociais,
econômicas ou individuais que se encontrem. Neste sentido, o Estado Constitucional
tem o dever de proteger as crianças e os adolescentes de todos os riscos e ameaças que
comprometem sua integridade física e/ou psíquica, através de programas e ações que
garantam esta proteção.
Quando a Assembléia Geral da ONU, em 1989, adotou a Convenção das Nações
Unidas Sobre os Direitos da Criança, 114 estados, entre eles o Brasil, definiram os
padrões nimos para a proteção das crianças no mundo, indicando que deverão
tomar…
…todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e
educacionais para proteger a criança de todas as formas de violência
física e mental, injustiças e abusos, desamparo ou tratamento
negligente, maus tratos ou exploração, inclusive abuso sexual,
enquanto sob os cuidados dos pais, responsáveis legais ou quaisquer
outras pessoas que tenham a criança ou adolescente sob seus cuidados
(CORAZZA, 2002, p. 33).
94
Tendo a Convenção como base, os países integrantes da ONU, foram orientados
a rever suas leis sobre o poder de punir e cuidar das crianças e adolescentes, partindo do
princípio de que todas são iguais perante a Lei e, como seres humanos, elas têm o
mesmo valor que os adultos.
Desse modo, no que se refere ao Brasil, a questão da infância e da adolescência
conseguiu, sobretudo nos últimos dez anos, mobilizar o sentido da responsabilidade
comum direta, em inúmeras comunidades locais do país. Toda uma corrente do
movimento social voltou-se para a situação dos direitos das crianças e dos adolescentes,
respondendo as constantes e extensas violações, por meio de inúmeras iniciativas, para
os quais este era o problema social mais presente no Brasil.
Este movimento levou a população a refletir sobre o papel de cada um, frente
aos cuidados e à proteção às crianças e aos adolescentes, bem como a cobrar, através
dos Conselhos de Direitos e Tutelares, órgãos representativos da ação do estado, a
materialização do senso de responsabilidade comum e direta das questões relativas à
infância e adolescência. Pois, se é através dos Conselhos Tutelares e de suas ações que
se dá a hierarquização da função judicial na esfera do município, cabe-lhes assumir tudo
o que é relativo à proteção e garantia de direitos das crianças e adolescentes que fazem
parte das comunidades em que estão inseridos (GARRIDO DE PAULA, 1993).
Entretanto, quando se trata de abuso sexual infantil, este “senso de
responsabilidade comum e direta”, toma outros caminhos. A dificuldade em lidar com o
abuso sexual o está apenas com a família ou com a vítima, mas também, com os
profissionais, em particular com os conselheiros tutelares, que precisam fazer valer a
condição de tutores na garantia de direitos e proteção às crianças e aos adolescentes.
Neste sentido, verifica-se nos discursos dos conselheiros, a tendência de
responsabilizar a família quando o abuso acontece com a criança, já que está no lugar de
tutelada e não pode assumir as responsabilidades por seus atos. Por outro lado, quando a
questão se refere aos adolescentes, a capacidade de calcular os riscos já lhes é solicitada,
ou prevalece a culpabilização dos pais por não lhes ter ensinado o discernimento.
Esta culpabilização dos pais e dos adolescentes com relação ao abuso sexual é
mencionada pelos conselheiros como resultado da desestruturação do grupo familiar em
95
função das condições sócio-econômicas em que se encontram. Para estes profissionais,
a situação de miserabilidade em que se encontra grande parte da população brasileira,
tem contribuído para o aumento dos casos de violência contra crianças e adolescentes.
Com relação a isto, apontam também a falta de informação e de participação dos pais na
vida dos filhos. Estes são referidos como não preparados para exercerem as funções
pelos quais são responsáveis e delegados, segundo os princípios do fundamento e da
titularidade (HIRONAKA, 2001). Ou seja, a fundação da família, no que se refere à
geração dos filhos e a titularidade do pátrio poder, que coloca os filhos no lugar de
tutelados e os pais no lugar de tutores.
Nesta trilha de conflitos, família e Estado falham no cumprimento do dever de
formar cidadãos e sujeitos de direitos. Nesta mesma linha de culpabilização, como
apontado no capítulo anterior, os adolescentes são vistos como “demônios-sedutores”,
por terem capacidade para decidir sobre suas vidas e responsabilizarem-se por suas
escolhas e conseqüências de seus atos. Nestes casos, os lugares são invertidos, passando
o adolescente para o lugar de algoz (autor da violência de sedução) e os adultos
agressores para o lugar de vítimas da sedução do primeiro. Logo, aspectos legais da
responsabilização dos autores da violência (os adultos) e proteção e garantia de direitos
às vítimas (crianças e adolescentes) deixam de ser mencionados ou até esquecidos.
Muitas das vezes, não por desconhecimento dos conselheiros sobre as leis que regulam
a questão da violação de direitos das crianças e dos adolescentes, mas devido aos
diversos aparatos sócio-culturais que perpassam a relação conselheiro/vítima, dentre
eles a concepção de adultez (ARAÚJO et ali, 2007), na qual a menarca (no caso das
meninas) é vista como referencial de/para o início da vida sexual.
Voltaremos a isto mais adiante. Neste momento, volto meu foco para a fala dos
conselheiros quanto aos encaminhamentos dos casos registrados de abuso sexual
infantil e a dinâmica da responsabilização dos profissionais que respondem pelo
Conselho Tutelar.
3.4 – ‘Eu posso até acompanhar, mas não é minha responsabilidade’
96
“Eu posso até acompanhar...”. Essas palavras de uma conselheira são
emblemáticas da dinâmica que vi se estabelecer através das falas dos informantes,
quando a questão é a da responsabilidade, relacionada às denúncias e aos
encaminhamentos dos casos de abuso sexual infantil, atendidos pelos conselheiros
tutelares.
Via de regra, durante a realização das entrevistas, alguns conselheiros tutelares
focaram suas falas na dinâmica das relações familiares e na responsabilidade de cada
um frente à questão do abuso sexual. Porém, a compreensão do termo
“responsabilidade”, bem como a ação que ela determina era contraditória. Vejamos na
fala de alguns conselheiros, como a noção de responsabilidade é percebida:
“Olhe, geralmente quando é abuso não vem nem pra cá, vai direto para a
GPCA, e vem pra’qui, depois de tudo assinado. vem pra encaminhar
para abrigamento. Quando o Juiz determina que é da nossa RPA, eles
vêm, só pra abrigar. E às vezes, eles abrigam por mesmo, no juizado.
Essa parte de abuso é mais com a GPCA, porque já é crime, né? Aí, a partir
do momento que chega no Conselho Tutelar, eu vou fazer uma requisição
encaminhando para a GPCA. Eu requisito pra que ela e faça o exame
psicológico e faça o exame do IML, é tudo com a GPCA. Eu posso a
acompanhar, mas não é da minha responsabilidade. Uma atuação direta eu
não tenho, eu faço encaminhar, pego o papel e encaminho. Eu não sou
psicóloga, então...” (DIANA).
“Veja bem, nesse caso específico da exploração ou do abuso em si, é... nós
não entramos a fundo. No sentido assim, porque nós encaminhamos.
Quando chega a denúncia, o pessoal tá orientado, que é da própria
GPCA, não é? A GPCA faz os trâmites legais e encaminha muitas vezes
esses casos para acompanhamento” (MÁRIO).
“Assim, as mães chegam se queixando que não têm domínio sobre os filhos.
elas estão apavoradas, sem saber o que fazer, procurando jogar aquela
responsabilidade pro Conselho, né? Mas, que aí, no momento, a gente tem
que mostrar pra elas que o Conselho, não é atribuição do Conselho, tomar
conta dos filhos delas, no caso, que elas têm que procurar dentro de casa,
97
pôr moral ou até usar de força, não podem espancar, mas que partam
delas. É no caso também da maioria dos colégios, das escolas, quando nos
procuram. E, o que eu digo é o seguinte: vocês têm que primeiro usar todos
é, é, é...como eu digo? Assim, todos os atributos que vocês tenham dentro
da escola. Quando usar tudo e não tiver nenhum recurso, é que pode
recorrer pra gente, né? Pra o Conselho, que é pra ver, pra gente fazer um
trabalho com as escolas” (MARIA).
