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Izabel Richetti Pereira
A POLÍTICA EMANCIPATÓRIA E O PROJETO REFLEXIVO DO EU: UMA
ANÁLISE DAS PRÁTICAS EDUCATIVAS NO MOVIMENTO NEGRO DE SANTA
BÁRBARA D’OESTE
Centro Universitário Salesiano de São Paulo
Americana/SP
2008
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Izabel Richetti Pereira
A POLÍTICA EMANCIPATÓRIA E O PROJETO REFLEXIVO DO EU: UMA
ANÁLISE DAS PRÁTICAS EDUCATIVAS NO MOVIMENTO NEGRO DE SANTA
BÁRBARA D’OESTE
Trabalho apresentado como exigência parcial para
defesa no Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu de Mestrado em educação, do Centro
Universitário Salesiano de São Paulo.
Centro Universitário Salesiano de São Paulo
Americana/SP
2008
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Comissão Julgadora
Professor Dr. Luís Antonio Groppo
Professora Dra Marli Aparecida Pechula
Professor Dr. Severino Antonio Moreira Barbosa
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Ao meu marido Ademar e meu filho José Valter, pelo amor e compreensão. Aos meus pais,
José e Laurinada, pela transmissão de valores essenciais para a vida em sociedade. Aos
meus irmãos e amigos pela não disponibilidade à qual estavam habituados.
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AGRADECIMENTOS
Ao Professor Dr. Luís Antonio Groppo, meu orientador, pela atenção dispensada desde a
graduação, pelos ensinamentos e orientações claras e precisas no desenvolvimento do
trabalho, pelo respeito demonstrado na troca de idéias, pela disponibilidade em me atender
sempre que necessário. Principal incentivador de meu ingresso no Programa de Mestrado e,
especialmente, pela conclusão da dissertação.
Ao Professor Dr. Marcos Francisco Martins, pelos esclarecimentos em momentos de
dúvidas e sugestões que contribuíram para o amadurecimento das idéias no
desenvolvimento do trabalho.
Ao Professor Doutor Severino Moreira Barbosa pela serenidade que consegue transmitir ao
instruir.
Aos professores do Centro Unisal de Americana, pelos ensinamentos que me levaram à
reflexões que contribuíram para o aprofundamento teórico deste trabalho e sua
concretização.
À Professora Dra Marli Aparecida Pechula pelas preciosas sugestões ao compor a comissão
julgadora.
Aos dirigentes e integrantes da Associação Cultural e Beneficente Comunidade Negra
Quilombo da Paz, especialmente, Tania Mara da Silva, Antonio Carlos Vianna de Barros,
Senhor Benedito Samuel da Costa, pelo tratamento receptivo e disponibilidade em fornecer
as informações e os documentos necessários para que o objeto de pesquisa pudesse ser
estudado em profundidade.
A todos que acompanharam esse processo com sua torcida e incentivo, em especial, minhas
amigas Lumena F. M. D. Contato e Fernanda Vasconcellos, com as quais convivo desde a
graduação em Pedagogia.
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MEMORIAL
Eu, Izabel Richetti Pereira, nasci em 04 de julho de 1957. Sou filha de José Richetti
e Laurinda Reami Richetti. Vivi na área rural até os dez anos de idade e cursei as três séries
iniciais em uma escola também na área rural, a qual ficava dois quilômetros distante de
minha casa, distância percorrida a pé todos os dias.
Ingressei na primeira série do ensino fundamental em 1964 numa escola mista para
série e gênero. A sala de aula era mobiliada com quatro fileiras de carteiras duplas e
dividida em duas fileiras para cada série. Num período estudavam os alunos de primeira e
segunda séries, no outro, os de terceira e quarta séries.
Depois de concluir a quarta série, quem quisesse continuar os estudos era obrigado a
se locomover diariamente para a cidade de Tupi Paulista que ficava a cinco quilômetros de
nossa casa, e foi isso que meus irmãos mais velhos fizeram quando cursaram o quinto ano
primário, classe preparatória para o exame de admissão, e parte do ginasial. Cursar o quinto
ano para depois prestar o exame de admissão era exigência daquela época.
Essa dificuldade para continuar os estudos e a dependência das condições climáticas
para uma boa colheita de café foram os principais motivos que levaram meus pais a mudar
para a cidade de Americana.
Depois da mudança para Americana, conclui a quarta rie e prestei o exame de
admissão. Mesmo aprovada, fiquei um ano sem estudar, por não ter a idade mínima para
freqüentar o curso noturno, pois o dia deveria estar livre para que eu pudesse trabalhar.
Em 02 de outubro de 1970 comecei trabalhar das 5:30 às 17:30 horas, contando com
uma hora e meia para o almoço. O trabalho era na “sala de pano” da Tecelagem Everardo
Muller Carioba, que funcionava das 5:00 às 22:00 horas em dois turnos de tecelões, assim
como a grande maioria das indústrias de tecido naquela época. A sala de pano é o local das
tecelagens onde se medem as peças de tecidos produzidas em cada tear e a metragem
correspondente a cada tecelão que trabalhou na produção daquela peça.
Trabalhei nessa tecelagem até 13 de outubro de 1975. Nesse período, a medição e os
cálculos realizados sem o auxílio de calculadoras propiciaram-me um bom
desenvolvimento nesta área da matemática. Isso me favoreceu quando participei da seleção
para trabalhar na Livraria e Papelaria Apolo ou Ernesto Pavan & Cia Ltda.
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Em 1971, com a idade permitida para estudar à noite ingressei na série do
grau. Conclui este curso em 1974 e em 1975 iniciei o colegial.
Na Papelaria Apolo eu trabalhei de 1º de novembro de 1975 a 31 de março de 1976,
quando recebi proposta para trabalhar como vendedora comissionada num outro comércio,
na loja Roupanil ou Confecções Roupanil Ltda. O horário era o mesmo que eu cumpria na
Papelaria, mas o salário era maior. Trabalhei nessa loja de roupas de 12 de abril de 1976 a
23 de novembro do mesmo ano, pois recebi proposta para trabalhar na função de caixa na
loja D. Paschoal, uma loja que comercializa, principalmente, pneus.
No ano de 1977, trabalhando nessa loja concluí o colegial científico. Eu não
pretendia ser professora, desejava cursar a graduação em Processamento de Dados e optara
pelo colegial científico, que me prepararia melhor para o vestibular. Porém, após oito anos
de trabalho diário e estudo noturno, eu estava necessitando de um descanso e então resolvi
esperar um ou dois anos para prestar o vestibular e recomeçar os estudos.
Em 1980, antes de retomar os estudos, me casei e engravidei no mesmo ano. Em
1981, uma semana antes de nascer meu filho, meu marido faleceu vítima de acidente numa
rodovia.
Minhas prioridades mudaram. Agora eu estava sozinha para criar meu filho e, como
começara a trabalhar com apenas treze anos, aos vinte e três eu me sentia bem madura
para comandar a minha própria vida. Tanto que, apesar da insistência recusei-me a voltar
para a casa de meus pais, porque acreditava que se o fizesse não conseguiria criar o vínculo
necessário para um bom relacionamento entre mim e meu filho, pois haveria interferência
de meus pais e irmãos na educação que eu queria lhe dar.
Essa minha decisão foi apoiada por meu sogro e minha sogra que garantiram que eu
poderia morar na edícula que eu e meu marido havíamos construído com a colaboração
deles, por toda minha vida, se assim eu quisesse.
Para eu poder continuar trabalhando na D. Paschoal minha sogra cuidava de meu
filho durante o dia e, convivendo com ele apenas alguns minutos no horário de almoço e
aproveitando bem o período em que ele ficava acordado à noite, consegui transmitir-lhe os
valores que eu considerava importantes, além de criar o necessário vínculo entre mãe e
filho que eu temia não estabelecer, caso voltasse a morar com meus pais.
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Em 1986 me casei novamente e me mudei para um apartamento. Meu marido e eu
trabalhávamos e optamos por não ter mais filhos. Assim, temos apenas um filho, que é
muito atencioso conosco e considera meu marido como seu pai, que nem conheceu o pai
biológico.
Trabalhei na D. Paschoal até 12 de setembro de 1986. Como essa firma trabalhava
com um sistema avançado, para a época, de controle de venda e estoque, que eu sabia fazer
muito bem, fui convidada para exercer esse trabalho na Boutique do Valdir ou Mariliza
Comércio de Confecções Ltda.
Desliguei-me dessa firma em julho de 1988, ocasião em que pedi demissão do cargo
para trabalhar em uma microempresa no ramo de revenda de roupas que eu abrira em
parceria com uma de minhas irmãs quando ainda trabalhava na Boutique. A parceria foi
bem-sucedida porque esta minha irmã é bastante hábil na compra e revenda de roupas e eu,
na área administrativa. Embora a parceria tivesse funcionado bem, trabalhamos juntas
apenas quatro anos, pois ela recebeu uma proposta mais rentável de emprego. Quando ela
desistiu da parceria, fiz um empréstimo e comprei a parte que lhe cabia na empresa.
Trabalhei como única proprietária por mais quatro anos.
Em 1998 estava precisando de um descanso e, como a lei referente à
aposentadoria estava passando por alterações, depois de liquidar o estoque da loja solicitei
aposentadoria proporcional ao tempo de serviço trabalhado. Contava com vinte e oito anos
de registro em carteira.
Aposentada, decidi descansar por um período e o fiz por três anos, pois o trabalho
ininterrupto por tanto tempo exigia esse descanso.
Quando me senti refeita, resolvi aprender a lidar com o microcomputador e, para ter
um conhecimento mais amplo, fiz um curso profissionalizante para esta área nos anos de
2001 e 2002.
Depois disso resolvi cursar a graduação, desejo que estava em suspenso desde 1978.
Como não pretendia mais estudar Processamento de Dados, procurei por um curso que me
qualificasse para um trabalho voluntário de qualidade. Pensando nisso, optei pela
graduação em Pedagogia no Unisal Centro Universitário Salesiano de Americana, que
agora estudaria pela manhã, para evitar o cansaço noturno.
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Ao escolher tal curso não esperava que fosse tão cativante, as disciplinas eram, sem
exceção, novidades para mim, portanto um desafio novo. Embora eu nunca tivesse deixado
de ler e escrever sobre os diversos assuntos que me interessavam, muitos anos eu não
sentia o prazer de realizar estudos em ambiente escolar, ambiente que sempre me atraiu
muito.
Dentre as disciplinas que compunham o currículo interessei-me especialmente pela
pesquisa. Em meus estudos, realizados individualmente com o intuito de dissolver algumas
dúvidas que surgiam aleatoriamente, eu sempre recorria à leitura e à construção de um texto
sobre aquele assunto, tanto que meus arquivos no computador contêm vários desses estudos
que realizei.
No segundo ano da graduação, um momento muito especial para mim foi quando o
professor propôs que elaborássemos um projeto de pesquisa sobre algum tema relevante
para nós, pois era uma oportunidade de adquirir a técnica formal para realizar um trabalho
que eu fizera tantas vezes instintivamente. Tendo vivido e observado mudanças no estilo
de vida num período muito significativo para os rumos da humanidade, procurei por um
tema que me esclarecesse as observações feitas, até então, informalmente.
Assim, na graduação minha proposta foi desenvolver uma pesquisa bibliográfica
que procurasse relacionar o individualismo aparente com as TICs (Tecnologias de
Informação e de Comunicação). Para tanto realizei um trabalho de pesquisa que envolvia
captar alguns elementos causadores de tamanha transformação na vida em sociedade,
principalmente nas últimas duas ou três décadas.
Como esse trabalho exigia uma orientação na área da sociologia consegui, mediante
indicação de uma professora da graduação, ser orientanda do professor doutor Luís Antonio
Groppo, que foi meu orientador durante o segundo semestre do segundo ano e de todo o
terceiro ano da graduação.
Em 2005, último ano da graduação, foi realizado um concurso público de ingresso
de professores na Rede Estadual de Ensino, com posse prevista para 2006. Incentivada
pelas colegas de classe, me inscrevi e realizei a prova. Fui aprovada, mas não tinha certeza
quanto a assumir o cargo, pois me sentia despreparada para tamanha responsabilidade.
Porém, sabedora de minha capacidade de superação perante os novos desafios, decidi
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tornar-me professora do ensino fundamental em Guarulhos, melhor localidade que consegui
para me efetivar no cargo.
No final do ano, com o trabalho de pesquisa bem adiantado, o professor Groppo
sugeriu que eu participasse do processo seletivo para o Programa de Mestrado em
Educação Sócio-comunitária do Unisal de Americana para dar continuidade a esse trabalho.
Realizei a prova escrita e fui entrevistada pelos professores doutores João Ribeiro Junior e
José Luiz Sigristi.
Aprovada para o programa de mestrado e iniciando a carreira de professora, minha
vida mudou radicalmente a partir de 2006. No primeiro ano, além das quatro disciplinas do
Programa de Mestrado me especializei em história e cultura afro-brasileiras em um curso
disponibilizado a distância pela UNB e me especializei também em letramento num curso
presencial disponibilizado pelo Governo do Estado de São Paulo e realizado na Unicamp. O
curso sobre cultura afro-brasileira foi decisivo para a escolha do objeto de pesquisa para a
dissertação de mestrado. A Associação da Comunidade Negra de Santa Bárbara D’Oeste.
Com tais compromissos, mais as constantes viagens a Guarulhos, minha vida
mudou, porém me sinto muito feliz, pois a possibilidade de realização de uma pesquisa, nos
moldes formais, além de ser uma realização pessoal, me capacitará para a execução de
futuros trabalhos. Meu trabalho com as crianças vem se revelando muito gratificante, já que
a alfabetização de qualidade que procuro realizar tem rendido o reconhecimento das
diretoras e das coordenadoras das escolas pelas quais passei nestes três anos de exercício de
profissão.
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RESUMO
Esta dissertação traz como objetivo analisar, interpretar e descrever as informações
referentes às ações sociais e práticas educativas dos dirigentes da Associação Cultural e
Beneficente Comunidade Negra Quilombo da Paz da cidade de Santa Bárbara d’Oeste, na
relação desses sujeitos com os problemas específicos das áreas social e educacional
enfrentados pela comunidade carente da referida cidade. A pesquisa é de cunho qualitativo,
por meio da estratégia de estudo de caso, desenvolvida na relação com o grupo em ocasiões
de reuniões, ações sociais, eventos comemorativos e programas de rádio, tendo como
sujeitos os dirigentes e alguns integrantes da referida Associação. Os dados foram coletados
a partir de análise documental, interpretação das observações e entrevistas. Para análise dos
dados coletados sobre emancipação e o projeto reflexivo do eu utilizou-se o referencial
teórico de Giddens (2002). Para análise de tendência educativa sócio-comunitária
utilizaram-se, além de alguns elementos de Giddens, os elementos indicados por Martins
(2007). Esses dois autores analisam a sociedade atual e concluem que ela está danificada
em conseqüência, principalmente, do dinamismo empregado pelas políticas neoliberais que
transformam as relações de produção, as quais se refletem em alterações nas relações
sociais, mas as formas para reparar esses danos se apresentam de forma muito diferenciada.
Pois enquanto Guiddens entende que o dinamismo atual pode amadurecer alguns
indivíduos e os capacitar a agir individual e coletivamente para propor os devidos reparos,
Martins entende que o dinamismo atual causa um refluxo dos movimentos sociais que
impediam que o trabalhador ficasse à mercê dos interesses puramente econômicos, os quais
mascaram a realidade e mais confundem do que esclarecem o indivíduo.
Palavras-chave: Política emancipatória; Projeto reflexivo do eu; Solidariedade; Educação
sócio-comunitária; Movimento Negro.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................13
CAPÍTULO I POLÍTICA EMANCIPATÓRIA E O PROJETO REFLEXIVO DO
EU SEGUNDO GIDDENS.................................................................................................18
1.1 – Política emancipatória......................................................................................19
1.2 – O projeto reflexivo do eu..................................................................................38
CAPÍTULO II – EDUCAÇÃO SÓCIO-COMUNITÁRIA E EMANCIPAÇÃO .........58
2.1– As transformações no mundo do trabalho nas últimas décadas........................61
2.2 – A educação sócio-comunitária sob a interpretação de Martins........................68
2.3 – A educação sócio-comunitária como fator necessário à emancipação.............73
CAPÍTULO III O MOVIMENTO NEGRO E AS PRÁTICAS SOCIAIS E
EDUCATIVAS EM SANTA BÁRBARA D’OESTE.......................................................82
3.1 – Algumas evidências históricas da luta contra a discriminação racial..............86
3.2 – O Movimento Negro no Brasil.........................................................................91
3.3 – História do Movimento Negro em Santa Bárbara D’Oeste............................103
3.4 – Ações sociais e práticas educativas ...............................................................114
a) Reuniões
dos dirigentes; .............................................................................118
b) programas de rádio;......................
...............................................................121
c) eventos comemorativos;..............................................................................122
3.5 – Os dirigentes da Comunidade Negra e o projeto reflexivo do eu..................129
3.6 – Emancipação na Comunidade Negra.............................................................132
3.7 – Críticas à Comunidade Negra de Santa Bárbara D’Oeste..............................133
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................136
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................139
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INTRODUÇÃO
“Não precisa ser negro pra participar do grupo, basta ter consciência que a mudança
é possível. O objetivo é transformar a sociedade, se não a sociedade, o nosso bairro, se não
o bairro, a nossa rua, se não a rua, a nossa casa” (Benedito Samuel da Costa Programa
Quilombo da Paz – 9/12/2007).
A transcrição acima expressa bem as idéias defendidas pela Associação Cultural e
Beneficente Comunidade Negra Quilombo da Paz da cidade de Santa Bárbara do D’Oeste,
pois, principalmente, nos programas de rádio, considerado o melhor veículo de
comunicação da Associação com a população em geral, se percebe a indignação dos
dirigentes e de alguns integrantes no que se refere à qualquer tipo de exclusão evidenciado
tanto em atitudes de pessoas comuns, como em pessoas que estão à frente de órgãos
públicos da cidade.
A transformação da sociedade que os dirigentes desse grupo busca, não visa
melhorar as condições de vida apenas dos negros da cidade, mas de todos aqueles que se
juntam ao grupo por sentirem-se discriminados ou desamparados política e socialmente.
Desse modo, suas manifestações apresentam sempre o desejo de transformar a sociedade, e
o fazem apresentando à população os descasos observados nas atividades dos políticos no
que se refere às reivindicações dos negros, das mulheres, dos homossexuais. Enfim
daqueles que, ao que se percebe, não conseguem sozinhos vislumbrar alguma melhora em
suas vidas em decorrência do preconceito que sofrem ou das limitações financeiras em que
se encontram.
Nos programas de rádio, que vão ao ar semanalmente desde 21 de março de 2007,
conforme informação de nia Mara da Silva, presidente da Associação, e conta com uma
audiência razoável, abre-se espaço à voz daqueles que desejam apresentar as dificuldades
materiais enfrentadas ou as discriminações sofridas em conseqüência da cor da pele, da
opção sexual ou qualquer outro preconceito.
Depois da exposição dos problemas específicos, geralmente se apresenta a lei
institucional que garante aquele direito reclamado e a forma de legal de possibilidade de
denúncia ou de possíveis soluções, sempre alertando a população em geral para que
acompanhem as ações dos políticos da cidade nas sessões na Câmara Municipal.
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Desse modo, nesses programas, os dirigentes da Associação do Movimento Negro
Quilombo da Paz de Santa Bárbara d’Oeste contribuem para o esclarecimento da população
no que se refere aos caminhos que podem ser percorridos para se resolver algum problema
social, político ou jurídico. Inclusive incentivando a todos para que lutem por seus direitos
e manifestem publicamente a indignação que sentem perante algumas situações de descaso
ou de abandono dos setores públicos, mas sem abandonarem suas responsabilidades de
cidadãos. Assim, por meio de um diálogo esclarecedor, esses dirigentes procuram
apresentar o melhor caminho, no entendimento deles, a se percorrer para se resolver
problemas que afetam a população mais pobre da cidade, além de apresentarem também
esclarecimentos sobre a história do Brasil, a história do povo africano, a filosofia na qual se
sustentam as religiões africanas e as afro-brasileiras e suas posições políticas referentes ao
assunto que estiver em evidência na semana, seja ele referente a acontecimentos que
envolvem a cidade, o Estado, o Brasil ou qualquer outro país.
Ao fornecer informações não disponíveis para a grande maioria da população negra
da cidade, esse grupo colabora também na aquisição de conhecimentos para a construção da
identidade por pertencimento, construção que pode dar maior segurança para a construção
de individualidades autônomas, que o sentimento de pertencimento, juntamente com o
espelhamento são elementos essenciais na construção de identidades sadias, conforme
afirma Codo (2002).
O trabalho dos dirigentes da Comunidade Negra evidencia também a necessidade de
se apresentar referenciais éticos e morais que grande parte dos indivíduos, tanto negros
como brancos, perderam nesses últimos anos em que, instituições como o Estado, a família
e as igrejas foram enfraquecidas com a perda de algumas tradições que as sustentavam.
Para tanto, recorrendo ao referencial teórico de Giddens (2002), foi preciso analisar se o
trabalho desenvolvido pelos dirigentes do movimento negro promove a educação para a
emancipação e para o projeto reflexivo do eu, fatores essenciais, na visão desse autor, para
se viver a vida com autonomia na alta modernidade.
Nesse sentido foram analisadas e interpretadas e descritas as ações dos dirigentes
dessa Associação para saber se tais ações sociais e praticas educativas se encaminham para
promover tanto a emancipação como o projeto reflexivo do eu através de uma educação que
se direcione para formação integral do indivíduo, que esta formação parece ser o
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primeiro passo para que uma educação se configure, num futuro próximo, como educação
sócio-comunitária.
Essa busca por resolver problemas dos excluídos barbarenses demonstra uma
preocupação não com o negro, mas com a raça humana, a qual se encontra em um
momento de transição e o rumo que ela vai tomar depende das ações propostas pelos
movimentos sociais de hoje, mas não podem ser de ações isoladas. A união dos diversos
movimentos sociais que se encontram espalhados pelas cidades, pelos Estados, pelos países
e pelo mundo é uma exigência para que suas ações ganhem a dimensão suficiente para
expor as necessidades básicas dessas camadas sociais e fazer com que se tornem visíveis
perante aqueles que têm poder de decisão.
Sendo assim, a emancipação implica em práticas politizadas que, através da
educação – que se ainda não se caracteriza como sócio-comunitária, pode vir a se confirmar
como tal com o próprio amadurecimento das pessoas que estão à frente dos mais variados
movimentos sociais –, pode fazer com que todos se unam para reclamar direitos universais
necessários ao desenvolvimento humano e fazer com que as diversas reivindicações levem
em consideração a preservação de valores essenciais para que homens e mulheres de
qualquer cor e de qualquer opção sexual consigam se ver como protagonistas e
participantes de seus processos de emancipação ao assumirem as responsabilidades que a
vida em sociedade exige.
Este trabalho, motivado pela necessidade de entendimento das transformações
observadas no relacionamento entre as pessoas nas últimas duas ou três décadas levou à
analise, interpretação e descrição das informações coletadas sobre as ações sociais e
práticas educativas da Associação objeto deste estudo e confirma a necessidade se de
buscar uma educação sócio-comunitária como veículo necessário para a reconstrução da
Política emancipatória e construção do Projeto reflexivo do eu para se poder pensar depois
na política vida, a política da realização do eu sem se abandonar a política de realização das
pessoas em sociedade.
Nessa perspectiva, o objetivo central desse estudo foi a análise, interpretação e
descrição das ações sociais e intervenções educativas realizadas pelos dirigentes da
Associação Cultural e Beneficente Comunidade Negra Quilombo da Paz de Santa rbara
D’Oeste em ocasiões de reuniões, ações sociais, eventos comemorativos e programas de
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rádio, tendo como eixo de viabilização da construção da autonomia, da construção de uma
narrativa que viabiliza a construção de identidades seguras e sadias através da educação
sócio-comunitária, e isso foi realizado por meio das categorias: análise, interpretação e
descrição de documentos, de observações e de entrevistas.
O estudo em questão centrou sua atenção nas ações dos dirigentes do movimento
negro para que se possa dizer se eles exercem uma educação sócio-comunitária ao
desempenharem seus papéis dentro dos projetos desenvolvidos pela Associação.
Para atingir o objetivo proposto para esta pesquisa, buscou-se a construção de um
quadro teórico que contribuísse para o aprofundamento da compreensão do tema proposto
e, também, que orientasse a coleta de dados e a análise, interpretação e descrição do
material coletado.
No primeiro capítulo, buscou-se a conceituação dos termos “política emancipatória”
e “projeto reflexivo do eu”, além da descrição das transformações ocorridas na sociedade
moderna, especificamente nas últimas cinco décadas.
No segundo capítulo, buscou-se a conceituação do termo “educação sócio-
comunitária” a partir da identificação do que determina uma práxis comunitária e uma
práxis social. Sem deixar de levar em conta a complexidade de cada termo abordado no
primeiro capítulo, delinearam-se suas principais características, para depois se pensar na
inserção dos pressupostos emancipatórios e identitários através da educação sócio-
comunitária. Após a conceituação, o passo seguinte foi estabelecer a relação entre educação
sócio-comunitária e emancipação, e identificar os elementos que devem compor a educação
sócio-comunitária. A identificação desses elementos constitutivos dessa modalidade
educativa permitiu identificar a diferença existente entre educação social e educação
comunitária e a perspectiva de cada uma delas para a vida em sociedade.
A proposta deste trabalho está centrado no referencial teórico de Giddens, cuja
proposta de emancipação do ser humano em sociedade contempla um aprendizado sobre si
mesmo que, embora vise a superação do momento atual, assim como Martins (2007), as
propostas de como se conseguir tal superação tomam caminho diverso ao desse último
autor, pois enquanto Guiddens acredita que o autoconhecimento e o autodesenvolvimento
levarão a um consenso sobre a necessidade de reconstrução das políticas emancipatórias
que ainda são alimentadas por alguns partidos políticos, Martins acredita que a superação
17
do momento atual será possível quando os excluídos se unirem para exigirem seus
direitos muito prometidos, mas conseguidos com pressão organizada dos militantes
politizados.
O capítulo três é dedicado à descrição de movimentos negros. De início de uma
forma mais generalizada por meio de evidencias históricas, de pois a identificação de
objetivos buscados pelo Movimento Negro no Brasil, para depois tratar especificamente do
Movimento Negro em Santa Bárbara D’Oeste. Isso inclui descrever as interpretações
decorrentes de análises das informações coletadas durante as atividades observadas em
reuniões, comemorações, ações sociais e programas de rádio. Emancipação, construção de
narrativas individuais e educação sócio-comunitária na Associação da Comunidade Negra
de Santa Bárbara D’Oeste complementam este capítulo, além de contar também com uma
crítica à Associação. O ponto central é a exposição de como os dirigentes da Associação
atuam para promover a emancipação e o projeto reflexivo do eu. Pretendeu-se, então,
discutir as características e atitudes dos dirigentes e também suas intervenções educativas e
sociais por considerá-las necessárias para promover a emancipação através de uma possível
educação sócio-comunitária. São apresentados os dados coletados e sua análise à luz do
referencial teórico que norteou todo o trabalho e das reflexões da pesquisadora
proporcionadas por este estudo.
Por fim, o último capítulo traz as considerações finais, buscando a articulação das
ações sociais e práticas educativas para a verificação da proposta deste estudo, ou seja, a
posição da autora perante os dados coletados e a possibilidade ou não desses dirigentes
desenvolverem, por meio de processos educativos, a política emancipatória e o projeto
reflexivo do eu.
Espera-se que este estudo possa contribuir para a reflexão e para a atividade de
intervenção social na vida em sociedade, além de colaborar, como afirmou Tânia Mara da
Silva, para que os dirigentes da referida Associação e seus integrantes possam refletir sobre
como se encaminha a construção da identidade do grupo e em que direção estão indo. Ou
seja, caminham para fortalecer o indivíduo em particular para fazê-lo autônomo? Ou
caminham para a construção de um projeto unificado que visa orientar, num primeiro
momento, os excluídos da cidade para a exigência de mudanças estruturais que minimizem
os danos causados pelos interesses de produção e reprodução do sistema capitalista?
18
CAPÍTULO I
A POLÍTICA EMANCIPATÓRIA E O PROJETO REFLEXIVO DO EU, SEGUNDO
GIDDENS.
O objetivo deste capítulo é a busca de conceituação do termo “política
emancipatória” e do projeto reflexivo do eu, das suas principais características, além de
evidenciar que esta política nasce como um objetivo do projeto iluminista progressista, mas
que não se concretizou, pois grande parte dos indivíduos ainda não consegue ser autor e
nem dono de seu próprio destino.
Não se pretende aqui abordar as várias discussões que envolvem esse conceito tão
complexo, nem abordar as várias linhas de interpretação ou de crítica ao pensamento de
Giddens (2002), mas apenas pretende-se mapear esse conceito a partir das Ciências Sociais
em seus campos específicos da Sociologia e da Psicologia para que se consiga delinear seus
principais contornos e fronteiras. Isso porque a abordagem que esse autor faz do “eu” em
relação à coletividade local ou global não é eminentemente psicológica, ele tenta
“identificar certas características estruturantes no núcleo da modernidade que integram com
a reflexividade do eu” (GIDDENS, 2002, p.10). Ou seja, Giddens incorpora o elemento
subjetivo à perspectiva sociológica de maneira analítica, crítica e consciente, o que
possibilita delinear o conceito acima citado.
Isso se faz necessário porque o foco desta dissertação é a análise e interpretação das
práticas educativas e ações sócias desenvolvidas pelos dirigentes da Associação Cultural e
Beneficente Comunidade Negra Quilombo da Paz de Santa Bárbara D’Oeste para se poder
dizer se eles promovem a emancipação e o projeto reflexivo do eu por intermédio de uma
educação sócio-comunitária.
19
1.1 – Política emancipatória
A definição para o conceito de política emancipatória apresentada pelo autor que é
referencia neste capítulo é: “a política da liberdade em relação à exploração, à desigualdade
ou à opressão” (GIDDENS, 2002, p. 222). Numa definição mais geral essa política é
[...] uma visão genérica interessada, acima de tudo, em libertar os indivíduos e
grupos das limitações que afetam negativamente suas oportunidades de vida. Ela
envolve dois elementos principais: o esforço por romper as algemas do passado,
permitindo assim uma atitude transformadora em relação ao futuro; e o objetivo
de superar a dominação ilegítima de alguns indivíduos e grupos por outros
(GIDDENS, 2002, p. 194).
Considerando a política, numa concepção mais ampla, como uma forma de
possibilitar soluções para cada problema novo que surge na vida em comunidade ou em
sociedade através de discussão, deliberação e decisão; considerando ainda que cada decisão
pode ser revista em caso de o resultado gerar novos problemas não previstos, a política não
envelhece, pois está sempre renovando suas ações e decisões dentro das possibilidades do
momento. Nesse sentido, a política mantém “a idéia e a prática da criação contínua da
realidade social ou de sua transformação, isto é, a história” (CHAUÍ, 2003, p. 352).
Portanto, nessa concepção, política pode ser qualquer modo de “tomada de decisão
relacionada à resolução de debates ou conflitos onde houve algum choque de interesses ou
valores opostos” (GIDDENS, 2002, p. 208).
De outro modo, num sentido mais estrito, a política é o processo de tomada de
decisão dentro da esfera governamental, pois no lócus administrativo todos os problemas
são submetidos à lei. Em relação a essa política uma certa rejeição da população na alta
modernidade porque ela aparece como algo perverso e maléfico para a sociedade pela
forma como ela se apresenta ao público em geral.
Cotidianamente, jornais, rádios, televisões mostram, no mundo inteiro, fatos
políticos que reforçam a visão pejorativa da política: corrupção, fraudes, crimes
impunes praticados por políticos, mentiras que provocam guerras para satisfazer
aos interesses econômicos dos fabricantes de armamentos, desvios de recursos
públicos que deveriam ser usados contra a fome, as doenças, a pobreza, aumento
das desigualdades econômicas e sociais, uso das leis com finalidades opostas aos
objetivos que tiveram ao serem elaboradas, etc (CHAUÍ, 2003, p. 348).
Porém, esse lado perverso e maléfico não deveria causar repúdio à população em
geral, pois a política é fundamental para resolver os problemas sociais detectados, ou
levados ao âmbito governamental pelos integrantes dos movimentos sociais que lutam por
20
interesses individuais e coletivos que têm em vista a emancipação. Isso fica evidente
quando esses movimentos identificam problemas decorrentes do não cumprimento de leis
que deveriam garantir um mínimo de qualidade de vida aos indivíduos e grupos. Além
disso, não se pode esquecer que a não-ação por rejeição a esta política representa também
um fazer político, pois não participar permite que as coisas fiquem como estão e, portanto,
que a política existente continue tal como é. Assim, as pessoas ao recusarem esta política
promovem uma apatia social, a qual “é uma forma de fazer política, ainda que uma forma
passiva” (CHAUÍ, 2003, p. 348). Mas essa política sobrevive, mesmo sem o apoio de
grande parte da população, por causa da posição central do Estado Nação e de seu aparato
governamental, pois este se estabelece com a elaboração de leis que determinam como o
indivíduo deve viver em sociedade cumprindo seus direitos e obrigações, além de instituir
penalidades para quem não as cumprir.
A partir dessas concepções de política tanto num sentido mais amplo como num
sentido mais estrito, pode-se entender a proposta de Giddens (2002) como a reabertura de
uma discussão que visa unir as políticas emancipatórias numa e num único objetivo: a
realização do ser humano como prioridade absoluta amparada por novos parâmetros éticos
e morais universais que determinem até onde o homem pode avançar em sua ação sobre a
natureza, sobre outros homens e sobre si mesmo; que muitas tradições que amparavam o
projeto iluminista não se justificam mais, exigindo, portanto, novos parâmetros que dêem
conta da nova realidade.
O projeto iluminista trazia implícito em si, a promessa de que cada indivíduo se
tornaria mestre do próprio destino à medida que adquirisse conhecimento e controle sobre a
realidade social e material. Porém não foi isso que aconteceu porque, ao invés de o
conhecimento trazer mais segurança, ele gerou um ambiente de incertezas e de riscos que
escapam ao controle humano. Assim, na atualidade, as incertezas advêm das superações
contínuas dos conhecimentos científicos que, quase nunca podem ser considerados como
definitivos porque podem ser superados a qualquer momento em decorrência de novas
descobertas; os riscos advêm da exagerada intervenção humana na natureza e nas condições
da vida social que tornam o futuro inteiramente imprevisível, principalmente se se
considerar que o neoliberalismo, como força de mercado, transforma o mundo a seu bel-
prazer.
21
Os fundadores originais da ciência e da filosofia modernas acreditavam estar
preparando o caminho para o conhecimento seguramente fundamentado dos
mundos social e natural: as afirmações da razão deveriam superar os dogmas da
tradição, oferecendo uma sensação de certeza em lugar do caráter arbitrário do
hábito e do costume. Mas a reflexividade da modernidade de fato solapa a certeza
do conhecimento, mesmo nos domínios centrais da ciência natural. A ciência
depende não da acumulação indutiva de demonstrações, mas do princípio
metodológico da dúvida. Por mais estimada e aparentemente estabelecida que
uma determinada doutrina científica seja, ela está aberta à revisão ou poderá vir
a ser inteiramente descartada à luz de novas idéias ou descobertas (GIDDENS,
2002, p. 26).
Essa situação produz a imprevisibilidade do mundo moderno ao propiciar novas
formas de experiências que são reforçadas pela mídia eletrônica presente em praticamente
todos os ambientes da alta modernidade. Essas novas experiências interferem positivamente
na política atual ao possibilitar que os indivíduos adquiram noções de outros estilos de vida
e, num jogo dialético entre o local e o global, construam idéias de como querem viver e de
como se organizarem para tratar da reconstrução de empreendimentos políticos que
atendam suas necessidades.
Sobre o “estilo de vida” este autor considera necessário um esclarecimento. “Um
possível mal-entendido sobre o estilo de vida em sua interconexão com o planejamento da
vida deve ser evitado desde o começo” (Idem, p. 13). “Estilo de vida” se refere a projetos
dos grupos ou classes mais prósperos, além de se referir também “a decisões tomadas e
cursos de ação seguidos em condições de severa limitação material; tais padrões de estilo
de vida também podem algumas vezes envolver a rejeição mais ou menos deliberada das
formas mais amplamente difundidas de comportamento e consumo” (Idem).
Essas influências globais e locais que ampliam as opções de escolha do estilo de
vida que se quer ter, geralmente visam à emancipação e incentivam os indivíduos não
atendidos adequadamente pelas políticas públicas a se envolverem em movimentos sociais
que possam colaborar na viabilização desse desejo, pois estes movimentos, a partir do
objetivo de ampliar e manter direitos de cidadania, detectam os problemas nas
comunidades, apresentam-nos à imprensa, forçando-os à atenção do poder público. Muitas
dessas ações, ao que se percebe, recorrem aos valores éticos e morais para conseguir apoio
popular, pois estes valores estão em evidencia nas discussões que atingem os mais variados
ambientes da alta modernidade porque são eles que deverão determinar como será a vida
humana futura. Vida que não pode dispensar valores morais fundamentais para que se
consiga viver com liberdade e responsabilidade.
22
É cada vez mais visível que as escolhas de estilo de vida, no contexto das inter-
relações local-global, fazem surgir questões morais que não podem ser
simplesmente postas de lado. Tais questões clamam por formas de envolvimento
que novos movimentos sociais pressagiam e ajudam a iniciar (Idem, p. 16).
Isso acontece, em parte, porque a globalização não diz respeito somente às
influências econômicas, ela envolve também a transformação do tempo e do espaço e a
transformação dos contextos em que acontecem as experiências sociais, as quais sofrem
cada vez mais influências de eventos que acontecem do outro lado do mundo, só que, numa
ação recíproca porque o lado de do mundo também exerce influência em diversos locais
do planeta.
A globalização faz emergir uma ordem pós-tradicional, mas essa ordem não é
aquela onde a tradição desaparece. “É aquela onde a tradição modifica seu status”
(GIDDENS, 1994, p. 12). Ela expõe a tradição ao questionamento e ao debate, obrigando-a
a justificar-se. Nesse debate, aquelas que não mais se justificam são descartadas porque não
se enquadram nas novas exigências de comportamento e de conduta da alta modernidade,
pois o dinamismo da atualidade muda constantemente o ambiente social externo do
indivíduo afetando sua vida íntima fazendo com que cada um, ao enfrentar problemas
pessoais, gere atividades “que ajudam a reconstruir o universo da atividade social à sua
volta” (Idem p. 19).
