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Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
A MANIFESTAÇÃO DA VONTADE DA CRIANÇA NA DISPUTA
JUDICIAL DA GUARDA: UMA ESCUTA PSICANALÍTICA
Maria Teresa Fernandes Ferreira
Natal
2008
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Maria Teresa Fernandes Ferreira
A MANIFESTAÇÃO DA VONTADE DA CRIANÇA NA DISPUTA
JUDICIAL DA GUARDA: UMA ESCUTA PSICANALÍTICA
Dissertação elaborada sob a orientação da Prof.ª
Dr.ª Cynthia Pereira de Medeiros e apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Psicologia.
Natal
2008
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
A dissertação “A MANIFESTAÇÃO DA VONTADE DA CRIANÇA NA DISPUTA
JUDICIAL DA GUARDA: UMA ESCUTA PSICANALÍTICA”, elaborada por Maria
Teresa Fernandes Ferreira, foi considerada aprovada por todos os membros da Banca
Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito
parcial à obtenção do título de MESTRE EM PSICOLOGIA.
Natal, 15 de agosto de 2008.
BANCA EXAMINADORA
Prof.ª Dr.ª Cynthia Pereira de Medeiros ________________________
Prof. Dr. Marcos Antônio Paiva Colares ________________________
Prof.ª Dr.ª Ângela Maria Resende Vorcaro ________________________
Catalogação na fonte. UFRN/Biblioteca Central Zila Mamede
Divisão de Serviços Técnicos
Ferreira, Maria Teresa Fernandes
A manifestação da vontade da criança na disputa judicial da guarda: escuta
psicanalítica / Maria Teresa Fernandes Ferreira.- Natal, 2008.
119 f.
Orientadora: Cynthia Pereira de Medeiros.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em
Psicologia.
1. Psicologia - Guarda de filhos - Dissertação. 2. Guarda de filhos –
Aspectos psicanalíticos – Dissertação. 3. Criança - Dissertação. 3. Psicanálise -
Dissertação. 4. Direito de Família – Dissertação. I. Medeiros, Cynthia Pereira de
Medeiros. II. Título.
UF/RN/BCZM CDU 159.0:347.6(043.3)
A Washington, André e Maria Luisa,
meu chão e minhas estrelas
Agradecimentos
A travessia que resultou neste trabalho foi permeada por felizes encontros com
colegas, professores, e outros, dentre os quais manifesto a minha terna gratidão:
À Profª. Cynthia Medeiros, minha orientadora, primeiro pela aposta que fez no
projeto inicial, quando, por desvio, a intenção era buscar respostas no campo do Direito.
Depois, por caminhar junto, interrogando e provocando produções, estimulando a
avançar no campo espinhoso, e ao mesmo tempo deslumbrante, da psicanálise
lacaniana. Sua leitura atenta e cuidadosa bem como sua posição decidida em sustentar a
causa psicanalítica foram fundamentais para o rumo que tomou o trabalho.
À Profª. e psicanalista Sueli Alencar, pelas valiosas contribuições, consolidadas
em observações perspicazes, pertinentes e de grande rigor teórico, e por acompanhar a
tecedura deste trabalho com generoso acolhimento, desde os seus primeiros passos até a
revisão final.
À Profª e psicanalista Andréa Clara, pela participação nos dois seminários de
dissertação do mestrado, ocasião em que forneceu importantes apontamentos ao
trabalho, ainda em germinação.
À Profª e promotora de justiça Elaine Novaes, que me favoreceu com seus
ensinamentos sobre Direito de Família, disciplina homônima que ministra, no curso de
Direito da UFRN.
Aos juízes e promotores de justiça das Varas de Família da Comarca de Natal,
principalmente à Dra. Carmen Calafange, Juíza titular da 5ª Vara de Família, pelo
acolhimento afetuoso, auxílio teórico e indicações bibliográficas na parte de Direito de
Família.
Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Psicologia,
da UFRN que, de um modo ou de outro, contribuíram com o seu saber para a
formatação desta pesquisa.
Aos colegas do mestrado, pela oportunidade de conviver e aprender com as
diferentes abordagens da Psicologia. Dentre estes, um agradecimento especial a
Beethoven e Lenira. O primeiro, pela ajuda na revisão do texto; e a segunda, pela
persistência na resolução de um impasse que parecia insolúvel.
Aos colegas da base de pesquisa em Subjetividade e Desenvolvimento Humano,
pelas úteis contribuições nos primeiros ensaios do projeto da pesquisa.
Aos colegas do Fórum do Campo Lacaniano de Natal, com quem compartilhei
em diversos momentos este trabalho, e de quem tive, não apenas o estímulo pessoal,
mas a disposição para discutir as questões teóricas.
Aos colegas do Setor Psicossocial das Varas de Família da Comarca de Natal,
pela confiança e pela convivência frutífera durante os quatro anos em que lá trabalhei.
Por fim, a Washington Fontes, meu marido, por compartilhar comigo do prazer
de fazer dialogar a Psicanálise com o Direito, por suas inestimáveis contribuições e
paciência de ler e reler várias vezes o texto, auxiliando através de correções e sugestões
apropriadas.
Sumário
Resumo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ix
Abstract. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . x
Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
1. O Contexto jurídico: cenário da disputa da guarda de filhos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
1.1. As Varas de Família da Comarca de Natal e o Setor Psicossocial. . . . . . . . . . . 28
1.2. Mudanças na família: a criança como um sujeito de direito. . . . . . . . . . . . . . . . 30
1.3. A guarda de filhos e o princípio do “melhor interesse”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
1.4. A oitiva e a manifestação da vontade da criança nas ações de guarda. . . . . . . . 41
2. O estudo de um caso. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
2.1. O relato do caso. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
2.2. O parecer psicológico e a decisão judicial. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
3. O campo da Psicanálise: fundamentos da experiência analítica. . . . . . . . . . . . . . . . . 58
3.1. Psicanálise: teoria, método e tratamento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
3.2. O início da Psicanálise: a descoberta do inconsciente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
3.3. O sujeito da Psicanálise: uma hipótese fundamental. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
3.3.1. O sujeito do inconsciente e o sujeito da ciência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
3.3.2. O sujeito dividido e suas operações constituintes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72
3.3.3. O sujeito de desejo: necessidade, demanda e desejo. . . . . . . . . . . . . . . . . 79
3.3.4. O complexo familiar: a criança como um sujeito de desejo. . . . . . . . . . . 81
3.4. As condições de análise: como operar com o sujeito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
3.4.1. O ato inaugural de Freud: da regra fundamental à análise sob transferência.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
3.4.2. O ato psicanalítico de Lacan: o desejo do analista e seu fundamento ético.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
4. Reflexões sobre a escuta da manifestação da vontade de uma criança desde uma
perspectiva psicanalítica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
5. Considerações finais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
Referências Bibliográficas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119
Resumo
Atualmente, nas ações judiciais da guarda, a criança tem o direito de ser ouvida e ter a
sua opinião considerada, de acordo com a idade e a maturidade. Ao
psicólogo/psicanalista que trabalha nas varas de família é solicitado um estudo com
vistas a auxiliar a decisão judicial. A presente pesquisa busca fundamentar e discutir a
escuta da manifestação da vontade de uma criança no contexto da disputa judicial da
guarda pelos pais, desde uma perspectiva psicanalítica. O caso de uma menina, com
idade de nove anos, que manifestou em juízo a vontade de morar com a mãe e de ver o
pai apenas uma vez no ano, serve como ponto de partida para uma pesquisa teórica
sobre os fundamentos psicanalíticos da escuta do caso, analisando o que de psicanalítico
compareceu nessa experiência e que se refletiu no parecer. No desenvolvimento do
trabalho, estuda-se a peculiaridade da Psicanálise quanto ao modo de conceber o sujeito
e as condições que devem ser instaladas para que possa haver uma escuta analítica
stricto sensu. Em seguida, faz-se uma reflexão do caso, à luz dessa teorização,
verificando que na experiência compareceu: i) a suposição da existência de um sujeito
do inconsciente, dividido, desejante, constituído a partir da estruturação edípica, o que
justifica a distinção entre o dito e o dizer; ii) a concepção de criança como tendo uma
sexualidade própria; e, iii) uma escuta pautada nos fundamentos éticos da Psicanálise e
na formação do analista. Nas considerações finais, constata-se que a demanda
institucional de produção de um sentido para o caso se destaca como uma grande
dificuldade para o analista, pois o lugar de onde opera é um lugar de não saber.
(277 palavras, 1668 caracteres)
Palavras-chave: Guarda de filhos. Criança. Psicanálise. Direito de Família.
Abstract
Currently, in custody disputes, the child has the right to be heard and to have its opinion
considered, according to its age and maturity. The psychologist/psychoanalyst who
works in the Family Court is required to produce a Report with the purpose of helping
the Court´s decision. The present research aims to discuss and to find guiding
principles for the hearing of the declaration of the child´s will in a custody dispute by its
parents, from a psychoanalytical perspective. The case of a nine year old girl that
affirmed in Court the desire of living with the mother and seeing the father only once a
year is the starting point of this theoretical research over the psychoanalytic fundaments
of the hearing of the case, how it appeared in that experience and how it was reflected in
the report. Throughout this work, the peculiarities of psychoanalysis as a way of
understanding the subject and the conditions that must be observed so that a sctrictu
sensu analytic hearing is possible are studied. Then we present a reflection of the case,
in the light of the theories studied, verifying that we could observe in the experience: i)
the assumption of a subject of the unconscious, divided and desire full that constitutes
itself from the oedipic structuration, that leads to the difference between speech and
speak; ii) the concept of the child as having a sexuality of its own; iii) a hearing based
on the ethic principles of psychoanalysis and the analysts'' formation. In the final
considerations, we state that the institutional demand of a meaning for the case is a great
difficulty for the analyst since he works from a place of 'not-knowing".
(279 words, 1655 characters)
Key-Words: Child Custody, Child, Psychoanalysis, Family Law
11
Introdução
A presente pesquisa busca fundamentar e discutir a escuta da manifestação da
vontade de uma criança no contexto da disputa judicial da guarda pelos pais, desde uma
perspectiva psicanalítica. Todo o percurso teórico que se verá desfilar neste texto é o
resultado do esforço para buscar responder a uma questão emanada da experiência como
psicóloga jurídica nas Varas de Família da Comarca de Natal, durante o período de 2003
a 2007.
No Direito de Família, a decisão sobre a guarda dos filhos, à luz do atual
ordenamento jurídico, se pauta no princípio do melhor interesse da criança, ou seja, a
guarda é atribuída ao genitor que tenha as melhores condições de atender a esses
interesses. Segundo Leite (1999), a noção de “interesse do menor” é tão essencial
quanto indefinida, o que leva o julgador a proceder ao exame particular de cada caso,
determinando o “melhor interesse” para aquele menor, especificamente (p. 31).
A audição do sujeito infanto-juvenil é considerada uma importante orientação
para o magistrado identificar o melhor interesse da criança e decidir sobre sua guarda.
Do ponto de vista jurídico, o direito da criança de ser ouvida e ter sua opinião
considerada em todos os procedimentos judiciais e administrativos que lhe diga respeito,
de acordo com a idade e maturidade, é assegurado pela Declaração Internacional dos
Direitos da Criança (ONU, 1989).
Nas ações judiciais da guarda, a possibilidade de manifestação da vontade por
parte dos filhos menores, e a necessidade de ouvi-los, em certos casos, colocam uma
questão para o Direito, que é a de como interpretar/escutar essa fala. É justamente
buscando subsídios para decidir em ações dessa natureza que o juiz requisita a uma
12
equipe auxiliar, composta por psicólogos e assistentes sociais, a investigação das
situações familiares conflitivas e, particularmente, a escuta do sujeito criança.
O estudo técnico solicitado ao psicólogo, também chamado de perícia
psicológica, consiste em um documento escrito sobre os resultados ou considerações a
que chega o profissional após sua avaliação/escuta do caso. Os instrumentos e métodos
de avaliação ou leitura do caso variam conforme a perspectiva teórica-clínica adotada
pelo psicólogo.
Na literatura encontram-se, entre os psicanalistas que trabalham nesse campo,
enfoques distintos no modo de descrever o estudo psicológico. Lima (2006), por
exemplo, identifica como primordial “um trabalho de desnudamento das causas
subjetivas e comportamentos psicopatológicos das pessoas implicadas no processo” (p.
26), justificando, com isso, que a Psicologia Jurídica é, “de base, uma Psicologia
Clínica” (p. 26). Segundo esta autora, ao psicólogo cabe “traçar um perfil, identificando
a particularidade do inconsciente – fonte de ações impensadas – para oferecer uma
possível solução” (p. 27).
Suannes (1999), por seu lado, salienta que a perícia nas varas de família não
deve estar voltada para avaliar “qual o genitor é merecedor da guarda ou da visita aos
filhos, ou tampouco, para a detecção de qual deles estaria mais apto para exercer as
funções parentais, mas para a compreensão da dinâmica das relações familiares” (p. 96).
Com relação aos recursos que utiliza para realização do estudo, ressalta: as entrevistas, a
observação lúdica (quando necessário) e, eventualmente, o uso de técnicas projetivas.
No trabalho desenvolvido nas Varas de Família da Comarca de Natal, o estudo
psicológico, pensado desde uma perspectiva psicanalítica, se propunha a fazer uma
leitura dos aspectos emocionais/subjetivos concernentes a uma dada família em situação
de litígio, identificando as posições subjetivas dos sujeitos, dentro do conflito e do
13
complexo familiar. Nas entrevistas se realizava a escuta dos sujeitos, de acordo com a
particularidade de seus modos de expressão: nos adultos, a fala; e nas crianças, além
desta, os desenhos e o uso de brinquedos.
O psicanalista, tal como o juiz de família, só procede à leitura de uma
determinada experiência a cada vez, na singularidade. A pesquisa no campo da
Psicanálise realizada pelo psicanalista ocorre, em geral, no a posteriori do(s)
atendimento(s) e se traduz em um esforço de teorizar questões extraídas da experiência,
suscitadas na particularidade de um dado caso, que não se presta a generalizações nem
pretende se constituir em um saber acabado.
Dentro dessa perspectiva, a presente investigação teve início após a realização do
estudo psicológico do caso de uma criança de nove anos, aqui nomeada de Laura, que
explicitou em audiência a sua vontade de morar com a mãe e de ver o pai apenas uma
vez por ano. No estudo endereçado ao juiz, foi indicado que o posicionamento da
criança parecia estar articulado com uma problemática edípica e, portanto, com a sua
posição subjetiva na estrutura familiar. O parecer sustentou que a mesma estava
vivenciando uma situação em que se via destituída de um lugar imaginariamente
privilegiado na vida afetiva do pai. Apontou ainda que o pedido da menina feito à mãe
de “colocar o pai na justiça”, e de morar com ela, servia para canalizar a sua decepção e
raiva deste último. A decisão judicial homologou um acordo feito entre os pais quanto a
vários outros itens discutidos, mas, no que se refere à guarda de Laura, determinou
literalmente que ela ficasse com a mãe, em respeito à vontade da criança.
O caso escolhido provocou inicialmente indagações endereçadas,
privilegiadamente, ao campo do Direito. Ao se admitir, com o estudo psicológico, que
nos ditos da criança operava algo da ordem de um desejo inconsciente, que não
coincidia com a vontade por ela externada, questionou-se: qual era a “vontade” que
14
estava sendo respeitada na sentença judicial? Como o Direito justificava teoricamente
uma decisão dessa natureza? Será que, nesse caso, acatar a preferência da criança como
um respeito à sua “vontade”, sem observar os aspectos emocionais implicados na fala da
mesma, atenderia ao seu melhor interesse?
No caso estudado, se interrogava também se os sentimentos hostis de Laura,
sobretudo em relação ao pai, não estariam demandando aos adultos, enquanto figuras de
autoridade, uma intervenção no sentido de protegê-la dos seus próprios impulsos,
dando-lhes um tratamento outro que não o de deixar que essa hostilidade circunstancial,
configurada na “vontade” da criança, fosse deixada canalizar até imprimir-se na letra da
lei. A decisão judicial, não por ter concedido a guarda à mãe, mas por ter contemplado o
respeito à “vontade” da criança naquela circunstância específica, foi o ponto que
mobilizou a pesquisadora a pretender conduzir uma investigação no campo do Direito.
Naquele primeiro momento, buscava-se pesquisar os fundamentos jurídicos para
decisões que acatavam literalmente a vontade da criança para, em seguida, cotejá-la com
uma perspectiva psicanalítica, em que se fazia a distinção entre o dito e o dizer.
A trajetória de elaboração e amadurecimento da questão para este trabalho,
produzida ao longo da participação em disciplinas da Pós-Graduação e na base de
pesquisa em Subjetividade e Desenvolvimento Humano
1
, teve como conseqüência uma
torção no foco da pesquisa – de perguntas dirigidas ao Direito para uma interrogação
voltada para a Psicanálise, ou melhor dizendo, para o fazer psicanalítico.
Nesse percurso, foi-se esclarecendo que do campo da Psicanálise seria infrutífero
almejar contraposições ou cotejamentos com o Direito, pois ambos partem de
pressupostos distintos, se amparam em noções, conceitos e modos de abordar e operar
os fenômenos de maneira peculiar. De igual modo, chegou-se à consideração dos riscos
1
Nessas atividades, os temas “pesquisa em psicanálise” e “psicanálise aplicada” compunham os eixos
centrais das discussões.
15
implicados numa tal empreitada, já que, para responder a uma problemática inerente ao
campo do Direito, supôs-se necessário uma formação teórica específica, o que inexiste
no caso da pesquisadora. Ademais, o atravessamento pelo campo jurídico, na dimensão
pretendida, restringia a possibilidade de uma investigação mais acurada de problemas
relevantes da práxis do psicanalista nas varas de família.
Uma outra reflexão importante que contribuiu para a mudança no foco da
pesquisa surgiu da leitura do texto freudiano “A questão de uma weltanschauung
2
”, uma
das Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise (1933 [1932]/1976), quando o autor
fala sobre a incompatibilidade da psicanálise com uma “visão de mundo” científica. A
psicanálise para Freud está situada no campo das ciências, mas sem se confundir com
uma pretensa “visão de mundo” científica que almeja abranger tudo, ser completa e
auto-suficiente. Portanto, essa pretensão de fazer um cotejamento com o Direito parecia
estar caindo na tentação de demonstrar que a perspectiva psicanalítica era a leitura que
mais condizia com a realidade, sobretudo no que se refere ao modo de escutar as
manifestações da criança.
O lugar da Psicanálise no mundo, no consultório, na instituição não é o de
oferecer uma solução, uma verdade, um saber acabado. Seu lugar está mais para o lado
de interrogar, e se deixar interrogar, por aquilo que no mundo humano não se
harmoniza, não funciona, aquilo que escapa ao discurso da razão, e que insiste em não
se escrever.
No consultório, o praticante da Psicanálise oferece uma escuta e acolhe a
demanda de pessoas com sofrimento psíquico, sintomas e dificuldades emocionais de
2
Para Freud (1933 [1932]/1976), a Weltanschauung é “uma construção intelectual que soluciona todos os
problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual,
por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra
seu lugar fixo” (p.193).
16
diversas ordens, o que pode se desdobrar em um tratamento analítico ou não. No espaço
específico da clínica, os pacientes adultos comumente fazem uma demanda direta, e as
crianças e adolescentes são trazidos, em geral, pelos pais.
Na instituição jurídica de família, o juiz é quem endereça ao praticante, ali
investido da função de psicólogo judicial, o atendimento/escuta de sujeitos familiares, e
estes (pelo menos os adultos) são obrigados a comparecer. Ao final das entrevistas, cujo
tempo de realização é muitas vezes estipulado pelo juiz, é preciso devolver um parecer
sobre o caso, consolidado no estudo psicológico.
É certo que em ambas as situações os formatos de atendimento e os objetivos são
bastante diferentes, mas há pelo menos uma coisa em comum: no encontro entre alguém
que oferece uma escuta analítica e um outro que demanda ajuda (ainda que seja por
intermédio de um juiz ou dos pais) não há garantias quanto à instalação dos dispositivos
que possibilitam operar com o sujeito
3
, ou seja, não é possível prever se as condições
para uma escuta analítica se estabelecerão.
Uma psicanálise, stricto sensu, diz respeito a um tratamento, a uma experiência
fruto do encontro entre falantes: um analista e um sujeito. Trata-se de uma experiência
singular, não reprodutível, baseada na hipótese de um sujeito do inconsciente e que, a
partir da instalação de certos dispositivos, produz efeitos subjetivos naquele que a ela se
submete. Como a instalação dessas condições não depende de regras e técnicas
garantidoras de um trabalho dito psicanalítico, a verificação quanto ao que se passou na
experiência só pode ocorrer a posteriori e na singularidade de cada caso.
Por isso mesmo, na práxis do praticante da análise, esteja ele engajado em
atividades de consultório ou institucionais, são inúmeras as questões que se insinuam na
experiência e que requerem uma elaboração teórica posterior. No caso da presente
3
Sujeito aqui entendido como sujeito do inconsciente, o qual será discernido mais adiante.
17
investigação, a escuta de uma criança realizada nas varas de família suscitou um
questionamento sobre o que compareceu de psicanalítico nessa experiência, e que se viu
refletido no parecer psicológico. O ponto em que essa escuta foi problematizada teve
como foco a manifestação da vontade da criança diante do litígio entre os pais, porque,
naquele cenário de grande carga emocional, o momento de sua fala, dado a
responsabilidade do ato de seu posicionamento, se constitui como algo muito difícil para
uma criança, gerando possíveis conseqüências na relação com seus pais
4
.
Ainda que não se reconheça na escuta do caso Laura uma psicanálise stricto
sensu, nem tenha sido possível verificar a existência de efeitos subjetivos na criança ou
em seus pais, é preciso fundamentar essa escuta desde uma perspectiva psicanalítica,
pois é esta, e não uma outra, a formação daquela que escutou a criança. Ademais, como
lembra Goldemberg (2005) ao discorrer sobre a posição de Lacan quanto à autonomia
do psicanalista na condução do tratamento, o fato de a clínica lacaniana não ser pautada
por regras técnicas rígidas, tal como acontece na International Psychoanalytical
Association (IPA)
5
, não exime os seus praticantes de dar razões teóricas ao que fazem
(p. 41). Para Lacan, ainda segundo a leitura deste autor, “a falta ética não estava em
fazer diferente dele, senão em não saber o que se fez” (p. 41).
4
A importância da escuta à criança na separação dos pais foi apontada por Dolto (1989): “a criança
precisa, principalmente, de um interlocutor que não a leve imediatamente a sério e que compreenda o
clima afetivo do qual emanam suas afirmações e sua ‘ação’. O que a criança diz nem sempre deve ser
tomado à primeira vista” (p.143).
5
Instituição fundada por Freud em 1910 que tem entre seus objetivos a congregação e formação de
psicanalistas. Desde antes da morte de Freud, em 1939, até os dias de hoje, predomina na IPA uma prática
psicanalítica baseada na chamada “psicologia do ego” (proveniente da escola inglesa/americana). Lacan
era um crítico contundente dessa corrente, a qual considerava um desvirtuamento do pensamento
freudiano. No artigo acima citado, Goldemberg se refere à orientação da IPA aos psicanalistas membros
dessa instituição de fixar a duração e freqüência semanal das sessões de análise (cinqüenta minutos e, no
mínimo três vezes por semana, respectivamente), em contraposição à proposta lacaniana de sessões curtas
e não fixadas, definidas de acordo com a escuta do caso, tal como deve ser toda a direção do tratamento.
18
Alinhada com essa perspectiva, a pesquisa investiga o problema que está
colocado nos seguintes termos: com que recursos teóricos-clínicos da Psicanálise
6
se
pode fundamentar a escuta da manifestação da vontade de uma criança no contexto da
disputa judicial da guarda pelos pais?
Para avançar com a questão proposta, torna-se necessário precisar por qual
método se pretende respondê-la. A inserção da Psicanálise no universo acadêmico,
considerando que seu objeto e método de investigação não se enquadram entre aqueles
prescritos pela ciência clássica
7
, produz uma discussão sobre como o campo científico
pode acolhê-la nas suas peculiaridades.
Nesse sentido, abre-se aqui um breve espaço para situar esta pesquisa como uma
tentativa de estabelecer-se dentro de um formato acadêmico sem, no entanto, renunciar a
algumas características do modo de fazer pesquisa em Psicanálise.
A pesquisa é inerente e essencial à práxis psicanalítica. O modo psicanalítico de
conceber e fazer pesquisa difere do modelo científico hegemônico. Em geral, o cientista
constitui um problema, elabora uma hipótese a ser confirmada ou refutada, aplica um
método de investigação, levanta os dados, e faz a leitura e discussão desses dados a
partir de um certo pólo teórico
8
. Além disso, é previsto que essa pesquisa possa ser
replicada quando se repetem as mesmas condições da experiência original. A ciência
baseada na tradição clássica pressupõe a existência de um sujeito racional, consciente,
6
A expressão “recursos teóricos-clínicos da Psicanálise” se refere ao conjunto dos conceitos e teorias
construídas em torno do sujeito do inconsciente e das condições que possibilitam operar com esse sujeito.
7
Compreende-se a ciência clássica como herdeira de uma concepção da realidade baseada em um
“sistema racional de mecanismos físico-matemáticos” (Chauí, 2000, p. 56), que teve início com Galileu
Galilei, no século XVII. Moraes e Frota (2000) resumem os quatro momentos do método de Galileu: a
observação imediata do fenômeno na sua complexidade; a resolução dessa complexidade nos elementos
mais simples traduzíveis em relações quantitativas, ou em linguagem matemática; a formulação de uma
hipótese explicativa; a verificação da hipótese como cálculo e experimento - a experimentação.
8
Marconi e Lakatos (2000) sintetizam a finalidade da atividade científica como “a obtenção da verdade,
por intermédio de comprovação de hipóteses, que por sua vez são pontes entre a observação da realidade
e a teoria científica, que explica a realidade” (p. 46). O método científico, para estes autores, consiste no
“conjunto das atividades sistemáticas e racionais que, com maior segurança e economia, permite alcançar
o objetivo – conhecimento válidos e verdadeiros -, traçando o caminho a ser seguido, detectando erros e
auxiliando as decisões do cientistas” (p. 46).