O que de recorrente nestas falas é a superficialidade com que a temática do
abuso sexual é tratada pelos conselheiros, atrelada à noção de responsabilidade atribuída
a outros (GPCA, IML, MP). Como também a indicação de que a participação dos
mesmos se restringe aos encaminhamentos para estes órgãos. Neste sentido, o Conselho
Tutelar, passa a ocupar o lugar de receber queixas e enviar encaminhamentos, mas sem
nenhum envolvimento ou participação nas decisões e resoluções dos casos de abuso.
Embora uma de suas atribuições (ART. 136) seja a promoção e execução de suas
decisões, no âmbito da requisição de serviços públicos e a representação junto à
autoridade judiciária, nos casos injustificados de suas liberações.
Isto significa que cabe ao conselheiro (a) tutelar acompanhar, de forma
constante, os casos por ele atendidos fazendo, como refere Rezende e Garanello (2002,
p. 46), “uma ligação entre rios organismos que em geral não mantém um trabalho
articulado”. O que, de certa forma, garantiria, segundo os autores, o lugar do
conselheiro (a) como um formador de redes de atendimento e garantidor da
continuidade dos mesmos.
Por estar no lugar de representante legal da sociedade civil organizada e de
fiscalizador das ações na área da infância e juventude, o conselheiro (a) tutelar tem por
responsabilidade a atuação como agente de prevenção, buscando a articulação entre
grupos organizados da sociedade e o Poder Público local, na perspectiva da
multiplicação de informações, que viabilizem e garantam os direitos de crianças e
adolescentes.
Por outro lado, alguns outros conselheiros tutelares, reclamam da falta de
comunicação e de informação quanto aos casos por eles encaminhados. Sobre esta
dificuldade, comenta Maria Paula:
98
“Eles (GPCA, MP, Juizado) não comunicam à gente o que fizeram, que
encaminhamentos deram. É um problema de comunicação. Eu sei que eles
estão fazendo o trabalho, tenho certeza que a GPCA está fazendo o
encaminhamento, mas assim, eles não comunicam o que foi feito daquilo.
São pessoas comprometidas, eu sei, mas a gente queria mais comunicação.
Veja, o CENDHEC quando recebe estes casos, quando são crianças de
nossa RPA, eles avisam que estão fazendo o acompanhamento. Isto é que é
certo, porque a gente precisa trabalhar em rede” (MARIA PAULA).
Estas queixas também são perceptíveis nas falas de Ivo e de Mario:
“O problema é com a retaguarda. A gente recebe e encaminha, mas depois
não sabe o que acontece. Não temos como acompanhar” (IVO).
“Nesse caso específico, como eu te relatei, nós damos o acompanhamento
técnico, ou seja, nós encaminhamos e requisitamos quando chegam esses
casos encaminhados pela própria GPCA ou então outro órgão de
acompanhamentos à família. Nós encaminhamos solicitando um parecer
técnico pra equipe, pra se ter uma posição de que tipo de trabalho pode ser
feito com aquele adolescente, mas às vezes vem e às vezes não vem”
(MARIO).
Tanto Maria Paula quanto Ivo e Mario compartilham a idéia de que os
problemas oriundos dos atendimentos e encaminhamentos dos casos de abuso sexual
infantil, dizem respeito à falta de comunicação e trocas efetivas entre os profissionais,
conselheiros ou não, responsáveis pelo acolhimento às vítimas.
Porém, quando indagados sobre a percepção que têm sobre as causas do abuso
sexual infantil e a dinâmica de atendimento aos mesmos, referem, em sua maioria, que a
responsabilidade pelo ato e as conseqüências para a criança e a família pertencem aos
pais.
“Eu culpo totalmente os pais, por causa da omissão. Existe, né? Eles não
denunciam por vergonha ou porque têm medo que a filha fique falada, ou
alguma coisa nesse sentido. Mas, eu acho que eles têm que denunciar sim e,
quanto à prevenção, m que observar melhor. Porque às vezes o abuso,
99
ele, o assédio, o assédio em si, acontece porque é natural e tem que
acontecer. E também porque a menina se expõe pra acontecer. Então, eles
têm culpa porque não previnem” (DIANA).
“Olha, o real é uma coisa tão ampla essa discussão. Eu acho que a base
familiar é o seio de tudo, o alicerce da vida. Se você não tiver o amor, a
base familiar, você pode até chegar lá, mas... Você tem que considerar os
valores. Eu sinto que hoje em dia os vínculos familiares tão cada vez mais
rompidos, a relação mãe-filho-pai, marido-mulher, tão cada vez mais
rompidos” (JOÃO).
“Eu acho que a responsabilidade é dos pais. Eles não têm culpa, eu sei. O
meio faz isso, fome, miséria, falta de informação, o desajuste familiar; tudo
isso contribui para o desinteresse e a falta de esperança” (IVO).
A referência desses conselheiros à responsabilidade dos pais com relação à
violência, abuso e/ou maus tratos sofridos pelos filhos, remete à premissa de que o
cuidado e a proteção das crianças e adolescentes cabem exclusivamente aos pais. Assim,
o Poder Público e os órgãos responsáveis pela garantia dos direitos de crianças e
adolescentes, dentre eles o Conselho Tutelar, têm sua responsabilidade diminuída, ou
seja, tomam distância ou embotam a real função que devem exercer.
No entanto, de acordo com a Rede de Monitoramento Amiga da Criança (2007),
o Brasil, através da assinatura do Termo de Compromisso Presidente Amigo da Criança,
assumiu publicamente compromissos de metas e gestão para melhorar as condições de
vida atuais e as futuras de crianças e adolescentes do país. Neste sentido, cabe não à
família, mas também ao Poder Público e a sociedade em geral, a proteção e o cuidado
100
contra os maus tratos, a exploração e a violência contra as crianças e adolescentes.
13
Todas essas questões elevam os níveis de angústias vividas e relatadas pelos
conselheiros tutelares, com relação à responsabilização nos casos de violência e abuso
sexual infantil.
“Eu lamento. Eu vejo isso com tristeza. É... realmente um certo tipo de
angústia, mas eu não sei até que ponto essas pessoas são responsáveis, né?
Porque não depende do Conselho também só, responsabilizar esses
agressores. Como falei, abuso é crime. Não é o Conselho que tem que
responsabilizar, que vai prender, que vai fazer com que eles respondam ou
não a um processo. O Conselho encaminha, certo? Faz os
encaminhamentos, mas até certo ponto; dá uma certa frustração porque dos
casos que eu conheço, que acompanhei, eu vi um ser preso. Eu acho que
a justiça é lenta mesmo. Infelizmente é a minha opinião. Acho que essa
questão da infância, da juventude, deveria ter um pouco mais de atenção.
Eu acho que ainda assim, é lenta, as coisas demoram muito a acontecer”
(ANA).
“Então, a impunidade... ela precisa acabar, porque isso tem encorajado
os malfeitores a pratica desse delito contra a sociedade, seja criança ou
adolescente. Especificamente aqui, falando dessa cidade e com a sociedade
em geral” (MARIO).
“Nesses casos demora muito a punição. As crianças e adolescentes o
vítimas da sociedade. A sociedade nos oferece muita coisa, nos proporciona
muita coisa, mas também nos exclui de forma grosseira. O governo hoje
quer passar para a sociedade a responsabilidade que é dele. Quem tem que
13
Isto porque, as estruturas familiares podem ter limites e fronteiras rígidas ou difusas que dificultam a
comunicação entre pais e filhos. Além disso, as expectativas dos pais, referentes às responsabilidades e
aos comportamentos em geral, por vezes não são apropriadas às crianças e adolescentes. A situação de
miséria e subsistência apontadas por Ivo, também são passíveis de considerações, pois remetem à questão
da vulnerabilidade das crianças e jovens das periferias urbanas à violência, abuso, exploração e maus
tratos. Não esqueçamos as colocações de Welzer-Lang (SAFFIOTI, 1993) quando levanta a hipótese de
que o aumento dos casos de violência contra crianças e adolescentes, deve-se em parte, ao agravamento
da crise econômica que empurra homens e mulheres ao desemprego e, consequentemente, ao
desequilíbrio que provoca o esfacelamento das relações familiares.
