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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E CULTURA REGIONAL
ANTONIO EVARISTO ZANCHIN DE CAMPOS
DE ANDARILHO A HERÓI DOS PAMPAS:
HISTÓRIA E LITERATURA NA CRIAÇÃO DO GAÚCHO HERÓI
Caxias do Sul
2008
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ANTONIO EVARISTO ZANCHIN DE CAMPOS
DE ANDARILHO A HERÓI DOS PAMPAS:
HISTÓRIA E LITERATURA NA CRIAÇÃO DO GAÚCHO HERÓI
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras e Cultura Regional da
Universidade de Caxias do Sul, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Marília Conforto
Caxias do Sul
2008
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Aos meus pais:
Mãe, pelo conhecimento, amor e dedicação;
Pai, pelas oportunidades e pelo exemplo de perseverança.
Gabriela, por tudo. Para sempre.
AGRADECIMENTOS
Esta dissertação foi uma caminhada que muitos participaram, aos quais
agradeço:
À minha orientadora Professora Dra. Marília Conforto, por ter me
incentivado a ingressar neste mestrado e ter me acolhido como orientando.
Pela confiança em mim depositada, durante toda a nossa caminhada.
Ao corpo docente do mestrado de Letras e Cultura Regional; em
especial ao Professor Dr. Flávio Loureiro Chaves, pelo incentivo.
Às minhas queridas colegas de mestrado: Carina Fior Postingher
Balzan, Cinara Fontana Triches, Demirse Marilva Ruffato, Karina de Castilhos
Lucena, Lisiane Delay, Luciana Crestana dos Santos e Rosemari Sarmento,
por todo o conhecimento partilhado nas conversas de copo e de cruz, fruto de
uma amizade sincera e duradoura.
À minha família, pelo companheirismo e amor.
À família Mattana, pelo suporte.
À empresa Camcam Comércio e Representações, pelo apoio e
compreensão de minha ausência.
E, principalmente, à Deus e sua criação.
O real não está na saída nem na chegada:
ele se dispõe para a gente é no meio da
travessia.
João Guimarães Rosa
SUMÁRIO
RESUMO..............................................................................................................8
ABSTRACT..........................................................................................................9
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................10
1.1 RIO GRANDE DO SUL E BRASIL: RELAÇÕES ENTRE O REGIONAL E O
NACIONAL..........................................................................................................12
1.2 HISTÓRIA E LITERATURA..........................................................................17
1.2.1 História, Literatura e Ideologia...................................................................23
1.3 A LITERATURA FUNDADORA DA IMAGEM IDEOLÓGICA DO GAÚCHO.
............................................................................................................................27
2 FORMAÇÃO DA PROVÍNCIA DE SÃO PEDRO: BREVE INTRODUÇÃO
DOS PROCESSOS POLÍTICO-MILITAR E ECONÔMICO...............................33
2.1 PROCESSO MILITAR..................................................................................33
2.2 QUESTÃO DE FRONTEIRA.........................................................................44
2.3 PROCESSO ECONÔMICO..........................................................................51
2.3.1 Ascensão econômica do Rio Grande do Sul.............................................56
3 GAÚCHO, VISÕES DA HISTÓRIA.................................................................62
3.1 AS DEFINIÇÕES HISTORIOGRÁFICAS DO GAÚCHO..............................65
4 GAÚCHO, VISÕES DA LITERATURA...........................................................86
4.1 O GAÚCHO..................................................................................................86
4.2 O VAQUEANO............................................................................................106
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................118
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................124
RESUMO
Este estudo tem como objetivo desenvolver um diálogo entre a literatura e a
História a fim de evidenciar as suas contribuições para a formação da imagem
do gaúcho herói. Para tal, selecionamos as obras literárias O Gaúcho, de José
de Alencar e O Vaqueano, de Apolinário Porto Alegre, devido ao seu
pioneirismo na formação da personagem gaúcho e por serem elas precursoras
da literatura regionalista rio-grandense. As análises discorrem na
fundamentação de que a ideologia dos autores está inserida em suas
narrativas. Analisamos as obras dentro de seu contexto histórico-temporal e
ideológico, e identificamos que as imagens construídas na narrativa servem na
construção de significados para gaúcho e, assim, conduzem o texto para a
contemplação de ideologias contidas em projetos previamente estipulados.
Afirmamos que a figura do gaúcho sofreu modificações no decorrer do tempo
para atender definições ideológicas da sociedade em que se inseriu. No século
XX a história serviu a política na construção de uma identidade regional,
corroborando com a construção antecipada pela literatura. Assim, nobilitou o
gaúcho, construindo um herói que serviu de elo para a unificação cultural do
estado, defendeu a ideologia da classe política, fortalecendo-a, e incutiu uma
imagem idealizada do gaúcho no inconsciente coletivo do povo rio-grandense.
Palavras-chave: História; literatura; gaúcho; ideologia.
ABSTRACT
This study has as main purpose develop a dialogue between the Literature and
the History in order to evidence their contributions to construct the gaucho
hero’s image. For such, we have selected the literary compositions O Gaúcho,
of José de Alencar and O Vaqueano, of Apolinário Porto Alegre, because their
innovations in the formation of the “gaucho’s” personage as well as they were
precursors of the rio-grandense’s regionalist literature. The analysis discourse
into the recital that the author’s ideology is inserted into their narratives. We
have analyzed the compositions into their context ideological and secular
description, and we identified the images constructed in the narratives served in
the meanings construction for the gaucho, and, by this way, they lead the text
to the contemplation of ideologies contained in projects previously
stipulated. We state the gaucho’s figure suffered modifications during the time
to attend ideological definitions of the society where it was inserted. In the XX
century, the history served the politics for the construction of a regionalist
identity, corroborating with the anticipated construction for literature. Thus,
it put the “gaucho” in the center of attentions, constructing a hero who
served of link for the cultural unification of the State, defended the
ideology of the politics, reinforcing it, and infused a idealized image of the
“gaucho” into the collective unconscious of the rio-grandense people.
Key words: History; literature; gaucho; ideology.
1 INTRODUÇÃO
Temos como objetivo nesta pesquisa desenvolver um diálogo entre
diferentes áreas de conhecimento literatura, história e sociologia com
objetivo de refletir e evidenciar as influências que os diferentes textos
exerceram sobre a formação da imagem do gaúcho.
Para isso, definimos como corpus literário duas obras fundadoras do
tema: O gaúcho, de José de Alencar (1870) e O Vaqueano, de Apolinário Porto
Alegre (1872). Essas obras representam o marco inicial de nossa literatura
regionalista, por serem os primeiros romances a ter como personagem o
gaúcho herói.
As fontes historiográficas foram selecionadas de acordo com a sua
inserção na temática da pesquisa, não sendo privilegiada nenhuma corrente
ideológica dos autores ou grupos historiográficos. Com isso, pretendemos
inserir no discurso de nossa análise as mais diversas posições ideológicas
sobre a formação histórica e social de nosso objeto de pesquisa, o gaúcho, e
assim proporcionar um espaço para a discussão dialética.
A pesquisa tem como intuito contribuir para os estudos da formação
cultural do Rio Grande do Sul. Através de um estudo interdisciplinar
pretendemos olhar para a história da literatura e a historiografia rio-grandense
por uma outra perspectiva de análise, mais ampla e abrangente.
O recorte temporal, final do século XIX, justifica-se pela transformação
existente no Brasil e, por conseqüência, no Rio Grande do Sul neste período.
Em nível nacional, José de Alencar lançou e fundamentou o programa do
romantismo na literatura brasileira. Este projeto, além de criar uma nova forma
de escrever a literatura nacional, foi ao encontro dos interesses políticos do
segundo império. Dessa maneira, este programa literário foi fundamental para
a construção de uma identidade nacional.
No Rio Grande do Sul, na mesma época, escritores que representavam
a vanguarda da elite intelectual do estado, que foram basicamente os
precursores da literatura rio-grandense, criaram o Partenon Literário. Este
grupo de estudiosos aderiu ao romantismo, desenvolvendo no estado os
interesses maiores do programa, e teve em Apolinário Porto Alegre o seu maior
expoente.
Desta maneira, este trabalho visa desenvolver um diálogo entre a
literatura e a história, através da análise de suas representações da imagem do
gaúcho, na visão de diferentes autores, e como isso contribuiu para a formação
de uma ideologia. Embora existam muitos estudos de qualidade, produzidos
tanto pela historiografia como pela crítica literária, em relação à construção
deste personagem gaúcho, a grande maioria concentra-se na análise desta
figura no século XX, ou seja, na figura mitificada do gaúcho. Acreditamos na
pertinência deste trabalho justamente por abordar uma época em que o mito do
gaúcho estava sendo desenvolvido. Assim, objetivamos ilustrar a gênese desta
criação.
Esta análise está fundamentada em algumas hipóteses, às quais
norteiam o rumo desta pesquisa: A ideologia dos autores está presente nos
seus textos, no momento em que criam uma imagem mitificadora para construir
a identidade de um povo. Através da pesquisa histórica podemos identificar, na
sociedade, as correntes ideológicas desses discursos mitificadores; Os autores
eram membros das elites regionais e, nesta época o consumo das letras era
exclusivo para estas mesmas elites. Assim, a literatura e a história utilizaram-se
do seu status de “meio de comunicação” para influenciar o pensamento deste
seu público-alvo, responsável pelas representações culturais de seu tempo.
Desta maneira, ao participar de um programa de criação da identidade
nacional, a história e a literatura serviram à política como um veículo de
divulgação do seu discurso, desempenhando assim o papel de agente de
mudança cultural; A história e a literatura, vinculadas ao discurso político,
utilizam-se do processo de criação da ideologia do gaúcho herói para mascarar
a realidade socioeconômica e cultural existente na província de São Pedro e,
desta forma, desenvolver a integração através da identidade regional e do
fortalecimento da sua representação na política nacional.
Partindo de tais pressupostos, esta dissertação organiza-se em cinco
partes, que são: Na introdução expomos os objetivos, justificações e hipóteses
que nortearão o fio condutor desta dissertação, a questão do regional e do
nacional na relação entre o Rio Grande do Sul e o Brasil e a questão da
relação entre a história e a literatura; No primeiro capítulo trata da
contextualização do Brasil e do Rio Grande do Sul no recorte temporal, através
de uma breve apresentação da história da formação do Rio Grande do Sul. No
terceiro capítulo partiremos para a análise das visões da historiografia,
sociologia e crítica literária referente à história do gaúcho, evidenciando os
diferentes posicionamentos existentes na formação da ideologia do gaúcho
herói; no terceiro capítulo será feita a análise do corpus literário, destacando os
discursos mitificadores da figura do gaúcho; Para finalizar, as considerações
finais tratarão das conclusões sobre as idéias analisadas durante a dissertação
e a verificação das hipóteses que nortearam o estudo.
1.1 Rio Grande do Sul e Brasil: relações entre o regional e o nacional
O Brasil caracteriza-se por ser uma nação em que as regiões e os
regionalismos têm marcado profundamente a sua história política econômica,
social e, principalmente, cultural. (HEIDRICH, 2005, p.1). Tivemos no Brasil,
durante os períodos colonial, imperial e início da república, uma separação
entre o poder e a cultura: enquanto o poder sempre foi centralizado, a cultura
1
foi sempre segmentada no regional
2
. As razões para esse comportamento são
1
O conceito de cultura utilizado nesta dissertação segue a definição de Clifford Geertz em seu
livro A Interpretação das Culturas: “O conceito de cultura que eu defendo, é essencialmente
semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise;
portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência
interpretativa, à procura do significado.” (GEERTZ. 1978:15).
2
Adotamos o conceito de região presente no livro Processos Culturais de Posenato: “A região
não é pois, na sua origem, uma realidade natural, mas uma divisão do mundo social
estabelecida por um ato de vontade. Tal divisão não é totalmente arbitrária porque, por trás
do ato de delimitar um território, certamente critérios, entre os quais o mais importante é o
do alcance e da eficácia do poder de que se reserve o auctor da região. Enquanto esse poder é
reconhecido, a região por ele regida existe. Em suma, a região, sem deixar de ser em algum
grau um espaço natural, com fronteiras naturais, é antes de tudo um espaço construído por
decisão, seja política, seja da ordem das representações, entre as quais as de diferentes
ciências”. (POZENATO. 2003, p.150, grifos do autor).
históricas e nos remetem à falta de pensamento político das elites com relação
ao território e à formação de uma nação. Esse pensamento, ou a falta dele, tem
sua origem no início da colonização portuguesa em nossas terras. Se
analisarmos a sociedade existente no país durante o período colonial, veremos
que, devido aos interesses econômicos da metrópole sobre a sua colônia, no
Brasil não existia uma constituição de povo com sentimento de pertencimento à
nação. Os habitantes desse território eram ou portugueses (aqui podemos ler
europeus e seus descendentes) ou escravos. Os nativos (índios) ou se
colocavam na posição de escravos ou não eram nem classificados como
habitantes dessa sociedade.
Por inexistir um pensamento aglutinador da identidade nacional, as
regiões, através de seus povos singulares e diferentes entre si, constituíram-se
como produtoras de culturas próprias. Essa característica de formação pode
ser apontada como uma das razões responsáveis pela regionalização da
cultura nacional.
Pozenato exemplifica a questão da regionalização nas jovens nações
em formação:
Durante o período de organização das nações, a idéia de região
sempre se ergueu em contraposição à idéia de nação, ora com intuito
de integração (na perspectiva do poder central), ora com intuito
separatista ou, em grau mais atenuado, com o intuito de afirmação de
identidade própria (na perspectiva dos movimentos regionalistas).
(op.cit., p.153, grifo do autor).
Quanto à centralização do poder político, devemos repensar as
características formadoras da economia e política nacional. Sempre houve um
poder centralizado no Brasil. No período colonial, o poder político era
centralizado na metrópole. A corte nacional, que representava o poder
residente no território, estava situada em sua totalidade no nordeste, região
economicamente produtiva da colônia. Não existia, assim uma divisão de poder
político regional, que a política acompanhava a economia e a única região
economicamente ativa no período era o nordeste, com a produção de açúcar.
Um exemplo dessa união político-econômica é que com o declínio da economia
açucareira e a ascensão da mineração no sudeste, no fim do período colonial,
a corte se transferiu para o Rio de Janeiro, afastando assim o poder político do
nordeste, que se constituía em um espaço regional culturalmente definido.
Desta forma notamos a constituição de uma característica cultural muito forte
no Brasil: a formação de uma região com aspectos culturais definidos e
compartilhados dentro de um espaço também definido, porém longe do poder
político, que se caracteriza por sua centralização na zona da produção nacional
de maior representatividade.
No período do império, temos o fortalecimento das elites regionais
devido à independência, mas temos também um aglutinador político muito
forte. O trono do Imperador estava estrategicamente colocado sobre um tripé
socioeconômico defendido por elites regionais: o latifúndio, a monocultura e,
principalmente, o sistema escravista de mão-de-obra
3
. Esse último foi o
principal fator mantenedor da integridade territorial do país e da unificação do
poder central. Existia ali um pacto de interesses recíprocos entre poder central
e elites regionais: o império manteria a ordem vigente e as elites apoiariam a
corte no poder da nova nação. Exemplo disso é que, quando se extinguiu
definitivamente a escravidão em 1888, extinguiu-se também o império, em
1889.
A questão da cultura como unidade nacional começa a ser pensada
somente a partir da independência. Tal afirmação sustenta-se no fato de que
não houve um projeto de independência, centrado na organização do Brasil
como uma nação autônoma e culturalmente definida, essa questão foi
pensada realmente quando a nova nação se deparou com a pergunta: “Não
somos mais portugueses, somos livres. Mas quem somos nós afinal?”. Nesse
momento é que se fez necessário, devido a questões econômicas e de
fronteiras, que se pensasse o país como uma nação. Essa preocupação fez
com que o estado buscasse na história regional os elementos necessários para
a constituição da identidade nacional
4
. Isso fortaleceu ainda mais as
3
Esta idéia é trabalhada pelo historiador rio Maestri, e foi retirada de uma citação na
disciplina de História Sócio-cultural do Brasil, ministrada pela Profa. Dra. Marília Conforto, neste
mestrado.
4
Segundo Kathryn Woodward, a redescoberta do passado é parte do processo de construção
de identidade nacional. Porém, ao tentar afirma suas identidades, buscando-as no passado, é
possível que se possa estar produzindo novas identidades. (WOODWARD, 2000, p.11).
regionalidades
5
, pois as elites começaram a se utilizar desta construção para
reivindicar poder junto ao governo central.
Foi neste período que, em busca dessa unificação, José de Alencar
lançou seu projeto de “romantismo”, que consistia em criar uma identidade
nacional através das diversidades culturais. Nesse projeto, O Gaúcho, obra
lançada em 1870, tem a finalidade de aproximar o povo rio-grandense da corte
imperial, tornando o gaúcho um personagem mais acessível socialmente.
Alencar buscou, ideologicamente, a constituição de uma identidade nacional
através do conhecimento, compreensão e integração das diversas culturas
regionais existentes no vasto território brasileiro.
No Rio Grande do Sul, “a ênfase das peculiaridades e a simultânea
afirmação de pertencimento ao Brasil constitui um dos principais suportes da
construção social da identidade gaúcha que é constantemente evocada,
atualizada e reposta” (OLIVEN, 1989, p.03). Esta ênfase deve ser considerada
o aspecto mais contundente e próprio do regionalismo de inserção nacional,
sem ser uma contradição mas sim uma forma de distinguir-se do nacionalismo.
A afirmação de pertencimento, ao emanar orgulho da sua condição, coloca-se
numa posição diversa da simples subordinação, constituindo assim um tipo
especial de identidade territorial, inserido noutra mais abrangente. Do ponto de
vista político-econômico, essa afirmação motiva-se em função de que as
vantagens existentes no pertencimento à nação são maiores para as elites
dominantes do que uma suposta autonomia administrativa regional. Desta
forma, esta estratégia justifica-se pela vontade de autonomia interna sem
perder força no conjunto nacional. Para o Rio Grande de Sul, estar ligado ao
Brasil significou o acesso ao grande mercado nacional, com vantagens sobre
os concorrentes platinos. Além disso, significou também a manutenção da
5
Utilizamos o conceito de regionalidade conforme definição de Pozenato: “Uma determinada
região é constituída [...] de acordo com o tipo, o número e a extensão das relações adotadas
para defini-la. Assim [..] não existe uma região [...] a não ser em sentido simbólico, na medida
em que seja construído (pela práxis ou pelo conhecimento) um conjunto de relações que
apontem para um significado. Isto é, o que é entendido como região é, realmente, uma
regionalidade. Não vejo no entanto problema em continuar falando em região, contanto que por
tal não fique entendida uma realidade natural, mas uma rede de relações, em última instância,
estabelecida por um auctor, seja ele um cientista, um governo, uma coletividade, uma
instituição ou um líder separatista.” (op. cit., p.152, grifo do autor).
estrutura produtiva vigente (escravidão e grandes propriedades de terra) desde
os primórdios da sua produção pastoril. (op.cit., p.08).
Pozenato afirma que, no período republicano, por estar a nação
constituída em um território definido e com um poder centralizado bastante
forte, mas um precário equilíbrio com a idéia de federação dos estados, este
conflito entre a regionalidade e a nacionalidade esteve bastante presente.
Corroborando com tal pensamento, Ruben Oliven nos mostra que o
pertencimento à nação deu-se, primeiramente, pela afirmação do sentimento
regional:
A afirmação de identidades regionais no Brasil pode ser encarada
como uma reação a uma homogeneização cultural e como uma forma
de salientar as diferenças culturais. Esta redescoberta das diferenças
e a atualidade da questão da federação numa época em que o país
se encontrava bastante integrado do ponto de vista político,
econômico e cultural sugere que no Brasil o nacional passa primeiro
pelo regional. (OLIVEN, 1992, p.43).
Para analisarmos a questão da formação da regionalidade no Rio
Grande do Sul, é preciso compreender que o modelo de ocupação desse
território e sua constituição social são, em muitas maneiras, responsáveis pela
forte regionalização cultural existente no estado. Desta construção podemos
destacar dois elementos essenciais e primordiais para a existência dessas
características: a formação guerreira e a vida pastoril.
A vida dos primeiros habitantes da província, ou seja, o gaúcho primitivo
e o colonizador, foi pontuada por duas características marcantes, que
acabaram por definir seu caráter como um ser guerreiro. A primeira é a sempre
presente questão de fronteira. Acredita-se que, devido ao grande número de
batalhas, o gaúcho teve sua cultura moldada pelos costumes militares. Assim
esse caráter guerreiro passou a fazer parte do inconsciente coletivo do estado,
influenciando a cultura dos demais rio-grandenses, criando a idéia de
afastamento e bairrismo.
A segunda característica é a questão da sobrevivência no pampa.
Explica-se a brutalidade do gaúcho a partir da rude relação deste com o seu
meio. O gaúcho vivia de acordo com o que o pampa lhe dava, ou seja, utilizava
a matéria-prima fornecida pela natureza para sua sobrevivência, não
produzindo meios para sua subsistência. Essa matéria consistia em rebanhos
eqüinos e bovinos que viviam nas pastagens do pampa. Desses, animais o
gaúcho buscava a carne para alimento e seus derivados (couro, ossos, cascos)
para sua atividade comercial. A brutalidade da lida com a caça e o abatimento
desses animais para extrair-lhes os produtos de subsistência fez com que o
gaúcho fosse visto como um bárbaro, um homem perdido no pampa, selvagem
como os animais com os quais ele lidava.