19
indiviso, e a produção de saber proveniente da pesquisa implica a separação entre o
sujeito que investiga e o objeto que é investigado.
A Psicanálise deriva da ciência, pois o sujeito do inconsciente não poderia ter
sido formulado sem a noção cartesiana de sujeito do cogito. Em relação à ciência, a
Psicanálise vai operar “um corte, um rompimento discursivo” (Elia, 2000, p. 20). Ela vai
reintroduzir o sujeito que a ciência excluiu: o sujeito do inconsciente.
Para Elia (2000), o ponto central da questão metodológica da Psicanálise pode
ser sintetizado como “a necessária inclusão do sujeito em toda a extensão, e em todos os
níveis – saber teórico, prática clínica, atividade de pesquisa etc. –, do campo da
psicanálise” (p. 23).
Incluir o sujeito do inconsciente na cena operacional e metodológica implica a
instalação de certos dispositivos na relação que vai se estabelecer entre um analista e um
sujeito. Do lado do analisante, é preciso que se instalem a transferência e a associação
livre; do lado do analista, a atenção flutuante e o desejo do analista.
Na Psicanálise, a investigação é feita pelo analisante, e o saber do inconsciente,
que desse encontro se produz, se coloca a cada vez, de modo único, inédito e singular,
não se prestando a generalizações. Por isso mesmo, a experiência analítica não pode ser
reproduzida.
Baseando-se no texto “A pesquisa em psicanálise” de Nogueira (2004), é
possível destacar três características importantes no campo da Psicanálise que a faz
diferir da ciência clássica: primeiro, não há nenhuma hipótese sobre o que se espera
encontrar a respeito dos processos psíquicos inconscientes de um dado sujeito, por isso
mesmo, não se pode aplicar em um caso um saber que foi produzido por outro; segundo,
o analista está implicado na relação com o sujeito, pois ele não é um mero observador,
deve estar situado em uma certa posição que não é a de um igual, uma relação de eu a
20
eu, mas uma posição que acolhe a transferência e faz dela um meio para produzir o
saber do inconsciente; terceiro, para que alguém possa operar como psicanalista exige-
se uma condição especial que é a análise do analista. Essa experiência consiste em uma
trajetória necessária para que o analista possa estar advertido daquilo que pertence à sua
subjetividade e aquilo que pertence à do outro, ou, dito de outro modo, possa ter as
condições para se situar (como sujeito) fora da cena analítica, permitindo a emergência
do desejo do analisante.
Entende-se com Nogueira (2004) que há na Psicanálise dois níveis de pesquisa:
uma feita pelo analisante, aquela que ocorre no interior de uma análise
9
, e uma outra
realizada pelo analista, aquela que consiste em uma construção teórica elaborada a
posteriori da experiência psicanalítica, em que a investigação foi feita pelo analisante,
sob transferência. O corpo teórico da Psicanálise foi edificado com base nessas
articulações entre a prática e a teoria, primeiramente por Freud e depois por seus
seguidores. Como conseqüência de todas essas construções e contribuições,
os analistas, hoje em dia, têm um conjunto teórico
conceitual para dar conta da relação analítica. Isso
é universal e se aplica a qualquer ser falante. Mas
não sabemos, de antemão, como é que aquele
cliente Y vai realizar essa conceituação. Não
estamos aplicando a ele esse conceito. O que
estamos fazendo é convidando-o a associar
livremente, mas não sabemos de antemão, como é
que isso vai ser feito, porque sua associação é
singular. O que sabemos é que vai repetir, de
alguma forma, essas estruturas universais
conceitualizadas por Freud e por outros analistas.
(Nogueira, 2004, p. 97)
9
Quanto à pesquisa feita pelo analisante, ela pode ser verificada pelo dispositivo do passe proposto por
Lacan para a sua Escola.
21
A presente investigação se categoriza como uma pesquisa teórica realizada para
pensar a experiência de escuta de um sujeito, tendo como referência os fundamentos
teóricos-clínicos da Psicanálise. Neste sentido, o método utilizado neste trabalho se
coaduna com o pensamento de Barbosa (2004), quando afirma que
no campo da pesquisa teórica, o método consiste no
tratamento cuidadoso dos conceitos e é o que vai
fornecer ao pesquisador as categorias do pensar,
que são como pontos de partida para as
articulações que propõe entre conceitos ou para a
investigação dos fenômenos que este deseja
explorar. (p. 31)
Para tratar sobre o campo do Direito de Família, abordado como contexto do
problema da pesquisa, procedeu-se ao estudo de textos normativos e doutrinários que
possibilitam situar a problemática da escuta da criança nas ações de guarda, na
perspectiva das mudanças ocorridas nos últimos anos quanto à família e à criança.
Dentre os textos normativos examinados destacam-se: os Códigos Civis (Brasil,
1916; 2002); o Estatuto da Mulher Casada (Brasil, 1962); a Lei do Divórcio (Brasil,
1972); a Constituição (Brasil, 1988); a Declaração Internacional dos Direitos da Criança
(ONU, 1989); e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990). Como
referências doutrinárias no Direito, foram selecionados autores que trabalham temas
convergentes com as da presente dissertação, tais como Pereira (2005), Leite (1999,
2003), Carbonera (2000) e Grisard Filho (2002).
Para discorrer sobre o campo da Psicanálise, tomou-se como fontes principais
os textos de Freud e de Lacan, seguidos de autores que fazem uma leitura lacaniana da
psicanálise, dentre os quais se relevam as contribuições de: Elia (2000; 2004), Teixeira
(2005), Fernandes (2000), Quinet (1995; 2000a; 2000b), Lajonquière (1992), Cottet
22
(1987; 1989) e Soler (1997). Dentre estes, teve-se como autor privilegiado o
psicanalista Antônio Quinet, pela capacidade de iluminar e sistematizar, como poucos, o
ensino de Lacan.
Tendo esclarecido que o método adotado é do tipo teórico e especificadas as
principais fontes teóricas da pesquisa, resta explicitar as contribuições que se pode
oferecer aos dois campos – o Direito e a Psicanálise –, a partir do ponto de interseção
que se forma entre ambos na questão da escuta da manifestação da vontade da criança.
Atualmente, já se pode encontrar um número significativo de autores jurídicos
10
que promovem a articulação entre o Direito e a Psicanálise, sobretudo nas áreas da
infância, família e criminal. Uma precisa indicação da existência de um ponto de
conexão entre as duas disciplinas é revelada por Silva (2003), ex-juiz, promotor e
psicanalista, quando comenta sobre o princípio norteador para o julgamento, segundo os
romanos, que diz o seguinte: “Aquilo ou isso que não está nos autos, não está no
mundo” (p. 1).
O autor afirma que se isso confere um limite para a atividade jurídica, isso, por
outro lado, indica que há algo em outro lugar, e pergunta: se isso não está nos autos nem
no mundo onde está? Será que está “naquilo que não se deve dizer, no indecoroso, no
sexual, como diria Freud? Será que o texto jurídico pode acolher um pouco d’isso?” (p.
1). Há, portanto, a designação de um lugar que está para além dos autos e que deve ser
da ordem do pulsional, do sexual, do inconsciente. Algo que está barrado, mas que
produz efeitos nos atos e fatos jurídicos.
De fato, a prática nas varas de família evidenciou a existência de algo situado
além da lógica racional nos casos de litígio entre ex-cônjuges pela guarda dos filhos.
Atrasos de cinco minutos na entrega de uma criança pelo genitor visitante ao genitor
10
Para citar alguns deles: Coutinho (2006), Pereira (2003), Rosa (2006), Legendre (2004), e Philippi
(2004).
23
guardião, roupas que não voltam com a criança do final de semana ou que voltam sujas,
um descuido de um dos pais em deixar a criança se expor demais ao sol ou em levar
uma picada de inseto, para não citar casos extremos em que se propõe a exclusão
absoluta do outro parental, se transformam em motivo de acirramento e continuidade
indefinida de conflitos entre os antigos cônjuges. Em relação aos filhos menores, em
meio às desavenças parentais, também não é incomum o aparecimento de sintomas
escolares, somáticos, entre outros.
A presente pesquisa, partindo de uma perspectiva psicanalítica, almeja colaborar
com o Direito no sentido de refletir sobre as questões que envolvem o “como” escutar o
sujeito criança que, ao modo psicanalítico, significa escutar esse excluído dos autos,
essa Outra cena, particularmente aquela que se oculta nas manifestações da criança. A
discussão sobre a escuta do caso Laura serve de mote para indicar as implicações e
riscos dessa prática, na medida em que ela foge aos padrões da clínica e se destina, em
princípio, a auxiliar uma decisão judicial.
Ainda no campo do Direito de Família, este trabalho pode ensejar alguma
contribuição ao debate sobre a participação de crianças e adolescentes em ações
judiciais, cuja polêmica foi exposta no Boletim Oficial do Instituto Brasileiro de Direito
de Família (2006), numa matéria intitulada “Crianças e adolescentes nos tribunais”.
Nesta, estão colocadas diferentes formas de escutar as crianças no judiciário e os modos
como seus ditos podem ou devem repercutir na decisão judicial em processos de disputa
de guarda pelos pais.
A questão da escuta da criança numa instituição jurídica, por se situar num ponto
de interseção, também produz um outro problema, desta vez advindo do campo
psicanalítico, e que consiste na problemática da aplicação da psicanálise a outros
campos de saber.
24
Em Freud, essa problemática começou a aparecer desde que suas descobertas
foram sendo tomadas para compreender fenômenos de outros campos do conhecimento,
tais como a Religião, a Estética, a Mitologia, a Literatura, a Educação, o Direito, entre
outros. Com a expansão da Psicanálise, Freud (1914b/1976) externou uma preocupação
quanto ao futuro de suas descobertas, no que se refere a possíveis distorções e
deformações, o que já começava a ocorrer no campo mesmo da clínica por alguns de
seus discípulos, como Jung e Adler.
A Psicanálise se expandiu, para além de Viena, no final da primeira década do
século XX. Entretanto, como havia observado Freud, ela não se estendeu apenas em
termos geográficos, mas também no sentido de ter o seu conhecimento requisitado por
outros campos de saber. Hoje, a atuação de psicanalistas saiu do âmbito dos consultórios
particulares, e se entendeu para instituições educacionais, jurídicas e de saúde, para citar
apenas as mais visíveis.
Na perspectiva lacaniana, essa questão é debatida sob os termos de psicanálise
pura e aplicada, psicanálise em extensão e em intensão
11
. A psicanálise pura coincide
com o conceito de psicanálise em intensão, na medida em que ambos dizem respeito à
formação do analista, ou seja, têm como produto o psicanalista. Por outro lado, a
psicanálise aplicada se aproxima da psicanálise em extensão, pois se refere às
conseqüências na práxis, desse produto da análise pura, que é o psicanalista, no sentido
de presentificar essa experiência no laço social. Em outras palavras, a psicanálise
aplicada se refere à presentificação da psicanálise e de sua ética no consultório, na
11
Lacan utiliza esses termos em dois textos: na “Proposição de 9 de outubro de 1967” (Proposição do
passe) e no “Ato de fundação da Escola Freudiana de Paris” de 1964. Neste último, propôs a psicanálise
pura e aplicada como duas das três seções constituintes de sua escola de formação de analistas (pp. 236-
237). Na “Proposição”, Lacan utiliza as expressões - psicanálise em intensão como equivalente à
psicanálise didática, aquela que prepara psicanalistas; e a psicanálise em extensão como a que
“presentifica a psicanálise no mundo” (p. 251).
25
cultura, na cidade, nas instituições, ou seja, é aquilo que engaja o psicanalista e sua ética
no mundo
12
.
Tomando essa terminologia como referência, pode-se afirmar que um dos
grandes desafios que se coloca para os que ousam extrapolar os muros do consultório é
definir até que ponto a experiência psicanalítica, fora das condições e dos objetivos
clínicos, não distorce o essencial da Psicanálise ou, em outros termos, se é possível
dizer alguma coisa a respeito do inconsciente de um sujeito sem a ocorrência da
experiência psicanalítica stricto sensu, e, ainda, como se posicionar diante dos objetivos
e ideais da instituição, que comporta uma outra ética diferente da psicanalítica.
O presente estudo, por implicar esse nível de dificuldade e questionamento,
também pretende acrescer alguma fertilidade às discussões sobre a prática da
psicanálise em instituições.
Tendo exposto um panorama geral sobre a presente pesquisa, passa-se agora a
apresentar o modo como se organizam os capítulos.
O primeiro capítulo ressalta o contexto jurídico no qual ocorrem as disputas
parentais pela guarda dos filhos. Inicia-se expondo a estrutura funcional e
organizacional das Varas de Família da Comarca de Natal e do Setor Psicossocial, por
onde se insere o trabalho do psicólogo/psicanalista, através do qual se pôde formular a
questão norteadora deste estudo. Em seguida, discorre sobre o modo jurídico de
conceber a família e a criança, à luz das transformações evidenciadas na legislação nos
últimos anos, dando um enfoque especial à normatização referente à guarda de filhos.
Finalizando, coloca a problemática da oitiva das crianças nos processos judiciais de
12
Importante ressaltar que as denominações de psicanálise pura e aplicada só poderão ser feitas a
posteriori, pois apenas será considerada “pura”, aquela experiência psicanalítica que produziu um
psicanalista, o que na escola lacaniana se dá através do testemunho do passe. Só nesse momento se pode
afirmar que aquela foi uma análise pura ou aplicada.
26
guarda e a proposição de juristas quanto aos aspectos a serem observados para
considerar a opinião dos filhos menores.
O capítulo dois relata o estudo do caso da menina Laura, descrevendo os dados
extraídos da escuta, o parecer psicológico, e a decisão judicial.
Tendo discorrido sobre o contexto jurídico das disputas parentais de guarda onde
se situa o problema da manifestação da vontade da criança, e relatado o caso que
suscitou a questão da pesquisa, passa-se ao capítulo três que investiga o campo da
Psicanálise, apresentando alguns dos principais fundamentos teóricos-clínicos que
sustentam a sua práxis. A especificação desse campo permite também apreciá-lo como
distinto de outros, sobretudo o do Direito, com que faz conexão.
A teorização sobre o campo da Psicanálise é iniciada com a delimitação do seu
conceito e dos momentos iniciais de descoberta do inconsciente, momento correlativo
da criação de um método próprio de investigação – a associação livre. As primeiras
descobertas de Freud, tais como o recalque, o fator sexual na etiologia das neuroses, a
teoria do trauma em dois tempos, a sexualidade infantil, a realidade psíquica, as
fantasias, o complexo de Édipo, e o modo de funcionamento psíquico das formações do
inconsciente (o sintoma, os sonhos, os lapsos, e os chistes), servem como ponto de
partida para Lacan, em sua leitura do texto freudiano, formular a teoria do inconsciente
estruturado como uma linguagem, a qual se desdobra na noção lógica e filosófica de
sujeito.
O sujeito do inconsciente, com o qual opera o psicanalista, é considerado a
hipótese fundamental da Psicanálise. Neste trabalho, o sujeito da Psicanálise é abordado
a partir de quatro vertentes: em articulação com o sujeito da ciência; em suas operações
constituintes; sob o ângulo da dimensão desejante, no que se distingue da necessidade e
27
da demanda; e, por fim, no processo de estruturação dentro do complexo familiar,
desembocando na concepção de criança como um sujeito de desejo.
Finalizando esse capítulo, adentra-se na teorização das condições que permitem
operar com esse sujeito no processo analítico. Em uma psicanálise, a escuta é
possibilitada pela instalação de dispositivos, que são considerados como os meios
13
para
investigar e conduzir a produção de um saber suposto ao sujeito, saber implicado nas
formações do inconsciente, saber que se baseia no significante, e que é efeito dele. Do
lado do analista, tem-se a atenção flutuante, o desejo do analista e seu fundamento ético;
do lado do sujeito, a associação livre e a transferência.
Após fazer um percurso no campo do Direito, apresentar o relato do caso,
discorrer sobre os fundamentos teóricos-clínicos que sustentam a práxis da Psicanálise
e, consequentemente, o seu modo de escuta, ingressa-se no quarto capítulo, no qual o
caso é retomado para refletir sobre os recursos com que se contou para ouvi-lo,
verificando o que de psicanalítico ali comparece.
Nas considerações finais são apontados os limites e possibilidades da práxis do
psicanalista em uma instituição jurídica de família.
13
O termo “meios” se refere aos recursos empregados para alcançar um objetivo.
28
1. O Contexto jurídico: cenário da disputa pela guarda de filhos
1.1. As Varas de Família da Comarca de Natal e o Setor Psicossocial
As Varas de Família da Comarca de Natal integram a estrutura do Poder
Judiciário do Rio Grande do Norte, existindo oito delas em funcionamento na capital do
Estado. Compete a essas varas: a) processar e julgar: divórcio e separação judicial
consensual e litigiosa; anulação e nulidade de casamento; pedidos de alimentos
provisionais ou definitivos; b) deliberar sobre a guarda de menores, nos casos de
dissolução de sociedade conjugal e de união estável; c) conceder alvarás nos feitos da
sua competência.
Durante o período de 2003 a 2007, os serviços auxiliares aos juízos de família,
compostos por psicólogos e assistentes sociais, funcionavam informalmente, sem a
devida regulamentação legal
14
, pois o artigo que previa o estabelecimento de uma
equipe interprofissional composta de dois psicólogos judiciários e dois assistentes
sociais judiciários, dentro do projeto da Lei de Organização Judiciária (Rio Grande do
Norte, 1999), restou vetado pelo Poder Executivo. Os profissionais que prestavam
serviço no Setor Psicossocial, durante o referido período, eram servidores do Tribunal
de Justiça, em desvio de função, ou provenientes de outros órgãos do Poder Executivo
Estadual, que se encontravam à disposição da instituição jurídica.
A utilização de peritos pelo juiz, designados para realizar estudos técnicos e
especializados, se encontra disciplinada pelo art. 145 do Código de Processo Civil
14
Essa situação perdura até os dias de hoje.
29
(Brasil, 1973), que reza o seguinte: “quando a prova do fato depender de conhecimento
técnico ou científico, o juiz será assistido por perito, segundo o disposto no artigo 421”.
Nas Varas de Família da Comarca de Natal, o serviço social teve início no ano
de 1988 e o de psicologia em fevereiro de 2003. O Setor Psicossocial, nesse período,
funcionava vinculado diretamente à direção do Foro, e recebia demandas das oito varas
de família da capital. Até abril de 2007, contava com quatro psicólogas e cinco
assistentes sociais.
A principal atividade do Setor Psicossocial é a emissão de laudos e pareceres
psicológicos e sociais, referentes a temas específicos de ações judiciais que tramitam
nas varas de família, tendo por objetivo auxiliar o juiz em sua decisão. Há também um
atendimento prestado diretamente aos usuários, onde são fornecidas informações sobre
processos e orientações referentes à família e a serviços de assistência social e jurídica
gratuita. Além disso, atua-se em diversas situações demandadas pelo juiz, tais como o
acompanhamento psicológico das partes ou de crianças por um breve período de tempo,
participação em audiências, acompanhamento a oficiais de justiça em ações de Busca e
Apreensão de menores, realização de visitas domiciliares e em instituições escolares,
entre outras. A mediação, atividade que visa intervir na situação litigiosa, antes, durante,
ou após a decisão judicial, ainda não havia se efetivado formalmente nas varas de
família até o início de 2007.
Os estudos sociais contemplam a investigação das condições socioeconômicas,
educacional e de saúde da família em questão, utilizando-se de observações no ambiente
familiar e de entrevistas com os sujeitos envolvidos no processo, vizinhos, parentes,
professores e outros que se façam necessário ou que forem determinados pelo juiz.
Quanto ao estudo psicológico, não é possível afirmar uma unicidade nos
métodos, instrumentos e fundamentações teóricas utilizados. No entanto, a despeito da
30
diversidade das correntes adotadas, os profissionais da área psi devem fornecer ao juízo
elementos subjetivos (psíquicos), afetivos ou comportamentais dos sujeitos familiares,
concernentes à situação familiar conflituosa, que possam auxiliar a decisão judicial. A
maior parte da demanda proveniente do juízo reside em casos de ação de guarda de
filhos e de regulamentação de direito de visitas.
Seja qual for a perspectiva teórica ou técnica assumida pelo psicólogo nas varas
de família, torna-se importante o conhecimento dos aspectos sociojurídicos das
transformações familiares. Para esta pesquisa, é especialmente útil conhecer as
mudanças no ordenamento jurídico referentes à família e à criança, nas quais se vê
refletido o modo de concebê-las. Tais mudanças desembocam nos dias atuais nos
cenários dramáticos das disputas pela guarda dos filhos, em que a manifestação da
vontade da criança suscita a problemática da escuta de seus ditos, pondo o direito em
conexão com a psicanálise.
1.2. Mudanças na família: a criança como um sujeito de direito
No primeiro Código Civil (Brasil, 1916), a regulamentação das questões
familiares refletia as relações de poder do modo de produção capitalista colonial. A
família reconhecida, e tutelada pelo Estado, era a patriarcal. A legislação civil desta
época privilegiava, sobretudo, o proprietário, o contratante e o marido.
No começo do século XX, o pai era o centro da família e a ele cabia representá-
la e decidir o destino dos subordinados: filhos, parentes e empregados. A mulher,
também submetida à direção do chefe da família, era considerada relativamente incapaz
para certos atos da vida civil, sem direito de administrar os próprios bens e apenas
podendo exercer uma profissão com a autorização do marido. Quanto aos filhos,
31
somente eram reconhecidos aqueles nascidos na constância do casamento, o que
resultava na discriminação entre legítimos e ilegítimos.
Pelo fato dessa codificação adotar o casamento como a única forma lícita de
constituição de família, e de representar uma acentuada desigualdade nas relações
pais/filhos e entre cônjuges, ela é considerada, além de patriarcal e patrimonializada,
uma legislação matrimonializada e hierarquizada.
Da primeira codificação civil à promulgação da Constituição de 1988, a
organização familiar foi se transformando de tal forma que novas leis foram sendo
editadas para acompanhar a evolução dos costumes. Uma delas, considerada um marco
na luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, foi o Estatuto da Mulher
Casada (Brasil, 1962). Através desta lei, se aboliu a incapacidade feminina,
possibilitando-lhe o livre ingresso no mercado de trabalho, o que fez aumentar a sua
importância nas relações de poder no interior da família. O Estatuto manteve o homem
como chefe da sociedade conjugal, mas concedeu à mulher o direito de exercer o pátrio
poder sobre os filhos, ainda que como colaboradora do marido.
Do ponto de vista social, vai se consolidando, ao longo do século XX uma
redução no tamanho da família e do poder do pai, o que deu lugar a um tipo de família
denominada de nuclear, formada por pai, mãe e filhos. O ingresso da mulher no
mercado de trabalho e os novos métodos contraceptivos concorreram para a mutação
ocorrida no seio da família. A afetividade na relação conjugal passou a se sobrepor ao
interesse patrimonial, e o cuidado com os filhos adquiriu um lugar prioritário.
A valorização dos indivíduos, os quais passaram a gozar de uma maior liberdade
e autonomia em detrimento da valorização da instituição matrimonial, também é
observada no processo de transformação social e tem seus reflexos na legislação. A Lei
do Divórcio (Brasil, 1977), outra normatização que veio regular mudanças já ocorridas
32
de fato na sociedade, possibilitou a dissolução do casamento, proporcionando uma
maior liberdade de escolha nos relacionamentos afetivos. A chamada “revolução
sexual” dos anos sessenta, com a instituição do “amor livre”, foi emblemática da radical
transformação nos modos de constituição dos vínculos afetivos.
Tendo como norteadoras a afetividade e a liberdade de escolha, a entidade
familiar passa a se revestir de novos e variados arranjos. Surgem as uniões estáveis, as
famílias monoparentais, fraternas, recompostas, homoafetivas e tantas outras.
A Constituição Federal Brasileira de 1988 marca a instauração dessa nova ordem
de valores, a partir do reconhecimento da pluralidade de configurações familiares, da
não discriminação de filhos nascidos fora do casamento e da instituição do princípio de
igualdade entre homens e mulheres.
A família “despojou-se de sua função econômica para ser um núcleo de
companheirismo e afetividade” (Pereira, 2005, p. 126). Como instituição, a família
perdeu seu valor intrínseco, não precisando mais ser preservada a todo custo. Passou a
valer “somente enquanto fosse veiculadora da valorização do sujeito e a dignidade de
todos os membros” (Pereira, 2005, p. 127). Isso significou uma mudança no foco de
incidência da lei que se deslocou do grupo e da figura paterna para os sujeitos, tomados
individualmente.
Dentro dessa perspectiva, a família passa a ser concebida como o agrupamento
de pessoas envolvidas por laços de sangue, vínculos afetivos e comunhão de interesses.
Segundo Dias e Pereira (2003),
o traço principal que identifica a família é a
afetividade. Onde houver envolvimento de vidas
com mútuo comprometimento formando uma
estruturação psíquica, isto é, onde houver afeto é
33
imperioso reconhecer que aí se está no âmbito do
Direito de Família. (p. IX)
Com a valorização da dignidade humana pela Constituição, a pessoa tornou-se o
centro da tutela jurídica civil e, nesse sentido, a proteção do Estado busca viabilizar não
apenas a concretização dos objetivos da família, mas principalmente a de seus membros,
como sujeitos livres. Teixeira (2005) enumera algumas mudanças que demonstram essa
personalização no âmbito do Direito de Família: “A igualdade entre os cônjuges, entre
os filhos – independente da origem –, a vinculação do casamento à comunhão plena de
vida dos cônjuges, a pluralidade das entidades familiares e, por fim, a concepção de
afetividade como princípio jurídico” (p. 75). Contudo, a autora acrescenta que
uma das maiores demonstrações do fenômeno da
personalização foi o tratamento prioritário dado à
criança e ao adolescente, como pessoas em
desenvolvimento, e alvo da proteção integral da
família, da sociedade e do Estado, cujo interesse
deve ser preservado a qualquer custo. (p. 75)
O atual status jurídico da criança, tal como a concepção de família pelo Direito, é
fruto de um processo histórico, e foi sendo efetivado no decorrer do século XX.