101
fazer o papel de cuidar das vítimas e punir os agressores é ele, mas não
está fazendo” (JOÃO).
Estes relatos apontam, em especial, para a questão do envolvimento do Estado
na condução, punição dos agressores e cuidados às timas de abuso sexual infantil.
Como também, revelam as dificuldades vividas pelos conselheiros tutelares frente às
situações de abuso e punição dos agressores. O apelo ao engajamento do Estado nas
questões relativas à violência, imbuída nas falas dos conselheiros, podem ser analisadas
com base em Charles Melman, psicanalista francês, quando discorre sobre o sentimento
de insegurança que abate a sociedade contemporânea, no que se refere ao desamparo do
sujeito nos dias de hoje.
O sentimento de insegurança é tal, e as transformações éticas,
familiares e políticas tão profundas que é importante que o Estado
aos cidadãos o sentimento de velar por eles, de ser garantia contra
danos suscetíveis de lhes serem atingidos. Quanto mais o papel do
Estado se torna incerto na regulação econômica e na condução do
social, já que a liberação do mercado o priva de seus privilégios
comuns, mais ele busca manifestar sua vigilância funcionando como
uma espécie de companhia de seguros a todo risco
(MELMAN,
2003, p. 153).
Talvez seja essa forma de o Estado se apresentar como companhia de seguros
sugerida por Melman, que desperte tanta angústia nos conselheiros, uma vez que a idéia
de imputar sobre o sujeito individual a responsabilidade por seus atos nega de certa
forma, a condição de sujeito social e impede o reconhecimento de que também faz parte
da sociedade como um todo, a responsabilização para com crianças e adolescentes
vítimas de abuso sexual. Pois, como bem lembra Ivo:
“A punição àqueles que cometem abuso sexual com crianças e adolescentes
não pode se deter ao pagamento de multas e indenizações, nem muito
menos se perder nas malhas de uma justiça lenta e por vezes, inexpressiva”
(IVO).
Neste sentido, é a defesa contra o desamparo infantil que empresta suas feições
características à reação do adulto ao desamparo que ele tem de reconhecer através da
busca pela religião. Porém, não é preciso, necessariamente, ser religioso para respeitar a
ordem que nos determina embora alguns precisem dessa referência.
102
Para Melman (2006), “Pode-se respeitar essa ordem simplesmente por saber
que não respeitá-la é soçobrar na barbárie”. Isto porque, a barbárie consiste numa
relação social organizada por um poder não mais simbólico, mas real. Poder que, para
Foucault (2006), dita a lei, prescreve a ordem e pronuncia a regra, fazendo com que o
sujeito se constitua como “sujeitado”, ou seja, aquele que obedece. Obedecem as leis e
as normas impostas pelo Estado, pela família, pela sociedade. “Poder legislador de um
lado, e sujeito obediente do outro” (FOUCAULT, 2006, p. 97). Um sujeito que para
Melman, tornou-se atópico: “Não consegue mais encontrar seu lugar, sua própria voz, é
um sujeito que parece sem consistência, sem projeto fixo, sem votos que lhe seriam
pessoais” (MELMAN, 2003, p. 135).
Este sujeito, em meio ao seu desamparo, clama ao Estado a segurança que este
deveria oferecer, que isto está implicado no contrato social que estabelecem entre si.
Contudo, não é bem isso que acontece. Ao contrário, O Estado delega a outros
segurança e responsabilidade, neste caso aos conselheiros tutelares (que representam o
Estado na efetivação das leis de proteção e garantia de direitos). Por sua vez, os
conselheiros marcam em seu discurso a culpabilização da família, passam adiante sua
parcela de co-responsabilidade. Argüidos destes princípios, os conselheiros cobram da
família e adolescentes a capacidade de calcular riscos, sem ao menos lhes ensinar como
fazer. Ao indicar para a escola que os procure em casos extremos, se colocam na
condição de atuarem como se estivessem em uma delegacia, prontos para punirem os
infratores das regras sociais, fugindo ao que está estabelecido enquanto função e dever
para com a garantia de direitos.
Decerto, não cabe aos conselheiros julgar e punir agressores, mas é possível
pensar que meios poderá utilizar para viabilizar a punição, sem que isto se restrinja ao
ato de encaminhar e “lavar as mãos” para com a situação, em especial, para as
conseqüências disto na vida das crianças e/ou adolescentes. Por outro lado, cabe ao
conselheiro, a função de viabilizar ações preventivas por meio das escolas, associações
de bairros, entre outros, que possibilitem a compreensão e reconhecimento dos casos de
abuso sexual, bem como, os meios para enfrentá-los e combatê-los. Isto fortalece a
idéia da garantia de segurança e responsabilidade do Estado para com seus cidadãos
numa perspectiva não individualista e não neoliberal.
103
Conforme Caliman (2006), nesta noção de segurança, associada à noção de
independência e ao livre arbítrio,
ganha força a idéia de que o novo capital humano é menos o sujeito
indisciplinado pelas técnicas de trabalho, sujeito das normas
familiares e do controle médico, do que o sujeito independente e
senhor de si que a lógica passa a exigir. Indivíduo que deve ser o
“autor ativo” de suas escolhas de vida e também único responsável
pelos riscos e perigos que estas escolhas implicam. As novas
instituições de segurança social visam principalmente os indivíduos
capazes de capitalização dos riscos. A segurança anteriormente
garantida por um Estado mantenedor da ordem se dissolve como
imperativo de cada cidadão
(CALIMAN, 2006, p. 206).
É neste bojo que podemos entender a relação que Melman (2003) faz sobre o
funcionamento do Estado, como companhia de seguro a todo risco”, visto que,
segundo Rios (2007), “O cálculo atuarial das companhias de seguridade, que medem
exposições a riscos na interface com os custos, devem ser incorporados e utilizados
pelos indivíduos no dia-a-dia, de forma que possam avaliar, eles mesmos, os riscos de
seus próprios comportamentos” (RIOS, 2007, p. 18).
Destarte, observa-se que, por um lado, culpabilização das famílias e
adolescentes como co-autoras da violência sexual, de outro, uma des-responsabilização
dos conselheiros/as em relação ao agravo, no sentido de reduzirem suas atuações
meramente ao encaminhamento, ao passar para adiante o problema, se eximindo de suas
atribuições de prevenir e acompanhar o caso no passo a passo do atendimento. De forma
a garantir que a atuação em rede de fato se dê, de modo que o atendimento à criança ou
ao adolescente seja o mais eficaz possível.
Neste contexto, quero retomar, para finalizar a análise, a questão da autonomia
para decidir sobre a vida sexual, que, em especial no caso dos adolescentes, é uma
questão que compromete o atendimento adequado.
3.5 – Autonomia para decidir
Neste ponto vale mais uma vez recorrer a Freud (1988), quando discute a
sedução entre adultos e crianças. Freud (1988) tratou a sedução como Pulsão Parcial e
diz:
104
A influência da sedução não ajuda a revelar as circunstâncias iniciais
da Pulsão sexual, mas antes confunde nossa visão dela, uma vez que
apresenta prematuramente à criança um objeto sexual de que, a
princípio, a pulsão sexual infantil não mostra nenhuma necessidade...
a pulsão de ver pode surgir na criança como uma manifestação sexual
espontânea
(FREUD, 1988, p. 180).
Isto revela a idéia de que, contrariamente à noção de sedução que marca a fala
dos conselheiros, esta é oriunda da relação do adulto com a criança que é cuidada, ou
seja, a sedução parte do adulto através do olhar que lhe direciona, dos estímulos que
provoca, despertando ou não o interesse da criança pelos conteúdos que apresenta. Para
Freud, a sedução está situada aquém do amor e seu caminho não é senão, da conquista
do corpo da criança.