A partir dessa situação de luta constante, pela fronteira e pela
sobrevivência, o gaúcho constituiu-se culturalmente como um ser diferente dos
seus pares nacionais. Com essas peculiaridades destacadas e exaltadas pelos
ditos populares, a criação de uma figura mítica entrou em seu processo de
formação. Vendo nisso uma possibilidade de fortalecimento cultural e
conseqüentemente político, as elites locais agiram em busca da identificação
do povo rio-grandense a esse passado recente de luta do gaúcho campeiro,
transformando este selvagem num ser mais abrandado, mais “civilizado” e
deslocando esse passado mítico para a figura do peão da estância e seu
senhor. Os principais meios utilizados para essa construção ideológica foram a
literatura e a história, por serem fortes veículos de caráter pedagógico e de
comunicação social e cultural.
1.2 HISTÓRIA E LITERATURA
Inicialmente, a história e a literatura eram como um ser único e indistinto.
Lentamente, como parte do processo de tomada de consciência do homem de
sua existência social, as duas disciplinas diferenciaram-se, singularizaram-se e
especializaram-se.
Da idade média até o século XVlll, os limites entre história e literatura
não eram rígidos. Um escritor podia misturar os fatos reais e imaginários na
trama literária, da mesma forma que um historiador podia dar um caráter
fantasioso ao seu relato histórico. No século XIX, apesar do surgimento do
romance histórico clássico, em estreita relação com a teoria positivista e com
as teses deterministas e evolucionistas, a fronteira entre historia e ficção foi
relativamente nítida.
A história desenvolveu-se como ciência durante o século XIX. A
discussão científica, naquele momento, estava ligada ao desenvolvimento dos
métodos de investigação, do estudo das fontes e crítica aos documentos. Isso
representou um grande avanço metodológico para a ciência, visto que a
história era uma grande descrição dos feitos heróicos de grandes personagens
e do ocaso das principais civilizações.
Atualmente, a divisão entre a história e a literatura é bastante tênue.
Inúmeros trabalhos estão sendo produzidos para corroborar com a idéia de
relação interna de intricação e articulação da história com a literatura,
disciplinas que se constituem exteriormente uma a outra. Desta forma, Marília
Conforto, citando Sandra Pesavento (apud CONFORTO, 2004, p.63), analisa
que “o fato de os historiadores contemporâneos aprovarem o casamento entre
a história e a ficção significa, fundamentalmente, aceitar o texto literário não
mais como relato fantasioso despretensioso sobre o real, mas sim como
sintoma de uma época, como representação do mundo”.
A atividade artística não possui nenhum compromisso com o rigor do
registro cientifico. Conforme Peter Gay (1990, p.13) “a verdade é um
instrumento opcional da ficção, não sua finalidade essencial”. No trabalho da
história, a liberdade passa pela identificação dos momentos em que o discurso
literário desloca o discurso histórico para o âmbito da ficção. A literatura, por
ser uma forma de entretenimento, produz, de uma forma mais livre, discursos
que no campo político ou religioso certamente seriam condenados.
(CONFORTO, 2004, p.65)
A literatura se objetiva na construção artística. A história impõe-se
através da confrontação do explicado (teoria) com o analisado (objeto), que
constitui analise concreta de situação concreta. Na historiografia, a beleza é
atributo excedente; na ficção, a veracidade é qualidade marginal.
A fronteira entre a história e a literatura não separa, mas sim determina o
ponto de convergência no qual podemos observar a unidade da obra literária.
Segundo Antônio Candido (2006, p.13):
a podemos entender fundindo o texto e o contexto numa
interpretação dialeticamente íntegra. Sabemos, ainda, que o externo
(no caso, o social) importa não como causa, nem como significado,
mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição
da estrutura, tornando-se, portanto, interno.
Pensar que a história e a literatura utilizam-se da mesma matéria para
criar as suas páginas é muito fértil pra entender o estudo em questão. Ambas
escrevem sobre o mundo no qual vivem e no tempo que estão inseridos,
mesmo quando escrevem sobre o passado ou o futuro. Segundo Decca (1997,
p:200) , tanto a ficção quanto a historiografia, ao se debruçarem sobre o
passado, buscam a mesma coisa: “encontrar o sentido da experiência
humana”. O que diferencia esses conhecimentos é o todo. A historiografia
escreve de acordo com um conhecimento científico e suas normas, buscando
sempre a lealdade para com as fontes e com o “real”
6
. a literatura segue a
perspectiva do belo, da arte e da subjetividade das coisas. Essa discussão
remete à Aristóteles, o primeiro grande filósofo a escrever sobre esse diálogo.
Em sua Arte Poética, ele coloca a relação entre os conhecimentos e suas
diferenciações:
Não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim
o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança
ou a necessidade. O historiador e o poeta não se distinguem um do
outro, pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em
verso (pois, se a obra de Heródoto houvesse sido composta em
verso, nem por isso deixaria de ser obra de história, figurando ou não
o metro dela). Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu
e o outro o que poderia ter acontecido. (ARISTÓTELES, 2004, p.43).
Segundo Maestri (2004, p.10), a inexorável determinação da
historiografia pelos documentos é uma ilusão. O historiadoro é fantoche dos
dados, sobre os quais aplica, como cirurgião hábil, o bisturi técnico-
metodológico. É alta a autonomia, consciente e inconsciente, do historiador na
escolha e no tratamento da documentação. Sua independência cresce quando
transita da pesquisa à produção do texto historiográfico.
6
Destaco a palavra real pois cabe aqui a definição do sentido do real. O real é subjetivo, tanto
para o poeta como para o historiador. A questão é que o real para a história tem relação com a
objetividade do método e a ética da ciência, enquanto para a literatura a questão do verossímil
é permitida e satisfatória. Sendo assim descarto a idéia, ultrapassada epistemologicamente, de
que a história é a guardiã do real, enquanto a literatura é pura fantasia poética (caso contrário
não haveria razão para a elaboração deste estudo).
Para a historiadora Janice Theodoro da Silva, o historiador, ao abordar
uma realidade, escolhe uma evidência. Ao selecionar os fatos utilizados, ele
também define a localização do narrador. É a partir daí que o historiador
estabelece suas deduções e interpretações. No momento em que escolhe a
realidade a ser descrita, ele se aproxima do texto literário, no sentido de arbitrar
o narrado. (SILVA, 1991, p.11).
Apesar das diferenças, deve-se ter sempre em mente que a história se
aproxima da literatura pela utilização da linguagem, mas que isso não iguala a
produção da ciência histórica à produção literária. Devemos compreender que
muitas vezes esses diferentes conhecimentos podem caminhar juntos, mas
que o objetivo é suficientemente diferenciado para manter uma linha divisória
entre a história e a literatura. Segundo Michel de Certeau (1997, p.25):
A história é um discurso que aciona construções, composições e
figuras que são as mesmas da escrita narrativa, portanto da ficção,
mas é um discurso que, ao mesmo tempo, produz um corpo de
enunciados “científicos”, sendo isso a possibilidade de estabelecer
um conjunto de regras que permitem controlar operações
proporcionais à produção de objetos determinados.
Na historiografia, a impressão de veracidade cresce quando os fatos
históricos são apresentados sem a intervenção explicita do autor. A ausência
do narrador onisciente intruso adapta-se como uma luva ao sonho positivista
de neutralidade epistemológica e é recurso utilizado, em geral
inconscientemente, pelo historiador.
Segundo Marília Conforto (op. cit, p.61), a pesquisa não visa à escolha
entre literatura ou história, mas sim o cruzamento entre ambas como
construção do conhecimento de nossa própria história política, social, cultural e
econômica. Essa reflexão considera os fazeres historiográfico e literário como o
espaço onde a historia e a ficção acontecem.
Estamos interessados na maneira como o historiador pode utilizar a
literatura como fonte para pesquisa historiográfica, propondo um modelo de
análise, e também como a literatura se utiliza da história para enredar e narrar
as sua linhas. Para isso, é preciso descartar aquelas leituras que visam apenas
identificar e comparar com a historiografia os fatos históricos que compõe o
pano de fundo do texto literário.
Antonio Candido é um autor de destaque quanto às relações entre
literatura, história e sociedade. Sua obra Literatura e sociedade nos traz um
entendimento de como acontece essa relação e de que maneira podemos
trabalhar com a análise dessas questões. Assim,
numa relação entre literatura e sociedade deve-se evitar o ponto de
vista mais usual, que se pode qualificar de paralelístico, pois consiste
essencialmente em mostrar, de um lado, os aspectos sociais e, de
outro, a sua ocorrência nas obras, sem chegar ao conhecimento de
uma efetiva interpretação.(op. cit., p.16).
Complementando o pensamento de Candido, Marília Conforto
acrescenta:
Esse tipo de análise é equivocado na medida em que não leva em
conta que a arte é o terreno da liberdade e, por isso, o artista não tem
nenhum compromisso direto com a verdade histórica. Da mesma
forma, tal leitura ignora os paradigmas atuais das investigações
historiográficas, que se negam a reduzir a realidade a fatos
puramente empíricos, sem significação, mas, ao contrário, buscam
investigar a sua dupla dimensão objetiva e subjetiva. (op. cit., p.65).
Conforme Candido, o olhar do historiador para a literatura deve ter
presente que a obra literária é capaz de não de exprimir o homem,
sintetizando e projetando as suas experiências, mas também de atuar de modo
subconsciente e inconsciente sobre ele, inculcando determinados valores.
Atuar sobre o homem significa, inevitavelmente, atuar sobre a sociedade.
Segundo Marília Conforto (op. cit., p.65), o historiador também deve ter
presente, que a literatura pré-forma a compreensão do leitor e repercute em
seu comportamento social, levando-o a uma percepção do seu universo. Nesse
sentido, a arte literária faz história, porque participa do processo de pré-
formação e motivação do comportamento social do leitor, passando-lhe normas
que são padrões de atuação ou modelos de ação. Em suma, a literatura
influencia o destinatário, porque pode criar ou veicular normas, reproduzir ou
reforçar padrões vigentes e, inclusive, antecipar-se à sociedade, inovando e
rompendo com códigos consagrados. Tanto a literatura como a história
guardam a memória coletiva de um povo, a qual também traz consigo relações
sociais e de poder. E é justamente essa relação de poder, de dominação que
se quer enfatizar, pois essa memória coletiva registrada tanto pela história
quanto pela literatura recebeu influências das instâncias de poder e dominação.
Referindo-se a essa autonomia artística, Silva (1969, p.90) assinala: “A
liberdade adquirida em relação a toda a ordem preestabelecida do real põe em
evidência o poder pelo qual o artista dispõe das palavras e das formas segundo
o seu gênio próprio”.
As propostas de autonomia da literatura em relação ao mundo social não
conseguem negar o fato de que ela, necessariamente, se constrói com as
palavras, as idéias, os sentimentos, os temas e as preocupações de sua
época, constituindo poderoso registro do mundo que a gerou. A teoria literária
tem enfatizado a determinação da narrativa pelo mundo social, algo que estaria
além da consciência do autor.
Nesse sentido, Mesquita (apud Maestri, 2004, p.14) lembra: “a ficção,
por mais inventada que seja a estória, terá sempre, e necessariamente, uma
vinculação com o real empírico, vivido, o real da história. O enredo mais
delirante, surreal, metafórico estará dentro da realidade, partirá dela, ainda
quando pretende negá-la, distanciar-se...”.
A narrativa ficcional em prosa constitui fonte documental essencial,
que expressa poderosamente os cenários, a linguagem, os personagens
dominantes, as concepções e visões de mundo, as preocupações e
preconceitos sociais, etc. da época que foi produzida. Nos anos 1820, Hegel
(apud Maestri, 2004, p.11) lembrava que, apesar da obra do poeta “pertencer-
lhe”, este último é “tributário de sua cultura, de sua língua e dos conhecimentos
que recebeu”.
Portanto, citando Marília Conforto (op. cit., 2004, p.66):
Deve-se ressaltar que a leitura e a reflexão sobre os textos literários e
historiográficos, em conjunto, demonstram que eles não são
antagônicos. Ao contrário, completam-se e revelam aspectos
importantes da construção da história e do discurso da história, além
dos discursos nos níveis político, econômico e social. Na literatura
podemos ler as fissuras, as contradições, as ambivalências e a
crueldade que, muitas vezes, o texto historiográfico, como discurso
científico, unifica. Por isso que a análise da ficção como um espaço
onde a história acontece contribui para a construção do conhecimento
histórico.
Este pesquisa trabalhou com a idéia que o texto, de uma forma ou de
outra, é sempre subjetivo, mesmo que, no caso da história, isso às vezes seja
negado. Ao usar o método de análise, o pesquisador está fadado a ser
subjetivo, pois sempre que este buscar explicar algo, estará explicando o seu
entendimento, a sua compreensão do fato explicado.
A razão da aproximação da história e da literatura nos últimos anos
deve-se à mudança de pensamento dos historiadores. Considera-se hoje que
estes devem deixar de olhar para a literatura como se fosse apenas uma
descrição fantasiosa de fatos reais e passar a analisar os textos como filhos de
uma época, como visões da sociedade em que seu autor e seu público, estão
inseridos. Desta forma, o historiador estará utilizando uma fonte preciosa para
seu trabalho, tendo em vista que o texto literário estará sempre desvelando em
suas linhas as características da sociedade em que ele foi criado.
1.2.1 História, Literatura e ideologia
Antes de verificar a importância da ideologia nas criações da literatura e
da história, é necessário defini-la. Segundo Mannheim (1986, p.81), existem
dois significados distintos e separáveis do termo “ideologia”: o particular e o
total. A concepção particular refere-se à questão do ceticismo do receptor com
relação às idéias e representações apresentadas pelo opositor: “estas são
encaradas como disfarces mais ou menos conscientes da real natureza de uma
situação, cujo reconhecimento não estaria de acordo com os seus interesses”.
Podemos creditar que estas sejam mentiras inconscientes ou mesmo disfarces
semiconscientes e dissimulados. Essa noção de ideologia como manipulação
dissimulada, consciente ou inconsciente, como mentira ou não de algum fato
ou idéia encontra-se no senso comum, sendo aplicada constantemente, em
vários sentidos, como por exemplo em disputas ou discursos políticos.
a conceituação da ideologia total, segundo o autor, passa por uma
maior inclusão social, ao invés do individualismo da concepção particular.
Refere-se à ideologia de uma época ou de um grupo histórico-social concreto,
preocupando-se com as características e a composição da estrutura total da
mente desta época ou deste grupo.
O crítico literário e filósofo inglês Terry Eagleton, em seu livro Ideologia:
uma introdução analisa que em alguns casos os significados do termo ideologia
envolvem questões epistemológicas, enquanto outras vezes calam-se a
respeito. Algumas definições compreendem um sentido de percepção
inadequada da realidade, enquanto outras deixam a questão em aberto. Assim,
o autor afirma que tal distinção é um importante objeto de controvérsia na
teoria da ideologia e reflete as desavenças entre as duas tradições correntes
que encontramos inseridas no termo. De modo geral,
uma linhagem central de Hegel e Marx a Georg Lukács e alguns
pensadores marxistas posteriores esteve muito preocupada com
idéias de verdadeira e falsa cognição, com a ideologia como ilusão,
distorção e mistificação; já uma outra tradição do pensamento, menos
epistemológica que sociológica, voltou-se mais para a função das
idéias na vida social do que para seu caráter real ou irreal.
(EAGLETON, 1997, p.16).
Porém, em ambos os casos, o significado volta-se para o sujeito, seja o
indivíduo ou o grupo, entendendo-se o discurso pelo método de analisar as
condições sociais de um ou de outro. Assim, as idéias expressas pelo indivíduo
são encaradas como funções de sua existência. Isso significa que opiniões,
declarações, proposições e sistemas de idéias não são tomados por seu valor
aparente, mas interpretados conforme o posicionamento social de quem os
expressa, e ainda, significa que o caráter e a situação de vida específicos dos
sujeitos influenciam suas opiniões, percepções e interpretações. (MANNHEIM,
1986, p.82) Essa definição se aproxima da teoria de Candido (2006, p.30),
quando afirma que cada obra literária “depende da ação de fatores do meio,
que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação”, de modo que o
autor é influenciado por forças sociais condicionantes, que o guiam com maior
ou menor grau de intensidade. Por essa razão, podemos afirmar que, numa
análise sociológica de alguma obra, pode interessar menos o período que está
referido em suas linhas do que o contexto histórico no qual o autor está
inserido.
Eagleton (op. cit., p.15), afirma que não existe uma definição única e
adequada de ideologia. Não que faltem estudos e pesquisas sobre o tema, com
certeza muito se produziu, principalmente pelas mãos dos maiores pensadores,
mas pelo simples fato de que existem uma série de significados convenientes,
nem todos compatíveis entre si. Tentar inclui-los em uma única definição
abrangente seria impossível, se não inútil. Assim, o termo ideologia é “um
texto, tecido com uma trama inteira de diferentes fios conceituais; é traçado por
divergentes histórias”.
Em virtude de sua multiplicidade de significados, o Eagleton (op. cit.,
p.15) propõe uma lista de definições que estão atualmente em circulação para
ideologia. Selecionamos algumas delas, de acordo com sua inserção na
análise proposta por esta pesquisa:
a) o processo de produção de significados, signos e valores
na vida social;
b) um corpo de idéias característico de um determinado
grupo ou classe social;
c) idéias que ajudam a legitimar um poder político
dominante;
d) formas de pensamento motivadas por interesses sociais;
e) pensamento de identidade;
f) ilusão socialmente necessária;
g) a conjuntura de discurso e poder;
h) conjunto de crenças orientadas para a ação;
É importante destacar que, embora dêem significados ao mesmo termo,
nem todas estas formulações são compatíveis entre si. Com relação à análise
do gaúcho e a sua histórica mudança ideológica, podemos ter alguns exemplos
de incompatibilidade de tais significados. Tendo hoje a ideologia do gaúcho
conceituando o pensamento de identidade dos habitantes do estado do Rio
Grande do Sul não podemos afirmar que esta ideologia sirva, ainda, como
idéias que ajudam a legitimar um poder político dominante. Dessa forma,
podemos verificar que, no decorrer da história, tivemos diferentes significados
ideológicos para o termo gaúcho, tanto para o próprio indivíduo como para os
que escreveram e criaram sobre ele. (Grifos nossos).
Através do estudo e análise do enquadramento do fato histórico é
possível chegar à corrente ideológica inserida no texto em questão. O texto,
tanto historiográfico quanto literário, age sobre a sociedade que o engendrou
como um legitimador da ideologia que nele está inserida. Desta maneira,
podemos pensar no texto como um construtor de significados, de acordo com o
ponto de vista que o autor coloca, para assim legitimar as suas percepções de
cultura, história, ideologia, verdade, etc. Pensamos aqui nos textos como
criadores, divulgadores e legitimadores da ideologia do autor e de sua época.
Segundo Candido (op. cit., p.09)
O problema fundamental para a análise literária é: averiguar como a
realidade social se transforma em componente de uma estrutura
literária, a ponto dela poder ser estruturada em si mesma; e como
o conhecimento desta estrutura permite compreender a função que a
obra exerce.
O historiador francês Paul Veyne reflete sobre a relação entre verdade e
crença. Nas páginas introdutórias de seu livro Acreditaram os gregos nos seus
mitos?, o autor mostra que a cada etapa da história do homem é capaz de
produzir todos de apreensão das “verdades”. Na Grécia antiga, o mundo
das lendas e dos mitos era tido como verdadeiro, no sentido de que não se
duvidava dele enquanto uma das múltiplas possibilidades de convivência com o
real. Daí Veyne reconhece serem múltiplas as maneiras de acreditar, ou
melhor, são múltiplos os regimes de verdade de um mesmo objeto. No fim das
contas, pode-se indagar se a literatura ou a religião, por exemplo, contêm mais
ficções do que a história e os seus discursos durante os séculos. Sendo assim,
Veyne (1987, p.23) coloca:
que um mundo não pode ser fictício em si próprio, entre uma
realidade e a ficção a diferença não se encontra no próprio objeto,
mas em nós, que convivemos com e transitamos por diferentes
esferas da verdade. Somos fabricantes das nossas verdades, porque
as verdades nascem da imaginação da nossa tribo.
Desta maneira, podemos dizer que, longe de se opor à verdade, a ficção
é seu suplemento.
José Carlos Reis, na brilhante introdução de seu livro As identidades do
Brasil, nos traz uma excelente reflexão com relação à necessidade que o
historiador tem de reescrever continuadamente a história. Ao comentar sobre
as diversas escolas históricas e seus pontos de vista sobre a apreensão e a
legitimação de suas descobertas da “verdade histórica” como sendo única e
definitiva, descartando os conhecimentos de seus antecessores, o autor entra
na discussão do conceito de verdade. Ele afirma que:
A verdade histórica, ela é fundamentalmente histórica. Não
métodos e histórias definitivas que levem (ou traga) à verdade
absoluta do tempo. Em cada presente, o que se tem é uma visão
parcial, uma articulação original do passado e do futuro. [...] Todo
historiador é marcado por seu lugar social, por sua data e por sua
pessoa. (REIS, 2006, p.11).