Observa-se que uma das maneiras de o indivíduo ajudar a reconstruir o universo da
atividade social à sua volta é a exposição ao público de problemas individuais e as soluções
reflexivamente adotadas. Isso faz com que cada resolução sirva de modelo para outras
pessoas que estão passando por problemas semelhantes possibilitando a elas adotar ou não
a solução apresentada. Como a adoção ou não de novos comportamentos é equacionado
internamente pelo indivíduo, quase nunca a tradição pode ajudá-lo a decidir. É nesse
processo que as tradições que não mais se justificam vão sendo descartadas por um número
cada vez maior de indivíduos chegando a ser esquecida pelas gerações subseqüentes.
A tradição e a natureza, nas sociedades pré-modernas, costumavam determinar a
atividade social porque se entendia que os eventos ocorriam independentemente da ação
humana. Hoje se sabe e se sente que o impacto global do neoliberalismo não tempo à
tradição devido ao controle humano sobre praticamente todas as instâncias da vida
23
individual. Isso obriga cada indivíduo a decidir por si mesmo o que é melhor para sua vida.
Sobre isso, Domingues apresenta os dizeres de Guiddens cedidos a ele em uma entrevista.
É importante sublinhar que minha ênfase principal na globalização não se resume
ao desenvolvimento da economia mundial, nem do sistema mundial. A
globalização é primordialmente a transformação do tempo, do espaço, da
experiência local, não uma coisa só, mas um complicado conjunto de
transformações das condições básicas da vida social. Ela não produz
necessariamente um mundo unificado. Ela produz fragmentação. Esses dois
elementos acham-se imbricado um no outro (DOMINGUES, 1992, p. 299).
A globalização fragmenta, dissocia e unifica, afirma Giddens (2002), pois as forças
unificadoras são tão centrais quanto as desagregadoras. Ela cria um mundo que, em vez de
ser somente um “cortejo genuinamente fragmentado de comunidades humanas”, como
acontecia nos diversos modos de cultura e de consciência dos sistemas mundiais pré-
modernos. Gera uma “situação em que a humanidade em alguns aspectos se torna um ‘nós’,
enfrentando problemas e oportunidades onde não há ‘outros’” (GIDDENS, 2002, p. 32).
Essas forças unificadoras e desagregadoras geram a possibilidade de ações
individuais e coletivas numa perspectiva de se criar um mundo possível a partir da
combinação de conhecimentos especializados e possíveis conseqüências de sua aplicação.
O surgimento dessas atividades reflexivas revela ao indivíduo o esgotamento das ideologias
políticas recebidas e a percepção de que vivemos num mundo radicalmente danificado,
para o qual são necessários remédios radicais” (GIDDENS, 1994, p. 17). Como a política
radical não morreu juntamente com o desmoronamento das ideologias políticas, ela pode
ressurgir se souber lidar com um mundo de imprevisibilidades, um mundo não determinado
pelos limites estipulados pelo projeto da modernidade. “Um programa político radical – que
toma as coisas pela raiz deve reconhecer que confrontar o risco produzido não pode ser
uma postura tipo ‘mais do mesmo’, ou seja, uma exploração sem fim do futuro, às custas da
proteção do presente ou do passado” (Idem). Ele deve ser estruturado sobre um esquema
traçado a partir do “conservadorismo filosófico, mas que preserva alguns valores centrais
até agora associados ao pensamento socialista” (Idem, p. 18).
Uma sugestão do autor é que se aborde a política moderna, de forma simplificada,
considerando apenas o seu compromisso com a política emancipatória, sendo assim, o
radicalismo - no qual se inclui também o marxismo -, o liberalismo e o conservadorismo
podem proporcionar a reconstrução de uma política comprometida com a emancipação.
24
A emancipação considerada como qualquer tipo de libertação é um sonho antigo do
homem, e se manifesta em cada época de acordo com as necessidades de superação das
limitações estabelecidas pelas instituições sociais para conter os instintos naturais do
homem. Em cada época, dependendo das limitações impostas, as necessidades se
modificam e a busca por emancipação se renova.
Emancipação significa liberdade ou, melhor dizendo, liberdade de vários tipos:
liberdade da garra arbitrária da tradição, do poder arbitrário e das restrições
causadas pelas privações materiais. A política emancipatória é uma política de
oportunidades de vida e, portanto, é central para a criação da autonomia da ação
(Idem, p. 20).
Nesse sentido, a emancipação envolve os dois elementos principais elencados por
Giddens (2002), ou seja, o esforço por romper as algemas do passado para se poder
programar o próprio futuro de acordo com as próprias necessidades e a superação de
qualquer dominação ilegítima de indivíduos ou de grupos.
Nessa visão, libertar os indivíduos das limitações que afetam negativamente suas
oportunidades de vida representa, no início da modernidade, a emancipação em relação aos
imperativos dogmáticos da tradição e da religião, e a distinção do indivíduo como ser social
independente inserido em uma coletividade. Aí estão presentes os dois elementos principais
elencados pelo autor, os quais são evidenciados nas políticas liberais que são elaboradas a
partir do Renascimento.
Aliás, do Renascimento ao Iluminismo o projeto moderno foi elaborado visando
conformar as alterações pelas quais passava a sociedade européia. Este período é
caracterizado por transformações profundas na vida econômica, social, política, religiosa e
cultural. Nessa época, a economia européia está passando do feudalismo ao nascente
capitalismo; a vida social se transforma pela elevação dos valores burgueses e queda dos
valores da nobreza feudal; na política surgem os grandes Estados Nacionais desvinculados
da influência religiosa; na religião, a Reforma Protestante apresenta novas formas de
interpretar a fé cristã; na cultura, a arte, a literatura, a ciência e a filosofia sofrem a
influência de uma nova forma de pensar e interpretar o mundo.
A economia se transforma ao passar da produção manufatureira caracterizada por
uma combinação de ofícios para um sistema composto por várias operações bem
determinadas em conseqüência da divisão social do trabalho. Nesse processo, as
corporações são suprimidas e os feudos se desfazem. A riqueza que era herdada passa a ser
25
adquirida com o trabalho de cada um. “A família, a vida privada, as particularidades
individuais, vão se conformando às novas necessidades sociais, oriundas do modo de
produção que se institui” (PALANGANA, 2002, p. 31).
A vida social se transforma em conseqüência da extinção de leis como a de
descendência e da criação de novas leis compatíveis com a nova organização social, fruto
da desestruturação da grande família e emergência da família burguesa restrita a pais e
filhos. “O princípio da sociedade emergente é o livre desenvolvimento das forças e
capacidades individuais” (Idem, p. 21).
Na política, os Estados Nacionais se estruturam para garantir a lei e a ordem sociais.
Na qualidade de força reguladora, cabe ao Estado prescrever os limites dentro dos quais os
indivíduos podem manifestar suas vontades e desejos. O Estado é um poder novo que
estende seus domínios a partir de um certo consenso de que a ordem pública e o bom
andamento dos negócios dependem, prioritariamente, da ação do governo. Assim, aos
poucos, esta nova instituição passa a ser vista como um agente natural, único e
indispensável à melhoria das condições de vida. Para tanto, os chefes de família são
convencidos a educar seus filhos nas conformidades ética e moral necessárias para manter a
ordem vigente. “No Antigo Regime, o homem, conscientemente, obedece sob coação; na
sociedade burguesa, desenvolve-se um sentimento servil que disfarça a obediência em
comportamento espontâneo” (Idem, p. 26).
Na religião, os homens se desprendem, paulatinamente, dos preceitos religiosos,
divinos, e empenham-se em elaborar, por si mesmos, as regras do juízo. A contemplação
não resiste à dinâmica de vida que vem sendo imposta. A doutrinação, empreendida pelo
cristianismo reformado por Lutero, cumpre um papel significativo no processo de
adaptação do homem ao modo de produção capitalista.
Orientado pelo protestantismo luterano, o homem serve a Deus não mais por pura
devoção, mas por acreditar que este caminho pode livrá-lo do sofrimento e das
injustiças terrenas, ou seja, por necessidade de experienciar uma outra ordem.
Essa nova espécie de religiosidade faz crescer, no homem, a confiança na sua
capacidade interior, na sua consciência (Idem, p. 33).
Assim, o novo modo de vida que deriva das transformações nos modos de produção
e das novas maneiras de os homens se relacionarem vai fazendo desmoronar a
transcendência cristã e colocando os indivíduos como responsáveis pelas suas vidas na
26
sociedade reformulada. Nessa nova sociedade o homem não é mais orientado pela razão
divina, mas por sua própria.
Na cultura, os indivíduos rompem os elos da cadeia estabelecida pela aristocracia.
Com isso, eles tendem a responder por si próprios e isso faz com que se desvinculem dos
antepassados e cuidem sozinhos de seus interesses particulares. As atividades mentais
apóiam-se, sobretudo, no esforço individual, na capacidade humana de entendimento. A
autoconfiança se acentua e, com ela, o pensamento torna-se mais independente. Surge uma
consciência livre para pensar e agir. Nesse ambiente, o conhecimento cientifico é alargado
e o homem passa a investir na ciência, no domínio da natureza e de si. Os homens
começam a imaginar além do que vêem, visando dominar e ultrapassar a natureza. Eles
podem ousar, identificar e alterar o marco dos limites pessoais. “Os olhos antes ocupados
apenas com o presente, e sempre inspirados no passado, agora encontram-se inteiramente
voltados para o futuro, importa o que virá e não o pretérito” (Idem, p. 24). Na literatura, o
espírito burguês rompe com as regras literárias da aristocracia. Agora a função principal da
escrita é divisar o que pode ser útil e representar o real de forma fácil de ser compreendida.
“A atenção de quem escreve, como a dos demais, fixa-se à terra, ou seja, ao mundo real, ao
mundo dos homens. Nesse processo de despadronização, de alheamento ao modo de ser
precedente, a individualidade se atesta e se faz reconhecer” (Idem, p. 25).
Todas essas transformações resumidamente apresentadas acima e muitas outras não
citadas marcam a passagem do homem do Antigo Regime para a Idade Contemporânea.
Esse período de transição é convencionalmente chamado de Idade Moderna, mas essa
convenção não é consenso, pois a Idade Moderna é interpretada diferentemente pelas várias
correntes de pensamento. Algumas dessas correntes não usam o termo “Idade Moderna”,
preferem trabalhar com o conceito de “Tempos Modernos” ou “Era Moderna” entendendo
que o período de transição ainda o está acabado. Para outras correntes, a Idade Moderna
pode ter seu início com o período de industrialização, pois entendem que as sociedades pré-
modernas são as pré-industriais e as sociedades modernas são as industriais. Já o
pensamento marxista tende a estender a sociedade moderna até as Revoluções Liberais, as
quais colocaram fim ao Antigo Regime e implantaram o Sistema Capitalista.
Giddens (2002), no entanto, não nomeia a sociedade contemporânea de pós-
moderna ou pós-industrial, ele a nomeia de “alta modernidade”, “modernidade tardia” ou
27
“modernidade reflexiva”, pois este autor está entre aqueles que acreditam que o período de
transição que teve início no século XVII ainda não está acabado porque, para ele, os
princípios dinâmicos da modernidade ainda não romperam com os parâmetros da
modernidade propriamente dita, apenas acentuaram as suas características fundamentais de
reflexividade institucional e individual.
A reflexividade institucional
1
e individual marca o surgimento da sociedade
moderna, que se caracteriza pela presença do “individualismo”, do “atomismo” e do
“secularismo”, amparados pelos paradigmas da liberdade, da autonomia e da igualdade.
Essa sociedade se contrapõe às sociedades de tipo tradicional de natureza “holista”, no que
diz respeito à prioridade que dá ao indivíduo em relação ao todo social e político.
Segundo a visão de Dumont (2000), o indivíduo moderno surge da passagem da
concepção de universitas”, própria das sociedades tradicionais em que os homens são
vistos apenas como partes do corpo social, para o postulado contemporâneo da societas”,
na qual os membros permanecem distintos apesar de suas relações interpessoais e onde a
unidade é coletiva e não orgânica, consolidada através de um contrato social, formador de
uma sociedade composta de indivíduos.
Nesse sentido, Sousa (2003) esclarece que, para a edificação de um Estado ideal a
partir do isolamento do indivíduo natural, utilizou-se como plataforma de ação a concepção
do contrato social, implementador da igualdade, que veio a se estender para o campo
político no transcurso da Revolução Inglesa (1640-1660), por intermédio das teses de
Levellers(“niveladores”). Entre as cláusulas do contrato estão principalmente os ideais
da liberdade e da sujeição de todos a um governante, havendo prevalência dos direitos
individuais sobre os sociais, instaurando-se, assim, o nascimento real da humanidade
propriamente dita, teoria esta que foi sustentada, a partir do século XVII, principalmente
por Hobbes, Locke e Rousseau.
Dumont (2000) ressalta que “esses três autores têm em comum o reconhecimento da
dificuldade que existe em combinar individualismo e autoridade, em conciliar a igualdade e
a existência necessária de diferenças permanentes de poder, senão de condição, na
sociedade ou no Estado” (DUMONT, 2000, p. 93). Realmente essas dificuldades causaram
1
“Reflexividade institucional: a reflexividade da modernidade, que envolve a incorporação rotineira de
conhecimento ou informação novos em situações de ação que são assim reconstituídas ou reorganizadas”
(GIDDENS, 2002, p. 223).
28
alguns estragos que são bem aparentes na sociedade da alta modernidade, mas Giddens
(2002) entende que o próprio dinamismo da atualidade pode rever esses estragos e
proporcionar reparos.
Para tanto, Giddens (1994) sugere que na alta modernidade a preocupação deveria
estar em restabelecer as solidariedades danificadas e que isso poderia ser conseguido
através da preservação seletiva ou da reinvenção da tradição, pois hoje, “deveríamos falar
mais das condições reordenadas da vida individual e coletiva, que produzem, por certo,
formas de desintegração social, mas oferecem, também, novas bases para gerar
solidariedades” (GIDDENS, 1994, p. 19). Ou seja, este autor propõe que a política
emancipatória restaure os valores éticos e morais que o se dispersando na sociedade
moderna em decorrência da sublimação de valores individuais. Mas essa restauração não
pode recuperar tradições que determinavam atitudes e ações em períodos anteriores porque
o ambiente da alta modernidade é único na história da humanidade e requer que se
determinem parâmetros novos que sejam universais e que sirvam de guia para as ações dos
homens em seu avanço para a vida futura com uma certa segurança. Para que isso seja
possível há de se estabelecer limites sobre as intervenções humanas nos domínios da
existência, da finitude, da vida individual e da auto-identidade. Esses limites podem advir,
segundo Giddens (2002), da reflexividade de cada indivíduo quando estes, autonomamente,
se proporem a restaurar solidariedades e concordarem, através de suas referencialidades
internas, a respeitar as diferenças de crenças das diferentes convicções e elegerem o bem
estar e a saúde mental da humanidade como prioridade.
No que se refere ao individualismo da alta modernidade, Giddens considera que ele
é interpretado de forma equivocada pelos neoliberais, os quais o entendem como “a busca
do auto-interesse, isto é, a conduta maximizadora de lucro do mercado” (GIDDENS, 1994,
p. 19). Pois, para esse autor, individualismo deveria ser mais “apropriadamente entendido
como a expansão da reflexividade social” (Idem). que, na alta modernidade, marcada
pela alta reflexividade, “um indivíduo deve alcançar um certo grau de autonomia de ação
como condição de ser capaz de sobreviver e de modelar uma vida; mas autonomia não é a
mesma coisa que egoísmo e, ademais, ela implica em reciprocidade e interdependência”
(Idem).
29
Desse modo, a reconstrução de solidariedades deve envolver todas as esferas que
compõem a vida social.
A questão sobre reconstruir solidariedades não deveria, portanto, ser vista como
sendo para proteger a coesão social nas bordas de um mercado egoísta. Ela
deveria ser entendida como uma questão para reconciliar autonomia e
interdependência nas várias esferas de vida social, inclusive no domínio
econômico (Idem).
Ainda em torno desse tema, embora Giddens (2002) não evidencie a Revolução
Francesa como marco inicial da sociedade contemporânea, não se pode deixar de destacar o
seu valor, se não como marco de uma nova sociedade, pelo menos como marco da
instauração dos valores individuais sobre os valores sociais, pois a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, de 1789, reconhece os direitos da igualdade, da liberdade, da
propriedade, da segurança e da resistência à opressão, doutrinas modernas reforçadas no
plano da lei positiva.
Esse documento sofreria um forte abalo em decorrência de conflitos oriundos da
transformação da sociedade artesanal para industrial. Dumont esclarece que “se a
Revolução marcara o triunfo do individualismo ela parecia, pelo contrário, em retrospecto,
não passar de um fracasso. Daí, não somente uma decepção crônica, mas também o
ressurgimento de valores e idéias que contrariavam os exaltados pela Revolução”
(DUMONT, 2000, p. 115).
Essas idéias, próprias dos românticos conservadores do final do século XVIII e
início do século XIX, tinham a tendência de fazer passar da diretriz da independência do
indivíduo para a orientação da comunhão com vistas a hierarquizar o Estado. Nesse sentido,
Dumont diz que “a época crítica, que insistia tão somente no indivíduo e na razão, deve dar
lugar a uma nova época orgânica” (Idem p.116). Assim, na primeira metade do século XIX,
vários pensadores passaram a considerar o homem como um ser eminentemente social e
que a sociedade não se reduz a uma construção artificial na base de indivíduos. Porém os
valores individuais continuam sendo exaltados por algumas correntes de pensamento,
dando continuidade ao projeto moderno, pois a liberdade, por ser um desejo antigo do
homem, uma vez apresentada como possibilidade, não pôde mais ser abandonada.
Essa liberdade apresentada como possibilidade de realização no início da
modernidade é fruto de um pensamento mais antigo sobre esse assunto. E sobre ele se
debruçaram vários pensadores, pois a liberdade se apresenta sempre na forma de dois pares
30
opostos: “1. o par necessidade liberdade [...] em termos religiosos, como fatalidade
liberdade, e em termos científicos, como determinismo liberdade; 2. o par contingência
liberdade” (CHAUÍ, 2003, p. 332).
A necessidade é um termo filosófico que remete a situações em que o ser humano é
inserido numa rede de causas e efeitos nos quais ele não pode interferir. Fatalidade é um
termo religioso usado para explicar situações que governam o homem de forma
independente de sua vontade. Determinismo é o termo científico empregado para explicar
que a liberdade é ilusória, pois o homem está inserido em relações causais necessárias que
condicionam seus pensamentos, sentimentos e ações. Contingência ou acaso quer dizer que
tudo no mundo acontece por acidente ou acaso e que, portanto, a liberdade não pode ser
exercida sobre uma realidade imprevisível e mutável.
Necessidade, fatalidade, determinismo significam que não lugar para a
liberdade, porque o curso das coisas e de nossa vida está fixado, sem que nele
possamos intervir. Contingência e acaso significam que não lugar para a
liberdade, porque não curso algum das coisas e de nossa vida sobre o qual
pudéssemos intervir (Idem, p. 333).
Nesse sentido, essa autora afirma que as teorias éticas enfrentam o duplo problema
da necessidade e da contingência, procurando definir o campo possível de ação do
indivíduo. Como na atualidade se comprova que a sublimação dos valores individuais
ocasionou a perda de referência desses valores, Giddens (2002) entende que a ética e os
valores morais devem ser restaurados para que sirva de guia para o indivíduo criar o seu
projeto de vida.
O problema da liberdade individual obteve a atenção de muitos, mas Aristóteles é
identificado como o primeiro a elaborar uma grande teoria filosófica da liberdade em sua
obra “Ética a Nicômaco”. A partir dessa obra Chauí (2003) escreve que, “é livre aquele que
tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir, isto é, aquele que é causa interna de sua
ação ou da decisão de o agir. A liberdade é concebida como o poder pleno e
incondicional da vontade para determinar a si mesma” (CHAUÍ, 2003, p. 334).
Aristóteles, embora entenda que o Estado é superior ao indivíduo porque a
coletividade é superior ao indivíduo a possibilidade de ação por iniciativa individual
desde que o indivíduo se disponha a agir, pois a concepção de liberdade deste filósofo é “o
princípio para escolher entre alternativas possíveis, realizando-se como decisão e ato
voluntário” (Idem).
31
Esta concepção, segundo essa autora permanece com algumas variantes até o século
XX, quando é retomada por Sartre. Para este a
[...] liberdade é a escolha incondicional que o próprio homem faz de seu ser e de
seu mundo. Quando julgamos estar sob o poder de forças externas mais
poderosas do que a nossa vontade, esse julgamento é uma decisão livre, pois
outros homens, nas mesmas circunstâncias, não se curvaram nem se resignaram
(Idem, p.334).
Assim, para Sartre, a liberdade está em toda ação humana tanto a de agir como a de
não agir. Portanto a submissão ou não a uma situação imposta cabe a cada um escolher,
porque todos têm a posse da sua liberdade.
No período helenístico o estoicismo, uma escola de Filosofia, desenvolveu uma
outra concepção de liberdade que ressurge, no século XVII, com Espinosa e, no século
XIX, com Hegel. Essa concepção mantém alguns aspectos da concepção de liberdade em
Aristóteles, mas aqui a ação humana é entendida como atividade de cada um submetida a
um todo que age livremente porque necessariamente. O todo pode ser a natureza para os
estóicos, a substância para Espinosa ou o Espírito para Hegel. Para os estóicos, ser livre “é
agir conforme a natureza – seguindo as leis necessárias – e conforme a natureza do agente –
seguindo uma vontade pessoal poderosa dirigida pela razão” (Idem, p. 335).
Diferentemente dos estóicos em relação ao poderio da vontade sobre as paixões,
Espinosa afirma que
[...] somos livres quando o que somos, o que sentimos, o que fazemos e o que
pensamos exprime nossa força interna para existir e agir. [...] Diz ele, não somos
livres porque nossa vontade domina nossas paixões, mas é porque somos livres
que nossa razão é um afeto alegre mais forte do que os afetos nascidos das
paixões (Idem).
Para Espinosa, permanecer passivo diante das paixões é um estado de servidão. O
grande remédio contra as paixões consiste em compreendê-las e perceber suas relações com
as causas externas. A necessidade e liberdade não se opõem, se completam. Assim, o
homem livre é aquele que tem capacidade para agir segundo as necessidades de sua
essência e não pressionado por forças externas.
Para Hegel o homem é livre quando domina as forças da natureza e cria a sua
cultura. Quando, pela religião, no caso o cristianismo, ele descobre a consciência como
consciência de si. Ou quando surge a individualidade racional moderna, do indivíduo como
consciência de si, reflexiva. Essa reflexividade apresenta-se em Hegel como sinônimo de
razão, pois o idealismo alemão assim a empregou, esclarece Domingues (2002).
32
Existe ainda uma terceira concepção de liberdade encontrada nos pensadores
marxistas e em pensadores da fenomenologia e do existencialismo que introduzem a noção
de possibilidade objetiva, idéia esta que sempre esteve implícita nas teorias sobre a
liberdade. Para estes, a liberdade é “a consciência simultânea das circunstâncias existentes e
das ações que, suscitadas por tais circunstâncias, nos permitem ultrapassá-las, dando-lhes
outro rumo e um novo sentido, que não teriam sem a nossa ação” (CHAUÍ, 2003, p. 336).
Nessa concepção, o homem pode agir de acordo com a interpretação que faz da
situação e, nesse caso, sua ação pode mudar o curso do presente favorecendo situações
novas para muitos outros homens porque este percebeu alternativas pouco visíveis, mas
possíveis de serem realizadas.
A liberdade, porém, não se encontra na ilusão do “posso tudo” nem no
conformismo do “nada posso”. Encontra-se na disposição para interpretar e
decifrar as linhas de força e direções do campo presente como possibilidades
objetivas, isto é, como abertura de nossas direções e de nossos sentidos a partir do
que está dado (Idem, p. 337).
No que se refere a esta concepção, Giddens (2002) a menciona ao buscar fórmulas
gerais que sustentem a ação da política emancipatória. Diz que Marx apresentou uma
fórmula de ação ao tratar da questão judaica, mas por esta estar ligada à libertação do
homem em relação exclusiva à religião, se pode generalizar ainda mais este princípio.
Marx apresentou uma, quando produziu sua célebre formulação da “questão
judaica”. Os que lutaram pela emancipação dos judeus da opressão e da
perseguição religiosa, disse Marx, não lutavam por interesses puramente setoriais.
Pois ao libertarem os judeus de tal opressão estavam libertando os homens em
sua totalidade. No argumento de Marx, tratava-se da liberdade geral em relação
às limitações da religião. Mas podemos generalizar ainda mais o princípio as
lutas para emancipar os grupos oprimidos podem ajudar a libertar os outros, ao
promover atitudes de tolerância mútua que no limite beneficiarão a todos
(GIDDENS, 2002, p. 211 e 212).
Pela exposição resumida sobre a preocupação histórica com a liberdade, deduz-se
que o homem luta por ela desde muito, e isso é abordado por inúmeros autores, porém,
neste trabalho recorre-se a Palangana (2002) e a Dumont (2000) para sua comprovação.
Palangana (2002) reconhece no poema de Homero – Odisséia – um dos mais
precoces testemunhos da civilização burguesa, ou seja, um dos mais precoces testemunhos
da busca pela liberdade, pois aí, segundo essa autora, se delineiam aspectos do percurso
da formação do indivíduo e o uso de subterfúgios para escapar à dominação. Nessa época,
entre os séculos XIII e VII a.C., o indivíduo, quando seduzido, se desvia de sua trajetória
33
lógica para experimentar novos desafios, se fortalecendo em cada aventura, quando sai
vencedor. O homem, no embate com a natureza, se expõe ao perigo e à morte para
conhecer seus limites, bem como os do inimigo. Ele precisa disso para desenvolver
recursos para enfrentá-los.
Nos tempos de Homero, a identidade individual se firma nos e através dos mitos.
O eu é, antes de mais nada, astúcia. É este o principal recurso que o indivíduo usa
e aprimora em suas aventuras. A astúcia tem origem no culto, mais diretamente,
quando o homem logra a Potência a que se destina o sacrifício, subordinando-a a
seus planos. Ele oferece a si e/ou a outros em ações sacrificiais para atender um
projeto seu e não divino. É a emergência de uma esfera interna que se contrapõe à
externa (PALANGANA, 2002, p. 17).
Numa alegoria, emprestada da obra de Adorno & Horkheimer Dialética do
esclarecimento: fragmentos filosóficos, Palangana compara Ulisses ao indivíduo medieval,
pois este se opõe à tradição para buscar sua liberdade.
Quando a ordem medieval não mais convence sobre sua pertinência, o homem
feudal, como Ulisses, opõe-se à tradição, desacata os limites da economia
doméstica, aperfeiçoa os passos de comerciante em busca de liberdade, em busca
de riqueza. [...] a astúcia do aventureiro – território da individualidade – se
transforma em razão ao elaborar um meio de desfrutar do prazer amarrado ao
mastro sem ficar entregue a ele. A figura heróica de Ulisses deixa entrever que
a construção da identidade individual implica a negação de parte do eu, implica
em negar, no homem, a natureza (Idem, p. 19).
A negação da natureza no homem é encontrada nas teorias liberais quando estas
afirmam que o homem em estado de natureza é comandado por instintos que, no estado
civil, ele deve substituir o instinto pela justiça, atribuindo às suas ações uma moralidade
que lhe faltava no estado de natureza. Sendo assim, essa passagem é caracterizada pela
substituição dos instintos pelo uso da razão amparada por valores éticos e morais.
Sobre este tema, Hatcher (2005) dá uma contribuição importante, pois entende que a
necessidade de viver em sociedade, mesmo abdicando de parte da liberdade externa, mostra
que os sentimentos e pensamentos humanos são sociais. Comprova que está certa a
consciência de que tudo que eleva o homem acima de um nível animal advém de um certo
nível de organização social que, por sua vez, depende da existência de um certo nível de
funcionamento moral. Se for assim, argumenta esse autor, pode-se afirmar que a
desumanização existente nas sociedades atuais não é conseqüência do desenvolvimento
econômico e sim de uma dissimulação daqueles valores morais implícitos desde o início da
formação das sociedades, ou seja, da disciplina individual, da obediência, da confiança, da
ética individual, da responsabilidade social, entre outras.
34
Para Hatcher (2005) a vida em sociedade deve se desenvolver no sentido de
maximizar progressivamente a liberdade interna do indivíduo enquanto se exige também
um nível de organização social mais refinado e mais balanceado. O objetivo da sociedade
não pode ser o de apenas satisfazer as necessidades físicas dos indivíduos, pois estas
estavam mais ou menos satisfeitas no estágio mais primitivo. O objetivo da sociedade é dar
aos indivíduos que convivem uma qualidade de relacionamento e de confiança que garanta
o exercício da moralidade, pois se esta estiver ausente, as comunidades se tornam imorais e
amorais, o que tende a um nível de existência puramente animal, no qual cada homem está
por si só, e, portanto, a liberdade interna tende a zero.
Nesse sentido pode-se entender que Hatcher (2005) e Giddens (2002) concordam
que a dispersão dos valores éticos e morais pode levar a desintegração da sociedade. Pois
sem a conservação desses valores a insegurança gerada pela ampliação da violência pode
atingir limites que colocam todos contra todos. Hatcher observa que a sociedade deve
garantir aos indivíduos uma qualidade de relacionamento e de confiança que garanta o
exercício da moralidade e que as gerações mais novas dão mostras de que podem
abandonar o sistema se for ele o causador da dissolução dos valores morais. Giddens, numa
outra linha de pensamento, acredita que se devam restaurar os valores e as solidariedades
danificadas através de uma política emancipatória reestruturada através da reflexividade
individual, pois os processos internamente referidos clamam por uma “remoralização da
vida social e demandam uma sensibilidade renovada para questões que as instituições da
modernidade sistematicamente dissolvem” (GIDDENS, 2002, p. 206). Sendo assim, a
reflexividade de cada um pode favorecer a criação e facilitar a adoção de valores universais
como referenciais de conduta que garantam a segurança que a humanidade necessita para
seguir sua trajetória, superando naturalmente os parâmetros da alta modernidade.
A busca de autonomia, liberdade, progresso e conhecimentos também é detectada
por Dumont (2000), quando este reconhece que estas particularidades estão presentes em
alguns indivíduos desde o período helenístico e que o individualismo exprime, em todos os
tempos, a luta pela liberdade individual e que, não sendo esta possível em algumas
sociedades de tipo tradicional, o indivíduo se contrapõe à sociedade declaradamente, ou
não, para conseguir um crescimento interior que o capacite a comandar a própria vida. A
forma buscada para tanto varia de sociedade para sociedade.
35
[...] a configuração individualista de idéias e valores que nos é familiar não
existiu sempre nem aparece de um dia para outro. Fez-se remontar a origem do
“individualismo” a uma época mais ou menos remota, segundo, sem dúvida, a
idéia que dele fazia e a definição que se lhe dava (DUMONT, 2000, p. 22).
E foi esse pensamento de liberdade existente que possibilitou ao cristianismo
triunfar. “Pode sustentar que o mundo helenístico estava, no que tange às pessoas
instruídas, tão impregnado dessa mesma concepção que o cristianismo não teria podido
triunfar, a longo prazo, nesse meio, se tivesse oferecido um individualismo de tipo
diferente” (Idem, p. 39).
Portanto, existe uma convergência entre o pensamento de Dumont (2000) e o de
Giddens (1994) no que se refere ao individualismo como ponto de partida para a construção
autônoma da vida e, sendo assim, na luta pela liberdade na história da humanidade, estão
subentendidos os dois elementos principais da política emancipatória do autor que é
referência desta dissertação. Ou seja, o esforço por livrar-se das amarras que impedem o
autodesenvolvimento e a superação da dominação ilegítima de alguns indivíduos ou grupos
sobre outros (GIDDENS, 2002, p. 194).
Assim, na modernidade, confluem os esforços para promover a realização desse
desejo antigo do homem. Nesse processo, o homem se desprende gradativamente do
contexto tradicional e é incentivado a romper com as relações de subordinação e aprender a
viver em uma nova estrutura social que o valoriza em função do controle que obtiver sobre
as circunstâncias de sua própria vida, a partir de uma relação reflexiva consigo mesmo, com
a sociedade e, na alta modernidade, uma relação reflexiva também com o global.
Na interpretação de Giddens (2002), a sociedade moderna não se separa
abruptamente das sociedades tradicionais que atribuíam primazia à convivência
interpessoal, pois as relações sociais existentes na ideologia moderna valorizam e
intensificam os vínculos do homem com as coisas, capacitando-o à fixação autônoma de
valores através da reinvenção ou criação de novas tradições. E foi isso que aconteceu nas
primeiras fases de desenvolvimento das sociedades modernas.
Nessa época, algumas tradições foram desprezadas, mas outras tiveram de ser
criadas ou recriadas para estabilizar a ordem social. Para tanto, segundo Giddens (1994),
inventaram a tradição do nacionalismo e reinventaram a tradição da religião, além da
reformulação de tradições referentes à família, ao gênero e à sexualidade. Essa
36
reformulação previa fixar a mulher no lar, reforçar a divisão entre os sexos e determinar o
comportamento sexual. Inclusive a ciência, que aparentemente se opunha aos modos
tradicionais do pensamento, tornou-se, em si, um tipo de tradição. “Isto é, a ciência tornou-
se uma ‘autoridade’ para a qual se poderia recorrer de modo relativamente inquestionável, a
fim de se enfrentar dilemas ou lidar com problemas” (GIDDENS, 1994, p. 12 e 13).
Com o avanço da sociedade moderna, percebe-se que o mundo resultante do projeto
iluminista, aquele que previa que com o uso da razão o homem seria capaz de conhecer e
controlar tanto a sociedade como a natureza, não se confirmou. Sendo assim, os estudos ou
os projetos precisam ser refeitos levando em conta, principalmente, o interesse pela
emancipação que o pensamento atual ainda alimenta.
Pensadores políticos liberais, assim como os radicais, procuram libertar os
indivíduos e as condições da vida social em geral das limitações das práticas e
preconceitos preexistentes. A liberdade deve ser alcançada pela emancipação
progressiva do indivíduo, em conjunto com o estado liberal, e não por processos
projetados de levante revolucionário. “Conservadorismo”, a terceira categoria,
quase por definição, assume uma visão mais limitada das possibilidades
emancipatórias da modernidade. Mas o pensamento conservador existe como
reação à emancipação – o conservadorismo se desenvolveu como uma rejeição do
pensamento radical e liberal, e como uma crítica das tendências da modernidade
ao desencaixe (GIDDENS, 2002, p. 194).
Os conservadores, contrários às tendências da modernidade, não concordam com a
elevação dos direitos individuais acima dos sociais, talvez por temerem os resultados dessa
dinâmica social. Mas Giddens (2002) deixa entrever em seus dizeres que a liberdade
individual, mesmo prejudicada, atualmente por formas de dominação, pode ser
concretizada a partir da reflexividade individual que acaba por reconstruir a política
emancipatória.
A política emancipatória objetiva libertar indivíduos ou grupos do poder hierárquico
que mantém a estrutura social da alta modernidade. Este poder hierárquico está explicito na
exploração que um grupo ou indivíduo que se julga superior exerce sobre indivíduos ou
grupos interpretados como inferiores. E nestes casos, a política emancipatória se ocupa de
reduzir ou eliminar a exploração, a desigualdade e a opressão, mas não se ocupa de tornar a
sociedade igualitária economicamente. Ela se ocupa de igualar as possibilidades de acesso
aos bens que favorecem o crescimento individual respeitando as limitações do lugar onde
se encontram as pessoas ou os grupos atendidos.
37
A intervenção é feita por uma pessoa ou por um grupo de pessoas que agem,
geralmente, no sentido de evidenciar a exploração, a desigualdade e a opressão sofrida por
indivíduos ou grupos, convidando os explorados a se organizar para cobrar das autoridades
competentes, as ações específicas para minimizar ou eliminar o problema detectado.
A exploração significa que um grupo digamos, as classes superiores em relação
às classes trabalhadoras, os brancos em relação aos negros, ou os homens em
relação às mulheres monopoliza de maneira ilegítima recursos ou bens
desejados, negando ao grupo explorado acesso a eles. As desigualdades podem
referir-se a quaisquer variações nos recursos escassos, mas o acesso diferencial a
recompensas materiais recebeu em geral a maior importância. Ao contrário de
desigualdades de herança genética, por exemplo, o acesso diferencial às
recompensas materiais faz parte dos mecanismos geradores da modernidade e,
portanto, pode em princípio (não, é claro, na prática) ser transformado da maneira
e até o ponto desejado. A opressão é diretamente uma questão de poder
diferencial, aplicado por um grupo para limitar as oportunidades de vida de outro
(Idem, p. 195).
Como a política emancipatória evidencia, principalmente, o respeito aos valores de
justiça, igualdade e participação, deve-se recorrer aos valores morais, inclusive para
verificar a “autoridade justificável”, a qual é considerada um poder moralmente legítimo.
Para diferenciar as duas formas de autoridade e verificar quando o poder é legítimo ou não,
deve-se procurar apoio nas normas de justiça que amparam cada Nação-Estado.
Normas de justiça definem o que conta como exploração e, inversamente, quando
uma relação de exploração torna-se uma situação de autoridade moralmente
defensável. Um caso limite seria o anarquismo, uma vez que essa doutrina afirma
que a ordem social é possível se toda a autoridade enquanto tal e não apenas a
exploração deixar de existir (Idem, p. 195 e 196).
A igualdade entre as pessoas é considerada por algumas escolas de pensamento,
como um valor em si mesmo e, nem sempre, aparece como objetivo principal da política
emancipatória. A corrente de pensamento liberal e radical, em sua maioria, considera que
algumas formas de desigualdades, como, por exemplo, as materiais, são legítimas e até
desejáveis porque propiciam produção e consumo de forma diversificada e eficiente.
Porém, a participação especificada em seus níveis pelos ideais democráticos deve ser
permitida para que os indivíduos ou grupos, neste ato, identifiquem a opressão e evitem sua
imposição “tendo em vista que o poder hierárquico não é inevitavelmente opressivo, da
mesma maneira que nem toda autoridade é inerentemente exploradora” (Idem, p. 196).
A emancipação é entendida por muitos pensadores como uma utopia e não se pode
legislar de antemão como as pessoas viverão quando atingirem tal estágio, pois, como
afirma Giddens (2002), os escritos de Marx fornecem um exemplo característico quando
38
este se refere ao “socialismo utópico”. Assim, o como viverão as pessoas depois de
conseguirem se emancipar deve ser deixado para elas, quando conquistarem tal situação.