Todavia, longe de querer levantar aqui polêmicas acerca da sexualidade infantil,
estas questões levantadas por Freud quanto ao destino da sedução quando da relação
adulto/criança, conduz à seguinte reflexão: até que ponto (neste contexto) esta
passividade infantil vai de encontro à noção de autonomia e escolhas que regula a vida
das crianças (principalmente quando nos referimos às crianças das camadas menos
favorecidas socialmente e economicamente, que, segundo os conselheiros (as) tutelares,
são apresentadas precocemente às questões relativas ao sexual)?
Embora o moralismo que impera em nossa sociedade negue a possibilidade da
autonomia e da escolha por parte da criança, ela é evidente e não se constitui como
violação de direitos. Vale aqui destacar que as experiências sexuais das crianças de
tenra idade estão voltadas para o lúdico, o imaginário e para as descobertas do corpo,
segundo Rios (2004). Mas, é certo que, em dado momento, estas crianças atingirão um
estágio que lhes permitirá optar por seus atos e escolhas sexuais, muito embora não
tenhamos dados suficientes para indicar o momento exato em que isto se constitui. O
que leva a repensar a noção da criança como anjo assexuado que perpassa os discursos
dos conselheiros (as) tutelares e que acabam por negar, interditar e punir as interações
infantis (RIOS, 2004).
Por outro lado, esta noção de ser assexuado termina por inviabilizar a
identificação dos casos de abuso sexual, uma vez que a negação da sexualidade infantil,
percebida como pertencente ao campo do imaginário e da fantasia remete os
profissionais à compreensão de que as experiências sexuais das crianças estão longe das
105
vivências reais. Rios ( 2004) nos lembra que as altas estatísticas dos casos de AIDS entre
crianças e jovens, bem como o alto índice de fecundidade na faixa etária de 10 a 14
anos, corroboram para a compreensão de que estas práticas existem e fazem parte do
universo infantil. Por si só, isto bastaria para justificar o aprofundamento, no que se
refere aos estudos sobre a subjetivação sexual dos indivíduos, bem como da
compreensão destes enquanto sujeitos de direitos.
Para Rios (2004), estas evidências:
indicam ser possível e necessário falar e aprender com as crianças
sobre como elas vivenciam o sexual; em paralelo fomentar desde cedo
a autonomia sexual, o direito de escolha e as implicações destas para
suas vidas e qualidade de vida; possibilitar o diálogo aberto, sem
repressão ou culpa sobre o prazer sexual o que inclusive
possibilitaria, creio eu, uma maior eficácia no combate ao abuso e a
violência sexuais
(RIOS, 2004, p. 280).
Isto porque, ao se mostrar como uma realidade desconhecida, ou mal conhecida,
as situações de abuso e violência sexual acabam por configurar, devido à falta de
conhecimento, como mais uma forma de violência que opera no nível estrutural, em que
a invisibilidade vem acompanhada do descaso, colocando em risco a vida das crianças e
adolescentes vitimizados.
Isto porém, não inviabiliza as questões éticas e legais de autonomia de que as
crianças são seres em desenvolvimento e sujeitos de direitos, o que os coloca na
condição de receber proteção e cuidados do Estado, principalmente no que diz respeito
às questões relacionadas à violência e ao abuso sexual, que caracterizam as relações de
poder entre adultos e crianças. Muito embora esteja longe de ser este “anjo assexuado”
que perpassa o imaginário dos profissionais que lidam com crianças, no que se refere às
questões relativas ao sexual, elas (as crianças) constituem patrimônio da Nação e como
tal devem ser tratadas (SAFFIOTI, 2000). Neste sentido, a legislação brasileira, como
visto anteriormente, prevê penas para os adultos que cometem crimes de sedução e
corrupção de menores.
Contudo, voltemos a Freud. Embora não faça referência à adolescência quando
discorre sobre a sexualidade infantil, ele indica esta fase como o momento de encontro
com o objeto sexual. Momento em que meninos e meninas farão suas escolhas e
orientarão suas aspirações sexuais para uma única pessoa, na qual elas pretendem
106
alcançar seus objetivos. É, portanto, o momento de reapropriação do corpo pelo EU, um
corpo que se tornou ameaçador, provocador. É, por outro lado, o momento de construir
com esse corpo, novos ideais, implicados na responsabilidade de uma escolha. A
adolescência então, se constitui a partir da modificação de um corpo, da florescência de
uma função genital antes adormecida. A pulsão sexual passa então a estar a serviço da
função reprodutora; “torna-se altruísta”, diz Freud. Vale destacar que Freud reduz toda
sua teoria à premissa de que todo o processo do desenvolvimento sexual infantil tem por
único destino a procriação, posição conservadora que marcou o pensamento e os
discursos sobre sexualidade nos fins do Século XVII e início do Século XVIII, no qual
o sexo era reprimido, proibido, fadado ao mutismo e associado ao pecado. (Foucault,
2006)
Ao analisar as questões colocadas por Freud sobre a adolescência, Arendt
(1992), explica que a crise do mundo contemporâneo, com reflexos nos campos
intelectual, econômico e cultural provocou o esfacelamento das tradições e,
conseqüentemente, a dissolução dos valores. Sem tradição e diante de um futuro incerto,
o sujeito adolescente se depara com o grande desafio que significa crescer e tudo que
esse passo implica. Nesta relação, entre o passado e o futuro, ele se lança num mundo
que, se por um lado acena com todas as promessas de gozos incríveis direcionados ao
mundo adulto, por outro lado ameaça com perigos de todos os tipos. É como se
estivesse entre o céu e o inferno, sendo ora anjo, ora demônio. O céu representa o
passado, o tempo da infância perdida, da inocência, do “não saber”. O inferno, traz a
marca de um futuro incerto, no qual a inocência deu lugar à sedução, à responsabilidade
por um corpo que ainda não conhece, não domina, mas que, aos olhos da sociedade
mostra a marca do pecado na busca do prazer. Um corpo que antes, no tempo da
infância, estava à mercê da manipulação da mãe ou de quem dele se ocupa. Um corpo
de ficção, coletivizado, que a criança usa para criar teorias a seu respeito a fim de
responder à pergunta: “de onde vêm os bebês”. O corpo do adolescente, inesperado e
estranho, traz a marca da perda do corpo de ficção que produzia o laço da infância.
Agora, o corpo de ficção é convocado ao exercício do sexo, toma uma posição sexuada,
torna-se homem ou torna-se mulher, desperta olhares, provoca.
Todos esses elementos levam a concluir que, como anjo assexuado ou demônio
sedutor, a criança e o adolescente constituem-se, no discurso dos conselheiros tutelares,
107
como maiores vítimas da violência sexual. Mesmo aqueles que advogam em favor
desses anjos ou demônios, trazem no discurso a concepção de lugar de passividade para
a mulher na sociedade e buscam através disto justificar todas as formas de violência
imputadas às mulheres, às crianças e aos adolescentes; leva também à reflexão sobre
como estes aparatos e suas interpretações interferem na relação conselheiro/vítima,
culminando distanciamento das reais implicações do ato de violência na vida das
crianças e adolescentes, e, conseqüentemente, nos encaminhamentos definidos em seu
regimento.
Fica decretado que agora vale a verdade.
Agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino
Só uma coisa fica proibida:
Só uma coisa fica proibida:Só uma coisa fica proibida:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
amar sem amor.amar sem amor.
amar sem amor.
(Os Estatutos do Homem
Os Estatutos do Homem Os Estatutos do Homem
Os Estatutos do Homem -
--
-
Thiago de Mello)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Meu objetivo, nestas considerações finais, é de retomar o fio das análises que
desenvolvi a partir das discussões sobre o Conselho Tutelar, enquanto instância
responsável pela garantia de direitos das crianças e adolescentes brasileiras, a fim de
propor uma conclusão. Conclusão, aqui, não no sentido da finalização, mas de entender
os processos de organização e funcionamento dos Conselhos Tutelares, de como os
conselheiros tutelares acolhem, lidam e encaminham os casos de abuso sexual infantil
registrados em suas RPAs.