Conforme descreve Leite (1999), “ao século XX cabe o apanágio de ter feito da criança
objeto de proteção jurídica, depois, um verdadeiro sujeito de direito, e, na tendência
mais recente, um ser igual e mesmo privilegiado” (p. 30).
Comparando as duas principais correntes jurídico-doutrinárias de proteção à
infância no Brasil – a Doutrina Jurídica da Situação Irregular e a Doutrina Jurídica da
Proteção Integral –, pode-se perceber a passagem da criança, de uma posição de mero
objeto, para uma posição de sujeito de direito. A primeira doutrina, instituída através
34
dos Códigos de Menores (Brasil, 1927; 1979), e a segunda, consolidada pela
Constituição (Brasil, 1988) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990).
A Doutrina da Situação Irregular previa a proteção de uma categoria de menores
– aqueles que viviam em situação de abandono, os delinqüentes, os “pervertidos”, os
infratores, entre outros. As medidas provenientes dos Códigos de Menores, instituídas
com um foco segregador e estigmatizante, colocavam esse segmento de menores na
condição de receptor de uma política social assistencialista, sem considerar sua condição
de pessoa em desenvolvimento, com direitos próprios. Nesse sentido, esses “menores”
eram vistos como objetos passivos da tutela e do assistencialismo estatal. Eram
considerados, segundo Silva (2004), como “patologia social”, e, por isso mesmo, lhes
eram prescritas “as medidas terapêuticas” (p. 43).
Sobre essas primeiras codificações, é importante ainda ressaltar a discriminação
entre categorias de sujeitos infanto-juvenis por elas produzidas. Se no Código Civil de
1916, a distinção no tratamento legal se dava entre os filhos legítimos e ilegítimos, nos
Códigos de Menores de 1927 e 1979, a diferença era entre aqueles tipificados como
estando em situação irregular e aqueles que se desenvolviam no seio de uma família
constituída. Essa diferenciação resultou, inclusive, no uso de uma terminologia
específica para cada caso. Designava-se “menor” ao que se encontrava em situação
irregular, e “criança”, ao nascido e criado em uma família.
A Constituição de 1988 coloca em vigor a Doutrina Jurídica de Proteção
Integral, que reconhece todo o conjunto da população infanto-juvenil como sujeitos
plenos de direitos, “gozando de todos os direitos fundamentais e sociais, inclusive à
prioridade absoluta, decorrência da peculiar situação como pessoas em
desenvolvimento” (Silva, 2004, p. 42).
35
Ser sujeito de direito significa ter uma personalidade jurídica, ou seja, ser dotado
de “aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações” (Venosa, 2003, p. 139). No
sentido moderno, esse atributo decorre da dignidade que toda pessoa humana goza.
Entretanto, apesar de todos os seres humanos (inclusive os nascituros) possuírem
personalidade jurídica, isso nem sempre foi assim. Em outras épocas, escravos e
mulheres não possuíam personalidade, posto que não lhes era reconhecida a dignidade.
A própria criança, apesar de ser considerada uma pessoa humana, e em tese um sujeito
de direito, só se efetiva nessa condição a partir da Declaração Universal dos Direitos da
Criança (ONU, 1989) e, no ordenamento jurídico brasileiro, conforme já assinalado
acima, com o advento da Constituição (Brasil, 1988) e do Estatuto da Criança e do
Adolescente (Brasil, 1990).
A concepção de criança como um sujeito de direito traz implícita a idéia de que
se trata de um ser dotado de razão e consciência, e que o mesmo se encontra incluído no
conjunto das pessoas que nascem livres e iguais em dignidade e direito, tal como está
disposto no art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948): “Todas
as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e
consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.
A valorização dos menores consolidada nos textos jurídicos se faz sentir também
nas relações pais/filhos, posto que
o filho deixa o papel silencioso de quem sentia os
efeitos da decisão dos pais e passa a desempenhar
outro, mais eloqüente e central, atuando como
destinatário direto do exercício da autoridade
parental. Não se trata, portanto, de uma relação
entre um sujeito e um objeto, mas uma correlação
de pessoas, onde não é possível conceber um
sujeito subjugado a outro. (Carbonera, 2000, p. 68)
36
Na Carta Maior (Brasil, 1988), essa nova condição atribuída ao sujeito infanto-
juvenil se consubstancializou no art. 227, que determina: “É dever da família, da
sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão”.
A Declaração Universal dos Direitos da Criança (ONU, 1989), ratificada pelo
Brasil através do Decreto 99.710/90, especificou ainda mais a condição especial da
criança em relação aos adultos. Os direitos elencados nesta Declaração, particularmente
em seu art. 3º, apontam para a introdução do princípio do “melhor interesse da criança”
em ações que envolvem esses sujeitos: “Em todas as medidas relativas às crianças,
tomadas por instituições de bem-estar social públicas ou privadas, tribunais, autoridades
administrativas ou órgãos legislativos, terão consideração primordial os interesses
superiores da criança”.
O princípio do “melhor interesse”, assentado nessa nova configuração
sociojurídica, a partir do qual a criança passou a ser considerada uma pessoa, portadora
de dignidade, objeto de proteção integral e titular de direitos, vai repercutir nas ações
judiciais da guarda de filhos e na fixação do direito de visita.
A seguir, será abordado o conceito de guarda de filhos, um breve histórico da
legislação que a disciplina, e o atual princípio norteador das decisões judiciais sobre a
guarda. A elucidação destes aspectos servirá de esteio para situar juridicamente a oitiva
da manifestação da vontade da criança nas ações de guarda, circunstância em que,
frequentemente, se demanda o trabalho do psicólogo/psicanalista.
37
1.3. A guarda de filhos e o princípio do “melhor interesse”
De acordo com Oliveira (2000), a guarda se constitui em “um conjunto de
direitos e deveres que certas pessoas exercem, por determinação legal, ou pelo juiz, de
cuidado pessoal e educação de um menor de idade” (p. 53).
A noção de guarda de crianças está vinculada à idéia de poder familiar
15
, de ter a
posse/estar sob a posse, cuidar/ser cuidado, proteger/ser protegido, vigiar/ser vigiado,
amparar/ser amparado, ou seja, está referida a um conjunto de deveres e direitos entre
um indivíduo adulto e outro, menor de idade.
Por lei, a guarda é um instituto decorrente do poder familiar, atual denominação
para o pátrio poder, posto que o exercício desta autoridade compete a ambos os
genitores, não mais privilegiando o varão em detrimento da mulher. No exercício do
poder familiar, ter os filhos em sua companhia e guarda é uma das prerrogativas dos
pais, conforme o disposto no artigo 1.634 do Código Civil (Brasil, 2002): “Compete aos
pais, quanto à pessoa dos filhos menores: II - tê-los em sua companhia e guarda”.
Estabelecer a guarda por ordem judicial significa atribuir a pais ou guardiões um
conjunto de direitos e deveres a serem exercidos com o objetivo de proteger e prover as
necessidades de desenvolvimento de crianças e adolescentes, colocados sob suas
responsabilidades.
No Direito Brasileiro, a instituição judicial da guarda advém de duas situações
distintas: da separação ou divórcio dos pais, e de ocasiões especiais, como aquelas em
que as crianças não estão sendo criadas por sua família natural, seja por abandono,
orfandade ou perda de poder familiar. A primeira situação é disciplinada
15
Segundo Paulo Luiz Lôbo (2003), o termo “poder” é inadequado, pois não se refere mais a um poder
despótico de um sobre outro. Trata-se, na verdade, de um poder-dever que compete aos pais, ou
responsáveis, no interesse maior dos filhos (p. 177).
38
especificamente pelo Código Civil de 2002, e é da competência das varas de família,
enquanto a segunda, ordenada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), é
deliberada pelas varas de infância.
A guarda reportada neste trabalho diz respeito àquela decorrente da separação ou
divórcio não consensual entre os pais, e que hoje se encontra na esfera de competência
das varas de família. Sobre este tipo de guarda é interessante discorrer, brevemente,
acerca do modo como ela evoluiu da primeira à segunda codificação civil,
demonstrando como as transformações histórico-sociais se refletiram também no
ordenamento dessa matéria.
O Código Civil de 1916, que permitia apenas o desquite judicial, determinava
que, quando os pais não chegassem a um acordo quanto à guarda, os filhos menores
deveriam ficar com o cônjuge inocente, aquele que não motivou a separação. Se os dois
fossem culpados, a mãe teria o direito de conservar os filhos do sexo feminino em sua
companhia, enquanto menores, e os de sexo masculino até a idade de seis anos. Após
esta idade os meninos seriam entregues à guarda do pai.
É interessante observar a existência do julgamento de um “culpado” pela
separação e o fato deste culpado ser, de certa forma, punido com a privação da guarda
dos filhos. Outro aspecto relevante dessa época é a prioridade da guarda concedida à
mãe quando os dois cônjuges são avaliados como culpados, com exceção no que diz
respeito aos filhos homens, acima de seis anos.
Na Lei do Divórcio de 1977, a decisão sobre a guarda dos filhos menores
permaneceu vinculada ao cônjuge que não deu causa à separação; quando ambos fossem
considerados culpados, as crianças ficariam sob a guarda da mãe, salvo se o juiz
verificasse que de tal solução pudesse haver prejuízo de ordem moral para elas. Ainda
39
nesta época, a mãe mantinha o privilégio da guarda em relação ao pai, no caso de não
ser considerada responsável pela dissolução do casamento.
A atual normatização desta matéria no âmbito do Direito de Família está
inserida, especificamente, no artigo 1.584 do novo Código Civil Brasileiro, que reza o
seguinte: “No caso de separação judicial ou divórcio, sem que haja entre as partes
acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições
para exercê-la” (Brasil, 2002).
Agora, nas decisões sobre a guarda, não há preponderância em relação ao gênero
mulher, nem se privilegia o cônjuge inocente. Diante do novo cenário jurídico, que
inclui a valorização da dignidade humana no âmbito da família e o tratamento prioritário
dado aos menores de 18 anos, a guarda passa a ser estabelecida em conformidade com o
princípio do “melhor interesse da criança”. Ficará com a guarda o genitor que tenha as
melhores condições de atender aos interesses dos filhos.
A decisão sobre a guarda dos filhos, após o desfazimento da conjugalidade, recai
sobre o judiciário quando os pais não chegam a um acordo quanto a esta questão. No
entanto, se a separação é judicial, ainda que os pais cheguem a um acordo quanto à
guarda, é prerrogativa do juiz decidir de maneira diversa do estabelecido, caso julgue
que esse acordo atenta contra os interesses dos filhos. De acordo com o art. 1.586 do
Código Civil (Brasil, 2002), “havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso,
a bem dos filhos, regular de maneira diferente da estabelecida nos artigos antecedentes a
situação deles para com os pais”.
Diversos autores pesquisados, entre eles Leite (1999), Carbonera (2000) e
Grisard Filho (2002), apontam para a complexidade na interpretação do princípio do
“melhor interesse da criança” quando aplicada no estabelecimento da guarda e sugerem
que o julgamento dessa questão se detenha na particularidade de cada caso.
40
Sobre a noção de “interesse do menor”, Leite (1999) observa que ela é “tão
essencial como indefinida” (p. 31). Por ter essas características, afirma o autor em outro
trabalho:
A noção não se adapta, nem permite – como se
pretende no mundo jurídico – reduzir tudo a
esquemas perfeitamente delimitados a uma
definição geral, já que a análise feita pelo juiz
depende sempre de cada caso, de cada situação,
exigindo condutas subjetivas de apreciação. (Leite,
2003, p. 198)
Na mesma direção, concorda Carbonera (2000), ao sustentar “a necessidade de
conexão a uma situação fática, onde o interesse, respeitando a particularidade dos
sujeitos envolvidos, terá seu conteúdo a partir dos reais elementos afetos àquela guarda”
(p. 127).
Grisard Filho (2002), outro que compartilha dessa opinião, assinala que a
determinação da guarda deve partir de uma avaliação individualizada, “sendo o juiz o
intérprete dos particulares interesses materiais, morais, emocionais, mentais e espirituais
do filho menor, intervindo segundo o princípio de que cada caso é um caso, o da
máxima singularidade” (pp. 63-64).
A despeito da noção de interesse do menor não encontrar “uma moldura legal,
nem uma pauta estereotipada, que a reduza a um conceito limitado, inafastável e claro”
(Grisard Filho, 2002, p. 65), é possível apontar algumas tendências jurisprudenciais na
definição da guarda, tais como examinar “o desenvolvimento físico e moral da criança,
a qualidade de suas relações afetivas e sua inserção no grupo social” (Leite, 2003,
p.199). Trata-se, portanto, de uma investigação essencialmente subjetiva, e a apreciação
41
do juiz vai depender dos elementos apresentados no decorrer do processo e da
argumentação das partes.
A audição do sujeito infanto-juvenil, particularmente no que diz respeito à
manifestação de sua preferência quanto ao genitor com quem quer morar, se encontra
entre os meios de que se serve o juiz para avaliar o melhor interesse da criança e decidir
sobre sua guarda. A escuta do sujeito criança pode ser realizada durante o estudo
psicológico, em audiência, em ambos, ou de outro modo que for entendido pelo
magistrado. A dimensão subjetiva e as dificuldades implícitas na escuta dos filhos
menores bem como a falta de precisão na noção de “interesse do menor” fazem com que
essa questão seja tratada de modo interdisciplinar no campo do Direito de Família,
endereçada, em especial, a psicólogos e psicanalistas.
Os novos direitos assegurados à criança, até então vistos à luz das
transformações sociojurídicas da família, da infância, e do disciplinamento da guarda de
filhos, serão agora tratados quanto ao aspecto da oitiva e manifestação da vontade da
criança nas ações de guarda. Na finalização deste percurso no campo do Direito, se
identifica o suporte legal que garante tal manifestação, o modo como a escuta e
expressão da criança são concebidas por juristas, e os parâmetros observados para se
levar em consideração o que a criança expressa como sendo a sua vontade nas ações de
guarda.
1.4. A oitiva e a manifestação da vontade da criança nas ações de guarda
A legislação civil brasileira não traz nenhuma norma específica quanto à ouvida
de filhos menores nos processos de separação e divórcio dos pais. O Estatuto da Criança
e do Adolescente observa que o limite mínimo de idade para ser ouvido em juízo é de
42
12 anos, sendo, portanto, um direito assegurado apenas aos adolescentes
16
. Quanto aos
menores de 12 anos, a possibilidade de ser ouvido e de ter a sua opinião considerada,
segundo o Estatuto, restringe-se aos casos de colocação da criança ou adolescente em
família substituta, seja por guarda, tutela ou adoção
17
.
Nesse sentido, o amparo jurídico para a oitiva de crianças (inclusive menores de
12 anos) nas ações de guarda de filhos decorrente da separação ou divórcio não
consensual, está configurado nos artigos 12 e 13 da Declaração Universal dos Direitos
da Criança (ONU, 1989):
Artigo 12
§1. Os Estados Membros assegurarão à criança, que
for capaz de formar seus próprios pontos de vista, o
direito de exprimir suas opiniões livremente sobre
todas as matérias atinentes à criança, levando-se
devidamente em conta essas opiniões em função da
idade e maturidade da criança.
§2. Para esse fim, à criança será, em particular,
dada a oportunidade de ser ouvida em qualquer
procedimento judicial ou administrativo que lhe
diga respeito, diretamente ou através de um
representante ou órgão apropriado, em
conformidade com as regras processuais do direito
nacional.
Artigo 13
§1. A criança terá o direito à liberdade de
expressão; este direito incluirá a liberdade de
buscar, receber e transmitir informações e idéias de
todos os tipos, independentemente de fronteiras, de
forma oral, escrita ou impressa, por meio das artes
ou por qualquer outro meio da escolha da criança.
16
Art. 111: “são asseguradas ao adolescente, entre outras, as seguintes garantias: V - direito de ser
ouvido pessoalmente pela autoridade competente” (Brasil, 1990).
17
Art. 28: “A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção,
independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei. § 1º Sempre que
possível, a criança ou adolescente deverá ser previamente ouvido e a sua opinião devidamente
considerada” (Brasil, 1990).
43
Juristas como Carbonera (2000) e Leite (2003) defendem a audição de crianças,
e a consideram como uma importante orientação ao magistrado no exame do melhor
interesse da criança. Carbonera (2000), comentando a respeito do interesse dos filhos
como critério de decisão, afirma: “a consulta à vontade do filho é outro aspecto
relevante. Se a questão da guarda é delicada, ouvir os maiores interessados pode ser um
importante elemento para o juiz decidir qual o seu maior interesse” (pp. 135-136).
No entanto, essa posição favorável à escuta dos menores se reveste de algumas
ressalvas. Para Leite (2003), a audição de crianças é defensável desde que se observem
alguns aspectos fundamentais. Em sua opinião, o uso desse recurso pode ser utilizado
quando os elementos processuais se mostrem insuficientes para o convencimento do
juiz, e a criança tenha capacidade de discernimento (maturidade). Além disso, nunca
deve ser obrigatória, mas uma mera prerrogativa do juiz, que deve fazer uso dela quando
for necessário e não implicar em inconveniente para os filhos. Nesse sentido, a audição
deve ter como objetivo:
a mera indagação por parte do juiz, do ambiente
social, moral e afetivo, vivenciado pela criança
num determinado lar, sem jamais implicar opção,
ou escolha do tipo: “com que pai você gostaria de
ficar?”, sob todos aspectos inadmissível e
reveladora de um profundo desconhecimento da
natureza infantil, já que estudos levados a efeitos
sobre a situação dos filhos nos processos de
ruptura, revelaram a unanimidade que um filho
nunca “escolhe” um pai, e, quase sempre, quer
permanecer com ambos. (Leite, 2003, p. 207)
De um modo geral, os autores visitados alertam para os cuidados no que diz
respeito ao “testemunho” da criança em juízo, e sugerem que a escuta dos filhos
44
menores passe pela equipe interdisciplinar composta por profissionais da área de
psicanálise, psicologia, serviço social, psiquiatria, entre outros. Hasselmann (2000)
propõe que “a tarefa de ouvir a criança, decodificando sua vontade, transmitindo-a ao
juiz, deverá estar a cargo da já consagrada equipe interdisciplinar, composta por
psicólogos, assistentes sociais, educadores, etc” (p. 367).
Malheiros Filho (2002) defende que os “aspectos anímicos” da criança devem
ser avaliados por profissionais aptos a recolhê-los e interpretá-los, e adverte que “a
vontade do infante seja contextualizada, mas jamais afastada como um importante
elemento de convicção no sentido de apuração de seu verdadeiro interesse”. Na mesma
direção, e destacando o trabalho de psicólogos e assistentes sociais, Carbonera (2000)
assinala “a relevância da atuação de profissionais de áreas diversas, conhecedoras de
outros aspectos necessários para uma decisão que efetivamente possa atender ao
interesse da criança, especialmente quando a guarda se apresenta como algo que
aparentemente pode ser prejudicial à criança e a realidade expressada por laudos
demonstra o contrário” (pp. 144-145).
Ainda que autores da área jurídica considerem a importância da criança ser
ouvida pela equipe auxiliar – psicólogos e assistentes sociais –, que em tese ajudaria a
interpretar a fala da criança, o próprio Direito busca modos de estabelecer critérios para
admitir como válida a opinião da criança nas ações de guarda. Considerando que o
parágrafo 1º do artigo 12, da Declaração Universal dos Direitos da Criança (1989),
vincula a consideração da opinião da criança à sua idade e maturidade, a doutrina
jurídica faz tentativas de estabelecer modos de se presumir a capacidade de
discernimento e maturidade, além de avaliar se aquele sujeito é possuidor de autonomia
de vontade.
45
A noção de discernimento, segundo Leite (2003), “não estabelece parâmetros
fixos de participação do menor no processo, mas faz defender sua inserção da análise de
cada caso” (p. 210). O discernimento, em um sentido jurídico, remete a uma aptidão
para distinguir o bem do mal, sendo que, pelo fato de não estar essa condição vinculada
à idade, ou seja, ser uma noção essencialmente relativa, torna-se necessário que se
investigue no caso concreto o grau de maturidade e faculdade de compreensão.
Mônaco e Campos (2005), examinando o direito de audição de crianças e jovens
em processo de regulação do exercício do poder familiar, observam que, quando se trata
da audição de menores considerados incapazes para os atos da vida civil, essa
incapacidade se assenta em uma presunção relativa (critério de maturidade) que “cede e
se conforma diante da demonstração de que a criança ou o jovem são maduros o
suficiente para externar as suas convicções, as suas idéias e os seus desejos”.
Stanciolli (1999), analisando a construção e o status da capacidade de fato da
criança e do adolescente, relaciona a capacidade de entendimento com aquilo que
“denota o domínio cognitivo e a habilidade decisional, ou ‘poder de avaliar, julgar’”.
Este critério considera o ethos crítico da pessoa, tendo em vista a educação e a
maturidade e, pelo fato de não ser de natureza objetiva, deve ser avaliado de modo a
incluir o contexto situacional.
O autor destaca ainda a existência de uma estreita ligação entre a capacidade de
entendimento e a autonomia de vontade, defendendo que a família deve propiciar à
criança e ao adolescente condições para serem autônomos e responsáveis. De acordo
com sua perspectiva, “a capacidade de entendimento é o suporte normativo mais
adequado para a gradual participação do menor em um mundo cujas escolhas aparecem
às miríades”.
46
Diante do exposto, pode-se afirmar que os aspectos observados pelo Direito, no
que se refere à consideração da vontade da criança manifestada em juízo, estão situados
nas dimensões cognitivas e volitivas, posto que se fundamentam em uma concepção
racional de sujeito.
Considerando que a indagação sobre a qual se debruça esta pesquisa diz respeito
aos recursos clínicos e teóricos que o psicanalista se utiliza para ouvir as manifestações
da vontade da criança no contexto da disputa da guarda pelos pais, entendeu-se como
necessário introduzir o problema, apresentando o cenário jurídico de onde a questão
emergiu.
Como conclusão e síntese desta parte, é possível sustentar que o atual contexto
jurídico em que trabalha o psicólogo/psicanalista nas varas de família inclui:
1. A pluralidade das configurações familiares;
2. A concepção de família como sendo o agrupamento de pessoas envolvidas por
laços de sangue, vínculos afetivos e comunhão de interesses, assentada na
valorização do sujeito e na dignidade de todos os membros;
3. A noção de criança como um sujeito de direito, ou seja, um sujeito dotado de
razão e consciência, portador de dignidade, objeto de proteção integral e titular
de direitos especiais por ser pessoa em situação peculiar de desenvolvimento;
4. A prioridade absoluta dos interesses da criança nas medidas judiciais que lhe
dizem respeito;
5. O princípio do “melhor interesse da criança” como fundamento maior das
decisões sobre a guarda de filhos;
6. A complexidade inerente ao exame e à interpretação do princípio do “melhor
interesse” no estabelecimento da guarda, o que remete o julgador à análise
47
particular do caso e a se utilizar de laudos e pareceres de uma equipe
interdisciplinar;
7. A audição do sujeito infanto-juvenil como um dos meios utilizados pelo juiz
para avaliar o melhor interesse da criança, e decidir sobre sua guarda;
8. A ausência, no atual ordenamento, de uma idade mínima para a criança ser
ouvida nos casos atendidos nas varas de família. Os aspectos observados pelos
operadores do Direito para considerar a vontade da criança são: capacidade de
discernimento (maturidade) e autonomia de vontade, ambos fundamentados
numa perspectiva racional de sujeito.
No próximo tópico, discorre-se sobre o caso de disputa de guarda que guia toda a
problemática desenvolvida neste estudo, apresentando a leitura que foi feita dele no
parecer psicológico e a decisão judicial.
48
2. O estudo de um caso
2.1. O relato do caso
18
Até o momento da entrada do pedido de divórcio e guarda pela mãe, o casal
estava separado, de fato, há oito anos. Laura, a filha única deste casal, tinha na época da
separação seis meses. Seus pais casaram-se ainda jovens, Júlio, com 18 anos, e Susane,
com 16. Durante todo o período de separação, a guarda da filha foi decidida
informalmente, embora os conflitos não estivessem ausentes. Laura ficou os cinco
primeiros anos com a mãe e os avós maternos, e os três seguintes, com o pai e os avós
paternos, sendo que o genitor, que não detinha a guarda, exercia seu direito de visita nos
finais de semana e férias.
Ocorre que durante as férias escolares de fim de ano, Laura, na ocasião com
nove anos, que já vinha resistindo, desde o último semestre, para retornar dos finais de
semana para a casa dos avós paternos, pergunta à mãe por que não coloca o pai na
justiça. A mãe indaga-lhe o motivo e ela chora, fazendo várias alegações: que o pai a
castigava muito, que queria morar com a mãe, que o pai não lhe dava atenção etc.
Susane estranhou a reação da filha, pois sabia da forte ligação de Laura com o pai.
No final das férias, quando o pai foi buscá-la, Laura recusou-se a ir, o que
culminou numa forte discussão entre seus pais.
Um mês depois, a mãe ingressa na justiça com o pedido de guarda, alegando
principalmente a vontade da filha morar consigo, o que, de fato, começou a acontecer
18
No relato do caso buscou-se subtrair informações que pudessem identificá-lo bem como se efetuou a
substituição dos nomes originais por fictícios.
49
informalmente após as referidas férias. Laura foi ouvida em audiência e reafirmou sua
vontade de ficar com a mãe, sustentando que o pai a colocava muito de castigo e que
quase não ia vê-la na casa de seus avós. Acrescentou, em juízo, que bastava ver o pai
uma vez por ano. O juiz solicitou, então, um estudo psicológico do caso.