A emancipação significa que a vida coletiva é organizada de tal maneira que o
indivíduo seja capaz num ou noutro sentido de ação livre e independente nos
ambientes de sua vida social. Liberdade e responsabilidade permanecem em uma
espécie de equilíbrio. O indivíduo é libertado de limitações impostas a seu
comportamento como resultado de condições exploratórias, desiguais ou
opressivas; mas ele não é libertado em termos absolutos. A liberdade supõe agir
responsavelmente em relação aos outros e reconhecer as obrigações coletivas
(Idem).
É dentro dessa responsabilidade que esse autor entende que a política emancipatória
prepara o cominho para que os indivíduos e grupos criem um modo de viver e se comportar
de maneira mais justa, para que cada um consiga escolher seu estilo de vida a partir de sua
própria reflexão, ou seja, “o projeto reflexivo do eu”, e, a partir dele possibilitar que a
política-vida seja adotada como uma “política de realização do eu, no contexto da dialética
do local e do global e do surgimento dos sistemas internamente referidos da modernidade”
(Idem, p.222). Nesse sentido, a reflexividade do eu é elemento central para que o indivíduo
vislumbre todas as possibilidades de escolha que a modernidade lhe apresenta.
1.2 O Projeto Reflexivo do Eu
A modernidade inaugura, dentre muitas outras coisas, novos mecanismos de auto-
identidade. Esses mecanismos alteram radicalmente as instituições modernas e o eu devido
ao dinamismo que a reflexividade imprime à sociedade como um todo.
O dinamismo das instituições modernas provoca mudanças não previstas nas vidas
dos indivíduos da alta modernidade. Porém isso dificilmente faz com que alguém desista de
todos os seus objetivos reflexivamente traçados. De modo geral, as pessoas enfrentam as
mudanças reconstruindo o universo de suas atividades, elas se adaptam às novas situações,
às vezes, abandonando alguns objetivos que se justificavam na situação anterior,
mantendo alguns e criando outros sem, no entanto, deixar de ser coerente com “as
narrativas do eu
2
”, porque estas são construídas na trajetória de cada um a partir das
experiências anteriores.
2
“Narrativas do eu: a estória (ou estórias) por meio da qual a auto-identidade é entendida reflexivamente,
tanto pelo indivíduo de que se trata quanto pelos outros” (GIDDENS, 2002, p. 222).
39
Nesse sentido, o conceito para “o projeto reflexivo do eu” referenciado nesta
dissertação deve ser entendido como “o processo pelo qual a auto-identidade é constituída
pelo ordenamento reflexivo das narrativas do eu” (Idem, p. 222). Pois o eu, no ambiente
atual, tem de ser construído reflexivamente em meio a uma “enigmática diversidade de
opções e possibilidades” (Idem, p. 11), que se entrelaçam com as diversas dimensões
institucionais propiciando o “surgimento de novos mecanismos de auto-identidade que são
constituídos pelas instituições da modernidade, mas que também as constituem” (Idem, p.
9).
A reflexividade institucional e individual faz com que a sociedade moderna se
tornando cada vez mais complexa, chegando a ponto de, na alta modernidade, necessitar de
novas abordagens, de uma nova teoria social que conta de estudá-la, pois o dinamismo
do mundo globalizado proporcionou, segundo Giddens (2002), transformações econômicas,
sociais e culturais não imaginadas pelo pensamento sociológico clássico, que este não
conseguiu prever que o grau de dinamismo dessa sociedade alcançaria tal patamar. Porém,
a reflexividade não envolve toda atividade humana, ela envolve aquelas possibilidades de
incorporar ou não os novos conhecimentos e informações analisados internamente pelo
indivíduo, sendo que, se incorporados, certamente provocarão a reconstrução ou a
reordenação das rotinas que, anteriormente, nas sociedades tradicionais, eram determinadas
pelas tradições.
A reflexividade da modernidade deve ser distinguida do monitoramento reflexivo
da ação intrínseco a toda atividade humana. Ela se refere à suscetibilidade da
maioria dos aspectos da atividade social, e das relações materiais com a natureza,
à revisão intensa à luz de novo conhecimento ou informação. Tal informação ou
conhecimento não é circunstancial, mas constitutivo das instituições modernas
(GIDDENS, 2002, p. 26).
As sociedades tradicionais sofrem alterações advindas do projeto moderno a partir
do século XVII, mas o impacto da modernidade atinge o mundo todo em meados do século
XX e chega ao seu ápice na atualidade, alterando radicalmente a natureza da vida social ao
afetar aspectos mais pessoais da existência humana. Porém, as transformações provocadas
pela modernidade, em decorrência do dinamismo das instituições entrelaçado com a vida
individual e com o eu, que advém da própria característica da modernidade, ou seja, da
interconexão entre as “influências globalizantes de um lado e disposições pessoais de
outro” (Idem, p. 9), propiciam um questionamento da situação atual, mas não criam uma
40
ordem social pós-moderna. O que se vive hoje, segundo Giddens (2002), é o período de
radicalização e globalização dos traços básicos da modernidade, os quais são comandados
pela reflexividade institucional, conforme discutido no item anterior.
As transformações advindas do projeto moderno ganham um dinamismo tamanho
que chegam, nas últimas cinco décadas, a dar a impressão de que não se tem mais controle
sobre a própria vida. Isso é conseqüência do rompimento com hábitos e costumes
tradicionais que forneciam uma identidade baseada na segurança ontológica
3
e por conta de
que tais transformações ainda não fornecem uma estratégia, distinta da anterior, que seja
capaz de propiciar resultado semelhante.
A modernidade, pode-se dizer, rompe o referencial protetor da pequena
comunidade e da tradição, substituindo-as por organizações muito maiores e
impessoais. O indivíduo se sente privado e num mundo em que lhe falta o
apoio psicológico e o sentido de segurança oferecidos em ambientes mais
tradicionais (GIDDENS, 2002, p. 38).
Sem poder contar com a tradição, a auto-identidade passa a ser construída a partir da
referencialidade interna: “circunstância pela qual, relações sociais ou aspectos do mundo
natural são organizados reflexivamente em termos de critérios internos” (Idem), portanto,
sem a referencialidade externa de épocas anteriores caracterizadas pelas transições
ritualizadas, que muito raramente se modificavam de uma geração para outra, tais como os
ritos que marcavam o nascimento, a passagem para a vida adulta, o casamento e a morte.
Ritos de passagem põem as pessoas envolvidas em contato com forças cósmicas
mais amplas, que relacionam a vida individual a questões existenciais mais
abrangentes. O ritual tradicional, assim como a crença religiosa, ligava a ação
individual a quadros morais e a questões fundamentais para a existência. A perda
do ritual é também a perda do envolvimento com tais referenciais, por mais que
tenham sido experienciados de modo ambíguo e por mais que se vinculem ao
discurso religioso tradicional (Idem, p. 188 e 189).
A vida desprendida das tradições e, portanto regida pela reflexividade, já resultou na
desintegração de vários referenciais que determinavam as regras do socialismo, do
conservadorismo e dos paradoxos do neoliberalismo, e já resultou também na desintegração
de valores éticos e morais tradicionais que permitiam a organização da memória coletiva. É
a memória coletiva que estrutura um sentido de continuidade interna ou externamente
projetada para formar as identidades. A desintegração desses referenciais desliga o
3
“Segurança ontológica: sentido de continuidade e ordem nos eventos, inclusive daqueles que não estão
dentro do ambiente perceptual imediato do indivíduo” (GIDDENS, 2002, p. 223).
41
indivíduo dos movimentos sociais e o obriga a equacionar internamente a própria
integridade. Integridade pessoal entendida como a realização de um eu autêntico que nasce
“da integração das experiências da vida com a narrativa do autodesenvolvimento” (Idem, p.
78).
O autodesenvolvimento que o projeto moderno possibilitou determina, na
modernidade tardia, a qualidade da narrativa da auto-identidade
4
, que é constituída
psicologicamente desde a infância, no ambiente familiar, através da confiança básica
5
,
passando depois, na vida social adulta, a depender da confiança
6
nas pessoas e nos sistemas
abstratos
7
, nos quais os leigos e os especialistas se amparam para tomar decisões
importantes sobre suas vidas amparados apenas pela confiança, já que não é possível a cada
um adquirir conhecimentos especializados sobre todas as áreas que integram o campo de
ação individual.
Havia especialistas nas sociedades pré-modernas, mas poucos sistemas técnicos,
particularmente nas sociedades menores; daí que era muitas vezes possível para
os membros individuais dessas sociedades levar sua vida, se assim o quisessem,
quase que exclusivamente em termos de seu próprio conhecimento local, ou do
seu grupo imediato de parentesco. Tal desengajamento não é possível nos tempos
modernos. Em certos aspectos, isso é verdade [...] para todos na face da Terra,
mas especialmente para aqueles que vivem nas áreas geográficas centrais da
modernidade (Idem p. 34).
Como exemplo dessa situação nas áreas geográficas centrais da modernidade,
Giddens (2002), menciona a impossibilidade de alguém, na atualidade, viver independente
do sistema bancário, mas esse exemplo pode se estender também para os sistemas de
seguro, de saúde, de habitação, de transporte e de todos os demais que vão tornando a vida
moderna cada vez mais dependente deles, mesmo que não se possua conhecimento técnico
de todo seu funcionamento.
Na relação da vida íntima com as instituições modernas e sistemas especializados
8
,
o indivíduo constrói sua própria maneira de agir em cada setor do estilo de vida
9
, e a ação
4
“Auto-identidade: o eu entendido reflexivamente pelo indivíduo em termos de sua biografia” (GIDDENS,
2002, p. 221).
5
“Confiança básica: confiança na continuidade dos outros e do mundo-objeto, derivada de experiências na
primeira infância” (Idem).
6
“Confiança: a crença em pessoas ou sistemas abstratos, conferida com base em um ‘ato de fé’ que põe entre
parênteses a ignorância ou a falta de informação” (Idem).
7
“Sistemas abstratos: fichas simbólicas e sistemas especializados tomados em geral” (Idem, p. 223).
8
“Sistemas especializados: sistemas de conhecimento especializado, de qualquer tipo, dependentes de regras
de procedimento transferíveis de indivíduo a indivíduo” (Idem).
42
individual adotada em cada um desses setores expõe a pessoa do jeito que ela é em um
determinado momento, em uma determinada “fatia” espaço-temporal do mundo
parcializado que se distancia rapidamente de condutas preestabelecidas em épocas
anteriores. Nesse mundo, como se mencionou acima, é necessário escolher continuamente
para compor as narrativas da identidade, as quais podem se apresentar na forma escrita,
falada ou apenas através do comportamento adotado, sempre tendo em mente que qualquer
narrativa pode ser revista e modificada no decorrer da vida em conseqüência das
influências locais e globais provocadas, principalmente, pela invasão das mídias impressa e
eletrônica nos ambientes íntimos, promovendo intervenções recíprocas tanto nas
localidades próximas como naquelas mais distantes do planeta.
Não quero negar a existência de muitos tipos de conexões intermediárias por
exemplo entre localidades e organizações estatais. Mas o nível do distanciamento
tempo-espaço introduzido pela alta modernidade é tão amplo que, pela primeira
vez na história humana, “eu” e sociedade” estão inter-relacionados num meio
global (Idem, p. 36).
E é nesse meio global que as mídias influenciam na elaboração das narrativas
expressas em cada “fatia” de tempo vivido, permitindo ao indivíduo receber as informações
de modo passivo ou crítico, além de permitir a busca por esforço próprio. Isso porque o eu
reage ao ambiente onde vive.
O eu não é uma entidade passiva, determinada por influências externas; ao forjar
suas auto-identidades, independente de quão locais sejam os contextos
específicos da ação, os indivíduos contribuem para (e promovem diretamente) as
influências sociais que são globais em suas conseqüências e implicações (Idem,
p. 9).
Porém isso não foi sempre assim. Embora as pessoas que viviam nas sociedades
pré-modernas fossem indivíduos, afirma Hall (1982), elas não experienciavam suas
individualidades, pois as estruturas estáveis da época impediam tal possibilidade.
Isso não significa que as pessoas, em tempos pré-modernos, não fossem
indivíduos, mas que a individualidade era “vivida”, assim como “experienciada
e “conceitualizada” diferentemente. [...] A posição, a hierarquia, o status de
alguém na “grande cadeia do ser” a ordem secular e divina das coisas –
encobria qualquer noção do que fosse um indivíduo soberano (HALL, 1982, p.
23).
Sendo assim, a possibilidade de constituição da identidade autônoma aparece no
ambiente da modernidade propiciada por movimentos como a Reforma e o Protestantismo,
9
“Setor do estilo de vida: uma ‘fatia’ espaço-temporal do conjunto de atividades de um indivíduo, dentro da
qual é seguido um conjunto razoavelmente consistente de práticas sociais” (Idem).
43
o Humanismo Renascentista e o Iluminismo que, aliados à nova forma de produção e
consumo e o surgimento da esfera da intimidade, quebram as estruturas estáveis das coisas
e fazem nascer o “indivíduo soberano” capaz de criar projetos individuais caracterizados
pela identidade particular, pela individualidade, que permite um crescente
autoconhecimento e autodesenvolvimento.
A idéia de que cada pessoa tem um caráter único e potencialidades sociais que
podem ou não se realizar é alheia à cultura pré-moderna. Na Europa medieval, a
linhagem, o gênero, o status social e outros atributos relevantes da identidade
eram relativamente fixos. Eram necessárias transições entre os vários estágios da
vida, mas elas eram governadas por processos institucionalizados e o papel do
indivíduo neles era relativamente passivo. [...] com o surgimento das
sociedades modernas e, mais particularmente, com a diferenciação da divisão do
trabalho, foi que o indivíduo separado se tornou um ponto de atenção (Idem, p
74).
Palangana (2002) reforça esse pensamento ao afirmar que o homem que vive
enredado na estrutura hierárquica do feudo, onde o seu ser se funde com a propriedade e
com a comunidade, não percebe a distinção entre o privado e o eu. Ele goza de direitos
impessoais na vida prática e se encontra consigo mesmo apenas na esfera religiosa, na sua
relação íntima com Deus. Assim, na vida prática, o privado e o eu não se distinguem.
Formam, isto sim, um único corpo, composto pela família, pela fé, pelas crenças,
por todos os que se encontram sob a tutela de um senhor. Trata-se de um domínio
organizado por ‘afinidades naturais’, ou melhor, por laços e princípios, afetos à
ordem feudal, que primam pela mesmice. O direito a circunstâncias pessoais,
auto-expressão, felicidade, fraternidade, como se diz hoje, à integridade psíquica,
pertence, naturalmente ao homem. São direitos impessoais, não-individuais, que
têm pouco ou nenhum sentido como fins em si mesmos. O âmbito do privado
compreende a liberdade interior apregoada pelo catolicismo (PALANGANA,
2002, p. 18 e 19).
No que se refere à liberdade interior apregoada pelo catolicismo, Leis & Costa
(1998) complementam esses dizeres ao afirmarem que essa religião colabora em criar a
noção de individualidade a partir do conceito de pessoa existente no sistema legal dos
antigos romanos.
Como se sabe, a palavra latina persona deriva de per/sonare, aludindo à máscara
através da qual o ator fazia sentir (soar) sua voz. No direito romano, a “máscara”
acabou transformando-se num nome para o indivíduo cuja família e status social
eram oficialmente reconhecidos. Mas nem todos eram pessoas: Servus non habet
personam. Os escravos não tinham nome próprio nem personalidade (LEIS &
COSTA, 1998).
44
Esse conceito legal de persona, afirmam esses autores, quando foi apropriado pelos
filósofos estóicos e cristãos, cresceu em termos morais até adquirir a idéia de pessoa como
uma entidade possuidora de alma. Um exemplo disso está na obra de Agostinho (354-430).
Agostinho identifica a pessoa como eu, introduzindo uma novidade
revolucionária na filosofia ocidental. [...] Deste modo, Agostinho descobriu o
conhecimento de si, a autoconsciência em toda a sua radicalidade. Esta concepção
agostiniana do conceito de pessoa seguirá pela estrada que conduzirá à
subjetividade moderna (TEIXEIRA, 2007, p. 3).
A partir dessa concepção, argumentam Leis & Costa (1998), “assumir que a
consciência nos pertence, que está dentro de cada um de nós, não é um dado natural. No
melhor sentido da palavra é uma invenção intelectual, talvez a mais cara ao projeto da
modernidade” (Idem).
Tanto que, a partir da modernidade, afirma Chauí (2003), o elemento comum a
todos os filósofos é tomar o entendimento humano como objeto de investigação, e fazem
isso ao desenvolverem a teoria do conhecimento como reflexão filosófica, a qual parte do
pressuposto de que o ser humano é racional e consciente.
Tornar o entendimento objeto para si próprio, tornar o sujeito do conhecimento
objeto de conhecimento para si mesmo é a grande tarefa que a modernidade
filosófica inaugura ao desenvolver a teoria do conhecimento. Como se trata da
volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer-se, ou do sujeito do
conhecimento colocando-se como objeto para si mesmo, a teoria do
conhecimento é a reflexão filosófica (CHAUÍ, 2003, p. 130 - grifos da autora).
A consciência, nessa perspectiva, é a “capacidade humana para conhecer, para saber
que conhece e para saber que sabe que conhece. A consciência é um conhecimento (das
coisas e de si) e um conhecimento desse conhecimento (reflexão)” (Idem).
Nessa concepção, a consciência é o sujeito do conhecimento.
Este se reconhece como diferente dos objetos, cria e/ou descobre significações,
institui sentidos, elabora conceitos, idéias, juízos e teorias. Por ser dotado de
reflexão, isto é, da capacidade de conhecer-se a si mesmo no ato do
conhecimento, o sujeito é um saber de si e um saber sobre o mundo,
manifestando-se como sujeito percebedor, imaginante, memorioso, falante e
pensante (Idem).
É o entendimento propiciado pela estrutura racional comum a todos os seres
humanos, mas não isso, a consciência de si reflexiva ou o sujeito do conhecimento se
forma das capacidades de análise e descrição da realidade, além de envolver também as
outras três esferas da vida consciente, que são denominadas de vida psíquica, moral e
política. “Além da sua dimensão epistemológica (sujeito do conhecimento ou
45
entendimento) e de sua dimensão psicológica (o eu das vivências individuais), a
consciência possui também uma dimensão ética” (Idem, p. 131 – grifo da autora).
A vida psíquica envolve a consciência como sentimento de identidade formado a
partir das vivências, da forma como cada um interpreta os acontecimentos à sua volta. Da
percepção de que se vive um determinado tempo e espaço na história da humanidade, no
qual o tempo individual é composto por um passado retido na memória, um presente
percebido pela atenção e um futuro imaginado e pensado.
Do ponto de vista psicológico, a consciência é o sentimento de nossa própria
identidade: é o eu. O eu é o centro ou a unidade de todos os nossos estados
psíquicos e corporais, ou aquela percepção que permite a alguém dizer “meu
corpo”, “minha razão”, minhas lembranças”. A consciência psicológica é
formada por nossas vivencias, isto é, pela maneira como sentimos e
compreendemos o que se passa em nosso corpo e no mundo que nos rodeia,
assim como o que se passa em nosso interior. É a maneira individual e própria
com que cada um de nós percebe, imagina, lembra, opina, deseja, age, ama e
odeia, sente prazer e dor, toma posição diante das coisas e dos outros, decide, age,
sente-se feliz ou infeliz. O eu é a consciência de si como ponto de identidade e de
permanência de um fluxo temporal interior que retém o passado na memória.
Percebe o presente pela atenção e espera o futuro pela imaginação e pelo
pensamento (Idem, p. 130).
A vida moral envolve a consciência de que a pessoa é dotada de vontade livre e de
responsabilidades. É a capacidade de agir dentro das normas estabelecidas na sociedade em
que se vive de acordo com a cultura que a comanda. É saber se relacionar com as pessoas
na família, nas amizades, no trabalho, na comunidade religiosa, na organização empresarial,
enfim, em todas as relações que envolvem a vida privada. A consciência moral é a pessoa.
Do ponto de vista ético e moral, a consciência é a capacidade livre e racional para
escolher, deliberar e agir conforme valores, normas e regras que dizem respeito
ao bem e ao mal, ao justo e ao injusto, à virtude e ao vício. É a pessoa, dotada de
vontade livre e de responsabilidade. É a capacidade de alguém para compreender
e interpretar sua própria situação e condição (física, mental, social, cultural,
histórica), viver na companhia de outros segundo as normas e os valores morais
definidos por sua sociedade, agir tendo em vista fins escolhidos por deliberação e
decisão próprias, comportar-se segundo o que julgar o melhor para si e para os
outros e, quando necessário, contrapor-se e opor-se aos valores estabelecidos, em
nome de outros considerados mais adequados à liberdade e à responsabilidade. É
a consciência de si como exercício racional e afetivo da liberdade e da
responsabilidade, em vista da vida feliz e justa (Idem, p. 131 - grifo da autora).
A vida política envolve a consciência das relações na esfera pública, das relações
sociais regidas pelas leis que determinam os direitos e deveres daqueles que convivem
socialmente. Daqueles que estão inseridos na teia das relações sociais. A consciência
política é o cidadão.
46
Do ponto de vista político, a consciência é o cidadão, isto é, o indivíduo situado
no tecido das relações sociais como portador de direitos e deveres definidos na
esfera pública, relacionando-se com o poder político e as leis; bem como o
indivíduo na condição de membro de uma classe social, definido por sua situação
e posição nessa classe, portador e defensor de interesses específicos de seu grupo
ou de sua classe, relacionando-se com a esfera pública do poder e das leis. Em
outras palavras, o cidadão é a consciência de si definida pela esfera pública dos
direitos e deveres civis e sociais, das leis e do poder político (Idem - grifo da
autora).
Desse modo, o sujeito do conhecimento, o eu psíquico, a pessoa e o cidadão
constituem a consciência como subjetividade. Sujeito, eu, pessoa e cidadão constituem a
consciência como subjetividade ativa, sede da razão e do pensamento, capaz de identidade
consigo mesma, de conhecimento verdadeiro, de decisões livres, de direitos e obrigações”
(Idem - grifos da autora).
Portanto, a consciência de si reflexiva coincide com a “consciência ativa e
reflexiva” definida como “aquela que reconhece a diferença entre o interior e o exterior,
entre si e os outros, entre si e as coisas. Esse grau de consciência é o que permite a
existência da consciência em suas quatro modalidades, isto é, eu, pessoa, cidadão e sujeito”
(Idem, 132).
Assim, se a consciência foi uma invenção intelectual ou não, é fato que ela se tornou
objeto de investigação filosófica e colaborou no entendimento das dimensões das atividades
humanas que se tornaram cada vez mais complexas no desenvolvimento da sociedade
moderna, a qual gera um novo povo, uma nova cultura, principalmente depois que a
burguesia, contando com apoio popular, consegue superar a ordem feudal e o poder da
Igreja e a implantar o sistema capitalista, pois Palangana (2002) afirma que, depois de
pouco tempo da implantação do novo sistema de produção e consumo as “gerações
nascentes parecem ser um novo povo, uma nova cultura” (PALANGANA, 2002, p. 24).
O novo ambiente formado sob o comando dos interesses capitalistas apresenta ao
indivíduo “o projeto de uma individualidade elevada para si” (Idem p. 20). Uma nova
forma de constituição da identidade. Nesse processo de transformações provocadas pelos
movimentos da Reforma e do Protestantismo, do Renascimento e do Iluminismo, aliadas às
transformações na área de produção e consumo e a criação da esfera íntima, o Homem
torna a consciência livre das instituições religiosas da Igreja e a expõe diretamente aos
olhos de Deus; é dotado de faculdades e capacidades de questionar, investigar e desvendar
os mistérios da natureza, de se reconhecer como ser autônomo, auto-suficiente e universal;
47
começa a se mover pela crença de que, por intermédio da razão, pode atuar sobre a natureza
e a sociedade para atingir sua pefectibilidade. “A perfectibilidade consiste em liberar-se dos
preconceitos religiosos, sociais e morais, em liberar-se da superstição e do medo graças ao
avanço das ciências, das artes e da moral” (CHAUÍ, 2003, p. 49). Além de se guiar também
pela idéia de que o aperfeiçoamento da razão se realiza pelo progresso das civilizações, que
vão das mais atrasadas às mais adiantadas e perfeitas. Sendo que, para os europeus daquela
época, as mais atrasadas seriam as civilizações “primitivas” ou “selvagens” e as mais
adiantadas e perfeitas, as da Europa Ocidental. Tudo isso reforçado pela difusão da idéia de
que,
[...] diferença entre natureza e civilização, isto é, a natureza é o reino das
relações necessárias de causa e efeito ou das leis naturais universais e imutáveis,
enquanto que a civilização é o reino da liberdade e da finalidade proposta pela
vontade livre dos próprios homens, em seu aperfeiçoamento moral, técnico e
político. A natureza é o reino da necessidade (isto é, das coisas e acontecimentos
que não podem ser diferentes do que são); a civilização é o reino da liberdade
(isto é, onde os fatos e acontecimentos podem ser diferentes do que são porque a
vontade humana pode escolher entre alternativas contrárias possíveis) (Idem).
Segundo Palangana (2002), é no interior da sociedade que assim pensa que o
homem a possibilidade de sua realização não mais como representação, como acontecia
na esfera religiosa, mas como fato, na vida prática de cada um.
Esse ambiente favorece a construção da individualidade, pois a individuação exige
dois pré-requisitos: a vida em sociedade; e a produção baseada no valor de troca.
A individuação só se verifica em sociedade. Este é o primeiro pré-requisito; o
segundo, é a produção baseada no valor de troca, que favorece a elaboração da
consciência de si e a multilateralidade de relações e capacidades humanas. O
indivíduo burguês e a consciência dos poderes da razão sobrevêm,
concomitantemente, no processo de dominação da natureza e do homem. Ele é
produto “... por um lado, da dissolução das formas da sociedade feudal, por outro,
das novas forças produtivas desenvolvidas a partir do século XVI”.
(PALANGANA, 2002, p. 20).
Assim, nas últimas décadas do século XVIII, a sociedade burguesa alcança sua
maturidade e o valor de troca passa a constituir a base de toda a produção. Porém, para que
o novo sistema se consolidasse, foi necessário extinguir algumas leis e criar outras. Nesse
processo, a principal lei extinta foi a de descendência, fundada no direito de primogenitura,
uma das leis que formava a base da ordem feudal. Essa lei garantia, até então, as
propriedades nas mãos da aristocracia; a substituição dessa lei pela lei de partilha igual, aos
48
poucos, foi dividindo e dispersando a propriedade e o poder que comandavam o Antigo
Regime.
Enquanto vigoravam os direitos de primogenitura, em que a propriedade passava de
uma geração a outra sem, na maioria das vezes, sofrer alterações, as propriedades e as
famílias constituíam uma identidade única. Com a desestruturação da grande família
organizada dos moldes feudais, emerge a família burguesa, reduzida a pais e filhos. Desse
modo, a riqueza que antes era herdada como uma prerrogativa do nascimento, passa a
resultar do trabalho de cada um. A partir de então, cada um passa tirar de si mesmo a força
para construir sua riqueza. “O princípio da sociedade emergente é o livre desenvolvimento
das forças e capacidades individuais” (Idem, p. 21).
Em conseqüência da extinção da lei de primogenitura e da criação da lei de partilha
igual, as comunidades que abrigavam os indivíduos e davam a eles o sentimento de
pertencimento são esfaceladas. Fora dessas comunidades os homens voltam para dentro de
si próprios. “Quando isso ocorre, participa Hegel, o objeto de reflexão da consciência passa
a ser a vida, a existência. É com base em opiniões suas e não em prescrições divinas
que os homens buscam o autoconhecimento e o conhecimento da natureza” (Idem).
A substituição de tal lei muda também o relacionamento entre irmãos e entre pais e
filhos. Entre irmãos porque livra os mais novos da dependência do mais velho e entre pais e
filhos porque possibilita aos filhos serem tão ou mais ricos que os pais. Em A Democracia
na América, Tocqueville (1969) explica que o fator de maior peso nesse processo de
transformação foi a subdivisão dos bens. É com base nesses dizeres que Palangana (2002)
escreve.
Os filhos, tendo os mesmos direitos, podem individualmente adquirir
propriedade, construir fortuna equivalente ou até superior à do pai, o que lhes
confere liberdade para dirigirem-se a este em linguagem coloquial. Ao invés da
autoridade paterna, austera e convencional, cresce uma espécie de igualdade entre
os indivíduos que se firma desde as relações familiares. Se, com isso, de um lado,
a aristocracia agonizante perde ainda mais espaço, de outro, ganha a
individualidade. E ganha duas vezes: primeiro, na relação entre pais e filhos;
segundo, na relação entre filhos (Idem, p. 22).
Assim, na transição do Antigo Regime para a sociedade capitalista, a
individualidade vai se conformando enquanto a aristocracia vai perdendo espaço, enquanto
as novas condições de existência vão levando os homens a se desprenderem gradativamente
49
da religião e dos conceitos metafísicos para se empenharem cada vez mais em atividades
científicas que os levam a refletir e planejar suas vidas.
Nesse exercício, a ciência se torna objeto da consciência, ocasionando mudanças na
maneira de encarar o futuro. Antes a inspiração vinha do passado para elaborar o presente,
agora os olhos encontram-se inteiramente voltados para o futuro devido à possibilidade de
serem elaborados projetos individuais e vislumbrados meios para realizá-los.
Ao analisar esse momento, Tocqueville (1969) afirma se tratar de um estado
extremamente propício às realizações criadoras, pois a liberdade civil força as faculdades
humanas a um exercício nobre. Sobre isso Palangana (2002) escreve.
Consciente de si, de suas capacidades, o homem burguês tem no horizonte a
perfectibilidade do gênero humano como fonte de inspiração. Os possíveis
complicadores parecem advir unicamente da vontade, do interesse, da força de
trabalho e das habilidades mentais de cada um. Esse é um período no qual a
individualidade aflora, dando mostras de que pode realizar-se. O indivíduo toma
consciência de sua individualidade, descobre a si mesmo, e experiencia o preço
dessa emancipação: se o sucesso é seu, o fracasso também o é. O indivíduo é
fraco, porque isolado, e forte, porque ciente de si (PALANGANA, 2002, p. 24).
A partir dessa mudança de comportamento, o indivíduo passa a acreditar que o
futuro não consiste em esperar acontecimentos determinados. O futuro ou “futuros”
possíveis, afirma Giddens (2002), passam a ser organizados reflexivamente, enquanto vai
diminuindo a noção de destino como o curso de eventos predeterminados. Ou seja, começa-
se fazer a colonização do futuro: “criação de territórios de possibilidades futuras,
reivindicada por inferência contrafactual” (GIDDENS, 2002, p. 221).
Ainda no que se refere à individualidade, Codo (2002), assim como Palangana
(2002), afirma que o homem começa a formar sua identidade individualmente depois da
mudança no sistema de produção imposta pelo capitalismo. Esse autor também defende a
idéia de que o modo como as identidades se formam está ancorado no modo como a
sociedade realiza suas trocas e, como na sociedade burguesa a equivalência de troca está
ancorada no dinheiro que permite a troca de tudo por tudo e de todos com todos, o trabalho
também é trocado por dinheiro e transformado em mercadoria na medida em que o
trabalhador vende sua mão-de-obra individual para garantir o seu próprio sustento e o de
sua família. Nesse sistema de troca, cada um passa a ser valorizado individualmente pela
sua capacidade de produção, pelo valor de seu trabalho. Esse cidadão livre não se confunde
e não se espelha em nenhum outro especificamente; ele pode trocar e se reconhecer em
50
tudo e em todos, já que nesse ambiente, além de adquirir um valor individual, esse
indivíduo pode também fazer escolhas.
Isso porque a identidade, para Codo (2002), se explica pela economia. Na medida
em que os horizontes de troca se ampliam, ampliam-se também as formas de
reconhecimento de si mesmo.
Codo (2002) afirma ainda que a individualidade é uma das três formas possíveis da
construção da identidade, as outras duas formas são o espelhamento e o pertencimento.
Essas três formas de construção da identidade correspondem a três momentos de
desenvolvimento das relações de produção: o tribal, o escravismo e o capitalismo. Nas
relações tribais a identidade se constrói pelo espelhamento, nas relações escravistas a
identidade se constrói pelo pertencimento e nas relações capitalistas a identidade se constrói
na individualidade.
Nesse sentido, quando o indivíduo se relaciona somente com os integrantes de um
grupo no qual a sobrevivência depende de regras de solidariedade mútua, a identidade se
forma por espelhamento. Quando o indivíduo vive numa sociedade hierárquica de grupos
em que necessitam realizar trocas para sobreviver, como no sistema feudal, a identidade se
forma pelo pertencimento a uma família, a um feudo ou a um reino. Quando o indivíduo
necessita se relacionar com toda a sociedade e com seus integrantes competir para
sobreviver, se caracteriza a individualidade moderna, a qual forma as identidades no
relacionamento de cada um com tudo e com todos.
Para complementar esse pensamento, Codo (2002) afirma que a complexidade da
modernidade não elimina as formas anteriores de construção de identidades. As formações
por espelhamento e por pertencimento não desaparecem da sociedade para dar lugar à
formação caracterizada pela individualidade. Essas três possibilidades convivem e se
complementam para formar identidades maduras e sadias.
A partir dessas afirmações, esse autor explica que na atualidade a identidade por
espelhamento encontra ambiente favorável nas famílias, pois nestas as crianças têm um
relacionamento de trocas imediatas. A identidade por pertencimento acontece nos mais
variados grupos formados por torcedores de um mesmo time, nos grupos de culturas
específicas, nas rias “tribos” que dividem os jovens da atualidade e anos grupos de
adultos quando estes formam círculos de amigos para compor a convivência para o lazer.
51
Ou seja, a identidade por pertencimento ainda se torna possível nos grupos formados por
indivíduos com interesses em comum, por indivíduos que querem se diferenciar dos demais
por qualquer motivo, ou por aqueles que procuram a convivência por afinidades. Já a
identidade caracterizada pela individualidade é formada no relacionamento aberto com a
diversidade de pessoas que compõem a sociedade em seus mais variados ambientes.
O que ocorre se parece mais com a metáfora arqueológica desenvolvida por
Foucault na Arqueologia do Saber, cada modo que a história encontra vai se
acumulando sobre o modo precedente, e opera conjuntamente sobre os outros.
Para falar outra vez com Marx, o novo modo de produção se constrói sobre o
velho, não o elimina, encontrar-se-á sempre a sociedade velha operando dentro do
útero da sociedade nova (CODO, 2002, p.303).
Assim, na modernidade, as identidades se formam no entrelaçamento dessas três
dimensões citadas acima. É o conjunto delas que forma a identidade individual particular
porque a individuação moderna ocorre na práxis social, na história da vida prática do
homem, “na singularização de alguém primordialmente social, porque produto do trabalho
coletivo” (PALANGANA, 2002, p. 7). Portanto, no processo de vida real, no seio das
relações sociais, em cada setor do estilo de vida, as três dimensões que constituem as
identidades podem ser encontradas conjugadas.
Essas dimensões identitárias contribuem para a construção da identidade de um eu
idealizado, pois, como explica Giddens (2002), o ambiente da alta modernidade permite
que cada um escolha como quer ser, inclusive permitindo a adoção de uma postura
corporal
10
coerente com o estilo adotado. Assim, pode-se entender que a identidade se
forma a partir do modo como o eu interpreta suas vivências em cada “fatia” de espaço
temporal e do modo como ele consegue filtrar as experiências vividas.
Para formar os contornos desse eu idealizado, cada um deve aprender a ordenar
reflexivamente as narrativas internas e a conhecer seus limites. Só assim se consegue
construir uma identidade autônoma e saudável. Nesse sentido, assegura Giddens (2002),
quanto mais precocemente o indivíduo conseguir ter autonomia sobre a sua vida, mais
precocemente desenvolverá seu sentido de auto-estima aceitando suas imperfeições e suas
limitações, pois se não se obtiver autonomia sobre sua vida o indivíduo se apresenta apático
e frustrado.
10
“Postura corporal: a conduta estilizada do indivíduo nos contextos da vida cotidiana, envolvendo o uso da
aparência para criar impressões específicas do eu” (Idem, p. 222).
52
O eu ideal é parte chave da auto-identidade, porque forma um canal de aspirações
positivas em termos das quais a narrativa da auto-identidade é produzida. Em
muitos casos, a onipotência precoce se transforma num sentido confiável de auto-
estima, pela aceitação das imperfeições e limitações do eu. Uma “diminuição
gradual do domínio e poder da fantasia grandiosa”, como diz Kohut, “é em geral
uma precondição da saúde mental no setor narcisista da personalidade”
(GIDDENS, 2002, p. 68).
Porém, a tarefa da construção de um eu ideal ainda não é capacidade de todos os
indivíduos da alta modernidade. A constatação disso tem preocupado os analistas atuais e
vem obrigando-os a repensarem as formas de abordagem dos problemas sociais, visando
evitar o desenvolvimento de vários tipos de paranóias, algumas já perceptíveis em muitos
indivíduos quando estes não conseguem construir, nas palavras de Giddens (2002), um
casulo protetor
11
que filtre os perigos reais dos perigos prováveis que rondam
constantemente seu ambiente íntimo. Para prevenir tais problemas, conta-se hoje com
estudos acadêmicos, obras terapêuticas e todo tipo de manuais ou guias de auto-ajuda, os
quais podem capacitar esses indivíduos a construir suas narrativas a partir da autoterapia.
Mas antes da autoterapia, o autor acima citado recomenda que se faça uma terapia com um
analista ou com um psicólogo para que se aprenda o processo; depois desse aprendizado o
indivíduo estará apto a analisar-se.
O objetivo da autoterapia é levar o indivíduo ao processo de interpretação dos
problemas de sua vida, é propiciar ao indivíduo a autotransformação para a auto-realização,
que a terapia “é uma experiência que envolve o indivíduo na reflexão sistemática sobre o
curso do desenvolvimento de sua vida” (Idem, p. 70). Com base na obra Autoterapia de
Janette Rainwater (1989), Giddens (2002) afirma.
A autoterapia se funda antes e acima de tudo na auto-observação contínua. Cada
momento da vida, destaca a autora, é um “novo momento”, em que o indivíduo
pode perguntar “o que eu quero para mim mesmo?”. Viver cada momento
reflexivamente é uma questão de identificar a consciência dos pensamentos,
sentimentos e sensações corporais. A consciência cria a mudança potencial, e
pode de fato induzir a mudança por si mesma (Idem, p. 71).
Nesse sentido, a consciência presente na auto-observação é condição principal para
se planejar o futuro com certa eficácia, mesmo porque, como se disse acima,
acontecimentos aleatórios nas vidas dos indivíduos podem exigir mudanças nos objetivos a
11
“Casulo protetor: a proteção defensiva que filtra os perigos potenciais representados pelo mundo exterior e
que se funda psicologicamente na confiança básica” (GIDDENS, 2002, p. 221).
