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REGINA LÚCIA GONÇALVES PEREIRA SILVESTRINI
Da paixão ao abandono: uma leitura das Cartas Portuguesas e das litografias
de Henri Matisse
Dissertação apresentada ao Programa de
s-Graduação em Letras, Mestrado em
Letras, da Universidade Estadual de
Maringá, como requisito parcial para
obtenção do tulo de Mestre em Letras
(Área de concentração: Estudos
Literários).
Orientador(a) Drª. Clarice Zamonaro
Cortez.
MARINGÁ
2008
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REGINA LÚCIA GONÇALVES PEREIRA SILVESTRINI
Da paixão ao abandono: uma leitura das Cartas Portuguesas e das litografias
de Henri Matisse
Dissertação apresentada ao Programa de
s-Graduação em Letras, Mestrado em
Letras, da Universidade Estadual de
Maringá, como requisito parcial para
obtenção do título Mestre em Letras
(Área de concentração: Estudos
Literários).
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________________________
Profa.. Drª..Clarice Zamonaro Cortez
Universidade Estadual de Maringá
Profa. Drª..Marisa Corrêa Silva
Universidade Estadual de Maringá
Profa. Drª.Nelyse Apparecida Melro Salzedas
UNESP/Bauru
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Dedico este trabalho a Deus, ao meu
marido Carlos, aos meus filhos Adriane e
Jônathas pelo amor e paciência que
tiveram durante este período; à minha
orientadora Prof.ª Dra. Clarice Zamonaro
Cortez, que tanto me incentivou com seu
carisma e a dedicação à literatura que
tanto me contagiou.
4
AGRADECIMENTOS
muitas pessoas que direta ou indiretamente contribuíram para realização deste trabalho.
A todas elas, minha gratidão, em especial:
ao Sr. Leonel Borrela, pesquisador português que muito contribuiu com suas pesquisas,
atenção e amizade dispensadas durante a visita ao Museu Regional de Beja, Portugal,
cedendo-nos livros e artigos, além da entrevista que definiu o tema da dissertação;
aos meus colegas de trabalho que foram muito perseverantes e pacientes durante este
período;
à minha mãe e irmãs Carmem e Paula;
aos meus amigos Eliud Jr e Lucelena, Edvaldo e Sandra e Amanda que durante os
momentos mais difíceis desta jornada estiveram sempre presentes; minha eterna gratidão;
à banca examinadora composta pelas doutoras Marisa Corrêa Silva e Nelyse Apparecida
Melro Salzedas pelas preciosas observações e contribuições;
às minhas amigas mestrandas que sempre fiéis me apoiaram e incentivaram, Maria do
Carmo, Vera Bertol e Adriana Paula.
5
Grave o meu nome no seu coração e no
anel que está no seu dedo. O amor é tão
poderoso como a morte; e a paixão é tão
forte como a sepultura. O amor e a
paixão explodem em chamas e queimam
como fogo furioso. (Ct. 8:6, blia
Sagrada na Linguagem de Hoje)
6
RESUMO
Na Literatura Portuguesa, a temática das paixões como o desengano do amor, a melancolia
do ideal inatingível, a angústia da perda da esperança, a dor do tempo, entre outros temas
desvendaram estados de alma de ror Mariana Alcoforado, nas Cartas Portuguesas.
Escritas por um eu que se confessa freira e dirigidas a um militar francês, Chevalier de
Chamilly, as cinco cartas desvendam um sentido desengano e uma profunda dor da
ausência do ser amado, essência de um drama passional já encontrado, anteriormente, nas
cantigas de amigo. Henri Matisse (1869-1954), pintor, escultor, artista gráfico e projetista
francês também foi leitor das Cartas Portuguesas. No ano de 1945, aos 73 anos, lê as
Cartas enquanto se recupera de uma delicada cirurgia. Entusiasmado, no ano seguinte,
propõe à Editora Tériade, em Paris, uma edição ilustrada das Cartas. A edição de 2004 é
composta de retratos imaginários de Mariana, somando-se quinze litografias que
acompanham o texto e sintetizam os diversos estados de alma da religiosa, da pureza à
paixão e da desilusão à amargura. Além das litografias, Matisse ilustra as páginas com
vinhetas de flores, frutos e plantas dos países do sul que confirmam a paixão e o desejo
expressos no texto. A dissertação objetiva apresentar uma leitura das Cartas Portuguesas
considerando-as um documento humano, literário e de confissão, partindo-se da recepção
de leitura de Henri Matisse nas litografias e vinhetas da edição especial de 2004. A
recepção de leitura, segundo Wolfgang Iser, constitui-se o apoio teórico à leitura e
interpretação do texto das Cartas. Os conceitos teóricos de Praz (1982), Souriau (1983),
Ferrara (1986), Joly (1996), entre outros, foram essenciais para a interpretação das imagens.
Em pesquisa aos bancos de dados, os trabalhos existentes não contemplam a leitura do
o verbal das Cartas, daí a contribuição do presente trabalho à extensa fortuna crítica das
Cartas Portuguesas, de Sóror Mariana Alcoforado.
PALAVRAS-CHAVE: Barroco; Cartas Portuguesas; litografias; recepção de leitura.
7
ABSTRACT
In the Portuguese Literature, the passion theme as the love disillusion, the unachievable
melancholy, the loss of hope narrowness, the pain of the time, among other themes, have
revealed soul states of ror Mariana Alcoforado, in the Cartas Portuguesas. Written by a
self that confess itself as nun and driven by a French soldier, Chevalier de Chamilly, the
five letters reveal a disillusion sense and a deep pain caused by the loved being absence,
passion drama essence that was already found before in the friend odes. Henri Matisse
(1869-1954), painter, sculptor, graphic artist and French projector also was a reader of the
Cartas Portuguesas. In the year 1945, 73 years old, reads the Cartas while recovers him of
a delicate surgery. Enraptured, in the next year, proposes to the Tériade Editor, in Paris, an
illustrated edition of the Cartas. The 2004 edition is composed by imaginary pictures of
Mariana, plus fifteen lithographies that follow the text and synthesize the several states of
the religious soul, from purity to passion and from disillusion to bitterness. Yonder the
lithographies, Matisse illustrates the pages with flowers vignettes, fruit and plants from the
south countries that confirm the passion and the desire expressed in the text. The objective
dissertation presents a reading of the Cartas Portuguesas considering them as a human,
literary and confession document, from the reading reception of Henri Matisse in the
lithographies and vignettes of the special edition of 2004. The reading reception, as per
Wolfgang Iser, constitutes a theoretical support to the reading and text interpretation of the
Cartas. The theoretical concepts of Praz (1982), Souriau (1983), Ferrara (1986), Joly
(1996), among others, were essential to the interpretation of the images. Researching the
data base, the existing works do not contemplate the reading of the non verbal of the
Cartas, and this is the reason why the present work contributes to the extensive critical
fortune of the Cartas Portuguesas, ofror Mariana Alcoforado.
KEY WORDS: Baroque; Cartas Portuguesas; lithographies; reading reception.
8
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO........................................................................................
9
2
AS RELAÇÕES DA LITERATURA COM OUTRAS ARTES. O
LEITOR E A LEITURA DOS TEXTOS VERBAL E NÃO
VERBAL..................................................................................................
2.1
RELAÇÕES DA PINTURA COM OUTRAS ARTE..............................
15
2.1.1
A leitura do texto não verbal.................................................................
21
2.1.2
Considerações sobre leitura da imagem...............................................
25
2.2
O PAPEL DO LEITOR E A LEITURA DOS TEXTOS VERBAL E
O VERBAL.........................................................................................
31
2.2.1
Ler e experienciar: questão de efeito....................................................
32
2.2.2
O leitor e seu papel.................................................................................
34
2.2.3
A interação entre o texto e o leitor........................................................
36
3
O BARROCO NAS ARTES E NA LITERATURA
39
3.1
A EPISTOLOGRAFIA COMO MODALIDADE LITERIA NO
BARROCO PORTUGUÊS......................................................................
45
3.2
AS CARTAS PORTUGUESAS E AS LITOGRAFIAS: DO TEXTO A
IMAGEM..................................................................................................
47
3.3
AS CARTAS PORTUGUESAS: DA ORIGEM À CRÍTICA ................
47
3.3.1
Sóror Mariana Alcoforado e o Convento de
Beja..........................................................................................................
51
4.1
HENRI MATISSE: LEITOR E ILUSTRADOR DAS CARTAS......
58
4.1.1
AS LITOGRAFIAS HENRI MATISSE- LISBOA: FUNDAÇÃO
ARPAD SZENES, 2004...........................................................................
61
4.3
DA PAIXÃO AO ABANDONO AS CARTAS E AS
LITOGRAFIAS: DO TEXTO À IMAGEM............................................
64
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................
88
REFERÊNCIAS......................................................................................
92
ANEXOS..................................................................................................
96
9
1. INTRODUÇÃO
O Barroco inicia-se em Portugal em 1580, data marcada por dois acontecimentos de
grande importância histórica: a morte de Luís Vaz de Camões e a perda da autonomia
política de Portugal que nas seis décadas seguintes fica sob o domínio espanhol.
Historicamente é o período da Contra-Reforma, movimento da Igreja Católica que reagiu
contra a Reforma Protestante empreendida por Lutero e Calvino. Em linhas gerais, a
Reforma foi um movimento que consistiu no aparecimento de novas filosofias religiosas,
que questionavam e divergiam de alguns conceitos da religião católica, causando a divisão
dos fiéis e o surgimento de diferentes doutrinas e doutrinadores como Lutero, Calvino, João
Huss, entre outros.
No início do século XVI, o homem desafiou os mares e redescobriu-se como centro
da própria existência. Em Portugal, todo heroísmo que havia tomado conta de seu povo
como resultado das grandes navegações abalou-se com a morte de Camões e o
desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, na África, resultando na tomada do
trono português pela Espanha. Os reis espanhóis, católicos extremados, combateram
rigorosamente a Contra-Reforma.
Portugal e o restante da Europa assistem ao choque entre o Antropocentrismo
vigente e o Teocentrismo, que volta a ganhar espaço na cultura da época. A vida, o
dilema, a indefinição, o conflito entre as questões divinas e humanas, entre o espiritual e o
material estão refletidos e expressos na arte e na literatura produzida no período
denominado Barroco.
Segundo Moisés (1986) o movimento Barroco é de complicado contorno, pois
corresponde a uma profunda transformação cultural cujas raízes constituem objeto de
discussão e divergência. Uma das principais direções refere-se à conciliação do espírito
medieval (teocêntrico) e o espírito renascentista antropocêntrico, terreno e pagão. Nesta
fusão tão oposta e, à primeira vista, repulsiva, observa-se uma inevitável troca de posições,
configurada na espiritualização da carne e na correspondente carnalização do espírito,
podendo-se ampliar em pecado e perdão, religiosidade medieval e paganismo renascentista,
nunca se descartando as oposições entre o material e o espiritual.
10
O homem do século XVII viveu uma situação dilemática, quando foi solicitado a
regressar à fé, abalada com o triunfo do racionalismo clássico. Considerado a medida de
todas as coisas, ele resistiu à abdicação de um mundo de direitos que o humanismo
renascentista lhe dera. Assim, o temário da literatura seiscentista é um atestado da
influência religiosa da Contra-Reforma, que proclamava o medo da morte, a consciência do
pecado, a contrição, o desengano, a oscilação de sentimentos distintos, a sensação do tempo
e o conseqüente desejo de aproveitar a vida presente. Dentre os muitos autores que
exercitaram esse temário, destacamos Sóror Mariana Alcoforado.
A prosa seiscentista atingiu sua maturidade, especialmente no plano formal. Com
seus variados recursos expressivos, graças ao Cultismo e Conceptismo
1
, a prosa barroca
ganhou nova plasticidade e elegância, na produção de seus autores. Destaca-se a
epistolografia
2
ocupando um lugar de relevo como intercomunicação estético-cultural dos
escritores entre si ou com os seus mecenas. Segundo Rocha (1965, p. 25) a carta não
obedece, a maior parte das vezes, à unidade ideal de estrutura que preside à obra de criação
premeditada. O autor vai, vem e entremeia considerações anódinas e rasgos inspirados ao
sabor da pena”, no que se refere ao texto epistolar. As cartas são inteiramente verdadeiras e
ainda reveladoras de seus conteúdos, constituindo-se testemunhas incontestáveis do
pensamento vigente na época de quando escritas.
Sóror Mariana Alcoforado marcou sua presença na epistolografia portuguesa do
século XVII, ao publicar as Cartas Portuguesas. Traduzidas do francês por Filinto Elísio,
em 1810, provocaram numerosas polêmicas, sobretudo, em torno de sua autoria.
Admitindo-se serem escritas por uma freira da pequena cidade de Beja, em Portugal, há
dúvidas sobre a primeira versão em francês e uma possível alteração do tradutor, além do
número exato das cartas: se foram cinco apenas e em que ordem elas surgiram. Aceitando-
se, porém, a seqüência de sua publicação, observa-se uma gradação, cujo ponto culminante
reside na terceira, onde se registra a tensão dolorosa entre o sentimento e a razão, momento
em que o sofrimento atinge seu limite máximo, revelado por uma linguagem precisa,
concisa e plástica.
1
Cultismo ou gongorismo(do nome do poeta espanhol Luís de Gôngora) e Conceptismo, distinguindo-se
ambas as correntes por uma maior incidência formalista na primeira(jogos de palavras e de construções) e
uma maior tendência para a agudeza (jogos de imagens e conceitos)
2
Gênero literário autônomo, trata-se da carta viva, em prosa, com função específica de informar sobre a vida
pessoal ou alheia, fazer comentários, a modo de crônica ou reportagem da vida cotidiana.
11
Escritas primeiramente sob a emoção de um amor imenso, cedo estimulado e
magoado pela ausência, sob a vaga esperança de um reencontro, depois sob a certeza
pungente e definitiva da completa separação, as Cartas despem a alma de uma mulher que
fez do amor a razão única de sua existência. A princípio percebe-se que são escritas para
melhor compreender o sentimento novo e estranho que desordenava o viver de uma freira, e
também para libertar a dor e o sofrimento da separação. Rocha (1965, p. 196) conclui com
a seguinte afirmação:
Com efeito, mesmo admitindo que as Lettres Portugaises devam o seu
substrato a autênticas cartas duma freira portuguesa enamorada Mariana
Alcoforado ou outra -, o aproveitamento que delas fez o redactor francês
constitui o evidente sobreposição literia, que as faz cair na aada do
romance epistolar mais que no domínio da epistolografia propriamente
dita, quando mais o fosse por lhes ter tirado as credenciais de lugar,
data, destinatário e assinatura tão características do gênero.
Henri Matisse (1869-1954), pintor, escultor, artista gráfico e projetista francês
também foi leitor das Cartas Portuguesas. No ano de 1945, aos 73 anos, ele lê as cartas
enquanto se recupera de uma delicada cirurgia. Entusiasmado, no ano seguinte, propõe à
Editora Tériade, em Paris, uma edição ilustrada das Cartas. A edição composta de retratos
imaginários de Mariana e somando-se vinte e quatro litografias que acompanham o texto,
procuram sintetizar os diversos estados de alma da religiosa, da pureza à paixão, da
desilusão à amargura. Além das litografias, Matisse ilustra as páginas com vinhetas de
flores, frutos e plantas dos países do sul que corroboram a paixão e o desejo expressos nas
cartas. A edição que constitui o corpus da dissertação é a de 2004 .
Muitas pesquisas foram realizadas sobre as Cartas Portuguesas, tanto no Brasil
como em Portugal. Todavia, o foi encontrada nenhuma com a presente abordagem, o que
torna original a pesquisa. Dentre os temas encontrados, destacam-se:
PAIVA, Ana Rosa Frazão; Pinto, Priscila Maini. Uma visão feminina do amor: em
Mariana Alcoforado e Florbela Espanca .
KLOBUCKA, Anna. "Mariana Alcoforado, the Portuguese Nun," pp. 349-53.
Rector, Monica (ed. and introd.) and Clark, Fred M. (ed. and introd.). Portuguese Writers.
Detroit, MI: Thomson Gale, 2004. xxii, 455 pp. English
FERREIRA, Carlos Aparecido. A mulher na literatura portuguesa :sua imagem e
seus questionamentos através do gênero epistolar..Dissertação de mestrado FFLCH em
01/05/2002- USP.
12
IANNACE, Regina Marino. "Mariana Alcoforado: 'Cartas Portuguesas', dançadas
(uma adaptação brasileira). dissertação de mestrado FFLCH em 01/11/2000
Justifica-se, assim, leitura proposta das Cartas e das litografias de Henri Matisse.
Aguiar e Silva (1990, p. 214), esclarece que
[...] qualquer texto se constrói como mosaico de citações, qualquer texto é
a absorção e transformação de um outro texto. No lugar da noção de
intersubjetividade, instala-se a intertextualidade, e a linguagem poética é
lida, pelo menos, como dupla.
Quanto ao apoio teórico, o leitor produz uma imagem provocada pelo texto no ato
da leitura do texto literário. A recepção é inteiramente condicionada pelo leitor, que no ato
da leitura vida à obra, contribuindo com suas experiências vividas anteriormente e com
horizontes trazidos pela leitura do texto. O leitor, efetivando a sua concretização da obra ou
dos seus sentidos, reconstrói uma atualização por meio de sua consciência imaginativa e
efetiva.
Na Teoria da Recepção o leitor, quando lê um texto literário, cria suposições para
desenvolver possíveis problemas, dúvidas em relação ao texto lido e, na continuidade do
ato da leitura, novos problemas são-lhe oferecidos num ciclo atraente que o faz conhecer
fatos anteriormente não conhecidos. Contudo, tal exercício dificilmente é percebido pelo
leitor.
Iser (1996) atribui ao leitor a tarefa de combinar os elementos ditos e os não ditos
no texto, pois a ausência significa presença e é justamente o leitor quem vai preencher os
espaços vazios do texto. Esses vazios são para o leitor e para o próprio texto uma
possibilidade de interpretação e de constituição do significado. Não uma única maneira
de interpretar corretamente uma obra e esgotar o seu potencial semântico, uma vez que “a
obra não oferece uma mensagem dela separável; o sentido não é redutível a um significado
referencial e o significado não se deixa reduzir a uma coisa” (ISER, 1996, p.29).
O texto literário o é fechado e possuidor de todas as informações que o leitor
busca. É um espaço, uma possibilidade de comunicação e de construção dessa busca do
leitor que semais ou menos constrda, dependendo da sua eficiência na realização da
leitura. O texto fornece índices para que o leitor possa desenvolver bem o seu papel, mas
o apresenta nenhuma resposta pronta. É o leitor quem deve atribuir sentido ao que lê.
13
Joly (1996) afirma que ao interpretarmos uma mensagem, analisá-la, não consiste
certamente em tentar encontrar ao máximo uma mensagem preexistente, mas em
compreender o que essa mensagem, nessas circunstâncias, provoca de significações aqui e
agora, ao mesmo tempo. De fato, são necessários, limites e pontos de refencia para uma
análise.
A imagem, instrumento de intercessão entre o homem e o próprio mundo, é uma
"produção humana que visa estabelecer uma relação com o mundo" (JOLY, 1996, p.59).
Assim, é um documento que serve para ver o mundo e interpretá-lo, pois é um instrumento
de conhecimento e história ao fornecer informações sobre os objetos, os lugares ou as
pessoas, em formas visuais tão diversas, e preservá-los no tempo.
Ler uma imagem é olhar, escolher, apreender. Não se trata da reprodução de uma
experiência visual, mas da reconstrução de uma estrutura modelo. Portanto, a função do
conhecimento relaciona-se à função estética da imagem, pois proporciona ao espectador
sensações específicas. A relação entre a representação visual e o campo artístico atribui um
peso e um valor particular entre os diferentes instrumentos de expressão e de comunicação.
Sendo os próprios instrumentos das artes plásticas, os instrumentos plásticos de qualquer
imagem a tornam um meio de comunicação que solicita o prazer estético e o tipo de
recepção a ele vinculado. O que significa que se comunicar pela imagem - mais do que pela
linguagem - estimula por parte de quem recebe a mensagem, um tipo de expectativa
específica e diferente da que uma mensagem verbal estimula (JOLY, 1996, p.60).
No que se refere à litografia, exemplo de leitura e ilustração das Cartas
Portuguesas, destaca-se Bohórquez (2004, p. 51) que assim a define:
A litografia é uma modalidade de gravura baseada na possibilidade de se
obter a impressão de uma imagem a partir de matriz executada em um tipo
especial de pedra. A técnica consiste na gravação em plano, executada
sobre pedra calcária, chamada pedra litográfica, granida, trabalhada com
materiais graxos e gravada quimicamente. A impressão é baseada no
fenômeno de repulsão entre as substâncias graxas e água, usadas na
tiragem, que impede que a tinta de impressão adira às partes que
absorvem a umidade por não terem sido inicialmente cobertas pelo
desenho, feito também com tinta oleosa. O processo litográfico é
realizado em quatro etapas: a granitagem ou preparação da superfície da
pedra através de polimento com grãos abrasivos, o desenho realizado
diretamente sobre a pedra, a gravação feita com o uso de solução de goma
arábica e ácido nítrico e a impressão em preto especial, manual ou
14
mecânico. Descoberta e desenvolvida por Aloïs Senelfeder em 1796 na
Alemanha, a técnica foi rapidamente incorporada aos processos gráficos,
por sua versatilidade e pela alta qualidade de seus resultados na
reprodução de imagens.
A entrevista no Museu com um dos maiores pesquisadores atuais sobre o assunto,
Sr. Leonel Borrela, conhecer o seu acervo de cerca de quinhentas obras sobre as Cartas,
dentre elas a edição de 1669, suas publicações, as valiosas explicações e revelações
inestimáveis sobre a história da família Alcoforado, efetivamente, além do exemplo de
pesquisador, direcionaram as leituras e concretizaram o gosto e o amor à pesquisa de um
dos temas mais polêmicos da Literatura Portuguesa.
Quanto à organização do trabalho, a divisão em sessões apresenta-se:
Na seção 2, As relações da literatura com as outras artes., segundo Souriau,
Praz, Lessing e Joly e as principais idéias defendidas por Iser(1996) sobre o
papel do leitor e a leitura do texto verbal.
Na seção 3, O Barroco na Europa e em Portugal: breves considerações um
relato histórico-literário, as principais modalidades literárias, autores, noções
sobre epistolografia e o registro das Cartas Portuguesas de Sóror Mariana
Alcoforado.
Na seção 4 Da paixão ao abandono: nas Cartas de ror Mariana
Alcoforado e nas litografias de Henri Matisse, uma leitura das Cartas e das
litografias e vinhetas relacionadas, focalizando as correspondências entre o
texto e as imagens.
15
2. AS RELAÇÕES DA LITERATURA COM AS OUTRAS ARTES. O LEITOR E A
LEITURA DOS TEXTOS VERBAL E NÃO VERBAL
2.1. RELAÇÕES DA LITERATURA COM OUTRAS ARTES
Aristóteles, por mais de uma vez, compara a arte do poeta e do pintor, afirmando,
por exemplo, que as tragédias dos poetas modernos não possuem caracteres, à semelhança
do que acontece na pintura de Zêuxis. Aristóteles atenta para as afinidades existentes entre
as duas artes no respeitante aos objetos da imitação, mas chama igualmente a atenção para
as diferenças no que se refere aos meios de imitação utilizados: a pintura faz uso das cores
e as formas; a poesia usa a linguagem, o ritmo e a harmonia.
A expressão ut pictura poesis não possui, na Arte Poética de Horácio, um sentido de
ordem ontológica, como se estabelecesse uma comparação estrutural entre as duas artes,
mais se limita a explicar que alguns poemas são lidos com agrado muitas vezes, tal como
acontece com obras de pintura e que alguns poemas devem ser lidos e apreciados nas suas
minúcias, embora outros ganhem na leitura e apreciação do seu significado global, tal como
acontece com obras de pintura.
A priori o que nos interessa numa obra de arte é o seu caráter único; um possível
paralelo entre poema e uma pintura não é o que possam ter em comum, mas antes o que os
diferencia e faz cada um deles uma realidade à parte. A iia das artes irmãs está
concatenada na mente humana desde a Antiguidade e que nela deve haver algo mais
profundo do que a mera especulação, algo que apaixona e que se recusa ser negligenciado.
Praz (1982, p. 03) assim justifica essa idéia:
A expressão ut pictura poesis, da Ars poetica, que foi interpretada como
um preceito, embora o poeta intentasse apenas dizer que como certas
pinturas, alguns poemas agradam uma única vez, ao passo que outros
resistem a leituras repetidas e a exame crítico minucioso; e um
comentário, atribuído por Plutarco e Simonides de Cós, no sentido de ser
a pintura a poesia muda e a poesia uma pintura falante.
Aguiar e Silva (1990) complementa-a, afirmando que a analogia entre a poesia e a
pintura foi formulada por vários autores ao longo da Idade Média, mas foi desde o
Renascimento até meados do século XVIII que a semelhança horaciana e o aforismo de
16
Simónides de Céos adquiriram uma importância de primeiro plano, tanto no domínio da
teoria como no donio da prática artística, tendo passado a ser abusivamente interpretados
como significado a existência de semelhanças estruturais entre a poesia e a pintura. Aguiar
e Silva (1990) reitera que a mimese era considerada como matriz comum das duas artes
irmãs e, por conseguinte, segundo as palavras de Leonardo da Vinci, “a pintura é uma
poesia que é vista e não ouvida e a poesia é uma pintura que é ouvida , mas o vista”.
Semelhantemente, Camões refere-se à poesia como a pintura que fala (cf. Os Lusíada, canto
VIII, est. 41) e à pintura como a muda poesia (cf. Os Lusíadas, canto VII, est, 76)..
Étienne Souriau (1983) em seu livro Correspondência das artes propõe uma
discussão das possíveis correspondências entre as artes sob a perspectiva da estética
comparada. Tendo em vista os inúmeros trabalhos que se referem apenas a superfície deste
campo de pesquisa, estabelece que o estudo seja útil e profundo, admitindo apenas
analogias estruturais observáveis e que possam ser anotadas, escritas e expressas em
linguagem rigorosa. Comenta que quando pintores, músicos, poetas e escultores se
encontram, geralmente discutem acerca das técnicas, o apenas para compreenderem
processos, mas também objetivando encontrar motivos de inspiração, quer para obter
efeitos novos com transposições ainda não tentadas, ou quer para subtrair algum belo
segredo técnico, ignorado pelo seus iguais. Souriau (1983) explica que:
Poesia, arquitetura, dança, música, escultura, pintura são todas atividades
que sem dúvida profunda, misteriosamente, se comunicam ou comungam
[...] algumas destinam-se ao olhar, outras a audição. Umas erguem
monumentos sólidos, pesados estáveis, materiais e palpáveis. Outras
suscitam o fluir de uma subsncia quase imaterial, notas ou inflexões da
voz, atos, sentimentos, imagens mentais. Umas trabalham este ou aquele
pedaço de pedra ou de tela, definitivamente consagrados a determinada
obra. Para outras, o corpo ou a voz humana são emprestados por um
instante, para logo se libertarem e se consagrarem à apresentação de novas
obras e, depois, de outras mais. (Souriau, 1983, p.16)
Praz (1982) acrescenta que comparar as belezas de um poeta com as de outro poeta
constitui-se uma prática feita várias vezes. Mas congregar as belezas comuns da poesia, da
pintura e da música; mostrar-lhes as analogias, explicar como o poeta, o pintor e o músico
representam a mesma imagem, surpreender os emblemas fugitivos de sua expressão e
17
examinar a não ocorrência de alguma similitude entre esses emblemas, entre outras, ainda
resta fazer.
As estreitas relações estabelecidas entre a poesia e a pintura explicam a assiduidade
com que os pintores, desde o Renascimento até a atualidade escolheram para tema dos seus
quadros, figuras e cenas extrdas de obras poéticas e a moda, uso atual de que usufruiu,
sobretudo no Barroco, a poesia ecfsica, que descreve, recria, comenta, exalta uma obra de
arte. Quer num caso, quer no outro, trata-se de um fenômeno de transposição
intersemiótica: o texto poético é construído com signos e com uma gramática que depende
de um sistema semiótico diferente daquele de que dependem os signos e a gramática do
texto pictórico, de acordo com Praz (1982).
Em 1776, Gotthold Efraim Lessing publicou a sua famosa obra intitulada Laokoon:
oder über die Grenzen der Malerei und Poesie (Loacoonte: ou sobre os limites da pintura e
da poesia),na qual defende a existência de profundas diferenças entre as duas artes: os
símbolos usados pela pintura são as figuras e cores existentes no espaço, ao passo que os
símbolos usados pela poesia são articulados no tempo; os símbolos da pintura são naturais,
enquanto os usados pela poesia são arbitrários. A pintura pode representar objetos que
existem simultaneamente no espaço, ao passo que a poesia pode representar objetos que se
sucedem no tempo e a pintura, em contraste com a poesia, é incapaz de contar histórias e de
articular e exprimir idéias universais. Para Lessing a pintura é uma arte do espaço, da ação
imobilizada, da statis; já a poesia é uma arte do tempo, do movimento e da ação.
Souriau (1983) comenta que não se deve confundir a literatura com a estética
comparada, por isso, na seqüência, apresenta a distinção entre ambas. A primeira consiste,
essencialmente, em confrontar obras literárias escritas em línguas diferentes e, por
conseguinte, referentes a grupos nacionais, étnicos ou sociais diversos, a civilização e
mesmo a épocas diferentes. A segunda, por sua vez, confronta os gestos, estilos, funções
artísticas entre os diferentes povos, diversas épocas históricas, ou em grupos sociais
distintos.
