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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS EM
DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE
TESE
TRAJETÓRIA DE MILITANTES SULISTAS:
NACIONALIZAÇÃO E MODERNIDADE DO MST
DÉBORA FRANCO LERRER
2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS EM
DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE
TRAJETÓRIA DE MILITANTES SULISTAS
NACIONALIZAÇÃO E MODERNIDADE DO MST
DÉBORA FRANCO LERRER
Sob a Orientação da Prof.Dra.
Leonilde Servolo de Medeiros
Tese submetida como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor em Ciências no
Programa de Pós-graduação de Ciências Socais
em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
Rio de Janeiro, RJ
Maio de 2008
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3
333.310981
L621t
T
Lerrer, Débora Franco
Trajetória de militantes sulistas: tradição e
modernidade do MST/Débora Franco Lerrer, 2008.
197 f.
Orientador: Leonilde S.de Medeiros
Tese (doutorado) Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro, Instituto de Ciências Humanas e
Sociais.
Bibliografia: f. 191-197
1. Movimentos sociais - Brasil - Teses. 2.
Movimento dos trabalhadores rurais sem terra
Brasil - Teses. 3. Habitus militante MST - Brasil -
Teses. I. Medeiros, Leonilde S. II. Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro. Instituto de
Ciências Humanas e Sociais. III. Título.
4
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS EM
DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE
DÉBORA FRANCO LERRER
Tese submetida ao Curso de s-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade, como requisito parcial para obtenção de grau de Doutor em
Ciências no Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade
Tese aprovada em .04./07/2008
________________________________
Dra. Leonilde Servolo de Medeiros/ CPDA/UFRRJ
______________________________
Dra.Regina Célia Reyes Novaes
____________________________
Dr. José Vicente Tavares dos Santos
______________________________
Dr. Raimundo Santos
______________________________
Dr. Jorge Osvaldo Romano
5
“... los manantiales de libertad humana no están tan sólo donde los vio
Marx, en las aspiraciones de las clases ascendientes a conquistar el poder,
sino tal vez n más en los gemidos agónicos de una clase que la ola del
progreso está a punto de arrollar”.
Barrington Moore Jr. (2002, p.714)
6
Dedico essa tese a seu Anastácio, pescador e agricultor da Praia do Rosa. Suas
reflexões sobre as mudanças que o turismo dos “gaúchos” trazia para seu pedaço de
mundo me ensinaram muitas coisas que servem de base para esta tese, que também é
uma homenagem a todos que, em busca de uma sociedade mais digna, não aceitaram a
inevitabilidade da proeminência dos interesses do capital e foram à luta, criando novos
direitos e arrancando seu reconhecimento por parte de suas sociedades.
7
Agradecimentos
Agradeço à minha orientadora Leonilde Servolo de Medeiros, cuja interlocução
e generosidade foram fundamentais para este resultado.
Agradeço aos colegas, professores e funcionários do CPDA que mantêm um
ambiente acadêmico de amizade, trocas e companheirismo que me fizeram sentir-me
privilegiada por poder passar essa etapa entre eles.
Em um momento de conclusão deste período privilegiado de estudos, quero
aproveitar a deixa para agradecer às pessoas especiais que conheci neste percurso, aos
queridos amigos e, muitas vezes, vizinhos, que me acompanharam mais de perto ou que
simplesmente me deram uma contribuição pela qual sempre serei imensamente grata.
Agradeço nominalmente a alguns neste momento, mas me perdoem muito os que, por
conta de algum lapso, esquecer de citar: Francine Damasceno Pinheiro e André
Munhoz, Carla e Kima, Barbara Salvaterra, Fernando Barcellos e Janaína Tude Sevá,
Clayton Gerhardt, Silvia Zimmermann, Biancca Castro, Chacho Cowan Ros, Luciana
Di Leoni, John Comerford e Bibi Cintrão, Maria Bonita, Thalys Motta, André
Fernandes, Raquel Diniz e Bernardo Gutierrez, Denise Garcia, Maria Pia Palermo,
Valter Lucio de Oliveira, Flaviane Canavesi, Andrea Bertolini, Negra, Cesar Da Ros,
Betty Rocha e Edílson, Marlon Mendez, Gustavo Loureiro, Rubens Pileggi, Jorge
Romano, Francisco Sarmento, Marita e Eduardo Galotti, Gideon Boulting, Wanda
Brant, Giane Alvares, Giulia La Camera, Maristela Grynberg, Luis Emilio Cuenca e, em
especial, a Ricardo Diniz.
Agradeço à CNPq e à Faperj que viabilizaram esse estudo concedendo-me bolsa
de estudos e à Capes, que com a bolsa-sanduíche para estudar na EHESS cole des
Hautes Études en Sciences Sociales) me oportunizou um rico ambiente intelectual, onde
pude ter contato com professores e bibliografias que tornaram-se fundamentais neste
trabalho. Devo fazer um agradecimento especial à Action Aid e, pelo apoio a meus
trabalhos de campo, quero também mencionar minha gratidão ao Nead e à Videofilmes.
Agradeço a meus pais e irmãos por estarem sempre sempre comigo onde quer
que eu ande, aos primos Moreira e aos tios José e Maria Estela Franco.
Agradeço aos companheiros do MST que me receberam com gentileza, carinho
e atenção e que foram fundamentais para a realização desta pesquisa. Devo fazer uma
menção especial à turma Apolônio de Carvalho. Sua formatura, no dia 6 de Junho de
2008, representa uma semente importante do projeto do MST, com o qual espero ter
contribuído com este trabalho.
8
RESUMO
LERRER, bora Franco. Trajetória de militantes sulistas: tradição e
modernidade do MST. 267p. Tese (Doutorado em Ciência Sociais aplicada ao
conhecimento do mundo rural). Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Departamento
de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2008
Este trabalho aborda a trajetória histórica do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra- MST e de duas gerações de militantes sulistas que, a partir de meados da década
de 80, foram para o Nordeste, onde ajudaram a estruturar esse movimento social.
Alguns deles vivem no Nordeste desde então, outros retornaram para seus estados de
origem e hoje são assentados. Este processo reproduziu-se em outras regiões do país,
configurando-se como uma espécie de padrão de migração de militantes que foi
determinante para a nacionalização deste movimento social. A pesquisa parte da
hipótese de que estes militantes, ao se deslocarem para o Nordeste, carregando consigo
a “metodologia” de lutas do MST, foram agentes de uma “modernização
emancipadora”, por ser baseada no incentivo à luta por direitos e à formação e instrução
continuada de seus integrantes, além de lhes propiciar acesso a melhores condições de
vida. Para sustentar esta tese, este estudo se apóia em trabalhos de campos, entrevistas
com atores desse processo, pesquisa na coleção do “Jornal Sem Terra”, em bibliografias
sobre o MST e em um levantamento da história brasileira, sob o viés agrário. Este
trabalho procura descrever a dialética entre história individual, institucional e o contexto
histórico pela qual transcorreram as trajetórias de vida dos militantes de primeira e
segunda geração do MST e que contribuíram para estruturar as características
organizativas deste movimento social, assim como seu habitus militante, ou melhor, o
“estilo sem-terra” de militar. Através desse processo, enfoco aspectos particulares e
coletivos do percurso empreendido por estes dois grupos que descortina como esse
habitus militante do MST traduziu-se na vida concreta desses indivíduos de origens
sociais e culturais semelhantes e que deram corpo para gestar e reproduzir a identidade
sem-terra. A seguir, a partir das entrevistas e de dados colhidos no trabalho de campo,
levanto aspectos que corroboram o caráter modernizante da luta empreendida pelo
MST. Para tanto, o enfocados dois eixos que caracterizam a “metodologia” do
trabalho político do MST, tanto no Nordeste como em outras regiões do país: a
produção agrícola e a educação continuada.
Palavras-chave: movimento social, habitus militante, sem-terra
9
ABSTRACT
LERRER, Débora Franco. The Trajectory of MST Southern-Brazilian Militants:
Tradition and Modernity in the Movement of Landless Workers. 198pp.Thesis (PhD in
Social Sciences applied in Rural World Knowledge). Human and Social Sciences
Institute: Development, Agriculture and Society Department. Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2008
This study is about the historical trajectory of the “Movement of Landless Workers” and
two of its generations of southern militants who, since the middle of the Eighties, went
to Northeast Brazil to help to structure this social movement. Some of them live there
since then. Others have returned to their origin states and are settled there. This process
has reproduced itself in other regions of the country, configuring a pattern of migration
among militants that has been fundamental for the nationalization of this social
movement.
This work departs from the hypothesis that the militants, who had migrated to Northeast
Brazil, taking with them the MST struggle “methodology”, were agents of an
“emancipatory modernization”. A modernization that, due to its strategy of continual
membership political formation and formal education associated with fight for civil and
social rights, has proportionate better life conditions to MST members.
To sustain this thesis, this study is based on field works, interviews with agents of this
process, research in the “Landless Newspaper” collection, in bibliographies about the
MST, and in the study of Brazilian history from the agrarian point of view. The present
research attempts to describe the dialectic between individual, institutional history and
the historical context in which the life trajectories of the first and second generation of
MST militants have passed. These militants contributed to structure the organizational
characteristics of this social movement, as well as its militant habitus or rather the
“landless stile” of militancy. Trough this process, I focus on some particular and
collective aspects of this path undertaken by these two groups which unveil how this
MST militant habitus has been translated in the concrete life of these individuals with
similar social and cultural origins and who have given their bodies to generate and
reproduce the landless identity. After that, from interviews and data collected in the
field research, I set up aspects which corroborate the modern character of the struggle
undertaken by the MST in Northeast Brazil, as well as in other regions of the country:
the agricultural mode of production and the “continual education” pedagogy.
10
Sumário
INTRODUÇÃO............................................................................................12
1 UM MOVIMENTO SOCIAL “EM MOVIMENTO”
1.1 Um padrão de migração militante...........................................................21
1.2 Um conceito em ação..............................................................................22
1.3 Pesos e medidas conceituais...................................................................24
1.4 A “nova organicidade”...........................................................................28
1.5 Terra: núcleo duro do poder...................................................................32
1.6 O peso da história...................................................................................35
2 CONDIÇÕES HISTÓRICAS DA FORMAÇÃO DOS SEM-TERRA
2.1 A instituição do poder privado territorial................................................38
2.2 As primeiras idéias de reforma................................................................40
2.3 A “ordem fazendeira” e a grilagem........................................................ 42
2.4 A abolição da escravidão e a república dos fazendeiros..........................44
2.5 As oscilações da República......................................................................47
2.6 O aumento dos conflitos e da mobilização dos trabalhadores rurais.......50
2.7 A ditadura militar e a modernização excludente......................................52
2.8 Questão agrária e modernidade................................................................55
3 TRAJETÓRIA E EXPANSÃO DO MST NO NORDESTE
3.1 Novas contradições no Alto Uruguai gaúcho e as origens do MST........61
3.2 A frustrada esperança de redemocratização com reforma agrária..........64
3.3 Expansão, consolidação e aprendizagem do MST..................................68
3.4 Primeira estação: Bahia...........................................................................69
3.5 O “laboratório” baiano............................................................................73
3.6 A estruturação política............................................................................77
3.7 A expansão pública.................................................................................78
3.8 Reação do governo e isolamento do MST..............................................83
3.9 Etapas do MST no Nordeste...................................................................87
4 O PERCURSO DA IDENTIDADE SEM-TERRA
4.1 Um diálogo com a literatura...................................................................95
4.2 “Colonos de Nonoai”..............................................................................96
4.3 Os colonos viram “sem-terra”.................................................................98
4.4 A pedagogia da luta................................................................................106
4.5 Uma identidade em perspectiva histórica...............................................110
4.6 A ascensão nacional de uma identidade.................................................114
5 TRAJETÓRIA E GERAÇÕES DE MILITANTES DO MST
5.1 Geração e milincia no MST................................................................120
5.2 Primeira geração: a militância como devoção.......................................123
5.3 Segunda geração: os militantes especializados..................................... 131
5.4 Os militantes “recortados” pelo Nordeste..............................................140
11
5.5 Uma geração marcada pela politização da Igreja..................................152
6 A MODERNIDADE DO MST
6.1 Padrões de ambição...............................................................................155
6.2 Domínio da agricultura..........................................................................160
6.3 Uma dialética permanente......................................................................165
6.4 Formação e educação: preparando gente...............................................171
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................183
BIBLIOGRAFIA..........................................................................................191
12
INTRODUÇÃO
A articulação e as ações que deram origem ao Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra - MST ocorreram no Sul do Brasil, mais precisamente na região do
Alto Uruguai do Rio Grande do Sul, que há algumas décadas era a principal
procedência de muitas famílias de agricultores gaúchos que, em busca de terras mais
baratas, ocuparam o Oeste de Santa Catarina, o Sudoeste do Paraná e o Mato Grosso do
Sul e, mais recentemente, as terras do Mato Grosso, da Amazônia e dos cerrados do
Nordeste e do Centro-Oeste. Por onde se fixaram, essas levas de agricultores sulistas
levaram consigo seu modo de vida e uma forte identificação com sua origem “sulista”,
ao mesmo tempo “gaúcha” e “imigrante” ou “européia”.
No processo de ampliação de sua atuação para os demais estados da federação, o
MST também promoveu uma migração, enviando militantes, sobretudo dos três estados
do Sul, mas também de outros como Espírito Santo, Rondônia e Piauí, para difundir sua
“metodologia”
1
de luta pela reforma agrária em alguns estados do Nordeste, do Sudeste
e do Centro-Oeste. Este trabalho se propõe a estudar a trajetória de alguns militantes
sulistas que foram para o Nordeste de meados dos anos 80 até meados dos anos 90 de
modo a levantar aspectos culturais, sociais e políticos deste padrão de migração
desenvolvido pelo MST, que ocorreu não no Nordeste, mas em outros estados da
federação. Foi através deste processo que, em menos de uma cada, este movimento
social logrou se nacionalizar, implantando efetivamente sua metodologia de lutas, assim
como desenvolvendo sua identidade política e estilo de militância. Este trabalho parte
da hipótese de que este processo de expansão é marcado expressivamente pela
identidade sulista” ou “gaúcha”, traçando um paralelo com sua relação com os
processos sociais desencadeados por seus conterrâneos sulistas, que protagonizam a
expansão da modernização agrícola e do cultivo de soja no Centro-Oeste e no Oeste da
Bahia. Estas duas correntes migratórias têm características modernizantes, embora
somente a dos sojicultores sulistas seja reconhecida como tal. Ao contrário desse grupo,
hoje associado ao termo “agronegócio”, o MST proe uma modernidade
emancipadora, calcada no investimento na instrução formal, na formação política e
advoga um modelo agrícola desconcentrador de riqueza e ambientalmente responsável.
Este estudo tem por objetivo reconhecer na atuação do MST aquilo que os
grupos sociais hegemônicos na sociedade brasileira costumeiramente lhe negam: sua
plena modernidade. Em um país, cujas faces oscilam entre características sociais
modernas e pré-modernas, é interessante realçar os traços modernizantes de um
fenômeno social com o MST, que espelha alguns de seus conflitos sociais mais
profundos.
Pretendo explorar o processo de expansão nacional deste movimento social pelo
viés da formação desta identidade coletiva do “sem-terra do MST”, a partir da trajetória
das duas primeiras gerações de militantes que migraram para o Nordeste, embebidos em
um particular estilo de militância, ou habitus militante, que foi se estruturando e
difundindo-se nacionalmente ao longo deste período.
A trajetória de nacionalizão do MST é fruto de um padrão de migração de
militantes, resultado de condições sociais e históricas que produziram uma luta social de
características muito peculiares. Suas mobilizações, baseadas na formação de
acampamentos e na realização de ocupões de terras e de pdios públicos, respondem
1
Termo que muitos dos militantes utilizam para chamar seu processo de organização e articulação para
reunir sem-terras , promover ocupações e organizar acampamentos.
13
a desafios colocados por uma sociedade cujas transformações políticas assumiram com
maior freqüência um caráter conservador, e cujo processo de modernizão foi
concebido deixando à margem de seus benefícios a grande maioria de sua população,
em particular do Nordeste.
Origem de muitos migrantes que chegaram ao Sudeste a partir da década de 50,
a concentração fundiária dos estados do Nordeste chega, em dia, a 0,80 do índice de
Gini. De acordo com dados do Radar Social, elaborado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada) e divulgados em 2005, nessa região a proporção de pobres no
campo é de 57%, mais do que o dobro da porcentagem observada no meio urbano
(27%)
2
. Além disso, ela abriga o maior contingente de pobres e também de
extremamente pobres, com magnitudes bastante superiores à média nacional e à média
das demais regiões do país. De acordo com esses dados, o Nordeste possuía 55,3% de
sua população vivendo em condições de pobreza e 26,8% vivendo em condão de
extrema pobreza
3
.
Em seus últimos 20 anos, ao promover uma migração no sentido inverso, o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST protagonizou uma trajetória de
lutas portadora de transformações nesta região, onde inclusive sua “metodologia” de
ocupações acabou sendo incorporada por outros movimentos sociais, como os
sindicatos de trabalhadores rurais (Sigaud, 2001).
Os principais atores-chaves da expansão do MST no Nordeste são oriundos do
meio rural. Alguns deles tiveram acesso à instrução formal mais prolongada por terem
sido educados em seminários da Igreja Católica. Neste caso, eram majoritariamente
jovens cujas famílias de pequenos agricultores, sem outro meio de lhes estender a
escolaridade, haviam encaminhado para serem freiras ou padres. Muitos desses
militantes, no entanto, são oriundos da atuação nas chamadas “oposições sindicais”
4
e
nas CEBs, também produto da atuação da Igreja progressista.
Para tratar do tema desenvolvido neste trabalho, foram realizados trabalhos de
campo em Sergipe, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Sul, onde me dirigi para
assentamentos, centros de formação e me hospedei entre militantes e assentados do
MST. A pesquisa também se baseia em entrevistas presenciais com os atores-chaves
desse processo, tanto nesses locais como em cursos, reuniões e mobilizações do MST,
tais como a Conferência Dilemas da Humanidade, em julho de 2004, a Marcha Nacional
de Goiânia a Brasília, realizada em maio de 2005, e a fundação da Escola Nacional
Florestan Fernandes, em janeiro do mesmo ano. Duas das entrevistas foram feitas em
visitas que fiz - em maio de 2005 e abril de 2006 - à primeira turma do MST do Curso
de História, Turma Apolônio de Carvalho, que então cumpria seu ano letivo na
Universidade Federal da Paraíba. As demais foram feitas no Rio de Janeiro (RJ), em
janeiro de 2005 e fevereiro de 2006; em Aracaju (SE), em junho de 2006, em Caruaru
(PE), em junho e julho de 2006; na região da Grande Porto Alegre (RS), em agosto de
2006 e setembro de 2007; e em Guararema (SP), em fevereiro de 2008. Foi durante a
realizão deste trabalho de campo, particularmente em Patos, no sertão paraibano, que
2
Radar Social, Ipea, 2005, disponível no site: http://www.ipea.gov.br/Destaques/livroradar.htm.
3
A opção de usar os dados de 2005 é mais realista porque eles dão conta do período abordado por esta
pesquisa e o dos impactos que os programas sociais do Governo Lula trouxeram para estas reges..
4
Nos anos 80, no meio rural, os termos movimento sindical combativo” ou oposição sindical” eram
usados para denominar os grupos que disputavam as direções sindicais estabelecidas em nome de uma
concepção de organização e trabalho político que se opunha às defendidas pela Contag. Desde 1983, essas
“oposições” articulavam-se na CUT (Central Única dos Trabalhadores), inicialmente através de uma
secretaria e, no final da década de 80, do Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais. Para maiores
informações Medeiros (1989).
14
me dei conta que meu olhar deveria se concentrar em torno da trajetória migrantes
militantes visto que, assim como eles, fui considerada pelos sem-terra locais mais uma
sulista a vir “ajudar” o MST nessa região.
Para a elaboração deste estudo, também fiz uma pesquisa na coleção do Jornal
Sem Terra, que fornece preciosas informações presentes particularmente no Capítulo 3
desta tese. Surgido em 1981, como um boletim informativo para a campanha de
solidariedade aos “agricultores sem terra” acampados em Encruzilhada Natalino, este
periódico mensal e longevo surgiu antes da fundação oficial do Movimento e sua
trajetória acaba por explicitar a estruturação e expansão deste movimento social.
Inicialmente era um boletim datilografado e mimeografado. A partir de abril de 1982,
ainda neste formato, suas quatro páginas foram assumindo um perfil crescentemente
jornalístico, embora sequer tivesse expediente. Apresentava-se simplesmente como
“Boletim Sem Terra – Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem
Terra” e era de responsabilidade do “Comitê de Apoio aos Agricultores Sem Terra”. A
partir de então, foi tornando-se melhor diagramado, apresentando editorial, aumentando
seu número de páginas, divulgando notícias de várias partes do país, mas ainda se
chamava “Sem Terra”. Se, em setembro de 1983, ele ainda era uma publicação do
“Comitê de Apoio aos Agricultores Sem Terra”, no mês seguinte, já se auto-
denominava como “Informativo dos Trabalhadores Rurais Sem Terra da Regional Sul”
e apresentava no expediente o jornalista responsável, Flademir Araújo, e os
colaboradores do jornal. É a partir de julho de 1984 que ele se torna oficialmente
“Jornal dos Trabalhadores Sem Terra”, apresentando-se como uma publicação do
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra da Regional Sul, mas contando com
reportagens de jornalistas de várias partes do país. Após o Congresso Nacional do MST,
o jornal muda-se para São Paulo, acompanhando a estruturação da chamada Secretaria
Nacional do MST
5
. Assim como o “Terra Livre”, jornal do PCB que circulou nos anos
50 e 60 (Medeiros: 1995), o “Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra”, ou
simplesmente JST, foi por muitos anos um dos principais instrumentos escritos de
propaganda das lutas e bandeiras do MST. Embora não tenha mais esse papel,
continua um precioso material de pesquisa e documentação das lutas deste movimento
social. Não por acaso, a trajetória desta publicação explicita também a história de
estruturação nacional e política deste movimento social.
Os militantes do MST que classifico neste trabalho como sendo da “primeira
geração” de migrantes - 1985 a 1987 - são oriundos de Santa Catarina e do Rio Grande
do Sul. Na “segunda geração”, que parte para os estados do Nordeste a partir de 1988 e
1989, continuaram as levas de militantes sulistas, incluindo o Paraná, mas militantes
do Espírito Santo e, mesmo, da Bahia, do Piauí, do Sergipe e da Paraíba começam a ser
enviados para outros estados. De qualquer modo, ao longo deste processo de
nacionalização do MST, o deslocamento de militantes sulistas continuou constante,
mesmo mudando de caráter, tornando-se mais temporário, como é o caso das atuais
5
Depois de um período em que contava com diversos jornalistas para sua confecção, o JST foi de certo
modo “enquadrado” nas linhas políticas que o MST passou a adotar a partir de 1986 em meio a seu
afastamento da Igreja e de intelectuais até então envolvidos em suas lutas. Deste modo, ele passou a ser
confeccionado cada vez mais por jornalistas com forte perfil militante, como era o meu caso, e que para
editar o jornal contavam com informações enviadas por outros militantes do MST espalhados pelo país,
o necessariamente com formação jornalística. É interessante observar que, de modo algum, eu me
considerava “enquadrada” pelas linhas políticas do MST, pois eu simplesmente as compartilhava. Mas é
evidente que uma publicação que contava com rios jornalistas perde qualidade quando passa a contar
com apenas um ou dois profissionais para sua confecção
15
“brigadas nacionais”, que formam a terceira e a quarta geração de militantes migrantes e
que se caracterizam por um deslocamento por períodos curtos de quatro a dez meses,
embora não excluam uma eventual fixação deles nos locais para onde foram enviados.
No caso da primeira e da segunda geração, alguns militantes que se deslocaram
para o Nordeste retornaram alguns anos depois para o seu estado de origem, muitas
vezes motivados pela conquista de lotes em assentamentos nestes locais. Outros se
fixaram no Nordeste e, atualmente, só pelo sotaque sulista é que são reconhecidos como
tais. De qualquer modo, dentro do Movimento existe a idéia arraigada da necessidade
de conhecer outra realidade e contribuir com a organização onde ela estiver precisando.
Este processo ocorre também dentro da estrutura burocrática do MST, ou seja, dentro de
suas secretarias estaduais e “nacionais” (Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo). É comum
militantes que trabalham em algum estado serem deslocados para outras regiões, seja
atendendo a uma convocação da organização, seja por escolhas pessoais (casamento,
assentamento).
Este trabalho, segue a inspiração de Pudal (1989) que propôs uma esboço de
uma história sociológica do Partido Comunista Francês (PCF), na qual ele procurou
apreender as principais fases da história desta organização partidária como uma
“resultante mais ou menos consolidada, mais ou menos objetivada de uma
multiplicidade de ‘encontros’ entre histórias sociais, familiares e individuais daqueles
que investiram’ na organização”, relacionando-os com diferentes estágios de
estruturação da instituição(Ibid., p.15). Neste sentido, parto do pressuposto que
sempre uma dimensão histórica dos fenômenos sociais, assim como uma transformação
incessante da identidade das pessoas que, por sua vez, é produto das interações pelas
quais passam ao longo de sua trajetória individual e que, mesmo mantendo algumas
cristalizações, podem estar sujeitas a alterações.
Além disso, se habitus, seguindo a definição de Bourdieu, o as “estruturas
incorporadas (2005, p.10) e o prinpio gerador e unificador que retraduz as
características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco,
isto é em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas” (Ibid.,
p.22)”, é possível tentar esboçar, no campo específico da análise dos movimentos
sociais, o que se constituiria o chamado habitus militante do MST, do mesmo modo
como Yon (2005), demonstrou com os militantes lambertistas da França, até porque
habitus, exprime não um tipo de “gosto”, mas também uma visão de mundo
específica (Souza, 2006 p. 57). No caso do MST, estas trajetórias de “militantes
migrantes” acabaram contribuindo para consolidar muitas das características do “estilo
sem-terra” de militar que hoje se encontra espalhado pelo País. É interessante ter em
mente, como observa Pudal (2005), que, embora seja caracterizado por uma “certa
inércia”, o habitus não cessa de evoluir e é uma síntese evolutiva da hisria pessoal e
social interiorizada. Entretanto, como ele, não é necessariamente adaptado nem
necessariamente coerente, os graus de integração de um determinado sujeito ao habitus
social de um determinado grupo correspondem a graus de integração que, por sua vez,
estão relacionados aos graus de cristalização do estatuto que ele ocupa neste grupo
(Pudal,p.156). Daí decorre, portanto, a decisão de abordar a expansão do MST a partir
de trajetórias biográficas, que espelham momentos específicos da história do MST e do
Brasil, e que ajudaram a estruturar características marcantes de seu habitus militante.
Seguindo o exemplo de Yon (2005), este estudo busca, portanto, estudar o MST
a partir dos agentes sociais que o habitam, tentando compreender como estes militantes
“vivem seu engajamento”(Ibid., p.156). Para tanto, recorro à trajetória de vida de
militantes de duas gerações específicas do MST de modo a tentar descrever como esse
habitus militante de “engajamento total” foi construído nesta dialética entre hisria
16
individual, institucional e o contexto histórico pelo qual transcorriam essas trajetórias.
Afinal, essa forma de militar não é apenas tributária de uma adoção das teses da
organização, pois a prática militante “se opera de ltiplas maneiras, das mais formais
(a transmissão da história da instituição, de sua ideologia e de suas “metodologiasde
militância através da “formação”)”, até a socialização, isto é, o “convívio assíduo com
os companheiros que favorece a incorporações de modos de ser, de falar por
impregnação”(Yon, p.141. Tradução nossa). É a aquisição de disposições consideradas
necessárias para ser considerado militante, assim como a socialização nesta instituição o
que modela o habitus militante específico do MST. Estas disposições unificadas nesse
estilo sem-terra de militar fazem parte de disposições pré-existentes em outros universos
sociais que se reconverteram ao campo político. Nestes agentes sociais que se tornaram
militantes 24 por 24 horas do MST, havia uma disposição à vida coletiva. Eles, em
suma, já traziam em sua bagagem maneiras de estar junto e de ter prazer em estar junto,
assim como de deslocar a realização individual para a realização coletiva, o que
colaborou para manter e atualizar esse habitus militante. Como conclui Yon, há formas
de sociabilidade militante que constituem os alicerces da identidade política.
Já refletindo as transformações na vida pessoal dos entrevistados, assim como as
alterações de percurso possíveis dentro do MST, somente quatro deles continuam
atuando no Nordeste nos lugares onde os entrevistei durante o período de trabalho de
campo. Como veremos adiante, não por acaso estes são integrantes da primeira geração
de militantes enviados para o Nordeste. Apesar disso, considero que o depoimento de
todos os entrevistados continua válido para os objetivos desta tese, pois são membros de
gerações de militantes cujas trajetórias biográficas foram dialeticamente marcadas e
marcantes dentro do processo de cristalização do habitus militante do MST. Neste
trabalho também quero enfocar os caso de militantes que se deslocaram nesse período,
mas que retornaram ao Sul, particularmente o de três deles que vivem hoje em
assentamentos do Rio Grande do Sul com esposas que conheceram quando viveram no
Nordeste. Para preservar a identidade deles, todos os nomes foram trocados.
Em sua reflexão sobre a análise do engajamento individual, embora utilize-se do
conceito de “carreira”, ao invés de “trajetória”
6
, Fillieule (2001) sintetiza bem esta
linha de análise ao chamar atenção de que o militantismo deve ser compreendido como
atividade social individual e dinâmica (Ibid.,p.200) e, portanto, a cada etapa da biografia
de um militante é importante perceber como as atitudes e comportamentos atuais são
determinadas pelo passado e condicionam, por sua vez, o campo de possibilidades que
estão abertas no futuro, vinculando o engajamento individual com o ciclo de vida
dessas pessoas (Ibid.,p.2001). Vou procurar evidenciar esse processo a partir da
reconstituição da trajeria dos militantes entrevistados, cujos relatos dão conta de como
6
Filleule frisa que ambos os conceitos compartilham de certo número de propriedades comuns, como a
atenção igual aos processos e à dialética permanente entre história individual e instituição e, mais
geralmente, os contextos. No entanto, ele prefere usar carreira”, ligado à sociologia interacionista,
porque o conceito de trajetória está ligado à tradição teórica de Bourdieu que concebe a biografia como
“interiorização do provável” e se articula à noção de habitus e de campo, que ele não pretende utilizar.
Enquanto análise da “carreira” mostra que certas escolhas são produtos de uma interação entre a ação dos
indivíduos e a determinação das estruturas, a análise da trajetória subordina a intelegibilidade biográfica à
descrição das estruturas objetivas que a precedem em um determinado “campo social”, e que reatualizam
o habitus através das conjunturas que ele atravessa. Como eu estou operando com o conceito de habitus,
tomo a liberdade de manter minha reflexão dentro da tradição de Bourdieu, pois, em que pese as críticas
que são feitas à sua abordagem, como seus aparentes determinismos - como a hipótese de que a
decadência social explica o engajamento e, portanto, o investimento no militantismo e não na carreira
profissional (Péchu, 2001, p.74) - creio que é possível trabalhar nesta tradição teórica sem cair em
reducionismos.
17
suas vidas foram marcadas por seu engajamento a um movimento social e a aceitação da
tarefa de ajudar a expandir o MST para o Nordeste, dando corpo para a formação de um
habitus militante. Este estilo de militância contribuiu para construir a identidade política
do “sem-terra do MST” e promoveu uma modernização de relações sociais de
características emancipadoras, visto que viabiliza que populações pobres tenham acesso
à terra, da qual desfrutam de uma maior segurança familiar e alimentar, assim como a
direitos como educação, moradia, saúde e transporte, o que lhes permite também
planejar algum futuro que não o das alternativas temporárias e precárias.
Este tema de estudo é tributário de minha experiência como militante e como
jornalista do MST, no período que vai de 1991 até 1997. Afinal, eu também sou sulista
e depois de começar a militar, migrei para São Paulo por conta do Movimento, com a
“tarefa” de editar o Jornal Sem Terra e, mais tarde, de fazer assessoria de imprensa. É
por conta dessa experiência dentro do MST que, ao longo da análise dos dados colhidos
durante a pesquisa, pude também compreender que as questões que apresento nesta tese
também foram fruto de uma reelaboração de minha trajetória pessoal, tendo como
reflexo o tempo em que vivi como militante profissionalizada do MST. Ele é, portanto,
um relato transpassado por momentos e experiências emblemáticas vividas quando
desempenhava determinados papéis, ou melhor tarefas”, dentro de uma organização
em que se demandava uma entrega pessoal, o atendimento de um “chamadointerno,
até biologizado como um vírus. Esta reflexão obviamente fez com que eu reelaborasse
para mim mesma uma trajetória de onde hoje é possível racionalizar escolhas, um
processo que, penso eu, esteve presentes em todos os depoimentos colhidos para esta
pesquisa.
Foi de grande importância para este esforço teórico-metodológico de
afastamento dos meus próprios pressupostos em relação ao MST a oportunidade de
passar seis meses na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris, graças a
uma bolsa-sanduíche financiada pela Capes. Durante os seminários, debates e encontros
de orientação, em especial com Rose-Marie Lagrave, Afrânio Garcia Jr e Alain
Touraine, acabei tendo contato com uma bibliografia que se tornou um dos alicerces
principais deste trabalho.
Este trabalho é tributário de uma simpatia com as bandeiras do MST, mas
procurei evitar construir esse relato a partir das marcas discursivas construídas por este
movimento social, ele próprio produtor e divulgador de versões de sua história,
extremamente importantes para a construção da identidade compartilhada por seus
membros, e que estão presentes na produção de alguns intelectuais orgânicos ou
próximos da organização, como é o caso de Fernandes (2000). Apesar de ser marcado
por este estilo, este livro foi fundamental para este trabalho, pois oferece um amplo
levantamento histórico e um roteiro para a construção do percurso de nacionalização do
MST no Nordeste.
Através da entrevista 156 pessoas que relataram suas participações na
construção do MST e de uma pesquisa documental, Fernandes procura recuperar o
princípio da organização do Movimento em cada estado, as instituições que apoiaram
suas lutas, as diferentes experiências de resisncia, a construção de sua autonomia
política, de suas instâncias e de seus diversos setores de atividade. O autor denomina a
trajetória de nacionalização do MST como um “processo de espacialização e
territorialização”. Por espacialização, o autor entende ser ele “o processo do movimento
concreto da ação em sua reprodução no espaço e no território” (Idem, p. 282). a
territorialização ocorre quando o movimento social não ocupa os espaços, como
intervêm de modo organizado, visando desde queses básicas (crédito, alimentação,
educação, saúde), como objetivos mais amplos. Na visão do autor, o MST seria,
18
portanto, um “movimento cio-territorial” por executar ocupações organizadas que se
espacializam e se territorializam, difundindo uma experiência de luta trazida de outros
lugares, promovendo mobilizações articuladas e simultâneas em várias regiões do país e
que estão contidas em um projeto político de maior abrangência. Para Fernandes,
portanto, a migração de militantes seria um aspecto determinante da espacialização do
MST:
O significado de espacialização tem como referência a participação de
trabalhadores que já viveram a experiência da ocupação em diversos
lugares e regiões, e como militantes, espacializam essas experiências,
trabalhando com a organização de novas ocupações” (Ibid., p. 289).
Como Fernandes (2000) aponta, os conflitos surgidos entre os militantes
enviados pelo MST e demais forças que apoiavam a luta tiveram uma raiz constante em
vários estados. Segundo esse autor, se criticava o fato de “os trabalhadores”, e não os
assessores, estarem dando a palavra final nas decisões. Também era visto com certo
estranhamento a forma como estes militantes sulistas do MST procuravam promover
um trabalho permanente com as bases, para “juntar pobre”, reuni-los em acampamentos
e, sobretudo, organizar ocupações de terra de modo a pressionar o governo a
desapropriá-las, passando depois a exigir políticas públicas para os assentamentos. Esta
característica da “metodologia” de lutas do MST, segundo Fernandes, classificada na
segunda metade da década de 80 como “autoritária”, é provavelmente a raiz de sua
extrema vitalidade, já que, foi assim que ele passou a existir enquanto movimento
autônomo, territorializado
7
em acampamentos e ocupações de terra que lhe propiciaram
também visibilidade na esfera pública. É importante não perder de vista, como veremos
ao longo deste trabalho, que este conflito também encerrava uma disputa de hierarquias
entre as lideranças já estabelecidas e os militantes que estavam chegando e estruturando
um novo movimento social.
Ao se centrar mais na descrição das ocupações como marcas da implantação do
MST em cada estado onde ele hoje está organizado, Fernandes traz informações
relevantes para a construção da trajetória de nacionalização do MST. Entretanto,
considero mais eficiente para os objetivos desse estudo não adotar as categorias que ele
desenvolveu, mesmo porque seu relato se apóia no discurso e nas categorias de
interpretação que o próprio MST aciona para dar conta deste processo, deixando
brechas em aspectos que serão objeto desta tese
8
e que foram, a meu ver, teoricamente
constrangidos por esta opção. Esta decisão deixou de lado a riqueza desta experiência
humana singular vivenciada por este determinado grupo social, em especial, a particular
trajetória dos militantes que se dispuseram a empreender este percurso. Ou seja, este
trabalho parte do pressuposto que o padrão de migração de militantes sulistas do MST
7
Segundo Haesbert da Costa, territorialização é um processo que engloba tanto fixação como mobilidade,
assim como itinerários e lugares. Para esse autor, território pressupõe o exercício de relações de poder
mediadas pelo espaço. Ele usa uma concepção mais ampla de poder que inclui hoje a força do poder
simbólico (Bourdieu) e dos micropoderes (Foucault). Fernandes também trabalha com esse conceito em
seu livro sobre a formação nacional do MST, mas a definição de Haesbert me parece mais clara.
8
Existe obviamente uma tendência crescente de surgimento de trabalhos que visam de certo modo
“lisonjear” o MST, e que fazem parte da estratégia bastante racional de intelectuais de diversos matizes
que, vinculados organicamente ou não ao MST, e que “jogando, a partir de sua posição universitária ou
científica, no interior da organização e, a partir de sua responsabilidade potica, no campo intelectual,
podem economizar os custos que marcam a conquista da notoriedade e maximizar o rendimento
simbólico de sua atividade” (Gaxie 1977, p. 137). Exprimir esse reparo, no entanto, não visa excluir este
trabalho deste risco. Apenas pretendo esclarecer que ele é fruto de um esforço que inclui tornar esse
processo consciente.
19
revela muito do que o as características do habitus dos militantes deste grupo e são
fundamentais para a compreensão do fenômeno social desencadeado por este
movimento social. Cada pesquisador interessado no MST escolhe os aspectos que quer
se debruçar para compreendê-lo. Alguns vão a seus assentamentos, outros a seus
acampamentos, outros acompanham suas mobilizações. Neste trabalho, a compreensão
deste particular Movimento
9
se dá a partir da trajetória de alguns de seus militantes e
dirigentes que compuseram duas particulares gerações que, até por terem sido pioneiras,
construíram os alicerces do que esta organização é hoje.
Embora esta tese não seja fruto de um trabalho de campo extensivo no Nordeste,
é possível levantar características assumidas pela organização nesses locais, que
contribuem para uma melhor compreensão do papel que o MST desempenha hoje nos
“sertões” brasileiros. Na medida do possível, tentei descrever as diferentes realidades
que estes militantes encontraram nesta região, mas várias vezes este trabalho corre o
risco de cair em generalizações sobre realidades nordestinas bastante distintas entre si.
Embora, a princípio, este estudo ambicionasse abordar este aspecto, rapidamente me dei
conta que não era possível uma ex-militantes sulista do MST ter acesso a uma
percepção mais fidedigna das populações locais sobre este Movimento e seus
integrantes sulistas.
Este trabalho também visa relatar os pontos obscurecidos pela abordagem de
Fernandes de modo a enfocar não os processos de “espacialização e territorialização” de
um movimento social, mas sim os sujeitos dessa trajetória, personificados em militantes
cujas vidas têm sido marcadas por uma dialética permanente entre a sua história
individual e a de sua organização, ela própria, portanto, produto do modo como eles
conduziram sua trajetória individual. Ambos processos foram determinados por
contextos sociais e históricos que serão abordados nos capítulos iniciais desta tese.
Desenvolvo a apresentação desta pesquisa em seis capítulos. O Capítulo 1
apresenta o tema deste trabalho associando-o com uma discussão do conceito de
movimento social e das razões pelas quais este conceito é utilizado para tratar do MST.
No Capítulo 2, desenvolvo uma sucinta descrição da história agrária brasileira, onde se
insere a luta do MST. No Capítulo 3, discuto a trajetória histórica do MST,
relacionando-a com os contextos políticos que a envolveram e associando-a com
depoimentos que dão conta de como se deram os primeiros passos da expansão deste
movimento social pelo Nordeste. No Capítulo 4, procuro, dialogar com trabalhos que
abordaram a luta empreendida pelo que veio a ser conhecido como “sem-terras” do
MST em diferentes períodos da trajetória deste movimento social, de modo a traçar
como este processo de construção da identidade coletiva “sem-terra” foi apreendido
teoricamente, tendo em vista que estes trabalhos foram produzidos ao longo de um
período em que esta mesma identidade vinha se estruturando, através de trocas,
negociações, decisões e conflitos entre os atores envolvidos na luta pela terra e por
reforma agrária no Brasil.
A partir desse quadro histórico e teórico, é que chego, no Capítulo 5, na
trajetória dos militantes de primeira e segunda geração, onde enfoco aspectos
particulares e coletivos do percurso empreendido por estes dois grupos. Através da
trajetória de vida desses militantes, percebe-se como esse habitus do MST traduziu-se
na vida concreta desse indivíduos de origens sociais e culturais semelhantes e que
deram corpo para gestar e reproduzir a identidade sem-terra. No Capítulo 6, a partir
das entrevistas e de dados colhidos no trabalho de campo, levanto aspectos que
9
Quando usar a palavra “Movimento”, com maiúsculo, estarei me referindo ao MST. Deste modo,
também reproduzo a maneira como fala-se internamente deste movimento social. Para seus militantes,
“Movimento” é o MST.
20
corroboram a tese que subjaz este trabalho, que é o caráter modernizante da luta
empreendida pelo MST. Para tanto, o enfocados dois eixos que caracterizam a
“metodologia” do trabalho político do MST tanto no Nordeste como em outras regiões
do país: a produção e a educação continuada. O eixo da produção será abordado a partir
da percepção dos migrantes militantes sulistas sobre concepções de produção e
economia doméstica com as quais eles convivem no Nordeste. Já a parte de formação e
educação continuada o retomadas a partir do depoimento de militantes envolvidos
nessa questão, cujos relatos de certo modo dão conta modo como esta área se entrelaça
com o processo de expansão do MST e a manutenção de seu habitus militante.
21
CAPÍTULO 1
Um movimento social “em movimento
Neste capítulo, apresenta-se o tema de estudo relacionando-o com uma discussão
de conceito movimento social e de seu uso para abordar o MST. A partir daí, já são
introduzidas algumas características organizativas do MST e do contexto histórico onde
os debates sobre suas lutas são travados.
1.1 Um padrão de migração militante
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST foi fundado
oficialmente por cerca de 100 pessoas em um encontro realizado entre os dias 20 e 22
de janeiro de 1984, no Centro Diocesano de Formação, em Cascavel (PR) . Pouco mais
de 20 anos depois, em maio de 2005, este Movimento teve a capacidade organizativa de
fazer evoluir uma marcha de 12 mil sem-terras vindos de vários estados do Brasil,
conseguindo gerir uma infra-estrutura para atender uma verdadeira cidade ambulante
que, em praticamente todos os 17 dias de durão da marcha, invadia massivamente
algumas das fazendas que encontravam-se pelo caminho, deixando-as completamente
intactas e amesmo com suas cercas reconstruídas, quando seguiam para seu destino.
Organizado hoje em 24 estados, o MST reuniu em seu 5º Congresso Nacional, em 2007,
18 mil militantes oriundos de todas as regiões do país.
Mesmo não sendo o único movimento social a atuar no campo e a ter como
bandeira a reforma agrária, ele hegemoniza essa luta e acabou por popularizar o termo
“sem-terra” que, para as pessoas informadas pelos relatos da imprensa, parece
significar a mesma coisa que MST. Com lutas iniciadas no Rio Grande do Sul, os sem-
terra sulistas ou “colonos sem-terra” agregavam, sobretudo, filhos de pequenos
proprietários excluídos da propriedade da terra pelo sistema de herança ou pelo próprio
processo de modernização agrícola, como a adoção da cultura da soja que,
acompanhada da utilização de agrotóxicos e fertilizantes, política de crédito rural e as
exigências dos novos circuitos de comercialização, mudou profundamente o panorama
da região onde o MST se originou e recrutou mais facilmente a sua base. Não por acaso,
esta é a mesma região de onde partiu o outro contingente de “gaúchos” em busca de
novas terras na região Sul e mais recentemente no Norte, Nordeste e Centro-Oeste do
país para introduzir um processo de modernização “arrasadora”
10
associado, sobretudo,
ao cultivo da soja.
Quando o MST passa a enviar seus militantes para organizar suas bases nesses
mesmos estados, também procurados pelos agricultores “gaúchos” com metas opostas
às suas, descortina-se um objeto rico em significações, pois esse processo pode se
constituir como chave explicativa da cultura potica do MST, visto que está presente
em toda a expansão do Movimento. Pode-se inclusive afirmar que o MST desenvolveu
um padrão de migração que é instrínseco ao modo como ele se expandiu nacionalmente.
10
Termo usado por Haesbert (1997) sempre entre aspas por todo seu livro, por considerar que o processo
de transformações associados aos empresários rurais sulistas no Nordeste é profundamente
desterritorializante, tanto em termos ambientais, como econômicos e culturais.
22
Embebido na tradão marxista, este Movimento, no entanto, tem sua origem
mais direta no trabalho pastoral de Igrejas Cristãs, mais especificamente, da Comissão
Pastoral da Terra (CPT), fundada uma década antes de seu surgimento, em 1975.
Herdeiro das concepções das pastorais progressistas da Igreja Católica, o Movimento
Sem Terra é um dos frutos desta tradição religiosa. Muitos de seus militantes fizeram
parte de seus estudos básicos e, mesmo, superiores em seminários e instituições
católicas ou militaram na Pastoral da Juventude e nas CEBs (Comunidades Eclesiais de
Base). Estreitamente associada a comunidades rurais, a Igreja Católica da região Sul
também tinha nestes espaços sua maior fonte de candidatos à carreira religiosa,
particularidade que sanava a histórica dificuldade da instituição em reproduzir seus
quadros no país
11
.
Embora alguns militantes e dirigentes tenham rompido com uma trajetória que
desembocaria na carreira religiosa, ao construírem o MST, acabaram reapropriando-se
do método de organização da ação pastoral progressista da Igreja que, na década de 70,
questionava o sindicalismo rural “assistencialista”, “burocratizado” e “presidencialista”
e propunha um trabalho político voltado para a organização das bases, ou seja, daqueles
setores da população altamente pauperizados e desprovidos de qualquer participação
política, geralmente marcados por relações de dependência pessoal e clientelismo
político
12
. É importante ressaltar que, segundo Esterci (1990), no início da articulação
da luta pela terra no Sul do país, em fins da década de 70, desenvolveu-se um trabalho
conjunto entre sindicatos “combativos”, “Comissões de Sem Terra” e comunidades de
colonos, assessorados pelas pastorais da Igreja Calica e entidades de apoio. Estas
articulações regionais se unificaram em 1984 na constituição do MST, que passou a
reivindicar autonomia em relação aos sindicatos de trabalhadores rurais, mas em
diversas situações o dispensou seu apoio e engajamento, que sua estrutura era
necessária, sobretudo, nas áreas onde o Movimento procurava se expandir. Neste
processo de nacionalização, a articulação com sindicatos de trabalhadores rurais,
comunidades eclesiais de base e CPT manteve-se, mas a chegada de militantes sulistas
e a necessidade de constituir um movimento social autônomo não se deu sem conflitos.
1.2 Um conceito em ação
Antes de abordar mais diretamente as questões que serão desenvolvidas por esta
tese, devo discutir um pouco a opção que este estudo toma de trabalhar com o conceito
movimento social como categoria de análise para tratar do MST e dos militantes cujo
percurso ajudaram-no a expandir-se nacionalmente. No Brasil, há um debate acadêmico
e, mesmo público, ou seja, com espaço em alguns jornais de grande circulação do país,
questionando a validade de se considerar o MST um movimento social
13
. Na concepção
de autores como Navarro (2002) e Martins (2000), os movimentos sociais possuem
estruturas flexíveis e surgem vinculados em relação a uma problemática, uma demanda,
e desaparecem quando esta é resolvida. Esta conceituação de movimento social não
encontra respaldo na literatura na qual me apóio, cujo debate é brilhantemente resumido
por Neveu (2005). Como apresento o Movimento Sem Terra como tal e, mais do que
11
Esta é a razão pela qual, no Brasil, a Igreja Católica sempre dependeu de levas constantes de sacerdotes
estrangeiros para suprir as necessidades de suas paróquias.
12
mais elementos sobre esse contexto do sindicalismo rural nos artigos de Grzybowki e Poletto
presentes no livro organizado por Paiva (1985)
13
Este debate chegou inclusive a alguns jornais de grande circulação, como em Arruda, Roldão. “Estado
de o Paulo”, 29/04/2007 p.A-10
23
isso, o compreendo deste modo, acho importante levantar parte desta literatura para
justificar esta opção.
Em termos de conceito de movimento social, adoto a proposta de Alain Touraine
mesclando-a com a de Alberto Melucci. De acordo com o modelo de caracterização de
movimentos sociais proposto por Touraine, a partir da combinação de três
características (identidade, adversário e objetivo), o MST se define como um
“movimento social de massas” de “caráter sindical”, já que luta por terra e, num
segundo momento, por crédito para os assentados, ou seja, por promover conquistas
econômicas; “político”, porque procura contribuir com mudanças sociais; e “popular”,
por ser amplo, contar com a participação de diferentes categorias, lutando por
reivindicações “populares” que, no jargão do Movimento, querem dizer escola,
assistência à saúde e transporte nos assentamentos (Stédile e Gorgen, 1996). O
adversário tradicional do MST são os donos de latifúndios ou de propriedades cuja
origem é irregular, visados pelas ocupões/invasões de terra. Recentemente, diante dos
próprios desafios políticos enfrentados no cotidiano de sua luta, o Movimento incluiu
nesta categoria o chamado agronegócio” que, segundo sua avaliação, além de ser
portador de um modelo agrícola historicamente excludente, disputa com a reforma
agrária as terras improdutivas que estão nas mãos dos proprietários rurais tradicionais,
aliando-se com estes para impedir qualquer avanço institucional que facilite o processo
de reforma agrária no país. Quanto a seu objetivo, a ser alcançado a partir de uma
reforma agrária, seu sentido foi ampliado para luta por “mudançaou “transformação da
sociedade brasileira”, por um “novo modelo agrícola” e por “uma sociedade em que
todos tenham trabalho”
14
, o que, na prática, amplia o espectro de seus adversários
políticos, incluindo também as transnacionais envolvidas com sementes e insumos
agrícolas, com comercialização e com a agroindustrialização.
Apesar de ter construído esse modelo de caracterização, e mesmo um método de
pesquisa voltado à pesquisa sobre movimentos sociais - a “intervenção sociológica” -,
Touraine tem, na realidade, uma definição bastante particular desta categoria. Para ele,
em cada sociedade haveria um movimento social que está localizado no núcleo das
contradições sociais desta sociedade e que encarna o somente uma mobilização, uma
demanda específica, mas um projeto de mudança social, de “direção de historicidade”,
ou seja, disputa modelos de conduta a partir do qual uma sociedade produz suas práticas
(Touraine, 1978). Esse papel, antes ocupado pelos movimentos operários, hoje em dia
parece virtualmente diluído em diversos atores nas sociedades complexas como a
brasileira. Portanto, se esta idéia for válida, somente desdobramentos históricos futuros
das condições presentes poderão revelar se o MST é um movimento social com
capacidade de produzir novas orientações da vida social para o conjunto da sociedade
brasileira.
Na teoria desenvolvida por Melucci, movimento social é toda e qualquer “ação
coletiva cuja orientação comporta solidariedade, manifesta um conflito e implica a
ruptura dos limites de compatibilidade do sistema ao qual a ação se refere” (Melucci,
2001, p.35). Neste processo, este autor dá particular ênfase à construção da identidade
coletiva que, para ele, não é um dado ou uma esncia e sim “produto de trocas,
negociações, decies, conflito entre os atores” (Ibid, p. 23), ou seja, é uma identidade
interativa e compartilhada, resultante do que vários indivíduos produzem acerca das
orientações da ação e o campo de oportunidades e de vínculos que esta ação se coloca”
(ibid, p. 68). É através deste processo que se criam novos códigos culturais e novas
alternativas simbólicas que definem a identidade coletiva que não são produto somente
14
Entrevista de João Pedro Stédile in Lerrer (2003).
24
de decies pautadas na “racionalidade instrumental”, ou seja, na obtenção de demandas
concretas, pois incorporam fortes ingredientes emocionais.
Segundo Melucci, o papel dos movimentos sociais é “provocar a visibilidade do
poder, obrigando-o a tomar forma” e, desse modo, eles “explicitam conflitos e
necessidades de mudança, operam como motores de transformação e como reveladores
dos pontos mortos, das contradições, dos silêncios que os aparatos dominantes tendem a
ocultar” (Melucci, 2001, p. 123). Esta definição abre caminho para se ter também em
mente que o conceito “movimento social”, mais do que dar conta de um determinado
fenômeno empírico, com características claramente definidas, serve como lente” para
nomear determinados fenômenos associados a lutas sociais, cuja classificação nesta
categoria pode facilitar a compreensão de aspectos fundamentais de uma determinada
sociedade, mais particularmente, onde se dão seus conflitos sociais mais intensos. Além
disso, a definição de Melucci para movimentos sociais abre caminho também para se
analisar o processo empreendido pela luta pela terra no Brasil onde o maior sujeito
coletivo é o Movimento Sem Terra - sob o aspecto simbólico do enraizamento ou não
de um novo consenso em torno do “valor” de democratizar a terra através de uma
reforma agrária, principal bandeira de luta deste movimento social altamente
organizado. Deste modo, Melucci sugere também um caminho de análise da luta por
reforma agrária como “luta simbólica”, nos termos de Bourdieu, ou seja, “pelo poder de
conservar ou transformar o mundo social, conservando ou transformando as categorias
de percepção deste mundo” (Bourdieu, 1989:142), vendo-a, portanto, como uma luta
para a imposição de novos significados e novos códigos culturais.
É pelo viés da formação desta identidade coletiva - o sem-terra do MST -, a
partir da trajetória e das representações de militantes sulistas enviados para o Nordeste,
que pretendo explorar o processo de expansão nacional do MST, mesmo porque esta
identidade política exprime também formas de luta pela terra, como o acampamento e as
ocupações, distintas das que tradicionalmente eram empreendidas nesses estados
nordestinos, onde geralmente se manifestava como luta de posseiros, foreiros ou de
assalariados rurais. No caso desses últimos, embora sempre lutassem para ter acesso ao
“sítio”, ou seja, a uma área para plantar dentro da propriedade do usineiro, esta demanda
nem sempre embutia o questionamento da estrutura fundiária da região (Sigaud, 1983).
1.3 Pesos e medidas conceituais
Com o fim de retomar o debate sobre o uso do conceito de movimento social
para tratar do MST, é importante recordar que mesmo nas ciências ditas “duras”, grande
parte do que é descrito como “do” objeto estudado está embutido no aparelho conceitual
do observador. Em suma, é muito comum que “atores” e “autores” do discurso
científico, ainda mais na área das ciências sociais, vejam e atribuam características aos
fenômenos estudados que muitas vezes estão lá, mas não com o mesmo peso e a mesma
medida produzidos na cabeça do próprio pesquisador. Isso, evidentemente, não quer
dizer que tais elementos não estejam presentes. A diferença é que a ênfase que o autor
a esses elementos é diferente da existente no fenômeno ou que as palavras muitas
vezes carregadas de sentido, intenções e significados, invariavelmente políticos,
escolhidas pelo autor tenham a intenção de revelar um viés e acabem por obscurecer
outro. Como este trabalho também está prenhe destes riscos, tomo a liberdade, antes de
descrever os aspectos que devo pontuar deste fenômeno chamado MST, de voltar ao
debate que existe no fato de se apontar que o MST deixou de ser um movimento social
para se tornar uma organização”.
25
Em artigo que analisa o que ele classifica de “organização do MST”, ou seja, o
corpo dirigente e burocrático que lidera os rumos tomados pelo Movimento, Navarro
(2002) conclui que ele o é mais um movimento social por conta da exisncia dessa
estrutura. Além disso, segundo o autor, o MST teria se tornado uma organização não-
democrática, autoritária que, em suas práticas, reproduz as tradicionais características
das relações sociais do campo, ou seja: o mandonismo, a troca de favor e o clientelismo.
Este autor atribui essa característica do MST ao “marxismo-leninismoadotado em seu
processo de distanciamento da Igreja a partir de 1986. No entanto, é importante destacar
que o “marxismo-leninismo” do Movimento é bastante híbrido por conta de seu enorme
enraizamento na tradição política católica e pelas características de sua base social
militante, oriunda sobretudo da região Sul do país.
Segundo Navarro, o Rio Grande do Sul, berço do método do Movimento, é o
estado “laboratório”, onde muitas vezes se testam iniciativas de luta que depois são
aplicados nacionalmente. Ele, entretanto, afirma que a expansão do MST pelo país se
deu depois do seu afastamento e “da recusa dos agricultores sem terra em submeter-se à
direção incontrastável assumida até então por mediadores da Igreja Calica”, ao mesmo
tempo em que seus dirigentes resolveram abraçar o ideário marxista-leninista. Esta
leitura de Navarro não condiz inteiramente com este processo de nacionalização que
dependeu, sobretudo, da rede existente na Igreja, como demonstrarei nos capítulos
seguintes. Segundo o depoimento de um dos dirigentes responsáveis pelo processo, o
fato de ele ter sido seminarista, ligado a um bispo da região Sul, servia de chancela para
a chegada nesses locais onde ele era recepcionado por pessoas que estavam de algum
modo vinculados à Igreja, seja à CPT ou a sindicatos mais afinados com as chamadas
“oposições” sindicais também estimuladas pelas pastorais católicas.
Dentro do MST um discurso para justificar a opção pelo afastamento da
Igreja. Na visão de seus dirigentes, a orientação desta instituição não correspondia à
necessária radicalidade que deveriam ter para conduzir a luta pela reforma agrária que,
no Brasil, segundo a crença da organização, será efetivamente alcançada quando
houver uma transformação social profunda do país.
Em suma, se a expansão pelo país se deu concomitante a esse afastamento de
mediadores da Igreja Católica, mais especificamente da CPT, ela foi possível graças
às relações anteriores que esses militantes do MST tinham com esta instituição. Por
outro lado, outro autor, Martins (2000), enfatiza que a própria CPT adotou esse ideário
do chamado “marxismo vulgar”, dando a entender que ambas as “agências de
mediação”, ou seja, o MST e a CPT, acabaram percorrendo caminhos ideológicos
parecidos, embora o primeiro tenha laicizado progressivamente seu método político, a
ponto de, diante da diversidade religiosa presente entre os sem-terra de algumas regiões,
como no Nordeste, nunca ter adotado símbolos católicos nos centros de seus
acampamentos, como era tradição na região Sul, antes do surgimento da bandeira da
organização.
O MST, na realidade, tem as características de um movimento social, no sentido
de disputar modelos de conduta social, promover ações que dão visibilidade ao poder e
exem os limites de compatibilidade do sistema, assim como também é uma
organização altamente estruturada. Ele não deixa de ser movimento social por ser
também uma organização. Não existe uma dicotomia rígida neste universo, como
fazem crer estes autores. Concomitante a essa estruturação interna, o MST sempre se
manteve privilegiando ações coletivas públicas que colocam em questão determinadas
concepções hegemônicas, assim como formulam demandas ao Estado que são,
dependendo da conjuntura política, mais ou menos atendidas. Aliás, desde que surgiu o
MST alterna o que eles chamam de “pau”, ações de massa, e prosa”, negociações em
26
várias esferas governamentais. Em geral, as mobilizações tem por objetivo abrir canais
de negociação. Algumas de suas demandas são pontualmente atendidas, outras
postergadas, mas é nesse jogo de pressão constante que foi se esboçando políticas do
Estado que, nos últimos 20 anos, atendem em maior ou menor grau demandas dos sem-
terra e dos assentamentos de reforma agrária.
Desde os acampamentos, secretarias até suas instâncias de decisão existe uma
estruturação do MST em setores, responsáveis políticos, em suma, uma organização
hierarquizada, mas também bastante horizontal. Obviamente, portanto, o MST possui
uma burocracia e gerou carreiras profissionais e núcleos centrais de decisão que, no
entanto, são conjugados com um grande esforço de “distribuição de tarefas”. A partir de
meados da década de 80, meio no improviso e de acordo com as necessidades da luta
que empreendiam, foram-se criando setores que não eram ocupados por especialistas,
mas sim, por militantes que foram, ao longo do tempo, se especializando nessas
funções. Isso não quer dizer que não possam, ao longo de sua trajeria no Movimento,
serem deslocados para tarefas completamente diferentes. A estruturação do MST não o
diferencia das tendências de qualquer aglomerado humano que partilhe determinados
objetivos, entre eles a própria sobrevivência do grupo, enquanto grupo (Moore Jr.,
p.1987), muito menos do conceito de movimento social que pode ser visto, em si, como
um claro exemplo de “efeito de teoria”, no caso, a marxista.
A dicotomia que cerca esse conceito aparece também nas análises que jogam a
sociedade civil e seus movimentos sociais para um lado, e o Estado para outro. Tanto
Martins (2000), como Navarro (2002) criticam o discurso “anti-Estado”, segundo eles,
presente no MST. É interessante observar que esse discurso pode ser oriundo do ideário
leninista que a organização passou a adotar a partir de 1986, mas que também tem raízes
em outras correntes teóricas da esquerda brasileira que, a meu ver, deram origem ao PT
e ao PSDB e que tinham por alvo a crítica das políticas do “nacional-
desenvolvimentismo” ou do “populismo” (Fiori, 2004). Estes dois aspectos da prática
do MST possuem origens diversas, mas estão bastante enraizadas na tradão política
nacional e, de fato, este movimento social é o que a sociedade brasileira teve
possibilidade de construir, nada mais nem menos.
Martins chega a afirmar que muitas das ações do MST têm caráter
“antiinstitucional” e até mesmo “fortemente luddista”, tais como os “corte de cercas”,
as “ocupações de terra”, as “quebra de pontos de pedágio”, os “saques” e as “ocupações
de repartições públicas”, em geral, das superintendências regionais do Incra. Essas
ações, entretanto, estão bem longe do que historicamente se constituíram as
manifestações luddistas na Inglaterra do início do culo XIX
15
. Isso porque a chamada
“demolição simbólica e também real”, expressada pelas ações dos luddistas, tinham um
caráter autodefensivo diante de um mundo ameaçado. No caso dos sem-terra, elas
podem parecer ter esse caráter, quando mulheres vinculadas ao MST, integrantes
também da Via Campesina, atacam pesquisas de uma indústria multinacional de
celulose. Mas, em geral, elas são ações afirmativas no sentido de se constituírem como
pressão para chamar atenção, conquistar visibilidade, em suma, criar fatos políticos que
geralmente desesmbocam em canais de negociação
16
. Elas não se esgotam em si
15
O Luddismo é o nome do movimento que surgiu na Inglaterra no início do século XIX, insurgindo-se
contra as profundas alterações trazidas pela chamada revolução industrial. Eles invadiram fábricas e
destruíram máquinas, por eles batizadas como obras de Satanás e que por serem mais eficientes que os
homens eram vistas como destruidoras dos empregos. (pt.wikipedia.org/wiki/Luddismo).
16
Este relacionamento dos movimentos sociais com a mídia acaba sendo determinante em uma sociedade
como a atual, em que a experiência da realidade social se dá intensamente por informações mediatizadas
pela televisão, rádio, internet e páginas de jornais e revistas, e onde as diversas formas de mobilização
27
mesmas, ao contrário do que afirma o Martins (Ibid., p. 18), e não creio terem um
caráter “antiinstitucional”, porque pressupõem uma constante pressão sobre essas
mesmas instituições para que funcionem sob outra perspectiva: a do cumprimento da
legislação que, em linhas gerais, exige que a terra cumpra uma “função social”. Por
mais atenuada que essa função esteja hoje na Constituição brasileira ela é a fonte da
legitimidade invocada pelo MST para efetuar suas ações. Aliás, o MST vive
tensionando a fronteira entre a legalidade e a ilegalidade que pressupõe, sim, a
possibilidade de excessos em determinadas mobilizações
17
. Mas sua exisncia de mais
de 20 anos se deve justamente a ele procurar a todo momento manter-se o mais próximo
desse limite, enfrentando toda sorte de decisões muitas vezes arbitrárias oriundas dessas
ditas instituições do Estado, supostamente negadas pelas ações do MST. Muito mais do
que negar o Estado, o MST quer pressioná-lo para que este negocie com ele, passando a
considerar suas demandas e desenvolver políticas públicas para atendê-las. Na prática,
isto significa o reconhecimento institucional de sua legitimidade.
Por outro lado, seria pertinente também fazer a genealogia do discurso “anti-
Estado” que, no passado, foi claramente presente no discurso MST e de vários
movimentos sociais brasileiros surgidos no final da década de 70 e, portanto, no fim de
um período autoritário. A meu ver, o MST é um herdeiro notório - mas bastante
miscigenado - de práticas políticas vinculadas mais à esquerda do tabuleiro, como é o
caso da atuação do PCB no campo na década de 50 e 60, que, às vezes, desemboca na
opção pela constituição de uma espécie de “Estado paralelo”, com seus militantes
cumprindo funções que deveriam estar sendo atendidas por instituições estatais
18
, até
por considerarem, pelo menos até pouco tempo atrás, que o Estado não passava pura e
simplesmente de um “aparelho da burguesia”. De qualquer modo, minha impressão é
que tanto o MST passou a ter uma visão bem clara da necessidade de “ocupar”, no
sentido de pressionar o Estado para atender suas demandas, como este tem se tornado
mais permeável a esta dinâmica. Episódio interessante desta postura foi uma ocupação
que o MST organizou no Incra em Curitiba, em julho de 2004. Como vários dos
processos de desapropriação estavam parados nas mãos dos funcionários, os sem-terra
ativadas pelos movimentos sociais dependem muito de que sua “palavra” esteja presente nessas arenas
virtuais, cuja forma e conteúdo estruturam os quadros cognitivos dos consumidores de comunicação e a
realidade na qual operam e tomam posições. A própria linguagem mobilizatória criada pelos movimentos
sociais é muitas vezes construída tendo em vista atingir esse alvo. É, portanto, através desses veículos de
comunicação onde pode ser constatado ou não o processo de consolidação da “nova culturaproposta
pelos movimentos sociais, gerando um novo consenso que torna-se, futuramente, parte do senso comum.
Para Melucci, o ambivalente “discursoblico” fornecido pela mídia é “produto resultante de um
complexo jogo de interações, no qual intervêm, certamente, os objetivos e interesses dos grupos de poder
e dos aparatos públicos”, e para o qual contribuem “com um papel não subalterno” os profissionais de
comunicação e os usuários dessas produções simbólicas que compõem este discurso blico através “da
filtragem das mensagens, da ativação das redes comunicativas quotidianas, das escolhas de consumo que
levam aos diversos meios” (Melucci, 2001:144) Como observa Sidney Tarrow, “os movimentos
contemporâneos o mais dependentes da formação de um consenso através da mídia do que a mídia é
dependente deles” (Tarrow,.129). Por esta razão, para ampliar seus participantes, divulgar nacionalmente
suas ações, impressionar o poder e o resto da sociedade com sua força, esses movimentos precisam
estruturar suas ações em uma linguagem que chame a atenção da mídia e faça com que ela as transmita.
Mas, ao “fazerem a notícia”, os movimentos também entram em uma esfera de risco de significação, pois
“não podem fazer a mídia publicar essas notícias do jeito que lhes é mais favorável (Idem).
17
Afinal, ao promover ocupações coletivas dentro de propriedades privadas ou prédios públicos, o MST
comete uma ação chamada juridicamente de “esbulho possessório”, que o sujeita a sanções legais. Mas na
medida em que essa ação chama atenção de autoridades e da sociedade em geral, sua ilegalidadeserve
para chamar atenção para as bandeiras do Movimento...
18
Como a seleção e vistoria de terras improdutivas ou em situação irregular nos vários estados da
federação brasileira.
28
acampados ocuparam” o prédio, questionando pessoalmente os servidores responsáveis
pelos setores onde os processos estavam paralisados e exigindo a razão pela qual eles
não estavam andando.
Como explicita Neveu, ao contrário de desaparecer, “um movimento social que
dura e que tem sucesso tende a se cristalizar em grupo de pressão, a dispor de acesso
rotinizado aos lugares de decisão, como demonstra a história do sindicalismo europeu
(2005:18)”
19
. O fato, portanto, de um movimento social construir estruturas burocráticas
mais permanentes não retira necessariamente seu caráter de movimento social. Isso
ocorreria se ele passasse a privilegiar as reuniões de gabinete, entre seus representantes
e as autoridades político-administrativas, deixando para trás as lutas, “as ações de rua”,
de caráter público, ou melhor, em condições de publicidade, dependendo para tanto da
visibilidade provocada por sua capacidade de mobilização, capaz, portanto, de chamar a
atenção dos meios de comunicação social que ao falarem”, fazem propaganda do tema
e acabam promovendo debate público sobre ele.
Por outro lado, o fato de o MST dispor de recursos oriundos do Estado não o
distingue de maneira alguma de outros movimentos, considerados sociais, por esta
tradição de autores. vários casos de movimentos sociais que acabaram, de algum
modo, sendo estimulados pelos poderes públicos como, no caso da União Federal de
Consumidores na França, citada por Neveu. Embora o MST receba verbas para projetos,
ele certamente o possui o tipo de relação que o Estado estabeleceu com o
sindicalismo rural, que é institucionalizada. É fato também que os movimentos sociais
provocam a criação de novas estruturas do Estado como, no caso brasileiro, os
Ministérios do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário e as secretarias da
Mulher e de combate às Desigualdades Raciais. Mesmo esse processo, que teve paralelo
em diversos países, não impede que exista uma relação de “colaboração conflituosa”
com o Estado, cuja correlação de forças geralmente seleciona os temas com os quais
pretende lidar (Offe, 1984). Ambas as partes, de acordo com as necessidades de cada
um e do contexto político, podem manter alguns momentos de fronteiras diluídas ou
bem demarcadas. Assim como podem existir casos de “administrações militantes”, nas
quais os quadros do Estado ou do governo simpatizam frequentemente com as causas
que têm que administrar, existem aqueles em que os movimentos sociais são
parcialmente fagocitados” por sua colaboração institucionalizada na definição e na
colocação em prática das políticas públicas (Neveu, 2005: 95).
1.4 A “nova organicidade”
As estruturas burocráticas do MST cresceram ao longo dos anos de sua
trajetória, atendendo às suas necessidades internas decorrentes de sua própria expansão
nacional, à complexificação de suas demandas e de sua vida social, assim como aos
contextos políticos com que foi interagindo. Se isso vai torná-lo uma estrutura rígida,
próximo de um “partido popular camponês”, como o denominou Martins (1997(1)),
ainda não pode ser mensurado, pois o dinamismo interno do MST acaba não
favorecendo a cristalização dessas estruturas. Seus pprios métodos de organização são
muito dinâmicos.
Um exemplo disso é a adoção, a partir do início da década de 2000, de um novo
método de organização interna que eles denominaram de “nova organicidade
20
. Esta
19
A maioria das citações oriundas de textos franceses presentes ao longo desta tese são traduções livres
da autora.
20
Em geral, o termo organicidade” é utilizado para se referir à organização interna de acampamentos e
assentamentos, ou regiões e estados onde o MST está organizado.
29
nova “metodologiafoi criada em resposta aos desafios enfrentados em estados como o
Rio Grande do Sul e o Paraná, onde o Movimento tem uma base social muito grande,
com vários assentamentos mas onde “várias questões internas não fluíam”, como
explica Paulo, um dos idealizadores desse processo. Essa metodologia surgiu da
constatação de que eles eram um grande movimento de massas, “mas pouco organizado
internamente”. Ela visava, portanto, fomentar a democracia interna:
Foi tamm um pouco essa idéia de criar uma nova cultura política,
em que se combatesse o personalismo, o centralismo exagerado ?
e se aplicasse então a democratização. Mas agora, não no sentido de
que fosse uma coisa ingênua Não, porque presente, então é
democrático”. Mas com a elevação da consciência. Para que as
pessoas pudessem, de fato, se sentir sem-terra. Continuam na
organização, pertencem a ela e tamm fazem o destino desse
Movimento, né?
Até então os assentamentos do MST se organizavam em grandes regionais.
Havia um dirigente para dar conta de, por exemplo, três mil famílias assentadas.
Como explica a cartilha “O funcionamento das brigadas do MST”, agora procura-se que
cada 500 famílias assentadas ou acampadas em municípios próximos componham uma
“brigada”
21
, onde se daria a organização dos núcleos, dos setores, da direção e da
coordenação estadual. Dentro da brigada, cada 10 famílias devem compor um núcleo,
onde um homem e uma mulher são escolhidos para serem os coordenadores. A brigada
também se organiza em setores (frente de massas, produção, educação, formação, saúde,
gênero, comunicação, cultura) e em equipes de finanças, secretaria, disciplina e direitos
humanos.
Paulo explica que eles mudaram a referência para estabelecer “a função da
direção local: de região geogfica passou a ser o número de famílias. Deste modo,
hoje os dirigentes não são responsáveis por uma área determinada, e sim, por uma certa
quantidade de famílias que vai de 500 a mil famílias. A “nova organicidade” foi,
segundo ele, uma resposta a várias “deficiências internas”.
21
O termo “brigada passou a ser adotado pelo MST a partir de 1986, quando passaram a enviar
militantes para Cuba, onde estes adotaram este termo muito usado por lá. Segundo Paulo, eles passaram a
usar “brigada” para organizar internamente os cursos que costumavam ser mais prolongados do que hoje,
já com uma iia de “recuperar e dar conteúdo ao conceito”. Para eles, brigada é “mais que um grupo”. É
uma articulação de pessoas que tem um planejamento amplo, que vai desde atividades de estudo até
atividades de limpeza, contribuições nos serviços e no trabalho produtivo. Cada brigada funciona como
“um corpo dentro do todo”, diz Paulo. Elas se gerem “com uma disciplina e uma referência de valores,
que eles mesmos se corrigem entre si”. Os coordenadores e coordenadoras são responsáveis “pelo bem
estar de todos os membros” do grupo.. Quando passaram a usar esse termo para dar nome à organização
interna dos assentamentos e acampamentos, a partir de 2001, 2002, o MST teve em mente justamente
recuperar essa dinâmica interna participativa propiciada pelas brigadas dentro dos cursos oferecidos por
eles. Paulo explica que havia “um certo descontentamento, pois nas cooperativas não se priorizava muito
os núcleos; se priorizava a questão da assembléia, porque se tomava decisões na assembléia. Se pra
organizar núcleo aqui no curso, dá pra organizar também na cooperativa”. Embora haja ainda alguma
confusão entre os termos núcleo” e “brigada” que muitas vezes querem dizer a mesma coisa, Paulo diz
que brigada hoje é o nome que se dá para os grupos que se organizam internamente nos cursos e reuniões
do MST e para o grupo de cerca de 500 famílias que vivem próximas em acampamentos e assentamentos.
núcleo passou a denominar os grupos menores de famílias que compõem as brigadas organizadas
regionalmente.
30
A primeira era de que havia um baixo nível de participação nas
decisões. Um grande número de famílias que não opinavam e eram
pouco influenciadas pelas decisões das instâncias. Nem sempre elas
tinham conhecimento do que se decidia. Então, o núcleo e a
articulação dessas famílias de um assentamento deveria ir além da
assembléia, porque elas também deveriam debater os assuntos,
participando das discussões. O segundo elemento foi o método de
direção. Nós tínhamos um problema de todo; porque o dirigente
não tinha condições de ele, individualmente, ter contato direto com a
grande maioria das famílias.
A “nova organicidade” teve por conseqüência, segundo seu depoimento, ampliar
o número de dirigentes e aproximá-los das famílias. Até então, se um dirigente
representasse o Sul de um estado, havia só ele como referência do MST em toda essa
região que poderia ter mais de duas mil falias assentadas. Desse modo, ele não “ia
dar conta e não representava”. Ao invés de um só dirigente para essas famílias, passou a
haver oito. Um homem e uma mulher como coordenadores a cada 500 famílias e um
“responsável” pelo grupo todo. Onde havia um representante, passou a haver nove.
Além disso, segundo Paulo, cada 50 famílias também tem um representante de setor na
Brigada. Assim, os setores do movimento não são mais estaduais, também são locais. E
isso, para ele, constitui uma direção coletiva e faz com que os assentados e
acampados do MST melhorem “sua visão e a pertença ao Movimento”. As brigadas,
também conhecidas como “micro-regionais” também implicam trabalhos específicos
com as mulheres, com os jovens e as crianças, cada qual em referência a um dos setores
e, portanto, geralmente se caracteriza por “tarefas” objetivas para cada um dos
participantes, o que fortalece o vínculo com o MST.
O outro elemento de deficiência do Movimento, que procurou ser sanado com
esta nova metodologia, foi a “formação da consciência”. Segundo Paulo, “como não
havia essa estrutura orgânica, as pessoas também o estudavam, não participavam dos
debates, não recebiam informações”. Mais do que descentralização, essa nova
organicidade ajudou a superar o que ele chama de “forma cômoda de funcionamento de
uma organização de massa”. Questionado sobre o que ele queria dizer com isso, Paulo
respondeu:
Forma cômoda é que você evita de solucionar determinadas questões,
porque você não tem contato com elas, né? Então você se distancia do
problema, você não tem preocupação com ele. Imagina que você faz
uma reunião da direção estadual, que antes era de quinze, agora você
tem sessenta, oitenta pessoas, todos têm um problema pra colocar,?
Ele avalia que se em alguns lugares, dependendo dos problemas, as reuniões
ficam mais acaloradas, por outro lado, “dinamizou” e “distensionou mais” a vida interna
da organização. Essa nova dinâmica, que reduz consideravelmente a concentração de
poder e de responsabilidade em torno dos dirigentes centrais, foi o que possibilitou que,
durante e a Marcha organizada de Goiânia a Brasília em maio de 2005, mais de 12 mil
pessoas bebessem água, se alojassem, se alimentassem, tomassem banho, estudassem e
se divertissem durante os 17 dias em que durou a caminhada. A marcha, uma
mobilização complexa, que implicava praticamente uma ocupação de propriedade a
cada dia, ocorreu sem grandes transtornos para a magnitude da população envolvida e
foi possível, segundo um dirigente nacional entrevistado durante o evento, graças a
essa “nova organicidade” do Movimento. Em Sergipe, estado pequeno onde o MST é
organizado em todas as suas regiões, cada “micro-regional” tem, inclusive, uma
pequena sede no município que centraliza as famílias das brigadas.
31
É evidente que, ao procurar implantar esta nova metodologia organizativa nos
vários estados, nem sempre o MST efetivamente logra que sua base assuma os espos
de participação que lhe são franqueados. A vontade de participar politicamente e de
assumir “tarefas” nas instâncias do MST é produto de um complexo processo de
politização que nem sempre a luta desenvolvida por este movimento social consegue
despertar. Ao acompanhar a visita de um responvelpor uma micro-regional a um
assentamento recém-formado em Pernambuco, pude constatar as dificuldades que o
MST enfrenta para fazer valer sua própria metodologia. O assentamento com 30
famílias teria que ter três núcleos, cada qual com 10, coordenados por um homem e uma
mulher. A área, entretanto, tinha dois coordenadores e, portanto, só dois núcleos. Os
assentados também não conseguiam manter as mulheres na coordenação. “Mulher entra
e depois desiste”, explicou um deles. Um dos objetivos da reunião, visto que o
assentamento acabara de ser legalizado, era constituir um associação para receber os
créditos para sua implantação, mas o cooordenador regional do MST, tentando cumprir
a tarefa de tentar implementar lá a “nova organicidade”, queria tentar estimular os
assentados a instituir uma associação sem a figura de um presidente, para evitar o
“mandonismo” de alguém: “Presidente dá problema porque quer ser cacique, quer
mandar, disse-me ele.