A questão endereçada à psicóloga, embora não explicitada, dizia respeito ao
enigmático posicionamento da criança em relação ao pai. Poder-se-ia colocá-la nos
seguintes termos: O que estava acontecendo com essa criança para que manifestasse
tamanha resistência ao contato paterno? Qual o sentido da vontade expressada por
Laura?
Os próprios pais não conseguiam compreender a intensidade da raiva da menina.
Apesar disso, a palavra dela estava surtindo efeitos concretos: a mãe atendeu-lhe o
pedido de colocar o pai na justiça, e este estava quase desistindo de procurá-la, já que a
mesma o repudiava.
Nas entrevistas com Susane, foi relatado que o casamento com Júlio havia
ocorrido contra a vontade de sua mãe, pois esta não tinha uma boa impressão do mesmo.
O matrimônio durou menos de um ano, pois Júlio “queria levar uma vida de solteiro,
jogava a dinheiro e era agressivo”. Tinham muitas brigas.
Uma coisa que sempre lhe provocou muita raiva: o fato do ex-marido querer se
mostrar melhor do que realmente é, e de passar uma impressão de que pode ter as coisas
fora de suas posses. Por isso mesmo, às vezes, acha que a disputa pela guarda não
ocorre por interesse do pai em relação à filha, tendo por objetivo “querer mostrar
poder”.
Pelo lado da filha, Susane enumerou algumas possibilidades para a reação
negativa da mesma em relação ao pai. Imaginou que Laura pudesse, tal como ela, ter
50
sofrido uma decepção, descobrindo que o pai tinha dificuldades financeiras: “ela deve
ter visto cobradores na porta de casa”.
Uma outra opção seria a de Laura estar defendendo-a, já que na última discussão
com o ex-marido, este havia dito que ela merecia que lhe quebrasse os dentes. Susane
comenta que acha isso bonito na relação entre ela e a filha: o fato de Laura querer
sempre lhe proteger.
Havia a chance também de a menina ter sofrido uma decepção por tê-lo flagrado
com outra mulher, que não a sua madrasta, em circunstância que sugeria uma intimidade
afetiva, precisamente no dia em que haviam combinado de passear, e o pai desmarcou o
passeio alegando problemas de trabalho.
Susane reconhece que havia uma grande afetividade entre o pai e a filha,
justamente por isso o comportamento da mesma nos últimos meses havia lhe causado
surpresa.
Laura lhe parece uma menina inteligente, boa aluna, e que só quer ser a primeira
em tudo: primeira da classe, primeira a receber a nota, primeira da fila...
Há alguns meses atrás, havia sido chamada pela psicóloga da escola por
dificuldades dessa natureza (de querer ser a primeira em relação às colegas). Laura tinha
feito um desenho da família em que a mãe era médica, o pai empresário e havia um
irmão que era desobediente e chorava muito por não aceitar a separação dos pais. Laura
já lhe falara sobre o seu desejo de ter um irmão, mas a mãe estranhou o fato de que as
profissões atribuídas às figuras parentais não correspondiam às que de fato eram. Na
realidade, as profissões exercidas por ela e pelo ex-marido possuíam um status social
inferior às representadas pela filha.
Susane referiu, por fim, ter um relacionamento afetivo de mais de três anos e que
a filha convive muito bem com o namorado.
51
O pai relatou, no decorrer das entrevistas, que o casamento não deu certo por
serem bastante jovens na época, as condições financeiras não eram boas e a sogra
interferia muito. Contou cenas difíceis durante o período da separação, quando tinha que
se despedir da filha e devolvê-la para a mãe. Sua relação com a filha sempre foi muito
próxima, levava-a quando viajava a trabalho, dormiam no mesmo quarto. Não consegue
entender o que está acontecendo. Foi ao colégio tentar uma reconciliação, levou uma
carta declarando seu amor e fotos deles juntos e com sua atual mulher, mas ela não quis
conversar.
Em sua opinião, a ex-esposa nunca ligou para a filha. Considera que foi pai e
mãe para Laura. Discorda de que a menina more na casa dos avós maternos, por ser
contrário ao tipo de educação que é dada, com muita liberdade, deixando fazer o que
quer. Também censurou a ex-mulher por mudar muito de marido e de emprego, o que
considera um péssimo exemplo para a filha.
Júlio, tal qual Susane, foi chamado ao colégio pela psicóloga e informado sobre
o desenho que a filha havia feito. Sobre isso, comentou que Laura estava “dando para
mentir”. Disse que, no desenho, ela havia representado a mãe médica e dito que o pai
morava em outra cidade e nunca mais o tinha visto, além de apresentar um irmão
inexistente. Acrescentou outra história contada pela menina e que imagina se tratar
também de mentira: uma amiga do colégio, filha de pais separados, havia lhe dito que a
mãe queria afastá-la do pai, mas quando ficasse grande iria escolher morar com o
último.
Júlio disse estar casado há alguns anos, e que Laura e sua companheira se
entendem muito bem. Mesmo depois de casar, a filha continuou morando na casa dos
avós paternos até as férias em que se recusou a voltar.
52
Nos atendimentos a Laura, ela se expressou tanto verbalmente como através de
desenho. Logo na primeira sessão, após um breve silêncio, disse, com lágrima nos
olhos: “o que marca ódio é a agressividade dele”. Referia-se à sua raiva pelo fato de o
pai falar mal de sua mãe, por acusá-la de colocar “coisas na sua cabeça”. Para Laura, ele
deveria respeitar a sua vontade.
Continuando a justificar sua ira contra o pai, afirmou que houve um acordo que
foi descumprido: deveria morar com os avós paternos apenas por um ano, depois
voltaria para a casa da avó materna. Ocorre que “ele não cumpriu o acordo, não me
deixou voltar”, acrescentou Laura. A raiva que sentia também era decorrente dos
momentos em que o via se esconder dos “cobradores” que chegavam à sua casa.
Um outro comentário de Laura sobre seu pai: “ele não tem dinheiro para pagar
plano de saúde para mim e pagar minha escola, mas tem dinheiro para estar com mulher
em ....!”.
Quando questionei se a solução dos conflitos dela com o pai estaria no
afastamento do mesmo, Laura respondeu, com um “nó na garganta”: “ele merece!”. Ao
apontar-lhe que parecia estar se sentindo muito agredida por algo que o pai fez, ela
respondeu que não gosta de lembrar. Em seguida, disse não lembrar de nada. Nessa
sessão, fez o desenho de um grande coração com asas, e no centro deste escreveu: PAZ.
Ao lado do coração, redigiu: “uma solução para o mundo”. Sobre o desenho comentou
que a paz deve morar dentro do coração. Ao lhe perguntar sobre o seu próprio coração,
respondeu: “agora você me pegou. Não vale pergunta surpresa”.
Numa outra sessão, Laura escreveu seu nome e colocou muitos corações em
volta. Observou que sua mãe queria nomeá-la de Fernanda, mas o pai e a avó acharam
que o nome era de rapariga. Então sua mãe colocou Laura, que era o nome de uma
53
cadela que havia morrido. Ela, por sua vez, gostaria de se chamar como uma amiga do
ex-colégio que havia viajado para o Amazonas e que se denominava Ana Catarina.
2.2. O parecer psicológico e a decisão judicial
Além das questões que se supôs estivessem no centro da solicitação do juiz – o
que estava acontecendo com essa criança para que manifestasse tamanha resistência ao
contato paterno e qual o sentido da vontade expressada por Laura? – acrescentou-se uma
outra, a partir da escuta do caso: Por que a criança pediu à sua mãe para colocar o pai na
justiça e não simplesmente para morar com ela?
Nenhum dos motivos alegados pela criança foi convincente. Para empreender a
leitura do caso, foi preciso considerar o lugar que, em sua fantasia de criança, ela
ocupava em relação ao pai.
A escuta do caso sugeriu que a criança, em sua fantasia, imaginava-se num lugar
privilegiado na vida afetiva do pai. Sempre tiveram uma relação muito próxima.
Acompanhava-o em viagens de trabalho, hospedando-se no mesmo quarto. A posição
imaginária de Laura em relação ao pai foi apontada em um recorte do discurso materno
sobre a filha: “ela quer ser primeiro lugar em tudo”.
Freud (1931/1976) chamara à atenção para a intensidade dos sentimentos de
amor da criança pelo genitor do sexo oposto. Nas meninas, este amor pelo pai sucede a
um sentimento igualmente intenso pela mãe (o chamado pré-Édipo). Em seu artigo
sobre a sexualidade feminina, assim o descreveu: “o amor infantil é ilimitado; exige a
posse exclusiva, não se contenta com menos do que tudo” (p. 266).
Segundo este autor, o mesmo afeto pode se transformar no oposto, na mesma
intensidade, caso esse amor sofra algum tipo de frustração. Na verdade, esse amor
54
infantil, em última instância, tende mesmo a acabar em desapontamento e hostilidade, já
que é incapaz de obter satisfação completa. Sua efetivação é proibida pela cultura, o que
permite outras escolhas amorosas fora da família. É o que se conhece por Complexo de
Édipo.
O sentimento de amor de Laura pelo pai, naquele momento, pareceu ter-se
invertido. Agora ela estava magoada, repudiava os contatos com o mesmo e dizia, com
um nó na garganta: “ele merece”. Pelo que foi informado pela mãe (sobre Laura flagrar
o pai em companhia de uma mulher) e extraído da fala da própria criança (“ele não tem
dinheiro para pagar plano de saúde para mim e pagar minha escola, mas tem dinheiro
para estar com mulher em ....!”), Laura viveu uma experiência que a fez decepcionar-se
com o pai, sentindo-se destituída desse lugar imaginariamente privilegiado do amor
paterno. Deu-se conta que o pai tinha outros interesses afetivos que desconhecia e que
estavam para além dela.
Em experiências deste tipo (e mesmo que não existam tais experiências porque,
como se disse, é um amor fadado ao fracasso, no sentido edipiano), espera-se que ocorra
uma mudança na posição subjetiva da menina em relação ao pai, mas isso não implica
em um afastamento na realidade concreta.
No caso da pequena Laura, que saída encontrou para lidar com essa
problemática? Sentindo-se desapontada e injustiçada, recusou-se a voltar para a casa dos
avós paternos e pediu que a mãe colocasse o pai na justiça. A decepção de Laura com o
pai somou-se a outras decepções equivalentes, que já conhecia de sua história familiar,
sentidas pelo lado materno, com a qual se encontrava, naquele momento, identificada.
No contexto do acirramento da desavença entre os pais, entraram em jogo raivas
antigas da mãe em relação ao pai. que, encontrando reforço no pedido de Laura, foram
atualizadas (“o fato do ex-marido querer se mostrar melhor do que realmente é, e de
55
passar uma impressão que pode ter as coisas sem de fato poder”). Do lado de Júlio,
emergiu também sentimentos negativos em relação a Susane, o que fez com que a
acusasse de ter influenciado a filha contra ele (“nunca ligou para a filha; muda muito de
marido e de emprego, é um péssimo exemplo para a filha”).
Um outro aspecto a ser considerado, e que parece estar presente neste caso é a
desidealização dos pais. No artigo “Romances familiares”, Freud (1909/1976) afirma
que os pequenos fatos da vida da criança que a desagradam fornecem um pretexto para
começar a criticar os pais (p. 243). Entre outros fatores que contribuem para a
manutenção desta posição crítica estão os impulsos mais intensos da rivalidade sexual,
nos quais se incluem: o sentimento de estar sendo negligenciado, de não receber todo o
amor dos pais e de dividir esse amor com seus irmãos ou irmãs. As crianças criticam os
pais e freqüentemente acham que outros pais são melhores que os seus. É o momento da
eleição de novos ideais. Laura, através de seus desenhos de família, não parece estar
construindo novos ideais de pais?
Diante do que foi exposto acima, o pedido da criança para que coloque o pai na
justiça pode ser lido como uma demanda de reparação e de punição ao pai. Mas pode ser
acolhido também como um pedido de ajuda para tentar dar conta de sentimentos
inconscientes conflituosos, que ela própria desconhece.
Do ponto de vista psíquico, Laura está envolta em duas operações inconscientes
extremamente difíceis e dolorosas, inerentes a todos os humanos: a dissolução do
complexo de Édipo (em termos freudianos) e a queda dos pais enquanto ideais.
O parecer psicológico foi finalizado com os seguintes dizeres: “A saída pela via
jurídica, como tentativa da criança para resolver questões dessa ordem, não deve
prosperar. Neste sentido, opino que seja encaminhada a um psicanalista para
acompanhá-la neste momento tão delicado. Quanto à guarda penso que, por hora, é
56
aconselhável que a criança se mantenha com a mãe, como forma de reduzir o seu nível
de angústia, mas que num futuro próximo os próprios pais voltem a decidir pelo
compartilhamento da guarda de acordo com suas conveniências”.
Como resultado final dessa disputa, e após ter sido devolvido o parecer
psicológico, inclusive para os pais, houve uma última audiência em que foi feito um
acordo entre as partes, e a cláusula da sentença, referente à guarda, foi redigida nestes
termos: “Com relação à guarda, respeitando a vontade da criança, ficará esta com a
genitora”.
A sentença judicial, conforme foi ressaltado na introdução, se constituiu no
ponto desencadeador da questão da pesquisa, mas seu desdobramento em direção ao
campo do Direito se revelou impróprio. A investigação dos aspectos jurídicos foi,
portanto, circunscrito no capítulo um – o contexto jurídico –, se inserindo como um
percurso necessário para situar o campo do Direito no ponto em que faz conexão com a
questão endereçada à psicóloga/psicanalista. No referido capítulo, há um delineamento
preciso e limitado sobre a noção de família e criança, dentro de uma perspectiva
jurídica, ressaltando-se a guarda dos filhos e, particularmente, o modo peculiar de
abordar as manifestações da criança nesse tipo de litígio.
Como se disse, a torção promovida no decorrer do mestrado voltou o foco da
pesquisa para a própria práxis do psicanalista, especificamente para os recursos clínicos
e teóricos que podem fundamentar a escuta das manifestações da vontade da criança no
contexto da disputa judicial da guarda pelos pais.
Perfazendo, a partir do próximo capítulo, um certo percurso teórico-clínico pelo
campo da psicanálise, se pretende buscar subsídios para discutir sobre o que de
psicanalítico compareceu na experiência da escuta do caso Laura, refletido nas
fundamentações expostas no estudo psicológico.
57
No campo da Psicanálise se investiga: 1) o conceito de psicanálise, definida em
três dimensões indissociáveis: tratamento, método e teoria; 2) a descoberta do
inconsciente por Freud, no percurso realizado entre 1893 a 1905, período em que
construiu os pilares da teoria e clínica psicanalítica, abordada à luz da leitura lacaniana
do inconsciente na sua vinculação com a linguagem; 3) o sujeito da Psicanálise,
enquanto uma noção lacaniana, considerada como hipótese fundante e fundamental com
o qual opera o psicanalista, até o ponto da concepção de criança como um sujeito de
desejo; e 4) as condições em que se opera com esse sujeito.
58
3. O campo da Psicanálise: fundamentos da experiência analítica
3.1. Psicanálise: teoria, método e tratamento
A Psicanálise tradicionalmente é concebida em três perspectivas indissociáveis:
como uma teoria, um método de investigação e um tratamento. A relação entre estes
dois últimos aspectos reside no fato de que através de um mesmo método se processa
uma investigação e um tratamento. Em outros termos, pode-se dizer que o próprio
tratamento consiste em uma investigação de processos psíquicos inconscientes feitos
pelo analisante, a partir da instalação de certos dispositivos, entre os quais a
transferência, a associação livre e a escuta do analista. Essa articulação entre tratamento
e pesquisa é apontada por Freud (1927/1976) no pós-escrito do artigo “A questão da
análise leiga”:
Na psicanálise tem existido desde o início um laço
inseparável entre cura e pesquisa. O conhecimento
trouxe êxito terapêutico. Era impossível tratar um
paciente sem conhecer algo de novo; foi impossível
conseguir nova percepção sem perceber seus
resultados benéficos. Nosso método analítico é o
único em que essa preciosa conjunção é
assegurada. (p. 291)
Em Psicanálise, a produção de um saber, novo a cada análise, acontece no
decorrer do processo de investigação/tratamento. O saber do inconsciente, de acordo
com Elia (2004), “exige um trabalho (o trabalho analítico), que se realiza através de um
determinado método (o método da psicanálise), que estabelece um dispositivo (o
analítico) e requer uma função operante (o psicanalista)” (pp. 8-9). Nesse sentido, as
59
formulações teóricas em Psicanálise, ou seja, aquilo que se pode teorizar em torno do
saber sobre o sujeito do inconsciente é algo imprescindível da experiência analítica.
A teoria no campo da Psicanálise cumpre a função de transmissão e
fundamentação da prática analítica, não devendo se prestar a investigar um
comportamento ou uma atividade humana a partir de seus pressupostos
19
. A produção
teórica consiste, pois, em uma elaboração escrita a posteriori do atendimento. Freud
(1912b/1976) já advertira nas “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”
que não se deve trabalhar cientificamente um caso enquanto o tratamento está em curso
e que aqueles casos voltados para propósitos científicos sofrem em seus resultados (p.
153). Com isso quis alertar sobre os riscos do psicanalista obstruir sua escuta pelo uso
de pressuposições e meditações sobre o caso, se fechando ao inusitado.
Historicamente, foi a posteriori de seus atendimentos que Freud descreveu
fenômenos e impasses encontrados na clínica, construindo o arcabouço teórico da
Psicanálise. Isso significa que, nesse campo, o desenvolvimento da teoria partiu da
clínica e a ela retornou, provocando constantes revisões no corpo teórico e na condução
dos tratamentos, tal como se verá no tópico seguinte.
3.2. O início da Psicanálise: a descoberta do inconsciente
Em “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação
preliminar”, Sigmund Freud e Josef Breuer (1893/1976) relatam o desenvolvimento de
19
Para autores lacanianos como Nogueira (2004), aplicar a teoria psicanalítica fora da relação analítica é
fazer pesquisa experimental, é transformar a psicanálise em ideologia, “porque todos os seus conceitos,
toda a sua teoria foi obtida através da relação entre falantes e não em uma relação objetiva de
investigação” (p. 87). Outro autor lacaniano, Regnault (1989), também alerta sobre o mau uso do termo
“psicanálise aplicada”, ressaltando que a aplicação da psicanálise à literatura, religião, mitologia, arte,
entre outros, deve ser entendida em um sentido invertido: “é a obra de arte que se aplica à psicanálise e
não o inverso” (p. 132). Ou seja, ao invés de tentar decifrar uma obra da literatura com conceitos e teorias
psicanalítica, ela é utilizada para ilustrar as descobertas e formulações advindas da clínica. Como
exemplo, ilustrar a tragédia do desejo humano em Hamlet.
60
uma nova maneira de conceber e tratar a histeria, apontando fatores psíquicos como
produtores de sintomas e utilizando o método catártico para tratá-los. No referido texto,
os autores compreendem o sintoma como decorrente da lembrança de uma experiência
anterior, em que se produziu uma forte emoção que, não sendo descarregada
adequadamente (ab-reagida), foi separada de sua representação
20
por um mecanismo
que foi chamado de recalque. Essa representação recalcada constituía uma segunda
consciência e ficava atuando, vinculada a outros símbolos, sob a forma de sintomas.
O método catártico, que incluía o hipnotismo e a sugestão, consistia em fazer o
paciente lembrar a experiência traumática, aquela à qual seu sintoma estava vinculado,
permitindo assim que a emoção estrangulada se expressasse através da fala, provocando
a ab-reação. Naquela ocasião, utilizavam também a hipnose e a sugestão.
No artigo “Psicoterapia da histeria”, escrito sem a colaboração do colega Breuer,
Freud (1895/1976) marca a independência de suas idéias. Defende que a etiologia da
histeria deve ser buscada em fatores sexuais, abandona a hipnose e passa a utilizar o
método de pressão sobre a testa. Através deste, convidava o paciente a falar o que lhe
ocorresse à mente. Era o caminho para o método da associação livre.
Ao permitir que o paciente falasse livremente, constata a existência de um
mecanismo que denominou de resistência, definido como uma força psíquica que se
opunha a que as idéias se tornassem conscientes, ou seja, que fossem lembradas.
Segundo Garcia-Roza (1988), com a produção dos conceitos de resistência,
defesa e conversão
21
, o objetivo do tratamento “não poderia mais consistir em produzir
ab-reação do afeto, mas em tornar conscientes as idéias patogênicas possibilitando sua
20
Ao excluir a representação da consciência, o paciente a esquecia. A lembrança, ou seja, o indício de que
algo estava inscrito no sistema mnemônico, embora esquecido, permanecia atuando sob a forma de
sintoma, de onde a célebre afirmação freudiana: “os histéricos sofrem de reminiscência” (Freud,
1893/1976, p. 48).
21
Modo de defesa característico da histeria: o afeto desligado da representação recalcada é transformado
em sintomas somáticos.
61
elaboração” (p. 38). Esse é o momento em que, na opinião deste autor, se inicia o
método psicanalítico.
Em “A etiologia da histeria”, Freud (1896/1976) estabelece como pré-condição
fundamental da histeria as experiências sexuais infantis. A ação patogênica destas
experiências só emergiria após a puberdade, quando surgiam os desejos sexuais, sob a
forma de lembranças inconscientes
22
. A defesa agora cumpria o seu propósito de
arremessar a idéia incompatível fora da consciência se houvesse cenas sexuais infantis,
presentes sob a forma de lembranças inconscientes, e se a idéia a ser recalcada, situada
no segundo tempo do trauma, pudesse ser posta em conexão lógica e associativa com
uma experiência infantil desse tipo.
Cabe ressaltar que a teoria freudiana do trauma prevê que a produção de
sintomas deve acontecer em dois tempos e nunca como uma experiência real isolada. Ou
seja, para a ocorrência dos sintomas histéricos é preciso haver duas cenas: uma cena
posterior que deve estar em concordância, quanto ao seu conteúdo, com uma cena
sexual infantil anterior. Na base desta teoria está a concepção de que em todo caso de
histeria há uma ou mais ocorrências de experiência sexual prematura provocada por um
adulto, a chamada teoria da sedução.
As dúvidas, acerca da existência real das cenas de sedução, levam Freud
(1897a/1976) a admitir na famosa carta 69, endereçada ao seu amigo Fliess, não
acreditar mais em sua “neurótica” (p. 279). A partir da “queda” desta teoria, a noção de
fantasia ganha destaque, juntamente com a pressuposição da existência de uma realidade
psíquica e da sexualidade infantil. Se as crianças não eram, de fato, seduzidas por um
adulto perverso, como relatavam, essas “lembranças” eram uma produção fantasmática.
“As fantasias, mesmo que não se baseiem em acontecimentos reais, têm para o
22
Por essa época falava em sexualidade na infância e não em sexualidade infantil.
62
indivíduo o mesmo valor patogênico dos traumatismos que Freud atribuía às
‘reminiscências’” (Laplanche & Pontalis, 1983, p. 548). Nesse sentido, o que passa a
interessar à Psicanálise é aquilo que no psiquismo assume o valor de realidade, e não a
realidade material.
A relação da sexualidade infantil com a neurose aparece também nesse período
de intensa correspondência com Fliess. A propósito de sua “auto-análise”
23
, aponta os
impulsos hostis dos filhos dirigidos contra os pais como um elemento integrante da
neurose, fazendo uma primeira indicação do que mais tarde viria a ser denominado
“Complexo de Édipo”
24
, considerado como o complexo nuclear das neuroses.
Após teorizar sobre os mecanismos de formação dos sintomas histéricos,
desvendando seu caráter inconsciente, sexual e infantil, Freud começa a investigar os
mesmos processos psíquicos, desta vez na formação dos sonhos. O livro “A
interpretação dos sonhos”, publicado no início do século XX, é considerado um marco,
pois expõe de modo categórico uma teoria original sobre o funcionamento inconsciente,
inaugurando o que viria a ser chamado de psicanálise.
Neste livro, Freud (1900/1976) parte da análise dos sonhos, que é por ele
considerada a via régia para o inconsciente, para conceber um modelo de aparelho
psíquico e definir modos de funcionamento do inconsciente. Ao formular essa teoria,
estabelece uma aproximação entre o normal e o patológico, que irá se confirmar nos
estudos dos lapsos e dos chistes. Tanto nos casos patológicos (sintomas) como nos
considerados normais (sonhos, chistes e lapsos), há um mecanismo psíquico comum:
um desejo inconsciente (recalcado) insiste em obter realização, encontra a barreira da
23
A auto-análise está referida ao período em que Freud investigou a si mesmo, sobretudo os seus próprios
sonhos, e que está relatada nas cartas a Fliess. A prática da auto-análise foi criticada pelo próprio Freud
(1897d/1976) em uma dessas cartas: “a verdadeira auto-análise é impossível; não fosse assim não haveria
nenhuma doença neurótica” (p.291).
24
Algumas das idéias embrionárias sobre o complexo de Édipo estão contempladas nas cartas 64 (Freud,
1897b/1976, p. 274) e 71 (Freud, 1897c/1976, p. 285).
63
censura e, para atravessá-la, a sua representação se deforma através dos mecanismos de
condensação e deslocamento
25
, se vinculando a outras representações, o que produz
entre elas uma conexão lógica e associativa.
Em todas essas situações se observa o que Freud chamou de “solução de
compromisso”, um acordo provisório que se dá entre duas instâncias psíquicas com
diferentes interesses: uma pede satisfação e a outra a repudia, não quer saber nada disso.
Como efeito desse processo é que ocorrem as chamadas formações do inconsciente
26
: os
sintomas, os lapsos, os chistes e os sonhos.
Na perspectiva lacaniana, a proposição estabelecida por Freud de leis próprias ao
funcionamento do inconsciente revelou, fundamentalmente, que o desejo é determinado
pelas leis da linguagem (metáfora e metonímia
27
), ou seja, que é por meio da cadeia
significante
28
, com suas infinitas combinações, deformações, substituições e
deslocamentos, que o desejo inconsciente se expressa e se desvanece. Essa constatação
leva Lacan (1957/1988), na década de 1950, a definir o inconsciente estruturado como
uma linguagem (p. 498).