A estética comparada possibilita estudos que podem servir de introdução à estética
geral por via de indução, a partir da variedade dos dados históricos agrupados por nações,
épocas e níveis sociais. Desta forma, enquanto na literatura a comparação fundamenta-se na
diversidade lingüística, nas outras artes, as diferenças étnicas ou nacionais não são tão
18
profundas estilisticamente, seja quanto ao conjunto de iias, de crenças expressas ou aos
modelos apresentados.
A estimativa da estética representa o encontro de duas sensibilidades, a
sensibilidade do autor de obra de arte e a do interprete, segundo Mario Praz (1982). Aquilo
a que chamamos interpretação é, por outras palavras, o resultado da filtragem da expressão
de outrem pela própria personalidade. Isso é evidente numa execução musical, e não menos
evidente em qualquer forma de imitação. Para os contemporâneos, e este é o ponto
principal.
Todavia se pensarmos as artes como línguas diferentes, entre as quais a imitação
exige tradução, ou seja, pensar num material expressivo totalmente distinto, as diferenças
étnicas, culturais ou temporais representam bem pouco: “As diferentes artes são como
línguas diferentes, entre as quais a imitação exige a tradução, o pensar num material
expressivo totalmente diferente, a invenção de efeitos artísticos paralelos de preferência aos
literalmente” (Souriau, 1983, p.24). Logo, a primeira e fundamental definição é que a
estética comparada como confronto das obras diferentes nas mais variadas artes, a
correspondência está aberta apenas pelo sentimento de uma fraternidade que une os
diferentes grupos de artistas.
Se estudarmos mais profundamente este objeto,entretanto, exige-se a construção de
todo um sistema de investigação cuja finalidade é revelar similitudes secretas, atos de
uma interioridade, e de uma intimidade da arte que acabam tornando-a inacessível. Por isso,
empregam-se, por meio da estética comparada, estudos que evidenciam essas estruturas,
tais como a transposição rigorosa e o alargamento legítimo e metódico de uma
terminologia; o não contentamento com um primeiro fato observado sem avaliar com
exatidão sua extensão, alcance, situação arquitenica; instrumentos forjados, vocabulários,
todos e experiências que permitam sua organização sistemática e sua penetração cada
vez mais íntima nesse sistema de investigação.
Praz (1982) explica que a transmutação de uma pintura ou de qualquer outra arte
visual numa composição literária implica o registro das emoções do autor diante dessa obra
de arte: tal abordagem foi introduzida por Diderot
3
e alcançou seu ápice em O Crítico
3
Filósofo e hábil escritor e enciclopedista francês nascido em Langres, na região francesa da Champagne, um
dos símbolos do Iluminismo e um dos ideólogos da revolução francesa. Filho de um mestre de cutelaria de
19
Como Artista
4
, de Oscar Wilde. Um exemplo famoso é a passagem de Walter Pater acerca
de La Gioconda, de Leonardo da Vinci, interpretando essa figura em termos de mulher fatal
dos românticos.
Souriau (1983, p. 23) explica que:
O essencial é que, em todos os casos, o empréstimo textual ou a imitação
artisitica são sempre possíveis. Se quiséssemos encontrar a verdadeira
analogia das imitações entre uma contraliteratura, seria necessário
pesquisar a partir dos empréstimos de uma arte a outra.
Reitera, assim, que a arte o é apenas o pensamento de algum modo particular e
pessoal do artista, mas também um conjunto de necessidades exigentes que se lhe impõem,
que lhe servem de norma e de apoio, ao mesmo tempo em que adquire experiência em seu
trabalho, sem que tal experiência se inscreva de outro modo a não ser a própria obra.
Aguiar e Silva (1990) acrescenta que as relões entre a literatura e as artes
plásticas, em geral, e a pintura em particular, tornaram-se ainda mais íntimas e relevantes
com o Modernismo e, sobretudo, com as chamadas Vanguardas históricas (Futurismo,
Cubismo, Surrealismo, Expressionismo):
O texto poético, graças ao aproveitamento visual da materialidade dos
seus grafemas e à disposição tipogficas dos seus significantes no espaço
da página, espacializa-se, adquire características estruturais que o fazem
funcionar semioticamente de modo semelhante ao texto pictórico
(Aguiar e Silva, 1990, p. 169).
As inter-relações tornam-se mais complexas, problemáticas e controversas quando
se procura alcançar um nível de semelhanças, analogias ou isomorfias
5
de ordem estrutural
e técnico-formal, ou seja, quando se ultrapassa o plano estritamente semântico, atingindo o
do domínio das equivalências, correspondências e analogias entre os signos, as convenções
e as regras sintáticas que permitem combinar os signos, os padrões macroestruturais, etc,
complementa Aguiar e Silva (1990).
As distinções estabelecidas por Lessing entre artes do tempo e artes do espaço são
demasiado gidas, pois que, por um lado, a percepção visual de um quadro não é femeno
boa posição, estudou com os jesuítas, iniciou a carreira eclesiástica e chegou a receber a tonsura em 1726.
Estudou em Paris (1729-1732) onde se graduou em artes.
4
Artigo que foi reunido com outros o qual em 1891 e publicado em forma de livro debaixo do título de
"Intenções"
5
Correspondência biunívoca entre os elementos de um mesmo grupo
20
instantâneo, mas um processo que congloba percepções temporalmente sucessivas, e que,
por outra parte, o conhecimento de um texto poético culmina, no espírito do leitor, numa
síntese final em que os seus elementos constitutivos de certo modo coexistem
simultaneamente.
A leitura de um texto literário processa-se obrigatoriamente em conformidade com
determinadas regras: o texto tem um princípio e um fim topográfico e temporalmente
demarcados, devendo o leitor iniciar a leitura na primeira linha e acabar na última, da
esquerda para direita e de cima para baixo. O processo desta leitura pode ser temporalmente
muito dilatado, como acontece com a leitura de um romance, de um poema épico, etc. a
leitura de um texto pictórico, embora possa ser orientada espacial e temporalmente por
convenções que impõem uma hierarquia entre os elementos representados, exime-se a um
processamento pré-determinado, visto que, em rigor, o texto pictórico, embora
topograficamente delimitado, não tem princípio nem fim: o olhar do espectador move-se
com uma liberdade muito grande e quase do tipo idiossincrático
6
.
O texto literário, graças aos recursos da semiose literária, tanto pode descrever
estados de coisas como narrar eventos na sua seqüencialidade, causalidade e no seu
circunstancialismo. O espectador, se conhecer a história da qual está representado um
episódio, pode reconstituir os eventos anteriores e os eventos posteriores, mas o texto
picrico não lhe oferece a leitura em toda história.
Numa retrospectiva histórica a poesia medieval trovadoresca era indissociável da
música e, muitas vezes da dança. Como as próprias palavras indicam, a cantiga de amigo, a
cantiga de amor e a cansó provençal eram composições musicalizadas e acompanhadas de
músicos e dançarinos.
A semelhança entre a poesia e a pintura comou a ser debatida e abertamente
contestada por diversos autores, ao longo da segunda metade do século XVIII. Aguiar e
Silva (1990, apud Edmund Burke) registra que:
O sublime é uma categoria estética não apenas distinta da beleza, mas
contrária a esta, tal como o preto se contrapõe ao branco e o sofrimento ao
6
O adjectivo idiossincrático tem o significado de (i) "relativo ao modo de ser, de sentir próprio de cada
pessoa" (ex.: o perfil do leitor é alguém que, pelas suas características idiossincráticas, pretende uma revista
informal) ou (ii) "relativo à disposição particular de um indivíduo para reagir a determinados agentes
exteriores" (ex.: este medicamento pode ter efeitos secundários idiossincráticos),
21
prazer. O sublime não é conciliável com clareza das idéias, com
sofrimento a „representação clara‟ da natureza: o sublime exige
obscuridade, o terror, o sofrimento, a grandeza.
Depreende-se que a linguagem verbal, a poesia e a eloqüência podem gerar a
experiência sublime, porque elas podem despertar e agitar poderosamente as paixões. A
pintura é admirada e amada com frieza, em contraste com o calor e a força arrebatadora das
paixões que a poesia desencadeia.
Aguiar Silva (1990) explica que Lessing defende a diferença entre a poesia e a
pintura através dos símbolos usados pela pintura, figuras existentes no espaço, e os
símbolos usados pela poesia como sons articulados no tempo. Os símbolos da pintura são
naturais, enquanto os utilizados pela poesia são arbitrários. Sendo assim, a pintura pode
representar objetos que existem simultaneamente no espaço, ao passo que a poesia pode
representar objetos que se sucedem no tempo. A pintura, em contraste com a poesia, é
incapaz de contar histórias e de articular e exprimir idéias universais. Resumindo, a poesia
é uma arte do tempo, do movimento e da ação, e a pintura é uma arte do espaço, da ação
imobilizada, da statis.
.2.1.1 A leitura do texto não verbal
De acordo com Manguel (2001), Flaubert opunha-se à idéia das imagens
acompanharem as palavras. [...] Recusou-se a admitir que qualquer ilustração
acompanhasse sua obra, porque as achava pictóricas e reduziam o universal ao singular.
(p.20)
Justifica Flaubert (apud Manguel, 2001):
Ninguém jamais vai me ilustrar enquanto estiver vivo, porque a
descrição literária mais bela é a devorada pelo mais rele desenho. Assim
que um personagem é definido pelo lápis, perde seu caráter geral, aquela
concordância com milhares de outros objetos conhecidos que leva o leitor
a dizer „eu já vi isto‟, ou „deve ser assim ou assado‟. Uma mulher
desenhada a lápis parece uma mulher, e isso. A idéia, portanto, está
encerrada, completa, e todas as palavras, então, se tornam inúteis, ao
passo que uma mulher apresentada por escrito evoca milhares de mulheres
diferentes. Por conseguinte, uma vez que se trata de uma questão de
estética, eu formalmente rejeito todo tipo de ilustração.” (p.20)
22
Manguel (2001, p.21) acrescenta que para Aristóteles, contrariamente a Flaubert,
todo processo de pensamento requeria imagens:
Ora no que concerne a alma pensante, as imagens tomam o lugar das
percepções diretas e, quando a alma afirma ou nega que essas imagens são
boas ou más, ela igualmente as evita ou as persegue. Portanto a alma
nunca pensa sem uma imagem mental.
Depreende-se que as imagens que formam nosso mundo são mbolos, sinais,
mensagens e alegorias. Ou talvez sejam apenas presenças vazias que se completam com o
nosso desejo, experiência, questionamento e remorso. Qualquer que seja o caso, as
imagens, assim como as palavras, são matéria do que somos feitos.
Ferrara (1986), por sua vez, explica que o texto é uma linguagem-objeto,
aparentemente natural; a leitura é uma metalinguagem, operação inferencial que manifesta
o conhecimento do texto não-verbal, e para isso é metodologicamente orientada. O texto
o verbal é uma linguagem; portanto, a leitura o verbal firma-se também como
linguagem, na medida em que evidencia o texto através do conhecimento que é capaz de
produzir a partir dele e sobre ele.
Afirma que para se realizar sua leitura é necessário tornar heterogêneos os
ambientes, provocando, assim, a recepção. A partir da exposição atenta do receptor às
agressões ambientais essa exposição deve estar orientada pela intenção da leitura e o
controle artificial ocorre quando situações objetivas de controle são criadas. Sensações e
associações despertam a memória das experiências sensíveis e culturais, individuais e
coletivas de modo que toda a vivência passada e conservada na memória seja acionada. Na
realidade é necessário despertar aqueles valores ou juízos perceptivos referidos,
compreender uma interação entre o passado e presente, entre as sensações de ontem e de
hoje, acrescentando-se a reflexão sobre elas para compará-las e perceber-lhes os pontos de
convergência e/ou divergências.
A imagem dá origem a uma história que, por sua vez, dá origem a uma imagem. “O
consolo do discurso”, disse o melancólico filósofo Soren Kierkegaard (o que poderia ter
acrescentado, “e de criar imagens”), é que ele traduz para o universal.
Manguel (2001) acrescenta que na Renascença com o desenvolvimento da
perspectiva, os quadros se congelam em um instante único: o momento da visão tal como
percebida do ponto de vista do espectador. A narrativa, por sua vez, passa então, passa a ser
23
transmitida por outros meios mediante “simbolismo, poses, dramáticas, alusões à literatura,
títulos” – ou seja, por meio daquilo que o espectador, por outras fontes, sabia estar
ocorrendo.
Ao contrário das imagens, as palavras escritas fluem constantemente para além dos
limites da página. Quando lidas as imagens, de qualquer tipo, sejam pintadas, esculpidas,
fotografadas, edificadas ou encenadas, atribui-se-lhes o caráter temporal da narrativa.
Amplia-se o que é limitado por uma moldura para um antes e um depois e, por meio da arte
de narrar histórias (sejam de amor ou ódio) confere-se à imagem imutável uma vida infinita
e inesgotável.
O texto não-verbal o tem um emissor que assume a comunicação de um sentido,
é, por assim dizer, um texto sem autor. A leitura não verbal pelo seu caráter de desempenho
o desorganizado, mas sem programação previamente estruturada, dirige-se à produção de
um sentido espaço-ambiental, fugaz e falível, porém suficiente para permitir uma interação
com o meio que envolve o homem.
Ferrara (1986, p. 27) comenta que:
É possível decifrar e decodificá-lo. Decodificar supõe situar
referencialmente o objeto da leitura, identificar seu tempo e espaço,
decifrar supõe encontrar um sentido menos escondido do que complexo.
A distinção entre decifrar e decodificar aponta para as seguintes
diferenças: a leitura verbal decifra, descobre um sentido ou sentidos
ocultos no texto, dirige-se a um produto fixado e estabelecido, consolida-
se como leitura de um produto pela simples razão de que a intenção de
comunicação é clara, sua decisão é explícita. Aliás, própria tradição de
estudos de textos, caracteristicamente verbais, como a Bíblia ou antigos
textos medievais, deixa claro o sentido da leitura como hermenêutica:
decifração de um sentido oculto e/ou metarico.
Complementa a autora que todo processo de representação é ideologicamente
informado, visto que é parcial e seletiva toda representação do objeto de um signo. O signo
o é simplesmente expressivo, mas transmite uma impressão ou um certo modo de ver o
objeto. O objetivo da leitura não-verbal vai muito além da decodificação. Se a leitura verbal
tem como objetivo saber o que o texto quer dizer, para a leitura não-verbal a decodificação
de um referente ambiental é o início de um processo, condição e não conseqüência. O
receptor participa da concepção do texto e do seu significado, na medida em que ele projeta
a cooperação de sua própria vivência individual e coletiva.
24
Manguel (2001) explica que construímos a narrativa por meio de ações de outras
narrativas, por meio da fofoca, dos devaneios, dos preconceitos, da iluminação, dos
escrúpulos, da ingenuidade, da compaixão, do engenho. Sendo assim, nenhuma narrativa
suscitada por uma imagem é definitiva ou exclusiva, e as medidas para aferir a sua justeza
variam segundo as mesmas circunstâncias que dão origem à própria narrativa.
Complementa ainda o autor que a imagem de uma obra de arte existe em algum
local entre as percepções: entre aquela que o pintor imaginou e a que o pintor pôs na tela;
entre a que podemos nomear e a que os seus contemporâneos podiam nomear ou entre
aquilo que lembramos e o que aprendemos de um o vocabulário comum, adquirido de um
mundo social. Quando se propõe a ler uma pintura, ela pode parecer perdida num abismo
de incompreensão ou, em um vasto abismo que é uma terra de ninguém, feito de
interpretações múltiplas.
Cada obra de arte se expande mediante incontáveis camadas de leituras, e cada
leitura remove essas camadas a fim de ter acesso à obra nos termos do próprio leitor. Nessa
última (e primeira) leitura.
Manguel (2001, p. 32-33) afirma ainda que:
Em contraste com um texto escrito no qual o significado dos signos deve
ser estabelecido antes que eles possam ser gravados na argila, ou no papel,
ou atrás de uma tela eletrônica, o digo que nos habilita de ler uma
imagem, conquanto impregnado por nossos conhecimentos anteriores, é
criado após a imagem se constituir de um modo muito semelhante
àquele com que criamos ou imaginamos significados, um senso moral e
ético, para vivermos.
Francastel (1983) justifica essa idéia, afirmando que quando se reduz a descrição de
uma obra figurativa aos elementos que ela possui em comum no espírito com a linguagem
naturalmente, deles conclui-se que a arte apenas realiza transferências, expressando de
outra maneira aquilo que pode ser concebido e expresso sob outras formas. O papel da arte
é abrir aos homens uma possibilidade de manifestar, por meios adaptados, uma série de
valores que só podem ser apreendidos e notados através de um sistema autônomo de
conhecimento e de atividade.
25
2.1.2 Considerações sobre estudo da imagem
A opinião mais comum sobre as características da época atual, repetida mais
de trinta anos, é que o homem vive numa "civilização da imagem". No entanto, quanto mais
essa constatação se afirma, mais parece pesar ameaçadoramente sobre o destino humano.
Quanto mais imagens são vistas, mais o risco de ser enganados se concretiza, considerando
contudo, o estado inicial de uma geração de imagens virtuais, essas 'novas' imagens que
propõem mundos ilusórios e, no entanto, perceptíveis, podem deslocar o homem sem
necessidade de sair de seu próprio quarto.
Joly (1996) explica que de fato, a utilização das imagens se generaliza e,
contemplando-as ou fabricando-as, todos os dias a tenncia é a utilizá-las, decifrá-las e
interpretá-las. Um dos motivos pelos quais podem parecer ameaçadoras é que o problema
se encontra no centro de um paradoxo curioso: por um lado, as imagens são lidas de uma
maneira natural e que, aparentemente, não exige qualquer aprendizado e, de outro, a
impressão de que mais inconsciente do que consciente as ciências de certos iniciados
conseguem "manipular", o estudioso, com imagens em códigos secretos que zombam de
sua ingenuidade, segundo a autora.
Para Joly (1996, p.14), é Platão que possui uma das definições mais antigas e mais
acertada da imagem: Chamo de imagens em primeiro lugar as sombras, depois os reflexos
que vemos nas águas ou na superfície de corpos opacos, polidos e brilhantes e todas as
representações do gênero". Imagem, portanto, no espelho, é tudo o que emprega o mesmo
processo de representação; a imagem é um segundo objeto com relação a um outro
representado de acordo com certas leis particulares.
Para onde que o homem se volte, imagem, segundo Joly. Por toda parte no
mundo vestígios foram deixados das faculdades imaginativas do homem sob forma de
desenhos, nas pedras, no tempo mais remoto do paleotico à época moderna. Esses
desenhos destinavam-se a comunicar mensagens e, muitos deles, constituíram o que se
chamou de "os precursores da escrita", utilizando processos de descrição-representação que
conservaram um desenvolvimento esquemático de representações de coisas reais.
"Petrogramas", se desenhadas ou pintadas, "petróglifos", se gravadas ou talhadas - essas
figuras representam os primeiros meios de comunicação humana. São consideradas
26
imagens porque imitam, esquematizando visualmente, as pessoas e os objetos do mundo
real. Acredita-se que essas primeiras imagens também se relacionavam com a magia e
religião.
Joly (1996, p.18) justifica:
No entanto, um dos sentidos de imago em latim, etimologia de nosso
termo "imagem", se designa a máscara mortuária usada nos funerais na
Antigüidade romana. Essa acepção vincula a imagem, que pode também
ser o espectro ou a alma do morto, o só à morte, mas também a toda a
história da arte e dos ritos funerários.
Presente na origem da escrita, das religiões, da arte e do culto dos mortos, a imagem
também é um núcleo da reflexão filofica desde a Antiidade. Em especial Platão e
Aristóteles vão defendê-la ou combatê-la pelos mesmos motivos. Imitadora, para um, ela
engana e para outro, educa. Desvia a verdade ou, ao contrário, leva ao conhecimento. Para
o primeiro, seduz as partes mais fracas de nossa alma, para o segundo é eficaz pelo próprio
prazer que se sente com isso. A única imagem válida aos olhos de Platão é a imagem
"natural" (reflexo ou sombra), a única passível de se tornar uma ferramenta filofica.
A imagem mental corresponde à opinião de que quando, por exemplo, -se ou
ouve-se a descrição de um lugar, quase como se estivéssemos lá. Uma representação mental
é elaborada de maneira quase alucinatória, e parece tomar emprestadas suas características
da visão. Vê-se, simplesmente.
Joly (1996) afirma que se trata de um modelo perceptivo de objeto, de uma estrutura
formal interiorizada e associada a um objeto, que pode ser evocado por alguns traços
visuais mínimos. Exemplo disso são as silhuetas de homem reduzidas a dois círculos
sobrepostos e a quatro traços para os membros, como nos desenhos primitivos de
comunicação de que falamos e nos desenhos de crianças a partir de certa idade, isto é,
depois de terem, precisamente, interiorizado o "esquema corporal". Para os psicanalistas, a
elaboração desse esquema corporal é feita por intermédio da imagem visual de seu próprio
corpo, que a criança capta no espelho e que constitui um estágio fundamental de sua
elaboração psíquica e da formação de sua personalidade.
Em ciências humanas, também é natural estudar a "imagem da mulher" ou "do
dico" ou "da guerra" neste ou naquele cineasta, isto é, nas imagens apresentadas. Da
mesma maneira, é possível usar imagens (cartazes, fotografias) para construir a "imagem"
27
de alguém: as campanhas eleitorais são um exemplo representativo desse tipo de
procedimento. Todos compreendem que se trata de estudar ou provocar associações
mentais sistemáticas (mais ou menos justificadas) que servem para identificar este ou
aquele objeto, esta ou aquela pessoa, esta ou aquela profissão, atribuindo-lhes um certo
número de qualidades socioculturalmente elaboradas, de acordo com a autora.
Joly (1996) justifica ainda que, na língua, a imagem é o nome comum dado à
metáfora. A metáfora é a figura mais utilizada, mais conhecida e mais estudada da retórica,
à qual o dicionário "imagem" como sinônimo. O que se sabe da metáfora verbal, ou do
falar por "imagens", é que consiste em empregar uma palavra por outra, em virtude de sua
relação analógica ou de comparação.
Joly (1996, p.22) complementa:
A “imagem” ou a metáfora também pode ser um procedimento de
expressão extremamente rico inesperado, criativo e até cognitivo, quando
a comparação de dois termos(explícito e implícita) solicita a imaginação e
a descoberta de pontos comuns insuspeitados entre eles. Esse foi um dos
princípios de funcionamento da “imagem surrealista” na literatura, é claro,
mas também, por extensão na pintura[...]
Joly (1996) acrescenta ainda que ao recapitularmos a definição teórica da imagem
segundo Peirce, constata-ses que ela não corresponde a todos os tipos de ícone, e que não é
apenas visual, mas que corresponde de fato à imagem visual que vai ser debatida pelos
teóricos quando falarem de signo icônico. A imagem não constitui todo ícone, mas é, sem
sombra de dúvida, um signo inico, da mesma maneira que o diagrama e a metáfora.
O significado dessa idéia é que, para analisar uma mensagem, em primeiro lugar
deve-se colocar deliberadamente do lado em que se está, ou seja, do lado da recepção, o
que, evidentemente, o descarta a necessidade de estudar o histórico dessa mensagem
(tanto de seu surgimento quanto de sua recepção), mas ainda é preciso evitar proibir-se de
compreender, devido a critérios de avaliação mais ou menos perigosos. Segundo Joly
(1996, p.47):
Devemos nos lembrar que a análise continua sendo um trabalho que exige
tempo e que não pode ser feito espontaneamente. Em compensação, sua
prática pode, a posteriori, aumentar o prazer estético e comunicativo das
obras, pois aguça o sentido da observação e o olhar, aumenta os
conhecimentos e, desse modo, permite captar mais informações (no
sentido amplo do termo) na recepção espontânea das obras.
28
Finalmente, uma das fuões de análise da imagem pode ser a busca ou a
demonstração das causas do bom ou mau funcionamento de uma mensagem visual. Essa
utilização da análise é verificada principalmente no campo da publicidade ou do marketing.
Joly (1996) comenta ainda que a fuão de conhecimento associa-se naturalmente à
função estética da imagem, "proporcionando a seu espectador sensações (aisthésis)
específicas". A ligação íntima assinalada entre a representação visual e o campo artístico
atribui-lhe um peso e um valor particular entre os diferentes instrumentos de expressão e de
comunicação. Sendo os próprios instrumentos das "artes plásticas", os instrumentos
plásticos de qualquer imagem tornam-se um meio de comunicação que solicita o prazer
estético e o tipo de recepção a ele vinculado. O que significa que se comunicar pela
imagem (mais do que pela linguagem) vai estimular necessariamente, por parte do
espectador, um tipo de expectativa específica e diferente da que uma mensagem verbal
estimula.
A noção de expectativa na recepção de uma mensagem é absolutamente capital e
está intimamente ligada à de contexto. Ambas condicionam a interpretação da mensagem e
completam as noções de instruções de leitura.
Joly (1996) explica que:
A análise textual, isto é, análise intrínseca de uma obra, no contexto do
estruturalismo dos anos 1960, a examinar as diferentes unidade de
significação de uma mensagem e a fazer sua síntese. Novo na época, esse
tipo de análise teve o mérito de incitar o leitor crítico a se ater, em
primeiro lugar, à obra, ou texto, para explicá-la isso como reação da
própria obra minuciosa e regeneradora, a análise textual revelava-se
incompleta por seu próprio radicalismo e precisava ser completa. Uma
solução foi proposta pela análise semiopragmática, que examina o
contexto institucional de produção e de recepção da obra para nela
destacar as instruções de leitura que lhe são vinculadas.
Comenta ainda que a análise de alguns elementos constitutivos de um quadro vai
permitir o espectador, por um lado, como a permutação torna possível a distinção dos
diversos elementos e, por outro, o valor epistêmico desse jogo com os elementos e sua
expectativa.
Considerando a imagem como uma mensagem visual compreendida entre expressão
e comunicação, a conduta analítica deve, de fato, levar em conta a função dessa mensagem,
seu horizonte de expectativa e seus diversos tipos de contexto. Desse modo, terá definido o
29
contexto no qual relativizar suas ferramentas intnsecas facilitará a distinção entre si.
Como a imagem, a análise assumirá lugar entre expressão e comunicação.
Segundo Joly (1996):
Desde já, portanto, constatamos que a imagem não se confunde com a
analogia, que ela não é constituída apenas do signo icônico ou figurativo,
mas trança diferentes materiais entre si para constituir uma mensagem
visual. Para Barthes, os diferentes materiais o, em primeiro lugar, o
lingüístico, em segundo, o icônico não codificado.
Joly (1996, p.74) acrescenta ainda que no que diz respeito à mensagem lingüística,
Barthes distingue seus diversos suportes (o próprio anúncio, os suportes fictícios da
representação, as etiquetas etc.). Também analisa sua retórica; a repetição e seu modo de
articulação com a mensagem visual.
O que chama, de mensagem icônica codificada, para Barthes é constituída de
diversos signos. Em certo aspectos, a abordagem ainda é confusa, e desse modo, ela reúne
em um mesmo significante elementos diferentes, como os objetos e as cores.
Joly (1996, p.75) complementa que:
Dentro da mensagem visual, vamos distinguir os signos figurativos ou
icônicos, que, de modo codificado, dão uma impressão de semelhança
com a realidade jogando com a analogia perceptiva e com os códigos de
representação herdados da tradição de representação ocidental.
Finalmente, vamos designar com o termo signos plásticos os componentes
propriamente plásticos da imagem, como a cor, as formas, a composição e
a textura. Os signos icônicos e os signos plásticos o então considerados
como signos visuais, ao mesmo tempo distintos e complementares.
A retórica da imagem embora indefinidamente retomada e até desgastada, a
expressão "retórica da imagem" com freqüência ainda é utilizada indiscriminadamente e
mal compreendida, quando o serve simplesmente de engodo. Joly (1996) esclarece que
cabe ao espectador lembrar de certos dados e estabelecer algumas preliminares para
compreender o que Barthes e seus sucessores entendem pelo próprio termo "retórica" e, em
seguida, pela expressão "rerica da imagem".
Essa retórica das figuras constitui o fundamental da retórica clássica ainda bem viva
até os dias de hoje. Os tratados de retórica que podem ser consultados, em sua maioria,
constituem-se tratados de figuras. Mas para certos pesquisadores, "retórica" é sinônimo de
30
"figura de retórica", entendimento confuso e prejudicial à clareza de certos propósitos. De
acordo com Joly (1996, p.81):
A nova retórica embora tardiamente conhecida na França, esse
movimento originou uma renovação da teoria da literatura, que passa a
considerá-la não mais como um reflexo da vida, mas como uma soma de
procedimentos: "A obra de arte é uma soma de procedimentos" declara
Chklovski, um dos líderes do movimento, para quem a "separação entre
forma e conteúdo não tem sentido".
Nos anos de 1960, com a renovação da teoria literária, a descoberta na França do
Formalismo Russo e, depois, do Estruturalismo, além dos empréstimos das diversas
ciências humanas à Lingüística, permitiu que Barthes reflitisse sobre o mecanismo de
funcionamento da imagem em termos de retórica, comenta Joly (1996).
O postulado ainda é tímido, mas Barthes entende o termo retórica, a propósito da
linguagem, em duas acepções: a primeira como modo de persuasão e argumentação (como
inventio), e a segunda como estilo ou elocutio.
No que se refere à retórica como inventio, ou modo de persuasão, Barthes reconhece
na imagem a especificidade da conotação: uma retórica da conotação, isto é, a faculdade de
provocar uma segunda significação a partir de uma primeira, ou seja, de um signo pleno.