53
serem alcançados e, para manter-se coerente com as narrativas do eu, Giddens (2002)
sugere a manutenção de um diário.
A autoterapia significa viver cada momento plenamente, mas ela enfaticamente
não significa sucumbir à sedução do presente. A pergunta “O que quero para mim
neste exato momento?” não é o mesmo que viver cada dia de uma vez. A “arte de
estar no presente” gera a autocompreensão necessária para planejar para frente e
para construir uma trajetória de vida de acordo com os desejos íntimos do
indivíduo. A terapia é um processo de crescimento, um processo que deve
abranger as principais transições pelas quais a vida deverá passar. Manter um
diário, e desenvolver uma autobiografia nocional ou real, são recomendados
como meios de pensar para a frente (Idem).
Pensar para frente a partir do desenvolvimento de uma autobiografia registrada em
um diário deve se ter como pressuposto que a pessoa seja honesta consigo mesma. O diário
deve ser escrito para que se registre experiências e erros observados, não para ser mostrado
a qualquer pessoa, que o registro deve ser coerente com a história de quem o escreve e
deve ter o intuito de mapear um processo contínuo de crescimento e não de exposição
narcisista.
Pois o desenvolvimento de um sentido coerente de nossa história de vida é um
meio fundamental de escapar à escravidão do passado e abrir-se para o futuro. O
autor da autobiografia é estimulado a voltar tanto quanto possível à primeira
infância e a projetar linhas de desenvolvimento potencial que abarquem o futuro.
[...] A pessoa anota um evento do passado na forma de um conto escrito no
presente, lembrando o que aconteceu e os sentimentos envolvidos de maneira tão
acurada quanto for capaz. Então a história é reescrita da maneira como o
indivíduo gostaria que ela tivesse acontecido, com novos diálogos, sentimentos e
resolução do episódio (GIDDENS, 2002, p. 71 e 72).
Desse modo, a pessoa capaz de fazer a autoterapia consegue dialogar com o tempo
passado para saber identificar como quer viver seu futuro. Essa pessoa não deve encarar a
vida como uma sucessão de fatos predeterminados, ela precisa estar no comando, pois se
não o fizer poderá se sentir tão frustrada que poderá, em decorrência da tensão que sofrer,
adquirir alguma doença física. Isso porque a auto-realização implica em controlar o tempo
pessoal. Esse controle é um modo de estar no comando do tempo disponível de vida e
condição essencial para vivê-la plenamente. É condição para não deixar que a vida futura
tenha a concepção de sina, mas de um ambiente de múltiplas possibilidades.
O tempo que “nos transporta” implica uma concepção de sina como a que se
encontra em muitas culturas tradicionais, onde as pessoas são prisioneiras dos
acontecimentos e situações pré-construídas ao invés de serem capazes de
submeter suas vidas aos impulsos de sua própria autocompreensão. Manter um
diálogo com o tempo significa identificar os eventos causadores de tensão
(eventos reais no passado e eventos passiveis de ser encontrados no futuro) e
compreender suas implicações (GIDDENS, 2002, p. 72).
54
Portanto, a autoterapia, complementa Giddens (2002), visa a construção do ser
moral autêntico, e o ser moral é autêntico porque sente que é “bom”, que é uma “pessoa
digna”. que, para ser autêntico, o indivíduo necessita adotar critérios internos baseados
em critérios morais universais, pois assim pode se tornar verdadeiro consigo mesmo e
libertar-se das dependências que impediam sua realização, favorecendo, inclusive,
relacionamentos íntimos com outras pessoas. “A realização é em parte um fenômeno moral,
porque significa estimular o sentido de que se é ‘bom’, uma ‘pessoa digna’: ‘eu sei que à
medida que elevo minha auto-estima, sinto mais integridade, honestidade, compaixão e
amor’” (Idem, p. 78).
Um ser moral e autêntico sabe que a vida na alta modernidade envolve ganhos e
perdas. Assim, a vida deve ser encarada como uma série de passagens, de transições que
marcam as superações das crises pessoais. Essas passagens ou transições envolvem, por
exemplo: a separação conjugal; o sair de casa; um novo emprego; o desemprego; construir
uma nova relação; deslocar-se entre áreas ou rotinas diferentes; enfrentar uma doença;
começar uma terapia. E, tudo isso, levando em conta os riscos que se corre, pois a situação
nova para a qual se passa pode ser pior do que aquela em que se vivia anteriormente. “Não
é em termos da falta de rituais que as passagens da vida diferem de processos
comparáveis em contextos tradicionais. Mais importante é que essas transições são trazidas
para a trajetória reflexivamente mobilizada da auto-realização, e superadas por meio dela”
(GIDDENS, 2002, p. 78).
Nesse sentido, o fio condutor na construção da auto-identidade deve ser a
manutenção da integridade na procura da realização de um eu autêntico que se forma da
integração das experiências da vida com a narrativa do autoconhecimento.
A integridade pessoal, como a realização de um eu autêntico, vem da integração
das experiências da vida com a narrativa do autoconhecimento a criação de um
sistema de crenças pessoal por meio do qual o indivíduo reconhece que “sua
primeira lealdade é devida a si mesmo”. Os pontos de referência centrais são
colocados “a partir de dentro”, em termos de como o indivíduo constrói/recontrói
a história de sua vida (GIDDENS, 2002, p. 78).
Entendido assim, na alta modernidade, o projeto reflexivo do eu é constituído pela
capacidade de o eu se construir integrando as narrativas da vida com as narrativas do
autodesenvolvimento, criando um sistema de crenças pessoal que tem como referências
centrais seus próprios termos de construção da história de vida. Nesse ambiente, cada um
55
não é o que é, mas o que faz de si mesmo. Isso não quer dizer que o eu é vazio de conteúdo,
“pois processos psicológicos de formação do eu e necessidades psicológicas, que
fornecem os parâmetros para a reorganização do eu” (GIDDENS, 2002, p. 74). Porém, “o
que o indivíduo se torna depende das tarefas de reconstrução nas quais se envolve” (Idem).
E isso, afirma este autor, é muito mais do que ‘conhecer-se a si mesmo’ melhor; o auto-
entendimento se subordina ao objetivo mais amplo e fundamental de construir/reconstruir
um sentido de identidade coerente e satisfatório” (Idem).
Essa capacidade, que depende da reflexividade individual, a qual é essencial nos
vários sentidos da ação humana, pode propiciar aos indivíduos uma análise da vida social e
possibilidades de atuação sobre ela. E, atuando recursivamente sobre a sociedade pode-se
gerar um sentido de continuidade dentro das comunidades, afirma Giddens (2002).
Se for assim, a reflexividade torna os indivíduos cada vez mais aptos a agir e
transformar a sociedade, pois quanto mais refletirem e agirem sobre ela, mais estarão
colaborando para a construção de suas próprias identidades e favorecendo que os outros
também pensem, reflitam, pois a reflexividade aprimora as escolhas pessoais, as quais
podem trazer maior realização, que ninguém melhor do que o próprio indivíduo pode
detectar suas carências relacionadas às necessidades básicas de casa, comida, vestuário,
entre outras, e desenvolver meios de superá-las, mesmo que para isso tenha que contar com
ajuda de psicólogos, manuais de auto-ajuda, com a colaboração de grupos de auto-ajuda, ou
apenas a participação em um grupo, no qual se sinta parte integrante porque nele é possível
atuar para melhorar a sociedade e a construção da identidade de seus integrantes.
Nesse sentido, Giddens (2002) afirma que, o projeto reflexivo do eu vai exercer o
papel fundamental na transição de uma ordem global para além da atual, pois esse projeto
pode ser, segundo esse autor, o próprio eixo de transição para uma ordem que traga a paz,
harmonia, auto-realização e, conseqüentemente, segurança e saúde mental. Para tanto, tal
projeto pode implantar parâmetros éticos e morais universais que limitem a ação do homem
sobre o planeta, sobre outro homem e sobre ele mesmo, a partir da reconstrução da política
emancipatória, pois as questões existenciais
12
e a política vida exigem limites nos domínios
da existência, da finitude, da vida individual e da auto-identidade.
12
“Questões existenciais: dúvidas sobre dimensões básicas da existência, tanto em relação à vida quanto ao
mundo material, a que todos os homens ‘respondem’ nos contextos de suas condutas cotidianas” (Idem, p.
223).
56
No domínio da existência, a arena moral envolve a sobrevivência do ser humano,
propõe que se busquem referenciais internos sobre a natureza para que se resolvam as
questões morais referentes às responsabilidades dos homens para com a natureza e para que
se definam os princípios que devem orientar a ética ambiental.
No domínio da finitude do homem, a arena moral envolve a transcendência do ser,
propõe reflexões sobre a reprodução humana e sobre os princípios éticos que devem
orientar a engenharia genética para que se determine o direito do não-nascido, do feto.
No domínio da vida individual e comunitária, a arena moral envolve a cooperação
entre os seres humanos e propõe reflexão sobre os sistemas globais para que se determinem
os limites que devem orientar as inovações científicas e tecnológicas e sobre os limites que
devem ser postos ao uso da violência nos assuntos humanos.
No domínio da auto-identidade, a arena moral envolve a pessoa, propõe reflexões
sobre o corpo e o eu, propõe que se estabeleçam os direitos que o indivíduo tem sobre o seu
corpo, que diferenças de gênero devem ser preservadas e que direitos têm os animais.
Como esses assuntos, que envolvem as questões existenciais e a política-vida, não
encontram precedentes na história da humanidade, um retorno às tradições não encontrará
as respostas devidas. Nesse sentido, as questões novas exigem que se criem novos
parâmetros, novos referenciais externos que sirvam de ponto de apoio para decisões que
vão determinar o rumo que tomará a humanidade após superar esse período de transição
pelo qual passa. A criação de novos referenciais externos deve orientar as pessoas e libertá-
las da contradição existencial que envolve “a relação contraditória dos homens com a
natureza, como criaturas finitas que são parte do mundo orgânico, e no entanto se opõem a
ele” (GIDDENS, 2002, p. 221).
Com tais referenciais externos, os indivíduos contarão com uma ajuda importante
para construir a trajetória do eu; “a formação de uma vida nas condições da modernidade,
por meio das quais o autodesenvolvimento, reflexivamente organizado, tende a tornar-se
internamente referido” (Idem, p. 221).
Para tanto, a política emancipatória vai colaborar em libertar o eu das amarras das
tradições que não mais se justificam, da opressão, da exploração e da desigualdade;
enquanto o projeto reflexivo do eu vai colaborar em estabelecer limites morais para que a
57
política-vida, entendida como “a política de realização do eu, no contexto da dialética do
local e do global e do surgimento dos sistemas internamente referidos da modernidade”
(Idem, p. 222), possa organizar suas reivindicações observando os novos parâmetros
impostos como referencialidade externa universal, pois na atualidade, a “capacidade de
adotar estilos de vida livremente escolhidos, benefício fundamental gerado por uma ordem
pós-tradicional, está em tensão não só com os obstáculos à emancipação mas também como
uma variedade de dilemas morais” (Idem , p. 212). Portanto, a exigir parâmetros que
possibilitem a construção da identidade baseada na segurança ontológica que está suspensa
pelo dinamismo da modernidade que causou a perda de várias tradições, mas que, com o
estabelecimento de novos referenciais externos universais, poderá fornecer uma estratégia,
distinta da anterior, com resultado semelhante. Ou seja, uma identidade mais segura e,
portanto, sadia.
Porém, lembra Giddens (2002), existe uma grande dificuldade em elaborar esses
referenciais de maneira que possam levar ao consenso generalizado, pois existe no mundo
muito desacordo sobre o que é considerado moral, principalmente entre os “verdadeiros
crentes” de diversas convicções. É por essa razão que a política emancipatória reconstruída
a partir do que cada política ainda alimenta sobre emancipação, orientada por um consenso
que advém da referencialidade interna de cada indivíduo, vai participar dessa transformação
tendo sempre como defesa os objetivos da política-vida. Ou seja, da política que visa a
realização do eu. Promessa do projeto iluminista que foi até agora impedida de ser
cumprida porque interessa ao capital manter o indivíduo sob seu comando, conforme
afirma Palangana (2002).
58
CAPÍTULO II
EDUCAÇÃO SÓCIO-COMINITÁRIA E EMANCIPAÇÃO
No capítulo anterior foram abordados a “política emancipatória” e o “projeto
reflexivo do eu”, sob a ótica de Giddens (2002). Depois de tais abordagens, pode-se dizer
que esse autor estabelece a necessidade de (um certo nível de) emancipação nos dois
principais sentidos assinalados por ele “emancipação da rigidez da tradição e das
condições da dominação hierárquica” (GIDDENS, 2002, p. 197), para a viabilização da
política vida, da política dos estilos de vida, que busca a realização de um eu autônomo.
Isso, nessa ótica, é necessário para que a sociedade, no momento danificada pela
perda de tradições que as sustentavam, possa conseguir a transição para uma sociedade
mais justa que traga paz, harmonia, segurança e saúde mental; ambiente necessário para a
construção de identidades sadias, que se tornará real a partir de consensos individuais
internamente referidos, que o dinamismo institucional e individual resultante da
globalização tem efeitos de dissociação, mas também de unificação ao proporcionar
reflexões sobre o mundo que em se vive e o mundo em que se quer viver.
A capacidade de reflexão favorece a percepção do esgotamento das ideologias
políticas e a necessidade de se reconstruir as políticas emancipatórias para que se viabilize a
política dos estilos de vida ao se estabelecer novos parâmetros éticos e morais para limitar a
ação humana que se encontra em um estágio de desenvolvimento único e, portanto, não
encontra referência em épocas anteriores para resolver problemas próprios dessa fase.
A partir disso, neste segundo capítulo aborda-se a educação sócio-comunitária sob a
interpretação de Martins (2007) e a emancipação humana muito buscada, porém sempre
relegada para segundo plano em virtude da adoção, consciente ou não, de uma atitude
colaboracionista em favor da ordem social imposta pelo sistema capitalista. Atitude que
causa, na atualidade, problemas existenciais porque os indivíduos se ocuparam por tanto
tempo com os interesses capitalistas que perderam a referência de si para formarem
identidades sadias.
Para tanto, primeiramente se expõem as transformações no mundo do trabalho que
se refletem em transformações nas relações sociais, com base nos escritos de Palangana
59
(2002), por se entender que esta autora colabora em alguns esclarecimentos fundamentais
para o desenvolvimento desta discussão; na seqüência, a educação sócio-comunitária sob a
interpretação de Martins (2007); para depois finalizar o capítulo com a explicitação da
necessidade dessa educação para a concretização do projeto reflexivo do eu e da
emancipação individual e coletiva proposta por Giddens (2002).
Antes, porém, de se passar para o primeiro item deste capítulo, é necessário
esclarecer que a educação sócio-comunitária é um fenômeno relativamente novo. Tanto que
ainda não lhe foi atribuído um conceito formal, apenas uma afirmação hipotética de que
“ela está em processo de construção” (MARTINS, 2007, p. 1). Mas que, pode receber um
conceito formal a partir de determinações que indiquem, no seu exercício, a superação da
“dicotomia estabelecida entre a ‘educação social’ e a ‘educação comunitária’, mediante a
práxis que seja capaz de articulá-las tendo em vista uma estratégia de transformação global
da vida social” (Idem).
A práxis mencionada na citação acima, esclarece (MARTINS, 2007, p. 2 nota de
rodapé), deve ser entendida como aquela apresentada por Vázquéz.
Considerando o seu uso variado nas diferentes línguas, [...] inclusive a sua clássica
noção aristotélica, que diferencia práxis, poésis e theoria, Vásquéz entende-a como
sendo toda “atividade material que transforma o mundo natural e social para fazer dele
um mundo humano”.
Porém, mesmo mediante tal práxis, um conceito formal de “educação sócio-
comunitária” pode demandar ainda algum tempo para se configurar porque se trata de um
fenômeno em curso provocado por transformações no mundo do trabalho que se refletem
nas relações sociais. Transformações que advêm das exigências que o capital impõe para se
reproduzir atualmente, portanto, seus contornos e suas formas ainda não estão claramente
definidos. Nesse sentido, pode-se concordar com Palangana (2002), quando esta, ao buscar
compreender como se encontra o indivíduo na sociedade permeada por mudanças de grande
monta no mundo do trabalho, afirma que não se consegue dar conta de apreender todas as
novidades num determinado terreno quando se está trabalhando com tendências e não com
situações experienciadas em toda a sua amplitude.
Isso não quer dizer que a “educação sócio-comunitária” não se confirme com
elementos que indiquem a superação da dicotomia estabelecida entre a “educação social” e
a “educação comunitária”. Quer dizer apenas que ainda não é possível prever todas as suas
60
especificidades porque ela surge em um momento marcado pelo descarte de muitas
tradições e a exigência da criação de novos parâmetros éticos e morais que sejam
universalmente aceitos para que se consiga delimitar a ação do homem sobre a natureza,
sobre outro homem e sobre si mesmo. Situação que, se ainda não habilita os pesquisadores,
como Martins (2007), a determinar o que é exatamente esta modalidade educativa, o
habilita, pelo menos a dizer o que ela não é. E isto a partir da possibilidade de se vislumbrar
o que ela pode vir a ser.
Por se encontrar em construção, esta modalidade educativa tem atraído a atenção de
muitos pesquisadores, em especial dos professores que integram o Programa de Mestrado
em Educação Sócio-Comunitária do Unisal (Centro Universitário Salesiano de São Paulo
Unidade de Americana), instituição brasileira pioneira em eleger este tema como objeto de
pesquisa. Desafio que tem envolvido, além do corpo docente, o corpo discente deste
Programa de Mestrado na busca de suas delimitações e, conseqüentemente, de sua
conceituação.
A união de esforços vem apresentando diversos trabalhos em diversas formas para
que se consiga, assim que possível, a conceituação deste objeto a partir de sua gênese e
desenvolvimento, a partir da definição de seus limites e possibilidades, de suas contradições
e das forças que promovem a mediação de sua existência, afirma Martins (2007). E é dentro
deste conjunto de trabalhos que se elege como fio condutor deste debate o texto Educação
sócio-comunitária em construção, do autor acima citado, a partir do qual se propõe
identificar os elementos essenciais que devem compor uma “educação sócio-comunitária”,
para que depois se possa dizer se a “política emancipatória” e o “projeto reflexivo do eu” de
Giddens (2002) exige o viés dessa educação para se instituir, principalmente entre a
população mais pobre do Brasil, representada neste trabalho por uma comunidade atendida
pelos dirigentes da Associação da Comunidade Negra de Santa Bárbara D’Oeste, pois os
indivíduos que compõem essa comunidade são considerados aqui representantes daqueles
que sofrem mais pesadamente as conseqüências negativas das transformações nas relações
sociais atuais advindas de exigências econômicas que afetam as formas de trabalho ou a
falta dele.
61
2.1 – As transformações no mundo do trabalho nas últimas décadas
Palangana (2002) afirma que as transformações relacionadas às alterações nos
modos de trabalho e relações sociais das últimas décadas são causadas pelo fenômeno da
internacionalização do capital. Esse fenômeno promove a globalização da economia e de
tudo que envolve as relações, os valores e os hábitos das pessoas, interferindo, inclusive, no
papel dos Estados-Nacionais, pois estes, que antes possuíam alguma autonomia, passam a
ser comandados pelos interesses do mercado financeiro mundializado.
Com isso, as economias dos Estados se despatriotizam para buscar mão-de-obra
jovem e barata onde ela estiver disponível no planeta, e como ela geralmente está
disponível nos países mais pobres, essa busca gera a desindustrialização nos países mais
ricos e um realinhamento industrial nos países mais pobres.
Esse movimento alarga o mercado de trabalho, mas ao mesmo tempo o segmenta,
fomentando uma dura concorrência entre mercados de trabalho locais, regionais e
nacionais. A disputa não é mais entre Estados, é entre blocos. Os blocos nacionais
lutam pelas sobras, pela contrapartida, enquanto os internacionais ficam com os
negócios de ponta, com o comando geral. Essa luta pelos restos de oportunidades
de investimento muito contribui para a despolitização dos novos imperativos da
produção (PALANGANA, 2002, p.136).
Despolitização que afeta a tudo e a todos porque a economia de mercado impõe
parâmetros ao comportamento, à consciência e à ação; promete, com a colaboração dos
meios de comunicação de massa, atender necessidades materiais e espirituais dos homens.
“As campanhas publicitárias vendem junto com a roupa, o status; com o sabonete, o sonho
de beleza; com o perfume, a sensualidade; com as farinhas e outros enlatados, a saúde, o
corpo perfeito” (PALANGANA, 2002, p. 134). que, enquanto uma parte da população
tem condições de adquirir os produtos que estão na ponta da linha de produção, uma outra
parte, bastante significativa, não tem nem condições de satisfazer suas necessidades básicas
de alimentação, moradia, saúde e educação, por estarem desempregadas ou em atividades
precárias de trabalho.
Essa situação decorre da transnacionalização dos espaços econômico-sociais que
não têm conseguido ou demonstrado interesse em diminuir a diferença entre regiões pobres
e ricas, acentuando ainda mais as lutas pelas sobras de mercado e agravando o problema da
exclusão social, do desemprego e do subemprego. Essas determinações, intencionalmente
elaboradas fazem com que as pessoas percam o controle ou a autonomia sobre suas vidas.
62
Outro fator que complementa a noção de perda do controle da própria vida decorre
das renovadas formas que o mercado encontra para controlar o tempo e o espaço sócio-
individuais desde que a sociedade capitalista quebrou a tranqüilidade advinda da confiança
no tempo e no lugar onde se vivia. Nesse processo, o tempo é acelerado pelo giro do capital
que, gradativamente, divide e organiza espacialmente o processo produtivo acelerando a
vida de todos. Com isso, todos aparentam uma certa pressa em desenvolver suas atividades
diárias, mesmo quando não estão sob vigilância dentro das indústrias.
O capital trava uma batalha por minutos. Os indivíduos devem agir e reagir no
trabalho e fora dele pautados no novo sentido de tempo e na nova percepção de
espaço internalizados. Respaldando-se na metodologia científica, a sociedade
capitalista empreende um controle muito mais severo sobre o indivíduo. Sua vida,
física e psíquica, vai sendo enredada numa cronologia sem tempo nem espaço
para decisões e ões próprias. Uma cronologia recriada para servir à reprodução
do capitalismo e não do indivíduo na sociedade (PALANGANA, 2002, p. 136).
Nessa aceleração do tempo, as coisas que atravancam a renovação constante do
estilo de vida vão sendo descartadas, inclusive os modos de ser e pensar que não se
encaixam nos parâmetros exigidos para a aceleração da produção. “O indivíduo é forçado a
lidar com a obsolescência quase momentânea. Ele tem que aprender a se readaptar
constantemente e com rapidez a fins particulares do capital, mas aparecem como sendo
sociais” (Idem, p. 137). Assim, o tempo e o espaço dos indivíduos são ditados pelas
prioridades e pelo ritmo de vida imposta pela necessidade de produção e reprodução do
capital, não pelo ritmo de necessidades pessoais. É isso que causa um certo desconforto nas
pessoas e as confunde.
Em meio à rapidez com que as mudanças se processam, o indivíduo não mais
reconhece seu ambiente de individuação, não sabe da sua própria identidade. É
difícil manter o sentido de continuidade histórica, que serve de referência à
formação da identidade, diante do fluxo de efemeridades da acumulação flexível
(Idem, p. 137 e 138).
Esse ambiente abala as identidades, nele o indivíduo sente a necessidade de auto-
afirmação, de fortalecer os laços regionais e locais, de mostrar ao mundo suas raízes. Em
conseqüência disso surge um revitalismo da etnia e de religiões como ponto de apoio à
formação da identidade.
À medida que o trabalho – principal parâmetro de identificação do eu se torna por
demais abstrato, e num momento em que os indivíduos vêem ruir as promessas de
progresso e bem-estar feitas pelo Estado, é compreensível que os mesmos tentem
se auto-afirmar a partir de particularismos (idem, p. 138).
63
O problema dessa estratégia adotada por diferentes grupos, afirma Palangana
(2002), é que a luta pela liberdade e por uma nova forma de constituir identidades vem
sendo travada por meios e alternativas particularistas, e não socialmente. Cada grupo
procura, individualmente, meios para garantir seus direitos, gerando vários movimentos
independentes, embora muitos com interesses semelhantes, quando o ideal seria que eles se
unissem para se fortalecerem.
Para defender suas identidades, muitos indivíduos, conscientes ou não da situação
em que vivem, se unem a grupos restritos e fechados, revelando uma conduta defensiva
contra a identidade sufocada que se revela em um eu indecifrável, em um eu anônimo,
visivelmente contraditório ao eu defendido pelo discurso liberal. “O indivíduo, que a Era
das luzes livrou da transcendência, projetando-o para o centro do mundo, não está no centro
nem acima dele. Encontra-se ameaçado pelas obras da sociedade que, contraditoriamente,
fortalecem-no e pode libertá-lo” (Idem).
Segundo essa autora, para se fortalecerem e libertar os indivíduos, os movimentos
sociais precisam colaborar no restabelecimento da individualidade, o qual se pelo
desenvolvimento da consciência, da personalidade. Essas possibilidades se apresentam
dificultadas pelas condições concretas de vida que se verificam na contemporaneidade.
Condições que não favorecem os poderes criativos do indivíduo e nem as condições para
que eles se conheçam mutuamente.
Para explicar melhor essa dificuldade, Palangana (2002) compara o trabalho do
artesão com o trabalho na indústria. O artesão se define e se mostra ao outro pelo seu
trabalho, no processo e no resultado da sua atividade prática. Enquanto que, na
industrialização o produto se torna impessoal, no sentido de não conter as particularidades
de quem o fez. Essa impessoalidade explica o alheamento dos indivíduos às questões
sociais; explica a progressiva perda de interesse por atuarem juntos. A possibilidade de
realização das fantasias propiciadas na sociedade industrial aniquila a consciência
individual e promove um desinteresse político porque a situação apresentada pelos
interesses capitalistas faz com que os indivíduos se preocupem mais com realizações
pessoais do que com as realizações sociais e isso é tramado propositadamente pelos
interesses de produção e reprodução capitalista, alerta essa autora.
64
Preocupados com as realizações pessoais, os indivíduos o se desprendendo das
tradições e da política que representa a capacidade de atuação conjunta para resolver
conflitos quando choque de interesses ou de valores. Essa postura justifica a
desintegração dos referenciais que determinavam as regras do socialismo, do
conservadorismo e dos paradoxos do neoliberalismo. Justifica também o não acordo sobre
os novos parâmetros morais que exigem reformulação, mas não encontra ambiente
favorável para que todos se unam para redefini-los. Isso tudo piorado pela desintegração
das instituições que sustentavam o sistema capitalista, tais como o Estado, a família e a
Igreja. Instituições que serviam de apoio aos interesses coletivos.
O princípio do mercado, pujantemente, extravasa o econômico e coloniza tanto o
princípio do Estado como o da comunidade. A sociedade industrial cassa as
credenciais da família, da Igreja e do Estado, como instituições que participam na
configuração do modo de Ser dos homens (PALANGANA, 2002, p. 132).
Assim, as transformações impostas pelo sistema econômico invadem todas as áreas
de atividade humana e isso, praticamente, pulveriza as bases de sustentação social anterior,
e isso “endossa discrepâncias na distribuição de recursos; provoca conflitos étnicos,
políticos e religiosos; amplia e perpetua a dinâmica capitalista polarizante e excludente.
Importa sublinhar que esse movimento afeta a tudo e a todos” (PALANGANA, 2002, p.
133).
Mas, nem tudo está perdido, avalia essa autora. Ainda é possível vislumbrar a
superação desse momento, mesmo lendo a realidade social através da lente do capital, o
qual faz com que o indivíduo seja e brutalizado pela labuta, pela ignorância política, pela
cultura da semiformação, pelo estreitamento dos horizontes, pelo ímpeto consumista. Ainda
existe a possibilidade de reflexão sobre os rumos que a sociedade está tomando e o rumo
que os indivíduos gostariam de dar a ela. Essa chama, ainda acesa, pode promover
reflexões sobre mudanças possíveis sem que se descartem as riquezas produzidas pela
humanidade. Uma dessas mudanças possíveis seria se pensar na possibilidade de utilização
dos investimentos tecnológicos e os saberes necessários para manipulá-los.
É pertinente pensar que no trabalho organizado com base na tecnologia de ponta
espaço para uma formação individual omnilateral, no sentido marxiano, uma
vez que envolve interesse, motivação, participação, responsabilidade, capacidades
mentais variadas, etc. Em suma, reúne o que a sociedade tem de mais avançado.
Se, no trabalho, a exploração de todo o potencial tecnológico tivesse como
finalidade atender necessidades sócio-individuais, tal conjectura estaria
objetivamente comprovada (PALANGANA, 2002, p. 175 e 176).
65
O problema acontece na orientação recebida pelos trabalhadores para manipular as
novas invenções, pois esta inclui somente a exploração da máquina para as necessidades da
empresa e não para necessidades individuais e sociais.
A cognição multifuncional, indispensável às mudanças em curso, é
dominantemente operacional, elaborada e encerrada na empiria imediatista do
mercado de trabalho. a formação de que necessita o indivíduo, para
re/significar o trabalho e, mais que isto, sua vida, elabora-se na experiência
teórico-prática, é de caráter intelectual-científico e excede o limitado ângulo da
tarefa e/ou da função. Entretanto, não se deve descartar a informação técnica
(Idem, p. 176 e 177).
A informação técnica é necessária para o domínio da tecnologia existente, mas ela
precisa ser complementada com o conhecimento científico, pois este pode capacitar o
indivíduo a perceber o estado de servidão à que está submetido para depois começar a
elaborar formulas para tirar proveito da tecnologia existente, não para subjugar-se a ela,
mas para colocá-la a seu serviço.
A formação do indivíduo, apto a entender os problemas e possibilidades sociais
em suas raízes, passa pelo conhecimento da técnica, do instrumental de trabalho,
dos mecanismos de produção, pela aquisição de habilidades motoras finas, enfim,
inclui os atributos necessários à produção, mas não se esgota neles. Na esfera da
formação integral há outros aspectos que, por serem fundamentais, merecem
tratamento criterioso. Para estabelecer-se como sujeito da tecnologia e das demais
riquezas socialmente criadas, o indivíduo precisa contar com uma consciência
analítica com competência política. Um passo importante nesta direção consiste
em recobrar, no conhecimento, a dúvida, seu poder crítico libertador, o momento
reflexivo, suspensos pela positivação da razão (Idem, p. 177).
Tal formação do indivíduo, certamente vai revigorar nele a Razão emancipatória, a
obrigação da utopia, pois esta pode eliminar a atitude colaboracionista e capacitá-lo a
pensar naquilo que precisa ser realizado concretamente.
Em Kant, afirma Palangana (2002), a maioridade da Razão carecia de condições
materiais para emancipar não só os sentidos, mas também o corpo. Atualmente, a situação é
invertida, pois as condições reais existem, enquanto que nos desdobramentos da sociedade
capitalista, a Razão emancipatória recua, se desobriga da utopia ao associar exploração
tecnológica capitalista com progresso. “São equívocos como este que a formação contra a
atitude colaboracionista e a favor da individuação precisa discutir e desfazer” (Idem). Ou
seja, é necessário que indivíduo pare de apoiar o sistema capitalista e passe a analisá-lo
reflexivamente para desfazer equívocos e perceber formas de superá-lo. Equívocos que
serão desfeitos através do conhecimento científico mediado pela reflexão crítica, pois esta
66
“completa a formação, elevando-a para além do círculo da mercadoria, para além do
imediatismo” (Idem, p.178).
Uma maneira sugerida pela autora como possibilidade de realização dessa educação
seria a adoção do conteúdo concernente à cultura consumista para que este seja analisado,
decomposto em suas finalidades, em suas razões, fazendo uso, para isso, das tecnologias
existentes, pois o estudo desse conteúdo possibilitaria uma re/elaboração de um contra
argumento naquilo que aliena. Como se fazer isso ainda encontra muita dúvida, mas o
consenso parece estar na afirmação de que a educação deve participar da transformação
radical da sociedade e isso pode acontecer quando se começar a ensinar os indivíduos a ler
o passado e o presente também como documentos reveladores do sofrimento humano,
quando se combater a trivialização desse sofrimento, quando se conseguir reavivar o
espanto e a indignação, o inconformismo e a rebeldia. Nesse sentido, ao interpretar Santos
(1996), Palangana (2002) afirma que,
[...] a educação pode denunciar, subsidiar o discernimento dos conflitos e
contradições sociais, investir na capacidade de argumentação, no conhecimento
que desequilibra o senso comum, que desmistifica a naturalização das relações
sociais. Dando espaço à imaginação e incentivando a atitude reflexiva, a
educação contribui para que o modelo de aplicação técnica da ciência seja
contraposto a outros, ou a um outro, a serem pensados (Idem, p. 180).
que esses dizeres se referem a uma educação formal, e no ambiente reservado
para esta modalidade educativa esta missão dificilmente pode acontecer, porque a
escolarização é regulada pelas necessidades formativas de cunho prioritariamente
econômico, se tornando assim muito dificultada a promoção das capacidades mentais
direcionadas a formar a consciência-em-si e para-si.
A educação é consenso para a transformação da sociedade porque ela atua sobre o
imanente, sobre o setor das conexões intelectuais que pode transformar a maneira de o
indivíduo ver o mundo.
A educação atua sobre o imanente, forma o sujeito epistêmico social quando
desenvolve nele uma capacidade de análise que não sucumbe ao fetiche, quando
desvenda e a entender a estrutura da racionalidade formalizada. Ela não detém,
por completo, o processo no e através do qual a consciência de cada indivíduo é
elaborada. Todavia, detém dele uma parcela significativa ao programa de
humanização e, dentro desse, às necessidades de produção, qual seja, o referente
à transmissão do conhecimento científico. É imperativo, pois, insistir na
experiência formativa, na crítica objetiva, na abertura à história, num modo
alternativo de trabalhar e viver (PALANGANA, 2002, p. 181).
67
Mas, enquanto a educação escolar tão possuir ambiente favorável para contemplar
essas possibilidades de formação, talvez seja possível pensar a educação não-formal como
possibilidade de solução, pois esta pode acontecer a partir das intervenções que os
movimentos sociais realizam ainda em forma de práxis comunitária, mas que poderá se
tornar uma educação sócio-comunitária quando esta se conjugar com a práxis social,
conforme se verá no próximo item deste capítulo.
Mesmo assim, ainda se espera que educação escolar forme o indivíduo não apenas
para o imediato, ou seja, para o desempenho de atividades profissionais, mas também para
o mediato, que envolve além das capacitações profissionais, a capacitação para o uso das
tecnologias em uma outra base relacional, favorecendo assim, a possibilidade de desfrutar
desses inventos numa dimensão que vai além das relações impostas pelo capital. “Se como
postula Gramsci acompanhando Marx –, a ‘humanidade’ e a ‘espiritualidade’ existem
no mundo do trabalho como criação, então, este é o norte da educação que pretende formar
o indivíduo omnilateral” (Idem, p. 182).
Nesse sentido, a constatação de que o projeto político da modernidade não deu
conta de construir uma sociedade mais justa e mais solidária reforça a necessidade de unir
as vontades individuais e coletivas numa oposição às relações existentes em nome de algo
radicalmente melhor, pois a subjetividade não está completamente encerrada ao
conformismo. Os movimentos sociais que se multiplicam são prova de que no sujeito
fechado em si, fragmentado e individualista sobrevive um desejo de transformação.
Logo, a necessidade da crítica permanente é mais forte do que nunca. Ela
participa na construção de um novo inter-relacionamento social desvendando as
condições e os mecanismos que oprimem, identificando e alertando para o perigo
de uma socialização total que espreita os homens; enfim, elucidando a formação
capitalista, seu movimento, suas contradições, esse processo que a um tempo
constitui a base da sobrevivência e institui a barbárie (Idem).
Como se vê, a capacidade da crítica que a educação favorece poderá não retornar à
crença iluminista da força da razão, mas fazer com que o indivíduo aprenda a argumentar
para fazer valer o seu direito de liberdade e de individualidade, porque as riquezas materiais
construídas pela humanidade já dão condições para tanto, resta apenas aos indivíduos
aprenderem a ver e a pensar, “para saber o que está se passando e o que pode ser feito para
mudar o curso dos acontecimentos, rumo a uma ordem de equilíbrio entre espaço/tempo
individual e o espaço/tempo da sociedade” (Idem, p. 192).
68
Em tais dizeres pode-se notar que Palanga (2002), assim como Giddens (2002),
acredita que nem tudo está perdido porque ainda existe uma capacidade de reflexão
individual e esta possibilita identificar mudanças possíveis. Mas é preciso que se
disponibilize uma educação integral do individuo. Uma educação que o capacite a ver a
realidade criticamente.
2.2 – A educação sócio-comunitária sob a interpretação de Martins (2007)
A educação como fator necessário para a superação do momento atual também é
abordado por Martins (2007), pois para esse autor, a situação da população pobre brasileira,
principalmente a desempregada, tem piorado muito desde a década de 90 do século passado
porque “o movimento da realidade e de todos os seus processos constitutivos se
intensificou de uma maneira impressionante” (p. 3) e, em conseqüência dessas alterações
impostas pelos interesses econômicos, observa-se também modificações em todo sistema
global de vida, inclusive transformações significativas na base material da sociedade.
Com as mudanças no setor de produção, “o homem forjou um novo jeito de
produzir, de circular e de consumir as mercadorias, e isso tem repercutido na produção e
reprodução da forma de vida contemporânea” (MARTINS, 2007, p. 3), inclusive causando
um refluxo dos movimentos sociais organizados, os quais eram representados pelos
partidos políticos e sindicatos que sempre lutaram para não deixar o trabalhador à mercê
dos interesses puramente econômicos. Movimentos formulados principalmente pelo
movimento socialista nos séculos XIX e XX, mas que perdem suas forças nas últimas
décadas inclusive porque grande parte de seus dirigentes se deixou levar pelas mudanças
nas relações sociais que privilegiam o ter antes do ser e o eu em detrimento do “nós”.
Esse refluxo dos movimentos sociais tradicionais, segundo Martins (2007), deixou
grande parte da população desamparada porque esta fica mais vulnerável aos interesses do
capital, deixando um espaço para o surgimento de trabalhos sócio-educativos, em grande
parte, realizados por voluntários comandados pelas mais variadas formas de ONGs
(Organizações Não-Governamentais), por grupos independentes e até por indivíduos que
tentam realizar ações direcionadas e delimitadas a um agrupamento específico. ões que
se revelam, em sua grande maioria, como “práxis comunitária” e não uma “práxis social”.