O texto freudiano de 1900, portanto, institui definitivamente a ligação entre
inconsciente e linguagem. Essa ligação revela que o campo da Psicanálise é o campo da
25
A condensação efetua uma fusão de várias idéias do pensamento inconsciente, produzindo uma única
imagem no conteúdo manifesto consciente e o deslocamento é a transferência de valores psíquicos de uma
representação para outra dentro de uma cadeia associativa ou entre várias cadeias.
26
As formações do inconsciente trazem implícita a idéia de uma subjetividade humana em permanente
conflito (oposição entre os sistemas), com tendências impossíveis de se harmonizar. Em Freud, essa
divisão está situada, na chamada primeira tópica, entre o sistema inconsciente e o pré-
consciente/consciente. A segunda tópica, historicamente localizada nos textos escritos a partir de 1923,
estabeleceu o conflito entre três instâncias psíquicas: o isso, o eu e o supereu.
27
Figuras lingüísticas consideradas como análogas aos mecanismos de deslocamento e condensação.
28
O termo significante diz respeito à imagem acústica que o som da palavra provoca no psiquismo. Na
teoria lacaniana, em contraposição à saussuriana, o significante é autônomo em relação à significação. Ele
não se define pelo significado, mas por outro significante, com quem vai estar em oposição. Isso implica a
sua característica de ser equívoco, produzindo sempre um duplo sentido: um sentido literal e outro
figurado, o que reflete a divisão do sujeito. O significante também é definido por Lacan (1964a/1998)
como aquilo que determina o sujeito, e o que representa o sujeito para outro significante, como mostra os
efeitos produzidos pela metáfora e metonímia nas formações do inconsciente, dando a esse sujeito um
caráter efêmero (p. 854).
64
fala e da linguagem, como evidenciou Lacan (1953/1998) no título que deu ao Relatório
do Congresso de Roma. Tanto é assim que sonhos e sintomas, no referencial
psicanalítico, só são passíveis de decifração através do relato do sonhador/paciente, pelo
método da associação livre. É verbalizando que o paciente pode chegar a uma
significação (a ter acesso à representação inconsciente), ainda que provisória, a respeito
daquilo que o está afetando.
Outros textos de Freud que compõem a chamada “trilogia do significante”, ao
lado da “Interpretação dos sonhos” (1900) são: “A psicopatologia da vida cotidiana”
(1901) e “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (1905). Segundo Quinet (2000a),
esses trabalhos são assim denominados por fundamentar a hipótese do inconsciente
estruturado como uma linguagem: “basta abrir qualquer um deles que se verifica como
tudo que há aí descrito se encontra no jogo da linguagem” (p. 24).
Mas será que o inconsciente se constitui apenas das cadeias significantes?
O texto freudiano “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade” de 1905, ao introduzir
o conceito de pulsão, demonstra aquilo que já estava implícito nos trabalhos anteriores:
o inconsciente é também pulsional. Nesse trabalho, Freud apresenta pela primeira vez a
palavra pulsão
29
(trieb, em alemão) para designar um processo próprio à sexualidade
humana. O termo instinto ficou reservado para qualificar os comportamentos animais.
A pulsão diz respeito à força que impele o organismo em direção a um alvo, em
busca de satisfação. É também descrita como o representante psíquico de uma fonte
contínua de excitação proveniente do interior do organismo, caracterizado pela
diversidade em relação ao objeto, alvo, e fonte, e pelo inacabamento, incerteza quanto
29
Nos “Três ensaios”, Freud (1905/1976) o define como um conceito limite entre o somático e o
psíquico.
65
aos destinos
30
. Ela é sempre parcial, nunca totalmente satisfeita, e se distingue do
instinto animal por não ter um objeto pré-determinado que a satisfaça. Apesar de passar
pela rede de linguagem do inconsciente, nem tudo da pulsão pode ser simbolizado.
Quinet (2000a), parafraseando Freud quanto ao conceito limite da pulsão, define-
a com Lacan, como um conceito limite entre o simbólico e o real
31
, por se encontrar na
interseção desses dois registros. No primeiro registro, a pulsão é representada no
inconsciente pelo conjunto dos significantes. “São os significantes representativos da
pulsão que fazem o inconsciente ser estruturado como uma linguagem” (p. 47). No Real,
a pulsão diz respeito à libido, ou seja, à “energia que se presentifica como satisfação
pulsional ou gozo do sintoma” (p. 47). Nesse sentido, afirmar que o inconsciente é
pulsional leva à admissão de que ele se estrutura como uma linguagem, mas também de
algo que escapa à simbolização, ou seja, que comporta algo de real.
30
A concepção freudiana de pulsão teve sempre uma perspectiva dualista, referindo-se a forças em
permanente conflito. A primeira dualidade se deu entre as pulsões sexuais x pulsões do ego ou de
autoconservação. Uma outra dualidade foi proposta no interior da própria pulsão sexual: libido do eu x
libido do objeto. Por fim, Freud contrapôs a pulsão de vida x pulsão de morte.
31
O real, o simbólico e o imaginário constituem os três registros formulados por Lacan para dar conta da
estruturação do psiquismo e da experiência analítica. Essas três dimensões só podem ser pensadas uma
em relação às outras.
De modo simplificado pode-se afirmar que o real consiste naquilo que não é simbolízável e, por isso
mesmo, não cessa de não se escrever. É aquilo que insiste por uma representação que é estruturalmente
impossível de se realizar.
O simbólico diz respeito ao campo da linguagem, da articulação significante que funda o sujeito a
partir de uma lei primordial – a lei de interdição ao incesto. É a falta, a ausência, que vai produzir os
significantes, instituindo uma presença na ausência. Para o bebê é a ausência/presença materna que vai
introduzir inicialmente o processo de simbolização. O simbólico determina o sujeito na medida em que o
bebê já é falado antes mesmo de nascer.
O conceito de Outro como lugar do código, onde se situa o tesouro dos significantes, também é
relacionado ao próprio inconsciente, posto se tratar de um lugar (extimo – ao mesmo tempo dentro e fora)
que se presentifica na fala a partir da linguagem. Reconhecer o inconsciente em sua dimensão simbólica
significa considerá-lo como uma alteridade radical para o sujeito. As formações do inconsciente – os
lapsos, chistes, sintomas e sonhos – atestam essa alteridade, indicando que “isso fala nele”.
O imaginário, este que o uso do divã busca esvaziar, se refere às imagens, àquilo que é do registro da
ilusão, das identificações. O registro do imaginário é compreendido a partir do que Lacan chamou de
estádio do espelho. Trata-se do momento em que a criança, anteriormente se percebendo como um corpo
despedaçado passa a reconhecer sua imagem refletido no espelho (olhar da mãe) como uma unidade, o
que já havia sido designado por Freud como o tempo de instauração do narcisismo primário, coincidente
com o surgimento do eu. O sujeito humano, através dessa alienação primeira à imagem do outro, vai
encontrar a via da sua inserção na ordem simbólica.
66
A importância desse artigo de 1905 para a presente pesquisa não reside apenas
no fato de introduzir o termo pulsão, com o qual se relacionou a dimensão pulsional do
inconsciente, e identificá-la como aquilo que é próprio à sexualidade humana. Esse texto
interessa ainda por mostrar que a criança não é desprovida de sexualidade.
Estabelecendo a disjunção entre sexualidade e órgãos genitais, Freud aproximou
as atividades sexuais das crianças e dos perversos às dos adultos normais
32
. A criança
sente prazer em chupar, se exibir, olhar, se masturbar, reter/expulsar as fezes, é curiosa
quanto aos assuntos sexuais e constrói teorias a respeito de sua origem. Por causa de
seus modos de satisfação, Freud caracterizou-a de perversa e polimorfa. Tais
descobertas foram efetuadas, inicialmente, nas análises de adultos neuróticos, nas quais
constatou estarem sob o efeito do recalque, retornando na forma de sintomas.
Posteriormente, confirmou-as por observações diretas em crianças, nos modos descritos
no caso do Pequeno Hans (Freud, 1909/1976).
No campo da Psicanálise, tal como no Direito, a criança não é tomada apenas
como um objeto em relação ao adulto
33
; ela própria é também um sujeito, mas um
sujeito de desejo. No entanto, o que é esse sujeito que está no cerne da experiência
psicanalítica?
A noção de sujeito, formulada desde uma perspectiva lacaniana, assentada na
descoberta freudiana do inconsciente e sexualidade infantil, é o tema que se
desenvolverá no próximo tópico. Dentro da questão que norteia esta pesquisa, o
32
Embora não esteja entre nossos objetivos trabalhar especificamente o tema da sexualidade infantil, não
se deve olvidar que Freud (1925 [1924]/1976) define a sexualidade de modo ampliado, tendo concebido a
mesma a partir do estudo das perversões e da vida sexual das crianças: “a sexualidade está divorciada da
sua ligação por demais estreita com os órgãos genitais, sendo considerada como uma função corpórea
mais abrangente, tendo o prazer como a sua meta e só secundariamente vindo a servir às finalidades de
reprodução. (...) Os impulsos sexuais são considerados como incluindo todos aqueles impulsos
meramente afetuosos aos quais o uso aplica a palavra extremamente ambígua de ‘amor” (p. 51).
33
Na Psicanálise, a criança pode ser considerada também um objeto de desejo do adulto, na medida em
que pode estar situada no lugar daquilo que causa o desejo. De fato, a criança, antes mesmo de se tornar
um sujeito de desejo, passa, necessariamente, pela condição de ser objeto de desejo do Outro.
67
percurso teórico que se verá esboçado nas páginas seguintes servirá para discernir com
que sujeito se está lidando na escuta das manifestações da criança, a que se propõe o
psicanalista nas varas de família.
3.3. O sujeito da Psicanálise: uma hipótese fundamental
Inicialmente é preciso admitir que a noção de sujeito para a Psicanálise é
primordial pelo fato de que toda a práxis que se enuncia sob esse significante só pode
ser constituída e explicada a partir dessa concepção
34
. Nesse sentido, para a Psicanálise
o sujeito é considerado uma hipótese fundamental, estando sempre suposto em qualquer
práxis. A questão que ora se coloca é: de que sujeito se trata na Psicanálise?
De acordo com Roudinesco e Plon (1998), coube a Lacan a tarefa de dar ao
inconsciente freudiano o estatuto de sujeito:
Em psicanálise, Sigmund Freud empregou o termo,
mas somente Jacques Lacan, entre 1950 e 1965,
conceituou a noção lógica e filosófica do sujeito no
âmbito de sua teoria do significante, transformando
o sujeito da consciência num sujeito do
inconsciente, da ciência e do desejo. (p. 742)
A noção de sujeito para a Psicanálise tem sido formulada de inúmeras maneiras,
e há sempre que se considerar que essas conceituações estão relacionadas aos diversos
momentos de elaboração de Lacan no decorrer de seu ensino, mas todas partiram da
teoria do significante, conforme assinalaram Roudinesco e Plon na citação exposta
acima. No atravessamento do tema, ora proposto, não há a preocupação em seguir uma
34
De acordo com Elia (2004), o sujeito não é exatamente um conceito nos mesmos moldes definidos pela
ciência, ou seja, “algo que decorre de uma concepção” (p. 16). O sujeito “é uma categoria que se impõe à
experiência, na exigência de elaboração teórica que esta faz ao psicanalista” (p. 17).
68
ordem histórica ou cronológica. O que se pretende é indicar a posição da Psicanálise
quanto à noção de sujeito, a partir de diversos ângulos, até o ponto da concepção de
criança como um sujeito de desejo para, em seguida, discorrer sobre as condições que
tornam possível operar com esse sujeito.
Para tanto, adota-se como guia a formalização teórica sobre o sujeito
empreendida por Lacan e autores lacanianos com um grande percurso no campo da
Psicanálise, a partir de quatro vertentes, articulando-o com: o sujeito da ciência; os
fundamentos da sua constituição; a dimensão desejante, no que se distingue da
necessidade e da demanda; e, por fim, o processo de estruturação dentro do complexo
familiar, consolidando a concepção de criança como um sujeito de desejo.
No contexto deste trabalho, essas quatro maneiras de abordá-lo são
particularmente úteis. A primeira via se justifica porque se está tratando de uma práxis
que faz conexão com o campo do Direito que, pelo menos numa ótica mais
conservadora, concebe o sujeito como uma unidade pensante, consciente, racional, tal
como é tomado pela ciência na sua vertente cartesiana.
O segundo caminho também é pertinente, pois a noção de sujeito dividido,
tomada pelo viés de suas operações constituintes, está diretamente relacionada ao modo
de propor o estabelecimento do manejo e das condições de emergência desse sujeito na
experiência psicanalítica, as quais se colocam como elementos para discutir a
fundamentação da escuta do caso.
Na terceira vertente, a dimensão desejante do sujeito evocada na segunda
operação constituinte, é retomada pelo ângulo da distinção entre os conceitos –
necessidade, demanda e desejo – forjados por Lacan. Nesta pesquisa, discorrer sobre o
conceito psicanalítico de “desejo”, não apenas circunscreve o sujeito no âmbito da
sexualidade, mas o torna distinto do termo “vontade”, encontrado no campo do Direito,
69
contribuindo para o embasamento da escuta da criança, particularmente na elaboração
teórica daquilo que se supôs delineado por trás do discurso manifesto da menina Laura.
Por fim, o quarto modo de abordagem, que considera a estruturação do sujeito no
complexo familiar, também se insinua como de grande valia, pois subsidia a noção de
sujeito na Psicanálise bem como a concepção de criança como um sujeito de desejo,
refletida no modo de escuta e de escrita do caso relatado. Ademais, introduzir o aspecto
em que a Psicanálise insere a família em suas construções teóricas
35
não deixa de
auxiliar, igualmente, para a demarcação do campo psicanalítico inserido em uma
instituição jurídica voltada para os litígios familiares.
3.3.1. O sujeito do inconsciente e o sujeito da ciência
No que concerne ao tratamento dado ao tema do sujeito, os autores visitados,
entre eles Jacques Lacan e alguns de seus seguidores e leitores como Elia (2000; 2004),
Soler (1997), Quinet (2000a), e Cottet (1987), mencionam em seus escritos as conexões
da Psicanálise com o campo da ciência, num esforço de precisar a modificação operada
pela Psicanálise no campo hegemônico da ciência, mesmo porque foi para dentro deste
último campo que Freud introduziu a Psicanálise sem, no entanto, renunciar aos
pressupostos que a subverteram.
Decerto que a partir de Lacan, com a introdução do conceito de sujeito, a relação
da Psicanálise com a ciência foi mais amplamente discutida. No texto “A ciência e a
verdade”, Lacan afirma ser impensável que a Psicanálise possa ter sido criada antes do
advento da ciência, ou seja, antes da formulação cartesiana do sujeito do cogito
(1966/1998, p. 871).
35
Família como estrutura psíquica, como efeito de representação nos sujeitos que a integram. À
psicanálise interessa a singularidade com que cada sujeito constrói a sua própria mitologia familiar.
70
Elia (2000), partindo da leitura do trabalho de Lacan, acima citado, concorda que
a Psicanálise deriva da ciência sem, no entanto, se reduzir a ela. Esclarece ainda que o
corte operado pela primeira, e que fez produzir um rompimento discursivo com a
segunda, está diretamente relacionado com a noção de sujeito. Como conseqüência,
cada um desses campos discursivos vai se relacionar pela posição adotada a respeito da
noção de sujeito (p. 20).
O sujeito da ciência é o sujeito da razão, do cogito, do pensamento consciente,
aquele que Descartes identificou quando, duvidando da existência das coisas, inferiu
que os seus sentidos podiam enganá-lo, mas não o seu pensamento. Daí ter formulado o
célebre enunciado: “penso, logo sou”.
O sujeito da Psicanálise, suposto desde Freud, é o sujeito do inconsciente, do
pensamento inconsciente. Freud situou a Psicanálise dentro do campo das ciências, mas
precisou formular uma teoria inédita para discernir aquilo que foi encontrando em sua
clínica, configurado nas “formações do inconsciente” (sintomas, lapsos, sonhos e
chistes), e que lhe revelou que “o eu não é o senhor em sua própria casa” (Freud,
1917/1976, p. 178). Com essa proposição, a máxima cartesiana é, então, invertida:
“penso, onde não sou, logo sou onde não penso” (Lacan, 1957/1998, p. 521).
A despeito de considerar o sujeito como dividido, em contraposição ao sujeito
indiviso de Descartes, Lacan (1966/1998) afirma que a práxis do psicanalista “não
implica outro sujeito senão o da ciência” (p. 878). Qual é o ponto, então, ao qual Freud e
Descartes convergem, segundo Lacan? Sua argumentação se ampara na idéia de que o
sujeito que duvida em Descartes, e que encontra como resposta o pensamento (a razão)
de modo a se assegurar de alguma certeza, é o mesmo sujeito que Freud vê
vacilar/duvidar quando surge uma lembrança turva no relato do sonho, no qual localiza
o pensamento inconsciente, o recalcado. No seminário 11, Lacan (1964/1998) assinala
71
que “Freud, onde duvida – pois enfim são seus sonhos, e é ele que, de começo, duvida –
está seguro de que um pensamento estava lá, pensamento que é inconsciente, o que quer
dizer que se revela inconsciente” (p. 39).
Ainda nesse seminário, Lacan sustenta que o “eu penso” de Descartes não
poderia ter sido formulado sem deixar implícito aquilo que estava esquecido e que
aparecia no ato da dúvida. O esquecido, que emerge no ato da dúvida, pode estar
ausente, mas sua presença é suposta, tal como sugeriu Freud. Dentro dessa perspectiva,
é no pensamento que se revela como ausente que vai advir o sujeito. A dissimetria entre
Descartes e Freud está na localização conferida ao sujeito, pois ambos partem da
dúvida: para o primeiro, o sujeito estaria no cogito; para o segundo, no campo do
inconsciente.
Um modo de representar esse sujeito, comum à ciência e à Psicanálise, é
proposto por Lacan a partir de um modelo topológico – a banda de Moebius, também
conhecida como oito interior. Esta fita consiste em “uma superfície em que o direito e o
avesso acham-se em condições de se juntar por toda parte” (Lacan, 1966/1998, p. 878).
Através dela se pode demonstrar a relação do inconsciente com o discurso consciente.
Há um contínuo entre os dois lados, podendo o inconsciente (lado do avesso) surgir no
discurso consciente (lado do direito) em um dado momento, seguindo uma lógica que
lhe é própria.
A articulação entre o sujeito da Psicanálise e da ciência pode ser concluída, para
efeito deste trabalho, com Elia (2004), quando afirma que a ciência moderna, ao
introduzir o sujeito do cogito, estabelece as condições de surgimento real do sujeito,
mas “não opera com ele nem sobre ele” (p. 14). O autor acrescenta que no próprio ato
de supor o sujeito, a ciência o exclui, e o exclui de seu campo de operação. O ato
72
subversivo da Psicanálise, em relação ao sujeito da ciência, é justamente “ter criado as
condições de operar com esse sujeito” (Elia, 2004, p. 15).
3.3.2. O sujeito dividido e suas operações constituintes
A reformulação do inconsciente efetuada por Lacan, que redundou na construção
do conceito de sujeito, começou pela restituição desse inconsciente ao campo da
linguagem, a partir da crítica dirigida a um modo de praticar a Psicanálise que se
apoiava em uma “psicologia do ego” e na “análise das resistências”, as quais
considerava como uma distorção do pensamento freudiano.
No texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan
(1953/1998) começa a esboçar um novo estatuto para o inconsciente com as seguintes
formulações:
O inconsciente é a parte do discurso concreto,
como transindividual, que falta à disposição do
sujeito para restabelecer a continuidade de seu
discurso consciente. (...) O inconsciente é o
capítulo da minha história que é marcado por um
branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo
censurado. (p. 260)
O inconsciente aqui retomado por Lacan, desde o ponto essencial a que se referia
Freud, diz respeito a uma parte do discurso, a um capítulo censurado. Trata-se de um
discurso que, de acordo com Fernandes (2000), transcende tanto o interno quanto o
individual, na medida em que é “exterior à consciência” (p. 39) e, ao mesmo tempo,
“remete à ordem da linguagem de uma forma geral, tal qual esta preexiste e condiciona
o fenômeno humano” (p. 39).
73
O discurso do inconsciente está relacionado a algo que falta, a um branco, ao que
é censurado. E isso que falta, conforme se assinalou no tópico anterior, é aquilo que faz
o sujeito duvidar, vacilar, ou tropeçar, por exemplo, no relato do sonho. Foi justamente
nesse ponto que Freud o convocou, pois “lá onde falta alguma coisa, se encontra o
sujeito...” (Quinet, 2000a, p. 13).
Nessa direção, o sujeito para a Psicanálise, segundo Quinet (2000a), “é essa
lembrança apagada, esse significante que falta, esse vazio de representação em que se
manifesta o desejo” (p. 13). O sujeito não comporta uma identificação fixa, ainda que
esteja relacionado a um pensamento tal como o sujeito do cogito: “o sujeito é não
identificável e por isso mesmo pode ter várias identificações, as quais, uma a uma são
desfolhadas em uma análise” (Quinet, 2000a, p. 13). No processo analítico, continua
mais adiante este autor: “o sujeito se experimenta como falta-a-ser, na medida em que
não encontra representação simbólica para o seu ser” (p. 14).
O sujeito da Psicanálise não tem substância, tal como acontece com o sujeito
cartesiano ou o das ciências humanas; ele se situa nos intervalos significantes, nas
entrelinhas, e se manifesta de maneira efêmera, fugaz, evanescente. Ele é “momento de
eclipse que se manifesta num equívoco” (Kaufmann, 1996, p. 502).
Falar que há uma divisão do sujeito implica em admitir que o sujeito não
coincide com o eu, ou seja, com “aquilo que apresento ao outro, meu semelhante, igual
e rival, como sendo o que quero que o outro veja” (Quinet, 2000a, p. 15). O que o
sujeito apresenta como imagem corporal para si mesmo e para os outros no convívio
social é o eu ideal, que consiste em um “auto-retrato pintado segundo as linhas mestras
74
dos ideais daqueles que constituíram os Outros primordiais
36
em sua existência”
(Quinet, 2000a, p. 15).
Segundo Cottet (1987), a divisão do sujeito em Lacan aparece como uma
conseqüência imediata da incidência da lingüística em sua decifração do inconsciente. O
sujeito do discurso (inconsciente) não se confunde com o sujeito gramatical (o pronome
pessoal, por exemplo), nem com o locutor (aquele que fala na dimensão imaginária do
eu). Essa divisão é também descrita em termos de enunciado e enunciação, sendo o
primeiro relacionado ao sujeito gramatical, ao locutor, ao eu, e o segundo, ao sujeito do
discurso inconsciente (p. 19).
No texto “Posição do inconsciente”, Lacan (1964a/1998) discorre com
propriedade sobre o peso que confere à linguagem como causa do sujeito, ressaltando
aquilo que está em jogo nessa operação que divide o sujeito, constituindo-o:
O efeito da linguagem é a causa introduzida no
sujeito. Por esse efeito, ele não é causa dele
mesmo, mas traz em si o germe da causa que o
cinde. Pois sua causa é o significante sem o qual
não haveria nenhum sinal no real. Mas esse sujeito
é o que o significante representa, e este não pode
representar nada senão para um outro significante:
ao que se reduz, por conseguinte, o sujeito que
escuta. (p. 849)
Lacan acrescentou que não é com esse sujeito que se fala:
Isso fala dele, e é aí que ele se apreende, e tão mais
forçosamente quanto, antes de – pelo simples fato
36
Os “Outros primordiais”, aqui referidos por Quinet, dizem respeito aos que cumpriram a função de
espelho para a criança (geralmente os pais), isto é, àqueles que, através do olhar de reconhecimento,
retornaram para a criança uma imagem com a qual ela irá se identificar e constituir o seu eu (eu
imaginário ou eu ideal). Segundo Chemama (1995), “para que a criança possa se apropriar dessa imagem,
para que possa interiorizá-la, necessita que tenha um lugar no grande Outro” (p. 58), ou seja, no campo do
simbólico, encarnado por seus pais.
75
de isso se dirigir a ele – desaparecer como sujeito
sob o significante em que se transforma, ele não é
absolutamente nada. Mas esse nada se sustenta por
seu advento, produzido agora pelo apelo feito no
Outro, ao segundo significante. (Lacan,
1964a/1988, p. 849)
O efeito da linguagem na divisão do sujeito provoca essa excentricidade de si
para si mesmo, esse estranhamento que se sente nos chistes, nos sonhos, nos lapsos, e
nos sintomas.
Para entender melhor esse processo que divide e ao mesmo tempo engendra o
sujeito, se passa agora a tratar o modo como a teoria lacaniana pensa o seu surgimento, a
partir das suas operações constituintes.
Em primeiro lugar, se admite que sem a linguagem, sem a dimensão simbólica,
não existe o humano. Há o ser biológico. Para que um ser seja considerado propriamente
humano é preciso que ele seja inscrito/se inscreva no mundo da linguagem, a partir dos
seus Outros parentais ou primordiais, responsáveis pelas condições materiais e afetivas
necessárias à sua sobrevivência.
O advento do sujeito do inconsciente, tal como proposto por Lacan, pressupõe
duas operações: a alienação e a separação. Tudo parte da estrutura significante. Como
ressaltou Laurent (1997), “não há meios de se definir um sujeito como consciência de
si” (p. 34), há que se apelar ao Outro
37
, e esse Outro é prévio ao seu aparecimento.
Dito de outro modo, a criança já é falada antes mesmo de vir ao mundo. Ela vai
ocupar para cada um dos pais um lugar na dialética de seus desejos. A partir das
37
Lacan (1964b/1998) conceitua o Outro como “o lugar em que se situa a cadeia de significantes que
comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que
aparecer” (pp. 193-194). Esse lugar, o grande Outro, “tesouro dos significantes” (Lacan, 1960/1998, p.
820), pode-se dizer também, é o lugar do inconsciente, aquele que se situa numa relação de alteridade
com o sujeito. Há, portanto, duas dimensões do Outro: como o lugar da linguagem (exterioridade do
simbólico em relação ao homem, prévia ao seu nascimento e determinante do inconsciente) e como o
lugar do inconsciente (“alteridade em relação à consciência”, “parte do discurso que falta”, “extimidade
em relação ao sujeito”).