31
2.2 O PAPEL DO LEITOR E LEITURA DOS TEXTOS VERBAL E NÃO VERBAL
A teoria da Estética da Recepção teve início, de acordo com Aguiar e Silva (1994),
nos últimos anos da década de sessenta do século XX, sob as inflncias da estética da
fenomenologia, da teoria da comunicação, da semiótica e da teoria do texto. Hans Robert
Jauss, um dos precursores dessa teoria, propôs uma reestruturação da história da literatura,
a partir da história recepcional das obras, através dos tempos. Wolfgang Iser, por sua vez,
ocupou-se da teoria do efeito, ou seja, o que o texto causa àquele que o lê. O objetivo é
apresentar os aspectos principais da estética da recepção, buscando entender o modo como
essa teoria concebe a literatura, a leitura e a função do leitor.
Para Iser (1999, p.7), a Estética da Recepção tem como conceitos centrais o efeito e
a recepção: o efeito e a recepção formam os princípios centrais da estética da recepção,
que, em face de suas diversas metas orientadoras, operam com métodos histórico
sociológicos (recepção) ou teorético-textuais (efeito). A estética da recepção alcança,
portanto, a sua mais plena dimensão quando essas duas metas diversas se interligam”.
A Estética da Recepção surgiu como necessidade de se responder às novas
tentativas de interpretação do texto literário não mais como um produto acabado de seu
autor ou simplesmente como objeto estético. A literatura moderna necessitava de novas
perguntas, novos critérios, não mais aqueles usados antigamente, para ser revelada.
Todavia, os questionamentos antigos permanecem importantes para a interpretação por seu
valor histórico e mostram os caminhos pelos quais a interpretação já trilhou, mas que no
presente perdem o sentido. Para que emerjam as novas perguntas, é preciso que sejam
separadas daquelas convencionais e se pense a nova obra a partir de novos
questionamentos. Assim, da inteão do texto, passou-se à sua recepção, ao modo como o
texto reflete e faz refletir sobre o ser humano.
A modernidade é a oposição de tudo o que era considerado clássico (harmonia,
equilíbrio, beleza, plenitude, grotesco, feio, desequilíbrio, fragmentário). A negatividade da
literatura moderna atua sobre concepções orientadoras, sobre atitudes e a percepção
cotidiana. A arte faz com que algo aconteça e ao pesquisador cabe descobrir o que acontece
a quem entra em contato com o literário, questionando sobre o efeito do texto.
32
Iser (1999) ressalta que o primeiro efeito é aquele produzido sobre o autor e daí em
diante um ciclo de efeitos se inicia, culminando com a concepção de texto como
acontecimento. O mundo age sobre o autor e este escreve sobre o mundo; logo, o livro é
uma referência do mundo e, quando lido, torna-se um acontecimento que traz novas
perspectivas para o mundo que não estavam nele contidas. Logo, o mundo é a realidade de
referência. O texto literário por sua vez, seleciona aspectos, elementos da realidade de
referência e incorpora-os, dando-lhes nova significação. A seleção já é um acontecimento,
porque exclui um elemento de sua relação de subordinação na realidade de referência. A
seguir, os elementos selecionados passam por uma combinação, isto é, são combinados
entre si e novas relações de subordinação são compostas, o que faz com que extrapolem sua
determinação semântica e contextual, produzindo novos efeitos de sentido. Por isso, o texto
literário é polissêmico, pois traz, além dos sentidos do senso comum, várias aberturas para
a construção de novas visões. O caráter de acontecimento do texto consiste, portanto, em
romper com a referência da realidade, além de selecionar e combinar os elementos,
extrapolar as fronteiras semânticas das palavras.
2.2.1 Criar imagens e experimentar sentidos
Iser (1999, p.15) esclarece que o texto é semelhante a “um potencial de efeitos que
se atualiza no processo da leitura”. Isso significa que o texto possui, nas palavras do teórico
(1999, p. 13), uma pregnância de sentido, isto é, possui diversos sentidos que podem ser
atualizados no momento da leitura, reunindo os efeitos produzidos pela reação do autor
perante o mundo até as expectativas do leitor e as seleções de sentido que se realizam na
leitura. Para isso, o texto deixa instruções a serem seguidas pelo leitor para que o seu
sentido possa ser constitdo.
Nesse processo de comunicação, a atenção da Estética da Recepção recai sobre o
efeito estético produzido, resultado da interação entre texto e leitor. Segundo Iser (1999, p.
16), esse efeito causado no leitor é chamado de estético “porque apesar de ser motivado
pelo texto pleiteia do leitor atividades imaginativas e perceptivas, a fim de obrigá-lo a
diferenciar suas próprias atitudes”. Essas reações desencadeadas no leitor são resultados do
contato com algo ainda inexistente no mundo, de uma nova percepção de mundo, fazendo
33
com que o leitor se coloque no texto e imagine sua atuação dentro daquela reformulação
de uma realidade formulada” (ISER, 1999, p. 16).
A formação da imagem constitui-se importante estudo para a Estética de Recepção,
pois o sentido não é uma idéia expressa discursivamente, por meio de uma linguagem
referencial, mas tem caráter de imagem. O texto traz lugares vazios (blanks) que deverão
ser preenchidos pelo leitor com sua imaginação, de forma que o seu sentido é apreendido
como imagem, algo não expresso verbalmente, mas que concretiza aquilo que não existia.
Iser (1999, p. 33) define que: “O sentido é o objeto, a que o sujeito se dirige e que tenta
definir guiado por um quadro de referência”. A imagem promove o sentido e é resultado
dos processos de combinação e apreensão do leitor, frente à matéria textual:
Se a princípio é a imagem que estimula o sentido que não se encontra
formulado nas ginas impressas do texto, então ela se mostra como o
produto que resulta do complexo de signos do texto e dos atos de
apreensão do leitor. O leitor não consegue mais se distanciar dessa
interação. Ao contrário, ele relaciona o texto a uma situação pela atividade
nele despertada; assim estabelece as condições necessárias para que o
texto seja eficaz. Se o leitor realiza os atos de apreensão exigidos, produz
uma situação para o texto e sua relação com ele não pode ser mais
realizada por meio da divio discursiva entre Sujeito [leitor] e Objeto
[sentido]. Por conseguinte, o sentido não é mais algo a ser explicado, mas
sim um efeito a ser experimentado (ISER, 1999, p. 33-34).
Depreende-se que o sentido o consegue ser explicado, apenas percebido como
efeito, a partir da participação do leitor na leitura. Isso acontece porque, ao explicar o
sentido de um texto, o leitor utiliza como referência a realidade e coloca no mesmo nível o
que surgiu por meio do texto ficcional e a realidade extra-textual, segundo o autor.
As sínteses também acontecem em forma de imagem. Iser (1999) explica que
representações são criadas no decorrer da leitura do texto ficcional, porque os signos do
texto se limitam a orientar o leitor como o objeto deve ser construído. Esclarece ainda que:
a imagem é, portanto, a categoria básica da representação. Ela se refere
ao não-dado ou ausente, dando-lhe presença. Mas a imagem possibilita
também a representação de inovões que se constituem quando o saber
previamente estabelecido é desmentido, ou seja, quando Determinadas
combinações de signos não são familiares” (p. 58-59).
Exemplifica o autor com a construção da personagem, justificando que não se pode
imaginar uma personagem na sua totalidade, porque ela se constitui das várias facetas que
o sendo descobertas ao longo da leitura, modificando-as, diferentemente do cinema, onde
34
a personagem surge pronta. Entretanto, essa representação que constituída não é
fisicamente visível, mas ilumina a personagem como portadora de significados, por isso a
decepção ao se assistir a um romance filmado o leitor/espectador não está na presença do
objeto, e sim na própria presença.
A constituição de um objeto ficcional é diferente da representação de algo da vida
real, porque, além de não estar presente, não tem pré-existência no mundo real. Desse
modo, o processo de construção da imagem necessita ser regulado por meio de dados
outrora estabelecidos.
O texto traz esquemas de representações, que o ativados pelo leitor que conhece
as referências apresentadas, ocorrendo a formação das representações. Contudo, nem todos
os leitores têm acesso às referências e aos elementos que compõem o esquema, de tal forma
que, para alguns, o texto não chega a alcançar seu significado pleno.
Os esquemas são empregados para estimular representações elementares,
confirmando essas representações ou fazendo com que o leitor subverta a visão do senso
comum e visualize os acontecimentos sob um outro ponto de vista (o excluído, por
exemplo). Através do que está dito no texto é que surge o não-formulado e este pode ser
representado.
A cada fase da leitura, modificações, acréscimos, reorganização do sentido. O
momento temporal é imprescindível na leitura, em que passado, presente e futuro estão
sempre em contato. A cada leitura, um texto adquire novos significados; o sentido
enquanto fruto das realizações jamais poderá ser o mesmo, sendo único e não-repetível
(ISER, 1999, p.79).
2.2.2 O leitor e o seu papel
Cada texto literário visa um determinado tipo de leitor, ou ainda, os leitores são
diferenciados conforme os objetivos a que se prestam, explica Iser (1999). A Estética da
Recepção tem por finalidade apresentar as normas de avaliação dos leitores e, a partir disso,
construir uma história social do gosto do leitor. Ao se analisar o leitor contemporâneo, um
determinado público, é enfocado sob o ponto de vista e segundo normas e atitudes desse
público, revelando o código cultural que orienta seu juízo de valor.
35
Cada texto é escrito visando um determinado tipo de leitor - o leitor implícito ao
texto, que se encontra materializado nas estruturas textuais, nas orientações, pistas deixadas
no texto para outros possíveis leitores. Iser (1999, pp. 73-74) explica que são conferidos
papéis a esses possíveis receptores: “o papel de leitor se define como estrutura do texto e
como estrutura do ato. Quanto à estrutura do texto, supõe-se que cada texto literário
representa uma perspectiva do mundo, criada por seu autor. O texto, enquanto tal, não
apresenta uma mera cópia do mundo revelado, mas constitui um mundo do material que lhe
é dado. É no modo de constituição que se manifesta a perspectiva do autor”, além das
demais perspectivas. Nenhuma dessas perspectivas, porém, concentra o sentido do texto, e
sim
(...) marcam em princípio diferentes centros de orientação no texto, que
devem ser relacionados, para que se concretize o quadro comum de
referências. A tal ponto uma certa estrutura textual é estabelecida para o
leitor que é obrigado a assumir um ponto de vista que permita produzir a
integração das perspectivas textuais. O leitor, porém, não pode escolher
livremente esse ponto de vista, pois ele resulta da perspectiva interna do
texto. quando todas as perspectivas internas do texto convergem no
quadro comum de referências o ponto de vista do leitor torna-se adequado
(ISER, 1999, p. 74).
Pode-se dizer que, quando o leitor consegue captar todas as perspectivas presentes
na estrutura do texto (autor, enredo, personagens, narrador etc.), além da sua, é que a leitura
será adequada, ou ainda, o quadro de referências será o mesmo. Quando o leitor assume o
ponto de vista do texto, ele possibilita a captação e a soma do quadro de referências das
perspectivas textuais seja captado e somado ao “sistema de perspectividade” e o sentido de
cada perspectiva pode ser inferido. A função central do leitor implícito é, portanto,
possibilitar que se reconstruam as estruturas gerais do quadro de referências que
contribuem para as diversas atualizações históricas e individuais do texto, com suas
particularidades.
Esclarece também que não se deve confundir ficção do leitor e papel do leitor. A
ficção do leitor é o meio pelo qual o autor expõe o mundo ao leitor imaginado, enquanto o
papel do leitor se refere à construção do texto pelo receptor, ao seguir as estruturas textuais.
Logo, o papel do leitor também é uma estrutura somente realizada no ato da leitura.
Entretanto, nem perspectivas nem pontos de vista são expressos verbalmente, de forma que
36
o sentido de um texto possa apresentar-se apenas imaginável, pois o aparece explicitado,
mas se atualizará na consciência imaginativa do leitor.
A superposição de papel do leitor, leitor implícito e leitor real não acontecem por
completo, do contrário ele não traria suas experncias ao texto e não associaria o novo
horizonte ao seu, de acordo com a teoria iseriana. Por isso, o seu papel se cumpre à medida
que na leitura possa introduzir suas vivências e concepções, o que indica que cada
atualização é única e determinada. Essa atualização está acessível ao olhar do crítico, desde
que este se debruce sobre as estruturas de efeito presentes no texto, que constituem a base
para a atualização.
Esse processo pode ser constatado na leitura das Cartas feita por Matisse que,a
partir de seu “olhar de crítico” criou as litografias como “base para a atualização” do texto.
2.2.3 Interação texto e leitor
A seguir, cabe uma reflexão breve sobre a interação entre texto e leitor e como a
comunicação acontece entre ambos. Segundo Iser (1999, p. 99), um dos fundamentos da
interação é a continncia
7
, que nasce da própria interação entre diferentes sujeitos que
estão em planos diferenciados e marcará a aceitação, a negação ou a complementação entre
esses planos: “Quanto mais ela é reduzida, tanto mais a interação entre os parceiros se
ritualiza; quanto mais ela aumenta, tanto menos consistente se torna a seqüência das
reações, culminando no caso extremo na destruição de toda a estrutura interativa”. Isso quer
significa quanto menor a diferença de planos entre texto e leitor, ou seja, quanto mais eles
tiverem em comum, maior será a identificação e o processo interativo terá maiores
oportunidades de acontecer; quanto maior a distância entre texto e leitor, quanto menos o
leitor compreender do texto, mais comprometida estará a interação.
Diante disso, percebe-se que existe uma assimetria entre texto e leitor, pela falta de
referências comuns, assim como entre dois indivíduos existe um espaço a ser preenchido,
uma lacuna, pois ambos trazem planos de conduta e experiências diferenciados. Esse
espaço aberto gera um grau de indeterminação que estimulaa interação, a possibilidade
7
S.f. 1. Qualidade do que é contingente. 2. Incerteza sobre se uma coisa acontecerá ou não. 3. Com.
Reserva,cota, contingente (FERREIRA, A.B.H. Dicionário Aurélio Básico de Língua Portuguesa. São Paulo:
NovaFronteira, 1995).
37
de o leitor agir com e no texto, preenchendo esses vazios com suas projeções, a partir do
que o texto apresenta. O leitor não pode ficar preso a suas próprias projeções, mas deve, na
interação com o texto, modificá-las conforme se a leitura. Dessa forma, muitas
representações são estimuladas e a assimetria entre texto e leitor vai sendo aos poucos
superada para dar lugar a uma situação comum entre ambos.
A interação entre leitor e texto não é medida ou regulada, de acordo com Lima
(1979). Em cada ato de interação situa-se, um vazio a ser preenchido pela interpretação
“A interpretação, portanto, cobre os vazios contidos no espaço que se forma entre a
afirmação de um e a réplica do outro, entre pergunta e resposta” (p.23). Na relação entre
texto e leitor, os vazios são preenchidos com as projeções do leitor. O êxito da
comunicação se dará quando o leitor conseguir modificar, por meio do contato com o texto,
suas representações habituais.
Para que essa comunicação aconteça de forma satisfatória, Iser (1999) afirma que a
ação do leitor precisa ser regulada de alguma forma pelo texto. Lima (1979, p. 24)
complementa, justificando que os complexos de controle do texto têm por função:
“tanto orientar a leitura, quanto exigir de o leitor deixar sua „casae se
prestar a uma vivência no estrangeiro‟; testar seu horizonte de
expectativas, colocando à prova sua capacidade de preencher o
indeterminado com um determinável i.e., uma constituição de sentido
não idêntico ao que seria determinado, de acordo com seus prévios
esquemas de ação”.
Esses complexos de controle não expulsam o leitor, mas o chamam para dentro do
texto.
O o-dito, de acordo com Iser (1999), é uma forma de levar o leitor para dentro do
texto e imaginar o significado de algo que foi dito, mas que foi sucedido por um lugar
vazio, o qual margem para a inferência de uma leitura por detrás das palavras. Para Iser
(1999, p. 106), o jogo de “mostrar e ocultar” movimento e regula o processo
comunicacional: “O não dito estimula [o leitor] a atos de constituição, mas ao mesmo
tempo essa produtividade é controlada pelo dito e este por sua vez deve se modificar
quando por fim vem à luz aquilo a que se referia”.
Conseqüentemente, o lugar do leitor para que realize o sistema de combinações
necessárias são os lugares vazios, a serem preenchidos, com um sistema diferente do
38
sistema do texto. É assim que o leitor começa a constituição do texto e a interação com ele
os lugares vazios regulam a formação de representações do leitor, atividade agora
empregada sob as condições estabelecidas pelo texto” (ISER, 1999, p. 107).
Uma das características do texto ficcional é não apresentar o mundo real tal como é,
mas simular aspectos dele, salienta Iser (1999). Essa não identificação com o mundo e nem
com o leitor constitui-se na capacidade comunicativa da ficção, expressada nos lugares
indeterminados (lugares vazios e negações), brechas para regular e promover a interação
entre texto e leitor. Lima (1979), afirma que no texto ficcional a indeterminação chega a
seu grau máximo, abrindo-o a uma infinidade de comunicações.
O lugar vazio é uma possibilidade de conexão, entre o sujeito-leitor e o texto. Para
Iser (1999, p. 126) é “a possibilidade de a representação do leitor ocupar um vazio no
sistema do texto. Os lugares vazios indicam que não há a necessidade de complemento, mas
sim a necessidade de combinação”. Essa combinação dos esquemas do texto é feita pelo
leitor e é então que o objeto imaginário é formado. Os lugares vazios possibilitam que os
segmentos do texto, não explicitados por ele, sejam ligados.
À leitura do verbal (as Cartas Portuguesas) e do não verbal (as litografias de
Matisse ) serão acrescentadas as variações realizadas durante a formação do ponto de vista
do leitor: os elementos familiares, os valores e conceitos pré-determinados do mundo real,
que procurarão preencher os lugares vazios e as lacunas.
39
3. O BARROCO NAS ARTES E NA LITERATURA
A palavra barroco é de etimologia controvertida., Originalmente designava um tipo
de pérola irregular, ou de acordo com a filosofia escolástica, um esquema ligado a um
processo mnemônico que nomeava um silogismo aristotélico com conclusão falsa.
Aguiar e Silva (2005) afirma que algumas etimologias da palavra barrocoo
fantasiosas e absurdas, considerando-se que a palavra barroco é proveniente do nome de
Federico Barocci e a hipótese de que se origina de barocco ou barrocchio, vocábulo
italiano designativo de fraude.
O Barroco, num sentido amplo, pode ser visto como uma tenncia constante do
espírito humano e, conseqüentemente, da cultura presente em todas as manifestações de
nossa civilização, sobretudo, na História da Arte. Representa o apelo ao emocional, ou
dramático, em oposição à tendência do intelecto a estabilizar e fixar autoritariamente
princípios rígidos. Assim pode-se falar em barroco helenístico e barroco do período
medieval tardio, que marcam momentos de libertação de formas, em oposição a estruturas
artísticas anteriormente disciplinadas, comedidas, “clássicas”. Em sentido estrito, o Barroco
é um fenômeno artístico e literário vinculado à Contra-Reforma, o que parece reforçado
pelo fato de que seu maior desenvolvimento se observou nos países católicos (embora
tivesse também acontecido em países protestantes). Uma reação ao espírito renascentista
imbuído de racionalismo. Ainda que, antes da Contra Reforma, já tivessem surgidos os
traços de estilo barroco, não há dúvida que a religiosidade constituisse um dos traços
predominantes desse movimento, ligada a uma visão de mundo aberta, combinando
misticismo e sensualidade. A designação “barroca” para a arte lhe foi atribuída muito
mais tarde e tinha, a principio, sentido pejorativo. O Neoclassicismo do séc. XVIII rejeitava
o Barroco como algo sem regras, caprichoso, carente de lógica, um estilo extravagante.
Muitos chegaram mesmo a considerar o Barroco um estilo patológico, uma onda de
monstruosidade e mau gosto. A revalorização ocorreu no culo XIX, por via da rejeição
dos cânones neoclássicos.
O Barroco renovou completamente a iconografia e as formas da arte sacra, mas foi
também uma arte da Corte, refletindo o absolutismo dos príncipes no luxo da decoração.
Ao contrário do Renascimento, o Barroco caracteriza-se pela assimetria, pela noção do
40
espaço infinito e do movimento contínuo, pelo desejo de tocar os sentidos e despertar
emoções. Isso é obtido por meio de efeitos de luz e movimento, de formas em expansão que
se manifestam: em arquitetura, pelo emprego da ordem colossal, das curvas e contracurvas,
pelas bitas interrupções, pelos esquemas formais repetidos; em escultura, pelo gosto da
torção, das figuras aladas, planejamentos tumultuados e, sobretudo, pela dramaticidade; em
pintura, por composições em diagonal, jogos de perspectiva e de encurtamento, pela
obsessiva transmissão de sensações de movimento e instabilidade. Mas, principalmente, as
diferentes artes tendem a se fundir na unidade de uma espécie de espetáculo, cujo
dinamismo e colorido brilho se traduzem em exaltação.
O Barroco encontrou sua primeira expressão em Roma, entre os arquitetos
encarregados de terminar a obra de Michelangelo: Maderno, depois Bernini, seguidos por
Borromini; são criações de Bernini, o baldaquino da basílica de São Pedro, o Êxtase de
Santa Teresa (considerado por muitos a expressão máxima da escultura barroca), a fonte
dos Quatro Rios; Lanfranco, Pietro da Cortona e P. Pozzo cobriram os tetos de vôos
celestes em trompe-l`oeil. Esse estilo espalhou-se pela Ilia: Piemonte (Guarini, Juvarra);
Nápoles (L. Giordano); Gênova, Lecce, Sicília (séc. XVIII) e Veneza (Longhena e
Tiepolo). Da Itália alcançou a Boêmia, Áustria, Alemanha, Paises Baixos do sul, a
península Ibérica e suas colônias na América. As capitais germânicas desse estilo foram:
Praga (com os Dientzenhofer); Viena (Fischer von Erlach, L von Hildebrandt); Munique
(com os Asam e os Cuvilliés).
O Barroco na Europa, do século XVI, fixou-se como uma manifestação histórica,
cultural e artística fundamentada na Reforma Protestante. Em linhas gerais, é um
movimento que consistiu no aparecimento de novas e questionadoras filosofias religiosas,
que divergiam de alguns conceitos da religião católica, causando a divisão dos católicos e o
surgimento de diferentes doutrinas. Dentre os principais filósofos da Reforma Protestante
destacam-se: Lutero, Calvino e João Huss.
Aguiar e Silva (2005) conclui que:
dos princípios religiosos e morais da Contra-Reforma com caracteres
morfológicos e o conteúdo da arte barroca, permite concluir com
segurança que o barroco se desenvolveu paralelamente coma Contra-
Reforma, mas que mão pode ser considerado como expressão das
aspirações e dos valores essenciais da Reforma Católica, embora a igreja
tenha vindo a perfilhar a magnificência e a grandiosidade monumental da
arte barroca para exprimir a glória do seu triunfo. Se a Contra-Reforma
41
não pode, por conseguinte, ser apontada como causa determinante do
barroco, deve porém ser tida em conta como um dos elementos
fundamentais que estruturam a ideologia, a sensibilidade e a temática do
barroco.
Em 1580 aconteceram dois fatos simultâneos que marcaram o fim de um período e
o início de outro: o término da Renascença em Portugal e o início do Barroco que se
expandirá pelo século XVII, atingindo os meados do século XVIII.
A partir de 1580 começa um movimento de revolta contra o domínio espanhol em
Portugal denominado Guerra da Restauração Portuguesa, objetivando recuperar a
independência perdida. Depois da entrada das tropas do conde de Alba em Lisboa, o trono
português foi ocupado pela coroa espanhola devido à morte de D. Sebastião, que morreu
sem deixar herdeiros. D. Filipe II tornou-se Filipe I de Portugal. Usou de violência para
tomar o trono e não cumpriu as promessas feitas nas cortes de Tomar, em 1581. Portugal
deixou de ser um país soberano e gradualmente começou a sentir as violações dos seus
direitos, conseqüência da prepotência espanhola levada ao extremo de arrastar os
portugueses na potica expansionista e aventureira, praticada então na Europa e além-mar,
o empobrecimento generalizado e a violência dos impostos.
Esses elementos negativos da presença espanhola em Portugal contribuíram para
reforçar a consciência nacional dos portugueses e os seus profundos anseios de recuperar a
independência. Era, portanto, inevitável que acabasse por eclodir uma primeira revolta
contra o domínio espanhol. Foi o que ocorreu em Évora, em 1637, com a chamada revolta
do Manuelinho, um importante prenúncio da revolução de 1640. Essencialmente, foi uma
revolta popular contra uma tributação impiedosa.
A nobreza e o clero também demonstravam os mesmos sentimentos revolucionários.
O duque de Bragança cedeu à pressão dos conjurados que preparavam a derrubada da
opressão espanhola e que pretendiam eleger o novo rei de Portugal. Desencadeada em
1640, a insurreição teve por efeito imediato a liquidação da autoridade espanhola em
Portugal, personificada no português Miguel de Vasconcelos, logo morto pelos
conspiradores. Não foi necessário esperar pelas cortes para colocar novamente um rei
português no respectivo trono. Inicia-se, assim, a dinastia de Bragaa, em 15 de Dezembro
do mesmo ano, em Lisboa. O Duque de Bragança foi coroado rei de Portugal, com o nome
de D. João IV, com de grande pompa e euforia popular.
42
Num primeiro momento, foi relativamente fácil restaurar a independência nacional,
mas o mesmo já não se pode dizer quanto ao assegurá-la. A reação da Espanha era
esperada e inevitável, embora não tendo sido imediata e Portugal pode, assim, reorganizar o
seu exército, recorrendo a especialistas militares estrangeiros e recuperando muitos homens
que tinham sido incorporados nos exércitos espanhóis.
Delgado (1973) afirma que após uma sucessão de virias portuguesas sobre as
forças invasoras espanholas (Batalhas do Montijo em 1644, das Linhas de Elvas em 1659,
do Ameixial em 1663 e de Montes Claros em 1665) acabaram por convencer a Espanha a
aceitar a paz em 1668 e a reconhecer a independência de Portugal. Entretanto, outra grande
batalha - a diplomática - havia sido travada pelos Portugueses junto dos principais países
europeus no sentido de obterem o reconhecimento internacional da sua soberania.
O movimento de libertação chefiado pelo Duque de Bragança, consegue enfim
expulsar do solo português, após sessenta anos de dominação, as guarnições espanholas.
Ascende a Dinastia de Avis, Dom João, é coroado como Dom João IV, o Restaurador.
No início do século XVI o homem desafiou os mares e se redescobriu como centro
da própria existência. Em Portugal, todo heroísmo que havia tomado conta de seu povo
como resultado das grandes navegações ficou seriamente abalado com a morte de Camões e
o desaparecimento de D. Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir, na África, resultando na
drástica tomada do trono português pela Espanha. Os reis espanhóis, católicos extremados,
combateram rigorosamente a Reforma, aderindo as iias da Contra-Reforma da Igreja.
Conseqüentemente, Portugal e o restante da Europa assistem ao choque entre o
Antropocentrismo vigente e o Teocentrismo, que volta a ganhar espaço na cultura da época.
A vida, o dilema, a indefinição, o conflito entre as questões divinas e humanas, entre o
espiritual e o material irão refletir e expressar na arte e na literatura, em especial na poesia
produzida nesse período em Portugal, reunida em dois grandes cancioneiros: A Fênix
Renascida e O Postilhão de Apolo, distinguindo-se poetas como Jerônimo Baía, Francisco
Rodrigues Lobo, António Barbosa Bacelar e Sóror Violante do Céu.
Segundo Moisés (1986) esse movimento que teve origem na Espanha e introduzido
em Portugal durante o reinado filipino é de complicado contorno, pois corresponde a uma
profunda transformação cultural cujas raízes constituem objeto de discussão e divergência.
43
O Barroco literário sofreu algumas transformações em Portugal, ocasionadas pelo
toque poético de Camões e apresentando características do movimento estético que
serviram aos designos doutrinários e pedagógicos da Igreja na luta anti-reformista.
Sua principal característica foi a de conciliar numa síntese ideal o espírito medieval,
de base teocêntrica e o espírito clássico, renascentista, de essência pagã, terrena e
antropocêntrica. Nesta fusão tão oposta, configurou-se uma inevitável troca de posições, a
espiritualização da carne e a correspondente carnalização do espírito (o pecado e o perdão,
a religiosidade medieval e o paganismo renascentista, o material e o espiritual).
O processo descritivo implica na utilização de metáforas e imagens para todos os
sentidos (sinestesia) e a poesia se exprime por meio de meforas e uma sobrecarga de
elementos ornamentais esta tendência recebe o nome de Cultismo ou Gongorismo, pois tem
como representante o poeta espanhol Luís de Gôngora, e seus adeptos usam uma linguagem
rebuscada e rica. Fazem, para isso, a utilização de neologismos, hipérbatos, trocadilhos,
dubiedades e todas figuras de sintaxe que tornam o estilo pesado, afetado e tortuoso.
O Gongorismo é a representação da atitude sensual, da busca do mais belo e fulgurante aos
olhos, ao contrário do conceptismo que apresenta uma reformulação do conceito religioso,
enfatizando uma atitude intelectual. Esclarece-nos Spina (1967, p. 13) que:
a poesia deva ser a expressão de uma vivência, de uma experiência
emocional, moral, profunda, é emitir um conceito o apriorístico quanto
afirmar que a poesia é por excelência um estado de alegria produzido no
espírito do leitor pela palavra (Paul Claudel); que a poesia não é mais do
que a expressão do sentido misterioso da existência (Mallar); que a
poesia consiste em iludir o nomes cotidiano das coisas; que a poesia é a
realidade absoluta‟.