Ao iniciar este trabalho fui tomada por sensações contraditórias: medo, angústia,
excitação, revolta. Também por inúmeras perguntas, dentre elas: o que faz um adulto
buscar no corpo de uma criança a satisfação de suas necessidades sexuais; como se o
trabalho de um conselheiro; como ele acolhe e encaminha os casos de abuso sexual que
lhe chegam às mãos; o que pensa; que emoções lhe atingem. Por outro lado, estava
tomada pela concepção de que essas pessoas pouco se comprometiam com o exercício
de suas funções. Talvez, marcada por experiências negativas, anteriores, no exercício de
minhas funções como psicóloga e gestora pública, trazia a marca da inoperância do
funcionamento dos Conselhos Tutelares.
Contudo, o exercício da pesquisa e o contato com os (as) conselheiros (as)
tutelares de Recife, as informações que consegui obter com as narrativas destes, além do
acervo bibliográfico pesquisado para a construção desta dissertação, satisfez, em parte,
minha curiosidade científica sobre o assunto, assim como, me fez mudar as impressões
anteriores ao trabalho.
Com relação a esses aspectos, ouvir os informantes, representantes de cinco dos
sete Conselhos Tutelares de Recife, me levou a constatação de que freqüentemente
essas pessoas são tomadas por aparatos socioculturais que dificultam a relação com as
vítimas, como também, seus encaminhamentos. Outro aspecto importante é a falta de
110
envolvimento e amesmo de conhecimento sobre a problemática, quando pensada em
uma esfera maior que as das quatro paredes da sala de atendimento. Ouvir os relatos
desses conselheiros sobre suas atuações, por vezes me levava à angústia de não poder
intervir. Calar para poder escutar significava, em alguns momentos, ser conivente com
determinadas práticas relatadas, o que me fez voltar ao campo de pesquisa para retomar
as questões e assim compreende-las melhor. Compreender, principalmente, como cada
um se sentia ao ouvir relatos tão difíceis e marcados por tanta crueldade, mas também
entender quais concepções sobre criança e adolescência, perpassava essas práticas.
Para que tudo isso fizesse sentido, foi preciso em um primeiro momento,
dissecar o funcionamento do Conselho Tutelar desde sua origem: como se deu sua
fundação, que marcos teóricos nortearam sua origem e, sobretudo, o que levou o Poder
Público a articular-se no sentido de organizar um serviço que desse conta e zelasse pelo
cumprimento dos direitos das crianças e adolescentes. Pude constatar nas leituras que
realizei, que, a partir das discussões que nortearam a origem do Estatuto da Criança e do
Adolescente, a tônica era marcada pela avaliação da necessidade de um órgão popular
rápido e com um mínimo de formalidade, que pudesse solucionar nos próprios
municípios, casos individuais caracterizados pela violação dos direitos das crianças e
adolescentes, surgindo assim o Conselho Tutelar.
Neste contexto, fez-se necessária a compreensão do que venha a ser violência e
abuso sexual infantil (Capítulo 1), estes são perpassados por concepções conservadoras
e aparatos sócio–culturais que dificultam a interlocução, bem como pela construção da
noção de infância e adolescência que figuram nos relatos dos conselheiros e na
sociedade como um todo.
O funcionamento do Código Penal Brasileiro, bem como das instituições do
Sistema de Garantia dos Direitos, foi visto com diferenciados níveis de compreensão de
suas funções, caracterizando também, diferentes níveis de resolubilidade. O que me leva
a pensar que, no que se refere ao abuso sexual infantil, estamos diante de dois mundos a
serem cuidados: o das dores e dos danos das vítimas e o do processo de
responsabilização e punição dos agressores. Por outro lado, a violência não pode ser
pensada isoladamente, pois faz parte de todo um contexto social, onde o ser humano é
tratado como uma coisa e não como sujeito, tal como nos indica Marilena Chauí (1985).
111
A partir dos pressupostos teóricos de Corrêa (1981), Rubin (1993), Gagnon
(2006), Rios (2002; 2003 e 2004), Saffioti e Almeida (1995) e também Parker (1991) e
Heilborn (1996), pude constatar que os estudos referentes à violência e ao abuso sexual
infantil remetem à social das desigualdades de gênero, fundada na hierarquia e
desigualdade de lugares sociais sexuais, bem como, na legitimação do poder, da
exploração e da dominação masculina, principalmente no que se refere a sua construção
social. Ao ouvir os informantes observei que essa construção insere-se nos arranjos
culturais dos papéis de gênero masculino/feminino socialmente prevalecente, que têm se
baseado numa organização polarizada na qual, historicamente, o homem tem sido
referenciado como aquele que detém o poder e a tutela sobre a mulher e os filhos. Se
passearmos os olhos pela história da condição feminina, veremos que o que determinou
às mulheres a ausência de direitos e a submissão ao patriarcado foi uma circunstância de
imposição pela força, reiterada pelos costumes e pelas instituições, ao mesmo tempo em
que endossada pelo próprio Direito. Não porque tenha sido um desejo das mulheres.
Mas elas sempre viveram em um mundo dominado por instituições patriarcais, cuja
estrutura não permitia a própria modificação.
Tudo isto, porém não inviabiliza a necessidade da denúncia e de um olhar mais
minucioso do Poder Público, no que se refere à resolubilidade dos casos de abuso sexual
infantil. Pois, como foi possível constatar, a necessidade de responsabilizar alguém leva
os conselheiros a se excluírem do processo, culpabilizando os pais ou a política de
atendimento às crianças e aos adolescentes vitimizados. Neste sentido, garantir os
direitos de todos os implicados, significa punir os responsáveis pela violência, sem
esquecer o indispensável desmonte e responsabilização das redes de exploração, dos
pais negligentes, dos consumidores/clientes do mercado do sexo.
No que se refere aos conselheiros, penso que se faz necessário um maior
aprofundamento na política de formação destes profissionais, para questões como:
clareza do conceito de violência e abuso sexual e seus elementos constitutivos,
existência de um ponto de convergência entre os referenciais teóricos sócio-políticos e
jurídicos, no diz respeito à responsabilização e punição aos agressores, maior clareza
quanto ao desenvolvimento sexual infantil, como forma a garantir a proteção e o
reconhecimento das conseqüências do abuso sexual na vida da criança ou do
adolescente. Isto porque, no Brasil, a violência parece entranhada no conjunto da
112
sociedade. Abusar e explorar sexualmente crianças e adolescentes tornou-se negócio
rentável na maioria das cidades brasileiras. Entretanto, dimensão deste ato constitui
hoje, preocupação para apenas uma parcela da população, que luta pela garantia de
direitos desses pequenos sujeitos vitimizados.
Essa questão toma relevo quando, para alguns conselheiros, a criança é tomada
como anjo assexuado e a (o) adolescente como vítima de sua própria sedução. Aqui, um
equívoco se coloca quando os conselheiros apontam a (o) adolescente como vítima-
sedutora, pois Freud (1988) tratou a sedução como Pulsão Parcial, dizendo que a
influência da sedução não ajuda a revelar as circunstâncias iniciais da Pulsão Sexual,
que esta é, na verdade, oriunda da relação do adulto com a criança que é cuidada. Isto
quer dizer que a sedução parte do adulto, através do olhar que dirige à criança.
Responsabilizar pais e vítimas pelo abuso, bem como apontar a situação de
miserabilidade em que vivem, parece ser uma prática comum dos conselheiros que com
esta concepção se colocam numa posição de exclusão frente à problemática. Esta atitude
frente aos fatos retira também do Estado, a responsabilidade que lhe cabe na condução e
aplicação de políticas blicas que impeçam o avanço da violência contra crianças e
adolescentes.