O autor continua a sua explicação citando Koselleck (apud Reis, 2006,
p.11):
Para se conhecer uma interpretação histórica é sempre preciso saber
quem a formulou: um nativo ou um estrangeiro, um amigo ou um
inimigo, um erudito ou um cortesão, um burguês ou um camponês,
um rebelde ou um súdito dócil. As narrativas podem se contradizer e,
paradoxalmente, ser verdadeiras. Pode-se olhar sobre o mesmo
tempo e representá-lo diferentemente, mas coerente e corretamente.
1.3 A LITERATURA FUNDADORA DA IMAGEM IDEOLÓGICA DO GAÚCHO
Na província de São Pedro a presença dos letrados foi por muito
tempo dispensável. Os primeiros conquistadores não precisaram
fabricar ideologias que justificassem o aprisionamento e o massacre
dos índios. A conquista se deu sem maiores considerações a não ser
a ânsia pelo lucro. [...] Ora, frente a tal epopéia ou tragédia (depende
do ponto de vista) que papel poderia exercer o intelectual? Que
função teriam poetas, ficcionista e ideólogos na fronteira aberta, onde
se entrechocavam os interesses e as desmedidas ambições? Que
força haveria num conjunto de versos ou argumentos, por mais
refinado que fosse, para interferir no triunfo da nova área econômica
do Império, área capaz de suprir alguns tempos depois todo o
país com couros, sebo e charque? Que musas atrairiam ou
espantariam o gado chimarrão, os índios dispersos, os gaudérios?
Que palavras alterariam a fertilidade dos campos ou modificariam a
ordem latifundiária, plantada desde o início da província como
elemento indispensável à expansão do capitalismo subsidiário?
(GONZAGA, 1980, p.122).
Essas indagações dão inicio ao artigo de Sergius Gonzaga, intitulado
“As mentiras sobre o gaúcho: primeiras contribuições da literatura”, na
originalíssima obra RS: Cultura e Ideologia, organizada no fim da década de
setenta por professores e pensadores da temática rio-grandense da UFRGS.
7
Essa obra coloca-se no tempo como pioneira de um movimento acadêmico em
prol da desconstrução de um passado mítico da ideologia do estado do Rio
Grande do Sul. Os organizadores, José Hidelbrando Dacanal e Sergius
Gonzaga, expõem seus objetivos já na apresentação da obra:
A história das idéias de uma sociedade é, em última instância, a
história desta mesma sociedade. Se no plano do factual, apesar da
inexistência de uma boa síntese, foram levantados muitos dados da
história do Rio Grande do Sul, no plano ideológico as lendas imperam
soberanas. Os ensaios aqui reunidos, uns mais, outros menos, têm o
sentido de um primeiro ataque às construções do passado. Não por
serem do passado, mas por jamais terem tido outra consistência que
a de estarem a serviço do poder, que as legitimava. Desaparecido
este flutuam caducas no espaço. (DACANAL; GONZAGA, 1980,
p.03).
As colocações de Gonzaga referem-se à produção literária praticamente
inexistente na província até o final do século XIX. Devido ao modelo de
ocupação habitacional praticado no estado, não se constituiu aqui um sistema
de produtores e receptores literários, como quer Antonio Candido, não
garantindo aqui uma permanência ativa na vida cultural e artística.
Conforme Carlos Reverbel (1986, p.65), a bibliografia platina sobre o
gaúcho é bastante vasta e completa. Principalmente tratando-se da Argentina,
onde recebeu volumes de alta erudição. Devemos acreditar que este fato se dá
devido a grande importância social, cultural e histórica que o gaúcho
7
Colocamos este livro como obra imprescindível para o estudo da história e da literatura rio-
grandense devido ao pioneirismo no tema. Mas, acima disso, devido ao caráter empreendedor
e ousado de seus organizadores, José H. Dacanal e Sergius Gonzaga. Vale destacar o quilate
de seus colaboradores, que conta com nomes prestigiosos como o de Flávio Loureiro Chaves,
Décio Freitas, Tarso F. Genro, Sandra Jatahy Pesavento, entre outros.
desempenha na formação das nações platinas. Ao contrário disto, no Brasil, a
produção das letras referentes ao gaúcho encontram-se de acordo com o
tamanho da influência que este exerce sobre a nação. No caso platino, o
gaúcho faz parte da construção do estado como um todo. Estava presente em
cada canto do território e seu papel era central nessa construção. No caso
brasileiro, o gaúcho desempenhou influência numa pequena parte da nação e,
devido a sua incorporação tardia, as trocas culturais ficaram de alguma
maneira, unilateralmente prejudicadas. Dentro de uma diversidade cultural tão
grande existente no Brasil, o gaúcho ocupa um pedaço muito pequeno neste
quadro. Assim a bibliografia, dedicada a este acompanha proporcionalmente a
sua influência cultural dentro da vasta nação.
Desta forma, podemos entender a razão de termos como marco primeiro
da literatura mitificadora do “herói dos pampas” uma obra cujo autor sequer
tinha pisado em solo gaúcho. O romancista José de Alencar, em sua “novela
brasileira” – destaque para o subtítulo desta obra: Uma Novela Brasileira; nítida
inserção do gaúcho na identidade nacional O Gaúcho, irá exaltar a geografia,
a formação e as peculiaridades culturais do povo desta região, sendo assim o
primeiro a mitificar o personagem gaúcho como o centauro dos pampas. Ao
escrever O Gaúcho, José de Alencar encaixou as suas linhas dentro de um
projeto ideológico, de formação da identidade nacional. Na realidade, o autor
acabou por deslocar a sua fórmula romanesca, utilizada anteriormente em
outras obras que compunham o projeto, como por exemplo, O Sertanejo, para
dentro da província, criando assim uma imagem distorcida do povo e sua
cultura. (Exemplo deste deslocamento é a denominação de Gaúcho no nome
do romance e de seu herói. Neste período a palavra “gaúcho” ainda era
pejorativa, utilizada para denominar os vagabundos e marginais que vagavam
pelos campos roubando gado e contrabandeando couro).
Este projeto tinha a finalidade maior de declarar uma independência
cultural do Brasil com relação a Portugal, buscando assim inspirações regionais
e tornando-as nacionais. Além desse intuito explícito, existia uma necessidade
implícita de se fazer uma unidade identitária num Brasil independente e
desunido, um Brasil posto em crise iminente, devido a vários focos de
divergência entre as elites latifundiárias e a burguesia comercial (questão
escravista, guerra do Paraguai, novas idéias trazidas pela imigração européia
de mão-de-obra livre, questão do Império entre Repúblicas, etc...). Com isso,
buscava-se apresentar os diversos tipos regionais existentes na jovem nação
para a civilização litorânea e central, criando uma imagem branda para que
fosse mais fácil a assimilação do exótico como compatriota e irmão. Desta
maneira, O Gaúcho não se coloca como uma obra referente aos problemas do
vivido e sim do imaginado pelo autor, do seu ponto de vista e de sua orientação
ideológica.
Na análise da obra podemos destacar alguns pontos. O primeiro é
referente à criação de um herói conforme os parâmetros do romantismo.
Manuel Canho, o gaúcho, aproxima-se dos estereótipos da novela romanesca:
solitário, melancólico, atormentado pelo desejo de vingança, obsessivo na
busca do assassino do pai. Seu sentimento de honra é rigoroso, quase
bárbaro, exercido na amplidão do pampa e na relação com a natureza física e
animal. Sua amizade e carinho revelam-se apenas nas relações com o seu
solo e, principalmente, com os seus cavalos (lembrando sempre do infeliz
equívoco do autor ao colocar o seu herói montado em uma égua)
8
. As relações
inter-humanas sempre acabam em desarmonia e sofrimento e Canho as evita
sempre. Esse desapego à civilização é tamanho que o ato do suicídio do
protagonista funciona como um retorno à natureza.
Como tentativa de aproximar-se da cultura rio-grandense, a qual não
conhecia, o autor enreda a sua obra num momento histórico importante para a
província. A Revolução Farroupilha ambienta a narrativa e dá ares de costumes
regionais no drama individual da obra. Essa artimanha funciona como uma
tentativa de aproximação do universo narrado com o universo fantasioso, pois
escrever sobre um fato consumado e historicizado atenuava o seu
8
Augusto Meyer (in. ALENCAR, 1954, p.7) evidencia em seu prefácio à obra de Alencar que
um dos grande equívocos da imprecisão cultural existente na obra é em relação às montaria:
“Em Minas Gerais talvez se pudesse admitir a graciosa Catita montada em mula caborteira,
sem quebra dos seus encantos, mas no Continente, com aquela gauchada mordaz e sua rígida
estética de ginetaria, a heroína do romance morreria de ridículo... Pior ainda, pior dos piores
nem seu como o diga é o herói da história, o Gaúcho, montado em égua! Gaúcho monta
em égua quando muda de sexo. E basta.”
Para corroborar com tal informação, citamos Carlos Reverbel (1986, p.70), ao descrever os
traços comuns entre os gaúchos platinos e rio-grandenses: “todos eram refratários a montar em
éguas. Segundo Francisco de Aparício, esta é uma das superstições mais inexplicáveis do
gaúcho rio-platense”.
desconhecimento com relação à vida na província. Mas, de qualquer maneira,
o autor ignora ou altera muitos dos costumes e tradições gauchescas, pecando
na verossimilhança e fazendo com que o seu romance sofra um perda muito
grande na qualidade artística.
Apesar disso, a adesão de Manoel Canho à revolução se unicamente
por interesses pessoais, por lealdade a seu padrinho General Bento
Gonçalves. As causas ou conseqüências da revolução não lhe interessam,
tampouco a Alencar, cuja visão sobre o acontecimento prima pelo discurso
oficial da história. O autor elogia Bento Gonçalves pela suas qualidades de
governante e por seu patriotismo, sendo contra a anarquia farroupilha.
Enquanto isso, o povo-soldado, o exército farroupilha, os peões caudilhos, são
retratados como um bando de bêbados e arruaceiros. Sendo assim, o levante é
utilizado mais para suprir uma deficiência etnográfica do autor do que para
servir de tema para a discussão cultural e histórica.
Sua estrutura narrativa é de vertente folhetinesca: crimes, vinganças,
amores contrariados, torturas da alma, expectativas instigadas, maniqueísmo,
capitulo após capítulo, numa ciranda de postergações. Tudo isso envolto em
metáforas com relação à terra e à natureza em questões filosóficas muitas
vezes tolas como, por exemplo: “Quem pode afirmar que um animal seja ateu?”
(ALENCAR, 1954, p.57).
A ideologia do autor está muito presente nesta obra. A criação de um
personagem gaúcho, tido como herói da obra, busca apresentar uma imagem
de bravura, patriotismo, honra e liberdade desta província ainda distante da
cultura do império nacional. Vale lembra que ao apresentar os tipos e costumes
da região de acordo com o exposto acima, autor acaba por ocultar importantes
relações existentes no dia-a-dia da província, esconde personagens que fazem
parte de nossa organização social e econômica. Ao mostrar o gaúcho
vaqueano que vive no lombo do cavalo a riscar o pampa de ponta a ponta,
oculta o trabalho do peão das estâncias, o escravo das charqueadas, os
imigrantes europeus do Vale dos Sinos e de Porto Alegre. Oculta as profundas
crises vividas pela economia rio-grandense durante a revolução, as famílias e
estâncias devastadas pela luta. Esconde a situação delicada que vivia o
império devido às revoluções provinciais, a dificuldade política causadas pelo
abandono do trono pelo imperador, pelo problema da maioridade do príncipe
regente. Ao idealizar uma figura e uma realidade, o autor acaba por valorizar
uma ideologia em detrimento das realidades vividas pela província em questão.
Devido a estes aspectos de imprecisão cultural, o escritor Apolinário
Porto Alegre, representando o grupo maior da intelectualidade do Rio Grande
do Sul, o Partenon Literário, sendo este depositário e militante da ideologia do
romantismo e do positivismo, lançou uma obra em forma de errata ao livro do
mestre Alencar. A intenção consistia em corroborar com a ideologia contida na
obra O Gaúcho, adaptando-a para a aceitação do publico leitor rio-grandense.
Assim, O Vaqueano traz uma correção às imprecisões do seu antecessor,
sendo a principal delas a alteração da denominação do termo “gaúcho” para
“vaqueano”. Além disso, Apolinário Porto Alegre acrescenta alguns
personagens de vital importância para o projeto de unificação e contemplação
de todas as culturas regionais. Aparecem em sua obra os escravos, com
destaque ao personagem Moysés, irmão de criação do Vaqueano, os índios,
vistos como heróis, e os soldados farroupilhas de todos os escalões reunidos e
convivendo juntos em acampamentos, demonstrando a democracia dos
pampas.
A exaltação dessa imagem e a criação desse mito foi um movimento
premeditado pela elite provinciana. A associação política com a cultura local
sempre foi um meio de chegar fortalecido até o poder central do Brasil. Devido
a isso, percebemos na história do Brasil a vontade de se fazer regional e
nacional ao mesmo tempo. O nacional lhe garante os benefícios de um grande
país com poder centralizado, enquanto o regional fortalece as culturas e
garante poder para as elites locais. É a conhecida busca pelo poder sem
alteração das ordens vigentes.
Assim, a literatura encaminhava ao mundo urbano o gaúcho idealizado.
Não foi Alencar o criador deste símbolo, nem foi ele o principal intérprete da
ideologia dos estancieiros. Mas foi o seu trabalho que projetou o gaúcho na
faixa litorânea da nação como uma imagem favorável dos nativos da província
meridional. Foi O Gaúcho, de José de Alencar, que deflagrou a criação deste
personagem ideológico, gaúcho herói do pampa.
2 FORMAÇÃO DA PROVÍNCIA DE SÃO PEDRO: BREVE INTRODUÇÃO
DOS PROCESSOS POLÍTICO-MILITAR E ECONÔMICO
Não podemos pensar no gaúcho sem primeiro entender a sociedade em
que ele viveu. Não podemos pensar no Rio Grande do Sul sem antes debater
sobre a sua peculiar ocupação e a formação de sua vida pastoril.
Propomos neste capítulo uma breve revisão histórica da formação da
província do Rio Grande do Sul, através da análise de aspectos militares e
econômicos, para em seguida podermos demonstrar o vínculo existente entre a
figura do gaúcho e a peculiar construção do meio em que este surgiu. A
importância da análise desses dois pontos gaúcho e meio vincula-se ao
processo de formação da imagem do gaúcho que se pretende refletir através
desta pesquisa. A idéia a ser trabalhada é de que o surgimento do gaúcho não
pode ser desvinculado das características da economia subsidiária da província
e suas especificidades, como o contrabando e a pecuária extensiva, e da
questão bélica de formação de um estado de fronteira nacional. De certa forma,
esses dois aspectos influenciaram na construção da identidade deste habitante
pampeano, no sentido que sua classe existiu somente como transeunte da
margem, nunca transgressor, permanecendo sempre no lado pejorativo do
limite que classificava a civilização e a barbárie. Desta forma, o gaúcho
transeunte, utilizado para o emprego deste trabalho clandestino e perigoso,
tornou-se figura importante para o crescimento da economia e para o avanço e
defesa das fronteiras, mas por ser visto de forma negativa foi excluído da
formação da sociedade Rio Grandense.
2.1 PROCESSO MILITAR
O Rio Grande do Sul nasceu sob um regime armado e teve sua história
de formação calcada numa atmosfera militar. O primeiro sinal de vida
administrativa, o início da organização política e a entrada no cenário nacional
como território português tiveram lugar em 1737, quando o Brigadeiro José da
Silva Pais fundou a fortaleza e presídio de Jesus-Maria-José em Rio Grande.
Esta manobra representou a posse militar das terras do sul e a garantia
ao comércio de gado na região. Mesmo que os aspectos da posse dessa nova
terra fossem de violência constante - devido ao seu processo de povoamento
se encontrar em um patamar abaixo com relação às outras províncias da coroa
politicamente e socialmente organizadas, incluindo as práticas bélicas de
defesa do território - isso não impediu os muitos voluntários e visionários de
lançar sua sorte e montar residências no sul, sob armas ou como povoadores.
A fama das pradarias sulinas repletas de rebanhos eqüinos e bovinos era como
um chamariz para estes aventureiros e colonizadores.
No início do século XVIII, além da exploração aurífera nas Gerais,
diversos acontecimentos na Europa, como a fome na França de Luiz XV, o
império inglês nos mares, as novas colônias, o rentável comércio escravista na
África, as diversas guerras no velho e no novo continente, entre outros, abriram
mercado consumidor aos produtos derivados da pecuária sulina. E o Rio
Grande de São Pedro colocava-se como um território estratégico para que a
coroa pudesse partilhar deste mercado, além de ser uma terra promissora,
mesmo com as suas adversidades, para aqueles aventureiros e colonos que
perseguiam uma nova vida de oportunidades e riquezas. Somando-se a esta
realidade de boas perspectivas econômicas, existia, ao sul da província, a
Colônia de Sacramento, território mantido pelos portugueses nas margens do
Rio da Prata, que garantia o consumo de produtos de subsistência e de
colonos, devido à manutenção de um exército permanente para a defesa do
povoado. A necessidade de bases bélicas se dava devido ao cerco
buenairense em torno de Sacramento, mantendo ali uma constante praça de
guerra. Entre os dois territórios lusitanos no sul, Rio Grande e Sacramento,
estabeleceu-se um sistema de defesa de territórios oneroso e complexo. Isso
foi decisivo para a colonização da província de São Pedro.
nos primeiros anos de colonização, em 1739 para ser mais exato, o
governador da província baixou um decreto, o “Regimento da Courama”
9
, que
regia a extração e a comercialização do couro e seus derivados, buscando uma
melhor organização da atividade e da nova classe de coureadores que se
formara. Isso nos mostra como a comercialização do couro era rentável e
interessava às autoridades. Essa lei impunha aos produtores o pagamento de
impostos para a produção e comercialização das manufaturas. Com isso, tinha
por objetivo prover sustento ao governo, regular a produção e o desperdício da
matéria-prima, o transporte, a conservação e guarda do couro, prevendo pena
9
CEZAR, Guilhermino. Ocupação e diferenciação do espaço. In. RS: Economia e política.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979, p. 12.
aos infratores. Isso tudo era feito de maneira que atendesse da melhor forma
aos interesses da Provedoria Real e à nova classe dominante que se
instaurava, ambas buscando o lucro e a colonização do território.
Uma grande parte da província, contudo, não era alcançada por esta
fiscalização. Os habitantes da campanha, nativos autônomos ou também
mercenários a serviço de algum senhor de qualquer lado da fronteira,
coureavam livremente na campanha, sem o auspício do governo oficial. O
produto destes marginais era comercializado diretamente com contrabandistas
nos portos de Rio Grande ou Mar del Plata, ficando livre de incidência de
impostos legais e exportado diretamente aos mercados consumidores
estrangeiros, onde conseguiam melhor preço. Esta prática de contrabando era
normal e, por muito tempo, incentivada pelo governo brasileiro. O papel do
gaúcho nesse comércio ilegal foi de extrema importância, pois na campanha
aberta sua mão-de-obra especializada foi valorizada e utilizada em larga
escala.
A distribuição de sesmarias, doadas a militares e a pessoas de posses e
prestígio, serviu à corte, principalmente durante o domínio espanhol nas terras
de São Pedro, de 1763 a 1776, como estratégia para manter e avançar a
fronteira habitada em direção ao sul. Essa medida serviu de base à
implantação das estâncias no campo onde o gado tivera um próspero
desenvolvimento. Os limites, tanto nacional como particular, trouxeram uma
nova realidade para o desenvolvimento da pecuária sulina. Da caça do gado
chimarrão, a prática evolui para o cultivo confinado nas estâncias, onde o gado
passa a ser criado e desenvolvido para otimização dos lucros. Segundo Ribeiro
(1995, p.419), “a apropriação legal de terras começaria a transformar as
invernadas em estâncias, nelas fixando o proprietário e a sua gauchada”.
Podemos dizer assim que as sesmarias foram o marco do desenvolvimento do
capitalismo no sul do Brasil.
O autor acredita que o sucesso do esforço português na ocupação
dessas terras deve-se às estratégias usadas, além da persistência portuguesa.
A integração prosseguiu por um esforço lúcido e persistente da coroa
portuguesa nisso apicaçada pelos paulistas para a ocupação e
apropriação da área. Esta se fez através de dois procedimentos: a
implantação na faixa costeira de famílias transladadas das ilhas
portuguesas, principalmente dos Açores, para constituir um núcleo
permanente de presença portuguesa, e a concessão de sesmarias
nas zonas de campo onde se instalavam as invernadas, que se
procedeu com desusada profusão. (op. cit., p.419).
Guilhermino César analisa o incentivo à colonização das terras do sul
como um “dispositivo militar defensivo” e que a imigração dos ilhéus foi um dos
seus principais colaboradores. Os ilhéus tiveram papel importante na formação
cultural do Rio Grande do Sul, que por suas práticas sociais e culturais
originais, esses imigrantes influenciaram os habitantes da província e se
impuseram frente aos indígenas e castelhanos, principalmente pelo uso da
língua portuguesa oficial. O autor também acrescenta que o sucesso da sua
adaptação ao meio sulino deu-se devido as suas técnicas de trabalho, que não
eram requintadas. A observação é válida tanto para os “casais” como para os
“descobridores” deste território, os filhos de Portugal.