Durante a visita, observei que as reuniões dos núcleos não ocorrem
semanalmente, porque na área moram de modo permanente 10 famílias. Antes da
reunião, fico sabendo que um dos coordenadores dos núcleos não aparecia há três,
quatro semanas. “Não presta atenção nos compromissos”, me disseram. Pouco depois
ele apareceu, vindo da cidade. Muitos dos assentados de fato trabalham fora ou mantêm
as mulheres e os filhos trabalhando na cidade para sustentar a permanência na área. As
mulheres e os jovens também não ficam por conta dos estudos ou porque não gostam.
“Tem que gostar do assentamento para ficar aqui. Quem gosta de festa, TV não fica
aqui. Pessoa criada na cidade não gosta daqui”, me justificaram.
Enquanto o militante do MST explicava que tinham que se achar sujeito da
história, perceber a história que vocês criaram”, os assentados pareciam apáticos.
Estavam na reunião porque sabiam que tinha a ver com obtenção de recursos. Já o
coordenador do MST blefava que para obter o crédito, tinham que ser organizar em
núcleos, fazer “o alicerce da casa”. Ele mesmo sabe que é necessário apenas constituir
uma associação, mas diante da evidência de que sem esse estímulo os núcleos não iam
se constituir, apelava, garantindo que ia voltar na semana seguinte para continuar essa
discussão. “Não vou discutir o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar) com vocês. Quero primeiro ajudar a construir o alicerce da casa”.
Fica patente, como apesar das dificuldades, o MST tenta estimular essa participação, até
mesmo porque, formalmente, para obter este crédito, as famílias teriam que elaborar um
planejamento de exploração anual do assentamento. Era dia da feira e, por essa razão, a
reunião estava esvaziada. Durante a explanação em que o coordenador do MST
explicava como o Movimento estava estruturado, as dinâmicas que se implementavam
nas brigadas e nos núcleos, houve pouca participação e questionamento de suas
colocações. As mulheres foram chegando por último. No fim da reunião, fui convidada
a falar da importância da participação delas na constituição do assentamento. Ao final, o
coordenador do MST, oriundo de outra região do estado, fez uma ctica ao grupo por
não ter enviado ninguém para os cursos oferecidos pelo MST. “Precisamos de pessoas
capacitadas. O pessoal está se degradando na cidade. Como um pai e um tio não
conseguem enviar um jovem para lá?” Ele garantia que se o assentamento formasse um
grupo de alunos, eles enviariam um veículo para levá-los para o centro de formação do
MST. Mas era dia 4 de julho e o grupo de alunos teria que se formar para o dia 12 do
32
mesmo mês. Se fossem, cursariam o “Saberes da Terra”, espécie de supletivo de ensino
médio feito em parceria com o governo estadual. Havia 40 vagas para a regional da qual
fazia parte o assentamento. Mas pelo clima apático da reunião, não parecia muito
provável que esse grupo de assentados iria conseguir lotar um veículo de alunos para
este curso.
Como vemos, se por um lado, a “nova organicidade foi criada para aumentar a
democracia e fazer fluir melhor o debate interno do MST, nem sempre a implementação
desta nova metodologia consegue ser efetiva. Mas seria o MST autoritário por querer
implantar essa metodologia? A distância entre o mundo das intenções e representações e
o mundo da prática de um movimento social percorre um caminho sinuoso onde
geralmente se o encontro entre militantes de um movimento social com uma base
socializada em dinâmicas poticas distintas e até antagônicas aos projetos do MST.
Afinal, em um mundo social que, particularmente no campo, sempre foi marcado
costumeiramente pelo clientelismo, pela dominação pessoal e pelo mandonismo, o se
pode esperar que um movimentos social de pouco mais de 20 anos, com um projeto
político antagônico às políticas de Estado implementadas no país, consiga mudar
disposições de uma parte da população brasileira em tão pouco tempo. No entanto, é
objeto deste trabalho tentar demonstrar como o MST, embora não tenha conseguido
pressionar o Estado brasileiro a realizar uma reforma de sua estrutura fundiária, ao
enviar militantes com uma forte identificação com sua origem “sulista” e “cristã”,
logrou nacionalizar práticas de luta que introduziram uma politização mais abrangente
da vida social, promovendo uma inovação cultural, social, política e econômica que põe
em questão a ordem e o saber que constituem a visão de mundo social dominante na
sociedade brasileira, baseada, sobretudo, na concentração da propriedade da terra.
1.5 Terra: núcleo duro do poder
Embora este trabalho se apóie na conceituação que Melucci dá aos movimentos
sociais, ou seja, de que se trata de qualquer ação coletiva “cuja orientação comporta
solidariedade, manifesta um conflito e implica a ruptura dos limites de compatibilidade
do sistema ao qual a ação se refere” (Melucci, 2001, p.35), não compartilho com sua
crença de que hoje o sistema não tem mais centro. Para este autor, o sistema se constitui
como “uma rede de relações entre diferenciadas e relativamente aunomas estruturas
que devem ser mantidas em equilíbrio” (Melucci, 1996:208). Por esta razão, segundo
ele, “nenhuma mudança pode afetar simultaneamente todos os níveis do sistema, já que
cada um de seus vários componentes funciona de acordo com sua própria lógica”.
Acho inteiramente possível identificar o centro do sistema capitalista
contemporâneo, sobretudo do ponto de vista de um país inserido de forma subordinada
na ordem global, hoje dominada pelo capital financeiro e pelas corporações
transnacionais. Isto porque considero que, em uma época em que há o predomínio da
globalização neoliberal, o espaço do mercado tem hoje peso consideravelmente maior
do que os demais cinco espaços estruturais (doméstico, da produção, da comunidade, da
cidadania e mundial) conceituados por Santos (2000). Estes espaços, segundo este
autor, são articulados aos seis modos básicos de produção de poder, de direito e de
conhecimento que se inter-relacionam como constelações compostas de diferentes
formas de poder, de direito e de conhecimento que se combinam de maneira específica e
promovem múltiplas dimensões de desigualdade e opressão. Elas constituem lugares
centrais da produção e reprodução de trocas desiguais nas sociedades capitalistas. E,
como ressalta o autor:
33
A natureza política do poder não é o atributo exclusivo de uma
determinada forma de poder, mas sim o efeito global de uma
combinação de diferentes formas de poder e dos seus respectivos
modos de produção (Ibid., p. 272)
Pode-se dizer que o poder se manifesta no cotidiano através de uma constelação
destas formas de poder, mas com graus e intensidades diferentes. Nem sempre as
mesmas formas estão presentes em uma determinada situação, mas não se pode
negligenciar, como afirma o autor, a predominância de algumas delas como o poder
estatal, do direito estatal e da ciência moderna. O autor frisa que as constelações de
relações de poder se reforçam ou se neutralizam entre si e a “troca desigual é,
geralmente, o resultado final de uma distribuição desigual de trocas iguais”, até porque
as “desigualdades o muitas vezes feitas de igualdades desigualmente relevantes”, o
que torna um padrão de distribuição desigual efetivamente muito difícil de combater
(Ibid. p.267, 268).
Neste sentido, tendo-se em vista que o projeto sócio-cultural da modernidade
acabou confundindo-se com a trajetória hegemônica dos processos e relações
capitalistas de acumulação, no atual estágio do capitalismo, a regulação está
subordinada a processos sociais hegemônicos que orbitam predominantemente em torno
do princípio de mercado que, como ressalta Jameson, “é a um só tempo uma ideologia
e um conjunto de problemas práticos institucionais(1996) que vêm fundamentando a
globalização do capitalismo financeiro, ao mesmo tempo em que é visto como panacéia
para todos os males da sociedade contemporânea, já que sua retórica vem servindo para
legitimar ou deslegitimar discursos à direita e à esquerda.
Mais especificamente, se formos olhar para o lado da questão levantada pelo
MST, ou seja, em termos de combate ao monopólio da terra, a centralidade do lugar
social dos grandes proprietários rurais e a manutenção de sua influência política ao
longo da história brasileira, suas sucessivas metamorfoses, incorporando conteúdos
“modernos” a práticas arcaicas, em suma, sua hegemonia social deve-se ao fato de que
eles se articulam com valores dos espaços do mercado e da produção. Sua importância
se explica pela centralidade dada por sucessivas políticas econômicas às divisas geradas
pela exportação de produtos primários oriundos de grandes fazendas altamente
tecnificadas desde a crise da dívida externa em 80 (Delgado, Em Preparação). Portanto,
a obtenção da identificação dos grandes proprietários rurais com conceitos
hegemônicos, neste atual estágio do capitalismo, indica que a cerca das grandes
propriedades rurais são “limites de compatibilidade do sistema” gidos, o que sugere
que uma eventual alteração desta estrutura fundiária tende a gerar desdobramentos mais
profundos na sociedade brasileira e, mesmo, latino-americana.
De qualquer modo, compartilho com Melucci o abandono de qualquer noção
teleológica de transformação social, no sentido de pensar esta possibilidade como um
processo global, homogêneo, direcionado para determinado fim, pois ele é inadequado
para análise das sociedades complexas, mesmo porque, particularmente no que concerne
a qualquer mudança social - e mesmo individual - há suficientes dados históricos
comprovando que mesmo os direcionamentos mais claros e finalistas da ação humana
sempre correm o risco de provocarem desdobramentos inesperados.
Por outro lado, romper com a idéia de visões totalizantes da política e dos
fenômenos sociais não implica necessariamente em renunciar a expor a visibilidade do
poder que ocupa o centro do sistema e que, de fato, se expressa em diversas camadas e
não em um determinado local. Sua lógica é compartilhada e imposta pelos países do
centro do sistema capitalista mundial, mais particularmente os de cultura anglo-saxã
(Boyer, 1996). Embora tenha diversos níveis, o sistema possui alguns elementos de
34
densidade maior que reúnem-se em seu centro e que, portanto, são mais difíceis de
serem atingidos tanto ideológica, militar, como economicamente.
Quando Melucci descreve o que ele classifica de “desaparecimento da distinção
convencional entre Direita e Esquerda”, incorre em um erro grave de interpretação,
sobretudo no que se refere ao exemplo em que ele se pauta: os movimentos pró e contra
o aborto
22
. Além disso, Melucci desconsidera o fator “igualdade” embutido no uso
histórico da noção esquerda, sugerindo que a definição tradicional do termo “direita: se
referia a uma orientão direcionada ao passado e “esquerda” a uma orientação
direcionada ao futuro” (1996:213). Nesse sentido, segundo ele, muitos movimentos
contemporâneos teriam um caráter “anti-moderno”, como o movimento ecológico, por
denunciar o fim da linearidade do progresso, o que é correto, mesmo porque livra a
noção de emancipação de sua ligação com os “mitos modernos” de sua origem
(progresso, liberação e revolução). No entanto, o caráter progressista destas demandas
independe do conceito usual de progresso”, muitas vezes associado somente a
desenvolvimento das forças produtivas. “Progressista é um conceito altamente
vinculado à promoção da “igualdade”, que, junto com a “liberdade”, tornaram-se idéias
cardinais da modernidade ocidental e que tem entre seus principais paladinos Rousseau,
com seu “Discurso sobre a Origem da Desigualdade” (Rousseau: 1988). Como a
igualdade fazia parte do programa e da ideologia da classe ascendente de comerciantes e
capitalistas industriais, serviu para “mostrar que o que merecia ser tratado como igual
estava efetivamente institucionalizado como desigual, na sociedade feudal (Offe,
1984:57). O fato de que a institucionalização da equação liberdade/igualdade, com suas
garantias de acesso livre e igual ao mercado, à legislação e ao processo político não
tenham conduzido de fato a uma igualdade real para todos os segmentos de uma
sociedade é, na visão de Claus Offe (Ibid.), uma das razões que fizeram surgir a própria
necessidade da pesquisa sociológica, cujos modelos críticos demonstraram ao longo de
uma extensa hisria das idéias como “a desigualdade prevalece, por motivos
sistêmicos, onde a igualdade econômica e política está institucionalizada”.
22
Melucci diz que a posição anti-aborto pode ter um “caráter progressista”, sobretudo nos países de
Terceiro Mundo, onde essa intervenção cirúrgica assume uma feição de controle do aumento populacional, enquanto
a luta contra o aborto pode ser vista como “uma luta contra o poder público para impor suas próprias decisões dentro
da mais íntima esfera de influência da vida individual” (1996:125). Neste momento, Melucci revela um certo
relativismo enviesado, a meu ver, resultante de sua posição como intelectual oriundo do “centro” do sistema.
Primeiramente, ele não se refere – como deveria, se se guiasse por sua própria proposta teórica - ao repertório social e
cultural onde se origina uma posição anti-aborto que tem, no caso dos países ocidentais e predominantemente
cristãos, o claro dedo de uma instituição religiosa de grande permanência no “centro” do sistema que é a Igreja
Católica e, mais particularmente, o Vaticano. Por outro lado, uma coisa é o Estado descriminalizar e facultar às
mulheres o uso desta técnica cirúrgica e outro é o processo de esterilização forçada recorrente em países pobres, cujo
exemplo mais recente e impressionante é o Peru do governo Fujimori, onde 300 mil mulheres pobres e ingenas
foram esterilizadas. O primeiro caso não pode ser tratado como “imposição” do poderblico, mas o segundo, sim.
No primeiro, o consenso social em torno do uso desta técnica está consolidado em países de menor influência
católica. Por outro lado, é interessante observar que o aborto só foi doutrinariamente proibido pela Igreja Católica em
1869. Ou seja, até então, era uma técnica contraceptiva mais ou menos praticada com, talvez, os mesmos riscos de
vida para as mulheres, mas sem a imensa opressão moral oriunda do atual pensamento cristão, que forma o substrato
cultural que dá o caldo de onde se originaram os atuais movimentos contra o aborto. Além do que, como este tema
está profundamente vinculado à questão de gênero, ou seja, à luta por direitos voltados para o atendimento das
demandas femininas, não é possível considerar qualquer caráter progressista para movimentos contrários à
descriminalização do aborto, pois dentro do movimento feminista, que construiu a principal transformação social do
século XX, o controle da reprodução por parte das mulheres é um de seus eixos fundamentais.
35
1.6 O peso da história
Ao percorrer as estradas de Sergipe, onde a cada trecho viam-se acampamentos
ou assentamentos do MST, dei-me conta que está em curso uma “revolução
silenciosa”
23
e relativamente pacífica da paisagem e da mentalidade da população
dessas regiões. Fora os seus fatos barulhentos, reverberados pela mídia, este processo
liderado pelo MST é ostensivamente ignorado pela sociedade brasileira, apesar de suas
flagrantes qualidades em contribuir para que pessoas pobres tenham acesso a um
programa do governo que, além de terra, casa, trabalho e comida, oportuniza a
escolarização e, cada vez mais, uma formação profissional. Mas, am destes aspectos
materiais, a atuação deste movimento social tem também contribuído para que estes
setores marginalizados da sociedade brasileira se organizem de forma coletiva para a
conquista de direitos que o além de uma luta propriamente econômica, propiciando-
lhes uma inserção como sujeitos dentro da sociedade moderna. Como demonstro no
relato sobre a reunião no assentamento pernambucano, muitas dessas pessoas não
possuem disposição interna para assumir o papel de “sujeitos de sua história”, como
pretendia o coordenador regional. Esta condição tem raízes sociais e históricas, mas é
constatável que quando essas pessoas passam a se engajar na luta empreendida pelo
MST passam, ao menos, a ter essa possibilidade franqueada, nem que seja para seus
descendentes.
Como aponta Barrington Moore Jr. (2002, p.740), “em todas as sociedades, os
grupos dominantes são os mais interessados em ocultar como funciona a sociedade”.
Por esta razão, este autor alerta que é freqüente que “as análises verídicas estejam
predestinadas a soar críticas, a parecer denúncias e não informes objetivos’(Ibid.,
p.740)”. É dentro desta preocupação que considero fundamental, antes de partir
propriamente para o relato da trajetória histórica do MST, inseri-la dentro da hisria do
Brasil, tomada sob a perspectiva agrária. Considero importante retomar esta história
para também, de certo modo, compreender como a concentração fundiária se tornou o
naturalizada no imaginário brasileiro e o quanto as lutas do MST, particularmente nos
estados nordestinos que são objeto deste estudo, representam uma modificação
significativa deste imaginário.
Como explica Souza (2006), ao contrário de teorias, “o imaginário social
significa o que as pessoas comuns percebem como sendo seu ambiente social”. Se,
como diz o autor, este imaginário se manifesta em imagens, lendas, etc., podemos
concluir que ele também é o substrato dos diversos produtos culturais difundidos pelo
meios de comunicação de massa. É este imaginário social que permite a pré-
compreensão imediata de práticas cotidianas ordinárias permitindo um senso
compartilhado de legitimidade da ordem social”. Desse modo, ele também informa e
condiciona “uma pré-compreensão inarticulada mais abstrata e mais geral, que faz com
que cada situação particular apareça precisamente desta forma e não de outra
qualquer”(Ibid, p.94). Este imaginário comum que compõe o horizonte social de uma
sociedade é produto de uma história incorporada, o que Elias (1997) classificou de
“habitus nacional” e que, segundo ele, está “intimamente vinculado ao processo
particular de formação do Estado a que foi submetido”.(Ibid.,p.16)
23
Pensei nessa expressão antes de saber que, na França, ela tinha sido escolhida para dar conta dos
processos de modernização da produção agcola, nos marcos da Revolução Verde”, encampados pelo
movimento de agricultores franceses e defendido por um de seus dirigentes, Michel Debatisse, em livro
publicado em 1963, cujo tulo completo é “La révolution silencieuse: le combat des paysans”, Paris,
Calman-Levy. O presente trabalho defende o caráter modernizante do MST, mas a modernidade dos
sem-terra no Brasil tem um caráter totalmente diferente da defendida pelos agricultores franceses.
36
Considero fundamental para se compreender o papel do MST na sociedade
brasileira, assim como o estigma que foi se criando em torno dele e, portanto, sua
dificuldade em tornar a democratização da propriedade da terra um valor incorporado
pelos brasileiros e posto em prática pelo Estado, abordar como o “tripé escravidão-
latifúndio-monocultura” se cristalizou nesta sociedade, a ponto de grandes figuras da
nossa história, mesmo do século XIX, como José Bonifácio e Joaquim Nabuco, terem
sido derrotados em sua defesa de que a implementação de reformas econômicas
profundas poderia superar práticas agrícolas devastadoras social e ambientalmente
(Pádua, 2002).
Enxergar, portanto, na hisria brasileira como se deram as mudanças sociais
permite também explicitar porque no alvorecer do século XXI o Brasil ainda tem suas
políticas ditadas por um imaginário social que emperra a compreensão e a incorporação
efetiva de bandeiras como as levadas por um movimento social como o MST e que tem
repercussões no modo como este país vai se configurar no futuro. Como, analisa Souza
(2006), “a questão central é a de como se mudanças sociais e revoluções que
permitem tanto a transformação de um imaginário social em outro, assim como
perceber, nesse contexto de mudança, a causa da diferea específica entre os diversos
imaginários sociais.(Ibid, p.95)”. No caso, este imaginário foi se transformando na
história, mais sempre adquirindo, como veremos, um determinado sentido que é
imanente às práticas sociais e institucionais e que, no caso específico da questão
estudada neste trabalho, ainda sustentam o tripé econômico colonial.
Para explicar porque o monopólio da terra é um limite de compatibilidade rígido
do sistema social brasileiro, considero importante apresentar as raízes hisricas desse
fenômeno, pois é esse contexto que serve de pano de fundo e explica o surgimento do
MST, com as características que ele veio assumindo ao longo de sua história. Além
disso, como por trás da formação de um movimento social uma dialética entre
histórias sociais, familiares, individuais e institucionais, é importante trazer à luz os
processos históricos que aparecem cristalizados no presente e que contextualizam essas
práticas.
É a partir da sucinta descrição da história agrária brasileira que vou inserir a
trajetória histórica do MST, com a qual se interagem os militantes que aceitam partir
para o Nordeste na década de 80 e 90. É importante frisar-se que este relato tem como
ponto de partida a concepção de que todo conhecimento que se pretende científico é
composto de aspectos subjetivos-objetivos que determinam o enfoque, a interpretação e
mesmo a seleção dos fatos a serem abordados (Shaff, 1978). Parto do pressuposto que o
conhecimento sobre um fenômeno histórico tende a ser transitório, pois as questões e
hipóteses que se colocam a priori determinam os aspectos dessa realidade que serão
conhecidos e enfatizados. O conhecimento de um determinado evento ou época pode,
no entanto, vir a ser questionado com pontos de vista diferentes, e mesmo, com o
descobrimento de novas fontes de pesquisa, receber adendos que muitas vezes
transformam a versão hegemônica daquele período. Isso, entretanto, não é um
argumento que visa justificar a adoção de um ponto de vista totalmente identificado
com o objeto estudado. Este levantamento histórico simplesmente adota uma visão que
enfoca o problema agrário brasileiro, questão a qual esrelacionada a luta do MST,
mas o faz não de maneira a negar a possibilidade de uma verdade mais objetiva desta
questão. Parto do ponto de vista de que a amplitude deste tema dentro do debate
brasileiro é continuamente ocultada, retirando-lhe, portanto, sua emergência e a
compreensão de que ela é fonte de conflitos diversos que assolam esta sociedade.
A demanda por reforma agrária, matéria-prima da luta do MST, é uma questão
que exprime relações sociais construídas através da hisria do Brasil, onde desde o
37
culo XIX, mantém-se praticamente o mesmo nível de concentração de riqueza, tendo
10% de sua população controle sobre 75% de suas riquezas
24
. Ou seja, um país que
nunca passou por qualquer reforma profunda de sua estrutura social e está
aparentemente, portanto, há anos-luz de qualquer revolução, tende a reproduzir em seu
horizonte social significados, próximo dos interesses de sua classe dominante, e que, em
geral, tendem a estigmatizar um grupo social que ousa questionar esse pré-estabelecido
pressuposto social. Como observa Barrington Moore Jr (2002).
Desde os tempos de Espártaco, passando por Robespierre, até os dias
atuais, o emprego da força por parte dos oprimidos contra seus
antigos senhores tem sido objeto de condenação quase universal.
Entretanto, a repressão cotidiana da sociedade “normal” vaga
confusamente pelas entrelinhas da maior parte dos livros de história
(Ibid.p,715. Tradução nossa).
24
Pesquisa apresentada pelo IPEA(Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em Maio de 2008.
38
CAPÍTULO 2
Condições históricas da formação dos sem-terra
Este capítulo se propõe a retratar a hisria do Brasil, sob seu viés agrário, com
vistas a descrever o contexto histórico, social e político onde se insere o MST. Ele
retrata, num panorama geral, aspectos do modo como o Brasil foi colonizado, como se
formou a questão agrária, a formação da república, as lutas sociais por terra e os
caminhos de modernização escolhidos pelos grupos dominantes no país.
2.1 A instituição do poder privado territorial
A história de como um país, com tanta abundância de terra, ficou com esta
perversa estrutura agrária não é resultado direto das vastas Capitanias Hereditárias e do
sistema de sesmarias. É fato, entretanto, que como a nossa economia colonial se
estruturou nas grandes lavouras de monocultura para exportação, por mais de 300 anos
baseada na mão-de-obra escrava, ficou natural existirem brasileiros dominando grandes
propriedades de terra, bem como, não raro, as pessoas que viviam nelas. Por um longo
período, portanto, a riqueza do Brasil não provinha do trabalho, mas da renda
proveniente da propriedade da terra e do escravo.
No Brasil Colônia, todas as terras eram de domínio do rei de Portugal (isto é, do
Estado) que as distribuía para os colonos interessados, através do regime de sesmarias.
Desse modo, ela não se tornava propriedade do fazendeiro. Este detinha apenas uma
concessão territorial. Se não fosse feito uso produtivo dessas terras em um prazo, muitas
vezes de cinco anos, a concessão caducava e as terras tornavam-se realengas, ou seja,
voltavam para o domínio do rei, que poderia concedê-las a outra pessoa. Com isso
também iniciou-se uma espécie de clientelismo político entre o rei e seus colonos que,
para Martins (1994), tem repercussões até hoje na sociedade brasileira onde
costumeiramente há uma troca de “favores políticos por benefícios econômicos”:
A Coroa portuguesa, por pobreza ou avareza, recorria ao patrimônio
dos particulares para a realização dos serviços públicos, pagando, em
troca, com o poder local e honrarias, isto é, com nada. Esse nada,
porém, tinha a virtude real ou potencial de poder ser convertido em
riqueza, terras ou dinheiro (Martins, 1994, p.29-30)
Segundo Silva (1996), apesar das constantes investidas regularias da Coroa,
no sentido de delimitar o tamanho das sesmarias concedidas - que passou a ser de três
léguas - exigir o registro e a confirmação destas e procurar induzir a que estas terras
fossem efetivamente cultivadas pelos sesmeiros, o caráter primitivo da agricultura que
se praticava na colônia, que extenuava rapidamente o solo e obrigava à contínua
incorporação de novas terras, fazia com que os colonos ignorassem as disposições reais
e incorporassem sempre novas áreas, além dos limites das sesmarias concedidas, a
ponto de raramente as fazendas ficarem nas mesmas localidades no decorrer de duas
gerações. Além disso, durante o século XVIII, passou a aumentar outra forma de
apropriação, que existia desde os primórdios da colonização: a posse pura e simples. De
acordo com Silva (1996), no início da colonização, a posse era a forma de ocupação do
pequeno lavrador, que não tinha condições de solicitar uma sesmaria. No entanto, sem
39
deixar de existir nessa forma, a posse também passou a assumir o caráter de latifúndio,
pelas mesmas condições que levavam à falta de controle do tamanho das sesmarias: os
limites da posse eram dados pelo próprio posseiro. De qualquer modo, se, a princípio, a
legislação portuguesa não reconhecia a figura do posseiro, ao longo do tempo, como os
sesmeiros continuaram sem demarcar suas terras, cujo tamanho seguia desmesurado -
assim como o das posses - as autoridades locais, que não raro concediam sesmarias em
terras já ocupadas, passaram reconhecer a existência de moradores nas terras, ou seja, os
posseiros, e, em vez de expulsá-los, passaram a estimulá-los a regularizar sua situação,
em detrimento dos sesmeiros, procurando privilegiar a posse, que isso geralmente
indicava que as terras eram efetivamente cultivadas:
Assim, pouco a pouco, começou a se formar uma nova forma
de aquisição de domínio, com base na posse. A posse com cultura
efetiva, como modo de aquisição de domínio estabeleceu-se aos
poucos como costume, para afirmar-se mais tarde como um direito
consuetudinário” (Silva, 1996, p.66).
O fato de a monocultura de exportação monopolizar todas as atenções e
cuidados acabou relegando, por exemplo, a produção de alimentos para segundo plano e
não foram poucas as crises de abastecimento ocorridas no país durante a época colonial.
Para evitar essas situações, a Coroa portuguesa tinha que decretar leis obrigando o
plantio de alimentos, sobretudo mandioca. Essas medidas enfrentavam grandes
resisncias por parte de seus sesmeiros (Freyre, 1963).
De qualquer modo, esse acordo peculiar entre o rei e seus colonos, permeado de
conflitos e insubordinações, permitiu que uma pequena população, como a portuguesa e
seus descendentes mamelucos e mulatos, conseguissem ocupar um território continental
como o Brasil, empurrar o Tratado de Tordesilhas para o Oeste e, de quebra, expulsar os
holandeses e franceses que o cobiçavam.
Na época, eram os fazendeiros e seus agregados
25
que formavam os exércitos,
faziam as pontes, abriam as estradas, em suma, construíam as benfeitorias necessárias
para aquela colonização. Tudo em nome do Estado português. O rei, por sua vez, para
manter seus domínios nas Índias Ocidentais, precisava que a ocupação dessas sesmarias
fosse efetiva. Até pelo menos o século XVIII, podiam receber terras em sesmaria os
brancos e católicos, “puros de sangue e de fé”. Eram, portanto, excluídos do acesso à
terra os negros, os índios, os judeus, os mouros e, evidentemente, os supostos hereges,
que eram alvos da Inquisição.
Como observa Jose de Souza Martins
26
, essa estratégia de colonização, ou seja,
esse hábito do rei português de usar o patrimônio dos ditos para lograr os fins da
Coroa – ou seja do Estado garantiu o território, mas trouxe junto a fraca percepção do
conceito de “coisa públicapara o povo brasileiro, ou seja, de que aquilo que é público
deve ser usufruído por todos seus cidadãos, possuem um fim social. Este processo deu
início a uma das mais persistentes heranças portuguesas: o patrimonialismo, ou seja, o
governo da coisa pública como se fosse um negócio de família.
25
Camponeses pobres livres, de qualquer cor, em geral mestiços. Também podiam ser parte empobrecida
da família do fazendeiro, que viviam e cultivavam parte da área da fazenda como concessão deste.
Embora fossem formalmente livres, como viviam nas franjas” do sistema produtivo eram submetidos a
uma relação pessoal de dependência do dono da área, o patrão”, o “padrinho”, etc., através do vínculo
do favor e da proteção e com a aparência de um acordo voluntário (Souza, 2006, p. 125). São conhecidos
na literatura brasileira como os “cabras” de confiança e muitas vezes eram o braço armado do patrão.
26
Boa parte da interpretação desta parte da história brasileira se apóia em uma seleção de textos deste
autor , espalhados em diversas de suas obras, sobretudo no “O Poder do Atraso” (1994).
40
Disseminado por diversos recantos da vida nacional, o patrimonialismo “à
brasileira” está entranhado no próprio processo de constituição dos mecanismos de
poder e das instituições do Estado, pois aqui sempre houve confuo na distinção entre
o que é blico e o que é privado. Afinal, era graças aos serviços prestados ao Estado
por seus sesmeiros que era possível ver traços de Portugal naquele fim de mundo. Em
suma, um modo de colonização econômico para as finanças reais. Como estes súditos,
com boas relações na Corte ou que haviam prestado favores ao Rei, eram os que geriam
esses bens, sem outro poder que regulasse seu domínio - haja vista a dificuldade que a
Coroa tinha de fazê-los cumprir suas leis referentes à apropriação das sesmarias -, não
foi difícil essa prática se transferir mais tarde para o processo de constituição do Estado.
Afinal, o patrimônio dos particulares é que era usado para a realização dos serviços
públicos. Em troca, como aponta Martins (1994), esse dito ganhava poder local, que
geralmente acabava se convertendo em um mecanismo de acumulação de riquezas.
Desde a época colonial, praticamente todas as estruturas de poder que se criavam, como
as companhias de ordenanças ou os cabos de bairros
27
, tinham base municipal. Fora o
poder do Rei, o que existia no país era o poder dos homens bons” dos municípios, que
não podiam ter nem “mácula de sangue” (quer dizer, eram brancos, católicos), nem
mácula de ofício”, ou seja, “não trabalhavam com suas próprias mãos”. É por esta razão
que República, no Brasil, passou a ser sinônimo de “coisa pública administrada pela
assembléia de particulares” (Martins, 1994, p.24), um esvaziamento radical do sentido
que Cícero havia dado para este conceito. Deste modo, esses senhores nunca perderam o
poder local de que dispunham, baseado em seu domínio territorial. As famílias que se
arruinaram, por alguma inabilidade qualquer, foram rapidamente trocadas por outras
que trataram de reproduzir esse mecanismo.
Também é por esta razão que muitos bens do Estado, que pertencem ao povo
brasileiro, como a terra, passaram a ser, sobretudo após a Independência,
freentemente e indiscriminadamente apropriadas pelas oligarquias com a devida
permissão das autoridades locais: prefeitos, delegados de polícia, donos de cartórios e
jzes. Em suma, uma das origens da famosa “troca de favor”, que justifica a lealdade
política em praticamente todos os rincões do país comou aí, nessa relação peculiar de
alguns brasileiros com a metrópole portuguesa. Para Martins, este é o núcleo central da
“história da constituição de mecanismos de poder e da constituição de instituições em
que o público e o privado se confundem” (Martins, 1994, p.24), origem da chamada
“corrupção” que dá a tônica a muito dos escândalos políticos contemporâneos.
2.2 As primeiras idéias de reforma
O regime de sesmarias manteve-se no país até 1822. Após o retorno do rei D.
João VI, Portugal convocou as Cortes para se reunirem em Lisboa, visando reorganizar
o país as a invasão napoleônica. Pouco antes dessa reunião, para a qual iriam diversos
representantes ilustres eleitos pelo Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva suspendeu
a concessão de sesmarias até que a Constituinte do reino decidisse sobre o assunto.
27
As companhias de ordenança eram entidades corporativas que militarizavam a população civil
masculina, cujos capitães agiam, como os antigos cabos de bairros, por delegação das câmaras
municipais. Os antecessores dessas companhias, os “cabos dos moradores dos bairroseram convocados
pelas câmaras para a realização dos chamados serviços do bem comum, como abrir e conservar caminhos,
os serviços públicos da época. As ordenanças foram uma evolução da instituição dos cabos de bairro”,
agora, porém, como delegação do rei, e não raro cumpriam funções policiais (Martins, 1994, p.25-26).
41
Com a proclamação da Independência pouco tempo depois, o regime de
sesmarias continuou suspenso, e Bonifácio tratou de abolir o morgadio, costume pelo
qual o primogênito herdava os bens da família. A iniciativa procurava evitar a
formação de uma aristocracia fundiária resultante da concentração desses bens. Nos 28
anos que se seguiram, o país debateu o novo regime de propriedade que seria
implantado, definido em 1850, com a Lei de Terras. Durante o vácuo legal desse
período, de 1822 a 1850, a posse tornou-se a única forma de aquisição de domínio sobre
as terras, “ainda que apenas de fato, e é por isso que na história da apropriação territorial
esse período ficou conhecido como a ‘fase áurea do posseiro(Silva: 1996, p.81 apud
Garcia: 1958). Segundo Marés (2003), essas posses eram de certo modo coibidas pelo
Estado, que não as reconhecia legalmente, visto que não havia nenhuma legislação
vigente para tanto.
Figura capital no processo que levou ao 7 de setembro, a vida política de José
Bonifácio de Andrada e Silva no governo do Brasil foi curta. Resumiu-se aos anos de
1822 e 1823, quando, após ter sido demitido do Ministério e assumido sua cadeira de
deputado na Assembléia Constituinte, foi preso e deportado para a França pelo
imperador D. Pedro I, insatisfeito com o conteúdo da Carta Magna.. Depois do exílio,
em 1831, Bonifácio voltou ao cenário político quando assumiu nova cadeira de
deputado e a tutoria de D. Pedro II, então menino, mas passou novamente a colecionar
muitos inimigos. Acusado de envolvimento em um levante contra o governo, foi
afastado do cargo e julgado à revelia, sendo absolvido alguns anos depois.
Em seus Projetos para o Brasil, manuscritos reunidos e classificados por
Miriam Dolhnikoff (1998), fica evidente que o “Patriarca da Independência” foi
provavelmente a primeira grande figura da história brasileira a propor uma espécie de
reforma agrária, na forma da limitação do tamanho das propriedades rurais e no
confisco das que não estavam sendo utilizadas produtivamente.
Mineralogista renomado, Bonifácio foi um pensador influenciado pelo
Iluminismo e havia assistido todas as turbulências que a Revolução Francesa havia
desencadeado na Europa, quando voltou ao Brasil, com mais de 50 anos. Carregava,
portanto, uma concepção de modernidade e civilizão, cujos parâmetros eram os
europeus, arejados pelos ventos revolucionários da época. Depois de protagonizar o
processo que levou o país à independência de Portugal, passou seus longos seis anos de
exílio a acalentar um projeto nacional, propondo, de acordo com seus apontamentos,
audaciosas idéias reformistas.
Para comar, Bonifácio era contra o sistema de trabalho escravo, tanto por
razões humanistas como econômicas, como esbem claro em seu projeto apresentado
na Assembléia Constituinte de 1823. Mas, ao mesmo tempo em que defendia o fim do
“comércio de carne humana”, que considerava um “cancro a roer as entranhas do
Brasil”, também propunha que esse processo se realizasse concomitantemente à
incluo do negro liberto ao processo produtivo. Bonifácio também tinha a mesma
proposta para os índios, de quem reclamava: “são robustos e amam a guerra; mas
detestam o trabalho”. Como seu projeto de Nação considerava a nossa heterogeneidade
racial um obstáculo, propôs que o Estado promovesse a miscigenação entre os povos
que viviam no país, sugerindo um “prêmio pecuniário a todo cidadão brasileiro branco
ou homem de cor que se casasse com índia gentia”, bem como o “fomento” de
casamentos legais entre os brancos e as mulatas e negras, cujas “mancebias”, em sua
opinião, deveriam ser proibidas pela polícia civil e eclesiástica. Tais prêmios
pecuniários para os casais mistos seriam terras. Para Bonifácio, esses casais seriam
reunidos em colônias agrícolas, que se tornariam o embrião de futuros vilarejos que
pipocariam por todo o Brasil (Andrada e Silva apud Dolhnikoff, 1998).
42
Além de propor a distribuição de terras devolutas, Bonifácio advogava a
restrição dos latifúndios e o incentivo à pequena e média propriedade, que considerava o
caminho mais seguro para a produtividade agrícola, bem como, na interpretação de
Dolhnikoff, para “a penetração do Estado no interior da Nação, na medida em que
diminuiria o poder dos grandes latifundiários” e incentivaria o povoamento do território
nacional” (Dolhnikoff, 1998, p 26). Para tanto, o eminente político não teve meias-
palavras ao propor o confisco das terras improdutivas:
Todos os sesmeiros legítimos que não tiverem começado ou feito
estabelecimento nas suas sesmarias serão obrigados a ceder à Coroa as
terras, conservando 1300 jeiras
28
para si, com a obrigação de
começarem a formar ras e sítios dentro de seis anos” (Andrada e
Silva apud Dolhnikoff, 1998, p 153).
O limite do tamanho das propriedades rurais e seu confisco, quando o fossem
produtivas, coadunava-se com o projeto de emancipação gradual da escravatura
proposto por Bonifácio, que demonstrou, com ele, que tinha em mente o fortalecimento
do poder público perante o poder inconteste de vida e morte que os grandes
proprietários rurais detinham sobre seus escravos.
Nesse sentido, Bonifácio também propunha que as relações escravistas
passassem a ser mediadas pelo Estado. Se o alvo era diminuir a tensão existente entre os
senhores e os escravos, bem como criar condições nimas para que o ex-cativo fosse
preparado para tornar-se cidadão, seu efeito colateral seria, a longo prazo, “civilizar”
esse proprietário rural, que detinha o poder de legislar plenamente sobre a vida de seus
cativos – e geralmente também sobre os homens pobres que dependiam dele para
sobreviver usando da violência e apoiando-se em sua ppria noção de justiça. Não
esqueçamos que este estamento senhorial havia sido acostumado, durante todo o
período colonial, a ser o poder local, só tendo como regulador o rei que, por sua vez,
precisava dos serviços por eles prestados, bem como de seu patrinio.
Se essa proposta de abolição em etapas da escravatura tivesse sido
implementada, provavelmente a história brasileira teria sido menos marcada por essa
confusão entre o público e o privado criada pela “troca de favores” entre os sesmeiros e
o reino de Portugal. Mas, mais importante do que isso, seria sua contribuição para a
superação de uma das principais barreiras encontradas por todos os homens que
quiseram construir um Estado efetivamente democrático no Brasil: “a extrema
dificuldade do poder público em transpor as porteiras das fazendas e impor-se ao poder
privado” (Dolhnikoff, 1998, p 25), ou seja, ao que Darcy Ribeiro cunhou como a
“ordem fazendeira”.
2.3 A “ordem fazendeira” e a grilagem
Com José Bonifácio afastado da vida pública e suas idéias derrotadas, dada a
falta de bases sociais que as sustentassem, as discussões sobre o sistema de propriedade
de terra que seria adotado pelo Brasil foram protagonizadas pelos latifundiários
escravocratas, principal força política da Corte, e que vinham se preparando para a
abolição da escravatura, sob enorme pressão, inclusive armada, da Inglaterra.
Em 1850, mesmo ano em que foi abolido o tráfico de escravos, foi promulgada a
Lei 601 do Império, que ficou conhecida como Lei de Terras. É este decreto que marca
o início do que hoje é conhecido academicamente como questão agrária”, ou seja, o
28
Medida de terreno que varia de 19 a 36 hectares, conforme o país.
43
problema fundiário brasileiro, pois instituiu um novo direito de propriedade, moderno,
capitalista, mas pensado de modo a garantir o poder dos latifundiários.
Ao prever que os escravos se tornariam trabalhadores livres em um país com
terras a perder de vista, os legisladores da época decidiram abolir a posse como meio
para o reconhecimento da propriedade, como era a tradição do regime de sesmarias e
prática de todos os matutos que entravam território adentro. Esta legislação também foi
pensada tendo em vista os investimentos que os fazendeiros paulistas começavam a
fazer para trazer imigrantes europeus para trabalhar nas lavouras do café. Assim,
passou a ter direito à terra quem tivesse dinheiro para comprá-la, mesmo que ela fosse
devoluta, isto é, do Estado. Portanto, seria reconhecido como proprietário legítimo
aquele que tivesse um documento de posse assinado e reconhecido em cartório, e não
quem estivesse ocupando ou usando produtivamente a terra. Um dos resultados dessa
legislação foi que, de acordo com o primeiro censo agrário, o imenso território
brasileiro só tinha 20% de suas terras privatizadas no início do século XX (Silva, 1996).
Os fazendeiros, evidentemente, legislaram em causa ppria porque, senão,
ficariam sem mão-de-obra para trabalhar suas terras, pois todos os escravos dariam um
jeito de fugir para bem longe, onde poderiam plantar suas roças em paz. Os próprios
imigrantes, que começavam a vir para o país, ocupando o lugar da mão-de-obra negra
nos cafezais, dariam um jeito de passar bem longe das cancelas dos fazendeiros.
Mas essa lei teve efeitos ainda mais escandalosos do que bloquear o acesso à
terra para a massa da população pobre e para os futuros ex-escravos. Ela instituiu um
jeito de se apropriar da terra alheia e, mais uma vez, da coisa pública, ou melhor, da
terra do Estado: a “grilagem”
29
. Esse expediente, tornou-se tão comum e impune, por
exemplo, na região Noroeste de São Paulo, onde fica o Pontal do Paranapanema, que
suscitou uma observação irônica de Monteiro Lobato, que considerava a palavra grilo e
seus derivados, grileiro, engrilar, “mais comum do que moscas em dia de calor”(Lobato
apud Fernandes, 1996)
30
.
O caso do Pontal é um bom exemplo e remonta a maio de 1856 (Fernandes,
1996), ano limite para que os possuidores de terra registrassem sua posse nos termos da
Lei de 1850, que possibilitava a legitimação das terras ocupadas antes de 1850 e proibia
a ocupação de terras devolutas, a o ser por meio de compra. No mesmo mês deste
ano-limite, dois senhores resolveram se apressar e registraram dois enormes nacos de
terra daquela região em seu nome: Antônio José Gouveia registrou na Paróquia de o
João Batista do Rio Verde (hoje município de Itaporanga, SP) uma gleba de 583.100
hectares, declarando residir nela desde 1848; José Teodoro de Souza registrou na
paróquia da Vila de Botucatu (hoje município de Botucatu) 872.200 hectares dessa
mesma região, declarando residir nesta imensa gleba desde 1847.
Claro que quando o interessado requeria a legitimação dessa posse em Juízo, a
autoridade mandava apurar a veracidade das informações. Ouvia testemunhas, checava
as benfeitorias, as divisas, as criações e as roças. Nem Gouveia, nem Souza se
preocuparam com esses “detalhes”, tratando de passar adiante o mais rápido possível a
terra que alegavam possuir. Desde então, o Estado nunca legitimou a posse de glebas
requeridas da região, dado os erros grosseiros que denunciavam o grilo. De nada
adiantou também um dos grileiros mais famosos da região, Manuel Pereira Goulart, ser
processado pelo Visconde de Parnaíba, presidente da Província de São Paulo. Celebrado
provavelmente como grande desbravador, o grileiro acabou sendo homenageado no
29
Método pelo qual se falsifica um título de cartório, colocando-o em uma gaveta ou baú fechado com
um grilo para dar-lhe aparência de antigo.
30
Este autor cita a obra de Monteiro Lobato, A onda verde e o presidente negro (São Paulo: Brasiliense,
1948).
44
principal município da região do Pontal do Paranapanema, Presidente Prudente, onde
seu nome batiza uma das principais ruas da cidade
31
.
Embora a grande maioria dos fazendeiros da região sejam grileiros, o modo
como os conflitos agrários explodem por evidencia a dificuldade de se mexer neste
grupo social. Enquanto a Justiça volta e meia processa e prende os líderes sem-terra por
organizarem “quadrilhas” para fazer “esbulho possessório”, as supostas vítimas da tal
“invasão” são na verdade grileiros, proprietários questionáveis das grandes extensões de
terra ameaçadas por esses sem-terra.
Se existe esse tipo de confusão fundiária dentro do Estado mais industrializado e
com agricultura mais modernizada do país, é evidente que ela se reproduz em outras
regiões do Brasil. No Oeste da Bahia, considerado uma das mais recentes fronteiras
abertas pela modernização agrícola no país, a imigração de empresários sulistas para a
região foi acompanhada por um aumento no valor da terra e por mais uma leva de
grilagem, neste caso, com a expulsão violenta dos pequenos posseiros que ali viviam
décadas. Antes da entrada da soja no chamado Gerais Baianos, havia 10 mil pequenos
proprietários na região. Hoje não passam de 300. De acordo com depoimentos dos
novos proprietários da região e dos antigos posseiros, o uso da grilagem era
indiscriminado, a ponto de os documentos saírem muitas vezes mais caros do que as
terras (Haesbert da Costa, 1997).
Independente de onde ocorra, o uso desses documentos forjados
32
, continua
indiscriminado e fonte de conflitos, de expulsão de posseiros e de mortes. Cenário da
primeira chacina no campo do primeiro governo Lula, em que morreram sete
trabalhadores rurais e um comerciante, o município de São Félix do Xingu, no sul do
Pará, tem 70% de suas terras da zona rural griladas e é o segundo maior em extensão no
país, com 84,6 mil m², quase o tamanho de Portugal
33
.
2.4 A abolição da escravidão e a república” dos fazendeiros
Garantido pela Lei de Terras a manutenção de seus privilégios, o patronato rural
escravocrata continuou levando seus negócios e sustentando o regime monarquista. Mas
na década de 1880, a inércia governamental reinava no Império de D. Pedro II. Depois
da Guerra da Secessão nos Estados Unidos, a escravidão foi tornando-se
progressivamente uma excrescência para a maioria dos brasileiros. Era o único país do
Ocidente a manter essa instituição e, segundo dados do Censo de 1872, os escravos
representavam somente 5,5% da população.
Entretanto, como eram os fazendeiros fluminenses, com cargos vitalícios na
Corte, os principais interessados na manutenção da mão-de-obra cativa, D. Pedro II
optou pela segurança do apoio e da lealdade de seus amigos influentes do que arriscar a
mudança.
31
Mas essa honraria poderia ser algo insignificante não fosse o fato de que, além da grilagem de terras
daquela região ser pública e notória, a partir da década de 80, em meio ao crescimento da luta pela
terra na região, é que o Estado de São Paulo arrecadou as terras griladas, distribuindo-as para 6.025
famílias de sem-terras (até setembro de 2003). Ainda existem, entretanto, cerca de 500 mil hectares em
disputa judicial. De acordo com o Itesp (Instituto de Terras de São Paulo), descontando-se a área
destinada à reserva florestal e às posses que podem vir a ser regularizadas (com menos de 500 hectares),
sobrariam ainda 270 mil hectares, onde poderiam ser assentadas mais seis mil famílias.
32
rias lendas em torno das origens do uso do termogrilagem” para dar conta destas práticas. Uma
delas explica o termo porque esses documentos falsos seriam colocados em uma gaveta cheia de grilos
por algum tempo para lhes dar aparência de envelhecidos.
33
Folha de S. Paulo, 21/09/2003.
45
Setores agrários não vinculados à escravidão e membros da classe média urbana,
sobretudo intelectuais, profissionais liberais e estudantes universitários começaram,
então, a agir por conta própria, embalados pelos versos de Castro Alves
34
e
organizando-se em “clubes abolicionistas”
35
. Não havia espaço que não fosse ocupado
pela inflamada oratória contra a escravidão. Coletavam-se recursos para a alforria dos
escravos, para as quais até as grandes damas concorriam com jóias, gestos devidamente
noticiados nas colunas sociais da época, para vaidade de suas doadoras. Neste período,
os plantadores de café da província de o Paulo, que constituíam o setor mais
dinâmico da economia, já tinham tomado a iniciativa de financiar a vinda de imigrantes
estrangeiros, substituindo a mão-de-obra escrava, ação mais tarde encampada pelo
Estado. E assim, mesmo autoridades locais da época como os delegados de polícia
eram completamente surdas aos apelos do governo em defesa da propriedade - no caso,
dos escravos - e da ilegalidade que representava o apoio às fugas dos cativos. Nos
padrões de hoje, era como se os comandantes das polícias militares estaduais se
recusassem a cumprir as ordens de despejo de sem-terras de fazendas invadidas,
emitidas pelos juízes estaduais.
Além de ter motivado esse movimento social que se espalhou por todo o país, a
luta pela abolição da escravatura acabou provocando a famosa “Questão Militar” que
levou o Exército, então muito prestigiado por sua vitória na Guerra do Paraguai, a se
afastar do governo, que queria enviar os soldados para atuar como “capitães-do-mato”,
atrás dos escravos que fugiam do cativeiro.Essa atitude, primeira insubordinação do
Exército frente ao poder institucionalizado do país, selou a extinção da escravatura e
abriu caminho para que as idéias republicanas se popularizassem dentro da corporação,
um dos fatores determinantes da queda do regime monárquico
36
.
Apesar de toda essa energia política que a população empreendeu, a abolição da
escravidão, datada oficialmente em 13 de maio de 1888, foi feita pela metade. Embora
cartas da Princesa Isabel hoje confirmem que ela tinha intenção de doar terras para os
ex-escravos, com o apoio inclusive de D. Pedro II, e de ilustres intelectuais como
Joaquim Nabuco e André Rebouças, o golpe de Estado veio na frente, e os negros foram
libertados sem indenização ou qualquer tipo de apoio, depois de terem, com seu sangue,
força e alegria, sob castigos e maus-tratos, construído este país.
Com o apoio até dos latifundiários escravocratas, desgostosos com o fato de o
Império não tê-los indenizado, a “República” foi proclamada um ano depois da abolição
da escravatura, pelo Marechal Deodoro da Fonseca, que fez questão de informar ao
Visconde de Ouro Preto, chefe do gabinete deposto, que o imperador D. Pedro II teria
seus direitos respeitados, pois “devia-lhe favores”
37
. Em suma, uma “República” foi
proclamada no Brasil impedindo uma reforma republicana: a reforma agrária para
indenizar os ex-escravos.
Apesar de seu turbulento período de consolidação, sob as rédeas do Marechal
Floriano Peixoto, que inspirou os brios dos republicanos jacobinos mais radicais, e um
certo entusiasmo da população do Rio de Janeiro, o novo regime foi coordenado, desde
o princípio, pelos interesses dos grandes cafeicultores paulistas que o enxergaram
34
Entre os poemas deste autor que ficaram célebres naquele momento está “Navio Negreiro”.
35
Nestes clubes, os abolicionistas promoviam conferências, quermesses, festas beneficentes e comícios
em praças públicas. Joaquim Nabuco e José do Patrocínio fundaram em 1880 a Sociedade Brasileira
contra a Escravidão. Em 1883, junto com Aristides Lobo e André Rebouças, eles articularam a
Confederação Abolicionista que congregava todos os clubes abolicionistas existentes no país.
36
Esse levantamento histórico se baseia em diversas leituras ao longo da minha vida, mas tem como
algumas de suas referências mais diretas Penna (1999) e Caldeira e outros (1997).
37
Expressão usada do próprio do próprio Marechal Deodoro, citado por Caldeira (1997).
46
simplesmente como um modo de melhorar a situação da província que crescia
economicamente e reclamava mais autonomia.
Como o movimento republicano surgiu no país quando ainda prevaleciam as
relações escravocratas, a república pensada pelas elites que dirigiam esse movimento
não era uma resposta aos desafios que o capitalismo vinha impondo na Europa. Com
parca industrialização e dependendo de um produto cultivado predominantemente por
grandes proprietários, o regime republicano não chegou ao país para desencadear a
democratização do acesso à propriedade, com vistas a abolir privilégios, dinamizar o
mercado interno e incrementar a igualdade jurídica, gerando condições para desenvolver
e ampliar a economia capitalista, como ocorreu com a ascensão da burguesia em
diversos países, a partir do século XIX. As conseqüência políticas da diminuão da
concentração fundria e da ampliação do número de proprietários de terras na
estabilização de regimes de democracia liberal em alguns países é tema exaustivamente
mapeado em Moore Jr (2002), um clássico onde o autor demonstra, inclusive, que o
surgimento de regimes fascistas no Japão e na Alemanha são uma resultante do fato de
que a modernização desses países foi feita mantendo os privilégios e os interesses de
suas respectivas elites agrárias.
Como as três primeiras décadas da República foram dominadas pelos interesses
dos cafeicultores paulistas e pecuaristas mineiros, que detinham o poder no país,
evidentemente que qualquer idéia de reforma agrária ou mesmo de limitação do
tamanho da propriedade rural não vingaria.
É característica dessa época que veio a se repetir em praticamente todos os
períodos ditos democráticos do país a descentralização política, o favorecimento da
economia agcola de exportação, os benefícios para a oligarquia e o ambiente propício
para a atividade política, neste caso particular, ritualizada pelas eleições, devidamente
fraudadas, realizadas de quatro em quatro anos. No aspecto agrário, o novo regime,
através da Constituição de 1891 (Silva, 1996), facilitou a privatização das terras
públicas ao determinar que as terras devolutas passassem da esfera do governo federal
para os governos estaduais, o que possibilitou que muitos chefes políticos locais, os
conhecidos “coronéis”, pudessem legitimar suas ações de “açambarcamento” de terra
em favor de seus interesses e de seus correligionários, o que resultou na formação de
amplos domínios, fortalecendo ainda mais a “ordem latifundiária”.
Embora existam registros de várias greves e revoltas de colonos do cacontra
suas condições de trabalho, a República Velha ficou marcada pelas irrupções de duas
revoltas camponesas embebidas em messianismo: a Guerra de Canudos (1896-1897), na
Bahia, e a Guerra do Contestado (1912-1916), em território fronteiriço entre Santa
Catarina e Paraná
38
. Ambas foram interpretadas pelo governo e pelas oligarquias como
sendo simplesmente movimentos monarquistas e anti-republicanos. Em Canudos, a luta
pela terra era um pano de fundo, mas no Contestado, ela foi detonada pela expulsão de
posseiros das terras que eles ocupavam tradicionalmente ao longo da estrada de ferro
São Paulo-Rio Grande do Sul. As glebas haviam sido entregues para o grupo de um
escroque inglês, Sir Percival Farqhuar – conhecido pelo envolvimento em diversas
negociatas no país – para que fossem revendidas em programas de colonização. Ambas
as revoltas só foram esmagadas pelo Exército depois dele ter sofrido severas derrotas
militares no confronto com os camponeses.
38
Embora tenha ocorrido antes da Proclamação da República, deve-se citar entre esses movimentos
messiânicos o caso dos “Mucker”, liderados por Jacobina Maurer, em uma das colônias alemãs instaladas
no Rio Grande do Sul, mais especificamente em Sapiranga, hoje Grande Porto Alegre. Este movimento
irrompeu entre imigrantes camponeses pobres e também teve desfecho violento.
47
O caso de Canudos também foi vinculado a um fenômeno esquecido pela
maioria dos historiadores modernos. No fim do século XIX, houve três grandes
períodos de seca (1876–1879, 1889–1891, 1896–1902), causada por uma perturbação
climática que se estendeu por toda a zona tropical do mundo, matando mais de 30
milhões de pessoas
39
. No Brasil, a seca de 1889 -1891 coincidiu com a Proclamação da
República e s de joelhos os sertanejos nordestinos, fragilizando-os ainda mais diante
das crises políticas e econômicas que acompanharam o parto do novo regime político.
É nesse contexto de desespero, misturado ao caldo messiânico e milenarista
propagado por Antonio Conselheiro, que surgiu o arraial de Belo Monte, fundado em
1893 pelo beato e seus seguidores, na Fazenda Canudos, que estava abandonada desde
1891. No povoado, o povo de Conselheiro construía casas, plantava, criava e,
sobretudo, rezava. As terras eram exploradas comunitariamente e, rapidamente, o
povoado tornou-se auto-suficiente. Em seu último ano, antes de ser destruído pelo
Exército, o arraial contava com cerca de 20 mil habitantes e havia se tornado uma ilha
de prosperidade em pleno sertão baiano, destoando da pobreza do Nordeste
latifundiário.
A história das guerras que destruíram Canudos e derrotaram os posseiros do
Contestado não podem ser desvinculada das lutas entre facções oligárquicas destes
Estados e marcam também o início do histórico e trágico desentendimento entre o
Exército e os camponeses brasileiros.
2.5 As oscilações da República
A Proclamação da República afirmou o Exército como elemento constitutivo do
Estado brasileiro contemporâneo. Para Martins (1986), ele acabou sucedendo o rei no
papel da defesa da unidade nacional contra a ordem privada, personificada nos oligarcas
e nos grandes proprietários rurais, herdada do tempo colonial. Essa contradição tornou-
se evidente, sobretudo a partir da eclosão da revolta tenentista, herdeira do “florianismo
jacobinista”
40
dos primórdios da República, que se aliou com Getúlio Vargas na
Revolução de 1930.
Quando o acordo oligárquico que sustentava a República Velha coma a se
romper, demonstrando a fragilidade de seus pactos políticos, setores do Exército,
personificados nos tenentes, surgiram na arena e, depois de praticamente uma década de
revoltas, instauraram um governo, chefiado por Getúlio Vargas, claramente
centralizador, que fortalece o Estado e promove a modernização e a industrialização do
país em um ambiente de restrições à participação política. Como aponta Medeiros
39
Le monde diplomatique, abril de 2003, , de Mark Davis,A grande fome do século XIX e a origem do
Terceiro Mundo”.
40
Paulo Ribeiro da Cunha, em seu livro sobre Nelson Werneck Sodré Um olhar à esquerda (2002)
utiliza-se a definição de jacobinismo, de Michael Lowy, para quem seria “a ala esquerda da pequena
burguesia, combinação específica de democracia plebéia e de moralismo romântico (de Rosseau) e tende
a entrar em conflito com a ideologia e a prática liberal individualista da grande burguesia". No caso
brasileiro, durante o governo de Floriano Peixoto, jacobinismo” tornou-se sinônimo de “florianismo” e
constituiu-se como um efêmero projeto de esquerda nacionalista que foi assumido por alguns
parlamentares no governo de Peixoto. Este movimento avançou pouco politicamente, não se firmando
como uma proposta conseqüente para as gerões futuras, ainda que sua ressonância perdurasse por
algum tempo, sobretudo nas Escolas Militares. Na verdade, floresceu enquanto esteve personificado no
poder por Floriano Peixoto, e talvez, tenha sido essa a sua maior fragilidade e uma das explicações de seu
desaparecimento. Apesar de seu prestígio pessoal, o Marechal de Ferro (Floriano Peixoto) afiançou a
sucessão oligárquica e, ao final, mais uma vez o poder político demonstrou o seu condicionamento ao
poder econômico.
48
(1991), os tenentes, assim como o PCB, trouxeram o tema do latifúndiopara o debate
político que ocorria no país durante a década de 20. O próprio Getúlio Vargas no
lançamento da plataforma da Aliança Liberal, em 2 de janeiro de 1930, apontou o
latifúndio como “causa comum do desamparo em que vive o proletário rural, reduzido à
condição de servo da gleba” (Stein, 1991 apud Medeiros 1995, p. 64)
Logo após “o Movimento do 3 de outubro”
41
, as velhas oligarquias foram de fato
combatidas e muitos “coronéis” do sertão foram presos pelos revolucionários vitoriosos.
Mas esse conflito contra os potentados locais logo foi abandonado e alguns dos tenentes
interventores acabaram reproduzindo, de certo modo, as velhas práticas clientelistas dos
chefes políticos regionais. Mais tarde, nos debates da Constituinte de 1934, os
deputados tenentistas elaboraram um programa de reconstrução nacional onde constava
a necessidade de se fazer uma “reforma agrária radical”, através da ação forte do
Estado, que viabilizasse a modernização da agricultura, prevendo inclusive a taxação
progressiva das terras não cultivadas e das arrendadas. Entretanto, fora os quatro
membros da bancada classista dos empregados, participantes da Constituinte, que
defenderam o reformismo agrário até o fim, estas bandeiras foram deixadas de lado até
mesmo pelos próprios tenentes. Deste modo, a Carta Magna de 1934 deixou a União
sem capacidade de legislar sobre direito rural e realizar desapropriações, além de não
regulamentar o direito associativo e não apresentar uma legislação trabalhista para o
campo, “o que indicava as dificuldades políticas de intervir sobre esse terreno” (Stein,
apud Medeiros, 1995, 64).
Após a instauração do Estado Novo, Vargas manteve a possibilidade de
distribuão da propriedade da terra na Constituição de 1937, que previa o instrumento
da desapropriação por interesse social dos latifúndios improdutivos, em particular os
ociosos para fins de especulação, mediante indenizão prévia, mas não
necessariamente em dinheiro, ou seja, o pagamento poderia ser feito com títulos da
dívida pública (Ribeiro, 2001). Para Getúlio, o fato de existirem grandes extensões de
terras públicas às quais o governo poderia recorrer o justificava a adoção da
desapropriação como regra geral ou como prioridade de uma política fundiária. Para
tanto, desenvolveu e incentivou a “Marcha para o Oeste”, projeto governamental de
colonização, cuja ocupação foi feita através de pequenas propriedades. Seus núcleos
coloniais mais importantes foram Dourados (MS) e Ceres (GO).
De qualquer modo, na visão de Martins, durante seu primeiro governo, Getúlio
Vargas “não quis, ou não pôde enfrentar os grandes proprietários de terra e seus
aliados” estabelecendo as bases de um pacto político tácito, válido até hoje, em que a
oligarquia rural “não dirige o governo, mas não é por ele contrariada” (1994, p.72). Por
outro lado, em seus famosos discursos do Primeiro de Maio, Vargas defendia sempre a
necessidade de estender os direitos trabalhistas para o meio rural como forma de evitar o
êxodo rural e o superpovoamento das cidades. Segundo Medeiros (1995), ainda em
1937, o governo apresentou à mara um projeto voltado para “a regulamentação de
direitos e obrigações relacionadas às atividades rurais”. Entretanto, esse debate
arrastou-se sem chegar a qualquer conclusão.
Somente em 1941 foi constituída uma comissão interministerial para o estudo do
enquadramento da agricultura na organização sindical. O debate dado em cima do
anteprojeto elaborado por um órgão subordinado ao Ministério da Agricultura tinha a
participação dos organismos de classe do patronato rural como a Sociedade Nacional da
41
Os levantes militares que desencadearam o que ficou conhecido como “Revolução de 30” começaram
no dia 3 de Outubro de 1930. Para os veteranos dessas lutas, membros da “Aliança Liberal” e
historiadores deste episódio, como Barbosa Lima Sobrinho, autor de “A verdade sobre a Revolução de
Outubro” (1946), esse processo ficou conhecido como Movimento 3 de Outubro”.
49
Agricultura (SNA) e representantes dos aparelhos de Estado (Medeiros, 1995). Mas,
enquanto o representante do Ministério do Trabalho, Instria e Comércio defendia a
necessidade de se constituir um sindicato dos trabalhadores da agricultura, os
representantes do Ministério da Agricultura e da SNA defendiam um sindicato misto
que agregasse em uma mesma entidade os “patrões” e os “empregados(Ibid, p. 70).
Este debate acabou saindo do cenário político, mas retornou em 1944, quando o
Ministério do Trabalho Indústria e Comércio apresentou um novo anteprojeto
defendendo a criação de sindicatos diferentes para os empregados e os empregadores do
meio rural, acabando por vencer a posição da SNA, em favor do sindicato misto. Assim,
o decreto de sindicalização rural, datado de novembro de 1944, garantiu “a
representação paralela para pates e empregados”. No entanto, a solicitação de
investidura sindical requisitava documentos como “prova de boa conduta firmada por
autoridade policial competente” e “prova de exercício efetivo da atividade ou profissão
desde um ano antes a tornavam praticamente impossível frente às condições de
trabalho vigentes no campo, onde os trabalhadores eram submetidos a uma intensa
jornada de trabalho e, além da dependência clientelística, vicejava o mandonismo
patronal com casos, inclusive, de existência de prisões particulares nas fazendas.
Apesar de todas estas limitações para a organização sindical dos trabalhadores agrícolas,
um ano depois, foi baixado um outro decreto que atendia a visão do patronato rural
representado pela SNA, curiosamente sem revogar o primeiro nem a portaria de
regulamentação que o sucedeu (Medeiros, 1995, p. 72).
Apesar disso, por terem suprimido as eleições, os 15 turbulentos anos do
primeiro governo Vargas enfraqueceram as bases clientelistas dos grandes proprietários
de terra, que ficaram sem sua principal mercadoria para a troca de favores e para a
manutenção das lealdades políticas: o voto. Além disso, seu papel político e econômico
foi enfraquecido pela industrialização, pelo crescimento das populações urbanas e pelas
migrações do campo para as cidades. Mas esse cenário se modificou com a abertura
política de 1946, que restaurou as bases do clientelismo. Apesar de a oligarquia ter
saído enfraquecida politicamente pelo Estado Novo, seus interesses sustentados na
propriedade da terra voltaram a pesar novamente na política. Não por acaso, embora
tenha sido a primeira no Brasil a colocar que a terra deveria cumprir uma função social,
a Constituição de 1946 alterou a de 1937 no quesito desapropriação, determinando que
a indenização prévia ao fazendeiro desapropriado fosse feita em dinheiro, o que
inviabilizou, na prática, essa medida.
Notabilizado por ter reconhecido e proclamado os direitos trabalhistas dos
operários e trabalhadores urbanos, Getúlio Vargas anunciou sua intenção de esten-los
aos trabalhadores rurais em sua campanha eleitoral para a presidência em 1950. Além
disso, é em seu segundo governo que Vargas define uma política agrária, evitando usar
o termo “reforma agrária”, por motivos, “táticos”, segundo um de seus biógrafos. Em 25
de julho, Dia do Trabalhador Rural, de 1951, o presidente criou a Comissão Nacional de
Política Agrária, cuja proposta prioritária era a distribuição gratuita de terras públicas,
ou seja, um programa de colonização que previa, como instrumento paralelo, a
desapropriação por interesse social de terras particulares improdutivas. Criticado por
Carlos Lacerda que o acusava de “desviar-se dos rumos de uma prometida reforma
agrária”, os anteprojetos dessa Comissão e desta Lei Agrária inofensiva”, segundo o
arquiinimigo de Vargas, ficaram paralisados no Congresso, dominado por
representantes da oligarquia rural.
Segundo Darcy Ribeiro (1997), baseando-se em uma revelação que Gilberto
Freyre teria feito a um jornalista argentino, Vargas teria chamado o autor de Casa
Grande & Senzala ao Rio de Janeiro, uma semana antes de seu suicídio, em agosto de
50
1954. O presidente queria a colaboração de Freyre na reforma agrária que pretendia
deslanchar. “É você quem vai organizá-la”, teria dito Vargas. “Vose sentaem um
escritório perto do meu, e trabalharemos intensamente no projeto.
2.6 O aumento dos conflitos e da mobilização dos trabalhadores rurais
Além de favorecer a recomposição política das oligarquias que agora
começavam a enfrentar a ampliação da representação dos partidos de base urbana,
particularmente o PTB, o interregno democrático de 1946 a 1964 foi marcado pelo
aumento dos conflitos no campo. Se nas décadas de 30 e 40, os posseiros defendiam
suas terras individualmente, com armas na mão, a partir da década de 50, o movimento
camponês se organizou, chegando a liberar terririos, formar governos populares locais
(TrombasGO e sudoeste do Paraná) e formular a exigência de uma reforma agrária
radical.
Neste período surgiram a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do
Brasil (Ultab), o Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master) e as Ligas
Camponesas. A Ultab era um braço do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no campo,
que procurava atrair para a sua órbita a diversidade de conflitos que pipocavam no país
nesta época. Ela foi criada aos poucos em quase todos os Estados brasileiros, menos no
Rio Grande do Sul, e sua maior penetração foi nos Estados de São Paulo, Paraná, Rio de
Janeiro e Pernambuco. Tinha por finalidade coordenar as associações de camponeses e
criar condições para uma aliança política entre os operários e os trabalhadores rurais.
Localizado no Rio Grande do Sul, o Master surgiu no final da década de 50, a partir da
resisncia de 300 famílias de peões e agregados do município de Encruzilhada do Sul.
Era uma espécie de federação de camponeses organizados em diversos municípios
gaúchos, com forte ligação com o então governador do Estado, Leonel Brizola, mas
também com presença de militantes do PCB. Foi através do Master que os
acampamentos debutaram como instrumentos de luta política no Brasil. Entre os anos
1960-1964, o Master organizou 26 acampamentos na beira das estradas, mas dois
resultaram em desapropriação de terras para reforma agrária, uma dessas áreas voltou
mais tarde para a história da luta pela reforma agrária: a Fazenda Sarandi, de 24 mil
hectares.
Esses conflitos eram uma das conseqüências do início das transformações
sociais e econômicas que estavam tendo início, com o avanço do capitalismo no campo,
e se desenvolvia em duas frentes fundamentais: a luta contra o foro, uma espécie de
aluguel que os trabalhadores nordestinos pagavam para usar a terra dos fazendeiros, e a
luta contra a grilagem de terras no Paraná, Goiás e em Minas Gerais. Diferente dos
foreiros que resistiam para não serem expulsos da terra e não pagar o aumento do foro,
no Rio Grande do Sul, a luta era para entrar na terra.
Outro aspecto detonador dos conflitos na época é que os grileiros
mancomunados com juízes e donos de cartórios começavam a aparecer em áreas a
serem valorizadas por alguma obra governamental, em geral as novas estradas de
rodagem, e expulsavam os posseiros.
Em Goiás, nos municípios Trombas e Formoso, os trabalhadores rurais, oriundos
majoritariamente de Minas Gerais, resistiam anos aos grileiros que cobiçavam
aquelas terras, a serem valorizadas pela construção da rodovia Transbrasiliana, hoje
Belém-Brasília. Em meio a esse conflito, comunistas se aproximaram dos posseiros
auxiliando-os com técnicas de resistência e de organização. Vendo que não demoviam
os posseiros a sair da terra ou a assinar contratos de arrendamento, que facilitariam sua
expulsão por via judicial, os grileiros partiram para a violência. Liderados por José
51
Porfírio, cuja mulher morreu em conseqüência desses ataques, os posseiros organizaram
grupos armados de auto-defesa e, de certo modo, constituíram um terririo autônomo,
no qual se podia entrar ou sair com salvo-conduto. Mais tarde, essa região tornou-se
um município e elegeu JoPorfírio, deputado estadual. Depois do golpe militar e de
anos fugindo e vivendo clandestinamente, Porfírio foi preso em 1972. Solto no ano
seguinte, desapareceu dois dias depois e nunca mais se soube de seu paradeiro.
No sudoeste do Paraná, o despejo de posseiros e a grilagem foi promovida pelo
próprio governo estadual. O governador era Moisés Lupion, que mais tarde teve seu
mandato cassado pelo governo militar por enriquecimento ilícito. Ele estava por trás de
uma transação para apossar-se das terras dos posseiros, junto com uma empresa,
chamada Clevelândia. A empresa ameaçava de expulsão até os colonos que tinham
título definitivo, querendo obrigá-los a fazer contratos de arrendamento. As terras assim
tomadas eram presenteadas a amigos e parentes do governador, numa manobra
calculada para tomar empréstimos privilegiados no banco estadual. Em 1957, ocorreu o
primeiro enfrentamento armado entre camponeses e jagunços dos grileiros. Os
revoltosos organizaram-se nos quatro munipios, nos quais formavam juntas
governamentais. Tropas militares foram enviadas para negociar a solução, que ficou
pendente até 1962, quando o governo Goulart determinou a entrega de títulos
definitivos aos colonos (Morissawa, 2001).
As Ligas Camponesas, que levantaram a bandeira da “reforma na lei ou na
marra”, surgiram como um movimento legalista, no Engenho da Galiléia, em
Pernambuco, como reflexo, provavelmente, de uma experiência de organização dos
trabalhadores da região pelo PCB na década anterior. Os moradores, chamados
“foreiros”, que arrendavam a terra, formaram uma associação, a Sociedade Agrícola dos
Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco, inicialmente com finalidades
assistencialistas. Era para ser uma cooperativa funerária para amenizar os custos de
sepultamento dos mortos, chegando inclusive a chamar o filho do fazendeiro para ser
um dos associados. Quando começaram a ser ameaçados de expulsão pelos donos da
terra, que queriam plantar cana-de-açúcar, foram atrás do advogado e deputado do
Partido Socialista, Francisco Julião. Inicialmente, ele elaborou uma proposta bastante
legalista para interceder a favor dos foreiros que haviam ido procurar sua ajuda diante
da iminente expulsão. Sua defesa baseou-se no fato de que como eles eram residentes na
fazenda, tinham seus direitos assegurados como se fossem inquilinos. Naquele contexto
social e político, essa singela associação acabou tornando-se um instrumento de
mobilização desses camponeses que passaram a lutar pela desapropriação do engenho.
Seu exemplo, a rede de apoio que ele galvanizou, composta por advogados e políticos,
combinando-se com a situação de miséria vivida pelos nordestinos funcionou com um
rastilho de pólvora na constituição de um amplo movimento popular de luta pela
reforma agrária que ganhou grande repercussão nacional (Medeiros, 1995:148).
Ao contrário do que o Exército imaginava na época, dadoo crescimento
vertiginoso das Ligas, elas nunca chegaram a se aliar inteiramente com o PCB.
Entretanto, o contexto político demarcado pela Guerra Fria, pela Revolução Cubana,
associado ao anticomunismo oficial e ao pacto político tácito com os oligarcas, vigente
desde 1946, determinaram uma aguda polarização em torno da reforma agrária, que
começava a ocupar espos cada vez maiores no debate político da época. Setores da
burguesia brasileira, ligados umbilicalmente com o latifúndio, rechaçavam qualquer
mudança na estrutura agrária. Apesar do franco avanço da industrialização, a questão da
propriedade e o fundamento das relações políticas se apoiavam predominantemente no
monopólio da terra.
52
O grande impasse na década de 60, encruzilhada onde era necessário definir o
modo como se iria conduzir o crescimento e/ou desenvolvimento econômico do país, se
concentrou na reforma agrária, que só foi realizada em países capitalistas quando houve
o apoio de algum outro setor da classe dominante, interessado no dividendo econômico
e político que ela poderia acarretar. No Brasil, nunca houve na elite um setor antagônico
aos interesses do latifúndio, suficientemente forte e consciente das repercussões desta
opção. Como observa Martins, não houve reforma agrária nas sociedades capitalistas
sem intervenção de um grupo estranho aos trabalhadores rurais que a considerasse vital
para a sobrevivência do conjunto social (Martins, 1994, p.158).
Logo, para esses setores, bem como para os militares que fizeram aliança com
eles, as dispersas e frágeis lutas do campo na época assumiram uma dimensão bem
maior do que de fato tinham, no seio de um conflito ideológico, marcado pela Guerra
Fria, com o que, de fato, não estavam verdadeiramente vinculadas.
Foi neste contexto altamente polarizado que, no dia 31 de março de 1964, os
militares depuseram o presidente João Goulart, que havia anunciado, duas semanas
antes, no célebre Comício da Central do Brasil, sua proposta de reforma agrária que
limitava o tamanho das propriedades rurais em 1000 hectares e desapropriava todas as
grandes propriedades ao longo de 100 quilômetros de cada lado das estradas federais.
O golpe, iniciado pela movimentação de tropas em Minas Gerais, ocorreu um dia depois
de marcada a desapropriação de uma fazenda experimental do governo, invadida por
fazendeiros, em Governador Valadares (MG).
É interessante observar que, desde esta época, no Brasil, reforma agrária é uma
bandeira da esquerda, apesar de a polarizada década de 60 ter começado com os Estados
Unidos propondo aos países latino-americanos que cumprissem com essa agenda
política, na célebre Conferência de Punta del Este, em 1961, com vistas a evitar uma
nova revolução “à la cubana”. É interessante observar que os representantes do governo
brasileiro nesta conferência eram o economista Celso Furtado e o agnomo e
fazendeiro José Gomes da Silva. Este, que foi o responsável pela introdução do cultivo
da soja no Brasil, foi um dos formuladores do Estatuto da Terra e que manteve-se por
toda sua vida como um incansável militante e especialista da reforma agrária.
2.7 A ditadura militar e a modernização excludente
O Exército foi, por muitos anos, um antagonista da oligarquia. Ele encarnava a
opção modernizadora e centralizadora, em contraste com o atraso econômico e a opção
pela descentralização política dos latifúndios. Além disso, até pelo menos 1918, suas
tropas combatiam as milícias da Guarda Nacional, criada no século XIX, pelo regente
Feijó, através das quais os grandes proprietários se organizavam militar e politicamente,
e de onde veio sua alcunha de “coronel”. O que estava em jogo neste conflito era o
monopólio do uso da violência em nome do Estado. De acordo com Martins, esse
confronto não cessou com a extinção da Guarda Nacional, pois as polícias militares
estaduais acabaram se tornando um reduto desse poder oligárquico, cuja influência
diminuiu quando o golpe militar vinculou-as ao comando do Exército (Martins,1986).
Com o golpe de 31 de março, os militares, apoiados por setores da classe média,
pela burguesia, pelos grupos multinacionais e pelos grandes proprietários de terras,
transformaram o latifúndio numa força auxiliar da centralização política, passando a ser
o setor que fornecia a escassa base de sustentação política para o regime no parlamento.
Curiosamente, logo no início da ditadura, os representantes da oligarquia tiveram de
aprovar o Estatuto da Terra, legislação que regularia a abominada reforma agrária e
53
cujos critérios de desapropriação eram bastante precisos, inclusive mais avançados do
que o que ficou cristalizado, após a redemocratização, na Constituição de 1988.
O Estatuto classificou usos e extensões da propriedade e operacionalizou o
conceito de latindio, cuja definição era imprecisa. Mas, ao lado de uma descrição mais
acabada das terras que poderiam ser alvo de desapropriação, os latifúndios por extensão
e por exploração, o regime instituiu a categoria suficientemente flexível de empresa
rural, que recebia as simpatias do Estado e não seria tocada pela reforma agrária.
De qualquer modo, para os velhos coronéis, setores de uma burguesia agrária
emergente e seus representantes, instados a aprovar o Estatuto da Terra no Congresso,
pouco mais de seis meses após o golpe, era melhor conviver com essa legislação,
relativamente avançada para a época do que com as lutas no campo, que vinham
atingindo diretamente sua clientela eleitoral, enfraquecendo-os politicamente e
ameaçando o seu “direito” de propriedade. No entanto, com o beneplácito dos militares,
que apostaram na “modernização conservadora da agricultura”, os avanços do Estatuto
da Terra acabaram se tornando letra morta, ou seja, existiam na lei, mas com uma
garantia tácita de que não seriam executados contra os interesses daqueles que os
haviam aprovado.
Adotando as teses de Delfin Netto, que se tornou ministro da Fazenda em 1967,
para quem a estrutura agrária brasileira não afetava o crescimento econômico, os
militares priorizaram a modernização cnica e implantaram um Sistema Nacional de
Crédito Rural para fomentar a produção agropecuária (Delgado, No Prelo
42
), adotando a
bandeira da luta dos setores patronais no p-64. É importante perceber que a aprovação
da legislação trabalhista no campo, em 1963, um ano antes do golpe militar, acabou de
certo modo dividindo a questão trabalhista da questão agrária, algo que vinha sendo
objeto de grandes debates entre intelectuais de esquerda no p-64, como Caio Prado Jr.
(Santos, 2007), setores reformistas da Igreja Católica e a Cepal (Comissão Econômica
para a América Latina). Entretanto, a ppria implementação de muitos desses direitos
foi produto de muitas lutas, mesmo depois de aprovada a legislação. Por outro lado, em
um contexto de mudança das relações de produção no campo, a nova legislação pode ter
favorecido o aumento da exploração do trabalhador rural que era, até então, residente
nas propriedades, convertendo-o em trabalhadores assalariados, muitas vezes
temporários. Até hoje, em diversos rincões do país, esses “bóias-frias” muitas vezes
ainda não têm respeitados sequer seus parcos direitos trabalhistas, como a carteira
assinada durante a safra.