Carvalho (2004) nos diz que:
No âmbito do binômio pobreza e violência, alguns estudos indicam
que não são as regiões mais miseráveis do país aquelas que
condensam maior índice de violência. Mais do que a pobreza em
termos absolutos, seria uma certa exacerbação da desigualdade social
a extremada distribuição desigual da renda ao lado da convivência
de dois mundos ( o dos excluídos e o dos incluídos) – uma das
molduras propícias às relações de violência e suas conseqüências na
sociedade. Talvez um exemplo importante dessa situação possa ser
visualizado na cidade do Rio de Janeiro que constrói um espaço
urbano nos quais incluídos e excluídos vivem cotidianamente essa
relação de confronto, de mútua negação a abundância de um
segmento diante da miséria do outro e interações complementares
entre esses mundos, expressas muitas vezes pelo consumo e tráfico de
drogas
(CARVALHO, 2004, p. 85).
Neste sentido, quando a responsabilidade é direcionada aos pais/responsáveis e
vítimas, o abuso sexual deixa de ser visto como uma questão de ordem pública para
fazer parte apenas do espaço privado da casa. É aqui que impera a lei do silêncio e a
impossibilidade da quebra do ciclo de violência a que a criança e/ou o adolescente estão
113
submetidos. Esta “lei do silêncio” aponta para a dificuldade nos diagnósticos de abuso
sexual e para a preservação do segredo familiar sobre a lei moral e social. Remete
também a dificuldade em se tratar de temas relacionados à sexualidade e suas
implicações. Aqui, o “segredo” permeia a família e a instituição.
Tudo isto me leva a pensar, as questões levantadas por Da Matta (1996) sobre
a noção casa/rua, público/privado, em que a casa é vista como “aquela que domina a
rua” (DA MATTA, 1996), contribuindo para a dicotomia indivíduo/pessoa. Na casa as
pessoas se agasalham, se protegem da rua, também se submetem às leis inscritas em seu
próprio espaço, escapando da lei social, reguladora da vida em sociedade.
Embora a sexualidade humana seja parte fundamental (e alguns argumentem
que ela seja até fator principal) na construção da identidade da criança e do adolescente,
os conselheiros tutelares entrevistados a vêem como um universo proibido. Noções e
concepções conservadoras e ultrapassadas fazem parte dos discursos desses
profissionais e acabam por confirmar os resultados dos diversos estudos sobre a
sexualidade, quando referem à mesma como uma construção social.
Outro dado interessante na escuta dos conselheiros tutelares é a relação que
estabelecem com a religião. Quatro dos sete conselheiros entrevistados, são oriundos de
movimentos religiosos (embora eles indiquem ter iniciado suas atuações nos
movimentos sociais), sendo dois, pertencentes à religião evangélica. A relação da
religião com as atividades desenvolvidas nos Conselhos Tutelares é citada por todos
como essencial para o entendimento dos problemas que chegam, referem ser também
essencial na manutenção de valores esquecidos e não mais respeitados.
Estes discursos estão, em sua maioria, articulados à “perspectiva teológica de
salvação, neste e noutro mundo” (RIOS, 2007), o que remete à concepções de
solidariedade, bondade e caridade referidas por Da Matta (1996) e que aparecem em
todo sistema hierarquizado. Na perspectiva “damattiana”, a caridade está longe da
definição de filantropia, pois esta se relaciona à construção social, enquanto que a
caridade à construção de laços hierarquizados entre um superior e um inferior.
Penso que nos discursos religiosos dos conselheiros tutelares, a manutenção do
poder da igreja (via seus pastores) se consolida através da atuação destes nas
comunidades em que estão inseridos. Eles atuam enquanto pastores de rebanhos
114
desgarrados, onde a finalidade de sua atuação é a salvação de suas almas (afinal é pela
salvação do rebanho que o pastor encontra sua própria salvação).
Por fim, todos esses fenômenos me fazem pensar que o combate à rede de
violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, é extremamente
complexo e exige a participação de toda a sociedade, organizadas em redes de proteção
e prevenção. Esta prevenção poderia vir a ser um dos requisitos de atuação dos
conselheiros tutelares, na luta pela garantia dos direitos de crianças e adolescentes
brasileiros. O trabalho requer a intervenção em escolas, centros de atendimento, centros
sociais, entre outros espaços de acolhimento, como forma de fortalecimento do
programa de enfrentamento à violência, impulsionado pelo Poder Público, ONGs e
sociedade civil organizada. Esta luta está ao alcance de todos, mesmo daqueles que não
podem ou não querem se dedicar a esta causa.
O objetivo de todo este investimento é o impedimento do desaparecimento da
infância que tanto nos fala Corazza (2002). Este trabalho que parece gigantesco, não
pode e nem deve ficar restrito a poucos indivíduos e organizações. Pela magnitude do
problema, esta tarefa é direito e dever de todos os cidadãos brasileiros, especialmente
dos conselheiros tutelares, pois, como indica o regulamento de suas atribuições, estes
têm o dever e o compromisso de zelarem pelo cumprimento dos direitos das crianças e
adolescentes, além de contribuir para mudanças profundas na política de atendimento à
infância e adolescência. Por outro lado, faz-se necessária, também, a luta por uma
mudança no Código Penal Brasileiro, em relação aos crimes sexuais, segundo o
paradigma de violação de direitos da pessoa e o dos costumes, como o que configura
hoje.
O envolvimento do Poder Público, através de seus gestores e demais
funcionários, possibilita o avanço nas discussões de enfrentamento à violência e ao
abuso sexual infantil (como indicam os conselheiros), além de possibilitar a
reestruturação dos Conselhos, tanto no que se referem às suas estruturas físicas, quanto
a matriz filosófica que o originou.
A leitura de alguns jornais atuais, veículos importantes na expressão e
formação das representações sociais, é ilustrativa de todos os fenômenos aqui citados,
que ajudam a minha argumentação. Em matéria veiculada pelos jornalistas Eduardo
Machado e Carlos Eduardo Santos, no caderno “Cidades”, do Jornal do Comércio de
115
13/07/06, intitulada: “Município sem Conselho Tutelar vai ser punido”, chama atenção
para o estado de abandono de alguns conselhos, além de apontar a necessidade de
abertura de novos espaços:
O Projeto Primeiro a Infância está em vigor em todo o Estado, mas vai
focalizar sobretudo, os 14 municípios do Grande Recife e as cidades
com menor Índice de Desenvolvimento Humano de Pernambuco.
Nestes 25 municípios está a maior parte das crianças e adolescentes do
Estado. Vamos dar prioridade à estruturação e reforma dos Conselhos
nessas cidades. Todas essas ações serão fiscalizadas pelo Ministério
Público de Pernambuco
(MACHADO e SANTOS, 2006, p. 05).
Esse trecho selecionado do artigo publicado revela as mudanças e os avanços
necessários às grandes transformações que se ensaiam, mas que não se consumaram
ainda. Por outro lado, nos mostra que além das transformações de infra-estrutura, faz-se
necessário também, a mudança de paradigmas que hoje norteiam as ações dos
conselheiros tutelares. Penso que foi exatamente um pouco dessa transição que ouvi e
presenciei no foco especifico dos perfis dos conselheiros tutelares entrevistados. Estes,
não passam impunemente por todas essas questões e buscam nos referenciais religiosos
ou dos movimentos sociais, através das ONGs que participam, respostas para suas
inquietações e compreensão da dinâmica familiar que atravessam os casos de abuso
sexual infantil.
A GUISA DE CONCLUIR...
Sinto, porém, a necessidade de fazer duas ressalvas antes de concluir. A primeira
é de que esse trabalho foi realizado com atores oriundos das classes populares de
Recife, principalmente das grandes periferias da cidade, onde as falas dos informantes
parecem de certa forma, universais, como se não houvesse especificidade pelo fato de se
tratarem de sujeitos que vivem no Nordeste do Brasil, em uma cidade onde os índices
de violência contra crianças e adolescentes atingem índices alarmantes e numa cidade
fundada nas concepções coronelistas de poder e opressão.