O autor vai além, acrescentando um pensamento que se transforma num
elogio à colonização açoriana nas terras sulinas. Segundo ele, a definição das
fronteiras e a conquista de um território extenso não poderia ter acontecido
sem o êxito da colonização açoriana e, anteriormente, dos outros colonos luso-
brasileiros, que “pioneiramente lastrearam a sociedade capitalista, liberal,
responsável pelo surgimento da Província de São Pedro”. Assim, acrescenta:
A pertinácia com que esses precursores se adonaram do solo,
fazendo-o produzir, criando farturas e eliminando nossa dependência
com relação a outras províncias e ao mesmo Reino, ajudou a eliminar
os primarismos da nossa idade do couro. (CEZAR, 1979, p.21, grifo
do autor).
A colônia de Sacramento, mantida nos domínios espanhóis do prata por
insistência portuguesa, sempre foi ponto de discórdia entre as coroas ibéricas.
Para Portugal este território significava participação no comércio de exportação
via Mar del Plata, mercado consumidor e porta de saída para os produtos
coloniais brasileiros, e principalmente, participação no contrabando da prata
vinda de Potosi e do nascente comércio da courama platina. Por trás dos
interesses comerciais portugueses existia o interesse inglês de participação no
comércio castelhano. Além disso, era estratégica a manutenção de uma saída
para o mar no sul do território. Sacramento, então, tinha o papel tático de
empurrar as fronteiras para o sul, num território ainda não demarcado e nem
povoado. Para a Espanha, este núcleo português no prata representava um
afrontamento ao monopólio de exploração do Rio da Prata, seu comércio e
seus territórios.
A distância entre a última cidade habitada ao sul do território português,
Laguna, e a Colônia de Sacramento foi o maior empecilho para o sucesso da
colonização. As terras que compunham o entremeio destes povoados eram
desabitadas e selvagens, tornando o translado longo e perigoso. Mesmo com
essas adversidades, Portugal conseguiu manter a colônia por 70 anos, desde a
sua fundação, em 1680, até o tratado de Madri, em 1750. Durante esses anos,
Sacramento foi conquistada e destruída diversas vezes por forças portenhas,
mas sempre se reergueu-se mediantes os esforços lusos de retomar e
reconstruir este território estratégico.
Com a fundação de Montevidéu, em 1726, na margem norte do Rio da
Prata, mesmo lado que Sacramento, o cerco ao povoado lusitano foi
incrementado. Este movimento forçou a coroa lusitana a criar uma base militar
mais próxima da colônia, que a ligação Laguna-Sacramento era
demasiadamente longe. Assim, Portugal irá determinar a criação do primeiro
núcleo de povoamento português no sul da colônia, a fortaleza e presídio de
Jesus-Maria-José, na nova cidade de Rio Grande. Temos aqui o primeiro
movimento efetivo de povoação e domínio de território no Rio Grande do Sul
pelo estado português. Além de prover reforços à Sacramento, Rio Grande
tinha a função de legitimar a posse da terra e defender o território de um
possível avanço espanhol.
Mediante a um tratado firmado entre as duas coroas ibéricas, o Tratado
de Madrid de 1750, a Colônia de Sacramento deixou de ser território português,
passando para as concessões espanholas. Em troca, Espanha cedeu o
domínio das terras colonizadas pelos Sete Povos da Missões, região rica pela
criação de gado e produção de erva-mate. Com o auge da mineração nas
Gerais e os altos lucros gerados pela extração aurífera no período, a
dispendiosa manutenção de Sacramento não foi mais levada como prioridade
para a coroa. Além disso, o comércio da prata castelhana estava em franca
decadência e os maiores lucros ficavam nas mãos dos ingleses, que
transportavam e comercializavam os produtos platinos na Europa. Portanto,
seria economicamente mais importante o incremento proporcionado pelos
rebanhos missioneiros na atividade pecuária, em largo desenvolvimento, do
que a manutenção de um território bélico isolado e constantemente invadido e
destruído.
A ocupação do novo território consistia em destruir a organização
missioneira. A Companhia de Jesus, formada por jesuítas com a finalidade de
catequizar e organizar os índios em reduções, estava sendo ameaçada pela
coroa espanhola, pois a forte organização de suas missões estava se tornando
uma afronta ao poder do vice-reinado da América. As fortes missões jesuíticas
tinham um grande poder econômico e militar, devido à próspera atividade de
criação e comércio de gado e exportação de couro e erva-mate.
Representavam um “estado dentro do estado”, pois os espanhóis não
conseguiam controlar as suas atividades e nem participar do seu lucro.
A tentativa de ocupação das missões ocorreu através de um
enfrentamento militar conhecido como “Guerra Guaranítica”. Os índios não
aceitaram as imposições do tratado de Madrid e se negaram a deixar as suas
reduções. Na época do tratado (1750) a população das missões girava em
torno de 30.000 habitantes, mesmo número de habitantes contido em toda a
província do Rio Grande do Sul. Devido a essa grande população missioneira,
e levando em consideração a sua organização e apego à sua terra, Portugal e
Espanha uniram esforços para formar um exército com força superior ao dos
nativos. As batalhas tiveram duração de 2 anos, de 1754 a 1756, tendo como
enfrentamento final a batalha de Caboaté, em fevereiro de 1756. Esta batalha
ocorreu logo após a morte do maior líder das forças guaraníticas, o índio Sepé
Tiarajú, e resultou em um verdadeiro massacre dos nativos pelas forças
conquistadoras. O número de mortos entre os guaranis alcançou a marca de
1500 soldados. Mas essa vitória não resultou na ocupação efetiva das missões
e nem na remoção dos índios. Portugal não levou adiante a ocupação das
terras e a expulsão dos missioneiros, devido à dificuldade de retirar os nativos
de suas terras e à falta de número populacional para colonizá-las. Assim, as
missões continuaram em seu local de origem, mas nunca recuperaram o
esplendor dos tempos pré-guerra.
O tratado de Madrid acabou não cumprindo sua função e foi anulado em
1761 pelo tratado de El Pardo. Com a expulsão dos padres jesuítas, em 1768,
os sete povos, que passaram a ser governados por uma administração
espanhola civil, entraram em decadência e seus índios abandonaram as terras
para ocupar lugar de peões nas estâncias de gado, ou para levar a vida nos
campos e vaquear por conta própria. As reduções foram tomadas em definitivo
pelo governo português em 1801, através de uma ação militar. Esta foi a
derradeira medida para a falência final desta bem sucedida organização social
e econômica. Em 1827, a população dos Sete Povos das Missões tinha
diminuído drasticamente, restando apenas 1.874 índios habitando o espaço
das reduções.
10
Os conflitos para demarcação de fronteiras pós-tratado de Madrid
tornaram necessária a incrementação da sua força militar de Portugal na
região. Para isso, fazia-se necessário proporcionar uma maior ocupação do
território e delegar algum poder para os habitantes mais antigos. Assim, a
coroa incrementou a distribuição de sesmarias na região da bacia do rio Jacuí,
com intenção habitar o interior do estado. Com a mesma finalidade, foi neste
período que a coroa promoveu a vinda dos casais açorianos para a ocupação
do território das missões. Num primeiro momento, estes imigrantes não
receberam terra, em virtude da indefinição da questão jesuítica, e foram
assentados nas regiões do porto de Viamão e na costa do Jacuí.
Para defesa do território, foi promovida a distribuição de cargos militares
e administrativos para os estancieiros mais influentes e estruturados, a fim de
promoverem a defesa das terras mediante forças militares particulares. Este
novo status deu aos estancieiros mais poder de barganha com o poder central
e, como conseqüência, mais incentivos ao Rio Grande do Sul. Mesmo muitas
vezes usando este poder em benefício próprio e entrando em conflito com os
militares que defendiam os interesses da coroa, as exigências e ações dos
estancieiros foram toleradas devido ao alto grau de necessidade que Portugal
10
Dados habitacionais: PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai. Porto
Alegre, Livraria Selbach, 1954.
tinha em utilizar as forças particulares destes fazendeiros, gerando assim uma
autonomia do poder local em relação à administração lusa.
Esse acréscimo de poder militar na região e o intuito de promover
melhorias administrativas para o incremento habitacional fizeram com que o
poder colonial elevasse a região à Capitania do Rio Grande de São Pedro, em
1760, com sede em Rio Grande, desvinculando-a assim de Santa Catarina e
tornando-a subordinada direta do Rio de Janeiro. Esta ação fez com que a
província ganhasse status de estado colonial e obrigou a coroa a manter-se
atenta a suas necessidades. Da mesma forma, proveu poder aos estancieiros e
garantiu a defesa do território pelas mãos de seus exércitos particulares.
As medidas portuguesas não impediram o vice-reinado espanhol do
prata de atacar a província. Durante a Guerra dos Sete Anos, na Europa, as
nações ibéricas viram-se novamente em campos opostos. Valendo-se disso, os
castelhanos, sob o comando do governador de Buenos Aires, D. Pedro de
Cevallos, em 1763, conquistaram Sacramento e invadiram a nova capitania,
promovendo aqui um domínio que se estendeu até 1776, deixando o Rio
Grande bipartido. Em 1773, houve uma segunda ofensiva castelhana, mas
desta vez detida na fronteira de Rio Pardo pelo estancieiro e general Rafael
Pinto Bandeira.
O constante estado de alerta gerou um permanente estado de
militarização na sociedade do Rio Grande do Sul. Para isso, qualquer cidadão
tornava-se um soldado em potencial. O alistamento de peões, índios e gaúchos
foi contínuo, e em grande escala, formando exércitos irregulares de
mercenários para defender as fronteiras e, quando possível, saquear os
rebanhos dos adversários. Os exércitos particulares representavam a força da
elite do exército rio-grandense, sendo estes mais numerosos e mais valiosos
na defesa do território do que as tropas imperiais deslocadas para os conflitos.
Em 1777, houve uma nova investida castelhana contra as terras da
capitania. Deste avanço resultou a ocupação de Sacramento, que tinha sido
devolvida à posse de Portugal após o fim da Guerra dos Sete Anos, e a tomada
da Ilha de Santa Catarina pelo Governador de Buenos Aires, D. Pedro de
Cevallos. Assim foi conclamado o tratado de Santo Idelfonso pelas coroas
ibéricas. Valendo-se do momento de fraqueza vivido por Portugal, em
decorrência da decadência das minas, da morte do Rei D. José I e da queda do
ministro Pombal, a Espanha exigiu a devolução dos territórios de Sacramento e
dos Sete Povos das Missões, em troca da libertação da Ilha de Santa Catarina
e da retirada das tropas do Rio Grande do Sul.
Ponto importante do tratado de Santo Idelfonso foi a delimitação de um
território cuja posse não pertenceria nem a Portugal e nem à Espanha. Este
território, localizado entre as lagoas da Mangueira e Mirim e a costa do
Atlântico, ficou conhecido por campos neutros ou neutrais. Por exigências do
governo espanhol ficou delimitado que, nessas terras, nenhuma nação poderia
edificar fortificações, povoações, guardas ou posto de armadas. A delimitação
vinha da vontade e necessidade do governo espanhol em preservar o seu porto
no prata das infindas investidas dos contrabandistas portugueses e brasileiros.
Buscava-se com este espaço vazio no campo impedir ou pelo menos dificultar
a aproximação e, com isso o comércio, dos castelhanos com os continentinos.
Buenos Aires necessitava de uma barreira para proteger os seus portos do
contrabando da prata peruana, da sua exportação de couro e da chegada de
produtos europeus e brasileiros trazidos pelos portugueses.
O que era uma medida planejada para espantar a ilegalidade no
comércio do sul acabou por tornar-se uma instigação para os contrabandistas.
Os campos que compreendiam esta terra sem pátria eram tão planos e de
vegetação tão abundante como as melhores pradarias castelhanas e o gado ali
prosperava como em todos os cantos deste pampa. Por não ter posse, a terra
não possuía também vigilância. Assim, os aventureiros e contrabandistas
fizeram dessas terras seu abrigo no pampa, atormentando os proprietários das
fazendas que se localizavam na região vizinha desta nova fronteira
arbitrariamente criada.
Após o tratado de Santo Idelfonso, o período de paz nas terras rio
grandenses durou a 1801. Neste período, houve um grande salto na
economia da província, então baseada na produção de charque, pelo
incremento na produção de gado confinado nas estâncias e o crescimento da
produção agrícola, com as fazendas de trigo dos açorianos. Houve também um
acréscimo muito grande no desenvolvimento populacional, que andou junto
com a economia. Assim, o Rio Grande passou a figurar entre os estados com
uma economia sólida no Brasil, mesmo sendo uma economia de subsistência.
Com o crescimento econômico, houve também um enriquecimento da
classe produtora. Sabendo-se cada vez mais importante para a colônia, esta
classe passou a reivindicar mais e aceitar menos ordens, o que ocasionou um
constante desentendimento com os poderes provinciais representantes do
poder central. Assim como os fazendeiros acumularam cada vez mais posse de
terras, incluindo os campos neutros de Santo Idelfonso e além fronteira,
apossaram-se também de cargos públicos, passando assim a agir mais por
conta própria e menos de acordo com os interesses fluminenses.
Em 1801, em marcha de um exército particular, sob comando do
estancieiro e soldado Manuel Santos Pedroso, houve a conquista final e a
anexação definitiva dos territórios dos Sete Povos das Missões. Com isso,
houve também a definição da fronteira oeste do estado e a posse da terra deu-
se através da distribuição de sesmarias. O crescimento da província verifica-se
na promoção recebida do poder Central. Em 1807, o Rio Grande foi elevado ao
patamar de Capitania Geral, independente do Rio de Janeiro e subordinada
diretamente ao Vice-Rei do Brasil.
Em 1820, com a conquista da Cisplatina pelo Rei de Portugal D. João VI,
o Rio Grande teve sua fronteira meridional estendida até o Rio Quaraí. Isso
significou um incremento na produção de charque, tendo em vista que a região
sempre foi rica na atividade pecuária e a distribuição de sesmarias nessa área
beneficiou os grandes charqueadores rio-grandenses.
O processo de apropriação militar da terra caminhou sempre junto com a
economia, como vimos. A vinculação do poder econômico com o poder militar
deu à elite regional uma força local muito grande, onde o poder do fazendeiro
fez-se valer mais do que o poder imperial. A elite rio-grandense soube
aproveitar-se de uma necessidade imperial - a falta de capacidade de manter a
defesa da fronteira nacional para se fortalecer e usufruir deste poder
outorgado pela coroa, em troca de seus serviços prestados. Este fortalecimento
senhorial gerou diversos choques com o poder central (que culminaram na
Revolução Farroupilha), mas também garantiu o desenvolvimento da província
e a sua vinculação com o poder nacional.
Darcy Ribeiro em sua obra O povo brasileiro: A formação e o sentido do
Brasil, dedicou um capítulo para estudar a formação do Brasis Sulinos (grifo do
autor). Nesse capítulo, o autor analisa a questão da formação do Rio Grande
do Sul através da vinculação da atividade econômica com a atividade militar.
Assim, o autor nos mostra que a questão econômica foi fundamental para a
integração de São Pedro ao restante do país.
Compõe-se essa vinculação em três períodos distintos, de acordo com a
integração de algum produto sulino na necessidade do mercado consumidor
nacional. A primeira atividade econômica em que o sul foi envolvido, embora
em pequena escala, foi a operação bandeirante de apresamento de índio para
a comercialização como de mão-de-obra escrava. Este foi, segundo o autor, o
primeiro circuito mercantil transbrasileiro, que culminaria com a instalação da
Colônia de Sacramento no Prata. A segunda via de integração econômica foi o
descobrimento das Minas Gerais, onde o mercado que se formou foi um
grande consumidor de gado em pé proveniente dos rebanhos sulinos, bravios e
abundantes.
Existe uma semelhança peculiar entres as duas atividades econômicas
expostas acima, no que diz respeito à sua relação com a terra. Para proceder a
comercialização do índio e do gado, estas mercadorias deviam ser deslocadas
do campo de captura às feiras existentes no centro do país. Este deslocamento
acabou por criar uma ligação de fluxo transeunte entre o sul e o centro do
território nacional, mas não vinculou o comerciante à terra. A atividade deste
bandeirante na maioria das vezes, pois sabemos que muitos bandeirantes se
estabeleceram no sul - seria de vir, localizar, capturar, conduzir e comercializar
a mercadoria nos mercados centrais, sem haver fixação ou desenvolvimento de
colonização nas terras do sul.
A terceira atividade nacional que vinculou a economia rio grandense à
economia central foi a mais importante para a fixação do homem na terra. Com
a decadência da mineração brasileira surge uma nova economia que irá
valorizar os rebanhos rio-grandenses. Através dos cearenses, ocorreu a
introdução da tecnologia de produção da carne de sol ou charque como aqui é
conhecido, e a produção voltou-se para os mercados nordestino e
amazonense, principalmente para alimentação de escravos e, mais tarde, para
o mercado antilhano, com a mesma finalidade.
Desta forma o Ribeiro (1995, p.42) ressalta que
a integração econômica da região sul do Brasil se alcançou, como se
vê, através da criação de sucessivos vínculos mercantis que a ataram
mais ao restante do país do que às províncias hispano-americanas
vizinhas.
Dentro desses três processos econômicos, o autor demonstra como se
deu a integração da Província de São Pedro ao restante da colônia portuguesa,
de um modo que acabou afastando-a das influências castelhanas e, por
conseqüência da dominação castelhana que sempre estiveram presentes
nesse território. Assim, o autor desenvolve a idéia de que a força portuguesa
de colonização no sul - além da integração econômica, mas principalmente
pela influência cultural dos novos luso-brasileiros habitantes do sul, enfim, com
sua postura efetivamente “portuguesa” frente à postura “castelhana” - criou
aqui um sentimento de pertencimento ao Brasil, “fixando uma identidade étnica
tanto mais profunda porque permanentemente posta à prova”. (RIBEIRO, 1995,
p. 412).
2.2 QUESTÃO DE FRONTEIRA
A fronteira marchava com eles. Eles eram a fronteira.
(Érico Veríssimo, 2004)
O conceito de fronteira tem sido usado, através da história, como uma
definição de limite, de divisa, principalmente se buscarmos o conceito dentro da
geografia e da política. Mas para as ciências sociais, que tem buscado
conceituações mais abrangentes, o significado de fronteira difere bastante da
sua definição usual. Em um artigo onde analisa o conceito de fronteira para a
literatura, Chaves (2004, p.218)
11
busca a etimologia da palavra fronteira.
11
CHAVES, Flávio Loureiro. A fronteira da literatura. In. Cultura, Imigração e Memória: percurso
e horizontes: 25 anos do ECIRS. Caxias do Sul: EDUCS, 2004, p. 218.
Originária do latim, frons, frontis, significa “aquilo que se encontra à frente”.
Acrescenta então que limite e fronteira distinguem-se por uma diferença básica.
Limite encontra-se dicionarizado como: “linha que determina uma extensão
espacial ou que separa duas extensões; o que não pode, nem deve ser
ultrapassado”
12
. Limite é o ponto final, onde uma coisa acaba e começa outra.
fronteira é o espaço ao redor do limite. É o espaço da vivência entre as
coisas separadas pelo limite. É a linha que não separa, mas une os espaços
que nela se encontram. Portanto, segundo definição Chaves (op, cit., p.289) ,
fronteira é uma “zona privilegiada de encontro”.
Dentro desta conceituação de fronteira, Sandra Pesavento (2006),
analisa a diferença entre os significados de fronteira na geopolítica e nas
ciências sociais. Sua análise define que fronteira, na significação geopolítica, é
o “encerramento de um espaço, delimitação de um território, fixação de uma
superfície”, ou seja, fronteira na geopolítica significa o que Chaves define como
limite. Mas para a utilização nas ciências sociais, o conceito de fronteira deve
ser pensado de forma mais ampla, de modo que a autora
fronteira como margem em permanente contato, como passagem a
proporcionar mescla, interpenetração, troca e diálogo, que se
traduzem em produtos culturais. Assim, as fronteiras remetem à
vivência, às sociabilidades, às formas de pensar intercambiáveis, aos
ethos, valores, significados contidos nas coisas, palavras, gestos,
ritos, comportamentos e idéias. (op. cit., p. 10-11).
Desta maneira, a autora define fronteira como um espaço de troca, de
influência e desta troca resulta um novo, não somente a soma das culturas,
mas sim uma nova cultura, distinta das partes constitutivas, um elemento sui
generis, hibrido e mestiço.