Na poesia notou-se o esfriamento da capacidade criadora, traduzindo o sentimento
depressivo da época. O lirismo passou a ser um entretenimento, um prazer sensual ou da
inteligência engenhosa, excluindo-se a preocupação social e da comoção religiosa, mas
também as efusões de moções pessoais, esgotados os grandes temas humanos da estética
renascentista.
A prosa seiscentista, ao contrário da poesia, atingiu a maturidade, especialmente no
plano formal. Com seus variados recursos expressivos, graças ao conceptismo e ao
cultismo, a prosa barroca ganhou nova plasticidade e elegância, através de seus autores
geniais. Exemplifica a obra de Padre Antonio Vieira considerado a maior personalidade
44
humana e cultural da época. Destacou-se pela campanha em favor dos indígenas, dos
escravos e por fim dos judeus. Na literatura destacou-se pela publicação História do Futuro
(1718), Esperanças de Portugal (1856-1857) e Clavis Prophetarum (obra inédita). Nos
Sermões o jesuíta concentrou seu melhor saber e talento.
A prática da poesia e da prosa no século XVII fundamentou-se na retórica (os “bons
usos” da linguagem). O estilo deveria ser alto, ilustre, sublime ou medíocre termos que se
referem às classificações retóricas dos efeitos e não das causas psicológicas da
personalidade do poeta. O público esperava e aplaudia a repetição, cujos resultados
permitiam classificar os autores como engenhosos, agudos, entendidos e discretos, mas
também como afetados e frios.
Segundo Moises, as Cartas Portuguesas de Sóror Mariana Alcoforado são
“barrocas no estilo e no modo de ser graças à dualidade do ser humano que nelas se
corporifica”. (MOISES 1981, p.14).
Nos próximos itens, um breve estudo sobre a epistolografia, a origem, e a crítica das
Cartas será apresentado.
45
3.1 A EPISTOLOGRAFIA COMO MODALIDADE LITERÁRIA NO BARROCO
PORTUGUÊS E AS CARTAS
O estudo realizado por André Crabbé Rocha intitulado A Epistolografia em
Portugal, dá-nos informações sobre teóricos e praticantes de escrever cartas em Portugal
desde o século XV, dentre eles Infante Dom Pedro, Gil Vicente, D. Francisco Manuel de
Melo, Padre Antonio Vieira, Sóror Mariana Alcoforado, entre outros
Os primeiros registros definem que a “a carta é o meio de comunicar por escrito
com um semelhante” acrescentando que “comunicar” origina-se do latim communicare
significando r em comum, comungar. As cartas serviam para as pessoas não se sentirem
sozinhas e depois de serem escritas, tornaram-se documentos valiosos para a história e para
literatura, como revelação do pensamento e idéias vigentes dos momentos em que
ocorreram.
Para o pesquisador a obra da criação para atingir o seu fim, necessita abranger o
maior número possível de leitores. A carta pretende comunicar com um leitor único, e,
como tal, prescinde da publicação. Pode até o seu autor desejar e especificar que a
mensagem permaneça estritamente confidencial. Daí resulta que, salvo nos casos de cartas
publicadas pelo próprio autor, ou com a sua autorização expressa, tenhamos de nos
interrogar-nos quanto à legitimidade de examinar cartas alheias e de dar-lhes publicidade.
Segundo Rocha (1985) a carta não obedece, a maior parte das vezes, à unidade
ideal de estrutura que preside à obra de criação premeditada. O autor vai, vem, entremeia
considerações anódinas e rasgos inspirados ao sabor da pena” (p.25), no que se refere ao
texto epistolar. Por serem tão espontâneas, as cartas de caráter pessoal e íntimo
inteiramente são verdadeiras e ainda reveladoras de seus conteúdos, constituindo-se
testemunhas incontestáveis do pensamento vigente na época de quando escritas.
Embora a carta seja um documento valioso e tão importante, investigações feitas por
Rocha (1985) registram o caráter frágil deste influente meio de comunicação, explicando
que “é a carta um documento perecível, sujeito a todas as formas de destruição (...) cartas
são papéis, diz o povo, e, em regra, papéis tiveram uma via” (p.20) e por esta razão
dispersaram-se por todos os cantos muitas missivas preciosas.
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Segundo estudos, constatou-se que as Cartas Portuguesas originais desapareceram,
portanto, não se pode afirmar em que língua foram escritas, há apenas suposições.
Sóror Mariana Alcoforado (1640-1723) marcou presença na Epistolografia
portuguesa do século XVII, com as Cartas Portuguesas, endereçadas ao Marquês de
Chamilly, oficial francês que servia o exército em Lisboa. Traduzidas do francês por Filinto
Elísio, em 1810, as Cartas provocaram numerosas polêmicas, dentre elas a questão da
autoria. Segundo Rocha (1985, p. 180) “impossível separar a linguagem sincopada e
descosida das Cartas, onde aparece uma interrogação oratória frase sim, frase não, e
abundam os períodos curtos e exclamativos - com prosa travada e enredada do autor das
Epanáforas.
Rocha (1985, p. 180-181) conclui com a seguinte afirmação:
“Com efeito, mesmo admitindo que as Lettres Portugaises devam o seu
substrato a autênticas cartas duma freira portuguesa enamorada Mariana
Alcoforado ou outra -, o aproveitamento que delas fez o redactor francês
constitui o evidente sobreposição literia, que as faz cair na aada do
romance epistolar mais que no domínio da epistolografia propriamente
dita, quando mais o fosse por lhes ter tirado as credenciais de lugar,
data, destinatário e assinatura tão características do gênero”,
Do mesmo modo, a epistolografia também ocupou um lugar de relevo como
intercomunicação estético-cultural dos escritores entre si ou com os seus mecenas.
Ribeiro (1940) comenta que as Cartas foram escritas primeiramente sob a emoção
de um amor imenso, cedo ferido pela ausência, e sob a vaga esperaa de um reencontro, e,
depois sob a certeza definitiva da completa separação. As Cartas despem a alma de uma
mulher que fez do amor a razão única de sua existência. Retrato fiel da alma feminina,
permanece ou se fixa entre a razão e o sentimento, entre o ódio e o amor, sentimentos
opostos, mas aproximados, expressos no melhor estilo barroco, e linguagem exaltada, que
configura todos os conflitos interiores.
Quanto à questão da autoria, dificuldades na formulação de um juízo sobre o seu
conteúdo, conforme nos afirma Freire (1962, p.14).
As diferentes opiniões formuladas sobre o “enigma” junta-se ainda a de as
Cartas pertencerem a autor ignorado, correspondendo a sua gênese a uma
idéia dominante pela qual os portugueses seriam o mbolo do espírito
amoroso de todos os tempos.[...] de Sóror Mariana, ou não, a verdade é
que as Cartas de Amor traduzem uma força de sentimento considerada
na Europa do tempo como característica da alma portuguesa.
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A leitura de Matisse nas imagens revelam essa característica o sentimento da alma
portuguesa. Sob tal perspectiva, a leitura apresentada nesta dissertação (o texto das Cartas e as
litografias de Matisse) confere essa força de sentimento
3.2. AS CARTAS PORTUGUESAS E AS LITOGRAFIAS: DO TEXTO À IMAGEM
3.3 AS CARTAS PORTUGUESAS: DA ORIGEM À CRÍTICA
As Cartas Portuguesas nos remetem a uma realidade causada pela dor de uma
separação amorosa. Escritas em francês, os seus originais extraviaram-se, não existindo,
por isso, possibilidade de informar se foram escritas em português ou francês, conforme
discutido. Supõe-se que tivessem sido escritas em português e atribuindo-lhes valor,
procurando diferentes autores para que adquirissem a forma portuguesa.
Em Cartas a d’Alembert, Jean Jacques Rousseau
8
expressou sua opinião sobre as
mulheres e as cartas da freira, num discurso que comprova o pensamento do homem em
relação à figura feminina, divergindo dos autores anteriores: Rocha e Freire.
As mulheres em geral não prezam arte, nenhuma as prende e não têm
gênio nenhum. Podem brilhar nas pequenas obras que exigem apenas
leveza de espírito, graça, às vezes até alguma filosofia e raciocínio. São
capazes de adquirir ciência, erudição, cultura, e tudo o que se alcança à
força de aplicação. Mas este fogo celeste que aquece e abrasa a alma, este
gênio que consome e devora, esta eloqüência estuante, estes transportes
sublimes que levam os seus encantos até o fundo dos corações, não os
achareis jamais nos escritos das mulheres. Todos frios e bonitos como
elas. Teo o espírito que quiserdes: alma é que nunca. Serão cem vezes
mais razoáveis do que apaixonadas. As mulheres não sabem descrever
nem sentir o verdadeiro amor. [...] Apostaria tudo quanto no mundo em
como as Cartas Portuguesas foram escritas por um homem.
A publicação das Cartas Portuguesas teria sido em meados de 1668, quando
Chamilly já havia regressado a França.
8
.Apud Ribeiro, Manuel. Vida e morte de Madre Mariana Alcoforado. p. 289
48
Em 1810 apareceu pela primeira vez no Journal de l’Empire o nome de Mariana
Alcoforado, num artigo de Boissonade. Ferreira (1964, p. 573) cita a seguinte nota
encontrada numa edição de 1669:
A religiosa que escreveu estas cartas chamava-se Mariana Alcoforado,
religiosa em Beja, entre a Estremadura e a Andaluzia. O cavaleiro a quem
estas cartas foram escritas era o Conde de Chamilly, chamado então
Conde de Saint-Léger...Cento e quarenta anos decorridos depois que as
Cartas Portuguesas foram escritas tornam a minha indiscrição muito
desculpável. Uma velha historia não oferece alimento à maledicência
nem à malignidade.
Delgado (1973) esclarece que um dos grandes opositores da tese que as Cartas são
de autoria de Mariana Alcoforado foi Guéret, em 1669. Isto ocorreu devido à publicação de
sete cartas forjadas, no qual o próprio editor atribuiu origem diferente, motivando a dúvida
legítima dos leitores no que diz respeito à autoria de todas elas.
A publicação dessas cartas marca o primeiro gesto de rebelião feminina na
Literatura Portuguesa. Mesmo sendo religiosa e mulher, conheceu as limitações que lhe
eram impostas pela Igreja e pela sociedade patriarcal. Escreveu as Cartas que bem
expressam sua ousadia, paixão e coragem de uma mulher questionadora. Mariana foi além
dos limites da liberdade, entregando-se à paixão de um homem.
Os editores de versão L&PM Pocket (1977, p. 5-6) afirmam que a edição de 1669
era uma tradução e que o editor francês assim apresentou o livro:
Consegui, à custa de muitos trabalhos e dificuldades, recuperar uma pia
correta da tradução de cinco cartas portuguesas que foram escritas a um
nobre gentil-homem que servia em Portugal. Todos os que conhecem os
sentimentos do coração humano são unânimes ou em lou-las ou em
procurá-las com tanto empenho que julguei prestar-lhes bom serviço
imprimindo-as. Desconheço em absoluto o nome daquele que as traduziu:
mas pareceu-me que não cairia no seu desagrado publicando-as. É difícil
que não acabassem por aparecer com erros de impressão que as teriam
desfigurado.
Freire (1994, p. 16), por sua vez, afirma que o êxito das Cartas Portuguesas fez-se
devido a galanteria levada ao exagero do convencionalismo, as Cartas eram uma afloração
perturbadora, escritas numa exaltada linguagem do coração, que pode ser entendida pelos
apaixonados como desarticulada e ardente de se comunicar.
Delgado (1973, p.217) registra que longe de serem consideradas literárias, são uma
expressão pura e natural de sentimentos violentos. Primeiro porque exprime a mágoa da
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separação e dúvida com relação ao reatamento do amado; depois a perda desta esperança e,
finalmente, o ressentimento por não ter tido em momento algum palavras tênues para
amenizar a dureza do abandono.
Acrescenta Delgado (1973) que as Cartas são compostas de frases soltas, expressão
de sentimentos que rapidamente se contradizem, em certos casos na luta tremenda entre o
amor e o ressentimento. Constituem-se pintura admirável duma alma atormentada por uma
paixão muito violenta, considera o autor.
O reconhecimento das Cartas vem em primeira mão, de Paris, a partir de uma
tradução de JoMaria de Sousa Botelho, em 1669. Filinto Elísio foi o primeiro tradutor
das Cartas que aceitou sem objeção nem reserva a tradição de que eram originalmente
portuguesas.
Jaime Cortesão, em seu esboço crítico da edição de 1920 das Cartas Portuguesas,
questiona sobre um tradutor francês que curioso dos segredos amorosos das Cartas,
preocupou-se com sua versão perfeita, deixando escapar alguns portuguesismos de forma,
por incompreensão do sentido, ou pela incapacidade de reduzi-las ao gênio da própria
língua. Abadade St Leger, assim responde (1920, p.11) Não se faz tolerar não pelo fundo
das idéias que pertencem ao original, abstrahindo dos innumeraveis defeitos de translação”.
Morgado Matheus, tão conhecedor das duas línguas dirá por sua vez: “a construção de
muitas phrases é tal que retraduzindo-as, palavra a palavra, em português, encontrar-se-hão
inteiramente no gênio e no caracter desta língua”(p.20)
Acrescenta Cortesão (1920, p.20):
s iremos mais longe: na traducção francesa phrases obscuras,
incoherentes ou artificiosas pela clara insufficiência do traductor.
Citaremos esta “...je vous remercie dans fond de mon coeur, du
desespoir...”expressão inusitada no francês, mas que tenta
incomprehensivamente traduzir o modismo português: agradeço-lhe do
fundo do coração...E é tão flagrante o conjunto dessas phrases que só por
si constitue uma das mais concluentes provas a favor da authenticidade
das Cartas.
Maurice Paléologue no esboço crítico da edição de 1920 faz o seguinte comentário
sobre as Cartas: “Uma obra de arte ou de litteratura, ainda quando muito perfeita, não passa
dumapia da vida: as Cartas são a própria vida”.
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D‟Aguiar (1924) por sua vez, comenta que Noel Bouton (Marquês de Chamilly)
após retornar de Portugal ostentava a sua grande conquista amorosa realizada em Portugal,
apresentando as Cartas, que passavam de mão em mão e, posteriormente, à França inteira.
Em meados de 1668 foram impressas, tendo sua aparição ao público em 1669. Ao final
deste mesmo ano haviam sido realizadas cinco reimpressões.
Devido ao sucesso das Cartas, os editores tiveram a idéia de publicar cartas
apócrifas a fim de aumentarem as vendas. Surgiu assim a Seconde partie dês Lettres
Portugaises, constituídas por sete cartas amorosas no mesmo nero, todavia não havia
nestas nem o encanto, nem delicadeza, e muito menos o sentimento encontrado nas
originais.
Posteriormente, dois novos editores Loyson e Philippes, conforme D‟Aguiar (1924),
na busca de explorar o a lucratividade, publicaram as respostas de Chamilly às Cartas,
variando a sua quantidade. Esta é uma das fortes razões para serem consideradas apócrifas.
D‟Aguiar (1924, p. 124-125) cita a justificativa de Loyson que prova a publicação
das respostas:
Ao leitor. A curiosidade que tiveste de ver as cinco Cartas Portuguezas
escriptas a um gentil homem de volta de Portugal a França, persuadiu-me
de que não serias menos curiioso de ver as respostas d‟elle; cahiram-me,
nas mãos, da parte de um de seus amigos que me é desconhecido;
assegurou-me este que, estando em Portugal, obtivera as copias, escriptas
na língua do paiz, de uma abbadessa de um mosteiro, que recebia aquellas
cartas e as retinha em vez de entregar à Religiosa a quem se dirigiam. Não
sei o nome de quem lh‟as escreveu nem o de quem fez a traducção, mas
creio não lhes ser desagradável fazendo-as publicar, pois que as outras o
são já. As pessoas que apreciam este gênero de escripta não as teem
desaprovado. Seja como fôr, se o tão galantes como as outras, são por
egual comoventes. Asseguraram-me que o gentilhomem que as escreveu
voltou para Portugal. (trad. de Luciano Cordeiro)
No período de 1670 a 1700 publicaram-se pelo menos 36 edições das Cartas
Portuguesas, dezenove são de uma senhora da sociedade e das respostas de Loyson e treze
das respostas de Philippes. Durante os séculos seguintes, somaram-se 155 edições até
meados de 1900, sendo elas: 96 francesas, 24 inglesas, 24 portuguesas, 04 italianas, 02
espanholas, 03 alemães, 01 norueguesa e 01 holandesa. Grande parte dessas edições
encontra-se na Biblioteca Nacional de Lisboa e na Biblioteca Carvalho Monteiro, também
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nas coleções particulares como a de Godofredo Ferreira e Antonio de Carvalho Monteiro,
em Portugal.
Em 1980 foi realizado um filme com o título Cartas Portuguesas, sob a produção
de Eduardo Geada, da Rádio Televisão Portuguesa (RTP), tendo como interprete de Sóror
Mariana, a atriz Lia Gama, com a fotografia de Manuel Costa e Silva. No mesmo ano, no
dia 22 de novembro, houve a primeira representação no teatro Flaviano, em Roma, com o
título La Monaca Portoghese, tendo como regente Bruno Mozzali e o papel de Mariana
interpretado por Rosa Di Lucia e o de Chamilly por Pero Di Jorio, de acordo com Carletti
(2008).
Em 1998, surgiu, pela primeira vez em Portugal, a tradução de Mariana, romance
publicado por Katherine Vaz, autora norte-americana de ascendência portuguesa. Em muito
pouco tempo, o romance atingiu a sua 4ª edição.
Em pesquisa realizada na Biblioteca Nacional de Lisboa foram encontradas 159
edições catalogadas das Cartas Portuguesas, em diversos idiomas sendo 31 edições
anteriores a 1900 e as demais até 2004, o que demonstra que no decorrer do tempo, a obra
continua a provocar a curiosidade do leitor e o desejo de se deleitar no seu conteúdo.
Ressalta-se o trabalho de Leonel Borrela, museólogo,
artista plástico, pesquisador e estudioso de Sóror Mariana
Alcoforado e das Cartas Portuguesas. Atua no Museu
Regional de Beja, mantendo uma crônica semanal ilustrada no
jornal Diário do Alentejo desde 1995, onde publicou rios
artigos sobre as Cartas Portuguesas. Em 2007 publicou o livro
Cartas: Sóror Mariana Alcoforado, (ilustração) o qual
apresenta uma abordagem polêmica em defesa da autoria das
Cartas, proporcionando ao leitor publicações e edições desde o
século XVII até as populares o século XX. As obras citadas
em seu livro referem-se ao assunto, dentre elas a edição
princeps de 1669, de Claude Barbin.
Ilustração 1. Capa do livro Cartas
Portuguesas edição de 1669
52
3.3.1 Sóror Mariana Alcoforado e o Convento de Beja
Em Beja, província do Baixo Alentejo, a nobre família Alcoforado, constituída até
então por Francisco, sua esposa Leonor e os filhos Baltazar, Miguel, Francisco e Anna
Maria aguardam o nascimento do seu quinto filho. De acordo com a decisão do pai, sendo
uma menina, deveria ser freira. Nasce, em 22 de abril de 1640, uma menina e recebe o
nome de Marianna Vaz Alcoforado. Foi escolhido para ser seu padrinho o ilustre Conde da
Vidigueira, Dom Francisco da Gama, descendente de Dom Vasco da Gama, o descobridor
do caminho marítimo para a Índia.
Aos onze anos ela é conduzida pelo pai ao Real Mosteiro de Nossa Senhora da
Conceição. Segundo Manuela Gonzaga (2003), “estava entorpecida de desgosto e espanto.
A decisão pusera fim a todos os seus enevoados e poderosos sonhos, fora tão rápido, ou
pelo menos, fora-lhe participada de forma tão inesperada, que a criança não teve tempo
para refletir em todas as suas conseqüências.
Relata e história que neste dia Mariana chorou muito, pois, sabia que aquela decisão
era irreversível. Abatida pela saudade da mãe, a despedida da irquatro anos mais velha,
que estava as vésperas de se casar, e do iro Baltazar de três anos.
O pai Dom Francisco da Costa Alcoforado, poderoso chefe de família, inspirava-lhe
mais temor que afeto. Fora guerreiro de muitas gerações, e corria-lhe nas veias, um sangue
nortenho de gema e inflexível nas vontades de acordo com Gonzaga (2003). Casado com
Leonor Mendes, filha de ricos negociantes, D. Francisco mal dava atenção às filhas, tinha
olhos apenas para o filho varão Baltazar.
Gonzaga (2003) comenta que como já tinha casamento marcado para a filha Ana,
Mariana significava um peso; pois o dote, o bragal (roupa branca) e a cerimônia seriam
uma pequena fortuna que sairia de suas arcas, e iria diminuir sua fortuna.
Ela o irritava, porque parecia não prestar atenção em suas tarefas rotineiras e
minuciosas que ocupavam todo o dia das mulheres de sua casa. Como Mariana era bela,
muito em breve apareceria alguém para pedir-lhe a o, então era preciso tomar algumas
provincias urgentes.
53
Tudo combinado antecipadamente, Mariana seria enclausurada de imediato. Levava
por dote trezentos milis, e o rendimento de um moio
9
de trigo, em troca disto, o Mosteiro
jamais reclamaria a sua herança, e isto fora realizado com testemunhas.
Saramago (1973) afirma que no convento eram colocadas as moças que não eram
convenientes casar, pois, assim teriam quem cuidasse delas e o desonrariam a família. O
Papa Leão X isentou os conventos de impostos, tornando-os um local das eleitas do
Senhor, onde as regras foram atenuadas, a ponto de algumas freiras terem dentro da
clausura do mosteiro suas resincias particulares mobiliadas com todo requinte e luxo.
Neste ambiente receberiam educandas a quem ministrariam ensino religioso e laico.
O Real Mosteiro da Nossa Senhora da
Conceição foi fundado na segunda metade do século
XV pelos Infantes D. Fernando primeiro duque de
Beja, e sua mulher, D. Beatriz, pais da rainha D.
Leonor e do futuro rei D. Manuel I. Constrdo a
partir de um pequeno retiro de freiras contíguo ao
palácio dos Infantes, o Convento da Conceição
pertencia à ordem de Santa Clara e encontrava-se sob jurisdição franciscana. Do seu
aspecto geral ainda hoje subsistem algumas influências do tardo-gótico em Portugal,
nomeadamente o portal gótico flamejante da igreja, as janelas de duplo arco tipicamente
mudejar e a platibanda rendilhada, que revelam uma importante transição para o estilo
manuelino. Do espaço primitivo fazem parte a Igreja, o Claustro e a Sala do Capítulo.
A porta de entrada é pela Igreja, iniciando-se a do
Côro Baixo, no qual se salienta um pequeno túmulo, de
estilo tico-flamejante, da primeira abadessa do Convento
D. Uganda.
O claustro, que conserva a planta original da última
metade do século XV, testemunha o cruzamento de
diferentes manifestações artísticas através dos tempos. É composto por quatro galerias,
onde se encontram as quadras de S. João Baptista, da Portaria, de S. João Evangelista, e a
de Nossa Senhora do Rosário.
9
Antiga unidade de medida, equivalente à 60 alqueires
2.Ilustração. Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição
3. Ilustração. Coro Baixo
54
Podem ser visualizadas nas ilustrações (4, 5, 6, 7) que se seguem:
4.Ilustração 5.Ilustração 6.Ilustração
Quadra S. João Evangelista Quadra S. João Batista Quadra Nossa Senhora do Rosário
Borrela (2007, p.19) assim descreve o convento:
O convento é riquíssimo pela sua arquitectura desde o período
gótico flamejante, protomanuelino, até aos alvores do século XVI,
como pela decoração barroca da igreja, em talha dourada,
azulejaria e mármores embutidos, além dum conjunto raro de
revestimento azulejar que, pela sua quantidade e estado de
conservação, invadindo as galerias do claustro e da sala do
capitulo, está com painéis sevilhanos do início do século XVI,
tem paralelo em Sintra e no solar da Bacalhôa.
Mariana fora recebida pela Abadessa D. Maria
Mendonça, que possuía sua casa particular. Ela freqüentava o
Mosteiro como aluna e conhecia grande parte das freiras e noviças. Seu pai mal a visitava, a
e estendia-lhe os dedos entre as grades e chorava. Mais tarde, professa sua e torna-se
madre Mariana Alcoforado, e por decisão das freiras mais velhas é designada escrivã e
bibliotecária do convento. Sua vida decorria em paredes cheias de livros, pergaminhos com
as biografias da vida das monjas falecidas do mosteiro, livros dos santos da Igreja Católica
e sempre que possível lia obras em francês.
Os momentos de paz cessaram, quando faleceu sua amiga a Abadessa Maria
Mendonça e sua mãe D. Leonor.
Anunciada a Guerra, que era temida e aguardada na planície alantejana. Dom
Francisco, agora viúvo, manda construir uma casa com todo luxo e bom gosto para Sóror
Mariana, filha do homem mais rico de Beja. Sua filha Peregrina, ainda criança assustada
7.Ilustração Sala do Capítulo
55
com a morte da mãe, fica sob os cuidados de Mariana que, agora, podia receber em sua casa
seu irmão e seus amigos.
A Guerra da Restauração era um fato, Portugal e Espanha lutavam em todas as
frentes, e em ambos opositores havia evidências de fraqueza e exaustão. Portugal limitava-
se aos conflitos da guerra à guerrilha de fronteira. Os cofres do tesouro, foram esvaziados e
todas as forças da nação.
Gonzaga (2002) explica a situação dos países:
Mas a Espanha não estava em melhores condições. A Guerra dos Trinta
anos, a Questão de Catalunha, a rebelião do duque de Medina Sidónia,
levavam a tropo as espanholas para longe da fronteira portuguesa.
Montijo, Linhas de Elvas, Castelo Rodrigo, Ameixal, traziam os ecos das
vitórias dos portugueses. Mas o resultado final era impossível de prever,
porque vitórias e derrotas eram notícias pendulares, que pareciam bafejar
indistintamente ambos os contentores”.
Nesse sentido enquanto Portugal lutava pela sua sobrevivência como nação, a
Espanha exauria-se no esforço de muitas batalhas. Foi então que, cessada a guerra que
mantinham com a França, os espanhóis resolveram concentrar todas as suas forças num
ataque a Portugal, para resolver a situação de uma vez por todas. O Alentejo seria o cenário
de batalha final.
Em 1660, chega Schomberg a Portugal para auxiliar na luta contra a Espanha, e
Beja era o centro do movimento militar. Em 1663, Chamilly, é destacado para ser capitão
do regimento de Briquemault.
Conforme Guimaes (1960) do convento podiam se ver as planícies onde ficavam
os soldados de Chamilly. Foi dali que Mariana provavelmente da varanda, tenha visto pela
primeira vez o seu amado; de acordo com a descrição do autor, à
pagina 107:
seu coração palpitou, docemente perturbado, e ela baixou logo o olhar,
modestamente, como deveria ser. Os cílios tocaram como uma carícia à
face branca, que ainda mais branca se tornara. As narinas aflaram
levemente. Foi tudo muito rápido. embaixo ondulavam as fileiras de
soldados. E tudo ficaria nisso mesmo, não fosse o capitão conceber pela
doce enclausurada o que se chamava um caprice de garnison .”
Borrela (2007, p. 19) acrescenta que a janela gradeada de
Mértola, ou de Sóror Mariana Alcoforado, traz a memória as
Ilustração 8. Janela Gradeada de
Mértola Convento de N. Sra. da
Conceição
56
Cartas Portuguesas, consideradas no seu todo pelos estudiosos,
como obra prima da literatura mundial‟. (Ilustração 8)
De acordo com a narrativa de Guimarães (1960, p.107), no dia seguinte Mariana,
pode vê-lo de perto durante a missa. Chamilly era um homem experiente, galante, bem
falante, não iria deixar de se interessar por uma moça jovem e bonita como Mariana. Não
demorou muito para que ele conseguisse adentrar na sua cela. Chamilly dizia-lhe palavras
fortes, poderosas. Elogiava a sua beleza, afirmando que se entrasse em qualquer dos salões
que freqüentava em Portugal ou em França, na própria corte do Rei, nenhuma dama se lhe
compararia. Elogiava-lhe os olhos preciosos, o tom da pele, os gestos e a graciosidade
incomparável das suas mãos.
Guimarães (1960) acrescenta que é provável que Chamilly tenha tido acesso ao
Convento por passagem subterrânea e foi assim que Mariana cedeu aos impetuosos desejos
de ambos. Por um brevíssimo espaço de tempo eles criam que seu segredo estava imune e
protegido por Deus.
O Conde de Schomberg, governador das armas do Alentejo, sabedor do que se
passava e convocou Chamilly a comparecer ao Castelo de Estremoz onde instalara o seu
quartel general, intimando-o a contar a verdade. Deu-lhe ordens para que voltasse à França
e que arrumasse uma desculpa que abrandasse o sofrimento de Mariana.
No dia seguinte ele lhe envia uma carta despedindo-se. De acordo com a biografia,
de Mariana, após a leitura, ela desmaia por várias horas, tendo sido encontrada por algumas
freiras que a socorreram. Quando volta a si, a abadessa do convento está a sua cabeceira e
Mariana conta-lhe toda a verdade.
Por algum tempo obtém notícias de Chamilly através de seu capitão. Começa
escrever cartas e obtém apenas respostas curtas e sem sentimento. O sofrimento de Mariana
intensifica-se a ponto de rebaixar suas funções, chegando a ser porteira do convento para
distrair-se.
Em 1703 o Oficial Chamilly foi promovido a Marechal da Fraa. E em 1709,
Mariana é eleita abadessa do Convento de Nossa Senhora da Conceição de Beja, com
direito a ser chamada Madre Mariana Alcoforado, devido a sua condição aristocrática.