A segunda ressalva é que a pesquisa, necessariamente, privilegiou autores e
abordagens, mas reconhece a importância e fecundidade da análise que outros caminhos
bibliográficos trariam para estudos dessa natureza, além da escuta de profissionais
116
como: assistentes sociais, psicólogos, promotores, juízes, entre outros, que fazem parte
do contexto de instituições responsáveis pela garantia dos direitos das crianças e
adolescentes. Entretanto, pelas dimensões do trabalho e possibilidades da autora, razão
que se misturam, não foi possível ir além, mas fica o reconhecimento dos limites e a
sugestão de outros caminhos para a realização de outras pesquisas.
Espera-se que esta dissertação tenha contribuído para a compreensão do
funcionamento dos Conselhos Tutelares, bem como, para a atuação de seus
conselheiros, no que concerne ao atendimento das crianças e adolescentes vítimas de
abuso sexual e dos aparatos sócio-culturais que permeiam esta relação.
Finalizo com as reflexões de Jaqueline Mool, pedagoga, professora da UFRS e
autora do livro Histórias de Vida, Histórias de Escola (2000), dentre outros, que diz:
Creio num tempo (neste tempo) que se dobra sobre si mesmo
exorcizando seus próprios demônios.
A manutenção do lugar de subalternidade de grandes contingentes da
população manteve ao longo da consolidação das formas “modernas”
de vida absolutismos e obscurantismos.
Nossos demônios transfiguram-se na “sociedade dos terços”, nas
violentas exclusões cotidianas.
Nesse tempo em trânsito, no qual vivemos transformações tão
fundamentais quanto as que deram origem à sociedade industrial e
urbana, novas formas de viver e organizar a vida podem ser gestadas
através de fragmentos de um mundo da vida que gradualmente se
(re)compõem, constituindo nexos, estabelecendo escutas e
recuperando sua própria humanidade.
Na perspectiva da afirmação de outra razão: desarmada, esperançosa,
dialógica e respeitosa, é possível manter o sonho!
(MOOL, 2000, p.
192).
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AGGLETON, P. (Eds.). Culture, society and sexuality: a reader. Londres: UCL,
1999.
SÊDA, Edson. O novo direito da criança e do adolescente. Brasília: Ministério da
Ação Social/Centro Brasileiro para Infância e Adolescência, 1991.
UNICEF. Relatório oficial da situação da infância e adolescência brasileiras.
Brasília: UNICEF, 2005.
______. Relatório da situação da infância e adolescência brasileiras. Brasília:
UNICEF, 2004.
______. Situação mundial da infância. Brasília: UNICEF, 2005.
VANCE, Carol. A antropologia redescobre a sexualidade. In: Revista de Saúde
Coletiva. V 5, nº 1. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
A N E X O S
125
APÊNDICE A
ROTEIRO DE ENTREVISTA
História do Engajamento no Conselho
1. Eu gostaria de recuperar junto com você, um pouco da tua história e o que
nela te levou a se engajar enquanto Conselheiro Tutelar.
2. Me conta um pouco de como você começou a atuar no Conselho.
Atualidade – Enquadre
1. Agora eu queria focar com você mais no momento atual, no teu trabalho no
Conselho Tutelar...Me fala um pouco sobre isso...Como é que você trabalha?
Como é tua prática?
2. Existe algum(a) (inspiração, referencial, algum marco teórico/conceitual)
que orienta a tua prática? Qual(is) é(são)?
Ocorrências
1. Considerando a abrangência do Conselho no qual você é conselheiro, quais
as principais ocorrências que chegam ao seu conhecimento?
2. Você tem idéia qual faixa etária é mais vitimada?
3. Qual o sexo é mais vitimado?
4. Quem é o principal agressor (idade, sexo e grau de parentesco/aproximação
com a vítima)?
Sexualidade
1. Agora eu gostaria de recuperar junto com você, também a partir da tua
trajetória como conselheiro, como vem aparecendo as questões sexuais no
Conselho Tutelar? Quais são as ocorrências relacionadas à sexualidade?
Como chegam? Quem denuncia?
2. Há outras ocorrências relacionadas à sexualidade que você não citou?
3. Você tem idéia qual faixa etária é mais vitimada e em que ocorrência?
4. Qual o sexo mais vitimado em cada ocorrência?
5. E quem é o principal agressor (idade, sexo e grau de parentesco/aproximação
com a vítima)?
6. Você teria exemplos práticos de atuação com cada uma dessas ocorrências
citadas?
7. E como você percebe tais questões?
8. Qual sua interpretação? Porque acontece?
9. Como você atua frente a estas problemáticas que você citou?
126
Abuso e Exploração Sexual
1. Hoje se fala muito de abuso e exploração sexual infantil, isso tem aparecido
de alguma forma no teu trabalho?
2. Você teria exemplos práticos de atuação com casos de abuso e/ou exploração
sexual?
3. E como você percebe tais questões? Qual a seu interpretação (porque
acontece)? Como você atua frente a esses casos de abuso e exploração
sexual?
4. Eu gostaria de saber, também, se você percebe que algum (as) de seus (suas)
(características/ envolvimentos/ eventos na trajetória de vida) influenciam na
tua prática frente a tais questões e quais são?
5. Como essa experiência influencia?
6. E o fato de você ser (diz a religião), de alguma forma influencia na tua
prática, no modo de pensar e atuar?
7. E o fato de você ser (diz o sexo), você acha que influencia de alguma forma?
8. E o fato de você ser (profissão/formação), você acha que influencia de
alguma forma?
Família e Sociedade frente à violação dos direitos
1. Em sua opinião, como os responsáveis pela criança/adolescente deveriam
agir frente a estas situações?
2. Como poderiam contribuir para evitar que elas aparecessem?
3. Eu gostaria de saber, também, o que você sugere em termos de política
pública que dê conta destes fatos?
Infância e Adolescência
1. Eu gostaria de saber, também, o que você entende por infância? O que é ser
criança para você?
2. E adolescência, o que é? O que caracteriza, para você, esta fase?
Final
1. Você gostaria de colocar mais alguma coisa?
2. Poderia indicar que bibliografia utiliza sobre a temática da sexualidade para
orientar sua prática? Que outros livros costuma ler que ajudam na sua
prática?
3. Dê sua opinião sobre a entrevista!
4. Agradecimentos pela entrevista e pela contribuição para a pesquisa!
127
APÊNDICE B
TERMO DE CONSETIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – ENTREVISTA
Você está sendo convidado a participar de uma pesquisa sobre a vida sexual de
crianças e jovens e seus desdobramentos no âmbito do sistema de garantia e proteção
dos direitos da criança e do adolescente. Sua contribuição se dará através de concessão
de uma ou mais entrevistas, fonogravadas, de cerca de duas horas cada uma, em local
que você ache mais conveniente.
Sua participação não envolve custos, você também não receberá nenhuma
compensação financeira ou de outro tipo pela participação; mas muitas pessoas se
sentem recompensadas em possibilitar informações que possam ajudar na garantia dos
direitos da criança e do adolescente.
O principal benefício da pesquisa será o de oferecer subsídio para melhor qualificar
intervenções de promoção dos direitos de crianças e adolescentes. A possibilidade de
refletir sobre a questão pode ser considerada um benefício direto ao entrevistado. Se
sentir necessidade, você poderá, ainda, aprofundar a discussão com a equipe da
pesquisa, em outros momentos. Caso as reflexões provocadas pela entrevista venham a
provocar algum tipo de transtorno, e na perspectiva de minimizar possíveis riscos
decorrentes da participação na pesquisa, você poderá solicitar ser encaminhado para um
serviço psicológico de referência, dentre eles a própria Clínica Psicológica do
Departamento de Psicologia da UFPE, onde este projeto estará localizado
institucionalmente.
A você serão garantidos a confiabilidade e o anonimato. Você também tem o direito
de não responder algumas das perguntas ou de, a qualquer momento, interromper a
entrevista. Vo pode, inclusive, determinar que as informações que tenha dado
sejam colocadas de fora do resto do material coletado. A assinatura deste consentimento
não inviabiliza nenhum dos seus direitos legais.
Caso ainda haja dúvidas, você pode tirá-las agora, em surgindo alguma dúvida no
decorrer das entrevistas, me coloco a seu dispor para esclarecê-las, a qualquer momento.