A associação entre militares e grandes proprietários de terra durante os 20 anos
da ditadura favoreceu as transformações econômicas que expandiram o capitalismo no
campo, chegando inclusive a patrocinar a associação entre o grande capital e a
propriedade de terra. Se o industrial e o fazendeiro já eram tradicionalmente ligados e às
vezes se confundiam na mesma pessoa, a ditadura militar só veio a reforçar essa relação,
invertendo a lógica, sob a qual a renda da terra é reconhecida como um entrave à
circulação e reprodução do capital, tendo que ser removida para favorecer o
desenvolvimento do capitalismo, como ocorreu, em parte, na França e na Inglaterra.
Aqui, através de incentivos fiscais, os empresários das regiões mais ricas, sobretudo do
Sudeste, foram subsidiados para tornaram-se grandes proprietários de terra e
empresários rurais, com profundas conseqüências na ocupação da Amazônia Legal
43
.
42
In Carter, Miguel. Chaleging social inequality: the Landless Rural Workers Movement (MST) and
agrarian reform in Brazil.
43
Citando um livro publicado por José Gomes da Silva, em 1987, Leite e Palmeira (1998) chamam para
dados que este autor cita em cima de estudo feito pelo Serpro (Dias, 1977), que demonstram que “as
pessoas físicas ou jurídicas, brasileiras ou não, com domicílio declarado no Estado de São Paulo, além de
54
Foi assim que a violência começou a explodir nessa região contra índios e posseiros
expulsos e assassinados por jagunços, muitos deles a mando de patrões das regiões mais
modernizadas e avançadas do país, que estavam certos de sua impunidade.
Para Martins (1994, p.83), “nunca na história do Brasil o latifúndio foi tão
poderoso no uso da violência privada” quanto naquela época. “Foi como se a Guarda
Nacional tivesse renascido como força de segunda linha do Exército, que nunca esteve
tão frágil em relação a esse poder, do que durante o regime militar”.
Mas a ação violenta dos grandes proprietários de terra contra os posseiros, o genocídio
das tribos indígenas, que tiveram o “azar de viverem na área por onde traçaram a
rodovia Transamazônica, sensibilizaram a Igreja Católica, que fundou, em 1973, o
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), com uma profunda reformulação de sua
pastoral indigenista, e, em 1975, a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Essas iniciativas
colocaram muitos dos agentes pastorais na mira dos fazendeiros, jagunços, Exército e
Polícia Federal, mas semearam as bases do surgimento dos movimentos sociais do
campo, assim como fomentaram a organização indígena, em meio ao caldo de
mobilizações sindicais e greves que começaram a estourar pelo país no fim dos anos 70.
A “modernizaçãodo cenário agrário construído pela ditadura militar promoveu
uma ampla penetração do grande capital na agropecuária, através de incentivos fiscais e
da consolidação dos chamados “complexos agroindstriais” (CAIs). Como demonstram
os dados reunidos por Coletti (2005), o desenvolvimento do capitalismo na agricultura
teve estreita relação com a expropriação, proletarização do campesinato e deslocamento
de trabalhadores do campo para as cidades, nos anos 60 e 70, quando este fenômeno deu
um salto quantitativo . A leva de cerca de 30 milhões de brasileiros que, nessas duas
décadas, deixaram o campo em busca de melhor sorte nas cidades foi efeito, por um
lado, da inviabilização econômica de muitas pequenas propriedades agcolas que não
conseguiam mais concorrer com a produção capitalista, tendo somente como alternativa
submeter-se aos ditames impostos pelos complexos agroindustriais. Por outro lado, esse
fenômeno também foi fruto das transformações ocorridas nas relações sociais de
produção no interior das grandes propriedades agrícolas capitalizadas e mecanizadas
que substituíram os trabalhadores permanentes e residentes no interior das propriedades,
os conhecidos moradores, por insumos e tratores, bem como por trabalhadores
assalariados eventuais ou temporários (Ibid, 2005).
Esse processo, como observam Leite e Palmeira (1998) não significou
necessariamente um descolamento destes camponeses do trabalho agrícola. Muitos
desses trabalhadores que deixaram de ser empregados permanentes, parceiros e outras
condições - que eram 40% do pessoal ocupado dentro dos estabelecimentos
agropecuários na década de 40 e passaram a ser 13% na década em 1980 (Ibid., p 110) -,
migraram para as chamadas “pontas de rua” nos pequenos e médios municípios para se
tornarem mão-de-obra assalariada nas grandes propriedade. Deste modo, como analisam
estes autores, houve uma “desvinculação do trabalhador de suas condições de produção
tradicionais”, um impedimento de sua “reprodução social como agregado, morador ou
colono” e a criação de um novo sistema de posições e oposições sociais, como a que
havia até então entre eles e senhor de engenho na zona canavieira, que muda de
natureza. Se antigamente, essa oposição social era pessoal e exclusiva, ou seja,
deterem 97,6% de todas as terras apropriadas dessa unidade da federação, detinham mais de 37.1% das
terras cadastradas no Mato Grosso, 15,3% das terras do Pará, 9,6% as terras de Goiás e assim por diante,
resultando numa apropriação de mais de 24% de todos os recursos fundiários do País” (Silva, 1987:73
apud Leite e Palmeira, 1998). José Gomes da Silva costumava repetir que os proprietários residentes no
Estado de o Paulo detinham duas vezes o tamanho do Estado de São Paulo em terras espalhadas pelo
país. Não há nenhum indício de que esta situação tenha mudado nos últimos 30 anos.
55
admitia “mediadores que contribuíssem para a sua plena realização”, a figura do senhor
de engenho passa a lidar com uma força de trabalho dividida entre “fichados”,
geralmente os trabalhadores que ainda vivem na propriedade, e os “clandestinos”, que
geralmente são os que foram expulsos ou são descendentes dos “moradores”, que
passaram a viver nas periferias dos municípios de sua região e que mantêm contato com
este patrão através dos empreiteiros de mão-de-obra (Ibid, p.114). Essa configuração
cria um novo rearranjo social que, por um lado, despersonaliza o domínio do senhor de
engenho e precariza as condições de vida desses camponeses. Por outro, gera novas
contradições que mais tarde passam a ser canalizadas pela luta pela terra como veremos
mais adiante.
A partir dos dados apresentados por Coletti, pode-se fazer um paralelo entre o
êxodo rural e o aumento do crédito subsidiado das grandes propriedades e empresas
rurais, que, criado em 1965, teria quintuplicado de 1969 a 1979, tendo seu volume em
dinheiro se concentrado no período entre 1975 e 1983 (Ibid., p. 50). Foi esse crédito que
permitiu a adoção de quinas e demais insumos (fertilizantes, herbicidas, etc,) que
provocaram a drástica diminuição de postos de trabalho no campo.
Esse processo conhecido como “modernização conservadora” também acarretou
uma série de transformações na base técnica da agricultura, que se tornou, por um lado,
articulada com a indústria produtora de insumos e bens de capital e, por outro, com a
agroindústria, a instria processadora de produtos agrícolas. Essa modernização,
produto de uma crescente intervenção do Estado nas atividades agrícolas, especialmente
através da política de crédito rural, acarretou uma maior mercantilização das relações
econômicas do setor rural, incidindo particularmente no valor das terras. Em que pese
algumas oscilações, ela se manteve como um ativo bastante atraente para o capital, com
retorno médio elevado e risco baixo, além de representar uma garantia segura para o
acesso às demais poticas do Estado (Leite e Palmeira, 1998, p.125).
2.8 Questão agrária e modernidade
Como espero ter demonstrado até aqui, a história brasileira possui um padrão de
reprodução, ou aquilo que Martins (1994, p.24) chama de “história daquilo que
permanece” que, se por um lado, mantém uma estrutura agrária altamente concentrada,
e continua a reproduzi-la nas chamadas áreas de fronteira agrícola com grandes custos
ambientais e sociais, por outro, manteve em abandono secular grande parcela de sua
população, geralmente descendente de escravos e dependentes de qualquer cor,
sujeitando estas pessoas, como observa Souza (2006) a terem uma vida marginal e
humilhante à margem da sociedade. Neste sentido, este levantamento histórico além de
ter por objetivo situar a luta do MST nesse contexto histórico, tem como pressuposto
apresentar porque a luta empreendida por este movimento social tem virtualidades mais
abrangentes. Esse pressuposto se inspira em Martins, para quem o MST é “um grande
movimento de modernização no campo”(Martins, 1997 (1), p.112). Além de apontar
essa característica, este autor faz questão de ampliar sua qualificação considerando o
MST “o mais conseqüente movimento de modernização e ressocialização das
populações do campo que já houve na história do Brasil” (Ibid.).
Que parte da população brasileira tem sido ressocializada pelo MST?
Em outro livro mais recente, o mesmo autor (Martins, 2004) dá as pistas nesse
sentido, embora faça questão de frisar que este aspecto da questão agrária não está
devidamente assimilado pelo MST, ou não tem sido devidamente aproveitado em sua
luta política. Nele, Martins aponta o caráter essencialmente histórico da questão agrária,
vista como incontornável questão residual da solução que, no passado, a sociedade
56
brasileira deu à questão do escravismo”, herança deixada pela Lei de Terras de 1850
para a “multidão de negros e índios, e de mestiços de todos os matizesque ficaram
presos “à sujeição de formas arcaicas de exploração do trabalho” que “persistem até
nossos dias de muitos modos e que alcançaram amesmo pessoas de outras origens”
(Martins, 2004, p. 12). Nesse ponto, Martins se aproxima de outro ator, Jessé de Souza,
cuja análise da reiterada reprodução de sub-cidadãos no Brasil também é pano de fundo
do meu raciocínio sobre o MST.
Para Martins, portanto, tanto a escravidão como a questão agrária são temas que
“balizam o ritmo da nossa história social e limitam nossos horizontes históricos”,
regressando “ciclicamente ao cenário das tensões sociais e políticas da história do país”.
Por polarizarem os conflitos, “revolvem as contradições, complicando a compreensão
do nosso processo histórico e a ação dos diferentes sujeitos sociais no sentido de
encontrar soluções e saídas para os grandes impasses nacionais” (Ibid. p.12).
É dentro desta análise que Martins associa questão agrária a território nacional e,
portanto, com a questão do Estado nacional. Novamente retomando a fatídica Lei de
Terras, de 1850, o autor demonstra que, além impedir o acesso dos pobres à terra,
tornando-os mão-de-obra disponível para trabalhar nas fazendas após o fim da
escravidão, essa lei também determinou que o Império abrisse mão do domínio de seu
território, concedendo a particulares não só a posse, como o domínio de imensas
extensões de terra, “criando uma espécie de direito absoluto que é a principal causa do
latifundismo brasileiro e das dificuldades para dar à terra, plenamente, uma função
social” (Ibid., p.123). A profunda dificuldade do poder público, ou seja, do Estado
brasileiro, para transpor as porteiras das fazendas e impor-se ao poder privado já era um
problema apontado por José Bonifácio de Andrada e Silva décadas antes da
promulgação da Lei de Terras de 1850, como vimos anteriormente.
Por esta razão, Martins acredita que, hoje, a questão agrária se redefine como
sendo um “forte componente da questão da soberania e não mais exclusiva ou
principalmente como irracionalidade do processo de reprodução ampliada do capital”.
Em suma, se o capitalismo brasileiro não precisou resolver a questão agrária, se ela não
escolocada como impasse para a rentabilidade do capital, ela ainda se coloca como
“questão política engendrada pela questão social”. Para o autor, a reforma agrária tem
que, portanto, tornar-se “uma ação do Estado que reconhece a precedência das funções
e dos interesses sociais e do Estado em relação ao direito de propriedade” (Martins,
2004, p.124). Ou seja, “por meio da União, o Estado retira direitos territoriais do
particular e os entrega à sociedade”, por serem “bens a cujo uso e gestão se sobrepõem
os direitos atuais e futuros da sociedade”. Deste modo, mesmo que lentamente, a
questão agrária vai sendo atacada quando se estabelecem “progressivas, ainda que
lentas, limitações ao exercício do direito de propriedade em nome não de sua função
social, mas também de sua função política na soberania do Estado” (Ibid., p.124).
Embora Martins não classifique como tal, a resolução da questão agrária
brasileira torna-se uma medida, portanto, eminentemente “republicana”, ou seja, um
mecanismo que em última instância combate a arraigada tradição brasileira de “uso
privado da coisa pública”, cujas raízes remontam o modo como a Coroa portuguesa
ocupou o território, através dos recursos e do trabalho de seus colonos portugueses que,
em troca, ganhavam poder local, convertido geralmente em riqueza. Na época colonial,
entretanto, esses privilégios privados encontravam limites no domínio do rei que, em
última instância, era quem controlava o território e tinha poderes de restringir o poder
particular destes súditos, tomando de volta para si as terras não utilizadas e efetivamente
não ocupadas,as chamadas terras realengas. Hoje em dia a União tem grandes
57
dificuldades de assumir esse papel, o que agrava a dificuldade brasileira de lidar com os
bens do Estado, tratando-os como efetivamente são, isto é, de todos os brasileiros.
Uma das suas interfaces mais perversas desta ausência do Estado é exatamente a
apropriação privada de grandes extensões de territórios públicos, a grilagem”, que
provocou expulsões e assassinatos de trabalhadores rurais por todo o país, sobretudo nas
áreas de fronteiras agrícola, e pode ser combatida com o efetivo exercício de poder
do Estado nacional em controlar seu território, neutralizando os chamados “poderes
locais”: prefeitos, delegados de polícia, donos de cartórios e juízes, em geral associados
aos “grileiros” das terras, como demonstram os conflitos fundiários que ocorrem hoje
em dia na Amazônia, envolvendo índios, posseiros, madeireiros e agricultores de
origem sulista, geralmente “gaúcha”
44
.
Do ponto de vista deste trabalho, o MST e sua migração de “gaúchos” para
outros estados da federação tem, na verdade, o papel justamente de pressionar o Estado
nacional a penetrar em rincões antes dominados pelo poder privado, que dada esta
situação, submete grandes parcelas da população a viverem à sua margem, visto que
esses proprietários - frequentemente irregulares - controlam recursos naturais como
terra, água e florestas que poderiam estar melhor distribuídos entre os brasileiros. Além
disso, uma das diferenças marcantes do MST em relação a outras forças econômicas e
sociais atuantes na sociedade brasileira é sua tentativa de inserir estas populações
marginalizadas no que chamo de modernidade emancipadora, até porque ao viabilizar o
acesso desses párias sociais de qualquer cor a esses recuros naturais, o MST lhes
viabiliza uma modesta e relativa segurança econômica que lhes possibilita uma inserção
social, no sentido de lhes possibilitar algum acesso a uma instrução formal e técnica e a
práticas políticas que lhes tiram da sub-cidadania definida por Souza (2006). Isto porque
o processo desencadeado pelo MST está sempre associado à luta por direitos, o que vai
construindo novos laços de sociabilidade e vivência comunitária em torno dessas
mobilizações concretas. Sub-cidadãos são os integrantes dessa enorme parcela da
população brasileira atendida pelo programa Bolsa Família”, que vivem do que
costuma ser chamado de biscates”, e que estão fora da chamada “ordem competitiva”
por não terem qualificação adequada, permanecendo marginalizados de forma
permanente. Sua condição marginal geralmente é legitimada pelo restante da sociedade
e frequentemente por eles próprios já que sua pobreza, aliada a uma vida familiar
desorganizada, provoca o que Souza (2006), a partir de Florestan Fernandes, chama de
“individuação ultra-egoísta e predatória” . Segundo este autor, esse tipo de “organização
da personalidade” é produto da desorganização familiar e se reflete:
no egoísmo e na instrumentalização do outro, seja o ‘outro’ a
mulher ou o mais jovem e indefeso, uma situação de sobrevivência tão
agreste que mina, por dentro, qualquer vínculo de solidariedade, desde
o mais básico na família até o comunitário e associativo mais geral
(Ibid., p158).
Essas características os tornam geralmente desprovidos de uma “economia
emocional e predisposições cognitivas” (Idem, p. 170) para competirem de forma bem
sucedida em condições capitalistas modernas. Ou seja, como parte da sociedade
brasileira geralmente enxerga desconfortável esses seres humanos, incapazes de
disciplina, previsibilidade e raciocínio prospectivo, em suma, de qualidades que são
44
Assim como Haesbert da Costa propôs, vou colocar “gaúchos” entre aspas quando estiver falando do
sulistas tanto do Rio Grande do Sul, como de Santa Catarina e Paraná.
58
fonte de auto-estima e de eficiência em um mundo social moderno como o nosso, a
maior qualidade do MST, sob o ponto de vista desse trabalho, é justamente ter
desenvolvido uma disposição militante de trabalhar com estes seres humanos, raramente
vistos como “dignos” desta atenção pelo restante dos brasileiros, mesmo os membros de
seus setores “politizados”, que costumam falar em nome deles, mas raramente
trabalham efetivamente com estes “ feios, sujos e malvados” da nossa sociedade.
Evidentemente que esta dinâmica promovida pelo MST traz dentro de si
aspectos regulatórios que tanto podem aproximar esta base social da ideologia
professada por ele, como da de seus antagonistas. Apoiando-me no raciocínio de Santos
(1995), pode-se perceber que há uma dialética entre regulação e emancipação no projeto
sócio-cultural da modernidade. Este fenômeno, que são as condições objetivas e
subjetivas impostas pelo capitalismo, trata-se tanto de uma questão de idéias como de
técnicas que tornaram a sociedade ocidental uma civilização mundial e que contém, em
si, uma grande ambivalência e a noção da mudança constante, da transformação e
mesmo da revolução.
O pilar da regulação é constituído por três princípios: o do Estado, o do mercado
e o da comunidade. Já o pilar da emancipação é constituído por três lógicas da
racionalidade”: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a
racionalidade moral-prática da ética e do direito; e a racionalidade cognitivo-
instrumental da ciência e da técnica (Santos, 1995, p.77). Por se assentar nesses dois
pilares, a modernidade acabou produzindo pelo menos dois sentidos para a palavra
modernização. Um deles se confunde com o capitalismo e com modernização das forças
produtivas, associada ao conhecimento técnico-científico que provoca mudanças sociais
muitas vezes com traços conservadores e mesmo autoritários. O outro tem uma natureza
emancipatória, algumas vezes revolucionária e, embora muitas vezes tenha sido presa
de concepções deterministas, tem como seu traço mais marcante a visão de que as
mudanças sociais desencadeadas pela modernização poderiam levar a uma sociedade
mais democrática e igualitária. Dessas duas concepções emergem dois conceitos de
modernidade, uma que pode ser considerada a “realmente existente” e a outra que se
coloca como um projeto que move grupos políticos e sociais na busca por sua
realização, mesmo que eles próprios não atribuam esse nome a seu projeto político,
como é o caso do MST. A modernidade, portanto - e sua transformação constante, como
observa Haesbert da Costa (1995, p. 55) -, desembocou em pelo menos dois mitos não
excludentes: o do progresso a partir do domínio irrestrito sobre a natureza, numa
visão muitas vezes linear e cumulativa da hisria, e o da revolução ruptura radical e
definitiva com o passado rumo à sociedade perfeita” (Ibid., p.55).
Na visão de Santos, a busca pela realização das promessas inconclusas da
modernidade deve ser pensada de modo paradigmático, ou seja, incluindo uma mudança
nos próprios pressupostos que, de certo modo, viabilizaram o projeto de modernidade.
Este processo deve passar pelo reconhecimento de que o pilar de regulamentação do
projeto de modernidade acabou se fortalecendo porque houve excessos em algumas de
seus pilares, como o desenvolvimento hipertrofiado do mercado, em detrimento do
Estado e de ambos em detrimento do princípio de comunidade, bem como o excesso de
racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica que acabou colonizando a
racionalidade moral-prática do direito moderno e a racionalidade estético-expressiva das
artes e da literatura.
O autor cita como exemplo do processo que resultou na hipertrofia regularia o
fato de que lutas pela cidadania social, empreendidas pelo movimento operário, que
resultaram nas conquistas de direitos sociais, tinham por base o Estado e acabaram
resultando na integração política das classes trabalhadoras no modelo capitalista de
59
Estado, terminando por legiti-lo ainda mais, esvaziando-se propostas emancipatórias
mais radicais. Não por acaso, estes direitos arduamente conquistados estão sendo
“flexibilizados” na atualidade, abaixo do fogo cerrado oriundo da esfera do mercado.
Para este autor, a construção de um projeto emancipatório neste contexto, hoje
capitaneada por novos movimentos sociais (ambientais, indígenas, camponeses,
mulheres) seria limitada se fosse reduzida somente à pressão sobre o Estado e ao acesso
a direitos sociais, pois esta esfera de lutas se provou insuficiente e tende a ser apropriada
pela lógica capitalista. Em sua opinião, a superação da tendência regulatória e das
novas formas de dominação do capitalismo pode, em seu entender, ser obtidas pelo
reascenso do princípio de comunidade rousseauiana
45
, ou seja, uma comunidade de
cidadãos que gerem sua “res pública”, cuja soberania é oriunda efetivamente da
vontade deste povo, princípio republicano radical. Desde o século XIX, o pilar de
comunidade vem sendo o mais “esquecido” do projeto da modernidade e talvez, não por
acaso, é o que, de acordo com Santos, teria “mais virtualidade para fundar novas
energias emancipatórias”.
Ao contrário de Santos, mais do que uma possível “pós-modernidade de
resisncia instaurando-se no mundo acredito que os fenônemos que enfrentamos ns
atualidade não passam de processos inerentes à modernidade, para Touraine,
simplesmente constituída pela “Razão” e pelos “Direitos”. Sob meu ponto de vista é
intrínseco da modernidade constantemente colocar em questão seus pressupostos,
baseando-se na experimentação concreta e no acesso a novos conhecimentos. Ou seja,
práticas sociais desta vida social moderna são sempre “analisadas à luz de informação
renovada sobre estas próprias práticas ”(Giddens, 1991, p.45). É assim que se
processam estas mudanças constantes em que o próprio sistema vai se ajustando a partir
das contradições que ele próprio engendra, provocando uma renovação de perspectiva
das problemáticas que vão surgindo ao longo deste processo.
A conhecida “diáspora” econômica dos agricultores gaúchos que, desde a década
de 30, começaram primeiramente a desbravar as matas do Oeste catarinense e do
Sudoeste do Paraná, chegando na década de 60 ao Mato Grosso e, mais recentemente,
nos cerrados do Nordeste e Centro-Oeste brasileiro tem sido um fenômeno típico do
sentido de modernização associado ao capitalismo e, neste caso, ao projeto para o
campo implantado pela ditadura militar. Mas, mesmo esse movimento tem um matiz
comunitário se formos pensar na expansão do Movimento Tradicionalista Gaúcho e
seus CTGs (Centros de Tradições Gaúchas), movimento cultural que geralmente
acompanhou a diáspora de agricultores sulistas, sobretudo sojicultores, que hoje tem
raízes fincadas em estados como Maranhão, Bahia, Roraima e, mesmo, no exterior,
como na Bolívia, em Santa Cruz de la Sierra (Kaiser, 1999)
46
.
no caso dos militantes, hegemonicamente “gaúchos” do MST, seu
deslocamento para outras regiões atendeu a uma busca pelo cumprimento das promessas
da modernidade ocidental e do “contrato social” sintetizadas, no caso deste movimento
social particular, na demanda por reforma agrária
47
. Além de participarem da
45
O ideal comunitário de Rousseau tem algumas das seguintes características no Discurso sobre a
Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens”: as virtudes individuais de seus cidadãos
são inticas à virtude social, existe uma unidade profunda entre os governantes e os governados; o
homem é livre, a autoridade da lei não reconhece exceção para nenhum privilegiado, a antiguidade de
suas leis demonstra como ela é adaptada e representa a vontade de seu povo (Rousseau, 1988).
46
Na época em que este livro foi publicado, em 1999, ainda não havia CTG em Santa Cruz de la Sierra,
mas o entrevistado de Kaiser atribuía isso à falta de tempo para o lazer e garantia: “Com o tempo, vamos
trazer nossa cultura para cá” (Ibid., p.140).
47
Esse mesmo fenômeno também gerou marcas em sindicatos de trabalhadores rurais, como no caso do
Pará, onde se destacaram lideranças de origem sulista como Avelino Ganzer.
60
organização deste movimento nos estados do Sul do país, estes militantes do MST
foram incumbidos de estruturar e difundir os todos de sua organização, ou seja,
organizar acampamento e ocupações de terra em outras regiões, construindo redes de
apoio junto a igrejas, partidos e grupos organizados destes estados e, portanto, criando e
fomentando também uma comunidade em torno de uma luta social.
Antagônica a forças e concepções que dominam secularmente o país, esta luta
poderia implicar apenas o sentido distributivista, esgotando-se na conquista da terra.
Mas, no caso do MST, até pelas características históricas da concentração fundiária do
país, é uma bandeira que foi se ampliando para acesso a direitos como educação, saúde,
infra-estrutura, crédito, além de incorporar um questionamento do próprio modelo de
desenvolvimento capitalista, com suas conseqüências devastadoras tanto em termos
ambientais, como sociais e culturais, a ponto de, entre seus militantes, ser defendida a
idéia de que uma reforma agrária de fato poderá ocorrer em outro modelo de
sociedade.
É com o objetivo de demonstrar o caráter moderno e emancipador dessa luta que
este trabalho visa percorrer a trajetória de alguns militantes sulistas que “ajudaram” a
organizar o MST em alguns estados do Nordeste. Curiosamente, como veremos a
seguir, a força destes militantes que formaram este movimento social é oriunda não do
fato de eles serem membros de classes ascendentes, próximas de conquistarem o poder,
mas justamente daquilo que Barrington Moore classifica como de “gemidos agônicos”
de uma classe que está a ponto de submergir na chamada “modernização conservadora”
implantada pelo regime militar.
61
CAPÍTULO 3
Trajetória e expansão do MST no Nordeste
Neste capítulo desenvolve-se a trajeria histórica do MST, relacionando-a com
os contextos políticos que ela atravessa, em um período que se desdobra dos fins dos
anos 70 até o primeiro Governo Lula. Nela, o apontados, a partir de dados de
entrevista, como foram os primeiros passos deste movimento social no Nordeste.
3.1 Novas contradições no Alto Uruguai gaúcho e as origens do MST
A “modernização conservadora da agricultura foi vivida com grande
intensidade pelas falias de pequenos agricultores, conhecidos como “colonos”, que
viviam no Norte do Rio Grande do Sul, na região conhecida como Alto Uruguai. Neste
estado, como demonstra Schmitt (1992), esta modernização não resultou em um elevado
índice de concentração de terra, nem no desaparecimento da agricultura familiar.
Entretanto, assumiu um caráter seletivo, na medida em que os novos patamares técnico-
produtivos filtraram aqueles produtores que possuíam melhores condições econômicas e
que mais facilmente puderam absorver as novas formas de organização da produção,
rejeitando a parcela que não conseguia se adaptar aos novos padrões. Esse processo,
portanto, absorveu parte do campesinato, tornando-o um produtor integrado ao
cooperativismo empresarial e à agroindústria, mas excluiu progressivamente a maior
parte desse segmento, assim como os antigos peões, agregados e posseiros que sempre
existiram na região (Coradini apud Schmitt, 1991, p. 84-85).
Esse aspecto explica, em parte, porque o Alto Uruguai tornou-se a região de
origem da maioria das famílias dos primeiros acampamentos do Rio Grande do Sul e até
hoje oferece a maior base social do MST neste estado, principalmente se forem
computadas as famílias que hoje estão assentadas. Desconsiderando-se a fronteira que
faz com o estado de Santa Catarina, onde vigoram praticamente as mesmas condições
sociais e econômicas, esta região também deu origem a outros movimentos sociais de
trabalhadores do campo, como a CRAB (Comissão Regional dos Atingidos por
Barragens) - que, depois, articulada com outras organizações de “atingidos”, se tornou
movimento nacional como MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens)-, o MPA
(Movimento dos Pequenos Agricultores)
48
e Fetraf-Sul (Federação dos Trabalhadores
na Agricultura Familiar da região Sul)
49
. É importante frisar que o Oeste de Santa
Catarina e do Paraná foram “colonizados” por muitos agricultores gaúchos oriundos
justamente dessa região do Rio Grande do Sul que foi a última a ser ocupada e que
recebeu imigrantes de diferentes origens.
48
Movimento que faz parte da Via Campesina, que se formou em torno da liderança do hoje deputado
estadual Frei Sergio Goergen, religioso que sempre atuou no MST do Rio Grande do Sul, próximo a seu
núcleo dirigente.
49
Esta federação se originou do Departamento Regional Rural da CUT, articulação sul do Departamento
Nacional dos Trabalhadores Rurais da CUT. Em tese, esse departamento reunia os chamados sindicatos
“combativos” da região Sul do país, que se auto-denominavam desta maneira para se diferenciarem dos
sindicatos de trabalhadores rurais vinculados à Contag. Seguindo a linha da CUT, tentaram “tomar” as
federações, mas nunca o conseguiram. Em resultado, surgiu uma federação de agricultores familiares em
SC, cuja filiação não foi aceita pela Contag. As disputas políticas que se seguiram acabaram originando a
Fetraf Sul, que em 2005 se transformada em Fetraf Brasil.
62
A ocupação desta região de povoamento misto foi iniciada em 1890, com a
fundação da Colônia Ijuí, cidade projetada com traçados que obedecem aos ideais do
governo positivista da então província rio-grandense, chefiada inicialmente por Julio de
Castilhos e depois por Borges de Medeiros por 20 anos. O restante da região, entretanto,
não foi tão planejado assim, sendo povoado de forma conflitiva, através da ação de
diferentes forças sociais, incluindo imigrantes de origem européia (muitos deles
originários das chamadas “colônias velhas”, como o Vale dos Sinos e Caxias do Sul,
onde a terra escasseava), “intrusos” (posseiros), companhias particulares de colonização
e agências do Estado. A região também recebeu muitos fugitivos da chamada
“Revolução Federalista” de 1893, vencida pelas forças que apoiavam Castilhos.
No Alto Uruguai gaúcho, além da miscigenação e das terras férteis, tomadas de
indígenas, seus povoadores também usufruíram de benefícios como uma boa estrutura
de transporte ferroviário implantada pelo governo estadual, o que facilitou o escoamento
da produção colonial e a comunicação e acesso a outros estados do país. A partir da
década de 30, diante da crescente escassez de terras para a reprodução do modelo
familiar, os “colonos” gaúchos começaram a migrar para o Oeste de Santa Catarina,
seguindo em direção às terras do Oeste do Para e do Mato Grosso do Sul,
entrecruzando-se com correntes migratórias originárias de outros pontos do país. Neste
movimento, os “colonos” gaúchos foram “reproduzindo nas novas terras sua condição
de agricultores, seja como posseiros seja como pequenos proprietários” (Schimitt, 1991,
p. 244-245).
Em 1943 a imigração dos gaúchos passou a ser incentivada pelo governo
Vargas, que fundou, no Paraná, a Colônia Agrícola Nacional General Osório, cujas
terras foram, em boa parte, distribuídas a eles. Tanto esse projeto oficial, como os
promovidos por companhias colonizadoras privadas, enquadravam-se em um conjunto
mais amplo de ações governamentais que caracterizaram a chamada “Marcha para
Oeste”. Goiás, Paraná e Mato Grosso do Sul serão estados-chave nesse esforço
governamental de dirigir as migrações internas rumo ao interior do Brasil. A partir da
década de 70, a ocupação das novas terras por “colonos” gaúchos prossegue atingindo
os estados do Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e até mesmo o Paraguai.
(Ibid.p.246). Mas a partir do final da década de 70, alguns desses “colonos”,
persuadidos pelo governo a ir para projetos de colonização, começaram a retornar ao
Sul, com sua “conscncia modificada pela árdua experiência nas novas terras”,
passando, então, a denunciar e a “participar da recusa da política de colonizaçãoe a
reinserir-se nos movimentos dos “camponeses meridionaisque começavam a surgir,
agregando sua vivência traumática às mobilizações por terra no Rio Grande do Sul, que,
com grande apoio do trabalho da Comissão Pastoral da Terra, contribuíram para a
“gestação da recusa das políticas de colonização do Estado autoritário” (Santos, 1985,
p.185).
Em 1979, houve um evento emblemático na configuração do que veio a ser o
panorama atual da luta pela reforma agrária, resultante da atuação das Igrejas Católica e
Luterana, reunidas na CPT. No dia 7 de setembro de 1979, um grupo de 110 famílias,
há algum tempo assessoradas por agentes pastorais e intelectuais, organizou-se para
ocupar a Granja Macali, em Ronda Alta, no Rio Grande do Sul. A ação dos agricultores
passou despercebida dos jornais no dia seguinte, tomados pelas manchetes em torno da
visita do ex-governador Leonel Brizola, que acabava de retornar de seu exílio e visitava
o túmulo de Getúlio Vargas, em São Borja.
Dezessete anos antes, o mesmo Brizola, como governador do Rio Grande do Sul,
havia desapropriado 24 mil hectares da Fazenda Sarandi, da qual a Granja Macali fazia
parte, para atender a demanda do acampamento de cinco mil famílias, organizadas pelo
63
Master na periferia da área, região do Alto Uruguai gaúcho. Como o havia legislação
que dispusesse sobre desapropriação de terras para fins de reforma agrária, Brizola se
utilizou de uma lei estadual que dispunha sobre utilidade pública, mas seu mandato
terminou antes que todos os lotes fossem distribuídos e, como não elegeu seu sucessor,
o projeto existente para aquela área não foi cumprido. Dos 24 mil hectares, 13 mil
foram vendidos, oito mil foram loteados e três mil hectares foram arrendados. Com o
tempo, fechado pelo golpe militar, muitas das famílias que o receberam lotes foram
mais para o norte, onde fica o município de Nonoai. havia uma reserva indígena
Kaigangue de 15 mil hectares, reconhecida desde 1847. Esses sem-terra acabaram
entrando na área como posseiros e arrendatários da Funai. No final da década de 70
havia 1.200 famílias vivendo nestas terras .
Enquanto isso, uma parte não distribuída da Fazenda Sarandi foi arrendada pelos
irmãos Dalmolin, que constituíram as Granjas Macali e Brilhante. Na época, um deles,
Dionísio, era o presidente da Fecotrigo (Federação das Cooperativas de Trigo e Soja do
Rio Grande do Sul), uma das mais importantes do estado. Desde 1973 o Estado movia
uma ação de reintegração de posse contra os irmãos, que não pagavam o arrendamento
havia vários anos, mas conseguiam manobrar na Justiça, mantendo-se na área, inclusive
com financiamento do Banco do Brasil.
As 110 famílias que decidiram entrar na área da Fazenda Sarandi eram
remanescentes das 1.200 que haviam sido expulsas pelos Kaigangues de sua reserva, em
maio de 1978. A atitude deste povo indígena, também resultado do trabalho da Igreja
em outra comiso, o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), fez o problema agrário
da região, asfixiado durante a ditadura militar, explodir no colo do governo estadual.
Adotando a política preferencial do governo federal da época a colonização foram
oferecidas terras para essas famílias no Mato Grosso. A maioria aceitou. Entretanto, um
grupo recusou-se a sair do Estado e, apoiado e assessorado por assessores da CPT e
pró-reforma agrária, realizou esta ocupação que é considerada o embrião do MST
(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
Em 1980, as famílias remanescentes da expulsão da reserva indígena que
sobraram da divisão das terras das Granjas Macali e Brilhante, deram início ao
acampamento de Encruzilhada Natalino, que ficava ao lado das áreas parceladas. Em
sete meses de exisncia, esse acampamento reuniu mais de três mil pessoas e deu
visibilidade nacional para os colonos sem terra”. Foram três anos de luta, muita
desisncia e intimidação da ditadura militar, que oferecia terras em outros Estados e
chegou a enviar o Coronel Curió
50
para desmobilizar os agricultores. A ação dos
acampados de Encruzilhada Natalino acabou sendo considerada uma arena da luta
contra a ditadura, tecendo um verdadeiro cordão de solidariedade em torno de si, que
envolvia políticos da oposição, a Igreja e a sociedade em geral, conseguindo furar o
bloqueio que a ditadura, já no seu ocaso, tentava lhe impor. Multiplicavam-se por todo o
país exemplos, como o de Chico Buarque, que havia se apresentado em Porto Alegre,
no célebre show coletivo “Canta Brasil”, e doou seu cachê para os colonos que estavam
começando a ser nomeados “sem-terra”.
O acampamento de Encruzilhada Natalino tornou-se um símbolo da luta pela
terra. Enquanto existiu, recebeu diversos apoios e visitas, muitas delas organizadas por
padres e pastores de algum modo envolvidos nos conflitos fundiários existentes nos
estados do Sul do país. Além, portanto, da solidariedade que vinham prestar, muitos
desses jovens agricultores, que visitavam o acampamento, entravam em contato com
50
Agente do Serviço Nacional de Informações (SNI) e integrante do Conselho de Segurança Nacional
(CSN), depois de Encruzilhada Natalino, Curió recebeu a missão de atuar no garimpo de Serra Pelada, no
Pará. Fundador da cidade de Curionópolis, foi eleito seu prefeito em 2000.
64
uma nova forma de organização da luta pela terra. Chamava atenção, primeiramente, a
quantidade de famílias reunidas no acampamento. Em 1981, eram 600 famílias, o que
possibilitou uma resistência de 30 dias ao cerco militar montado pelo Exército, a Polícia
Federal e pela Polícia Rodoviária Federal. Em Santa Catarina, pouco tempo antes, por
não terem se organizado em um acampamento único, as 300 famílias que, em maio de
1980, ocuparam a fazenda Burro Branco, já se instalando em lotes espalhados pela área,
foram expulsas facilmente pela polícia. Apesar do despejo, estas famílias de Santa
Catarina foram bem sucedidas, conseguindo a desapropriação dessas terras no mesmo
ano. Na mesma época, no oeste do Paraná, as famílias que perderam terras, moradia e
trabalho por conta da construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu comaram a se
mobilizar, também com a ajuda da Comissão Pastoral da Terra, para serem indenizadas
em terras pelas expropriações a que foram submetidas. A articulação das famílias
atingidas pela construção dessa barragem seguia também o percurso de mobilização das
famílias desalojadas pela barragem de Passo Real, no Rio Grande do Sul, no início da
década de 70. Essas milhares de famílias atingidas por Itaipu acabaram formando o
Movimento dos Agricultores Sem Terra do Oeste do Paraná (MASTRO), “embrião
51
do MST neste estado.
Nessa época, também ocorriam várias lutas no interior do estado de São Paulo,
tanto de posseiros, na região de Andradina, como ocupações de terras na região de
Itapeva e do Pontal do Paranapanema. Paralelamente, o Mato Grosso do Sul também
tornou-se palco de uma ocupação de terra realizada por 600 famílias, em 1981. Mais ou
menos bem sucedidas em termos de desapropriação e assentamento, todas essas lutas
isoladas e dispersas pelos estados do Centro-Sul do país foram sendo articuladas através
do trabalho pastoral da CPT em encontros regionais, que acabaram desembocando no
Encontro Nacional de janeiro de 1984, quando foi fundado oficialmente o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. No ano seguinte, em 1985, o recém-fundado
Movimento realizou seu I Congresso Nacional, em Curitiba, com a participação de 1500
trabalhadores rurais de praticamente todos os estados do país. Depois desse Congresso,
a sede nacional do MST, assim como o “Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra”,
até então funcionando no Camp, uma ONG (Organização Não-Governamental) de Porto
Alegre, foram transferidos para São Paulo.
3.2 A frustrada esperança de redemocratização com reforma agrária
Em seu I Congresso, o MST tomou como definição tornar-se um movimento se
massas para conquistar terra e reforma agrária em todos os estados do país, fazer
trabalho de base para organizar os trabalhadores, fortalecer a participação nos sindicatos
e partidos políticos e investir na formação política a fim de criar uma direção política
composta pelos próprios trabalhadores. Instituindo como lema de encerramento “Sem
Terra não democracia”, o Congresso também estruturou a Coordenação Nacional do
Movimento, com dois representantes de cada um dos 12 estados presentes. A tarefa de
todos os coordenadores nacionais, muitos dos quais até então vinculados ao movimento
sindical ou à CPT, era voltar para seus estados e organizar ocupações de terra,
fortalecendo a estruturação estadual do MST.
Durante o ano de 1985, as articulações e a empolgão vivenciada no I
Congresso deram seus primeiros efeitos significativos em Santa Catarina. No dia 25 de
maio, 2 mil famílias ocuparam simultaneamente 18 áreas em sete municípios da região,
51
A trajetória histórica do MST está presente em uma vasta bibliografia. Para este texto, estou me
apoiando sobretudo no resumo feito por Coletti (2005) desta bibliografia e nos arquivos do “Jornal Sem
Terra”, ou “JST”.
65
na mesma noite em que o recém-empossado governo de Sarney anunciou seu Plano
Nacional de Reforma Agrária (PNRA), da Nova República, durante o 4º Congresso da
Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura). No mesmo mês,
em uma tentativa de articulação entre os estados onde estava se organizando, houve
quatro ocupações de terras em São Paulo, mas as famílias foram despejadas logo depois.
A partir daí o “Jornal Sem Terra” noticia pequenas ocupações de terra que começavam a
pipocar timidamente em alguns estados onde, até então, não se registravam essas ações,
assim como dá espaço para as lutas de posseiros e de “brasiguaios” - os agricultores
sem-terra brasileiros que viviam no Paraguai e começavam a voltar esperançosos com o
anúncio da reforma agrária.
No dia 29 de outubro, quando 2.500 famílias sem terra – cerca de 10 mil pessoas
- ocupam a fazenda Anoni, no Rio Grande do Sul, começa a se estabelecer de forma
mais marcante a identidade pública que o recém-fundado movimento social vai passar a
construir a partir de então, baseada em ocupações e acampamentos massivos, e invocada
em sua manchete: “Lavradores sem terra ocupam latifúndios: assim se faz reforma
agrária”. Até ali, com certo ceticismo, o MST apoiara o PNRA, mantendo um canal
aberto de diálogo com o governo. Havia se reunido, logo após seu I Congresso, com o
ministro Nelson Ribeiro, do Mirad (Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário)
e com o então presidente do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária), José Gomes da Silva, chegando a indicar representantes para participar da
elaboração do PNRA.
A análise feita em uma cartilha, publicada em junho de 1985, citada por Coletti,
já indicava que parecia claro para o MST que, embora o governo Sarney tivesse
encampado a bandeira da reforma agrária, que galvanizava então apoio de diversos
setores que vinham liderando a pressão pela transição democrática, a correlação de
forças presente no governo (PMDB com setores dissidentes do PDS) não tinha interesse
político em sua efetiva realização (Coletti, 2005: 24). Além disso, foi ficando cada vez
mais claro que o novo regime civil e, sobretudo, os deputados eleitos mais tarde para a
Constituinte refletiam o fortalecimento das oligarquias rurais promovido pelos militares,
agora com um verniz de modernidade. O próprio chefe da Nação, José Sarney, tinha
sido membro do partido que dera base de sustentação ao regime militar e, mantendo a
tradição da oligarquia rural brasileira, estava envolvido em um conflito com posseiros,
no Vale do Pindaré, cujas terras chegaram às suas mãos de modo discutível, sendo
inclusive objeto de investigação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, no Senado
Federal. Assim, embora o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário tenha
encaminhado processos de desapropriação de áreas, atendendo à crescente pressão dos
trabalhadores rurais, o Gabinete Civil do governo Sarney, coordenado por Marco
Maciel (PFL-PE) tinha estabelecido a diretriz, evidentemente que reservada, de evitar
que os decretos fossem assinados ou mesmo postos em prática.
Na verdade, a sabotagem dos altos escalões do governo vinha se anunciando
muito antes do bloqueio das desapropriações. Indicado por Tancredo Neves, o
presidente do Incra, JoGomes da Silva, que tinha fundado a ABRA (Associação
Brasileira de Reforma Agrária) no fim da década de 60, acabou deixando o governo
ainda em 1985. Em maio daquele ano, poucos meses após a posse do novo governo, ele
havia apresentado sua Proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) que
beneficiava posseiros, parceiros, arrendatários, assalariados rurais e minifundiários,
aplicando simplesmente o Estatuto da Terra, cujos mecanismos permitiriam o
assentamento de 1,4 milhão de famílias ao longo daquele mandato. Este plano
desencadeou uma imediata reação dos grandes proprietários rurais e, não por acaso,
forneceu o pretexto para a fundação da UDR (União Democrática Ruralista), que
66
começou a existir exatamente a partir do final de junho de 1985, quando essas forças
políticas e sociais organizaram um “Congresso sobre a reforma agrária”, que visava
exatamente “discutir (e repudiar)” o Plano apresentado pelo governo (Coletti, 2005,
p.24). Integrantes de uma classe madura e habituada ao poder, o patronato rural
costurou suas diferenças e se uniu para enfrentar uma ameaça comum a todos (Sampaio
apud Coletti, 2005: 101). Segundo Plínio de Arruda Sampaio, que acompanhou de perto
esse processo, primeiramente eles tentaram criar um clima de pânico, assustando todos
os proprietários rurais, sem muito sucesso. Logo, no entanto, encontraram o tom,
partindo para uma tática mais eficiente: usando suas influências pessoais, os grandes
fazendeiros infiltraram-se na própria assessoria do Presidente da República e
começaram a propor modificações no Plano
52
.
Desta forma, durante sua tramitação, o PNRA foi transfigurado de tal maneira,
que o decreto assinado por Sarney, em 10 de outubro de 1985, já não tinha mais nada a
ver com o que havia sido elaborado pela equipe do Incra, tornando insustentável
politicamente a permanência de Gomes da Silva e de seus colaboradores. Foi nesse
contexto, em que pesava também o aumento da vioncia no campo, com a cifra de 154
assassinatos de trabalhadores rurais somente neste ano, que o MST anunciou o que
talvez seja o discurso mais repetido ao longo de toda a sua história:
O governo federal e os governo estaduais só querem nos enrolar,
empurrar o problema para a frente. Por isso, somente nossa
organização fará com que se consiga as mudanças. E a nossa tática,
agora, é ocupar, de forma maciça, em todos os cantos do país, para
mostrar que, se o governo não faz Reforma Agrária, nós mesmos
faremos (Jornal Sem Terra, outubro/novembro de 1985, p.2).
Na última edição do Jornal Sem Terra deste ano, o MST faz seu balanço:
Praticamente em todos os estados onde os sem terra estão organizados
e encontram apoio no movimento sindical, já aconteceram pelo menos
uma vez, ocupações de terra e acampamentos. Atualmente são ao todo
42 acampamentos, com 11.655 famílias – com cerca de 60 mil pessoas
espalhadas em 11 estados de Norte a Sul do país (Jornal Sem Terra,
dezembro de 1985, p.4.).
De acordo com a contabilidade do MST, o estado que terminou o ano com o
maior número de acampamentos e de acampados foi o Paraná, com 3.328 famílias
espalhadas em 13 áreas, mas o pprio jornal ressalva que “o maior acampamento de
sem-terras organizado nos últimos anos” era no Rio Grande do Sul, na fazenda Anoni.
Diante ainda do caráter marcadamente sulista do movimento social recém-nascido, o
editorial do mês de dezembro de 1985 também enfatiza o início do processo de
nacionalização do MST:
Realizamos nosso Congresso dos Sem Terra, em janeiro, com a
participação de 1.500 delegados de todos os estados. Houve
confraternização e, sobretudo, troca de experiências importantes. A
partir do Congresso, o Movimento se espalhou. Podemos dizer hoje
que o Movimento não é mais somente dos sulistas, mas dos sem-terra
de todo o Brasil. Podemos dizer também que, a partir do Congresso, a
participação das mulheres ajudou no fortalecimento do Movimento.
52
Jornal Sem Terra, setembro/outubro de 1985, suplemento especial.
67
Sergipe, um dos estados abordados por este trabalho, tem sua estréia nas páginas
da edição de outubro/novembro de 1985 do Jornal Sem Terra, com a notícia do violento
ataque policial que desmanchou um acampamento instalado fora de uma área ocupada
no dia 23 de setembro, em um município do sertão do estado, Poço Redondo.
Despejados dois dias depois da ocupação, os sem-terra deste acampamento sofreram
espancamentos, torturas e 15 deles foram indiciados pela polícia. O JST também noticia
uma ocupação realizada por 13 famílias, no dia 26 de setembro, em uma área da Igreja,
no município de Nossa Senhora da Glória.
Tratando as ocupações como respostas às promessas não cumpridas do governo
da Nova República, as ações e mobilizações do MST, entretanto, foram ineficazes
diante do poder político de seus principais adversários. Além de haver um grande peso
dos interesses agrários no interior da máquina do Estado (Leite e Palmeira, 1998), as
oligarquias rurais, revitalizadas politicamente durante a ditadura militar, conseguiram
manter proemincia no processo de redemocratização e preparar a grande derrota
institucional da reforma agrária no Brasil: a Constituinte de 1988, inclusive através de
manobras regimentais de todos os tipos, criadas para “conspurcar” o processo, como
classificou o ex-presidente do Incra, José Gomes da Silva.
Conhecida como “Constituinte Cidadã”, a nova Carta Magna trouxe uma
definição de reforma agrária, mas, por outro lado, obteve a proeza de anular até alguns
dos avanços existentes no Estatuto da Terra, elaborado pela ditadura militar,
contrariando a campanha nacional que recolheu um milhão de assinaturas em apoio a
uma emenda popular favorável à reforma agrária. Ao utilizar os conceitos “propriedade
produtiva e “propriedade improdutiva”, em vez de latifúndios de extensão e de
exploração, a legislação introduziu uma ampla ambigüidade na definição das
propriedades passíveis de serem desapropriadas. Além disso, embora, em seu artigo
184, disponha que compete à União desapropriar os imóveis rurais que não cumprem
sua “função social”, no artigo seguinte, determina que o imóvel produtivo é insuscetível
de desapropriação, redação que facilita uma conclusão desastrosa, rapidamente
aproveitada pelos proprietários rurais e pelos juízes do interior do país para emperrar o
processo: se a propriedade for produtiva não sofrerá qualquer restrição pelo fato de não
cumprir sua “função social”, conceito que quer dizer mais do que isso, segundo a
própria Carta Magna: aproveitamento racional do solo, utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis, preservação do meio ambiente e observância das leis trabalhistas
(Marés, 2003). Além disso, a falta de uma lei que regulamentasse o que ficou definido
na Constituição impediu que se realizasse qualquer desapropriação para fins de reforma
agrária durante alguns anos.
Nesse meio tempo, apesar das derrotas institucionais, o MST continuou seu
processo de articulação e crescimento pelo país. Como observa Coletti, os poucos
assentamentos criados pelo governo Sarney - 6% das metas do PNRA - deveram-se em
grande parte à capacidade de luta e resistência do MST, que saiu da “Nova República”
presente em 18 estados brasileiros, demonstrando enorme capacidade de organização
interna e de ofensiva política”. Orientado para ações diretas de enfrentamento e
resisncia, como acampamentos e ocupações, mas sem descartar a luta institucional, o
MST, que se classificava ainda como uma “articulação” dentro do movimento sindical,
logrou arregimentar grandes contingentes para suas bases, tomando terreno da Contag,
que apoiou inicialmente o governo Sarney e o I Plano Nacional de Reforma Agrária.
68
3.3 Expansão, consolidação e aprendizagem do MST
O “Jornal dos Trabalhadores Sem Terra”, órgão que acompanha o percurso dos
sem-terra desde Encruzilhada Natalino, então como o boletim Sem Terra”, mudou-se
também para São Paulo, após a realização do I Congresso Nacional do MST, em 1985.
Já em seu novo formato tablóide e em papel jornal, desde julho do ano anterior,
portanto, poucos meses depois da fundação oficial do Movimento, ele é talvez o melhor
espaço para se visualizar o início da estruturação interna do MST, um movimento social
que estava em pleno processo de unificação interna, ao mesmo tempo em que ia
expandindo suas lutas pelo país. A edição do JST de janeiro de 1986 traz como matéria
de capa a primeira “caminhada” do MST. Realizada pelos sem-terra dos 13
acampamentos existentes no estado de o Paulo, esta mobilização - que uma década
depois passaria a ser chamada de “marcha” - saiu de Campinas e percorreu 100
quilômetros durante quatro dias até chegar em São Paulo. Em abril, uma pequena
notícia, ao lado do editorial, anunciava que 30 lavradores de 14 estados participaram do
I Curso de Capacitação da Coordenação Nacional do MST, em meados do mês de
março. Assessorado pelo Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientae, o
curso tinha por tema “A História do Brasil”. A nota anunciava que iriam se realizar
mais três cursos ao longo do ano e que o próximo teria como tema “As Classes Sociais e
o Estado”.
Em meio a um constante crescimento do número de assassinatos de sindicalistas,
padres e trabalhadores rurais, com destaque para a morte anunciada de Padre Josimo,
assassinado em maio de 86, o MST anuncia no editorial de agosto todo um projeto de
organização do movimento e de formação de militantes. Direcionando seu discurso
tanto para o “Movimento Sem Terra”, como para o “Movimento Sindical” para “romper
as barreiras dos interesses municipais” e impulsionar as organizações de base e as
articulações em nível estadual e nacional, o editorial também enfatiza a importância de
“fortalecer a autonomia do Movimento na mão dos trabalhadores” e de intensificar
cursos para “formar e preparar melhor” suas lideranças. É importante frisar que, em
termos de sindicatos de trabalhadores rurais, este discurso estava voltado mais
especificamente para as chamadas “oposições sindicais”, que disputavam as direções
sindicais com o movimento sindical “contaguiano”. As lideranças dessas “oposições”
no sul do país tinham origens sociais bem próximas dos militantes “sem-terra”, bem
como passaram pela mesma formação, na Pastoral Rural e na Pastoral da Juventude.
O editorial também anuncia a necessidade de que cada estado “complete as
vagas dos cursos em andamento”, anunciando a criação de um curso “especialpara
“jovens-professores” que seria “a vel nacional” e ser realizado a partir de outubro de
1986. Na mesma página do editorial, um box intitulado “Vida do Movimento” informa
a visita de “dois gaúchos” à Paraíba. Acampados na fazenda Anoni, o casal Idêneo e
Teresinha Vivian passaram todo o mês de julho visitando vários municípios da Paraíba
para “levar e trazer experiências da luta pela terra”.
A edição de dezembro do “Jornal Sem Terra” anuncia que, entre os dias 24 e 28
de novembro, havia se realizado uma etapa do Curso de Jovens Monitores do
Movimento Sem Terra. Durante esse curso foi divulgada a necessidade de militantes
para “ajudar a organizar” o Movimento no Nordeste. Poucos meses depois, alguns dos
alunos desse curso foram para esta região, onde vivem até hoje.
Uma das participantes, Joana
53
, tinha 18 anos e acabara de deixar convento, onde
já era postulante, para contribuir com o MST
54
. Durante todo o ano de 1986 ela
53
Para preservar suas identidades, todos os nomes de dirigentes e militantes do MST que deram entrevista
para esse trabalho são fictícios..
69
participou do I Curso Nacional de Jovens Monitores, que foi feito em três etapas de 15
dias, na cidade de São Paulo:
Na segunda etapa do curso de jovens monitores, houve uma consulta
se tinham companheiros e companheiras dispostos a vir contribuir
para organizar o MST no Nordeste. Eu não contei tempo, nem pensei.
Minha mão levantou automaticamente para mim vir embora.
Joana aportou em julho do ano seguinte inicialmente em Sergipe, mas seu
destino era Alagoas, onde se constituiu a Secretaria Regional do MST. Na prática, nessa
época, ela e os demais militantes recém-chegados não restringiam a sua atuação a um só
estado:
Nós fazíamos os planejamentos das ões das ocupações e a gente se
dividia. Era um grupo até grande. Era uma espécie de coordenação
Nordeste. E a gente ia para os estados para ir para a base mesmo, para
organizar os sem-terra para fazer as ocupações. Era essa a nossa
atividade: organizar o MST
3.4 Primeira estação: Bahia
No início de 87, a coluna “Vida do Movimento”, na gina 2 da edição de
janeiro de 1987, sob o título “Conquistando o Nordeste”, anuncia que, “apesar de todas
as dificuldades, o Movimento Sem Terra está se arraigando no Nordeste”, mais
precisamente nos estados do Piauí e do Alagoas, através de um trabalho feito “em
conjunto com a CUT”.
Na verdade, o estado da Bahia foi o primeiro a receber um militante sulista do
MST. Paulo chegou a este estado em 25 outubro de 1985, meses depois da realização
do I Congresso do MST, ocorrido no fim de janeiro deste ano. Embora, no Congresso, o
recém-fundado movimento tivesse conseguido garantir a participação de 1500
agricultores que representavam rios estados do país, logo deve ter ficado claro para a
coordenação que dirigia o Movimento que as lutas não iriam se desenvolver no
Nordeste da mesma maneira como vinham se processando no Sul, pois as “ocupações”
não aconteciam. Segundo alguns depoimentos, enviar militantes sulistas foi a solução
encontrada diante da constatação de que os representantes que vieram dos estados do
Nordeste para I Congresso do MST “tinham nculo sindical ou eram de ONGs”.
Segundo Joana, quando esses representantes retornaram para seus estados, “não vieram
para a base organizar os sem-terra”. Na prática “quem veio para organizar os sem-terra,
para ir fazer reunião de base mesmo, foi nós”. Artur, outro militante que chegou na
região na mesma leva, conta que, na Bahia, marcava-se ocupação, mas ela não saía. “Já
fazia tempo que era pra fazer e eles não conseguiam”.
Segundo Paulo, sua ida para Teixeira de Freitas, no extremo sul da Bahia, foi
fruto do fato de que a “referência” que o MST tinha lá, ou seja, o representante deste
estado presente na Coordenação Nacional do MST eleita seis meses antes no Congresso,
“requisitou ajuda”. Ele conta que foi criada uma nova diocese, mas o bispo, que a
assumiu em maio, expulsou a CPT do município, instituição à qual a “referência” do
MST era ligada. Com a expulsão da Comissão Pastoral, “essas pessoas que estavam lá e
que eram combativas, acabaram ficando sem função ou foram embora”, recorda
55
.
54
A origem social e trajetória deste militante serão tratadas no capítulo V.
55
uma relação tensa e complexa entre a CPT e a hierarquia da Igreja em vários locais, uma vez que os
bispos têm a prerrogativa de deixar a CPT funcionar ou não (Novaes, 1997).
70
Com a intenção de ficar apenas dois meses e voltar para o Sul para concluir o
último semestre de seu curso de Teologia, Paulo ficou até o final do ano e voltou para o
Sul para participar do Encontro Nacional, ocorrido em janeiro de 1986. Na ocasião,
entretanto, acabou assumindo a tarefa, definida pela Direção do MST, de “acompanhar
o Nordeste”, o que compreendia os nove estados da região, mais Minas Gerais, Pará e
Rondônia
56
. De fevereiro de 1986 a fevereiro de 1987, Paulo ficou morando em São
Paulo, mas passava a maior parte do tempo “na estrada”, ou seja, percorrendo, sem
moradia fixa, os vários estados do Nordeste que tinha por “tarefa” acompanhar. A partir
de 1987, decidiu fixar moradia no Sul da Bahia:
Percebi que não tinha sentido eu ficar em São Paulo pra viajar lá pelo
Nordeste. voltava pra para me conjunturar um pouco, né? Então
foi quando eu decidi mudar para o Nordeste. Ficar mesmo e
estruturar então o Movimento mais propriamente no Nordeste a partir
de lá.
Casou-se com uma baiana, tem dois filhos e vive até hoje, agora em um
assentamento. Explicando seu deslocamento inicial para a Bahia, diz:
O único elemento que definiu foi justamente essa solicitação porque o
Movimento era do Sul. E havia inclusive uma análise de que o
Movimento não poderia sair do Sul. Ele tinha que ficar no Sul. E no
Nordeste que continuasse outras lutas. E nós, meio ingenuamente,
achávamos que não. Tem que nacionalizar, tem que ter um movimento
grande mesmo. A própria CPT exigiu um pouco essa idéia, de que
tinha que ter unidade. Como houve esse problema lá, então eu fui.
Por estar mais vinculado ao setor de formação, além de procurar criar espo
para o surgimento do MST nos estados nordestinos, Paulo também estava incumbido de
criar as chamadas “escolas sindicais” que eram “uma tentativa de formar militantes”
tanto para o sindicalismo como para o MST. Em abril de 1986, para contribuir com
Paulo na formação, outro catarinense desembarcou na Bahia, Adelmo, que depois viveu
em vários estados, sempre envolvido neste setor MST. A preocupação com esta área,
por sinal, foi uma constante em toda a trajetória histórica do Movimento e se manifesta
com grande nitidez na proliferação de cursos com diversos objetivos que se multiplicam
em seu calendário em todos os estados onde está organizado
57
.
Segundo Paulo, a chegada do MST nesses estados não pode ser associada
somente às ocupões, pois neles “o grande elemento de construção” do Movimento foi
o processo de convencimento das lideranças que existiam nesses locais, oriundas da
Igreja e do sindicalismo:
Você não constrói uma força política se você o é bem aceito. Então
qual é que foi meu trabalho? Eu levei um ano, até mais em alguns
estados, até dois anos. No caso da Paraíba, nós levamos cinco anos
para poder chegar... porque é voir cativando, convencendo aquelas
lideranças que já existem, que são da Igreja, do sindicalismo, que você
não vai disputar espaço com eles, que você vai contribuir, você vai
ampliar a força.
56
Embora tenha me deparado com referências aos processos de decisão interna do MST, este não é tema
deste trabalho.
57
Mesmo nos encontros estaduais ou de coordenação nacional que tive oportunidade de acompanhar
havia sempre um período da reunião dedicado ao “estudo”.
71
Nesse processo de “ganhar essas pessoas” para promover a estruturação do
Movimento, Paulo tinha como grande chancela o fato de ser seminarista de D. José
Gomes, bispo de Chapecó, famoso por sua atuação na ala progressista da Igreja Católica
e membro ativo da CPT. Ele recorda que, como “tinha um pouco desse sinal”, muitas
portas na região iam se abrindo. Hospedava-se na casa das lideranças locais, criava
laços de amizade, contribuía na estruturação das entidades de seus anfitriões, nos
encontros locais das CEBs e da CPT, visitava bispos, padres, sindicatos, apresentando o
MST e o que este recém-fundado movimento social vinha desenvolvendo no Sul do
país. Na medida em que davam o “sinal verde”, dizendo que queriam começar, Paulo
aproveitava para convidar alguém do Sul para vir “ajudar” a fazer as lutas. Foi dessa
forma que foram chegando ao Nordeste mais militantes, oriundos de Santa Catarina, do
Rio Grande do Sul e do Espírito Santo.
Falando desse mesmo período, Fernandes (2000) considera que o “nascimento
e o início do MST em cada um desses estados se deu através de uma ocupação de terra,
desconsiderando o processo de construção do Movimento, anterior à realização dessas
ações. Discordando desta interpretação, Paulo acha que esse modo de se aproximar, por
meio da amizade”, do “afeto” e de ir costurando alianças foi o grande diferencial do
trabalho que eles desenvolveram. “Não sei se por virtude, se por falta de espaço, falta de
condições para fazer o trabalho. Tinha que se agarrar em todo mundo”. Outro
“princípioque ele cita ter estado presente neste processo era o respeito pelo trabalho
que estava feito: “Você não chega achando que sabe mais do que eles. Chegue com
humildade”.
Mas, apesar de todos esses cuidados, a chegada do MST nesses lugares logo
gerou conflitos tanto com algumas regionais locais de sua “genitora”, a CPT, como com
o sindicalismo rural. Esses conflitos são descritos por Fernandes (2000), que relata a
resisncia ao fato de que eram militantes oriundos de outros estados os promotores
desta nova forma de luta baseada em ocupações de terra e acampamentos. De acordo
com esse autor, em alguns desses estados do Nordeste, a argumentação das entidades
mediadoras locais era de que a cultura local não se adaptaria a esta nova forma de luta.
Paulo conta que a relação com os sindicatos variava de estado para estado. Na
Bahia, eles tiveram “facilidades” pois havia uma “integração natural”. Teixeira de
Freitas era um município recém-emancipado. Em maio foi criada a Diocese e em
outubro houve eleições para eleger o prefeito. Paulo chegou numa quinta-feira de
outubro e, no domingo, era fundado o sindicato dos trabalhadores rurais do município.
participando do processo e com uma verba mensal para manter uma secretaria na
cidade, o MST acabou alugando uma sala onde passou a funcionar junto com o
sindicato. Esse recurso também foi usado para liberar o presidente da entidade para
militar. Ele era bóia-fria e trabalhava para uma empresa de eucalipto da região. Com a
chegada do Movimento, passou a receber um salário mínimo para ser presidente do
sindicato e para poder sair da empresa.
Então, na hora de organizar a primeira ocupação, ele também foi um
mobilizador e fomos então articulando os outros sindicatos. A
primeira ocupação foi uma força conjunta, o MST e o sindicato.
Existem vários presidentes dos sindicatos que foram assentados.
Paulo explica que esse tipo de associão inicial entre o MST e sindicatos
ocorreu em alguns locais de Alagoas e de Sergipe, mas não foi conseguida nem na
Paraíba, nem em Pernambuco. Neste último estado, por exemplo, a Fetape, vinculada à
72
Contag
58
, tinha grande penetração e tradição junto aos trabalhadores e era, como
demonstra Rosa (2004), a interlocutora preferencial do Estado no que se refere às
demandas dos trabalhadores rurais. Este aspecto explica, de certo modo, o retardamento
da implantação e estruturação do MST nesses estados. O mesmo pode ser dito em
relação a setores da Igreja. Em alguns estados houve uma boa articulação inicial, como
em Sergipe, na Bahia, mas em outros, como é o caso da Paraíba, a própria CPT, que
fazia ocupações e acampamentos de sem-terra, acabou bloqueando por muito tempo a
implantação do MST neste estado.
A articulação com as Igrejas Cristãs - Luterana e Católica -, e os sindicatos
reproduziu-se também na formação do MST na região Sul. Muitos dos dirigentes do
MST, e mesmo seu mais longevo deputado federal, Adão Pretto
59
, tiveram sua
passagem pelos sindicatos de trabalhadores rurais (STRs), mais precisamente, os que
recebiam forte influência da ação pastoral progressista. Segundo Esterci (1990), no fim
da década de 70, havia um trabalho conjunto entre sindicatos “combativos”, “Comissões
de Sem Terra” e comunidades de colonos, todos assessorados principalmente elas
pastorais da Igreja católica. Estas articulações regionais se unificaram em 1984, com a
fundação do MST, e este que passou a reivindicar autonomia em relação aos sindicatos
de trabalhadores rurais. No entanto, no início de sua formação, o MST contava
frequentemente com o apoio dos sindicatos, que suas estruturas eram necessárias,
principalmente nas áreas onde ele procurava se expandir. Por conta da necessidade de
manter essa estrutura de apoio, o MST, em especial na região Sul, acabava se
envolvendo também na substituição das direções dos sindicatos não comprometidos
com a luta pela terra. É interessante observar que a necessidade de criar um movimento
autônomo, engajado principalmente com a luta pela terra e pela reforma agrária, refletia
as limitações que a estrutura sindical organizada em âmbito municipal oferecia para
estas lutas, que, para serem efetivas até em termos operativos, ou seja, na busca e
localização de terras a serem ocupadas, não poderia se confinar às fronteiras municipais
e, sim, adquirir uma abrangência regional e nacional
60
.
As duas primeiras ocupações de terra ocorridas em Sergipe, em setembro de
1985 e em 1986, foram promovidas pelas forças que compunham a articulação de luta
pela terra neste estado: os Sindicatos de Trabalhadores Rurais e a Diocese de Propriá,
por meio da CPT e das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Nessa época, o
movimento em Sergipe era coordenado pelo presidente do STR de Nossa Senhora da
Glória, onde funcionava a secretaria do MST. Entretanto, segundo Fernandes (2000,
p.104), para seguir “a concepção de movimento elaborada pelos sem-terra desde o
Primeiro Encontro Nacional”, era preciso “criar um movimento autônomo”. Depreende-
se dos depoimentos recolhidos que esse processo de “autonomização” do Movimento
foi fruto, por um lado, do modo como esses militantes sulistas foram desenvolvendo
suas lutas, em especial a ocupação de terras, mobilização que passou a caracterizar e
distinguir o movimento nascente, não sem conflitos com as organizações e movimentos
sociais presentes nesses locais. Nesse sentido, ela foi produto de um processo de
experimentação que teve como “laboratório” inicial a região Sul da Bahia.
58
Como explica, Medeiros (1989), a Fetape era a principal sustentação política da Contag e o local de
onde saiu seu principal dirigente nos anos 70 e 80.
59
Pretto foi presidente do STR de Miraguaí, na região do Alto Uruguai gaúcho, e vem se reelegendo
como deputado federal, representando o MST na Câmara dos Deputados, desde o fim dos anos 80.
60
Como veremos mais adiante nesse trabalho, essa necessidade foi também uma das razões do
afastamento do MST dos sindicatos com quem inicialmente ele “costurou” apoio.
73
3.5 O laboratório” baiano
Demonstrando a importância deste evento em sua vida, Artur recorda-se
exatamente da data em que chegou ao sul da Bahia: 17 de maio de 1987. Sua tarefa era
reunir trabalhadores rurais sem terra e organizar uma ocupação, enquanto Paulo e
Adelmo se ocupavam da área da formação política. Quase quatro meses depois, em 5 de
setembro de 1987, foi feita a primeira ocupação do MST na Bahia, em uma área, no
município de Alcobaça, que fazia parte de um projeto de plantação de eucaliptos que
pertencera à Companhia Vale do Rio Doce e fora desapropriada. Artur conta que,
embora tivessem um assentamento em Sergipe e também uma ocupação pequena em
Alagoas, foi com a primeira ocupação realizada na Bahia que eles desenvolveram “o
método de organização do Movimento”, e por isso ela é considerada por eles a primeira
ocupação do MST no Nordeste. “Depois desse trabalho na Bahia, nós passamos a
construir um método de organização de base no Nordeste que serviu de referência pro
Brasil inteiro. A Bahia serviu como laboratório para nós”.
Segundo Artur, até então, no MST, se trabalhava um método “um pouco copiado
da Igreja”: o ver, julgar e agir. Herança da tradição católica do pós-guerra, este método
ganhou novos conteúdos no âmbito da Teologia da Libertação, como aponta Novaes
(1997). Neste caso, o agente pastoral, que pode ser religioso, leigo ou sem religião
deveria “aprender com o povo”. Em suma, “sistematizar as questões e contribuir para
que o próprio povo ordenasse sua experiência histórica e encontrasse formas para buscar
sua libertação” (Novaes, 1997, p.156). Estes agentes desempenhavam uma “tarefa
pedagógica de orientação e informação”, buscando tornarem-se “invisíveis enquanto
mediadores”. Neste sentido, como ressalta esta autora, esses agentes não pretendiam
trazer uma “consciência de fora”, mas proporcionar “meios e situações” para que o povo
expressasse suas experiências em uma nova vivência comunitária (Ibid., p.156).
Na interpretação de Artur, que foi diácono em seu estado de origem, onde atuava
nas CEBs, o método pressupunha um “tempo de maturação”, de debate com a base”
para que no processo ela se “conscientizasse”, percebesse sua situação de exploração.
Depois, a “base” deveria fazer um julgamento em função desse conhecimento e,
somente após esse debate e essa identificação enquanto sem-terra, é que ela iria discutir
“como fazer a forma de agir”. No Nordeste, segundo Artur, o Movimento “não podia se
dar ao luxo de aguardar esse tempo de maturação”.
Tu tinha que construir um novo tempo, um tempo que se ajustasse à
necessidade da luta pela reforma agrária. Então nós construímos um
método que, digamos, encurtasse esse tempo de maturação. E nós
chamamos, então, de método de convencimento. Eno, tu tinha que ir
com uma boa proposta, ajustada à necessidade dos trabalhadores..
Eram feitas de três a quatro reuniões com os trabalhadores. Na primeira, eles
faziam a primeira inscrição, na segunda o cadastramento dos acampados e, a partir da
terceira, começavam a identificar quem estava se preparando: se estavam indo atrás
da lona, do dinheiro para o caminhão, da alimentação e se estavam preparando a família
para ir. Segundo Artur, este último era um dos “critérios” mais importantes, até mesmo
obrigatório. Tinham que ir as mulheres e tinha que ir a família inteira para a
ocupação”. Chegaram a rejeitar candidatos que não queriam levar as mulheres
61
.
61
Entre as razões para o MST insistir na ida das mulheres e do restante da família para os acampamentos
está a necessidade de reunir um grande mero de pessoas nas ocupações de modo a desestimular o
ataque de jagunços, assim como os despejos oficiais” realizados pela polícia. Desse modo, o MST, de
74
Em suma, se o estilo das reuniões e visitas a famílias vinha da vertente aberta
pelas Comunidades Eclesiais de Base, no MST não havia tempo a perder, levava-se uma
proposta concreta, na verdade, um “convite”, que tinha como estímulo os assentamentos
obtidos pelos sem-terra no Sul do país e, mesmo, a recém-conquistada área no Sergipe,
a Fazenda Barra da Onça:
Em função de que tu já leva, a proposta não sai dos trabalhadores. Sai
construída pela direção local, né? Tu convida os trabalhadores pra
participar da ocupação. Na verdade, é um método de convite. Tu tem
que convencer os trabalhadores de que a melhor saída hoje é a luta
pela reforma agrária e a ocupação.
Foi também na Bahia, na segunda ocupação realizada, que esse grupo
desenvolveu o “método da resistência de massa”, pois houve grandes enfrentamentos
com a polícia e os pistoleiros. A idéia era “ganhar tempo”, fazendo com que todo o
acampado virasse um “soldado em potencial para o processo de resisncia”.
Colocavam-se as crianças e as mulheres na frente, para tentar “frear a arrogância” e
“afrouxar a violência” dos policiais. E, atrás, vinham os homens e os jovens com
gasolina, fogos, foice e facão, “na tentativa de que, se esse sentimento não foi suficiente
para propor o processo de negociação, então se cria outra estrutura” ou seja, procurava-
se demonstrar força para obter um despejo negociado, o que, dependendo dos ânimos,
não era sempre possível.
Esse novo método de trabalho de base que se difundiu por todo o país acabou
gerando “enfrentamentos” com a CPT, pois como ele mesmo define “o tempo deles era
outro”. Ele conta que, na Bahia, por exemplo, a CPT chegou a trabalhar a idéia de que
eles estavam “tentando impor uma cultura”. Segundo Artur, a CPT já tinha a decisão de
“fazer um racha com o MST e isolar o Movimento. Abortar o Movimento lá na
Bahia”
62
. Para tanto, realizaram uma assembléia com a presença de um sociólogo que
participou das primeiras articulações do MST no Rio Grande do Sul. “Só que ele foi
muito infeliz, porque bateu demais em nós, nesse negócio de que nós estávamos
impondo a cultura, que estávamos destruindo a cultura local”. Naquela altura, o grupo
de catarinenses tinha constituído uma aliança com os freis e freiras de Teixeira de
Freitas que tinham virado “amigos do peitodesses militantes, depois que participaram
da ocupação. E esse grupo foi para a assembléia “pra arrebentar”: argumentaram que
não havia gaúcho, uns catarina doido” e, mais que isso, com sua luta estavam
projetando lideranças locais.
Na verdade tinha eu, o Paulo e o Adelmo. Mas s já tínhamos um
grupo grande de base, né? Rapidamente, na primeira ocupação, nós já
tínhamos mais de 100 lideranças de base, inclusive o Valmir, que hoje
é deputado estadual
fato, desenvolveu uma luta que, se por um lado, criou mais enfrentamentos públicos, gerou ao mesmo
tempo um mecanismo de controle da violência privada sempre presente nos sertões brasileiros. Também
deve-se considerar que o MST fomenta a participação de todos os membros da família na luta pela terra
por reatualizar em outras regiões um “familismo” bastante presente nas comunidades camponesas da
região Sul do País, onde se iniciaram essas lutas e onde as pequenas propriedades são exploradas pela
mão-de-obra familiar.
62
É importante ter em mente que como a CPT é subordinada ao bispo da arquidiocese em questão, essa
posição à qual Artur se refere não representava necessariamente uma visão nacional da entidade. É bem
possível que essa fosse uma visão regional ou do bispo da área onde o MST vinha atuando.
75
Imediatamente, conta ele, esse discurso de imposição cultural foi desfeito e a
CPT abortou o processo de isolamento do MST, embora tenham ficado resquícios desse
conflito em alguns lugares, como na Paraíba.
Um mês depois da ocupação ocorrida na Bahia, em outubro de 1987, foi
realizada uma ocupação no Sergipe, no município de Gararu, na fazenda Monte Santo,
de 1.003 hectares. Para lá havia sido deslocado outro catarinense, José, que chegou
neste estado no início do 87, logo após o 3º Encontro Nacional do MST realizado de 19
a 23 em janeiro desse mesmo ano, em Piracicaba (SP). No ano anterior, Johavia
participado das três etapas do curso de monitores, realizado em São Paulo:
A formação era para ver se nós montava um grupo que ajudasse a
construir o Movimento nos outros estados. tinha um companheiro
nosso de Santa Catarina que já estava ajudando o Movimento em
Minas. E s discutimos que Santa Catarina tinha muita gente e tal.
Tinha que alguns de Santa Catarina se dispor a vir. E eu me coloquei,
então, à disposição.
Ele recorda que foi convidado a vir para o Encontro Nacional “com a mala
pronta” para seguir viagem. Ao chegar em Sergipe, a “referência do MST” que era,
então, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Nossa Senhora da Glória,
ignorou-o. Articulando-se com um padre e alguns setores de Igreja que já vinham
fazendo a luta pela terra no estado, José recebeu o “reforço”, alguns meses depois, de
Osvaldo, militante do MST acampado na fazenda Anoni, no Rio Grande do Sul.
Segundo Fernandes (2000), um mês antes da ocupação organizada por José e
Osvaldo, em setembro de 1987, ocorreu o “Primeiro Encontro dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra” de Sergipe, reunindo 92 pessoas. Evidenciando o conflito subjacente à
chegada dos militantes sulistas, para Fernandes, é nesse encontro que se inicia de fato a
estruturação de um MST autônomo neste estado
A luta pela terra é feita pelos camponeses, as entidades de apoio são
essenciais, não deveriam coordenar as ações. Essa prerrogativa
precisava ser dos trabalhadores, conforme os princípios do
Movimento (Fernandes, 2000, p.104).
Nesse evento, segundo Fernandes, “os sem-terra decidiram construir uma
política de relação com o movimento sindical rural e urbano, com a Igreja e buscar o
máximo de alianças em apoio à luta pela terra e à luta pela reforma agrária”. Justamente
um mês depois do Encontro foi realizada a ocupação da Fazenda Monte Santo, com 97
famílias, que marcaria, para este autor, o nascimento do MST neste estado: “de 1985 a
outubro de 1987, o Movimento foi sendo concebido”. Nesse processo de estruturação
no Sergipe, segundo este autor, os militantes do MST também foram criticados por
alguns agentes pastorais e sindicalistas. Construir o seu pprio espaço político e -lo
sobre seu controle também gerou divergências entre as forças políticas que formavam a
articulação de luta pela terra do Sergipe” (Fernandes, 2000, p.104 ).
Reproduzindo o discurso do MST, para referir-se a uma divergência que ocorreu
também em outros estados onde o Movimento se estruturava na época, Fernandes
afirma:
O MST o é uma organização de apoio à luta dos sem-terra. Ele é
luta. Por essa razão, não é uma instituição ou entidade de fora do
processo, que existe para ajudar a organizar as famílias na ocupação
dos latifúndios (Ibid., p.105).
76
Segundo este autor, ao contrário do que ocorre com a CPT e os sindicatos de
trabalhadores rurais, que existem por serem organizações mais amplas, “o MST não
existe sem os sem-terra”. Ele, entretanto, frisa que estas instituições “perpassam o MST
e são fundamentais para a sua construção”. Este autor refere-se provavelmente à
importância que a existência de ambas estruturas no meio rural brasileiro tiveram para a
implantação do MST, muitas vezes contribuindo o com recursos materiais mas,
também, humanos, culturais e sócio-políticos.
A decisão de construir uma entidade com autonomia em relação à sua rede de
apoio anterior revelou-se acertada quando um dos principais pilares da luta pela terra do
Sergipe, a Diocese de Propriá, extinguiu a CPT e enfraqueceu o MEB (Movimento de
Educação de Base)
63
, na segunda metade dos anos 80. Em 1989, o MST foi responsável
por uma ação maciça, em outra região do estado, próxima do litoral, quando
aproximadamente mil falias ocuparam a Fazenda Santana do Cruiri. Ao todo, de
1985 a 1989, nesta primeira fase da implantação do MST em Sergipe, ainda no Governo
Sarney e na vigência do I PNRA, essas lutas resultaram na criação de oito
assentamentos.