Delgado (1973) encerra o estudo sobre Mariana afirmando que ela faleceu no dia 28
de Julho de 1723. O termo do seu óbito, assinado pela escrivã Dona Antónia Sofia Baptista
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de Almeida, conta de que «durante 30 anos fez ásperas penitências; padeceu grandes
enfermidades e com muita conformidade desejando ter mais a padecer; e conhecendo que
era chegada a sua última hora pediu os sacramentos os quais recebeu em seu juízo perfeito
dando muitas graças a Deus pelos haver recebido; e assim acabou com sinais de
predestinada falando até a ultima hora»*
Freire (1962) assim define as Cartas Portuguesas:
As Cartas de Mariana Alcoforado o como pássaro solitário a voar de
céu em céu, cada vez mais longe a mostrar por onde passam um reflexo de
paixão, e que no próprio mistério dão margem a todas as sugestões do
amor.
Segundo sua biografia numa noite, Rui Melo, marido da irAna Maria, trouxe ao
Palácio da Rua do Touro, ao seu cunhado Dom Baltazar um pequeno embrulho, havia nele
um livrinho francês anônimo que lhe haviam feito chegar às mãos. Rui Melo achava que
por trás daquilo havia pessoas tentando manchar a honra da família Alcoforado. O livro
intitulava-se Cartas Portuguesas. Descobriu que seu pai degredara a sua amada irmã para
fazer dele seu único herdeiro, considerava-se um réu daquela história, e que fora ele próprio
que apresentara Chamilly a Mariana.
58
4. 1 HENRI MATISSE LEITOR E ILUSTRADOR DAS CARTAS
Henrimile-Benoît Matisse nasceu em Le Cateau, Picardia, em 31 de dezembro de
1869. Filho dos donos de uma loja de cereais e tintas, Matisse foi a Paris em 1887 estudar
Direito. Dois anos depois, foi trabalhar como escriturário em uma empresa de advocacia,
em Saint-Quentin. Nessa cidade, vizinha a Le Cateau-Cambrésis, ele havia recebido o
primeiro prêmio em um concurso de desenho, quando freqüentava o liceu local. Entre
1892-94 e estudou na École des Arts Décoratifs e no ateliê de Gustave Moreau.
Matisse foi um dos artistas mais originais do culo XX, um mestre da cor e da
linha, cujos quadros encantadores ainda hoje influenciam artistas em todo o mundo. Ele
teve um papel central na revolução da arte moderna que aconteceu no começo do século
passado, e ficou famoso por suas pinturas, esculturas, gravuras, desenhos e ilustrões de
livros e pela criação de figurinos e cenários. Guichard-Meili (1983) comenta que após uma
crise de apendicite aguda, doença que obrigou o jovem advogado a ficar cerca de um ano
de cama, fez aflorar a verdadeira vocação do futuro artista. Usando uma caixa de tintas que
sua mãe lhe dera, Matisse copiava, no leito, paisagens de um manual de pintura. Foi nesse
período que fez sua primeira obra: Natureza-morta com livros. Recuperado, passou a
freqüentar aulas de desenho na escola local de design têxtil. O artista Henri Matisse agora
estava pronto e chegou a afirmar: "Quando comecei a pintar, me senti transportado para
uma espécie de paraíso.
Guichard-Meili (1983) acrescenta que aos 21 anos, Matisse mudou-se novamente
para Paris, dessa vez para estudar arte. Jude Welton assinala que os temas iniciais do artista
geralmente eram cenas tranqüilas de interiores e paisagens, mas, no fim da década de 1890,
ele rejeitou as técnicas de pintura tradicionais: "Seus quadros começaram a mudar,
tornando-se mais audaciosos e coloridos". É, no entanto, no Salão de Outono de Paris, em
1905, que a força criadora de Matisse ganha repercussão. Nessa mostra, junto com outros
artistas inovadores, Henri expõe a famosa tela A senhora Matisse (A risca verde), na qual
retrata Amélie sobre retalhos de cores violeta, laranja e verde-turquesa, e a linha tida em
verde que passa pelo nariz da mulher e quase divide o rosto ao meio. "Embora seja um
retrato reconhecível de Amélie, Matisse estava menos preocupado com a semelhança do
que com a relação entre as áreas de cor na tela", diz Jude Welton. A exposição chocou o
59
público. Um crítico comparou os artistas a fauves, feras selvagens, em francês, de onde se
originou a denominação fauvistas. A repercussão escandalosa da mostra resultou, pela
primeira vez na trajeria da arte moderna, em sucesso comercial para os artistas. As
marcas das "feras selvagens", segundo Jude Welton, foram vistas no Expressionismo e no
Abstracionismo, dois dos grandes movimentos artísticos do século XX.
O fauvismo foi o primeiro encontro de um pequeno número de artistas
completamente opostos à afetação, aos requintes, ao simbolismo literário do agrado de
muitos dos seus contemporâneos e levados, pelo contrário, pelo seu temperamento e pelo
exemplo dos seus grandes predecessores a exaltar as sensações, afirma Guichard-Meili
(1983).
Os fauvistas estavam todos de acordo em delegar plenos poderes na cor, no termo
de uma evolão trabalhada já de longa data. Matisse deu sua própria definição ao
fauvismo, de acordo com Guichard-Meili (1983, p.55):
Procura de intensidade na cor, sendo matéria indiferente. Reacção
contra a difusão do tom local. A luz não é suprimida, mas vê-se
exprimida por uma combinação das superfícies intensamente
coloridas.
Em 1909 abriu-se uma exposição sua em Moscou e, em 1910, uma retrospectiva em
Paris. As viagens que fez ao Marrocos e a Tânger, entre 1910 e 1912, influenciaram sua
obra. Em 1913 expôs no Armory Show, em Nova York, e em 1920 colaborou com a
companhia russa de balé de Diaghilev. Em sua primeira fase, Matisse se mostrava como
descendente direto de Cézanne, em busca do equilíbrio das massas, mas outras influências,
como as de Gauguin, Van Gogh e Signac, levaram-no a tratar a cor como elemento de
composição. Em 1904-1905, "Luxo, calma e volúpia" ainda revelava a influência dos s-
impressionistas, mas demonstrava grande simplificação da cor, do traço e dos volumes.
Em 1908, a euforia decorativa de "O aparador, harmonia vermelha" atestava que Matisse
tinha estilo próprio. Dos pintores fauvistas, que exploraram o sensualismo das cores fortes,
ele foi o único a evoluir para o equilíbrio entre a cor e o traço em composições planas, sem
profundidade.
Ao explorar ora o ritmo das curvas, como em "A música" (1909) e "A dança"
(1933), ora o contraste entre linhas e chapadas, como em "Grande natureza morta com
60
berinjelas" (1911-1912), Matisse procurou uma composição livre, sem outra ligação que
o o senso de harmonia plástica. Sua cor não se dissolvia em matizes, mas era delimitada
pelo traço. liberto do fauvismo, o pintor mostrou, às vezes, tendência a reduzir as linhas
à essência, como em "A lição de piano" (1916), mas não se interessou pela pura abstração.
O amor pela exuberância decorativa aparece em "Blusa romena" e na série "Odaliscas", de
1918. Pode-se dizer que cor e forma foram os elementos de composição mais caros a
Matisse. As reproduções de Figura decorativa sobre fundo ornamental, de 1925, o mural A
dança, de 1932-33, Nu cor-de-rosa, de 1935, e Música, de 1939, contidas no livro Henri
Matisse, mostram bem o êxito do artista na realização de suas propostas. Em 1940, o pintor
desistiu de vir ao Brasil em virtude da invasão alemã à França, durante a Segunda Guerra
Mundial. Diagnosticado com câncer, e em razão das dificuldades advindas da doença,
começa a trabalhar com papéis cortados coloridos com guache. A obra O caracol é
representativa dessa fase artística.
Em sua fase final, Matisse voltou-se para a esquematização das figuras, exemplos
de decoração mural A dança, para a Barnes Foundation, em Merion, nos Estados Unidos, e
os papiers collés ou gouaches coupées (técnica que chamou de "desenho com tesoura")
que ilustram Jazz (1947), livro com suas impressões sobre a arte e a vida. Foi também
escultor e ilustrador. Matisse submeteu-se com grande respeito não ao caráter específico
da obra literária condição necessária para o êxito de um livro mas, também, à técnica
gráfica (tipografia, formato, modos diferentes de gravura), Guichard-Meili (1983)
acrescenta seguinte declaração de Matisse :
não faço diferença entre a construção de um livro e a de um quadro e vou
sempre do simples para o composto, mas também estou sempre pronto
para conceber de novo no simples. Componho primeiro com dois
elementos, acrescento um terceiro, se for necessário para reunir os dois
precedentes enriquecendo a harmonia, digamos „musical‟.(p.170).
Em 1944, como desenhista, ilustrou as Fleurs du Mal (Flores do mal), de
Baudelaire, e, como litógrafo, as Lettres Portugaises (1946; Cartas Portuguesas),
atribuídas a ror Mariana Alcoforado, e Les Amours, de Pierre Ronsard. Matisse escolheu
ilustrá-las com litografia, pois permite uma grande leveza de traço, transmite a doçura e o
aveludado do lápis, veículo de uma sensualidade ou de uma emoção perfeitamente de
61
acordo com as canções dos poetas, semelhantes aos suspiros apaixonados de Mariana
Alcoforado.
Entre 1948 e 1951 dedicou-se à concepção arquitetônica e à decoração interior da
capela do Rosário em Saint-Paul, perto de Vence, no sul da França. O autor considerava
essa sua melhor obra, e nela concebeu todos os detalhes, dos vitrais ao mobiliário, voltado
para uma concepção mais ascética das formas, embora nos arabescos florais predomine
uma linha sinuosa.
Sobre a reforma realizada na capela Guichard-Meili (1983) refere-se à declaração
de Matisse:
O que realizei na capela especificou o autor- é a criação de um espaço
religioso.[...]Quero que aqueles que lá entrem se sintam purificados e
libertos dos seus fardos.
Fiz esta capela com o único sentimento de me exprimir a fundo. Tive aqui
ocasião de me exprimir na totalidade da forma e cor. Este trabalho foi
para mim um ensinamento. Nele fiz jogar o jogo das equivalências. Fiz
com que se equilibrassem materiais vulgares com materiais preciosos. As
coisas aproximaram-se e cantaram pela lei dos contrastes. A multiplicação
dos planos tornou-se unidade do plano.
Henri Matisse morreu em Nice, França, em 3 de novembro de 1954. Ainda hoje, é
celebrado como nome fundamental das artes, tendo sido reverenciado por nomes do porte
de Pablo Picasso e influenciador de artistas brasileiros, como Flávio de Carvalho, Carlos
Scliar e Tide Hellmeister.
4.1.1 As litografias Henri Matisse- Lisboa: Fundação Arpad Szenes, 2004.
Para realizar uma litografia é necessário o uso de uma pedra, uma substância
impermeável, água tinta, para trasladar a um papel o desenho executado sobre a pedra. As
pedras utilizadas em litografias provêm, em sua maior parte das pedreiras de Solenhofen,
junto a Munique, na Alemanha. Uma vez extraídas, formam-se placas retangulares de 8 a
10 cm de espessura, os formatos são de acordo com os trabalhos a serem realizados.
As pedras são constitdas por pedras calcárias, muito finas que m de 94 a 98% de
carbonato de cal, que se alteram muito facilmente sob a ação dos ácidos graxos, possuem
um grão natural que retêm os corpos graxos e absorvem a água da mesma forma que uma
62
esponja. Apresentam qualidades distintas, pois, ao serem mais porosas, retêm a água de
diferentes maneiras, podendo ser mais ou menos porosas ou duras, respondendo de forma
diferente quando é polida a sua supercie. Suas cores são amarela ou cinza azulada,
segundo a qualidade. As pedras cinza-azuladas são as mais utilizadas, por serem mais
resistentes e mais compactas pela espessura, porosidade e absorção pela matéria utilizada
com melhor uniformidade.
Loche (1975) comenta que a litografia, pela riqueza de sua técnica, oferece ao
artista recursos múltiplos e numerosas variantes. Com a ajuda de lápis, pluma, pincel,
rascador, ponta seca ou qualquer outro instrumento que extrai, permite traduzir diretamente
seu ensaio artístico sobre a pedra em uma invenção livre de qualquer restrição, e ainda pode
modificar sem limites a sua composição. Devido a isto, a litografia tem cativado
rapidamente os pintores, valendo ressaltar os pioneiros desta arte na atualidade: Matisse,
Braque, Picasso, Miró e Chagall (que declarou o seguinte sobre a pedra litográfica: es
como si tocara um talismán”) (p.19).
A idéia básica da litografia é extremamente simples: o artista desenha/pinta na pedra
com uma substância oleosa - por exemplo, um lápis de litografia é oleoso/malvel.
Também tintas e grafites de litografia. A pedra capta essa substância oleosa e a retém;a
pedra é umedecida com água - as partes da pedra não protegidas pela tinta oleosa e
absorvem a água. A tinta a óleo é espalhada na pedra - as partes oleosas da pedra captam a
tinta, enquanto as partes úmidas não; um pedaço de papel é pressionado contra a pedra -
depois a tinta é transferida da pedra para o papel.
Loche (1975) comenta que a litografia foi inventada em 1798 por Aloysius
Senefelder, quando ele procurava uma maneira de fazer a impressão de seus textos e
partituras e se deparava com o desinteresse dos editores. A litografia se tornou muito
popular como meio de impressão, por volta de 1830. As pessoas usavam essa técnica para
criar artes coloridas para livros, bem como para coisas mais corriqueiras como etiquetas,
panfletos e pôsteres.
Nas próximas paginas será apresentada a leitura das Cartas Portuguesas ilustradas
por Matisse. Foram selecionadas quatorze litografias de retratos imaginários de ror
63
Mariana e cinco vinhetas
10
que comem o catálogo da Exposição da Fundação Arpard
Szemes realizada em 2004 em Lisboa, comprovando-se que a leitura de Matisse foi
vinculada aos textos das Cartas Portuguesas de Sóror Mariana Alcoforado.
10
Pequeno ornamento tipográfico que ilustra um texto, um livro. V. alegórica Graf. Bibl.: desenho ou
símbolo, cuja imagem se relaciona diretamente com o texto. Ornamento do início e do alto das páginas de um
livro ou capítulo. Definição segundo: HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro Salles. Dicionário Houaiss da
língua Portuguesa. RJ: Objetiva, 2001, p. 2864.
64
4.2 DA PAIXÃO AO ABANDONO AS CARTAS E AS LITOGRAFIAS: DO
TEXTO À IMAGEM
A leitura é uma atividade especificamente humana, consciente e intencional, que se
constitui numa tarefa complexa e difícil, visto que, num texto muitas possibilidades de
leituras. Nesse sentido, a Teoria da Recepção, que valoriza o papel do leitor como parte do
processo de produção da obra, vem contribuir para um melhor entendimento do que seja
leitura, especialmente a leitura do texto literário.
Para Iser (1996) no ato da leitura do texto literário, o leitor deve levar em
consideração o efeito provocado pelo texto, entretanto, a recepção é inteiramente
condicionada pelo leitor que, no ato da leitura, dá vida à obra e contribui com suas
experiências vividas anteriormente. O sentido do texto é construído pela consciência
imaginativa do leitor que pode atualizá-lo.
No que se refere à leitura das Cartas, iniciamos com a definição da palavra paixão.
A Psicologia define a palavra paixão (do latim passione, sofrimento) como um sentimento
humano excessivo; amor ardente; afeto violento; entusiasmo, lera, grande mágoa; cio
dominador; alucinação; sofrimento intenso e prolongado e como parcialidade. Também se
refere ao martírio de Cristo ou dos Santos martirizados, parte do Evangelho em que se narra
a paixão de Cristo. Portanto, um sentimento colorido, uma expressão viva. Em literatura
cada uma das emoções como admiração, amor, ódio, dor, pena, medo, alegria ou todas
juntas podem ser entendidas como objeto de forte desejo ou de carinho profundo.
A Psicologia acrescenta também que a palavra paixão é de origem grega derivada de
paschein, significando padecer uma determinada ação ou efeito de algum evento. É algo
que acontece à pessoa independente de sua vontade ou mesmo contra ela. De paschein
deriva pathos e patologia. Pathos designa tanto emoção como sofrimento e doença. As
paixões, entendidas como emoções, mobilizam a pessoa impondo-se à sua vontade e à sua
razão.
Abbagnano (1998) registra que paixão é o mesmo que emoção, segundo a Filosofia.
Acepção empregada quase que universalmente até o século XVIII, o significado que possui
hoje é o de ação e controle sobre toda personalidade de um indivíduo humano. A expressão
francesa amour-passion indica uma forma de emoção amorosa que domina a personalidade
65
e é capaz de transpor obstáculos morais e sociais. Este conceito surgiu a partir dos
moralistas dos séculos XVII e XVIII, os quais evidenciaram a tendência que as emoções
têm de penetrar na personalidade e dominá-la.
Podemos observar essa característica nas Cartas Portuguesas, principalmente na
terceira carta, quando o Mariana revela os seus sentimentos e tudo o quanto enfrentara por
ele.
Contra mim própria me indigno quando penso em tudo o que te
sacrifiquei: perdi a reputação, expus-me à cólera de minha falia, à
severidade das leis deste país para com as freiras, e à tua ingratidão, que
me parece o maior de todos os males. (Anexo C)
11
Abbagnano (1998) define primeiramente o amor como uma palavra que designa
uma relação intersexual, quando esta relação é seletiva ou eletiva, sendo, por isso
acompanhada por amizade e por afetos positivos. A relação intersexual pode ser
chamada de amor quando é de base eletiva e implica o compromisso recíproco, não
podendo chamar de amor uma relação que é ocasional ou anônima. O amor indica um
compromisso moral, capaz de fixar limites e condições à atividade do indivíduo. Paixão e
amor são, portanto, palavras-chave na leitura e interpretação das Cartas.
Henri Matisse, durante o período de convalescença s-operatória em 1941, fez a
leitura das Cartas Portuguesas e a partir de sua interpretação coube-lhe completar a obra
lida, concretizando-a, ao preencher os vazios ou pontos de indeterminação que ela
apresenta. Matisse ilustrou sua leitura com 105 litografias originais, sendo 20 (vinte) em
página completa, impressa por Mouriot em tons de vermelho em papel Arches
12
. Cada
litografia encontra-se acompanhada de frases (Première Lettre, Seconde Lettre, etc)
segundo a edição de 1669, e de fragmentos das cartas, que são iniciados por uma letra
maiúscula “bordada”, assemelhando-se às iluminuras da Idade Média. As litografias do
rosto da freira contêm frases retiradas das Cartas, que podem ser consideradas como ponto
de entrada da leitura da imagem.
11
Foi utilizada a edição: ALCOFORADO, Mariana. Cartas Portuguesas. Tradução Eugênio de Andrade.
Lisboa: Assírio & Alvim, 1998.
12
Arches (Arcos) ou aguarela é um papel livre de ácidos e cloro, feito de fibras 100% algodão, que confere
resistência e estabilidade. Disponível em três texturas: a frio pressionado ou não, quente pressionado (Satine)
e rugoso (torchon). É excelente para água colorida, guache, caneta e tinta, acrílico e caligrafia.
66
A obra de arte é comunicativa, por isso mesmo é que depende do leitor para que seu
sentido seja constitdo. Na verdade, a presença do leitor é exigida pelo próprio texto
literário ou ficcional. O texto literário é comunicação e a leitura que se faz dele apresenta-se
como uma relação dialógica. Iser (1996, p. 123) esclarece que
[...] os textos ficcionais não explicam suas próprias decisões seletivas, de
modo que o leitor precisa motivar as decisões seletivas do texto ao
transcodificar os valores que conhece. Nesse processo se realiza a
comunicação do texto, em que se cumpre a mediação entre leitor e uma
realidade que não lhe é mais dada sob condições conhecidas.
Como leitor das Cartas, na elaboração das litografias, Matisse utilizou lápis de
diferentes cores. Para as vinhetas com flores, empregou a cor lilás que expressa a
espiritualização da alma, reportando à paixão de Cristo. Para o rosto de Mariana, usou lápis
marrom, a cor da ordem religiosa Clarissa Franciscana, também a cor da terra, da
maturidade e da responsabilidade, conforme Borrela (2007).
Matisse, ao apresentar inicialmente cada sessão de
litografias referentes às Cartas, desenha uma folha com números
indefinidos de pétalas, espécie de barroquismo sensual, orgânico
e voluptuoso. Pode referir-se à multiplicidade das questões do
amor e às dúvidas e polêmicas sobre o número de cartas escritas,
ou ainda, aos períodos ou frases que o artista pretendeu destacar
na sua leitura. Constatam-se tais hipóteses nos anexos: G, H, I,
L, O, R e Y.
Contra todas as proibições históricas que o amor de Mariana por Chamilly se
desenvolveu, considerando o seu comportamento transgressivo, a religiosa o teve
percepção da perda amorosa, ao colocar em jogo a sua reputação de freira e ao enfrentar a
família e as leis conventuais. o registro de uma coragem pessoal, cuja crença era na
manutenção de sua felicidade erótica, considerando a dor como um dos principais
componentes diante do abandono, que o era esperado ou previsto, segundo suas próprias
palavras:
Fiquei tão prostrada de comoção que durante três horas todos os meus
sentidos me abandonaram; recusava uma vida que tenho de perder por ti,
já que para ti, já que para ti não posso guardar. (ANEXO A).
67
Desde que partiste nunca mais tive saúde, e todo o meu prazer consiste em
repetir o teu nome mil vezes ao dia. (ANEXO B)
Conforme Caruso (1984) a satisfação da libido é fracassada, graças à ausência do
amante, concluindo-se que chegará a uma espécie de amor sem conteúdoe também a um
desespero sem conteúdo”. A partir daí verifica-se como foram sintomáticas a agressão, a
decepção, o ciúme, a preocupação e a dor configuradas na imagem desbotada da religiosa
do que na figura do parceiro ausente.
Se me fosse possível sair deste malfadado convento, não esperaria em
Portugal pelo cumprimento da tua promessa: iria eu, sem guardar
nenhuma conveniência, procurar-te, e seguir-te, e amar-te em toda parte.
Não me atrevo a acreditar que isso possa acontecer; tal esperaa por
certo me daria algum consolo, mas não quero alimen-la, pois só à minha
dor me devo entregar. (ANEXO A)
A crueldade da tua ausência, talvez eterna, em nada diminui a exaltação
do meu amor. Quero que toda gente o saiba, não faço disso nenhum
segredo; estou encantada por ter feito tudo quanto fiz por ti, contra toda a
espécie de conveniências. E que comecei, a minha honra e a minha
religião hão-de consistir em amar-te perdidamente por toda vida.
(ANEXO B)
Para melhor compreensão dessa entrega intensa e desmedida de Mariana, alguns
trechos de suas cartas exemplificam: “Adeus. Ama-me sempre e faz-me sofrer ainda mais”.
(ANEXO A) Ainda nessa mesma carta: Mal te vi a minha vida foi tua, e chego a ter prazer
em sacrificar-ta “(ANEXO A) e na segunda carta, um adeus definitivo e sofrido: Estou
desesperada, a tua pobre Mariana não pode mais: desfalece ao terminar esta carta.
Adeus, adeus, tem pena de mim!” (ANEXO B)
Fica claro como o prazer da dor apoderou-se dessa infeliz mulher. Evidencia-se o
que se pode denominar de fantasia ou de um pensamento que se desvincula da idéia
original recalcada e que permaneceu subordinado ao princípio do prazer. Dessa forma,
Mariana agarra-se à fantasia como a única maneira de operacionalizar os desejos amorosos
e a sintomatiza pela insatisfação que esse sentimento provoca em sua vida.
a hipótese de que as Cartas foram escritas, primeiramente, sob a emoção de um
amor imenso e a ausência de Chamilly provocou a vaga esperança de um reencontro,
acompanhado de ciúme e do sentimento de abandono. Na certeza definitiva da completa
68
separação, o conteúdo das Cartas despe a alma dessa mulher que elegeu o amor como sua
única razão de viver.
Na leitura das Cartas, a princípio, percebe-se que ela escreve para melhor
compreender o sentimento novo e estranho que lhe desordenava a vida, e também para
libertar-se. Nota-se, porém, a gradativa espiritualização do sentimento e a imposição do
orgulho ferido, à medida que a leitura avança. Contraditoriamente, razão e sentimento, ódio
e amor aproximam-se e expressam numa linguagem exaltada no melhor estilo barroco
todos os conflitos interiores. Rocha (1965, p. 196) corrobora com a seguinte afirmação:
Com efeito, mesmo admitindo que as Lettres Portugaises devam o seu
substrato a autênticas cartas duma freira portuguesa enamorada Mariana
Alcoforado ou outra -, o aproveitamento que delas fez o redactor francês
constitui o evidente sobreposição literia, que as faz cair na aada do
romance epistolar mais que no domínio da epistolografia propriamente
dita, quando mais o fosse por lhes ter tirado as credenciais de lugar,
data, destinatário e assinatura tão características do gênero.
Na primeira carta, Mariana lamenta a negligência e as falsas promessas do amado,
sentindo profundamente o abandono e o vazio da separação. Com a paixão ainda latente e
sob forte emoção (Considera, meu amor), não consegue sentir desprezo e recusa-se a
esquecer o seu amado Chamilly. Reconhece, porém, que se sente torturada pelas
lembranças dos bons momentos vividos e reitera o seu amor incondicional, chegando a
expressar o sonho de abandonar o convento para seguir os seus impulsos. Na
impossibilidade de realizá-lo, louva o amor que uniu os corações “para toda a vida”,
despede-se, revelando a comoção sentida, a perda dos sentidos, o choro que consome os
seus dias e o desejo de morrer de amor.
Inicialmente no anexo J, as palavras Il ne leur reste que
dês larmes
13
indiciam a leitura da primeira litografia do rosto
que representa Mariana. O pintor delineia o contorno da face,
cujos traços delicados, como o nariz e a boca se complementam
com a expressão do olhar triste e saudoso, ressaltando seu
abatimento pelas lágrimas derramadas. Ao declarar que lhe
13
Segundo a tradução de Eugênio de Andrade, só lágrimas lhes restam.
69
restam apenas lágrimas, o leitor entende que nada restou a não ser a saudade daquele que
tanto amou:
Ai! Os meus (olhos) estão privados da única luz que os alumiava,
lágrimas lhes restam, e chorar é o único uso que faço deles, desde que
soube que havias decidido a um afastamento tão insuportável que me
matará em pouco tempo. (ANEXO A)
Num relacionamento amoroso, ser desejado pelo outro é fundamental, mas,
contraditoriamente, esse desejo implica em sentimento de vulnerabilidade, de estar à mercê
do outro e sujeito aos seus caprichos e desejos. Desta forma, surge a ambivalência ligada
aos sentimentos de amor, ódio, ciúme, inveja, desejo e rejeição, sempre presentes nas
relações amorosas. O destino desses sentimentos dependerá de como o par consegue
administrá-los. Se prevalecerem os sentimentos positivos, sobressairá a tolerância e não a
frustração; a energia poderá ser empregada construtivamente no relacionamento.
Esses sentimentos opostos estão explícitos na primeira Carta:
Uma paixão de que esperaste tanto prazer não é agora mais que um
desespero mortal, comparável à crueldade da ausência que o causa.
(ANEXO A, p.89).
14
Os sentimentos de Mariana, declaradamente, o deixam dúvidas quanto à decepção
sofrida. Uma declaração de amor é algo profundo que poderá atingir o desejo de morrer,
quando não correspondido surge o ódio, sentimento contrário. Na primeira carta, a
expressão “vai ser muito desgraçado” revela esses sentimentos de desejo e rejeição:
Mal te vi a minha vida foi tua, e chego a ter prazer em sacrificar-ta. Mil
vezes ao dia os meus suspiros vão ao teu encontro, procuram-te por toda a
parte e, em troca de tanto desassossego, me trazem sinais da minha má
fortuna, que cruelmente não me consente qualquer engano e me diz a todo
o momento: Cessa, pobre Mariana, cessa de te mortificar em vão, e de
procurar um amante que não voltarás a ver.(ANEXO A, p.89)
No fragmento acima, Mariana deseja ardentemente estar com seu amado. Os seus
pensamentos estão ligados à sua figura, e a sua vida está vinculada a alguém que não
responde as suas cartas, causando-lhe profundo desgosto e a certeza da rejeição.
14
Grifo nosso
70
Na vinheta que também ilustra a primeira Carta, Anexo K,
Matisse criou uma ilustração peculiar, estilizada e de difícil
interpretação. De acordo com Borrela (2007) a figura se assemelha
a uma pinha com folhas aguçadas. Lurker (1997) explica que o
fruto da pinha, formado em escamas, simboliza a fertilidade e a
vida.
O narrador, ansiava que esse amor que fosse eterno, mas a
traição do mais puro sentimento e de seus sonhos despertou o sentimento de frustração e de
desistência da vida.
Essa vinheta permite ao leitor outras leituras, dentre elas a possibilidade de referir-
se a uma mariposa, ou a uma borboleta. De acordo com a narrativa mitológica, a mariposa
(negra e noturna) significa para a civilização asteca o sopro vital que saía da boca do morto.
Esse simbolismo está relacionado à sua metamorfose que, metaforicamente, expressa a
saída do túmulo (casulo) para o renascimento passagem do mundo dos mortos para o dos
vivos. Diferentemente, as borboletas, coloridas e diurnas, prenunciam acontecimentos
alegres. No imaginário humano, ambas estão relacionadas à alma.