Você pode contatar o pesquisador principal, Luis Felipe Rios do Nascimento, na Clínica
Psicológica do departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco,
Av. Acadêmico Hélio Ramos, CFCH, andar, sala 715, ou pelo telefone 21268731 ou
pelo celular 99872396.
Após ter lido e discutido com o pesquisador
_________________________________ os termos contidos neste consentimento
esclarecido, concordo em participar da (as) entrevista (as), colaborando, desta forma,
com a “Pesquisa avaliativa das respostas relacionadas ao sexual, com atores de
instituições governamentais responsáveis pela garantia dos direitos da criança e do
adolescente no Recife” e com o “Projeto de Implantação do PAIR – Programa de Ações
Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência e Exploração Sexual contra
128
Crianças e Adolescentes em Pernambuco, nos Municípios do Recife, Araripina,
Ouricuri e Trindade”.
Sei que assinando este consentimento não abro mão de meus direitos legais e que me
ficarão garantidos a confiabilidade e o anonimato.
______________________________________________________________________
Entrevistado Data
Entrevistador Data
Nome:_________________________________________________________________
RG:___________________________________________________________________
Fone para
contato:________________________________________________________________
129
ANEXO A
130
ANEXO B
Resolução 75 do CONANDA sobre funcionamento dos Conselhos Tutelares
Resolução n° 75 de 22 de outubro de 2001
Dispõe sobre os parâmetros para a criação e funcionamento dos Conselhos Tutelares e
dá outras providências.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, no uso
de suas atribuições legais, nos termos do art. 28, inc. IV do seu Regimento Interno, e
tendo em vista o disposto no art. 2°, inc. I, da Lei n° 8.242, de 12 de outubro de 1991,
em sua 83ª Assembléia Ordinária, de 08 e 09 de Agosto de 2001, em cumprimento ao
que estabelecem o art. 227 da Constituição Federal e os arts. 131 a 138 do estatuto da
Criança e do Adolescente ( Lei Federal n° 8.069/90), resolve:
Art. 1° - Ficam estabelecidos os parâmetros para a criação e o funcionamento dos
Conselhos Tutelares em todo o território nacional, nos termos do art. 131 do Estatuto da
Criança e do Adolescente, enquanto órgãos encarregados pela sociedade de zelar pelo
cumprimento dos direitos da criança e do adolescente.
Parágrafo Único – Entende-se por parâmetros os referenciais que devem nortear a
criação e o funcionamento dos Conselhos Tutelares, os limites institucionais a serem
cumpridos por seus membros, bem como pelo Poder Executivo Municipal, em
obediência às exigências legais.
Art. 2° - Conforme dispõe o art. 132 do Estatuto da Criança e do Adolescente, é
obrigação de todos os municípios, mediante lei e independente do número de habitantes,
criar, instalar e ter em funcionamento, no mínimo, um Conselho Tutelar enquanto órgão
da administração municipal.
Art. 3° - A legislação municipal deverá explicitar a estrutura administrativa e
institucional necessária ao adequado funcionamento do Conselho Tutelar.
Parágrafo Único - A Lei Orçamentária Municipal deverá, em programas de trabalho
específicos, prever dotação para o custeio das atividades desempenhadas pelo Conselho
Tutelar, inclusive para as despesas com subsídios e capacitação de Conselheiros,
aquisição e manutenção de bens móveis e imóveis, pagamento de serviços de terceiros e
encargos, diárias, material de consumo, passagens e outras despesas.
Art. 4° - Considerada a extensão do trabalho e o caráter permanente do Conselho
Tutelar, a função de Conselheiro, quando subsidiada, exige dedicação exclusiva,
observado o que determina o art. 37, incs. XVI e XVII, da Constituição Federal.
Art. 5° - O Conselho Tutelar, enquanto órgão público autônomo, no desempenho de
suas atribuições legais, não se subordina aos Poderes Executivo e Legislativo
Municipais, ao Poder Judiciário ou ao Ministério Público.
Art. 6° - O Conselho Tutelar é um órgão público não jurisdicional, que desempenha
funções administrativas direcionadas ao cumprimento dos direitos da criança e do
adolescente, sem integrar o Poder Judiciário.
131
Art. 7° - É atribuição do Conselho Tutelar, nos termos do art. 136 do estatuto da
Criança e do Adolescente, ao tomar conhecimento de fatos que caracterizem ameaça
e/ou violação dos direitos da criança e do adolescente, adotar os procedimentos legais
cabíveis e, se for o caso, aplicar medidas de proteção previstas na legislação.
§ 1° As decisões do Conselho Tutelar somente poderão ser revistas por autoridade
judiciária mediante provocação da parte interessada ou do agente do Ministério Público.
§ 2° A autoridade do Conselho Tutelar para aplicar medidas de proteção deve ser
entendida como a função de tomar providências, em nome da sociedade e fundada no
ordenamento jurídico, para que cesse a ameaça ou violação dos direitos da criança e do
adolescente.
Art. 8° - O Conselho Tutelar será composto por cinco membros, vedadas deliberações
com número superior ou inferior, sob pena de nulidade dos atos praticados.
§ 1° Serão escolhidos no mesmo pleito para o Conselho Tutelar o número mínimo de
cinco suplentes.
§ 2º Ocorrendo vacância ou afastamento de qualquer de seus membros titulares,
independente das razões, deve ser procedida imediata convocação do suplente para o
preenchimento da vaga e a conseqüente regularização de sua composição.
§ 3° No caso da inexistência de suplentes, em qualquer tempo, deverá o Conselho
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente realizar o processo de escolha
suplementar para o preenchimento das vagas.
Art. 9° - Os Conselheiros Tutelares devem ser escolhidos mediante voto direto, secreto
e facultativo de todos os cidadãos maiores de dezesseis anos do município, em processo
regulamentado e conduzido pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente, que também ficará encarregado de dar-lhe a mais ampla publicidade,
sendo fiscalizado, desde sua deflagração, pelo Ministério Público.
Art. 10° - Em cumprimento ao que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, o
mandato do Conselheiro Tutelar é de três anos, permitida uma recondução, sendo
vedadas medidas de qualquer natureza que abrevie ou prorrogue esse período.
Parágrafo Único – A recondução, permitida por uma única vez, consiste no direito do
Conselheiro Tutelar de concorrer ao mandato subseqüente, em igualdade de condições
com os demais pretendentes, submetendo-se ao mesmo processo de escolha pela
sociedade, vedada qualquer outra forma de recondução.
Art. 11° - Para a candidatura a membro do Conselho Tutelar devem ser exigidas de seus
postulantes a comprovação de reconhecida idoneidade moral, maioridade civil e
residência fixa no município, além de outros requisitos que podem estar estabelecidos
na lei municipal e em consonância com os direitos individuais estabelecidos na
Constituição Federal.
Art. 12° - O Conselheiro Tutelar, na forma da lei municipal e a qualquer tempo, pode
ter seu mandato suspenso ou cassado, no caso de descumprimento de suas atribuições,
prática de atos ilícitos ou conduta incompatível com a confiança outorgada pela
comunidade.
§ 1° As situações de afastamento ou cassação de mandato de Conselheiro Tutelar devem
ser precedidas de sindicância e/ou processo administrativo, assegurando-se a
132
imparcialidade dos responsáveis pela apuração, o direito ao contraditório e a ampla
defesa.
§ 2° - As conclusões da sindicância administrativa devem ser remetidas ao Conselho
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente que, em plenária, deliberará acerca
da adoção das medidas cabíveis.
§ 3° - Quando a violação cometida pelo Conselheiro Tutelar constituir ilícito penal
caberá aos responsáveis pela apuração oferecer noticia de tal fato ao Ministério Público
para as providências legais cabíveis.
Art. 13° - O CONANDA formulará Recomendações aos Conselhos Tutelares de forma
a orientar mais detalhadamente o seu funcionamento.
Art. 14° - Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 22 de outubro de 2001
133
ANEXO C
Decreto N° 19.742/2003 – Regimento Interno
134
135
136
ANEXO D
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
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