Embora os depoimentos não afirmem isso, fica patente tanto no registro
histórico construído por Fernandes, como no depoimento de Artur, que são
consideradas como “sendo do MST” as mobilizações realizadas inicialmente com a
presença de militantes sulistas, ou seja, lideradas e concebidas por esses imigrantes
enviados para construir esse novo movimento social nesses lugares. Em suma, esses
militantes carregavam consigo, uma espécie de “sinal legitimador, assim como os
parâmetros de uma forma de luta que já era praticada no Sul do país, mas que ainda não
tinha paralelo no Nordeste, pelo menos não na Bahia nem em Pernambuco.
Segundo o depoimento de um dos fundadores do MST, João Pedro Stédile, a
decisão de enviar militantes sulistas para o Nordeste “nunca foi tomada como uma linha
política geral”. Foi se desenvolvendo “como uma espécie de prática natural, de mútua
solidariedade” e obedecia a uma necessidade de acelerar o processo de articulação nas
regiões de maior contingente de sem-terra, que era o Nordeste”.
José, que fez parte do grupo de militantes sulistas que acompanhou as primeiras
ocupações de terra organizadas pelo MST nos estados do Sergipe, Alagoas,
Pernambuco, Parba e Ceará, conta que, ao mesmo tempo em que havia uma avaliação
da então Executiva Nacional do MST sobre a importância do Nordeste para a luta pela
reforma agrária, os delegados nordestinos que participaram do I Congresso do MST
“era gente ligada à Igreja, que tinha muita resistência à ocupação”. Na época, quando o
grupo de militantes se dirigia aos estados para fazer as articulações para as ocupões,
eles tinham necessidade de “discutir um pouco com quem atuavanas regiões, ou seja,
com mediadores vinculados a sindicatos e às pastorais da Igreja, até porque o MST não
tinha “estruturas”, como telefone, carro, secretaria, etc., fundamentais para eles
organizarem estas ações. Ele conta que, nesses encontros, não conheceu em nenhum
estado alguém que fosse favorável às ocupações:
Era o contrário. Porque a conjuntura não permitia. s tinha acabado
um período de ditadura militar e a ocupação poderia ser uma ação
radical que ia.... Então o pessoal apoiava a luta e tal, mas na hora de
fazer, você não encontrava apoio.
63
A CPT e o MEB são frutos das atividades da chamada “ala progressista” da Igreja Católica. Mas a
existência desses movimentos depende sempre da anuência de um bispo que, por sua vez, se o for
vinculado a essa “corrente da Igreja Católica, tem o poder de não permitir a existência destes
movimentos em sua diocese (Novaes, 1997).
77
3.6 A estruturação política
No período entre 1985 e 1988, paralelo à sua expansão pelo Nordeste, o MST
começou o processo que Caldart (2004) denomina de “ocupação da escola”. Através de
um documento sem data, provavelmente escrito no final de 1986, pela equipe de
educação da Anoni, que seria a “célula matriz do que depois viria a ser o Setor de
Educação do MST” (Caldart, 2004: nota 138, p. 232), a autora descreve como começou
a organização do atendimento escolar dentro desse acampamento, que visava escolarizar
as 760 crianças que ali passaram a viver com seus pais e familiares. Segundo Caldart, a
iniciativa dessas professoras acampadas na Anoni, preocupadas em conquistar
reconhecimento junto aos órgãos públicos, em se articular e se preparar para a “tarefa de
educar as crianças sem-terra de um jeito diferente”, é o embro do que mais tarde
passou a ser conhecida como a “proposta pedagógica do MST”.
A partir de um registro colhido por esta autora, em dezembro de 1988, no I
Encontro Estadual dos Professores de Assentamentos do Rio Grande do Sul, fica
patente que, naquela época, essas professoras tinham “certeza” de que uma escola de
assentamento ligada ao MST não poderia ser “igual às escolas tradicionais”. Essas
educadoras, muitas das quais acampadas, deviam perceber a necessidade de se tocar
em conteúdos voltados para a realidade rural que essas crianças viviam, bem como
introduzir, no dia a dia, explicações da luta que suas famílias empreendiam ao passarem
a viver em um acampamento. Os livros didáticos das escolas ditas “tradicionais”, em
geral, enfocam não a vida rural, mas sim a urbana, fazendo com que, nas salas de
aula, as crianças construam uma percepção do mundo social que desconsidera e
desvaloriza a realidade social de onde elas se originam. Foi nesse encontro, quando o
MST estava discutindo sua reestruturação em setores (produção, relações internacionais,
frente de massa, etc.), que esta equipe passou a ser denominada Setor de Educação do
MST. Segundo Caldart, além do Rio Grande do Sul, existia uma “articulação” deste
novo setor, nos estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul,
Espírito Santo, Bahia e Piauí (Ibid., nota 140, p.233).
O período que compreende os anos 1985 a 1989, quando o MST privilegiou as
mobilizações de massa (ocupações, acampamentos, passeatas e manifestações) e foi
construindo sua identidade política, foi decisivo para a “expansão, consolidação e
aprendizagem do MST (Coletti, 2005, p.142). O modo como o Setor de Educação
começou a se organizar nesta época atesta a vitalidade interna do novo movimento
social que construiu seus principais símbolos durante esse período. Enquanto o “logo
do MST (o casal empunhando um facão desenhado sobre o mapa do Brasil) onipresente
hoje em dia em todos os bonés, camisetas, documentos da organização aparece pela
primeira vez na edição de dezembro de 1985 do Jornal Sem Terra, sua bandeira
vermelha surge e é oficialmente apresentada na capa e contracapa de edição de
fevereiro/março de 1987, que tem como manchete o 3º Encontro Nacional dos
Trabalhadores Sem Terra”. Até então, as mobilizações do MST, sobretudo no Sul do
país, ostentavam a bandeira do Brasil, cartazes e faixas com palavras de ordem em torno
da luta pela reforma agrária e uma cruz, coberta com panos brancos, símbolo utilizado
pela primeira vez em Encruzilhada Natalino. O hino do Movimento foi escolhido
durante um concurso nacional e passou a ser cantado a partir de 1988
64
.
64
“Vem teçamos a nossa liberdade/ Braços fortes que rasgam o chão/ Sob a sombra de nossa valentia,
Desfraldemos a nossa rebeldia/ E plantemos nesta terra como irmãos!/ Vem, lutemos, punho erguido/,
nossa força nos leva a edificar/. Nossa pátria, livre e forte/ Construída pelo poder popular/ Braço erguido
ditemos nossa história/ Sufocando com força os opressores/Hasteemos a bandeira colorida/ Despertemos
esta pátria adormecida/ O amanpertence a nós trabalhadores!/ Nossa força resgatada pela chama/ Da
78
Neste período de expansão organizativa e territorial, o MST amargou uma
política de assentamento muito aquém das expectativas criadas no início do governo
Sarney, bem como derrotas institucionais significativas, que revelaram, na análise de
Coletti, sua “debilidade política”. Para este autor, o movimento foi eficaz na “luta
econômica dos sem-terra”, que efetivamente resultou em desapropriações e
assentamentos para sua base, em si uma arena de suma importância em um país como o
Brasil. No entanto, para Coletti, o MST demonstrou “debilidade política” por o ter
sido “capaz de contar com um “braço político” que articulasse, efetivamente, a luta
econômica pela terra com a luta política pela reforma agrária no Brasil” (Ibid., p.142).
Ou seja, o MST teve poucas condições de influir no poder político de maneira
determinante, espaço onde os grandes proprietários rurais venceram, com folga. Além
de desfigurarem o Plano Nacional de Reforma Agrária e obterem uma viria
determinante na Constituinte de 1988, terminaram por conseguir que fosse extinto o
Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (Mirad), em janeiro de 1989,
colocando uma pá de cal temporária na institucionalização desta demanda.
É importante, no entanto, observar que a necessidade de articular essa reação
contra a demanda por reforma agrária é uma resposta que reflete a pressão e a
capacidade de articulação potica das entidades que encaminhavam essa bandeira,
como o MST, na época com apenas quatro anos de existência oficial. Em que pese esse
contexto de “derrota institucional”, é importante relativizar esta afirmação do autor
porque as lutas sociais não podem ser reduzidas apenas a seus aspectos econômico e
político. A dimensão econômica, assim como a política trazem embutidas nelas mesmas
uma dimensão cultural e simbólica e é nesse aspecto que a luta do MST avançou nesse
período, contaminando outras áreas da vida social de seus integrantes e consolidando
tanto sua identidade sócio-política, como cultural, assim como o habitus militante” que
hoje o caracteriza. Foi neste período que o MST consolidou-se internamente de maneira
muito sólida, estruturando seus setores como os de Produção, Relações Internacionais,
Educação e Direitos Humanos e conquistando espaço político em nível latino-americano
e, mesmo, mundial. Seu curto período de existência enquanto movimento social
nacional foi suficiente, por exemplo, para que, em 1991, junto com a CPT, ele fosse
agraciado com o “Right Livelihood Award”, considerado o Prêmio “Nobel
Alternativo”, oferecido pela fundação sueca “Pelo Direito à Vida”. Além disso, ele foi
uma das forças ativas por trás do movimento 500 Anos de Resistência Indígena, Negra
e Popular”, ocorrida em 1992, para se contrapor às comemorações oficiais da chegada
de Cristóvão Colombo às Américas. É de se observar que o MST prima desde então por
ocupar os chamados “espaços alternativos” em termos políticos, costumando ter atuação
em espaços, mobilizações e reivindicações que reúnem as ONGs e outros movimentos
sociais. Nessas articulações, privilegiadas pelo MST, ele mantém sempre a perspectiva
de uma unificação” das lutas.
.
3.7 A expansão pública
O governo Collor começou sem o menor interesse de regulamentar a nova
legislação constitucional referente à reforma agrária, o que, na prática, bloqueava as
desapropriações. Desde 1988, não havia desapropriação de terra, sob a alegação de que
não havia lei que regulamentasse esse procedimento. Mas, além do bloqueio
esperança de um triunfo que virá/ Forjaremos desta luta com certeza/Pátria livre operária e camponesa/
Nossa estrela enfim triunfará!”
79
institucional, uma cortina de silenciamento caiu sobre esta questão, e os sem-terra
enfrentaram um dos períodos de maior repressão desde a redemocratização do país. Pelo
menos quatro secretarias do MST sofreram “batidas” com apreensão de documentos por
parte da Polícia Federal e foram decretadas prisões preventivas para centenas de
lideranças dos trabalhadores rurais. Para complicar, um violento conflito ocorrido em
Porto Alegre, entre os sem-terras e a polícia militar gaúcha, cuja vítima fatal foi um
policial, ajudou a carregar ainda mais as tintas na imagem de violência associada aos
sem-terra, veiculada pela mídia em geral
65
.
O “pado brasileiro de desenvolvimento”, que norteou a industrialização do
país a partir da década de 30, sob o manto do chamado pacto conservador”, manteve
intocável a estrutura fundiária e os interesses do capital agromercantil, promovendo “um
elevado dinamismo econômico com o mais vergonhoso descaso social” (Quadros, apud
Coletti, 2004, p.144) que acabou por agravar as carências sociais, a miséria e a
marginalidade urbana. A crise deste projeto desenvolvimentista a partir dos choques do
petróleo e da dívida externa, na década de 80, associada à volta dos exilados, à luta pela
democratização e à ação da Igreja progressista favoreceram a agitação política de modo
irregular, mas sempre intensa, abrindo espaço para a expansão de muitos movimentos
sociais, entre eles o MST, que, no entanto, sofreram uma derrota política com a eleição
de 1989.
Com a eleição de Collor, este Estado desenvolvimentista em crise foi sendo
suplantado por políticas neoliberais que tiveram continuidade no governo de Itamar
Franco e foram aprofundadas no Governo de Fernando Henrique Cardoso. No campo,
isto implicou uma drástica redução de gastos do governo não em termos de crédito
rural, reduzido pelos ajustes macroeconômicos impostos pela crise da dívida externa,
como também na entrega das tarefas de comercialização e escoamento da produção para
a iniciativa privada, bem com a extinção da Embrater (Empresa Brasileira de
Assistência Técnica e Extensão Rural).
Uma análise dos gastos blicos em agricultura em relação aos
dispêndios totais da União mostra que essa relação situou-se, no
período de 1980 e 1988, em média, em 6,64%. no período de 1990
a 2001, o gasto público em agricultura foi, em média, de 2,17% do
gasto total do governo federal. Em 2000 e 2001, essa relação foi de
1% e 1,13%, respectivamente (Gasques e Villa Verde, apud Coletti,
p.161).
Tendo em vista que o Ministro da Agricultura desse governo era Antonio
Cabrera, um fazendeiro ligado à UDR, além da intensa repressão que se abateu sobre o
MST, um dos grandes empecilhos para o avanço da luta na época era a falta de
regulamentação de alguns artigos constitucionais. Conjugada com a má vontade do
Poder Judiciário, isso impedia que se realizassem desapropriações de terra. Diante da
discrepância de números apresentados sobre os assentamentos criados, oriundos do
Incra e de três outros estudos, Colletti chega à conclusão de que não é possível apontar
qual seria o número mais preciso. O fato é que o MST, diante dessa conjuntura adversa
65
No dia 8 de agosto de 1990, o centro de Porto Alegre foi tomado por uma batalha campal entre policiais militares
que, sem ordem de despejo por parte do governador do estado, desalojou os sem-terras acampados em frente ao
Palácio Piratini, sede do governo estadual. Fugindo da polícia, alguns desse “colonos” depararam-se com um policial
militar em plena Esquina Democrática, eno palco tradicional de manifestações políticas na cidade. No conflito que
se seguiu, este policial foi morto com uma arma branca, uma mulher e pelo menos dois homens foram baleados. O
evento causou forte comoção pública no Rio Grande do Sul e no país, pois além de ser um conflito forte ocorrido em
uma capital como Porto Alegre, a mídia divulgou que o PM havia sido morto “degolado com uma foice”. Para mais
informações (Lerrer, 2005).
80
e da cortina de silenciamento da mídia que caiu sobre ele, optou por voltar-se para
dentro, concentrando-se em fortalecer economicamente seus assentamentos, através da
construção do Sistema Cooperativista dos Assentados, do qual surgiu, em maio de 1992,
a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab). Esta nova
estrutura visava articular a representação dos assentados ligados ao MST e coordenar a
organização da produção de seus assentamentos, baseando-se, sobretudo, na construção
de grandes cooperativas de trabalho coletivo para gerar estruturas de produção que
rivalizassem com as grandes empresas rurais. Em suma, diante da dificuldade
institucional que cercava a luta pela terra, o Movimento decidiu concentrar-se no
“produzir” presente em uma de suas mais conhecidas palavras de ordem lançadas na
época: “Ocupar, Resistir e Produzir”.
A Concrab surgiu como fruto da compreensão de que era necessário organizar os
assentamentos, preferencialmente em cooperativas, porque a experiência em algumas
áreas desapropriadas indicava que o acesso à propriedade da terra era insuficiente
para viabilizar a produção. O MST, em suma, queria desenvolver um mecanismo para
ter acesso a recursos financeiros, condões favoráveis de produção e comercialização,
bem como a técnicas de produção mais desenvolvidas que estavam ao alcance dos
grandes proprietários, mas o dos pequenos produtores. Mais tarde, diante dos
inúmeros fracassos e falências das cooperativas de produção totalmente coletivizadas,
motivadas em grande parte por questões culturais e sociais e pelos entraves presentes
dentro de sua própria “metodologia” - os “Laboratórios Organizacionais de Campo” - o
MST adotou maior flexibilidade nesta política, passando a incentivar a formação de
cooperativas de consumo e de comercialização (Brenneisen, 2002)
66
.
Na medida em que o governo Collor foi se enfraquecendo, no mar de denúncias
de corrupção que vinham à tona sobre o presidente e seus colaboradores, os projetos de
regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária e ao rito
sumário, apresentado no início de 1991 e engavetado por mais de um ano no Congresso,
começaram discretamente a andar, com apoio da bancada de oposição. Sua aprovação
ocorreu um mês após a posse de Itamar Franco, que assumiu o cargo depois do
impeachment de Collor. Envolvidos na crise institucional, os sempre vigilantes
parlamentares da bancada ruralista abaixaram a guarda, deixando a brecha para que a
Lei Agrária fosse aprovada e a reforma desse um passo adiante (Vigna, 1996),
viabilizando-se o retorno das desapropriações. Com a lei regulamentada, o governo de
Itamar - primeiro presidente a receber a direção do MST em audiência - gerou uma
atmosfera política que permitiu que o Movimento voltasse a investir intensamente em
ocupações, já que haviam sido retomadas as desapropriações de terra. Coletti, com base
em dados do Incra e da CPT, demonstra que houve um aumento de 42% das ocupações
de terra e de 32% das famílias envolvidas em 1994, em relação aos dados de 1992,
portanto, do fim do governo Collor.
O período do governo Fernando Henrique Cardoso marca um salto para o MST.
Segundo Coletti, ele foi o movimento social que mais cresceu na década de 90, quando
passou a se constituir “no principal foco de resistência política ao projeto
neoliberal”(Coletti, 2005, p.203). Durante esse governo, a reforma agrária voltou a
ocupar espaço significativo no cenário político nacional. Sua presença nos jornais, no
Congresso e até em uma novela do horário nobre da TV Globo, espécie de
“consagração” para o tema, foi resultado de uma confluência de fatores. Entre eles,
deve-se considerar que o próprio Presidente da República reconheceu o MST como
66
Nos últimos anos, o Movimento começou a criticar o modelo agrícola baseado no uso intensivo de
insumos e na mecanização, passando a incentivar a agroecologia e as práticas agrícolas mais tradicionais.
81
interlocutor, quando aceitou receber seus líderes em uma audiência, no encerramento do
III Congresso do Movimento, no dia 27 de julho de 1995. Este gesto de Fernando
Henrique ganhou especial relevância porque, na semana anterior, ele havia se recusado
a receber os líderes do “Caminhonaço”, protesto promovido por grandes produtores
rurais contra a crise agrícola provocada pelo Plano Real.
De acordo com Caldart (2004), este encontro em Brasília inaugurou o “terceiro
momento” da hisria do MST, quando o Movimento se inseriu “na luta por um projeto
popular de desenvolvimento para o Brasil”, instituindo também a bandeira de luta
“Reforma agrária: uma luta de todos”. Para a autora, este momento, que ainda estaria
vigente, se caracterizaria pela mobilização dos sem-terra em torno das grandes questões
nacionais, tornando-o mais próximo do que Touraine (1978) classifica de movimento
social, por então entrar na disputa política por orientações mais gerais da sociedade
67
.
Citando Stédile e Fernandes (1999), Coletti aponta também o III Congresso do
MST como tendo marcado a decisão do sem-terra de combater o modelo econômico
neoliberal, abrindo caminho para mobilizações como as promovidas contra a
privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Neste livro, Stédile analisa que a nova
palavra de ordem refletia a idéia de que a reforma agrária dependia de mudanças na
economia e, para que ela pudesse avançar de fato, era necessário que toda a sociedade a
abraçasse como uma luta legítima. Em sua periodização sobre a história do MST,
Fernandes (2000) também se refere ao III Congresso como tendo contribuído para
reforçar e ampliar o debate a respeito da questão agrária para diversos setores da
sociedade (Fernandes, 2000, p.251).
É importante considerar também que grande parte da visibilidade da questão
agrária na época deve ser creditada ao fato de que o sucesso do plano de estabilização
monetária se assentou no uso da agricultura como “âncora verdee na abolição dos
juros subsidiados ainda disponíveis aos grandes proprietários rurais, o que agravou a
situação no campo. Ao estabilizar a moeda, o Plano Real congelou o preço dos
alimentos e barateou produtos importados. Apesar de controverso, dados de que
somente nos dois primeiros anos do governo Fernando Henrique, 450 mil famílias de
pequenos proprietários perderam suas terras para os bancos
68
. Também causou grande
impacto na opinião pública os massacres de trabalhadores rurais sem-terra. Na
madrugada do dia 9 de agosto de 1995, policiais militares, autorizados por um juiz,
efetuaram um despejo violento de famílias sem-terra que ocupavam a fazenda Santa
Elina, em Corumbiara, Estado da Rondônia. Ao todo, foram mortos 11 trabalhadores
rurais, entre eles, uma menina de sete anos que levou um tiro nas costas enquanto fugia
(duas das vítimas morreram em conseqüência da chacina alguns meses depois). O outro
massacre, cujas imagens iniciais registradas por uma equipe de TV se espalharam pelo
mundo, ocorreu no dia 17 de abril de 1996, em Eldorado dos Carajás, no Pará. O
despejo da estrada bloqueada pelos sem-terra, autorizado pelo governo estadual e
efetuado pela Pocia Militar, resultou no assassinato de 19 trabalhadores rurais.
Segundo o laudo de necropsia, 12 foram executados após terem sido dominados.
67
É interessante observar, no entanto, que o MST passou de fato a sofrer mais ataques políticos
quando tomou esta opção, até mesmo de seus outrora aliados.
68
Dado baseado no resultado do Censo Agropecuário 1995/1996, divulgado por Guilherme Dias, na
época Secretário Nacional de Política Agrícola do governo Fernando Henrique. José Eli da Veiga,
pesquisador da USP, afirma que na verdade houve uma mudança no ano de referência da pesquisa que,
antes era o ano civil e passou a ser o agrícola justamente neste Censo. Também, segundo ele, houve uma
mudança nos critérios da pesquisa porque mudaram a definição de estabelecimento rural. E, portanto, o
houve esse desaparecimento de pequenas propriedades rurais apontado por esta pesquisa. Suas
considerões estão publicadas em artigo publicado no jornal “Estado de São Paulo”, 05/06/99.
82
Outro fator que colaborou para o aumento da visibilidade pública concedida às
lutas do MST foi o fato de que as ocupações de terras realizadas na região oeste de São
Paulo, no Pontal do Paranapanema, receberam constante atenção dos jornais, TVs e
revistas de Rio de Janeiro e São Paulo, adquirindo um caráter nacional e desencadeando
tanto medidas governamentais, como judiciárias
69
. Essa visibilidade midiática do MST -
com destaque em jornais televisivos, capas de publicações da dita “grande” imprensa,
assim como em uma “Novela das 8 teve um grande papel na ampliação da força
política do MST nesta época. É importante observar que a busca por espaço nos meios
da comunicação para divulgar suas ações e denúncias já fazia parte da estratégia de ação
dos sem-terra desde seus primórdios, como atesta Gehlen (1985). Segundo Comparato
(2003), que descreve a amplitude do espaço político obtido pelo MST nesta época, o
que incomodava mais o governo Fernando Henrique Cardoso era sua dificuldade em
combater a habilidade do MST para “aparecer na mídia” (Comparato, 2003:140). Por
esta razão, este autor sustenta que o então governo definiu uma estratégia em que, ao
invés de combater diretamente o MST, procurou minar sua imagem e popularidade
junto a opinião pública (Ibid., p. 62), através de reportagens veiculadas na mídia que
deslegitimavam o MST.
Conforme depoimento de dois dirigentes sulistas que atuam no Nordeste, o fato
de as ações dos sem-terra em São Paulo estarem sendo divulgadas em cadeia nacional
estimulava a formação de acampamentos em outras regiões, do mesmo modo, e talvez
até com mais eficácia, do que o Jornal Sem Terra tinha conseguido fazer até então nos
seus mais de 15 anos de sua história. O papel do JST sempre fora tentar imprimir uma
unidade e um caráter nacional para a luta do MST, divulgando suas ações e seus pontos
de vista, para estimular outros sem-terra a entrar nas ocupações. Assim, como o Terra
Livre”, do PCB, nos anos 50 (Medeiros, 1995), ele ajudava a quebrar o isolamento
físico e simbólico da luta destes camponeses. Funcionava, portanto, como um material
de mobilização, cujas informações demonstravam aos sem-terra que eles não estavam
sozinhos, isolados no meio de um acampamento embrenhado no interior de alguma
região do país. Foi mais ou menos esse o papel cumprido involuntariamente pela mídia
brasileira nessa época. Mesmo abordando conflitos, dando versões muitas vezes
negativas para as ações do MST, “aparecer na TV” conferia importância a esses pobres
do campo que empunhavam uma bandeira vermelha, estimulando outros, que se viam
nas mesmas condições, a integrar suas fileiras.
O processo de “descoberta” do MST pela mídia começou justamente no III
Congresso Nacional, em 1995, que ganhou grande repercussão nos principais jornais do
país, até porque haviam tornado-se alvo de grande atenção dos jornalistas de Brasília,
então enfrentando a escassez de pautas típicas do recesso parlamentar
70
. Participar do
69
Desenvolvo esta análise em artigo publicado na revista NERA, dezembro de 2005.
70
uma grande literatura disponível sobre como os jornalistas e a mídia podem se tornar atores
associados-rivais dos movimentos sociais, estabelecendo uma associação ambígua (Neveu, 2005). A
construção midiática dos movimentos e problemas sociais é produto de uma rede de interações que
estruturam o trabalho jornalístico. Portanto, muitas vezes a proeminência de certos temas pautados em um
determinado momento pelos veículos de comunicação mainstream não atendem necessariamente à
ideologia de seus controladores e promovem impactos diretos e indiretos nem sempre previstos tanto por
aqueles que procuram chamar atenção da mídia, como os movimentos sociais, como pelos profissionais
que nela trabalham. Para compreender isso, acho particularmente interessante o conceito de “discurso
blicodesenvolvido por Mellucci (2001), campo no qual a palavra dos movimentos sociais pode ser
ouvida. Para esse autor, esse campo não é só produto das mídias, onde costumeiramente se enxerga tantos
casos de “manipulação”. Segundo ele, o discurso público é um “produto resultante de um complexo jogo
de interações, na qual intervêm, certamente, os objetivos e os interesses dos grupos no poder e dos
aparatos políticos, e para o qual contribuem com um papel não subalterno seja as competências
83
Congresso e vivenciar suas “grandiosidadade”, segundo um dos depoimentos colhidos,
também serviu de estímulo para que, pouco depois do evento, um grupo de famílias que
estava se organizando no Vale do São Francisco, em Pernambuco, realizasse uma das
maiores ocupações ocorridas naquele estado, reunindo mais de duas mil famílias e
tornando-se um marco na hisria da organização do MST no Nordeste.
Foi neste cenário político e midiático favorável que o MST promoveu a “Marcha
Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça”, iniciada em 17 de fevereiro de
1997. Composta por três colunas que saíram de três pontos do país - o Paulo (SP),
Governador Valadares (MG) e Rondonópolis (MT) a marcha demorou dois meses de
caminhada para alcançar a capital federal, onde os sem-terra foram recebidos, no dia 17
de abril, por aproximadamente 100 mil manifestantes, convertendo-se na primeira
grande manifestação popular realizada contra o governo Fernando Henrique Cardoso.
Além de reivindicar urgência na reforma agrária, a Marcha Nacional do MST
exigia a punição para os responsáveis pelos repetidos massacres de trabalhadores rurais,
com destaque para o de Eldorado dos Carajás, que fazia um ano naquela data e cujas
imagens também se imortalizavam ao percorrer o mundo no mesmo período, através de
uma exposição, lançamento de um livro e de um CD organizados pelo notável fotógrafo
Sebastião Salgado, com a colaboração do Nobel da Literatura, José Saramago, e do
astro da música popular brasileira, Chico Buarque de Holanda.
3.8 Reação do governo e isolamento do MST
Como resultado desta conjuntura política favorável, Coletti (2005) demonstra
que as ocupações de terra deram um salto expressivo de 1995 para 1996: de 146
ocupações, envolvendo 30.476 famílias, passaram para 398 (aumento de 172%),
envolvendo 63.080 famílias (44% delas ligadas ao MST). No ano de 1997, as ocupações
também registraram um aumento em relão a 1996, chegando a 463, com 58.266
famílias (38% das quais ligadas ao MST)
71
. Mas o maior número de ocupações de terra
ocorre em 1998, chegando a 599 e envolvendo um total de 76.482 famílias, 22% das
quais ligadas ao MST, segundo os dados da CPT
Quadro 1. Ocupações entre 1985 e 1999
Ano Número
total de
ocupações
Número
total de
famílias
envolvidas
Número
total de
ocupações
ligadas ao
MST*
Porcentagem
das
ocupações
do MST
sobre o total
Número de
ocupações de
terra segundo o
governo**
1995 146 30.476 145
1996 398 63.080 176 44% 397
1997
463
58.266
173
37%
455
1998 599 76.482 132 22% 446
1999 589 78.258 502
Fonte: Colleti, 2005, p.206
* Dataluta: Banco de Dados da luta pela Terra, 1999 (Fernandes, 2000)
** Ministério do Desenvolvimento Agrário. Relatório da Ouvidoria Agrária, 02/2005, p.13 (apud Coletti,
2005
profissionais e as dinâmicas organizativas” dos profissionais da área, assim como “as escolhas dos
consumidores de comunicação” (Mellucci, 2001, 144).
71
Coletti (2005) trabalha baseando-se e em dados divulgados no relatório Conflitos no Campo Brasil e
pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário.
84
*** Coletti informa que o dados disponíveis para os dados em branco dessa tabela. Evidentemente
que a falta de dados sobre ocupações atribuídas ao MST nos anos 1995 e 1999 não quer dizer que elas
o ocorreram.o foram devidamente registradas em um banco de dados de abrangência nacional
em 1996, o MST perde o monopólio das ocupações de terra, que passaram a
ser incentivadas e organizadas também por outras forças atuantes no campo, como a
Contag (agora filiada à Central Única dos Trabalhadores - CUT) e Federações de
Trabalhadores na Agricultura de vários estados do país, ou seja, pelo sindicalismo
oficial. Essa nova modalidade de mobilização também passou a ser promovida por
diversos outros movimentos sociais que surgiram muitas vezes como dissidência do
próprio MST ou por estímulo de outras forças políticas, e mesmo, do próprio governo,
como evidencia o trabalho de Rosa (2004). Coletti observa que:
Apesar da inegável importância do MST nessa forma de luta – pois ele
foi o responsável direto pela retomada desse instrumento de ação na
década de 1980 (...) o salto quantitativo das ocupações deveu-se,
também, ao engajamento de outras forças nesse tipo de luta (Ibid.,
p.212)
Como observa este autor, estes movimentos sociais também decidiram se
aproveitar dessa conjuntura política menos repressiva politicamente e que trazia
resultados concretos para sua base. Também não se deve desconsiderar a eficácia destas
ações, já que elas efetivamente pressionavam o governo federal a desapropriar áreas que
seriam transformadas em assentamentos. Em contraste com a expansão política do MST
e das ocupações durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, a partir de
1999 foi se delineando uma estratégia governista para retomar a iniciativa da questão
fundiária e isolar o Movimento. Neste período, o governo implantou o projeto “Novo
Mundo Rural”, baseado na descentralização das ações e no incremento da chamada
“reforma agrária de mercado”, proposta pelo Banco Mundial. Foi também extinto o
Programa de Crédito Especial para Reforma Agrária (Procera), com o enquadramento
dos assentados na linha “A” do Pronaf (Programa de Fortalecimento da Agricultura
Familiar). Além disso, depois de matérias da imprensa denunciando os “desvios” de
verba para o MST, do Projeto Lumiar, esse programa de assistência técnica voltado aos
assentados foi extinto, aumentando ainda mais a asfixia econômica dos assentamentos.
Em seu segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso também adotou o
procedimento de criminalização das lideranças do MST, fez propaganda de uma
reforma agrária destinada às pessoas que se cadastrassem nos Correios e fortaleceu
outros movimentos de luta pela terra mais dóceis. Mas a principal medida de
desesmulo à luta pela terra nos moldes em que ela vinha se desenvolvendo foi a
Medida Provisória 2.109-47 que impediu a vistoria de imóveis ocupados, obrigando o
MST a reduzir sua pressão a acampamentos montados ao lado das áreas visadas. Diante
dessa conjuntura adversa, o Movimento recuou, diminuindo o ritmo de suas ocupações
de terra e priorizando acampamentos na beira das estradas, que são terras públicas.
Além disso, voltou a focar a viabilização dos assentamentos. Concentrou-se na luta por
crédito agrícola e pela renegociação da dívida dos pequenos agricultores e assentados,
além de ter dado início também ao combate aos “transgênicos”, cujo marco de
lançamento ocorreu durante o I Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, quando o
85
MST, em uma articulação com a Via Campesina
72
destruiu uma plantação de milho
geneticamente modificado em uma fazenda da multinacional Monsanto.
No fim do governo FHC, o Ministério do Desenvolvimento Agrário apresentou
seu balanço de assentamentos no período de 1995 a 2002, imediatamente contestado
pelo MST, que criticou estes números durante praticamente todos os oito anos do
governo que então findava:
Quadro 2. Assentamentos realizados entre 1964 e 2002
Região Período
1964-1994
Período 1995 a 10 de setembro de 2002
Incra Banco da
Terra
PCPR Total de
beneficários
Norte 135.138
219.087
492
219.579
Nordeste 41444
191.319
15.191
3.694
210.204
Centro
-
Oeste
26.196
105.549
7.653
113.202
Sudeste 7.914
29.083
9.038
38121
Sul
7842
34.695
19.234
53.929
Brasil 218.534
579.733
51.608
3.694
635.035
* Projeto de Combate à Pobreza Rural
Fonte: MDA, www.mda.gov.br. 2003
Uma outra pesquisa encomendada pelo próprio Incra para a Esalq/USP
(Sparovek, 2003), em setembro de 2002, no fim do governo Fernando Henrique,
ampliou ainda mais a confusão de dados, pois apresentou um resultado diferente do
divulgado pelo MDA. Apesar de toda a controvérsia sobre o número exato de
assentamentos que marcou parte do debate da época, o governo Fernando Henrique foi
o que até então mais havia distribuído terras aos trabalhadores rurais, sendo responsável
pelo assentamento de 328 mil famílias. Este, por sinal, foi o dado obtido pela pesquisa
realizada pela equipe da Esalq/USP, que passou a ser usado pelo próprio João Pedro
Stedile (Lerrer, 2003), dirigente nacional do MST.
É importante também levar em conta que o período do governo Fernando
Henrique registrou uma queda histórica do preço da terra, refletindo a própria crise que
o setor agrícola enfrentava. No período de 1990 a 1999, o preço das terras de lavoura no
Brasil teve uma queda real de 50,3% e o preço das terras de pastagens caiu 60,8%. Após
o Plano Real, a desvalorização foi ainda maior: de 56,8% para as terras de lavoura, e
69% para as de pastagens
73
.
. Depois de percorrer a trajetória do MST, encadeando-a com a conjuntura
política e econômica pela qual atravessava o país, Coletti procura explicar as razões
pelas quais ele cresceu na década de 90, marcada pela hegemonia neoliberal, “que
encontrou dificuldades em penetrar no MST e submetê-lo a seus ditames” (Colleti,
2005, 247)
. Para ele, foram três as principais razões. A primeira está relacionada aos
efeitos causados pelas políticas neoliberais que provocaram a falência de milhares de
pequenas propriedades, aumentaram o desemprego rural e urbano e terminaram por
expandir as bases sociais do MST que hoje congregam, além de trabalhadores rurais ,
72
Movimento internacional que coordena organizações de médios e pequenos agricultores, trabalhadores
agrícolas, mulheres camponesas e comunidades indígenas da Ásia, África, América e Europa.
73
“O preço da terra desaba nos anos 90”, do jornal “Folha de São Paulo”, São Paulo, 2 maio 2000, citado por Coletti,
(2005, p. 165)
86
trabalhadores urbanos desempregado, muitos dos quais expulsos do campo
recentemente ou mesmo na década de 70.
A segunda razão é a ausência de “constrangimentos econômicos” entre os sem-
terra – medo da demissão, do desemprego, da repressão patronal que agem diretamente
para reforçar o poder da classe burguesa, constituindo uma “maioria silenciosa” de
cidadãos obedientes e de eleitores submissos. Com bases formadas pelos camponeses
sem-terra, desempregados urbanos e rurais e por trabalhadores subempregados,
basicamente não existe “constrangimento econômico” nesses grupos sociais que
geralmente não têm mais nada a perder quando decidem ir para um acampamento,
condição que é muito propícia para a luta política e ideológica. Coletti, no entanto, não
leva em conta que a grande maioria dos “sem-terra” que vai acampar, na verdade, não
têm qualquer estímulo ideológico por trás. Eles tomam essa decisão muitas vezes por se
verem sem qualquer alternativa de reprodução social, visto que, pelo menos nos
acampamentos, ocorre distribuição de cestas básicas. Também é importante frisar que a
possibilidade de obter um patrimônio, ou seja, terra, estimula também pessoas a
integrar-se aos acampamentos por verem que com eles há efetiva possibilidade de obter
esse ganho. Esses impulsos iniciais podem desdobrar-se em um envolvimento
ideologicamente sustentado, mas isso geralmente ocorre com uma minoria que, mais
tarde, tende a se tornar militante da organização.
Finalmente, a terceira razão que Coletti levanta para justificar o crescimento do
MST na década de 90 é sua ideologia, ou seja, sua resistência ao discurso neoliberal e à
apologia do mercado. Em suma, os valores difundidos pelo Movimento entre seus
integrantes, que se materializam, muitas vezes, em práticas concretas evidenciadas em
suas mobilizações e acampamentos, como o estímulo a uma disciplina para a
cooperação, a solidariedade e à defesa da justiça social, dos valores humanistas e do
permanente combate à miséria. Suas lutas, feitas nos limites do pprio capitalismo,
embutem uma ideologia mais próxima do ideal cristão de justiça social do que do
socialismo marxista. De fato, no discurso que proferiu na inauguração da Escola
Nacional Florestan Fernandes, em janeiro de 2005, Stédile, meio na brincadeira, disse
que o Movimento se dividia em duas correntes: a socialista-cristão e a cristão-socialista.
Em seu estudo, Coletti conclui que, apesar destes elementos que compõem a
“força do MST”, os sem-terra permanecem “prisioneiros” da “lógica dos
assentamentos”, que vem sendo ditada pelos sucessivos governos neoliberais, cujos
constrangimentos econômicos tornam essa luta econômica “em grande medida, inócua”.
Ele observa que os trabalhadores do campo, em geral, e suas organizações
representativas “não têm sido capazes, por falta de força política, de transformar a
questão agrária num problema político nacional, ou melhor, num impasse político de
dimenes tais, que se não for resolvido, obstrui o processo de desenvolvimento do
país” (Idem, p.276), análise que vai no mesmo rumo da desenvolvida por Martins
(1996) .
Além disso, como constata o autor, a hegemonia neoliberal acaba promovendo
um isolamento crescente do MST, pois submete de forma total ou parcial parte das
forças de esquerda à “ditadura do mercado”, levando-os a moderarem seu discurso e sua
prática política, como atestam o PT (Partido dos Trabalhadores) e a CUT (Central Única
dos Trabalhadores) no Governo Lula, o que joga ainda para mais longe o projeto de
reforma agrária defendido pelo MST.
De fato, embora o presidente Luís Inácio Lula da Silva tenha mantido uma
relação cordial com o MST em seu primeiro mandato, seu governo caracterizou-se pela
manutenção da política de assentamentos à conta-gotas” do governo Fernando
Henrique Cardoso. Além disso, a pasta da Agricultura, ministério-chave para esta
87
questão, foi para um dos quadros mais preparados do patronato rural brasileiro, Roberto
Rodrigues, fundador da ABAG (Associação Brasileira de Agribusiness). Entre outros
cargos significativos, foi presidente da conservadora Sociedade Rural Brasileira, que
congrega os tradicionais grandes produtores rurais de São Paulo, cujo poder político e
controle territorial no Brasil é considerável, como provam dados como os divulgados
por José Gomes da Silva (ver nota 44 no capítulo anterior).
Ao contrário das expectativas do MST, cujas lutas sustentaram a ascensão de
Lula, a gestão do Partido dos Trabalhadores não vai ficar conhecida na história do
Brasil pela realização da reforma agrária e sim pela entronização do chamado
“agronegocio” e dos interesses do patronato rural brasileiro associado ao capital
transnacional, mesmo em questões pelas quais o MST passou recentemente a ter como
alvo, como é o caso da luta contra os trangênicos.
O “recorde histórico” de assentamentos anunciados pelo Governo Lula no início
de 2007 chegou simplesmente à cifra de 381 mil famílias assentadas, um pouco acima
da alcançada pelos sete anos do governo anterior. No entanto, os dados, que também
incluíram regularização fundiária na região amazônica, reservas extrativistas,
assentamentos feitos por governos estaduais ou mesmo de outras gestões foram
igualmente questionados pela imprensa
74
e pelo MST, reeditando o tipo de polêmica
existente no governo anterior e indicando que, se o debate continua nos mesmos termos,
é que a política fundiária do primeiro mandato do governo Lula é uma continuação dos
passos da gestão anterior.
3.9 Etapas do MST no Nordeste
A aterrissagem do MST no Nordeste se deu primeiramente nos estados da Bahia
e Sergipe, como descrita anteriormente. Segundo Artur, nesta primeira etapa, o
Nordeste era visto como um estado só” e, por esta razão o MST optou por instalar uma
“secretaria de articulação” ou “secretaria do Nordeste” em Alagoas, estado considerado
mais central na região. Esta secretaria que funcionou até o início de 1992, dava suporte
logístico para os outros estados e “centralizava” as ações do MST , ao mesmo tempo em
que estimulava a criação de autonomia nos estados. Com equipamentos como fax, telex,
máquinas datilográficas, e equipe que formulava projetos de auto-sustentação para si e
os demais estados da região, o MST foi viabilizando sua implantação nestes locais. Com
presença atuante em vários estados, a segunda etapa foi “mais corporativa”, pois o
Movimento foi estimulando a autonomia administrativa e política” de cada um dos
estados nordestinos.
Na medida que os estados foram constituindo as suas secretarias - essa
era a idéia - deixou de ser necessário uma secretaria do Nordeste. E
transferimos tudo que tinha para a secretaria nacional e ficamos
apenas com uma coordenação do Nordeste, porque não precisava de
ponto de apoio que as secretarias estaduais passavam a ser mais
fortes.
Como este estudo aborda a trajetória de um grupo de militantes que fez parte
deste processo de expansão do MST para o Nordeste, é necessário, até para situar o
leitor neste processo, descrever a chegada deste movimento social nos demais estados
para onde foram os militantes entrevistados para esta pesquisa: Pernambuco, Paraíba e
Maranhão. Neste relato me baseio, sobretudo, no trabalho de Fernandes (2000).
74
Valente, Rubens. Folha de São Paulo, 19/02/2007 p. A-4.
88
Pernambuco
Embora tenha sido uma das principais delegações do Nordeste presentes no I
Congresso do MST, o grupo de trabalhadores rurais sindicalizados e filiados ao PT que
havia estado decidiu desligar-se da entidade nacional recém criada, fundando um
outro movimento fora da organização nacional, que ficou denominado Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra de Pernambuco (MST-PE)
75
. Esse grupo promoveu
uma ocupação de terra em agosto de 1985, no Agreste Pernambucano e conquistou a
área para 90 famílias cerca de um ano depois. Ele era liderado por Bruno Maranhão
76
que depois fundou o MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra).
Foi somente em 1989 que chegaram membros do MST, procedentes dos estados
da Paraíba, Sergipe, Alagoas, Bahia e Espírito Santo e coordenados pela Direção
Nacional, estabelecendo sua secretaria no município de Palmares, na região da Mata
Sul. Nesta cidade, segundo Rosa (2004), os militantes do MST receberam apoio de
pessoas ligadas ao sindicato de trabalhadores rurais e à Igreja Católica. Mas para
realizarem sua primeira ocupação, o apoio decisivo veio do prefeito do município de
Cabo de Santo Agostinho, na região metropolitana de Recife. Assim, no dia 19 de julho
de 1989, 1.500 pessoas que viviam nas periferias das cidades da Zona da Mata
ocuparam um engenho localizado nesse município que havia sido desapropriado pelo
governo do estado para a construção de um grande complexo portuário, área hoje
conhecida como Complexo Suape. A 30 km de Recife, a ocupação recebeu destaque
imediato nos principais jornais do estado, que estamparam em suas capas a bandeira do
MST. Segundo Rosa:
O objetivo da ocupação era, além de marcar a presença do MST na
região, exigir do governo do estado o assentamento daquelas famílias.
Ao enunciar seu desejo de interlocução, o MST viveu seu primeiro
grande revés na região. O governador, que na época era novamente
Miguel Arraes, não aceitou negociar com um grupo de pessoas de fora
e que, portanto, o teria legitimidade para representar a população
rural da região, fossem trabalhadores rurais, lavradores ou sem-terra
(Rosa, 2004, p. 26).
O autor refere-se ao fato de que Arraes considerava como interlocutor
legítimo dos trabalhadores rurais os sindicatos de trabalhadores rurais ou a Fetape
(Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco), relação que
remonta à própria fundação da entidade, em 1962, época de seu primeiro governo.
Ainda segundo Rosa, aquele período ficaria marcado pelo enfraquecimento das Ligas
Camponesas em Pernambuco, enquanto emergiam os sindicatos, recém-fundados com
apoio decisivo do governador, na época mais interessado na institucionalização dos
conflitos entre os trabalhadores e patrões do que na saída mais radical, então proposta
pelas Ligas. Para o autor, essa estratégia de organizar “os interesses dos outrora senhor e
subalterno, na forma de patrão e empregado”, ajudou, dentro de seus limites, a romper
com as velhas relações de subordinação presentes na região (Rosa, 2004, p.13).
75
Para falar da formação do MST em Pernambuco até 1990, vou me utilizar de informações contidas
tanto na obra de Fernandes (2000), como na tese de Rosa (2004) que, em alguns momentos, oferecem
versões diferentes para os mesmo eventos.
76
Filho de usineiros, com extensa militância em partidos clandestinos de extrema esquerda, hoje
vinculados ao Partido dos Trabalhadores.
89
A falta de interlocução e de espaço de negociação com o governo estadual levou
as famílias que ocuparam o Complexo Suape a serem despejadas violentamente uma
semana depois. Segundo Rosa (2004, p.27), “a violenta ação da tropa de choque,
descrita por todos que estiveram presentes, assustou a maioria dos acampados que
deixou a área rumo às suas cidades de origem em ônibus cedidos pelo governo”. Apenas
um pequeno grupo de famílias permaneceu organizado, pois se encontrava acampado
em Recife (Ibid, p.27). De acordo com o relato de Fernandes (2000), entretanto, após o
despejo, as famílias da ocupação montaram um acampamento nas margens da BR-101
e, no dia seguinte, fizeram uma manifestação em frente ao Palácio do Governo, sendo
despejadas novamente pelo pelotão de choque, a mando de Arraes, que não aceitou abrir
negociação com o MST. Já com a mediação da Fetape, as famílias aceitaram uma área
no município de Cabrobó, no sertão do Pernambuco, a mais de 400 km do local do
acampamento, encravada no chamado “polígono da maconha (Rosa, 2004). Segundo
Fernandes (2000), que não cita a intermediação da Fetape, as famílias só aceitaram essa
proposta porque estavam sendo ameaçadas por traficantes de drogas, indo cair em outra
região com o mesmo tipo de problema.
Rosa descreve que a falta de assistência do Estado, os conflitos com plantadores
de maconha e a baixa qualidade das terras ocasionaram, em pouco tempo, o abandono
das áreas (Rosa, 2004, p.27). Fernandes apresenta outra vero. Segundo ele, “na
tentativa de salvar a organização e as lutas realizadas, os coordenadores dos grupos de
famílias do MST procuraram o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cabrobó, o
Partido dos Trabalhadores e as comunidades de base locais” e acabaram ocupando e
conquistando três áreas: Manga Nova, Federação e Angico, no município de Petrolina,
que estavam em processo de desapropriação e eram longe das ameaças dos plantadores
de maconha (Fernandes, 2000, p.110)
77
. No ano seguinte, o MST promoveu três
ocupações no município de Floresta, na região de Itaparica. Enquanto isso, o
governador Miguel Arraes destinou as terras do Complexo Suape para outro grupo de
famílias, por uma concessão de dez anos, para, segundo Fernandes, “impedir a
organização do MST em Pernambuco” e “manter os movimentos sociais sob seu
controle” (Fernandes, 2000, p.110).
Entre os anos de 1990 e 1992, os militantes do MST organizaram alguns
pequenos acampamentos na região. Em janeiro de 1992, Artur, oriundo de Santa
Catarina e então coordenador do movimento em Alagoas, é deslocado para
Pernambuco, tornando-se a principal liderança do MST neste estado. A sua chegada
representou a expansão da presença do MST em áreas importantes do Agreste, que
permitiram a formação de um grupo de militantes da própria região. Nessa época, o
MST decidiu estruturar sua secretaria estadual na cidade de Caruaru, localizada neste
trecho que divide o litoral do sertão pernambucano.
Também foi neste período que o MST voltou a articular sua volta para a Zona da
Mata, o âmago da lavoura canavieira, região controlada pela Fetape e onde havia
ocorrido a frustração com o Complexo Suape. Segundo Rosa (2004), a volta à Zona da
Mata contou com a colaboração do próprio governo do estado, nas mãos de Joaquim
Francisco. Depois de organizarem uma ocupação no município de Pombos (no limite
entre a Zona da Mata e o Agreste), as famílias organizadas pelo MST foram
77
Esta área foi marcada, a partir de meados dos anos 70 por uma importante articulação sindical reunindo
as populações que estavam sendo atingidas pela construção da barragem de Itaparica. Estes sindicatos
locais, com forte influência da Igreja, organizaram a resistência dos trabalhadores, por meio do Pólo
Sindical do Submédio o Francisco. Uma das figuras dessa resistência é Manoel dos Santos que mais
tarde se tornou presidente da Contag e que, nessa época, era uma expressão da CUT na região.
90
enquadradas em um programa de assisncia aos desempregados da região, que previa a
distribuão de pequenas parcelas de terra (em torno de três hectares) para a subsistência
no período de entressafra. Assim, os sem-terra do MST conquistaram uma área do
engenho Serrinha, no município de Ribeirão. Nessa área, um grupo de militantes
coordenados por Artur passou a articular alianças com os sindicatos de trabalhadores
rurais da região, sobretudo com os do município de Rio Formoso e Barreiros.
Como resultado dessa articulação com os STRs, foi realizada a ocupação do
engenho Camaçari, no início da entressafra da cana, no final de abril de 1992. Os sem-
terra também foram violentamente despejados dessa ocupação, mas, ao contrário do que
aconteceu com as famílias do Complexo Suape, por contarem com o apoio dos
sindicatos, “o grupo despejado foi, em grande parte, acolhido em outras áreas, mantendo
a interlocução com o Estado” (Sigaud apud Rosa, 2004, p.35). De acordo com Rosa, a
ocupação da Camaçari se tornou um marco porque “mesmo após o despejo, o MST
continuou presente na região da Zona da Mata e, a partir daí, com alguma legitimidade”
(Rosa, 2004, p. 35). Além de ter resultado em três assentamentos, a ocupação da
Camaçari angariou muitos simpatizantes do MST na região, muitos dos quais tornaram-
se militantes da organização. O autor analisa que:
O reconhecimento inicial do MST na região dependeu, portanto, da
chancela de sindicalistas muito tradicionais, como os de Rio Formoso,
por exemplo, e da sua capacidade de atrair para seus quadros pessoas
da região canavieira. Quando estes dois elementos se combinaram, os
primeiros resultados satisfatórios comaram a aparecer (Rosa, 2004,
p.36).
Em 1995, a Fetape e o MST organizaram, “pela primeira e única vez”, uma
ocupação conjunta de terras em uma usina da cidade de São Lourenço da Mata. Foi
também o episódio que marcou o início da interlocução direta do MST de Pernambuco
com o governo estadual e federal. Isso ocorreu durante uma ocupação da
superintendência do Incra, em Recife, provavelmente em maio daquele ano. Segundo
Rosa, além da desapropriação de algumas áreas, o grupo exigia também a nomeação de
um superintendente definitivo para o órgão, vago havia um ano.
Quando a pocia foi acionada, os trabalhadores rurais ligados aos
sindicatos e os dirigentes da Fetape decidiram deixar o órgão para
evitar um conflito de maiores proporções. os trabalhadores ligados
ao MST teriam ficado no local à espera de uma nova negociação.
Entre a saída da Fetape e a chegada da tropa de choque questão de
poucas horas -, a direção do Incra em Brasília anunciou a nomeação
de um novo superintendente para Recife. Sem a presença da Fetape,
que havia deixado o local, ele passou a negociar a pauta de
reivindicações diretamente com os únicos que permaneceram, ou seja,
com os dirigentes do MST . (Rosa, 2004, p. 37)
Seja por casualidade ou não, o fato é que aquele episódio, pouco antes do III
Congresso, deu início aos contatos diretos entre os dirigentes do MST e representantes
do governo federal, “pondo, pela primeira vez em um caso deste tipo, a Fetape à
margem das negociações” (Rosa, 2004, p.37). Segundo Rosa, depois daquele evento,
jamais sindicalistas e militantes do MST voltaram a dividir uma mesma manifestação
em Pernambuco.
Quando Arraes, em 1995, assumiu novamente o governo de Pernambuco, já
havia se estabelecido a concorrência entre a Fetape e o MST, intensificando o número
91
de ocupações, fato que mantém Pernambuco como o recordista em número de
ocupações no país. Estas ações foram estimuladas também por uma grande crise no
setor sucro-alcooleiro que costumava empregar estes trabalhadores que partiram para os
acampamentos de sem-terra. Diante desta situação, o governo criou a Comissão
Estadual de Reforma Agrária (CERA). Embora não constasse oficialmente na lista dos
participantes da comissão, a assinatura dos representantes do MST nas inúmeras atas de
reuniões demonstrou a sua aceitação formal, também pelo governo estadual, como
interlocutor legítimo. Curiosamente, estava no cargo o mesmo político que, menos de
dez anos antes, havia se recusado a negociar com esta organização. Para Rosa,
Entre a fracassada tentativa de 1989 e as centenas de acampamentos
que, uma cada depois, estampavam as bandeiras do MST, o ponto
de inflexão parece ter sido as alterações no conjunto dos processos
sociais que sustentaram o monopólio da representação sindical na
região, desde a prosperidade da lavoura canavieira às relações estreitas
com Miguel Arraes (Rosa, 2004, p. 41).
Nesse contexto, segundo o autor, são fatores importantes o período de crise pelo
qual passava a produção da cana, possibilitando um afrouxamento da dependência dos
empregados e dos sindicatos em relação aos usineiros, bem como as carreiras políticas
de importantes sindicalistas que contribuíram, a partir de 1992, para uma presença do
MST na região
78
. Rosa também não deixa de mencionar o trabalho de Artur, o
carismático e articulado líder do MST que chegou no estado justamente neste ano.
Paraíba
Segundo Fernandes (2000), o MST teve dificuldades para se organizar neste
estado. Desde o Primeiro Congresso até 1989, apesar da disposição de fundar o
movimento na Paraíba, conseguiu-se apenas manter uma secretaria em Campina
Grande. Segundo este autor, o mais comum na região eram lutas de resistência na terra e
de assalariados rurais. Estas mobilizações, segundo (Novaes, 1997), geralmente tinham
apoio da Igreja. Já a Contag, que atuava na luta dos assalariados, “somente apoiava a
luta pela terra quando algum sindicato organizava as famílias para ocupação”
(Fernandes, 2000, p. 111). Entretanto, em sua compilação sobre conflitos de terra neste
estado, Moreira (1997) relata o caso da ocupação da fazenda Tambaba, ocupada por
trabalhadores rurais já em 1986, apesar da posição contrária da CPT.
Em dezembro de 1988, lideranças do MST que vinham trabalhando em sua
construção no Nordeste realizaram um encontro com sindicatos de trabalhadores rurais,
CPT, PT e CUT, que visava criar condões e apoio para realizar uma ocupação neste
estado. Segundo Fernandes, a reunião explicitou as divergências existentes entre esses
grupos:
De um lado, especialmente as assessorias, um grupo defendia que o
movimento não podia fazer ocupação, mas deveria apoiar os
trabalhadores sem-terra nas suas ações. De outro lado, os sem-terra
defendiam que o MST são os trabalhadores, portanto, partiriam para
as ocupações (Fernandes, 2000, p. 111).
78
Responsável por massivas mobilizações e greves de trabalhadores da cana, em fins da década de 70 e
em 80, a Fetape é profundamente enraizada no contexto político pernambucano, com reflexos importantes
nas diretorias da Contag.
92
Durante este debate também foi levantado “o suposto distanciamento das
lideranças que vieram de outros estados, algumas do Sul, e que não conheciam a
realidade da luta pela terra no Nordeste”. De acordo com o autor, algumas das entidades
presentes chegaram a afirmar que não aceitariam a proposta de ocupação “porque
aquele não era o momento, porque tinha o perigo da violência dos pistoleiros, da
polícia, etc. E que, as ocupações aconteceriam no dia em que os trabalhadores tivessem
consciência para fazê-las” (Ibid.,p.111).
Marcada, no início dos anos 60, pela forte atuação das Ligas Camponesas nos
conflitos do campo, papel que passou a ser assumido pela Igreja a partir da década de
70, a Paraíba foi palco do assassinato de dois líderes emblemáticos de ambos os
períodos: João Pedro Teixeira, da Ligas de Sapé, e Margarida Maria Alves, presidente
do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande. Até a chegada do MST, as
lutas neste estado se caracterizavam pela defesa do direito a terra de moradores e
posseiros ameaçados de expulsão das fazendas onde viviam. Embora o MST viesse a
introduzir uma nova “metodologia”, reunindo um grande grupo de trabalhadores para
ocupar uma terra improdutiva e criar um fato político, o temor da violência dos grandes
proprietários, costumeira nas relações cotidianas e seletiva contra as lideranças e os
trabalhadores que ousavam enfrentá-los na Justiça (Novaes, 1997), dava sustentação ao
argumento das entidades com as quais o MST negociava apoio para suas lutas. Também
deve-se considerar que boa parte dos mediadores, em ação na Paraíba nessa época,
adotavam o método “ver, julgar e agir”, que pressupunha a espera deste “despertar” dos
trabalhadores para esse tipo de luta, ao passo que o MST, com sua urgência política,
adotava o método do “convencimento”, explicitado anteriormente neste capítulo.
Segundo Fernandes, estas divergências com as entidades de apoio só foram
superadas “quando os sem-terra defenderam os princípios da autonomia e da
organização dos trabalhadores” (Fernandes, 2000, p. 111), decidindo que fariam a
ocupação mesmo com apoio parcial. Assim, em abril de 1989, 200 famílias ocuparam a
fazenda Sapucaia, no município de Bananeiras, no Brejo paraibano. Essa ocupação
acabou, como temiam as outras entidades, sofrendo violenta repressão de pistoleiros que
efetuaram o despejo das famílias durante a noite, causando a morte de uma menina de
18 meses, morta quando sua mãe foi atacada. Apesar dessa violência, manobras do dono
da fazenda que entregou à polícia uma metralhadora, dizendo que pertencia aos sem-
terra, geraram uma repercussão desfavorável ao MST e determinaram que as famílias
não fossem atendidas nem pelo governo estadual, nem pelo Incra. Recordando-se dessa
ação em que esteve presente, Joana reconhece que eles eram muito amadores. Parte do
“apoio parcialobtido para essa ação foi dado pela então presidente do Sindicato de
Alagoa Grande, cuja filha participou desta ação e desde então está no MST. Joana
recorda que este sindicato tinha uma ambulância que “salvava a vida” deles. “Para tu ter
uma idéia, o confronto foi tão forte, que o pessoal se dispersou. Ficou sumido três,
quatro dias no meio do mato. A gente hoje não sabe explicar porque tá vivo”.
As famílias despejadas montaram um acampamento provisório em um engenho,
em Alagoa Grande, cujas terras estavam em ligio desde 1980. Segundo Fernandes
(2000), em setembro, estas famílias organizaram uma ocupação no município de
Esperança, em uma fazenda de 2.500 ha. Dez dias as a ocupação, as famílias foram
despejadas pela pocia, mas permaneceram reunidas, reocupando a fazenda novamente.
Apesar de tantos despejos violentos, segundo o autor, as famílias que “persistiram”
acabaram conquistando a terra, dando início à presença do MST naquele estado. Hoje
em dia, o município de Bananeiras, palco do violento conflito que marca a primeira
ocupação do MST na Paraíba, sedia os cursos de ciências agrárias, de técnico agrícola e
técnico em agroindústria oferecidos para turmas do MST em parceria com a
93
universidade pública local. Embora exista um assentamento, ele não tem mais ligação
com o MST. “Para nós é um lugar muito histórico aquilo lá”, diz Joana, a dirigente
sulista que vive neste estado.
Maranhão
Os primeiros passos da construção do MST no Maranhão foram dados logo
depois do I Congresso pelo Centru (Centro de Educação e Cultura do Trabalhador
Rural), coordenado por Manoel da Conceição, dirigente histórico do movimento
camponês
79
, e tendo como sede o município de Imperatriz. A luta pela terra neste estado
era marcada pela violência e pela expulsão de posseiros por parte de empresas que
começaram a grilar áreas nessa região, incentivadas por financiamentos da Sudam
(Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia).
Fernandes explica que, nessa época, “o MST e o Centru trabalhavam
conjuntamente” (2000, p.121), mas logo começaram a surgir “divergências”, sobretudo
a partir de 1988, quando “vieram militantes de outros estados para contribuir com a
construção do Movimento no Maranhão”, oriundos do Piauí, do Espírito Santo e do Rio
Grande do Sul. Enquanto o Centru defendia que o sindicato era a principal forma de
organizar a luta pela terra, o MST preferia desenvolver uma “articulação autônoma dos
camponeses” (Ibid., p. 23). Entretanto, como quem militava no MST também estava no
Centru e, como este último, segundo Fernandes, estava mais centrado no fortalecimento
da oposição sindical, a construção do MST ficou “em segundo plano” e começou a
haver um distanciamento e mesmo um “acirramento das relações que se refletiu
sobretudo na ocupação da fazenda Gameleira, que estava programada para ocorrer em
outubro de 1988. De acordo com Fernandes (2000), um dia antes do dia marcado para a
ocupação desta áreas, os militantes do MST receberam a informação dos coordenadores
dos grupos de que muitas das famílias haviam desistido de participar da ação. Apesar
desta notícia, decidiram manter a decisão de ocupar. Depreende-se do texto de
Fernandes que eles avaliaram que, como grande parte dos coordenadores de grupo eram
militantes de sindicatos, estes é que estavam “decididos a o realizar as ocupações”.
Para contornar esse obstáculo, os militantes do MST foram atrás dos coordenadores não
ligados a sindicatos e ocuparam a área com 144 famílias. Uma semana depois de
ocuparem a Gameleira, 27 famílias organizadas pelo MST ocuparam a fazenda Terra
Bela. Nesta ocupação houve um conflito que resultou na morte de três pistoleiros. A
repercussão do caso acabou atraindo mais famílias para integrarem-se ao acampamento,
e a fazenda acabou sendo desapropriada em dezembro do mesmo ano. Para Fernandes,
foram estas duas ocupações que marcaram o “nascimento do MST no Maranhão”, visto
que representaram a construção e a conquista de um “espaço político” próprio para a
organização dos sem-terra, ajudando-os a demarcar sua identidade em relação ao
Centru.
A chegada de militantes do MST no Maranhão é emblemática visto que esse
conflito com o Centru se dá em torno de concepções de como se deveria desenvolver a
luta pela terra. Enquanto o Centru preferia apostar nos sindicatos e se via como uma
organização de “apoio” à luta dos sem-terra, os militantes do MST se enxergavam como
membros de uma organização que “faz a luta” (Fernandes, 2000, p.122), no caso,
ocupações de terra. Este conflito prenuncia características da identidade política do
MST que estavam em plena construção durante este período. É interessante, no entanto,
79
A vida e a luta de Manoel da Conceição são narradas em Conceição, Manuel da. (1980) Essa terra é
nossa.Entrevista e edição de Ana Maria Galano.Petrópolis:Editora Vozes.
94
observar que essa concepção do que deveria ser este novo movimento social
desembarcou no Maranhão através da chegada de militantes enviados de outros estados.
95
Capítulo 4
O percurso da identidade sem-terra
Neste capítulo, a partir de uma revisão da literatura sobre o MST, vou buscar
descrever como essa identidade “sem-terra” foi se estruturando, relacionando-a com os
períodos hisricos em que foram desenvolvidos os estudos que, por sua vez, acabam
dando um panorama de como foi se cristalizando algumas características do que passo
a denominar como habitus militante do MST.
4.1 Um diálogo com a literatura
Como esse trabalho enfoca os sem-terra do MST em sua expansão para o
Nordeste é fundamental, calcando-me em estudos já conhecidos, traçar este processo de
construção da identidade coletiva “sem-terra”, um produto de mais de duas décadas de
trocas, negociações, decisões e conflitos entre atores envolvidos na luta pela terra e por
reforma agrária no Brasil. Através da análise destes trabalhos pretendo dar conta do
processo de formação e reformulação contínua dessa identidade particular que, por sua
vez, implica determinadas disposições interiorizadas e formas de agir no mundo. A
identidade “sem-terra” foi produzida por um conjunto de indivíduos que, ao longo deste
processo, criaram novos códigos culturais que não expressam as bandeiras do
Movimento e disputam o controle da orientação da vida social da sociedade brasileira,
como promoveram um “estilo de militantismo”, ou seja, uma maneira de vivenciar as
lutas sociais em termos de orientações, escolhas políticas e formão de alternativas
voltadas para a arena blica, mas que também têm incidências na vida privada destes
atores.
Yon (2005), com seu estudo sobre os “modos de sociabilidade e manutenção de
habitus militante” dos “lambertistes”
80
, organização estudantil de extrema esquerda,
forte na França da década de 70, abre um caminho de análise muito interessante para
entender como a identidade “sem-terra” foi se cristalizando e, ao mesmo tempo,
conduzindo o MST a determinadas escolhas políticas. O “estilo MST de militar” é
estruturado e estruturante do aspecto organizacional, das ações de massa e da vida
pessoal dos integrantes do Movimento. Assim como entre os lambertistes”, a entrada
no MST como militante pressupõe um “engajamento total”, fundamento do
engajamento “revolucionário”, o que, por sua vez, modela as disposições dos agentes,
sua representação do mundo, seus repertórios de ação e acabam por marcar fortemente a
vida de seus integrantes (Yon, 2005, p.138). Ele se manifesta no modo como esses
agentes sociais atuam nas instâncias, setores e espaços internos do Movimento, na
forma como contribuem para organizar as mobilizações e nos espaços de sociabilidade
construídos a partir dessas vivências. Este estilo também engendrou uma “sociabilidade
voluntária”, amical, lúdica e associativa ligada com a identidade “sem-terra”, vista por
alguns atores como identidade sócio-política, por outros como sociocultural. De
qualquer modo, é uma identidade composta por fortes ingredientes emocionais
adquiridos no curso da própria luta social empreendida pelo MST, o que explica a forte
adesão vivenciada pelos militantes desta organização.
80
A organização política que se vincula ao lambertismo no Brasil é a corrente “O Trabalho” que compõe
o Partido dos Trabalhadores (PT).
96
No próximo capítulo, através da trajetória de alguns indivíduos exemplares deste
movimento social, este estudo procurará depreender, a partir do relato da história de
vida dessas pessoas, como se deu a construção social desta particular organização
política que se estruturou a partir de uma luta específica e que forjou um determinado
habitus militante em pouco mais de 20 anos de história. Antes disso, é importante
dialogar com estudos que, em diferentes períodos da trajetória do MST, procuraram dar
conta da formação desta identidade.
O processo de construção desse estilo de militantismo e da identidade coletiva
“sem-terra” pode ser mapeado em um conjunto de trabalhos, escritos em diferentes
momentos da história do MST. Ao debruçarem-se sobre acampamentos, mobilizações
específicas ou mesmo sobre a “formaçãoda identidade sem-terra, eles acabam dando
conta de como a categoria “sem-terra” até então estigmatizada, ou seja, marcada de
maneira negativa e desqualificadora perante segmentos do mundo social que a cercam,
foi passando a ter atributos positivos para grupos engajados em discursos políticos de
esquerda, pelo menos desde que conquistou maior notoriedade nacional, embora não
tenha necessariamente dimindo o estigma que esta identidade carrega para o conjunto
da sociedade brasileira. Esta “positivação” da identidade sem-terra e a auto-estima que
ela desencadeia, incorporada pelos militantes do MST, é em grande parte resultado do
esforço de produção cultural e simbólica da própria organização e é talvez fator capital
para a manutenção dos laços de pertença e lealdade a este movimento social. Isto ocorre
por que, depois de começarem a participar do MST, esses atores passam a se ver e a
serem vistos não mais como membros do segmento subalterno da sociedade brasileira,
integrados de forma subordinada nas relações sociais e econômicas vigentes no meio
rural e mesmo urbano do país. Dentro do MST, eles passam por vivências que lhes
propõem tornarem-se sujeitos de novas formas de participação política e de
sociabilidade. Mas, para chegar nesse ponto, o MST e os indivíduos que a ele se
integraram passaram por determinadas trajetórias coletivas que contribuíram para a
definição dessa identidade.
Como forma de explicitar esse percurso, considero pertinente me apoiar nos
trabalhos de Gehlen (1985), Schmitt (1992), Chaves (2000) e Caldart (2005), pois suas
descrições e análises apontam aspectos da formação deste habitus associado à
identidade sem-terra desenvolvidos em diferentes períodos da trajetória histórica do
MST e incorporados por seus militantes.
4.2 “Colonos de Nonoai”
Gehlen (1985) trata dos primórdios do fenômeno MST, ainda antes da
estruturação dessas lutas em um movimento social unificado, o que só veio a ocorrer em
1984. O autor, que acompanhou a trajetória dos agricultores que ficaram conhecidos
como “colonos de Nonoai”, faz um levantamento inicial dos movimentos sociais de luta
pela terra ocorridos na década de 60 e 70, enfatizando a atuação do Master (Movimento
dos Agricultores Sem Terra), cujas formas de ão eram as concentração de massas, os
acampamento, os ocupações, a pressão via movimento sindical e as denúncias através
da imprensa. A seguir, Gehlen descreve o “aparente imobilismo dos movimentos
camponeses depois do golpe de 1964, período, na realidade, permeado de conflitos e
articulações políticas que permearam reivindicações por por direitos de cidadania,
sobretudo de caráter previdenciário, passaram pela exigência de preços mínimos até que
chegaram “à expressão mais radical e de maior alcance político: a luta pela terra”
(1985:155). Os protagonistas destas lutas, segundo o autor, “desde a década de 50”,
eram “os pequenos proprietários e os camponeses sem terra filhos de colonos,
97
posseiros, pequenos arrendatários, meeiros, parceiros, peões, diaristas”, crescentemente
expropriados “em favor da manutenção e expansão dos grandes proprietários” (Gehlen,
1985 , p.155). Para o autor, “a busca coletiva e de forma organizada de alternativas à
sua condição de sem-terra” foi resultante tanto das “necessidades concretas” como da
“possibilidade de discussão e análise da realidade”, oportunizada pela vivência em
acampamentos e pela participação de núcleos de refleo e em reuniões em sindicatos,
na CPT e em cooperativas. Essa vivência coletiva em acampamentos, que mais tarde se
tornaram marca registrada da “metodologia” do MST, era vista por este autor como
um fomentador da articulão entre esses camponeses.
Ao abordar o renascimento do movimento de luta pela terra, detendo-se nas
estratégias de luta dos “colonos de Nonoai”, expulsos da reserva indígena Kaigangue
em maio 1978, Gehlen identificou a “gênese” do processo organizativo das famílias que
realizaram as ocupações das fazendas Macali e Brilhante, ações que considero
fundadoras da “metodologia” do MST. O autor já notara que a “principal estratégia” dos
que queriam terra no Rio Grande do Sul, descartando as ofertas em áreas de colonização
na fronteira agrícola e a proletarização urbana, era o “acampamento em beiras de
estradas, terras de parentes e amigos, etc. sempre no meio rural”, onde sobreviviam
dispersos, desorganizados, lançando mão de diversas alternativas, inclusive vendendo
os únicos bens que possuíam. Inicialmente, segundo o autor, esses colonos procuraram
soluções de forma individualizada, tentando obter apadrinhamento de políticos ou
outras pessoas de fora. Ao perceberem, no entanto, que o problema era coletivo,
chegaram a realizar “uma invasão da Fazenda Sarandi, mas de forma desorganizada,
desarticulada, sem lideranças definidas, o que levou ao erro de ocupar a área da reserva
florestal da fazenda, fato que impediu o apoio da opinião pública” (Gehlen, 1985,
p.162). Conscientes de suas dificuldades, esses colonos passaram a contar “com
assessoria externa”, ou seja, mediadores, a reunir-se em grupos “espontâneos”, onde,
“confabulando”
81
, “percebem que a solução não está no nível individual, porque o
problema era coletivo, portanto social” (Ibid., p.162). Através de assembléias, esses
colonos que buscaram “assessoria de entidades que poderiam orien-los nesta luta”,
criaram uma comissão representativa, produziram um abaixo-assinado dirigido ao
governador e viajaram para Porto Alegre com representação legitimada pelas
assembléias e, portanto, não mais de forma individual. Nessas viagens à capital do
estado, os colonos, além de pressionarem o Executivo e o Judiciário, tiveram contato
com meios de comunicação, anunciando que dariam um prazo de 30 dias ao governo
para resolver a questão, caso contrário invadiriam as glebas Macali e Brilhante, que
eram do Estado e estavam irregularmente cultivadas pelos irmãos Dalmolin. Segundo
Gehlen, essas atitudes ocorreram em junho/julho de 1979 e, a partir de setembro de
1979, desembocaram nas “invasões” das Glebas Macali e Brilhante, da fazenda Sarandi,
resultando no assentamento, no ano seguinte, de todas as falias mobilizadas. O autor
identifica que a estratégia de luta dos colonos baseou-se nas seguintes ações, divulgadas
pelos meios de comunicação: acampamento, reuniões, assembléias, invasão de terras e
pressão direta junto às insncias de autoridade como o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário, Gehlen aponta também que a trajetória dos colonos “passou a ser inspirão”
e “modelo” para outros agricultores sem terra da região, trazendo, como conseqüência,
imediata a formação do conhecido acampamento de Encruzilhada Natalino (Gehlen,
1985, p.164)
Gehlen antevê em seu artigo, escrito originalmente em 1984, que os próprios
“colonos de Nonoai” já contavam com a possibilidade de “ampliar e, até mesmo,
81
Aspas e termos usados pelo autor que enfatiza que nunca houve nada de “espontâneonesse processo,
como fazem crer versões desse período de germinação do que mais tarde se tornou o MST.
98
universalizar sua experiência vitoriosa”. De fato, em julho de 1984, o Boletim Sem
Terra, que trazia informações desta articulação política que se formava em torno destes
colonos sem-terra, torna-se oficialmente “Jornal dos Trabalhadores Sem Terra”,
apresentando-se como uma publicação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra da
Regional Sul e não mais como uma publicação do “Comitê de Apoio aos Agricultores
Sem Terra”.
Por outro lado, Gehlen demonstra também que os próprios colonos que
defendiam a necessidade de “ir todos lá pra cima do governo” e “invadir”, para
conquistar terra, propunham também a criação de um Fundo, “um capital para o
governo comprar terra e revendê-la aos colonos sem-terra a preços razoáveis e
compatíveis com a possibilidade de pagamento” (Gehlen,1985, p.164). É interessante
perceber que naquela época este caminho também era proposto como uma
possibilidade, atendendo à demanda de determinados grupos
82
. Isso indica que, no
processo de estruturação desta luta, havia demandas possíveis em jogo que foram
suprimidas nas características que o MST veio a assumir a partir de então.
Além dessa descrição dos primeiros passos desta forma de luta, depois difundida
pelo MST para todo o país, o artigo de Gehlen já identifica questões que passariam a ser
debatidas mais tarde pelo próprio Movimento, como a classificada por eles de
“consciência conservadora” dessas populações. O autor conclui, a partir do depoimento
de uma das lideranças dos colonos de Nonoai, que “a aparente autonomia de controle da
produção está mostrando que o apego à terra, como propriedade individual, gera a
desmobilização e dificulta a articulação no trato dos interesses coletivos” (Gehlen,
1985, p.163)”.
Assim como a palavra invasãoé utilizada para descrever as ações que a luta
do MST tornou conhecidas mais tarde comoocupações”, o artigo de Gehlen traz pouco
a expressão “sem-terra”. Esses sujeitos que se põem a lutar por terra através dos
acampamentos e das ocupações na época são identificados como “colonos” e “famílias
e, mesmo “camponeses”.
4.3 Colonos viram “sem-terra”
Publicada em 1992, sete anos depois, a reflexão de Schmitt enfoca a categoria
“colono sem-terra”
83
, mas, em alguns momentos, se refere somente a sem-terra”, sem
fazer nenhuma observação sobre possíveis diferenças de uso entre ambas. De fato, na
época da realização de seu trabalho, não havia grandes distiões entre essas duas
expressões quando o que estava em pauta era conflito fundiário. Entretanto, ao longo da
82
Muito criticado pelos movimentos sociais do campo, há atualmente o Crédito Fundiário, um programa
mais ou menos nestes moldes mantido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário
83
Esse termo foi uma vez escrito em uma grande manchete do jornal Zero Hora de 21 de junho de
1974: "COLONOS SEM TERRA: AMEAÇA AGORA É EM TAPEJARA". O texto trata do conflito que
havia em Nonoai entre índios e colonos sem-terra que moravam e plantavam nas terras da Reserva
Indígena. A matéria de um jornal da grande imprensa, em plena ditadura militar, colocou duas questões:
como esses colonos poderiam sobreviver e para onde iriam se fossem tirados de lá. Segundo o própria
texto, a resposta para esse dilema se encontrava na estrutura fundiária brasileira, "cujas distorções na
organização social, política, administrativa e cultural do Brasil" eram causadas pelo fato de o país ser
dotado de uma "estrutura fundiária deformada", que permite uma intensa acumulação de terras na mão de
poucos proprietários. Ao nomear "colono sem-terra" e falar da situação na Reserva Indígema de Nonoai,
aquela matéria de Zero Hora antecipou o conflito de 1978 que, de fato, originou a formação do
Movimento Sem Terra no Rio Grande do Sul.
99
trajetória histórica do MST, mesmo no Rio Grande do Sul, o termo “colono” foi
desaparecendo em detrimento da expressão “sem-terra”.
Tendo como objeto principal de estudo um acampamento do MST formado em
1987, o trabalho de Schmitt analisa o processo de identificação de “colonos” gaúchos
com o atributo “sem-terra” e é uma referência importante para a compreensão do
processo por meio do qual esta identidade social e política começou a adquirir
determinados significados para os participantes da luta pela terra naquele estado assim
como para seus opositores - em um período em que o MST passava por uma intensa
estruturação regional e começava a dar os primeiros passos de sua expansão nacional.
Embora enfoque, sobretudo, a categoria “colono sem-terra”, modo como os
integrantes do MST eram chamados no Rio Grande do Sul, a reflexão de Schmitt tem o
grande mérito de fazer um levantamento minucioso da constituição da identidade “sem-
terra” em um momento em que havia poucos trabalhos dedicados a esse assunto e em
um período em que o endurecimento institucional promoveu um estreitamento político
do espaço de ação do Movimento, ao mesmo tempo em que se aprofundava o confronto
com agentes sociais contrários a suas demandas. Esse momento político de formação
obviamente deixou suas marcas no habitus sem-terra. Também é importante frisar que
seu trabalho teve como estudo de caso um acampamento no estado onde o MST se
constituiu primeiro
84
e que costumava inaugurar algumas práticas sociais, ou melhor,
“metodologia de lutas”, que viriam a se espalhar para o resto do país. Alguns anos
depois, vários militantes oriundos desse acampamento, que tiveram destaque durante
suas lutas, foram deslocados para outros estados do país, enquanto outros permanecem
atuantes dentro de diversas instâncias estaduais do MST do Rio Grande do Sul.