69
Práxis que se diferenciam muito porque a “práxis comunitária” se preocupa em
resolver apenas os problemas que surgem em sociedade, mas não se preocupa em
identificar suas causas. Já a “práxis social” procura conhecer os problemas em sua raiz e
propor modificações nas determinações que se tornaram causas dos problemas detectados.
Desse modo, a “práxis comunitária” tem um limitado alcance histórico por reproduzir as
relações sociais capitalistas e não estar preocupada em conhecer e nem em transformar
globalmente a realidade,
[...] que nela uma série de instituições interatuam para buscar alternativas ao
momento de crise vivido, especialmente à crise econômica que afeta as classes
empobrecidas, sem, contudo, se preocuparem em identificar e atacar a raiz dos
problemas, ou melhor, que é o sistema global de vida, isto é, o modo de produção
e reprodução da vida vivida sob a forma capitalista (MARTINS, 2007, p. 15).
Sendo assim, a práxis comunitária, ao se preocupar, “principalmente em promover
ajustes parciais, sem afetar a dinâmica global do modo de vida” (MARTINS, 2007, p. 16),
causa um impacto na vida concreta das pessoas atendidas. A práxis comunitária não
impacta a realidade de maneira politizada e ideológica como acontece com a “práxis
social”, que se desenvolve historicamente no meio social pelos setores subalternos, que
começam a se consolidar e ganhar corpo como força social a partir da Revolução Francesa,
movimento que instituiu a modernidade sócio-histórica e política” (Idem, p. 18), práxis que
ganha formas ético-políticas no século XIX, em especial com as “contribuições teórico-
práticas de Marx, Engels e de todos os que se identificaram com a tradição marxiana. Com
o marxismo e sua práxis, a ação social dos subalternos alterou-se, ganhando contornos
profundamente ideológicos e politizados” (Idem).
Esta é considerada uma práxis social porque é politizada e ideológica, porque
propõe uma transformação radical do modo de vida da população em geral. Porém, todo
esforço dispensado naquela época, apesar de ter conseguido promover uma melhora
significativa na vida dos trabalhadores, não conseguiu desestruturar o sistema capitalista.
Mesmo não sendo possível no século XIX promover a transformação radical do
modo de vida nos termos em que Marx e Engels formularam (a revolução
proletária), o movimento empreendido pelo proletariado bem como pelos seus
“intelectuais orgânicos” produziu outro mundo. Para tanto, as classes
subalternas fizeram uso de conhecimentos da economia política, formularam
projetos estratégicos, mobilizaram amplos setores sociais e buscaram construir as
condições para superar o sistema de vida, que se transformou muito, porém
resiste nos seus aspectos mais estruturais (Idem, p. 18).
70
Esse movimento não conseguiu promover uma transformação radical na sociedade
daquela época porque, segundo Palangana (2002), cada vez que sofre uma pressão dos
trabalhadores, o sistema capitalista cede, aparentemente, dando a impressão de que prioriza
as reivindicações apresentadas. Porém, logo em seguida, os detentores do capital reagem,
por exemplo, contratando os melhores especialistas para que eles elaborem meios mais
eficientes de produção de mercadorias e de controle sobre os trabalhadores. Como prova
disso pode-se remeter às formas de produção taylorista/fordista para se ter uma idéia das
ações que visam reprimir os desejos de realização do homem alterando suas relações com o
trabalho e com outros trabalhadores. O taylorismo/fordismo vem fazer os trabalhadores
competir entre si quando instaura o pagamento de salário equivalente à produção
individual, quando exige maior empenho do corpo e da mente para dar conta dos novos
modos de produção renovados de tempos em tempos. Armadilha da qual poucos
conseguem escapar para poder perceber os interesses ocultos em cada manobra.
Porém, desse embate entre trabalhadores e detentores do sistema produtivo, alguns
benefícios são concedidos aos trabalhadores para que não se comprometa a produção por
falta de motivação. Desse modo, mesmo que até agora a ação de movimentos politizados
não tenha se materializado em transformação radical do modo de vida em sociedade, a
“práxis social” apresenta resultados muito diferentes daqueles apresentados pela “práxis
comunitária” que age, atualmente de forma desorganizada e independente, representada,
muitas vezes, por trabalhos voluntários, visando apenas a superação de problemas
localizados ou específicos de um determinado grupo ou comunidade, sem ter a pretensão de
mudar a realidade da sociedade como um todo, além de não possuir o conhecimento
necessário para propor tais mudanças. Nesse sentido, Martins (2007), vincula a superação
da realidade atual ao conhecimento científico que os acadêmicos militantes podem
fornecer, pois sem esse conhecimento não é possível propor a superação do momento atual.
Enquanto a “práxis social” buscava a mobilização das massas pela ação politizada
e ideologizada, articulada por instrumentos organicamente vinculados entre si
(como os partidos, os sindicatos e até mesmo mediante organizações
internacionais dos trabalhadores, por exemplo as “Internacionais”), que
indicavam o engajamento permanente e a perspectiva estratégica de
transformação social, a “práxis comunitária” é focalizada, despolitizada, e
articulada por instrumentos de mobilização cujo engajamento é eventual e de
perspectiva não estratégica, além de afirmar-se como neutra ideologicamente
(Idem, p. 19).
71
Definidas dessa forma por Martins (2007), essas duas modalidades de práxis
apresentam-se como contraditórias, pois tanto as ações como os sujeitos que as compõem
agem de maneiras muito diferentes: o militante e o voluntário.
O primeiro é o paradigma da ão social de perfil moderno, cujo engajamento e
luta no processo de transformação social é princípio e finalidade de vida,
enquanto que o voluntário, como o modelo de ão do “terceiro setor”, se engaja
momentaneamente, sobretudo em campanhas específicas para tratar de problemas
parciais, que não comprometem a sua vida e nem, muito menos, implica em
riscos para o sistema social vigente, que o incorpora dinâmica reprodutiva (Idem,
p. 19).
Assim, se para a “práxis social” é necessário um militante, para a “práxis
comunitária” apresenta-se um voluntário, sem a formação política e o conhecimento
científico necessário para propor a união organizada das populações excluídas do sistema.
Ou se poderia dizer até descartadas do sistema pela forma com que são tratadas, pois a
impressão que se tem é que muitos desejam que elas desapareçam, como afirma Freire
(1996), ao fazer um comentário sobre a ética o existente entre aqueles que se curvam
obedientes aos interesses do lucro.
Num encontro internacional de ONGs, um dos expositores afirmou estar ouvindo
com certa freqüência em países do Primeiro Mundo a idéia de que crianças do
Terceiro Mundo, acometidas por doenças como diarréia aguda, não deveriam ser
salvas, pois tal recurso só prolongaria uma vida já destinada à miséria e ao
sofrimento (FREIRE, 1996, p. 17).
Quanto ao terceiro setor mencionado por Martins (2007) em citação acima, quer se
referir a uma parte da sociedade civil que, supostamente, não é nem a governamental e nem
a privada, uma parte da população que se organiza para resolver os problemas mais
aparentes de grupos ou comunidades apenas para capacitar tais indivíduos a sobreviverem
nesta sociedade.
Ao se atribuir significado ao ‘terceiro setor’ é costumeiro dizer que ele é aquela
parte organizada da sociedade que não é propriamente nem estatal e nem privado.
Constitui-se em uma ‘nova’ (?) esfera formada por iniciativa da sociedade civil
organizada, ou melhor, por grupos sociais que se articulam coletivamente e
tomam iniciativas na realidade presente tendo em vista a superação de alguns
problemas mais prementes, que tornam a sobrevivência de amplas camadas das
classes subalternas um desafio diário. [...] neste sentido, a definição de ‘terceiro
setor’ se apresenta não como uma afirmação, mas como uma negativa em relação
à sua identidade com os sujeitos sociais que até então atuavam na realidade: o
setor público ‘primeiro setor’ e o setor privado ‘segundo setor’. Desse
modo, sua existência se justifica pela negação das formas existentes de ‘agir
social’ e não por uma identidade própria, já devidamente consolidada
(MARTINS, 2007, p. 9 e 12).
72
Desse modo, ficam evidentes as diferenças que permeiam as intenções e as ações
nestas duas formas de práxis.
Enfim, que se asseverar que enquanto a “práxis social” teve e tem um amplo
alcance histórico, impactando o modo de vida capitalista e desafiando-o a tomar
outros rumos para além do capital, a “práxis comunitária” é profundamente
limitada neste sentido, a tal ponto de ser incorporada à dinâmica do capitalismo
como um de seus elementos revitalizadores (Idem).
Nesse ambiente, a “educação sócio-comunitária”, afirma Martins (2007), poderá
ser assim denominada quando conseguir desenvolver a educação integral do educando, seja
ele criança, jovem, adulto ou idoso. Formação que consiga atentar para a necessidade de
estimular ações socialmente responsáveis, “possibilidades que se abrem nos limites da
realidade observada constitui-se como uma verdadeira necessidade epistemológica-
militante, que se apresenta como condição para fazer avançar a luta pela superação do
modo de vida capitalista” (MARTINS, 2007, p. 24).
A partir disso, Martins (2007) enuncia alguns elementos presentes na práxis
comunitária, que os militantes podem contemplar em suas ações ético-politicas na busca da
construção de uma nova ordem societária, qualitativamente diferente da capitalista.
O primeiro elemento originado da práxis comunitária que pode contribuir para se
superar o momento presente, sob essa ótica, é o trabalho empírico com a realidade, com os
problemas dos indivíduos e grupos das classes subalternas que é proveniente da “prática
comunitária”, mas que deve ser articulado pela “práxis social”.
A proximidade concreta da realidade vivida pelo povo é um procedimento da
“práxis comunitária” triplamente positivo, pois: a) possibilita combater o
academicismo de muitas teorias revolucionárias, distantes do povo; b) chama a
atenção dos militantes profissionais, enfurnados nas burocracias partidárias e
sindicais, que se consolidaram no País nas últimas décadas; c) cria as condições
para que se reproduzam verdadeiros “intelectuais orgânicos” às classes
subalternas (MARTINS, 2007, p. 24).
Nesse sentido, a educação sócio-comunitária vai se definir somente quando se
estabelecer diálogos e ações ao “buscar a solução de problemas específicos que lhe
desafiam a vida” (MARTINS, 2007, p. 25), já que este é “um interessante movimento ético-
político. Aliás, ele pode se constituir em uma grande lição da ‘educação comunitária’ na e
‘educação social’, com resultados interessantes para o processo de organização e
mobilização dos subalternos e seus intelectuais orgânicos” (Idem).
73
Outro elemento que deve constituir a “educação sócio-comunitária”, segundo esse
autor, é a identificação dos excluídos entre si, porque isso é muito importante pela
dimensão que essa atitude pode atingir na esfera municipal, estadual ou nacional, ou a
mesmo na sua perspectiva internacional, desde que se consiga fazer a articulação interna
[...] mediante mecanismos adequados de integração, intermediação e
coordenação, tanto para efeitos de representação e elaboração de políticas mais
globais como para o desenvolvimento de soluções mais eficientes para seus
próprios problemas tecnológicos, financeiros, administrativos, comerciais e
trabalhistas, é possível pensar que o notável crescimento quantitativo que as tem
caracterizado até agora se estenda a um processo de superação qualitativa, que
faça vislumbrar objetivos mais elevados (RAZETO, apud MARTINS, 2007, p.
25).
A partir dessas colocações, uma “educação sócio-comunitária” só se efetivará se – e
somente se
[...] elaborar [...] um projeto social e econômico deste setor, que inclua sua
presença e representação em nível político. A identidade de um fenômeno social
se reforça quando dele surge um projeto unificado, que oriente seu
desenvolvimento numa perspectiva coerente, e que o potencia na medida em que
o projeto seja capaz de despertar e por em ação as energias indispensáveis para
sua realização (RAZETO apud MARTINS, 2007, p. 26).
Portanto, a “educação sócio-comunitária” vai ser construída pelos que lutam para
edificar uma outra realidade sócio-histórica a partir da própria realidade vivida e mediante a
“práxis sócio-comunitária”, quando a “práxis-comunitária” se articular com a “práxis-
social” e criar uma nova práxis.
2.3 – A educação sócio-comunitária como fator necessário à emancipação
Como se viu até aqui, Giddens (2002) e Martins (2007) concordam que a sociedade
atual está danificada e que necessita de reparos para proporcionar a emancipação de
indivíduos e grupos. Mas, assim como as causas indicadas por eles são diferentes, os
reparos apresentados como necessários também são.
Giddens (2002) acredita que a superação do momento atual se dará de forma
natural, por meio de consensos individuais que indiquem a necessidade da reconstrução das
políticas emancipatórias para que a emancipação de indivíduos e grupos viabilize o acesso
à política vida, à política da realização do eu a partir da determinação de valores éticos e
morais que sejam universais, que garantam direitos referentes à justiça para que se possa
74
identificar a dominação legítima e ilegítima; à igualdade de oportunidades, que algumas
formas de desigualdade material são consideradas, pela maioria das correntes de
pensamento liberal e radical, como legítimas e desejáveis porque propiciam a produção e
consumo de forma diversificada; à participação política para defender seus ideais
democráticos para que, neste ato, possam identificar a opressão e evitar sua imposição. Em
contrapartida, Martins (2007) acredita que a emancipação coletiva não se efetivará
enquanto a “ética revolucionária e seus princípios fundadores na igualdade, na gratuidade,
solidariedade, na ação pelo, para e com o coletivo social” (MARTINS (2007, p. 6)
estiverem sendo substituídas pela “passividade política, pelo individualismo prazeroso, pelo
hedonismo, pela ação em busca da contemplação pessoal do real em sua diversidade, em
sua pluralidade assimétrica” (Idem).
Portanto, fica evidente que Giddens (2002) entende que o movimento para a
emancipação pode partir naturalmente de ações individuais que levem ao consenso de
medidas necessárias para a superação, enquanto Martins (2007) entende que o indivíduo
está como que “encantado” pelas possibilidades de realização pessoal e, em conseqüência
disso, está abandonando os interesses coletivos, fato que compromete uma ação
revolucionária coletiva em favor da emancipação.
Uma outra diferença marcante entre esses dois autores é que Giddens (2002)
entende que as tradições que sustentavam as políticas emancipatórias já não mais se
justificam no ambiente da alta modernidade e que, portanto, deve-se reconstruir uma
política emancipatória universal que saiba lidar com um mundo de imprevisibilidades, mas
que mantenha o conservadorismo filosófico que preserva alguns valores centrais até agora
associados ao pensamento socialista, dando continuidade ao mundo que está. Martins
(2007), no entanto, apesar de perceber que a realidade atual tem provocado estragos nas
bases de sustentação da práxis social, ou seja, tem mudado o comportamento daqueles que
até bem pouco tempo militavam com afinco para promover mudanças estruturais na
sociedade capitalista, deixa entrever que acredita numa reconstrução dos movimentos
sociais que unam os saberes dos militantes com os saberes dos voluntários para promover
uma mudança estrutural da sociedade atual.
Esses pontos de vistas se devem às distintas correntes de pensamento que orientam
cada autor. Mas o que interessa ressaltar, nesse momento, é se a emancipação indicada por
75
Giddens (2002) deve passar por uma educação sócio-comunitária nos termos indicados por
Martins (2007) e, nesse sentido, este último autor indica que essa modalidade educativa vai
se constituir quando a práxis comunitária se articular com a práxis social para educar
integralmente o educando em qualquer idade. Isso porque a educação sócio-comunitária
ainda não existe em concreto, ela está em construção e poderá se efetivar se as ações dos
movimentos sociais contribuírem para a superação do modo de produção e reprodução dos
moldes determinados pelo capitalismo.
Palangana (2002) complementa esse pensamento, pois para ela a realização
individual não está descartada, porém ela não se dará enquanto a capacidade crítica
proporcionada por uma educação integral não capacitar as pessoas a lutar pela superação da
ordem capitalista, assim como indica Martins (2007).
Palangana, ao analisar o indivíduo da atualidade, conclui que este tem suas
capacidades de formação de individualidades limitadas pela excessiva divisão do trabalho e
concorda com Marx em Manuscritos Econômico-Filosóficos quando este afirma que
[...] a sociedade dos homens necessitou da divisão do trabalho para se estabelecer
e da propriedade privada para produzir e reproduzir as condições necessárias à
sua humanização. Ela precisa, agora, abolir esses dois fatores, que se tornaram
entraves à consecução desta finalidade maior, para que a individualidade,
reprimida e enquadrada, possa se afirmar (PALAGANA, 2002, p. 8).
Ao prosseguir, essa mesma autora afirma que a sociedade capitalista insiste, desde o
seu início, nos princípios de liberdade e igualdade, aliás, foi a defesa desses princípios que
levou a burguesia ao poder. Porém, a dominação nunca desapareceu das relações que
sustentam essa sociedade, ela apenas assumiu novas formas. Com isso, ao contrário do
discurso proferido, desde o início, o indivíduo vai sendo coisificado no processo de
mercado até que, nas últimas décadas, acontece um movimento contraditório. Enquanto a
industrialização dispensa singularidades individuais, além de dispensar também mão-de-
obra, a cultura do consumo invoca e endeusa o indivíduo e veicula um pensamento que
alimenta a idéia de realização pessoal através do consumo. Esse movimento mascara a
realidade, pois a realização pessoal não está no consumo de efemeridades como é veiculado
pelos meios de comunicação, está sim na auto-atividade que viabiliza uma individuação
mais consciente e menos regulada por fatores externos.
Também para Giddens (2002), a característica da sociedade da alta modernidade
resulta em um eu mínimo que distancia o indivíduo, cada vez mais, da esfera política por
76
desenvolver nele interesses individuais e não sociais. “Se a concepção do eu mínimo, em
meio a conflitos, estiver correta, o eu não estaria claramente separado da esfera política,
mas seria constituído por uma rejeição defensiva da política em favor do reino pessoal
estritamente confinado” (GIDDENS, 2002, p. 193). Se for assim, afirma esse autor, a
proposta de uma reconstrução de empreendimentos políticos é de fundamental importância
nesta fase da alta modernidade.
Porém, para a reconstrução de empreendimentos políticos, continua esse autor, o
projeto reflexivo do eu não pode ser desprezado porque é a partir dele que o indivíduo vai
se conhecer melhor e perceber a necessidade da reconstrução das políticas emancipatórias
como único meio de conquistar o direito à política vida, aquela que cuida das realizações
pessoais, sem desprezar o interesse pelas realizações sociais. Para aqueles que não
concordam com esse pensamento esse autor afirma. “Não é o projeto reflexivo do eu
enquanto tal que é subversivo; antes o etos do autoconhecimento assinala importantes
transições sociais na modernidade tardia como um todo” (GIDDENS, 2002, p. 193).
Essas transições são referentes àquelas acentuadas no primeiro capítulo deste
trabalho. Ou seja,
[...] a reflexividade institucional em expansão, o desencaixe das relações sociais
pelos sistemas abstratos e a conseqüente interpenetração do local e do global. Em
termos de uma agenda política, podemos captar suas implicações distinguindo
entre a política emancipatória e a política vida (GIDDENS, 2002, p. 193).
Esse autor entende, portanto que o indivíduo possa ter consciência das influências
que a globalização exerce sobre ele e sobre a sociedade e que ele estaria confuso, mas a
reflexividade individual poderia colaborar em fazê-lo unir-se a outros para reivindicar seus
direitos. Palangana (2002), no entanto, entende que a globalização universaliza, espalha por
todo o mundo, hábitos e valores, padrões de conduta e comportamento, modos de ser, de
pensar, indispensáveis à sobrevivência da ordem consumista. Nesse ambiente o indivíduo é
incentivado a adquirir novos conhecimentos técnicos para manipular as novas invenções,
mas estes, sem estarem aliados a um conhecimento científico, não capacitam ninguém a ver
a realidade de forma crítica para propor transformações relevantes que favoreçam a
humanidade. Porém concorda com Giddens (2002) sobre a capacidade de reflexão que os
indivíduos ainda mantêm.
77
Sobre as linhas de pensamento que entendem que o indivíduo pode agir com
autonomia na sociedade capitalista, Palangana (2002) é categórica em afirmar que isso não
é possível em conseqüência das forças que o alienam.
Tratar da individualidade a partir do indivíduo tem-se mostrado um bom meio de
lutar na contra mão da liberdade. [...] a consciência alienada acredita que as
compensações que a sociedade oferece ao indivíduo correspondem às renúncias
pulsionais que dele se exigem. [...] O cativeiro do espírito é real. E, o que é pior,
o cativeiro é apreendido como liberdade, de modo que o indivíduo não tem
consciência da sua escravização (PALANGANA, 2002, p. 170 e 171).
Este não é evidentemente, o pensamento revelado Giddens (2002), pois este entende
que as características da sociedade atual revelam um eu mínimo por afastá-lo da esfera
política e que, sendo assim, se confirma a necessidade de reconstrução de empreendimentos
políticos para que ele possa lutar por seus direitos unido a outros e que a reflexividade
individual que o indivíduo da alta modernidade ainda mantém pode colaborar com tal
empreendimento.
Martins (2007), por sua vez, entende que a globalização aliada aos interesses
neoliberais tem provocado, principalmente, um retrocesso nos movimentos sociais
tradicionais e propiciado o surgimento de movimentos despolitizados que se preocupam
apenas em resolver problemas imediatos dos indivíduos ou grupos, mas não mantêm a
preocupação e nem o conhecimento necessário para ir à raiz do problema. Conhecimento
que os capacitaria a propor a identificação dos excluídos entre si e a construção de um
projeto unificado com representatividade suficiente para se obter alguma melhora estrutural
na vida desses indivíduos.
Sobre a diversidade de opiniões referente ao momento atual, Martins (2007) faz a
seguinte observação.
Todavia, o desenvolvimento alcançado pelo modo de produção e reprodução
capitalista na era do neoliberalismo é bastante contraditório: ao mesmo tempo em
que tem gerado dúvidas e aflições, desperta também paixões e otimismos. De um
lado, há os que percebem neste processo a apropriação sem limites do capital, que
invade todas as esferas da realidade humana, alienando ainda mais o homem e
consolidando sua reificação e a fetichização dos produtos de seu trabalho; de
outro, os que vêem neste fato a possibilidade de libertar a consciência humana
da ideologia dominante, bem como o homem da exploração pelo capital e de
todas as condições que o aprisionam (MARTINS, 2007, p. 5).
Portanto fica evidente que Martins (2007) faz parte daqueles que entendem que o
desenvolvimento alcançado pela humanidade na era do neoliberalismo revela um processo
de apropriação sem limites do capital. Enquanto Giddens (2002) faz parte daqueles que
78
entendem que o momento atual propicia, com algumas ressalvas, a libertação da
consciência humana da ideologia dominante.
E uma das formas de libertar o homem da dependência de outros é desenvolver nele
a confiança em si, afirma Giddens (2002), e esta confiança deve ser construída desde a
infância, representada pela confiança que a criança adquire naqueles que cuidam dela como
fator decisivo para a construção de um eu seguro, um eu autônomo.
Um eu autônomo no sentido de ser “capaz de dar a si mesmo as regras e normas de
sua ação” (CHAUÍ, 2006, p. 341). Porém, ação que “só será ética se for consciente, livre e
responsável e será virtuosa se for realizada em conformidade com o bom e o justo”
(Idem). Assim, a “ação ética é virtuosa se for livre e será livre se for autônoma”
(Idem). Para tanto, ao viver em sociedade, o indivíduo deve adotar os valores morais de sua
sociedade como algo instituído por ele mesmo, “como se ele pudesse ser o autor desses
valores ou das normas morais de sua sociedade porque, neste caso, terá dado a si mesmo as
normas e regras de sua ação e poderá ser considerado autônomo” (Idem).
Por esse motivo, continua essa autora.
[...] as diferentes éticas filosóficas tendem a resolver o conflito entre a autonomia
do agente e a heteronomia de valores e fins propondo a figura de um agente
racional livre universal com o qual todos os agentes individuais estão em
conformidade e no qual todos se reconhecem como instituidores das regras,
normas e valores morais. (Idem)
Valores morais que, no pensamento de Giddens (2002), no mundo globalizado
devem ser universais, que para ele esse mundo virou um “nós”. Um nós que exige maior
conhecimento do ser humano através da psicologia, pois para esse autor, a psicologia é uma
área tão importante que ele sugere, como uma das necessidades individuais da atualidade, a
aprendizagem da autoterapia como fator de autoconhecimento e de autodesenvolvimento.
Aprendizagem que poderá levar à autonomia e à definição de valores éticos e morais
universais que serão estabelecidos pelo consenso através da referencialidade interna, a qual
é construída ao se refletir sobre as relações sociais ou aspectos do mundo natural e se
organizar essas relações e aspectos em termos de critérios internos. Nisso Palangana (2002)
concorda, pois ela também acredita que a capacidade de reflexão ainda persiste, apesar de
toda tentativa em aniquilá-la.
79
Os critérios internos vão colaborar com a reflexão necessária para a superação da
ordem atual e para que se consiga a realização pessoal e social da espécie humana ao
eliminar algumas doenças mentais causadas pela imprevisibilidade da vida no mundo atual.
Nesse sentido, a educação sócio-comunitária, se se configurar conforme explicitada
por Martins (2007), poderá ser considerada como parte constituinte das características
unificadoras da modernidade, pois, ao que parece, em suas delimitações iniciais, essa
modalidade educativa está criando uma especialização adicional
13
. Isso porque, as ações
dos movimentos sociais não se limitam ao uso indutivo da experiência, ou consulta a
adivinhos, como acontecia em culturas pré-modernas. As ações dos movimentos sociais, na
atualidade, além de contar com o conhecimento especializado, estão contando também com
o conhecimento generalizado de que “nenhum aspecto de nossas atividades segue um curso
predeterminado” (GIDDENS, 2002, p. 33). Quer dizer, o conhecimento comunitário é o
socialmente construído, e esse conhecimento deixa as pessoas abertas às mudanças que
podem ser inevitáveis, mas deve conter algum fator de realização pessoal, alguma
característica peculiar aos seus desejos íntimos de estilo de vida para obter apôio.
Portanto, mesmo não apontando explicitamente para uma educação sócio-
comunitária, o conhecimento para uma reconstrução das políticas emancipatórias
defendidas por Giddens (2002), não será possível sem a viabilização de uma educação
integral do indivíduo. Apesar de este indivíduo estar, no momento, impedido de perceber
sozinho que o lugar central na sociedade contemporânea não pertence tão somente ao
indivíduo como é propalado pelos meios de comunicação, mas à produção e ao consumo
manipulados pela cultura de massa, ainda esperança, se a educação formal e não-formal
contribuírem para o esclarecimento das relações sociais que comandam os interesses
econômicos.
Sob o domínio das relações capitalistas, o indivíduo se enfraquece, é aleijado
numa significativa parte de si: na parte do desejo, da espontaneidade, da vontade,
da criação. [...] A exacerbação de valores individualistas e consumistas, em nome
da concorrência e do livre mercado, expõe os indivíduos – adultos, jovens e
crianças a uma profunda deformação. Mas, o que aliena, semiforma, exclui,
degrada psíquica e fisicamente o homem não está na ciência e na tecnologia em
si, está sim, nas relações sociais que as comandam. É este o ponto para o qual as
atenções precisam convergir (PALANGANA, 2002, p. 189 e 190).
13
“Embora a especialização seja organizada dentro de sistemas abstratos mais amplos, a própria perícia tem
foco cada vez mais estreito, e tende a produzir resultados indesejáveis e não-previstos que não podem ser
evitados salvo pelo desenvolvimento de especialização adicional, repetindo assim o mesmo fenômeno”
(GIDDENS, 2002, p. 35).
80
Essa posição também é sustentada por Martins (2007), quando este sugere a
integração do conhecimento científico às ações comunitárias para que estas ganhem
amplitude sócio-comunitária.
A saída, na visão de Palangana (2002), seria o homem conquistar para si o lugar
central nas relações sociais. Com isso, ele destronaria a produção e o consumo como fins e
se tornaria senhor da ciência e da técnica ao submetê-las às necessidades humanas coletivas
e à sua própria formação em todos os sentidos.
Nesta perspectiva, o lado funesto da ciência e da técnica é subsumido pelo seu
potencial libertador. O trabalho que pressupõe esses recursos sem, no entanto,
dobrar-se a eles e por eles é auto-atividade, é segundo Marx e Engels, criação e
intercâmbio entre indivíduos enquanto tais (Idem p, 190).
Então, não é possível uma transformação social sem uma educação adequada, pois a
educação integral tem a capacidade de explicitar a razão e diferenciá-la das necessidades
capitalistas, bem como de ultrapassar os marcos delimitados por elas para que se entenda a
realidade social naquilo que efetivamente ela é e o que a impede de ser aquilo que os
homens têm almejado: uma sociedade emancipada, solidária e justa. Assim, entende-se que
para a efetivação da política de realização do eu apresentada por Giddens, (2002), são
necessários os elementos que Martins (2007) enuncia como principais para que se
identifique uma educação sócio-comunitária que leve “a transformação global da vida
social” (MARTINS, 2007, p. 2), só que o caminho apontado por eles são divergentes.
Desse modo, a educação sócio-comunitária, que vem ganhando contornos bem
definidos na dinâmica societária atual a habilita “como objeto de pesquisa das ciências da
educação” (MARTINS, 2007, p. 2). Ciências que vêem apontando nos últimos anos, “a
ampliação e a diversificação das fontes legítimas de saberes e a necessária coerência entre o
‘saber fazer e o saber ser-pedagógico” (OLIVEIRA apud FREIRE 1996, p. 12). Ciências
que podem apontar que a educação sócio-comunitária pode, ou não, adquirir os contornos
que Martins enuncia.
Isso porque, fortes evidências de que a reflexividade institucional e individual
podem colaborar em definir a educação sócio-comunitária e em revelá-la como modo de
superação do modo de vida apresentado atualmente. Confirmando assim que a emancipação
individual propalada por Giddens (2002) é possível dentro de um projeto ou projetos
coletivos amplos de emancipação coletiva, que podem ser geradas a partir de iniciativas
81
individuais que, quando transformadas em ações coletivas promovem alterações
significativas nas instituições, já que esse autor defende “a capacidade de ação do indivíduo
dentro de uma coletividade, e a capacidade de ação da coletividade dentro de uma
instituição” (ASENSI, 2006). Assim, a ação reflexiva individual explicitada pode reger
relações coletivas reflexivas e transformadoras da realidade atual, conforme evidenciado no
primeiro capítulo.
Para agir na dimensão particular o indivíduo não necessita da força ontológica, mas
na dimensão institucional sim.
Ou seja, ao interagir em sistemas abstratos, o sujeito singular não tem a
capacidade de transformação suficiente para influenciar estes sistemas por si só,
de modo que seria somente por intermédio de uma ação coletiva igualmente
motivada que ele realizaria as transformações desejadas (Idem).
Sob essa ótica, o indivíduo, em sua singularidade tem a possibilidade de transformar
o meio em sua volta, sem para tanto, se valer da intermediação do coletivo. Porém, para se
fazer presente nos sistemas abstratos, reforçando a sua capacidade revolucionária, o fará
se conseguir agir coletivamente. “Ou seja, necessita-se de uma ação coletiva desejosa de
revolução para que incidam impactos significantes na dimensão institucional” (Idem).
82
CAPÍTULO III
O MOVIMENTO NEGRO E AS PRÁTICAS SOCIAIS E EDUCATIVAS EM
SANTA BÁRBARA D’OESTE
No capítulo anterior foram apresentadas algumas possíveis delineações para um
conceito de educação sócio-comunitária e a necessidade de que essa modalidade educativa
seja instituída concretamente para que se viabilizem as políticas de realização do eu. Isso
foi necessário para que neste terceiro capítulo se possa analisar, interpretar e descrever as
ações sociais e as práticas educativas na Associação Cultural e Beneficente Comunidade
Negra Quilombo da Paz de Santa Bárbara d’Oeste, sob o olhar específico de dois dirigentes
da Associação, de um artista plástico e de um morador do assentamento Zumbi dos
Palmares. Assentamento que existe ainda hoje devido à interferência dos dirigentes do
Movimento Negro quando estes além de divulgarem em programas de rádio e e-mails as
injustiças que estavam sendo cometidas contra aquelas famílias, instruíram os moradores
para a formação de uma associação que os representasse nas ações a serem tomadas para
garantir seus direitos de moradia na cidade.
Antes, porém, de se passar para a descrição específica da história e das ações da
Associação mencionada acima, é preciso que se contextualize, mesmo que brevemente, a
situação e as reivindicações do povo negro no mundo, no Brasil, e na cidade de Santa
Bárbara D’Oeste, pois é necessário que se saiba que o povo negro sofre preconceito, ainda
hoje, em decorrência de carregar na pele a marca da escravização imposta pelo europeu.
O negro sofreu exploração severa do europeu em todos os países para onde foi
comercializado como escravo, além de ser explorado também em seu próprio território de
origem, a África, pois este foi primeiramente, praticamente despovoado em conseqüência
da grande quantidade de indivíduos nativos capturados e enviados, principalmente às
Américas como escravos e, depois desse esvaziamento demográfico, o continente africano
foi dividido entre as potências européias da época.
Sobre esse assunto Schilling (2002) esclarece que na África, desde antes do Império
Romano, existiam rotas intercontinentais de comércio de escravos e que mesmo antes da
chegada dos traficantes europeus o povo africano era vítima dos árabes que compravam
83
os derrotados nas guerras tribais para abastecer os mercados do Mediterrâneo. Mas esse
comércio toma outra amplitude quando as colônias agrícolas começaram a se instalar nas
Américas e a procura por mão-de-obra escrava se intensificou, pois a partir de então, o
território africano sofreu grande despovoamento.
Sobre a quantidade de indivíduos retirados desse território o se tem uma
estimativa exata. Apesar de alguns chegarem ao número de cinqüenta milhões, o consenso
maior entre os historiadores está entre nove e dez milhões.
Quando, no final do século XIX, cessou o tráfico de africanos, o interesse das
potências européias inclinou-se para a ocupação territorial do continente africano, e isso se
deu por dois motivos, afirma Schilling (2002): o primeiro visava explorar as riquezas
minerais e agrícolas que ainda não eram totalmente conhecidas pelos europeus; o segundo
por conta de uma competição imperialista entre as nações européias.
Nesse processo, a África foi dividida e invadida por funcionários das várias
companhias privadas que obtiveram a concessão de exploração de suas riquezas naturais.
Assim, cada parte do território africano foi entregue às companhias que representavam seus
países de origem. Essa divisão foi realizada entre novembro de 1884 e fevereiro de 1885
em um congresso realizado em Berlim. Para a realização desse congresso foram
convidados, pelo chanceler do II Reich alemão, Otto Von Bismarck, os doze países com
interesse na África.
Em conseqüência disso, até 1914, a África encontrou-se inteiramente dividida entre
os principais países europeus (Inglaterra, Espanha, Itália, Bélgica, Portugal e Alemanha).
Porém, quando em 1918 a Alemanha foi derrotada na Primeira Guerra Mundial e em 1919
foi elaborado o Tratado de Versalhes, as antigas colônias alemãs passaram à tutela da
Inglaterra e da França. Também, a partir desse tratado, as potências se comprometeram a
administrar seus protetorados de acordo com os interesses dos nativos africanos e não mais
com os interesses das companhias metropolitanas. Naturalmente, isso ficou apenas como
uma afirmação retórica, afirma Schilling (2002).
A ocupação de seu território provoca amargura entre os africanos que se sentiam
impotentes perante as capacidades administrativas, militares e tecnológicas que os europeus
haviam desenvolvido e as utilizavam para dominar o povo nativo. Assim, mesmo antes
da divisão do território, houve severa resistência dos africanos contra os invasores. A mais
84
célebre delas foram as Guerras Zulus travadas na África do Sul contra os ingleses e colonos
brancos no século XIX, comandada pelo rei Chaka (que reinou de 1818 a 1828).
Desse modo, fica evidente que o povo africano sofreu com a dominação dos brancos
europeus tanto em seu território como nas colônias para onde foram enviados como
escravos e foram aliviados, em parte, dessa dominação, quando aconteceu a abolição da
escravatura nas ex-colônias do continente americano e, a partir de 1945, quando as
potências européias colonizadoras da África ficaram degradadas pelos anos que marcaram a
Segunda Guerra Mundial. Algumas dessas potências como a Holanda, a Bélgica e a França
tiveram seus territórios ocupados pelos nazistas e isso colaborou na decomposição de suas
colônias pelo mundo, inclusive na África.
A luta travada contra Hitler fragilizou ideologicamente essas potências, afirma
Scilling (2002), pois esta se revelou contraditória que travavam uma luta universal pela
liberdade contra a opressão, ao mesmo tempo em que mantinham sob severo controle
milhões de asiáticos e africanos.
Assim, quando a Segunda Guerra Mundial terminou, a opressão exercida pelos
colonizadores estava mais branda e isso favoreceu o crescimento do nacionalismo entre os
nativos das colônias do Terceiro Mundo e incitou a contestação da dominação naqueles
países que ainda não tinham conseguido sua independência. Aconteceu então uma
seqüência de independências que começou pela Índia e Paquistão em 1946, mas essa maré
só chegou à África em 1956 resultando na independência de Gana em 1957.
Nesse processo, afirma Schilling (2002), deve-se observar que os países que não
possuíam riquezas minerais conseguiram a independência por meio de negociações
pacíficas, enquanto que os países que possuíam qualquer riqueza mineral, as quais eram
exploradas por grandes corporações, tiveram de recorrer aos movimentos de guerrilhas para
conseguir expulsar os exploradores.
Porém, a união de muitas das 800 etnias e mais de oito mil idiomas falados na
África na luta pela descolonização do território se desfez assim que conseguiram seu
intento porque a partir de então passaram a lidar com uma concepção clássica de Estados
Nacionais de unidade, homogeneidade e delimitação de território que desconheciam antes
do domínio europeu, além de se aflorarem antigos ódios tribais.
85
Antes do domínio europeu, existiam impérios, dinastias governantes, militares de
pequenos chefes e régulos tribais na África, mas em nenhuma parte encontrava-se Estados-
nacionais, afirma Schilling (2002). O que havia era uma intensa atomização política e
social, um faccionismo crônico, resultado da existência de uma infinidade de etnias, de
tribos, quase todas inimigas entre si, de grupos lingüísticos diferentes e de notáveis castas
profissionais, provocando violentas guerras civis (como as da Nigéria, do Congo, da
Angola, Moçambique, Ruanda, Burundi, Serra Leoa e da Libéria, entre outras).