Podemos utilizar aqui como exemplo desta definição de fronteira, a sua
aplicação na obra Fronteiras Sem Divisa, de Ribeiro e Pozenato, quando
analisam a cultura de fronteira existente nos dois estados mais meridionais da
nação, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Levando em conta que “no quadro
federativo, cada unidade busca sinalizar sua diferença com relação às demais
unidades, como elemento de aglutinação de identidade própria”, constatam em
12
HOUAISS, Antônio. VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2001. Pg. 1760.
sua pesquisa é que no âmbito das relações culturais, este limite político não
separou as culturas, e sim as uniu. Embora o território seja separado por um
acidente geográfico que dificulta o trânsito, o Rio Pelotas, “desenvolveu-se, em
uma e noutra margem, o mesmo tipo de cultura, construído inicialmente sob o
signo da criação de gado e, mais tarde, pela exploração de madeira”. Devido
às características de colonização e atividades econômicas, as práticas culturais
nessa fronteira convergiram ao invés de se distanciarem. (POZENATO, 2005,
p. 15-16).
Esta pesquisa, tendo como embasamento os conceitos que constituem
nosso referencial teórico, está de acordo com a idéia de fronteira apresentada
acima. Essa definição vale tanto para a fronteira entre os diferentes
conhecimentos (literatura e história, como assinalamos anteriormente), como
para a questão da fronteira existente entre o sul do Brasil e os países platinos.
Acreditamos e, por conseqüência, corroboramos com a visão dos historiadores
de matriz platina da historiografia rio-grandense, quando definem que a nossa
história não pode ser estudada sem uma reflexão sobre a interculturalidade
existente nessa fronteira. Analisamos, assim que é inviável discutirmos a
formação social e cultural do Rio Grande do Sul, e por conseqüência, a
participação do gaúcho, sem incluirmos na pauta da pesquisa a influência
mútua gerada pela convivência no espaço de fronteira com os nossos vizinhos
castelhanos.
O enfrentamento existente na fronteira móvel, entre o Rio Grande e o
território platino, que tanto separava quanto unia as culturas, por ser um lugar
de troca, foi fundamental para o desenvolvimento da identidade cultural rio-
grandense e a sua vinculação à colônia.
Esta auto-definição se reforçada mais ainda porque, estando
associada às disputas hegemônicas das suas metrópoles, compelia
cada estancieiro não a definir-se claramente por uma ou outra
como também, definida sua identidade, defender a bandeira
respectiva, fazendo de sua estância sua trincheira. (RIBEIRO, 1995,
p.412).
A necessidade de defesa da fronteira se fez ulterior à necessidade de
defesa do território particular. Com relação a isso, Ribeiro afirma que os
estancieiros “trabalhavam, sempre, com os olhos postos no horizonte, de
atalaia contra os ataques dos castelhanos”.
Num trecho de Ana Terra, capítulo do clássico livro O continente, de
Erico Verissimo, podemos montar uma imagem mais nítida do medo que os
primeiros estancieiros tinham de ataques às suas terras. O narrador, ao
descrever a solidão e o isolamento ao qual viviam os seus personagens,
precursores estancieiros da província, faz referência ao perigo latente em
relação aos ataques castelhanos em terras do sul. Assim descreve que os
castelhanos, “de tempos em tempos surgiam em bandos, levando por diante o
gado alheio, saqueando as casas, matando os continentinos, desrespeitando
as mulheres.” (VERRISSIMO, 2004, p.102)
Tendo em vista a constante ameaça de ataque estrangeiro, tanto militar
como para roubo de gado, fez-se necessário aqui o desenvolvimento de uma
constante organização bélica. Mais adiante, no mesmo texto de Ana Terra,
numa cena onde os Terra recebem a visita do Major Rafael Pinto Bandeira,
conhecido estancieiro que se fez militar para expulsar os castelhanos que
haviam tomado parte da província entre 1763 e 1776, temos a descrição de um
“homem de fronteira”, quando o personagem fala de si e seu bando: “A sina da
gente é andar no lombo dum cavalo, peleando, comendo às pressas aqui e ali,
dormindo mal ao relento pra no outro dia continuar peleando”
13
. No desenrolar
do diálogo, o filho mais velho, Antonio Terra, cogita a idéia de que deve ir junto
com o Major, pois, como diz: “O Major é um patriota, meu pai. Ele precisa de
soldados para botar para fora os castelhanos.” Imediatamente seu pai lhe
retruca e sua resposta nos traz subsídios para compor aqui uma discussão de
como a fronteira atuava sobre os habitantes da província: “Patriota? Ele está
mas é defendendo as estâncias que ele tem. O que quer é retomar suas terras
que os castelhanos invadiram. Pátria é a casa da gente”. Vemos aqui um
13
IDEM, Op. Cit. Pg. 105.
deslocamento da história para o texto literário, onde a literatura se antecipa aos
estudos das ciências sociais, visto que esta obra foi publicada em 1949,
lançando uma nova interpretação para a questão da fronteira e da
nacionalidade. Sendo assim, no discurso sociológico contemporâneo ao
romance, Ribeiro (1995, p.419) nos apresenta que:
A larga faixa de fronteira indiferenciada, movendo-se conforme a
pressão de um lado ou do outro, ameaçava mais à estância e a seu
gado do que à pátria mesmo. Assim, cada estancieiro de um lado e
outro da fronteira se faz um caudilho, entrincheirado em seu rancho
com seus gaúchos, sempre pronto a engajar-se nas correrias que
punham a salvo o seu rebanho e às vezes permitiam acrescê-lo
com o que arrebatasse da outra banda.
Para relacionar com esta idéia de defesa da fronteira como defesa da
pátria, o historiador Fabio Kuhn em seu livro Breve história do Rio Grande do
Sul, irá nos trazer a visão de que antes de servir a uma disputa por fronteira, ou
nacionalidade, o estancieiro servia a seus próprios interesses. A sua luta
armada na defesa do território não estava vinculada apenas, como estuda a
historiografia tradicional, a uma defesa da nacionalidade brasileira perante a
invasão da nacionalidade estrangeira, mas sim ao interesse financeiro envolto
nessas disputas, além, é claro, da defesa a própria estância. Segundo o
historiador é necessário levar em conta que:
A noção de fronteira no período colonial, entendida como espaço de
conflito e animosidades mútuas entre portugueses e espanhóis, deve
ser relativizada, pois não leva em conta a inexistência de Estados
nacionais unificados territorialmente definidos ao longo do século
XVIII. (KUHN, 2004, p.26).
Desta forma, o autor defende que a noção de nacionalidade não era
atual e atuante para os homens e mulheres que viviam os conflitos e as tréguas
entre as nações na fronteira em formação. Sem minimizar a importância da
colonização luso-brasileira no sul, Kunh chama a atenção sobre os diversos
fluxos demográficos que habitavam a fronteira e que, mesmo antes da
colonização portuguesa ou até mesmo da espanhola, nessas terras do sul era
comum a presença de espanhóis e criollos na povoação de Laguna, território
mais meridional do Brasil povoado. Com isso o autor sugere uma alteração
conceitual para a significação de fronteira desta divisa em questão, propondo
assim:
um novo quadro de referência, em que o espaço fronteiriço colonial
deve ser compreendido como uma fronteira em movimento com
intensa circulação de homens e mercadoria, em um contexto
demográfico heterogêneo e numa conjuntura de instabilidade política.
(KUHN, 2004, p.27).
Em sintonia com essa idéia, a historiadora uruguaia Ana Frega, que em
seu livro Pueblos y soberanía en la revolución artiguista, analisa a presença e a
influência dos portugueses no Uruguai, traz uma ilustração da fragilidade da
fronteira Brasil/Uruguai em relação às influências interculturais dos dois países.
Afirma que a fronteira política imposta sempre esteve distante de uma possível
fronteira cultural. Acredita também que as lutas de fronteiras são obras
unicamente políticas, impostas pelos poderes centrais das colônias, e não por
rivalidade dos habitantes locais.
Castellanos y lusitanos estaban vinculados por distintos tipos de
relaciones que pasaban por la exploración de los recursos del lugar,
el comercio, el empleo como fuerza de trabajo y las uniones
familiares. Como zona frontera, la región no constituía una barrera
sino un lugar de encuentro, un canal transcultural. Los choques
provenían en general desde las políticas de los gobiernos centrales,
que tras las declaraciones de guerra transformaban a los “amigos” en
“ocupantes” o “enemigos”. Es interesante anotar las posiciones
adoptadas en la lucha no siempre reflejaron el lugar de nacimiento, y
que nativos de los territorios de Portugal residentes en la zona se
afiliaron en ambos bandos. (FREGA, 2007, p.354)
Vale lembrar aqui, como exemplo, o posicionamento de diversos
estancieiros rio-grandenses, inclusive futuros membros do alto escalão do
exército da província, como Bento Gonçalves e Bento Manoel, que, durante a
independência do Uruguai, lutaram ao lado das tropas orientais, a fim de
defender suas próprias terras e a de outros tantos gaúchos brasileiros situados
no território vizinho. A autora acrescenta ainda que, em 1828, na cidade de
Capilla Nueva de Mercedes, um levantamento da população segundo o seu
local de origem revelou em números a superioridade de descendentes
portugueses sobre os nativos da região. Segundo o levantamento, a população
dividia-se em 35% de luso-brasileiros, 33% de uruguaios, 19% de europeus,
7% de espanhóis, 4% de paraguaios e 2% de outros (FREGA, op.cit., p. 361).
Dentre os conservadores, que acreditam que a influência castelhana na
cultura rio-grandense é tão pífia como a existência da miscigenação com o tipo
indígena, Moysés Vellinho é o seu maior representante. Defensor da
dominação cultural luso-brasileira nas terras do sul, Vellinho não deixa de se
opor, em cada trabalho, à situação de fronteira como ponto de trocas culturais.
Para ele a fronteira cultural existiu tão ou mais demarcada do que a fronteira
política. É o grande defensor da matriz lusitana na historiografia rio-grandense,
quando acreditando que as diferenças entre os gaúchos de e de da
fronteira são extremas, se opondo um ao outro, legando todos os crimes do
campo para o lado platino.
Estendida a linha de separação, não apenas entre duas soberanias,
mas entre dois estágios sociais e políticos ainda então desnivelados,
continuariam os velhos atritos provocados pela caça aos rebanhos.
[...] Os campeadores rio-grandenses, ao contrário dos nossos
vizinhos orientais, que então desconheciam até os rudimentos mais
primitivos de organização social, se conduziam em nome de
móveis menos obscuros o constante serviço do rei e os interêsses
sócio-econômicos da estância. [...] A necessidade comum de defesa
foi o fator político que nos preservou da dispersão e anarquia
características do Prata. (VELLINHO, 1964, p.36-38).
Roger Bastide, no livro Brasil, Terra de Contrastes irá contribuir para
essa discussão com a idéia de que o enfrentamento dos países serviu como
um catalisador em suas trocas culturais, e que a inexistência de posse nos
tempos remotos do território impossibilita a pretendida separação cultural. Para
ele:
Fronteira é local de luta, mas é também local de interpenetração, de
trocas de civilizações, principalmente quando é móvel. A que separa
as possessões espanholas das possessões portuguesas, deslocava-
se ao sabor dos golpes de surpresa e das batalhas; era fronteira feita
de corpos humanos, e não de montanhas ou de rios. Descendentes
de velhas famílias portuguesas são encontrados no Uruguai,
descendentes de velhas famílias espanholas são encontrados no Rio
Grande do Sul. Os indivíduos misturam-se numa área movediça que
não era possessão de nenhuma coroa, e sim o domínio de rebanhos
e capinzais. (BASTIDE, 1978, p.178).
Conforme reforça Carlos Reverbel, no livro O Gaúcho, a fronteira entre o
Rio Grande do Sul e os países do Prata não oferecem obstáculos para o livre
trânsito. Entre o Rio Grande e o Uruguai a fronteira é toda seca, enquanto que
em parte da fronteira com a Argentina encontra-se o Rio Uruguai,
historicamente utilizado para a navegação. Assim, embora em alguns pontos a
fronteira natural dificulte o acesso, a grande maioria é perfeitamente
transponível, não existindo o impedimento da circulação entre as regiões,
muitas bem conhecidas pelos tropeiros, gaúchos, paulistas e outros que a
transitavam, especialmente para o contrabando.
Em seu discurso, afirma que a “fronteira aberta, quando não em
movimento, as condições gerais de vida eram praticamente as mesmas nas
duas bandas da linha convencionalmente divisória”. Que o gaúcho nasceu no
prata mas não ficou ali circunscrito, estendeu-se para o Rio Grande Sul pelos
mesmos fatores que o fizeram aparecer por lá, pastagens abundantes e
rebanhos sem dono. Assim,
estes traços comuns marcantes nos gaúchos primitivos, tanto do
Prata como do Rio Grande, demonstram que, embora aja diferença
entre eles, motivadas por peculiaridades locais, o tipo social do
gaúcho, formado ao influxo da vida rural nas suas respectivas regiões
nacionais, é basicamente o mesmo. (REVERBEL, 1986, p.69-70).
2.3 PROCESSO ECONÔMICO
A principal característica da política de colonização ibérica na América
Meridional foi a busca pelo enriquecimento da metrópole, sem necessidade de
desenvolvimento da colônia. A busca por ganho fácil, ou extraindo-o da
generosidade da natureza, sem necessidade de manufatura da riqueza, ou
com o comércio de produtos rentáveis, na falta de ouro e prata, foi o objetivo
primário desta cultura de exploração mercantilista. No caso espanhol, a busca
por metais preciosos foi contemplada no contato com a terra a ser explorada.
As minas de extração, principalmente da prata, foram encontradas e
exploradas nas regiões andinas, trazendo retorno lucrativo para a colônia
espanhola.
No caso português, esse objetivo primário não foi concretizado nos solos
do Brasil, fazendo com que a metrópole se adaptasse estrategicamente à sua a
colônia, a fim de poder lucrar com a exploração. No princípio, a extração de
Pau-Brasil e o contrabando de objetos tropicais foram os meios encontrados
para o ganho imediato, visto que neste momento interessava mais a Portugal o
rentável comércio de especiarias com o extremo oriente do que a ocupação e
desenvolvimento da nova e selvagem colônia. Com o tempo fez-se necessário
a tomada das terras brasileiras devido à ameaça de ocupação estrangeira.
Com isso, a metrópole desenvolveu aqui uma política de povoamento e
ganhos, firmada na produção de monocultura agrícola, de grande extensão
territorial e mão-de-obra cativa.
Esta característica de produção de capital foi base para toda a
colonização portuguesa em terras brasileiras. A colonização e desenvolvimento
da colônia se fez a partir das necessidades e oportunidades econômicas,
visto que, de acordo com a política mercantilista, o objetivo era sempre lucrar
com o menor esforço possível e não colonizar efetivamente. Dentro deste
projeto, a província de São Pedro, num primeiro momento, encontrou-se fora
dos parâmetros necessários para a implantação deste sistema de produção.
O couro foi, inicialmente, o produto mais lucrativo para as províncias do
prata que desde os primórdios da colonização, estas províncias supriram a
necessidade da América em relação ao gado e seus derivados - e com a
província de São Pedro não foi diferente. Devido à grande influência do
rentável comércio da courama espanhola em terras pampianas, o Rio Grande
começa a chamar a atenção do poder central para esta possível riqueza. O
gado xucro, matéria-prima abundante no sul (menos abundante que nos
pampas argentinos e uruguaios, mas mesmo assim em boa quantidade para a
necessidade e o comércio do período), era uma herança das primeiras missões
jesuítas espanholas que se aldearam em nosso território no inicio do séc. XVII.
Tendo em vista a expansão de seu território e, principalmente, a
participação no comércio ilícito de exportação da prata via Mar del Plata, a
coroa lusitana fundou em 1680, fronte à Buenos Aires, a Colônia do Santíssimo
Sacramento. Esta praça foi palco de grandes batalhas entre as nações
ibéricas, sendo conquistada e reconquistada várias vezes. Ponto estratégico-
militar, sua função maior era assegurar os interesses lusos na região. Além de
lucrar com o contrabando dos produtos coloniais espanhóis em troca de
escravos e produtos manufaturados ingleses, para a província de São Pedro a
Colônia de Sacramento serviu como modo de voltar os olhos da coroa
portuguesa para as terras do extremo sul do Brasil e conhecimento da possível
lucratividade existentes nos rebanhos bravios da Vacaria del Mar.
O produto desta atividade de caráter predatório, que baseava a
produção na extração do couro do gado existente no campo, sem a
necessidade de criação, era exportado para a Europa via Sacramento ou
Buenos Aires. Esta atividade chamou a atenção de pessoas de diversas
localidades. Bandeirantes paulista, habitantes de Sacramento e de Buenos
Aires, índios a serviço dos jesuítas, e dos habitantes nativos da região que
sempre vaquearam por conta própria, utilizando o couro como artigo de
manufaturas caseiras e moeda de troca. Esse foi o inicio da expansão rumo ao
sul e o capítulo inicial para o processo de povoamento da província de São
Pedro.
A preia do gado xucro, com sua característica predatória e o desperdício
de matéria-prima da Vacaria del Mar, estava por dizimar a população bovina.
Devido a isso, os jesuítas, que retornavam a província no fim do séc. XVII,
fundando os Sete Povos das Missões, começaram a deslocar os rebanhos
para o norte, a fim de criar o gado junto às reduções. A atividade de extração e
exportação do couro via Rio da Prata, assim como a erva-mate, eram as
principais bases econômicas dessas novas e fortificadas reduções. O
deslocamento dos rebanhos acabou por estabelecer uma nova reserva de
gado, chamada de Vacaria dos Pinhais, garantindo assim tanto a produção
jesuítica como a manutenção da matéria-prima para os futuros habitantes da
região.
Durante muitos anos, a historiografia rio-grandense, assim como a sua
literatura, desvelou em seus discursos que a produção pastoril desenvolveu-se
sempre de forma natural, por obra única da boa natureza gaúcha, onde tudo
que se planta cresce, sem a necessidade da intervenção do trabalho do
homem, criando assim uma espécie de “mito da produção sem trabalho”, como
denomina Décio Freitas em um artigo de mesmo nome. Em busca de uma
crítica, e de uma possível desmitificação, Freitas abre o seu artigo, com a
seguinte frase: “Nenhuma dominação social pode subsistir sem uma
concomitante dominação ideológica”. Assim define que as implicações desta
criação ideológica, de trabalho como um aspecto puramente lúdico, parecem
ser bastante óbvias: com “a acumulação de capital operando-se mediante
processos exclusivamente naturais, não haveria dominação e exploração no
pastoreio”. Para ele, os ideólogos rio-grandenses tratavam a lida campeira
como um jogo ao qual os gaúchos, ou os peões, participavam conforme a sua
vontade e que a atividade não passava de um divertimento, uma aventura.
Desta forma, “nega-se toda a economia econômica de valor, já que a natureza,
e não o trabalho social, seria no pastoreio a fonte de valor”. (FREITAS, 1980, p.
07).
Para Jorge Salis Goulart, historiador e ideólogo da matriz lusitana, o
peão assalariava-se não com intuito de prover sua subsistência, mas sim de
“servir o patrão espontaneamente, quase sempre por amizade” e gozando de
“uma independência inigualável”. Não havia nesta relação social nenhuma
servidão econômica e “patrões e empregados viviam em comum, com os
mesmos hábitos e necessidades”. Este discurso é a base para a criação da
ideologia da “democracia dos pampas”, onde o patrão e o empregado (este
último sempre descrito como o peão assalariado e nunca como o escravo ou o
gaúcho mercenário e contrabandista, como se não existissem cativos e
marginais na província) viviam nas mesmas condições de trabalho, de
igualdade, já que na estância existia a política da grande família o autor afirma
que “entre chefes e empregados, pela natureza das ligações amistosas que os
uniam, se encontra muito do caráter da vida patriarcal, onde o patrão se
entrega com os seus subordinados aos trabalhos da comunidade”. Em relação
aos convívios igualitários na estância Goulart vai além: “Em virtude da
solidariedade de todos esses fortes elos, tivemos uma unidade provincial que
repousou nos sentimentos mais nobres que a humanidade conhece”.
(GOULART, 1985, p.27-32).
Euclides da Cunha também vai fortificar a ideologia do trabalho do
gaúcho como diversão. Em Os Sertões descreve que o peão “tinha o trabalho
como uma diversão” e assim o “passar pela vida aventureiro, jovial, diserto,
valente e fanfarrão, despreocupado”, suas “vestes são um traje de festa” e ele
“é um vitorioso jovial e forte”. (CUNHA, 1973, p.104).
Madaline Wallis Nichols, em sua importante obra O gaúcho, constrói a
imagem de um gaúcho independente, vagabundo, que trabalha somente
quando convém, não mantendo vínculos empregatícios com qualquer patrão e
afirma que “um exagerado sentimento de domínio sobre o destino provinha do
simples ato de percorrer, ao lombo de um cavalo, a imensidade da planície”.
Mostra-nos que as características culturais do gaúcho, como sua roupa e seu
equipamento de montar, dão-lhe a liberdade de “viver no pampa sem trabalhar
e com relativo conforto”. (NICHOLS, 1946, p.40)
Freitas (1980) analisa estas ideologias de forma crítica. Em defesa do
trabalho do gaúcho aponta que a literatura, a história e o folclore poetizaram
toda a vida do peão da estância em detrimento a todas as suas práticas
lavorais e culturais, escondendo ou retirando do seu discurso características
discrepantes com a imagem desejada. Esse tipo de discurso acaba por
caracterizar as práticas sociais dos gaudérios vagos como sintoma de
vagabundagem e aversão ao trabalho. Renegadas do discurso ficam as duras
realidades como a falta de trabalho, o deslocamento forçado pela falta de terras
ou despojo das antes cultivadas, a dificuldade de se manter unido a uma
família. Mas, principalmente, a dificuldade desse gaúcho, que vive no e do
pampa, em se posicionar numa sociedade em formação que está alterando
toda uma ordem cultural tradicional e que não o aceita mais. O que devemos
ter em mente é que a precariedade social do gaudério, e da província, é
imensa. Como coloca Freitas (1980, p.9)
Sendo antes de tudo um solitário, não tinha o que fazer nas horas
vagas; suas únicas distrações eram o jogo, a cordeona e o álcool.