É importante também alertar que, no início da década de 90, a palavra “colono
era praticamente sinônimo da palavra sem-terra” na capital gaúcha. Antes de se
referenciar aos “sem-terra” do Rio Grande do Sul, “colonojá era uma palavra que,
neste estado, foi se distanciando progressivamente da condição de imigrante ou de seus
descendentes para se restringir à condição camponesa, ou de “pequeno proprietário
rural”, desvinculando-se, portanto, da origem étnica associada ao nome e assumindo o
mesmo sentido que, por exemplo, “caipiratem em São Paulo, com a diferença de que,
no Sul, em geral, julga-se o colono “grosso”, “ingênuo”, “burro”, mas “trabalhador”. De
qualquer modo, é considerado “atrasado” aos olhos da sociedade urbana (Coradini apud
Schmitt, 1991, p. 52). Esse caráter, entretanto, não impediu que, em 1991, os “colonos”
fossem considerados “politicamente” ameaçadores aos olhos das forças de segurança do
Estado, mais particularmente da Brigada Militar, o nome da Polícia Militar local
85
. A
meu ver, no Rio Grande do Sul, esse processo de progressivo destaque político do
atributo “sem-terra” com o significado de “radicalidade” que passou a incorporar foi
sendo gestado justamente no período da trajetória dos acampados retratados pelo
trabalho de Schmitt, tornando-o também um retrato bastante cuidadoso deste processo
84
O I Encontro Estadual de Trabalhadores Sem Terra no Rio Grande do Sul ocorreu em 1983, um ano
antes da fundação do MST em vel nacional.
85
Tive a experiência de vivenciar isso qando colava cartazes em Porto Alegre, na véspera de
uma mobilização do MST, chamada “SOS Vida”, em 1991. No meio da noite, um carro da polícia militar
nos abordou, perguntando de que se tratava o cartaz. Um dos sem-terra que estava no carro disse para o
policial que era um cartaz chamando para um ato público contra a inflação, a ser realizado no dia
seguinte. O policial perguntou, então, se nós éramos “colonos”, pois sabia que no dia seguinte haveria a
chegada de uma, na época, caminhada” do MST à capital. O sem-terra prontamente respondeu: Não,
nóis semo universitário”. Foi a senha para o guarda nos deixar em paz. De outro modo, provavelmente,
passaríamos a noite dando explicações na delegacia.
100
social que consolidou os significados que hoje atribuímos aos sem-terra do MST. Além
de enfrentar a não realização do Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República
e um período de redução dos espaços institucionais de negociação, esse acampamento
se formou com duas ocupações de terra que repercutiram de forma bastante negativa no
ambiente político gaúcho. De início porque a mobilização destas 1300 novas famílias
sem-terra, iniciada em 23 de novembro de 1987, foi dividida nas ocupões da Fazenda
do Salso (2600 ha), pertencente ao ex-deputado Plínio Dutra, e da Fazenda Itati (5.600
ha), de propriedade do ex-deputado Aldo Pinto que, na época, era Secretário da
Agricultura e Abastecimento da prefeitura de Porto Alegre, na gestão de Alceu Collares
(PDT). O fato de os “sem-terraocuparem áreas pertencentes a ex-membros do Poder
Legislativo fez com que as bancadas da maioria dos partidos da Assembléia Legislativa
reagissem, na prática, de maneira bastante corporativa. Deputados até então simpáticos
à luta, que vinham ajudando a intermediar as negociações passaram a condenar as
“invasões” (Schimitt, 1991, p. 569), e esse aspecto acabou acompanhando a trajetória
desse acampamento, cujas ações foram se tornando cada vez mais radicais, até como
alternativa para enfrentar o isolamento político instalado em nível estadual, assim como
os enfrentamentos diretos com fazendeiros vizinhos a seus acampamentos. Neste
período, além de desafiar interesses de ex-parlamentares locais, o MST reteve
funcionários do Estado em seus acampamentos e chegou a entrar em luta corporal com
policiais militares durante despejos.
Para dar um exemplo do nível de enfrentamento da época, eram oriundos desse
acampamento os sem-terra que estiveram no que ficou conhecido como “massacre da
Santa Elmira”, despejo violento ocorrido em 11 de março de 1989, assim como parte
deles também esteve presente no traumático episódio ocorrido em Porto Alegre,
conhecido como “conflito da Praça da Matriz”, ocorrido em 8 de agosto de 1990,
quando a Polícia Militar, sem ordens do governo estadual, efetuou um despejo violento
dos sem-terras acampados na praça principal da cidade, desencadeando uma espécie
“batalha campal” no centro da capital gaúcha, que resultou em inúmeros feridos, pelo
menos três deles à bala, e na morte de um policial militar
86
.
Apesar da imagem muitas vezes marcada pela violência, enfatizada pela
repercussão que essas ações obtiveram na mídia, o MST logrou obter um relativo
espaço na interlocução com as agências do Estado, sobretudo com o governo estadual,
nas mãos do PMDB e mais tarde do PDT, que respondia à pressão dos sem-terra
comprando ou distribuindo terras do Estado para assentar os colonos, o que serviu de
esmulo para que novas famílias entrassem na luta, mesmo em um ambiente dominado
pelo estreitamento político institucional da reforma agrária em nível nacional, cenário
que se tornou ainda mais opressivo durante os anos do Governo Collor.
É dentro desta conjuntura política que a autora constrói este trabalho, cujo
“objetivo central” era “reconstituir os diferentes processos sociais através dos quais um
grupo heterogêneo de agricultores, inseridos de diversas formas tanto na estrutura
agrária como no processo de produção agrícola, passam a construir uma identidade
social e política comum enquanto “sem-terra”, tornando-se agentes de um processo de
luta social” (Schmitt, 1991, p. 6), em um contexto em que a subordinação da agricultura
familiar ao capital comercial, industrial e financeiro deu origem “a uma multiplicidade
de processos de marginalizão e de exclusão do campesinato” (Ibid. p. 5).
Neste sentido, Schmitt desenvolve um denso trabalho teórico para estruturar uma
reflexão que desemboca na formulação do que seria a identidade “sem-terra” que, para
ela, integra a dimensão política e a social. Sua reflexão dá conta do processo de
86
Para entender todo esse contexto permeado por estes conflitos com a PM gaúcha, , é interessante ler Gorgen (1989
e 1991) e Lerrer (2005).
101
formação desta identidade em um período chave para as gerações de militantes que
serão descritas no capítulo seguinte deste trabalho. Para a autora, “colono sem-terra”
representa um “nós político por se fundar em uma “ação coletiva do grupo e nas
relações que estabelece com diferentes forças sociais presentes no campo de conflitos
agrários. Por outro lado, esta identidade também é o “produto de uma construção
cultural, resultante de uma trama diferenciada de experiências históricas significadas
pelos indivíduos/grupo no curso de sua trajetória social” (Schimitt, 1991, p. 20) e que se
relaciona estreitamente com a terra.
A combinação dessas duas dimensões incorpora as mediações sociais e culturais
presentes no trajeto pelos quais esses indivíduos passam “a se reconhecer e agir
enquanto coletividade em um processo de luta social” (Ibid, p.21-22) e que são centrais
na formação da identidade “sem-terra”. Esta particular subjetividade social e simbólica
que hoje se classifica como “sem-terra” foi produto de processos de “interação,
reconhecimento, oposição e dominação”, que marcaram aquele período onde se formou
o acampamento estudado pela autora. (Ibid.p.21). Ou seja, a trajetória desses acampados
os levou a ter “um conjunto de experiências históricas, vividas de forma direta e/ou
partilhadas, inscritas em tradões, valores, idéias ou ainda em determinadas formas
institucionais” (Ibid, p.20) que determinaram os significados sociais que eles deram
para essa experiência no acampamento, para que se vissem como membros de uma
mesma coletividade, cuja identidade passaram a assumir.
A forma como a autora se utiliza da própria categoria identidade vai no sentido
de buscar apreendê-la como uma configuração de natureza mutável, que se “transforma
à medida que se alteram os fatores presentes em um determinado sistema de relações”
(Ibid.,p.23), indo na mesma direção de Melucci, que considera as identidades coletivas
não em termos de essência, mas como produto de processos constantes de interações e
reconhecimentos conflitivos ou não, vivenciados pelos grupos sociais. Em suma, a
autora já previa a possibilidade de que outras mediações sociais e culturais presentes no
trajeto dos sem-terra pudessem determinar outras características dessa particular
identidade sócio-política, naquela época, em plena formação e com sotaque
eminentemente sulista.
É através da trajetória do acampamento do Salto do Jacuí, iniciado em 1987,
cujas últimas famílias foram assentadas em 1991, que a autora desenvolve sua reflexão
sobre os processos de formação da identidade social e política do “colono sem-terra” no
contexto do acampamento, um espaço particular de sociabilidade e luta. Ela demonstra
que a identidade assumida pelos acampados foi se constituindo a partir do
entrecruzamento de diferentes trajetórias individuais e familiares transcorridas em uma
determinada correlação de forças, onde “o conflito social pela terra era vivido
cotidianamente no universo do acampamento”. Foi neste espaço que se
institucionalizaram formas de participação política e estabeleceram-se normas que
regiam a organização da vida social, decorrentes de um permanente trabalho de
mediação, no qual o grupo organizava determinados significados em relação à sua
história passada, suas diferenciações internas, sua posição no universo social e suas
perspectivas futuras” (Schmitt, 1991, p. 610). Segundo Schmitt, até chegarem ao
acampamento, a primeira experiência de participação política da maioria dos acampados
havia se dado nos grupos de pastoral organizados pela Igreja Católica, assim como a
maioria dos militantes cuja trajetória será apresentada no pximo capítulo.
Para a autora, a identidade social dos “sem-terra” estava “estreitamente
vinculada à sua relação com a terra: meio de trabalho e base material sobre a qual se
reproduz determinado modo de vida” (Schmitt, 1991). Essa construção também foi
produto de um processo “conflitivo”, que a elaboração da experiência do mundo
102
social de indivíduos e grupos é feita através de trocas materiais e simbólicas nas quais
“os agentes constroem determinadas representações em relação a si mesmos e à sua
inserção no mundo que o cerca”, demarcando fronteiras. a partir de onde são
estabelecidas as “semelhanças, diferenças, proximidades e disncias entre si”(Schmitt,
1991, p.26). Já a identidade política se constitui “quando uma coletividade passa a
reconhecer-se enquanto parte de um mesmo nós, organizando um conjunto de práticas
através dos quais seus membros procuram expressar uma vontade coletiva” (Ibid. p. 26-
27). Assim como a identidade social, a identidade política vai se “configurando no
decorrer do conflito”:
É na sua relão com seus adversários que uma determinada
coletividade vai elaborando os significados por meios dos quais
reconhece a si mesma enquanto portadora de determinados interesses,
nomeia seus opositores e empresta sentido às suas ações (Schmitt,
1991, p.27).
No processo de constituição da vontade coletiva do grupo, a autora aponta como
tendo particular importância, “a intervenção de mediadores que elaboram um discurso
capaz de interpelar os agentes sociais envolvidos no conflito, organizando o grupo
enquanto uma vontade coletiva”. (Ibid. p.27).
Diante dos desafios colocados por uma intensa transformação no seu mundo
social e econômico, os depoimentos dos acampados descrevem um cenário marcado por
diferentes respostas, a maioria das quais caracterizadas por uma insistente procura em
manter-se como agricultores, apesar das visíveis e crescentes dificuldades sintetizadas
na diminuição do “dinheiro que sobra”, resultado de processos econômicos e sociais que
ocorreram ao longo da década de 80, tais como a redução da facilidade de crédito, a
tendência de queda dos preços dos produtos agrícolas ao nível do produtor,
concomitante a um aumento dos custos de produção (Ibid., p.121).
As diferentes estratégias acionadas por esses agricultores dependeram da posição
social onde se encontravam suas famílias, ou seja, da relação delas com a terra e dos
recursos de que dispunham para desenvolver a atividade agrícola. Muitos deles
passaram a viver como agregados ou a trabalhar como parceiros, morando nas terras de
outros colonos ou familiares; outros buscaram formas de assalariamento agrícola em
“granjas”, para agregar algum rendimento e enfrentar as dificuldades econômicas
crescentes; outros optaram pela colonização para fora do Estado, sobretudo na região
amazônica, e outro grupo tentou a sorte nas cidades. Essas alternativas foram acessadas
de forma simultânea ou o até que o surgimento de acampamentos e ocupações no
estado passasse a apontar uma opção viável para a obtenção de terra, oferecendo uma
possibilidade de reprodução de seu modo de vida, agora em bases sensivelmente
melhoradas graças ao acesso à propriedade da terra, o que se constituía também como
uma “afirmação do direito” desses agricultores a não se proletarizar” nas cidades ou
granjas e de não ir para terras na fronteira agrícola do país (Schmitt, 1991 , p. 234).
A autora faz um levantamento exaustivo das estratégias desenvolvidas pelos
acampados antes de estarem propriamente na luta pela terra, conjugando-a com
reflexões sobre memória e representação social que promovem um distanciamento
salutar para a compreensão dos componentes da identidade social e política do “colono
sem-terra”. Ela ressalta que a memória individual, presente nos depoimentos recolhidos,
tem como suporte o grupo, no caso de acampados, que “retém do passado aquilo que
esvivo ou capaz de viver em sua consciência(Ibid, p.145). Em suma, no momento
dos depoimentos, o que é acessado pela memória dos entrevistados, sua representação
social é construída a partir da vivência dessas diferentes estratégias de reprodução
103
familiar e é mediado pelo presente do acampamento. Toda essa bagagem faz parte da
construção desta representação que incorpora a “recusaa continuar sendo um parceiro
ou um peão e a migrar para a cidade ou para o Norte do país.
A autora também alerta que não há uma relação mecânica entre a trajetória
social dos indivíduos e a construção de identidades sociais, já que assim como as
experiências históricas são sempre atualizadas através de uma mediação com o presente,
ou seja, com o contexto que está sendo vivido, “diversas variáveis interferem na forma
como diferentes vivências são significadas” (Schmitt, 1991, p.163). O interessante de
sua reflexão é, no entanto, concluir que a categoria social e política “colonos sem-terra”
é construída a partir da recusa desses “colonos”, não propriamente enquanto indivíduos,
mas enquanto coletividade em luta, a se transformarem em proletários, representando
também uma revalorização do “colono” e da vida na roça. Esse discurso, bastante nítido
na fala dos mediadores, também está presente no discurso dos acampados (Ibid., p. 234)
e representa, a meu ver, a raiz do ganho de auto-estima presente entre os militantes do
MST. É, portanto, central no modo de estar junto e de gostar de estar junto desses
colonos o reconhecimento mútuo da valorização desse modo de vida crescentemente
desvalorizado pelas transformações sociais em curso. Ao levar suas lutas para o
Nordeste, o MST se depara com outras formas de relação com a terra e de recusa à
proletarização que, para a maioria de sua base nordestina, se nas grandes metrópoles
da região Sudeste.
É elemento importante desse discurso a “vivência do urbano”, seja ela feita de
forma direta ou partilhada, na medida em que a cidade é recusada enquanto uma
alternativa de vida para “quem não tem estudo” ou quem “não tem profissão”. Essa
experiência faz muitos agricultores reelaborarem sua própria condição de dominado no
meio rural, favorecendo seu engajamento em atividades políticas quando ele retorna ao
campo. É, em suma, um aprendizado que “muitas vezes transforma-se em ferramenta de
luta” (Schmitt, 1991 , p. 628)
Outra dimensão importante, presente na construção desta categoria sócio-
política, é a recusa a se transferir para terras fora de sua região de origem, produto do
trabalho de mediadores políticos, especialmente a CPT e o MST, que possibilitou que “a
resisncia individual das famílias em migrar pudesse se traduzir em recusa coletiva
(Ibid., p.287). Embora esta resistência seja formulada através da denúncia das
desvantagens das migrações e das más condições de vida dos projetos de colonização, o
“eixo principal” que articulava essas proposições na fala dos mediadores, era “a
oposição entre a política de colonização do Estado e a defesa da reforma agrária”. A
autora observa que foi exatamente a presença de agentes religiosos, ligados
principalmente à CPT, nas regiões de fronteira agrícola, que contribuiu “na formulação
de um diagnóstico dos conflitos agrários, que ia além dos limites regionais” (Schmitt,
1991, p. 287-288)
Uma dos fenômenos levantados pela autora durante seu trabalho de pesquisa é
que, mesmo em um contexto como o do acampamento, no qual o grupo procurava
reforçar sua “igualdade” na luta pelo direito à terra, os “colonos” identificavam-se como
pertencendo a diferentes categorias sociais (Ibid., p.521). Um exemplo claro desta
diferenciação interna existente dentro do acampamento era a nítida polarização entre os
chamados colonos “de origem”, descendentes de italianos, alemães e poloneses e os
chamados negros”, “caboclos” ou mesmo “brasileiros”. Os primeiros se identificavam
“como herdeiros de uma história comum, reconhecendo sua diferença social em relação
aos demais acampados”. os “negros” ou “caboclos” - e mesmo, “brasileiros” - não
costumavam falar de si mesmos como parte de uma mesma categoria social.
104
Embora pudessem manter, durante o acampamento, relações de
proximidade, ajuda mútua e solidariedade, sua existência enquanto
grupo definia-se, até onde nos foi possível perceber, muito mais por
serem vistos como “diferentes pelos “de origem”, do que pela
afirmação de uma identidade social específica. (Schmitt, 1991,
p.520)
Segundo Schmitt, durante as entrevistas gravadas, essas divisões raramente eram
mencionadas, embora estivessem bastante presentes no cotidiano do acampamento.
Quando se comparavam com os caboclos, os colonos “de origem” se apresentavam
“como agricultores exemplares: apegados à terra, disciplinados, trabalhadores,
empreendedores”, invocando a ética do imigrante que, de fato, fermentou a vida social
de seus antepassados e deveria estar muito presente em suas comunidades de origem. Já
os caboclos eram vistos como “indisciplinados, sem iniciativa, em permanente
migração. Outro aspecto que evidenciava a diferenciação social presente no
acampamento eram os diferentes projetos alimentados pelos acampados filhos de
pequenos proprietários em relação aos que nunca haviam sido proprietários de terra.
Embora no trabalho, de início não fique claro qual era a situação vivida pelos
“caboclos” antes de irem para o acampamento, em sua conclusão Shmitt aponta que o
acesso à propriedade da terra, mais do que a origem étnica, era provavelmente o
determinante das diferentes condutas entre os “de origem”, descendentes de europeus, e
os “caboclos”, filhos de parceiros, pes e posseiros que haviam mantido relações
instáveis com a terra ao longo de sua trajetória social. Para os filhos de pequenos
proprietários, a ida para o acampamento estava relacionada a um esforço para assegurar
sua reprodução social enquanto agricultores e, para isso, eram inclusive auxiliados pelos
familiares durante a permanência no acampamento. para famílias, que mais de
uma geração estavam excluídas do acesso à terra, acampar era uma resposta a uma
“crise de alternativas”, ou seja, estava associado a necessidades imediatas de
sustentação do grupo familiar e significava, antes de mais nada, mais estabilidade, ou
seja, “morar e trabalhar naquilo que é nosso” (Schmitt, 1991, p. 645). Para os filhos de
pequenos proprietários, uma vida melhor ia bem além das expectativas dos caboclos.
“Melhorar” não significava apenas garantir o acesso à terra. Era preciso “ter uma terra
boa, e, se possível, plantar ‘com máquina’” (Ibid., p. 530).
Quando militantes de origem imigrante vão para o Nordeste, as populações do
campo com as quais trabalham possuem características, aos olhos deles, muito parecidas
com as dos caboclos” gaúchos e, de fato, compartilham com eles relações instáveis
com a terra, por serem assalariados da cana, por viverem fazendo biscates na periferia
das cidades ou por plantarem “à meia”, ou seja, dando metade de sua produção ao
proprietário da terra. Mesmo em termos de projetos de futuro, como demonstro no
capítulo 6, os camponeses nordestinos se caracterizam por uma maior “modéstia” em
relação aos projetos que o MST, através desses militantes sulistas, pretendia
desenvolver em seus assentamentos.
Em suma, a trajetória social anterior ao acampamento, que não podia ser
“reduzida à origem étnica dos indivíduos, influía na forma como estas famílias se
inseriam no conflito, bem como nos planos que traçavam em relação ao futuro
(Ibid.,p.532). De qualquer modo, a trajetória social anterior “era reelaborada com base
nas exigências do presente, podendo a convergência de pontos de vista em relação ao
futuro servir de base para a construção de uma identidade social comum entre os
acampados” (Ibid., p. 533).
A autora conclui que os significados que os “sem-terraelaboram no tempo do
acampamento “são marcados, simultaneamente, por elementos de continuidade e por
105
pontos de ruptura em relação à sua condição social anterior(Schmitt, 1991, p.611). A
vivência do conflito permitia que os participantes da luta pela terra, enquanto
indivíduos, e os acampados, enquanto coletividade, forjassem uma nova leitura da
realidade social, ao mesmo tempo em que possibilitava o resgate de determinados
valores e a reconstrução de diferentes formas de sociabilidade
A ação coletiva do grupo é, assim, resultado de uma combinação entre
dimensões objetivas e subjetivas, que se articulam de forma
diferenciada no decorrer do conflito. É nessa rede de interações, que
inclui tanto a vida cotidiana no acampamento, como os jogos de
oposição e aliança entre os diferentes agentes envolvidos na luta pela
terra, que o “sem-terraganha existência enquanto personagem social
(Ibid. p. 610- 611).
Para a autora, a identidade política do “colono sem-terra” foi construída no
discurso de seus mediadores, incluindo aí a atuação do MST enquanto organização
política, mas não se reduzia a ele. Na sua base, existia todo um trabalho de
reconhecimento, no qual o discurso dos mediadores e a visão de mundo dos agricultores
foram se construindo mutuamente. Por exemplo, a decisão de acampar dos colonos do
Salto do Jacuí teve como referência a experiência de outros acampamentos bem
sucedidos na conquista da terra.
Em suma, assumir a condição de sem-terra foi resultado da interação entre o
discurso dos mediadores, as experiências históricas do grupo (incluindo a
“experiência política” acumulada nos diferentes conflitos enfrentados na trajeria do
acampamento) e as práticas sociais e os discursos de seus adversários. Essa identidade
foi se expressando de diferentes maneiras nas representações sociais dos agentes
envolvidos no conflito, contendo em si diferentes oposições e projetos, assumindo um
contorno mutável, que foi se alterando no próprio jogo das forças sociais em disputa.
Ela observa que a estruturação e consolidação do MST no Rio Grande do Sul,
iniciada no ano de 1983, redimensionou o papel dos diferentes mediadores que atuavam
no campo de conflitos agrários no estado, especialmente no que se refere aos agentes
religiosos. Portanto, ao mesmo tempo em que o MST foi se tornando o porta-voz da luta
dos agricultores, no Rio Grande do Sul, a CPT rearticulou sua intervenção, passando a
atuar como entidade de apoio (Schmitt, 1991, p.634). Segundo ela, as transformações
que ocorreram na atuação dos mediadores durante esse período tiveram impacto na
própria construção da identidade política do MST.
Ao longo de sua trajetória, o MST foi construindo sua própria leitura
da luta social pela terra, privilegiando uma análise mais política do
conflito; as dimensões religiosas da luta”, embora não tenham sido
abandonadas, passam a desempenhar um novo papel (Schmitt, p. 635).
Assim como a ação social e política do grupo e a ação dos mediadores são
realidades que se interpenetram, não sendo, no entanto, redutíveis uma à outra, a autora
conclui que a atuação do MST “tem como substrato social a heterogeneidade dos
participantes da luta pela terra e sua ação política é resultado de um permanente
processo de elaboração das diferenças internas ao grupo”. As diferenças entre os
colonos, tanto por suas “vivências anteriores ao acampamento, como por seus projetos
em relação ao futuro”, são fatores que influenciam na forma como se dá seu
engajamento na luta social pela terra (Schmitt, 1991 , p. 643).
106
Ela observa também que o papel do MST não se limitava à representação
política das reivindicações dos sem-terra, pois, ao institucionalizar determinadas formas
de ação coletiva e de participação política, tornava-se peça-chave no trabalho de
articulação de um conjunto de práticas materiais e simbólicas que dão existência ao
grupo. (Ibid., p. 642-643). Isso ocorria porque o “tempo do acampamento” abria
espaço para a experimentação de novas sociabilidades, na qual o grupo ia “construindo
uma teia de relações que serve como suporte para a construção de uma identidade social
e política comuns”.
Nesse período, assim como nas ocupações de terra, nas negociações e nos atos
públicos, os “sem-terra” viviam cotidianamente o confronto entre as forças sociais em
disputa no campo de conflitos agrários, o que fazia com que se reconhecessem
“enquanto parte de um mesmo grupo, cujos interesses contrapõem-se aos interesses de
outros grupos sociais na disputa pela apropriação fundiária” (Ibid.,p. 638). Essas
práticas, no entanto, não resultam nem em “uma homogeneização de comportamentos,
nem uma ruptura definitiva com os referenciais, a partir dos quais os ‘colonos’
construíam sua identidade social antes de se engajarem na luta pela terra” (Ibid., p. 639),
já que diversos aspectos da vida nas “comunidades rurais” estavam presentes no
cotidiano do acampamento, como por exemplo, a organização em núcleos de famílias
oriundas do mesmo município. No momento relativamente transitório do acampamento
“as regras, institucionalizadas ou não, que orientam a organização do trabalho,
normatizam os comportamentos, tornam-se objeto de permanente organização” (Ibid. p.
641) - inclusive aspectos antes circunscritos à vida familiar – definindo também os
rumos da ação política. É de todo esse “movimento” que emergiu a identidade “sem-
terra” produto deste trabalho permanente, no qual significados foram sendo
cotidianamente “negociados”, mantidos ou recriados, à medida em que se estruturaram
um conjunto de práticas sociais que deram sentido à existência daquele grupo.
Oriundos dessa geração de acampados do Rio Grande do Sul, a maioria dos
migrantes gchos que foram para o Nordeste a partir de 1988 viveu o processo de
cristalização da identidade sem-terra ocorrido no período descrito por Schmitt. Seu
trabalho, portanto, introduz a trajetória que as histórias individuais descritas no capítulo
a seguir dão conta. Em seu percurso nordestino, a maioria desses militantes cumpriu um
papel “pedagógico”, ou seja, sua atuação nesta região foi extremamente vinculado à
transmissão, tanto da metodologia”, ou práticas de luta que viviam no Sul - que
acabam funcionando como vetores da incorporação da identidade sem-terra - como do
conhecimento formal e técnico que traziam na bagagem, mesmo que não oriundo da
instrução formal. Neste sentido, o trabalho analisado a seguir serve para dar conta dessa
dimensão mais propriamente “pedagógica” da luta do MST.
4.3 A pedagogia da luta
Bem mais recente do que o trabalho de Schmitt, o livro de Caldart (2004)
também oferece pistas importantes sobre a construção da identidade “sem-terra” e de
seu habitus militante, tratando da hisria do MST a partir, o de um acampamento,
mas da formação humana em sua relação com a dinâmica de uma luta social
contemporânea(Idem, p.18), neste caso, a luta deste particular movimento social por
reforma agrária no Brasil hoje. A autora procura levantar “a hisria da formação deste
novo sujeito social” chamado “Sem Terra”, com o objetivo de retirar dela “uma
pedagogia, ou seja, um modo de produzir gente, seres humanos que assumem
coletivamente a condição de sujeitos de seu próprio destino, social e humano” (Ibid.,
107
p.18-19). Para tanto, a autora referencia-se na história da relação dos sem-terra com a
escola e a formação, que é parte importante da história do MST, que, dentro deste
movimento social, os processos de formação e educação são extremamente
valorizados
87
. Mas, além desse aspecto do MST, a autora desenvolve um raciocínio que
considera a própria luta desenvolvida pelo MST como pedagógica”, por ser um
processo social que formou um novo “sujeito social” coletivo que acabou cristalizando
algumas características culturais.
Com o foco em cima deste novo sujeito social que grifa de maneira peculiar -,
em maiúscula e não flexionado no plural
88
, Caldart propõe-se, a partir do historiador
inglês E.P.Thompson, narrar o processo de formação do “Sem Terra”, identidade dos
integrantes do MST - que ela, no entanto, hesita em classificar como “movimento
social” pois considera que é ao mesmo tempo produto e agente dessa formação,
tornando-se um sujeito educativo, ou seja, um educador que construiu uma pedagogia
através de sua trajetória de luta e de sua preocupação em associá-la a “experiências de
educação e escola”
89
. Com a reflexão voltada para a definição da pedagogia que este
movimento social vem espalhando por vários territórios, reproduzindo um particular
“jeito de ser” e “formas de lutar” pelo país, a autora acaba fazendo um levantamento da
cultura do MST, de como as suas escolhas políticas e organizacionais ajudaram a
construí-la ao longo do que define como “três grandes momentos da história do MST”.
O primeiro seria o da articulação e organização da luta pela terra para construção de um
movimento de massas de caráter nacional. O segundo seria a constituição do MST como
uma organização social dentro do movimento de massas. E o terceiro, ainda atual, seria
o momento da inserção deste movimento de massas e da organização social do MST na
luta por um novo projeto de desenvolvimento para o Brasil.
Segundo Caldart, o MST carrega uma forte dimensão de “projeto”, herdada da
história marxista das lutas sociais, pois procura criar episódios “extraordináriosque se
projetam para transformações na ordem social. Ou seja, dentro do MST se produz “uma
visão de mundo e de uma postura diante da realidade que, ao mesmo tempo em que o
pressionadas ou limitadas (Thompson, 1981, 1987, 1989 apud Caldart, 2004) pelas
condições objetivas em que acontecem (...), se projetam para além delas, a partir da
experiência dos sujeitos concretos de uma luta social e da intencionalidade política em
que essa luta é concebida e realizada”. Por outro lado, a autora enfatiza que o aspecto
“extraordinário” do MST é também produto de um cotidiano onde se rompem ou se
retrabalham certos padrões ou certas tradições herdadas por seus integrantes (Ibid., p.
39). Para pensar as escolhas históricas do MST, Caldart inspira-se em Thompson,
questionando-se:
87
Na esteira de uma tradição já existente entre os movimentos sociais do campo como a Contag, que
manteve centros de formação em rios estados, assim como da própria experiência do MEB (Movimento
de Educação de Base), vinculado à Igreja Católica e fundado em 1961.
88
Representação que a autora faz questão de apoiar teoricamente, apesar da gramática oficial dizer o
contrário, explicitando também um dos aspectos do habitus militante do MST que se dá também no plano
da gramática e da semântica de alguma palavras.
89
Como a autora não define o que considera “movimento social” e enfatiza o caráter organização” do
MST em vários momentos, me parece que a utilização do conceito “sujeito educativoé mais uma saída
associada ao enfoque disciplinar que ela adotou em seu trabalho, defendido em um curso de s-
graduação em Educação. Por outro lado, em rias análises encontradas no texto, a autora se aproxima
muito da visão construída por Melucci para tratar de movimentos sociais.
108
... até que ponto ou de que forma a experiência humana de
participação em uma luta e em uma organização social, implicada
sempre em determinadas escolhas morais (Thompson, 1989), ainda
que sempre pressionadas por determinadas condições objetivas, é
capaz de se traduzir no modo de vida ou no jeito de ser da coletividade
e das pessoas que a compõem ( Caldart, 2004, p. 40).
A autora observa que na época de determinadas decies não estava claro o
impacto que elas tiveram nas características do MST que se desenvolveram a seguir,
como é o caso da decisão de que a sigla integrasse tanto os sem-terra que lutam para ter
terra como os assentados, isto é, aqueles que já receberam seu lote e que optam por
manter-se vinculados organicamente à organizão. Essa decisão capital, entretanto,
produziu inúmeras conseqüências e, inclusive, tornaram possível a própria análise da
autora que se debruça também sobre a constituição de um setor de educação dentro da
estrutura organizativa do MST. Reunir acampados e assentados na mesma organização
tornou-se marcante porque seus desdobramentos definiram de fato o que a autora define
como “o sentido sociocultural do MST”, ou seja, “a produção histórica de um conjunto
articulado de significados que se relacionam com a formação do sem-terra brasileiro
enquanto um novo sujeito social” (Caldart, 2004, p. 30). Ou seja, enquanto “uma
coletividade que constrói sua identidade (coletiva) no processo de organização e de luta
pelos seus próprios interesses sociais” (Ibid., p. 33).
Dentro desse processo sociocultural, são identificadas algumas vivências básicas
do processo de formação do sem-terra: a ocupação da terra, o acampamento, a
organização do assentamento, o ser do MST e a ocupação da escola. Essas vivências
cotidianas, na visão de Caldart, possuem componentes educativos ou formativos
decisivos na constituição da identidade dos sem-terra do MST,
mesmo que por vezes sejam até negados nas escolhas morais
cotidianas que cada trabalhador ou trabalhadora sem-terra venha a
fazer ao longo da vida, seja na condição de acampado, assentado ou
militante da organização (Caldart, 2000, p. 96-97).
Por vivências educativas, a autora considera
ações próprias da materialidade principal da atuação do Movimento,
em uma relação direta com os momentos de sua história de luta. É
dessa materialidade que se gesta o seu sentido sociocultural e
educativo mais profundo, e que dizem respeito aos aprendizados que
integram o modo de ser Sem Terra e aos poucos, se transformam
em uma cultura que carrega em si alguns pressentimentos de futuro
(Caldart, 2000, p.165)”.
Dentre essas vivências, a ocupação de terras é, na opinião de Caldart, “a mais
rica em significados socioculturais que formam o sujeito Sem Terra", por provocar uma
ruptura fundamental com os padrões culturais hegemônicos que sacralizam a
propriedade privada, abrindo terreno para os aprendizados que se desenvolvem a partir
das demais experiências, como a do acampamento. Em sua opinião, a ocupação acaba
projetando
mudanças lentas e profundas no modo das pessoas se posicionarem
diante da realidade, do mundo. Ao provocar uma ruptura fundamental
109
com determinados padrões culturais hegemônicos, prepara terreno
para os aprendizados desdobrados das demais vivências (Ibid., p.167).
Não por acaso, a ocupação, mais conhecida hegemonicamente como “invasão”,
é a forma de luta mais polêmica e mais característica da luta do MST, ou do que alguns
autores que, como Pereira (2004), caracteriza como “processo ritual da reforma
agrária”. Para este autor, os sem-terra embarcam em um rito de passagem quando
entram na luta por terra, que é um processo tripartite que inclui: 1) a separação do
indivíduo de um de seus status sociais prévios; 2) o limite ou fase intermediária (umbral
ou liminaridade); 3) o reagrupamento do indivíduo em um novo status (Turner,
1993:516, apud Pereira, 2004: 211). Segundo Pereira, no entanto, a primeira e a
segunda fase desse “processo ritual” se daria no acampamento, momento em que os
trabalhadores rurais “saem do sistema social que os sustentava, afastando-se
voluntariamente da condição ou da situação que ocupavam nesse sistema”, ou seja,
deixam de ser assalariados, meeiros, parceiros, arrendatários, para entrar em um tempo
específico que é vivenciado nessas pequenas comunidades formadas por moradias de
lona preta. O fim deste processo, a vitória da luta, ou seja, o assentamento, seria o
momento onde se processaria a reintegração social das famílias. É nesta terceira fase
que se consuma o rito de passagem e o “neófito volta a entrar na estrutura social, e a
miúdo, porém nem sempre, num nível de status mais alto” (Turner,1993:516, apud
Pereira, 2004, p..212-213).
Embora Pereira não inclua a ocupação no rito de passagem dos sem-terra,
associando-o mais com o acampamento, a verdade é que, até a edição da medida
provisória que impede a vistoria de terras ocupadas, editada no segundo mandato do
presidente Fernando Henrique, o momento de separação do indivíduo de seu status
social prévio dava-se usualmente por meio da ocupação, essa ação coletiva, considerada
por muitos “ilegal”, “ilegítima” e, por isso, com características mais fortemente
iniciáticas, que pode ser empreendida em um latifúndio, uma propriedade irregular ou
em algum prédio público. Antes dessa MP, a reunião das famílias se dava através da
ocupação de terra. Mesmo que os sem-terra se reúnam em um acampamento antes da
ocupação, todo o processo mobilizatório, toda vida do acampamento geralmente está
mais ou menos voltada para a possibilidade desse episódio particular, que promove um
processo de conscientização, faz o sem-terra atravessar uma fronteira simbólica que o
impedia de sequer cogitar ter legitimidade para conquistar um naco de terra de tal
fazenda. A ocupação é o primeiro passo de superação do mecanismo de alienação desta
população do meio rural brasileiro que considerava imutável sua condição de
trabalhador rural “sem a terra”, assim como a lei que sustenta a privatização de grandes
extensões de terra improdutivas em sua região. Com a ocupação, associada ao
acampamento, o sem-terra desnaturaliza sua trajetória social porque encontra outras
pessoas na mesma situação e um “convite” concreto para transformá-la coletivamente.
Esta ação e os enfrentamentos que ela acarreta produzem esta nova mentalidade que
desafia a ordem constituída. Neste processo, eles encontram-se com o desejo de ter
acesso a este bem que anteriormente lhes era negado dentro de si mesmos, então
dominado pelo discurso do Outro, que sustentava a manutenção do latifúndio, vivendo,
portanto, muito distante simbolicamente de sequer considerar a possibilidade concreta
de sua realização (Castoriadis 1982, p. 124-126).
Evidentemente, como ressalta a ppria Caldart, esse processo de formação
através das vivências da luta pela terra compreende “continuidades e descontinuidades,
em um movimento que quase nunca é linear e geralmente se apresenta com múltiplos
sentidos entrecruzados” (Caldart, 2004, p. 164). É justamente no assentamento, quando
110
se processa a reintegração social das famílias sem-terra, que as tradições e vivências
anteriores a esse rito de passagem voltam com força, surgindo conflitos entre “os
elementos da cultura que traz em si pela herança de gerações, e novas vivências
socioculturais que projetam a produção de uma outra cultura (Ibid., p.191). A vida no
acampamento, portanto, mesmo que se ao longo de vários anos, é uma experiência
vivida como “extraordinária”, mesmo porque pressupõe uma instabilidade e um tipo de
socialização que desenvolve certas estratégias de adaptação que serão deixadas para trás
quando esses sem-terra o para assentamentos definitivos e geralmente voltam a ter
uma vida mais focada no atendimento de suas necessidades individuais e familiares,
muitas vezes saindo da órbita de influência do MST, até por falta de condições da
organização de acompanhar de perto a estruturação dos assentamentos.
No meu entender, não a tradição de trabalho ou da vida anterior faz os
assentados muitas vezes se desligarem do MST ou não incorporarem suas propostas.
Pesa também, de maneira profunda, a cultura hegemônica da sociedade brasileira, com
sua modernização inconclusa e seu caráter rentista, onde o assentado, como analisa
Martins,
...é um condenado a viver intensamente não os benefícios da
modernização, mas também as dilacerações que a modernização
impõe a todos aqueles que procedem da sociedade que na sua
estrutura básica é sociologicamente concebida como tradicional, que
foi e tem sido o mundo de nossas populações pobres do campo
(Martins, 2003, p. 9).
4.4 Uma identidade em perspectiva histórica
Caldart identifica alguns processos pedagógicos básicos que aparecem de
maneira mais constante e insistente na trajetória histórica e nas diversas vivências
socioculturais que foram analisadas como componentes constituintes da experiência
humana de ser um sem-terra do MST (Ibid., 2004:329). Para ela, cinco matrizes
pedagógicas presentes na atuação do MST: a da “luta social”; a da “organização
coletiva”; a da “terra”, vinculada à idéia de trabalho e produção; da “cultura”, ou “o
modo de vida produzido pelo Movimento”, e a da “história”. Neste trabalho, vou me
ater particularmente às matrizes pedagógicas da “luta social e da “história”, que
considero mais centrais.
A primeira matriz que a autora sintetiza na frase “tudo se conquista com luta e a
luta educa as pessoasé, talvez, a origem “do estado de luta permanente”, que é uma
das marcas mais impressionantes do estilo de militância do MST (Caldart, 2004, p.331).
Essa característica do habitus militante do MST produziu também uma particular visão
da educação que, inclusive, inverte em certa medida a “pedagogia do oprimidode
Paulo Freire e talvez seja uma das razões da particular eficácia do MST em termos
organizativos. Na visão de Caldart, mesmo as pedagogias que têm em vista a
transformação social são aferradas à palavra, “seja como apelo à conscientização ou
como denúncia da alienação provocada pelas condições sociais”, mas não dão lugar de
destaque para a “dimensão pedagógica da própria ação de lutar”. Nestes casos ou a
educação “é vista como preparação ou conscientização para a luta, ou como reflexo de
condicionamentos sociais que a impedem”. Em ambos os olhares, segundo a autora,
restam poucos lugares para a educação como um processo produzido pela luta, ela
mesma (Ibid., p. 327). Esta postura, parte estruturante da pedagogia do MST, abre
caminho para uma crítica que a autora faz a métodos pedagógicos, como o de Paulo
111
Freire, na medida em que são, segundo ela, “pedagogias que se colocam para os
oprimidos, os trabalhadores e os movimentos sociais, e não as pedagogias que são deles
próprios”. Em sua opinião quando a própria luta social passa a ser vista como educativa,
“necessariamente se altera o olhar sobre quem são os sujeitos educadores”.
Segundo Caldart, na pedagogia de Paulo Freire,
...o princípio educativo nem sempre pode ser interpretado como sendo
a luta mesma; ele aparece mais freqüentemente como sendo a
reflexão, enquanto encontro do oprimido consigo mesmo, que permite
a ele engajar-se nessa luta pela sua própria libertação (Caldart, 2004,
p.340 – 341).
Embora aponte que o próprio Freire reconhecia que a descoberta da opressão
não poderia ser feita em nível puramente intelectual, mas também na ação, a autora
acredita que está para ser feito um esfoo teórico e prático que leve em conta essa
dimensão propriamente pedagógica da luta em si, associada também a um empenho
auto-reflexivo que, dentro do MST, se sintetiza no tripé: “prática-teoria-prática”. Em
suma, se em Freire a reflexão leva à ação, para o MST é a ação que leva à reflexão. De
fato, ao se investigar a trajetória histórica da formação dos sem-terra, o que se percebe é
que “a radicalidade das açõesé que conformou a luta do Movimento, “exigindo uma
permanente reflexão” para sustentá-las e consolidá-las (Caldart, 2004, p.364)”. Em
suma, é uma práxis embebida na ação, não é apenas um momento intelectual:
Exatamente porque se olha para uma coletividade em movimento e
não para cada pessoa em particular, o que se não é um momento
específico de tomada de consciência, mas um processo que vai
atravessando o conjunto de vivências dos sem-terra e as constituindo
como um movimento que também é cultural, nesse sentido de ir
produzindo um modo de vida (Caldart, 2004, p.365)
Segundo Caldart (2004), a práxis do MST, que tem como fator desencadeador a
ação, ganha em reflexão com o estabelecimento de um “diálogo entre a Pedagogia e a
História”, sugerindo inclusive que a pedagogia deveria escolher a História como “uma
de suas matrizes (Ibid., p. 377). No caso do MST, Caldart aponta como matriz
preferencial aquela História contada sob o ponto de vista “dos de baixo” nos momentos
de revoluções e lutas sociais, onde provavelmente se encontrariam as pedagogias que
essas revoltas populares produziram, analisando-as como “sementeiras não somente de
idéias, mas também de valores, sentimentos, posturas humanas” (Ibid., p. 341). A meu
ver, entretanto, qualquer relato de mudança histórica tem potencial socialmente
transformador, pois instaura a noção da transitoriedade dos estados das sociedades e
coloca nas mãos de agentes humanos essas mutações.
A “pedagogia da História”, que seria a quinta matriz pedagógica do MST,
contempla uma das mais fascinantes dimensões incorporadas por aqueles que integram
o MST. Seus membros, a partir de uma “iniciação” que pode ser um curso, uma
mobilização, uma ocupação ou a entrada em um acampamento, usualmente
compartilham a sensação de se entrar em perspectiva histórica, algo como “ter a
experiência humana da historicidade em seu cotidiano”. Lograr construir essa sensação
entre seus integrantes foi resultado de uma “intencionalidade pedagógica específica”, na
visão de Caldart, exatamente porque ela é “muito pouco estimulada pelo formato
presenteísta da sociedade atual (Caldart, 2004, p. 374). Discordo, no entanto, deste
diagnóstico que a autora faz da sociedade atual porque a sensibilidade ocidental é
112
constituída intrinsecamente pelo pensamento diacnico e histórico, como observa
Cahill (1999). Segundo este autor, essa sensibilidade é a grande contribuição do Velho
Testamento, a Torah, para o ocidente moderno e dificilmente pode ser abalada pelo
hedonismo consumista da sociedade atual, pois estruturou um padrão da personalidade
dos indivíduos modernos que se vêem sempre como personagens de uma trajetória
permeada por escolhas que podem ou não mudar seu rumo
90
. A diferença entre hoje e o
passado é a relativa transitoriedade de algumas dessas escolhas.
Para Caldart, este aprendizado que leva à compreensão de que se faz parte da
história” começa no acampamento, onde, em meio à proximidade com estranhos
reunidos em uma situação particular e com um objetivo comum, forja-se uma vida
comunitária onde são construídas novas relações interpessoais, geralmente iniciadas a
partir do resgate da própria história pessoal de cada um. Quando esses acampados dão-
se conta de que seus vizinhos de barracos possuem histórias muito parecidas com a sua,
podem começar a vivenciar uma “nova chave de leitura da realidade” que os leva a se
reconhecer, segundo ela, na hisria da luta pela terra, passo decisivo para se
entenderem como parte da história de seu país, e como sujeitos da história da
humanidade como um todo (Ibid., p. 183). Para Caldart, é esse o sentimento que
motiva os militantes que saem de seus lugares de origem para ajudar a organização em
outro Estado, experiência na qual vivenciam “com bastante intensidade os conflitos
pessoais necessários para a produção desse aprendizado”(Caldart, 2004, p.207). A luta,
então, passa a tomar todas as dimensões da vida deste militante que se devota a essa
causa, sabendo que ela se mesclará com sua vida pessoal.
É elemento constitutivo desta matriz pedagógica a mística, celebrações e
encenações que se apóiam no cultivo da memória ou da história do povo e que é,
segundo Caldart, o “o tempero da luta” (Caldart, 2004, p. 208), um espo que realiza
uma “espécie de ritual de acolhida” (Ibid., p 211) para os que estão se aproximando do
90
Segundo Cahill, a Bíblia este relato da experiência religiosa dos judeus, demonstra que esse povo foi o
primeiro a romper com a vio do cosmo profundamente cíclica. Quando Abraão recebeu a revelação
divina e mudou seu destino, saindo da terra de seus antepassados para fundar uma nova tradição,
inaugurou uma nova percepção para o homem. Ao narrar esse feito singular para um homem da
Antiguidade, as Escrituras instauraram o que hoje podemos classificar de pensamento diacrônico ou
histórico, bem como estabeleceram as características da sensibilidade ocidental. Para os judeus, a história
de Abraão não é um mito. Ela reproduz um evento histórico que é registrado de forma escrita. Ela retrata
o feito real de um determinado homem que tornou-se singular em seu tempo. Mesmo que ele tenha
seguido as orientações de um Deus revelado, é uma história sobre um homem que mudou seu destino e de
seus descendentes. Esse modo de contar uma trajetória, dando-a como verdade, e tendo em vista a certeza
de uma futura redenção é, por sinal, o pano de fundo da “mística” do MST. Ela tem o mesmo papel que a
Bíblia, na verdade, a Torah, tem na formação dessas poderosas tradições religiosas monoteístas presentes
no mundo atual, com todas as potenciais conflitualidades das quais também é portadora. Para Cahil, ao
narrar o percurso singular de alguns homens singulares, a Bíblia instaurou “uma nova maneira de pensar e
vivenciar, de compreender e sentir o mundo” que hoje classificamos de cultura ocidental (Cahlil, 1999, p.
18). Esta mentalidade peculiar compartilhada pelas pessoas do mundo ocidental acabou contaminando
todas as culturas da terra, “de modo que, em um sentido surpreendentemente preciso, toda a humanidade
foi incluída, a contragosto, nesse ‘nós(Ibid. p.15-16). A própria idéia da vocação, de um destino
pessoal é uma idéia judaica, bem como a iia de que Deus está realizando seus propósitos na história e
que causará o seu fim, com a importante ressalva de que existem os profetas e estes chegam para avisar
que existem escolhas que também afetarão esse fim. É interessante notar que, segundo este autor, ao
incluir os pobres entre os justos e os ricos entre os idólatras, como fizeram muitos dos profetas bíblicos, a
própria idéia de Deus passou a ser articulada à idéia de justiça social. Afinal, esse Deus que havia
destruído sua identidade, não podia ser representado em ídolos nem exigia sacrifícios humanos requeria
uma revolução mental difícil para um povo que, como qualquer outro, pensava sobretudo em riquezas,
rebanhos e territórios. Esse sopro, ou melhor “espírito” (palavra que não tinha correlato na Antiguidade)
queria algo exótico para aquele tempo: um compromisso interno com a justiça, a misericórdia, a
humildade. Em suma, “sem justiça, o haveria Deus”. (Ibid.p. 261).
113
MST e que propicia a reatualização do elo de lealdade e de pertença ao Movimento, por
diluir as individualidades presentes nessa sensação de um todo compartilhado, muito
semelhante às vivências despertadas pelas celebrações religiosas.
Assim como o ritual religioso, a mística, segundo a autora,
é exatamente a capacidade de produzir significados para dimensões da
realidade que estão e não estão presentes, e que geralmente remetem
as pessoas ao futuro, à utopia do que ainda o é, mas que pode vir a
ser, com a perseverança e o sacrifício de cada um (Ibid., p. 210).
Caldart define a mística como “experiência de produção cultural (...), auto-
representação através dos símbolos, da arte, da imagem pública do sentido de ser Sem
Terra, ser do MST”(Ibid., p. 212). Ela ressalta que a riqueza pedagógica embutida nessa
prática comum em qualquer reunião, curso ou mobilização do MST é o fato de que ela é
produzida pelos próprios sem-terra que, assim, tornam-se sujeitos de sua própria
representação e produção cultural (Ibid. , p. 315)
91
.
Outro aspecto particularmente importante desta “pedagogia da história”, ou seja,
este cultivo da memória e da compreensão histórica, é a satisfação emocional advinda
da “sensação de se pertencer a uma tradição antiqüíssima de rebelião”, observada por
Hobsbawm (1998, p.32-3 apud Caldart, 2004, p. 371). Esse saber-se enraizado no
passado confere mais força, assim como ter consciência de que o que se vivencia hoje
também foi fruto de “escolhas” e transformações que ocorreram no passado. Esse
conhecimento promove também uma outra relação com o presente, pois as ações
decididas hoje acabam embebidas com as expectativas e desejos que se projetam no
futuro, anunciando, quem sabe, as transformações almejadas.
Enxergar cada ação ou situação particular em um movimento contínuo
(ou desconnuo) entre passado, presente e futuro, e compreendê-las
em suas relações e como parte de uma totalidade maior é uma das
dimensões fundamentais da formação de sujeitos. É esse o olhar que
ajuda a valorizar e ao mesmo tempo relativizar cada detalhe do dia-a-
dia, cada pequena conquista ou derrota, mantendo claro o horizonte
em que se referenciar para seguir lutando (Ibid., p.374-375).
Como, de fato, a maioria dos integrantes do MST vivencia mudanças
impactantes em sua vida ao ingressar na organização, seja porque conquistam um lote
de terra onde podem construir suas casas e fazer uma roça, seja por que desenvolvem
atividades como militantes e entram em contato com perspectivas, muitas vezes nunca
antes concebidas (viagens a outros estados, ao exterior, projeção social local etc), esse
estar enraizado em uma perspectiva histórica possui uma concretude cotidiana, ao
mesmo tempo em que alivia as agruras vivenciadas em momentos de poucas conquistas
91
É interessante notar, entretanto, que existe uma possibilidade cada vez maior de “especialização” de
alguns militantes nessa atividade, tendência visível nas atividades nacionais do MST que tive
oportunidade de presenciar de 2004 para cá. Se esse processo o for debatido, haverá uma espécie de
especialização e rotinização desta prática. Isso porque os mais criativos tendem a ser convocados com
mais freqüência para essa atividade, produzindo místicas” mais elaboradas que tendem a se aproximar
mais de uma encenação teatral. Especializando-se, esses militantes irão produzir místicas com encenações
menos rudimentares e, talvez, de melhor qualidade artística, mas ficará pelo caminho esse aspecto
fundamental de oportunizar a todo e qualquer sem-terra a possibilidade de ser o sujeito e produtor
principal da representação desta história que ele protagoniza.
114
simbólicas ou concretas. Por outro lado, deve-se ter claro, como mencionado
anteriormente, que a dinâmica organizacional do MST enfatiza o caráter coletivo dessa
memória. É por esta razão que a experiência de participar da organização do MST, para
Caldart, é “educadora dos sem-terra” ao mesmo tempo em que o MST é “a organização
ou a coletividade produzida pelos sem-terra em luta”. Segundo a autora, esse processo
de luta é o que produz e reproduz relações sociais que acabam “interferindo
pedagogicamente em diversas dimensões do ser humano”. Problematizando o presente e
propondo novos valores, esta luta altera comportamentos, destrói e constrói concepções,
costumes, idéias e vai configurando a identidade Sem Terra” (Caldart, 2004, p. 350).
O acento que Caldart dá ao aspecto sócio-educativo e sócio-cultural do MST tem
muitas vezes um tom laudatório que trata a experiência humana” do MST, tão
intensamente associada a uma preocupação pedagógica, como particularmente
extraordinária. Na verdade, o “estilo sem-terra” de militar e a pedagogia” que
desenvolve com suas formas de luta e em sua organização tem paralelo com o percurso
vivenciado através do engajamento em qualquer movimento social e mesmo partido
político, particularmente os de origem marxista. Para Yon (2005), esse engajamento
total na luta, ou seja, as permanentes atividades de programação e organização de lutas é
uma característica compartilhada com outras organizações da esquerda revolucionária.
No caso do MST, ela é estruturada e estruturante de seu aspecto organizacional, das
ações de massa que desenvolve e do estilo de vida pessoal de seus integrantes. Neste
aspecto, a sociabilidade militante criada pelo MST através de suas lutas e a cultura que
foi se cristalizando a partir disso tem características muito peculiares, por ser oriunda de
seus métodos de luta, como a ocupação de terra e o acampamento, mas tem elementos
comuns com a experiência vivenciada pelos jovens estudantes que se tornaram
militantes “lambertistes” na França (Yon: 2005, p.142), ou seja, com a cultura política
marginal de esquerda, o chamado “obreirismo”. Socializados pela instituição na qual se
engajam em tempo integral, esses indivíduos que decidiram integrar-se ao MST também
acabaram desenvolvendo e interiorizando um particular habitus militante que acabou
dando-lhes um lugar no mundo, muitas vezes longe da família e de seu ambiente social
de origem. A decisão de se inscrever em um destino coletivo, mesmo que seja, no caso
do MST, apenas no “tempo do acampamento”, acaba deixando marcas tanto nas práticas
políticas destes atores, como em seus comportamentos, em seus reflexos e em sua
consciência discursiva que o profundamente associados às formas de luta e
experiências vivenciadas nesse percurso.
4.5 A ascensão nacional de uma identidade
Contemporânea à tese de Caldart, a densa etnografia que Christine Chaves fez da
Marcha Nacional do Sem Terra, ocorrida em 1997, é um espo de análises profundas
sobre o MST, onde também se descortinam elementos da identidade e da cultura “sem-
terra” a partir do que se pode classificar como um evento historicamente forte da
trajetória deste movimento social, pois ele galvanizou, na época, uma enorme atenção
da sociedade brasileira (Chaves, 2000). Foi um momento, portanto, que não foi vivido
apenas na representação que o MST fazia de sua própria história. Ele foi compartilhado
pelo imaginário social brasileiro produzido pelos grandes meios de comunicação. Ao
contrário de outras lutas empreendidas pelo MST, foi difícil algum brasileiro que vivia
em centros urbanos não saber algo sobre os “sem-terra” que estavam caminhando até
Brasília naquele período. Para dar conta deste evento particular, a autora opta por tratar
esta ação coletiva expressiva que durou dois meses como um ritual de longa duração e,
como tal, passível de ser tomada como “uma forma privilegiada de interpretação dos
115
agentes que a promoveram e do público que conferiu legitimidade à ação social posta
em curso” (Chaves, 2000, p.15) Ela justifica esta escolha porque os rituais “apresentam-
se como fenômenos privilegiados de investigação, pois não apenas se constituem como
instâncias condensadas de representação da experiência social, como são capazes de
promover a sua dinamização”(Ibid., p. 15).
A partir da etnografia do evento Marcha Nacional, a autora consegue esmiuçar a
estrutura que então dava forma ao Movimento Sem Terra, o que me remeteu a Sahlins
(1990) e ao modo como ele associa estrutura e evento. A Marcha Nacional expressou a
estrutura e as formas de representação do MST que se evidenciam em diversas outras
atividades e mobilizações deste particular movimento social. O “DNA”, as marcas e
representações do MST estão presentes em todas as suas formas de atuação, sejam elas
públicas ou internas, e permitem, a partir de uma descrição densa, detectar como os
conceitos culturais deste movimento social são utilizados de forma ativa para engajar o
mundo (Sahlins, 1990:181). Assim como a “luta” é o que “forja” o sem-terra - segundo
o trabalho de Caldart (2004) - é também uma mobilização, ou melhor, um “rito
mobilizatório” - que, por sinal, alcançou um grau de repercussão até agora o igualado
por outras mobilizações do MST um locus privilegiado para um pesquisador ter
acesso a essa particular cultura política que se estruturou neste movimento social.
Quando optou por analisar, portanto, o modo em que ele construiu essa mobilização, ao
mesmo tempo em que procurou extrair dele análises acuradas sobre a estrutura que lhe
sentido, tanto internamente como no ambiente político que o origina, Chaves
conseguiu apreender aspectos importantes do MST e de seu estilo de milincia, que
servem de suporte para reflexão que faço em torno da expansão do MST para o
Nordeste, onde estas características foram desenvolvidas. vários pontos abordados
em seu trabalho que explicitam o habitus compartilhado pelos militantes deste
movimento social.
Com a Marcha Nacional de 1997, o MST conseguiu obter a atenção da opinião
pública por dois meses, enfrentando, a princípio, uma certa má-vontade não só do
governo - que vinha empreendendo uma campanha de isolamento do Movimento -
como de seus parceiros políticos ocasionais, como a CUT e o Partido dos
Trabalhadores, já que, no início daquele ano, o MST passou a declarar que suas
mobilizações não eram pela reforma agrária, mas pretendiam questionar a própria
política econômica do governo da época, presidido por Fernando Henrique Cardoso e,
em especial, lutar contra a privatização da Vale do Rio Doce, ameaçando disputar
terreno e representatividade com entidades aliadas. A Marcha Nacional marca,
portanto, os desdobramentos do III Congresso do MST, realizado em 1995, quando ele
passa a se mobilizar também em torno de questões nacionais mais abrangentes e não
pela reforma agrária.
É dentro desse contexto que a Marcha Nacional enfrentou inicialmente um
posicionamento duro do governo federal que, além de ter apostado no fracasso da
mobilização, promoveu uma contra-marcha através das viagens do então ministro da
Justiça, Nelson Jobim
92
, a diferentes estados da federação para cobrar medidas penais
contra as ações do Movimento. No entanto, na medida em que a Marcha foi evoluindo
pelas estradas do país, rumo à capital, ela foi angariando simpatias crescentes da opinião
pública, o que produziu um clímax na chegada dos marchantes a Brasília, recebidos por
cerca de 100 mil pessoas que vieram de diversas partes do país. O trabalho de Chaves,
92
Entre essas medidas penais, houve o recolhimento dos sem-terras indiciados por conta do assassinato
do PM Valdeci de Abreu Lopes no conflito da Praça da Matriz, ocorrido em 1990, e que saíram
condenados por co-autoria em um julgamento em 1992. Dado o resultado judicial controverso, estes sem-
terra foram recolhidos à prisão em 1997, depois da visita de Jobim ao Rio Grande do Sul
116
portanto, acaba descrevendo o processo de conquista de legitimidade do MST e de sua
mobilização em um contexto inicialmente desfavorável.
Mas o que é particularmente importante para este trabalho é a análise que
Chaves faz, a partir de sua experiência entre os marchantes, dos valores que nortearam a
estruturação da organização pelo país, a “herança de origem” que este movimento
social, surgido no Sul do país, espalhou para as demais regiões. A autora aponta como
um dos elementos imponderáveis desta herança “o sentido da militância como um
serviço, a valorização do ‘espírito de sacrifício’, a centralidade da mística’, bem como
a forma de luta fundada na realização de eventos dotados de forte caráter simbólico
(Chaves: 2000, p. 16).
Como se verifica empiricamente, a atuação política do MST se baseia
principalmente na criação de eventos coletivos na esfera blica. O embate público
resultante dessas ações coletivas - que muitas vezes, como é o caso das ocupões,
ficam na fronteira da legalidade - usa como moeda de troca a definição dos direitos, das
leis e da violência entre os diversos atores envolvidos com a questão agrária. Deste
modo, “as ações coletivas do MST colocam em questão o sentido do Estado de Direito e
da democracia, a definição da justiça e da violência, a constituição da ordem
institucional, das leis e da legitimidade” (Chaves: 2000, p. 14 -15).
Ao longo de sua investigação pela Marcha Nacional, Chaves tamm foi
deparando-se com momentos singulares que explicitam o “estilo de milincia” do MST
e o modo como ele se apresenta tanto hoje como naquele particular momento de sua
trajetória histórica. Uma dessas características, que foi fator de conflito com outros
grupos de mediadores no início de sua expansão pelo Nordeste (Fernandes, 2000), é o
fato de que a direção política do Movimento é prerrogativa de seus militantes. Segundo
Chaves, aos agentes pastorais e simpatizantes em geral caberia a função de assessoria.
Entretanto, a verdade é que, a partir do momento que alguém entra na estrutura do MST
- rito de passagem que pressupõe, de preferência, a longa permanência em algum
acampamento -, passa a ser um militante mesmo que, por origem social, possa ser visto
como assessor. Aliás, segundo depoimento de um dos fundadores do Movimento, no
início de sua formação, para ser da direção, tinha que ser trabalhador rural. A partir de
1988, entretanto, até por influência do maoísmo e do pressuposto de que deveria fazer
parte da direção os que efetivamente tinham “capacidade de dirigir”, esta instância do
MST passou a ser composta por integrantes outrora vistos como assessores. Em suma,
essa figura do assessor só é aplicada para o público externo, ou seja, aquele que não
desempenha “tarefas” dentro do Movimento, mesmo porque, nos últimos anos, o
crescimento do MST é tributário, em grande parte, da integração de um público urbano,
frequentemente com nível de instrução acima da média do existente no meio rural.
Hoje, para o MST, todo o trabalhador (que pode ser rural, urbano, envolvido na
indústria ou no setor de serviços, ser um intelectual ou agente pastoral) pode ser
militante e mesmo dirigente, desde que se integre a alguma insncia da organização e
tenha sob sua responsabilidade alguma tarefa específica que pode se dar em nível
regional, estadual ou nacional. O que importa, no caso do militante, é seu
“profissionalismo”, ou seja, “o sentido da milincia como um serviço” (Chaves: 2000,
p. 16). Romper com a dicotomia entre militante e assessor faz com que o MST
estabeleça seu caráter de massas”, tornando mais eficaz seu “anti-personalismo”
presente em diversos mecanismos da organização. Mesmo que não possa nem procure
abafar o carisma de alguns de seus dirigentes, o MST desenvolveu mecanismos sociais
de vigilância que neutralizam o poder dessas personalidades exuberantes. Ou elas se
adaptam, ou saem, o que geralmente implica em altos custos pessoais.
117
Neste sentido, é particularmente sensível a explicitação que a autora faz do
processo pelo qual se fortalecem os vínculos pessoais com o MST, tornando aquele
sem-terra ou simpatizante um “militante”. A profunda adesão que ele acarreta ocorre
através da realização de tarefas que são vistas como contribuição “à consecução dos
objetivos maiores do movimento” e corresponde a uma integração maior na estrutura
organizativa do MST. Assumir tarefas dentro do Movimento significa assumir
responsabilidades específicas que, em geral, são vistas como realização do potencial
específico de cada um, o que, além de fortalecer o vínculo pessoal com o MST,
promove “satisfação emocional” e um “senso de valor pessoal” que é, como acentua a
autora, “restabelecido através do engajamento e integração em uma esfera de ação
coletiva” (Chaves: 2000, p. 49-51-52). Deve-se observar que, evidentemente, algumas
tarefas dão mais projeção do que outras e podem significar ao candidato a militante uma
ascensão mais rápida dentro da estrutura organizativa do MST, como é o caso, por
exemplo, dos membros da “frente de massas”, responsáveis pela reunião de pessoas
para participar dos acampamentos. A capacidade de um militante de agregar o maior
número de famílias para os acampamentos é bastante valorizada dentro da organização,
mas em um depoimento recolhido durante a Marcha de 2005, soube que no Nordeste,
“quando um militante se destaca”, é logo incorporado ao “setor de formação”, ao
contrário do que costumava ocorrer no Rio Grande do Sul. Em suma, a participação em
um dos setores do Movimento “representa a passagem de sem-terra como condição à de
sem-terra como opção, vocação; passagem de uma identidade genérica à identidade de
um militante” e é um vínculo fundamental na constituição da identidade de um
integrante do MST (Chaves: 2000, p.52).
Chaves, assim como Caldart, observa que esta transformação pessoal que tem
como sentido final a construção de um projeto impessoal, coletivo é “facilitada pela
mística, que por diversos meios e com diferentes recursos simbólicos comunica os
valores capitais do MST: unidade com o todo, disciplina como renúncia” (Ibid., p. 53).
A centralidade da “mística”, uma reatualização do patrimônio da Igreja tradicional e da
religiosidade popular, e, portanto, do “nexo entre religião e potica” são elementos
marcantes do MST enquanto ator social. Poderia se afirmar que houve uma
secularização do rito católico, mas como o pprio MST se define como “socialista
cristão”, é difícil estabelecer esta fronteira quando se observa simplesmente os rituais.
Trocar a figura de Jesus Cristo pela Terra, pela redenção através da luta e pelos
símbolos que eles desenvolvem para criar esta identificação o altera muito o caráter
religioso de suas “celebrações políticas”. O que é interessante deste processo é perceber
onde o MST se distancia e onde ele se aproxima da religiosidade, pois, como observa
Chaves, “se com o amadurecimento da autonomia política do MST a cruz foi
substituída pela bandeira e pelo hino da Organização, o sentido de sacralidade referido à
luta que eles simbolizam foi preservado” (Chaves: 2000, p. 21)
Embora não seja mencionado por Chaves, um outro aspecto, oriundo da prática
da Igreja e reapropriado pelo MST, é o “missionarismo”. Ou seja, a experiência de
colocar a vida pessoal a serviço de uma missão, neste caso, política - com traços
religiosos marcantes - de transformar a sociedade brasileira. “Devotar a vida”, abrir mão
de projetos pessoais, ou melhor, associar o projeto pessoal ao destino de uma
“organização”, um coletivo reunido em torno de um projeto comum é o que fez com que
uma geração de militantes optasse por sair de seus estados de origem para construir a
organização do Movimento Sem Terra em outras regiões do país. Evidentemente que a
própria carga religiosa associada ao objetivo “terra” dispensaria maiores comentários
para explicar a forte e intensa adesão de militantes obtida pelo MST. São inúmeros os
relatos mitológicos acerca deste meio de produção transformado em mercadoria pelo
118
capitalismo. A própria tradição monoteísta judaico-cristã possui talvez uma das
narrativas mais poderosas acerca desta libertação coletiva e, portanto, redenção mediada
pela terra em seu livro Exodus, que costumava ser bastante invocado pelos agentes
pastorais no início da organização deste movimento social.
Essa conjugação entre política e religião é provavelmente uma das razões da
impressionante solidez ideológica desta organização que cresce meio que nas sombras
da sociedade brasileira, mas promove inovações culturais, econômicas e políticas
significativas em algumas regiões, apesar de não ter tido força para ameaçar o centro
político desta sociedade. As raízes desta vitalidade política situam-se na tradição
judaico-cristã propriamente dita, como em sua transfiguração em torno do projeto laico
da modernidade, que, em certos aspectos, foi produto da secularização desta tradição
religiosa que fundou a civilização ocidental. Chaves explica que a vinculação e o apoio
efetivo da Igreja Católica ao MST tem sua origem na revelação judaico-cristã presente
em sua origem. “Segundo essa tradição, o Deus criador cósmico manifesta-se também
na História, estabelecendo com os homens uma aliança. Essa presença de Deus na
história humana faz-se mediante uma aliança que é promessa, a promessa messiânica de
uma terra venturosa” (Chaves, 2000, p. 63).
Para Chaves, assim como para Caldart, essa religiosidade engajada é vivenciada
na “mística”, lugar onde se celebra a decisão de atender a esse chamado da história, ao
trazer à consciência de seus membros, a possibilidade da mudança.
Donde a relevância da memória da luta, da comemoração das datas
significativas e, não menos, da idéia de um sentido da História. Entre
os sem-terra a mudança é sempre concebida realizando-se pela ação
consciente da multidão, unida por um conhecimento da exploração na
luta contra injustiças históricas (Chaves, 2000, p.137).
Essa relação com a história e a historicidade faz o MST tributário tanto do que
Thomas Cahill (1999) classifica como profunda transformação da mentalidade
promovida pelo relato da revelação de Abraão e sua tradução no cristianismo, como do
Iluminismo, que secularizou essa mentalidade muitos séculos depois, enfatizando a
crença do que Chaves define como “capacidade humana de moldar a história segundo
uma vontade coletiva”, mito ocidental por excelência (Chaves, 2000, p. 83) que é
reeditado cotidianamente nas ações dos sem-terra. Esta mistura entre religiosidade e
mitologia laica também explica a razão pela qual o MST pode ser visto como um
herdeiro atuante na busca pela realização das promessas da modernidade, não pelo
que ele promove em suas ocupações, acampamentos e assentamentos, mas pelo que ele
“pensa”.
Por outro lado, o “direito” reivindicado pelo MST de ocupar terras improdutivas
ou em situação irregular – forma de ação direta que praticamente é construída e constrói
o MST, como evidenciam os livros de Fernandes (2000) e de Caldart (2004) – explicita
também o caráter moderno da luta do MST. Ou seja, ele não encarna somente o mito
ocidental por protagonizar uma luta política que visa uma transformação na história,
mas também por que o argumento que o MST se utiliza para justificar as ocupações -
“atos coletivos” visando o “interesse coletivo” por conta do “estado de necessidade” e
porque as terras, em última instância, “pertencem ao povo” – se fundamentam no
discurso político secular que fundou o moderno ocidente. Chaves observa, no entanto,
uma diferença altamente significativa entre o discurso do MST e o dos filósofos
políticos contratualistas do Iluminismo: “a ênfase no caráter coletivo e não individual
dos direitos reivindicados” (Chaves, 2000, p. 125). Não por acaso, os filósofos são a
origem do pensamento liberal, e o MST se filia à outra tradição, mescla de cristianismo
119
com a racionalidade moral-prática do projeto da modernidade que são os vários modelos
de socialismo surgidos em meio às contradições explosivas entre regulação e
emancipação” do apogeu do capitalismo liberal do século XIX (Santos, 1995, p. 241).
Para o estudioso da Bíblia, Thomas Cahill, de fato, tanto o capitalismo como o
comunismo são “filhos bastardos da Bíblia”, pois são “dois credos progressistas
moldados na bíblica” que exigem de “seus adeptos que nunca percam a no futuro,
mantendo diante de seus olhos a visão de um amanhã melhor, quer esse amanhã
contenha um produto nacional bruto maior ou um paraíso dos trabalhadores(Cahill,
1999, p. 258).
Esta mistura de tradição religiosa secularizada pela influência marxista norteia a
prática do MST. No seu bojo, gerou uma primeira geração de militantes responsável
pela construção do Movimento em Bahia, Pernambuco, Sergipe, Ceará, Alagoas, Mato
Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Maranhão, mais tarde Mato Grosso, Rio de
Janeiro e Minas Gerais. É talvez na órbita de não menos do que vinte atores-chave que o
MST estruturou-se nacionalmente. Mas, logo após esta primeira geração de militantes
nacionais, surgiu uma segunda e este processo vem reproduzindo-se desde então, sendo
difícil precisar hoje um número mais preciso deste, que vou denominar de “núcleo
militante” da organização. Fundamental dentro da coesão deste grupo é a constituição
de estruturas organizativas dinâmicas, que permitem o deslocamento e a troca constante
de idéias entre eles, balizadas também por um calendário anual de reuniões “nacionais”.
120
Capítulo 5
Trajetória e gerações de militantes do MST
Neste capítulo apresento a trajetória dos militantes de primeira e segunda
geração, onde enfoco aspectos particulares e coletivos do percurso empreendido por
estes dois grupos. Através desses relatos, percebe-se como esse habitus do MST
traduziu-se na vida concreta desses indivíduos de origens sociais e culturais semelhantes
e que deram corpo para gestar e reproduzir a identidade sem-terra.
5.1 Geração e militância no MST
Caldart explica que um dos resultados da vivência no acampamento é a
possibilidade de “abrir uma nova chave de leitura da realidade” porque ao “se
reconheceerem na história da luta pela terra” esses acampados podem dar um passo
decisivo para “se entenderem como parte da história do país e como sujeitos da história
da humanidade como um todo” (Caldart, 2004, p.183). É vivência desta historicidade
que provavelmente motiva os militantes a sair de seus lugares de origem para “ir ajudar
a organização dos sem-terra de outro lugar, de outro Estado(Caldart, 2004, p.207)
porque, ao vivenciarem a intensidade dessa experiência de vida, a luta passa a tomar
diversas dimensões da vida desse militante a ponto de mesclá-la com sua vida pessoal.
Este é, de fato, um dos fenômenos talvez mais importantes do estilo do MST de
militar, ou seja, de seu habitus militante. “Entrar” no MST pressupõe um “engajamento
total que é a base do engajamento “revolucionário e que, por sua vez, modela as
disposições dos agentes, sua representação do mundo, seus repertórios de ação e acaba
por marcar fortemente a vida de seus integrantes (Yon, 2005, p.138). Mas a disposição
de militar de forma integral em um movimento social formado por assalariados rurais e
camponeses o é, como aponta Caldart, um resultado direto da vivência no
acampamento. Há outros elementos anteriores a essa experiência e que marcam a
biografia desses militantes Pode-se dizer até que os acampamentos de sem-terras, já
descritos em inúmeras etnografias, são a estruturação de uma determinada cultura
política em que os elementos camponeses e gaúchos” se entrelaçam com o trabalho
pastoral das igrejas cristãs. Através das entrevistas feitas, observa-se que, mesmo tendo
tido pouca vivência em acampamentos, esta cultura política levou certos indivíduos a
aceitar um “convite” que, em meados dos anos 80, só era possível de ser compreendido
dentro de um particular meio social e cultural que existe no sertão
93
dos três estados
meridionais do Brasil. Embora a vivência de poucos dias em um acampamento seja
marcante, nem sempre redunda na vontade de “militar”, muito menos na de migrar para
outros estados por conta deste engajamento político. No entanto, rapidamente, cerca de
dois, três anos depois, este “convite” havia sido compreendido e aceito em outras
regiões do país por rapazes e moças “solteiros”
94
com cerca de vinte e poucos anos
93
Sertão” é uma das poucas contribuições da língua portuguesa para o léxico mundial e quer dizer, ou
seja, se refere à “interior do país”, não só à zona de clima semi-árido e de caatinga do Nordeste.
94
É importante frisar que neste grupo social, a entrada na categoria adulta parece ser alcançada através do
casamento - “amontoamento”, “amancebamento – e o nascimento dos filhos
121
O envio de jovens militantes sulistas para contribuir com a expano do MST
para os estados do Nordeste se deu continuamente. Portanto, vou usar a categoria
“geraçãopara dar conta de características diferentes que esse processo veio tomando
ao longo do tempo. Cada uma dessas gerações de militantes” (Péchu, 2001) teve uma
relação peculiar com seu engajamento, dada sua faixa etária que todos eram bem
jovens, entre 19 e 27 anos - e por vivenciarem contextos hisricos diferentes do MST,
de sua luta social, assim como da sociedade brasileira.
Tomo como ponto de partida a concepção de que há uma dialética permanente
entre história individual, institucional e contexto e que, portanto, as trajerias das 16
pessoas entrevistadas são exemplares dentro da construção da cultura política do MST,
ou mais precisamente, de seu estilo de militantismo, ou habitus militante. Em sua
reflexão sobre o engajamento individual, Fillieule (2001) sintetiza bem esta linha de
análise ao chamar atenção de que, a cada etapa da biografia de um militante, é
importante perceber como as atitudes e comportamentos atuais o determinadas pelo
passado e condicionam, por sua vez, o campo de possibilidades que estão abertas no
futuro, vinculando o engajamento individual com o ciclo de vida dessas pessoas
(Fillieule, 2001, p.201). É importante observar também que a busca pela realização
pessoal através do militantismo ao invés, por exemplo, da carreira profissional é, em si
mesma, uma escolha muito particular de indivíduos que, por terem escolhido esse
caminho, possuem características comuns entre si, mas não tão presentes em outros
mundos sociais pautados por outras lógicas, como a da promoção profissional.
Apesar do MST se caracterizar pelo incentivo constante ao deslocamento de seus
membros, em linhas gerais pode-se destacar quatro gerações de militantes na sua
trajetória
95
. Os militantes de primeira geração são aqueles que chegaram ao Nordeste,
entre 1985 e 1988, em plena vigência do I PNRA (Plano Nacional de Reforma Agrária)
durante o governo Sarney. Eles se instalaram na Bahia, em Sergipe ou em Alagoas para
criar ou implantar nesses locais a luta no modo como ela vinha se estabelecendo no Sul
do país. Alguns desses militantes demoraram para se fixar, circulando em todos os
estados nordestinos. Era praxe que todo este grupo de “militantes migrantesse reunisse
em algumas ocupações ou mobilizações do MST nos diferentes estados que, na época,
para a organização, incluíam até parte de Minas Gerais. No dizer de um desses
militantes, o Nordeste era visto então como um grande estado”. Com o passar do
tempo, o MST passou a estimular a estruturação estadual da organização,
descentralizando-a através da criação de Secretarias Estaduais e contínua
autonomização desta estrutura em relação à Secretaria Regional do MST no Nordeste,
que se localizava em Alagoas e que acabou sendo dissolvida
96
. Alguns dos militantes
95
Esse recorte de gerações foi proposto por Adelmo, um dos personagens desta pesquisa, em entrevista
realizada durante a Marcha Nacional Goiânia-Brasília realizada pelo MST em 2005. Esta categorização
também se aia no conceito de “geração militante” utilizado por Cecile Péchu. Esta autora distinguiu
três gerações de militantes que se sucederam ao longo do tempo de criação do movimento DAL (Droit au
longement) um movimento de sem-teto francês, entre os anos 1991 a 1996, cada qual com uma relação
particular com seu engajamento a esse movimento social porque suas adees ocorreram em períodos
diferentes, marcadas, em linhas gerais, pela origem política e social desses militantes, por determinadas
mobilizações, e mesmo, pela notoriedade do DAL na mídia. Assim como neste trabalho sobre duas
gerações do MST, Péchu apresentou histórias de vida de militantes cujos processos de engajamento e
modos de militância constituíam exemplos típicos das gerações analisadas.
96
Este processo de descentralização é característico da dinâmica organizacional do MST. Até para efeitos
de negocião com os governos estaduais, o Movimento buscou se estruturar estadualmente Como
explico no Capítulo 1, dentro dos estados, ele começou a se organizar regionalmente, e hoje, a partir da
chamada “nova organicidade”, procura se organizar em micro-regionais,
122
desta primeira geração que não voltaram a seu estado de origem, Santa Catarina, se
tornaram dirigentes e referências tanto nacionais como estaduais do MST.
Os militantes da segunda geração chegaram a esses estados depois que o MST
estava implantado e com assentamentos. Os deslocamentos dessa geração, que se forma
a partir de 1989 e vai até 1997, têm características que continuaram se reproduzindo no
MST nas gerações posteriores. Além de se envolverem na organização de
acampamentos e de formas de lutas que se articulam em torno de um calendário (em
geral, associado ao agrícola), cujas mobilizações são definidas pela coordenação
nacional do MST (composta por dois ou três dirigentes de cada estado, mais os
responsáveis pelos setores organizados tematicamente), estes militantes oriundos da
região Sul também passaram a ter influência na área da formação, da organização
interna dos assentamentos e na formulação das políticas a serem demandadas pelos sem-
terra desses estados. É característico dessa geração já começar a haver deslocamento de
militantes que não eram da região Sul, que se dirigiam para estados localizados em sua
mesma região de origem, como foi o caso dos que saíram do Piauí e se instalaram no
Maranhão. Alguns dos militantes da segunda geração foram deslocados para ocupar
cargos de direção, outros para contribuir com algum setor específico do MST, mas
um caso levantado por este trabalho em que o militante tomou a iniciativa de ter esta
experiência por razões pessoais. É importante observar que o deslocamento individual
de militantes “especializados” em alguma tarefa ou setor específico do MST (produção,
educação, formação, frente de massas, direitos humanos, etc.) continua a ocorrer.