76
mensagens que estes veiculam, o sujeito vai tentando se inscrever como ideal, se
dirigindo ao Outro todas as vezes que fala.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o sujeito não é nada até que haja um primeiro
movimento em direção ao Outro. A esse momento inicial Lacan chamou de alienação
38
,
situando-o como a única saída para o sujeito dada a sua condição de dependência em
relação à linguagem.
O processo lógico com o qual Lacan expôs essas duas operações não é aqui
explicitado em detalhes nem representado graficamente. Para os propósitos deste
trabalho, buscou-se extrair o essencial de sua formulação.
Na explicação do processo de alienação, Lacan se utiliza do conceito de reunião
da lógica matemática dos conjuntos, no qual dois conjuntos se juntam, sem reduplicar os
seus termos comuns, se enlaçando justamente no que é comum aos dois. Essa reunião
define um certo vel (ou), chamado de vel de alienação, que “impõe uma escolha entre
seus termos ao eliminar um deles, sempre o mesmo, seja qual for essa escolha” (Lacan,
1964a/1998, p. 855). Por exemplo, na escolha entre “a bolsa ou a vida”, “a liberdade ou
a morte”, nesses casos, há sempre um desfalque: no primeiro caso, escolhendo a vida
fica-se sem a bolsa (sem dinheiro); no segundo caso, para não morrer é preciso escolher
a liberdade, e pagar o seu preço.
Com esse exemplo, Lacan buscou mostrar que, no caso do sujeito, essa reunião
ao Outro (ao significante) é imprescindível, vital para a sua existência, mas que nesse
processo há sempre uma perda inevitável. O sujeito faz uma “escolha forçada” ao custo
de petrificar-se num significante, termo que passa a ser comum a ele e ao Outro
(interseção).
38
Lacan (1964b/1998) afirma que o fato de ter nomeado alienação ao primeiro momento do processo
constitutivo do sujeito não significa que ele se extinga: “O que quer que se faça, sempre se está mais
alienado, quer seja no econômico, no político, no psicopatológico, no estético e assim por diante” (p.199).
77
Mas para que o sujeito não permaneça petrificado
39
nesse primeiro significante,
numa completa submissão ao Outro, e possa abrir uma passagem para se constituir
como sujeito através do deslizamento na cadeia de significantes, será preciso haver uma
segunda operação, denominada de separação
40
.
Para demonstrar essa segunda estruturação lógica, “onde se fecha a causação do
sujeito” (Lacan, 1964a/1988, p. 856), Lacan parte da idéia de interseção proveniente da
teoria dos conjuntos, mas introduz nela uma modificação. Se a interseção na matemática
se compõe daquilo que pertence aos dois conjuntos, a interseção proposta por Lacan,
para explicar a separação, é definida por “aquilo que falta em ambos os conjuntos, não
pelo que pertence aos dois” (Soler, 1997, p. 60). Há um não-senso, um não sentido,
situado na interseção entre o sujeito (conjunto do ser transformado em sujeito pelo
Outro) e o Outro (conjunto dos sentidos). Se anteriormente o sujeito já havia sido
marcado pelo significante, o que implicava uma primeira falta, agora, no encontro com a
falta no Outro, o sujeito se engendra como tal, como desejante.
Partindo dessa estruturação lógica, o que é que vai fazer com que o sujeito
deslize metonimicamente na cadeia significante, migre para o campo infinito dos
sentidos, se torne sujeito desejante?
Para Soler (1997), a alienação é o destino, mas a separação requer duas
condições. Do lado do sujeito, é preciso que ele “‘queira’ se separar da cadeia
significante” (p. 62), pois, “a separação supõe uma vontade de sair, uma vontade de
39
Segundo Soler (1997), “a definição mais simples de um sujeito petrificado é a daquele que não se
questiona sobre si mesmo. Ele vive e age, mas não pensa sobre si. Recusa-se mesmo a pensar sobre o que
é. Esta é a norma, e é o exato oposto do analisando” (p. 62).
40
Embora seja freqüente tratar essas duas operações como logicamente sucessivas, primeiro a alienação e
depois a separação, Lia Fernandes (2000) opta por pensá-las como processos distintos, mas simultâneos.
A autora justifica-se da seguinte maneira: “(...) no Outro, na linguagem, estão presentes, desde o início,
ambas as dimensões. O significante em sua materialidade e o furão – o vazio, o desejo do Outro – que
corre sob seu deslizamento, em seus intervalos, naquilo que não se diz. Pensá-las numa simultaneidade
nos permite depreender também a presença de uma falta operando no próprio processo de alienação, sem
a qual podemos interrogar se algum significante destinado ao sujeito poderá vir a se colocar como desejo
do Outro” (pp. 61-62).
78
saber o que se é para além daquilo que o Outro possa dizer, para além daquilo inscrito
no Outro” (p. 62). Ou seja, é necessário que algo se movimente do lado do sujeito para
sair do estado de petrificação, o que implica em lhe atribuir uma responsabilidade
quanto ao seu destino.
A segunda condição que vai possibilitar a separação diz respeito à dimensão do
desejo no Outro. Soler (1997) explica que o Outro implicado na alienação não é o
mesmo que na separação: “é um outro aspecto do Outro, não o Outro cheio de
significantes, mas ao contrário, um Outro a que falta alguma coisa” (p. 63). Retomando
o modelo da interseção proposto por Lacan, a autora localiza, no ponto de interseção
entre o sujeito e o Outro, uma falta, uma lacuna. Essa falta, diz ela, “é o que Lacan
chama de desejo” (p. 63).
O desejo aparece na fala “porque há uma impossibilidade de se dizer o que se
quer” (Soler, 1997, p. 63). Mesmo que se explique com bastante clareza o sentido que se
quer dar a uma certa mensagem, há sempre uma pergunta: “o que realmente se quer
dizer com isso?” O fato de existir na fala as duas dimensões (a do enunciado e a da
enunciação) produz o problema de saber o que o outro quer para além do que ele fala.
Nesse sentido, a introdução da dimensão do desejo significa estabelecer uma
segunda divisão do sujeito – a divisão pela pulsão. Soler (1997) sustenta que essa
dimensão pulsional é a que responde à questão inefável do sujeito – o que sou eu no
desejo do Outro?
41
-, ao contrário da dimensão simbólica do Outro que se constitui
apenas de significantes e de vazio. Em sua opinião,
é na pulsão que encontramos a verdadeira vontade
do sujeito, mas não uma vontade consciente. (...) A
pulsão é algo que o sujeito não pode evitar ou deter
41
Questão atualizada na transferência, durante a análise.
79
dentro de si. Ela não é escolhida ou assumida, na
maioria dos casos. (Soler, 1997, p. 66).
Na operação de separação, o objeto de satisfação é perdido desde sempre,
condenando o sujeito a uma busca interminável para reencontrá-lo, e é nisso que reside
o desejo humano. A falta constitutiva operada na separação vai, portanto, implicar o
aparecimento do desejo
42
, que agora passará a ser abordado em sua relação com a
necessidade e a demanda.
3.3.3. O sujeito de desejo: necessidade, demanda e desejo
Para introduzir a distinção entre esses três termos, se adota um modelo bastante
utilizado por autores psicanalíticos, que é o da primeira experiência de satisfação,
proposto por Freud na sua formulação do conceito de desejo. Nessa primeira
experiência, um estímulo interno (a fome) provoca uma ação (o choro do bebê). A
experiência de ser amamentado põe fim ao estímulo interno, e faz com que o bebê
registre esta imagem em seu sistema de memória. Quando a necessidade ressurge, um
impulso psíquico procurará reinvestir a imagem anterior tentando reevocá-la para
restabelecer a satisfação original, o que é feito, num primeiro momento, através da
alucinação do seio materno (realização do desejo). Este impulso é denominado desejo
(Freud, 1900/1976, pp. 602-603).
Conforme se observa, o desejo na sua origem aparece em um segundo tempo
como tentativa de restabelecer o primeiro, se apóia na necessidade (fome), e conduz a
demanda (apelo, choro), mas nunca se concretiza, pois esse primeiro objeto, que é
mítico, jamais será reencontrado. Em termos lacanianos, “o desejo se esboça na margem
42
O que justifica a nominação do sujeito da Psicanálise como sujeito de desejo.
80
em que a demanda se rasga da necessidade” (Lacan, 1960/1998, p. 828), ou seja, o
desejo aparece quando há o desligamento da demanda em relação à função biológica,
que é da ordem da necessidade. A insistência dessa busca, ancorada na demanda, é o
que confere ao desejo um caráter metonímico, e o de ser sempre “desejo de outra coisa”
(Lacan, 1957/1998, p. 522). A metonímia ocorre porque não há nenhuma significação
que não remeta a outra significação.
Segundo Quinet (2000a), o desejo “é o vetor que se desloca de um significante
(S1), representado pelo traço de excitação da necessidade de comer (a fome), para outro
significante (S2), representado pelo traço do objeto que a satisfaz (o seio)” (p. 88). A
demanda é o apelo, é o pedido do bebê, é o choro, para que um Outro provedor, aquele
que se ocupa da função materna, possa lhe fornecer o objeto que o satisfaça.
Comparando os dois termos, se afirma com Quinet (2000a) que o desejo é “a busca do
objeto perdido” e a demanda, “o pedido de satisfação do status quo ante” (p. 88). A
necessidade, por outro lado, é da ordem do biológico e possui um objeto que a satisfaz.
Em outros termos, pode-se dizer que o desejo surge a partir do sujeito como
falta-a-ser que apela o seu complemento ao Outro que, por sua vez, comparece como
faltante
43
. Nesse sentido, constituir-se como desejante implica em creditar ao Outro a
posse de um arsenal suficiente de significantes para lhe garantir a existência e o gozo
44
,
o que produz a insistência da demanda, fazendo o desejo deslizar como um resto
metonímico das insistentes demandas (Carvalho, 2006, p. 167).
Ocorre que, pelo fato de faltar a esse Outro um significante que dê conta da
existência do sujeito, essa falta no Outro é identificada como desejo (do Outro) pelo
43
Esse momento coincide com a segunda operação constituinte do sujeito – a separação – abordada no
tópico 3.3.2.
44
O gozo diz respeito à satisfação pulsional, e inclui as diferentes modalidades de “relação com a
satisfação que um sujeito desejante e falante pode esperar e experimentar, no uso de um objeto desejado”
(Chemama, 1995, p. 90).
81
sujeito. Diante dela, o sujeito procura se situar, desejando ser, em um primeiro
momento, o que encobre essa falta, o que a preenche. Dessa formulação resulta a
premissa de que “o desejo do homem é o desejo do Outro” (Lacan, 1960/1998, p. 829).
O homem vai desejar o que é o desejo do Outro, e é “como Outro que ele deseja”
(Lacan, 1960/1998, p. 829). A pergunta “o que ele quer de mim?” se coloca como vinda
do Outro enquanto enigmática, e é a que vai poder responder pelo desejo do sujeito.
De acordo com o que se expôs sobre a concepção de desejo pela Psicanálise, à
luz da teoria lacaniana, pode-se afirmar que o desejo pode ser identificado como um
impulso que nasce apoiado na necessidade, se distingue dela, e é canalizado através da
demanda; é efeito da separação do sujeito em relação ao Outro; é metonímico; desejo de
outra coisa; vetor que se desloca de um significante a outro; por fim, é aquilo que insiste
na cadeia significante, mas por não se inscrever no significante, só pode ser inferido a
partir da demanda.
Admite-se, até esse ponto, que o sujeito da Psicanálise corresponde: ao sujeito do
inconsciente, que em certo aspecto coincide com o da ciência; ao sujeito dividido, como
efeito de sua inserção no mundo da linguagem, demonstrado através de suas operações
constituintes; e ao sujeito de desejo, distinto da necessidade e da demanda. Resta agora
introduzir a estruturação do sujeito a partir do complexo de Édipo ou familiar, de modo
a enxergar por um outro ângulo o seu processo constituinte, mas desta vez incluindo
com maior precisão a dialética da criança com seus Outros parentais pelo viés do desejo
e da sexualidade.
3.3.4. O complexo familiar: a criança como um sujeito de desejo
82
Para Freud, a articulação do desejo com o sexual não foi problemática, porque,
para ele, o desejo é por definição sexual. Lacan, no entanto, para poder correlacionar o
desejo e a sexualidade, após ter encadeado o desejo com o significante, precisou atribuir
ao desejo um objeto que estivesse de acordo com a sua estrutura metonímica. “Esse
objeto será definido, precisamente como o falo metonímico, o falo significado na
medida em que ele falta à mãe” (Valas, 2001, p. 17).
A primazia do falo já havia sido formulada por Freud (1923/1976) no texto “A
organização genital infantil”, quando apontou que nesta organização, para ambos os
sexos, só um órgão era considerado – o masculino. Por isso mesmo, o que estava
presente não era “a primazia dos órgãos genitais, mas a primazia do falo” (Freud,
1923/1976, p. 180). Tanto meninos como meninas acreditam que todos são possuidores
de falo. Quando se dão conta da diferença anatômica entre os sexos, a menina entra no
complexo de Édipo (vai buscar do pai o falo que lhe falta, sob a forma de um filho,
afastando-se da mãe enquanto objeto de amor), e o menino sai do complexo por se sentir
ameaçado de perder o seu pênis (abre mão da mãe como objeto, podendo buscar outros
objetos fora do grupo familiar). O complexo de castração, tal como Freud denomina esta
experiência subjetiva, consiste, em última instância, em uma “operação de corte que
recai sobre o vínculo incestuoso” (Lajonquière, 1992, p. 194), e é o que vai permitir que
a criança saia de uma posição de mero objeto de desejo (materno) para uma condição de
sujeito desejante.
Se Freud introduziu a articulação entre esses dois complexos, Lacan vai dar um
relevo ainda maior à castração na sua articulação com o complexo de Édipo, pois toda
teoria do significante e da constituição do sujeito pressupõe uma falta original. Na teoria
lacaniana, a noção de falo é o que vai fazer a vinculação entre os dois complexos.
83
Para Lacan (1958/1998), o falo não é uma fantasia, não equivale a um objeto
(parcial, interno, bom, mau etc) e nem corresponde ao órgão (pênis ou clitóris) que ele
simboliza (p. 696). O falo é um significante (significante da falta), é o “significante
destinado a designar, em seu conjunto, os efeitos de significado, na medida em que o
significante os condiciona por sua presença de significante” (p. 697). Ele não é o objeto
que falta, mas aquilo que o designa. Em outros termos, o falo é “o que outorga
significância àquilo que está ausente, ao que falta, colocando-lhe um véu, recobrindo-o
com uma imagem recortada pelo jogo cortante dos significantes e que toma a forma de
um falo imaginário” (Lajonquière, 1992, p. 206).
No Édipo lacaniano, o falo se insere como um quarto elemento, acrescentado à
triangulação edípica formulada por Freud, em torno do qual pais e filho se posicionam
45
.
No seminário intitulado “As formações do inconsciente”, Lacan (1957-1958/1999)
define o Édipo em três tempos, que são na verdade três momentos lógicos por meio dos
quais ocorre o processo de estruturação do sujeito no complexo familiar, resultando na
assunção de uma identidade sexual.
O fato de o sujeito humano nascer numa condição de desamparo torna necessário
que alguém ocupe a função materna, qual seja, a de se responsabilizar pelos cuidados
com a sobrevivência do infante, investindo-o libidinalmente. Esse Outro materno entra
numa relação dialética com o bebê e passa a interpretar suas manifestações, dando-lhes
o sentido ou, melhor dizendo, introduzindo o mal-entendido próprio à linguagem. A
mãe, que é geralmente quem encarna esse Outro materno, procura significar o choro da
criança, mas não sabe exatamente do que se trata, a não ser fazendo tentativas, e o bebê,
por outro lado, não sabe porque ela está dando aquela significação particular e procura
situar-se a partir desta, perguntando-se: o que ela quer de mim?
45
Sobre o falo, afirma Lacan (1957-1958/1999): “Esse elemento desempenha um papel ativo essencial
nas relações que o filho mantém com o casal parental” (p. 190).
84
Do lado da mãe, o filho vai ser uma atualização do seu desejo de ter o falo
46
,
proveniente do seu próprio Complexo de Édipo. O filho lhe proverá, portanto, de um
falo imaginário. De seu lado, o filho se identificará, num primeiro momento, ao objeto
de desejo materno. Imagina-se como aquele que satisfaz à mãe, e que pode completá-la.
É nesta relação especular com a mãe que o bebê humano constitui o seu eu. Eu
imaginário, ou eu ideal, identificado especularmente com o objeto de desejo da mãe.
O desejo do infante será condenado à mediação da palavra, e a palavra tem o seu
estatuto no Outro. A mãe enquanto esse Outro primordial aparece como Outro
desejante, a quem falta algo, e na dialética com a criança vai instituir uma relação de
presença e ausência, que se constituirá num enigma para o bebê: “o que quer dizer que
ela vai e volta?” Essas descontinuidades, cortes, buracos, constituem a condição
essencial de inscrição do sujeito na Ordem Simbólica, tal como se visualizou, por um
outro ângulo, nas operações constituintes.
Esse momento inicial é o que Lacan (1957-1958/1999) denominou de primeiro
tempo do Édipo, onde a criança busca, como desejo de desejo, poder satisfazer o desejo
da mãe, se fazendo falo para ela (p. 197).
Neste primeiro tempo, a instância paterna aparece de maneira velada, mas pelo
fato de o pai existir, significa que a questão do falo já está colocada em algum lugar da
mãe, onde a criança tem de situá-la.
Num segundo tempo, o pai intervém, num plano imaginário, como privador da
mãe, como aquele que é o suporte da lei. Envia uma dupla mensagem. Para o filho: “não
te deitarás com tua mãe”; e para a mulher: “não reintegrarás o teu produto”. Neste
momento, a lei não é mais a da mãe, há um para-além dela. A mãe recebe do pai, como
agente imaginário da privação, o que lhe falta, isto é, o falo. Para o filho, significa a
46
“A relação do filho com o falo se estabelece na medida em que o falo é objeto de desejo da mãe”
(Lacan, 1957-1958/1999, p. 190).
85
passagem da dialética do Ser para a do Ter. A questão com que se interroga agora está
no registro do ter ou não ter e não mais do ser ou não ser (o falo).
Lacan (1957-1958/1999) chama atenção de que o fato de o pai estar presente não
é suficiente para que esta operação ocorra. É preciso que sua palavra sirva de lei para a
mãe (p. 199). Portanto, é o discurso materno que vai mediatizar e introduzir a função do
pai.
No terceiro tempo, é preciso que o pai mantenha o que prometeu, que se revele
como aquele que tem e não mais como aquele que é. Ele intervém como real e potente,
satisfazendo à mãe, e por isso a criança vai poder se identificar a esta instância paterna
enquanto ideal de eu, promovendo o declínio do complexo de Édipo.
O terceiro tempo é o instante em que o pai é preferido à mãe e a diferença
anatômica dos sexos passa a contar. O filho homem se identifica ao pai, ideal de seu eu,
isto é, a ter o que ele tem. Ou seja, vai portar “os títulos nos bolsos”, como diz Lacan,
para poder se servir deles no futuro. Quanto à menina, não precisa se identificar com
esses títulos de virilidade ou guardá-los. Ela sabe que tem que se dirigir ao pai, pois é
ele que tem o falo (Souza Filho, 1988, p. 89). Sendo o pai interditado à filha, é preciso
que ela decline dessa posição, buscando substitutos fora do âmbito familiar.
No que diz respeito à operação estruturante no Édipo, o pai que vai importar não
é o pai da realidade, o guardião, o educador, o que se faz presente na família, mas o pai
no complexo. E neste, ele é uma metáfora, um significante que substitui o primeiro
significante introduzido na simbolização, o significante materno. A operação simbólica
que realiza (é nisso que consiste a função paterna) é a da interdição do incesto
(castração), que tem como efeito colocar o sujeito numa posição desejante, “condenado
a buscar aquilo que (lhe) falta (no Outro)” (Lajonquière, 1992, p. 215).
O Complexo de Édipo assume uma posição central na teoria e clínica
86
psicanalítica, não se devendo reduzi-lo aos sentimentos de amor do menino por sua mãe
e rivalidade com o pai, de um lado; e os sentimentos de amor da menina por seu pai e
rivalidade com sua mãe, de outro. De acordo com Bleichmar (1984), o Édipo, à luz da
teoria lacaniana, é “a descrição de uma estrutura e dos efeitos de representação que essa
estrutura produz nos que a integram” (p. 20). Em outras palavras, a travessia marcada
pelo desejo da mãe e pela lei do pai, ou seja, o modo como o sujeito se relaciona com
estes vai ser determinante na sua estruturação psíquica e na aquisição de uma posição
subjetiva própria. Da mesma maneira, essa trajetória tem como conseqüência o modo
peculiar como cada sujeito representa a sua família, ou melhor dizendo, como “organiza
a sua mitologia familiar” (Souza Filho, 1988, p. 86).
Se no campo do Direito a família é considerada como “um agrupamento de
pessoas envolvidas por laços de sangue, vínculos afetivos e comunhão de interesses”,
para a Psicanálise ela é uma estrutura
47
e ao mesmo tempo uma ficção, um mito, na
medida em que se constitui, do ponto de vista psíquico, a partir do modo como o sujeito
a significa. Cada um que encarne as funções materna e paterna é único para cada filho, e
vice-versa.
A criança, por sua vez, já identificada por Freud como tendo uma sexualidade
que lhe é própria, adquire na Psicanálise, a partir da teoria do significante de Lacan, um
estatuto de sujeito de desejo.
Ao fim desse percurso sobre o sujeito da Psicanálise, chega-se à consideração de
que a criança escutada desde uma perspectiva psicanalítica não é o indivíduo, o sujeito
pensante, consciente, o sujeito de direito. O sujeito da Psicanálise é sempre um sujeito
suposto. Ele não coincide com o eu, com o enunciado; é inconsciente, dividido, barrado,
de desejo, e conjuga/subverte o sujeito da ciência.
47
Estrutura como sendo “um conjunto de elementos que se constituem na relação e que são, portanto,
rigorosamente interdependentes” (Bleichmar, 1984, p. 13).
87
Para fazer avançar a questão proposta nesta pesquisa, que concerne na
verificação dos recursos teóricos-clínicos que o analista contou para ouvir as
manifestações da vontade de uma criança no contexto da disputa judicial da guarda,
passa-se agora ao tema das condições de análise. Considerando que para operar com
esse sujeito é preciso que certas condições/dispositivos sejam instauradas, torna-se
necessário conhecê-las, para poder tomá-las como referência na reflexão sobre os
recursos que se dispôs para ouvir o caso, verificando o que de psicanalítico ali
compareceu.
3.4. As condições de análise: como operar com o sujeito
As condições de análise são aqui entendidas como aquelas que correspondem à
instalação de dispositivos necessários para poder operar com o sujeito da Psicanálise.
Em outras palavras, concerne aos meios que tornam possível investigá-lo e fazê-lo
produzir um saber que lhe é suposto, saber implicado nas formações do inconsciente,
saber do Outro, saber que não se sabe, que não se completa, que se baseia no
significante, e que é efeito dele.
Quinet (2000b), no livro “As 4+1 condições de análise”, extrai do texto de Freud
(1913/1976) “Sobre o início do tratamento” o termo “condições” para demonstrar, com
Lacan, que a prática analítica não deve ser pautada por regras técnicas como propõe a
IPA, mas por condições que se fundamentam na lógica da psicanálise, aquela que rege o
dispositivo da associação livre
48
.
48
“O dispositivo freudiano da associação livre é o que responde ao estatuto do inconsciente, estruturado
como uma linguagem, impondo ao analisante a tarefa de decifração do saber inconsciente, sustentada na
transferência, pelo analista” (Quinet, 2000b, p. 97).
88
No artigo acima citado, Freud (1913/1976) faz referência a algumas condições
que devem ser reguladas antes que se iniciem as intervenções do analista (p. 176). São
elas: o tratamento de ensaio (entrevistas preliminares), o tempo, o dinheiro e o divã. O
que Quinet ressalta em seu texto é que esses elementos, que fazem parte da estrutura da
situação analítica, não devem ser tomados como um contrato, uma norma, em que se
estipula a duração e a freqüência das sessões, por exemplo. O próprio Freud não os
tratava dessa forma, mas como recomendações. Para Quinet (2000b), esses elementos
devem ser manejados de acordo com os fundamentos da Psicanálise, conferindo à
experiência do inconsciente seu estatuto de singularidade, e ao analista, a
responsabilidade pelo seu ato.
A despeito de reconhecer que o estudo dessas condições mencionadas por Freud,
e retomadas por Quinet, constitui uma importante referência para refletir a práxis do
psicanalista, optou-se por extrair os dispositivos que, de um modo ou de outro, estão
referidos a elas, e se colocam como aquilo que faz operar uma análise. Do lado do
analista, tem-se a atenção flutuante e o desejo do analista, com seu fundamento ético; do
lado do sujeito, a associação livre e a transferência
49
.
Dar início a uma psicanálise não é o resultado do estabelecimento de um
contrato, mas de um ato do psicanalista. Neste trabalho, os dispositivos que entram em
jogo no tratamento são abordados em dois momentos: primeiro, no ato inaugural de
Freud, que vai da descoberta do método da associação livre e seu correlato - a atenção
flutuante -, até o ponto de fazer da transferência um veículo privilegiado de acesso aos
processos inconscientes; segundo, no ato psicanalítico de Lacan, que retirando a
49
A transferência na análise é considerada um obstáculo ao tratamento, mas pode ser tomada também
como um dispositivo (um mecanismo disposto para se obter certo fim) tal como escreveu Mariscal e
Ericson (1988): “O dispositivo da análise é a transferência; estabelece-se aí uma dialética entre o Sujeito-
suposto –Saber como estrutura de ficção e o real que deve operar a partir do desejo do analista” (p. 47).