Para suas necessidades sexuais, recorria à china prostituta da
campanha forjando-se, a partir daí, a lenda do seu donjuanismo. O
gaúcho não era um folgazão, como se pregoa era um desgraçado,
um pobre diabo sem eira e nem beira.
Mesmo com essas características de exclusão social do gaúcho, é
preciso ressaltar que sem o seu trabalho, sua lida campeira e suas habilidades
pastoris, possivelmente não haveria o desenvolvimento da produção pecuária
no pampa ou pelo menos esta seria de menor expressão. O gaúcho constituiu
uma classe de mão-de-obra qualificada, de grande habilidade no manejo do
gado e proteção à terra. Tanto como peão assalariado na estância ou como
gaudério no campo aberto, o gaúcho teve no seu trabalho a importância de
manufaturar a riqueza animal encontrada nas pastagens do pampa, sendo
essas últimas sim produzidas pela natureza.
O gado reproduziu-se em campo aberto por obra da natureza. Não
houve intervenção do homem para esta atividade. A influência humana aparece
no momento em que estes animais foram implantados artificialmente na
natureza pampeana. No caso da Vacaria dos Pinhais, o gado foi lançado e
criado pelos jesuítas para o seu próprio consumo, regulando o abate para uma
melhor reprodução. No caso da Vacaria Del Mar, a situação é semelhante, mas
com influência dos platinos e não dos jesuítas. Desta maneira, multiplicando-se
a gosto da natureza, os rebanhos atingiram a numerosa população encontrada
pelos conquistadores, causando-lhes enorme admiração e cobiça ao se
depararem com a imensidão das vacarias. Mas, de qualquer maneira, aquele
gado por si nada valia. Certamente aqueles rebanhos traduziam-se em riqueza
para os conquistadores, mas sem a intervenção do homem, o gado não
representava nenhum valor. Era necessário trabalhar as peças para poder
atingir o lucro desejado.
Qualquer atividade de captura e manufatura dos rebanhos exigia
trabalho pesado e perigoso. Estas atividades davam-se em campo aberto,
onde os trabalhadores sofriam muitas adversidades como a longa duração da
empreitada, as baixas condições de subsistência no campo e o perigo dos
ataques de nativos hostis, dos animais selvagens e da própria atividade de
captura e abatimento do gado selvagem e agressivo. Para ilustrar o perigo
podemos destacar que, na maioria das vezes, os escravos não eram
recrutados para essas arreadas, devido ao alto risco de morte e fuga. Nesse
trabalho eram empregados gaúchos vagos, sem vínculos empregatícios e sem
riscos de perda de capital para o contratante em eventual inutilização da mão-
de-obra. Em caso de necessidade de captura do gado vivo para povoamento
das estâncias, a atividade era acrescida de perigo, devido à dificuldade de
apresamento e transporte desses animais selvagens. Não são poucas as
referências a mortes e ferimentos graves nas descrições encontradas de
vacarias e arreadas.
Assim, o mito da produção sem trabalho é colocado em xeque por
Freitas, pois, embora o gado se apresentasse em quantidades significativas no
pampa aberto, sem os insumos providos pelo gaúcho não haveria aqui um
desenvolvimento tão grande da lucrativa indústria do gado.
2.3.1 ASCENSÃO ECONÔMICA DO RIO GRANDE DO SUL
No fim do século XVII, houve a decadência do açúcar no nordeste do
país e a descoberta das Minas Gerais. Isso ocasionou uma alteração
geopolítica no Brasil, onde a sede administrativa e o centro econômico
deixaram de ser a zona litorânea da Bahia, produtora de açúcar, transferindo-
se para a região vicentina, próxima das minas, com a capital fixada na cidade
do Rio de Janeiro. Embora a capital colonial permanecesse em região
litorânea, podemos notar que houve uma interiorização do Brasil no sentido de
esta mudança ter proporcionado o desenvolvimento de áreas mais afastadas
da antiga corte e menos importantes economicamente. Nesse caso enquadra-
se a província de São Pedro, que passa a desempenhar um papel importante
para a economia colonial. Com o advento da descoberta das minas e a
transferência da coroa para o centro do Brasil, o Rio Grande do Sul passa a
ficar mais próximo do poder administrativo colonial.
A mineração mudou o cenário produtivo da colônia. O crescimento
populacional e aquisitivo, localizado à distância da região litorânea original,
ocasionado pela alta rentabilidade da atividade mineradora, fez com que
surgisse um mercado interno antes inexistente ou de baixa expressão. Dentro
dessa nova ordem, a província passa a ter representação econômica devido
aos seus rebanhos. Além de produtos manufaturados derivados do couro, a
nova atividade necessitava de transporte eqüino e bovino. Assim, a província
colocou-se como uma economia subsidiária da economia central de
exportação.
O movimento de pessoas em busca de renda nas terras do sul se fez
crescente. De Laguna, maior centro urbano do extremo sul do Brasil, partiram
diversas expedições com objetivo de cativar os rebanhos e envia-los para a
zona da mineração. Essas expedições eram muitas vezes independentes e
espontâneas, gerando mais tarde expedições oficiais com o incentivo da coroa.
Embora o interesse particular fosse apenas apreender o gado para
comercializá-lo na província de São Vicente, com esses aventureiros pode-se
perceber o inicio de um foco de povoamento, desde Laguna até a colônia de
Sacramento. Desta maneira, a coroa utilizou e incentivou um deslocamento
populacional rumo ao sul para a legitimação de posse de terras no extremo sul
da colônia e assim garantiu a sua participação no comércio do prata. Vale
ressaltar que esta atividade não era nova, pois os habitantes da província, os
tropeiros e os contrabandistas, já utilizavam a prática de apresamento para fins
comerciais desde o período do açúcar, mas foi com o deslocamento gerado
pela nova atividade econômica que o Rio Grande passou a ter expressividade
nacional como província capaz de gerar lucros. Foi neste período de intenso
trânsito que tivemos a abertura das primeiras vias de comunicação do sul com
a corte do Brasil.
A figura social predominante no período foi o tropeiro, que trabalhava em
grupo, quase sempre armado. Além do gado para o corte, a busca ia além
fronteiras para a captura dos rebanhos de mulas, usadas pelos espanhóis no
transporte da prata de Potosi. Visto que a mineração andina encontrava-se em
decadência no momento da ascensão da mineração nas gerais, os
comerciantes espanhóis de gado muar voltaram-se para o mercado brasileiro.
Mas é sempre necessário lembrar que este comércio ou o seu contrabando,
era feito sempre acompanhado de força armada, pois a aquisição da matéria-
prima consistia muitas vezes em roubar o gado estrangeiro e atravessar a
fronteira.
Neste período, o Rio Grande habitado, ou simplesmente transitado, não
passava de uma estreita faixa de terra no litoral, entre Laguna e Sacramento.
Era por aí que os tropeiros passavam e por que se tinha algum indício de
povoamento. No interior, onde efetivamente estavam os rebanhos, não existia
uma posse oficializada, com distribuição de terras pela coroa portuguesa,
sendo, assim, tida como uma terra de ninguém, propícia ao contrabando e ao
avanço espanhol. Nessas áreas, eram feitas invernadas e rodeios, prática
comum utilizada para o agrupamento de animais, de onde partiam as
excursões rumo a Sorocaba, para que os animais fossem comercializados nas
feiras e assim fossem encaminhados à sua atividade na zona mineradora.
Devido aos problemas enfrentados com a devastação dos rebanhos
bravios, no início do culo XVIII, faz-se necessário o fim da atividade
predatória para a manutenção da matéria-prima. Com isso, começa a ser
germinado entre os tropeiros rio-grandenses a cultura de criação de gado e
fixação de espaço produtivo, visando a garantia de rebanho e o aumento de
ganho. Concomitante a estas mudanças no campo, a coroa portuguesa, devido
às dificuldades de manutenção de Sacramento, considerou necessário
desenvolver o incremento populacional no imenso território contido entre
Laguna e o Prata. A estratégia escolhida foi a distribuição de terras em
sesmarias, visando assim a sedentarização do homem no campo, a posse da
terra e do gado.
Os privilegiados com as sesmarias, lotes de tamanhos imensuráveis,
eram geralmente militares, em troca de serviços, homens de posse, em troca
de favores a coroa ou simplesmente os tropeiros que ali se fixaram e
desenvolveram a pecuária. A grande propriedade era a maneira conhecida pela
colônia para colonizar e assegurar a posse das terras. O modo de produção
concomitante era o de latifúndio, com produção extensiva, capaz de dar conta
do domínio territorial e principalmente do domínio comercial, a valiosa
courama. Além disso, tornou-se possível o controle da devastação do gado
xucro, pois com a posse dos campos e o fim da atividade predatória do gado
alçado, a pecuária extensiva poderia ser administrada pelos novos
terratenentes.
O sucesso da posse dos campos sulinos deu-se com o constante
incremento da indústria do gado no mercado nacional. No princípio, a atividade
mineradora foi o cerne da comercialização do gado em pé. Com a decadência
desta atividade, no fim do século XVIII, a economia sulina teve uma alteração
no foco da atividade pecuarista. Ao mesmo tempo em que a mineração
diminuía o seu market-share, as zonas produtoras de café desenvolviam-se
rapidamente. Adaptando-se a essa nova realidade, o Rio Grande organiza-se
economicamente e estruturalmente para a produção do charque, alimento
produzido pelos criatórios do Piauí e pelos saladeros platinos, utilizado para a
alimentação da escravaria nas Américas do Sul e Central. Esta nova prática
econômica tornou-se a maior fonte de riqueza e poder no Rio Grande do Sul e
representou também o movimento final para a inserção da província como
parte representativa na economia nacional. Isso em razão de que a produção
do charque teve seu grande desenvolvimento, produtivo e comercial, com o
incremento do comércio escravista ocorrido no Brasil no início do século XIX,
sendo esta mão-de-obra abundante e quase exclusiva nas lavouras de café.
Houve uma nova organização social na província que com esta
atividade econômica surgiram novas divisões socais. Os estancieiros criadores
de gado passaram a dividir seu poder com os charqueadores, os produtores do
charque. As charqueadas proviram a inclusão do peão no trabalho sistemático
e, principalmente, incrementaram e introduziram uma grande quantidade de
mão-de-obra escrava, exclusiva para uma nova produção industrial sistêmica
que estava surgindo na província. Até então a mão de obra escrava coexistia
com o trabalho do peão nas estâncias ou no campo, mas somente com as
charqueadas é que ela vai desenvolver uma atividade semelhante à
encontrada em outras indústrias do centro do país, isto é, ser exclusiva e
indispensável para a produção de determinado produto.
Do fim do século XVIII até o início do século XIX, aproximadamente
entre 1780 e 1800, houve uma nova política de distribuição de sesmarias, que
buscava incrementar a produção do charque e aumentar a área povoada da
província, para garantir posse das terras fronteiriças ainda não demarcadas. O
alto lucro proveniente da pecuária e do charque proporcionou um maior
desenvolvimento de cidades e povoados, uma aproximação entre o campo e os
novos centros urbanos, novas vias de acesso e locomoção e um grande
aumento da população, principalmente escrava.
O charque rio-grandense sofria uma grande concorrência com os
produtores platinos. Nas províncias platinas, o charque gozava de todos os
incentivos necessários por ser o primeiro produto da economia do Vice
Reinado do Prata. Além disso, os saladeros levavam vantagem na produção,
pois trabalhavam sob o regime de mão-de-obra assalariada, proporcionando
uma produção melhor e mais lucrativa.
Porém, em 1810, com as guerras de independências da província
platinas os charqueadores rio-grandenses aproveitaram-se da desorganização
dos saladeros para ganhar mercado e prosperar. Em 1820, a coroa
portuguesa, sob o comando de Dom João VI, venceu o exército de Artigas e
anexou o território do Uruguai, com o nome de Província Cisplatina. Com isso,
os charqueadores rio-grandenses apropriaram-se do gado platino e
estabeleceram fortificadas estâncias e charqueadas em solo platino,
historicamente excelente na produção de gado.
Devemos lembrar aqui que, além da pecuária, a província desenvolveu a
produção agrônoma durante este período de ascensão, com a chegada dos
açorianos. Por volta de 1750, estes novos imigrantes iniciaram a produção de
trigo no sul e em 1780 o produto tornou-se a segunda economia do estado,
aparecendo expressivamente na exportação rio-randense, à frente de outras
economias como a erva-mate e o couro. Esta atividade chegou a proporcionar
riqueza para sua classe produtora, gerando assim um incremento de escravos
nas lavouras sulinas. Entretanto, a atividade sofreu com diversas dificuldades
apresentadas, desde a precariedade dos meios de produção, como a
inoperância de um estado dependente, amarrado a tratados comerciais
internacionais com nações produtoras de trigo e, por fim, uma peste que
destruiu os trigais no inicio do século XIX. Sendo assim, aqueles colonos que
acumularam alguma riqueza com a agricultura tritícula rumaram para a
atividade charqueadora, que no início do século XIX estava em franco
desenvolvimento.
Desta maneira, no início do século XIX, a Província de São Pedro do Rio
Grande do Sul teve a sua inserção e solidificação na economia nacional,
mesmo que subsidiária, mas não menos importante. Criou-se uma elite com
força econômica e poder militar capaz de reivindicar atenção e cuidados da
coroa e do poder central. Capaz também de demonstrar seu poder e seu valor
numa guerra civil de dez anos de duração. A partir desta breve revisão
histórica, podemos revisitar e concordar com a afirmação de Reverbel (1986,
p.15) quando diz que “o boi é, de certo modo (no sentido sociológico), pai do
gaúcho. A pecuária não foi à única fonte de renda do Rio Grande do Sul, mas
foi a única capaz de tornar a província interessante para os olhos econômicos
da coroa. Foi a pecuária a responsável pela inserção do Rio Grande na grande
nação brasileira, multifacetada e dividida, mas sempre unida por interesses
econômicos. Sem esta atividade, não teríamos a figura do gaúcho e sem
entender este processo econômico não seria possível dialogar sobre a sua
formação real e ideológica.
3 GAÚCHO, VISÕES DA HISTÓRIA
Compañeros de historia,
tomando en cuenta lo implacable
que debe ser la verdad, quisiera pregunta,
me urge tanto.
¿qué debiera decir, qué fronteras debo respetar?
¿Hasta donde debemos practicar las verdades?
¿Hasta donde sabemos?
Silvio Rodríguez
O gaúcho surgiu no pampa indiviso, sem fronteiras nacionais
demarcadas. A distinção de sua cultura e nacionalidade ocorreu devido à
influência do contato com núcleos urbanos que lhe eram vizinhos, e à sua
decorrente inserção nessa sociedade. Além de tais características de sua
formação social, existe uma que é responsável pelos significados que esse
personagem, o gaúcho, assumiu em diferentes períodos históricos: a produção
textual sobre ele. Nos discursos sobre o gaúcho ele é deslocado em relação ao
seu papel social quanto foram os pontos de vista e as vontades ideológicas dos
que escreveram sobre ele.
Neste capítulo, pretendemos demonstrar algumas visões da
historiografia com relação ao gaúcho e à história do Rio Grande do Sul,
destacando as ideologias que influenciaram a produção dos textos que os
caracterizavam nos diferentes períodos da história rio-grandense.
Acreditamos que, através de posicionamentos políticos e ideológicos,
temos significados distintos para o termo gaúcho. De acordo com a sua
inserção na sociedade no decorrer do tempo, gaúcho passou de bandido
marginal para significar nome gentil de identificação regional. Isso se deu
devido às alterações ideológicas das elites intelectuais responsáveis pela
produção das letras da província.
A alteração semântica da palavra “gaúcho” serve nesta análise como
base para entendemos o processo de criação da figura ideológica do gaúcho.
Assim, o texto de Augusto Meyer, Gaúcho, história de uma palavra, figura
como cerne desta pesquisa. Nessa obra o autor analisa, de forma hábil, a
mudança sofrida pela palavra gaúcho, demonstrando os diferentes significados
conferidos a ela em diferentes períodos históricos, desde sua origem pejorativa
até a atribuição de significado heróico de identificação regional.
É de 1774 o primeiro significado oficial do termo gaúcho: “ladrones de
lganado en la región fronteiriza con el Brasil”. Meyer retira essa definição da
obra de Ricardo Molaz, autor de Antiguidad y Significado Histórico de la
palabra Gaucho. Em 1787, aparece pela primeira vez em português a definição
de gaúcho, em nota explicativa no Diário Resumido, de José de Saldanha:
“Gauches, palavra Hespanhola uzada neste paiz para expressar aos
vagabundos, ou ladroens do campo, quais vaqueiros, costumados a matar os
touros chimarroens, a sacar-lhes o couro, e a leva-los ocultamente as
povoaçoens, para as venda ou troca por outros gêneros”. (SALDANHA apud
MEYER, 2002, p.24). Essa referência demonstra o significado primeiro da
palavra gaúcho. O sentido pejorativo do termo manteve-se inalterado até
meados do século XIX, tanto no lado platino como nas terras lusitanas. Os
viajantes que aqui passaram e deixaram a riqueza de seus relatos, fontes
primárias para o entendimento da formação deste tipo social, descreveram o
gaúcho como um ser involuído, bárbaro, não civilizado, corroborando com a
premissa de que o significado deste termo sofreu mudanças no decorrer da
história.
Não foi por simples capricho literário que a palavra gaúcho alterou o seu
sentido original, como afirmam diversos autores que discutiram esta questão,
inclusive Madaline W. Nichols. O texto literário reconduziu e legitimou a
alteração, mas houve também uma mudança prática no posicionamento do
gaúcho dentro da sociedade. Como afirma Meyer (2002, p.32), “havia, como
em tudo, um lado bom no ladrão e coureador do campo; a sua habilidade
campeira, além da aptidão para a guerra, virtudes, aliás, que foram exploradas
pelos representantes da lei”. Acrescentamos que essa alteração se deu
devido à crescente valorização social do gaúcho decorrente da necessidade do
emprego de suas habilidades militares e pastoris. A utilização deste nas
arreadas e contrabandos, atividades de enorme dificuldade, que necessitavam
de muita habilidade, foi empregada desde os primórdios da atividade pastoril
no pampa.
Para exemplificar não a mudança no entendimento de o que é o
gaúcho afinal?, mas também a alteração no seu posicionamento social,
apresentamos o testemunho de Hermman Burmeister, viajante alemão que
teve seu livro, Reise dursh die La Plata-Staaten, publicado em 1860:
Erro grave é considerar os Gaúchos como gente grosseira ou brutal,
ou, sem mais rodeios, como simples salteadores e bandidos; longe
disso, o que os caracteriza é principalmente uma viva suscetibilidade
e um inegável sentimento cavalheiresco, que logo os leva a ter em
conta de superior toda pessoa mais ilustrada, ou de mais alta
categoria social, que os tratar com deferência. Pelo contrário, a altivez
e grosseria provocam de sua parte uma repulsa imediata.
(BURMEISTER, apud MEYER, 2002, p.33-34).
Como podemos observar, estamos trabalhando aqui com uma idéia de
1860, período em que a camada gauchesca está em franca assimilação pela
sociedade pastoril. O gaúcho aqui sofreu a valorização pela sua campanha
na Guerra dos Farrapos e, com isso, a alteração do significado da sua
denominação. Tanto é que na descrição deste viajante o sentido primitivo de
gaúcho é amplamente criticado.
É claro que essa alteração não se deu de forma imediata ou por apenas
uma razão. Ela ocorreu como todo processo de transformação cultural, de
forma longa e gradativa, e foi resultado da mudança de uma organização
regional, no sentido social, político, econômico e cultural. Creditar essa
alteração a uma causa, como, por exemplo, a influência literária, é dar uma
resposta simplista para uma questão complexa. Conforme Meyer (op. cit.,
p.34), a mudança semântica ocorreu de forma oscilante, ora com valores de
simpatia, ora de repulsão, mas foram sendo agregado significados secundários
como: “vagabundo, mas valente nas guerrilhas; coureador por sua conta, mas
excelente campeiro; arisco, indócil, mas agradecido quando bem tratado... ”.
Assim, para podermos compreender quais foram os estágios dessas
alterações no significado do termo gaúcho, citamos Meyer (op. cit., p. 34-35,
grifos do autor) que constrói um quadro bastante elucidativo sobre a questão:
Logo de início, para os capitães-generais ou autoridades e primeiros
proprietários de terras ladrão, vagabundo, contrabandista,
coureador; para os capitães de milícias e comandantes de tropas
empenhados em guerras de fronteira bombeiro, chasque, vedeta,
isca para o inimigo, bom auxiliar para o municio e remonta; nas
guerras de independência do prata, ou nas campanhas do sul
lanceiro, miliciano; a contar certo momento histórico, no Rio Grande
do Sul, para o homem da cidade – o trabalhador rural, o homem afeito
ao serviço de pastoreio, o peão de estância, o agregado, o campeiro,
o habitante da campanha; na poesia popular, um sinônimo de bom
ginete, campeiro destro, com tendência para identificar-se com os
termos guasca, monarca; e finalmente, para todos nós, um nome
gentílico, a exemplo de carioca, barriga-verde, capichaba e fluminens.