Os militantes da terceira geração começaram a ir para outras regiões na forma
das “brigadas nacionais”, a partir de 96 e 97. Essas brigadas foram compostas por
militantes de vários estados, mas ainda com forte presença do Sul e sem ter
necessariamente o objetivo de se fixarem nesses locais. Organizadas pela coordenação
nacional do MST, as brigadas eram integradas por militantes encarregados de ajudar em
dificuldades “orgânicas ou políticas”, mas de forma pontual e foram formadas em um
momento de grande expansão das lutas e da visibilidade pública deste movimento
social, o que implicou em um considerável crescimento do número de acampamentos e
ocupações de terra. Embora não se procurasse promover a fixação desses militantes
nesses estados, alguns acabaram ficando e tornaram-se dirigentes, inclusive
participando na direção nacional.
A quarta geração seria composta pelas “brigadas de militantes” organizadas
atualmente. Elas têm por objetivo contribuir na formação política e na organicidade
97
das bases do MST, e esses militantes não são deslocados com perspectivas de virem a se
projetar para ocupar cargos de liderança nos estados para onde foram enviados. Uma de
suas funções é estimular a formação de núcleos de acampamentos e assentamentos do
MST, ajudando na projeção e formação de lideranças para ocuparem esses espaços. O
período de permanência nos estados é determinado e tem prazo para terminar. Mas o
MST, enquanto organização, costuma ter bastante flexibilidade para associar demandas
pessoais e organizacionais. Logo, nunca pode ser descartada a possibilidade de um
militante resolver ficar em um estado para o qual foi deslocado.
Neste trabalho, apresento a trajetória dos militantes de primeira e segunda
geração que rumaram para o Nordeste Alguns deles circularam por vários estados antes
de se fixarem definitivamente. Só dois vivem hoje no mesmo lugar para onde se
dirigiram primeiro, Sergipe e Bahia, em meados da década de 80. No caso da segunda
geração e indicando seu grau de mobilidade, três dos quatro militantes entrevistados
97
É bem provável que eles se desloquem para contribuir na implantação da “nova organicidade” que trato
na introdução da tese, pois essa nova metodologia exige uma reprodução e capilarização em maior escala
da militância do MST e nem todos os estados conseguem “produzir” tanta militância.
123
para este estudo não vivem mais nos lugares onde os encontrei na época, mas não
pude apurar as razões disso. Só é possível supor que, por terem partido tão jovens de
seus lugares de origem, são indivíduos predispostos a essas mudanças. Para apresentar
com clareza a trajetória destes militantes, vou dividir este capítulo em três partes:
Primeira geração, Segunda geração e Militantes “recortados”
98
pelo Nordeste;
5.2 Primeira geração: a militância como devoção
A decisão de enviar militantes sulistas para o Nordeste “nunca foi tomada como
uma linha política geral”, de acordo com depoimento de João Pedro Stédile
99
. Segundo
ele, “sempre foi se desenvolvendo como uma espécie de prática natural, de mútua
solidariedade” e foi motivada por uma necessidade de “acelerar o processo de
articulação nas regiões de maior contingente de sem-terra, que era o Nordeste”.
Diante dessa necessidade, os filhos de camponeses sulistas eram os candidatos
“naturais” para essa tarefa, porque, segundo Stédile, tinham mais escolaridade e,
portanto, se “projetavam”, “tinham mais facilidade em se transformar em militantes”.
Outra característica que favorecia este grupo para esta “tarefa” era o fato de serem
oriundos de famílias que detinham algum excedente econômico, pequenos proprietários
rurais que, muitas vezes, integrados em circuitos agroindustriais, haviam conseguido
acumular algum patrimônio. Além disso, frisa Stédile, esses jovens receberam grande
influência de valores da Igreja como o “missionarismo”. Segundo ele, havia tanta
disposição de “ir numa missão ajudar os outros” que “naturalmente” esses jovens se
“inscreviam”, “se ofereciam para ir”.
Desse grupo “pioneiro” de jovens militantes sulistas, que se deslocaram na
segunda metade da década de 80 para o Nordeste, cinco se fixaram nos estados da
Bahia, Sergipe, Pernambuco e Paraíba. Uma mulher que fez parte deste grupo
permanece no Rio Grande do Norte, onde é assentada, mas “saiudo MST, ou seja,
embora seja assentada, o cumpre “tarefas” definidas pelo Movimento ou ocupa
instâncias da “organização
100
.
A partir da trajetória destes membros da primeira geração, vou aprofundar as
características do habitus militante, o estilo “sem-terra de militar. Por serem os
primeiros, estes indivíduos se tornaram exemplares, estimulando outros a percorrerem
os mesmos caminhos, reproduzindo seu pado de migração militante nas gerações
seguintes.
Os traços comuns entre eles são que todos são filhos de pequenos proprietários
rurais de Santa Catarina, migraram muito jovens e tiveram algum tipo de “militância na
Igreja”, na Pastoral da Juventude ou em Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Dos
homens, três casaram-se com “companheiras”
101
do Nordeste em poucos anos,
fenômeno que veio a se repetir nas gerações seguintes. Em geral, esses parceiros
matrimoniais faziam parte da rede social, vinculada a sindicatos de trabalhadores rurais
ou Igreja, que acolheu esse “enviado” do Sul. Já a única mulher deste grupo de
pioneiros que participou deste início do MST no Nordeste e tornou-se dirigente, casou-
se e teve filho mais tarde.
98
Expressão que eu ouvi de um interlocutor, sem-terra gaúcho. Ele me explicou que era um “colono
recortado” porque tinha vivido um tempo na cidade.
99
Entrevista dada a esta pesquisadora por escrito (03/09/2006).
100
Infelizmente, não foi possível entrevistá-la para este trabalho, pois seu desengajamento do MST
poderia iluminar muitos aspectos. Espero que, algum dia, eu incorpore sua experiência a um trabalho
posterior.
101
As esposas também são militantes do MST.
124
Alguns deles cumpriram parte de seus estudos em seminários da Igreja Católica.
Dois deles, incluindo a única mulher do grupo, trocaram a carreira religiosa, para a qual
estavam se direcionando, para adotar a causa da reforma agrária, aceitando a proposta
de ir para o Nordeste “ajudar a construir” o MST nesta região.
A escolaridade dos primeiros enviados do MST no Nordeste é um fator que
inegavelmente os destacava na região para a qual foram deslocados. De acordo com
estudo realizado pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira) e divulgado em junho de 2003, se no meio rural brasileiro a taxa de
analfabetismo já era três vezes superior à da população urbana: 28,7% e 9,5%,
respectivamente, os contrastes regionais eram ainda mais acentuados. No Nordeste, o
índice era de 40,7%, alcançando 49,2% no Estado do Piauí. Enquanto isso, a região Sul
contava com 11,9% de analfabetos na área rural
102
.
Todos os membros desse grupo seguiram os estudos até, pelo menos, o segundo
grau. Jo é o único do grupo que não o completou: fez dois anos desta etapa em um
Seminário, mas a família teve muitas dificuldades de continuar pagando suas
despesas
103
. Questionado se foi para o seminário para estudar ou para ser padre, disse:
“as duas coisas”. Ao voltar a estudar para terminar o 3º ano e obter o diploma do
secundário, desistiu de concluí-lo para participar de curso oferecido pelo MST em São
Paulo. “Quando eu ia terminar o segundo grau, em novembro de 86, apareceu um curso
do Movimento, que eu achei muito importante e tal, e aí abandonei”.
José refere-se ao I Curso Nacional de Jovens Monitores, já mencionado no
Capítulo 3, onde, segundo seu depoimento, teve acesso à introdução de filosofia com
modos de produção, conteúdo que o “interessou muito”, fazendo-o decidir “ficar
mesmo no Movimento”. Quando viajou para o Sergipe, em fevereiro de 87, ele, que até
tinha uma noiva em vista em seu estado, pretendia voltar para Santa Catarina seis meses
depois, mas por conta de problemas com seu pai
104
já tinha definido que o voltaria
mais para casa. Iria para algum acampamento ou alojamento do MST em seu estado.
Apesar das dificuldades iniciais e da completa falta de recursos enfrentada nos
primeiros meses, nunca mais voltou a viver em Santa Catarina, permanecendo no
Nordeste, onde constituiu família e é hoje assentado.
Ao mencionar que o contato com noções de marxismo o fez optar por um
engajamento mais integral com o MST, José, que viajou para Sergipe aos 19 anos,
aponta um dos elementos ideológicos que explicam o comprometimento com este
movimento social. Isto evidentemente o se dá por acaso, pois a força mobilizatória de
algumas noções de marxismo no mundo, durante o século XX, foi a raiz de várias
revoluções sociais e lutas anti-coloniais. É interessante observar que, ao contrário da
maioria de seus pares existentes no Brasil, o MST manteve o marxismo em alta em um
período de franco declínio do poder de atração desta ideologia, haja visto o
desmoronamento do “socialismo realmente existente” no Leste Europeu. Até hoje, na
visão de dirigentes do MST, a reforma agrária não é o estratégico”, como expressa
Artur, para explicar o atual engajamento do MST na formação técnica e acadêmica de
seus quadros:
102
Embora sejam relativamente antigos, esses dados dão um panorama aproximado do contexto
educacional vivido pelos militantes do MST entrevistados para este trabalho.
103
Faz parte da estratégia de reprodução social das famílias camponesas do interior dos estados do Sul
enviar um dos filhos para estudar em um Seminário.
104
Em famílias em que a autoridade paterna é muito forte, como é o caso dos camponeses do sul do país,
o questionamento da autoridade do pai gerava, costumeiramente, a saída do filho da casa da família.
125
A luta pela reforma agrária é tática para nós fazermos um processo de
luta e de construção da revolução. Então, se tu quiser construir a
revolução, tu não constrói apenas com quadros formados política
ideologicamente sem nenhum outro conhecimento geral da sociedade.
O abandono do curso de Teologia no último semestre também é presente na
trajetória de Paulo. Ele concluiria a graduação no primeiro semestre de 85, mas acabou
interrompendo-a ao engajar-se na preparação das 18 ocupações simultâneas realizadas
em 25 de maio de 85, na rego de Abelardo Luz, Santa Catarina. Em seu depoimento,
conta que pretendia recomeçar no segundo semestre, mas acabou indo para a Bahia,
com a idéia de ficar lá uns dois ou três meses e retornar para seu estado, onde terminaria
seu curso no primeiro semestre do ano seguinte. Entretanto, na volta, ao participar do I
Encontro Nacional do MST, realizado no início de 86, recebeu uma tarefa que não pôde
recusar:
Nesse encontro surgiu a necessidade, a dirão achou importante que
tivesse alguém para acompanhar o Nordeste. havia vários germes
de Movimento, áreas de conflito, pastorais, sindicatos que pediam
ajuda. Na época, tinha uma pessoa em São Paulo, que fazia essa
ponte, pela CPT ainda, né? Então houve essa, de certa forma, uma
imposição: você fica em São Paulo e viaja pelo Nordeste. Fica na
Secretaria Nacional pra dar ajuda
105
.
Filha de pequenos proprietários rurais, com militância na Igreja e uma formação
educacional média elevada em relão à realidade do meio rural brasileiro como um
todo, esta geração foi a que, na verdade, deu os contornos do habitus militante” do
MST. As gerações seguintes tiveram esse grupo como modelo, não pelo exemplo do
que realizaram, como também por terem demonstrado as perspectivas que eram abertas
para quem se aventurasse a migrar para outros estados pelo MST. Afinal, todos eles
tornaram-se dirigentes importantes da organização.
Uma característica comum desta geração de “pioneiros” é pertencerem a famílias
de católicos praticantes e serem eles próprios freqüentadores da Igreja e de atividades
comunitárias. Alguns, como Joana e Artur, Paulo e Adelmo já se conheciam antes,
participavam de uma rede de relações e de solidariedade pré-existente em suas
comunidades, da Igreja e, sobretudo, em torno da liderança do Bispo D. José Gomes, de
Chapecó. Portanto, embora tenham ido em períodos distintos e tivessem chegado em
lugares diferentes, constituíram um núcleo de militantes que vivia separadamente no
Nordeste, mas que se reunia periodicamente. Sua milincia, em suma, se baseou e se
estruturou a partir de relações sociais e de solidariedade pré-existentes, de uma
considerável densidade social. A importância dessas redes para os movimentos sociais
também foi apontada por Oberschall em um estudo em que ele demonstra que o sucesso
do nazismo na Alemanha não se deve ao fato de este país ter se tornado uma sociedade
atomizada pela crise de 29, mas sim porque o movimento nazista conseguiu captar parte
das densas redes associativistas, religiosas e profissionais que se espalhavam pelo país
(Obershall apud Neveu, 2005, p.54).
105
Não é tema desse estudo analisar o modo como se tomam decisões dentro do MST. Mas um elemento
sobre isso foi dado por Stédile, em seu discurso na fundação da Escola Nacional do MST, em 2005. Na
ocasião, provavelmente respondendo a questões levantadas por membros de diversos movimentos sociais
oriundos de diversas partes do mundo, convidados para o evento, ele disse que, no MST, as decisões eram
tomadas por consenso. Se não houver consenso, deixa-se a questão de lado por um tempo até haver
consenso.
126
Artur, natural de um município do norte do estado de Santa Catarina, era vizinho
de Joana que, na época, se preparava para ser freira. “Praticamente nós tiramos ela do
convento pra organizar o Movimento”, conta ele. Ela justifica sua opção de se integrar
ao MST e aceitar o “convite” para ir para o Nordeste por ter recebido dos pais “uma
educação de que tem que ajudar os pobres, tem que estar com os pobres”. Tanto ela,
como os quatro irmãos mais velhos achavam que o “caminho” para “ajudar as pessoas
pobres era estudando para religiosa ou padre”. Ainda noviça, Joana abandonou a
carreira religiosa por que suas superioras não permitiram sua participação em uma
segunda atividade da luta pela terra naquele ano, a “Romaria da Terra”. Foi justamente
essa perspectiva de se tornar freira que fez com que sua mãe, meio desgostosa, mas
“muito religiosa”, lhe permitisse ir para o Nordeste aos 19 anos: “Eu tinha o argumento
de que se fosse religiosa também não estaria em casa. Com certeza, se tivesse sido
religiosa, tinha ido para a África. Era um sonho.”
Outro produto de sua formação católica e do pertencimento a famílias
praticantes é o “estar à disposição da organização”, ou melhor, o seu devotamento, um
quase esquecer de si, de seus interesses pessoais imediatos para interromperem os
estudos, carreiras religiosas, boas perspectivas profissionais e mesmo de acumular
patrimônio em sua região de origem, para migrar para outra região, onde assumiram a
representação desse novo movimento social. Este aspecto, “a vida pessoal que ficou”
não foi pensada na época, mas, atualmente, na meia idade, coloca novas questões
para Artur:
Era agricultor que tinha cursado um curso superior, ? E quem sabe,
podia trabalhar, dar aula durante um período, na roça num outro,
né? Tinha já o meu carro, a minha casa. Abandonei tudo. E hoje, estar
aqui não tem nada. Então a perspectiva de vida pro futuro a gente o
sabe, né?
Essa preocupação com o futuro, com a “aposentadoria”, tende a tornar-se cada
vez mais presente na cabeça desta geração, na medida em que, por terem se dedicado à
militância, deixaram de lado preocupões em torno da acumulação de algum
patrimônio pessoal que possam legar aos filhos que, ao crescerem, também passam a
enfrentar os dilemas de sua reprodução social. De qualquer modo, apesar da condição
econômica talvez relativamente inferior em relação à sua posição social e ao que
poderiam ter tido em seus locais de origem, um dirigente do MST tem sempre um carro
à sua disposição e uma casa. Pode sofrer periodicamente com falta ou atraso da “ajuda
de custo”, mas muitos contam com a “estrutura” obtida em seus assentamentos e mesmo
da organização para “segurar as pontas” em tempos de dificuldades econômicas da
organização. Aliás, fazia parte, do que chamo de “teste de disposição militante”, nos
estados, aprender a lidar com essas agruras econômicas periódicas. Se, no início da
organização, os estados podiam dispor de alguma ajuda econômica da Secretaria
Nacional, fica em geral a cargo de cada um deles obter recursos para manter suas
estruturas burocráticas e suas mobilizações. Existem, portanto, os estados mais “ricos”,
que recebem bastante contribuão dos assentados e conseguem emplacar projetos com
agências de financiamentos e mesmo com o Estado, e os chamados mais “pobrezinhos”,
que enfrentam constantes dificuldades econômicas para manterem seus militantes e suas
atividades e, portanto, requerem uma considerável dose de despreendimento.
É importante observar, entretanto, que um dos principais benefícios da
representação profissionalizada foi obtido plenamente por esta geração. Como observa
Maresca (1982, p.97), trata-se da extensão do capital social, ou seja, o aumento da
notoriedade individual e da rede de relações, as oportunidades de encontrar com
127
representantes de outros ambientes sociais, com “personalidades”, o que constitui um
capital social importante tanto em termos políticos, para a organização que representa,
quanto em termos individuais e mesmo familiares. Este reconhecimento público, a
estima, a admiração e o prestígio, sobretudo, dentro do MST, onde ocupam postos na
direção do movimento, constituem uma gratificação importante, uma retribuição nada
negligenciável, e, talvez, fundamental, que pleno sentido a esse devotamento
militante, a quem engajou sua vida na construção de um movimento social. Além disso,
como sublinha Gaxie (1977), a ligação com uma causa e a satisfação de defender suas
idéias são mecanismos de “remuneração simbólica” da atividade política. Elas
promovem grande satisfação emocional e, em si mesmas, são mecanismos-chaves do
funcionamento das organizações de massa. A camaradagem, a solidariedade, a
comunidade de gostos e sentimentos experimentadas nesses grupos muitas vezes
também desembocam em ganhos individuais objetivos, tais como, por exemplo, ajuda
financeira, carro, moradia e viagens aos quais esses militantes têm acesso ao
participarem destes movimentos, em geral não almejados conscientemente, mas que, no
final das contas, justificam a durabilidade deste engajamento.
Outro traço comum entre os membros dessa geração é que praticamente todos se
utilizam em algum momento da expressão “receber a tarefa”, “vir com a tarefa”,
“convitepara justificar seu despreendimento e sua decisão “de ajudar a construir o
MST no Nordeste”. Entretanto é interessante investigar como esse despreendimento
pessoal foi gerado. É essa disposição que gera o “missionarismo” que o MST herdou da
igreja cristã. A partir de Norbert Elias (1991), é possível afirmar que esses indivíduos,
oriundos de uma rede de relações humanas que existiam antes deles, se inscreveram em
um nova rede de relações que eles contribuíram para formar, no caso, a rede do MST. O
campo de escolhas possíveis destes indivíduos era oriundo de sua capacidade de agir
sobre essa rede de interdependências na qual estavam inscritos, marcada por suas
origens sociais, culturais e seu grande envolvimento pré-existente com a Igreja e as
pastorais sociais. O MST que estes jovens ajudaram a construir foi gerado, portanto,
com estas marcas de nascença indeléveis, que explicam também a durabilidade do
engajamento verificado entre os militantes deste movimento social. Afinal, militar no
Movimento Sem Terra correspondeu a anseios e desejos definidos no ambiente social
de origem desses militantes como sendo as melhores aspirações possíveis entre seus
pares. Nem todos optaram por este percurso, mas os que optaram foram reconhecidos
socialmente por isso
106
.
Uma hipótese sobre esse devotamentoinspira-se na análise que Pudal (1989)
faz dos militantes do Partido Comunista Frans, classificados por ele de
“intermediários culturais” especializados na gestão e formação de “profanos”, e
portanto, com um papel muito próximo de figuras com as quais ele é raramente
associado como os padres e professores do meio rural (Pudal, 1989, p.16-17). No caso
do MST, ao contrário do PCF, havia uma estreita ligação com a Igreja e, portanto,
menos competição com estes mediadores, com quem os militantes comunistas franceses
disputavam corações e mentes. De qualquer modo, os “intelectuais orgânicos” do MST
se afastaram, criando autonomia frente à Igreja. Mas, como intermediários culturais,
mantiveram características muito comuns com a atuação de padres e agentes pastorais.
Afinal, eles passaram a pertencer a uma organização que, desde o início, deu muito
valor à formação dos “não-iniciados”, ou seja, à formação ideológica, educacional,
106
É interessante perceber que esses pequenos agricultores que construíram o MST fazem parte da mesma
geração de agricultores que desbravouo Oeste baiano e o Mato Grosso também a partir da década de
80. Ambos os grupos constituíram los do contexto que marca a agricultura no Brasil hoje.
128
técnica e mais recentemente, acadêmica, de seus membros. A autoridade intelectual
destes militantes era tributária, em parte, dos estudos feitos em instituições religiosas,
mas foi se tornando cada vez mais dependente de seu pertencimento ao MST, que pode
ser considerado, assim como a Igreja, nos termos de Pudal, uma instituição de
formação de quadros e de gestão das classes dominadas”. Esse aspecto particular se
depreende do depoimento de Joana:
Se eu estivesse no Nordeste e não estivesse no MST, eu não teria a
formação política que tenho. o teria conhecido as diferentes
realidades que elas formam. Não teria a oportunidade de conhecer
outros países, outros movimentos sociais. Então, eu estando no
Nordeste ou estando em outro lugar, mas estando no MST é que me
fez mudar. (Entrevista concedida em João Pessoa, Maio de 2005).
Neste sentido, serem os representante do MST nestes estados, tornarem-se uma
liderança “muito forte” é produto de um duplo movimento, como observa Artur: “A
gente foi se constituindo. O Movimento também. A gente foi estudando e crescendo
com o Movimento”.
Outra hipótese que pode explicar esse devotamento militante é que, quando
deixaram de lado uma trajetória de reprodução social previsível em sua região para
receber a “tarefa” de se aventurarem pelo Nordeste, esses jovens militantes
provavelmente sentiram-se privilegiados por terem sido eleitos para servir este
movimento social, expressando gratidão pelo MST, fenômeno que Pudal (1989)
reconheceu entre os quadros do PCF frans. Embora os membros dessa geração não
expressem esse sentimento nas entrevistas, ao contrário dos da segunda geração, o relato
do modo como “levantaram a mão no curso de Jovens Monitores em 1985 (vide
Capítulo 3) ilustra uma aparente naturalidade em uma escolha que esconde, na verdade,
todo um arcabouço de valores e disposições tributários tanto de sua formação católica,
como do momento de vida em que estavam. Afinal, a militância é uma escolha de como
viver a juventude e decorre no período que geralmente transcorre entre os 18 e os 27
anos. Neste período, os jovens geralmente estão em busca de seu lugar no mundo o que
implica também escolhas matrimoniais. Já não “cabem” na casa dos pais e possuem um
leque de possibilidades abertas, que estão de acordo com a estrutura e origem familiar,
mas também são determinadas por escolhas e atitudes individualmente tomadas neste
contexto familiar, cultural e social. Como observa Yon, “as propriedades sociais dos
jovens escolarizados facilitam sua identificação com o papel de revolucionário
profissional, militante em tempo total próprio ao modelo leninista de partido de
vanguarda” (2005, p.146). o por acaso, estas teses estavam em franca popularização
nos cursos de militantes do MST deste período.
Artur conta que a ida para a Bahia já vinha sendo trabalhada em suas atividades
junto à Igreja, em Santa Catarina, onde era diácono. havia três dioceses que tinham
como “tarefa missionária” apoiar as Igrejas da Bahia. Assim como ele, vários
catarinenses leigos, seminaristas, freiras e padres haviam percorrido esse caminho.
Se falava muito nessa questão da Bahia. Se estudava a Bahia, na
Igreja. Essa necessidade de nós vir fazer trabalho leigo na Bahia.
Então, na verdade, a gente tinha o conhecimento. Então a gente ali
entendeu de fato a grande necessidade nossa, a grande tarefa nossa,
missionária aí. Aproveitamos muito o trabalho que a Igreja tinha,
principalmente em Itamaraju, os franciscanos, os capuchinhos. Tinha
também um trabalho da oposição sindical, que nós utilizamos. Nós
tínhamos uma grande tarefa pela frente, missionária, que era de salvar
129
daquela situação de miséria. E ali tava muito expcito a contradição
entre o sem-terra e o latifúndio.
Ele conta que em Santa Catarina, mesmo que existissem muitos latifúndios, estes
coexistiam com as pequenas propriedades familiares. A pobreza, portanto, o era tão
aguda, discrepante. Na Bahia, o contraste social era, em sua visão, muito mais forte.
“De um lado eucalipto, cacau, boi”, grandes propriedades sub-utilizadas; e, do outro,
“gente nas ponta de rua”, um “povo desanimado”. Artur atribui justamente à esta
presença marcante de padres e agentes pastorais sulistas no Nordeste o fato de eles
terem sido rapidamente bem aceitos pelo povo. Mal chegaram e foram direto para o
“trabalho de base”.
Eu cheguei em junho, e na primeira ocupação (setembro) nós
viramos, digamos, liderança, referência. Também o povo tá
acostumado com padre, a maioria da Igreja é italiano, né? Fala
enrolado. Então, de qualquer forma, isso até ajudou porque tinha
aquela credibilidade da Igreja. Olha o padre falando enrolado aí, né?
Por serem depoimentos dados 20 anos depois, com os olhos do presente e com
perspectiva histórica sobre as escolhas feitas ao longo de sua trajetória de vida, é
importante pensar em um possível distanciamento desses relatos. Afinal, a memória
individual acessada nestes depoimentos tem como suporte o grupo social ao qual eles
pertencem e, portanto, destaca no passado aquilo que permanece vivo em sua
consciência e que, por sua vez, está devidamente mediado com as vivências e
preocupações atuais (Halbawchs, 1990). Aquilo que os entrevistados apontam como
“imposição”, “receber uma tarefa”, “convite” para ir para o Nordeste de algum modo
escamoteia a intensa paixão, que geralmente acompanha o engajamento ao MST
107
e
que, depois de tantos anos de militância, na qual a vida pessoal se mesclou tão
intensamente com a vida da organização, pode não estar mais tão presente na memória
dos entrevistados. É como um casamento em que os anos fazem desbotar a paixão
inicial que deu sentido àquela união. Rotiniza-se. O amor, até pode permanecer, mas já
mediado por todos os dissabores, decepções, conflitos enfrentados nesta jornada. No
entanto, a vida pode perder todo o sentido com o rompimento. O “custo da
permanência” parece menor do que o “custo da saída”, visto que significa a ruptura de
um “engajamento fusional total” (Pudal, 2003, p.158) que pode ser determinado por um
evento ou por uma mudança de percepção do indivíduo que, em geral, provoca um luto
bastante difícil, como ocorre geralmente com padres e freiras quando deixam a vida
religiosa (Ibid., p.156).
O estar cotidianamente disponível às necessidades do Movimento, este sentido
de “devoção” a essa causa também era vivido pelos dirigentes agrícolas franceses
oriundos da JAC (Jeunesse Agricole Catholique). Como descreve Maresca (1983), estes
líderes do campesinato “ricofrancês, invocavam sua natureza”, sua personalidade e
usavam metáforas médicas como “vírus” para explicar a importância que davam à sua
vida pública, ao seu engajamento. Estes dirigentes, responsáveis pela intensa
107
No início dos anos 90, escutava frequentemente que tinha sido “contaminada pelo vírus” do MST,
quando observavam minha disposição em assumir alguma tarefa concreta que me integrasse mais à vida
do Movimento. Em geral, no início, o convite para tarefas” não é explícito. O Movimento tem que
organizar, digamos, uma mobilização, um encontro e como você espor perto, acaba encontrando um
jeito de “ajudar” em alguma coisa. É uma dinâmica constante. Naquela época, na medida em que ia me
tornando mais confiável, foram aumentando minhas responsabilidades. Mas eu procurava o tempo todo
encontrar uma forma de me tornar útil e aceita pela organização
130
modernização da agricultura naquele país, compartilhavam curiosamente de alguns
valores semelhantes aos dos militantes do MST. No ambiente da JAC, que guardadas as
expressivas distâncias sociais, políticas e geracionais, pode ser considerada a Pastoral da
Juventude francesa, trabalhava-se também com o método “ver, julgar e agir”, da Igreja
Católica, e se valorizava profundamente o “espírito de serviço”. Para Maresca, esta
disposição particular é provavelmente o produto de um trabalho de inculcação efetuado
durante a infância, sobretudo na falia e em escolas privadas católicas. No caso
brasileiro, este “espírito de serviço” foi transmitido por famílias e comunidades rurais
onde a religião era onipresente. É importante ressaltar que, em geral, depois da
formação primária feita em escolas locais, a única alternativa de garantir a continuação
dos estudos dos filhos desses camponeses eram os seminários católicos.
A ideologia judaico-cristã do “chamado” e dos “eleitos” justifica em grande
parte a sucessão de solicitações e serviços prontamente atendidos por estes jovens
militantes que, ao optarem por este caminho sem volta, confirmaram seu pertencimento
a um “povo eleito” para construir um movimento social que representava os mais
pobres entre os pobres do campo: os sem-terra.
Um ingrediente poderoso deste engajamento e despreendimento foi, sem dúvida,
o “sonho”, como recorda José: “Nós tinha um sonho muito grande de mudança, de que
as coisas iam acontecer mais rápido, né? No Brasil, então havia toda uma expectativa.
Então eu tava muito à disposição. Vai pra lá, vem pra cá...”
Ele conta que, nesta época, ele não estava interessado em “ter nada em lugar
nenhum”. Seu projeto era ficar sempre disponível para “viajar” pela organização,
quando fosse necesrio, como fez quando passou cerca de dois anos no Mato Grosso
do Sul: “Aonde chegava, o Movimento viabilizava um fogão, uma geladeira, um
local de morar e pronto. Saía de lá, ficava pra alguém, ia pra outro canto e assim ia.
Então era o que eu mais gostava.”
José confessa que se fosse para ele decidir, teria ficado naquele estado e não
voltado para Sergipe, pois “fez muita amizade” e vinha até fazendo uma discussão
com um grupo para serem assentados e construírem uma cooperativa. “Mas aí, quando
decidiu, voltei”
108
. Novamente vemos como este “engajamento total”, fundamento do
compromisso “revolucionário”, modelava as disposições destes militantes e as
representações que eles faziam das condições políticas vividas naquele momento:
Nós era novo, não tinha muito conhecimento da realidade, da história
do Brasil, das mudanças. Nós tava muito empolgado com uma
possibilidade de revolução, de mudança no Brasil. Havia todo aquele
clima a nível internacional ainda. Tinha um clima: socialismo,
capitalismo, da força que tinha a questão socialista. Tinha a questão da
Nicarágua que a gente tinha uma simpatia muito grande. Então havia
toda uma expectativa. E tinha a questão do próprio PT, ? O PT era
forte, continuava crescendo e com possibilidade de mudança. A gente
acreditava na época. Quer dizer, a eleição de 89 foi a eleição bonita,
ainda foi bonita, forte, de empolgar a militância.
Essa necessidade de “acelerar” as lutas no Nordeste, a sensação de que as
mudanças estavam para acontecer, esse entrar em perspectiva histórica é um traço muito
marcante do “estilo MST de militar”. Ele marcava os repertórios de ação, as escolhas
políticas, as formas organizativas, os modos de sociabilidade e a vida pessoal destes
108
José foi chamado a voltar por conta de crises internas do MST no Sergipe, onde havia risco de
dissidência ou divisão
131
militantes. Deste modo, também estruturava o MST, gerando características do que ele
veio a desenvolver a partir daí. Hoje, mais maduros, com mais conhecimento da
“realidade, da história do Brasile da decepção com a política de reforma agrária do
governo Lula, esses militantes ponderam em cima de uma realidade meia sem
perspectiva a médio prazo”. De qualquer modo, olhando os momentos iniciais do MST
e o fato de terem tomado decisões “questionadas pelas assessorias, pelos intelectuais”,
José deixa transparecer o que talvez seja o aspecto imponderável das crenças que
tornam aspirações realidades:
Eu me lembro que, na região Nordeste, em todo encontro, você via a
conjuntura sempre ruim, difícil de fazer. Todas as decisões nós
tomava sozinho. Então eu tamm vejo a nível de realidade hoje que
depende muito de decisões, tem que ter organização, mobilização, mas
tem que ter decisões que correm às vezes o risco, né? Tem que arriscar
às vezes, mas arriscar e fazer. As coisas só mudam se fazer.
5.3 Segunda geração: os militantes especializados
Os militantes do MST enviados para o Nordeste podem ser vistos, de acordo
com Pudal (1989), como “intermediários culturais” do MST, especializados na “gestão
e na formação de classes dominadas”. Ou seja, são intelectuais orgânicos (Gramsci,
1978) que, assim como os padres, detêm uma autoridade de saber, no caso, uma
“metodologia” que é dependente da instituição a qual pertencem. O enraizamento do
MST nesses locais deveu-se a uma dinâmica baseada no “trabalho de base”, na
multiplicação de ocupações de terra e acampamentos, à formação ideológica e à
projeção política de lideranças locais. Esse processo, portanto, corresponde a uma
socialização de um tipo muito particular que se concomitante a um trabalho
simbólico de imposição de uma crença identitária (Pudal, 1989, p.29).
A cada ocupação, a tarefa dos militantes sulistas era formar militantes, atraindo
trabalhadores acampados para engajar-se na luta e ajudar a organizar mais famílias para
criar novos acampamentos e ocupações de terra. A projeção de lideranças era
fundamental para a construção de um movimento “autônomo e não um movimento
ligado à a, b ou c”, explica José. “Para construir essa autonomia, nós teria que ter
lideranças e gente que preparasse novas lideranças, uma nova metodologia. Um trabalho
para, vamos dizer, sair da dependência da igreja ou do sindicato”.
As próprias “tecnologias” de formação do MST, portanto, visavam traçar
fronteiras e se dotar de signos distintivos das instituições que os precederam nas regiões
para a quais eles se transferiram, trabalho simbólico importante para que os novos
integrantes desse movimento social se reconhecessem como grupo e se tomassem como
diferentes dos outros, instituindo um dentroe “um fora” cada vez mais distintivo na
medida em que o próprio movimento social ia se objetivando (Pudal, 1989).
Apesar desse esforço para preparar novas lideranças, o MST continuou enviando
militantes para o Nordeste. Seu objetivo era também ter gente preparada para tocar
setores específicos, como os de “Formaçãoe de “Produção”, ou regiões ou estados
onde ainda não havia acampamentos do MST. Neste sentido, ele desenvolveu várias
atividades como uma espécie de curso, chamado FIPs (Formação Integrada com a
Produção), em que esses militantes moravam e trabalhavam em algum assentamento
nordestino. Durante esse período, o turno em que o assentado tinha que deixar seu
trabalho para ir para a aula era compensado pelo fato de que o militante que vinha de
fora e morava no assentamento também tinha a tarefa de trabalhar nas roças dessas
132
famílias, dando também orientações técnicas para as experiências de produção
desenvolvidas na área.
A partir de documentos do pprio movimento social, Brenneisen (2000)
descreve que os objetivos econômicos do MST nessa época eram organizar a produção
e a comercialização no interior dos assentamentos através da cooperação agrícola e do
gerenciamento da produção nos moldes de uma empresa econômica moderna, com
divisão de trabalho, produção de excedentes e desenvolvimento da agroindustrialização
visando, deste modo, viabilizar economicamente as áreas reformadas. Mas o
desenvolvimento do cooperativismo tinha também objetivos sociais e orgânicos, pois
ele contribuía, na visão do MST, para transformar a luta econômica em luta política
ideológica” (Cf. MST, 1991 p. 41 Brenneisen, 2000, p. 71), através da formação e
capacitação de quadros para o conjunto da luta dos trabalhadores. Com as cooperativas,
os dirigentes do MST pretendiam consolidar sua base social, mudar a “ideologia do
camponês”, desenvolvendo consciência social e uma nova visão de sociedade, obter
uma retaguarda econômica para a organização e liberar quadros para atividades políticas
(Ibid.p. 71). É interessante observar que alguns militantes enviados para o Nordeste, a
partir do início dos anos 90, para ajudar a implantar experiências cooperativas na região,
retornaram para seus estados de origem justamente por fazerem parte de grupos de
acampados que haviam decidido formar cooperativas, então em plena e delicada fase de
estruturação interna.
Neste estudo, trabalho com a trajetória de quatro militantes que viviam
alguns anos no Nordeste no período em que foi feita a pesquisa. É interessante observar
que fora Valter, os demais tomaram contato com o MST já através de relações
familiares, irmãos ou irmãs que foram acampar e hoje estão assentados. Qualquer
categorização pode ter suas falhas, mas resolvi agrupar essas trajetórias particulares
nesta chamada “segunda geração” porque a maioria desses militantes deslocou-se de
modo individual para o Nordeste e tiveram seu período de formação na época do
extremo silenciamento e repressão, ocorrido durante o Governo Collor, que produziu
uma geração marcante de militantes do MST do Rio Grande do Sul, hoje espalhados em
vários estados do país. o por acaso, somente Valter, que nasceu no Rio Grande do
Sul, é oriundo do MST de Santa Catarina. Os demais são do MST gaúcho. Ao contrário
dos “pioneiros” da “primeira geração”, estes militantes não ocupavam as mais altas
instâncias do MST. São quadros intermediários
109
.
O caminhoneiro
Deslocado para trabalhar no setor de produção do MST na Bahia, Valter saiu de
Santa Catarina em 1993 e foi para a Bahia, onde ficou dez anos. Quando me concedeu
sua entrevista, estava em Sergipe, onde ficou até 2006. De lá foi para o Mato Grosso do
Sul. A última informação que tive é que estava em Santa Catarina. Nascido no Alto
Uruguai, no Rio Grande do Sul, começou na luta pela terra neste estado, para onde
mudou com a família quando tinha 14 anos. Sua mãe era viúva do segundo casamento
de seu pai e como só ficou com 5 hectares da propriedade do marido, teve que se mudar
109
É importante observar que esta questão de “cargos” nem sempre é importante dentro do MST. Alguns
dirigentes podem o estar ocupando as instâncias mais altas, mas continuam tendo grande peso nas
decisões e são referências fundamentais. Sua trajetória dentro da organização lhes confere essa
legitimidade.
133
para o estado vizinho, com os cinco filhos, para viver perto dos irmãos, onde conseguiu
comprar uma área de 7 hectares.
Diante desse quadro, Valter começou a se questionar: “Como é que eu vou
enfrentar a vida? Ter uma família? Não tinha condições”. Em fins da década de 70 e 80,
Valter começou a participar dos cursos bíblicos oferecidos pelo Pastor Lobo, da Igreja
Luterana: “A gente começou a adquirir consciência política. Ele trabalhava justamente a
partir da Bíblia, trazer para a sociedade de hoje, né? Daí foi surgindo a CUT, a CPT,
Pastoral da Juventude, essas questões todas aí. E a gente participava,”. Segundo ele,
na década de 80, a região de Chapecó, oeste de Santa Catarina, era praticamente toda
mobilizada, incentivada sobretudo por agentes pastorais: Tanto luteranos, como
católicos. Tinha os cursos de formação do PT, CUT, Movimento de Mulheres,
Movimento Sindical e o Movimento Sem Terra, né? Foi tudo junto. Foi juntando”.
Vivendo na comunidade onde ocorreu a luta pela fazenda Burro Branco, em
Santa Catarina, iniciada em maio de 1980, Valter acompanhou a forma como eles
lutaram. “Eles se esparramaram na área, cada um foi demarcando um lote e a pocia
chegou, prendeu alguns e o restante correu”. Mais tarde, convidado pela Pastoral
Popular Luterana para visitar Encruzilhada Natalino, Valter concluiu que os
trabalhadores não tinham que se “esparramar” em cima de uma fazenda. “Tem que se
juntar em um acampamento e criar uma forma de resistência”. Esse jeito de lutar foi
gerando conquistas posteriores que foram chamando a atenção dele.
Depois de servir ao Exército, Valter trabalhou como caminhoneiro, conhecendo
diversos cantos do país e, em 1988, concorreu a vice-prefeito de sua cidade, no interior
de Santa Catarina, pelo PT. Seu ponto de partida na militância no MST foi em 1989,
quando, ao fazer um trabalho de base em seu município, conseguiu mobilizar cerca de
1000 famílias para fazer uma ocupação no município de Palma Sola. Indicado para
compor a direção estadual do MST, Valter foi convocado para desenvolver um trabalho
em Florianópolis, onde ficou fazendo uma articulação com os trabalhadores urbanos”
até final de 1993. “Daí precisava o pessoal vim pro Nordeste, me fizeram o convite,
né? Daí nos 100 anos de resistência de Canudos, eu fui para a Bahia
110
”.
Solteiro, Valter casou-se na Bahia e teve um filho. Seu desafio” era ajudar a
organizar o Sistema Cooperativista nos assentamentos nordestinos. Era o período do
governo Collor e o Movimento estava voltado para dentro de si para organizar
internamente os assentamentos”. Com “experiência no sul”, tanto com as cooperativas
tradicionais como com as cooperativas do Movimento, Valter hoje avalia negativamente
o modo como eles tentaram organizar as cooperativas no Nordeste:
Na verdade, foi uma imposição as cooperativas, em relação à
experiência que o pessoal tinha lá. Foi, de uma certa forma, um
equívoco. Tem os seus avanços, tem as questões positivas e tal, mas
deu problema. O pessoal hoje consegue avaliar com a gente e dizer: a
gente meio que copiou o modelo do Sul e trouxe para cá. E ele o
deu certo aqui. Não deu certo porque os nordestinos não conheciam a
experiência de cooperativa e as que tinham tradicionais, em sua
maioria, deram calote, complicaram a vida deles.
110
Mobilização realizada junto com a CPT em outubro de 1993, onde se comemorou a ocupação da
fazenda Canudos, local onde foi erguido o povoado de Belo Monte, sertão da Bahia, onde se reuniram os
seguidores de Antonio Conselheiro. Para participar desta mobilização, todos os estados onde o MST
estava organizado enviaram ônibus com o objetivo de celebrar Canudos e participar da Romaria da Terra
realizada no local.
134
Depois de separar-se da mulher e ter divergências políticas no estado da Bahia,
Valter foi para o Sergipe, onde ficou algum tempo contribuindo também no setor de
produção. De lá foi para o Mato Grosso do Sul, de onde, até onde tive condições de
apurar, retornou para Santa Catarina. Sua disponibilidade ainda de se deslocar pelo
Movimento tem, segundo ele, muito a ver com sua experiência como caminhoneiro:
“Antes de ser militante sem-terra, eu fui caminhoneiro. Rodei esse Brasil afora e senti
paixão pela estrada desde moleque. Eu deixei a estrada e fui para o Movimento Sem
Terra”.
O formador
Antonio, 40, saiu do Rio Grande do Sul em 1992 para atuar no Ceará, na época
numa “fragilidade muito grande”
111
. Foi deslocado por intermediação da Secretaria
Nacional. “O pessoal pediu para eu ir pra lá”. Ia para trabalhar na área da formação
naquele estado, mais precisamente na FIP, curso para os assentados onde, assim como
Valter, ele tinha a tarefade trabalhar a questão mais coletiva e a cooperação”. Em
seu acampamento, no Rio Grande do Sul, Antonio atuava na área da formação.
Conhecido como “Pinheirinho”, seu acampamento, formado inicialmente em 1989, e o
anterior, formado em 1987, conhecido como do “Salto do Jacuí”, projetaram muitos
militantes que foram destacados para outros estados do país, muitos dos quais inclusive
o dirigentes assentados em outros estados, como Minas Gerais e Espírito Santo.
O acampamentão aquele, dos Pinheirinho, teve muita gente que foi,
que se tornaram militante, que o espalhado por aí, se espalharam
muito e se deve muito a esse trabalho, se destaca o trabalho de
formação. Ele tem que ser, tem que começar desde o início. Hoje a
gente quase não faz.
No Ceará, seu trabalho de formação era muito associado ao setor de produção,
no estímulo à formação de grupos e cooperativas. Depois que seu grupo do
acampamento foi assentado, eles decidiram formar uma cooperativa com trabalho
coletivo, e Antonio voltou para seu estado para ajudar a estruturá-la. Casou-se com uma
cearense, que também foi para o Rio Grande do Sul, onde passou a cursar magistério em
Ijuí. Em 1999, foi designado pela direção nacional para voltar para o Ceará, como parte
das “Brigadas Nacionais”. No momento em que me concedeu entrevista, estava na
Paraíba, onde estudava História
112
e tinha como tarefa, sendo membro do Setor
Nacional de Produção, coordenar e acompanhar cursos técnicos agropecuários
existentes em toda a rego, sobretudo os que se realizam em Bananeiras, onde vivia
com a família. De sua experiência com cooperação no Nordeste havia sobrado a vontade
de pesquisar um caso específico para seu trabalho de conclusão de curso. “Quero
trabalhar essa questão de porque a cooperação agrícola no Nordeste, ao menos dentro do
Movimento Sem Terra, não dá certo”. No período de entrega desta tese, vivia com a
família em Brasília, atuando em uma instância nacional.
Filho de pequenos agricultores do município de Aratiba, no Rio Grande do Sul,
Antonio completou seus estudos com os irmãos lassalistas e estava fazendo Ciências
Religiosas com o objetivo de entrar nesta ordem quando começou a participar das
atividades do MST. De uma família de 10 filhos, seu contato com o MST havia se
iniciado através de uma irmã que, depois de casada, foi acampar com o marido na
111
Entrevista concedida em Caruaru, Julho de 2006.
112
Curso especial para o MST, vinculado ao Pronera. Nele, Antonio é colega de Dora e Joana.
135
Anoni. a aproximação mais direta do dia a dia da organização começou durante a
marcha dos integrantes deste acampamento para Porto Alegre, em 1986, quando estava
estudando na PUC, na capital gaúcha. Ele morava em Canoas e, junto com a turma dos
seminaristas, fazia arrecadação de alimento, visitava os acampados, entre eles a irmã,
que acabou assentada no “Holandês”, área da própria Anoni, onde, então, começou a
passar suas férias da faculdade.
Antonio conta que o “estopim” para ele sair de sua ordem e entrar no
Movimento ocorreu em 1989. Durante um dos feriados de abril, ao invés de ficar no
retiro espiritual que sua ordem estava fazendo, ele e mais três colegas decidiram
participar de um ato ecumênico em favor de um grupo de sem-terra que estava fazendo
greve de fome. Além de ficar chocado com o fato de o então cardeal de Porto Alegre ter
trancado a catedral para o ato não ocorrer lá dentro, Antonio incomodou-se com a forma
como ele foi avaliado pelo diretor da ordem por conta da escapada deles do retiro
espiritual. “Aquilo começou a me desgastar”, conta ele, que esperou ajulho, quando
concluiu o curso, para sair da ordem. Incentivado pelo pai, que achava que entrar para o
Movimento era o caminho”, acabou participando do acampamento que se iniciou em
setembro de 1989, com a ocupação da fazenda Bacaraí, em Cruz Alta .Hoje a maior
parte de seus irmãos está de alguma forma ligada ao Movimento. Ele é assentado no
mesmo grupo de um deles e tem mais duas irmãs assentadas em outras áreas. Além
disso, uma irmã e um irmão trabalham em estruturas cooperativas do MST.
Antonio conta ter o projeto de voltar para seu assentamento no Sul, onda há uma
cooperativa bem sucedida do MST que hoje exporta arroz integral orgânico para a
Europa e os Estados Unidos. Diz ser muito ligado “à sua terra” e “à sua cooperativa”
que lhe paga uma parte de seu salário, rateia com ele as sobras” do final de ano e
“segura suas pontas” quando “aperta” sua situação no Nordeste:
A cooperativa entende que essa atividade que eu faço é como se fosse
um trabalho dentro da cooperativa. Contribuir com o Movimento é
uma linha que vem desde o início da cooperativa. Aquilo que eu
recebo é uma atividade. É importante que desde os da direção, desde
os caras que faz o mais humilde dentro da cooperativa ele percebe...
que eu liberado porque a cooperativa tem uma obrigação de
contribuir com o Movimento.
Sua mulher, cearense, não queria voltar. Antonio diz que, ao contrário de outras
namoradas nordestinas que teve antes dela, sua esposa é muito apegada à sua
comunidade, à sua terra. É importante observar que ela, militante da área da educação e
atuante em vel nacional, tem provavelmente mais espaço no MST para se destacar
estando no Nordeste do que se estivesse no Sul, onde geralmente há mais gente atuando
nesta área e onde, portanto, há muito mais disputa por espaço.
A militante empolgada
Dora saiu do Rio Grande do Sul para trabalhar um tempo na Secretaria Nacional.
De São Paulo, partiu em 97 para ajudar a organizar o MST no Tocantins. Depois foi
para a Paraíba e vivia em Pernambuco, casada com um pernambucano também militante
da organização quando me concedeu a entrevista. Como seu deslocamento foi
individual e não dentro das brigadas nacionais, considero Dora parte da segunda
geração de militantes.
Filha caçula de uma família de pequenos agricultores de Erval Grande, no Rio
Grande do Sul, seu primeiro contato com o MST foi no acampamento da fazenda
136
Anoni, onde ficou dois anos morando com a família do irmão. Como não havia escola
perto de sua casa - e seu pai não tinha dinheiro para o transporte ou para comprar o
material escolar - aos 11 anos, Dora foi levada pelo irmão para cuidar da filha pequena
dele e para poder freqüentar a escola que havia na Anoni, que então já ia até a 8ª série.
Como já estava ficando “mocinha” e havia muita dificuldade financeira, “não tinha
praticamente sapato para calçar”, Dora foi se sentindo “frustrada” dentro do
acampamento, no meio do grupo de jovens que se organizava por lá:
A Anoni era um mundo, uma loucura, tinha grupo de jovens, tinha
tudo. Tinha encontro de jovens, seminaristas que organizavam a
juventude e tal e eu queria trabalhar na cidade, trabalhar de
empregada doméstica, para ter um nimo de dinheiro para comprar
um xampu, uma roupa.
Assim, acabou aceitando o convite para ir trabalhar em Passo Fundo, na casa da
amiga de uma de suas professoras, que ia ter um filho, precisava de ajuda em casa e
garantia a continuidade de seus estudos
113
. Dora conta ter “topado na hora”, sem nunca
ter vivido em qualquer cidade àquela altura de sua vida. Ficou neste trabalho até os 14
anos, cuidando do filho e da casa durante o dia e estudando à noite.
Nesse meio tempo, duas de suas irmãs foram acampar e uma delas, hoje
dirigente do MST gaúcho, convidou-a para participar de um encontro de formação de
monitores em alfabetização, que estava ocorrendo no centro de formação do MST, em
Palmeira das Missões. Em uma “mística” do encontro, geralmente de grande impacto,
Dora foi tomada de emoção: “Me lembro que a primeira sica que vi eles cantando
era ‘América Latina’ e eu endoidei. Disse para ela que não queria voltar de jeito
nenhum”. A irmã o permitiu. Disse-lhe que elas estavam prestes a ser assentadas e
que era melhor Dora terminar seus estudos. Quando fossem morar no assentamento, que
era na região de Porto Alegre, iria morar com elas. Terminando asérie, Dora foi viver
com as irmãs no assentamento, onde, para ela, começou de fato sua milincia no MST.
Participou de todo processo de estruturação do assentamento, onde estava se
formando uma cooperativa, chegando a coordenar o setor de produção da área. Com
toda “aquela paio por estar no Movimento”, acabou desistindo dos estudos, pois
sempre estava pronta para qualquer atividade ou panfletagem em Porto Alegre. “Eu não
tinha mais nenhum interesse em estudar”. No entanto, dada a falta de recursos típica dos
primeiros tempos de um assentamento, Dora voltou a trabalhar na cidade, agora na casa
do assessor de um deputado federal do PT. Sua irmã, assentada em Eldorado, a
aconselhou a ir, para continuar os estudos. Ficou cerca de dois anos trabalhando nesta
casa quando veio “a febre de ir acampar”. Com amigos fazendo a articulação do
acampamento de 93, o de Lagoa Vermelha, e freqüentando a secretaria estadual e o
assentamento da irmã no fim de semana, Dora começou a dizer que ia acampar.
as pessoas começaram a duvidar: como é que você vai ir sozinha?
Não tem condição de você viver sozinha no acampamento! Eu dizia:
não, como é que as meninas foram (suas irmãs)? Mas elas eram em
duas, tinha toda articulação do município que o pessoal se ajudava. E
você? Vai sair daqui da cidade e vai ir sozinha? Mas eu tinha enfiado
na minha cabeça que eu ia, aí ninguém tirou não.
113
As colonas”, assim como as mulheres de origem rural de todo o Brasil, são mão-de-obra preferencial
para os serviços domésticos da classe média urbana.
137
Tinha 16 anos na época e conta que no acampamento acabou tendo “toda aquela
vida que queria”:
Saber como era o Movimento, participar de coordenação de núcleo, de
coordenação de acampamento, fazer ocupação. Eu não perdia uma
ocupação, não perdia uma vistoria de área. Era a maior pentelha. Lá
no Sul se faz muito isso: a vistoria das áreas à noite, pra depois ir
ocupar. Se eu sonhasse que ia ter vistoria, eu me enfiava no meio
dos meninos pra ir fazer.
Em 1994, foi uma das escolhidas de seu acampamento para participar da
chamada Escola Nacional, que na época funcionava em Caçador (SC). “Quase morri de
alegria”. Na época, conta ela, fazer a Escola Nacional era quase como “uma emulação
para qualquer militante”
114
. Ela recorda que o Movimento era “super rígido na
disciplina, no estudo”. Escolhida como uma dos cinco melhores alunos desta turma, na
volta, Dora foi convidada para fazer parte do Setor de Formação. Sua primeira atividade
foi ajudar no Laboratório Organizacional de Campo que estava sendo feito no
assentamento Capela de Santana, o mesmo de Antonio. A seguir, foi para o Iterra
(Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária), em Veranópolis
(RS), coordenar a segunda turma a entrar nesta instituição. Foi durante sua experiência
no Iterra que Dora conheceu pela primeira vez o Nordeste, passando um dos seus
períodos de “comunidade”
115
em um assentamento no Sul da Bahia. Inexperiente,
“muito novinha” e com dificuldades diante da responsabilidade que tinha ao coordenar
o curso TAC (Técnico em Administração de Cooperativas) - “era muito massacrante” -
Dora acabou desistindo do curso no último semestre. Foi convidada para ir para a
Secretaria Nacional para ajudar nas atividades que comemoravam os 30 anos da morte
do Che Guevara e, de lá, aceitou o convite de ir para o Tocantins, onde contribuiu na
implantação do MST neste estado.
Depois de ajudar a organizar as cinco primeiras ocupações de terra na região de
Araguaína, no Bico do Papagaio, Dora teve de sair de por conta de ameaças de
pistoleiros. A região, tradicionalmente violenta em termos de conflitos fundiários,
também registra um número muito grande de assassinatos de mulheres. na época em
que ficou lá, houve três assassinatos dentro do acampamento. “Lá é muito comum os
114
A Escola Nacional, nesta época, funcionava em Caçador (SC), em um seminário doado para o MST,
onde faziam cursos que reuniam militantes de todo o país destinados a aprofundar a formação ideológica
deles. Depreende-se do depoimento que ir para o curso implicava em alguma forma de ascensão
hierárquica dentro do MST, no sentido de era sentido como um reconhecimento, um prêmio ser escolhido
para ir para a Escola Nacional. De qualquer modo, pela minha experiência pessoal dentro do MST, isso
podia não representar mudança de status para o militante. Mas como o curso era intenso, significava
passarem alguns meses juntos com outros militantes, e essa socialização deve ter sido muito importante
para aprofundar o habitus militante desses jovens que voltavam da Escola Nacional treinados e munidos
de novos conhecimentos para expandir o estilo de militância do MST, assim como com a experiência de
ter estendido suas relações sociais com pessoas do MST de outros estados, fortalecendo essa rede
militante.
115
Os cursos organizados e vinculados ao MST costumam ter um período letivo diferente do tradicional,
prevendo o retorno dos alunos para suas áreas, sejam elas assentamentos ou acampamentos em seus
estados. Desse modo, os alunos, muitos dos quais militantes, passam um período de estudos intenso, de
cerca de três meses, alojados coletivamente em um lugar. Eles intercalam esse período de confinamento
com três meses de “período na comunidade” onde devem realizar as pesquisas e os trabalhos de
conclusão das disciplinas estudadas. Essa metodologia vale tanto para os cursos técnicos, como superiores
e foi incorporada pelos cursos financiados pelo Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma
Agrária).
138
maridos matarem as mulheres”, conta. Embora todos os três militantes deslocados para
o Tocantins estivessem na mira dos pistoleiros, Dora, loira e de cabelos lisos,
certamente era a que passava menos despercebida no Norte do país. Ela recorda que, na
primeira ocupação que organizaram, na fazenda Caracol, um ex-pistoleiro que estava
acampado resolveu por conta própria montar guarda no barraco onde viviam os
militantes.
Ele dormia de dia e de noite ele ficava acordado a noite todinha
porque ele sabia
116
. Só que ele não dizia isso pra gente. Depois foi que
a gente foi descobrir que ele fazia isso. A gente nem imaginava. A
gente inclusive tinha medo dele porque o pessoal tinha dito que ele era
pistoleiro.
Depois do Tocantins, Dora recebeu a proposta da “Nacional” de ir para a
Paraíba, estado onde o MST tradicionalmente enfrentava dificuldades, em parte pela
concorrência com a atuação da CPT. Agregando-se a um novo grupo de militantes,
catarinenses e pernambucanos, Dora diz que se cansou logo de sua tarefa inicial de
organizar a secretaria do estado. Participou da Marcha Popular pelo Brasil e na volta foi
deslocada para organizar a regional do Cariri, a mais seca do sertão paraibano. Casou-
se com um dos militantes pernambucanos também deslocados para a Paraíba e hoje é
mãe de um filho. Vive em Caruaru, Pernambuco, onde seu marido é assentado.
Trabalhava no setor de projetos da secretaria estadual e fazia graduação em História,
quando foi feita a entrevista. Tendo saído tão precocemente de casa, Dora alentava a
idéia de voltar a morar no Rio Grande do Sul, perto dos pais
117
. Com sua fala já
carregada no sotaque nordestino, não escondia uma ponta de dúvida em relação a esse
projeto: “não sei mais se eu me acostumo”.
O lutador outsider
Lucas saiu do Rio Grande do Sul em 1995 e foi para Pernambuco, onde ajudou a
expandir as ações do MST para o sertão deste estado, onde hoje se concentra a maior
parte de seus assentamentos. De Pernambuco, Lucas foi para a Paraíba, onde
permaneceu um tempo e depois foi ajudar o a expandir as ações do MST em Roraima,
estado onde o Movimento até então ainda não havia fincados suas bandeiras..
Ao contrário de Dora, Lucas não era considerado um “militante” do MST do Rio
Grande do Sul e nunca sequer havia sido indicado para estudar na Escola Nacional,
demonstrando que não era reconhecido como tal. Desse modo, acabava deixando de ter
acesso a esta experiência que funcionava como uma espécie de “credencial” para se
tornar militante e, freqüentemente, ascender na organização.
O sonho da minha vida quando eu comecei a militar no Movimento,
ainda no Rio Grande, era fazer a Escola Nacional do Movimento Sem
Terra. Era o sonho da minha vida. Tinha vontade de chorar, de bater
em gente porque não me deixavam ir. Aí os caras vinham, faziam a
Escola Nacional, voltavam e abandonavam o Movimento.
Sua ida para Pernambuco foi articulada individualmente, quando fez um curso
pelo MST no município de Braga (RS), onde também estava ocorrendo o TAC - que
hoje funciona no Iterra - para o qual vinham alunos de vários estados do país. Como ele
116
Segundo ela, que eles corriam ameaças de pistoleiros.
117
As últimas informações que tive sobre ela é que estava de mudança para o Sul.
139
nutria uma grande curiosidade de conhecer o Nordeste, diz não ter sido difícil se
entrosar com o pessoal da região, conseguindo abrir, por conta própria, um “canal” para
ir para Pernambuco.
Oriundo de uma família de pequenos produtores de Alpestre, “um dos 10
municípios mais pobres do Rio Grande do Sul”, Lucas completou o primário e fez um
supletivo para concluir o então Primeiro Grau. Diz ter entrado no MST “não por
consciência”, mas “mais na intenção de fugir daquela vida que vivia ali”. Seu pai era,
segundo ele, “um velho carrasco da gota” e um de seus irmão mais velhos estava no
MST quando ele decidiu acampar em 1991.
A gente mais queria fugir daquela vida que vivia ali, sem acesso a
nada, sem conhecimento nenhum, ali matando na unha, né? Então, ser
pequeno agricultor e ser no MST, eu podia ser tanto como no
MST. Porque terra, digamos, lote de terra do tamanho de um lote que
tem nos assentamentos, meu pai, enfim, a gente tinha condições de ter
cada irmão.
Ele conta ter passado dois anos acampado, mas “sem militar no Movimento Sem
Terra, até porque não tinha nenhuma formação, nenhuma visão no que podia ajudar o
Movimento”. Indicado para fazer um curso não de formação política”, mas de
“técnicas alternativas”, ele aproveitou a oportunidade para estabelecer relações com o
pessoal de Pernambuco. Como não era visto como “militante”, foi com dificuldades que
Lucas conseguiu sua “liberação” do acampamento onde vivia para ir para Pernambuco.
“Foi assim meio por conta”. Chegando lá, como também estava sem definição de tarefa,
primeiramente foi “encaixado” na coordenação de um curso de militantes que ia ocorrer
em um novo assentamento do estado. Pouco depois de três meses, como não queria ficar
“plantando repolho, cenoura, beterraba”, entrou em contato com Joana, na época
vivendo no sertão pernambucano. Foi ela quem o ajudou a se “encaixar” nesta região,
onde havia ocorrido a primeira experiência de assentamento do MST, em 1989, e, de tão
desastrada, chegou a “atrasar” a efetiva implantação do Movimento no estado
118
.
Em 1995, em meio à falência de diversas empresas de fruticultura irrigada, que
não recebiam mais recursos do governo para continuar rolando suas dívidas, Lucas se
deparou com uma massa de desempregados que via naquelas fazendas falidas uma
oportunidade concreta de ter um pedaço de chão próximo às margens do Rio São
Francisco. Junto com 48 coordenadores dos grupos de trabalhos de base, Lucas foi para
o III Congresso do MST
119
, realizado em 1995. Impressionados com “toda uma
grandiosidade”
120
que havia naquele Congresso, que reuniu 5 mil militantes - primeiro
do qual Lucas participava - os coordenadores voltaram para a região “contagiados”,
aumentando expressivamente o número de famílias que participavam dos, ao todo, 68
grupos de trabalho até então articulados no sertão.
118
O relato sobre esta ocupação está no Capítulo 3.
119
Falo do impacto desse Congresso na história do MST no Capítulo 2. A repercussão pública do
encontro que recebeu capas nos principais jornais do país pode ter ampliado a sensação de grandiosidade
e a importância do evento para esses sem-terra que estavam começando a se organizar.
120
As atividades “nacionais” organizadas pelo MST, como Marchas, Congressos, etc. têm por objetivo
“chamar a atenção da sociedade” para as questões disputadas pelo MST, mas também ajudam a animar”
e a organizar os militantes internamente. Em geral, isolados em acampamentos e assentamentos no
interior do país, são nesses grandes eventos que o sentimento de pertença a algo bem maior é ativado,
“empolgando” o engajamento. Também não se pode esquecer que esses encontros muitas vezes
significam para essas pessoas uma viagem” com alojamento e comida precária, mas de graça, para um
lugar desconhecido, como Brasília, a capital do país, chamariz altamente atrativo para elas.
140
Embora desaconselhados pela direção estadual a fazer a ocupação, por conta da
falta de recursos, de militantes e de estrutura do próprio Movimento Sem Terra, o
grupo, segundo Lucas, acabou “passando por cima” da “definição estaduale fez a
ocupação com 3.028 famílias no dia que haviam previsto, 7 de agosto (no Jornal Sem
Terra de setembro de 1995 está 6 de agosto), entrando na fazenda Safra, que pertencia à
Cica Norte.
Até então o MST nunca havia conseguido reunir um contingente tão grande de
famílias para uma ocupação na região Nordeste. Segundo Lucas, a “ânsia” do povo era
tão grande que foram eles que bancaram toda a estrutura para fazer a ocupão. Foi a
sorte. Poucos dias depois ocorreu o massacre de Corumbiara (RO), onde em um despejo
violento de sem-terras (não vinculado ao MST) foram mortos 11 trabalhadores rurais e
dois policiais militares. Segundo Lucas, com essa notícia ficou difícil segurar as pessoas
no acampamento e - avalia ele - se a ocupação tivesse sido prorrogada para o dia 13,
como queria a direção estadual do MST, o teria ocorrido. Depois disso, o
acampamento continuou cercado de tensão, “vivia um estado de sítio pela polícia e
pelos jagunços da fazenda Milano”, maior produtora de uva do Vale do São Francisco,
de propriedade de um gaúcho. Foi, segundo ele, a partir dessa ocupação da Safra que “o
Movimento Sem Terra de Pernambuco detonou ocupações e, enfim, até hoje se
caracteriza, se diferencia dos demais estados pela quantidade de ocupões que fazem”.
Também foi a partir desse acampamento que o MST passou a se espalhar por esta
região, onde hoje se concentra a maior parte de seus assentamentos neste estado.
Lucas era pai de um filho quando foi feita a entrevista, mas não havia ainda
“formado família”, ou seja, casado. Ostentava, no entanto, uma aliança de compromisso
no dedo. Considerado militante do MST de Pernambuco, estava na Paraíba para evitar
as tocaias e ameaças de morte que vinha sofrendo no Vale do o Francisco.
Praticamente um ano depois da entrevista, foi transferido para Roraima, para contribuir
com a expansão do MST naquela região
121
.
5.4 Os militantes “recortados” pelo Nordeste
Dentre as levas de militantes sulistas que foram para o Nordeste, alguns, depois
de assentados, retornaram para seus lugares de origem, no caso, o Rio Grande do Sul,
casados com mulheres que conheceram nos locais para onde foram enviados. Vou
apresentar a trajetória de três casais. No primeiro, o marido fez parte da primeira
geração de militantes. Participou da emblemática ocupação da fazenda Anoni, que se
formou em 1985, com a frustração da derrota do I Plano Nacional de Reforma
Agrária da “Nova República”. Os outros dois casais são formados por militantes da
segunda geração, mais especificamente, do mesmo acampamento de Antonio,
conhecido como “Pinheirinho”, formado no Rio Grande do Sul, em 1989. Este
acampamento enfrentou conflitos violentos com a polícia militar do Rio Grande do Sul,
com fazendeiros e o período de estreitamento institucional e de repressão política em
nível nacional, ocorrido durante o Governo Collor.
Estes casais representam, na pesquisa, a posição de integrantes do MST que não
se consideram automaticamente militantes da organização, embora continuem a
contribuir com o Movimento. Além disso, eles apresentam um olhar híbrido sobre seu
deslocamento para o Nordeste, visto que mediado pela vivência sócio-cultural diferente
de cada um, bem como pela experiência vivida no presente, em um assentamento
121
Não consegui ter informações objetivas sobre o paradeiro de Lucas no momento de defesa desta tese.
Só fiquei sabendo com certeza que ele não estava mais em Roraima
141
gaúcho. Os olhares do marido e da esposa também se mesclaram pela vivência em
comum e pela experiência do “retorno senão ao lugar de origem, a uma vivência
familiar estruturada e estável, diferente da vivida na militância. É também importante
observar que a experiência nordestina atua como uma espécie de “mito fundador” do
casal. Grande parte das entrevistas, feitas em seus assentamentos, tiveram a participação
do parceiro, cuja experiência, embora não fosse o foco da entrevista no momento,
acabava ajudando na composição da resposta do “companheiro” ou da “companheira”.
Um aspecto comum a todos é o fato de os três casais estarem assentados em um
município localizado na região metropolitana de Porto Alegre. Dois vivem no mesmo
assentamento e fazem parte da mesma cooperativa. É interessante ter em mente que os
casais militantes da segunda geração são contemporâneos aos militantes apresentados
no capítulo anterior e, portanto, geralmente partilharam vivências comuns. Estiveram,
no mínimo, em algumas das grandes mobilizações realizadas pelo MST no Rio Grande
do Sul naquele período, ou ficaram em seus acampamentos aguardando os
desdobramentos destas ações.
O caboclo e a professora
Osvaldo veio de uma família com nove filhos, oriunda do Alto Uruguai gcho,
que dependia de cinco hectares de terra para plantar e, portanto, tinha que “trabalhar
alugado”, plantando a meia e arrendando terra. Mais novo dos três filhos homens,
estudou até a 5ª série primária e, através de sua participação na Pastoral da Juventude,
tomou contato com o trabalho de base do MST, começando a articular famílias para
acampar na região em que vivia, em torno de seu município. Antes disso, entretanto,
aproveitou o bom resultado de uma safra para “conhecer alguma coisa” e foi para o
Pará, onde ficou morando com uma família conhecida
122
. Nos meses em que morou por
lá, Osvaldo continuou participando da Igreja e acabou visitando os padres franceses
Aristides Camio e Francisco Gouriou, presos por sua luta contra a expulsão de posseiros
da região. “Lá que eu fui entender o que era conflito de terra”. Na volta do Pará, o
acampamento de Encruzilhada Natalino já estava organizado, e Osvaldo, como membro
da Pastoral da Juventude, organizava a arrecadação de alimentos para as famílias
acampadas. Quando começou a organização para a ocupação de uma área em Erval
Seco, Osvaldo tornou-se o coordenador do núcleo dos sem-terra de sua comunidade,
formado por 13 famílias. Nesse meio tempo, também ajudou a fundar o Partido dos
Trabalhadores em seu município, tornando-se um dos coordenadores locais.
Quando foi para o acampamento da Anoni, o pai de Osvaldo decidiu ir junto,
deixando os demais filhos cuidando da propriedade, que acabou, mais tarde, sendo
vendida. Hoje somente três irmãs não são assentadas. Toda a família, inclusive os pais
vivem em diferentes assentamentos espalhados pelo Rio Grande do Sul. Ele conta que,
em sua infância, a família enfrentava muitas dificuldades. A primeira vez que colocou
calçado nos pés, tinha 12 anos: “Quando comprei um eu troquei uma galinha por um
chinelo dormi de chinelo havaiana de tão faceiro”. Até esse dia, todos os filhos
usavam chinelo de “palha de milho”. Não tinha luz na casa, o que, segundo ele,
dificultava muito os estudos. Mesmo assim, todos os nove irmãos estudaram até a
rie do primário.
De família “cabocla”, ou seja, de origem portuguesa e indígena, tanto por parte
de pai, como de mãe, Osvaldo vive hoje com a mulher, Gra, em um assentamento.
122
Esta família de conhecidos fez, provavelmente, parte da leva de agricultores gaúchos que foi para este estado
amazônico para as margens da rodovia “Transamazônica”, incentivada pelos projetos de colonização da ditadura
militar
142
Eles faziam parte de um grupo que tentou por alguns anos trabalhar como cooperativa,
mas atualmente os lotes são individuais. Proprietários de uma casa de alvenaria, dois
carros, telefone, geladeira, freezer, ambos mantém seu lote totalmente tomado por
produções diversificadas, horta agroecológica e árvores frutíferas, realidade que se
destaca neste assentamento formado em 1988, uma vez que a proximidade com a cidade
fez com que muitos assentados abandonassem a atividade agropecuária para
trabalharem como “empregados”. Muitos mantêm, no máximo, uma plantação de “mato
de acácia”, árvore que dá renda tanto da venda de sua madeira, como de sua casca.
Graça, professora da escola do assentamento, formou-se pouco tempo em Hisria e
também é licenciada em Geografia. Ambos se conheceram em Sergipe em 1987, na casa
paroquial de Gararu. Acampado na Anonni, de onde, segundo ele, se “formaram” 200
militantes para o MST, Osvaldo conta que foi para o Nordeste “quando houve
necessidade”. “Era pra ir assim, uns cinco ou seis, mas os caras que tinha família,
recém-casado e outros que não podiam. Bom, e como era solteiro, sobrou pra mim ir
pra lá. Nós fomos em dois”.
Seu companheiro de jornada ficou somente dois meses. “Não agüentou a fome”,
se diverte. Nessa mesma época, Graça, que tinha acabado de deixar a carreira religiosa,
estava militando com a CPT no estado. O pai, agricultor, não tinha terra e há muito
tinha deixado o sertão para viver em Aracaju. Do ramo pobre da família que “manda e
desmanda” em seu município natal, Itabi, Graça passou parte da infância com a avó,
pois os pais enfrentavam muitas dificuldades para criar os 10 filhos. Na adolescência,
morou com uma tia em São Paulo, onde cuidava dos primos e pôde concluir o 1º grau.
Voltou para o Sergipe para “ajudar os pais”. Era funcionária concursada da Telesergipe
em Itabi, quando decidiu entrar na vida religiosa, o que também lhe viabilizou que
concluisse seus estudos, formando-se em Magistério:
conhecia as irmãs de algum tempo atrás, que iam muito na casa da
minha avó, e pronto: me engajei na vida religiosa como aspirante e
fui pra congregação. Fiz uma experiência lindíssima. Devo muito da
minha vida, daquilo que sou hoje, agradeço muito a elas por aquilo
que sou, elas me ajudaram muito, no meu projeto de vida.
Foi por conta da decisão de participar da passeata convocada de uma Greve
Geral, convocada pela CUT (Central Única dos Trabalhadores), que Graça teve
conflitos em sua congregação. “Fizeram uma baita avaliação, depois caiu uma pedra
sobre mim totalmente”. Depois de fazer um retiro, rezar muito, fazer jejum, Graça
decidiu sair da vida religiosa: “Eu posso viver o meu projeto de vida, construir uma
família, viver a minha vida normal, viver a minha opção de vida e servir a Deus da
melhor forma possível, fora das estruturas da vida religiosa.”
Quando Osvaldo chegou em Sergipe, Graça estava em plena articulação para
“engrossar a ocupação” da fazenda Monte Santo. Ela recorda que os militantes do Sul
chegaram e queriam ocupar de imediato: “Eles eram um bando de porra-louca”. Ela
conta que, como eles vinham desenvolvendo o trabalho algum tempo, sabiam que
o pessoal ainda não estava preparado. Segundo ela, “para convencer os bichos” para
esperar um tempo, não foi fácil: “Imagina, chegar hoje e daqui a um mês, tinha que
acontecer a ocupação; ou acontecia ou eles morriam”, ironiza. Para Graça, “tinha que
entender toda a realidade do povo do Nordeste pra depois fazer uma ocupação de terra”.
Tu não entende disso, porque tu é gaúcha (referência à pesquisadora),
mas imagina o gcho chegar no Nordeste; e com a lentidão do
143
Nordeste, não é? E a rapidez do Rio Grande do Sul? O trabalho no Rio
Grande do Sul estava muito mais acelerado do que no Nordeste.
A ocupação da fazenda Monte Santo, realizada em. outubro de 1987, é
considerada, de acordo com Fernandes (2000), um marco do nascimento do MST em
Sergipe. Já havia ocorrido duas ocupações de terra anteriormente, mas o MST era
coordenado por um sindicalista que, segundo Osvaldo, “não conseguiu trabalhar a
filosofia do Movimento”. Apesar disso, umas das ocupões que o presidente do
sindicato de Nossa Senhora da Glória organizou resultou em um assentamento que é
vinculado ao MST até hoje. Osvaldo reconhece que apesar do jeito dele”, eles “devem
a esse sindicalista, já que foi um dos que ajudaram a fundar o MST no Sergipe.
Explicando com oposições como as ações do sindicalista eram vistas, Osvaldo
explicita: “Ele era individualista, era ele, ele e a secretaria do Movimento - numa
sacola. discursava em toda parte. o tinha base. Ele não fez base”. Em outras
palavras, segundo Graça: “Ele não fez crescer a liderança, ele não formou liderança
nenhuma, ele que fazia, sozinho, por conta”. Trabalhar na “filosofia do Movimento”,
segundo Osvaldo, é usar o método que eles adotaram logo que chegaram em Sergipe,
criando “ um grupo de formação”:
Aqueles que tinha mais facilidade de trabalhar com o
movimento de base, ele articulava um grupo e formava essa
militância. E nós mapeava, e, ó, aquele lá, dá pra s investir nele, que
é mais, é menos. E a gente tinha essa capacidade de saber a pessoa, de
conhecer a pessoa, que dava pra investir mais. E então, nós
formemos liderança é que nós comou na verdade lá no sertão.
De fato, dentro do MST a legitimidade das lideranças costuma ser muito
vinculada a suas bases. Ou seja, a capacidade desses líderes de atrair famílias para a
organização, vindo a representá-las, assim como de demonstrar talento para multiplicar
lideranças, novos militantes que tivessem condições de arregimentar mais famílias para
novos acampamentos.
Embora tivessem o projeto de continuar militando, o retorno do casal para o Sul
foi motivado pelo assentamento. Osvaldo fazia parte de um grupo de acampados que
queria formar uma cooperativa e pediu que o casal voltasse para contribuir nesta
estruturação. Apesar de já estarem instalados no Sul, continuaram recebendo convites
do MST para voltarem para o Sergipe, irem para o Maranhão, trabalharem com os
“brasiguaios”, mas, segundo Osvaldo, eles não foram “liberados” pelo grupo. “O povo
aqui não deixou nós. Não abriu mão de nós”, diz Graça. Na época, organizados em uma
cooperativa que dividia “até a alimentação”, o casal foiobrigado pela decisão da
maioria”, conta ela, a permanecer no assentamento. A cooperativa, no entanto, acabou
se desfazendo, e o casal hoje faz parte de uma associação de produtores ecológicos do
assentamento, na qual dividem as despesas para fazer as feiras e planejam
conjuntamente suas atividades. Osvaldo reconhece:
O nosso sonho era militar. Mas só que, quando a gente chega em cima
da terra, é completamente diferente. Você passa por um processo mais
complicado no assentamento. Eu, pra mim, a terra foi uma das questão
mais complicada, durante todo o processo de luta que eu tive.
A cooperativa, inicialmente formada por 16 famílias, logo começou a se
esfacelar pelas “diferenças de idéia”, “disputas de liderança” e, a cada falia que saía,
144
vinham os conflitos em torno da divisão das “estruturas” adquiridas coletivamente. Ele
conta que eles foram os últimos a sair e funcionavam como “pai e mãe dos problemas”
da área. Ou sejam, eram as “referências” dos assentados:
Tanto eu como a Graça - pode a gente não querer - mas a gente pensa
que a melhor forma sempre é o coletivo. Então nós sofremos muito
com isso. Mas se nós tivesse entrado individual no começo do
assentamento, hoje nós teria muito mais condições de vida; nós tinha
criado mais estrutura. Nós não conseguimos administrar nossas coisas,
durante o tempo que nós tava junto. Nós o mandava nas nossas
coisas. E nós perdemos muito com isso.
Para Graça, que viu frustrado seu sonho de “trabalhar coletivamentee ainda
hoje alimenta a vontade de voltar para o Sergipe, “no fundo, no fundo” o marido nunca
“brigou” para eles irem militar em outros estados. “Depois que ele chegou aqui, quis
enraizar nisso aqui”. Em sua opinião, se ele tivesse insistido, eles teriam sido liberados,
mas, para ela, Osvaldo “não quis largar o cordão umbilical dele com os pais, que são
assentados na mesma área
123
. Ele justifica essa opção pelas dificuldades enfrentadas no
primeiro ano do assentamento. “É muito difícil. Se você não se firmar bem no começo,
aí vai ter dificuldade do assentamento para a vida toda”.
Professora da escola do assentamento, Graça não esconde sua mágoa ao
desaconselhar que os militantes do Nordeste venham para o Sul, que ela enfrentou
dificuldades para ter espaço político e acha que nunca foi “reconhecida” dentro do MST
do estado. “O Sul tem liderança demais, tem gente se ‘estrovando’, que nem diz os
gaúchos”. No assentamento, quando chegou, consideravam-na “burguesa”, porque era
professora e não sabia “lidar com vaca”. Ela acredita que apesar de ter sempre
participado das lutas do MST, nunca conseguiu ser respeitada “como militante”,
como esposa de Osvaldo:
A cultura do Rio Grande do Sul é muito forte, as pessoas acham que,
decerto, vão perder espaço. O povo aqui sabe discursar muito. O povo
do Nordeste não sabe discursar; o povo do Nordeste é mais prática.
Ela considera que no Sul se valoriza “mais” o discurso, e como não sabe
discursar, não consegue falar no microfone, “esquece tudo, se sentiu “meio deixada de
lado”. Apesar disso, por um tempo, participou da executiva do então Movimento de
Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), que a “reconheceu”: “O MMTR me deu
espaço pra eu me expressar, tudo aquilo que sabia, que eu era, aquilo que eu acreditava.