A borboleta significa transpancia e transformação que leva à consciência e
compreensão dos sonhos, inspiração para a transformação dos momentos difíceis em
momentos de crescimento e evolução. Evocada para contribuir no desenvolvimento
espiritual, na busca da transcendência, a borboleta, segundo a mitologia, é considerada o
símbolo da libertinagem sexual, de acordo com Lurker (1997). Os sentimentos paixão e
ciúme são frutos da rejeição sofrida por Mariana e estão expressos pelo narrador também na
primeira carta:
[...] cessa de te mortificar em vão, e de procurar um amante que não
voltarás a ver, que atravessou mares para te fugir, que está em França
rodeado de prazeres, que não pensa um instante nas tuas mágoas, que
dispensa todo este arrebatamento e nem sequer sabe agradecer-to.
(ANEXO A)
Talvez encontrasses mais beleza (houve um tempo, no entanto, em que me
dizias que eu era muito bonita), mas não encontrarias nunca tanto amor, e
tudo o mais não é nada. (ANEXO A)
Nessas palavras, o narrador refere-se não só à paixão desmedida que castigava
Mariana, bem como aos momentos que, possivelmente, Chamilly tenha elogiado a sua
71
beleza, também registrada historicamente pelos estudiosos e críticos das Cartas. Segundo
Iser (1996), o sentido do texto é construído pela consciência imaginativa do leitor. Deste
modo, os elementos da vinheta podem simbolizar tanto a vida e a fertilidade interrompidas
pelo sofrimento, quanto a inspiração para uma transformação dos períodos extremamente
difíceis em momentos de crescimento espiritual.
Caruso (1984) analisa a separação como um fenômeno intimamente ligado à idéia
de morte. Para ele a separação é uma vivência da morte na consciência daquele que se
separa e a perda do objeto de amor - elemento importante de identificação que leva a uma
mutilação do ego. Quando se perde o outro que era tudo, o que fica é o nada, o vazio, uma
ausência muito profunda, que se equipara à morte:
Fiquei tão prostrada de comoção que durante três horas todos os meus
sentidos me abandonaram; recusava uma vida que tenho de perder por ti,
que para ti, que para ti não posso guardar. Enfim, voltei, contra
vontade, a ver a luz: agradava-me sentir que morreria de amor, e, além do
mais, era um alívio não voltar a ser posta em frente do meu coração
despedaçado pela dor da tua ausência. (ANEXO A)
O sentimento de paixão faz com que no momento de intensa dor pela separação
busque a morte como solução, acreditando que não conseguirá viver sem a presença do
amado. Quando a paixão não é correspondida, pode realmente ocasionar um final trágico.
Todavia isso não acontece nas Cartas Portuguesas, embora, em algumas passagens, o
narrador expresse o desejo de morrer em virtude da profunda tristeza e do sentimento de
abandono.
Ai! Os meus estão privados da única luz que os alumiava, só lágrimas lhes
restam, e chorar é o único uso que faço deles, desde que soube que havias
decidido a um afastamento o insuportável que me matará em pouco
tempo. (ANEXO A)
Depreende-se que a paixão é causadora de um sentimento excessivo, uma grande e
profunda goa, um sofrimento intenso e prolongado. Comprovadamente, as Cartas
Portuguesas expressam tais idéias quando o narrador afirma que enfrentaria a família e as
leis para preservar o amor que nutria por Chamilly.
Na segunda carta, o narrador inicia revelando que a exposição de seus sentimentos
significa uma verdadeira afronta ao seu coração, contrariamente, à primeira carta. Expõe a
falta de confiança, em virtude do silêncio da parte do amado, que significa o mais vil
72
esquecimento (... um esquecimento que me desvaira e chega a ser uma vergonha para ti).
Acusa-o de traidor pela falta de notícias seis meses, reconhecendo a sua inocência (e
ilusão) de ter acreditado que renunciaria sua carreira militar para permanecer em Portugal.
Contraditoriamente, reitera o desejo de continuar sofrendo, a esquecê-lo. Desvenda o fato
de ter sido nomeada porteira do convento por apresentar um desvio de comportamento e
confirma o não arrependimento de “adorar” o amado e o prazer de ter sido seduzida (Ainda
bem que me seduziste (...) estou encantada por ter feito tudo quanto fiz por ti, contra toda a
espécie de conveniências). Termina a carta confirmando sua paixão (... amo mil vezes mais
que a minha vida), o desejo de perdoá-lo e a reclusão no quarto com a única companhia do
seu retrato.
Ao ler a segunda carta, Matisse reitera no rosto bem
delineado a questão da indiferença. Os sentimentos desilusão e
indignação pela ausência do amado são igualmente desenhados
nos traços bem definidos do artista, no ANEXO M,
complementando a idéia com a frase: je n’envie point vostre
indifférence
15
. Destaca-se o olhar indefinido, longínquo e
questionador, o nariz e a boca bem delineados, ressaltando
decepção e amargura provocadas pelo ciúme, ao constatar que
Chamilly não a amava com a mesma intensidade que ela. A
expressão Ai, que ilusão a minha! comprova o sentimento
expresso nas palavras: “Como me enganei!”.
Cumming (1996) define esse olhar longínquo como se os olhos estivessem
recolhidos em seu mundo interior e perdidos em seus pensamentos. Acrescenta a
informão que Leonardo da Vinci também descreveu os olhos como a “janela do corpo
humano” e, através dela, o homem espelha seu caminho e traz para seu desfrute a beleza do
mundo, para contentamento da alma, presa no corpo humano (p.26).
15
Tradução de Eugênio de Andrade: Em nada invejo a tua indiferença.
73
Matisse, ao ler as Cartas, provavelmente, interpretou-as
sob a perspectiva da existência dessa incontrolável paixão de
Sóror Mariana Alcoforado e Chamilly. Na vinheta que come
a segunda carta desenhou três romãs, frutas que simbolizam
paixão e fecundidade. Sua árvore foi consagrada à deusa
Afrodite, na crença de seus poderes afrodisíacos, segundo a
narrativa mitológica.
Na Bíblia, no livro Cantares de Salomão
16
, capítulo 4, versículo
3, a romã refere-se à beleza da amada: Os teus lábios são como um fio de escarlata, e tua
boca é formosa; as tuas faces, como romã partida, brilham através do véu.
17
.
Completa a vinheta as palavras: Il me semble que je fais le plus grand tort du monde
aux sentimens de mon coeur, de tascher de vous les faire connoistre em vous les
escrivant
18
. Matisse enfatiza nessa vinheta o ardor” de um sentimento que se consolida no
texto das Cartas, quando o narrador assim declara: não voltarei a ver-te no meu quarto com
o ardor e arrebatamento que me mostravas?
Nesta terceira carta, o narrador questiona a vida, o amor e a sorte de quem se
entrega à paixão. Inicia a carta reclamando da ausência do amado e a falta de notícias
(Esperava que me escrevesses de toda a parte por onde passares e que as tuas cartas
fossem longas, que alimentassem a minha paixão com a esperança de voltar a ver-te).
Revela a saúde debilitada pelo sofrimento, que gera sentimentos de autocomiseração
(Ai!, como sou digna de piedade por não compartilhar contigo as minhas mágoas) e, ao
mesmo tempo, o reconhecimento da falsidade e do arrebatamento do amado.
O sofrimento extremo da dor do abandono provoca no narrador uma confusão de
identidade (Não sei o que sou, nem o que faço, nem o que quero), uma contrariedade de
idéias culminando com a confissão de sua precariedade sica e espiritual, apesar de reiterar
inúmeras vezes o seu amor e ciúme (... confesso ter ciúmes de tudo o que em França te
gosto e alegria e impressiona o teu coração).
16
Pode encontrar-se também como Cântico dos Cânticos.
17
Bíblia Sagrada. Revista e Atualizada. 2ª edição. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993, p. 602.
18
Creio que faço ao meu coração a maior das afrontas ao procurar dar-te conta, por escrito, dos meus
sentimentos. Tradução de Eugenio de Andrade.
74
também a revelação das perdas sofridas: a reputação, o descrédito da família, a
punição pelas leis portuguesas com as freiras e, principalmente, a ingratidão da parte de
Chamilly. Ao mesmo tempo, repete a paixão que ainda consome os seus dias, confessando
o prazer fatal que a levou arriscar tudo em nome desse amor. Antecipa a visão romântica
do século XIX (recuperada das cantigas trovadorescas), ao desejar a morte por amor.
Despede-se várias vezes (Adeus... adeus), reafirma o seu amor e aceita a tragicidade do
destino.
Na litografia que ilustra a carta, observa-se a tristeza, o
desalento e a desilusão no rosto da freira. É notório que, ao delinear
os olhos, o artista teve a intenção de mostrá-los tristes e inchados de
chorar. É evidente que o formato do rosto e a expressão desoladora
representam a saúde abalada e a dor ocasionada pela falta de
notícias do amado. Fragmentos extrdos da carta completam a
leitura pictórica:
Esperava que me escrevesses de toda parte por onde passares e que tuas
cartas fossem longas; que alimentasses a minha paixão com a esperança
de voltar a ver-te e[...]
Tinha formado uns vagos projectos de fazer todos os esforços que
pudesse para me curar, se tivesse a certeza de me haveres esquecido por
completo. A tua ausência, alguns impulsos de devoção, o receio de
arruinar inteiramente o que me resta de saúde com tanta vigília a tanta
aflição[...]
Esta idéia mata-me, e morro de temor aopensar que nunca te houvesse
entregado completamente aos nossos prazeres.
Abaixo da imagem da freira, a expressão vous m’avez trahie
19
, completa o quadro e
justifica a tristeza expressa na imagem. Evidencia-se o afastamento de Chamilly, a falta de
notícias e o desinteresse da parte dele.
Na vinheta que completa a ilustração da terceira carta,
anexo Q, Matisse representou com as três maçãs o pecado
original, o amor proibido. Zierer (2008) explica que a maçã é
proveniente de uma árvore (a macieira), elemento simlico em
19
Tradução segundo Eugênio de Andrade: Atraiçoavas-me.
75
rias culturas. Devido ao fato de suas raízes mergulharem no solo e seus galhos voltaram-
se ao céu, é considerada representante das relações entre a terra (microcosmo) e o céu
(macrocosmo). A raiz está ligada à fragilidade dos sentimentos humanos (amor e pecado)
dos amantes e os galhos direcionados ao céu simbolizam o compromisso de Mariana
assumido com Deus ao professar sua fé, rompido quando pecou ao amar Chamily. Essa
idéia revela-se no texto:
Não sei por que te escrevo: terás, quando muito,piedade de mim, e eu não
quero a tua piedade. Contra mim própria me indigno quando penso que
em tudo o que te sacrifiquei: perdi a reputação, expus-me a cólera de
minha falia, à severidade das leis deste país para com as freiras, e a tua
ingratidão, me parece maior que todos os males.
Ordena-me que morra por amor a ti! Suplico-te que me ajudes a vencer a
fraqueza própria de uma mulher, e que toda a minha indecisão acabe em
puro desespero. Um fim trágico obrigar-te-ia, sem dúvida, a pensar mais
em mim; talvez fosses sensível a uma morte extraordinária, e aminha
memória seria amada. Não é isso preferível ao estado que me reduzistes?
No livro de Cantares de Salomão, capítulo 2, versículo 5 uma referência à maçã:
“Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, pois desfaleço de amor”(p.607). Para
os germânicos, a maçã também significa a imortalidade, representada pela deusa Idun (a
rejuvenescedora). A maçã era guardada numa taça para que os deuses, ao envelhecerem,
pudessem mordê-la para reencontrar a juventude. Evidencia-se que na carta em questão, a
maçã é o símbolo das revelações do amor, da juventude, da fertilidade, longevidade e
imortalidade e, acima de tudo, da tentação.
Não sei o que sou, nem o que faço, nem o que quero; estou
despedaçada por mil sentimentos contrários. Pode imaginar o estado
deplorável que me encontro? Amo-te de tal maneira que nem ouso
sequer desejar [...]
Vivo que tanta infelicidade! faço tanto por conservar a vida
como por perdê-la!
Na vinheta em questão, encontra-se um excerto da terceira carta: Qu’est-ce que je
deviendray,et qu’est-ce que vous voulez que je fasse? Je me trouve bien éloignée de tout ce
que j’avois préveu : j’espérois que vous m’escririez
20
. Quando Matisse criou a vinheta, a
partir deste fragmento, buscou enfatizar, além da idéia de tentação, o sentimento de
20
Tradução segundo Eugenio de Andrade; Que há de ser de mim? Que queres tu que eu te faça? Estou longe
de tudo quanto imaginei! Esperava que me escrevesses
76
abandono e desolação (Que de ser de mim?) resultante do amor proibido que vivera
Mariana.
O narrador inicia a quarta carta manifestando grande preocupação com a seguraa
de Chamilly que, provavelmente, estava a serviço no mar, notícia recebida por intermédio
de um tenente. Prossegue reclamando da falta de notícias (... por que não me tens escrito?),
como nas demais cartas. Pressente que o amor não mais existe da parte dele, mas reitera
sua paixão desmedida. Revela que apesar de ter confiado nas promessas dele e ter vivido
alegrias, o que restou foram suspiros e lágrimas e uma triste previsão de morte. Ao longo da
carta, questiona o procedimento do amado e as razões do abandono, ao declarar sua desonra
e prejuízo moral por ter vivido o relacionamento. Desvenda o seu amor incondicional (Bem
sei que te amo perdidamente), apesar da mágoa e da aversão a tudo o que a cerca: o
convento, a família e os amigos. Expõe que todos perceberam sua mudança de caráter e que
sentem pena de seu sofrimento amoroso, menos ele, que lhe envia cartas insignificantes.
Cita, a seguir, a presença e a companhia de Dona Brites, o passeio realizado até o
balcão de onde se avista Mértola (provavelmente a janela de Mértola), mas as lembranças
provocaram-lhe imensas lágrimas, fazendo-a a voltar para o quarto e a cama, sem
esperanças. A janela traz lembranças vivas e a presea do amado fica ainda mais evidente.
Revela a existência de outra mulher na vida dele e pede que lhe envie uma foto dela, do
irmão e da cunhada. Finalmente, declara que a paixão e a entrega já duram um ano,
despede-se, repetindo rias vezes, como nas demais cartas, a palavra “adeus” e a
expressão como eu te amo”.
A litografia que ilustra essa carta, anexo S, apresenta o estado de alma
de Mariana, enfatizando o seu olhar triste. Os olhos permanecem
inchados de chorar, conforme revelação no texto: o que de feliz
começo não são mais que suspiros, lágrimas e uma tristíssima morte
que julgo sem remédio. O rosto está apoiado na mão, expressando uma
atitude estática e sugere reflexão e desalento.
77
A vinheta que completa a ilustração, anexo T, Matisse litografou a
imagem de uma planta conhecida como borragem. Segundo
Borrela (2007) os efeitos medicinais da planta tornam as pessoas
felizes, estimulam as atitudes de coragem e combatem os estados
depressivos. Suas flores em forma de estrelas possuem tonalidades
coloridas do púrpura ao azul e em Portugal simbolizam a
felicidade.
Na Idade Média, acreditava-se que a borragem tinha poderes mágicos e, por esse
motivo, a planta era utilizada em pequenas porções para recuperar a alegria e o amor ou
para fazer misturas cujo efeito era surpreendente, as pessoas falavam a verdade. Essa
simbologia da borragem identifica-se com as declarações verdadeiras de Mariana quanto
aos seus sentimentos de paixão e abandono, é um grito que lhe sai da alma:
... bem desgraçada sou[...]; não sei de maior ingratidão[...] tu não estavas
cego como eu, porque me deixaste eno chegar ao estado a que
cheguei?.
Se não conseguir vencer a tua ingratidão à força de amor e renúncia, como
haveria de consegui-lo com cartas e queixumes? Estou mais que
convencida do meu infortúnio; a injustiça do teu procedimento não me
deixa duvida, e de tudo devo recear, já que me abandonaste.
Completa a vinheta, o fragmento: Vostre lieutenant vient de me dire, qu”une
tempeste vous a obligé de relascher au royaume d”Algarve: je crains que vous n’ayez
beaucoup souffert
21
, expressando a preocupação de Mariana com o bem estar de Chamilly,
apesar da rejeição e abandono de sua parte.
Uma segunda leitura da vinheta poderá ser feita, considerando que a planta
desenhada por Matisse pode ser o rio que, segundo Lurker (1997), é o símbolo da luz, da
pureza e da virgindade. De acordo com a simbologia, há uma interpretação ambígua sobre a
flor: identifica-se com a piedade e inocência de Cristo, mas, ao mesmo tempo, associa-se
com a fecundidade e o amor erótico. O pistilo é um símbolo fálico, bem como o seu
21
Tradução segundo Eugenio de Andrade: O teu tenente acaba de me contar que um temporal te obrigou
arribar ao reino do Algarve. Receio que tenhas sofrido muito no mar[...]
78
envolvente perfume. Na arte cristã, o rio é branco e associado à Virgem Maria, mostrado
num vaso nas ilustrações da Anunciação.
Na Bíblia, o lírio também é mencionado em várias passagens no livro de Cantares
de Saloo:
Qual o lírio entre os espinhos, tal é a minha querida entre as donzelas; O meu
amado é meu, e eu sou dele; ele apascenta o seu rebanho entre os lírios. Capítulo 2,
versículos 2 e 16;
Os teus dois seios são como duas crias, gêmeas de uma gazela, que se apascentam
entre os lírios. Capítulo 4, versículo 5;
As suas faces são como um canteiro de bálsamo, como colinas de ervas aromáticas;
os seus lábios são lírios que gotejam mirra preciosa. Capítulo 5, versículo 13;
O meu amado desceu ao seu jardim, aos canteiros de bálsamo, para pastorear nos
jardins e para colher os lírios. Capítulo 6, versículo 2; entre outras passagens.
Nesses versículos bíblicos, bem como no texto da carta em questão, evidenciam-
se a beleza da amada comparada aos rios, bem como a paixão entre duas pessoas.
Exemplifica o excerto da carta:
Atormentaste-me com tua insistência, transtornaste-me com o teu ardor,
encantaste-me com a tua delicadeza, confiei nas tuas juras, seduziu-me a
minha inclinação violenta, e o que se seguiu o agradável e feliz começo
não são mais que suspiros, grimas e uma tristíssima morte que julgo sem
remédio.
Na litografia seguinte, anexo U, manifesta-se o desalento de
Mariana ao recordar as palavras ditas pela sua e: ma Mère m’em a
parlé,
22
sobre os momentos de exortação ao amor representado pela
e e a resignação em receber suas palavras. A expressão de dor, desolação e tristeza
transparece no formato alongado do rosto, nas sobrancelhas arqueadas e olhos baixos, nos
lábios comprimidos, ao relembrar que outras pessoas haviam-lhe alertado (“abrir-lhe os
olhos”) sobre a gravidade da situação:
Toda gente se apercebeu da completa mudança do meu carácter, dos meus
modos, do meu ser. Minha mãe falou-me nisto, primeiro com azedume,
depois com brandura. Nem sei que lhe respondi, parece-me que lhe
confessei tudo.
22
Tradução segundo Eugenio de Andrade: Minha mãe falou-me.
79
A litografia, além da desilusão e da amargura, reitera a comoção relatada na carta
das pessoas que lhe eram caras, incluindo-se as freiras do convento:
Todos se comovem com meu amor, só tu ficas profundamente indiferente,
escrevendo-me apenas cartas frias, cheias de repetições, metade do papel
em branco, dando grosseiramente a entender que estavas morto por acabá-
las.
No anexo V, Matisse apresenta, um outro rosto mais arredondado
e menos sofrido, com traços mais leves, conservando, porém, a
tristeza no olhar. Refere-se ao momento do apoio recebido por
Dona Brites (Dona Brites me perscruta), que a convence sair de
seu confinamento e a leva à janela: “Dona Brites insistiu, nestes
últimos dias, para que saísse do meu quarto, julgando distrair-me,
levou-me a passear até o balcão de onde se avista Mértola”. Na
narrativa da carta, a visita à janela e o seu estado de fraqueza trazem-lhe lembranças vivas
de Chamilly, uma vez nesse balcão avistara o seu amado pela primeira vez.
Na litografia W, Matisse surpreende o espectador ao desenhar
um rosto retorcido, disforme e envolto no u. Os olhos revelam um
profundo sofrimento que, segundo a carta, agrava-se e reflete na sua
saúde fragilizada. Transmite uma intensa dor vem do mais íntimo do
coração de Mariana, provocada pela ira e decepção sofrida.
Nesse sentido, Costa (2007, p.5-6) esclarece que:
A linguagem popular pode apoderar-se do fato de que a ira é algo
diferente de nós, não inerente ao ser humano normal, fazendo nos perder a
capacidade de controle e uso da razão, com o objetivo de criar expressões
e ditos muitas vezes jocosos. Por ter componentes irracionais, a ira não
deve ser confundida com o ódio, que pode atingir seus objetivos
destrutivos somente pela racionalidade. O homem conseguiu controlar sua
agressividade atras da razão, ou seja, utiliza a racionalização como um
mecanismo de defesa, mas quando tomado por uma forte emoção nem
sempre esses mecanismos atuam. A agressividade gerada pela ira
demonstra a incapacidade de racionalizar quando se deixa dominar pela
emoção. A ira é uma exploo forte de um sentimento ruim, proveniente
de uma contrariedade, de uma desilusão, de um acontecimento inesperado
e ruim, de uma inconformidade ou de uma culpa.
80
Segundo São Tomás de Aquino, o pecado da ira pode transformar-se em ações:
ora, acontece freqüentemente que, pelo fim da ira, isto é, por tomar vingança, se
comentam muitas ações fora da ordem moral
23
. Na carta, Mariana revela:
Mas antes de te enleares numa grande paixão, reflecte bem no horror do
meu sofrimento, na incerteza dos meus planos, na contradição dos meus
impulsos, na extravagância das minhas cartas, na minha confiança, e
aflição, e desejos, e ciúmes. Ah, serás um desgraçado!
Este desejo é inconcebível e ridículo; sei por experiência que és incapaz
de fidelidade e não precisas de ajuda para me esqueceres, nem a isso seres
levado por nova paixão. Desejaria eu que tivesses um motivo razoável?
Seria mais desgraçada, é certo, mas não serias tão culpado.
Completa a litografia a frase: il me semble que je vous parle”
24
, na qual podemos
inferir que Mariana escrevia as cartas ao seu amado para sentir-se mais próxima de
Chamilly, uma conversa íntima, num diálogo que se assemelha ao real:
Quanta inquietação me terias poupado se, quando nos conhecemos, o teu
procedimento fosse tão descuidado como o é agora! Mas quem, como eu,
se não deixaria enganar por tantos cuidados, e a quem não pareceriam
verdadeiros? Que difícil resolvermo-nos a duvidar da lealdade de quem
amamos.
Tu não estavas cego como eu, porque me deixaste então chegar ao estado
a que cheguei? Que querias dum desvario que não podia senão
importunar-te? Se sabias que não ficavas em Portugal, porque me
escolheste a mim para tornares tão desgraçada?
O teu procedimento é mais de um tirano empenhado em perseguir, que de
um amante preocupado apenas em agradar. Ai!, por que tratas tão mal um
coração que é teu?
Quero-te mil vezes mais que a minha vida e mil vezes mais do que
imagino. Ah, como eu te amo, e como tu és cruel! [...] e o oficial partirá.
Se partir, que importa? Escrevo mais para mim do que para ti; não
procuro senão alívio. O tamanho desta carta vai assustar-te: não a lerás.
Que fiz eu para ser tão desgraçada? Porque envenenaste a minha vida?
Porque não nasci noutro país. Adeus. Perdoa-me.não ouso pedir-te que
me queiras. ao que me reduziu.
23
Cf. AQUINO, Santo Tomás de. Sobre o ensino - Os sete pecados capitais. Tradução e estudos introdutórios
de Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes 2001. De malo, questão 12, artigo 5.
24
Tradução segundo Eugenio de Andrade: Quando te escrevo é como se falasse contigo.
81
Na litografia do anexo X permanece a deformidade nos traços. A
expressão do olhar mais aliviada, uma vez que está concluindo a quarta
carta e o desabafo. Mesmo expressando todos os seus dissabores,
revelando do mais profundo da alma todo seu sofrimento, ainda o se
encontra conformada com sua situação de abandono e rejeição, o amor
fala mais alto. Atestam as palavras que acompanham a figura da
religiosa: que vous m’estes dur!
25
.
Ah, como eu te amo, e como tu és cruel! Nunca me escreves; não consigo
deixar de te dizer ainda isto. Recomeço, e o oficial partirá. [...]O tamanho
desta carta vai assustar-te: não a lerás. Que fiz eu para sero desgraçada?
Porque envenenaste a minha vida? Porque não nasci noutro país. Adeus!
Mariana procura encontrar as razões desse sofrimento que a consome e não se
conforma de não ter sido correspondida. A dor ainda corrói seu coração e é expressa na
litografia de Matisse: os traços do rosto, o olhar questionador e a expressão dos lábios
corroboram esse questionamento: o esperava ser tratada assim por ninguém: devias
lembrar-te do teu pudor, da minha confusão, da minha vergonha, mas tu não te lembras de
nada que possa levar-te contra vontade a amar-me. Sua decepção com o abandono e a
indiferença de Chamilly, tema principal da narrativa das cartas, está refletida nos traços,
linhas e contornos das litografias que ilustram essa edição das Cartas Portuguesas.
Na quinta e última carta, o narrador, pela última vez declara o fim do seu
relacionamento com Chamilly, convencida de que tudo foi um grande engano. Devolve, por
intermédio de Dona Brites, o retrato e as pulseiras recebidas de presente, depois de imensas
grimas e hesitações, revelando, finalmente, que havia tentado de todas as maneiras curar-
se da paixão, mas não livrara-se dela. Contraditoriamente, suplica que permaneça em
silêncio, único meio de esquecê-lo. Num tom fortemente magoado pede que Chamilly o
mais interfira no seu destino (Não se meta pois no meu caminho), chegando a pensar que
poderia ter conhecido outro “amante melhor e mais fiel”, provocando-lhe inúmeros
questionamentos sobre a experiência vivida. Essa iia provoca-lhe, mais uma vez, a
autocomiseração (é tal a pena que sinto por mim), sentimento negativo que a leva ao
desespero final. Assume toda a culpa da paixão e da desgraça que foi abatida, reiterando as
razões para odiá-lo e expressa o desejo de entregá-lo à vingança da família. Nesta última
25
Tradução segundo Eugênio de Andrade Como eu te amo! E tradução de Jaime Cortesão Quanto me és caro!
82
carta, os seus sentimentos o exacerbados: deseja livrar-se da cruel perturbação” e da
paixão que a fez perder a razão, quando jovem e ingênua. Confessa-se livre do
encantamentoe, no último parágrafo, revela que apenas duas cartas ficariam guardadas
para leituras contínuas, a atingir um estado de alma mais tranqüilo. Não tomaria mais
resoluções extremadas que poderiam causar-lhe ainda mais desgosto: De si nada mais
quero. Sou uma doida, passo o tempo a dizer a mesma coisa.” Sente-se, finalmente, livre
para afirmar que não mais lhe escreveria e que não mais estaria obrigada a revelar os seus
sentimentos.
Na leitura de Matisse, anexo Z, o rosto apresentado os
traços encontram-se mais bem delineados e firmes. Configura-
se a expressão de coragem revelada na última carta, tanto no
olhar mais sereno, apesar da visível tristeza, quanto no contorno
do rosto e dos lábios demonstrando a força da decisão em
romper definitivamente com Chamilly: Quero escrever-lhe
ainda outra carta para lhe mostrar que, daqui a algum tempo,
talvez já tenha mais serenidade”.
A expressão je vous z’envoyeraí done...
26
, expressa a triste decisão de devolver as cartas,
desistindo em definitivo da reconciliação:
Ao devolver-lhe as suas cartas, guardei, cuidadosamente, as duas últimas
que me escreveu; hei de lê-las ainda mais do que li as primeiras, para não
voltas a cair nas minhas fraquezas.
Mandar-lhe-ei, pelo primeiro meio, o que me resta ainda de si. Não
receie que lhe volte a escrever, pois nem sequer porei o seu nome na
encomenda. De tudo isso eu encarreguei D. Brites, que habituara as
confidências bem diferentes. Os seus cuidados o me serão tão
suspeitos quanto os meus.
A vinheta que acompanha a última carta, como as demais, suscita
uma dupla leitura. Primeiramente, a imagem sugere as flores da
romã, às paixões e à fecundidade. Os gregos consideravam essas flores como o símbolo do
amor. De acordo com a narrativa mitológica, eles consagraram a romãzeira à deusa
Afrodite, acreditando em seus poderes afrodisíacos. Já para os judeus, a romã e sua flor são
símbolos religiosos de profundo significado no ritual do ano novo e prenunciam um ano
26
Tradução segundo Eugênio de Andrade: Mandar-lhe-ei...
83
melhor. Na interpretação de Matisse, as flores da romã sinalizam o desabrochar de uma
nova fase de Mariana, ao celebrar o seu rompimento com Chamilly. As palavras que
acompanham a vinheta configuram essa leitura: Je vous escris pour la dernièri fois, et
j’espère vous faire connoistre par la différence s termes, et de la manièri de cette lettre,
que vouz m’avez enfin
27
. Complementam a leitura os excertos abaixo:
Escrevo-lhe pela última vez e espero fazer-lhe sentir, na diferença de
termos e modos desta carta, que finalmente acabou por me convencer de
que me não ama e que devo, portanto, deixar de o amar.
[D. Brites] tomará as precauções necessárias para que eu fique com a
certeza de que recebeu o retrato e as pulseiras que me deu. Quero, porém,
dizer-lhe que me encontro, alguns dias, na disposição de me desfazer e
queimar essas lembranças do seu amor, que o preciosas me foram. Mas
tanta fraqueza lhe tenho mostrado que nunca acreditaria que eu fosse
capaz de chegar a tal extremo. Quero sentir a ao fim a pena que tenho
em separar-me delas, e causar-lhe ao menos algum despeito.