Porém, mesmo com toda a mudança que sofre a significação da palavra
gaúcho, Meyer afirma que, na poesia de cunho farroupilha, ou mesmo na
poesia popular Rio Grandense, esta não pode ser encontrada nela, para referir-
se ao filho da campanha, era usado o termo monarca. A primeira vez que este
termo é usado com a conotação que tem hoje foi no romance de José de
Alencar, O Gaúcho. Esse texto utilizou a significação adjetiva de gaúcho para
denominar o seu protagonista, uma espécie de gaúcho modelo, idealizado pelo
seu autor, que este não conhecia a província e seus habitantes. Apura-se
que a crítica literária rio-grandense tenha desgostado dessa atitude, pois, logo
após, em texto semelhante, Apolinário Porto Alegre usou o termo vaqueano
para denominar o seu protagonista, sem aparecer nenhuma referência ao
termo gaúcho.
3.1 AS DEFINIÇÕES HISTORIOGRÁFICAS DO GAÚCHO
O aparecimento do gaúcho está vinculado à formação econômica do
pampa. Assim, não podemos pensar no gaúcho se não analisarmos sua
ligação com as características da produção pastoril e com a comercialização de
tal produção. A questão militar também deve ser acrescentada no discurso,
mesmo estando diretamente vinculada à formação do caráter bélico deste tipo,
enquanto a economia lhe deu a capacidade de se definir como grupo. Muitos
autores afirmam que o gaúcho originou-se de certa fusão de características da
região como: os campos sem dono, a abundância de rebanhos selvagens e o
poder econômico da pecuária. Meyer (op. cit., p.38) sintetiza esse pensamento
afirmando que “o gaúcho de vida solta, em sua disponibilidade marginal, era
resultante inevitável do ciclo vicioso configurado por: latifúndio, pastoreio
patriarcal, abundância de gado alçado, fronteira aberta”. Reverbel afirma, como
citado no capítulo anterior, que “o gado é o pai do gaúcho”, pai no sentido de
que a figura do gaúcho foi possível pela atividade pecuária original. César
(1979), também trata da vinculação do gaúcho com a atividade pastoril e deixa
clara a importância do gado para a formação da sociedade rio-grandense.
Nichols (1964) irá acrescentar que, além da produção pastoril, o latente
contrabando existente nessa atividade é o que criou a figura do gaúcho.
Embora os estudos indiquem que a origem do gaúcho deu-se de forma
semelhante em toda a extensão dos pampas da América do Sul, existiu por
parte dos escritores rio-grandenses uma divisão entre os gaúchos brasileiros,
habitantes dos pampas do Rio Grande do Sul, e os gauchos habitantes dos
pampas castelhanos. O grupo de escritores pertencente à corrente lusitana da
historiografia rio-grandense baseava-se na idéia de que a formação cultural e
étnica dos gaúchos resultava basicamente da descendência dos lusitanos,
representados pelos bandeirantes e militares brasileiros, e alguma
miscigenação, mas não majoritária, com a raça indígena que aqui vivia. Esses
“lusitanos” defendiam a exclusão das missões jesuíticas da historiografia
gaúcha, pois se tratava de um território espanhol dentro de terras lusitanas, e
com isso empenhavam-se em afirmar a não influência castelhana na formação
desta província. Isso lhes serviu para minimizar os fatos tidos como
degradantes, como as práticas de roubo de gado e contrabando, além das
características “bárbaras” da figura do gaúcho, e transportá-las para o gaucho
do outro lado da fronteira. Esta prática é claramente identificada na obra de seu
maior representante Moysés Vellinho, que dedicou-se a desenvolver a
diferenciação do Gaúcho Rio Grandense e o Gaúcho Platino
14
ao longo de toda
a sua reflexão sobre a história do Rio Grande do Sul.
Para exemplificar o discurso platino, fazemos uma breve análise de seu
grande expoente. Moysés Vellinho é um entusiasta com relação à colonização
portuguesa nesse estado. Suas idéias são compostas tão somente de elogios
aos lusitanos, acreditando que, no caso do Rio Grande do Sul, não poderia
haver estratégia melhor de povoamento e domínio, nem mesmo melhor
execução.
A divisão em sesmarias das áreas conquistadas impôs-se então
como uma providência imperiosa. Sua adoção descobre mesmo o
senso realístico da política colonial portuguêsa. Que outro regime se
poderia conciliar com a expansão do território, a escassez de
povoadores, a dispersão dos rebanhos, as necessidade da defesa?
Que destino teve, na emergência, o ensaio açoriano da pequena
agricultura? Seus filhos, ou eles mesmos, não se deixariam confinar
nas suas chácaras: vencidos pela sedução econômica do campo,
também eles acompanharam a nossa grande marcha para Oeste e
Sudoeste, sempre em busca de mais terras e mais gado. Do ponto de
vista social, econômico, político e militar, a propriedade latifundiária
preencheu um capítulo decisivo da nossa formação. (VELLINHO,
1964, p.39).
Vellinho credita a inexistência da miscigenação, ou a sua medíocre
influência na composição do Rio Grande do Sul, à eficaz política de ocupação
desempenhada pela coroa portuguesa. Embora em um primeiro contato possa
ter tido alguma aproximação do branco com as índias locais, a eficácia da
disciplina social lusitana e do assentamento via sesmarias, propiciou a
constituição de famílias entre os estancieiros, impedindo assim a miscigenação
livre no campo, como no caso platino.
A obediência militar e social do povoador português e a sua organização
territorial não permitiram que se desenvolvesse no Rio Grande a situação de
“desordem” que ele verificou no espaço platino. Para Vellinho, as práticas de
caudilhismo e bandoleirismo foram características dos gaúchos além fronteira
brasileira. O gaúcho que ele traça como sendo nosso se confunde muito com a
figura do estancieiro luso-brasileiro. Ao interpretar suas idéias podemos notar
que a presença tanto do gaúcho como do índio, se deu por incorporação ao
14
Título de um capítulo seu no livro Fundamentos da cultura rio grandense, organizado e
publicado pela Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul, em 1954.
trabalho na estância, como se não houvesse marginais nesta província.
Somente o descendente luso-brasileiro é considerado o elemento povoador,
sendo os demais excluídos do discurso. Segundo Vellinho, o elemento
indígena não compôs a cultura rio-grandense por não se fazer presente ou
atuante no momento da colonização. Os motivos são os mais diversos: pouca
densidade demográfica nativa; a boa índole do índio rio-grandense que
propiciou uma melhor integração com o elemento colonizador; o magnetismo
platino que arrecadou, “pela impunidade e pelos engodos da demagogia
caudilhesca”, o indígena que não se adaptou as regras rígidas do colonizador;
além de diversos outros fatores que diminuíram a importância do índio na
nossa colonização, como a fome, as epidemias, as guerras entre tribos, a
dispersão das missões, etc.
O mesmo acontece com o gaúcho original, cuja descrição como sendo
um indivíduo marginal está presente em muitos estudos citados por Vellinho,
para quem este gaúcho, o qual define como “peste de gente”, não teve espaço
nas terras colonizadas por luso-brasileiros. O roubo de gado, a miscigenação, a
desobediência às leis, a ilegalidade do trabalho, o contrabando e todos os
outros deméritos, não fazem parte da descrição do gaúcho brasileiro ou pelo
menos não fazem parte do discurso legitimador do autor. Transparece no texto
que a influência cultural, ou seja, as práticas culturais que os estancieiros
herdaram do gaúcho e do índio chimarrão, vestuário, manejo com o gado, as
armas, a montaria eqüestre foram incorporadas e encontram-se exaltadas no
discurso, causando assim uma discrepância nas afirmações. No entanto,
podemos analisar que o gaúcho existiu sim aqui no Rio Grande do Sul, mas
existiu de acordo com a vontade do discurso do autor e sua ideologia. Existiu
como peão empregado na estância, como bom soldado, como colega de
trabalho de seu patrão, mas não no sentido original do “ser gaúcho”, que foi
retratado como propriedade exclusiva dos portenhos. Numa comparação o
autor assim coloca:
O pampa, que tudo absorvia e escondia na sua imensidade, foi o
grande aliado, cúmplice das turbas gauchescas que tanto
tumultuaram as províncias do Prata. Fora da lei, infensos ao
espanhol, inimigos dos núcleos de civilização representados pela
cidade, incompatíveis com quaisquer formas de civilização, os párias
do campo se acoitavam no deserto, e ali, à prova de surprêsas, livres
de repressão policial, tornavam-se invioláveis na sua agressividade.
(VELLINHO, op. cit., p. 41).
Afirma assim, que a ingerência por parte dos espanhóis, em relação ao
problema com o marginal do campo, gerou a figura que os ameaçava. Em
oposição a isso, a eficiência administrativa da coroa portuguesa conseguiu
evitar que essa classe se desenvolvesse e que os que aqui ficaram fosse
influenciados pelos costumes e boas maneiras das forças civilizadoras:
Do lado luso-brasileiro, porém, foi justamente no campo, cenário de
nossas lides guerreiras e pastoris, que se ergueu o tipo social cuja
idealização se projetou no tempo, carregando consigo os estímulos
morais e emocionais de que se nutre o Rio Grande como unidade
histórico-sociológica, e que, através de gerações, o confirmaram na
identidade de si mesmo. (ibid, ibidem).
Por outro lado, a matriz platina vinculava grande influência castelhana na
formação cultural do Rio Grande do Sul, não definindo, assim, uma grande
separação entre gaúchos e gauchos. A questão da fronteira aberta é a principal
justificativa para o encontro dessas civilizações, sendo que Alfredo Varella foi o
maior expoente dessa vertente. O autor destaca-se pela sua intensa produção
e pelas afirmações de que o pampa era uma unidade, onde o gaúcho, tanto
uruguaio, argentino ou brasileiro, habitava com grandes semelhanças culturais.
Embora essas matrizes se dividissem com relação à influência lusitana
ou platina, durante todo o período de produção, insuflado pela criação do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS), as duas linhas
aproximaram-se em dois aspectos: no desejo de definir a natureza e as origens
da sociedade rio grandense; e na defesa de uma história político-ideológica de
alto teor nacionalista. (GUTFREIND, 1992, p.25)
O gaúcho surgiu nas terras costeiras do rio da prata. Foi em Buenos
Aires, por volta de 1530, que começou a ocorreu mais tarde, sob influência dos
mesmos fatores, terras e gado sem dono. Assim, o gaúcho rio-grandense é
uma espécie de derivado do gaucho platino. O tipo surgiu na Argentina, porém
se espalhou pelo pampa formando três tipos de gaúcho, com características
individuais: o original argentino, o uruguaio e o rio-grandense. Porém, devido a
sua origem única, seus traços originais são basicamente os mesmos. Embora
haja diferenciação entre eles, devido às peculiaridades locais, o tipo social
gaúcho partilha de traços comuns e fundamentais como:
O cavalo e o boi, condicionando a civilização gauchesca; a carne
assada e o mate amargo, constituindo a base alimentar do gaúcho; o
couro e o sebo, representando o início de suas atividades
econômicas; o contrabando, significando suas primeiras trocas
comerciais vantajosas. (REVERBEL, 1986, p. 69)
As atividades pastoris, o gado alçado e o contrabando, além de servirem
como cenário para a disseminação do gaúcho em ambas as raias da fronteira,
foram também atividades que proporcionaram o encontro dessas culturas no
campo. Era muito comum a transgressão da fronteira para arrebanhar gado,
estabelecer fazenda, praticar o contrabando, tanto na venda de seus produtos
específicos, como na compra de bens estrangeiros. Devido a isso, acreditamos
que o gaúcho, antes de pertencer a uma ou outra identidade nacional, tem sua
identificação no pampa ao qual habita. Sua origem é semelhante em toda a
extensão do pampa e, desta forma, constitui-se dele, vive nele e relaciona-se
com ele. Porém, o podemos afirmar que o gaúcho rio-grandense é
exatamente igual ao um gaucho argentino. As especificações existem em todas
as outras culturas e sendo toda cultura uma cultura de fronteira, a sua
delimitação está de acordo com os seus contatos. A história da cultura é uma
história de contatos. Todas têm suas fronteiras e o influenciadas pela troca
que esse espaço proporciona. Assim, mesmo tendo origem, aspectos e
práticas semelhantes, cada cultura é única e, ao mesmo tempo, influenciada
por suas fronteiras.
O contrabando era alimentado pelo conflito de interesses entre a coroa e
os comerciantes da colônia, principalmente no caso espanhol. Aproveitando-se
do monopólio instaurado pela metrópole, os comerciantes ingleses,
holandeses, franceses e portugueses injetavam pela banda oriental produtos
de necessidade dos comerciantes de Buenos Aires, por um preço muito menor
do que o praticado pelo comércio legal do monopólio, e assim conseguiam
adquirir o couro, os derivados do gado, e a prata espanhola sem os impostos
exigidos pela metrópole castelhana.
Segundo Capistrano, em sua obra Capítulos de História Colonial,
publicada em 1907, ao falar de Colônia do Sacramento, afirma que: “este
ninho, antes de contrabandistas que de soldados, foi talvez o berço de uma
prole sinistra, os gaúchos ou gaudérios, originários da margem esquerda do
Prata, famosos durante décadas e ainda não assimilados de todo à
civilização”. Capistrano enfatiza a função contrabandista do território de
Sacramento e por conseqüência, a definição daqueles que ali viviam ou,
através da atividade tropeira, a abasteciam. Mesmo em 1907, o autor afirma
que o gaúcho “ainda não fora assimilado de todo à civilização” (ABREU apud
MEYER, 2002, p.28).
A escravidão ajudou a manter a classe gaúcha na ilegalidade. Conforme
Meyer (2002, p.26), com o advento da escravidão, o estancieiro dispensou o
peão assalariado, devido ao baixo custo da mão-de-obra cativa. Assim “o peão
pobre, o proletário rural aprendia portanto bem cedo esta dura experiência: de
nada servia a aptidão para o trabalho”. O campo chamava-lhe para o
contrabando.
O gaúcho tem sua origem nesse complexo cultural formado pelo cavalo,
o gado alçado, a valorização do couro e fronteiras abertas, movendo-se para
e para cá. O território é disputado por duas coroas em franca decadência, sem
força nem estratégia adequada para o povoamento das terras, onde as
sesmarias iam transformando o pampa em um “deserto povoado”, como afirma
Brigadeiro Róscio (1942, p.29). A escravidão auxiliava na exclusão social do
paisano, uma vez que seu trabalho não é aproveitado na estância e na
charqueada devido aos baixos custos da mão-de-obra cativa, forçado o
deslocamento do gaúcho livre para o atrativo comércio ilegal. Dessa forma, o
gaúcho se insere na sociedade, ou nas margens dela, recebendo assim, por
sua função social, os significados pejorativos já referidos anteriormente.
Nichols (1946) analisa que o couro foi a principal atividade econômica
das províncias do Prata nos anos de colonização. Os colonos produtores,
sendo vítimas de imensos tributos comerciais impostos pela coroa espanhola,
burlaram o monopólio e deram partida ao contrabando. Negociantes europeus
aproveitaram-se dessa conjuntura para também obterem lucro no comércio de
couros. Assim, uma classe de caçadores ilegais de couro surgiu para atender
essa demanda comercial estrangeira, e esses ilegais ficaram conhecidos como
gaúchos.
Os gaúchos assemelhavam-se aos vaqueiros, que sua atividade
também consistia na caça e na transformação do boi em couro. A diferenciação
é conceitual. Os vaqueiros eram empregados de estâncias produtoras de
artigos de couro e derivados, que trabalhavam de acordo com as regras
comerciais impostas pela metrópole. O vaqueiro era, ao contrário do gaúcho, o
caçador de gado legal. Para driblar as barreiras comerciais e buscar o lucro
através do contrabando, os comerciantes locais incentivavam a atividade ilegal
dos gaúchos fomentando assim o crescimento da “gauchada”, tornando todo o
marginal habitante dos campos da Prata em um gaúcho em potencial.
Ao considerar que a existência da classe social dos gaúchos deu-se
somente no período que o comércio ilegal de couro teve seu pico de
abundância, Nichols acrescenta que esta classe coexistiu à sociedade platina
durante um curto espaço de tempo, de 1775 a 1875, sendo anexada após o fim
de sua atividade. Acrescenta também que desde que existiu um caçador ilegal
de couros percorrendo a campanha, existiu o gaúcho, mas que a classe
surgiu quando um grupo de homens, relativamente grande e característico,
envolveu-se no trabalho ilegal.
O aumento da produção pastoril no pampa gerou a necessidade de
sistematização do trabalho, em busca de maior lucratividade. As estâncias
empenharam-se na criação de gado em campos cercados, enquanto as
charqueadas organizaram a sua produção em moldes industriais. Essas
alterações no campo atingiram diretamente a atividade do gaúcho nômade,
pois com o cercamento dos campos e a escassez do gado chimarrão, a sua
prática irregular não teve mais espaço. Assim, o gaúcho se fez peão. Com o
fim da antiga prática o gaúcho viu-se obrigado a buscar um meio de
subsistência regular. Devido à sua habilidade pastoril, sua inserção na fazenda
foi imediata, e de posteiro apalavrado, tornou-se agregado.
O gaúcho, ao tornar-se peão, aproximou-se da sociedade rio-grandense,
agora como empregado e, conforme o pensamento da época, civilizado.
Deixando para traz a ilegalidade de sua atividade, passou a ser aceito pela
sociedade que antes o discriminava. Assim, com essa mudança, o sentido da
palavra gaúcho ganhou uma nova roupagem. O gaúcho tornou-se peão e o
peão herdou o nome de gaúcho. Houve assim uma troca, ou melhor, um
compartilhamento de significados. O gaúcho ganha o respeito que gozava o
peão, enquanto o peão herda as qualidades e a denominação do gaúcho.
Sergius Gonzaga (1980, p.115) destaca dois caminhos para os gaúchos
pós cercamento dos campos: 1) seriam absorvidos, convertendo-se em peões
ocasionais ou permanentes, de acordo com a necessidade da estância. 2)
usou-se o gaúcho como “bucha de canhão”. Esta citação, apesar de longa,
exemplifica os dois pontos:
As várias guerras vividas na província exigiam um número expressivo
de soldados, suficientemente pobres e corajosos para arriscar a sua
vida pela mística do heroísmo e pelo saque nem sempre
compensatório. No Rio Grande não se chegou ao extremo do caso
argentino, onde os gaudérios eram recrutados sistematicamente e
sob a terrível aparelhagem repressiva para enfrentarem os índios
ainda em pampa aberto. Embora sem descartar o emprego da
violência, nossa burguesia rural permitiu-se a formas menos ásperas
de recrutamento, dentro de certa astúcia ideológica que consistia em
convocar os homens do campo via reprodução de lugares comuns
machistas e ufanistas. Essa relativa “suavização” (se comparada com
a brutalidade platina) deveu-se a dois fatores primordiais:
1) A terra propícia ao pastoreio havia sido conquistada pelos
terratenentes, através do desalojamento forçado dos nativos. A
defesa armada se dava então somente à manutenção dos domínios e
não para a expansão de território. Claro que nos casos de
enfrentamentos internacionais ou graves embates internos, a
convocação militar era sistemática e implacável.
2) O número de vagos era quase insignificante por causa da
colonização tardia da província. Logo, a ameaça desses elementos
marginais tornava-se bem menor do que na vizinhança platina, onde
as invasões de fazendas e preia de gado obrigaram o estado a
exterminar os gaúchos.
Por fim, cabia ao estado encarregar-se daqueles que não se encaixavam
nas novas divisões de trabalho e continuavam na vida errante. A partir deste
momento eles passaram a ser malfeitores, inimigos da ordem, e precisavam
ser exterminados em nome da propriedade privada e do capitalismo
latifundiário. (GONZAGA, 1980, p.116).
As alterações econômicas e a regularização da atividade pecuária nos
campos platinos, com o processo de industrialização e o cercamento dos
campos, ocasionaram a extinção do contrabando, forçando o gaúcho a se
sedentarizar, deixando assim de existir nos moldes que o caracterizaram. Ele
foi forçado a abandonar a vida independente de vagabundo, fazendo-se
empregado em qualquer estância. Dentro dessa nova vida de obediência e
trabalho legal, o então gaúcho limitou-se ao negócio de gado que lhe era
familiar ou, ao tentar integrar-se no meio urbano, tornou-se um habitante
marginal da cidade.