Sobre essa situação Schilling (2002) atenta para a necessidade de superação dessas
rivalidades para que se possa concretizar a formação de Estados-Nacionais com regimes
sólidos, íntegros, que superem a dicotomia entre ditadura ou anarquia tribal.
Mesmo havendo desavenças em muitas regiões, a independência do território e a
libertação do povo cativo indicam um fortalecimento contínuo dos Movimentos Negros
dispersos pelo mundo, os quais se caracterizam, regionalmente, pelas necessidades mais
prementes, mas internacionalmente, por uma luta constante direcionada, principalmente à
reparação dos males causados pelos longos séculos de dominação dos países mais ricos
sobre o povo e território africanos. Dominação que lhes impediu o desenvolvimento
humano adequado para disputar hoje, em de igualdade, as oportunidades
disponibilizadas no mundo do trabalho ou em qualquer outra área, porque para um negro
conseguir uma posição de destaque na sociedade, afirma Tânia Mara da Silva
14
, presidente
da Comunidade Negra de Santa Bárbara D’Oeste, ele precisa provar que é muito melhor do
que os concorrentes brancos.
Hoje existe o dia Internacional de Luta pela eliminação da Discriminação Racial, o
21 de março, instituído pela ONU (Organização das Nações Unidas). Essa data marca uma
tragédia ocorrida em 21 de março de 1960, na cidade de Johanesburgo, capital da África do
Sul, quando 69 pessoas foram mortas e 186 ficaram feridas em uma manifestação que,
mesmo sendo pacífica, ao se deparar com tropas do exército, recebeu rajadas de tiros. Esta
ação ficou conhecida como o Massacre de Shaperville, nome do bairro em que ocorreu a
tragédia.
O Artigo I da Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial Diz o seguinte:
14
Entrevista concedida em 24/08/08
86
Discriminação Racial significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou
preferência baseada na raça, cor, ascendência, origem étnica ou nacional com a
finalidade ou efeito de impedir ou dificultar o reconhecimento e exercício, em
bases de igualdade, aos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos
político, econômico, social, cultural ou qualquer outra área da vida pública.
(CARNEIRO, 2002).
No mundo, o racismo se apresenta de forma velada ou não, contra judeus, árabes e
negros, mas o grupo que ainda sobre mais preconceito é este último.
A partir do exposto, se propõe agora a apresentar, de forma bastante resumida,
algumas especificidades dos Movimentos Negros, inclusive expressos em Congressos
internacionais, nacionais e regionais, este último representado pelo objeto eleito para estudo
nesta dissertação, a Associação Cultural e Beneficente Comunidade Negra Quilombo da
Paz.
3.1 – Algumas evidências históricas da luta contra a discriminação racial
Se a discriminação racial sofrida pelos negros decorre da distinção de cor de pele,
podem-se considerar as primeiras reações contra a escravidão como uma defesa dos direitos
dos humanos desse povo e, se for assim, essas primeiras reações aparecem no século
XIX, mais de trezentos anos depois do início da escravização moderna do povo africano,
pois, segundo Scilling (2002), as primeiras reações contrárias a essa escravização surgem
no decorrer do século XIX.
A primeira foi de uma seita protestante radical, os Quakers, “a Sociedade dos
Amigos”, porque estes consideravam que a escravidão era um pecado. Pouco depois John
Wesley, o fundador do movimento metodista, também se manifestou contra a escravidão.
Economistas também contestaram a escravidão, mas estes no sentido de provar que a mão
de obra escrava era mais dispendiosa do que o trabalhador livre. Entre eles destaca-se
Adam Smith, o pai do capitalismo moderno, em A riqueza das nações de 1776. Antes disso,
porém, em 1751, Benjamim Franklin havia submetido a instituição da escravidão a uma
análise contábil e concluiu que o trabalho escravo era mais caro do que o de um trabalhador
livre.
Dentre as diversas manifestações contrárias à escravidão, aquela que parece
influenciar mais na sua eliminação foi a posição defendida pelos economistas, pois a
87
abolição da escravatura veio, segundo Schilling (2002), com o surgimento da sociedade
industrial impulsionada pelos efeitos socioeconômicos provocados pela introdução da
máquina a vapor no processo produtivo e, em conseqüência do aumento na produção, a
necessidade de se expandir a quantidade de consumidores. E como os escravos não
recebiam salários para serem enquadrados como tais, foram mais os interesses econômicos
que os humanitários que concederam a liberdade aos negros africanos nas diversas regiões
em que viviam cativos.
Nos Estados Unidos da América, um dos maiores nomes da luta antiescravista foi o
abolicionista John Brown (1800-1859), pois ele, sem esperança de conseguir seu intento
por meio da pressão pacífica e do jogo eleitoral, se propôs a realizar incursões armadas para
libertar escravos em fazendas do Missouri e do Kansas estimulando os negros a fugirem,
dando-lhes proteção até que alcançassem a fronteira segura do Canadá. Em 16 de outubro
1859, acompanhado por 21 homens Brown invadiu e ocupou um arsenal federal em
Harpers Ferry até que foi rendido por uma força do exército reforçada por voluntários.
Capturado e, conduzido preso a um Tribunal da Virgínia, foi sentenciado à morte acusado
de assassinato, traição, e de incitar os negros à sedição. No dia 2 de dezembro de 1859, este
abolicionista foi enforcado e o resultado de sua guerra contra a escravidão consagrou-se
com a aprovação da 13ª e 14ª emendas da constituição americana, de 1863 e 1865, que
liquidaram para sempre com o regime servil nos Estados Unidos. Desse modo, em menos
de quatro anos depois de sua morte como traidor, foi consagrado como mártir da causa da
liberdade, afirma Schilling (2002).
Em 1919, acontece em Paris o Congresso Pan-africano, organizado por William
Edward Burghardt Du Bois (1868-1963), americano negro ativista dos direitos civis,
primeiro estudante negro a receber o título de doutor (Ph.D.) na Universidade de Harvard,
fundador da NAACP (Associação americana que promove assuntos de interesse dos
negros). Nesse Congresso, Du Bois reivindicou um código internacional que garantisse, na
África Tropical, o direito dos nativos, bem como um plano gradual que conduzisse à
emancipação final das colônias. E, para os negros americanos era solicitada a aplicação
efetiva dos direitos civis (direitos que foram aprovados pelo Congresso dos EUA em
1964).
88
Outro ativista norte americano que não pode deixar de ser citado é Martin Luther
King (1929-1968), pois este se destacou na luta pacífica pelos direitos civis das mulheres e
dos negros nos Estados Unidos da América e no mundo. Foi ordenado pastor aos 18 anos
de idade e recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1964. Lutou por um tratamento igualitário e
contribuiu para a melhoria da situação da comunidade negra. Em 1963, dirigiu uma marcha
pacífica do monumento a Washington até o Lincoln Memorial, onde pronunciou seu
discurso mais famoso: “Eu Tenho em Sonho”. Em abril de 1968 foi assassinado por um
branco que havia escapado da prisão.
Em contra partida, Malcom X - Malcolm Little - (1925-1065), um dos maiores
ativistas negros dos EUA, defendia a separação das raças, a independência econômica e a
criação de um Estado autônomo para negros. Mas depois de se envolver mais
profundamente com o Islamismo, religião que começou a estudar quando esteve preso por
roubos a residências em 1946, mudou seu nome para Al Hajj Malik Al-habazz e passou a
defender uma posição conciliatória em relação aos brancos. Foi assassinado em 21 de
fevereiro de 1965, quando discursava no Harlem. Suas idéias foram muito divulgadas,
principalmente nos anos 1970, por movimentos como “Black Power” e “Panteras Negras”.
A exposição dos problemas e a insatisfação dos negros com os tratamentos dirigidos
a eles proporcionou, mesmo que muito lentamente, a ampliação da discussão sobre
discriminação e a aprovação de algumas leis reivindicadas, além da ampliação da literatura
nesse sentido.
Segundo Vogt (2003), em 1941, M. Herskovits publica o livro The myth od the
negro past. Neste livro, esse autor declara, logo no início, a intenção de contribuir para
melhorar a situação inter-racial nos Estados Unidos da América, ao realizar pesquisas sobre
a cultura de origem africana. Esse livro ajuda a compreender a história do negro até então
ignorada por zelo e por descuido contrapondo-se a cinco “mitos” vigentes até então: 1) que
os negros, enquanto crianças, reagem pacificamente a “situações sociais não satisfatórias”;
2) que apenas os africanos mais fracos foram capturados, tendo os mais inteligentes fugido
com êxito; 3) que os escravos, por terem origens de diversas regiões da África e tendo sido
dispersos por todo o país, não conseguiram estabelecer um “denominador cultural” comum;
4) que, embora negros da mesma origem tribal conseguissem, às vezes, manter-se juntos
89
nos EUA, não conseguiam manter a sua cultura porque era patentemente inferior à dos seus
senhores; 5) que “o negro é assim um homem sem passado”.
Em 1958, ao escrever o prefácio da edição desse livro, esse mesmo autor
reconhece que muitas coisas haviam mudado desde 1941, data da primeira edição, e que
o número de negros que rejeitavam seu passado estava diminuindo paulatinamente, o
mesmo acontecendo com as atitudes dos brancos em relação aos pontos de vista anteriores
e arremata afirmando que “o negro americano, ao descobrir que tem um passado, adquire
uma segurança maior de que terá um futuro”. (apud VOGT, 2003).
Essa mudança de postura do negro, gradativamente, vai fortalecendo as lutas por
direitos humanos que lhes foram negados. Exigindo, inclusive, reparos por danos causados
pela dominação sofrida em seu próprio território. E hoje fazem isso se organizando em
associações espalhadas pelo mundo, manifestando suas insatisfações tanto nos Fóruns
Mundiais como nos Congressos organizados pela ONU (Organização das Nações Unidas).
Mas a luta por reparação não tem sido fácil.
Segundo Carneiro (2002), a problemática étnico-racial, no plano internacional, sob
muitos aspectos assume, sem exagero, forma de batalha, pois foi praticamente isso que
aconteceu em Durban em 2001. Nessa III Conferência Mundial Contra o Racismo quase
não foi possível encontrar um consenso mínimo entre as nações para aprovação do
documento final e a permanência de diversos países em decorrência das dificuldades de se
enfrentar as questões étnicas, raciais, culturais e religiosas e todos os problemas
polarizadores nos quais elas se desdobram, ou seja, o racismo, a discriminação racial, a
xenofobia, a exclusão e marginalização social de grandes contingentes humanos
considerados “diferentes”. Polarizam-se, em tornos dessas questões muitos países, mas a
tomada de posição pelos governantes não elimina as contradições internas.
Em relação ao Movimento Negro, as questões de natureza jurídica que não
encontram consenso referem-se ao não reconhecimento pelos países ocidentais de que a
escravidão do povo africano pode ser considerada um crime de “lesa-humanidade”. E
assumem esse posicionamento porque tal reconhecimento daria amparo às ações
reparadoras por parte dos africanos e afro-descendentes, contra os países que se
beneficiaram direta ou indiretamente do tráfico, da escravização e das riquezas do
continente africano.
90
Para se protegerem contra pedidos de reparações, os países ocidentais não se
expressam verbalmente sobre o assunto, afirma Carneiro (2002), mas deixam subentendido
que não aprovarão qualquer proposta que abra brechas para reparações, inclusive
impedindo qualquer condenação do passado colonial. Em conseqüência de tal
posicionamento, o máximo que as delegações ocidentais se dispuseram a aceitar como
desculpas pelo passado colonial foi a admissão de “eventuais males ou excessos” do
colonialismo.
Nesse clima de dramaticidade e disputas ali presentes, a aprovação da Declaração e
do Plano de Ação da Conferência foi uma grande vitória. Entretanto, para os afro-
descendentes das Américas e os afro-brasileiros em particular, muito que comemorar.,
afirma essa autora.
Durban ratificou as conquistas da Conferência Regional das Américas,
incorporando vários parágrafos consensuados em Santiago do Chile e tornou o
termo ‘afrodescendente’ linguagem consagrada nas Nações Unidas, assim
designando um grupo específico de timas de racismo e discriminação. Além
disso, reconheceu a urgência de implementação de políticas públicas para a
eliminação das desvantagens sociais de que esse grupo padece, recomendando
aos Estados e aos organismos internacionais, entre outras medidas, que “elaborem
programas voltados para os afrodescendentes e destinem recursos adicionais aos
sistemas de saúde, educação, habitação, eletricidade, água potável e às medidas
de controle do meio ambiente, e que promovam a igualdade de oportunidades no
emprego, bem como outras iniciativas de ação afirmativa ou positiva”
(CARNEIRO, 2002).
Os afro-descendentes das Américas se vêem reconhecidos também no parágrafo 33
da declaração aprovada com a seguinte redação:
Consideramos essencial que todos os países da região das Américas e de todas as
demais zonas da diáspora africana reconheçam a existência de sua população de
origem africana e as contribuições culturais, econômicas, políticas e científicas
dadas por essa população, e que admitam a persistência do racismo, a
discriminação racial, a xenofobia e as formas conexas de intolerância que a
afetam de maneira específica, e reconheçam que, em muitos países, a
desigualdade histórica no que diz respeito, entre outras coisas, ao acesso à
educação, à atenção à saúde, à habitação tem sido uma causa profunda das
disparidades sócio-econômicas que a afetam (Idem).
Além de vários parágrafos sobre como os Estados devem adotar políticas públicas
nas diversas áreas sociais para a promoção dos afro-descendentes, o Plano de Ação, em seu
parágrafo 176, com base nas metas internacionais de desenvolvimento acordadas nas
Conferências da ONU na década de 1990, estabelece que tais metas sejam alcançadas até
2015.
91
[...] com o fim de superar de forma significativa a defasagem existente nas
condições de vida com que se defrontam as vítimas do racismo, da discriminação
racial, da xenofobia e das formas conexas de intolerância, em particular no que
diz respeito às taxas de analfabetismo, de educação primária universal, à
mortalidade infantil, à mortalidade de crianças menores de 5 anos, à saúde, à
atenção da saúde reprodutiva para todos e ao acesso a água potável; a aprovação
dessas políticas também levará em conta a promoção da igualdade de gênero
(Idem)
A III Conferência reconhece também a problemática específica das mulheres e das
crianças afro-descendentes e, no parágrafo 9 do Plano de ão, solicita aos Estados um
reforço nas políticas em favor das mulheres e dos jovens afro-descendentes.
Essas designações aprovadas em Durban equivalem, no Brasil, por exemplo, à
alteração do padrão de desigualdade nos índices educacionais que, segundo o IPEA,
manteve-se inalterado por quase todo o século XX.
Significaria redesenhar as políticas na área de saúde, de forma a permitir a
equalização da expectativa de vida de brancos e negros, que é em média de 5
anos menor para os negros; promover o acesso racialmente democrático ao
mercado de trabalho, às diferentes ocupações, à terra, à moradia e ao
desenvolvimento cultural e tecnológico (Idem)
Nesse sentido, a agenda que Durban impõe, vai muito além do sistema de cotas, que
vem provocando intensas discussões sobre a questão racial no Brasil. Mas o que deve
ficar claro é que as ações positivas não poderão se resumir apenas nesta, pois a discussão
centralizada neste ângulo pode obscurecer a amplitude dos temas ainda não aprovados, mas
que precisam ser enfrentados pela sociedade brasileira.
O que Durban ressalta e advoga é a necessidade de uma intervenção decisiva nas
condições de vida das populações historicamente discriminadas. É o desafio de
eliminação do fosso histórico que separa essas populações dos demais grupos, o
qual não pode ser enfrentado com a mera adoção de cotas para o ensino
universitário. Precisa-se delas e de muito mais (Idem).
Grande parte dessas exigências encontram-se também no Estatuto da Igualdade
Racial do Senador Paulo Paim do PT (Partido dos Trabalhadores) do Rio Grande do Sul,
aguardando aprovação já há alguns anos, conforme se verá no próximo item deste capítulo.
3.2 – O Movimento Negro no Brasil
O Sr. Benedito Samuel da Costa (Dito Preto), um dos fundadores do Movimento
Negro de Santa Bárbara D’Oeste afirma que o movimento negro no Brasil começou com a
chegada do primeiro escravo negro, que estes nunca aceitaram passivamente essa
92
condição imposta à força pelo branco. Se for assim, esse Movimento se inicia logo nos
primeiros anos da ocupação portuguesa do território brasileiro, pois segundo Brazil (2004),
um dos mais antigos registros do tráfico de escravos africanos para essas terras data do ano
de 1533.
Sobre o pensamento do Senhor Benedito de se esclarecer que, até a abolição da
escravatura em 1888, estes movimentos eram quase sempre clandestinos e de caráter
radical, se se considerar que seu principal objetivo era a libertação dos negros cativos.
Segundo Cantarino (2003), Maria Palmira da Silva, docente da Faculdade de
Psicologia da UNIMEP (Universidade Metodista de Piracicaba) e da Escola de Sociologia e
Política de São Paulo, a luta pela superação das desigualdades sociais entre negros e
brancos na sociedade brasileira é um elemento constitutivo do movimento negro desde os
tempos da escravidão. Porém, a reorganização nacional dos movimentos sociais de combate
à discriminação racial acontece a partir da década de 1970, através do MNU (Movimento
Negro Unificado), o qual orienta os ativistas na luta pelo reconhecimento social de uma
identidade negra, incorporando em sua pauta a questão das desigualdades resultantes,
especificamente, do racismo.
Para Vogt (2003), o movimento negro no Brasil passa por quatro fases, e cada uma
delas contém as características próprias das influências que receberam tanto do exterior
como dos meios nacionais. A fase médico-legista, a fase culturalista, a fase dos estudos
sociológicos e a fase caracterizada pelas denúncias de uma dominação real sustentada sobre
a base de um racismo difuso e poderoso.
A primeira fase é caracterizada por estudos e atitudes intelectuais voltadas
positivamente para a questão do negro, que começam a se desenvolver, efetivamente, no
século XX. No século XIX, a literatura abolicionista de Castro Alves a Joaquim Nabuco
trataram o negro como um problema homogeneizado pela escravidão, enquanto mácula.
Nessa primeira fase destacam-se os trabalhos de Silvio Romero, Nina Rodrigues e
Euclides da Cunha. Nina Rodrigues era defensor dos valores culturais dos africanos no
Brasil e dos seus direitos à liberdade de suas práticas religiosas, porém acreditava, assim
como Silvio Romero, na visão cientificista que afirmava a inferioridade racial do negro.
Porém essa simpatia resultou em atitudes intelectuais positivas em relação ao negro que
93
sobreviveu ao modismo positivista do médico Nina Rodrigues e influenciou o
desenvolvimento dos estudos do negro no Brasil no início do século XX.
Nessa linha, afirma Vogt (2003), entre os seus seguidores e admiradores, nas
décadas seguintes, destacam-se Artur Ramos e Edson Carneiro que, mesmo quando se
contrapunham em diferenças teóricas e metodológicas, ou quando destacavam disputas
regionais, dão primazia ao autêntico das manifestações culturais africanas no Brasil.
Esses trabalhos procuravam reencontrar ou reescrever a história do negro no Brasil
pela via da valorização de sua cultura, tanto na África como no Brasil, realçando a
valorização e dignidade aos seus ritos, suas línguas e à complexidade de suas origens. Essa
fase é denominada por Vogt (2003) de fase heróica dos estudos do negro no Brasil que
poderiam ser caracterizados, num primeiro momento, por sua ênfase científica ou médico-
legista e, num segundo momento pelo culturalismo.
Sobre a primeira fase dessa literatura, Ortiz (2006, p. 13) diz que ela surpreende
pela sua implausibilidade.
Como foi possível a existência de tais interpretações, e, mais ainda, que elas
tenham se alçado ao status de Ciência. A releitura de Silvio Romero, Euclides da
Cunha, Nina Rodrigues é esclarecedora na medida em que revela esta dimensão
da implausibilidade e aprofunda nossa surpresa, por que não certo mal-estar, uma
vez que desvenda nossas origens. A questão racial tal como foi colocada pelos
precursores das Ciências Sociais no Brasil adquire na verdade um contorno
claramente racista, mas aponta, para além desta constatação, um elemento que me
parece significativo e constante na história da cultura brasileira: a problemática da
identidade nacional.
Sobre a segunda fase, a culturalista, Ortiz afirma que ela coloca um problema
interessante para os movimentos negros, pois ela acontece numa fase de construção da
identidade nacional e para tanto, substitui o conceito de raça pelo de cultura.
Na medida em que a sociedade se apropria das manifestações de cor e as integra
no discurso unívoco do nacional, tem-se que elas perdem sua especificidade.
Tem-se insistido muito sobre a dificuldade de se definir o que é negro no Brasil.
O impasse não é a meu ver simplesmente teórico, ele reflete as ambigüidades da
própria sociedade brasileira. A construção de uma identidade nacional mestiça
deixa ainda mais difícil o discernimento entre as fronteiras de cor. Ao se
promover o samba ao título de nacional, o que efetivamente ele é hoje, esvazia-se
sua especificidade de origem, que era ser uma sica negra. [...] O mito das três
raças é neste sentido exemplar, ele não somente encobre os conflitos raciais como
possibilita a todos de se reconhecerem como nacionais (Idem, p. 43 e 44)
Por volta de 1950, essas primeira e segunda fases se encerram e tem início a terceira
fase; a fase sociológica. Ela que surge em São Paulo, como nova tendência agora voltada
para a história particular do negro: primeiro como escravo; depois como trabalhador livre,
94
porém marcado pelo estigma do preconceito de cor. Esses trabalhos tiveram a participação
de Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, na chamada Escola
Sociológica de São Paulo.
Nessa época o conceito de cultura é remodelado, pois os intelectuais analisam a
questão cultural dentro de um quadro filosófico e sociológico
Seguindo os passos da sociologia e da filosofia alemãs, Manheim e Hegel, por
exemplo, os isebianos dirão que cultura significa as objetivações do espírito
humano. Mas eles insistirão sobretudo no fato de que a cultura significa um vir a
ser. Neste sentido eles privilegiarão a história que está por ser feita, a ação social,
e não os estudos históricos; por isso, temas como projeto social, intelectuais, se
revestem para eles de uma dimensão fundamental. Ao se conceber o domínio da
cultura como elemento de transformação sócio-econômica, o ISEB se afasta do
passado intelectual brasileiro e abre perspectivas para se pensar a problemática da
cultura brasileira em novos termos.[...] Penso que não seria exagero considerar o
ISEB como matriz de um tipo de pensamento que baliza a discussão da questão
cultural no Brasil dos anos 60 até hoje. (ORTIZ, 2006, p. 45 e 46).
Essas três fases colaboram hoje para a compreensão das diferentes etapas pelas
quais passou o movimento negro no século XX, “do ponto de vista de suas lutas, de suas
reivindicações, de suas bandeiras e das explicações científicas, culturais e sociológicas que
fundamentam as ênfases de suas ações políticas” (VOGT, 2003).
Se for assim, o movimento negro reflete, em cada fase, o estágio em que se encontra
a produção literária acadêmica sobre esse assunto, pois Vogt (2003) afirma que,
nos anos de 1920, as próprias organizações negras refletiam a visão de que o
principal problema da população negra no Brasil estava nela mesma, dadas as
condições precárias de sua educação formal, a fraqueza das organizações em si
mesmas e a conseqüente falta de habilidade para concorrer às disputas no
mercado de trabalho, tudo isso acrescido, é claro, do “preconceito de corque
dificultava e obstruía a integração social e discriminava o negro, pela cor, na
sociedade.
Com a vitória dos países aliados sobre o nazi-facismo surge uma onda de ações no
campo educacional, cultural e mesmo psicanalítico, como é o caso do Teatro experimental
do Negro, no Rio de Janeiro, que, através de diferentes organizações, visam reforçar, ou até
mesmo despertar o sentimento de orgulho e de distinção por ser negro. E, desse modo,
contribuir para capacitá-lo a enfrentar o seu pior inimigo na sociedade, o preconceito racial,
agente também perturbador do progresso integrado do país na comunhão de raças, dos
credos e das diferenças.
A transformação da democracia social de ideário político em mito e em ideologia e,
portanto em expediente de ilusionismo social vai se dar, de maneira consciente, a partir dos
95
anos 1970, e talvez, um dos fatos mais importantes dessa nova tendência e postura seja a
fundação em 1978, em São Paulo, do Movimento Negro Unificado.
Nesse momento, ainda é possível se identificar, segundo Vogt (2003), aspectos
coincidentes com os que se encontram na linha sociológica dos estudos do negro e
caracterizam de um modo geral, a terceira fase desses trabalhos, porquanto a grande
responsável pela situação de exclusão do negro está na verdade, na estrutura de dominação
da sociedade brasileira, consolidado no governo e difundido na sociedade civil. Passa-se,
pois, da democracia racial, integradora e geradora de plenos direitos para a denúncia de
uma dominação real assentada sobre a base de um racismo difuso e poderoso.
Assim, pode-se dizer que até hoje, na história dos estudos e dos movimentos negros
no Brasil, tem alguma característica das etapas acima apontadas para as diferentes fases de
seu desenvolvimento e transformação nos campos teórico e prático das ações que lhes são
próprias.
Em 1988, lembra Vogt (2003), no ano do centenário da Abolição da Escravatura, foi
promulgada a nova Constituição da República Federativa do Brasil. Nela, em decorrência
da lutas pelos direitos civis dos negros, ficou consagrado, no Título II - Dos direitos e
garantias fundamentais -, Capítulo I - Dos direitos e deveres individuais e coletivos -:
Artigo - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: Artigo XLII - a prática do racismo constitui
crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.
A regulamentação desse parágrafo veio em seguida pela Lei nº 7716, de 5 de janeiro
de 1989, modificada pela Lei 008882 de 3 de junho de 1994 e novamente modificada em
13 de maio de 1997, pela Lei 9459, que acrescentou também ao Artigo 140 do Código
Penal relativo ao crime de injúria por utilização de "elementos referentes a raça, cor, etnia,
religião ou origem", estabelecendo pena de "reclusão de um a três anos e multa".
O passo seguinte seria o das ações afirmativas, cujo modelo podia ser buscado nos
EUA dos anos 1960, e, mais recentemente, no governo de Nelson Mandela, na África do
Sul.
Essa nova postura de reivindicações marca a quarta fase dos estudos e dos
movimentos negros no Brasil, pois acontece uma mudança do paradigma clássico. Essa
mudança é própria do momento de grandes transformações econômicas, políticas e
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culturais no mundo contemporâneo em decorrência, principalmente, da queda do Muro de
Berlim e a consolidação do fenômeno da globalização em todos os setores da vida social
que nos remete a Giddens (2002), quando este afirma que a sociedade contemporânea deixa
para trás as tradições que não mais se justificam para adotar posturas mais condizentes com
as necessidades do momento. Desse mesmo modo, os movimentos negros deixam de lado o
ideal de Brasil mestiço para proceder às ações pelo reconhecimento étnico-racial dos
negros.
É assim que se dá início às ações afirmativas para que estas promovam a mobilidade
social, o desenvolvimento social, a formação profissional e as chances de concorrência e
competição do homem e da mulher no mercado de trabalho. Porém, ainda muito que
avançar e muitas resistências a serem quebradas entre os intelectuais e a sociedade civil,
pois as disparidades na viabilização de igualdade de oportunidades entre negros e brancos
ainda é grande, para um país que em 2008, conforme o IPEA (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada), contará com uma população em que a maioria já é de negros,
conforme divulgação do jornal O Estado de São Paulo - SP no dia 14 de maio de 2008.
Os dados revelados por esse órgão de pesquisa, que é ligado ao Ministério do
Planejamento, comprovam ainda que, apesar da igualdade numérica entre negros e brancos,
a desigualdade no acesso a bens, a serviços e a direitos fundamentais como educação e
nível de emprego devem permanecer díspares em prejuízo para o negro por, no mínimo,
mais 32 anos. Esse tempo revela que as ações reparadoras estão começando bastante
atrasadas se se considerar que a Abolição aconteceu há 120 anos.
Isso se confirma nos dizeres de Mário Lisboa Theodoro, diretor de Cooperação de
Desenvolvimento do IPEA, pois este observa que as políticas universais não são suficientes
para resolver a questão racial, pois no Brasil, após o fim da escravidão, não houve
investimento de dinheiro público na população negra. Havendo, portanto, a necessidade de
ações específicas para eliminar essas disparidades (O Estado de S. Paulo, 14/maio/2008).
Nesse sentido, parece sensato defender, como primeira ação reparatória, as cotas nas
universidades, pois elas terão papel estratégico nessa luta por igualdade de oportunidades,
mesmo que se saiba que elas são parte de um conjunto maior de ações afirmativas que
deverão ser aprovadas em breve.
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Movimentação para favorecer esses processos políticos não faltam. Dois processos
políticos recentes mostram isso: a preparação para a participação brasileira na Conferência
de Durban, realizada na África do Sul em 2001 e o projeto de lei do senador Paulo Paim do
PT do Rio Grande do Sul, o Estatuto da Igualdade Racial.
Em relação ao projeto de Paim, ele tramita no Senado alguns anos e, por
razões referentes à Lei orçamentária, que impediria sua aprovação, foi apresentado em
2006, ao Senado, um substitutivo a tal Projeto de Lei, o Estatuto da Igualdade Racial:
Inclusão da Nação Negra. Esse Estatuto visa defender e dar voz aos que sofrem
preconceito ou discriminação em função de sua etnia, raça e ou cor.
Paulo Paim, assim como o Sr. Benedito Samuel da Costa, o “Dito Preto” da
Comunidade Negra de Santa Bárbara D’Oeste, afirma que a luta do povo negro no Brasil
teve início no século XVI, quando estes eram transportados como animais nos navios
negreiros para serem escravizados aqui.
O grande líder de Paim e dos integrantes dos movimentos negros brasileiros é
Zumbi dos Palmares que, a partir de 1670, passou a inspirar a luta pela liberdade e
cidadania do povo negro no Brasil.
Busto de Zumbi dos Palmares em Brasília
http://pt.wikipedia.org/wiki/Quilombo_dos_Palmares
São os ideais de liberdade defendidos por Zumbi, o norte para as vidas de
abolicionistas como Joaquim Nabuco, Castro Alves, Rui Barbosa, José do Patrocínio,
André Rebolças, Luís Gama, Antonio Bento e de tantos outros, afirma Paim (2006).
Embora haja controvérsia sobre o pensamento referente à Zumbi tanto nas obras de Rui
Barbosa como nas de Joaquim Nabuco.
Os abolicionistas queriam mudar a forma de agir e pensar da sociedade brasileira
daquela época, queriam mostrar à sociedade brasileira da época que os negros eram
também seres humanos e que, a cor da pele era a única diferença entre eles. Queriam justiça
que deveria vir com a abolição da escravatura.
Nesse sentido, a luta dos abolicionistas é vitoriosa e em 13 de maio de 1888 com a
assinatura da Lei áurea pela Princesa Isabel. Porém, além de o Brasil ser o último país a
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acabar com a escravidão, ao fazê-lo não concedeu direitos aos negros. Nem direito à terra,
nem à educação e menos ainda ao trabalho remunerado. Assim, a justiça não veio, pois os
negros passaram de dominados a excluídos. Situação que permanece para a grande maioria
da população negra até os dias atuais.
Desse ponto de vista, o 13 de maio deve ser lembrado para mostrar que a batalha
dos abolicionistas não foi em vão, pois permitiu, mesmo de forma lenta, algumas
conquistas tais como: em 1951 a aprovação da Lei Afonso Arinos, que defendia o princípio
da igualdade; em 1988, a Constituição, em seu artigo 5º, inciso XLII, declara que “a prática
do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos
termos da lei”; em 1989, a Lei Cão, regulamenta o princípio institucional para combater o
racismo; em 1997, foi aprovada a Lei 9.459 de autoria de Paim que, entre outras coisas
define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, condena o nazismo e
considera a injuria também crime inafiançável; em 2004, foi aprovada no Senado Federal, o
Projeto de Lei 309/2004, também de autoria de Paim que define os crimes resultantes de
discriminação e preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem, afirma Paim (2006).
Como se vê, muito foi feito, mas ainda muito por fazer, e é nesse sentido, que
se articula a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial na Câmara dos Deputados. Essa
matéria já foi aprovada em 2005, no Senado, por unanimidade, e se as medidas nele
constantes forem adotadas pelo Governo federal, a população afro-brasileira terá
assegurado direitos fundamentais como:
- o acesso universal e igualitário ao Sistema Único de Saúde (SUS) para
promoção, proteção e recuperação da saúde dessa parcela da população; - serão
respeitadas atividades educacionais, culturais, esportivas e de lazer, adequadas
aos interesses e condições dos afro-brasileiros; - os direitos fundamentais das
mulheres negras estão contemplados em um capítulo. - será reconhecido o direito
à liberdade de consciência e de crença dos afro-brasileiros e da dignidade dos
cultos e religiões de matriz africana praticadas no Brasil; - o sistema de cotas
buscará corrigir as inaceitáveis desigualdades raciais que marcam a realidade
brasileira; - os remanescentes de quilombos, segundo dispositivos de lei, terão
direito à propriedade definitiva das terras que ocupavam; - a herança cultural e a
participação dos afro-brasileiros na história do país será garantida pela produção
veiculada pelos órgãos de comunicação; - a disciplina “História Geral da África e
do Negro no Brasil”, integrará obrigatoriamente o currículo do ensino
fundamental e médio, público e privado. Será o conhecimento da verdadeira
história do povo negro, das raízes da nossa gente; - a instituição de Ouvidorias
garantirá às vítimas de discriminação racial o direto de serem ouvidas; - para
assegurar o cumprimento de seus direitos, serão implementadas políticas voltadas
para a inclusão de afro-brasileiros no mercado de trabalho; - a criação do Fundo
Nacional de Promoção da Igualdade Racial promoverá a igualdade de
oportunidades e a inclusão social dos afro-brasileiros em diversas áreas, assim
99
como a concessão de bolsas de estudo a afro-brasileiros para a educação
fundamental, média, técnica e superior (PAIM, 2006, p. 4).
Essas exigências são fundamentadas para que haja igualdade de direitos entre
brancos, índios e negros, que eles, em conjunto, fizeram com que o Brasil se tornasse
uma das maiores potências econômicas do mundo atual.
A participação do negro no desenvolvimento do País deve ser, portanto, registrada
para que seja valorizada, pois do jeito como está, o negro continua sofrendo, conforme
mostram as pesquisas, que estas apontam que os negros são maioria nas listas de
assassinatos, nas prisões, no desemprego e entre aqueles que dependem do salário mínimo.
Dados do IPEA comprovam essa situação, pois mostram que os diferenciais de
pobreza entre negros e brancos não diminuíram desde 1995, que a proporção de negros
abaixo da linha de pobreza é de 50%, enquanto a de brancos fica em 25%. Quando se
analisa o diferencial entre os indigentes, que é a população mais pobre entre os pobres, a
situação é ainda mais desfavorável aos negros. A proporção de negros abaixo da linha de
indigência no total da população negra no Brasil está em torno de 25%, também superior à
proporção de brancos que é de 10% e esta proporção também se mantém desde 1995,
afirma Paim (2006).
Assim, o Estatuto de Paim, que foi elaborado em conjunto com representantes do
Movimento Negro brasileiro, visa dar fim a esses índices e ao pensamento discriminatório
que não permite a diminuição dessas diferenças, que no Estatuto se exige espaços que
foram negados até hoje. “O Estatuto é um conjunto de ações afirmativas, reparatórias e
compensatórias. Sabemos que esses tipos de ações devem emergir de todos e em cada um.
Devem partir do Governo, do Legislativo, da sociedade como um todo e do ser humano que
habita em cada um de nós” (PAIM, 2006, p. 5 e 6).
Conforme se propicia a discussão, as ações afirmativas vão se multiplicando. Elas
são frentes de luta contra o racismo na educação, no mercado de trabalho, nos meios de
comunicação e em diversas outras áreas.
Assim como na reflexividade individual de Giddens (2002), a discussão sobre esse
assunto gera um debate interno dentro das pessoas e isso faz com que elas exponham seus
pontos de vista a partir de suas referencialidades internas, expandindo ainda mais a
discussão entre outros indivíduos e obrigando-os também a refletirem e se posicionarem
perante o assunto.
100
Ao que se observa, essa discussão está levando muitos indivíduos negros e brancos
para a esfera política, pois estes começam a perceber que a realidade não poderá mudar se
não houver mudanças nesta esfera.
Desse modo, o Movimento Negro, no Brasil está lutando para a reconstrução de
políticas emancipatórias, está lutando para ver os direitos de todos os cidadãos respeitados,
em especial, do cidadão negro que teve o acesso a esses direitos tantas vezes adiados.
Vida longa às idéias de Zumbi dos Palmares e de todos aqueles que tombaram,
mas que perpetuaram seus ideais em defesa dos negros, dos brancos, dos índios,
das mulheres, das crianças, dos homossexuais, dos idosos e de todos os que são
discriminados. Que a força de todos esses grandes guerreiros seja nossa
inspiração, nossa fonte de energia para os dias de luta que ainda vamos enfrentar.
Essa luta é pelo bem de todos, não contra alguém (PAIM, 2006, p. 7).
Portanto, pode-se considerar que os contornos do movimento negro dos últimos
anos giram em torno da luta pela reparação dos danos causados aos negros por meio do
combate às desigualdades raciais e de oportunidades entre brancos, negros e índios. Como
essa é uma responsabilidade histórica do Estado brasileiro, as políticas públicas de ação
afirmativa é uma modalidade eleita como reivindicação e este caminho eleito tem
intensificado o diálogo entre o movimento negro e o Estado, afirma Cantarino (2003).
Porém, ao que parece, apesar de um aumento no apoio nessa luta, a instituição
legalizada desses direitos encontra ainda muita resistência por parte dos políticos, mas a
grande expectativa na aprovação do Estatuto da Igualdade Racial tem concentrado esforços
de boa parte da militância negra que considera tal aprovação um marco político dos mais
importantes, pois esse documento condensa muitas reivindicações históricas do movimento
negro que, como se viu, o se resume ao sistema de cotas, que ele é muito mais
abrangente.
Segundo Edson Lopes Cardoso, ativista histórico e fundador do MNU (Movimento
Negro Unificado), no projeto em tramitação estão incluídas, praticamente, todas as questões
levantadas pelo movimento negro dos últimos trinta anos. Ele também afirma que o sistema
de cotas é parte do Estatuto que orienta para a necessidade de que todas as políticas de
desenvolvimento econômico e social devem conter a dimensão de superação das
desigualdades raciais, afirma Cantarino (2003).