89
Psicanálise dos desvios de uma mecanização das regras e da “análise das resistências”,
recolocou-a nos trilhos de uma ética regida pelo desejo do analista.
3.4.1. O ato inaugural de Freud: da regra fundamental à análise sob
transferência
A descoberta do inconsciente é correlativa ao desenvolvimento de um método
para investigá-lo. Freud não poderia ter desnudado os modos de funcionamento do
inconsciente se não tivesse dado ouvido às falas das pacientes, não as tivesse deixado
associar livremente. Do mesmo modo, não teria renunciado a dirigir a fala das pacientes
se já não suspeitasse da existência de pensamentos inconscientes, com um modo próprio
de funcionamento
50
.
Ao contrário dos médicos de sua época, diante dos enigmáticos sintomas
histéricos, Freud dava importância ao que seus pacientes contavam, ao invés de
examiná-los pela observação e de prescrever condutas. Segundo Roudinesco e Plon
(1998), “Freud foi o iniciador de uma inversão do olhar médico que consistiu em levar
em conta, no discurso da ciência, as teorias elaboradas pelos próprios pacientes a
respeito de seus sintomas e seu mal-estar” (p. 604).
Conforme foi referido no tópico que versou sobre o início da Psicanálise, Freud
chega até à proposição da associação livre como método para a investigação dos
processos mentais inconscientes após utilizar o método catártico, que incluía a hipnose e
a sugestão, e o de pressão sobre a testa.
50
Esse movimento inaugural de Freud, o modo como ele se posicionou diante da fala das histéricas
aponta que o desejo do psicanalista Freud estava em operação, evidenciando que foi com um ato que ele
fundou a psicanálise.
90
A hipnose é utilizada para trazer à lembrança a experiência traumática, e
provocar a ab-reação, através do escoamento do afeto represado. “Recordar e ab-reagir”
(p. 193) é como Freud (1914/1976) sintetizava o objetivo do método catártico.
A despeito de reconhecer os êxitos que obtivera com o método hipnótico, no
sentido de fazer desaparecer os sintomas, Freud observa alguns inconvenientes: nem
todos podiam ser hipnotizados; e os resultados terapêuticos eram insatisfatórios, pois
eram transitórios, revelando-se dependentes da relação do paciente com o médico, se
assemelhando aos efeitos de uma sugestão. “Se essa relação era perturbada, todos os
sintomas reapareciam, como se nunca houvessem sido dissipados” (Freud, 1923
[1922]/1976, p. 289). Além disso, ao despertar do estado hipnótico, o paciente não
conseguia integrar o conteúdo lembrado, o saber produzido, ao conjunto de sua história.
Ao acreditar que as lembranças traumáticas, vinculadas ao sintoma, poderiam ser
evocadas sem o uso da hipnose, Freud abandona este recurso, e adota um novo: continua
deitando-os em um sofá, coloca-se numa posição de vê-los sem ser visto, e pressiona-
lhes a testa, encorajando-os a associar. Neste caso, “tratava-se de fazer o doente contar
aquilo que ninguém, nem ele mesmo sabia” (Freud, 1910 [1909]/1976, p. 24). Pela
persuasão, imagina que venceria a resistência e faria emergir as lembranças esquecidas.
Num momento posterior, percebe que essa insistência é infrutífera, porque o
motivo pelo qual as idéias ficavam retidas em certo ponto das associações, impedidas de
serem comunicadas, é devido ao próprio funcionamento inconsciente. É resultante, mais
precisamente, do fenômeno da resistência. E se a resistência, enquanto algo que faz
entravar o progresso do tratamento, é inerente ao funcionamento inconsciente, não há
como eliminá-la; é preciso trabalhar com ela, e apesar dela. A resistência passa, então, a
ser reconhecida por Freud como “um meio de acesso ao recalcado e ao segredo da
neurose” (Laplanche e Pontalis, 1983, p. 596).
91
É no contexto dessas descobertas que Freud (1925 [1924]/1976) introduz o que
chama de “regra fundamental da psicanálise” (p. 54), inscrevendo o tratamento
psicanalítico, definitivamente, no campo da fala e da linguagem. Para o paciente, propõe
que associe livremente, falando o que lhe vem à cabeça. Pede-lhe que se abstenha de
fazer qualquer reflexão consciente e que abandone uma atitude crítica quanto aos
conteúdos, sejam eles desagradáveis, moralmente condenáveis, absurdos, ou
irrelevantes.
A regra da atenção flutuante consiste na contrapartida do analista à exigência
feita ao sujeito de tudo dizer, sem crítica ou seleção, ou seja, trata-se do correlato da
regra da associação livre. Em “Recomendações aos médicos que exercem a
psicanálise”, Freud (1912/1976) explica a sua técnica de atenção flutuante: “consiste
simplesmente em não dirigir o reparo para algo específico e em manter a mesma
‘atenção uniformemente suspensa’ em face de tudo o que se escuta” (p. 150). Ao
analista, recomenda que “ele deve conter todas as influências conscientes da sua
capacidade de prestar a atenção e abandonar-se inteiramente à ‘memória inconsciente’.
Em outros termos: ‘Ele deve simplesmente escutar e não se está lembrando de alguma
coisa’” (Freud, 1912/1976, p. 150).
Com isso pretendia que, em sua escuta, o analista não fizesse uma seleção de
conteúdos, evitando se fixar em um ponto ou outro da fala do paciente. Se desse modo
conduzisse, estaria seguindo inclinações e expectativas próprias, arriscando produzir
deformações no material que lhe estava sendo transmitido. A atribuição de sentido ao
sintoma não deveria ser precipitado: “O que se escuta, na maioria das vezes, são coisas
cujo significado só é identificado posteriormente” (Freud, 1912/1976, p. 150). O recado
de Freud é para o analista não se apressar, não se concentrar em um ponto específico,
não tentar compreender. Nesse sentido, promover uma escuta, de acordo com a atenção
92
flutuante, implica em adotar posição de uma “maior receptividade, abertura, e
disponibilidade possíveis em relação ao que o paciente possa dizer” (Chemama, 1995,
p. 167).
Trabalhando com tais dispositivos, Freud identifica um tipo especial de
resistência, à qual nomeou de transferência. Observa que a interrupção da cadeia
associativa do paciente ocorre, invariavelmente, porque irrompe uma outra associação
relacionada diretamente à figura do analista ou com algo a ele vinculado. Na
transferência,
o doente consagra ao médico uma série se
sentimentos afetuosos, mesclados muitas vezes de
hostilidades, não justificados em relações reais e
que, pelas suas particularidades, devem provir de
antigas fantasias tornadas inconscientes. Aquele
trecho da vida sentimental cuja lembrança já não
pode evocar, o paciente torna a revivê-lo nas
relações com o médico; e só por esse ressurgimento
na transferência é que o doente se convence da
existência e do poder desses sentimentos sexuais
inconscientes. (Freud, 1910 [1909]/1976, p. 47)
Deste recorte, se extrai que a transferência se institui como uma resistência
51
,
mas é condição para que a análise ocorra. Se de um lado ela opera como uma
resistência, de outro, ela é “o verdadeiro veículo da ação terapêutica” (Freud, 1910
[1909]/1976, p. 48). Em diversos momentos de sua obra, Freud se referiu à importância
da transferência no trabalho analítico. No final do texto “A dinâmica da transferência”
ressaltou:
Não se discute que controlar os fenômenos da
transferência representa para o psicanalista as
51
“A resistência mais poderosa ao tratamento” (Freud, 1912/1976, p. 135).
93
maiores dificuldades; mas não se deve esquecer
que são precisamente eles que nos prestam o
inestimável serviço de tornar imediatos e
manifestos os impulsos eróticos ocultos e
esquecidos do paciente. Pois, quando tudo está dito
e feito, é impossível destruir alguém in absentia ou
in effigie. (Freud, 1912a/1976, p. 143)
No texto “Sobre o início do tratamento”, a transferência é colocada em conexão
com o início das comunicações que o analista dirige ao paciente. Essas comunicações
devem ser retidas e somente colocadas “após uma transferência eficaz ter-se
estabelecido no paciente, um rapport apropriado com ele. Permanece sendo o primeiro
objetivo do tratamento ligar o paciente a ele e à pessoa do médico” (Freud, 1913/1976,
p. 182). Com isso, quis dizer que para haver qualquer intervenção, interpretação, o
analista precisa primeiro esperar que se estabeleça uma relação, de tal modo a se deixar
enlaçar ao sintoma do paciente, fazendo disto um meio de decifrá-lo.
Um outro aspecto importante sobre a transferência é indicado nos artigos de
1914, “Recordar repetir e elaborar”, e de 1920, “Para além do princípio do prazer”. Em
ambos, Freud relaciona a transferência com a compulsão à repetição. Esta compulsão se
manifesta na análise através de uma atuação (acts it out), quando o paciente nada
recorda do que esqueceu. Ele reproduz o recalcado “não como lembrança, mas como
ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo” (Freud, 1914/1976, p.
196).
A transferência seria, então, um fragmento dessa repetição que se volta para a
figura do médico, e o que nela se manifesta é uma atualização, uma reedição dos amores
edípicos da infância, o que Freud (1915 [1914]/1976) chama de “amor de transferência”.
Esse amor vai adquirir a configuração de uma “neurose de transferência” e se tornar o
próprio objeto de análise.
94
Justamente nesse texto “Observações sobre o amor transferencial”, Freud (1915
[1914]/1976) acentua a importância do manejo da transferência, justificando que é nele
que reside as dificuldades mais sérias com que um analista se depara (p. 208). Freud
ensina que, apesar das dificuldades advindas do amor de transferência, o analista não
deve recuar. Ao contrário, deve usar este amor em prol do paciente e do tratamento, e
jamais satisfazê-lo. Seu interesse maior é fazer prosseguir o trabalho analítico,
conduzindo-o no sentido do desdobramento da fala do sujeito.
As recomendações freudianas de recusar satisfazer e, ao mesmo tempo, de
manejar com esse amor de transferência apontam para a função do psicanalista e para a
sua responsabilidade na condução do tratamento, a qual lhe exige um posicionamento
condizente com a técnica
52
e a ética da Psicanálise.
Para formalizar sobre a posição de onde o analista opera, ou seja, aquela que o
possibilita dirigir o tratamento (manejar a transferência e interpretar), escutar e sustentar
o dizer do analisante sob transferência, levando-o a questionar o seu saber e a ser um
investigador de si mesmo, Lacan propõe o desejo do analista, sustentado por uma ética.
3.4.2. O ato psicanalítico de Lacan: o desejo do analista e seu fundamento ético
Desde Freud, a análise do analista é condição para o seu exercício. Em sua
opinião, o analista no momento da escuta precisa estar numa posição de suspensão
quanto aos seus preconceitos, pressupostos teóricos e inclinações pessoais, e para que se
qualifique a assumir esse lugar necessita passar por uma “análise didática”. Nas
“Recomendações”, afirma que todos aqueles que “desejem efetuar análises em outras
52
Freud adotou o termo técnica para designar o seu modo de operar, mas se opôs frontalmente a uma
“mecanização da técnica” (Freud, 1913/1976, p. 164).
95
pessoas terão primeiramente de ser analisados por alguém com conhecimento técnico”
(Freud, 1912/1976, p. 155).
A idéia de que uma formação específica é imprescindível para a prática analítica
também é apontada no texto “A questão da análise leiga”: “(...) ponho ênfase na
exigência de que ninguém deve praticar a análise se não tiver adquirido o direito de
fazê-lo através de uma formação específica” (Freud, 1926/1976, p. 265). A formação do
analista por ele proposta está assentada em um tripé: análise didática, supervisão clínica
e estudos teóricos.
Segundo Teixeira (2003), com a noção de ato psicanalítico, Lacan introduziu
uma exigência a mais, além da análise pessoal do analista proposta por Freud, ao
afirmar que
não basta que se faça uma análise, ou uma análise
com um suposto analista didata, nem que se
cumpra determinado número de horas analítica,
porém que é necessário que um analisante produza
em sua análise um certo ultrapassamento, da ordem
do ato que leva ao passe, o qual na análise de um
analista, representa a passagem da posição de
analisante à analista. (p. 83)
O ato psicanalítico é, pois, um conceito lacaniano concernente ao ato de tornar-
se analista pela via da análise; é o que o qualifica a se colocar diante de um sujeito,
operando uma função. O ato psicanalítico corresponde ao final de análise, e pode ser
verificado, na instituição lacaniana, pelo dispositivo do passe.
Segundo Quinet (2000b), “o ato psicanalítico por excelência é aquele em que o
analisante passa a analista” (p. 96), mas pode ser também considerado como sendo da
96
mesma natureza daquele que autoriza o início de uma análise
53
, pois “é o analista que
com seu ato dá existência ao inconsciente, promovendo a psicanálise no particular de
cada caso” (p. 8).
A noção de ato analítico conduz a dois outros conceitos que estão a ela
articulados: desejo do analista e ética da Psicanálise. O conceito de desejo do analista é
formulado para dar conta daquilo que se produz como efeito do final da análise, ou seja,
aquilo que com o ato analítico se produziu na análise e que vai se ver refletido na tarefa
do psicanalista
54
. Por outro lado, a noção de ato analítico leva à consideração de que
não se opera como psicanalista a partir de uma formação profissional acadêmica ou por
normas de conduta estabelecidas por uma instituição, mas o seu fazer depende de uma
condição que é dada pela travessia de sua própria análise, o que resulta em transportar a
psicanálise do campo da técnica para o campo da ética.
No texto “Do Trieb de Freud e do desejo do psicanalista”, Lacan (1964c/1988)
admite que “é o desejo do analista que, em última instância, opera na psicanálise” (p.
868). Em um trabalho posterior, especificamente, na “Proposição de 9 de outubro de
1967 sobre o psicanalista da escola”, Lacan (1967a/2003) articula o desejo do analista
com aquilo que se situa no começo da psicanálise e que ocorre graças ao analisante: a
transferência.
A instalação da transferência corresponde, na perspectiva lacaniana, ao momento
em que o sintoma do paciente se liga ao seu tratamento e à pessoa do analista, ou seja, é
o momento em que o analisante atribui ao analista um lugar de “sujeito suposto saber”.
53
Quanto a essa dimensão do ato como comparecendo no início da análise, Quinet (2000b) estava se
referindo ao momento de passagem das entrevistas preliminares à análise propriamente dita, a partir da
instalação dos dispositivos.
54
“Por isso é que é de outro lugar, unicamente do ato psicanalítico, que é preciso situar o que articulo
sobre o ‘desejo do psicanalista’, que nada tem a ver com o desejo de ser psicanalista” (Lacan,
1967b/2003, p. 276).
97
Segundo Quinet (2000b), “trata-se de uma ilusão na qual o sujeito acredita que a sua
verdade encontra-se já dada no analista e que este a conhece de antemão” (p. 26).
Pode-se afirmar também que o momento da transferência começa quando o
analisante quer ocupar um lugar no desejo do analista. Com isso, passa a colocá-lo “na
série das pessoas pelas quais foi amado, ou das pessoas pelas quais deseja ser amado”
(Jimenez, 1989, p.58), o que produz a alienação
55
do seu próprio desejo no desejo do
analista.
Justamente no ponto que começa a transferência, Lacan (1967a/2003) interroga
sobre o que habilita o psicanalista a responder a essa situação, pois o que este não deve
fazer é atender à demanda de amor e nem se identificar com o lugar de saber, já que “do
saber suposto, ele nada sabe” (p. 254).
Um primeiro aspecto ressaltado por Lacan, no referido texto, é que responder a
essa situação não envolve a pessoa do analista. Seja qual for o “significante qualquer”
que o analisante dirija ao analista pela transferência, ou seja, aquele que o analista
presentifica para o sujeito, ele não deve ser tomado como dirigido à sua pessoa, pois
está relacionado, na verdade, com o mundo simbólico do sujeito.
Sendo assim, com que, então, o analista se posiciona frente ao lugar em que é
colocado pelo analisante? A resposta que Lacan deixa entrever na “Proposição” é que
essa posição concerne ao desejo do psicanalista, ao ato analítico, ou seja, ao efeito de
análise que produziu a passagem de analisante a analista.
Diante disso, se extrai que, para Lacan, o que qualifica o psicanalista a operar
como tal, o que o habilita a responder à transferência do analisante, tem relação direta
com os efeitos que resultam de sua própria análise, ou melhor dizendo, com os efeitos
55
Esse processo de alienação é da mesma natureza daquele formulado para pensar as operações
constituintes do sujeito.
98
de um certo ponto de ultrapassamento na sua análise
56
. Nesse sentido, não é como
sujeito, nem como pessoa que se comparece para ouvir o analisante, mas como desejo
do analista.
Conforme se mencionou anteriormente, na sua tarefa de escutar um sujeito, o
analista nada sabe do “saber suposto” inerente à situação transferencial. No entanto,
para Lacan (1967a/2003), o analista não se deve dar por satisfeito com isso, pois “o que
se trata é do que ele tem que saber” (p. 254). Diante dessa provocação, indaga-se com
que saber o analista conta na sua escuta e qual a relação desse saber com o desejo do
analista?
Quinet (2000a) faz essa articulação, assinalando que o saber do analista está
vinculado ao desejo inédito que advém do ato psicanalítico, “é saber da Coisa, (...) saber
do objeto a
57
” (p. 114). Trata-se de um saber proveniente do encontro com a falta no
Outro, o que resulta no reconhecimento da impossibilidade de que esse Outro venha dar
a significação da existência e do desejo de um sujeito, cuja falta é estruturalmente
impossível de ser recoberta.
A posição do analista, nesse sentido, não é a de portar um saber que lhe é
suposto pelo analisante. Trata-se de sustentar uma “ignorância douta”, relativa a um
saber que conhece seus limites, “um convite não apenas à prudência, mas à humildade
58
;
um convite a se precaver contra o que seria a posição de um saber absoluto” (Quinet,
2000b, p. 26).
56
Essa concepção faz toda diferença da proposta ipeísta que reduz essa qualificação ao número de
sessões, à análise com um didata, entre outros, produzindo na instituição formadora uma hierarquização
de membros em função de normas, alheia aos fundamentos da Psicanálise.
57
O objeto a é um resto que é produzido no advento da separação, ou seja, ele é produto do rompimento
da unidade hipotética do sujeito com o Outro. É o objeto causa de desejo, aquilo que está implicado na
busca incessante do sujeito humano por complemento, por satisfação (que, na realidade, se dá sempre de
modo parcial), mas sem se confundir com um objeto como coisa em si, ou como representação. O objeto
a é condição absoluta da existência do sujeito, enquanto sujeito desejante. Pode-se pensar, a partir dessa
afirmação de Quinet (2000a), que o analista sabe, por sua própria análise, da impossibilidade de recobrir a
falta constituinte.
58
Não confundir com a modéstia, que se situa numa relação com o eu do analista.
99
Na clínica, o desejo do analista, o saber advindo da experiência de análise do
analista, se refletem no “não saber” e no “não compreender” que comparecem em cada
nova análise. O analista, situado nessa posição, não responde à demanda de amor do
analisante e, ao não se colocar no lugar de objeto de desejo para ele, pode mostrar-lhe,
pelo caminho da análise, “outras vias de se obter satisfação que não estão ligadas
somente a uma falta que se visa preencher, mas também a uma causa inevitável com a
qual se tem que aprender a conviver” (Carvalho, 2006, p. 171).
Segundo esta autora,
o desejo do analista possibilitará o advento do desejo,
situando-se no lugar do nada que o causa. Ele oferece o
enigma que remeterá o sujeito ao desejo do Outro para
nele instalar seu desejo, desvinculando-o da demanda a
que estava acorrentado, retirando-o do mero vazio
provocado pelas incessantes tentativas de preencher a falta
e reinstaurando a causa em seu lugar central”. (Carvalho,
2006, p. 171).
Em outros termos, operar com o desejo do analista na análise pode levar o
analisante ao ponto de dessupor o saber ao analista, pois a ele também falta. Essa
operação que Lacan chamou de destituição subjetiva “é um modo de escrever a
operação final da transferência que conduz à castração” (Teixeira, 2003, p. 87). Nesse
ponto de ultrapassamento, o sujeito se separa
59
, “reconhece-se como causado pelo
objeto a, causado em sua divisão de sujeito e marcado, ao final, por essa hiância que é
sua, que se define pelas formas da castração” (Teixeira, 2003, p. 87).
Ainda que não seja possível conduzir a análise até o seu final, operar com o
desejo do analista se traduz como condição para a escuta, por possibilitar ao analista
ficar fora da cena analítica enquanto sujeito, não se confundindo subjetivamente com o
59
Nesse ponto da análise se institui a separação, na qual se destituem os significantes mestres, em um
movimento semelhante àquele que ocorre na segunda operação constituinte do sujeito.
100
analisante. Repercute, de igual modo, no manejo da transferência, na direção do
tratamento, no operar com o corte da sessão, no cobrar o preço, entre outros.
Sem a pretensão de esgotar o tema, e considerando o limite dos objetivos deste
trabalho, optou-se por enunciar mais algumas colocações a respeito do conceito de
desejo do analista:
1. Não se confunde com o desejo de ser analista, nem tampouco com o de ser
reconhecido;
2. Não corresponde ao desejo de querer saber
60
, embora haja um saber nele
implicado;
3. Difere do desejo do inconsciente: por não ser o desejo do Outro, pois advém do
encontro com a inconsistência do Outro; por ser um desejo que se articula ao
“sem saída” da demanda (o desejo do inconsciente se articula na demanda); e
por não ser articulado à lei, situando-se para além do Édipo;
4. “Se encontra em escansão, corte, ruptura, hiância em relação à cadeia
significante” (Quinet, 2000a, p. 111) e, nesse sentido, é inarticulável.
O mais importante desse conceito para a presente investigação é que ele permite
circunscrever aquilo que possibilita ao analista se situar desde uma certa posição para
que o analisante possa produzir significantes, na travessia que promove o seu
desassujeitamento ao mandamento do Outro, o que só pode acontecer se esse
desassujeitamento adveio para o próprio analista, quando sujeito para um outro analista.
É evidente que os praticantes da análise, em geral, não chegam a esse ponto ao
iniciar sua atividade clínica, nem há garantias de que o deciframento do inconsciente
realizado em sua análise vá desembocar no ato analítico. Porém, como se disse, não se
60
“Trata-se de um desejo de saber, por um lado vinculado a um saber inédito, e por outro desvinculado
tanto da ciência, que foraclui o sujeito, quanto do discurso do mestre, ou seja, da lei que constitui a
civilização propriamente dita” (Quinet, 2000a, p. 115).
101
pode deixar de reconhecer que a escuta e a direção de um tratamento mantêm estreita
relação com o percurso de análise do analista, pois quanto mais ele estiver advertido de
seu próprio desejo e modalidades de gozo tanto mais poderá ouvir aquilo que é do Outro
do sujeito. Como afirma Cottet (1989), “quanto mais o analista calar seu desejo
61
, mais
será manifesta a alienação do desejo do paciente nesse lugar” (p. 158).
Considerando que o desejo do analista é o operador da análise, e se situa do lado
do analista, conclui-se a exposição desse conceito com as palavras de Quinet (2000a):
O desejo do analista é um desejo para-além da
fantasia, que não se sustenta em nada: ele é lugar
vazio que o analista oferece ao analisante, uma
vaga para que aí possa se instalar o desejo do
analisante como desejo do Outro. Ele é como uma
vaga de garagem. O desejo do analista é a vaga
onde o bonde chamado desejo do analisante pode
estacionar pelo tempo necessário de uma análise.
(p. 112)
Na base do desejo do analista se encontra a ética, pois há um modo de agir, uma
direção a ser tomada, enfim, um ato implicado na posição que o analista adota diante do
sujeito que o procura. Já que o seu ato e a sua posição não decorrem de regras pré-
estabelecidas, é numa ética que ele pode encontrar o seu fundamento.
A tarefa a que Lacan se dedicou no seminário “A ética da psicanálise” (1959-
1960/1995) foi a de refletir sobre as conseqüências éticas das descobertas freudianas na
práxis do psicanalista.
Para discutir a questão da ética da Psicanálise, Lacan utilizou como referência a
ética aristotélica do Bem Supremo, aquela que, considerando a natureza racional do
homem, concebe a felicidade como sendo o propósito da conduta humana. De acordo
61
O desejo a que o autor se refere nesse ponto diz respeito ao desejo do inconsciente do sujeito que ali
encarna a função de analista.
102
com Aristóteles, as virtudes seriam a condição da felicidade, e deveriam ser guiadas
pela razão, que moderaria os dois extremos, “dos quais um é vicioso por excesso, o
outro por deficiência” (Abbagnano, 2000, p. 381) .
Lacan mostra como esta difere da ética da Psicanálise. Na ética aristotélica há a
proposição de um estado de completude e de beatitude, o que promove a abolição do
desejo
62
. A prática psicanalítica, ao contrário, revela que “a completude é da ordem do
imaginário, pois o sujeito é marcado pela falta, falta-a-ser” (Quinet, 1995, p. 12). Seu
complemento está perdido desde sempre, e é de natureza mítica. Se a mãe é interditada
ao filho pela lei da proibição do incesto, esse objeto que poderia satisfazê-lo e completá-
lo é-lhe, terminantemente, inacessível. Como resultado restou um furo, designado como
das Ding, a Coisa freudiana
63
, “produto da operação da linguagem sobre o real do
vivente” (Quinet, 1995, p. 13).
Das Ding se encontra numa relação de extimidade (uma exterioridade íntima)
com o inconsciente, enquanto estruturado pela cadeia significante, e é o que governa o
sujeito. Por ser indizível, faz o desejo rolar nas representações. Se é das Ding que
comanda o sujeito, e este é por estrutura faltoso e impossível de ser completado, a ética
da Psicanálise jamais poderia ser a do Bem Supremo, aquela que prescreve um
complemento. Até porque o analista sabe que o Bem Supremo não existe.