E eu fiz isso, como toda minha força, com toda a minha garra”. Hoje diz não se importar
mais com isso:
A luta pela terra não tem fronteira e eu perdôo pela falta de
informação, pela falta de cultura, pela falta de conhecimento do povo.
Eu perdôo porque o Movimento não é a direção do Movimento; o
Movimento somos todos nós; então eu me sinto Movimento. Eu tenho
paixão pelo Movimento, entendeu? E eu me orgulho de ser do
Movimento e vou defender sempre o Movimento.
123
Uma das características atribuídas aos gaúchos, até talvez como estereótipo, é esse apego à família.
Mas é difícil precisar em que medida não é a grande dificuldade econômica que faz com que os
brasileiros oriundos de outras regiões interiorizem mais o desapego a sua família de origem, visto que a
permanência junto deles é bloqueada economicamente e muitos deles são obrigados a migrar para outras
regiões.
145
O casal, que sempre permaneceu atuante dentro do MST na região onde estão
assentados, tem dois filhos: um rapaz então com 18 e uma menina com 14 anos. O rapaz
trabalha na propriedade e estuda para ser técnico agrícola em uma escola vinculada ao
Movimento. A menina, que ainda estudava em uma escola do município, cuida de uma
plantação de framboesa, cuja renda fica para ela. Osvaldo e Graça também adotaram a
filha mais velha de uma das irmãs do marido, quando esta tinha 4 anos, pois a menina
não era registrada, e a mãe estava em um acampamento na época. A sobrinha-filha
adotiva entrou no MST, acampou e foi assentada recentemente na região Sul do estado.
Casada com um militante sergipano que conheceu em um curso do Movimento, é mãe
de uma criança pequena.
O professor e a jornalista
De uma família de pequenos agricultores com cinco filhos, Cláudio entrou em
contato com o MST quando era funcionário no Sindicato de Trabalhadores Rurais de
Ronda Alta. Sua mãe era militante sindical e conseguiu este trabalho para ele poder
continuar estudando. Tinha concluído o 1º grau em sua comunidade rural, mas sua
família não tinha condições de lhe custear as despesas de passagem para fazer o
Segundo Grau na escola localizada na sede do município. Sua aproximação com o MST
se deu dentro do sindicato que emprestava sua “estrutura”, ou seja, carro e telefone para
levar os “articuladores de base” para reuniõesdos sem-terra” nas comunidades. É
importante observar que famílias oriundas da luta de Encruzilhada Natalino, assentadas
no “Nova Ronda Alta”, faziam parte da direção deste sindicato. Além disso, o colega de
trabalho de Cláudio, com quem dividia a moradia na cidade, era filho de uma assentada
da Anoni, da gleba conhecida como “Holandês”, que era o destino preferencial de fim
de semana dos rapazes. Portanto, o envolvimento propriamente dito de Cláudio com o
MST começou através dessa rede de sociabilidade profissional e amical. Por estar
ajudando na “articulação” do acampamento, Cláudio vivia sendo “convidado” para ir
acampar. Apesar do temor dos pais, acabou decidindo ir, integrando-se ao acampamento
dos “Pinheirinhos” que começou no segundo semestre de 1989:
Não tinha opção de nada, né? E pra mim estudar fora, ia depender de
fazer uma universidade. A mais próxima era Passo Fundo ou
Carazinho. Se eu não podia vir de Ronda Alta pra estudar, imagina
pra Passo Fundo? Jamais ia conseguir fazer uma faculdade, né? O pai
tinha 3 hectares de terra, jamais ia conseguir comprar terra. Tanto é
que depois perdeu, bem dizer, a terra
124
. Então, pra mim, foi uma
opção, por que eu também não via muita saída. Assim como a maioria
dos jovens não tinha outra saída, né? A maioria, uma boa parte ia
pra São Paulo. Acontece ainda hoje: vão pra São Paulo, pro Rio de
Janeiro pra trabalhar em churrascaria, porque pra outra cidade o
emprego é mais difícil, né? E quem não podia ir pra ou às vezes
não tinha coragem para ir para e tal. Eu me achei com mais
coragem pra ir acampar. E foi assim que eu decidi no dia. O pai era
contra. Não vai, porque naquela época já tinha um pouco aquela
questão de repressão no Movimento: foi depois da Santa Elmira, a
questão de violência. A mãe chorava e tal, preocupada. Mas por outro
124
A terra do pai de Cláudio era parte de uma área indígena que foi dividida em lotes e vendida pelo
governo estadual a agricultores “no tempo do Brizola”. Reconhecida como área indígena pelo Governo
Olívio Dutra, os agricultores que viviam na área por 40 anos receberam indenizações em dinheiro pela
terra e pelas estruturas que haviam construído.
146
lado, ela também sabia que não tinha muita saída também, não tinha o
que oferecer, né?
Tendo estudado até o 1º ano do Segundo Grau, Cláudio acabou sendo “liberado”
por seu núcleo do acampamento, a partir de meados de 91, para contribuir no projeto de
alfabetização de jovens e adultos encampado pelo MST. Assim, fez parte da primeira
turma de monitores, formada dentro do método Paulo Freire, e saiu do acampamento
para morar em Bagé, onde já havia muitos assentamentos. O próprio Paulo Freire foi na
formatura, realizada nesta região, tendo que, para tanto, enfrentar estradas de lama
formadas por uma chuvarada, que estavam praticamente intransitáveis.
Após um ano e meio trabalhando na alfabetização de jovens e adultos na região
de Bagé, surgiu no MST a idéia de ampliar esse projeto para os demais estados,
sobretudo o Nordeste. Cláudio e outro rapaz foram “escolhidos” do grupo de 45
monitores para irem para o Maranhão. Ele explica ter aceitado a proposta porque era o
auge da milincia” :
Pra nós era um desafio, né? Quando tu tá iniciando a militância,
dentro do Movimento; teve toda uma... porque nós queira ou o
queira - na alfabetização de adulto, nós tivemos duas vezes com o
Paulo Freire, ele veio uma vez em Bagé.
Ao mencionar a vinda de Paulo Freire, que também esteve com eles em um
encontro no Salão Nobre da Faculdade de Direito da UFRGS, Cláudio faz menção a
um clima interno muito peculiar, vivenciado no MST do Rio Grande do Sul.
Externamente, nos setores hegemônicos da sociedade, ele era visto como “violento”,
“criminoso”, dado o episódio ocorrido na Praça da Matriz, em agosto de 90. Naquele
ambiente político, do início dos anos 90, os sem-terra eram vistos por setores da
sociedade gaúcha como “perigosos”, pois haviam matado um policial militar em pleno
centro de Porto Alegre. Por outro lado, o MST vinha construindo uma rede de apoio em
meio a setores de esquerda, da sociedade brasileira, que vinham se estruturando no PT,
na CUT e em ONGs, para os quais Paulo Freire era um símbolo. O segundo encontro
deste grupo de monitores com o conhecido educador foi em pleno Salão Nobre da
Faculdade de Direito, não sem antes enfrentarem o constrangimento de terem sido quase
impedidos de entrar no prédio pelos seguranças da universidade.
Segundo Cláudio, sua ida para o Maranhão tinha por objetivo capacitar pessoas
para eles próprios se tornarem alfabetizadores. Ele partiu do Rio Grande do Sul
pensando em ficar no máximo dois anos. Acabou ficando quatro. Ao chegar, ficou um
ano trabalhando direto com alfabetização em um assentamento “no meio do mato”.
Ele conta que o “primeiro objetivo” era esse: “ver a realidade deles lá, se adaptar”. No
segundo ano, como o MST, que tinha pouquíssima “estrutura” no Maranhão, comprou
um carro, acabou assumindo as funções de motorista do Movimento, que era um dos
dois únicos militantes que tinham carteira de habilitação. Desse modo, acoplou suas
funções na área da formação e educação, que “na maioria dos Estados eram meio
junto”, com o deslocamento” para diversas áreas, facilitado pelo automóvel. Assim
como Antonio no Ceará, Cláudio foi um dos responsáveis pelos FIP (Formação
Integrada à Produção) que ocorriam no Maranhão, mas atendiam militantes também do
Pará e do Piauí, estados que ele tinha responsabilidade de “acompanhar”. Em pouco
tempo, dada a dinâmica do MST no estado, acabou virando “pau pra toda obra”, como
observa sua mulher, a maranhense Silvia.
Filha de um funcionário público e de uma costureira, Silvia era dirigente do
Partido dos Trabalhadores quando se aproximou do MST. Com o passar do tempo, de
147
apoiadora foi se integrando mais ao Movimento, cujos militantes costumavam se
hospedar em seu apartamento quando iam a São Ls. Para ela, o MST “mudava de fato
a vida das pessoas de alguma maneira, não era discurso”. Enquanto isso, no PT e na
CUT, Silvia foi acumulando decepções com a chamada “militância muito profissional”,
por ver “as pessoas fazerem qualquer coisa pra se manter em algum cargo”. Neste
sentido, o comprometimento de Silvia com o MST tem características muito
semelhantes ao dos militantes de direitos humanos da Liga dos Diretos do Homem e do
Cidadão, na França, analisados por Agrikoliansky (2005)
125
, pelo que ela aponta de
desconforto vivenciado dentro do partido político ao qual estava vinculada antes de
entrar no MST. Para esses militantes, a ética e a moral são profundamente associadas ao
engajamento político e não são tanto reflexos de constrangimentos estruturais ou mesmo
de um interesse específico. É por esta razão que, no partido, lhe causava desconforto ver
que a militância de muitos embutia um cálculo tão explicitamente utilitário. Por outro
lado, sendo ela formada em jornalismo, não tinha sua milincia tão constrangida por
aspectos sociais, podendo optar.
O casal se conheceu em uma “caminhada” do MST até a capital maranhense em
maio de 1993. Silvia conta não ter estranhado a presença de um gcho no meio dos
sem-terra de seu estado, que vinham do interior para participar dessa mobilização. Sabia
que normalmente iam militantes do Sul para “ajudar” a organizar o MST no Maranhão.
Para Cláudio, o fato de o Movimento estar “engatinhando” há mais tempo no Sul,
“queira ou o queira” lhe dava uma experiência maior. “Tanto é que acho que eles se
espelharam muito no pessoal do Sul que ia pra lá, né?” Neste sentido, achou inclusive
mais fácil trabalhar com o pessoal de lá, pois é mais difícil convencer o pessoal do Sul
para ir acampar. Em sua opinião, no Nordeste, “eles têm uma necessidade maior,
uma necessidade única, né? Direcionar, né? Então acho que é mais cil; o pessoal não
tem muita opção, parece.
Vivendo no Rio Grande do Sul mais de 10 anos, Silvia interpreta que a
existência de um maior número de lideranças no Sul favorecia o envio de militantes
para o Nordeste.
Resolvia dois problemas: a de concentração de muitas lideranças num
mesmo lugar - que corre o risco de começar uma disputa de poder - e
também tem a história de que em alguns lugares se precisava de gente
com experiência, com capacidade de mobilizar, de dirigir, ? É
necessário a pessoa ter uma certa aptidão para fazer essas coisas. Acho
que não foi pensando assim: “não, a gente vai mandar o pessoal pra se
livrar”.Mas, intuitivamente, acaba resolvendo dois problemas.
Cláudio reconhece que, de fato, “os estados do Sul”, incluindo também o
Paulo, “abasteciam” os outros com militantes, mas esse processo tinha a ver com a
“questão deles do Movimento que é expandir mesmo”, pois ninguém tinha
interesse que o Movimento ficasse no seu estado”. Ele conta que foi com a ida para o
Maranhão que ele que acabou conhecendo o que era o MST. Durante o acampamento,
125
Como explica Agrikoliansky na nota 2 de seu artigo (2005, p.27), a Liga dos Direitos do Homem e do
Cidadão foi fundada em 1898, durante o chamado “caso Dreyfus”. Ligado aos ambientes radicais, depois
socialistas, eles se tornam, entre as Duas Guerras, uma organização de massa que chega a 150 mil sócios.
Após a Guerra, a organização declina, nunca chegando a mais de 15 mil membros. No entanto, ela
permanece ativa, tendo participado das denúncias contra a tortura, durante a guerra da Argélia, nos anos
60. Hoje em dia participa nas mobilizações contra o racismo e da defesa dos direitos dos estrangeiros. A
Liga também tem atuação nos casos de excessos e violação de direitos ocasionados pela polícia, pelo
Poder Judiciário e nas prisões, tanto encaminhando reivindicações às autoridades políticas e
administrativas, como prestando assessoria jurídica.
148
nunca tinha tido oportunidade de conhecer o Movimento no Rio Grande do Sul, fora seu
próprio acampamento e alguns assentamentos de sua região de origem e de Bagé.
no Maranhão, tive oportunidade de conhecer o Movimento mais a
fundo; de fazer parte do Movimento mais a fundo. Bom, quando
cheguemo lá, o pessoal logo queria que fosse da direção, né? Pela
necessidade que tem de ser da dirão estadual.
Com o assentamento do grupo de Cláudio, em 1993, e a formação da
cooperativa, em 1994, eles contam ter começado a receber pedidos para que
retornassem. O casal negociou um ano mais e, em 1996, com Silvia grávida, resolveram
partir para construir sua vida no Sul. Era a hora de “estabilizar em algum lugar”. Como
Silvia era jornalista e “podia trabalhar em qualquer lugar”, pesou na decisão o fato de o
marido já ter a terra no Sul. Ela observa que na época não havia o sistema de
“permuta”, ou seja, no qual ele poderia abrir mão do lote no Sul do país para obter um
no Maranhão.
Apesar de terem retornado para o Rio Grande do Sul, não ficaram “internos” na
cooperativa do assentamento nos primeiros quatro anos. Como jornalista, ela fez
assessoria de imprensa na secretaria do MST do Rio Grande do Sul, e ele ficou
“liberado” para trabalhar na Coceargs (Central de Cooperativas de Reforma Agrária do
Rio Grande do Sul). Ao contrário de Graça, Silvia não sentiu dificuldade de espo para
atuar. Só achou muito diferente. De imediato, chamou sua atenção as diferenças do
ponto de vista da “estrutura”: muitos assentamentos, alojamento grande, secretaria bem
equipada, uma central de cooperativas, carros. Mas também percebeu que o
“funcionamento das coisas” e a lógica” das pessoas era distinto. No Maranhão, a
prioridade de seu trabalho era “captação de recursospara o MST poder fazer suas
atividades, cursos, encontros. Assessoria de imprensa não passava de “um bico”. No
Rio Grande do Sul, havia uma “demanda” dos meios de comunicação e do próprio MST
de “ocupar espaço na mídia”. Ela analisa que no Sul havia um nível diferente de luta
social, “era uma disputa na sociedade mesmo, e o espaço na mídia é privilegiado para
essa disputa, né?”
Silvia explica que sua experiência no Sul a fez entender melhor o porquê
daquele “militar” que via nos integrantes do MST que iam para o Nordeste.
Primeiramente, ela atribui essa postura ao tipo de repressão que o MST recebia no Sul,
que era proveniente das forças de segurança do Estado, ou seja, da Polícia Militar,
enquanto que no Nordeste havia a “repressão privada”, de jagunços e pistoleiros. Essa
dinâmica implicava inclusive uma gica de “segredo”, por razões de “segurança” que
implicava em uma atmosfera mais fechada do que a existente no Maranhão, onde tudo
era mais abertamente discutido com ela. Por outro lado, esse “militar”, para ela, tem a
ver com a “cultura militar” que ela encontrou mais arraigada no Rio Grande do Sul,
produto de uma história permeada por guerras civis e por sua localização fronteira:
Isso pode ter seus problemas, por exemplo, quando se confronta
com uma cultura mais do tempo, que tem tempo - do maranhense, por
exemplo. Isso tamm tem muito a ver com mérito do MST, sabe?
Assim, tem a ver com o sucesso, com conseguir viabilizar as coisas
(..). Um equilíbrio entre essa cultura do tem tempo” e da cultura “do
agora” (..). Do... “Ah, vamos fazer de qualquer jeito.” - digamos assim
“não, tem que ser feito assim, com regras.”. Eu acho que o
casamento dessas culturas assim, o diferentes, é o que consegue dar
força pro Movimento.
149
O casal, que tem uma filha, vive em uma casa confortável e tem um carro. Na
época da entrevista, ele trabalhava na lavoura de arroz orgânico do assentamento, e ela
concluía o mestrado na universidade federal local.
O professor e a professora
Do mesmo grupo do acampamento “Pinheirinho” e da mesma turma de
monitores de Cláudio, Fabiano foi designado para ir para Sergipe, onde viveu por três
anos. Oriundo de uma família de pequenos proprietários rurais (25 hectares), com ao
todo nove filhos (cinco homens e quatro mulheres), hoje tem a irmã mais velha
vivendo na comunidade rural onde nasceram, casada com um pequeno agricultor do
local. Os demais foram para a cidade, inclusive o pai, que acabou vendendo a terra e
aposentando-se. Segundo dos filhos homens, Fabiano foi o único a entrar para o MST.
Embora tenha incentivado os outros irmãos a ir acampar, como eles tinham que ajudar o
pai, trabalhando na propriedade que ainda estava sendo paga, não puderam ser
“liberados” na época.
Para explicar seu envolvimento com o MST, Fabiano o atribui à sua participação
no grupo de jovens da Igreja da comunidade, na qual tornou-se catequista por cinco
anos, e seu envolvimento com o Sindicato de Trabalhadores Rurais. Nesse processo,
acabou indo para o 3º Congresso da CUT, realizado em Belo Horizonte, no lugar de seu
irmão. “Vieram pedir se eu ia ir, e eu, com toda vontade de conhecer um pouco o
mundo, fui, né?” Tendo crescido em uma comunidade de pouco mais de dois mil
habitantes, Fabiano nem sabia o que era a CUT, mas tinha muita vontade de “conhecer
um pouco mais”. Depois da experiência nesse Congresso, o sindicato indicou que ele
acompanhasse um dos militantes do MST que estavam “articulando basepara o novo
acampamento, que se formou com a ocupação da fazenda Bacaraí, no segundo semestre
de 89. Fabiano acabou se integrando a esse acampamento, mas como era um
militante, passava parte do tempo fora do acampamento, com a tarefa de articular base
para um próximo. Tendo estudado até a 4º série primária, foi indicado para participar da
primeira turma de monitores de alfabetização de jovens e adultos, onde foi colega de
Cláudio. Ficou dois anos morando em um assentamento de Bagé, quando recebeu a
“proposta” de ir para o Sergipe, no início de 1993. Sua ida, segundo ele, também foi
motivada por “aquela vontade de conhecer”. Afinal, tinha ficado quatro anos como
militante no Rio Grande do Sul, agora, com certeza, iria conhecer mais.
Fabiano também foi para Sergipe junto com outro militante gaúcho, que ficou
apenas oito meses. Teve que voltar, segundo ele, por conta de problemas em sua
cooperativa. José, o dirigente local, conta que o que deve ter pesado nesse retorno foram
as dificuldades econômicas que se enfrentavam no estado naquela época. Com
pouquíssimos militantes, o funcionamento do MST dependia, segundo Fabiano, de
José, da mulher dele e de meia dúzia de militantes. Fabiano se recorda que, como era
solteiro, dava a camisa, não se importava que passava fome”, mas ele não via o MST
projetar militantes neste estilo que ele conhecia. s era aqueles militantes mesmo. A
gente dava o sangue pelo Movimento, assim de passar fome, trabalhá nos assentamento
aqui no Rio Grande do Sul”. Para ele, não havia esse “espírito de militância” no
Sergipe. Era “muito fraco”. Os militantes atuavam por que, segundo ele, recebiam
alguma “ajuda de custo”. no caso deles: nós trabalhava, trabalhava porque nós era
militante, tinha essa consciência, e eles não”.
Com a tarefa de contribuir na área de formação, Fabiano chegou em Sergipe na
época em que o MST estava investindo nos chamados “cursos prolongados” que
duravam cerca de nove meses e combinavam formação política com alfabetização para
150
candidatos a militantes de rios estados da região. Ele se recorda que em uma sala de
aula com 65 alunos do curso, 48 eram analfabetos, entre estes, um militante que ficou
conhecido e que, mais tarde, foi para o MLST (Movimento de Libertação dos Sem
Terra). O aumento do número de militantes nesta região pode ser atribuído justamente à
existência desses cursos que, segundo Fabiano, “revelaram” muita gente.
Funcionando no assentamento Quissamã, local onde hoje funciona o Centro de
Formação” do MST em Sergipe, quando Fabiano chegou, a área ainda era disputada
pelo MST e, portanto, o curso ocorria em meio a conflitos de diversos tipos. A terra
pertencia à Embrapa e estava desativada fazia anos quando o MST a ocupou. Segundo
José, ela estava praticamente negociada com uma Usina para fazer plantio de cana-de-
açúcar, quando os sem-terra montaram seu acampamento no local. Comprada da
Embrapa pelo Incra em 1993, os trâmites legais se concluíram de fato alguns anos
depois. Fabiano recorda que não havia nenhuma “estrutura” quando chegaram no local.
Dormiam em uns galpões cobertos de lona e volta e meia faltava água e comida. “O
Movimento fazia essa loucura também”, recorda. Entre os coordenadores do curso, que
viviam ali com eles, estava Joana, Adelmo e sua mulher, ambos responsáveis pelo setor
nacional de formação do MST até hoje. Comentando sobre as dificuldades que
enfrentavam, Fabiano recorda: “Chegaram no limite mesmo da vida deles ali porque era
muito... E o pessoal lá era muito cru que vinha”. Segundo ele, muitos alunos apareciam
mal-orientados pelos dirigentes estaduais, esperando serem pagos, e voltavam correndo.
No final, 26 alunos acabaram concluindo o primeiro ano do curso prolongado que
durou nove meses. No ano seguinte, o curso passou a durar seis meses e, no último ano
de Fabiano no estado, já durava três meses.
Em seu segundo dia em Sergipe, Fabiano conheceu Lucia, filha de uma família
de acampados no Quissamã. Eles contam que têm até foto desse primeiro encontro do
casal, descansando de um trabalho na lavoura. Nascida em uma favela em Copacabana,
Lucia morou até os 15 anos no Rio de Janeiro.
Nós tava morando no Rio, que meu pai não gostava, ? Por causa
dos traficantes... porque era uma lei, né? Tu mora no morro, é uma lei
que tu tem, né? E o pai tava com medo porque eu já tava mocinha.
Como tem primos que também se envolveu, um já tinha sumido, outro
já tava em boca de fumo, aquele rolo todo.
A mãe, natural do Sergipe, havia abandonado marido violento e dois filhos
pequenos para fugir para o Rio, mas queria voltar para “ver os filho” e acabou puxando
a família para lá. O pai, paraibano, havia crescido na roça e foi parar no acampamento
do MST do Sergipe depois de tentar várias alternativas. A família passava por diversas
dificuldades, pois ele não conseguia arranjar emprego como pedreiro, sua profissão, e o
dinheiro obtido com a venda da casa no morro, em Copacabana, estava terminando.
Na época do acampamento, Lucia ficou para trás, morando com uma vizinha na
cidade de Salgado, para concluir o segundo ano do Segundo Grau. Chegou na área em
1993, quando estava se tornando assentamento e acabou concluindo o magistério em
Aracaju. O namoro comou meio como quem o quer nada. “Às vezes ficava lá,
ficava, ficava e acabou ficando né? e acabamo ficando junto né? nem casamo,
nada, ficamo junto só. Amontoado como se diz”, recorda Fabiano. Quando Lucia ficou
grávida da primeira filha do casal é que eles começaram “a ficá mesmo junto”, conta
ele. E foi também um período de grandes dificuldades que ele não recebeu “ajuda de
custo” até o sétimo mês de gravidez dela, o que significava tanto falta de “carne”, como
de qualquer enxoval para o bebê. O período de penúria durou até aparecer um dirigente
nacional no curso, para quem ele explicou a situação do casal. Era o segundo ano de
151
Fabiano em Sergipe. No terceiro ano, Fabiano foi fazer um curso de militantes na
Escola Nacional que, na época, funcionava em Caçador, Santa Catarina, e acabou sendo
convidado para ajudar na administração do Centro, para o qual foi devidamente
“liberado” por Sergipe. Sua tarefa era ajudar na prestação de contas de um projeto.
Deveria ficar até o final do ano e depois retornar a Sergipe. No final do ano, foi
apresentar a mulher e a filha para os pais, aproveitou também para visitar sua
cooperativa e acabou tendo que acatar uma nova mudança de planos. Segundo ele, foi
feita uma reunião e “foi decidido algumas coisas”. A cooperativa definiu que ele e os
demais “liberados” do assentamento, como Antonio, que estava no Ceará, teriam que
retornar para ajudar na estruturação do assentamento. Lucia e a filha, que tinham ido se
reunir com ele em Caçador, também foram pegas de surpresa. Ele conta ter saído de
casa sem saber que não ia voltar mais. “Porque eu saí de lá do Sergipe sem sabê de
nada. Spra fazer o curso e acabou eu ficando lá e vindo voltando pra cá, e a minha
vontade era de ficá lá”.
Engajado no aprimoramento do curso prolongado, Fabiano havia se tornado um
dos coordenadores do curso e admite que, se pudesse, teria continuado por .
Responsável pelo ensino de matemática, já tinha até preparado uma apostila para
ensinar cálculos de medição de terra. Hoje com duas filhas de 11 e 6 anos e trabalhando
no matadouro do frigorífico da cooperativa, Fabiano nunca mais retornou ao Nordeste.
Soube pela mulher, que voltou duas vezes para rever a falia, que o Centro de
Formação do MST, no Quissamã, está agora com telefone público, vários quartos para
alojamento, computadores com banda larga e cozinha equipada. Comida não falta mais.
Água também, se a bomba não dá problema.
Lucia, sem ter qualquer experiência agrícola, acabou tornando-se uma das únicas
mulheres sócias da cooperativa. Dos 29 cios, somente sete são mulheres. As demais
preferem trabalhar fazendo faxina nas cidades próximas. Ela diz ter se adaptado à vida
na cooperativa porque o marido já a havia preparado:
Quando nós começamos a ficar junto, o Fabiano já dizia, “olha, a
gente não vai ficar aqui, porque acampado lá. Vai sair terra lá, e a
gente vai pra lá”. O espírito ele me preparava pra isso. Eu
imaginava chegar, tu vai na roça, tu não vai pra trabalhar na cidade,
não é? Na minha cabeça, tu vai na enxada, eu me acostumava, a
idéia e o espírito já tava acostumado. Por isso que eu acho que o
impacto não foi tão grande.
Se a volta foi definida de forma inesperada, Fabiano confessa que sempre teve
em mente retornar ao estado e ir para seu lote. “Sempre quis ter terra”. Na época de
decidir ir para o acampamento, Fabiano tinha a proposta de ser agente de saúde em seu
município, mas seu pai, que foi um dos grandes incentivadores de sua entrada no MST e
ajudou-o a se manter no acampamento, alertou-o: “Fabiano, vai no Movimento Sem
Terra. Vai te acampar, porque um dia tu vai ter terra e tu vai ver que é melhor”.
Embora tenha decidido “militar” no Movimento Sem Terra, diz que em um
momento se deu conta: Tava dando toda a minha vida pro Movimento e tava ficando
sem nada. Eu não tinha mais estrutura”. Também pesava nesse projeto de retorno, a
vontade de ficar próximo da família, que vive hoje em Erechim. “Eu sou bastante
apegado a eles”. A mulher “prefere não pensar” na distância que vive de seus familiares.
Na época da entrevista, Lucia, que começou trabalhando no leite e depois foi para o
aviário, estava atuando na secretaria da cooperativa, tendo como tarefa controlar todas
as compras e vendas efetuadas pelos vários setores, cujos resultados ficavam
estampadas no mural. Formada em magistério, também foi professora de um projeto de
152
alfabetização de adultos no assentamento, promovido pelo governo estadual. Trabalhava
de dia na cooperativa e de noite na alfabetização. Acabou sendo tirada do projeto,
porque, para rever a família, aproveitou para pegar carona no ônibus do MST que ia
para um semirio nacional de agroecologia que aconteceu em Recife. Segundo o
marido, a razão de terem-na tirado do projeto foi “politicagem”, pois sua viagem não
atrapalhava o andamento das aulas. “Já tinha outra pra vim pro lugar”. De qualquer
modo, suas dez alunas assentadas na área se solidarizaram com ela e saíram da classe.
Lucia passou, então, a dar aula para elas de noite, como voluntária, na sede da
cooperativa, em um projeto vinculado ao setor de educação do MST.
5.5 Uma geração marcada pela politização da Igreja
As trajetórias dos militantes apresentados neste capítulo apresentam
características comuns e até uma espécie de homogeneização social que provavelmente
não se repete nas gerações de militantes que se sucedem no MST. A princípio porque
todos são oriundos do meio rural, mais precisamente de comunidades de pequenos
agricultores do interior do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, e essa característica
provavelmente não impera mais como naquela época, visto que hoje se encontram
muitos militantes oriundos de outros meios sociais.
Considero que os membros da primeira e da segunda geração do MST que se
deslocaram para outros estados tiveram a particularidade de moldar esse estilo de
militância, pois eram encarregados de expandir as ações deste movimento social para
uma outra região. Neste trabalho, estudo particularmente o caso dos militantes
deslocados que eram oriundos da região Sul do país. Mas é provável que algumas
características desse grupo sejam compartilhadas por militantes de outros estados que
também migraram nessa época de expansão do MST.
Fica patente entre os entrevistados que a ida para os acampamentos e para a
militância no MST estava vinculada a alternativas de reprodução social para esses filhos
de camponeses. De famílias cuja atividade profissional estava vinculada à agricultura,
chegam à idade adulta em um período de democratização do país, em que a “reforma
agrária” disputa com a fronteira agrícolaas promessas abertas para eles poderem se
reproduzir como agricultores. Mas, ao contrário de irmãos e outros companheiros de
geração, os membros desse grupo social descartaram a cidade como alternativa possível.
Entre outros dados comuns a todos os militantes sulistas entrevistados está o fato
de todos serem filhos de pequenos e mesmo micro proprietários rurais e de terem
“aceitado o convite”, “a propostade “ajudar” a construir MST em outros estados bem
jovens. Todos também são oriundos de atividades políticas e sociais vinculadas à Igreja,
então sob plenos efeitos da Teologia da Libertação. Entre os membros da primeira
geração, alguns praticamente saíram da vida religiosa para atuar no MST. Os dois
únicos entrevistados que não mencionam a Igreja são da segunda geração e tem família
vinculada ao movimento sindical ou ao próprio MST.
A decisão de se inscrever em um destino coletivo se apóia, portanto, em toda
uma vivência familiar e mesmo individual em instituições que estimulam essa
disposição. Como o MST surge como um “filhote” deste ambiente cio-político, até
por ser conduzido por jovens e basear suas lutas em ões vistas como “violentase
“ousadas”, carregava um maior teor de radicalidade ideológica e, portanto, geradora de
um ambiente social bastante atraente para jovens que não buscavam um lugar no
mundo, como precisavam fazer uma ruptura com a família para poderem criar a sua
própria. O engajamento no Movimento torna-se, deste modo, um estilo de vida, uma
maneira de viver a juventude e acompanha a busca, por parte desses jovens, de um
153
status independente da família e de seu ambiente social de origem (Yon, 2005,
p.146).Nesta jornada, como se depreende de seus depoimentos, enfrentaram vários
sacrifícios, inclusive a fome.
A principal retribuição por essa dedicação, principalmente para os membros da
primeira e da segunda que ficaram no Nordeste, foi obterem um estatuto de
permanente”, serem, portanto, remunerados para atuarem no Movimento. Já os
militantes que retornaram do Nordeste ficaram majoritariamente “internos”, até por
serem oriundos de um período em que a atuação do MST incorporava preocupações
com a produtividade e viabilidade de seus assentamentos. Embora continuem a
contribuir com o MST, são hoje profissionais da agricultura, mais dedicados, portanto, à
manutenção de seus lotes e à vida familiar.
Tendo experimentado um período de intenso engajamento que durou até o
retorno ao estado de origem, em seu discurso atual sobressai a versão de que houve uma
espécie de coerção de seus grupos do acampamento que, já então assentados, exigiram o
retorno de seus militantes “liberados” para contribuírem com a estruturação dos
assentamentos. Como deixaram para trás a vida de instabilidade, mas também de
oportunidades de ter mais mobilidade e conhecer outros lugares e mundos sociais, hoje
relacionam essa decisão mais a uma “imposição”. Entretanto, fica claro que esses
jovens, recém-casados procuravam também se “assentar”, no sentido, de “estabilizar” a
vida que levavam para poderem, eles também, acumularem “estruturas”, ou seja, algum
patrimônio.
É importante destacar que o engajamento dos militantes de primeira geração se
em um período onde o MST era um movimento novo, com pouquíssima expressão
política nacional, onde seu principal objetivo era expandir-se para novas regiões, fazer
proselitismo desta nova fé” na possibilidade de “transformar” o país atras de
ocupações de terra, acampamentos e luta pela reforma agrária.
os militantes da segunda geração, em seus primeiros contatos com a luta do
MST, enfrentaram um período marcado pela repressão e silenciamento da luta pela terra
e a reforma agrária, e que também reverberava a “queda” do Muro de Berlim e o fim da
União Soviética
126
, característico dos dois anos do Governo Collor. Esse contexto foi
representado, no Rio Grande do Sul, pelo traumático conflito ocorrido na Praça da
Matriz, em que a opinião pública hegenica ficou contra o MST, posição vivenciada
internamente no MST como injusta. Este período demarca o “auge militância” e explica
também o grande desprendimento desses militantes que, ao partirem para outros
estados, enfrentaram condições de vida difíceis, falta de renda, moradias precárias,
pouca alimentação e riscos de vida.
Este sentimento de adversidade política possivelmente estimulou a interiorização
de uma disciplina rigorosa (Yon, 2005, p.148), como em geral é caractestico do estilo
de milincia do MST até hoje, aspecto bastante vivel nos cursos e mobilizações que
organiza
127
, sobretudo os de “caráter nacional”, como os congressos e as marchas
126
É importante se destacar que, como movimento social, o MST desde seu início manteve contato com
correntes políticas vinculadas ao socialismo e, mesmo, ao leninismo e ao chamado “socialismo realmente
existente”.
127
Um exemplo dessa dinâmica interna do Movimento foi a Marcha de 2005. Eram mais de 12 mil
pessoas percorrendo a estrada que liga Goiânia a Brasília em uma espécie de evolução habilmente
organizada. Todos os dias os participantes, divididos nos barracos de seus estados, acordavam de
madrugada, por volta das cinco horas da manhã, para formarem filas e percorrerem de 12 a 18 km por
dia. O fim da caminhada diária era uma área privada “ocupada” naquele dia e abandonada no seguinte
sem sinal de lixo, de danificação da propriedade, mesmo tendo sido ocupada por milhares de pessoas que
haviam comido, tomado banho, feito suas necessidades fisiológicas e dormido naquela área. Até mesmo a
cerca da propriedade era colocada no lugar e restaurada pela equipe de “estrutura” do MST. Esse “valor”
154
nacionais. Aliás, um exemplo claro da disciplina, propagada dentro do MST como um
valor, é a pontualidade para dar início às reuniões, assim como um “teto” para terminá-
las, que demonstra uma grande capacidade de racionalidade organizacional, também
produto do “espírito de serviço” e da “profissionalizaçãobuscada e incentivada entre
os militantes do MST.
Outro exemplo desse padrão organizativo e disciplinar é o fato de que as turmas
que fazem cursos do MST se organizam internamente em “brigadas”, assumindo
responsabilidades também na manutenção e na infra-estrutura dos cursos. Em geral, as
brigadas cotizam entre si tarefas” como limpeza, cozinha, mística, etc. São, portanto,
atividades vinculadas à manutenção do cotidiano, como também do “clima” interno e
político da turma. Os representantes das brigadas se reúnem periodicamente para
discutir e deliberar questões ligadas tanto ao curso propriamente dito, como às
necessidades cotidianas dos alunos, reproduzindo uma dinâmica parecida com a
vivenciada através da organização interna dos acampamentos do MST. Essa disciplina
“militar de militar, como observa uma das mulheres que seguiram seus maridos para o
Sul do país, pode ter entre suas raízes a história política do Rio Grande do Sul, estado de
fronteira, onde sua elite política protagonizou três guerras civis e valorizava tanto este
estilo que colocava seus filhos para estudar em escolas militares
128
.
Esse “engajamento total”, típico de organizações revolucionárias, explica não
a dinâmica de desprendimento que caracteriza o “missionarismo dos militantes
emigrados para o Nordeste, como também o fato de sua vida social, familiar e amical
ser totalmente marcada por esta militância. njuges, parentes, vizinhos e amigos
próximos são todos vinculados a essa experiência, o que reforça também um princípio
de divisão do mundo social e político que fixa uma fronteira rígida entre o “interior” e o
“exterior” a esse movimento social. Se, por um lado, essa situação pode ser atribuída ao
estigma que os sem-terra carregam na sociedade brasileira, ela não é um processo de
mão única. O “ser do MST” se constrói definindo muito claramente o que é de “fora” da
organização, mesmo que este “ser de fora” da organização assuma degraus distintos que
vão dos “amigos” aos “inimigos”. É interessante observar que os entrevistados que
tiveram um passado militante na organização e hoje estão “internos” a seus
assentamentos se referem muitas vezes ao MST em terceira pessoa.o é um “nós”. Há
mesmo um certo esforço para se incluir nesse espaço social e simbólico, como
demonstra o depoimento de Graça, dando a entender que “ser” do MST é efetivamente
ocupar alguma função dentro de sua estrutura burocrática ou em uma instância.
Aparentemente, é preciso ter um estatuto de “representante” ou mesmo “funcionário” da
organização para “ser do MST”.
pela disciplina e pela organização interna é uma característica das atividades nacionais do MST, onde
esse habitus militante, de certo modo gestado em um contexto sulista, é posto à prova e apresentado para
os novos integrantes de suas fileiras.
128
Apoiando-me em Elias (1997), é possível que efetivamente o comportamento de dada população, neste
caso, a rio-grandense, com forte identidade regional, tenha sido influenciada pelo habitus de suas elites.
155
Capítulo 6
A modernidade do MST
Neste capítulo, a partir das entrevistas e de dados colhidos no trabalho de campo,
levanto aspectos que corroboram a tese que subjaz este trabalho, que é o caráter
modernizante da luta empreendida pelo MST. Para tanto, são enfocados dois eixos que
caracterizam a “metodologia” do trabalho político do MST tanto no Nordeste como em
outras regiões do país: a produção agrícola e a educação continuada.
6.1 Padrões de ambição
Diferente de outras migrações de agricultores sulistas, tais como a retratada por
Haesbert (1997), que criaram um bairro de “gaúchos” em Barreiras, preferem
casamentos com pessoas de mesma origem cultural e têm como lugar importante de
convívio os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs), os “migrantes militantesdo MST
demonstram uma grande integração com a cultura dos locais para onde foram, tendo
estabelecido fortes vínculos e relações de parentesco por meio do casamento. A maioria
demonstrou assumir hábitos culturais locais, como os alimentares, entre outros. Isso se
evidencia, por exemplo, no gosto pelo coentro, tempero típico da cozinha nordestina e
pouco apreciado no Sul do país. Muitos traduzem essa disposição falando terem sempre
procurado “ser como eles”, ou seja, viver como os nordestinos, comer o que comiam,
trabalhar com eles na roça, morar em suas casas e localidades etc. Tanto em sua vida
cotidiana, como em seu discurso, esses militantes demonstram integração e uma
valorização da cultura local nordestina. Essa era inclusive uma orientação expressa que
o MST dava a esses militantes, como se depreende do depoimento de Cláudio,
apresentado no capítulo anterior. Em suma, apesar de serem, em geral, de pele e cabelos
mais claros, ou então, terem um forte sotaque sulista, até pela proposta do MST,
procuraram se indiferenciar nas regiões para onde foram deslocados, tentando diminuir
ao máximo suas distinções culturais, mesmo que isso fosse, na verdade, impossível. De
qualquer modo, é essa disposição dos militantes do MST de se mesclar a suas bases que
provavelmente evitou que fossem alvos ceis da violência perpetrada por pistoleiros e
jagunços. Sua invisibilidade pública, contribuía também para sua proteção nos
acampamentos e assentamentos que organizavam.
Há, entretanto, três diacríticos levantados pelos militantes sulistas em relão à
cultura local, relativos à esfera da “produção”, que quero explorar: o grau de ambição
econômica e social, capacidade de planejamento a longo prazo e o domínio de técnicas
agrícolas. Em praticamente todas as entrevistas feitas, quando se abordou uma questão
vinculada a esses temas, todos os entrevistados deram respostas semelhantes em relação
à diferença existente entre os sulistas e os nordestinos.
Este é um dos aspectos centrais da minha análise sobre o MST, pois é onde
posso desenvolver a tese do papel modernizante que esse movimento social tem nas
regiões nordestinas para onde se expandiu. De certo modo, ele difunde com suas lutas
práticas baseadas em uma mentalidade mais pautada no racionalismo pragmático, no
interesse monetário e na funcionalidade, disposições arraigadas nesses migrantes
156
sulistas e que, na verdade, refletem princípios da modernidade. Ambos diacríticos estão
presentes nas entrevistas dos militantes de primeira e de segunda geração, tanto dos que
ficaram no Nordeste, como dos que retornaram para o Sul, cujas trajetórias foram
apresentadas no capítulo anterior.
Basicamente, na visão desses sulistas, os nordestinos vivem muito “em função
do presente”:No Nordeste vonão tem uma preocupação, assim, de garantir um
amanhã melhor. Vive muito o momento hoje. É garantir, de sobreviver, de ter o que
comer, ter comida para os meus filhos hoje”, como definiu Antonio. Para ele, essa
questão talvez esteja na raiz da dificuldade de se estruturarem cooperativas e grupos
coletivos nos assentamentos do MST:
Essa preocupação faz com que você acredite mais no seu trabalho,
porque é uma responsabilidade minha. Aí então o coletivo, a
organização do trabalho fica em segundo plano. Então, muito certo
o roçado individual, por exemplo, mas o roçado coletivo tem
dificuldades de dar certo.
Em seu trabalho no setor de produção, ao constatar que a ambição em “melhorar
de vida” estava muito distante do universo dos assentados, Valter contou que muitas
vezes dizia a eles que tinham que “pensar em ser rico”, “não ter medo de ter as coisas”.
Em sua opinião, essa atitude dos nordestinos tinha uma relação com “uma vida toda de
experiência”, de nunca conseguirem sequer conceber essa possibilidade ou por terem
sido “sempre enganados”.
Dora ficou absolutamente “abismada” com o “roçado” do sertão paraibano - a
estreita faixa ainda úmida de um açude castigado pela seca de anos e as
“espiguinhas de milhocolhidas pelos sem-terra locais e exibidas “com a maior alegria
do mundo”.
Como é que pode? É tão pouco, tão pouco e as pessoas sãoo
satisfeitas! A situação de dificuldade, de miséria era muito grande e as
pessoas... não sei, a simplicidade que existe pelo sofrimento das
pessoas... ela é tão grande que aquilo dali era muito bom.
Outro estranhamento ressaltado pelos entrevistados - de direta relação ao uso
que os assentados dão aos lotes - é a diferença de mentalidade existente entre sulistas e
nordestinos no que se refere à acumulação. Como observa Valter, os nordestinos têm
uma ambição “menos ousada”:
Vai da própria cultura da sociedade, de lutar para ter as coisas. O
nordestino também faz isso. que ele faz isso de uma forma mais
humilde. Enquanto o sulista pensa num carro, na melhora de uma
casa, ele na terra quer ter os bichinhos, a vaca de leite, a cabrinha,
quer ter uma casinha.
Na visão de Dora, enquanto “lá no sul as pessoas trabalham para acumular”, no
Nordeste, o povo “tá preocupado em ter o que comer e em ter o dinheirinho pra se
divertir”. Segundo ela, tem gente que trabalha a semana inteira pra juntar dinheiro
para ir na festa no final de semana. Referindo-se à vivência junto à sua família, ela conta
que seu pai “trabalhou a vida toda porque queria enriquecer, assim como todos os
vizinhos de se matam trabalhando”. Casada com um pernambucano, hoje vive esse
conflito dentro de casa quando pensa em guardar dinheiro, economizar, e o marido
“quer ir a uma festa”. “Eu digo: mas a gente não podia gastar, e ele: “a gente vai viver a
157
vida pra quê?Eu sempre me dou conta....Pra que é que eu vou guardar? Eu tenho esse
negócio do guardar que eu acho que é muito sulista”.
Para Antonio, no Nordeste, não tem muito aquela coisa de “ter o meu”, no
sentido de “coisas pessoais”, como “melhorar a sua casa, se ter móveis dentro de casa
ou coisa parecida. É mais importante você viver o momento. Ele atribui essa
disposição também às circunstâncias climáticas que fazem com que exista trabalho
quando chove. “Não tem o que fazer, seco, e o trabalho é o roçado”. No resto do
tempo, segundo ele, como no verão, o pessoal fica em casa. É bastante contraditório
com o que se vive no Rio Grande do Sul, que é aquela coisa: trabalho, trabalho,
trabalho. No Sul votrabalha, trabalha, se esforça muito e não tem nada, mas naquela
coisa de ter.”
Apesar do “sofrimento” que padecem no Nordeste, para Antonio, “é mais fácil
você tornar um nordestino feliz do que um gcho feliz”. Questionado sobre o que seria
a “felicidade” para o nordestino, ele explicou em tom jocoso, mas demonstrando
admiração: “Por exemplo, lá no Sul para você fazer uma festa, precisa ter carne, precisa
ter cerveja. Aqui o pessoal faz uma festa tendo um litro de cachaça. Todo mundo bebe e
até ficam bêbado, né?”
Joana também faz uma observão semelhante sobre o modo como o sulista leva
sua vida em relação ao modo de vida do nordestino:
No Sul se vive para trabalhar, se vive para ter casa, se vive para ter
terra, se vive para ter um carro. Aqui as pessoas vivem mais a vida, se
divertem, dançam. Porque as pessoas do Sul, de qualquer origem, o
mais preocupadas com o material, com o bem estar. Que é importante,
mas também tem o outro lado. Aqui as pessoas... bom se ela tem uma
casa, bom...mas ela não é o ambiciosa. As pessoas não são o
ambiciosas.
Quando se toma o caso dos casais que retornaram, observa-se no discurso deles
o quanto pesava na decisão a necessidade de ter “suas próprias estruturas”. Fabiano,
que teve que sair do Sergipe sem planejamento prévio, justifica sua decisão de não
atender aos convites do sogro para voltar:
Nós construímos uma família, temos duas filhas, uma terra, uma casa,
temos tudo, não é? Que é um sonho de qualquer família, o é? Sair
também assim, se desfazer pra ir? A não ser que um dia, eu seja
liberado do Movimento.
Embora não tenha cumprido o projeto do casal de militar mais pelo MST em
outras regiões e mesmo fazer parte de um assentamento coletivo, Osvaldo também se
apóia na família e nas “estruturas” para justificar suas escolhas. “A gente criou a família
e também criou uma estrutura A gente foi se enraizando. Hoje nós temos árvore que
dá mais de 40 cenmetros de volta, né?”
Em suma, embora tenham sido militantes que se submeteram a sacrifícios para
cumprirem as “tarefas” do MST, e até se dispusessem a permanecer na milincia por
mais tempo, o projeto de voltar para seu estado de origem e, então, se enraizar” está
fundamentalmente vinculado à expectativa de alcançar estabilidade e um determinado
padrão de vida, considerado necessário para se sentirem realizados plenamente:
alimentação farta (com particular destaque para carne, ou seja, para a possibilidade de
fazer churrascos periódicos), uma casa confortável e de preferência “bonita”, com
eletrodomésticos, carro e acesso à escola e a demais serviços oferecidos pelo Estado,
158
como saúde e transporte público. Por outro lado, a noção de que o padrão de vida que se
vivia no Sul devia ser possível também no Nordeste foi um ingrediente importante na
manutenção da disposição de militância daqueles jovens, como observa Joana:
Para nós é comum viver numa casa bonita. Aqui não é comum. Aqui
uma pessoa que tem uma casa dessas é o que vive bem. Para nós isso é
comum, é posvel todo mundo ter. E porque é que não é possível?
Esse meio que você vivia lá, das coisas que são possíveis, por que é
que aqui não são possíveis? Isso te ajuda a mostrar que é possível. É
possível as pessoas ter uma casa boa. É possível as pessoas viverem
bem, as pessoas poderem ir no mercado, as pessoas se educarem, é
possível as pessoas terem uma escola digna. Porque você saiu de um
meio que era possível para vir para um meio para tornar possível.
Como esse discurso explicita, o padrão de ambição econômica dos sulistas está
associado a uma gama de valores que, se por um lado, fez parte da decisão de alguns
militantes de retornar para sua região de origem para realizá-los plenamente, por outro,
foi um motor importante de sua disposição a militar no Nordeste. Se, no Sul, tal padrão
de vida era possível, ele também podia ser no Nordeste. Os próprios valores difundidos
pelo proselitismo político do MST são embebidos nas vivências e no modo como esses
militantes foram socializados no Sul do país, onde a naturalidade com que se dispunha
de determinados bens, sejam eles a casa “bonita” ou o acesso à escola, tornaram mais
aguda a percepção que esses militantes tiveram do modo como sua base social no
Nordeste vivia: a desproporção entre a pobreza e a concentração de riqueza existente
129
.
Em suma, a noção de que aquelas condições de vida dos trabalhadores rurais
nordestinos era uma “injustiça” (Moore Jr, 1980), diante do grau de monopólio e sub-
utilização da terra que encontravam no Nordeste, tornou-se um combustível importante
para que, no trabalho de base empreendido na região, esses militantes desnaturalizassem
esse estado de coisas e reunissem a população local para fazerem ocupações e
acampamentos em terras que, para elas, até então eram invioláveis. Isso se torna ainda
mais patente quando se percebe que, ao contrário dos acampamentos que se fazem no
Sul do país, os organizados no Sergipe, Pernambuco e Paraíba geralmente agregam
pessoas que vivem no município onde se localiza a terra visada para desapropriação e,
portanto, cujo dono eles conhecem ou, no mínimo, ouviram falar. Logo, com quem de
algum modo havia uma relação pessoal, mesmo que distante. No Rio Grande do Sul,
em geral, até por falta de terra na região de origem da maioria desses agricultores e pela
necessidade de se fazerem acampamentos massificados, com mais de 500 famílias,
reuniam-se famílias de diversos municípios para ir para regiões distantes, onde havia
disponibilidade de terra improdutiva.
Por outro lado, é interessante notar que a visão que os militantes do MST m
dos nordestinos, ou seja, como eles se redefinem enquanto sulistas em relação às
populações com quem passaram a conviver, levanta determinadas categorias de
oposição, trabalho/festa e ambição/despretensão (ou modéstia) também levantadas por
Haesbert (1997). Este autor descreveu o encontro entre agricultores sulistas que foram
plantar soja no cerrado do Oeste da Bahia, levando em conta o recorte identitário entre
baianos e “gaúchos” para analisar as relações sociais e os conflitos que passaram a
ocorrer naquela região, a partir da modernização agrícola trazida pelos sulistas e seu
129
É fato que este militantes foram acampar porque vivenciavam uma crise de reprodução social em sua
região que, se o lhes atingia diretamente, propiciou o clima político para deslanchar essas lutas. Por
outro lado, para um sulista, a discrepância social encontrada no Nordeste é muito marcante.
159
conseqüente poder econômico
130
. As idênticas dicotomias levantadas pelos dois grupos
de sulistas demonstram como a ética do trabalho está arraigada entre os militantes do
MST, apesar de serem portadores de um projeto antagônico ao dos agricultores que
foram para os cerrados baianos. Mais do que “gauchismo”, Haesbert propõe “sulismo”
para denominar esta “identidade moldada fundamentalmente pela origem étnica
européia que está além do gauchismo vinculado aos símbolos e práticas culturais das
esncias da Campanha Gaúcha” (Haesbert, 1997, p.168). Esse “sulismo” se caracteriza
pelo grande valor dado ao trabalho e ao ganho dele advindo, à disciplina, à propriedade
privada, reforçando o mito burguês da ascensão social pelo “esforço pessoal”. Ele
também embute categorias de percepção do mundo focadas na ordem, na disciplina, na
previsibilidade, no raciocínio prospectivo, que ocupam alta posição na hierarquia dos
valores da modernidade e das sociedades capitalistas (Souza, 2006). É importante
também observar que a força econômica obtida pelos gaúchos no Oeste baiano foi
decorrente do domínio técnico que eles trouxeram do plantio da soja, o que possibilitou
uma mudança, segundo Haesbert (1997), “arrasadora” da paisagem dos cerrados
baianos, antes considerados improdutivos pela população local.
Ao levarem as grandes lavouras mecanizadas de soja, estes gaúchos
difundiram também “uma identidade cultural dita “tradicionalista”, avaliada sempre
positivamente” (Idem, p. 255) e que se fortaleceu em relação à identidade nordestina,
marcada por estigmas, como a preguiça”, a “burrice”, a “modéstia”, “falta de
ambição”. Essa percepção gerou, ao mesmo tempo, coesão entre os “gaúchos” que
vivem nessas regiões e segregação deles das populações locais. Em suma, o modo como
os sulistas chegaram no cerrado baiano gerou uma espécie de segregação entre os dois
grupos sociais baseada no reforço de estereótipos e representações que ambos
construíram sobre si mesmos e sobre a identidade regional do Outro, tornando esse
encontro marcado por conflitos. No entanto, como observa Haesbert:
A “ambição”, o caráter empreendedor e “decidido” e a conseqüente
superioridade do sulista frente ao nordestino “despretensioso e
resignadotem muito a ver, conforme já ressaltamos, com as formas
de sua inserção na moderna sociedade capitalista (Haesbert, 1997, p.
170)
E, como conclui o pprio autor, confrontam-se nos cerrados baianos “dois
padrões de acumulação, vinculados a dois ritmos e duas concepções distintas de
trabalho, de competição e de lucratividade” (Haesbert, 1997, p.171). As práticas
vigentes até a chegada dos “gaúchos”, não por acaso produziam uma relação mais
harmônica com os frágeis ecossistemas do oeste da Bahia, cada vez mais ameaçados
pelo esgotamento do potencial hídrico e dos solos, pela laterização
131
e por uma erosão
crescente.
Assim, como os militantes do MST, os “gaúchos” entrevistados por Haesbert
apontam esse “viver no presente”, o “não fazer nada para amanhãdo nordestino, com
o modo do sulista de pensar muito o presente em função de um futuro. Por outro lado e
talvez justamente por isso, este autor identificou que os gaúchos tendem a procurar se
sintonizar com o que de mais moderno, mais na moda” do que os baianos, estando
sempre ávidos pelas últimas novidades. Para Haesbert, o presente dos nordestinos acaba
130
Embora Haesbert levante mais categorias de oposição dos que as abordadas neste trabalho, para os
objetivos desta tese bastam trabalhar com essas duas perspectivas.
131
Processo de desgaste do solo, empobrecendo-o em nutrientes e dando-lhe o aspecto avermelhado.
160
tendo “um ritmo próprio, mais subjetivo, tentando respeitar, pelo menos em parte, a
escala pessoal de vivência de cada um”. É isto que permite a eles, manter “ainda que de
modo às vezes ilusório” seus ritmos próprios “de trabalho (e de ‘festa’)” (Ibid., p.173).
É importante observar, no entanto, que enquanto os agricultores gaúchos que se
instalaram em Barreiras reforçaram a segregão e mencionam as oposições
trabalho/festa e ambição/modéstia de modo a reafirmar sua suposta “superioridade”, os
militantes do MST expressam esses mesmos estertipos de forma a quase criticar sua
cultura de origem, como se os nordestinos, em geral, soubessem ser mais felizes, viver
melhor a vida do que os sulistas que vivem para trabalhar, para ter casa, para ter
carro. Os militantes do MST que vivem ou viveram no Nordeste, escoltados pelo
projeto ideológico de seu movimento social, foram conduzidos a experimentar uma
relativização dos valores culturais que vivenciavam em sua origem, conseguindo se
desidentificar parcialmente com o perfil tradicional dos sulistas, que se caracteriza por
ser mais vinculados à ética capitalista e que é compartilhada pelos outros migrantes
“gaúchos” que hoje dão a tônica ao chamado agronegócio”. Em linhas gerais, esta
identidade está associada ao valor dado à propriedade privada, ao trabalho familiar, à
ambição por um determinado padrão de acumulação e ao reforço do caráter étnico (a
descendência ítalo-germânica). Estes valores também fazem parte da bagagem dos
migrantes sulistas do MST mas, no entanto, por sua socialização na Igreja e neste
movimento social, pelas dificuldades econômicas que enfrentaram com suas famílias,
eles inverteram as polaridades de alguns deles. Deram-se conta de que existem padrões
de acumulação e valores diferentes - mais associados à temporalidade e a formas de
vida do campesinato tradicional
132
- e construíram um movimento social que se
nacionalizou no mesmo período em que seus conterrâneos foram portadores do projeto
do “agronegócio da soja em vários estados e regiões do País.
6.2 Domínio da agricultura.
Uma das origens da segregação e estereótipos por parte dos sulistas em relação
aos baianos, segundo uma interlocutora de Haesbert (1997), seria também a dificuldade
destes empresários agrícolas em encontrar mão-de-obra especializada, preparada para
entrar no circuito capitalista que, se pressupunha um contrato de trabalho, por outro
lado, exigia o cumprimento de uma disciplina de trabalho pesado com horários rígidos e
ritmos regulares aos quais os trabalhadores rurais do Oeste baiano, que trabalhavam na
pecuária, sem nenhum nculo legal com o patrão e às vezes atrelado a um sistema
semi-servil, não estavam acostumados. Embora o trabalho na pecuária fosse extenuante,
não havia a rigidez do horário do trabalho agrícola e assalariado. Pelo lado dos
militantes do MST, também se depreende o estranhamento que eles tiveram ao se
depararem com a dificuldade de sua base de trabalhar na agricultura do mesmo modo
como eles foram socializados no Sul do país, o que, de certo modo, inviabilizava o
projeto político e econômico que acreditavam ser possível implantar no Nordeste e que
teve como um sintoma o fracasso da implantação das cooperativas de assentamentos na
região.No Sul, também foram poucas as que sobreviveram, mas elas existem.
Ao explicar porque o MST no Sergipe batalhou, enfrentando grandes
resisncias, para que fosse implantado um curso de Agronomia voltado para sua base,
em parceria com a universidade federal, Valter levantou este outro aspecto distintivo
dos sulistas em relação aos nordestinos: a dificuldade de encontrar assentados que
132
No caso do Brasil, populações que, dependendo da região, são identificadas como caboclos, caiçaras,
sertanejos, matutos, caipiras,etc..
161
tivessem “domínio da agricultura”, como o existente, no caso, entre os agricultores “de
São Paulo para baixo”:
Você não encontra agricultor, vo encontra família de trabalhador
rural. E como trabalhador, ele fazia parte do processo produtivo e
não o todo. Ele ainda o domina ou até então não dominava todo o
processo.
Depreende-se do depoimento de Valter que, para ele, “domínio da agricultura”
o as práticas agrícolas camponesas existentes nas chamadas “colônias” do Sul do país,
onde a família toda trabalhava em pequenas propriedades, produzindo alimentos que
precisavam para subsistir e produtos voltados ao mercado.
Para Artur, entretanto, não se deve generalizar pontos de vista sobre o Nordeste,
porque, dentro de determinadas regiões, é possível encontrar uma cultura camponesa
tradicional igual” à do Sul, como é o caso do sertão pernambucano. Segundo ele,
existe uma forte tradição da pequena propriedade, com agricultores enraizados” e que
têm “essa política de se auto-sustentar e viver dentro dessa idéia de melhorar as
condições de vida”. Quanto aos assalariados da cana-de-açúcar, que vivem nas “pontas
de rua” das pequenas cidades nordestinas, ele reconhece que estes têm muita dificuldade
de se auto-sustentar, pois “a vida dele é de resultado imediato”, acostumado que está a
receber pelo seu trabalho semanalmente e utilizar esse salário para comprar o que
necessita na feira. Por conta desse costume, segundo Artur, quando esse assalariado
rural recebe algum recurso ou financiamento do Estado, “investe menos na produção e
mais no consumo”. Além disso, freqüentemente acaba empatando o dinheiro que teria
que ser devolvido para o banco, comprando eletrodomésticos ou outros bens. “Ele tem
menos visão de investimento, menos visão estratégica, menos visão de futuro, então
tudo isso tu tem que construir e leva muitos anos”. Embora o Movimento Sem Terra
tente desestimular, em muitos desses assentamentos onde vivem ex-assalariados rurais,
as famílias plantam ou arrendam terra para o plantio de cana, comprando a comida que
consomem no mercado.
Por outro lado, “domínio da agricultura”, de como investir, o que plantar para
vender no mercado, como se “auto-sustentarcom o que a terra pode produzir, também
significa dominar técnicas agrícolas. E esse aspecto também constituiu o estranhamento
inicial desses “militantes migrantes” com a realidade nordestina. José conta que, quando
chegou no sertão do Sergipe, a população era dependente de semente dada pelo Estado,
que muitas vezes vinha comprometida. Não tinha trator e praticamente não se usava
boi ou cavalo para arar a terra:
Como não tinha trator, eno era tudo a mão. Quer dizer, as máquinas,
aquelas antiguíssimas, a matraca, simples, manual, não tinha. Se
plantava de enxada. Então era uma coisa muito atrasada, muito antiga,
muito sofrimento, né?
Cláudio recorda que num dos cursos prolongados que organizou, resolveram
comprar uma quina de plantar milho conhecida como “pica-pau” para ensinar os
alunos a utilizá-la. Segundo ele, no Sul era completamente ultrapassada, mas para os
agricultores nordestinos era uma “novidade”. Ele conta ter se espantado de ver que, no
Maranhão, eles não usavam nem mesmo enxada.
Eles não precisavam usar enxada, porque uma família lá tem 40
hectares de terra. O lote é maior, né? Tudo mato. Eles plantam sabe
quanto? A quantidade de área plantada dos 40 hectares? Um, dois
162
hectares, máximo três. Lá é por linha. Precisa cinco linha pra dá um
hectare. Uma família às vezes, planta 10 linha num ano, né? Então
derruba o mato - um pedacinho - planta aquele ano; no outro ano o
planta ali de novo; tem um monte de área sobrando. Então ele derruba
outro pedaço de mato, e deixa aquele ali virar mato de novo.
Ele também recorda que, ao invés de arrancar todo o de feijão, como no Sul,
os assentados tiravam a vagem, o que iam usar no dia. Assim, demoravam um mês
para colher todo o feijão. Com o arroz, ocorria a mesma coisa. Não cortavam com foice,
cortavam o cacho e levavam para casa. “Conforme vai precisando pra comer, eles
vão debulhando”. O plantio também chamava atenção do agricultor gcho. “Eles
plantavam com pau! Faziam um buraquinho, jogavam a semente e cobriam com o pé”.
com a máquina que compraram para tentar ensinar a técnica para seus alunos, “ia
mais rápido, ficava mais alinhado”, explica..
É totalmente diferente a cultura nessa questão da produção. Não
pra tu ter uma lógica daqui pra lá. Lá tu tem que te adaptar. Pra nós,
era um incômodo, né? Porque pensava ‘ah, é um atraso, né?’ Mas por
outro lado, não. Pra eles não é atraso. Isso é sobrevivência. É o jeito
deles. É a cultura deles assim.
Entre as coisas que Cláudio diz ter passado a estranhar quando retornou ao Sul
do ps foi justamente a “lógica do mercado, ou o que ele chamou de “aquela
ganância” que tem a ver, segundo ele, com uma “preocupação” que ele atribui à “cultura
italiana” e que ele não via no Nordeste. “Lá não tem muito essa preocupação. Eles
plantaram lá, colheram. Deu? Vê que dá pro ano, tá bom. Não precisa se estressar. E são
felizes. São mais feliz do que...(risos), né?”
Fabiano, que viveu três anos no assentamento Quissamã, também achou “fraca”
a produção que viu sendo desenvolvida nessa área, localizada próximo da capital
sergipana, Aracaju. Ele relaciona esta dificuldade à origem desses trabalhadores,
comparando-a com a sua:
Não sei, é da própria descenncia deles, como descendente muito dos
escravos, parece que eles não têm, que nem nós, que somos
descendentes dos italiano, que nós conhecemos mais a terra,
trabalhamos assim melhor do que eles.
Ao mencionar a provável origem destes trabalhadores, Fabiano toca em um
ponto nevrálgico da formação das classes sociais no Brasil. Preteridos em relação aos
descendentes de europeus que, melhor adaptados à “economia emocional burguesa”
(Souza, 2006), tiveram oportunidades muito mais amplas de ascensão social, os negros,
ex-escravos e dependentes de qualquer cor não foram assimilados pela nova “ordem
social competitiva(Fernandes, 2006) que vinha se implantando no país no final do
culo XIX. Essa questão assumiu contornos tão graves em termos sociais que uma dos
decretos promulgados pelo governo da “Aliança Liberal, que ascendeu ao poder com a
“Revolução de 30”, foi justamente exigir que as fábricas em plena expansão no país
contratassem dois terços de trabalhadores brasileiros pois, do contrário, dada a
preferência dada à mão-de-obra imigrante, só contratavam estrangeiros, sobretudos
italianos. Portanto, como observa Haesbert (Ibid.p. 177), “a ascensão social pelo
trabalho, que estaria assegurada para o descendente de imigrante, ‘trabalhador por
natureza’”, foi negada ao nordestino ‘preguiçoso’, assim como o foi para os
descendentes de ex-escravos.
163
Guardadas as diferenças que existem entre uma população de ex-escravos e uma
população marcada por uma histórica dependência, ambos os grupos, quando não foram
barbaramente reprimidos por ameaçarem interesses da ordem oligárquica, como foi o
caso de Canudos, Contestado e das Ligas Camponesas, sempre foram abandonados à
própria sorte pelo Estado nacional brasileiro. Por esta razão, houve esse imenso êxodo
nordestino rumo ao Sudeste, que acabou desenraizando-os e ampliando sua
suscetibilidade a permanecer no que Jessé de Souza (2006) chama de “habitus precário
que, resultado de uma vida familiar desorganizada, aliada à pobreza, foi responsável por
um tipo “de individuação ultra-egsta e predatória” presente nas camadas subalternas e
marginalizadas da sociedade brasileira que hoje vivem nas periferias das cidades,
reproduzindo a dificuldade de adaptação desses segmentos, em especial dos negros e
mulatos, à nova ordem social que se implantou com o país com a modernização
econômica e a industrialização (Souza, 2006, p.158).
Outro aspecto que espantou nosso entrevistado em sua experiência nordestina foi
a falta de planejamento”, observação recorrente nos demais depoimentos. Para
Fabiano, esse aspecto ficou patente quando ele viu os assentados investirem na compra
de vacas, sem qualquer preocupação de saber onde esse leite ia ser vendido. Não tinha
essa questão de planejamento de venda”. Além disso, tiravam o leite só na parte da noite
e “viciavam a vaca”, ou seja, amarravam o bezerro na perna da frente da mãe:
Nós aqui, no Rio Grande do Sul, quando a vaca leite, nós tiramos
leite três vezes por dia e depois, duas vezes: à noite e de manhã,
tentando sempre o mesmo horário fazer isso aqui. E lá eles não faziam
isso! Daí prejudicava, porque o custo da silagem é caro, e eles o
produziam leite suficiente, né?
Ele também ficou impressionado com o fato de os nordestinos usarem poucas
parcelas da terra que tinham disponível a cada ano. “Quem plantava, plantava uma
tarefa, uma tarefa e meia, pra eles lá duas tarefa era bastante”
133
. Além disso, o pessoal
também só semeava de “montinho”. Embora, segundo ele, “o povo” no início não
acreditasse que desse para plantar com trator, sobretudo mandioca, o MST obteve um
“valmetinho” financiado por um projeto europeu. Coube a Fabiano ensinar o pessoal da
área a utilizá-lo, mas “era difícil de eles trabalhá”, conta ele, que viveu no assentamento
na época da tentativa de torná-lo uma cooperativa de trabalho coletivo. Em sua opinião,
essa experiência coletiva nunca conseguiu se efetivar na verdade”. O que havia eram
“uns grupinhos”. Não conseguiam trabalhar “essa questão no conjunto”. Esse tipo de
problema, no entanto, foi também enfrentado em muitas das cooperativas de
assentamento da região Sul do país. Aliás, é importante ter em vista que a manutenção
de uma cooperativa requer um empenho constante do grupo em negociar suas
diferenças. Essa disposição de conciliação tem que ser permanentemente
alimentada. É infinitamente mais difícil e trabalhoso viver experiências coletivas de
negócio do que se ter um chefe definindo os rumos da empresa.
Para José, o fracasso da experiência de coletivização do assentamento do
Quissamã deve-se a problemas políticos, como a perseguição das cooperativas do MST
por parte do Incra, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Ele reconhece
que houve também a um erro de “metodologia do MST”, em nível nacional, que se
refletiu neste e em outros assentamentos. Ele conta que para o MST, na época, tudo
tinha que ser coletivo nos assentamentos:
133
Segundo Fabiano, três tarefas de terra equivalem a um hectare.
164
Na verdade, é praticamente impossível votrabalhar uma proposta
100% coletivo. A não ser que tenha um alto nível de consciência
política organizativa e de trabalho, né? Se nós tivesse liberado áreas
para plantio individual, né? Nós ficamos muito firmando. Era difícil.
Para tentar efetivar esse modelo de assentamento coletivizado, o MST chegou a
convidar um casal do Paraná para ser assentado na área junto com as demais famílias,
mas não deu certo:
Dentro da nossa visão, a gente queria melhorar de vida, fazer todo
mundo melhorar de vida, mas a forma de melhorar era muito trabalho,
muito duro. Uma parte do assentamento tinha que trabalhar às 5 da
manhã. Tinha que acordar, né? Mexer com gado, com porco. Uma
parte do assentamento se adaptou. Gostou, tocaram. Mas uma parte
não. Uma parte assim, 60, 70% , né? O projeto de vida era outro. O
pessoal tem outro estilo de vida, uma vida mais tranqüila, mais calma,
sem muita perspectiva, pouco interessada a médio e longo prazo.
Interessada no hoje, no amanhã e pronto. Então esse foi o problema
central.
Para José, novamente, o pouco grau de ambição das falias foi um dos eixos do
fracasso da experiência coletiva. Por outro lado, ele também corrobora as observações
dos militantes que hoje vivem no Sul sobre as técnicas agrícolas nordestinas,
consideradas rudimentares. Para ele, ainda hoje a principal dificuldade que o MST
enfrenta na região Nordeste é falta de quadros preparados para organizar a produção nos
assentamentos. O Sul, para ele, resolveu isso faz muito tempo, mas no Nordeste é
“um problema sério”: “as equipes técnicas, nossos técnicos da região Nordeste,
principalmente, são muito mal formados, né? Em termos de trabalho, de organização, de
visão de produção”.
Essa questão é tão presente para o Movimento Sem Terra que um dos cursos
voltados para a formação da base, o “Pé no Chão”, mescla alfabetizão, formação
militante com instrução de práticas agcolas. Um dos acampados que passou por um
desses cursos fez questão de ressaltar os conhecimentos de agricultura que aprendeu
com um desses dirigentes sulistas. “A gente achava que era só colocar a planta na terra”.
Para ele, o dirigente do MST era “um espelho em agricultura e em política para os
militantes”.
Osvaldo recorda que, na época que viveu em Sergipe, eles realmente
“plantavam na doida”, mas ficou muito contente de ver “técnicos discutindo dentro”,
nos assentamentos, quando a família voltou dez anos depois para visitar a região. Ele
não recordou em sua entrevista, mas um dos assentados mais antigos do Sergipe,
oriundo da área conhecida como “Barra da Onça”, lembra que foi Osvaldo quem trouxe
a cópia do estatuto de uma associação de assentados existente no Rio Grande do Sul
que, então, serviu de base para eles constituírem a deles no sertão sergipano. Hoje em
dia, Graça e Osvaldo, alimentam o sonho de ver pelo menos um de seus dois filhos
estudando Agronomia em Sergipe.
É interessante observar que se o conhecimento agrícola era mais desenvolvido
no Sul, institucionalmente o MST nordestino demonstra ter conquistado mais espaço
político. A mesma tentativa de criar um curso de Agronomia no Rio Grande do Sul, no
caso em Pelotas, enfrentou resisncia dos estudantes locais que fizeram passeata contra
a instalação do curso aprovado pelo Conselho Universitário. Claro que isso também
reflete a oposição social e política que o MST enfrenta no Rio Grande do Sul. Pelotas,
165
cidade onde as famílias dos estancieiros abastados da região montavam seus casarões,
foi praticamente a capital do Rio Grande do Sul, no século XIX, nos tempos áureos das
charqueadas. Essa cidade adornada de antigos sobrados reflete a base social hegemônica
da região que é o patronato rural tradicional, que perdeu muito de sua força econômica e
política no estado, mas cujo estilo de vida formou o imaginário cultural gaúcho e
representa em aquilo que o Movimento Tradiconalista Gaúcho (MTG) gosta recriar e
celebrar em seus CTGs (Centro de Tradições Gaúchas).,
Depois de 20 anos vivendo em um assentamento no Sul do país, a nordestina
Graça tem hoje um papel muito importante no planejamento dos investimentos
produtivos da família, assim como na poupança do casal. Junto com o marido, fala com
orgulho do que eles detêm como patrimônio: dois carros, a “casa boa”, 420 pés de
laranja valença, 2.500 pés de frutas, três açudes para criação de peixe, produção de
hortaliças agroecológicas. Com a terra da propriedade toda plantada, a família ainda
arrenda terra de terceiros”, onde plantam cana-de-açúcar e mandioca e mantêm mato
de acácia, da qual vendem lenha e a casca. Para consumo familiar, produzem mel, carne
de porco e feijão. Depois de enumerar a produção de seu lote, Graça faz questão de
afirmar que não se pode comparar o Sul com o Nordeste, porque “é outra realidade”.
Enquanto no primeiro, explica ela, é possível plantar milho oito meses por ano e obter
quatro colheitas; no segundo, há apenas uma estação de plantio. O mesmo ocorre com o
feijão, que dá três safras anuais. Claro que o povo do Rio Grande do Sul é rico, não
é?”, conclui ela.
6.3 Uma dialética permanente
Estes diacríticos, ou elementos que diferenciam nordestinos e os gaúchos -
graus de ambição econômica e social, visão estratégica de longo prazo e capacidade
técnica - são pontos presentes nos vários depoimentos dos atores-chave do MST que
foram para o Nordeste, retornando de lá depois de alguns anos ou fixando-se
definitivamente nesses estados. Eles exemplificam a diferente carga cultural presente
nesses militantes sulistas exatamente no que se refere a alguns aspectos característicos
dos processos de modernização. Retomando a reflexão de José de Souza Martins
(1997(1): 112)
134
, esses depoimentos demonstram o caráter modernizador do
Movimento Sem Terra na região rural nordestinas pelas concepções que carregam e
procuram transmitir à sua base social.
Por serem aspectos ressaltados, oriundos da experiência desses militantes nesses
locais, obviamente eles embutem e representam um julgamento de valor baseado em
valores culturais. Embora todos eles tenham se deslocado para os estados nordestinos
com a missão de procurar se integrar culturalmente, esses atores-chave não levaram
somente o modo como se organizam acampamentos e ocupações na bagagem. A ppria
posição deles, vindos de fora, de um lugar onde o MST já estava mais estruturado e
desenvolvido, imputava-lhes ascendência sobre as populações locais. Logo que
chegavam, assumiam posições, e mesmo, postos de influência e liderança. Assim, suas
concepções culturais e econômicas, mesmo que não seguidas à risca, possuíam um peso
maior do que a de outros militantes. A meu ver, esse padrão de migração redundou em
determinados efeitos que podem significar um maior grau de inserção desses
agricultores nos valores da dinâmica social e econômica da modernidade, que é pautada,
em linhas gerais, no racionalismo pragmático, no interesse monetário e na
134
Segundo Martins, o MST é, ao mesmo tempo, um grande movimento de modernização no campo. Ele
é o mais conseqüente movimento de modernização e ressocialização das populações do campo que já
houve na história do Brasil (Martins, 1997(1): 112).
166
funcionalidade, o que acaba integrando mais esses assentados na sociedade de consumo
e, portanto, no capitalismo. Obviamente, o MST não é o único vetor desse processo.
Essa dinâmica se impõe até pela experiência que muitos migrantes nordestinos tiveram
nas grandes metrópoles do Sudeste, seja diretamente, seja através de parentes. Em meu
trabalho de campo, encontrei várias pessoas que tinham vivido vários anos no Rio de
Janeiro ou em São Paulo e que, assim como a família de Lucia, esposa de Fabiano,
optaram por retornar para sua região de origem e ingressar em algum acampamento do
MST, até para terem chance de obter um patrimônio que, apesar de tantos anos de
trabalho assalariado no Sudeste, não haviam acumulado ou haviam perdido.
Contraditoriamente ou não, portanto, para um movimento social que se diz
socialista, o Movimento Sem Terra também é um agente do pilar de regulação do
mercado para populações camponesas em algumas regiões do país. José de Sousa
Martins observa esse processo já a partir dos acampamentos:
Há, nos acampamentos dos sem-terra, um poderoso mecanismo de
ressocialização, um mecanismo que reintegra a tradição familiar do
mundo camponês na realidade econômica do mundo moderno, o que é
precioso, pois há poucos países em que as lutas populares no campo se
desenvolveram com essa dimensão modernizante, o que não pode ser
subestimado (Martins, 1997, p.184).
Se vamos falar do contraste existente dentro deste encontro cultural promovido
pelo MST, vemos que os sulistas são portadores de uma luta para conservar seus modos
tradicionais de existência baseados na propriedade e em usos da terra que já incluíam
uma grande integração desses pequenos agricultores com o mercado, mesmo porque
muitos deles sofreram as conseqüências dos processos de modernização agrícola com a
introdução da monocultura da soja e as grandes agroindústrias de frangos e suínos em
suas regiões natais. No Nordeste, o pprio mercado tradicional, as feiras, onde os
sitiantes vendiam seus pequenos excedentes são marcas de uma tradição não
necessariamente associada ao modo de produção capitalista. Portanto os próprios
conceitos de como fazer produzir um lote de terra podem ser vistos como ainda
pertencentes a um capitalismo embrionário. Isso porque parte da população rural dessa
região, como atestam os depoimentos, nem sequer têm em seu repertório os sonhos de
acumulação e produtividade que marcam a economia emocional burguesa, ou seja, uma
mentalidade mais moldada pela lógica capitalista, traço que é comum entre as
populações camponesas, descendentes de imigrantes europeus da região Sul, como é o
caso da maioria dos militantes do MST enviados para o Nordeste. Pode-se dizer que os
valores sociais compartilhados por populações rurais nordestinas, suas atitudes em
relação ao mundo e ao tempo não alimentam uma conduta econômica que busca
racionalizar totalmente as etapas produtivas com vistas a acumular bens.
É interessante analisar esse encontro cultural e a dialética que ele promove a
partir da luz emitida por um texto de Bourdieu (1963), onde ele elabora uma reflexão
sobre o vínculo existente entre conduta econômica e relação com o tempo a partir da
“grande transformação” que vinha sendo processada na Argélia sob o domínio colonial
francês. Esse processo, que também ocorreu nos países em vias de desenvolvimento,
teve, entre seus vetores, a instituição de modelos de produção capitalista, mas, ao
contrário do que ocorreu na Europa, essa ordem social competitiva instaurada pelo
sistema capitalista se implantou nestes países antes do desenvolvimento social das
atitudes que ele exige. Entre essas atitudes está a racionalização de todos os aspectos da
vida econômica, uma das características fundamentais das sociedades modernas e que
167
pressupõe um modo de enxergar o mundo e o tempo diametralmente distinto do
vivenciado pelas sociedades tradicionais. Para Bourdieu, “o sistema econômico
(capitalista) se apresenta como um campo de expectativas objetivas que não saberiam
ser preenchidas que por sujeitos dotados de um certo tipo de consciência econômica e,
mais largamente, temporal”(Bourdieu,1963, p. 25. Tradução nossa
135
). Este sistema
particular favorece e mesmo exige um tipo de consciência econômica que pressupõe,
por exemplo, o “sonho” de acumular bens.