Uma segunda leitura da vinheta é possível, segundo Borrela (2007). As flores em
questão lembram cravos que, nos esponsais eram colocados na bebida do casal de noivos.
Expressam amor, fascinação e distinção, por isso, a flor é usada na lapela. Pela forma dos
seus frutos, que lembram pequenos pregos, o cravo tornou-se símbolo da paixão de Cristo.
Representa o amor puro e inocente daquele que nasceu para ajudar o próximo. Ligado
também à potica e à religião, representa uma pessoa que luta pela igualdade social, capaz
de colocar os interesses da sociedade, do grupo e da família à frente das suas aspirações
particulares.
Pickles (1992) em Linguagem das Flores explica que a simbologia do cravo muda
de acordo com sua cor:
Os atenienses reverenciavam os cravos, chamando-os Dianthos, flor de
Júpiter, e com eles faziam coroas e grinaldas, durante os festivais, dando
origem à palavra “coroação”. Devido ao aroma semelhante a do cravo-da-
índia, em inglês são, muitas vezes, chamados de glillyflowers, apelido
originário da palavra francesa “giroflier” e também dado aos goivos. Às
vezes, os cravos eram adicionados ao vinho e à cerveja para dar-lhes
sabor. Mesmo hoje em dia, ainda o conhecidas na zona rural inglesa
como flores embebidas no vinho. (p.19)
27
Tradução segundo Eugênio de Andrade: Escrevo-lhe pela última vez e espero fazer-lhe sentir, na diferença
de termos e modos desta carta, que finalmente acabou.
84
Na litografia seguinte, Matisse apresenta mais um rosto de Mariana. Apoiando-se na
o espalmada, expressa uma imensa tristeza nos olhos baixos e cismadores como os de
quem procura um caminho, uma luz, ou uma explicação. A dor e as lembranças ainda
persistem em seu coração e, muitas vezes, transformam-se em revolta pelo comportamento
detestável de Chamilly. O texto da carta configura a grande preocupação de Mariana:
Detesto a tua franqueza. Pedi-lhe eu para me dizer pura e simplesmente
a verdade? Porque me não deixou com a minha paixão? Bastava não me
ter escrito: eu não procurava ser esclarecida. Não me chegava a
desgraça de não ter conseguido de si o cuidado de me iludir? Era
preciso não lhe poder perdoar? Saiba que acabei por ver quanto é
indigno dos meus sentimentos; conheço agora todas as suas detestáveis
qualidades.
Não se meta, pois, no meu caminho; destruiria, sem dúvida, todos os
meus projectos, fosse qual fosse a maneira por que se intrometesse. Não
me interessa saber o resultado desta carta; não perturbe o estado para
que me estou preparando. Parece-me que pode estar satisfeito com o
mal que me causa, qualquer que fosse a sua intenção de me desgraçar.
A imagem se completa com o trecho da carta: Je vous promets en ne vous point
layer
28
, no qual Mariana procura esclarecer que mesmo depois de ter “destruído” sua vida,
ela o conseguiria odiá-lo.
Essa decisão inspira Matisse a construir outra face que completa a
visão do sofrimento da imagem anterior. Enfatiza a dificuldade para
tomar a decisão, agora definitiva. Fato que desfigura o seu rosto, mais
magro, o nariz adunco e os lábios cerrados, destacando-se os olhos
perdidos e vidrados. Reflete um estado de espírito abatido e
mortificado pelas lágrimas e sofrimento até aqui revelados. Deveria
transpor esse período pleno de dúvidas, questionamentos e rancor para compreender (e
aceitar) o comportamento de seu amado. Mesmo diante de tudo o que ainda questiona, as
palavras são de perdão: Je cherches dans ce moment’s vous excuser
29
, ela o desculpa. O
perdão é um ato sublime e, em nome desse amor, ele supera o desejo de vingança:
Procuro neste momento desculpá-lo, e sei que uma freira raramente
inspira amor; (...) forçoso me é confessar que tenho razões para o odiar
mortalmente (...) reconheço que me preocupo ainda muito com as minhas
queixas e a sua infidelidade, mas lembre-se que a mim própria prometi um
estado mais tranqüilo, que espero atingir (...)
28
Tradução segundo Eugênio de Andrade: Prometo-lhe não o ficar a odiar.
29
Tradução segundo Eugênio de Andrade: Procuro neste momento desculpá-lo.
85
A litografia seguinte, anexo AD, apresenta Mariana envolta em sua
vestimenta de freira, configurando o que declara na última carta
sobre a decisão de retomar a sua vida religiosa, livre do
encantamento”. A expressão do rosto é mais serena, embora a
tristeza permaneça em seu olhar. Na carta, ela relembra a sua
trajetória no convento: Eu era nova, ingênua; haviam-me encerrado
neste convento desde pequena; não tinha visto senão gente
desagradável; nunca ouvira as belas coisas que constantemente me dizia (...)”. A expressão
Toujours distrailes for mille bagatelles...
30
enfatiza esse momento e remete à dificuldade
que Chamilly terá em suportar outras mulheres e suas futilidades:
Creio que não deve ser muito agradável ver aquelas a quem amamos
sempre distraídas com futilidades; e é preciso ter bem pouca delicadeza
para suportar, sem desespero, ouvi-las só falar de reuniões, atavios e
passeios. Continuamente se está exposto a novos ciúmes, pois elas são
obrigadas a certas ateões, certas condescendências, certas conversas.
Quem pode garantir que em tais ocasiões se não divirtam, e que suportem
os maridos somente com extremo desgosto, e sem qualquer aprovação?
Como elas devem desconfiar de um amante que lhes não peça contas
rigorosas de tudo isso, que acredite facilmente e sem inquietação no que
lhe dizem, e as veja, confiante e tranqüilo, sujeitas a todas essas
obrigações!
Na penúltima litografia, (anexo AE), Matisse desenha
Mariana com traços bem definidos, aparentando certa
tranqüilidade. O olhar incerto tenta desvendar o pensamento
preso ainda no passado, procurando antever o futuro que a
esperava, depois do rompimento definitivo. No texto, Mariana
revela seus anseios se Chamilly tivesse acenado com a
possibilidade de um reencontro:
Se me tivesse dado alguma prova de amor, depois de ter saído de
Portugal, teria feito todos os esforços para sair daqui; ter-me-ia disfarçado
para ir ter consigo. Ai, que teria sido de mim se não importasse comigo,
depois de estar em Fraa!? Que horror! Que loucura! Que vergonha o
grande para minha família, a quem quero tanto, depois que deixei de
amar!
30
Idem: Sempre distraídas com futilidades
86
Diante desses questionamentos, sente pena de si mesma: ... como vê, reconheço
que podia ser ainda mais digna de piedade do que sou”. Mas a decisão está tomada: “Mas
o quero sabê-lo! Já lhe pedi, e volto a suplicar-lho, para não me escrever mais”.
Completa a imagem a frase: Je croys que je ne vous souhaite
31
, reportando ao sofrimento,
os momentos de amor e ira, o arrependimento e, finalmente, o perdão.
Muito tempo vivi num abandono e numa idolatria que me horrorizam, e o
remorso perseguem-me com uma crueldade insuportável. Sinto uma
vergonha enorme dos crimes que me levou a cometer; não tenho, pobre
de mim!, a paixão que me impedia de conhecer-lhes a monstruosidade.
Quando deixará o meu coração de ser dilacerado? Quando é que me
livrarei deste cruel perturbação? Apesar de tudo, creio que não lhe desejo
nenhum mal, e talvez me não importasse que fosse feliz.
A última litografia que ilustra a quinta carta, anexo AF, representa essa mulher
decidida e pura de coração. Na leitura de Matisse é o momento de desenhar um rosto mais
cheio, expressando tranqüilidade. Essa Mariana de rosto bem delineado possui olhos mais
confiantes e lábios que expressam firmeza pela decisão tomada. A frase Je prendai contre
moi...
32
corrobora a confiança e o reconhecimento do erro cometido, mas que resultou na
força de uma decisão: “prometi um estado mais tranilo, que espero atingir”.
Reconheço que me preocupo ainda muito com as minha queixas e a sua
infidelidade, mas lembre-se que a mim própria prometi um estado mais
tranqüilo, que espero atingir, ou eno tomarei uma resolução extrema,
que virá a conhecer sem grande desgosto. De si nada mais quero. Sou
uma doida, passo o tempo a dizer a mesma coisa. É preciso dei-lo e não
pensar mais em si. Creio mesmo que não voltarei a escrever-lhe. Que
obrigação tenho eu de lhe dar conta de todos os meus sentimentos?
De acordo com Iser (1999) o não-dito é uma forma conduzir o leitor para dentro do
texto e imaginar o significado de algo que já foi dito, mas que foi sucedido por um lugar
vazio, o qual margem para a inferência de uma leitura por detrás das palavras. Matisse,
leitor das cartas, criou rostos e vinhetas que se identificaram com os aspectos de uma
experiência vivida por uma mulher apaixonada, numa perfeita interação entre texto e leitor.
A arte, segundo Iser (1999), se apresenta com graus de complexidade, dificultando a
interpretação e representação do leitor. Este, por sua vez, sente-se impulsionado a
31
Tradução segundo Eugênio de Andrade: creio que não lhe desejo nenhum mal
32
Idem: a mim própria
87
preencher os vazios, agindo sobre eles e trazendo o seu repertório. A leitura das Cartas
Portuguesas e das litografias de Henri Matisse constituiu-se nessa experiência, as palavras
refletiram-se nas imagens e as imagens representaram as palavras num ato de interação.
88
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As Cartas Portuguesas de Mariana Alcoforado, publicadas em 1669, em Paris, sob
o título Lettres Portugaises Traduites en Français, representam o Barroco português no
estilo e no modo de ser graças à dualidade do ser humano que nelas se corporifica. Num
sentido amplo, concebem uma tendência constante do espírito humano e da cultura presente
em todas as manifestações da civilização ocidental.
A gênese do Barroco remonta a meados do século XVI, quando ocorreu a crise
espiritual e moral desencadeada pela decomposição dos valores da Renascea e o
surgimento de uma nova visão da existência. A consciência do “desconcerto do mundo”, da
instabilidade das coisas surgidas no Maneirismo concretizou-se, no ressurgimento do
teocentrismo medieval. A pressão de forças contrárias, como a dicotomia carne/espírito,
traduziu-se na consciência e no espírito do homem seiscentista através de uma linguagem
culta, repleta de antíteses, paradoxos, oxímoros, espécie de fusão que objetivava superar os
extremos: carnalizar o espírito e espiritualizar a carne representando o mais humano dos
sentidos.
As Cartas representam o apelo ao emocional, uma vez que revelam o sofrimento
dramático de uma freira, numa linguagem preciosa tipicamente barroca. Considerando que
o Barroco é um femeno artístico e literário vinculado à Contra-Reforma, o conteúdo das
Cartas representa a construção do espírito humano e uma reação ao espírito renascentista
imbuído de racionalismo.
Da primeira à quinta carta, na ordem em que se encontram, foi observada uma
gradação, cujo ponto culminante se fixa na terceira, pela tensão dolorosa entre o sentimento
e a razão. Primeiramente, o leitor acompanha a trajetória da forte emoção de um amor
desmedido de uma freira por um oficial francês que servia em Lisboa. Teve uma curta
duração e foi penalizado pela ausência de um dos amantes. A esperança de um reencontro é
vaga e quase impossível, caminhando para a separação definitiva, num apelo emocional e
dramático do narrador. Pode-se afirmar que a narrativa das cinco cartas ficou marcada pelo
sofrimento de uma paixão incomensurável, levando a protagonista à perda do racional,
recuperando-se nas duas últimas cartas os seus brios feridos e a força para decidir uma
volta à espiritualização.
89
Escritas numa linguagem exaltada, bem ao gosto do Barroco, os conflitos interiores
debateram-se entre o ódio e o amor, entre o espiritual e o carnal. As palavras retrataram
fielmente a alma de uma mulher que elegeu o amor como única razão de sua vida. Conclui-
se que Mariana escreveu as Cartas, a princípio, para melhor compreender o sentimento
novo e estranho que tumultuava a sua vida pacata e tranqüila de religiosa e depois,
gradativamente, para libertar-se.
Ficaram marcadas na leitura as inúmeras declarações de amor encontradas nas
cartas, as lágrimas derramadas, a mortificação pelo pecado cometido e o desejo imenso de
um reencontro com o amado. Todo esse sofrimento acaba, porém, provocando na
protagonista uma confusão de identidade: Não sei o que sou, nem o que faço, nem o que
quero; estou despedaçada por mil sentimentos contrários”. Em vários trechos das Cartas,
essas súplicas amorosas remetem às donzelas das cantigas trovadorescas que, também por
abandono do amigo, declaram sua coita (Ay, eu coitada), a dor sentida pelo desprezo e pela
separação do amigo, muitas vezes, forçada. Além o desejo de morrer de vergonha e de
amor: “Morro de vergonha!”; “Ordena-me que morra por amor de ti!”.
Na leitura das imagens, a partir das Cartas Portuguesas, Henri Matisse criou as
litografias baseando-se solidamente no desgosto de Mariana acima relatado. Ao preparar a
edição de 2004, Matisse criou diferentes retratos da freira, cujo foco principal foi o
sofrimento, utilizando a técnica da litografia e lápis de diferentes cores. O artista retirou
excertos das cartas, considerados pontos de entrada para a leitura, relembrando a técnica
dos monges ilustradores medievais, ao criar em cada início de citação uma letra gótica, que
se assemelha às iluminuras.
Completam os retratos as vinhetas de flores, folhas, frutos (maçã, romã, cravo ou
flor de romã, rio ou flor da borragem) que simbolizam a sexualidade, a fertilidade, ou a
voluptuosidade do amor pecaminoso de Mariana, condenado pela sua condição de freira.
Os frutos e flores que ornamentam as vinhetas são característicos do Alentejo, região de
rica flora e contribuíram na interpretação do simbolismo que cerca o texto literário e o texto
picrico. Matisse procurou realizar, a partir de sua leitura das Cartas, um antigo sonho de
fazer um livro com iluminuras medievais, objetivando renovar a tradição dos manuscritos
iluminados.
90
De acordo com Ribeiro (2004) Matisse expressou seu desejo a Louis Aragon,
explicando que “Agora sei o que é um J, ele confessou-me orgulhosamente; e um A, é
difícil um A, um A...bem ver-se-á”, acrescentando ainda que passava as noites a desenhar
as suas letras, as suas folhas, as suas iluminuras.(p.5). Nas litografias procurou retratar os
desejos de corpo e alma de Mariana, configurando a profundidade da leitura e a perfeita
criatividade das ilustrações.
Quanto à experiência de leitura, os pressupostos de Iser (1999) contribuíram na
tarefa de combinar os elementos ditos e os não ditos no texto, considerando que a ausência
significa presença. Os espaços vazios do texto constitram-se a possibilidade real de
interpretação e de constituição do significado tanto do conteúdo das Cartas quanto da
leitura das litografias e das vinhetas de Matisse. Confirmou-se o que Iser (1996) ressalta
que não há uma única maneira de interpretar corretamente uma obra e esgotar o seu
potencial semântico, uma vez que a obra não oferece uma mensagem dela separável; o
sentido o é redutível a um significado referencial e o significado não se deixa reduzir a
uma coisa”. (p.29)
A noção de expectativa na recepção de uma mensagem foi absolutamente capital,
concretizando-se na ligação com o contexto. Ambos condicionaram a interpretação da
mensagem e completaram as noções de instruções de leitura.
Na leitura das imagens, a noção de que uma mensagem visual deve ser
compreendida entre expressão e comunicação, de acordo com Joly (1996), conduziu a
leitura analítica em função da mensagem, de seu horizonte de expectativa e dos diversos
tipos de contexto encontrados nas ilustrações selecionadas.
Concluiu-se que o texto literário não é um objeto fechado às informações que o
leitor busca. Ele é um espaço, uma possibilidade de comunicação e de construção dessa
busca do leitor que será mais ou menos construída, dependendo da eficiência do leitor na
realização de seu trabalho de leitura. Os textos em questão, as Cartas e as ilustrações de
Matisse forneceram índices que puderam ser desenvolvidos, mas não apresentaram
nenhuma resposta pronta. O sentido foi atribuído depois de inúmeras leituras e reflexões,
seguidas de intensas pesquisas.
Resta acrescentar que a viagem a Portugal realizada em setembro de 2007 e a visita
à Beja foram primordiais para o desenvolvimento desta dissertação. A experiência obtida
91
na viagem definiu o tema e o gosto pela pesquisa, após a visita à cidade de Beja e ao
Convento de Nossa Senhora da Conceição, hoje Museu Regional.
A sensação de “estar ao pé” da janela de Mértola, local onde Mariana viu pela
primeira vez o Marquês de Chamilly, de visitar a igreja em que ela foi batizada, caminhar
pelo corredor, onde possivelmente esteja enterrada e certificar-se de toda a riqueza do
convento, foram experiências que revelaram um conhecimento que não se encontra nos
livros.
92
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96
ANEXOS
97
ANEXO A
Primeira carta
33
Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua imprevidência. Desgraçado! Foste
enganado e enganaste-me com falsas esperanças. Uma paixão de que esperaste tanto prazer
o é agora mais que um desespero mortal, comparável à crueldade da ausência que o
causa. Há-de então este afastamento, para o qual a minha dor, por mais subtil que seja, não
encontrou nome bastante lamentável, privar-me para sempre de me debruçar nuns olhos
onde vi tanto amor, que despertavam em mim emoções que me enchem de alegria, que
bastavam para meu contentamento e valiam, enfim, tudo quanto há? Ai! Os meus estão
privados da única luz que os alumiava, grimas lhes restam, e chorar é o único uso que
faço deles, desde que soube que havias decidido a um afastamento tão insuportável que me
matará em pouco tempo.
Parece-me, no entanto, que até ao sofrimento, de que és a única causa, vou tendo
afeição. Mal te vi a minha vida foi tua, e chego a ter prazer em sacrificar-ta. Mil vezes ao
dia os meus suspiros vão ao teu encontro, procuram-te por toda a parte e, em troca de tanto
desassossego, só me trazem sinais da minha fortuna, que cruelmente não me consente
qualquer engano e me diz a todo momento: Cessa, pobre Mariana, cessa de te mortificar em
o, e de procurar um amante que não voltarás a ver, que atravessou mares para te fugir,
que está em França rodeado de prazeres, que não pensa um instante nas tuas mágoas, que
dispensa todo este arrebatamento e nem sequer sabe agradecer-to. Mas o, não me resolvo
a pensar tão mal de ti e estou por de mais empenhada em te justificar. Nem quero imaginar
que me esqueceste. Não sou já bem desgraçada sem o tormento de falsas suspeitas? E
porque hei-de eu procurar esquecer todo o desvelo com que me manifestavas o teu amor?
Tão deslumbrada fiquei com os teus cuidados, que bem ingrata seria se não te quisesse com
desvario igual ao que me levava a minha paixão, quando me davas provas da tua.
Como é possível que a lembrança de momentos tão belos se tenha tornado tão
cruel? E que, contra a natureza, sirva agora para me torturar o coração? Ai! A tua ultima
carta reduziu-o a um estado bem singular: bateu de tal forma que parecia querer fugir-me
33
ALCOFORADO, Mariana Sóror. Cartas Portuguesas. Trad. de Eugênio de Andrade. Lisboa: Assírio &
Alvim, 1998.
98
para te ir procurar. Fiquei tão prostrada de comoção que durante três horas todos os meus
sentidos me abandonaram; recusava uma vida que tenho de perder por ti, já que para ti, já
que para ti não posso guardar. Enfim, voltei, contra vontade, a ver a luz: agradava-me sentir
que morreria de amor, e, além do mais, era um alívio não voltar a ser posta em frente do
meu coração despedaçado pela dor da tua ausência.
Depois deste acidente tenho padecido muito, mas como poderei deixar de sofrer
enquanto não te vir? Suporto contudo o meu mal sem me queixar, porque me vem de ti. É
então isto que me dás em troca de tanto amor? Mas o importa, estou resolvida a adorar-te
toda vida e a não ver seja quem for, e asseguro-te que seria melhor para ti não amares mais
ninguém. Poderias contentar-te com uma paixão menos ardente que a minha? Talvez
encontrasses mais beleza (houve um tempo, no entanto, em que me dizias que eu era muito
bonita), mas não encontrarias nunca tanto amor, e tudo o mais o é nada.
Não enchas as tuas cartas de coisa inúteis, nem me voltes a pedir que me lembre de
ti. Eu não te posso esquecer, e não esqueço também a esperança que me deste de vires
passar algum tempo comigo. Ai!, porque o queres passar a vida inteira ao de mim? Se
me fosse possível sair deste malfadado convento, não esperaria em Portugal pelo
cumprimento da tua promessa: iria eu, sem guardar nenhuma conveniência, procurar-te, e
seguir-te, e amar-te em toda parte. Não me atrevo a acreditar que isso possa acontecer; tal
esperança por certo me daria algum consolo, mas não quero alimen-la, pois à minha
dor me devo entregar. Porém, quando meu irmão me permitiu que te escrevesse, confesso
que surpreendi em mim num alvoroço de alegria, que suspendeu por momentos o desespero
em que vivo. Suplico-te que me digas porque teimaste em me desvairar assim, sabendo,
como sabias, que terminavas por me abandonar? Porque te empenhaste tanto em me
desgraçar? Porque não me deixaste em sossego no meu convento? Em que é que te ofendi?
Mas perdoa-me; não te culpo de nada. Não me encontro em estado de pensar em vingança,
e acuso somente o rigor do meu destino. Ao separar-nos, julgo que nos fez o mais temível
dos males, embora não possa afastar o meu coração do teu; o amor, bem mais forte, uniu-os
para toda a vida. E tu, se tens algum interesse por mim, escreve-me amiúde. Bem mereço o
cuidado de me falares do teu coração e da tua vida; e sobretudo vem ver-me.
99
Adeus. Não posso separar-me deste papel que irá ter às tuas mãos. Quem me dera a
mesma sorte! Ai, que loucura a minha! Sei bem que isso não é possível! Adeus; não posso
mais. Adeus. Ama-me sempre, e faz-me sofrer mais ainda.
100
ANEXO B
Segunda carta
Creio que faço ao meu coração a maior das afrontas ao procurar dar-te conta, por
escrito, dos meus sentimentos. Seria tão feliz se os pudesse avaliar pela violência dos teus!
Mas o posso confiar em ti, nem posso deixar de te dizer, embora sem a força com que o
sinto, que não devias maltratar-me assim, com um esquecimento que me desvaira e chega a
ser uma vergonha para ti. É justo que suportes, ao menos, as queixas de desgraças que previ
ao ver-te decidido a deixar-me. Reconheço que me enganei, ao pensar que procederias com
mais lealdade do que é costume: o excesso do meu amor parece que devia pôr-me acima de
quaisquer suspeitas e merecer uma fidelidade que não é vulgar encontrar-se. Mas a tua
disposão para me atraiçoar triunfou, afinal, sobre a justiça que devias a tudo quanto fiz
por ti. Não deixaria de ser infeliz se soubesse que ao meu amor ganharas amor, pois tudo
quisera dever unicamente à tua inclinação por mim; mas estou longe de tal estado que já
o seis meses sem receber uma única carta tua. à cegueira com que me abandonei a ti
posso atribuir tanta desgraça: o tinha obrigação de prever que as minhas alegrias
acabariam antes do meu amor? Como poderia esperar que ficasses para sempre em
Portugal, renunciasses à tua carreira e ao teu país para não pensares senão em mim?
Nenhum alívio há para o meu mal, e se me lembro das minhas alegrias maior é ainda o meu
desespero. Terá sido então inútil todo o meu desejo, e não voltarei a ver-te no meu quarto
com o ardor e arrebatamento que me mostravas? Ai, que ilusão minha! Demasiado sei eu
que todas as emoções, que em mim se apoderavam da cabeça e do coração, eram em ti
despertadas unicamente por certos prazeres e, como eles, depressa se extinguiam.
Precisava, nesses deliciosos instantes, chamar a razão em meu auxílio para moderar o
funesto excesso da minha felicidade e me levar a pressentir tudo quanto sofro
presentemente. Mas de tal modo me entregava a ti, que era impossível pensar no que
pudesse vir envenenar a minha alegria e impedir de me abandonar inteiramente às provas
ardentes da tua paixão. Ao teu lado era demasiado feliz para por imaginar que um dia te
encontrarias longe de mim. E, contudo, lembro-me de te haver dito algumas vezes que
farias de mim uma desgraçada; mas tais temores depressa se desvaneciam, e com alegria
tos sacrificava para me entregar ao encanto, e à falsidade!, dos teus juramentos. Sei bem
101
qual é o remédio para o meu mal, e depressa me livraria dele se deixasse de te amar. Ai,
mas que remédio... Não; prefiro sofrer ainda mais do que esquecer-te. E depende isso de
mim? Não posso censurar-me ter desejado um instante deixar de te querer. És tu mais
digno de piedade do que eu, pois vale mais sofrer como sofro do que ter os ceis prazeres
que te hão-de dar em França as tuas amantes. Em nada invejo a tua indiferença: fazes-me
pena. Desafio-te a que me esqueças completamente. Orgulho-me de te haver posto em
estado de já não teres, sem mim, senão prazeres imperfeitos; e sou mais feliz que tu, porque
tenho mais em que me ocupar.
Nomearam-me há pouco tempo porteira deste convento. Todos os que falam comigo
crêem que estou doida, o sei que lhes respondo, e é preciso que as freiras sejam tão
insensatas como eu para me julgarem capaz seja do que for. Ah, como eu invejo a sorte do
Manuel e do Francisco
34
! Porque não estou eu sempre ao de ti, como eles? Teria ido
contigo e servir-te-ia certamente com mais dedicação.
Nada desejo no mundo seo ver-te. Lembra-te ao menos de mim. Bastar-me-ia que
me lembrasses, mas eu nem disso tenho certeza. Quando te via todos os dias não cingia as
minhas esperanças à tua lembrança, mas tens-me ensinado a submeter-me a tudo quanto te
apetece. Apesar disso, não estou arrependida de te haver adorado. Ainda bem que me
seduziste. A crueldade da tua ausência, talvez eterna, em nada diminui a exaltação do meu
amor. Quero que toda gente o saiba, não faço disso nenhum segredo; estou encantada por
ter feito tudo quanto fiz por ti, contra toda a espécie de conveniências. E já que comecei, a
minha honra e a minha religião hão-de consistir só em amar-te perdidamente por toda vida.
Não te digo estas coisas para te obrigar a escrever-me. Ah, nada faças contrafeito!
De ti quero o que vier do coração, e recuso todas as provas de amor que tu próprio te
possas dispensar. Com prazer te desculparei, se te for agradável não te dares ao trabalho de
me escrever; sinto uma profunda disposão para te perdoar seja o que for.
Um oficial francês, caridosamente, falou-me de ti esta manhã durante mais de três
horas. Disse-me que em França fora feita paz. Se assim é, o poderias vir ver-me e levar-
me para França contigo? Mas não o mereço. Faz o que quiseres: o meu amor já não
depende da maneira como tu me tratares.
34
Dois criaditos portugueses (nota da edição original).
102
Desde que partiste nunca mais tive saúde, e todo o meu prazer consiste em repetir o
teu nome mil vezes ao dia. Algumas freiras, que conhecem o estado deplorável a que me
reduziste, falam-me de ti com freqüência. Saio o menos possível deste quarto onde vieste
tanta vez, e passo o tempo a olhar o teu retrato, que amo mil vezes mais que `a minha vida.
Sinto prazer em olhá-lo, mas também me faz sofrer, sobretudo quando penso que talvez
nunca mais te veja. Por que fatalidade não hei-de voltar a ver-te? Ter-me-ás deixado para
sempre? Estou desesperada, atua pobre Mariana já não pode mais: desfalece ao terminar
esta carta. Adeus, adeus, tem pena de mim!
103
ANEXO C
Terceira carta
Que há-de ser de mim? Que queres tu que eu faça? Estou tão longe de tudo quanto
imaginei! Esperava que me escrevesses de toda a parte por onde passares e que as tuas
cartas fossem longas; que alimentasses a minha paixão com a esperança de voltar a ver-te;
que uma inteira confiança na tua fidelidade me desses algum sossego, e ficasse, apesar de
tudo, num estado suportável, sem excessivo sofrimento. Tinha formado uns vagos
projectos de fazer todos os esforços que pudesse para me curar, se tivesse a certeza de me
haveres esquecido por completo. A tua ausência, alguns impulsos de devoção, o receio de
arruinar inteiramente o que me resta de saúde com tanta vigília e tanta aflição, as poucas
possibilidades do teu regresso, a frieza dos teus sentimentos e da tua despedida, atua partida
justificada com falsos pretextos, e tantas outras razões, tão boas como inúteis, prometiam
ser-me ajuda suficiente, se viesse a precisar dela. Não sendo, afinal, senão eu própria o meu
inimigo, não podia suspeitar de toda a minha fraqueza, nem prever todo o sofrimento de
agora.