Na análise, ao analista não cabe responder à demanda, que é sempre uma
demanda de complementação. Sua tarefa implica em levantar o recalque do sintoma e
em apostar numa travessia que pode levar o sujeito ao ponto de uma dessubjetivação,
62
É bem verdade que esse tipo de ética que busca um ideal, também se acha presente em uma certa
prática da psicanálise que propõe um ideal de maturação genital, a qual o sujeito deveria ascender,
superando o modo infantil de satisfação sexual. “Este, como qualquer outro ideal que venha a funcionar
como o Bem final, visando a uma quietude do caráter errático, anormal do desejo, transforma a prática
analítica numa terapia adaptativa qualquer” (Quinet, 1995, p. 12).
63
“A coisa aparece no discurso analítico como um ‘objeto absoluto’, inatingível; ela atesta para o sujeito
do inconsciente que só há verdade parcial” (Kaufmann, 1996, p. 84). Ela é “inominável e está fora dos
significantes; entretanto todo o aparelho tende a buscá-la” (Quinet, 1995, p. 13).
103
onde se produz uma queda das idealizações, dos significantes-mestres que
representavam o sujeito.
De acordo com Quinet (1995), a ética da Psicanálise também se distingue da
“ética do supereu – instância moral do homem que Freud identificou com o imperativo
categórico kantiano, ou seja, a ética kantiana” (p. 16). Esta atribui os motivos das
condutas humanas à razão em detrimento dos sentimentos, e implica a exigência de agir
segundo princípios morais absolutos e universais, que deveriam ser aplicáveis a todos.
Lacan (1959-1960/1995) revela que das Ding tem relação com essa lei moral, na
medida em que é correlato da lei da fala em sua origem mais primitiva
64
. Tomando
como exemplo o mandamento de não cobiçar (a mulher do próximo, a casa, o escravo,
(...), ou coisa alguma que pertença ao outro), e considerando o fato de a Coisa estar lá
desde o início (na constituição do sujeito humano), conclui que “a própria cobiça em
questão se dirige, não a uma coisa qualquer que eu deseje, mas a uma coisa na medida
em que é a Coisa do meu próximo” (p. 106). Nesse sentido, é a proibição de gozar sobre
a Coisa que a institui, lhe dando razão para existir.
Quinet (1995), na leitura que fez do texto de Lacan, coteja a ética kantiana à
sadiana, aquela que propõe o gozo para todos, “em todas as formas de perversão, até a
destruição total” (p. 16): a primeira, sustenta a lei do supereu; e a segunda, sustenta o
dever do gozo.
Na ética kantiana, tal como na sadiana, há um imperativo categórico de gozo,
pois o supereu (“a voz da consciência”), ao assumir o comando, ordena
imperativamente o gozo ao eu, empurrando-o para a cobiça, tendo em vista a proibição.
Ambas almejam a universalidade na ação do homem, o que recai na exigência de um
impossível. Nem todos gozam e nem todos se submetem às leis.
64
Das Ding sendo aqui considerado como aquilo que constitui a primeira coisa que se separa de tudo que
o sujeito começou a nomear e a articular.
104
Além de diferir da ética aristotélica, que busca atingir a felicidade, e da ética
kantiana e sadiana, que implica o imperativo do gozo e seu avesso, a ética da Psicanálise
também não se confunde com aquela instituída pelos conselhos de classe, regida por um
código de regras.
A ética da Psicanálise é a ética do desejo. Segundo Quinet (1995),
o que a psicanálise propõe para reger as ações do
indivíduo – função íntima de toda a ética – é o
desejo, cuja falta é estrutural e constituinte, que faz
objeção a qualquer tipo de universalidade, pois é o
que o sujeito tem de mais particular. A novidade da
ética da psicanálise é não ser uma ética do para-
todos, mas uma ética do um por um pautada pelo
desejo. (p. 17)
Pensar a ética da Psicanálise como ética do desejo tem inúmeras conseqüências
na práxis do psicanalista: ele não age em função de um ideal; sua ação não se dirige a
tornar um ser humano sadio ou adaptado ao meio, ou seja, não almeja uma normalização
psicológica, e à demanda do analisante ele responde com o desejo do analista.
A ética da Psicanálise aponta para o compromisso com uma verdade não toda,
com uma posição questionadora, de sustentar a inconsistência da falta ao invés da
consistência de significados fundamentais. Seu parâmetro é o do desejo e, portanto, de
uma “medida desmedida”, como apontava Lacan.
Em “O Seminário, Livro 7”, Lacan alude a uma importante incidência ética na
práxis do psicanalista. Trata-se do preço que o analista deve pagar para ocupar a sua
função: “ele paga com as palavras, – suas interpretações. Ele paga com sua pessoa, pelo
seguinte – pela transferência ele é literalmente despossuído dela. (...) Enfim, é preciso
que ele pague com um certo julgamento sobre a sua ação” (Lacan, 1959-1960/1995, pp.
349-350). No que concerne a esse último “preço a ser pago”, sustenta que “o analista
105
tem muita consciência de que não pode saber o que faz em psicanálise. Há uma parte
dessa ação que lhe resta, a si mesmo, velada” (p. 350).
Esse aspecto, mencionado por Lacan, aponta que, do lado do analista, no ponto
em que ele pensa sobre a sua própria ação, há um furo estrutural, um impossível de
dizer. De fato, quando se opera como analista, alguma coisa pode ser verificada no “só
depois”, outras lhe escaparão inevitavelmente; e mesmo que alguma coisa possa ser
verificada, se tratará sempre de um meio-dizer.
Para finalizar esse tópico, aborda-se a questão da ética pelo viés da
responsabilização do homem pelos seus atos, já que a análise promove um tratamento de
sentido a ações passadas.
Em Psicanálise, o termo responsabilidade não equivale à culpa. Nesse campo,
não se trata de julgar um sujeito como culpado ou inocente. O que existe é um
direcionamento que leva o sujeito a se implicar com aquilo de que se queixa, levando-o
a se responsabilizar pelo que se encontra implícito em seus pensamentos, atos e
palavras. O que significa se responsabilizar pelo seu próprio destino.
Como afirma Vieira (2001), “a existência do inconsciente não desculpa o homem
pelos seus atos” (p. 116). Há uma responsabilidade pelo desejo (de não “ceder de seu
desejo”), mas também pelo gozo, enquanto a outra face do desejo.
Do lado do analista, há a responsabilização por sua escuta, pela direção do
tratamento, pelo meio-dizer, e porque algo de seu desejo de sujeito e gozo ali
comparecem, ainda que minimizados pelos efeitos da sua própria análise. Em relação à
neutralidade, o analista reconhece que ela inexiste. Os preconceitos e as inclinações
pessoais são comuns a todos, tais como Freud os reconheceu quando recomendou deixá-
los em suspenso no momento da escuta. O que se procura através da análise pessoal é
106
justamente deixá-los de fora da cena analítica, porquanto se esteja deles advertidos. E
isso faz uma diferença considerável.
A seguir retoma-se o caso Laura, dentro do contexto jurídico em que está
inserido, discutindo-o à luz da Psicanálise, campo referencial de onde se extraem os
recursos com que se contou para ouvir a manifestação da vontade da criança,
verificando o que de psicanalítico foi possível comparecer nessa experiência.
107
4. Reflexões sobre a escuta da manifestação da vontade de uma criança
desde uma perspectiva psicanalítica
Pelo levantamento histórico da legislação, viu-se que a criança adquiriu nesse
último século o status de sujeito de direito. Atualmente, nas ações judiciais de guarda é
o seu melhor interesse que norteia as decisões. A ela foi concedido o direito de ser
ouvida em qualquer procedimento judicial que lhe diga respeito, de acordo com a idade
e a maturidade.
Nas varas de família, a criança vem sendo ouvida nas ações de guarda, e não é
incomum que se manifeste sobre com qual dos genitores prefere morar. O problema
desta pesquisa se insere no seio da polêmica concernente à interpretação/leitura/escuta
da manifestação da vontade da criança na disputa de guarda pelos pais.
O caso da menina Laura, com idade de nove anos, que manifestou em juízo a
vontade de morar com a mãe e de ver o pai apenas uma vez no ano, serve aqui como
ilustrativo para refletir sobre uma escuta realizada desde uma perspectiva psicanalítica.
Nesse sentido, retoma-se a pergunta inicial da presente pesquisa: com quais
recursos da Psicanálise se contou para ouvir a manifestação da vontade da pequena
Laura? O que foi possível comparecer de psicanalítico nessa escuta?
Para o praticante da Psicanálise existe, em primeiro lugar, a suposição da
existência do sujeito do inconsciente. Quando se coloca diante de uma criança para
escutá-la, é com a hipótese do inconsciente que conta. No caso de Laura, essa suposição
se traduziu em poder ficar aberta ao que poderia aparecer para além da vontade
manifesta da menina; em não levar esse dito muito à sério, como ensina Dolto (1989);
108
em não se fixar na expressão literal da criança, deixando seu discurso deslizar na cadeia
significante.
Do sujeito suposto se reconhece que está situado no campo do inconsciente e não
no campo do cogito. A posição de escuta em que a analista se colocou no caso atendido
se constituiu em uma tentativa de incluí-lo no campo operatório que a ciência o exclui.
Esse modo de escuta marca uma diferença em relação ao âmbito do Direito em que está
inserido o caso. Pelo que se investigou da doutrina jurídica, há nesse campo a
proposição de um modo de escuta da criança que deve observar a idade e os aspectos
cognitivos (capacidade de discernimento) e maturacionais (a autonomia de vontade),
coerentes com uma perspectiva racional do sujeito.
O sujeito que supõe a Psicanálise é um sujeito dividido. Há uma parte de seu
discurso que falta, que é censurado. Por essa ótica, o sujeito que se escuta não coincide
com o eu, não tem substância, está nos intervalos dos significantes, nas entrelinhas, e se
manifesta de maneira fugaz, evanescente. Por isso mesmo, na escuta de um sujeito,
admite-se que exista a distinção entre o dito e o dizer, entre o sujeito do enunciado e o
da enunciação, sendo o primeiro aquele que coincide com o locutor, com o eu, e o
segundo, com o sujeito do inconsciente.
Baseada nessa perspectiva, quando se escutou a menina Laura, a expressão da
sua preferência não foi tomada na literalidade. Na seqüência das entrevistas, foram
sendo ouvidas outras falas que indicavam a disjunção do significante em relação ao
significado, do dito em relação ao dizer. Essas falas sugeriam que sua “vontade”
envolvia questões de ordem afetivas que estavam além do aspecto cognitivo. A raiva
dirigida ao pai, presente em seu discurso, foi sendo dita de modo fragmentado (“o que
marca ódio é a agressividade dele”; “ele não cumpriu o acordo...”, “ele não tem dinheiro
109
para pagar plano de saúde para mim e pagar minha escola, mas tem dinheiro para estar
com mulher em...”, “ele merece!”).
Laura pareceu estar vivendo uma experiência subjetiva de separação de um certo
significante que a representava e no qual se encontrava alienada (“ser primeiro lugar em
tudo”, dito pela mãe), na medida em que estava ruindo sua inscrição como ideal para o
pai (ela constatou que não estava “em primeiro lugar” para ele). Concretamente, a saída
que encontrou a pequena Laura, diante da realidade que se descortinou para ela, foi
pedir à mãe para colocar o pai na justiça e se recusar a vê-lo.
Os ditos da criança, juntamente com os de seus pais, foram compondo um certo
cenário familiar, que apontava para a posição da criança em sua travessia edípica. Neste
atravessamento, como se disse anteriormente, a criança vai se posicionando diante do
desejo dos pais, e vai captando o que eles querem dela, qual o lugar em que é por eles
colocada, o que pode ter acesso e o que lhe é proibido.
Efetivamente, a travessia na estrutura familiar produz efeitos de representação
naqueles que a integram e se constitui como determinante na posição subjetiva adotada,
sendo esta, no entanto, passível de sofrer variações, de acordo com as experiências
vividas. No caso em tela, os efeitos dessas alterações se destacam, de modo mais
evidente, na história afetiva de Laura com o pai, quando o sentimento de amor se
inverteu para uma intensa raiva.
Com a teoria do Complexo de Édipo, pode-se também afirmar que, pelo fato de
o sujeito se constituir na condição de dependência ao Outro, a fala da criança nos
processos de guarda nunca é isenta de motivações e efeitos na dinâmica familiar. No
caso apresentado, tal fundamento teórico-clínico da Psicanálise contribuiu para indicar
que a “vontade” de Laura diante do litígio entre os pais emanava da sua posição na
110
estrutura familiar, naquele dado momento, o que conferia a seus sentimentos um caráter
circunstancial.
Outra proposição psicanalítica importante, inserida na sustentação teórica da
leitura do caso, é a distinção entre demanda e desejo. Enquanto a demanda está refletida
no enunciado de uma fala (é da ordem do apelo, do pedido), o desejo configura-se
naquilo que insiste na cadeia simbólica, mas não se inscreve no significante, só podendo
ser inferido a partir da demanda.
A demanda externada por Laura de morar com a mãe deixava entrever algo da
ordem do desejo, situado para além do seu pedido. O desejo de Laura é suposto, não se
sabe exatamente do que se trata. Porém, ele é denunciado pela existência de furos em
seu discurso, vislumbrados nos obstáculos a lembrar certas cenas (“não lembro”, “não
quero lembrar”) e no nó da garganta que bloqueava o seu choro e a sua fala. Também é
possível identificá-lo no susto, na surpresa, quando a analista relançou para ela própria a
questão trazida no seu desenho do coração que buscava a paz (“agora você me pegou,
não vale pergunta surpresa!”).
Do que se pode verificar até agora, a hipótese do sujeito do inconsciente, e o de
criança como sujeito de desejo, permeou toda a fundamentação da escuta. Uma primeira
indagação emerge: nesse caso, houve a aplicação de conceitos teóricos a um caso
específico? Não se pode concordar com essa impressão. No momento da escuta, todo
saber advindo da teoria psicanalítica estava fora, ela somente se articulou às falas
escutadas, no “só depois” da experiência. Conforme atestou Nogueira (2004), o fato de a
psicanálise possuir um conjunto teórico conceitual, que identifica estruturas universais,
não deve resultar em sua aplicação a um dado caso. O que o analista supõe é que essas
estruturas vão se repetir nos seres falantes, mas não se sabe como vai ser para cada
sujeito, pois cada um vai singularizá-la à sua maneira.
111
Sobre o que foi apontado no parecer a respeito da problemática edípica da
criança, entende-se que, apesar de não ter sido um elemento sabido sob transferência e
autenticado pelo sujeito, não se considera que foi feito de modo “chapado”,
“carimbado”, como uma aplicação do complexo de Édipo a um caso específico.
Articulou-se o que se escutou dos sujeitos familiares a uma teoria construída ao longo
da história da Psicanálise. Uma teoria sobre o modo como se constitui a subjetividade,
como o sujeito se estrutura no complexo familiar, como se engendra enquanto sujeito de
desejo.
Ainda que a leitura do caso tenha se amparado numa escuta articulada a uma
teoria já constituída, a fundamentação sobre as condições de análise indica que para
operar com o sujeito do inconsciente é preciso que alguns dispositivos sejam instalados:
do lado do sujeito, a associação livre e a transferência; e do lado do analista, a atenção
flutuante e o desejo do analista, sustentado pela ética da psicanálise. Somente através da
instalação desses dispositivos é que seria possível investigá-lo e fazê-lo produzir um
saber que lhe é suposto, investigação esta que, em um tratamento, é feita pelo analisante
e não pelo analista.
No caso Laura, se não houve o estabelecimento da transferência e nem da
associação livre por parte do sujeito, do lado da analista, no momento da escuta, foi
possível haver a suspensão de seus “preconceitos, pressupostos teóricos e inclinações
pessoais”, tais como recomendou Freud, e a análise pessoal da analista assim o permitiu.
Se não se tratou de uma relação analítica, de uma psicanálise stricto sensu, tão
pouco se reduziu a uma relação objetiva de investigação, entre um sujeito e um objeto.
Poder-se-ia qualificá-la como uma relação entre falantes, na qual não se estabeleceram a
transferência e a associação livre.
112
É sabido que faz parte dos objetivos de um estudo psicológico a apresentação do
caso, acompanhado de uma opinião baseada na avaliação que se fez do mesmo. Com
isso, pode-se pensar que há sempre o risco de se iniciar a escuta buscando compreender
o que está sendo falado, o que contraria frontalmente os princípios de uma escuta
analítica. Sobre esse risco, Freud (1912/1976) já advertira nas suas “Recomendações”,
quando afirmou que não se deve trabalhar cientificamente um caso enquanto o
tratamento está em curso e que aqueles casos voltados para propósitos científicos
sofrem em seus resultados.
Porém, o que se pode constatar é que esse risco existe, seja na clínica ou na
instituição, estando mais na dependência da condição que o analista adquire pela sua
própria travessia de análise do que do local em que um analista se oferece para escutar
um sujeito.
No caso da menina Laura, a escuta se pautou nos fundamentos éticos da
Psicanálise, norteados pelo desejo do analista. Ainda que o desejo do analista, tal como
formulado por Lacan, seja a resposta do analista à transferência do analisante, e
considerando que tal transferência não compareceu no caso apresentado, os efeitos do
atravessamento da análise do analista estiveram presentes na escuta em questão.
Há que se considerar também que mesmo que a análise do analista não chegue
ao término e produza o desejo do analista, é possível perceber seus efeitos na escuta,
verificando-os na singularidade de cada caso que atende. No caso estudado, tais efeitos
podem ser sentidos no momento da escuta: ao não tomar os significantes que lhes foram
dirigidos como sendo para sua pessoa, quando não se identificou com um lugar de
saber, não tentou compreender, se colocou fora da cena como sujeito.
113
Essa posição permeada pela ética da Psicanálise torna possível ao analista
sustentar o compromisso com uma verdade não-toda, não pretender à normalização
psicológica, à adaptação, não agir em função de um ideal ou de um Bem Supremo.
O problema dessa práxis não reside na especificidade da escuta aos sujeitos.
Nesse nível, as questões se equivalem às da clínica, e se referem às mesmas que se
situam em torno do início de um tratamento. A dificuldade maior da práxis nas varas de
família se localiza na resposta à demanda judicial.
O parecer psicológico se constitui para o juiz como uma prova, um testemunho
da verdade sobre os aspectos psíquicos em jogo no caso. O parecer se inclui entre as
provas examinadas pelo juiz para estabelecer, dentro da lei, o que é o melhor para a
criança.
Se o psicanalista, por sua ética, sustenta uma verdade não-toda, como refletir
essa posição no parecer? Como levantar as questões relevantes para a decisão sobre o
caso, sem fechar os sentidos?
No caso Laura se intencionou apontar, em primeiro lugar, que a menina buscou
pela via judicial
65
a resolução de um problema de ordem subjetiva, e que isso requeria
um tratamento específico. Sugeriu-se que diante do quadro de angústia da criança, ela se
mantivesse com a mãe, alertando para a circunstancionalidade do seu estado emocional.
A sentença judicial que determinou a guarda em respeito à “vontade” da criança fez
questão à Psicanálise, na medida em que, por essa perspectiva, se havia indicado a
distinção entre o dito e o dizer, o que requeria dar à fala da criança um tratamento outro
que não o de levar à termo a sua demanda.
Dentro do formato de um estudo psicológico, as limitações a uma escuta
psicanalítica são várias (a estipulação pelo juiz de um tempo para conclusão, a exigência
65
Não se pode esquecer que tudo partiu do pedido da criança: “mãe, por que você não coloca meu pai na
justiça?”.
114
de uma produção de sentido, entre outros). Não se pode afirmar que, pelo fato de as
condições para operar com o sujeito não se instalarem do modo como é teorizado para a
clínica, a contribuição do psicanalista nesse campo seja impossível ou sem valor.
No entanto, se o lugar da Psicanálise no mundo, conforme foi referido na
introdução desta pesquisa, está mais para o lado de interrogar, e se deixar interrogar por
aquilo que no mundo humano não se harmoniza, não funciona, aquilo que escapa ao
discurso da razão, e que insiste em não se escrever, será que o psicanalista no estudo
psicológico deveria propor, como resposta à demanda judicial, mais indagações e menos
“parecer”?
Encerra-se esta parte parafraseando Cyro Marcos da Silva (2003): será que o
campo do Direito pode acolher um pouco d’isso?
Para finalizar esse percurso tecem-se, a seguir, algumas considerações a respeito
dos limites e possibilidades em torno da práxis psicanalítica em uma instituição jurídica
de família.
115
5. Considerações finais
A oferta de escuta psicanalítica no âmbito de uma instituição jurídica de família,
conforme se verificou na realização do estudo psicológico, leva o analista a se deparar
com dificuldades de ordem ética e técnicas, que o instiga à teorização dessa práxis. O
fato de o campo da clínica apresentar, teoricamente, condições mais favoráveis para o
estabelecimento dos dispositivos de escuta do sujeito do inconsciente não tem feito os
analistas recuarem diante do desafio da realidade institucional.
De modo geral, no que concerne aos limites e dificuldades da aplicação da
Psicanálise na instituição jurídica, tem-se no horizonte as mesmas preocupações de
Freud quanto às distorções a que a Psicanálise está sujeita quando se tenta exercê-la em
condições que não se coadunam com seus fundamentos e sua lógica, e outras referentes
àquilo que Lacan tratou como a presentificação da Psicanálise e de sua ética no espaço
institucional.
De acordo com o que foi discorrido no tópico anterior, a demanda de produção
de sentidos, advinda da instituição, põe o analista em xeque, pois o lugar de onde opera
é um lugar de não saber. Ao se estabelecer um sentido para a situação conflituosa ou
para a posição subjetiva de algum sujeito, o qual fica registrado na escrita do parecer,
corre-se o risco de cair em uma interpretação realizada na dimensão imaginária que
Lacan tanto criticou nos analistas da IPA. Ou seja, uma interpretação baseada no
registro imaginário do analista, ao invés de autorizada pela transferência e autenticada
pelo sujeito.
Além disso, há que se atentar para a responsabilidade do psicólogo/psicanalista
quanto ao que escreve no parecer e ao destino deste, tanto em relação à decisão judicial,
116
como aos próprios sujeitos envolvidos. Como afirmou uma colega de trabalho, “um
parecer pode até piorar a situação”, ou seja, acentuar o conflito entre as partes.
A despeito das dificuldades encontradas, a atuação em varas de família, assim
como em outras instituições que têm formatos e objetivos distintos da clínica
tradicional, se constitui para o psicanalista numa oportunidade privilegiada para refletir
sobre a experiência analítica fora do consultório e sobre o modo de se posicionar diante
das demandas institucionais, o que pode redundar na criação de novas alternativas de
trabalho, mais afinadas com os princípios e métodos psicanalíticos.
Em instituições jurídicas de família, começa a surgir a atividade de mediação.
Nesta, é possível realizar uma escuta com vistas a trabalhar as dificuldades familiares
antes que tomem a forma de uma ação judicial. Na mediação, a demanda é feita
diretamente pelos sujeitos e não há a necessidade de se emitir um parecer sobre o caso.
Experiências relatadas por psicanalistas mineiros
66
apontam que os espaços de
mediação possibilitam uma abertura maior para que os dispositivos psicanalíticos se
instalem, promovendo o questionamento ao saber constituído pelo sujeito (que é da
ordem do particular), conduzindo-o, na mesma direção, a uma retificação subjetiva, ou
seja, a uma implicação naquilo de que se queixa, o que provoca uma mudança de
posição frente ao litígio.
Seja qual for a modalidade de atendimento do psicanalista no âmbito jurídico de
família, a conexão entre ambas as disciplinas produz um campo fértil de diálogo e
contribuições mútuas. Questões como a da (im)pertinência de se perguntar à criança,
diante do litígio entre os pais, o genitor de sua preferência, ou acatar o seu dito de modo
literal; a do sentido da manifestação da vontade externada pelos filhos menores nas
ações de guarda; a do “melhor interesse da criança” em um dado caso; a das
66
Esses relatos estão contidos no livro “Contando ‘causo’... psicanálise e direito: a clínica em extensão,
organizado por Barros (2001).
117
conseqüências para a criança quando a opinião dela se torna o fiel da balança na disputa
entre os pais; entre outros, são ilustrativas da enormidade de pontos de diálogo entre os
dois campos.
Ainda que se reconheça a existência de diferentes maneiras de conceber e
escutar os sujeitos familiares, e particularmente o sujeito criança, há nesse tema de
interesse comum, que se tornou objeto da presente pesquisa, uma pretensa contribuição
da Psicanálise para a área jurídica.
Pela experiência com o caso relatado, pode-se aventar que a Psicanálise colabora
com o Direito ao advertir sobre a divisão do sujeito, sobre a distinção entre o dito e o
dizer numa dada situação, o que resulta em admitir a importância da criança ser ouvida
para além do cognitivo, da maturidade, e da sua capacidade de discernimento. O que ela
manifesta como sendo a sua vontade pode ser vontade de outra coisa, como vimos no
caso de Laura.
Com a Psicanálise, pode-se também afirmar que a autonomia da posição
subjetiva nunca é absoluta, sobretudo na criança, devido à sua condição de maior
assujeitamento ao Outro. Ou seja, os seus ditos não são isentos de motivações e efeitos
na dialética familiar.
Ainda assim, o fato de a criança estar, em tese, mais assujeitada que o adulto aos
mandamentos do Outro, não significa que ela, como qualquer sujeito, não tenha
responsabilidade subjetiva com aquilo que fala, com aquilo que cala, ou com o seu
posicionamento no complexo familiar.
Diante do exposto, o que se deixa como questão para o Direito, considerando as
intempéries afetivas da travessia edípica, é se o acatamento literal da manifestação da
vontade da criança naquele contexto é o melhor caminho, e que conseqüências futuras
118
esse ato pode ter para a criança. Em outras palavras, será que, nesse caso, se deve fazer
coincidir o melhor interesse da criança ao que ela diz ser o seu melhor interesse?
Ao final deste percurso, espera-se ter aberto um canal de discussão profícuo e
permanente, não apenas com os psicanalistas que se arriscam nos inusitados da clínica e
da realidade institucional, mas também com os operadores do Direito que, no dia-a-dia
das varas de família, compartilham os dramas dos sujeitos em busca de uma solução
para seus conflitos.
119
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