Ao chegarem ao Nordeste, um dos primeiros choques dos militantes do MST,
socializados em um ambiente onde a consciência econômica capitalista é mais
desenvolvida, é observar que a população localo busca acumular bens e riquezas com
sua atividade econômica. Seu principal fim é garantir a sobrevivência imediata, atitude
considerada pelos sulistas como menos “ambiciosa”. Diante disso, até para tentar
implantar seu projeto político, no caso, cooperativas, foi necessário que um desses
militantes sugerisse aos assentados que eles tinham que pensar em ser rico”. Por outro
lado, a experiência da possibilidade de ter acesso a determinados bens era uma
concepção importante para estimular esses jovens a militar, já que, como recorda Joana,
eles saíram de um lugar onde, com muito trabalho, era possível obter esses bens, para
irem para outro “tornar isso possível”.
Entretanto, ao mesmo tempo em que tentaram estimular o surgimento desse
desejo, os próprios agentes dessas concepções econômicas mais produtivistas e
ambiciosas reconhecem o quanto esse modo de pensar também pode ser problemático,
visto a dificuldade de se alcançar o tipo de felicidade embutida nesse sonho calcado no
consumo. O interessante dos depoimentos é que, ao mesmo tempo em que eles
estranham esse modo de pensar - de viver somente o aqui e o agora, sem grandes
planejamentos – há uma certa admiração por esse modo de ser, onde a felicidade
aparenta ser mais “fácil”. Por terem imergido no ambiente cultural nordestino, esses
migrantes militantes se tornaram vetores, eles próprios, de um processo contraditório.
Para implantar o projeto do MST, de modo a torná-lo mais eficaz de acordo com os
valores que carregavam, era necessário incutir nessas populações sonhos” que, no
entanto, não tornam as pessoas necessariamente mais felizes. Ao se darem conta disso,
relativizam suas próprias expectativas. Os que retornaram para o Sul para cumprirem
esse projeto, aprenderam de algum modo a questionar essas necessidades”, embora não
tenham se desvinculado delas. Os demais, que continuam na milincia, são agentes de
um processo que, se por um lado, afirma a essas populações uma emancipação possível,
que tem a utopia de ser anti-capitalista, na verdade abre as portas de um mundo, no qual
esses indivíduos se tornarão sujeitos aptos para esse projeto se passarem antes por
um processo laborioso de adaptação ao sistema capitalista que inclui, por exemplo, uma
certa disciplina no trabalho agrícola ainda muito distante do horizonte social de boa
parte dessa população. Plantar mais área de terra do que o necessário para a
sobrevivência da família, com vistas a maximizar os ganhos não é uma necessidade”
para eles, tanto por conta da riqueza dos recursos naturais, no caso dos assentados
maranhenses, como pela falta, como no caso dos assentados nordestinos que possuem
uma só estação climática para o plantio.
Ou seja, para constituírem os assentamentos fortalecidos que sustentariam o
projeto político do MST, esses camponeses precisam, antes de mais nada assimilar,
categorias solidárias ao sistema capitalista, cujo fundamento, para Bourdieu, é uma
consciência temporal que exige uma atitude em relação ao futuro. Neste caso, a
“racionalização da conduta econômica supõe que toda a existência se organize em
135
É tradução nossa esta e todas as demais citações de Bourdieu.
168
função a um ponto de fuga ausente, abstrato e imaginário” (Bourdieu, 1963, p. 26). Essa
conduta econômica própria ao capitalismo é a considerada razoável e é a que conduz ao
sucesso econômico nas sociedades modernas. É a atitude típica do empreendedor
capitalista que preside, por exemplo, a tomada de um financiamento bancário. Mas em
grupos sociais em que esses valores não são integralmente assimilados, cuja consciência
temporal vive mais no agora e no amanhã, a percepção de que se deve tomar esse
dinheiro para investir visando um futuro abstrato não está dada. O “sonho” deles não é
“pegar tanto, produzir tanto pra depois vender”, como observa Cláudio. Eles produzem
“pra comer”. Se sobra um pouco, vendem “pra outras necessidades que são menores,
né?”. Logo, tendo dinheiro em mãos, é mais fácil pensar que esse dinheiro sirva para
atender necessidades imediatas.
Analisando o campo argelino no início da década de 60, Bourdieu afirma que o
crédito foi a instituição econômica introduzida pela colonização mais difícil de ser
assimilada pelos fellah argelinos, porque pressupõe que as pessoas se comportem “em
função de um futuro abstrato, definido por um contrato escrito que garante todo um
sistema de sanções e normas racionais”, dando inclusive um valor contábil ao tempo,
algo completamente estranho ao espírito tradicional. Até então, os camponeses argelinos
tinham o costume de tomar dinheiro emprestado quando ocorria uma quebra de safra,
perda de rebanho, mas, antes de recorrer a um agiota, contavam com um sistema de
solidariedade familiar e comunitária. Como sublinha o autor, esse crédito de urgência é
completamente diferente do crédito destinado ao crescimento do lucro via investimento.
No caso brasileiro, seu campesinato sempre esteve fora do acesso a esse mecanismo de
financiamento fartamente utilizado pelo patronato rural
136
, o que demonstra serem ainda
oriundos de uma economia tradicional. Mesmo os gaúchos” do MST têm dificuldade
de lidar com isso
137
.
Bourdieu explica que essa inaptidão para lidar com o crédito está relacionada
com o fato de que as sociedades tradicionais mantêm uma consciência temporal baseada
naprevidência”, enquanto nas sociedades capitalistas, ela se baseia na “previsão”.
Segundo ele, o produto agrícola pode ser tratado como bem direto” ou “bem indireto.
O primeiro oferece uma satisfação imediata, como é o caso do arroz e do feijão que os
camponeses nordestinos plantam para, durante o ano, colherem e debulharem de acordo
com a necessidade. O “bem indireto” não oferece satisfão imediata, mas ajuda na
elaboração dos “bens diretos”, ou seja, são a parte da colheita que é deixada de lado
para fazer semente. Diante do excedente significativo de uma safra, um camponês
tradicional tende a tratar esse resultado excepcional como “bem direto”, preferindo
armazená-lo com objetivo de consumi-lo no futuro, ao invés de aumentar seu estoque de
sementes para aumentar sua produção. O autor frisa que é necessário distinguir a
reserva, “o r de lado”, que consiste em separar uma parte dos bens diretos para o
consumo futuro - e que implica alguma previdência e controle - com a acumulação
capitalista, a “poupança criativa”, que é uma reserva de bens indiretos tendo em vista o
uso produtivo. Esta poupança só tem sentido em referência a um futuro distante e
abstrato. Exige previsibilidade, cálculo e uma determinada racionalidade, enquanto que
136
Pode-se inclusive afirmar que muitos deles detêm o poder econômico que ostentam hoje em dia
graças a esses financiamentos subsidiados, ou então, às dívidas postergadas, pauta anual da Bancada
Ruralista quando negocia seus apoios.
137
As idéias de como pagar a dívida com o banco, como as que tinham Osvaldo e Graça na época da
entrevista, não pareciam muito conforme à dinâmica exigida pelo sistema bancário. Eles cogitavam
vender um dos bens do casal para depois recomp-lo com o dinheiro do financiamento, só para “limpar o
nome sujo” que agora tinham com o banco.
169
armazenar para o consumo, pressupõe um futuro concreto, “virtualmente presente no
presente percebido”. Os alimentos armazenados para consumo futuro o simplesmente
uma garantia palpável de segurança para esses camponeses (Bourdieu, 1963, p.27).
Quando Bourdieu fala do antigo camponês argelino que é respeitado por
trabalhar sem precipitação, “deixando para amano que ele não pode fazer hoje”, que
ignorava a necessidade do horário ou da produtividade e mesmo a “tirania do relógio
podemos ver algo que ainda existe em algumas populações rurais do sertão brasileiro
para os quais o trabalho “não tem outro fim além do que satisfazer diretamente as
necessidades primárias”. O objetivo desta conduta econômica é “produzir a quantidade
de bens que permite ao grupo subsistir, se reproduzir biologicamente e, assim, reviver
seus elos, valores e crenças que fazem a coesão do grupo(Bourdieu, 1963 , p.40) .
Nesses grupos, a distinção e o presgio não são medidos necessariamente pelas posses,
propriedades etc. E, muito mais do que buscar uma infinidade de possibilidades, explica
Bourdieu, ou mesmo “o melhor possível”, esse homem tradicional vive um mundo onde
há apenas um possível, no qual ele tranquilamente se acomoda. Ele simplesmente não
sente necessidade de tentar acomodar o mundo a sua vontade. Esse padrão de conduta
também pode ser associado, no caso brasileiro, a uma religiosidade fatalista, comumente
associada ao “se Deus quiser”, tão comum de escutar nas falas dos nordestinos. Embora
este camponês não possa ser comparado ao fellah argelino da década de 60, visto que
vive em uma sociedade transpassada pela modernidade e por valores difundidos via
salite pela televisão, é interessante perceber o sentido desse modo de ser, como ele
instaura também um tipo de segurança baseado em modelos de conduta que, no final
das contas, são até mesmo anti-capitalistas.
No entanto, o movimento social, que é também um dos grandes fenômenos da
modernidade, precisa do trabalho oriundo de uma atitude econômica que, assim como a
crença no progresso ou na revolução, implica uma aposta no risco e em um futuro
abstrato. Ela se baseia na escolha de adotar a perspectiva do possível, colocando em
suspenso e em questão a aceitação passiva e a submissão espontânea à ordem atual, seja
ela natural ou social.
La volonté de transformer le monde suppose le passement du
présent vers un futur rationnel qui ne peut être atteint que par la
transformation du donné actuel. Vivre dans la croyance au progrès ou
dans l’espérance révolutionnaire, c’est traiter l’impossible comme s’il
était possible ou, mieux, faire en sorte que l’impossible devienne
possible et l’inévitable, inadmissible (Bourdieu, 1963 , p.42).
Como observa esse autor, assim como nas sociedades pré-capitalistas buscava-se
maximizar a segurança, tentando evitar a qualquer preço o imprevisto e a improvisação,
as sociedades “prometeicas”, confiantes na racionalidade, apostam no risco, procurando,
no entanto, garantir o máximo de previsibilidade. Os grupos sociais das sociedades
prometéicas correm risco seja para maximizar seus ganhos econômicos, seja para obter
ganhos políticos
Neste sentido, é interessante ver nesses militantes do MST a representação desta
máxima de Bourdieu, transmutada linguisticamente para os muros de Paris, em Maio de
1968: “Sejamos realistas, exijamos o impossível!”, mas em sinal inverso ao de seus
conterrâneos que plantam soja nos cerrados e também são responsáveis pela proeza de
plantar uva e produzir vinho de qualidade no sertão pernambucano, à beira do o
Francisco, como o prefeito gaúcho de um desses municípios com quem Lucas tinha que
frequentemente negociar.
170
Uma dessas conversas de Lucas com este representante do “agronegocio” local,
reproduzidas durante sua entrevista, explicita bem o que o militante do MST classificou
de “choque ideológico” entre essas duas vertentes de migração gaúcha. Lucas explicou
que o prefeito, inicialmente, queria saber que “sonho” ele tinha quando decidiu ir para o
Nordeste. O prefeito contou que tinha chegado com “uma mão na frente, outra atrás,
mas a cabeça cheia de sonhoe acabou tornando-se “um dos maiores empresários do
São Francisco”. Na ocasião, segundo o militante, o então prefeito também tentou
convencê-lo a desistir de trabalhar com os sem-terra, dizendo-lhe:
Você tem que compreender o seguinte: eu estou aqui mais tempo
do que você: esse povo, isso nunca na vida vão ter capacidade de
administrar um lote de terra. É jogar dinheiro fora. É o governo jogar
dinheiro fora distribuir dinheiro para esse povo. Esse povo tem que ser
mandado para trabalhar. Eles m que receber salário mínimo para
trabalhar! Alguém tem que dizer para o que eles têm que fazer. Daí
eles fazem. Agora, eles não têm capacidade de administrar um lote de
terra, administrar uma estrutura de irrigação, administrar tecnologia,
porque para produzir fruta irrigada, para ter retorno, tem que ter
tecnologia, tem que dominar tecnologia... não faz nem para o fumo.
Mesmo que essas palavras sejam postas na boca do prefeito por Lucas, é bem
possível que esse tenha sido o sentido da conversa desenvolvida entre eles. Para Lucas,
era claro que entre eles havia um “choque de projeto”. O “sonhoque ele representava
organizando os sem-terra da região, era aquilo que o “Movimento defendia, né?”.
Afinal, observa ele, os sem-terra daquela região eram “o povo natural dali”:
Eu admitia com ele: eu sei que o povo não tem formação técnica para
administrar a terra, para administrar a tecnologia, não tem
conhecimento acumulado para saber como produzir uva, como
produzir isso ou aquilo, mas o pessoal sabe produzir feijão irrigado,
sabe produzir melancia, sabe produzir melão, sabe produzir arroz,
sabe criar peixe, saber criar ovelha, cabrito, bode, vaca de leite, enfim,
o pessoal sabe produzir isso. Então quem diz que o povo precisa
produzir uva para exportação? Produzir vinho, produzir manga,
produzir goiaba para mostrar que sabe produzir? O pessoal, o povo
não precisa produzir isso. O pessoal tem que produzir comida e
depois, num segundo plano, vai produzir fruta, sim. dinheiro, ?
Mas primeiramente o povo precisa saber produzir comida para depois
se preocupar com a fruta.
O fato de a base do MST não ter capacidade técnica era também relativizado por
Lucas explicitando o aspecto mais fortemente emancipador da luta do MST: a pressão
por instrução formal e técnica dada por instituições públicas. “Nós vamos garantir
através da luta que o governo vai garantir essa formação, através da assistência técnica,
enfim, de cursos, de formações, para que o povo possa dominar a técnica”, disse Lucas,
exprimindo onde se dava a diferença mais profunda entre ele e o prefeito:
Então quer dizer, porque o povo hoje não tem a capacidade,
então eu tenho e eu uso a minha capacidade de, enfim, dominar a
técnica, de dominar a terra, de dominar formas de produção para criar
um poder de mando em cima daqueles que não dominam? Porque se
eu domino, eno quem não domina tem que ser submisso a mim...
171
Então, vira mão-de-obra barata, vira bóia-fria e você não muda uma
estrutura de uma região, né?
6.4 Formação e educação: preparando gente
Embora seja um agente fomentador da luta por direitos e do pilar de
regulamentação do mercado, ou seja, da contraditória inserção de sua base em uma ética
capitalista mais desenvolvida, um das diferenças marcantes do MST em relação a outras
forças econômicas e sociais atuantes na sociedade brasileira é sua tentativa de inserir
esses trabalhadores no que chamo de “modernidade emancipadora” porque concentra
grande parte de seus esforços no incentivo ao acesso à instrução formal e política
138
,
como demonstra a argumentação de Lucas, citada anteriormente. Através desse esforço
o MST constitui novos laços de sociabilidade e vivência comunitária em torno desses
cursos, escolas e programas de ensino, onde tem por objetivo “elevar a consciência” de
sua base de modo a manter capacidade de mobilização para disputar politicamente
rumos de políticas locais, regionais e nacionais.
Em seu processo de expansão para o Nordeste, pode-se mesmo dizer que a
“formação” precedeu a implantação do MST nestes locais, com a chegada de Paulo e,
mais tarde, de Adelmo, que também, diante do convite”, deixou o curso de Teologia
inconcluso para ir para a Bahia atuar nesta área. Antes mesmo de realizar ocupões de
terra, o MST adotou um processo que vinha desenvolvendo no Sul, fundando as
chamadas “Escolas Sindicais”. No Paraná, eles fundaram a Escola Sindical Margarida
Alves e, chegando à Bahia, fundaram a Escola Sindical Eloy Ferreira, que atendia
trabalhadores oriundos também do Espírito Santo e Minas Gerais. Em 1986, fundaram a
Escola Sindical Josimo Tavares no Maranhão. Na Paraíba, tiveram dificuldades de
fundar uma escola, pois segundo Paulo, “tinha um domínio muito grande de grupos da
CUT e da CPT, e nós não conseguimos entrar”.
Ele explica que a idéia de criar as escolas sindicais vinha da experiência de
criação do Movimento no Sul. “Tínhamos uma certa experiência, muito primária ainda,
de que não se podia fazer um movimento forte se não tivessem lideranças bem
preparadas”. Na Bahia, por exemplo, primeiro estado em que o MST começou a se
organizar no Nordeste, a primeira coordenação do Movimento, formada em outubro de
1985, não era composta por “lideranças de ocupações”, mas sim por representantes de
comunidades de seis municípios.
Embora chamassem “escolas sindicaise tivessem um conselho formado por
lideranças dos sindicatos e por dirigentes do MST, foram fundadas “independente” da
CUT. “Eram duas coisas nas funções, mas no objetivo e na linha política estavam muito
ligadas”. Era a época das chamadas “oposições sindicais”, e a experiência do Sul lhes
“informava” que os dirigentes sindicais também “careciam de formação política”. O
objetivo com essas escolas era o de atender tanto às necessidades de expansão do
Movimento no Nordeste, como contribuir na mudança das direções sindicais. Se, por
um lado, procuravam estimular a projeção de lideranças para atuarem nas bases,
também pretendiam formar lideranças estaduais para “outras frentes como na CUT e no
PT”:
138
Canclini usa o termo “emancipação” para o processo de secularização dos campos culturais. Ele
classifica esse aspecto do projeto da modernidade - que é a confiança na educação e na difusão da arte e
dos saberes especializados para se alcançar uma evolução racional e moral da humanidade - de
“democratizante” (Canclini: 2000, 32).
172
Era pra preparar os dirigentes pra fazer oposição aos sindicatos, que
eram burocráticos, né? Então, ao mesmo tempo que formávamos essas
lideranças do movimento sindical, formávamos também as lideranças
dos sem-terra..
Paulo explica que a estruturação do Movimento, sempre foi pensada junto com a
formação.
Porque a tica era a ocupação; mas o conteúdo dessa tática era
preparado através da elaboração regional. Como enfrentar os inimigos
nesse meio; que tipo de conhecimento precisava assimilar;
metodologia de trabalho popular. Você precisava aprender a lidar com
o povo dentro da sua cultura. E tem um pouco de conhecimento de
história, a história do Brasil, da luta pela terra, que se reproduzia nas
reuniões de base, na hora de convencer o pessoal de ir pra ocupação.
Então, agitação de massa, como é que se faz um bom discurso; então
tudo isso era treinado.
Segundo ele, estas escolas sindicais duraram ao final da década de 80, que
esse processo de formação conjunta de lideranças “se separou após as primeiras
ocupações, quando “os sindicatos acharam que estavam sendo prejudicados por estarem
‘perdendo’ a base
139
. Na época, as chamadas “oposições sindicais” já haviam
“tomadomuitos sindicatos e, na visão de Paulo, não sentiram mais “necessidade de
formar lideranças” nem de “elevar a qualidade da administração” e foram
“abandonando as escolas”. O MST, então, passou a se concentrar na formação da sua
base e a promover seus próprios cursos internos. Segundo ele, este distanciamento
ocorreu também porque as direções sindicais recém-eleitas “tinham uma outra visão do
movimento da luta pela terra. Achavam que devia ser municipalizada”. Até apoiavam
ocupações, desde que fossem feitas na região de influência do sindicato, senão o MST
acabava tirando “a base” deles para “levar para outro município”. Como o Movimento,
na época, procurava fazer ocupações “massivas”, era necessário reunir famílias sem-
terra oriundas de vários municípios. Então nem sempre dava certo pra favorecer um ou
outro”, recorda Paulo.
A área era escolhida de acordo com as condições, né? Não eram áreas
inventadas ou simplesmente pra fazer. Era pra garantir a
resistência; era pra que fossem áreas boas pra produção, bem
localizadas. E isso afetou então essa relação, porque o presidente do
sindicato, que tinha sua diretoria formada, que tinha lá algumas
atividades programadas, de repente, via sair da sua base pessoas que
tinham interesse de ter a sua terra.
Para Paulo, esta foi a razão do afastamento do MST das chamadas oposições
sindicais”, cuja origem no trabalho pastoral da Igreja ambos compartilhavam: “Eles
começaram a dizer que nós tínhamos divergências de concepção. ‘Vocês querem uma
coisa e nós queremos outra’. E de fato, a gente não teve mais como trabalhar junto,
né?”
Embora, nos próprios estados estudados, hoje a maioria dos acampamentos
reúna menos de 500 famílias e concentre em sua base geralmente os habitantes oriundos
139
Aspas enfatizada pelo pprio interlocutor em sua entrevista.
173
do município onde estão localizados, na época em que o Movimento Sem Terra chegou
ao Nordeste, seu modelo de atuação eram ocupações com famílias de sem-terra oriundas
de vários municípios.
Se a formação política sempre andou de braços dados com a expansão e
implantação do MST no Nordeste, o investimento que ele faz na educação formal é um
aspecto mais intensamente desenvolvido pela organização a partir da criação de seu
Setor de Educação e passou a ganhar grande impulso quando veio a ser viabilizado
institucionalmente pelo Estado brasileiro, através da criação do Pronera (Programa
Nacional de Educação na Reforma Agrária). Surgido em 1998, a partir da demanda dos
movimentos sociais e sindicais do campo, trata-se de um recurso específico que visa
garantir alfabetização e instrução formal em diferentes níveis de ensino para populações
assentadas. O programa tem gestão participativa e fomenta a descentralização da
atuação de instituições públicas educacionais Além de democratizar o acesso à
alfabetização e escolarização de jovens e adultos, ele atua na formação de educadores
para escolas de acampamento e assentamentos e na formação técnico profissional de
nível médio e superior. Hoje com cerca 22 turmas de graduação e especialização e mais
de 15 turmas em negociação de parcerias com universidades públicas espalhadas pelo
país
140
, o MST também procura estimular seus dirigentes a concluir sua escolarização,
já que grande parte deles possui formação escolar precária, geralmente até no máximo a
série primária. Foi dentro deste espírito que, em 2005, a coordenação nacional do
MST tirou como palavra de ordem “Todos e Todas Sem Terra estudando!”, tornando a
educação e escolarização de sua base uma bandeira central de sua luta. Nas palavras de
Artur, esse objetivo do MST, talvez seja sua “grande contribuição”, enquanto
movimento social, “para o futuro da humanidade”.
Ele explica que quando o MST começou, tinha-se uma “base de formação”,
que a maioria de seus militantes pioneiros era oriunda da Igreja ou do sindicalismo.
Bastava, portanto, investir em formação política. Mas no Nordeste, em geral, poucos
militantes vieram de “uma base formada” e coube a eles empreender esse processo:
A grande maioria tu teve que formar, porque não tem mais ninguém
preparando gente. Não tem outra forma. É só essa. Ninguém traz
quadros e forma quadros de jovens pra dentro das organizações. A
Igreja não forma mais. O sindicalismo não prepara mais. Então sobrou
pra nós. Nós temos esse desafio de formar nossos próprios quadros e,
pior, nossos próprios quadros têm que ser formados de uma base
degradada política e culturalmente. Ideologicamente destruída. Então
como é que tu faz isso? Dentro de um processo permanente de
formação. Dar formação política para quem tem escolarização, para
um jovem que já tem a 8º série é mais fácil, porque tu já tem uma base
do conhecimento geral. Qual é nosso problema? Nós não temos jovens
com essa base. Então tu tem que trabalhar a escolarização. Esse talvez
seja nosso maior desafio.
Sem perder de vista a formação ideológica ou a “elevação da consciência”, o
MST passou a atuar no campo da escolarização com o objetivo de oferecer acesso a
conhecimentos gerais de disciplinas como História, Geografia, Matemática, Português,
140
Esses dados foram fornecidos pela Escola Nacional Florestan Fernandes, mas provavelmente não dão
conta da realidade. Justamente por ser um movimento social altamente descentralizado nas suas ações, o
MST não produz para si dados gerais desse tipo. Em minha pesquisa de campo, me deram o dado de que
havia 110 cursos, entre técnicos e superiores em funcionamento. Esse número, no entanto, pode abranger
a totalidade de cursos fundamentais, técnicos e superiores que o MST vem desenvolvendo no país.
174
Química e Física. Para Artur, “esse conteúdo é fundamental para a formação política
geral de um militante”. Assim, surgiu o chamado “Saberes da Terra”, um programa
articulado a um curso supletivo, o EJA (Educação de Jovens e Adultos), apoiado pelo
Ministério da Educação, como parte da Política Nacional de Educação no Campo. No
âmbito do EJA, programas destinados a assentados, que estudam até a série do
ensino fundamental nos próprios assentamentos, programas que vão até a 8º série e
mesmo os que oferecem ensino médio.
Desde o início da década de 90, o MST já procurava investir em ensino médio
promovendo cursos de Magistério, em Braga, no interior do Rio Grande do Sul, e
depois, fundando o Iterra (Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma
Agrária), que incorporou o curso de Braga e passou a oferecer curso Técnico em
Administração de Cooperativas e, mais recentemente, em Técnico em Saúde
Comunitária. Além disso, uma profusão de cursos, que seguem, em parte, a
experiência dos “Cursos Prolongados” realizados por Fabiano em Sergipe, no início dos
anos 90. Em Pernambuco, por exemplo, há atualmente o “Pé no Chão”, que seria “um
curso de militante para analfabetos”. Nele, o MST procura associar alfabetização,
formação política e instrução de práticas agrícolas. Assim como a maioria dos cursos
desenvolvidos pelo MST, o “Pé no Chão” é feito em etapas, ou seja, não se desenvolve
no ano letivo regular, geralmente de março até dezembro. Nos cursos do MST, os
alunos geralmente ficam alojados e têm uma jornada diária e intensiva de estudo,
durante um período curto de tempo, de 30 a 60 dias. Nos intervalos dessa formação,
pretende-se que os estudantes voltem para suas comunidades, de modo a permitir que
associem o estudo com o trabalho agrícola ou militância em seus locais de origem.
Artur reconhece que nem todos conseguem sair alfabetizados de um curso
intensivo como esse que, no caso do no Chão, é feito em três etapas de 30 dias cada.
Ou seja, em 90 dias ao longo de um ano.
É aí tem um desafio. No curso alguns conseguem. Tem alguns que
sabem ler um pouco então conseguem se desenvolver. Mas o desafio é
eles fazerem o curso de alfabetização nos assentamentos. Se
integrarem na turma dos assentamentos. E alguns agora estão sendo
integrados no “Saberes da Terra”. Muitos m a 8ª série, mas
digamos, escolarização só no diploma, no currículo escolar, mas
conhecimento zero. De qualquer forma, o pessoal chama de
analfabeto. Então, o cara fez a escola até 4ª, 6ª, mas o carao
aprendeu nada. É o bagaço da educação o que nosso povo recebe.
Segundo ele, apesar das dificuldades, o “Pé no Chãotem servido para “projetar
internamente” esses alunos para a Coordenação Estadual, tornando-se uma espécie de
espaço de “seleção de militantes”. Embora sejam 70 estudantes por etapa, sempre
uma grande evasão. Ele avalia que, mesmo que muitos não se tornem militantes, pelo
menos passam a conhecer “um pouco de agricultura”, já que, durante o curso, os alunos
trabalham nas atividades agropecuárias desenvolvidas no centro de formação do MST
em Pernambuco.
Como ele passa pelas atividades de trabalho, práticas, então ele
aprende, né? Pelo menos o básico da agricultura. Ele aprende a lidar
com galinha de capoeira, com porco, com caprino, com vaca. E
produzir na agricultura: sorgo, horta, feijão.
Ao longo de minha pesquisa de campo, pude perceber que esse investimento
educacional em sua base visa formar “quadros” para a organizão, mas também leva
175
em conta a possível defecção de boa parte dos candidatos a militantes que tiveram
acesso à educação formal através dos programas educacionais do MST. Paulo
mencionou em sua entrevista que se a organização puder contar com somente 5% das
pessoas a quem proporcionaram acesso à instrução formal técnica ou profissional, para
eles ia ser válido. Em uma reunião da Coordenação do Nordeste, que acompanhei
durante o trabalho de campo, um dos participantes expressou o tipo de crença que
norteia o investimento que o MST faz na educação e na formação técnica. “Um
profissional que a gente forma se diferencia de um profissional formado por uma escola
formal. Ele vai contribuir com a luta”.
Até recentemente, um dos poucos dirigentes do MST com curso superior
completo, Artur conta que essa visão da necessidade de investir em educação e
escolarização foi produto de necessidades sentidas nas próprias negociações com
autoridades públicas. Ele acredita que quem primeiro sinalizou essa necessidade foram
os militantes que coordenavam o Setor de Educação, que “sentiram carecer de
conhecimento técnico” para “enfrentar esse povo” de Secretarias de Educação,
universidades. Hoje, com várias pessoas do MST especializadas em pedagogia, o é
qualquer secretário de educação no município que dobra” esses coordenadores.
Junto com a necessidade de ter conhecimento “para poder negociar, poder
discutir”, o MST sentiu grande necessidade de ter militantes com conhecimento técnico
na área agrícola, diante dos convênios de assistência técnica que passaram a firmar com
o Estado.
Quem é que coordena agrônomo? Agrônomo é uma categoria muito
coorporativa. Tanto é que qualquer agrônomo aí o pessoal chama de
doutor. eles fazem questão de serem chamados de doutor. Como é
que tu coordena? Então não dá para qualquer militante coordenar esse
pessoal porque eles nos dobram e colocam no bolso. Ele vai ter
respeito pelo fato do cara ser dirigente, mas logo ali ele quebra ele
pelo técnico. Aí teve a necessidade nossa de especializar alguns
companheiros, fazer cursos, enfim, buscar o conhecimento técnico
para poder, nessa idéia de se vou coordenar técnico tenho que ter um
mínimo de conhecimento técnico para poder, digamos, saber o que é
que eu tô fazendo.
Esse princípio, segundo Artur, passou a nortear também o interesse em formar
militantes em cursos técnicos de Enfermagem, enviar outros tantos para fazer curso de
Medicina em Cuba, tendo sempre em vista terem militantes preparados para ir, por
exemplo, a um posto de saúde “discutir com o médico de igual pra igual”:
Esse enfrentamento técnico é fundamental. Ele veio a partir dessa
necessidade de nós fazermos enfrentamento em todas as áreas. Hoje
nós temos que discutir currículo de escola. Como é que tu vai propor
uma ementa em um determinado curculo se tu não tem
conhecimento cnico? Por isso estudar Geografia, estudar História,
estudar Ciência, enfim, Ciências Humanas para que a gente possa
enfrentar esse processo.
Na área agrícola, diante das necessidades e deficiências técnicas dos assentados,
a problemática da formação de seus técnicos agrícolas também assume outra faceta. O
MST tem o desafio constante de tentar evitar que os responsáveis pela assisncia
técnica nas áreas abandonem o trabalho, dada a descontinuidade do pagamento de seus
salários, problema que tem sua origem nos repasses do próprio Incra, freqüentemente
176
intermitentes. No encontro da Coordenação do MST Nordeste, presenciei um debate
que ilustra claramente esse dilema. Alguns participantes levantaram a questão de que
muitos desses técnicos agrícolas do MST, considerados os “melhores” pelo pprio
Incra, vinham sendo “cooptados em disputas com ONGs”. Para evitar o abandono do
trabalho e a “cooptação”, o debate chegou a levantar a proposta de procurar assentar
esses técnicos para “torná-los” mais orgânicos ao Movimento. Outro participante do
debate, ao mencionar os estudantes do curso de Agronomia, realizado em parceria com
a Universidade Federal do Sergipe, admitiu que eles de fato o sabiam se ia “sobrar
algum agrônomo para o MST” dessa primeira turma e, no caso de sobrar, se eles iam ter
que agradecer “a Deus ou ao Diabo”. Diante da colocação de que “companheiros
formados nos cursos do MST estão trabalhando para ONGs e organizações inimigas do
MST, outro coordenador se contrapôs à idéia de que toda formação cnica deveria ser
usada por eles: “Não precisa estar no Movimento para ser lutador”, disse. Na conclusão
do debate, definiu-se que se ia retomar um programa de formação de técnicos sem
esquecer de procurar “envolver a equipe cnica dentro da equipe orgânica do MST”.
Por conta de procurarem se capacitar para entrarem, de igual para igual, no
debate com autoridades públicas ou profissionais, o MST se caracteriza por levar às
últimas conseqüências qualquer processo de participação na gestão de algum programa
estatal. “A gente quer fazer parte de fato. Não é participar pra dizer que nós estamos
dentro da universidade, mas a gente quer fazer parte desse processo todo, explica
Priscila, uma das coordenadoras do Setor Nacional de Educação do MST que
periodicamente tem a “tarefade participar em reuniões no MEC. No caso dos cursos
técnicos e superiores, quando negociam uma turma, por exemplo de Agronomia ou
História, os coordenadores do MST exigem e participam ativamente na construção do
projeto político-pedagógico, muitas vezes sabendo que tem “pouca perna” para
acompanhar “politicamentetodos os cursos que pleiteiam, como ouvi na reunião da
coordenação do MST no Nordeste. No dizer de Priscila, essa preocupação se justifica:
“A gente quer dizer como a gente quer que o nosso profissional seja formado, né?” O
que eles chamam de “coordenação compartilhada” é saber onde os recursos liberados
pelo Pronera estão sendo aplicados, ajudar a definir para onde eles vão e, inclusive,
interferir no calendário das universidades. Na busca para o perder o “caráter
camponês” desse acesso à educação, ou seja, não fazer que, na prática, ela favoreça uma
urbanização de sua base, os argumentos do MST para manter um outro tipo de ano
letivo se baseiam no calendário agrícola. “O nosso campos, ele pode (estudar), em
determinado período do ano, né?Mesmo que muitos desses estudantes que freqüentam
os cursos negociados pelo MST não tenham mais contato constante com atividades
agrícolas, o Movimento procura insistentemente manter esse caráter “camponês” de
modo a tentar frear uma das pontas do processo de êxodo rural que também tem, entre
suas causas históricas, o acesso à instrução formal de jovens oriundos do campo, que na
escola tiveram contato com livros escolares e conhecimentos baseados em
parâmetros e conteúdos urbanos e que, frequentemente, desconsideravam e
desvalorizavam não só o calendário agrícola como a cultura rural destes estudantes
Se, por um lado, existe esse investimento na ampliação da instrução técnica e
formal de sua base, os próprios dirigentes, lideranças que estão no MST praticamente
desde o início, embarcaram nesse processo e começaram a concluir sua formação em
ensino fundamental e médio. Priscila conta que, no Piauí, como muitos dirigentes locais
do MST iam participar das turmas de ensino fundamental e médio do EJA em 2008, o
pessoal da militância “intermediária”, e mesmo, “o povo da base”, também estava
interessado em ir. Queriam seguir o exemplo da liderança que, por sua vez, segundo ela,
se sentia com mais autoridade para “dizer sobre a importância de estudar, de se
177
escolarizar, de aprofundar”. Priscila explica que, na visão da “base”, se um dirigente,
que é uma pessoa que tem pouco tempo, que se dedica 24 horas por dia para a luta, se
dispõe a ir, é porque os demais também poderiam estar estudando.
Outra característica importante dos cursos do MST é a manutenção da
organicidade implementada nos acampamentos, assentamentos e demais instâncias da
organização. Como geralmente os estudantes moram em alojamentos coletivos durantes
estes cursos, eles passam a se organizar em brigadas, cada qual responsável a cada dia
pela coordenação das tarefas cotidianas como limpeza, ajuda na cozinha, “mística”,
“disciplina” e, em alguns casos, na indicação de representantes para a comissão político-
pedagógica que, no caso das instituições do Estado, negocia as demandas da turma. Os
estudantes, portanto, devem auto-gerir sua permanência nos cursos, o que acaba
promovendo uma rotina que é preparada pelos próprios alunos. Priscila diz que
geralmente os professores comentam como as turmas do MST são “diferentes”, pois
nesses cursos, o professor é mais um dentro da sala, que tem uma tarefa muito
importante, uma tarefa central, que ele vai fazer parte dentro de uma rotina já criada
pela turma, compartilhada”.
No processo de negociação para abrir a segunda turma do curso de História, que
é realizado na Universidade Federal da Paraíba, foi central o depoimento e a defesa dos
professores do curso pelo qual passava a “primeira turma” do MST, batizada de
“Apolônio de Carvalho”, então em andamento. Esses depoimentos garantiram a
continuidade do programa que enfrentava resistências no Conselho Universitário. Deste
modo, ficou negociada a abertura de uma “segunda turma” de alunos, que, assim como
os da primeira, são oriundos de vários estados da federação, alguns dos quais dirigentes
e quadros importantes do MST, como é o caso de Joana, Dora e Antonio, cujas
trajetórias foram tratadas no capítulo anterior.
O intenso investimento que o MST sempre fez na formação potica e, mais
recentemente, na educação formal de seus militantes o aproxima muito do papel outrora
desempenhado pelo Partido Comunista Francês (Pudal, 1989). Ou seja, na realidade,
este movimento social dos sem-terra cumpre um papel, no Brasil, que, em outras
sociedades, atravessadas por outros contextos políticos, foi desempenhado por
organizações eminentemente marxistas que, voltadas para a tomada de poder e/ou para
conquistas de postos políticos, determinaram a entrada de segmentos subalternos em
carreiras políticas institucionalizadas ou não.
Para tanto, o PCF, por exemplo, investiu profundamente em educação popular e
formação continuada, como o Movimento Sem Terra. Deste modo, este Partido, assim
como o MST, procurou neutralizar os processos de “ilegitimação cultural e social do
qual são objeto os agentes sociais pertencentes às classes popularespromovendo uma
dinâmica de seleção, formação e promoção de seus quadros. No caso do Partido
Comunista Francês, a eleição de seus militantes para vários cargos locais, regionais e
nacionais contrariaram os mecanismos sociais que regiam habitualmente as carreiras
políticas, mesmo nos partidos políticos que reivindicam o monopólio da representação
dos “trabalhadores”, já que “a probabilidade de exercer um poder político seja ele qual
for, cresce com a posição na hierarquia social” (Pudal, 1989, p.10).
Grande parte do habitus militante mantido dentro do MST deve-se a um grande
incentivo à instrução formal e política de sua base. O estilo “sem-terra” de militar, em
suma, tem em seus cursos e encontros de “formação política” um dos seus mais efetivos
lugares de reatualização, até mesmo porque neles se reproduz o tipo de organicidade
que o MST tenta aplicar em todos os lugares onde está organizado. Ele, portanto, como
procura demonstrar Caldart (2004), construiu uma pedagogia através de sua trajetória de
lutas e de sua preocupação em associá-la a experiências educacionais. No entanto, a
178
autora enfatiza muito o aspecto “pedagógicodas próprias ações e lutas desenvolvidas
pelo Movimento e aposta mais na indefinição hierárquica da identidade “Sem Terra do
MST. Neste sentido, é interessante relativizar as observações que ela faz sobre a
“pedagogia do MST” contrapondo-a com o trabalho de Rosa (2004), que, assim como
esta tese, centra-se em lideranças, ou melhor, na trajetória de vida e nas escolhas feitas
por determinados indivíduos que se tornaram militantes em tempo integral deste
movimento social.
Rosa afirma, em seu trabalho, que “somente pertence ao MST”, e mesmo a
qualquer outro dos 14 movimentos de sem-terras de Pernambuco que ele estudou,
“quem ocupa um cargo, uma função específica em sua hierarquia, podendo ou não ser
assentado ou acampado” (Rosa,2004, p.53). Sua definição ajuda a reenfocar o trabalho
de Caldart que, na verdade, quando define os elementos da identidade “Sem Terra”, não
muita ênfase ao fato de que só chega a preencher todos os “jeitos de ser” e a
compartilhar a “visão de mundo” que compõem esta identidade aqueles que ocupam um
cargo ou uma função específica na hierarquia do MST e dentro de seus setores e que,
para tanto, passaram por vários cursos de formação onde foram construindo laços de
sociabilidade e incorporando não os discursos, as bandeiras de luta, como o habitus
militante da organização. A aposta nessa indefinição hierárquica é constitutiva das
categorias de percepção compartilhadas por todos os intelectuais orgânicos do MST e, a
meu ver, não diminui a riqueza de elementos de análise que Caldart traz à tona em seu
trabalho. Cada grupo social acaba selecionando, dentro de determinadas circunstâncias,
as características com as quais quer se projetar no mundo, embora o mundo não seja
obrigado a acolher suas intenções. De qualquer modo, estas intenções criam habitus,
disposições que constroem concretamente realidades e modos de se relacionar com
esses elementos por parte destes intelectuais orgânicos que, entretanto, não
necessariamente conseguem neutralizar a percepção da hierarquia e o modo como ela é
aceita ouo pelos integrantes da base social do MST.
Esses intelectuais, por sinal, contribuíram para criar esta espécie de “obreirismo-
camponês” que é hoje a cultura política do MST. Por “obreirismo”, segundo a definição
de Yon (2005), entendo a transposição de valores e comportamentos ordinários das
classes populares para um enquadramento político”, que, apropriados, são
reinterpretados ou inventados por agentes intelectuais dotados de maior capital social e
cultural. Independente da veracidade desses valores e comportamentos reais, esse uso
político da cultura, que no caso do MST é a camponesa, representa um recurso de
primeira ordem e sustenta o universo simbólico de sua cultura revolucionária (Yon,
2005, p.144).
Também é importante acrescentar que, para manter quadros oriundos dos
extratos populares em posições de liderança, as direções do MST em vários níveis
devem ter desenvolvido mecanismos de vigilância para que essa composição social se
mantivesse, pois essa permanência sempre é ameaçada pela adesão de integrantes
oriundos de extratos sociais mais elevados (Pudal, 1989, p.11). Um desses mecanismos,
sem dúvida alguma, é o investimento na formação continuada de seus quadros e o
esmulo a que eles tenham acesso aos chamados “conhecimentos gerais”. Essa
necessidade explica, em parte, porque o MST passou a investir intensamente na
educação continuada e formal de seus dirigentes mais antigos, muitos dos quais, até
recentemente, haviam estudado até a quarta rie do ensino fundamental. É também
nesse contexto que surge o projeto de se ter um curso superior próprio, como era o
projeto da Escola Nacional Florestan Fernandes, no momento de sua fundação em
janeiro de 2005.
179
É importante observar, como se depreende de Rosa (2004), que a indicação para
a participação de cursos de formação da entidade, constitui-se praticamente no aval que
franquia o ingresso na militância da organização e a uma possível ascensão dentro de
sua hierarquia, o que enfatiza o valor que o MST dá a processos educativos. Mesmo que
possam ser instrumentalmente direcionados, eles inevitavelmente aprimoram o capital
cultural de sua base social, incentivando, por exemplo, um hábito raro entre esse
segmento da população brasileira: a leitura. É, por sinal, nos espaços educativos e
formativos do MST onde, a meu ver, se constitui o aspecto emancipatório mais sólido
de sua prática política. Independente de cartilhas mais ou menos simplificadas que
venham a fazer parte de seu programa de estudos, o investimento feito em uma
população que tradicionalmente tem parco acesso à instrução acaba tornando-se um
fator de democratização profunda, pois este conhecimento é incorporado dentro de um
contexto de crítica social e política que visa a transformação da realidade social
brasileira. Dirigentes e militantes, geralmente sem o curso fundamental completo, têm
acesso a obras teóricas fundamentais para a compreensão do país, bem como a debates
políticos que informam sua prática e sua percepção da realidade, o que não lhes torna
afeitos a pensamentos acríticos, além de lhes oferecer um rápido aumento de capital
cultural, o que sustenta ainda mais sua lealdade ao MST que, por sua vez, tem seus
projetos políticos realimentados por esta percepção mais enriquecida da realidade
social. É interessante observar que essa possibilidade de emancipação, via aquisição de
conhecimento, além de aprimorar intelectualmente seus militantes, abre caminho para a
formação e consolidação de sua subjetividade coletiva.
Essa subjetividade coletiva de traços revolucionários, o habitus militante do
MST, hoje cada vez mais associada à educação formal, reatualiza uma característica
compartilhada pelos seis casos de “guerras camponesas” que desembocaram em
revoluções, analisados por Eric Wolf (1984). O fato de os dirigentes do MST insistirem
na necessidade de que os militantes tenham que ter uma “base de conhecimento” para
desenvolver sua “formação ideológica” remete à fusão entre intelectuais’ desgarrados
e seus partidários rurais” ocorridos nas revoluções ocorridas no Vietnã, na Argélia, na
China, na ssia, em Cuba e no México. Guardadas as grandes diferenças históricas e
culturais que existem entre o MST e os grupos revolucionários que estiveram por trás
dessas transformações sociais, é interessante perceber o quanto as tradições
revolucionárias que hoje mobilizam movimentos sociais radicais têm esse ancestral
comum que é a instrução formal nos moldes ocidentais efetuadas em escolas e
universidades desses países, então colonizados ou subjugados econômica e
culturalmente (Wolf, 1984).
No caso das revoluções analisadas por Wolf, estes “intelectuais desgarrados”
eram oriundos de grupos sociais que haviam tido acesso à educação ocidental, fossem
seus países colônias da Europa ou não. Ao mesmo tempo em que adquiriram um
conhecimento que lhes ampliava e muito sua compreensão dos processos cio-
econômicos que vinham ocorrendo em seus países, viam-se presos em dificuldades
profissionais. Embora essa aliança “intelectual-camponesa” seja mais evidente nos
casos chinês, vietnamita e russo, em todas as demais lutas houve este conteúdo, produto
da contradição da expansão da cultura ocidental que engendrou o questionamento
radical de sociedades altamente atreladas ao domínio estrangeiro, em processo de aguda
crise social e política, onde era patente a debilidade dos grupos de classe e de suas
forças políticas e onde os efeitos das “grandes transformações” trazidas pelo capitalismo
eram particularmente prejudiciais aos camponeses que não encontraram outra saída
senão levantarem-se em armas para corrigir o que consideravam injusto.
180
Neste sentido, o exemplo russo talvez seja o mais particular porque o sistema de
ensino implantado no país foi iniciativa do pprio Estado czarista e o das potências
coloniais que ocupavam os demais países estudados por Wolf, como no Vietnã, na
Argélia e, de certo modo, na China. Como o Estado russo necessitava de funcionários
especializados, começou a impulsionar a educação, que desencadeou importantes
mudanças para a sociedade russa, onde havia um número crescente de operários,
camponeses e artesãos, cujos filhos começaram a receber instrução formal, criando-se
um canal de mobilidade social. Entretanto, este processo educativo teve conseqüências
inesperadas. Wolf observa que, embora o Estado czarista pudesse empregar o talento
técnico, o tinha condições de controlar as grandes implicações sociais de uma elite
educada. Esta educação deu origem não a engenheiros, doutores e professores, como
também a uma intelectualidade especificamente russa”. Deste modo, as universidades
passaram a ser espaços de difusão tanto de conteúdos técnicos, como do antagonismo
entre os educandos e o poder absolutista do Estado. Homens e mulheres provenientes de
várias classes se encontravam nas universidades e se uniam no rechaço ao Estado. O
ambiente de oposição e a repressão dela decorrente acabou gerando grupos de
“estudantes expulsos, jornalistas censurados”, que cultivaram o hábito da conspiração
clandestina, cuja atmosfera permeada por uma revolta freqüentemente estéril é bem
retratada no romance “Os demônios” de Dostoievski (2004). Um dos membros desta
geração de conspiradores, Sergei Nechaev, foi quem desenvolveu o conceito de
“revolucionário profissional” que acabou inspirando os revolucionários de 1917. Para
Wolf (1984), o conceito de exército de revolucionários de Nechaev acabou
convertendo-se no protóptipo de inúmeros movimentos terroristas ocorridos no final do
culo XIX e se parece muito com o conceito de partido revolucionário desenvolvido
por Lenin. Segundo este autor, o que o dirigente bolchevique desenvolveu, em essência,
foi justamente a fusão do marxismo com o conceito russo de grupo organizado de
conspiradores.
Essa tradição de conspiração e de sociedades secretas não era um fenômeno
peculiar da Rússia. Esse fenômeno também ocorria na China e no Vietnã, cujas
revoluções, assim como na Rússia, foram conduzidas por partidos políticos de
revolucionários de classe média. Para Wolf, estas sociedades acabaram proporcionando
um modelo para estruturação de organizações rebeldes, tradição na qual se inseriu o
Partido Comunista, tanto é que muitos dos líderes comunistas chineses haviam sido
membros de sociedades secretas e se utilizaram de suas relações com elas para
impulsionar a causa dos comunistas. No Viettambém havia uma longa tradição de
sociedades secretas que relacionavam os líderes a nível nacional com grupos locais e
regionais. Assim como na China, estas organizações eram ao mesmo tempo religiosas e
seculares, combinando ajuda mútua com participação em rituais e em intrigas políticas.
Foi esse costume da atividade secreta que proporcionou a base para a futura atividade
revolucionária.
A diferença é que tanto na China, como no Vietnã, o sistema de ensino ocidental
chegou suplantando uma outra forma de educação, a confucionista, a qual tinham acesso
os nobres que compunham a elite intelectual chinesa e vietnamita, que, por sua vez,
ocupava cargos oficiais, mediante a participação em exames sucessivos e a obtenção de
graus acadêmicos. Em ambos os países os filhos dos camponeses chineses tinham
acesso a essa mobilidade social potencial se obtivessem uma preparação literária
adequada, podendo ascender ao extrato dos nobres mediante o sistema de exames.
Com a abolição do sistema confucionista de exames, em 1905, já bastante
desprestigiado, seu lugar foi ocupado pelo sistema de educação ocidental, na forma de
universidades do governo ou confessionais, celeiros onde se formou o movimento
181
nacionalista chinês, na forma do Kuo Min Tang, o Partido Nacionalista, e do Partido
Comunista. Esses novos estabelecimentos de ensino atendiam à demanda de uma
população estudantil, oriunda da nova elite econômica do país, que buscava carreiras
econômicas profissionais mais técnicas. Entretanto, por enfrentarem condições
econômicas incertas, “ameaçados com o desemprego e cada vez mais conscientes da
impotência da China diante da crescente ameaça estrangeira, os estudantes reagiram a
sua situação com um nacionalismo extremado” (Idem, p.195)
Segundo Wolf, esta geração de fundadores do Kuo Min Tang e do Partido
Comunista geralmente eram naturais das regiões da China em que a influência ocidental
havia penetrado primeiramente e onde ela se deu de modo mais forte. Todos tinham
educação superior e a maioria havia estudado no exterior. Em ambos os partidos, seus
líderes mostraram pouco desejo ou falta de habilidade para empreender uma carreira
privada. Eram, em suma, homens e mulheres, cuja educação ocidental os isolava das
principais correntes da sociedade chinesa.
A colonização francesa e a implantação de seu sistema de ensino também
propiciou o surgimento de um crescente nacionalismo entre a população vietnamita
educada. De acordo com Wolf, ao lhes proporcionar acesso aos autores do iluminismo
francês e da tradição socialista européia, o ensino ocidental acabou dando-lhes também
“uma nova arma contra o poder colonial que não lhes outorgava privilégios iguais aos
dos colonos”. Era natural, portanto, que os filhos das famílias que haviam se esforçado
para enviá-los à escola, mas que se encontravam em dificuldades econômicas ou não
encontravam emprego na estrutura social para a qual tinham sido capacitados por esta
educação, passassem a cultivar um descontentamento com suas condições de vida e a
ingressar nos diversos movimentos nacionalistas e socialistas que começaram a surgir
no Vietnã a partir de 1900.
Guardadas as enormes distâncias entre o MST e estes exemplos levantados por
Wolf, é fato que com seu viés internacionalista, hoje em evidência através da Via
Campesina - organização internacional que reúne camponeses de todo o mundo, da qual
foi um dos fundadores - o MST hoje é reconhecido nacional e internacionalmente por
seu trabalho na área da educação e da formação política, a ponto de contribuir com
movimentos sociais de outros países e continentes na transmissão de suas metodologias
de formação. Por outro lado, ele assume também cada vez mais um caráter nacionalista,
incorporando bandeiras como, por exemplo, a luta contra as privatizações, contra
atividades de empresas transnacionais e contra leilões de áreas para exploração
petrolífera, que mais uma vez o aproxima de seus pares revolucionários de outras
épocas. Resta esperar para saber se as próximas gerações, formadas nas escolas do
MST, irão aportar ventos de transformação social para o Brasil, seguindo essa tradição
revolucionária tão intimamente vinculada ao acesso ao ensino formal, nos moldes
ocidentais, como acreditam seus dirigentes. Afinal, a expansão do racionalismo
ocidental gerou violência, dominação cultural e econômica, mas dialeticamante trouxe
dentro de si os germes da sua crítica, a meu ver dentro do mecanismo que Giddens
chama de “reflexividade”, visto que ele fomenta que as práticas sociais sejam
“constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas
próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter”Giddens, 1991, p.45).
Algo que se aproxima do métodoprática-teoria-prática” do MST.
Além disso, se há uma dominão simlica vivida pelas populações
camponesas em todas as partes do mundo, quando os intelectuais orgânicos desses
movimentos sociais reconhecem a legitimidade cultural da instrução formal, eles se
apropriam dessas técnicas de ensino para contestar a legitimidade política dessa
dominação. A tomada de consciência política restaura a dignidade cultural desses
182
grupos, mas não deixa de implicar uma outra forma de submissão aos valores
dominantes ao reconhecer as hierarquias ligadas aos títulos escolares e as capacidades
que a escola supostamente garante. No meio desse processo, entretanto, como Wolf
demonstra em seu estudo das “guerras camponesas”, essa dinâmica implica em uma
transformação profunda dessas sociedades, alvo hoje em dia aparentemente utópico,
mas que é o que de fato move a maioria dos militantes do MST em sua luta cotidiana.
183
Considerações finais
Um novo tempo
Em seu discurso de abertura da Coordenação Nordeste, em julho de 2006, um
dos dirigentes de origem sulista e, portanto, ator desse processo, exprimiu como se deu
a expansão do MST nesta região: “Fomos abrindo esse Nordeste de ponta a ponta, como
bandeirantes, e cada estado foi construindo sua autonomia”. Tônica da reunião que
estava sendo instalada, e, exprimindo as necessidades do MST nordestino hoje, ele
frisou: “Precisamos agora nos articular novamente em alguns temas comuns. Tem
algumas políticas que necessitam da nossa articulação, como o fortalecimento dos
nossos assentamentos”. Entre os temas debatidos na ocasião, estava a necessidade de se
buscar mecanismos para estimular o cooperativismo, cujo fracasso nos assentamentos
do Nordeste é, em parte, atribuído ao fato de o MST ter tentado implantar “um modelo
sulista”. Para um participante da reunião, que apontou esse problema: “o Sul adotou o
modelo europeu para fazer cooperativas. E o Nordeste adotou o modelo sulista que não
era adequado. Tem que se levar em conta a diversidade dos estados”. A reunião,
marcada para terminar ao meio-dia do terceiro dia, terminou antes, no fim do segundo.
Toda a pauta tinha sido discutida. Encerrados os debates e definidos os
“encaminhamentos”, decidiu-se como seria realizada a “Jornada Socialista” de
encerramento da reunião: com ciranda, milho assado e churrasco, obviamente, “a cargo
dos gaúchos” presentes.
Este episódio, vivenciado em meu trabalho de campo, exprime, sob diversos
aspectos, o “novo tempo” que o MST, a meu ver, procura instalar nas regiões por onde
se organiza. Esse novo tempo é, em parte, o tempo apressado freqüentemente visto
como arrogante dos sulistas como evidenciam alguns dos depoimentos anteriores, que,
no entanto, desembocou em um estilo de militância capaz de organizar reuniões
políticas com caractesticas profissionais, que podem ser finalizadas antes do
previsto, bem diferente de reuniões de grupos da esquerda brasileira que tive
oportunidade de assistir. Por outro lado, esse “novo tempo” é aquele que procura
também instaurar novas dinâmicas produtivas nos assentamentos, assim como propiciar
acesso à instrução formal e técnica de qualidade para pessoas antes virtualmente
excluídas dessas estruturas educacionais. Além disso, como vemos, esse encontro entre
“gaúchos” e nordestinos no MST não incluiu a afirmação de uma dessas identidades,
como expressam as manifestações culturais escolhidas para a festa de encerramento do
encontro. Cantou-se uma ciranda, celebrando Itamara(BA), comeu-se o milho assado
das noites juninas nordestinas e se fez questão de que os dois gaúchos presentes
contribuíssem com seu indefectível churrasco. Em suma, um projeto político, social e
cultural completamente diferente do protagonizado pelos gaúchos do que hoje é
conhecido como “agronegócio” e seus CTGs.
Além do que, mais do que mesclar culturas, um dos protagonistas desse processo
me contou que alguns aspectos da cultura nordestina foram incorporados como práticas
dentro do estilo de militância do MST, como é o caso da importância dada à “festa”,
assim como a adoção da definição de procurar ir com “roupa boa” para as reuniões,
evitando o calção e o chinelo havaiana como era hábito nos encontros dos sulistas. A
realização de festas, sejam elas Noites Culturais” ou “Jornadas Socialistas”, nos
encontros e reuniões do MST, assim como o uso de um traje mais cuidado e formal por
parte de seus membros são práticas que conferem maior importância simbólica aos
momentos vividos coletivamente, contribuindo também para reforçar a adesão ao
184
Movimento. Não é por acaso que “festa” é o nome que os sem-teto e os sem-terra
brasileiros dão à suas ocupações, inversões pontuais da injusta ordem social brasileira
com forte conotação simbólica, mas também com efeitos concretos significativos na
vida dessas pessoas.
Sob o ponto de vista desta pesquisa, esses militantes sulistas do MST se
deslocaram para outras regiões do país com a tarefa de promover a luta pela reforma
agrária que, dentro do contexto brasileiro, acaba por buscar o cumprimento das
promessas emancipatórias da modernidade ocidental (Santos, 1995). Esta luta poderia
implicar apenas o sentido distributivista, esgotando-se na conquista da terra, mas no
caso do MST, até pelas características históricas da concentração fundiária no país, é
um conflito derivado do processo de modernização implantado no país e embute um
questionamento do modelo de desenvolvimento capitalista ora vigente. Por outro lado, a
luta por reforma agrária acabou desdobrando-se em luta por acesso a direitos - também
eles frutos da modernidade - como educação e saúde universais, e pressionou o Estado a
desenvolver infra-estrutura para assentamentos e fornecer linha de crédito para seus
beneficiados. É, portanto, uma luta que tem um aspecto histórico e societal, no sentido
que Touraine (2006 (1)) parece imprimir ao conceito de movimento social, visto que o
MST questiona as conseqüências do modelo capitalista implantado no país, com seus
derivados devastadores tanto em termos ambientais, como sociais e culturais e, também,
por colocar em causa um modo de dominação social generalizada altamente associado
ao monopólio da terra. O MST, com sua luta, coloca para a sociedade brasileira um
projeto de modernização que se inspira em um outro modelo de sociedade, no caso,
socialista
141
, mas como é um movimento social brasileiro, pouco afeito a dogmas
teleológicos, é, antes de mais nada, um projeto aberto e que, curiosamente, incorpora
“de nascimento” traços da ética capitalista clássica, compartilhada por seus conterrâneos
que hoje encarnam o agronegócio da soja e algodão espalhados pelos cerrados
brasileiros. Talvez justamente por isso é que ele consiga oferecer caminhos de acesso à
dignidade social e política para populações antes excluídas até mesmo de uma
interlocução com o Estado brasileiro.
Santos (2005) aponta a existência de uma dialética entre regulação e
emancipação no projeto de modernidade. O mesmo movimento social que produz
emancipação - através de uma demanda por direitos obtidos do Estado a partir da luta
pela terra - institui novas formas de regulação e vice-versa. Sob esse ponto de vista, o
MST institui uma prática regulatória, assim como todos os movimentos sociais que o
antecederam, ao reivindicar um contrato com o Estado, ou seja, os direitos sociais
previstos na lei, através da constituição de assentamentos. Os sem-terra beneficiados
pelos programas vigentes passam a ter “o direito” ao acesso a serviços públicos
(escolas, estradas) e recursos (crédito de produção, habitação) que nem sempre chegam
efetivamente, mas que são previstos a partir de uma lógica de inserção destes
trabalhadores no mercado, como agricultores familiares, categoria sócio-econômica hoje
associada predominantemente à idéia de construção de uma classe de pequenos
141
Embora não seja tema deste trabalho, é importante se destacar que as intenções do MST não o
necessariamente colocadas em prática como apregoa sua retórica política, assim como o são
incorporadas integralmente por sua base social que se mobiliza de acordo com as categorias culturais e
sociais que carrega, ou seja, nas quais foi socializada. Como resultado, várias etnografias e mesmo
documentos do MST reconhecem a existência de práticas de mandonismo e clientelismo por parte de seus
militantes que se calcam, por sua vez, nas relações de reciprocidade e lealdade características do meio
rural brasileiro (Brenneisen, 2002). Deste modo, os direitos obtidos nos assentamentos são muitas vezes
compreendidos como favores” obtidos pelo MST, e a continuidade do engajamento de sua base social
em suas lutas muitas vezes não é fruto de um comprometimento ideológico, mas como uma forma de
acertar a “dívida” contraída com esta organização.
185
empresários rurais. É esta visão do que teria que se tornar um assentamento de reforma
agrária que norteia a análise dos militantes apresentada anteriormente, embora o próprio
MST hoje recuse a categoria e o projeto embutido no termo “agricultura familiar” ao
qual ele faz frente com a “agricultura camponesa”, trabalhada em termos tanto políticos,
como produtivos, por se basear, segundo sua concepção, na agroecologia, na produção
diversificada e na resistência à mercantilização de todas as etapas produtivas.
Imerso nessa dialética, o mesmo movimento social que produz emancipação -
através de uma demanda organizada por direitos que visam pressionar o Estado, entre os
quais se destaca a educação - institui novas formas de regulação, até porque insere sua
base social em uma racionalidade produtiva contribuindo para integrá-los ao mercado e
a mecanismos de financiamento até então distantes do horizonte social desses
trabalhadores. Portanto, ao mesmo tempo em que reivindica direitos, o MST institui
uma prática regulatória, visto que exigir assentamentos é reivindicar acesso a um
contrato com o Estado que termina por institucionalizar novos direitos, que exigiriam
que estes assentados cumprissem com determinadas contrapartidas, tais como produzir
para se auto-sustentar com seu lote.
Por outro lado, o modo como o MST se estruturou nacionalmente, sua rede de
militantes espalhadas pelo Brasil, reunidos em encontros, congressos, cursos e reuniões
fortalece o pilar de regulação da comunidade -, para Santos (2005), o mais esquecido de
todos ,- levando-se em conta que é a participação em cursos e instâncias que credencia
os sem-terra à milincia e, portanto, a espaços de participação de maior prestígio
interno, tornando-os efetivamente orgânicos dentro da estrutura do MST. Como já
mencionei anteriormente, é justamente por esta característica que este movimento social
se distingue tanto de outras forças econômicas e sociais modernizantes que estão
atuantes na sociedade brasileira, visto que ele procura inserir esses trabalhadores no que
chamo de modernidade emancipadora, pois além do acesso à formação política, o MST
incentiva a instrução formal e técnica, inserindo ambos os saberes dentro da lógica de
uma luta por direitos e, assim, constituindo novos laços de sociabilidade e vivência
comunitária em torno dessas lutas.
Seguindo a sugestão de Yon (2005), este estudo buscou estudar o MST a partir
dos agentes sociais que o habitam. Para tanto, recorreu à trajetória de vida de militantes
de duas gerações específicas do Movimento de modo a tentar descrever como esse
habitus militante foi construído nesta dialética entre história individual, institucional e o
contexto histórico pelo qual se transcorriam essas trajetórias. Por fim, ele procurou
descrever a partir da representação desses próprios agentes, o projeto que esses
militantes carregavam consigo que, produto de uma utopia de traços socialistas, embute
também uma maior inserção de suas bases na modernidade, que pode ser tanto a do
projeto do MST, como a capitalista.
Esses militantes de duas gerações específicas do MST, cujas trajetórias e
características foram apresentadas nos capítulos anteriores, o “mediadores” que
assumiram a “missãode expandir esse projeto para o Nordeste. É um percurso, no
entanto, bastante criticado no Brasil, até por intelectuais partidários de transformações
na estrutura fundiária do país, como Martins (2004), que faz uma dura crítica a esses
atores engajados na luta pela terra e pela reforma agrária, que estão tanto no MST ,
como na CPT. Segundo ele, haveria neles uma resistência a aperfeiçoar sua
competência política, até por serem limitados pelas técnicas interpretativas superficiais
de tipo fundamentalista”, as quais privariam os grupos populares “de tomarem
consciência de sua verdadeira e eficaz identidade histórica e, portanto, de se tornarem
de fato sujeitos da História” (Martins, 2004, p. 18-19).Esse trecho deixa no caminho
186
algumas questões não explicitadas pelo autor mais adiante, tais como o que seria esse
“aperfeiçoamento político”.
Martins classifica de “fundamentalistas” as “técnicas interpretativas
superficiais”, provavelmente do marxismo “vulgar” e “simplificado” que, segundo ele,
passaram as ser adotadas pelos “mediadores de classe média” presentes nesses
movimentos sociais que introduziram nas lutas populares “o seu próprio movimento
social e seu próprio e impotente hibridismo de classe”, afirmação que me parece
deslocada. Embora concorde que, em geral, boa parte da riqueza da prática de luta
desses sujeitos sociais não fosse assimilada pela “pobreza metodológica” do “marxismo
estruturalista” usado pela organização anteriormente, a incorporação dessa doutrina
política não foi nem estanque, nem “fundamentalisticamente” seguida pelo MST, assim
como não foi introduzida por mediadores de classe média”, outra acepção que a meu
ver teria que ter sido desenvolvida pelo autor. Leigos ou religiosos, a verdade é que
muito mais do que membros dessa “classe média” indefinida, a maioria dos principais
agentes da luta pela terra, que contribuíram para a expansão do MST pelo país, são
oriundos do campesinato sulista.
Nesse sentido, a meu ver, os militantes do MST estão muito mais próximos do
que Eric Wolf (1984) observou como traço comum nas seis revoluções camponesas que
ocorreram no século XX. Um dos temas centrais da análise de Martins sobre a CPT e o
MST, a mediação, ou melhor os grupos que fazem a mediação entre os camponeses e o
restante da sociedade da qual formam parte, também é um aspecto analisado por Wolf.
No entanto, o antropólogo norte-americano tem, como hipótese, o papel particularmente
significativo desses grupos para o levante armado destas populações e procura
investigar em que circunstâncias e que tipo de pessoas demonstraram serem adequadas
para estabelecer contato com estes grupos de camponeses , em geral, bastante
desconfiados e pouco afeitos a receber liderança de pessoas vindas de fora de suas
comunidades.Wolf observa que os mediadores, assim como a base social predominante
dessas revoluções são oriundas de famílias de camponeses taticamente veis”, ou
seja, que eram proprietários de terras ou que viviam em uma zona periférica, longe do
domínio dos latifundiários ou controles externos e que, portanto, possuíam maior
liberdade de ação para engajar-se nas rebeliões camponesas
Baseando-se em inúmeras pesquisas de antropólogos e sociólogos, o autor
conclui que esta característica das lutas revolucionárias constitui um paradoxo, pois são
essas populações as principais portadoras da tradição camponesa. Ele observa que
justamente este “extrato culturalmente conservador” é quem se torna “o instrumento
principal da destruição da ordem social”, então existente. Também analisa que boa parte
dos agentes dessas lutas receberam educação formal, tornando-se “intelectuais de classe
média que, sem espaço nas estruturas sociais tradicionais em que viviam, foram
profundamente sensíveis ao apelo nacionalista, marxista e leninista, engajando-se na
formação de partidos revolucionários de massa que lideraram os processos ocorridos
particularmente na Rússia, na China e no Vietnã.
Wolf também observou que essas irrupções revolucionárias inicialmente
ocorreram em províncias que eram a terra de origem de suas principais lideranças e que,
até por características geográficas e econômicas, já tinham sido palco de outras revoltas,
seja por serem zonas fronteiriças, por terem atividades econômicas que vinham sendo
prejudicadas por políticas do Estado central ou por serem zonas periféricas que se
encontravam além do controle do centro de poder, cuja mobilidade tática dos agentes
mediadores se via incrementada de acordo com sua localização.
Trazendo essa reflexão para o caso dos filhos de pequenos proprietários rurais da
região Sul que se tornaram mediadores da luta pela terra no Brasil, deve se observar
187
que, além de serem oriundos de uma região que foi palco de lutas armadas e políticas
importantes (Revolução Farroupilha, Revolução Federalista de 1893 e 1923 e Guerra do
Contestado), grande parte deles teve educação em seminários católicos, tendo sido
encaminhados para essas instituições para obter uma educação que suas famílias não
podiam proporcionar ou porque pretendiam abraçar a vida religiosa. Eram também
“camponeses taticamente móveis”, que oriundos de famílias que detinham algum
pedaço de terra, mesmo que pequeno.
A meu ver, portanto, o “radicalismo” e o “voluntarismo” dos militantes do MST,
apontados nas leituras tanto de Navarro (2002) como nos dois livros Martins (2003,
2004) o resultantes muito mais dessa experiência de uma pequena produção agrícola
em crise, associada aos princípios da Teologia da Libertação, do que propriamente do
fato de eles serem oriundos de um esquerdismo de classe média que estava a procura de
um sujeito para encarnar sua sonhada revolução. Quando houve o que Navarro chama
de “apressada adesão a um ideário leninista, ainda que simplificado(Navarro, 2002, p.
204), deve-se levar em conta como dirigentes formados dentro da tradição católica,
estruturalmente dogmática, assimilaram estas idéias. É importante também entender que
embora o capital cultural deles os aproxime de extratos de classe média, isso não
significa que eles tenham de fato chegado a uma posição social de classe média. Não
julgo, porém, que esses agentes da luta pela terra do MST mantenham-se nessas leituras
reducionistas, até porque buscam e difundem uma aprimoramento intelectual, permeado
pelos desafios de uma luta essencialmente prática. É provável, entretanto, como aponta
Navarro, que o ideário marxista-leninista tenha passado a ocupar o lugar da explicação
total que antes a Igreja fornecia e que, em cursos de formação mais da base, ele acabe
produzindo
adesão a uma compreeno ‘total’ e fechada da potica que, de fato,
sequer procura situar-se concretamente em relação ao
desenvolvimento político brasileiro recente, pois se volta inteiramente
para dentro”, que é destinada precipuamente a manter a disciplina,
a motivação e a coeo entre seus militantes intermediários (Navarro,
2002, p. 204).
Mas, se isso era um fato em um determinado momento da história do MST, é
muito possível que esta situação venha se transformando porque sua própria proposta
de se abrir a intercâmbios com intelectuais de fora da organização
142
acaba também
servindo para colocar em cheque as próprias teorizações preferenciais da organização, a
não ser que esses intelectuais “amigos” se aproximem acriticamente do Movimento,
também esperançosos de que o MST encarne os ideais que eles outrora carregaram.
O principal problema das leituras reducionistas e maniqueístas da realidade,
oriundas possivelmente dessa mescla de marxismo-leninismo com pensamento cristão,
é o fato de que elas tendem a o propiciar uma verdadeira abertura para a análise de
uma prática riquíssima e prenhe de possibilidades que a “metodologia” de luta do MST,
com acertos e erros, vem tateando no interior deste país. A aparente “esquizofrenia” de
se ter um discurso socialista e procurar estimular suas bases a ter uma concepção mais
produtivista e conforme aos padrões do mercado, que alguns percebem na prática
política do Movimento, talvez venha dessa insistência deles próprios em enquadrá-la
dentro de alguns parâmetros teóricos e políticos, o que obscurece uma vivência
142
Em uma intervenção durante a Conferência Dilemas da Humanidade, com vários intelectuais
estrangeiros, realizada no Rio de Janeiro, em julho de 2004, um dos dirigentes do MST falou
explicitamente: “Fomos nos reconstruir culturalmente para deixar de ser Jeca-Tatu”
188
riquíssima que, felizmente, não é assim tão profundamente contaminada por essas
leituras. Nesse sentido, é interessante a seguinte observação de Martins:
Se examinadas objetivamente em suas conseqüências históricas as
ações do MST contém, inevitavelmente, quer queiram seus militantes
ou não, quer o reconheçam ou não, esses elemento próprio da
chamada ‘revolução burguesa’ (Martins, 2000, p. 43)
Ou seja, para o autor, o MST cumpre no Brasil, uma “tarefa histórica” que nos
países mais ricos foi própria da chamada burguesia clássica” que, em um momento
de impasse histórico e econômico, “enquadrou a propriedade da terra nas necessidades
sociais do capital”. Talvez esse aparente paradoxo do MST de se considerar socialista,
mas lutar por um aumento do número de proprietários privados, cumprindo o papel
clássico da “burguesia” seja nada mais do que outro produto da nossa “anomalia
histórica” que fez com que o próprio capital se tornasse proprietário de terra, incluindo
“na sua reprodução ampliada a irracionalidade da renda fundiária”, causa primordial, na
visão de Martins, de se ter desenvolvido no Brasil um “capitalismo predatório e anti-
social, irresponsável e despreocupado em relação aos enormes problemas sociais que
cria”. Mas se o MST não se movesse adiante buscando sua utopia de sociedade,
provavelmente sua base não continuaria lutando, depois de ter conquistado seus lotes de
terra. Foi justamente por continuarem defrontando-se com impasses à realização de sua
utopia que a luta dos sem-terra do MST foi se enriquecendo com demandas em torno,
por exemplo, da soberania alimentar, ecologia, educação, projeto de desenvolvimento
nacional que hoje fazem parte de sua pauta política.
Por outro lado, muito mais do que incentivar o projeto burguês, que desembocou
no “direito individual, a “experiência humana” de participar do MST procura se situar
bem longe desta dinâmica, como observou Chaves (2000), incentivando um antídoto ao
individualismo exacerbado através de sua ênfase em ações, projetos e direitos coletivos,
a tal “organização coletiva”, uma das matrizes pedagógicas identificadas por Caldart
(2004). Ao incentivar a formação de coletivos” em vários níveis de sua organização, o
MST não só incentiva a valorização desta dinâmica, como procura neutralizar toda sorte
de individualismos e personalismos que, no entanto, tendem sempre a estar tensionando
sua prática, pois o MST não é uma ilha isolada da sociedade em geral.
Além disso, o fato de a ação do MST, segundo Martins, reintegrar “a tradição
familiar do mundo camponês na realidade econômica do mundo moderno”, ou seja, no
mundo da mercadoria, do consumo de massa, acaba produzindo contradições que não
passam despercebidas pelos militantes e intelectuais orgânicos da organização, como
pude constatar no início de fevereiro de 2006, na apresentação dos trabalhos finais do
Curso de Teorias Sociais, na UFRJ, do qual participaram várias lideranças do MST
143
.
Um dos trabalhos feito por um formando, sobre o assentamento localizado na Fazenda
Itamarati, em Mato Grosso do Sul, monstrou que informados da época de chegada do
crédito, o comércio em torno dos assentamentos passava a assediar os assentados com
vantagens em compras de veis e eletrodomésticos, em especial televisões. A compra
e o uso das TVs teve, no entanto, como efeito colateral, uma evasão de 20% da
freência na escola do assentamento. Como o MST pode se contrapor a isso? A
questão fica em aberto.
143
Curso feito em parceria com o curso de Serviço Social da UFRJ, que funciona como uma espécie de
especialização nesse tema, para o qual vários intelectuais brasileiros importantes foram convidados a dar
aula.
189
Por este tipo de exemplo, considero que as insuficiências e os grandes desafios
do MST residam no fato que manifestadamente estão tentando sanar
144
- de que ele
tem que também saber ser criativo teoricamente, pois esse tipo de pensamento, que
inclui uma complexidade das dimensões (sociais, econômicas, culturais e geopolíticas)
pode provocar a “práxis transformadora” que, acredito, muitos deles perseguem e que só
pode brotar a partir da irredutível realidade de que eles são um movimento de
camponeses brasileiros que, no alvorecer do século XXI, tentam transformar uma
sociedade ainda presa na encruzilhada da “modernidade”, confusa frente a seu destino
comum, atravessada pelos problemas da “urbanização patológica” e que se conhece mal
e que, portanto, desconhece seus “sertões”.
Em suma, a reflexão sobre o papel dos “mediadores” não leva em conta o caráter
essencialmente “movimentado”, ou seja, em constante transformação da prática de
mediação do MST, que sempre é devidamente embebida na realidade que a cerca. Ela é
fruto da “interpenetraçãoconstante entre a vivência de suas bases e a de suas liderança
e que, como observa Schmitt (1992), nunca são “redutíveis uma a outrae pressupõe a
“heterogeneidade” dos participantes da luta pela terra. Em suma, na base do MST
todo um trabalho de reconhecimento, no qual vai sendo construído mutuamente o
discurso dos mediadores e a visão de mundo dos agricultores a partir de um processo
permanente de elaboração de suas diferenças internas que, sobretudo nos assentamentos,
costumam aflorar com mais intensidade.
Martins (2003) reconhece que boa parte do desencontro existente entre a base
dos assentados da luta pela reforma agrária e os mediadores do MST possa ser produto
de uma insuficiente socialização durante o acampamento que não consegue alcançar
esses sujeitos descartados pela modernização, sobreviventes de um passado histórico,
que sofreram o impacto da desagregação das relações tradicionais de trabalho, cujos
meios de vida foram extintos sem nunca terem conseguido requalificação e reinserção
em outras atividades econômicas. Em suma, como observa Touraine ,“se a parte de
sombra dos movimentos sociais é a da sociedade, sua parte de luz é a da modernidade”
(2006, p.140). E, de fato, o MST é uma expressão da sociedade brasileira. Nem mais,
nem menos. Dentro dele se produziu uma cultura política que expressa as grandes
qualidades dessa sociedade, mas provavelmente também, seus piores defeitos.
Espero ter demonstrado com essa tese que o MST é um movimento que deveria
ser mais amplamente conhecido por esta sociedade, pois é o que de melhor ela pôde
desenvolver em termos de movimentos sociais, por manter ainda viva a chama dos
direitos universais. Se, às vezes, essa luta aparece meio enclapsulada, como
representando um único segmento, na verdade, ela é portadora da resolução de dois
nódulos históricos da sociedade brasileira: o monopólio da terra e o escravismo que
paira ameaçando populações miseráveis que vivem no meio rural, e mesmo urbano, uma
mão-de-obra sempre disponível à relações degradadas de trabalho e a condições de vida
incompatíveis com a manutenção de sua dignidade.
Tomando a definição que Souza para o conceito de Bourdieu, se habitus é
“passado tornado presente, história tornada corpo e portanto “naturalizada” e
“esquecida” em sua própria gênese” (Souza, 2006, p.44), o que importa é compreender
que esse habitus militante que os membros do MST carregam é produto de tradições
144
Na abertura da Conferência sobre os Dilemas da Humanidade, que fazia parte das comemorações dos
20 anos do MST, o dirigente Ademar Bogo fez questão de frisar a necessidade de se superar o
“subdesenvolvimento do pensamento”, associando-se com outros movimentos sociais e intelectuais de
rias partes do mundo para se encontrar um rumo “que pertença a todos que querem um mundo melhor”.
Entre os intelectuais participantes da conferência estavam Michel Löwy, Michel Chossudovsky, Paulo
Arantes, Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho.
190
históricas, culturais, sociais e políticas brasileiras que dão corpo às atitudes e
disposições desses militantes que, no caso, se devotaram a populações marginalizadas
de modo a torná-las sujeito, no sentido amplo, que Touraine a esse termo
145
, o que,
evidentemente, inclui uma série de conflitualidades, que o sujeito “não se afirma fora
das características sociais e culturais daqueles que se consideram e querem ser
reconhecidos como sujeitos” (Touraine, 2006, p.129)
Se formos olhar a experiência do MST no Nordeste, podemos perceber que, ao
mesmo tempo em que buscaram se enraizar no sertão do nordeste brasileiro, os
militantes do MST produziram uma nova ntese cultural que pode vir a provocar
contradições internas, mas que inevitavelmente vem mudando as paisagens antes
dominadas por terras desocupadas, assim como os sonhos de quem antes vivia tolhido
entre a oão de migrar para o Sudeste ou resignar-se a uma pobreza secular. O MST
pode ser considerado, portanto, um agente modernizante tanto por tentar tornar os
assentamentos mais eficientes economicamente, partindo inclusive para uma luta
política marcada pela preocupação educacional e técnica, como quando pretende inserir
a dimensão futura da história na vida cotidiana de sua base.
145
Segundo este autor, a “consciência do sujeito” é produto do surgimento e da combinação de três
componentes. Em principio, “uma relação a si mesmo, ao ser individual, como portador de direitos
fundamentais”. Desse modo, marca-se tanto a ruptura com a referência a princípios universalistas, como
com uma lei divina. O sujeito torna-se “seu próprio fim”. O outro componente que forma o sujeito seria a
entrada consciente “em conflito com as forças dominantes que lhe negam o direito e a possibilidade de
agir como sujeito”. Por fim, cada um, enquanto sujeito, deve ter condições de propor “uma certa
concepção geral do indivíduo(2006 (2), p.130).
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