Além da luta em torno da aprovação do Estatuto de Paim, um outro momento muito
significativo para o MNU foi a realização da Conferência Nacional contra o Racismo e a
101
Intolerância que aconteceu em julho de 2001, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ), destaca, Cantarino (2003), pois esse evento encerrou o processo de preparação da
participação brasileira na Conferencia Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, organizada pelas Nações Unidas, em Durban, África
do Sul, em setembro de 2001.
Essa Conferência em Durban vem sendo descrita pelos ativistas, garante Cantarino
(2003) como o momento no qual o movimento negro se aglutinou em torno desta
reivindicação, conforme afirma Deise Benedito, coordenadora de articulação política e de
direitos humanos da organização não-governamental Fala Preta! “Durban sinaliza um
consenso sobre a necessidade de se implantar ações afirmativas no Brasil”. Valorizando
assim, as políticas de ação afirmativa em discussão por várias entidades do movimento
negro e mesmo pelo Governo Federal (que criou em 1995, um grupo de Trabalho
Interministerial para debater esta modalidade de política pública).
A importância da Conferência de Durban se comprova pela participação em sua
preparação na Conferência Nacional contra o Racismo e a Intolerância, pois os dados
fornecidos pelos organizadores revelam a participação de 1500 delegados e de 500 ouvintes
cadastrados. Cada estado brasileiro elegeu uma delegação para representá-lo. Assim, os
membros das vinte e sete delegações se subdividiram em grupos temáticos e se reuniram
para apresentar as propostas elaboradas nas pré-conferencias estaduais. “O que se pretendia
era que essas propostas fossem votadas e sistematizadas para serem encaminhadas para o
Comitê Nacional que as incorporaria ao documento a ser levado para a Conferencia
Mundial da UNU” (CANTARINO, 2003).
A Conferência Nacional revelou também as dificuldades encontradas em cada
Estado brasileiro, inclusive obrigando as autoridades locais a reconhecerem a existência do
movimento negro. Mas revelou também que muitas mulheres negras tinham experiência de
participação em eventos internacionais e estavam bastante mobilizadas a partir de suas
organizações não-governamentais. Porém isso não quer dizer que as mulheres são os
sujeitos políticos que mais se destacam no movimento negro contemporâneo, isso porque,
afirma Maria Palmira da Silva. “Atualmente os movimentos sociais funcionam como redes
que se conectam e desconectam, dependendo do cenário político. Isto significa dizer que
102
eles são complementares. Do meu ponto de vista, não é possível fazer esta classificação”
(CANTARINO 2003).
Essa autora, destaca ainda que Deise Benedito, da organização não-governamental
Fala Preta!, lembra que a reparação também passa pela questão da memória:
Resgatar a memória é importante porque informação é conhecimento e obter
conhecimento também é uma forma de obtenção de poder." Seria necessário,
então, promover a recuperação da dignidade dos "antepassados africanos":
"embora o movimento negro tenha conseguido resgatar a memória de Zumbi e do
quilombo de Palmares, praticamente não monumentos dedicados à história da
população negra e seus antepassados. Existe sim estátua para [o bandeirante]
Borba Gato na cidade de São Paulo, bem como 'rodovia dos Bandeirantes'", o que
seria de uma violência inominável para Deise Benedito, já que "historicamente os
bandeirantes foram os responsáveis por várias atrocidades contra a população
negra no Brasil inclusive a própria destruição de Palmares (BENEDITO apud
CANTARINO 2003).
A Pastoral do Negro também colabora na formação de novos movimentos e,
conforme afirma Padre Jurandir Azevedo Araújo, sdb, Mestre em educação, Psicólogo
Clínico, Psicopedagogo e Acessor da Pastoral Afro-brasileira da CNBB, essa Pastoral
começa a ser gestada em 1977 a partir de diversos encontros que visavam uma reflexão que
respondesse aos desafios da situação de injustiça, marginalização e discriminação em que
se encontravam os negros brasileiros. A partir disso, elaborou-se um “Panorama
Missionário da Igreja na América Latina” que foi apresentado na XVII Assembléia da
CNBB em 1979. Esse assunto chamou a atenção dos bispos, mas, segundo o Padre Jurandir
Azevedo Araújo, pode-se dizer que a Pastoral Afro-brasileira (PAB), nasceu na sede da
CNBB, no ano de 1978, em Brasília, depois de um encontro de estudiosos preocupados
com a evangelização do povo negro.
Portanto, em 2008 completam 25 anos de organização, conscientização e
valorização das populações negras realizadas pelos agentes de pastorais negros. A relação
desses agentes com a PAB é articulada para se conseguir penetrar em todos os lugares onde
tem afro-brasileiros. “A PAB surgiu depois de um longo processo de conscientização e
atuação de gerações de negros/as que assumem viver sua na Igreja, mas levando em
conta a realidade da população afro-brasileira” (Documento 85, CNBB, Brasília, 2003, nos.
1, 60, págs 11e 38 APUD ARAÙJO 2008). Assim, a PAB e os agentes de Pastoral do povo
negro estão juntos na luta para a implementação e fiscalização da Lei 10.639, o sistema de
cotas, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e acompanhar as fundações
instituídas.
103
3.3 – História do Movimento Negro em Santa Bárbara D’Oeste
O Movimento Negro nasce, em Santa Bárbara D’Oeste, no ano de 1988 sob
inspiração da Campanha da Fraternidade daquele ano, cujo tema era: “Fraternidade e o
Negro” e o lema: “Ouvi o clamor deste Povo”, pois no Brasil se comemorava, naquele ano,
cem anos da Lei Áurea, sem ainda se ter conseguido minimizar as diferenças entre o branco
e o negro, conforme confirma parte da mensagem do Papa João Paulo II.
A campanha visa a animação pastoral da Quaresma, centrada no tema: “a Igreja e
o Negro”. Trata-se de larga faixa da população brasileira, comemora-se neste ano
a chamada “lei áurea” e uma real problemática que merece solicitude pastoral,
inspirada por critérios evangélicos, aderente e fiel à doutrina da Igreja acerca da
dignidade da pessoa humana e da promoção dos seus direitos e tendo em vista o
bem comum (PAPA JOÃO PAULO II, 1988).
Nessa mensagem, o Papa João Paulo II afirma ainda que a escravidão está entre as
coisas infames nomeadas no Concílio Vaticano II e proclama a liberdade para todos os
homens, sem exceção que: “em toda parte, e mais ainda dentro da mesma pátria comum,
todos os homens e mulheres são iguais em dignidade, diante de Deus; e nas estruturas, hão
de dispor de acesso igual à vida econômica, cultural e social, participando realmente no
bem comum” (Idem). Afirmando ainda que todos devem caminhar juntos, como irmãos, no
mesmo sentido “no sentido da construção de uma sociedade mais justa e fraterna, onde haja
lugar para todos” (Idem).
Em Santa Bárbara d’Oeste, neste ano, “os agentes de pastorais negros” da cidade
eram: o Senhor Benedito Samuel da Costa (Dito Preto); João Amâncio de Campos; João de
Deus; Áurea de Deus; Carlos Brás; José Antonio Rodrigues; Valdelem Rodrigues; o Senhor
Benetido Euzébio; entre outros. Todos eles eram liderados pelo Padre Benedito do Carmo
Aires na Igreja Bom Jesus e pelo Padre Bodion na Igreja Nossa Senhora Aparecida. O
Padre Benedito apoiado pelo Padre Bodion convidou esses agentes a se reunirem para um
trabalho, uma pesquisa sobre o catolicismo e a questão afro, que haviam recebido, em
função da Campanha da Fraternidade, livros, cartilhas e cartazes sobre esse tema.
Segundo o Senhor Benedito Samuel da Costa, o Padre Benedito propôs esses
estudos porque esses agentes sempre o questionavam sobre o porque de os negros não se
verem na Bíblia e nem dentro da estrutura da Igreja mesmo tendo em comum o mesmo
104
Deus. A Campanha da Fraternidade de 1988 propiciava esse debate com o tema “Povo
Negro, um clamor de justiça” que, ratificado pela CNBB ficou assim definida:
“Fraternidade e o Negro” e o lema: “Ouvi o clamor deste Povo”. Com isto, os estudos
começaram.
Em conseqüência dessa Campanha da Fraternidade e dos estudos realizados, em
novembro de 1988, o senhor Benedito (Dito Preto) esteve em São Paulo para um encontro
de agentes de pastoral negro e esse encontro foi muito significativo para ele.
Cheguei lá estavam realizando a festa do 20 de novembro né. Eu não tinha noção
nenhuma de que seria né, como que era, [...] foi onde eu vi todos, padres, freiras,
leigos de todo o estado né, aliás, de todo o Brasil, [...] falando a questão afro,
cantando as sicas afro, celebrando dum jeito afro né, a missa afro, com todos
elementos do Candomblé, elementos de outras culturas né, [...] então eu me
encantei e..., eu me encantei e quando eu cheguei aqui né, aí eu..., tem um pessoal
que a gente se reunia que não tinha ido, eu fui sozinho pra lá, aí eu passei, mostrei
que a gente podia fazer outras coisas né, pra... Implementar mais a religião e a
cultura afro né, que eram coisas nossas, coisas que eram da África mesmo,
eram celebradas dessa forma, aí, foi que nós conseguimos fazer a primeira
missa aqui, [...] foi na praça, nós levamos o atabaque, os instrumentos, levamos
as comidas do candomblé né, e fizemos assim uma celebração bem diferente
(Entrevista à autora em 20/09/2008).
Assim, esse encontro em 1988 deixou o senhor Benedito encantado com as
possibilidades de incluir, nos ritos católicos, os instrumentos, as músicas e os símbolos
afros, valorizando a religião que o povo negro trouxe da África.
Em 1989, esses agentes de pastorais negros de Santa Barba d’Oeste perceberam que
era hora de deixar de ser apenas um grupo de pessoas trabalhando na Igreja e assumirem
a posição de um movimento social com nome e objetivo definidos.
Para tanto, em 23 de março de 1989 optaram pelo nome de Comunidade Negra
Quilombo da Paz com um objetivo inicial de agir de forma a valorizar o negro dentro da
Igreja. Isso porque, que começaram dentro da Igreja, esta deveria ser a primeira
instituição a se conquistar um espaço maior. Nesse sentido lutaram para ter direito às
celebrações litúrgicas afros e também para inserir alguns símbolos, inclusive nas cores a
serem usadas nas missas e nos batizados, para que os negros também se vissem
representados ali. Na catequese, foi solicitado que se mudasse o discurso, que se falasse
como era na África porque a eucaristia nas religiões afros, lembra o Sr. Benedito, não é
aquela que fica guardada na Igreja, é tudo aquilo que é dado pela Terra: o arroz; o feijão; a
mandioca, a polenta.
105
Com essa nova atitude adotada, foram mostrando às outras pessoas que a dança
fazia parte do rito sagrado, muita dança, muitos instrumentos, muitos cantos e muita
comida, porque não se faz celebração religiosa sem comida. Esse objetivo foi alcançado
pelo grupo, afirma o Senhor Benedito, com o apoio dos padres acima citados.
Figura 2: “Culto Ecumênico” na Praça Central de Santa Bárbara D’Oeste em 24.nov.2007
(fotografado pela própria autora)
Depois que conquistaram o espaço desejado dentro da igreja, a Comunidade Negra
Quilombo da Paz, presidida pelo Senhor Benedito (Dito Preto) procurou por formas de
reivindicar os direitos dos negros nos meios políticos e de comunicação como a imprensa, a
Prefeitura e a Câmara Municipal, para conseguirem a ampliação de seus direitos nas demais
instituições da cidade.
Nessa época, já apoiados pela Constituição de 1988, conseguiram espaço para
trabalhar e arrecadar dinheiro dentro das festas culturais. Conseguiram montar uma barraca
de comidas afro na Festa das Nações e nas festas comemorativas; bem como fazer
apresentações das festas, dos cantos e das danças africanas.
Na imprensa, conseguiram espaço para a divulgação de trabalhos da cultura negra.
Nas datas específicas, conseguiram espaços no museu, na biblioteca e no teatro. Depois de
mais esse espaço conquistado, depois que conseguiram abrir as portas e penetrar na
sociedade, partiram para a questão social.
É lógico que não foi dum dia pro outro, não foi fácil [...], não foi também porque
eles são bonzinhos, porque a gente sabia, depois da constituição qual era..., o que
que a constituição dava direito pra gente, a gente já tinha os documentos na mão,
sabia por que porta entrar. E nós conseguimos depois, o respeito da sociedade,
conseguimos o respeito dos políticos, conseguimos que eles vissem que a gente
estava fazendo parte, que fazíamos parte de uma sociedade, mesmo excluída, mas
querendo ou não a gente fazia né, os direitos que a gente não conhecia, nós
começamos a exercer e a exigi né. Foi onde o movimento começou a criar forma,
começou a ser mais respeitado né. Passamos a ser convidado pra todas atividades
política da cidade né, e foi aonde nós começamos a trabalhar a questão social né,
e junto com a questão social no dia... No ano de 1995 que comemorou 300 anos
de Zumbi nós partimos também pra questão da educação, porque nós
queríamos que falassem quem era o Zumbi, porque o Zumbi não era conhecido
nem por negros nem por brancos (Benedito Samuel da Costa, entrevistado pela
autora em 20/set/2008)
106
Assim, depois de muitos estudos, encontros e assembléias, os integrantes do grupo
começaram a fazer trabalhos nas escolas. A partir das escolas, o Sr. Benedito conseguiu
trabalhar em parceria com a Diretoria de Ensino de Americana e, com a ajuda da Diretoria
foi montado um grupo de reflexão e de estudos afros para ensinar os professores. Isso
aconteceu entre 1995 a 2000. Nesse e trabalharam com mais de 500 professores durante os
5 anos de existência desse trabalho, que funcionava em forma de encontros de formação de
professores voltado mais para a cultura afro. Estudavam os mitos, as comidas, as danças e a
religião.
Depois de algum tempo desse trabalho, a Diretoria de Ensino de Americana
conseguiu uma parceria com a UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos). A partir
disso, os encontros eram ministrados pelos professores da Universidade que possui um
núcleo de estudos afros e tinha à frente desse núcleo, na época, a Dra Petronilha Beatriz
Gonçalves. A partir de então o curso, além de contemplar o conhecimento cultural passou a
contemplar também a formação pedagógica.
Esse projeto, contando todo o tempo antes e depois da parceria, durou de 1995 a
2000, porque, quando a dirigente da Diretoria de ensino foi substituída, aquela que assumiu
a direção entendeu que este trabalho que era realizado pelo Sr. Benedito em conjunto com a
professora coordenadora de História Célia Gobbo, que neste caso, representavam a
Diretoria de Ensino de Americana, deveria ser realizado com uma equipe interna da
Diretoria com o pessoal disponibilizado pela Universidade. Mas isso, não deu certo,
lamenta o Sr. Benedito, quando foi retirado do curso a parte cultural, ficando a parte
pedagógica, os professores perderam o interesse e abandonaram o curso sem esperar pelo
seu término.
Nesse projeto, lembra o senhor Benedito, ele estava exercendo a Lei 10.639, que
seria sancionada em 09 de janeiro de 2003. Essa Lei se refere à obrigatoriedade de as
escolas oficiais e particulares incluírem no conteúdo programático o estudo da História e da
Cultura Afro-Brasileira.
Com a ampliação dos integrantes do grupo, expandiram-se também as frentes de
trabalho e com isso, acharam melhor redigir um novo estatuto para o grupo. Isso foi feito
em 10 de outubro de 2002. E neste mesmo ato, foi eleita uma nova presidente – Tânia Mara
107
da Silva sob a aprovação do Senhor Benedito, que nunca abandonou o grupo e é membro
requisitado constantemente pela experiência adquirida.
Desse modo, desde o ano de 2002, o Senhor Benedito não é mais o presidente da
Comunidade Negra de Santa Bárbara D’Oeste, que passou a se chamar oficialmente
Associação Cultural e Beneficente Comunidade Negra “Quilombo da Paz”. Mas exerce
função educativa, juntamente com uma pedagoga em uma Associação fundada e presidida
por ele desde 1996, que, porém, existe oficialmente a partir de 2004 pois antes de ele
conseguir parceiros que se responsabilizassem pelo aluguel de uma casa de seis cômodos,
as atividades educativas eram realizadas em um galpão no quintal de sua casa, que mora
em uma chácara no bairro Vista Alegre e o bairro não possui espaço público destinado para
as crianças exercerem atividades físicas ou educativas fora da escola.
Nessa Instituição, AMEV (Associação dos Moradores dos bairros Parque Eldorado,
Vista Alegre e adjacências), as crianças de 7 a 14 anos são atendidas em período inverso ao
que estudam para não ficarem na rua enquanto os pais trabalham. Nesse local eles estudam,
almoçam, tomam banho, trocam de roupa quando saem de lá para irem à escola.
Essa Instituição não recebe verba da Prefeitura, ela é mantida por meio de parcerias,
de dinheiro arrecadado em festas nas Igrejas católicas, da doação de duas empresas que
pagam o aluguel do imóvel, da doação de neros alimentícios por alguns supermercados
da cidade, da doação de tênis pelo sindicato dos metalúrgicos, de doação de roupas pelo
Lyons Clube, de rodadas de pizzas ou de lanches em passeios específicos pela cidade, de
arrecadação de arroz, feijão, macarrão, óleo e temperos em campanhas especificas nas
escolas.
Assim, cada um ajuda de uma forma e são esses parceiros que ajudam a manter essa
Instituição. Do governo recebeu duas verbas até hoje: uma do Fundo da Criança e do
Adolescente, R$ 40.000,00 (Quarenta mil reais) para comprar os computadores e para
pagar um professor por um ano; e uma verba de R$ 30.000,00 (Trinta mil reais), que foi
utilizada para comprar uma perua Kombi.
Com isso, ele consegue manter 35 crianças fixas entre os dois períodos e mais umas
vinte ou trinta crianças pobres desses bairros. Mas existe também nesse local o ensino
profissionalizante. Isso acontece quando qualquer pessoa quer cursar Informática. Existe
também o encaminhamento para o Senai ou para qualquer outro programa disponibilizado
108
pela prefeitura da cidade. Assim, essa instituição mantém dois projetos: recanto da criança;
e o projeto ampliando horizontes que possui 10 computadores que são utilizados por todos
que procuram apoio da instituição.
Juntando as crianças que ficam na instituição em período inverso ao de estudo, mais
os adolescentes e os adultos atendidos, o total anual chega a ser de 100 a 120 pessoas. Isso
sem contar com os encaminhamentos feitos para o SENAI (Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial) e para os projetos da prefeitura em parceria com o SENAI tais
como Geração XXI e o Pró Jovem.
Os cursos oferecidos pela Instituição presidida pelo Senhor Benedito, são
gerenciados pelo SENAI, inclusive com bolsa de estudo parcial e com certificado também
fornecido pelo Senai. Nos projetos da Prefeitura também se consegue quantas vagas forem
necessárias, sem passar por exame de seleção. Isso porque, lembra o Senhor Benedito, eles
sabem que se não arrumarem as vagas solicitadas, “nós vamos para a imprensa e como eles
não querem isso, eles arrumam”.
Mas está muito difícil manter essa Instituição sem uma ajuda da prefeitura, e isso é
sempre alertado nos programas de rádio que a Comunidade apresenta semanalmente.
A gente fala da dificuldade pra que quem ouvindo e num se preocupando
com a gente, ele entende pra quem a gente falando né. Que é principalmente
pra prefeitura, nós estamos fazendo um trabalho que a prefeitura tinha que fazer,
que eles num vem nem nos visitar né. (Benedito Samuel da Costa, entrevistado
pela autora em 20/09/2008).
Hoje os dirigentes da Comunidade Negra de Santa Bárbara D’Oeste atuam mais
intensamente em três atividades: na AMEV, sob a responsabilidade do Senhor Benedito;
apoiando os moradores do Assentamento “Zumbi dos Palmares” no que se refere a
orientações jurídicas fornecidas por Antonio Carlos Vianna de Barros; num curso semestral
de formação de professores ministrado pela Tania Mara da Silva que neste ano,
especificamente não ministrou este curso porque está concorrendo a um cargo de
vereadora.
Nessas funções, ressalta o Senhor Benedito, o principal é saber identificar qual é a
necessidade do povo. Porque existem pessoas que têm condições de estudar, se formar e se
informar, mas o que se percebe é que o povo está precisando de uma educação que envolva
a cidadania, porque quanto mais a tecnologia aumenta, mais aumenta a exclusão, não do
negro, mas do pobre em geral e, nesse sentido, a grande maioria das crianças, dos jovens e
109
dos adultos não estão acompanhando a formação que a sociedade está exigindo. Se
continuar assim, se não se conseguir mudar essa realidade, num futuro bem próximo, a
exclusão vai ser muito maior do que era, até mesmo na época da escravidão, afirma o
entrevistado.
Hoje os pais se preocupam em colocar comida em casa, mas não estão preocupados
em preparar os filhos para enfrentar a vida, para ensinar a eles os direitos e os deveres. É
muito difícil convencer os pais de hoje, que não é a comida que fortalece uma pessoa.
Além de estar bem alimentado, o filho deve aprender ser cidadão. Ele tem de ter educação,
ele tem de expandir seus horizontes, conhecer as tecnologias. “Então nós do Movimento
Negro”, afirma o Sr. Benedito, “nos preocupamos muito porque a parte mais pobre do
Brasil é de negros”.
E conclui que hoje, se a pessoa tiver conhecimento dos direitos dela, ela pode
conseguir boa formação, mas sem uma formação mínima a pessoa não consegue nem saber
onde procurar por oportunidades, porque as informações que são vinculadas pela televisão
e pelos jornais não são claras, elas podem confundir as pessoas que não têm boa formação
porque as informações não são completas. Quem não possuir um conhecimento prévio do
assunto, muito provavelmente, não conseguirá entender a mensagem veiculada. A luta
segue no sentido de se conseguir que todos tenham o direito de viver com dignidade, com
respeito.
E, se a Tânia (Tânia Mara da Silva, atual presidente da Associação Cultural e
Beneficente Comunidade Negra Quilombo da Paz), for eleita vereadora, o Senhor Benedito
entende que responsabilidade dos dirigentes, que é grande hoje, será maior ainda porque
essa representante da Comunidade Negra não vai poder ficar presa em gabinete. “Vamos ter
de estudar um meio de entrar nos lugares que a gente entende que deve entrar”, afirma o Sr.
Benedito.
Tânia Mara, citada acima, ingressou na rede municipal de ensino de Santa Bárbara
D’Oeste 18 anos quando, ao terminar o curso de Magistério, foi aprovada em concurso
municipal para exercer a função de professora no ensino infantil. Depois de ingressar na
rede de ensino da cidade, ela cursou e se graduou em Pedagogia e fez cursos de
especialização para a Educação Especial e em Gestão Escolar.
110
Em uma das escolas em que trabalhou na função de coordenadora pedagógica,
Tânia se deparou com uma comunidade carente e que necessitava de um tratamento
diferenciado, mas, assim como ela, os professores daquela escola não estavam preparados
para lidar com tais necessidades.
Porém, começou a refletir sobre a situação específica daquela comunidade. A escola
atendia os filhos dos moradores de um conjunto habitacional de apartamentos que havia
sido entregue a uma população carente. Esse condomínio abrigava, na época, em torno de
4.000 pessoas e, dentre elas, muitas eram negras. Foi nessa reflexão que Tânia se despertou
para a situação do negro na sociedade atual, pois esta comunidade precisava ser acolhida,
mas não contava com a boa vontade dos professores para isso. Foi preciso então alertar os
professores de que eles não estavam falando para uma comunidade de iguais, mas sim para
uma comunidade de diferentes e que aqueles alunos precisavam ser valorizados naquilo que
sabiam fazer, não somente naquilo que os professores tinham aprendido valorizar. A
necessidade de mudança de comportamento dos professores ficou evidente em um
Conselho de Classe quando os cinco alunos apontados, por uma professora, com maiores
dificuldades de aprendizagem, eram negros.
Eu me lembro que uma época, e eu acho interessante isso Izabel, que esse olhar
ainda não era dirigido. conseguia prestar atenção nisso sem saber que..., meio
inconsciente. Eu estava num conselho de escola, eu trabalhava numa escola
grande aqui em Santa Bárbara, daí, na hora do conselho a professora começou a
pontuar os alunos e falar de 5 alunos, que os 5 alunos que ela pontuou, e eu
percebi um certo..., um certo asco na fala dela quando ela se referia a esses alunos
né. Aí, quando eu fui me dar conta, esses cinco alunos que ela havia falado eram
cinco crianças negras (Tânia Mara da Silva entrevistada em 24/08/2008).
A partir desse episódio, Tania começou a observar, em sala de aula, o tratamento
que essa professora dispensava a esses alunos 5 alunos negros.
Dentre esses alunos tinha um né, que ela, que inclusive ela disse: nossa! Eu tenho
que colocar ele do meu lado! Do meu lado! Né, e... como se fosse um problema
ter de coloca o menino do lado dela né. E... e daí eu lembro que eu tirei essa
criança pra conversar né, e... [...] e conversando com ele tal né, vui? Porque, o
que acontece na sala que você não consegue dá conta de fazer as atividades né, de
acompanhar? E a mão desse menino assim, transpirava tanto né, e... e eu me
lembro que eu pus a mão na mão dele e ele assim... É como se ele tivesse assim...,
morrendo de medo, medo! Daí eu me lembro da fala dele: a professora vai muito
depressa eu num consigo acompanhar né. Daí eu fico atrasado (Idem).
Tânia aconselhou o aluno a não se distrair tanto, mas sempre acompanhando o
comportamento da professora em relação a ele, especificamente, e relata que um dia essa
111
professora entrou na sala da coordenação segurando o menino pela blusa, na altura do
ombro, com dois dedos apenas, como se estivesse com nojo da criança e disse.
Que que se qué que eu faça com isso? Aquilo doeu muito né, é..., deu pedi
para ela saí, na verdade eu era coordenadora pedagógica né, i... [...] a vice
diretora era negra também e da gente conseguia falar de igual para igual né.
[...] Eu lembro que na época havia saído uma reportagem na veja i... i... era assim,
negros que conseguiram alcançar o sucesso tal... Eu me lembro que a Rute pega
essa revista e coloca o menino na frente, fecha a porta, e coloca o menino na
nossa frente e a gente faz tipo um você precisa reagir a tudo isso, eu achei
engraçado que ela pega... Olha, pra gente chegar até aqui, a gente tem que lutar
muito, nossa luta é difícil tal né. [...] A Rute fala, fala e eu falo pra ele assim: isso
é possível tal e daí a gente tava a questão da auto-estima desse menino. Olha
isso é possível tal né. Enfim, depois dessa conversa que a gente teve com ele a
gente percebeu que ele começou a reagir e daí com essa reação é... a professora
passa a ter uma outra atitude com ele também e ele começa a reagi, ele reage
(Idem).
Dessa experiência, Tânia entende que o importante é se perceber que nem sempre há
maldade na maneira de agir dos professores. Isso porque muitas professoras negras têm o
mesmo posicionamento e essa atitude se deve à educação eurocêntrica que tanto o branco
como os negros receberam até hoje no Brasil. Desse modo, os professores vão trabalhar da
maneira que aprenderam que deveriam trabalhar. Mas, esse episódio fez com que ela e a
vice-diretora procurassem desenvolver um trabalho que despertasse os professores para a
situação do negro na sociedade.
Como já conhecia o Senhor Benedito de visitas anteriores que ele havia realizado
na escola, Tânia entra em contato com ele e o convida para ir até à escola para dar algumas
explicações sobre como de deveria desenvolver em trabalho nesse sentido. A partir de tais
esclarecimentos Tânia começou a trabalhar e a discutir esse problema com os professores.
A discussão girava em torno da constatação de que as crianças daquela comunidade o
eram iguais àquelas que eles estavam acostumados a trabalhar e que, portanto, haveria de se
dispor a entender as várias linguagens da diversidade de alunos que compunham a sala de
aula.
Depois de desenvolver esse trabalho de inclusão social na escola, com as constantes
visitas do Senhor Benedito, Tânia passou a conhecer um pouco do Movimento Negro,
afirma.
Em 2001, ao ingressar num Programa de Mestrado da UNIMEP (Universidade
Metodista de Piracicaba) e, ao pleitear uma bolsa de estudos, fica conhecendo mais alguns
integrantes do Movimento Negro de Santa Bárbara D’Oeste. Por intermédio desse grupo,
112
Tânia afirma que passa a conhecer o Movimento Negro de uma outra forma e, com o
objetivo de discutir o sistema de cotas, acabou se envolvendo com o grupo e passou a
participar das reuniões, que aconteciam na Câmara Municipal por meio de aprovação de
requerimento apropriado. Nessas reuniões percebeu que os interesses e as preocupações do
grupo eram compatíveis com aquelas que ela vinha observando e combatendo na escola.
Dentre os integrantes do grupo que ela conheceu em Piracicaba se encontrava Antonio
Carlos Vianna de Barros (Carlinhos), seu atual marido que, na época cursava a graduação
em Direito.
No ano seguinte ao que ingressou para a Comunidade Negra, houve mudança no
estatuto para que este desse uma abertura maior para as atividades que se pretendia realizar.
Como houve também votação para a presidência, ela foi eleita porque foi considerada pela
maioria de seus integrantes, aquela que melhor tinha capacidade para articular o
conhecimento prático e o acadêmico. Capacidade necessária para se fazer um resgate
histórico do povo negro que o grupo pretendia para se promover uma discussão reflexiva da
história no negro. Isso porque, para os dirigentes, se deveria voltar no tempo para se
entender o processo que deixou o povo negro nessa situação para depois se estudar o
caminho que se deveria trilhar. E como esse resgate histórico é ensinado nas escolas nos
cursos que ela havia concluído, ficou decidido que ela seria a nova presidente e que se
daria um enfoque mais educacional para o Movimento, afirma Tânia, durante a entrevista.
Tânia se autodenomina militante porque se defendendo uma causa. A inclusão
dos excluídos. O termo exclusão a incomoda muito e a deixa indignada e procura adotar
uma ação diante disso. “O que que você faz pra reverter essa situação, eu me considero uma
militante por ter essa indignação e ação”.
Quando assumiu a presidência, Tânia pensou na necessidade de esse Movimento ter
como objetivo, um leque mais aberto de questões para que se pudesse pensar em uma
variedade maior de temas que envolvessem o avivamento da identidade do povo negro, o
intercâmbio entre grupos, promover eventos que envolvam a história e a cultura negra,
manter contato com organizações congêneres em vel regional, estadual, nacional e
internacional, colaborar na formação de agentes culturais, fomentar congraçamentos
religiosos, acompanhar e assessorar pessoas que sofressem qualquer tipo discriminação. E
para a consecução de seus objetivos, organizar encontros, conferências, cursos, congressos
113
e consultas sobre assuntos referentes à realidade e cultura negra e ter sua participação no
âmbito regional, nacional e internacional; promover publicações de caráter científico ou
divulgativo, relacionados com a raça negra; realizar outras atividades, por iniciativa própria
ou em cooperação com instituições afins, relacionadas com a raça negra; embora,
prioritariamente voltada para o desenvolvimento e participação da comunidade negra, não
se fará distinção alguma quanto à participação das pessoas independentes de raça, cor,
gênero, condição social, ideologia política, ou credo religioso.
Para tanto, podem tornar-se associados, as pessoas que se identificarem com a
filosofia da Associação.
3.4 – Ações sociais e práticas educativas:
Tânia entende que a Comunidade Negra “Quilombo da Paz” tem como preocupação
as ações sociais e as práticas educativas. “E por isso, assim, eu acho legal quando você diz
que assim, que tem uma prática é... social e educativa né”. Porque quando se está inserido
no processo, às vezes não se tem a visão do alcance da ação. “O que que a gente tá fazendo
né? Essa questão histórica, do se ver ..., é... porque quando você inserido você não
consegue percebe isso né, eu acho isso muito importante”.
Nesse sentido, Tânia relata a dificuldade de fazer com que as pessoas entendam a
realidade da sociedade para além do seu mundo particular, porque as pessoas têm
dificuldade para se identificarem como negras e têm dificuldades para identificarem as
manobras políticas. Isso ficou claro para ela em uma reunião política recente com alguns
moradores do Bairro Vista Alegre.
Nessa reunião nós estávamos num grupo essencialmente negro é, vamos dizer
assim, era assim, quem num era, eu gosto até de fazer essa provocação porque no
Brasil existe muito isso né, é... Nos Estados Unidos não, quando você tem é...
O fato de você ser descendente de africanos faz ti fais um negro, aqui no Brasil
não, essas várias tonalidades de pele, tipo assim, humm. O que que eu sou né?
Então eu até disse né, olha a gente ta numa reunião essencialmente de afro-
descendentes e tinham pessoas de tonalidades assim mais clara e então a
pessoa né. Do que que ce ta falando né? É..., e num sentido assim, da gente se
percebe, então eu gosto de fazê essas provocações (Tânia Mara da Silva em
entrevista 24/08/2008).
Esse bairro, que possui toda a infra-estrutura e que está muito bem cuidado pela
prefeitura, contrasta com alguns outros em que a situação ainda é de abandono, e pessoas
114
não conseguem identificar que existe um interesse político em deixar esse bairro,
especificamente, bonito, não percebem que ele está assim porque nesse bairro existem ali
pessoas formadoras de opinião, como por exemplo, padre e pastor.
A questão era: é... Nossa! Olha como nosso bairro melhoro, melhoro muito o
nosso bairro né! Então a pessoa, eu percebi assim, que algumas pessoas não
conseguiam saí daquele núcleo e assim. Nossa! O bairro aqui melhoro, mais aí
quando eu fazia várias citações de outros pontos da cidade, assim, partes com
muitos problemas, eles num tinham nem noção daquilo. Então assim, não basta
eu estar bem né, não basta eu estar bem, eu preciso saber como que os demais
estão né. E... d chamei mesmo a atenção do pessoal pra isso. Olha! É
interessante, é bom, aqui, olha quanto mudou aqui, mas olha o quanto precisa
muda nas outras áreas da cidade (idem)
Em seu discurso político para os moradores que participavam daquela reunião,
Tânia propôs uma reflexão sobre o tempo que demorou pra que aquele bairro ficasse
melhor, e porque agora está melhor ainda.
Você precisa chamá a atenção né, é, é das pessoas porque é assim, na verdade as
pessoas não se dão conta disso. Que será que aconteceu. Porque assim, uma
mudança repentina no bairro né. Então é assim. Isso é visível. Então assim né.
Realmente houve uma mudança muito grande né, mais aí, eu percebo assim, a
falta de, a dificuldade mesmo de percebe assim que, na verdade isso faz parte de
uma campanha política né, que faz parte também de uma conveniência [...] é
conveniente pra algum político deixar o bairro bonito agora. [...] Daí eu fiz
questão sim de frisar. Olha, olha, bairro tal, bairro tal, olha, eu brinco, onde o
padre e o pastor não passam não assim não. Aqui passa padre e aqui passa pastor.
Então é importante a gente deixar esse bairro bonito, com uma vista “Alegre” né.
Então eu achei muito interessante isso, porque, nas áreas que você não tem esses
apoios, num avançam não (Idem)
Outra atividade recente do grupo refere-se ao envolvimento da Comunidade Negra
com o pessoal do Assentamento Zumbi dos Palmares.
Sobre isso, Tânia relata que esse pessoal está nesse assentamento quase 5 anos e
que são pessoas que foram retiradas de uma obra particular interrompida. Um conjunto de
apartamentos que foi sendo invadido por famílias que não tinham condições de pagar
aluguel. Mas quando receberam a ordem para sair do local por reintegração de posse, foram
transferidos, por intervenção de políticos do PT e do PC do B (Partido Comunista do
Brasil), para esse local pertencente à UNIMEP. A ocupação inicial incluía essa área que
eles ocupam hoje, que pertence à UNIMEP e mais uma área, ao lado, que pertence à
Prefeitura, mas logo depois da ocupação, a Prefeitura solicitou a área que lhe pertencia para
poder construir uma escola no local.
115
A situação no início do ano estava muito preocupante para os moradores, afirma
Tânia, os funcionários da prefeitura estiveram no local e fizeram o cadastramento das
pessoas que teriam condições de assumir um financiamento na Caixa Econômica Federal
para o pagamento de casas que a prefeitura deveria construir. Depois desse cadastro, os
moradores aprovados foram convocados para uma reunião na prefeitura e foram
informados que as casas seriam construídas no mesmo local em que estavam assentados e
que, sendo assim, deveriam desocupar a área para não perderem o direito às casas.
Resumindo eles tinham um prazo pra saí né, que a princípio fico um mês, depois
de um mês, eles ah, então a gente prorroga pra mais um tempo né, e daí, a nossa
luta, foi assim, e na verdade assim, a gente acabou se envolvendo de certa forma,
de maneira total, e na verdade assim, você conseguindo faze como, que aquela
comunidade acreditasse, não na gente, acreditasse neles. (Idem)
Nesse processo, Tânia lembra que o mais interessante foi a questão jurídica, porque
em pesquisa descobriram que a área do assentamento é uma área destinada ao
desenvolvimento social da cidade sem especificação de como deve ser usada. “Alguma
coisa pra, pro desenvolvimento social da cidade precisa ser feito ali. Se aquelas pessoas
saíssem dali, eles poderiam fazer o que eles quisessem naquela área”.
A atitude de pedir para que aquelas pessoas não saíssem da área, tentando passar
confiança para elas, sem se ter uma certeza do que poderia acontecer, também era muito
arriscada, afirma Tânia. “Olha o risco! Olha a responsabilidade né. Olha, vocês precisam
ficá, porque se vocês é, saírem vocês vão perder o direito né”.
Outra coisa que colaborou no processo foi o trabalho de pesquisa desenvolvido por
uma jornalista recém-formada.
E daí, que eu acho interessante o trabalho de pesquisa que foi feito aqui, nesse
processo. A Ana é uma jornalista recém-formada. Essa menina pesquisou tudo
sabe, foi atrás do Ministério da cidade é, e assim, pra comprovar pras autoridades
locais que assim, é... Pessoas que vivem naquela situação, proveniente né, isso,
eu tenho também falado muito sobre isso né, na verdade ninguém quer favela na
cidade, mas precisa te plano de habitação né![...] Então, se você tem uma cidade,
com mais de 13 anos sem plano de habitação, as pessoas vão se arranjando da
forma como acham que podem. Elas precisam né. Então, a questão jurídica disso
né, o..., o Carlinhos foi assim analisar e buscar, não, olha, aqui tem plano diretor
da cidade, ali é uma área de desenvolvimento social né. Então essas famílias não
podem simplesmente ser retiradas dali né, como era, porque, esse era o discurso.
“O que vocês vão fazer, eu não sei e também não é problema meu. Eu preciso da
área limpa”.
