constituída intrinsecamente pelo pensamento diacrônico e histórico, como observa
Cahill (1999). Segundo este autor, essa sensibilidade é a grande contribuição do Velho
Testamento, a Torah, para o ocidente moderno e dificilmente pode ser abalada pelo
hedonismo consumista da sociedade atual, pois estruturou um padrão da personalidade
dos indivíduos modernos que se vêem sempre como personagens de uma trajetória
permeada por escolhas que podem ou não mudar seu rumo
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. A diferença entre hoje e o
passado é a relativa transitoriedade de algumas dessas escolhas.
Para Caldart, este aprendizado que leva à compreensão de que “se faz parte da
história” começa no acampamento, onde, em meio à proximidade com estranhos
reunidos em uma situação particular e com um objetivo comum, forja-se uma vida
comunitária onde são construídas novas relações interpessoais, geralmente iniciadas a
partir do resgate da própria história pessoal de cada um. Quando esses acampados dão-
se conta de que seus vizinhos de barracos possuem histórias muito parecidas com a sua,
podem começar a vivenciar uma “nova chave de leitura da realidade” que os leva a se
reconhecer, segundo ela, na história da luta pela terra, “passo decisivo para se
entenderem como parte da história de seu país, e como sujeitos da história da
humanidade como um todo” (Ibid., p. 183). Para Caldart, é esse o sentimento que
motiva os militantes que saem de seus lugares de origem para ajudar a organização em
outro Estado, experiência na qual vivenciam “com bastante intensidade os conflitos
pessoais necessários para a produção desse aprendizado”(Caldart, 2004, p.207). A luta,
então, passa a tomar todas as dimensões da vida deste militante que se devota a essa
causa, sabendo que ela se mesclará com sua vida pessoal.
É elemento constitutivo desta matriz pedagógica a mística, celebrações e
encenações que se apóiam no cultivo da memória ou da história do povo e que é,
segundo Caldart, o “o tempero da luta” (Caldart, 2004, p. 208), um espaço que realiza
uma “espécie de ritual de acolhida” (Ibid., p 211) para os que estão se aproximando do
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Segundo Cahill, a Bíblia este relato da experiência religiosa dos judeus, demonstra que esse povo foi o
primeiro a romper com a visão do cosmo profundamente cíclica. Quando Abraão recebeu a revelação
divina e mudou seu destino, saindo da terra de seus antepassados para fundar uma nova tradição,
inaugurou uma nova percepção para o homem. Ao narrar esse feito singular para um homem da
Antiguidade, as Escrituras instauraram o que hoje podemos classificar de pensamento diacrônico ou
histórico, bem como estabeleceram as características da sensibilidade ocidental. Para os judeus, a história
de Abraão não é um mito. Ela reproduz um evento histórico que é registrado de forma escrita. Ela retrata
o feito real de um determinado homem que tornou-se singular em seu tempo. Mesmo que ele tenha
seguido as orientações de um Deus revelado, é uma história sobre um homem que mudou seu destino e de
seus descendentes. Esse modo de contar uma trajetória, dando-a como verdade, e tendo em vista a certeza
de uma futura redenção é, por sinal, o pano de fundo da “mística” do MST. Ela tem o mesmo papel que a
Bíblia, na verdade, a Torah, tem na formação dessas poderosas tradições religiosas monoteístas presentes
no mundo atual, com todas as potenciais conflitualidades das quais também é portadora. Para Cahil, ao
narrar o percurso singular de alguns homens singulares, a Bíblia instaurou “uma nova maneira de pensar e
vivenciar, de compreender e sentir o mundo” que hoje classificamos de cultura ocidental (Cahlil, 1999, p.
18). Esta mentalidade peculiar compartilhada pelas pessoas do mundo ocidental acabou contaminando
todas as culturas da terra, “de modo que, em um sentido surpreendentemente preciso, toda a humanidade
foi incluída, a contragosto, nesse ‘nós’” (Ibid. p.15-16). A própria idéia da vocação, de um destino
pessoal é uma idéia judaica, bem como a idéia de que Deus está realizando seus propósitos na história e
que causará o seu fim, com a importante ressalva de que existem os profetas e estes chegam para avisar
que existem escolhas que também afetarão esse fim. É interessante notar que, segundo este autor, ao
incluir os pobres entre os justos e os ricos entre os idólatras, como fizeram muitos dos profetas bíblicos, a
própria idéia de Deus passou a ser articulada à idéia de justiça social. Afinal, esse Deus que havia
destruído sua identidade, não podia ser representado em ídolos nem exigia sacrifícios humanos requeria
uma revolução mental difícil para um povo que, como qualquer outro, pensava sobretudo em riquezas,
rebanhos e territórios. Esse sopro, ou melhor “espírito” (palavra que não tinha correlato na Antiguidade)
queria algo exótico para aquele tempo: um compromisso interno com a justiça, a misericórdia, a
humildade. Em suma, “sem justiça, não haveria Deus”. (Ibid.p. 261).