Ai, como sou digna de piedade por não partilhar contigo as minhas mágoas, e ser
minha a desventura! Esta idéia mata-me, e morro de terror ao pensar que nunca te
houvesses entregado completamente aos nossos prazeres. Sim, reconheço agora a falsidade
do teu arrebatamento. Enganaste-me sempre que falaste do encantamento que sentias
quando estavas a sós comigo. Unicamente à minha insistência devo os teus cuidados e a tua
ternura. Intentaste desvairar-me a sangue-frio; nunca olhaste a minha paixão senão como
um troféu, o teu coração não foi verdadeiramente atingido por ela. Serás tão infeliz, e terás
tão pouca delicadeza, que só para isso te servisse o meu ardor? E como é possível que, com
tanto amor, não te houvesses feito inteiramente feliz? Tenha pena, por amor de ti apenas,
dos infinitos prazeres que perdeste. Será possível que não te tenham interessado? Ah, se os
conhecesses, perceberias, sem duvida, que são mais delicados do que o de me haveres
seduzido, e terias compreendido que é bem mais comovente, e bem melhor, amar
violentamente que ser amado.
Não sei o que sou, nem o que faço, nem o que quero; estou despedaçada por mil
sentimentos contrários. Pode imaginar-se estado mais deplovel? Amo-te de tal maneira
104
que nem ouso sequer desejar que venhas a ser perturbado por igual arrebatamento. Matar-
me-ia ou, se o não fizesse, morreria desesperada, se viesse a ter a certeza que nunca mais
tinhas descanso, que tudo te era odioso, e a tua vida não era mais que perturbação,
desespero e pranto. Se não consigo já suportar o meu próprio mal, como poderia ainda com
o teu, a que sou mil vezes mais sensível? Contudo, não me resolvo a desejar que não penses
em mim; e confesso ter ciúmes terríveis de tudo o que em França te gosto e alegria, e
impressiona o teu coração.
Não sei porque te escrevo: terás, quando muito, piedade de mim, e eu não quero a
tua piedade. Contra mim própria me indigno quando penso em tudo o que te sacrifiquei:
perdi a reputação, expus-me à cólera de minha família, à severidade das leis deste país para
com as freiras, e à tua ingratidão, que me parece o maior de todos os males. Apesar disso
creio que os meus remorsos não o verdadeiros; do fundo do meu coração queria ter
corrido ainda perigo maiores pelo teu amor, e sinto um prazer fatal por ter arriscado a vida
e a honra a ti. Não deveria oferecer-te o que tenho de mais precioso? E não devo sentir-me
satisfeita por ter feito o que fiz? O que não me satisfaz, pelo menos assim me parece, é o
sofrimento e o desvario deste amor, embora não possa, pobre de mim! Iludir-me a ponto de
estar contente contigo. Vivo - que infelicidade!- e faço tanto por conservar a vida como por
perdê-la! Morro de vergonha! Então o meu desespero está nas minhas cartas? Se te
amasse tanto como já mil vezes te disse, não teria morrido muito tempo? Enganei-te, és
tu que deves queixar-te de mim. Ah, porque não te queixas? Vi-te partir, não tenho
esperança de te ver regressar e no entanto respiro. Atraiçoei-te; peço-te perdão. Mas não,
o me perdoes! Trata-me com dureza. Que a vioncia dos meus sentimentos te o baste!
mais exigente! Ordena-me que morra por amor de ti! Suplico-te que me ajudes a vencer
a fraqueza própria de uma mulher, e que toda a minha indecisão acabe em puro desespero.
Um fim trágico obrigar-te-ia, sem duvida, a pensar mais em mim; talvez fosses sensível a
uma morte extraordinária, e a minha memória seria amada. Não é isso preferível ao estado
que me reduziste?
Adeus. Era melhor nunca te ter visto. Ah, sinto até ao fundo a mentira deste
pensamento e reconheço, no momento em que escrevo, que prefiro ser desgraçada amando-
te do que nunca te haver conhecido. Aceito, assim, sem uma queixa, a minha má fortuna,
pois não a quiseste tornar melhor. Adeus: promete-me que terás saudades minhas se vier a
105
morrer de tristeza; e oxalá o desvario desta paixão consiga afastar-te de tudo. Tal
consolação me bastará, e se é forçoso abandonar-te para sempre, queria ao menos o te
deixar a nenhuma outra. E serias tão cruel que te servisses do meu desespero para te
tornares mais sedutor, e te gabares de ter despertado a maior paixão do mundo? Adeus,
mais uma vez. Escrevo-te cartas toa longas! Não tenho cuidado contigo! Peço-te que me
perdoes, e espero que terás ainda alguma indulgência com uma pobre insensata, que o não
era, como sabes, antes de te amar. Adeus; parece-me que te falo de mais do estado
insuportável em que me encontro; mas agradeço-te, com toda a minha alma, o antes de te
conhecer. Adeus. O meu amor aumenta a cada momento. Ah, quanto me fica ainda por
dizer...
106
ANEXO D
Quarta carta
O teu tenente acaba de me contar que um temporal te obrigou arribar ao reino do
Algarve. Receio que tenhas sofrido muito no mar, a este temor de tal modo se apoderou de
mim, que nem tenho pensado nas minhas mágoas. Estás convencido de que o teu tenente se
preocupa mais com o que te acontece do que eu? Porque está então mais bem informado e,
enfim, porque não me tens escrito?
Bem desgraçada sou, se depois da tua partida ainda não tiveste ocasião de o fazer; e
mais ainda, se tiveste e não me escreveste. Não sei de maior ingratidão e injusta; mas
ficaria aflitíssima se, por causa disso, te viesse a acontecer qualquer desgraça, pois prefiro
o ser vingada a que sejas punido. Resisto a tudo o que parece mostrar-me que me
amas, e com mais facilidade me entrego cegamente à minha paixão do que razões que tenho
para lamentar o teu abandono.
Quanta inquietação me terias poupado se, quando nos conhecemos, o teu
procedimento fosse tão descuidado como o é agora! Mas quem, como eu, se não deixaria
enganar por tantos cuidados, e a quem não pareceriam verdadeiros? Que difícil resolvermo-
nos a duvidar da lealdade de quem amamos! Sei muito bem que te serves de qualquer
desculpa, mas, mesmo sem pensares em dar-ma, o meu amor é tão fiel que consente em
culpar-te para ser maior o prazer em te justificar.
Atormentaste-me com atua insistência, transtornaste-me com o teu ardor,
encantaste-me com a tua delicadeza, confiei nas tuas juras, seduziu-me a minha inclinação
violenta, e o que se seguiu e tão agradável e feliz começo o são mais que suspiros,
grimas e uma tristíssima morte que julgo sem remédio. É certo que tive, ao amar-te,
alegrias surpreendentes, mas custam-me agora os maiores tormentos: o extremas todas as
emoções que me causas. Se tivesse resistido com afinco ao teu amor, se te houvesse dado
motivos de desgosto ou de ciúme para mais te prender, se tivesses notado em mim qualquer
intencional reserva, se enfim, tivesses tentado opor(embora, sem dúvida, fossem inúteis
esforços) a razão à natural inclinação que tenho por ti, e que cedo me fizeste notar, poderias
então puni-me severamente e servires-te do teu domínio sobre mim; porém antes de dizeres
107
que me querias já eu te julgava digno de amor, manifestaste-me a tua paixão, fiquei
deslumbrada, e, abandonei-me a ti perdidamente.
Tu não estavas cego como eu, porque me deixaste então chegar ao estado a que
cheguei? Que querias dum desvario que o podia senão importunar-te? Se sabias que o
ficavas em Portugal, porque me escolheste a mim para tornares tão desgraçada? Terias,
certamente, encontrado neste país uma mulher mais bonita com quem tivesses os mesmos
prazeres, pois os de natureza grosseira procuravas; que te amasse fielmente enquanto
aqui estivesses; que se resignasse, com o tempo, à tua ausência, e a quem poderias
abandonar sem perfídia e crueldade. O teu procedimento é mais de um tirano empenhado
em perseguir, que de um amante preocupado apenas em agradar. Ai!, porque me tratas tão
mal um coração que é teu?
Bem sei que é tão fácil para ti desprenderes-te de mim como para mim o foi
prender-me a ti. Eu teria resistido a razões bem mais poderosas do que as que te levaram a
partir, sem precisar de invocar o meu amor por ti, nem me passar pela cabeça que fazia
fosse o que fosse de extraordinário: todas elas pareceriam insignificantes e nunca nenhuma
poderia arrancar-me de ao de ti. Mas tu quiseste aproveitar os pretextos que encontraste
para regressar a França. Um navio partia porque não o deixaste partir? Tua família havia-
te escrito não sabias quanto a minha me tem perseguido? Razões de honra levavam-te a
abandonar-me fiz eu algum caso da minha? Tinha obrigação de servir o teu rei mas, se é
verdade o que dizem dele, não necessitava dos teus serviços e ter-te-ia dispensado.
Que felicidade a minha, se tivéssemos passado a vida juntos! Mas, se era forçoso
que uma cruel ausência nos separasse, creio que devo estar satisfeita por não ter sido infiel,
e por nada do mundo quereria ter cometido acção tão indigna. Como pudeste, conhecendo o
meu coração e a minha ternura até o fundo, decidir-te a deixar-me para sempre, e a expor-
me ao tormento de que só devas a lembrar-te de mim quando me sacrificas a nova paixão?
Bem sei que te amo perdidamente; no entanto, não lamento a violência dos impulsos
do meu coração; habituei-me à sua tirania, e já poderia viver sem este prazer que vou
descobrindo: amar-te entre tanta mágoa. O que me desgosta e atormenta é o ódio e a
aversão que ganhei de tudo. A família, os amigos e este convento são-me insuportáveis.
Tudo o que seja obrigada a ver, tudo o que inadiavelmente tenha de fazer, me é odioso. Tão
ciosa sou da minha paixão que julgo dizerem-te respeito as minhas acções e todas as
108
minhas obrigações. Sim, tenho escrúpulo de não serem para ti todos os momentos da minha
vida. Ai!, que seria de mim sem tanto ódio e tanto amor a encher-me o coração?
Conseguiria eu sobreviver ao que obsessivamente me preocupa, para levar uma existência
tranqüila e sem cuidados? Tal vazio e tal insensibilidade não me convêm.
Toda gente se apercebeu da completa mudança do meu carácter, dos meus modos,
do meu ser. Minha mãe falou-me nisto, primeiro com azedume, depois com brandura. Nem
sei que lhe respondi; parece-me que lhe confessei tudo. Até as freiras mais austeras têm dó
do estado em que me encontro, que lhes merece alguma simpatia, e até cuidado. Todos se
comovem com o meu amor, tu ficas profundamente indiferente, escrevendo-me apenas
frias cartas, cheias de repetições, metade do papel em branco, dando grosseiramente a
entender que estavas morto por acabá-las.
Dona Brites insistiu, nestes últimos dias, para que saísse do meu quarto; julgando
distrair-me, levou-me a passear até o balcão de onde se avista Mértola. Segui-a, mas fui
logo ferida por tão atroz lembrança que passei o resto do dia lavada em lágrimas. Trouxe-
me outra vez para o meu quarto, atirei-me para cima da cama, e ali fiquei a reflectir na
pouca esperança que tenho de vir um dia a curar-me. Tudo o que fazem para me confortar
agrava o meu sofrimento, e nos próprios remédios encontro novas razões de aflição. Muitas
vezes dali te vi passar com um ar que me deslumbrava, estava naquele balcão no dia fatal
em que senti os primeiros sinais da minha desgraçada paixão. Pareceu-me que pretendias
agradar-me, embora o me conhecesses; convenci-me de que me havias distinguido entre
todas aquelas que estavam comigo; quando paravas imaginava que o fazias
intencionalmente para que melhor te visse, e admirasse o garbo e a destreza com que
dominavas o cavalo; dava comigo assustada, quando o levavas por sítios perigosos; enfim,
interessava-me secretamente por todas as tuas acções, sentia já que me não eras de modo
nenhum indiferente, e reclamava para mim tudo quanto fazias. Conheces de sobra o que se
seguiu a tal começo; e, embora não tenha obrigação de te poupar, não devo falar-te nisso,
com receio de te tornar ainda mais culpado, se possível, do que já és, e ter de me acusar por
tantos e inúteis esforços que te obrigassem a ser-me fiel. Nunca o serás! Se o conseguir
vencer a tua ingratidão à força de amor e renuncia, como haveria de consegui-lo com cartas
e queixumes? Estou mais que convencida do meu infortúnio; a injustiça do teu
procedimento não me deixa a menor dúvida, e tudo devo recear, já que me abandonaste.
109
Serei eu a sentir o teu encanto? Nenhuns outros olhos darão por ele? Creio que me seria
desagradável se, de algum modo, os sentimentos de outras justificassem os meus, e gostaria
que todas as mulheres de França te achassem encantador, mas que nenhuma te amasse e
nenhuma te agradasse. Este desejo é inconcebível e ridículo; sei por experiência que és
incapaz de fidelidade e não precisas de ajuda para me esqueceres, nem a isso seres levado
por nova paixão. Desejaria eu que tivesses um motivo razoável? Seria mais desgraçada, é
certo, mas não serias tão culpado.
Vejo que ficaras em França sem grande prazer, e com inteira liberdade. Será a
fadiga de tão longa viagem, qualquer pequena conveniência, ou o receio de não
corresponderes à minha exaltação que aí te retêm? De mim, nada receies! Basta-me-ia ver-
te de vez em quando e saber apenas que estávamos no mesmo lugar. E talvez me iluda; sei
se não serás mais sensível à crueldade e à frieza de outra mulher do que foste à minha
generosidade. Será possível que gostes de quem te faça mal? Mas antes de te enleares numa
grande paixão, reflecte bem no horror do meu sofrimento, na incerteza dos meus planos, na
contradição dos meus impulsos, na extravagância das minhas cartas, na minha confiança, e
aflição, e desejos, e ciúmes. Ah, serás um desgraçado! Suplico-te que tires ao menos
proveito do estado em que me encontro, e que assim o meu sofrimento não seja inútil.
Haverá cinco ou seis meses, fizeste-me uma confincia bem desagradável:
confessaste-me, com a maior franqueza, teres amado uma mulher na tua terra; se é ela que
te impede de regressar, manda-mo dizer sem rodeios, para que eu deixe de me consumir.
Um resto de esperança tem-me ainda de pé, mas se a não puder sustentar, prefiro perdê-la
por completo e perder-me também. Envia-me o retrato dela e alguma de suas cartas, e
conta-me tudo quanto te diz. Talvez encontre nisso razões para me consolar, ou afligir
ainda mais. Neste estado é que não posso permanecer, e qualquer mudança me será
favorável. Gostaria também de ter o retrato do teu irmão e da tua cunhada. Tudo o que te
diz respeito me enternece, a minha dedicação ao que te pertence é completa; o que a
mim se refere não me preocupa. Às vezes parece-me que até me sujeitaria a servir aquela
que amas. O tormento que me causas e o teu desprezo abalaram-me de tal modo, que nem
sequer ouso pensar que pudesse vir a ter ciúmes de ti, com receio de te desagradar; e creio
ter feito o pior que podia fazer ao atrever-me a censurar-te. Também estou convencida de
110
que o devia impor-te desvairadamente como faço, por vezes, um sentimento que não
aprovas.
muito tempo que um oficial espera esta carta. Tencionava escrevê-la de forma
a não te aborrecer, mas é tão incoerente que será melhor acabá-la. Ai, não está em mim
poder fazê-lo! Quando te escrevo é como se falasse contigo e estivesses, de algum modo,
mais perto de mim. A próxima não será tão longa nem tão importuna; podes abri-la e lê-la,
confiado na minha promessa. Na verdade o devo falar-te de uma paixão que te desagrada,
e não voltarei a falar nela.
Vai fazer um ano, faltam alguns dias, que me entreguei inteiramente a ti. A tua
paixão parecia-me tão sincera e ardente, que não poderia imaginar sequer que a minha te
viesse a aborrecer, a ponto de te obrigar a fazer quinhentas léguas, e a expores-te a
naufrágios, para te afastares de mim. Não esperava ser tratada assim por ninguém: devias
lembrar-te do teu pudor, da minha confusão, da minha vergonha, mas tu não te lembras de
nada que possa levar-te contra vontade a amar-me.
O oficial que há-de levar esta carta previne-me, pela quarta vez, que quer partir.
Como ele tem pressa! Abandona, com certeza, alguma desgraçada neste país. Adeus. Custa-
me mais acabar esta carta do que te custou a ti deixar-me, talvez para sempre. Adeus. Não
me atrevo sequer a chamar-te meu amor, nem a abandonar-me completamente a tudo o que
sinto. Quero-te mil vezes mais que à minha vida e mil vezes mais do que imagino. Ah,
como eu te amo, e como tu és cruel! Nunca me escreves; não consigo deixar de te dizer
ainda isto. Recomeço, e o oficial partirá. Se partir, que importa? Escrevo mais para mim do
que para ti; não procuro senão alívio. O tamanho desta carta vai assustar-te: não a lerás.
Que fiz eu para ser tão desgraçada? Porque envenenaste a minha vida? Porque não nasci
noutro país. Adeus. Perdoa-me. o ouso pedir-te que me queiras. ao que me reduziu
o meu destino. Adeus.
111
ANEXO E
Quinta carta
Escrevo-lhe pela ultima vez e espero fazer-lhe sentir, na diferença de termos e
modos desta carta, que finalmente acabou por me convencer de que já me não ama e que
devo, portanto, deixar de o amar.
Mandar-lhe-ei, pelo primeiro meio, o que me resta ainda de si. Não receie que lhe
volte a escrever, pois nem sequer porei o seu nome na encomenda. De tudo isso encarreguei
D. Brites, que eu habituara a confidencias bem diferentes. Os seus cuidados não me serão
tão suspeitos quanto os meus. Ela tomará as precauções necessárias para que eu fique com a
certeza de que recebeu o retrato e as pulseiras que me deu. Quero porém dizer-lhe que me
encontro, alguns dias, na disposão de me desfazer e queimar essas lembranças do seu
amor, que tão preciosas me foram. Mas tanta fraqueza lhe tenho mostrado que nunca
acreditaria que eu fosse capaz de chegar a tal extremo. Quero sentir até ao fim a pena que
tenho em separar-me delas, e causar-lhe ao menos algum despeito.
Confesso-lhe, para vergonha minha e sua, que me encontrei mais presa do que quero
dizer-lhe a estas futilidades, e senti outra vez necessidade de toda a minha reflexão para me
separar de cada uma em particular, e isto quando me gabava de me ter desprendido de si.
Mas, com tantos motivos, consegue-se sempre o que se deseja. Pus tudo nas mãos de D.
Brites. Quantas lágrimas me não custou esta resolução! Depois de mil impulsos e mil
hesitações, que nem pode imaginar, e de que certamente não lhe darei conta, roguei-lhe
para me não voltar a falar nelas, nem mas restituir ainda que lhas pedisse para as ver
uma vez mais e, por fim, remeter-lhas sem me prevenir.
Não conheci o desvario do meu amor senão quando me esforcei de todas as
maneiras para me curar dele, e receio que nem ousasse tentá-lo se pudesse prever tanta
dificuldade e tanta violência. Creio que me teria sido menos doloroso continuar a amá-lo,
apesar da sua ingratidão, do que deixá-lo para sempre. Descobri que lhe queria menos que à
minha paixão, e sofri penosamente em combatê-la, depois que o seu indigno procedimento
me tornou odioso todo o seu ser.
O orgulho tão próprio das mulheres não me ajudou a tomar qualquer decisão contra
si. Ai, suportei o seu desprezo, e teria suportado o ódio e o ciúme que me provocasse a sua
112
inclinação por outra! Ao menos, teria qualquer paixão a combater. Mas a sua indiferença é
intolerável. Os impertinentes protestos de amizade e a ridícula correcção da sua última carta
provaram-me ter recebido todas as que lhe escrevi e que, apesar de as ter lido, não
perturbaram o seu coração. Ingrato! E a minha loucura é tanta ainda, que desespero por
o poder iludir-me com a idéia de não chegarem aí, ou de não lhe terem sido entregues.
Detesto a tua franqueza. Pedi-lhe eu para me dizer pura e simplesmente a verdade?
Porque me não deixou com a minha paixão? Bastava não me ter escrito: eu o procurava
ser esclarecida. Não me chegava a desgraça de não ter conseguido de si o cuidado de me
iludir? Era preciso não lhe poder perdoar? Saiba que acabei por ver quanto é indigno dos
meus sentimentos; conheço agora todas as suas detestáveis qualidades. Mas se tudo quanto
fiz por si pode merecer-lhe qualquer pequena atenção para algum favor que lhe peça,
suplico-lhe que não me escreva mais e me ajude a esquecê-lo completamente. Se me
mostrasse, ao de leve que fosse, ter sentido algum desgosto ao ler esta carta, talvez eu
acreditasse; talvez a sua confissão e o seu arrependimento me enchessem de lera e de
despeito; e tudo isso poderia de novo incendiar-me.
Não se meta pois no meu caminho; destruiria, sem duvida, todos os meus projectos,
fosse qual fosse a maneira por que se intrometesse. Não me interessa saber o resultado
desta carta; não perturbe o estado para que me estou preparando. Parece-me que pode estar
satisfeito com o mal que me causa, qualquer que fosse a sua intenção de me desgraçar. Não
me tire desta incerteza; com o tempo espero fazer dela qualquer coisa parecida com a
tranqüilidade. Prometo-lhe não o ficar a odiar: por de mais desconfio de sentimentos
exaltados para me permitir intenta-lo.
Estou convencida de que talvez encontrasse aqui um amante melhor e mais fiel;
mas, ai!, quem me podetanto amor? Consegui a paixão de outro homem absorver-me?
Que poder teve a minha sobre si? Não sei eu por experiência que um coração enternecido
nunca mais esquece quem lhe revelou prazeres que não conhecia, e de que era susceptível?,
que todos os seus impulsos estão ligados ao ídolo que criou?, que os seus primeiros
pensamentos e as primeiras feridas não podem curar-se nem apagar-se?, que todas as
paixões que se oferecem como auxilio, e se esforçam por o encher e apaziguar, lhe
prometem em vão um sentimento que não voltará a encontrar?, que todas as distrações que
procura, sem nenhuma vontade de as encontrar, apenas sevem para o convencer que nada
113
ama tanto como a lembrança do seu sofrimento? Porque me deu a conhecer a imperfeição e
o desencanto de uma afeição que não deve durar eternamente, e a amargura que acompanha
um amor violento, quando não é correspondido? E por que razão, uma cega inclinação e um
cruel destino, persistem quase sempre em prender-nos àqueles que a outros são
sensíveis?
Mesmo que esperasse distrair-se com nova afeição, e deparasse com alguém capaz
de lealdade, é tal a pena que sinto por mim que teria muitos escrúpulos em arrastar o ultimo
dos homens ao estado a que me reduziu. E embora me não mereça nenhum respeito, não
poderia decidir-me a tão cruel vingança, mesmo se, por uma mudança que não vislumbro,
isso viesse a depender de mim.
Procuro neste momento desculpá-lo, e sei bem que uma freira raramente inspira
amor; no entanto, parece-me que, se a razão fosse usada na escolha, deveriam preferir-se às
outras mulheres: nada as impede de pensar constantemente na sua paixão, nem são
desviadas por mil coisas com que as outras se distraem e ocupam. Creio que não deve ser
muito agradável ver aquelas a quem amamos sempre distraídas com futilidades; e é preciso
ter bem pouca delicadeza para suportar, sem desespero, ouvi-las só falar de reuniões,
atavios e passeios. Continuamente se está exposto a novos ciúmes, pois elas são obrigadas a
certas atenções, certas condescendências, certas conversas. Quem pode garantir que em tais
ocasiões se não divirtam, e que suportem os maridos somente com extremo desgosto, e sem
qualquer aprovação? Como elas devem desconfiar de um amante que lhes não peça contas
rigorosas de tudo isso, que acredite facilmente e sem inquietação no que lhe dizem, e as
veja, confiante e tranqüilo, sujeitas a todas essas obrigações!
Mas não pretendo provar-lhe com boas razões que me devia amar. Fracos meios
seriam estes, e eu outros sei bem melhores sem nenhum resultado. Conheço de sobra o meu
destino para tentar mudá-lo. Hei-de ser toda vida uma desgraçada! Não o era já quando o
via todos os dias? Morria de medo que me não fosse fiel; queria -lo a cada momento e
isso não era possível; inquietava-me com o perigo que corria ao entrar neste convento; não
vivia quando estava em campanha; desesperava-me por o ser mais bonita e mais digna de
si; lamentava a mediocridade da minha condição; pensava nos prejuízos que lhe podia
acarretar a afeão que parecia ter por mim; imaginava que não o amava bastante; receava,
114
por si, a lera de minha família; enfim, encontrava-me num estado tão lamentável como
aquele em que estou agora.
Se me tivesse dado alguma prova de amor, depois de ter saído de Portugal, teria
feito todos os esforços para sair daqui; ter-me-ia disfarçado para ir ter consigo. Ai, que teria
sido de mim se não importasse comigo, depois de estar em França!? Que horror! Que
loucura! Que vergonha tão grande para minha família, a quem quero tanto, depois que
deixei de amar!
A sangue-frio, como vê, reconheço que podia ser ainda mais digna de piedade do
que sou. Ao menos uma vez na vida falo-lhe ponderadamente. Quanto lhe agradará a minha
moderação, e como ficará satisfeito comigo! Mas o quero sabê-lo! lhe pedi, e volto a
suplicar-lho, para não me escrever mais.
Nunca reflectiu na maneira como me tens tratado? Nunca pensou que me deve mais
obrigações do que a qualquer outra pessoa? Amei-o como uma louca, tudo desprezei! O seu
procedimento não é de um homem de bem. É preciso que tivesse por mim uma aversão
natural para me não ter amado apaixonadamente. Deixei-me fascinar por qualidades bem
medíocres. Que fez para me agradar? Que sacrifícios fez por mim? Não procurou tantos
outros prazeres? Renunciou ao jogo e à caça? Não foi o primeiro a partir para a campanha?
Não foi o ultimo a regressar? Expôs-se loucamente, apesar de tanto lhe haver pedido que se
poupasse por amor de mim. Nunca procurou um meio de se fixar em Portugal, onde era
estimado. Uma carta de seu irmão bastou para o fazer abalar, sem a menor hesitação. E não
vim eu a saber que, durante a viagem, a sua disposição era a melhor do mundo?
Forçoso me é confessar que tenho razões para o odiar mortalmente. Ah, eu própria
atr sobre mim tanta desgraça! Acostumei-o desde o inicio, ingenuamente, a uma grande
paixão, e é necessário algum artifício para nos fazermos amar. Devem procurar-se com
habilidade os meios de agradar: o amor por si não suscita amor Como pretendia que eu o
amasse, e como havia formado tal desígnio, não houve nada que não tivesse feito para
atingir; ter-se-ia mesmo decidido a amar-me, se tal fosse preciso. Mas percebeu que o amor
o era necessário para o êxito do seu empreendimento, nem dele precisava para nada. Que
perfídia! Pensa poder enganar-me impunemente? Se por acaso voltar a este país, declaro-
lhe que o entregarei à vingança da minha família.
115
Muito tempo vivi num abandono e numa idolatria que me horrorizam, e o remorso
perseguem-me com uma crueldade insuportável. Sinto uma vergonha enorme dos crimes
que me levou a cometer; já não tenho, pobre de mim!, a paixão que me impedia de
conhecer-lhes a monstruosidade. Quando deixao meu coração de ser dilacerado? Quando
é que me livrarei deste cruel perturbação? Apesar de tudo, creio que não lhe desejo nenhum
mal, e talvez me não importasse que fosse feliz. Mas como poderá sê-lo se tiver coração?
Quero escrever-lhe ainda outra carta para lhe mostrar que, daqui a algum tempo,
talvez tenha mais serenidade. Com que satisfação lhe censurarei então o seu injusto
procedimento, quando este já não me importunar; lhe farei sentir que o desprezo; que falo
da sua traição com a maior indiferença; que esqueci alegrias e penas; e me lembro de si
quando me quero lembrar!
Concordo que tem sobre mim muitas vantagens, e que me inspirou uma paixão que
me fez perder a razão; mas não deve envaidecer-se com isso. Eu era nova, ingénua;
haviam-me encerrado neste convento desde pequena; não tinha visto senão gente
desagradável; nunca ouvira as belas coisas que constantemente me dizia; parecia-me que
a si devia encanto e a beleza que descobrira em mim, e na qual me fez reparar; ouvia
dizer bem de si; toda a gente me dispunha a seu favor; e ainda fazia tudo para despertar o
meu amor... Mas, por fim, livrei-me do encantamento. Grande foi a ajuda que me deu, e de
que tinha, confesso, extrema necessidade.
Ao devolver-lhe as suas cartas, guardei, cuidadosamente, as duas últimas que me
escreveu; hei-de lê-las ainda mais do que li as primeiras, para o voltar a cair nas minhas
fraquezas. Ah, quanto me custam, e como teria sido feliz se tivesse consentido que o
amasse sempre! Reconheço que me preocupo ainda muito com as minha queixas e a sua
infidelidade, mas lembre-se que a mim própria prometi um estado mais tranqüilo, que
espero atingir, ou então tomarei uma resolução extrema, que virá a conhecer sem grande
desgosto. De si nada mais quero. Sou uma doida, passo o tempo a dizer a mesma coisa. É
preciso deixá-lo e não pensar mais em si. Creio mesmo que o voltarei a escrever-lhe. Que
obrigação tenho eu de lhe dar conta de todos os meus sentimentos?
116
ANEXO F
117
ANEXO G
118
ANEXO H
119
ANEXO I
120
ANEXO J
121
ANEXO K
122
ANEXO L
123
ANEXO M
124
ANEXO N
125
ANEXO O
126
ANEXO P
127
ANEXO Q
128
ANEXO R
129
ANEXO S
130
ANEXO T
131
ANEXO U
132
ANEXO V
133
ANEXO W
134
ANEXO X
135
ANEXO Y
136
ANEXO Z
137
ANEXO AA
138
ANEXO AB
139
ANEXO AC
140
ANEXO AD
141
ANEXO AE
142
ANEXO AF
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