116
Em decorrência das pesquisas, descobriram que, juridicamente, a prefeitura não
poderia solicitar a saída desse pessoal porque, como estão quase cinco anos,
podem ter seus trabalhos próximos à suas casas, podem ter filhos nas escolas.
Então eu num posso simplesmente chegar e retirar esse pessoal dali. Eu tenho que
relocar essas pessoas. E de preferência na área que mais próxima pra que ela não
perca escola, pra que o cidadão não perca o trabalho. Então assim, e isso o
Carlinhos encontrou no direito né. Isso foi muito importante, por outro lado a
Ana, a Ana foi pesquisando no ministério da cidade né, no plano diretor da cidade
né. Então assim, na verdade o que aconteceu. Juridicamente aquelas pessoas estão
amparadas.[...] E daí, por exemplo, se eles quiserem tirar as pessoas de lá, eles
são obrigados a realocarem aquelas pessoas. [...] Não pode simplesmente chega e
olha te dou um prazo pra sai. Saiam e se virem. Ele não pode fazer isso. Então
assim, pra que não aconteça isso né, pra depois num chegar numa instância como
chego, na verdade assim, a cidade tem que te plano de habitação, e não tem! E é
até vergonhoso fala isso.
Desse processo, ficou decidido que a prefeitura não retiraria os moradores do local e
que a construção das casas deveria ser feira numa área o mais próximo possível desse local.
No momento, a prefeitura está limpando o terreno, fazendo a terraplenagem numa área que
se localiza atrás da escola construída na área requerida anteriormente, portanto bem
próximo de onde eles estão assentados hoje.
Tânia lembra ainda que os moradores estavam temerosos em ficar e sofrerem
novamente uma humilhação como aquela experienciada durante a desocupação dos
apartamentos em construção no Parque Olaria, porém, a pressão que vinham sofrendo não
era da UNIMEP e sim de funcionários da Prefeitura. A UNIMEP não solicitou a
desocupação da párea porque entende que aquelas famílias necessitam ter uma moradia
antes de deixarem o local.
Eles acham assim, que é preciso desenvolver um trabalho com aquelas pessoas,
não pode tirar. Eles não concordam com isso e muito menos, porque é assim, na
outra desocupação que teve, eles foram pra essa área Zumbi dos Palmares eles
foram retirados com policial, inclusive. Uma cena assim muito muito triste!
(Idem)
Sobre essa situação Tânia ainda se lembra, que em uma entrevista com o prefeito,
logo depois desse fato, perguntaram se ele construiria mais casas além daquelas
programadas para atender os moradores do Assentamento Zumbi dos Palmares, e ele disse
que não. E que quem quisesse casa deveria lutar para consegui-la. Nesse sentido, as casas
só serão construídas em conseqüência da pressão exercida.
E daí a análise que nós fizemos foi a seguinte: houve resistência, porque senão,
nem essas casas teriam. Então assim, a gente acha que essa luta não terminou
porque as casas não estão prontas então ela não terminou. A construção
117
começou. Na verdade estão limpando a área porque assim. [...] Então eles
limparam toda essa área eles estão batendo estacas né, e então a gente diz assim:
a luta não terminou porque as casas não estão prontas e o pessoal não está
morando lá ainda né. (Idem).
Sobre a preocupação de fazer com que aquelas pessoas acreditassem nelas Tânia
diz:
Conseguimos porque assim, na verdade a princípio eles dependiam tudo né, eles
não iam é, por exemplo, na negociação com o prefeito, eles precisavam sempre
de um intermediário. Então assim, a gente colaborou muito. Tipo, nós não vamos
com vocês. Quem vão são vocês e a gente, até assim, o Carlinhos costumava até
escrever pra eles: perguntem isso; isso; isso; aquilo. A princípio, até o Carlinhos
acabou acompanhando tal, mas depois, tipo, agora são vocês. Mas o que que
a gente vai falar? Então olha, pergunta isso, tal, tal. Tirem as dúvidas. Mas é...
eles mesmos foram tendo essa coragem de fazer esse enfrentamento (Idem).
A comprovação dessa confiança adquirida nesse processo é que hoje os moradores
criaram uma associação registrada inclusive, realça Tânia.
Então isso é um ganho muito grande. A capacidade de luta, de mobilização né.
Quando a gente vai e... Olha! Vocês precisam ficar, porque se vocês saírem é...
Uma que vocês o mostrando a força, aliás, a fraqueza do movimento social.
Porque ali tinha um movimento social especifico sendo representado pelo
Movimento Negro ne. Se vocês saírem vocês vão mostrando que a gente não
tem força pra isso. [...] E daí vocês vão perder também o direito né. Depois de
tantos anos vocês ficaram debaixo de sol, de chuva, enfrentando tudo isso,
agora vocês desistem. Então assim é... Eu acredito que eles conseguiram essa
coisa assim de acreditar neles né. Olha a gente pode sim né é reverter essa
situação eu acho que o ganho foi muito grande em relação a isso.
Esses dizeres de Tânia, tanto no caso das reuniões políticas, como no caso do
assentamento Zumbi dos Palmares, deixam claro que o grupo exerce práticas sociais e
educativas, além de políticas, mas o que fica evidente é que eles educam as pessoas, quando
alertam as pessoas a observar as várias realidades dos bairros da cidade e enxergarem
objetivos não revelados, por trás de alguns melhoramentos. Exercem também a prática
social e educativa quando instruem as pessoas a lutarem elas mesmas pelos seus interesses.
Isso inclusive, nos remete às mudanças de narrativas que o adotadas pelas pessoas de
acordo com a interpretação que ela faz da situação experienciada, como no caso dos
moradores do Assentamento Zumbi dos Palmares, quando esses assumem outra postura,
como se verá, mais adiante, no relato do Sr João, hoje vice-presidente da associação e na
função de presidente porque a Dona Margarida, a presidente, está em campanha política
pleiteando um cargo de vereadora.
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a) reuniões dos dirigentes
Nas reuniões, geralmente realizadas em alguma sala cedida por alguma secretaria da
Prefeitura, os dirigentes dos Movimentos Negros da região são convidados. Cada
representante expõe as atividades realizadas mais recentemente em suas cidades e os
resultados obtidos. (Os dados coletados nessas reuniões foram anotados pela autora com o
consentimento do grupo).
Dentre as reuniões presenciadas para a elaboração desse trabalho estão aquelas em
que houve a preparação das comemorações da “Semana da Consciência Negra” em que o
Movimento Negro barbarense organizou em parceria com a secretaria da cultura da cidade.
No primeiro encontro, realizado na Câmara Municipal, em 04/out./2007, estavam
presentes Antonio Carlos Varela (Secretário da Cultura) e Toninho (Presidente do PC do B
em Santa Bárbara d’Oeste) Tânia Mara da Silva (Presidente da Comunidade Negra),
Antonio Carlos da Rocha Vianna (Marido da Tânia e também dirigente do Movimento
Negro), Adriano Sobral (Artista Plástico), Boy (Grafiteiro) entre outros.
Nessa reunião foi discutida detalhadamente a seqüência de atividades
comemorativas: abertura na Sessão da Câmara, com uso da Tribuna Livre; a palestra sobre
Intolerância Religiosa com o Sociólogo Adilson do Amaral; a peça teatral – Chica da Silva
um esboço; o “Culto Ecumênico” e as várias apresentações dos grupos que representam o
Movimento Negro nas cidades vizinhas; e o encontro social e cultural de Hip Hop na Praça
da Migração.
E, sobre a entrega da medalha Zumbi dos Palmares, Toninho explicou que o
Legislativo se sentiria mais honrado, se a entrega acontecesse numa sessão solene na
Câmara Municipal.
Acertados esses detalhes, ficou de se verificar de que forma se faria a divulgação
dessas atividades comemorativas na Rádio, nos jornais e na Televisão, além da exposição
de cartazes e da distribuição de panfletos no comércio e nas escolas.
No dia 7/out./2007, na segunda reunião para acertar detalhes das apresentações, na
residência da Tânia e do Carlinhos, estavam presentes: o Boy (Mauro grafiteiro) Marcelo
(compositor e cantor de Hip Hop); Adriano Sobral (Artista Plástico); Tânia e Carlinhos; o
Sr. Benedito Samuel da Costa (Dito Preto) e Toninho do PC do B.
119
Sobre a apresentação do Hip Hop, seus representantes foram alertados para
tomarem bastante cuidado na organização do evento para não acontecer nenhuma
“baderna”, porque Varella não tem confiança na capacidade de organização desses eventos,
já que em Santa Bárbara D’Oeste, as várias tribos não falam a mesma língua, e quando uma
tribo não é convidada para se apresentar eles comparecem para tumultuar o ambiente.
Depois dessa colocação feita pelo Carlinhos, ele mesmo ressaltou a importância de
se desmistificar o que a sociedade pensa sobre a cultura negra, porque o que a sociedade
pensa está representado no pensamento dos políticos e a luta do negro está em provar que
ele sabe se organizar para desenvolver sua cultura. Para tanto, as várias tribos deveriam
debater para mostrar a capacidade de união dos grupos.
Nesse sentido, complementou Carlinhos, o Varela quer conhecer todos os
representantes dos grupos de Hip Hop da cidade e, mais que isto, ele quer conhecer a
proposta para a realização do show na Praça da Migração. Para tanto, os representantes de
cada grupo deveriam entrar num acordo e agendar um encontro com o Varela para que, no
momento das apresentações não apareça algum grupo reclamando que não foi convidado.
O Senhor Benedito reforçou os dizeres de Carlinhos sobre a importância de se
trabalhar em conjunto.
A partir dessa discussão, ficou acordado que Boy levaria uma proposta unificada
sobre ações sociais que os grupos poderiam desenvolver; Marcelo explicou que muitos
grupos desapareceram por falta de apoio da prefeitura, por falta de patrocínio em
decorrência do preconceito e, complementou parece que a partir da aprovação da Lei
10.639, as verbas para ações sociais diminuíram e que, em conseqüência disso, os poucos
eventos patrocinados pela prefeitura devem esclarecer a população sobre a higiene pessoal
e a orientação sexual. Isso porque, a ação social também é função do HIP HOP, pois a
pobreza atrapalha o pensamento das pessoas.
Assim ficou definido que os representantes do Hip Hop ali presentes se
comprometeriam em entrar em contato os demais para apresentarem uma proposta conjunta
para a apresentação na tarde do sábado na Praça da Migração.
Depois dos eventos comemorativos da Semana da Consciência Negra, aconteceu em
1/12/1007, o 2º Encontro do Movimento Negro e Pastoral Afro da Região Metropolitana de
Campinas em Santa Bárbara D’Oeste. Este encontro foi realizado em uma sala
120
disponibilizada pela Secretaria da Educação de Santa Bárbara D’Oeste. Nesta reunião
estiveram presentes em torno de 50 pessoas, dentre eles, os representantes do Movimento
Negro de Santa Bárbara D’Oeste, Limeira, Nova Odessa, Piracicaba e Sumaré, inclusive
com a presença do Padre Marcos da Paróquia Imaculada Conceição e representante da
Pastoral Afro, além de alguns políticos do PT e do PC do B.
Como cerimônia de abertura, o Senhor Benedito Samuel da Costa foi convidado a
acompanhar no tambor uma música afro-brasileira. Porém antes do início da música,
lembrou que o canto serve para chamar os ancestrais que morreram lutando pela causa dos
negros.
Na seqüência, Lucy, como coordenadora do encontro, resgata os assuntos discutidos
na última reunião, “O 1 Encontro do Movimento Negro e Pastoral Afro que aconteceu em
27/10/2007.
Dentre tais assuntos se destacam a Lei 10.639, que foi aprovada em 2003, mas que
ainda não conseguiu apresentar grandes avanços na área educativa. Nesse período, lembra
ela, o esforço ficou relegado, praticamente, aos professores interessados no assunto. Nesse
sentido, é necessário que os militantes exerçam uma pressão maior para que o Estatuto que
aponte para a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro seja elaborado e
votado, o mais breve possível, pois na cultura atual, se valoriza e se procura votar
rapidamente somente aquilo que interessa. Aquilo que não representa lucro é descartado.
Aponta também para a necessidade de se instituir, em todos os municípios brasileiros, o 20
de novembro, ou se resgatar essa data comemorativa nos municípios em que não é mais
feriado. Como é o caso de Santa Bárbara D’Oeste.
Para tanto é necessário que os representantes do Movimento Negro apresentem
projetos de ações nas respectivas cidades para que, em cada cidade se tenha um programa
de ação apoiado pelas prefeituras, pois foi lembrado ali que, Tânia Mara da Silva,
presidente do Movimento Negro de Santa Bárbara D’Oeste, desenvolveu, por dois anos, um
curso para professores da rede municipal de ensino com recursos próprios, porque, se não
houver uma lei de destine verbas para esses projetos, a prefeitura não colabora.
Nesse sentido o senhor Benedito Samuel da costa lembrou do Projeto que
desenvolveu em parceria com a Diretoria de Ensino de Americana antes da aprovação da
121
Lei 10639, como foi mencionado acima. No desenvolvimento desse projeto, lembra ele,
todos os palestrantes eram pagos.
Foi lembrado também que é necessário que se inclua no currículo para a graduação
em pedagogia, uma disciplina que aborde a história e a cultura afro.
b) programas de rádio
Todos os domingos, das 8 às 9 horas da manhã, vai ao ar pela Rádio Luzes da
Ribalta AM 1.360 KHZ – Rede Jovem Pan Sat – o Programa “Quilombo da Paz: o
Movimento Negro de Santa Bárbara D’Oeste contando e cantando as riquezas da África”.
Esse programa é o principal meio de comunicação entre os dirigentes do
Movimento e a população em geral, que a Associação Cultural e Beneficente
Comunidade Negra Quilombo da Paz ainda não possui uma sede própria para realizar os
encontros.
Nesse programa é abordado algum assunto polêmico da semana, entrevistam-se
pessoas que gostariam de divulgar alguma experiência sobre algum tipo de discriminação
sofrida, conta-se uma história sobre negros, que pode ser do tempo da escravidão ou da
cultura afro, fala-se sobre a violência, sobre a demora na aprovação do Estatuto da
Igualdade Racial, revela-se a biografia de personagens pouco conhecidos atualmente, mas
que têm grande importância na cultura afro-brasileira, apresenta-se a importância das
mulheres na tradição afro e fazem esclarecimentos sobre as músicas e as religiões afros,
sobre a motivação de cada integrante da Comunidade Negra para estar ali desenvolvendo
um trabalho.
c) eventos comemorativos
O evento comemorativo mais significativo dos últimos meses foi a “Semana da
Cultura Negra”, em torno do Dia Nacional da Consciência Negra. A Semana aconteceu
entre os dias 20 e 28 de novembro de 2007.
Esse evento contou com abertura e encerramento solene na Câmara Municipal de
Santa Bárbara D’Oeste.
122
O dia nacional da consciência negra foi assumido em 20 de novembro de 1978 pelo
Movimento Negro Unificado e a partir daí passou a ser comemorada por todas as
organizações negras. Porém, em 20 de novembro de 1971, o Grupo Palmares de Porto
Alegre, no Rio Grande do Sul havia realizado o primeiro ato publico da história em
homenagem a Zumbi.
Zumbi dos Palmares foi um líder do Quilombo de Palmares e símbolo da resistência
contra a escravidão e foi assassinado em 20 de novembro de 1695. O quilombo cupava uma
área de 27.000 km², era dirigido sob o ideal de liberdade e competente organização dos seus
mais de 30.000 habitantes.
O Quilombo dos Palmares foi fundado em 1597, nas terras da Serra da Barriga,
atual estado de Alagoas. Seu primeiro governo teve Ganga Zumba como chefe. Em 1678,
Ganga Zumba foi substituído por Zumbi, seu sobrinho, que foi assassinado por Domingos
Jorge Velho em 1695. A resistência que Zumbi empregou nas várias tentativas de
destruição do Quilombo, o transformou em grande ícone da resistência negra ao escravismo
e da luta pela liberdade.
Em 20 de novembro de 1995, foi realizada em Brasília a Marcha Zumbi dos
Palmares contra o Racismo pela Igualdade e a Vida reunindo 30.000 pessoas. Zumbi foi
reconhecido oficialmente pelo governo brasileiro como herói nacional.
Existe uma diversidade enorme nas formas de celebração do dia 20 de novembro. O
Movimento negro de Santa bárbara D’Oeste comemorou durante vários dias de uma
semana inteira em 2007.
Figura 3: Panfleto da Programação para as comemorações da semana da consciência negra
Figura 4 - Abertura da Semana da Consciência Negra em 20.nov.2007 na Câmara Municipal de Santa Bárbara
d’Oeste – fotografada pela autora
Figura 5 - Uso da Tribuna Livre por Tania Mara da Silva em 20.nov.2007 - fotografada pela autora
123
Como se na figura 5, Tânia Mara fez uso da Tribuna da Câmara em data de 20.
nov. 2007 quando ressaltou a importância de se despertar a consciência negra nos próprios
afros-descendentes e este é um desafio dos órgãos ligados à militância pela igualdade de
direitos entre as raças.
Figura 6 - Palestra “Intolerância Religiosa” – Sociólogo Adilson Rogério do Amaral
22.nov.2007 – fotografado pela autora
A figura 6 mostra a palestra realizada no Anfiteatro da Prefeitura Municipal do
sociólogo Adilson Rogério do Amaral, em que ressaltou a importância de as religiões
conviverem em paz, e que, a predominância, ainda católica nos setores públicos impede a
inserção de símbolos representativos de outras religiões.
No dia 23 de novembro de 2007 aconteceu, no Teatro Manoel Lyra, a apresentação
da peça teatral: Francisca da Silva – Chica da Silva – Um esboço.
Depois da peça, que não permite fotografias, a atriz e dançarina Eliana de Santana
desceu do palco para conversar com os espectadores e explica que esta realizou uma
pesquisa profunda para a encenação dessa peça que representa toda a força de uma mulher
mãe e negra e, realmente a triz consegue expressar nas coreografias toda a força da mulher
negra.
Na manhã do sábado, dia 24 de novembro de 2007, na Praça Central, houve “Culto
Ecumênico”, apresentação do Coral Thulany de Limeira, Dança afro de Piracicaba e
apresentação do Jongo de Campinas.
Figura 7 “Culto ecumênico” – 24.nov.2007 – fotografado pela autora
Figura 8 - Coral Thulany de Limeira – 24.nov.2007 – fotografado pela autora
Figura 9 - Integrante da Dança afro de Piracicaba 24. nov.2007- fotografada pela autora
124
Figura 10 - Jongo de Campinas – 24.nov.2007 – fotografado pela autora
Na tarde do sábado, dia 24/nov. /2007 houve o encontro de Hip Hop e ação social
na Praça da Migração. Para esse encontro foi montado um palco para os grupos se
apresentarem e, ao lado os grafiteiros apresentavam suas artes.
Na noite do sábado, dia 24/nov./2007 houve a Missa Afro com a inserção de
instrumentos e músicas afro.
Na noite do dia 28/ nov./ 2007 houve uma “Sessão Solene” na Câmara Municipal
com entrega da medalha Zumbi dos Palmares para várias pessoas que se destacaram no
exercício de atividades em benefício da comunidade negra da cidade.
Figura 11 - “Sessão Solene”- 28.nov.2007 – fotografada pela autora
Figura 12 - Apresentação Grupo de Capoeira – 28.nov.2007 – fotografada pela autora
3.5 – Os dirigentes da Comunidade Negra e o projeto reflexivo do eu
Ao observar a história de vida do Sr. Benedito Samuel da Costa que está hoje com
63 anos de idade, e de Tânia Mara da Silva que está com 36, percebe-se que são gerações
diferentes que trabalham de forma diferenciada, mas que se preocupam em proporcionar
uma reflexão no próprio negro e também no branco sobre os fundamentos da realidade
brasileira na atualidade.
O Senhor Benedito é natural da cidade de Piracicaba e se mudou para Santa Bárbara
D’Oeste no ano de 1980. Logo que chegou à cidade se engajou no grupo de agentes de
pastoral negros e revela em entrevista realizada no dia 20/09/08 que os estudos decorrentes
desse envolvimento mudaram a sua postura perante a vida e, inclusive perante os
integrantes de sua família, porque até então ele também excluía tanto os negros como os
menos favorecidos, sem noção daquilo que estava fazendo, afirma.
Essa postura, acredita ele, se devia à posição de comando que sempre exercera na
sua carreira profissional, pois tinha sido gerente e comerciante. A sua postura
começou a mudar quando iniciou os estudos como agente de pastoral negro. Foi depois
disso que aprendeu a respeitar as pessoas com as quais convivia na sociedade, e também
125
mudou sua postura dentro de sua casa. Aprendeu a ajudar as pessoas a crescerem
espiritualmente e socialmente. Essa mudança, para ele marca o início de sua vida, pois tem
a impressão de que não viveu antes de 1988, ano em que iniciou seus estudos para, logo em
seguida, em 1989 iniciar o Movimento Negro. Assim, afirma ele, se sente com apenas 20
anos.
Hoje ele percebe que adquiriu um aprendizado espiritual e social, pois trabalha a
questão do direito do povo sem querer doutrinar ninguém, respeitando como elas são, como
elas agem. Aprendeu isso um pouco tarde, mas está feliz com os conhecimentos que
adquiriu em função das atividades, primeiro como agente de pastoral negro, depois como
presidente do Movimento Negro de Santa Bárbara D’Oeste. Nessas atividades conheceu
parte do Brasil e alguns países nas viagens que fez representando o movimento. E nessas
viagens aprendeu que em nenhum lugar a escravização foi tão terrível como foi no Brasil,
mas hoje, no Brasil, a superação das dificuldades dos negros parece que pode ser resolvida
porque o negro divide muitos ambientes com os brancos, diferentemente do que acontece
em muitos países quando existe a divisão de território.
Tânia Mara da Silva está hoje com 36 anos é casada com Antonio Carlos Vianna de
Barros (Carlinhos). É natural de São Paulo e veio morar em santa Bárbara D’Oeste em
1980, quando estava com 8 anos de idade.
Em São Paulo Tânia morava em um bairro urbanizado e se sentia muito bem na
comunidade em que vivia e na escola que freqüentava, pois ela se sentia entre iguais,
tanto na questão da cor, como na condição social.
Quando se mudou para Santa Bárbara D’Oeste, numa chácara, fora do perímetro
urbano, sem vizinhos próximos, sem iluminação externa, não gostou da nova situação. E
esta piorou ainda mais quando tudo de que se orgulhava passou a ser motivo de chacota
entre os alunos da escola. Desse modo ela se sentiu diferente socialmente e etnicamente.
Tânia e seus irmãos se orgulhavam de o pai possuir uma charrete, mas as crianças
da escola riram deles quando o pai os levou com esse veículo para a escola. Se orgulhavam
da e trabalhar como empregada doméstica na casa do delegado e essa profissão foi
desvalorizada pela professora de seu irmão. No primeiro ano de estudo em Santa Bárbara
D’Oeste, em sua segunda série do ensino fundamental, ela percebeu que a professora
126
coloca, em uma mesma fileira de carteiras, os negros, os menos favorecidos e os menos
inteligentes.
Essa situação gerou uma crise de identidade em Tânia, pois para poder fazer parte
daquele contexto passou a negar o que realmente era, para adotar posturas semelhantes
àquelas determinadas, não por ela, mas pelos colegas de escola.
Aos dez anos Tânia começa a trabalhar como babá na mesma casa em que a mãe era
empregada doméstica, mas ter de comer depois dos patrões e dormir em quarto separado,
na casa dos patrões, era uma situação que ela não aceitava, e pensava consigo mesma. que
se não quisesse aquela vida para ela, deveria estudar para ter condições de exercer outra
atividade.
Continuou os estudos e, ao concluir o Magistério prestou concurso e foi aprovada
para exercer função no ensino infantil na Rede Municipal de Ensino de Santa Bárbara
d’Oeste, setor em que trabalha até nos dias atuais, que agora na função de dirigente
escolar.
Na atualidade, a postura adotada pelo Sr. Benedito e por Tânia Mara revela que eles
propiciam o projeto reflexivo do eu, pois em suas diversas frentes de trabalhos promovem
uma reflexão que faz as pessoas refletirem e reordenarem suas narrativas, fato que favorece
a construção e reconstrução de identidades mais seguras.
Um exemplo marcante de reflexão e ordenamento de narrativa pode ser percebido
no Sr João do Assentamento Zumbi dos Palmares, pois sua narrativa mudou muito desde a
primeira vez que ele se apresentou no programa de rádio, conforme observações em
entrevista recente.
No programa de rádio em janeiro de 2008, o Sr. João Alves Pereira estava
fragilizado, inseguro, com medo do rumo que sua vida poderia tomar. Hoje, ele diz que, a
luta que ele abraçou não vai terminar nunca porque, através da associação ele vai lutar
ajudar todas as pessoas que ainda não têm casa própria, porque este é um direito de todos os
cidadãos.
3.6 – Emancipação na Comunidade Negra
127
Pode-se dizer que os dirigentes promovem a emancipação dos indivíduos e grupos
em que atuam porque, através da reflexão, promovem a libertação em relação às tradições
que não mais se justificam, e isto os capacitam a lutar pela libertação do poder arbitrário e
das restrições causadas pelas privações materiais.
João Alves Pereira, 66 – soldador de profissão, mas que executa vários serviços para
sobreviver, além de ter sido lavrador –, ao relatar sua experiência na luta para
permanecer no Assentamento Zumbi dos Palmares revela, em sua postura, a mudança de
atitude perante a situação em que se encontra porque recebeu os devidos ensinamentos para
sair da condição de subjugado e tomar as rédeas de sua própria vida.
Ao relatar sua história revela que o terreno onde se encontra o assentamento foi
ocupado em 2003, quando essas famílias foram obrigadas a deixar um conjunto de
apartamentos, abandonado antes do término da construção, no Parque Olaria.
A área onde estão hoje foi conseguida com a ajuda do PC do B e do PT, porque os
moradores não tinham condições de, com suas próprias pernas conseguirem esse local,
afirma o Senhor João. “Isso eu posso até ir no fórum falar porque é verdade mesmo. [...]
Depois o prefeito nos tirou da parte da prefeitura e nós ficamos só na área da UNIMEP”.
Quando a prefeitura solicitou a área que lhe pertencia para construir uma escola,
muitos moradores foram embora e quem ficou se alojou com os demais no terreno da
UNIMEP.
No final do ano passado, funcionários da prefeitura estiveram no local para fazer um
levantamento para saber quantas pessoas teriam condições de assumir um financiamento.
Depois do levantamento, convocou os moradores para irem até à prefeitura e disse que eles
teriam de desocupar o local para que as casas fossem construídas. As pessoas que não
saíssem não teriam direito às casas porque teriam de limpar o terreno para construir.
Muitas pessoas ficaram com medo e saíram, mas uma parte ficou, aquela que não
tinha para onde ir. Foi então que o sr João, a Dona Margarida e mais a Sra. Ana foram ver
se conseguiam apoio de algum vereador.
E pedi ajuda ao Carlinhos porque ele sempre passava aqui pra vê a nossa situação
ai ele falou: - olha gente, eu não sou advogado ainda, eu sou bacharel, mas no
que eu puder ajudar vocês... Eu posso ensinar o caminho. Eu vou trabalhando
junto com vocês. A vereadora Mercedes do PT. Eu fui na Câmara dos vereadores
pedir chorando. Fomos na tribuna. Foi que o vereador de Americana pediu
para o prefeito deixar a gente aqui até aprontar as casas. (Sr. João Alves Pereira.
Entrevista 20.set.2008)
128
A promessa do prefeito foi que entregaria as casas neste ano, mas o Senhor João
acha que não entrega porque ainda está em andamento a terraplenagem.
Ao falar sobre a Comunidade Negra, o Senhor João fala que eles ajudaram muito na
parte do conhecimento e no sentimento de coração com o ser humano.
Com a ajuda do Carlinhos, diz o Sr. João, conseguiram uma Associação presidida
pela Dona Margarida que é candidata a vereadora pelo partido Democrata. “Pra representar
nossos projetos que nós vamos exigir nossos direitos e continuar com a luta pra moradia em
Santa Bárbara d’Oeste, dando apoio a todos que ainda pagam aluguel”.
Aqui pode se recorrer a Giddens (2002), pois este diz que é agindo recursivamente
sobre a sociedade que o indivíduo desenvolve suas capacidades de ação.
3.7 – Críticas à Comunidade Negra de Santa Bárbra D’Oeste
O artista plástico Adriano Izidoro Sobral, entrevistado pela autora em 26/nov./2008,
que trabalhou com a Comunidade Negra de Santa Bárbara D’Oeste, entende que esse é
um movimento significativo, mas que sente falta de um trabalho social mais ativo, com
oficinas, que eles ficam muito presos às datas comemorativas e dependentes das verbas da
Secretaria da Cultura da cidade. Eles estão presos à oratória. Fala-se muito sobre ação
social, mas em concreto eles desenvolvem poucos trabalhos. Adriano propôs desenvolver
um projeto com oficinas, mas para isso ele precisa de verba, porque o material para o
desenvolvimento da arte com os orixás é caro. Então, sua participação na Comunidade se
resume em exposições como aquela que ele apresentou na Câmara Municipal durante a
Semana da Consciência Negra.
Exposição do Artista Plástico Adriano Sobral na Câmara Municipal de 20 a 28/11/2007
129
Sobre os projetos em andamento, Tânia reconhece que não são muitos, mesmo
porque cada um demanda muito trabalho, tanto na organização como na arrecadação de
recursos. Na verdade, afirma ela, “em nossa Comunidade, aquele que se propuser a
desenvolver qualquer projeto deve saber que deverá lutar sozinho para desenvolvê-lo
porque não se tem verba para nada” (Entrevista em 26/set./2008.
Em concreto existe o projeto que o Senhor Benedito desenvolve com as crianças, o
trabalho que o Carlinhos desenvolve no Assentamento Zumbi dos Palmares e um Projeto de
curso para formação de professores para que eles saibam como divulgar a cultura negra nas
Escolas da Rede Municipal de Ensino.
Ninguém recebe verba para desenvolver seus projetos, afirma Tânia. Ela mesma
desenvolve anualmente esse projeto, que forma em torno de 30 professores em cada curso,
e é ela que convida as pessoas de outras cidades para apresentar palestras e outras
experiências. A Secretaria da Educação disponibiliza apenas a sala. É um trabalho que
exige doação e que não tiver esse perfil não consegue trabalhar com a Comunidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
130
De todo o exposto pode se dizer que os dirigentes da Associação Cultural e
Beneficente Comunidade Negra Quilombo da Paz de Santa Bárbara D’Oeste, mesmo se
levando em consideração as dificuldades financeiras e a falta de projetos mais concretos e
contínuos em suas ações, promovem a Política emancipatória, o Projeto reflexivo do eu e
demonstram uma das possibilidade de se praticar a Educação sócio-comunitária.
Pois se como Giddes (2002) afirma que o indivíduo se mostra em narrativas, gestos
ou atitudes, o desenvolvimento que adquiriu, esses dirigentes se mostram, mesmo nas
poucas ações analisadas, interpretadas e descritas, que são seres autônomos e querem
expandir essa autonomia, não apenas para os negros, mas para toda a população mais pobre
da cidade onde atuam.
Se a política é uma forma de possibilitar soluções para cada novo problema na vida
em comunidade ou em sociedade para resolver qualquer choque de interesses, e a
emancipação significa poder se livrar das garras arbitrarias de tradições que não mais se
justificam, a política emancipatória deve ser entendida como toda ação que visa libertar
indivíduos e grupos das limitações que afetam negativamente suas oportunidades de vida
por meio de possibilidades de se romper as algemas do passado e se permitir uma atitude
transformadora em relação ao futuro, além de promover a superação da dominação
ilegítima de alguns indivíduos e grupos sobre outros, conforme a define (GIDDENS 2002).
E essa política pode ser detectada na ação dos dirigentes em relação aos moradores
do Assentamento Zumbi dos Palmares, pois como revela o Sr. João, eles estavam sofrendo
uma dominação ilegítima por parte de funcionárias da prefeitura e ao se libertarem das
algemas do passado, ou da ignorância que os deixavam cegos, conseguiram adotar uma
atitude transformadora em relação ao futuro. Isso se comprova tanto na formação da
Associação como na atitude tomada por Dona Margarida de se candidatar ao cargo de
vereadora para defender melhor os interesses dos moradores do assentamento e de outros
mais que estiverem passando por dificuldades semelhantes.
Pelo partido em que ela é candidata hoje, talvez não consiga desenvolver o trabalho
desejado, mas não se pode subestimar a capacidade da Dona Margarida. Ela pode estar
sendo manipulada pelo partido, ou fazendo com que pensem que ela está sendo
131
manipulada. Se isso for conveniente para que ela se torne mais conhecida, muito
provavelmente ela saberá tirar do partido que agora representa apenas a parte que lhe
convier, pois o discurso apresentado por ela, em janeiro de 2008, no programa de rádio,
deixava transparecer uma revolta por estar passando por essa situação.
Essas atitudes também revelam o lado positivo da globalização, se se considerar que
a escolha do estilo de vida que se quer ter incentiva os indivíduos não atendidos
adequadamente pelas políticas publicas a se envolverem em movimentos sociais para a
viabilização de seus desejos, pois, nesse caso, a Comunidade Negra tem como norteadora
de suas ações, a ampliação dos direitos de cidadania, como se confirma nos dizeres do Sr,
Benedito Samuel da Costa. E para defenderem esses direitos utilizam todos os meios de
comunicação a que tiverem acesso, como fez Antonio Carlos Vianna de Barros nos
programas de rádio e através de e-mails, tanto para divulgar a injustiça que estava sendo
cometida contra os moradores, como para convocar os interessados em colaborar na
solução do problema.
Outra sugestão de Giddens (2002) identificada nas ações do grupo é a de que a
preocupação atual deveria estar em restabelecer as solidariedades danificadas por meio da
reflexividade individual, Isso também fica claro tanto nos dizeres do Sr, João, quando ele
diz que o Carlinhos os ajudou porque ele tem no coração um sentimento de comunhão com
o ser humano.
Fica claro também, na proposta da Comunidade, a liberdade com responsabilidade,
pois num ambiente social a libertação nunca acontece em termos absolutos. A liberdade e a
responsabilidade devem se manter em equilíbrio, que a liberdade, para Giddens (2002),
supõe agir responsavelmente em relação aos outros e reconhecer obrigações coletivas. Um
discurso semelhante a esse foi analisado e interpretado desse modo várias vezes,
principalmente, quando os dirigentes tentam transmitir esse pensamento aos integrantes aos
representantes das várias tribos de Hip Hop da cidade em reunião para as comemorações da
Semana da Consciência Negra de 2007.
Nesses termos, fica claro que o grupo promove a política emancipatória.
Discutirei agora sobre o Projeto reflexivo do eu, que no pensamento de Giddens
(2002), é o processo pelo qual o indivíduo constitui sua auto-identidade e se mostra, a si
mesmo e aos outros, através das narrativas adotadas perceptíveis no comportamento ou no
132
discurso. Atitudes que se modificam ou não de acordo com as reflexões desenvolvidas,
podem ser percebidas como modificadas tanto no discurso da nia, quando esta reflete
sobre a situação das crianças na escola em que ela trabalha como coordenadora, no discurso
do Sr. Benedito quando ele diz que começou a viver apenas 20 anos porque antes disso
ele prefere nem contar, na diferença entre o discurso do Sr. João que no início do ano no
programa de rádio em relação àquele destes últimos dias, quando entrevistado para o
desenvolvimento desta dissertação, além das propostas de reflexão que Tânia promove nas
reuniões políticas nos bairros e nos trabalhos que desenvolve na formação de professores.
Isso porque quando se modifica o ideal a atingir, a reflexão dispensada para esse fim
promove alterações nos discurso e no comportamento.
Nesse sentido, para a construção de um eu ideal de se ter autonomia para que se
direcione a autotransformação para a auto-realização, mas com a manutenção da
integridade, pois um eu autêntico se forma da integração das experiências da vida com a
narrativa do autoconhecimento, sem que se esqueça que as tarefas nas quais o indivíduo se
envolve vão influenciar quem ele vai se tornar.
A capacidade reflexiva do ser humano pode propiciar aos indivíduos uma analise da
sociedade e possibilidades de atuação sobre ela. E é atuando recursivamente sobre a
sociedade que se pode afirmar o autodesenvolvimento e a auto-identidade, que essa
atuação pode gerar um sentido de continuidade dentro das comunidades. É nesse sentido
que Giddens (2002) afirma que a reflexão sobre a sociedade e a ação sobre ela pode fazer o
indivíduo se conhecer melhor, determinar como quer viver e buscar em coletividade meios
para atingir os seus objetivos e dos demais.
Assim, os dirigentes da Comunidade Negra estão afirmando suas auto-identidades
além de propiciarem essa afirmação também aos indivíduos atendidos em suas ações
sociais e práticas educativas.
É nessa possibilidade de ação que Giddens (2002), entende que o projeto reflexivo
do eu vai eexercer papel fundamenttal na transição para uma ordem global que traga paz,
harmonia, auto-realização para todos a partir da criação de limites de ação humana, para
que não se corram riscos.
No que se refere à Educação sócio comunitária, apesar dela ainda não estar
conceituada, pode-se apenas dizer que as ações sociais e práticas educativas do grupo não
133
atendem aos elementos indicados por Martins (2007), que a Comunidade, apesar de ter
realizar alguma ação política se define melhor como voluntário e não como militante
conforme indica Martins, pois Tânia afirma que o trabalho que exercem no momento é
solitário, mas pode se transformar em coletivo se o empenho do grupo se frutificar em
ações mais amplas.
Porém, se a educação sócio-comunitária se definir, pelas características da alta-
modernidade, a partir de ações individuais que promovam uma ação coletiva e se consiga
melhorias a partir de consensos coletivos cada vez mais amplos, esses dirigentes podem
estar iniciando uma modalidade educativa sócio-comunitária, sim.
Cabe aqui, uma observação destacada por Palangana (2002, p. 16). “Uma história
que, por não estar completa, deixa dúvidas e suscita muitas outras indagações em relação ao
objeto de estudo eleito”. Assim sendo, as investigações sobre a educação sócio-comunitária
vão prosseguir, “instigadas pelo novo, e pelo que se repete sem ter sido, ainda explicado
e/ou resolvido”. Nesse sentido, aguardemos os inúmeros trabalhos que estão sendo
realizados, ou se realizarão para que um dia enfim, se chegue a um consenso sobre o
conceito que melhor define a educação sócio-comunitária.
Referências Bibliográficas:
134
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Bispos do Brasil (CNBB) e os Agentes de Pastoral. Disponível em
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13/09/2008.
CARNEIRO, Sueli. A batalha de Durban. Revista Estidos Feministas. Vol 10 1
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