Devido a essas características de marginal, agora urbano, “su ética de
hombre que está solo y que nada espera de nadie” e seus hábitos culturais,
como o apreço pela música e pela dança, transformaram muitos gaúchos, que
saíram dos campos para habitar Buenos Aires, na figura típica da capital
portenha, El Compadrito. Essa idéia provém de um livro fundador organizado
por Jorge Luis Borges e Silvina Bullrich, “El Compadrito. Su destino, sus
barrios, su música”, onde os autores buscam introduzir os estudos de formação
desse tipo e a construção de sua ideologia através de análises de letras de
tangos, literatura, teatro e outras manifestações culturais. No prefácio dessa
obra Borges compara esta figura à do gaúcho, desde as suas características
de marginal até a criação de sua ideologia, deixando claro que também na
Argentina e no Uruguai o sentido do vocábulo “gaúcho” sofrera uma
transformação social-ideológica através da construção literária, fazendo com
que palavra tivesse uma alteração semântica, com a mudança de sentido
pejorativo à adjetivo qualitativo. Assim analisa que:
La creación de arquétipos que exaltan y simplificam la suma de las
cosas concretas es un hábito, acaso inevitable, de nuestra mente.
Buenos Aires, apoyada con fervor por Montevideo, sigue
proponiéndonos dos: el gaucho y el compadre. Como los congéneres
boor y clown en inglés y rustre en francés, la palabra gaucho tuvo un
sentido peyorativo; ahora, por obra de hacendados poetas José
Hernádez Pueyrredón, Rafael Obligado y Ricardo Güiraldes y de
cierta superstición demagógica, un sentido reverencial. El compadrito
puede tener análogo destino. Curiosamente, ya hay quienes lo
estrañamos; ya, como el gaucho, es un tema de nostalgia. De paso
recordemos que el compadrito se v a si mismo como gaucho; el
circo de Podestá y las entregas azarosas de Eduardo Gutiérrez
fueron sus libros de caballería. Bien es verdad que un cuarteador, un
carrero o un matarife, no diferían demasiado de un peón. Compartían,
por lo demás, el hábito de los animales y del cuchillo. El campo
entraba en la ciudad. (BORGES, 2000, p.07).
Diferentes posicionamentos criaram diferentes caracterizações para o
“personagem” gaúcho. O deslocamento constatado nos diferentes discursos
segue de acordo com as influências sociais, posicionamentos políticos e
necessidades ideológicas de cada autor. A análise desses pontos de vista nos
permite identificar como cada autor trabalhou a sua construção e, desta forma,
constatar como o personagem gaúcho sofreu tamanho deslocamento.
A socióloga norte americana Madaline Wallis Nichols é constantemente
lembrada por grandes historiadores e pensadores do Rio Grande do Sul, por
ter desenvolvido um trabalho minucioso sobre a formação do gaúcho platino
em seu livro O Gaúcho: caçador de gado cavaleiro ideal de romance.
Autores como Carlos Reverbel e Augusto Meyer acreditam que muito além da
importância de sua obra, está a contribuição para a bibliografia do assunto. Em
seu livro consta nem mais nem menos que 1431 referências completas de
obras que de alguma forma trabalham com o gaúcho, sendo que a grande
maioria das citações encontra-se acompanhada de pareceres analíticos da
autora. Ao analisar a importância do levantamento bibliográfico para
historiografia do gaúcho, Revebel afirma que o livro “saíra excelente, passando
a ocupar, desde logo, lugar destacado entre os ensaios fundamentais sobre a
matéria” (REVERBEL, 1986, p.67).
Nesta obra, a autora objetiva desconstruir a imagem que o gaúcho
herdou da literatura romanesca platina, sendo esta a ideologia do grande
cavaleiro, amante afortunado, de caráter nobre e justo, enfim, a imagem do
gaúcho herói criada nos romances. Para isso busca definir o seu “real gaúcho”
através de um levantamento historiográfico e sociológico baseada nas
descrições primitivas do gaúcho. Sua matéria de pesquisa constitui-se,
basicamente, em relatos dos viajantes europeus que visitaram e produziram
sobre as realidades encontradas no pampa gaúcho, além de relatos oficiais de
militares povoadores da região, representando a classe dominante do período
inicial da colonização do pampa. Vale lembrar que, ao trabalhar com estas
fontes, a autora teve acesso somente a uma visão do gaúcho em sua função
primitiva, em sua descrição original de marginal dos pampas. Aponta em seu
trabalho que a melhor maneira de se conseguir um retrato do verdadeiro
gaúcho é recorrer às descrições dos viajantes, pois “um estrangeiro estaria em
melhores condições para anotar a aparência e os modos de uma classe à parte
da sociedade do que poderia fazer um familiar desapercebido”
15
. Ao se opor à
imagem idealizada, a autora acaba por desmoralizar essa figura, trazendo à
tona apenas as descrições pejorativas. Sua visão é de estranhamento e
preconceito à cultura gauchesca. na abertura de seu capítulo “Quem era o
gaúcho?” a autora posiciona-se com relação ao seu entendimento da pergunta:
Ele (o gaúcho) era, fundamentalmente, um colono contrabandista cujo
negócio era o comércio de couros de gado. Seu trabalho era
grandemente ilegal; seu caráter lamentavelmente repreensível; sua
posição social à margem da lei. (NICHOLS, 1946, p.27)
De acordo com a sua afirmação, e para corroborá-las, a autora esforçou-
se em trazer para o seu texto diversas descrições feitas pelos viajantes,
referentes aos hábitos dos gaúchos:
Esse homens não deixam de espantar quem não esteja habituado a
vê-los. Estão sempre sujos; suas barbas sempre por fazer; andam
descalços, e mesmo sem calças sob a completa cobertura do poncho.
Por seus costumes, maneiras e roupas, conhecem-se os seu hábitos;
sem sensibilidade e sem religião. (LASTARRIA apud NICHOLS, 1946,
p.31).
Certamente que os hábitos gaudérios em comparação com a moral
européia poderiam causar grande espanto a quem não os conhecessem. O
autor, assim, destaca algumas características que os configurem como
selvagens aos olhos “civilizados”: ausência de religião, precariedade na
aparência (roupas, nudez e barba por fazer), hostilidade nos tratos sociais.
Félix de Azara define o gaúcho das regiões de Montevidéu e Maldonado
como “criminosos fugidos dos cárceres da Espanha e do Brasil”. Os descreve
com repulsa, colocando que “sua nudez, suas barbas crescidas, seu cabelo
despenteado, sua sujeira e a brutalidade de sua aparência, o tornam horríveis
de ver”. O viajante irá ressaltar ainda que “por nenhum motivo ou interesse
querem eles trabalhar para alguém, e além de serem ladrões, também raptam
mulheres [...] e vivem com ela em choças”. Acrescenta ainda no seu
15
Em relação a esta questão, nos oponhos no sentido de que qualquer ponto de vista está à
mercê da subjetividade do autor, que tende a comparar as características culturais do povo
estudado com a sua própria cultura, influenciando assim no posicionamento do seu discurso.
Assim, acreditamos que a descrição da sociedade gauchesca por via de um estrangeiro é tão
vitimada de sua percepção do mundo como de qualquer outro, inclusive a de um gaúcho que
descreve a si e seus pares.
depoimento a facilidade de viver no campo afirmando que “quando o gaúcho
tem qualquer necessidade ou capricho a satisfazer, furta alguns cavalos e
vacas, levando-os para o Brasil, onde os vendem e onde adquire tudo o que
lhe for preciso”, ressaltando assim a questão de roubo de gado e contrabando
internacional. (AZARA apud NICHOLS, 1946, p.30).
Em geral, os viajantes concordam em apresentar o gaúcho como
homens sem lei e nem rei, sem moral e não conhecedores dos costumes
civilizados. Porém, para melhor interpretá-los, devemos retomar a consciência
histórica do período, com todo o conjunto de fatores característicos da época,
como a baixa influência da cultura urbana no campo, na fase de conquista e
povoamento da terra; a fronteira aberta, constantemente deslocada por forças
militares irregulares, mercenárias; a abundância de gado chimarrão garantindo
a vida no campo através de uma fácil adaptação.
Em relação à sua condição de classe social, Nichols nos traz a definição
de Costa Álvares, que assim o descreve:
O que distinguia o gaúcho, que fez necessário criar um nome para ele
não foi a sua constituição física mas sua forma peculiar de viver, sua
condição social na sociedade como vagabundo à margem da lei. Uma
específica condição social é aquilo que a palavra gaúcho expressou
durante toda existência do tipo. Nada de racial nessa palavra;
coisa algum de étnico. (ÁLVARES apud NICHOLS, 1946, p.43).
A simples mestiçagem não produzia um gaúcho, e este não era
unicamente mestiço. A definição de gaúcho vem não de sua origem étnica,
mas de suas práticas culturais. Para Nichols, os mestiços que “se conduziam
com respeito, obedientes à lei” e que viviam nas fazendas do interior como
vaqueiros e peões, e mesmo os paisanos ou os que habitavam as cidades,
esses não poderiam ser chamados de gaúchos. Para ser gaúcho era preciso
ser fora da lei, contrabandista, marginal e vagabundo.
Em algumas passagens do seu texto, fica clara a necessidade que a
autora tinha de aproximar o gaúcho a descrições de atos de barbárie, para
poder legitimar o seu discurso desmitificador. Segue um exemplo:
Os gaúchos podiam, na verdade, ser hospitaleiro, dispostos a dar
alimento e abrigo a qualquer fortuito viajante, em regra não sabendo
quem fosse ele ou para onde ia ou porque. Eles podiam, em verdade,
ser pessoalmente corajosos e estóicos para suportar a dor ou os
sofrimentos. Mas um sincero desagrado em caminhar tinha-os
induzido a lamentável inclinação para furtar cavalos e à crueldade de
suas ocupações diárias teve um efeito geral sobre a sua natureza.
Ocupando-se, desde a infância, em degolar animais, não hesitavam
em fazer o mesmo aos homens, e isso friamente e sem paixão. Eles
dão pouco valor à vida e ainda menos se incomodam com a morte.
(NICHOLS, 1946, p.40)
Existe nesse trecho uma característica bastante clara com relação à
construção da imagem do gaúcho que se pretende. No decorrer do trabalho, a
autora buscou desconstruir o mito do gaúcho herói que se criou através da
literatura. Essa desconstrução deu-se através de um processo de depreciação
da imagem do gaúcho, com base nos primeiros relatos sobre este tipo social,
buscando aproximar este à imagem de vagabundo e marginal. Mas ao
perseguir esta definição a autora acabou por criar uma nova imagem
ideológica, diretamente influenciada por sua vontade unilateral de
desmitificação. Desconstruindo o mito do gaúcho herói, autora acabou criando,
através de uma definição subjetiva e ideológica, uma nova imagem mitológica
do gaúcho, o gaúcho marginal.
A autora não i tratar com a hipótese que o gaúcho era fruto de uma
exclusão social. Que a manutenção da sua função era importante para o
desenvolvimento da pecuária e do incremento dos exércitos irregulares,
principal força na definição das fronteiras. Seu ponto de vista, muitas vezes,
equipara-se ao dos proprietários de terra e gado, os fazendeiros regulares do
século XVIII, para os quais os gaúchos eram seres desprezíveis e que
serviam em casos de trabalhos de caráter ilegal, ocultando a sua função
necessária para a sociedade do período como mercenários, no roubo de
gado, defesa de território e contrabando de mercadoria. Não podemos
esquecer que o gaúcho foi também um tipo alimentado por essa classe que o
excluiu. Sua função foi estratégica na formação da sociedade dos campos
sulinos.
O escritor rio-grandense Múcio Teixeira, representante da matriz lusitana
da historiografia sulina, descreve a sua visão de gaúcho partindo de fontes
semelhantes às usadas pela socióloga norte-americana, porém, como
veremos, ao seguir o seu posicionamento ideológico acaba por construir uma
imagem completamente oposta de um mesmo gaúcho.
Teixeira inicia seu livro Os Gaúchos (1920), com a afirmação de que “o
gaúcho é o typo mais notável do Brasil”. Desta forma define na abertura do
texto o seu posicionamento com relação à figura de gaúcho que irá construir
em sua análise. O autor segue com um discurso de elogio ao gaúcho,
afirmando que se trata esse de um “typo verdadeiramente superior”, definindo-
o como “alto, reforçado, sadio, intelligente, desembaraçado, ágil, audaz,
valente, franco e generoso”. Acreditando ser esta uma cultura superior às
demais encontradas no Brasil, seu livro coloca-se como um grande enaltecedor
da figura do gaúcho, sempre escrito com letra maiúscula. A construção do seu
elogio ao gaúcho está colocada de acordo com a ideologia do período em que
escreveu a sua obra, definido por Deyse Albeche Lange como período do
discurso republicano de orientação positivista, período no qual, segundo a
autora, a necessidade de legitimação de um poder gerou um esforço político de
criação ideológica, através da produção histórica e literária. Complementado a
análise de Lange, podemos citar Ieda Gutfreind, quando afirma que através da
leitura das obras do fim do século XIX e início do século XX, é possível
“concluir que a história foi usada para fins político-ideológicos imediatos: a
propaganda republicana”. (GUTFEIND, 1992, p.17).
Teixeira cultua esta criação ideológica de um gaúcho superior no
decorrer da obra e a toma como fator identificador de todos os habitantes do
estado. E é dessa forma que ele busca apresentar aos leitores estrangeiros,
não rio-grandenses, a cultura de seu estado e, principalmente, o seu herói
local, o gaúcho. Essa técnica de apresentação elogiosa pode ser identificada
em diversos pontos do livro, pela maneira em que o autor explica as práticas
culturais e utilizações de alguns termos regionais, sempre complementadas
com um deleitoso elogio, para melhor entendimento do leitor estrangeiro. Com
relação a essa questão, Gutfreind analisa que, no início do século XX a história
do Rio Grande do Sul ainda estava por ser escrita e que a necessidade
ideológica e política de se apresentar o estado para os demais da nação, como
uma “sistematização de um discurso no campo do imaginário, capaz de
identificar e caracterizar o estado sulino”, tornou imperiosa a elaboração de
trabalhos históricos. Dessa forma a autora afirma:
Como ocorreu no final do séc. XIX, uma vez mais a História estava a
serviço da política de uma forma direta e imediata. O nacionalismo
ascendente e o esforço de grupos políticos gaúchos em se lançarem
à liderança nacional tomaram a História como escudo e bandeira de
batalha. A ciência, que diziam sagrada, tornou-se profana, parcial,
mostrando-se impregnada de desígnios políticos. Os discursos
revelaram a aparência que os historiadores desejavam lhe dar. A
prática de sua construção comprovou a sua utilização a serviço de um
programa político, econômico-social. (GUTFREIND, 1992, p.24).
Parte importante na análise da criação ideológica desse texto está na
insistência do autor em instigar escritores a segui-lo ideologicamente. na
introdução, ao constatar que o tipo gaúcho está em extinção na sociedade rio-
grandense do século XX, o autor afirma que é imediata a necessidade de se
produzir sobre o gaúcho, em razão de valorizar a sua memória, para que se
possa seguir o seu legado de moral e valentia. Assim, conclama todos os
escritores do estado, conferindo-lhes a obrigação de utilizarem como matéria-
prima de seus poemas o exemplo cultural dos gaúchos.
Este texto trata-se de um claro exemplo de alteração de significado na
definição de o que é um gaúcho, culminando assim na criação ideológica desse
personagem deformado e alterado. O autor, embutido em seu tempo
cronológico e, assim, na ideologia de sua realidade, traça um perfil idealizado
de um personagem antes subjugado pela sociedade. Tratando-se do mesmo
tipo, das mesmas práticas e dos mesmos exemplos elaborados por outros
autores, como Madaline Nichols, por exemplo, temos aqui um diferente
enfoque, engajado em ver apenas as características que possam lhe interessar
como parte de uma criação mitificadora. Com esse enfoque, busca-se desatar
as antigas definições pejorativas desse renovado personagem, para assim
poder-se criar uma imagem condizente com a ideologia cultural desejada no
contexto que a obra é produzida.
Segundo Gutfreind (1992), os historiadores do início do século XX
manipularam as fontes, buscando nelas apenas o que lhes fosse útil para
construir a história rio-grandense de acordo com o seu posicionamento
ideológico. Seus exemplos partem da análise feita pelos historiadores da obra
do viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, texto largamente utilizado. Porém,
nem todos os dados fornecidos pelo viajante foram aceitos ou reproduzidos
pela historiografia rio-grandense. Dessa forma, Gutfreind (op. cit., p.16) afirma:
Por exemplo, os hábitos carnívoros dos habitantes da capitania, que
os tornavam cruéis e sanguinários, na opinião do observador, não
foram aceitos pelos historiadores rio grandenses em geral. A matriz
lusa, a propósito, “esqueceu” as referências feitas pelo francês sobre
as trocas comerciais com a região platina. Também foi “esquecido”
que, em determinados conflitos, os agressores aos espanhóis foram
os portugueses, que costumavam levar das estâncias invadidas
grandes quantidades de gado bovino.
A corrente ideológica criada pela historiografia do início do século XX,
defendida nos âmbitos políticos e sociais no decorrer deste século, serviu para
a “criação da imagem de um Rio Grande do Sul brasileiro, forte, pujante, com
líderes capazes de estarem a frente do poder nacional” (falta citação). A
ascensão política de Getúlio Vargas na revolução de 30, conseqüentemente
uma ascensão rio-grandense ao poder, justificou os esforços que os
construtores da história idealizada do Rio Grande empenharam-se durante todo
o início do século XX, e principalmente a partir da criação do IHGRS na década
de 20. A história escrita nesse período passou a figurar com status de “história
oficial do Rio Grande do Sul”, não somente para os pensadores rio-
grandenses, agora gaúchos, mas para todos pensadores da nação brasileira.
Temos como exemplo a obra de Roger Bastide, sociólogo francês, que
ao escrever sobre o Rio Grande do Sul tomou como base concepções da
historiografia “oficial”, repleta de criações mítico-ideológicas centauro dos
pampas, democracia nas estâncias, pouca ocorrência de escravidão, bons
tratos com os escravos, transformação do gaúcho em herói. Analisando suas
fontes, podemos entender como seu livro, que foi escrito na década de 50,
possui um discurso bastante semelhante com as obras escritas na província no
inicio do século XX.
Bastide define a civilização do sul como a “civilização do cavalo”. Na sua
recapitulação temporal da utilização do cavalo nas províncias do sul, o autor
traz como primeiro “centauro” o indígena, em específico a tribo dos Guaicurus,
que domesticou os rebanhos selvagens e utilizou-os como arma para capturar
e escravizar outras tribos pacíficas. Seguindo a cronologia, Bastide afirma que,
“o paulista, descendo do altiplano, foi o segundo a encontrar as manadas em
liberdade. Deu lugar a outro centauro da região, o gaúcho. O centauro branco
surge após o centauro bronzeado”. (BASTIDE, 1978, p.174). Além dos
paulistas, que quando se fixaram ao solo tornam-se um clã de criadores, neste
momento houve também o negro.
Ao inserir a escravidão no seu texto, Bastide tende a dirigir o seu
discurso para um possível “abrandamento” da escravidão nas terras do Rio
Grande.
No RS, o cavalo tornou-se, para o negro, o meio de igualar-se ao
branco; firmado nos estribos da montaria que empina [o cavalo
empinado é o símbolo da vitória], deixa de ser o homem preso a terra,
sempre curvado sobre a enxada [...] Ei-lo que se torna um ser alado,
levado pelo galope do corcel, não mais sentindo a terra à qual
estivera colado [..] Pode ser escravo; porém leva exatamente a vida
do senhor; e o espaço infinito que vence lhe ilusão de liberdade.
Não sente os limites que o cercam, muros de senzala, chicote de
couro do feitor, cadeias que prendes os pés. Pode até concorrer com
o branco nas corridas de cavalos e vencê-los em velocidade. E se a
tristeza é muita, [...] encontra uma compensação natural na
cavalgada, fazendo sentir ao animal que seu cavaleiro é superior;
esta superioridade consola-o aos próprios olhos, e talvez também o
eleve de sua baixa condição aos olhos do branco. (op. cit., p.175).
Apesar do lirismo que apresenta em suas colocações, não podemos
afirmar que a idéia de Bastide esteja equivocada. Se compararmos a situação
do escravo nos diferentes pontos do Brasil ou mesmo dentro do Rio Grande do
Sul, poderemos ver que em alguns momentos eles realmente colocaram-se um
patamar acima do que se costuma notar. Ao observarmos as características da
escravidão nas estâncias e nas charqueadas poderemos ver essa diferença
que autor propõe. Ao falar do escravo das estâncias o autor traçará um perfil
de um homem livre, apesar da escravidão. Associa essa liberdade a questões
como a montaria, o trato com o gado e, muitas vezes, a divisão do trabalho
com o próprio patrão. Nesse ambiente, o autor acredita que havia um certo
“nivelamento das cores, das camadas ou das condições”. Mas ao tratar do
escravo das charqueadas ou das fazendas produtoras de trigo dos imigrantes
açorianos, o autor irá ressaltar a mudança no trato com os cativos. Assim
define que nesses ambientes, o escravo “era maltratado, açoitado à menor
falta, explorado economicamente, desprezado pelo branco”. Um agravante à
essa situação foi a inviabilidade da fuga, pois uma vez que o campo não possui
florestas, a dificuldade de esconderijo tornava a captura muito fácil. Assim, o
único modo de o negro reagir foi a manutenção e preservação de sua religião e
tradição. Dessa feita, Bastide explica a permanência de um “Candomblé
exatamente igual ao do nordeste”, e talvez até mais puro. (op. cit., p.176).
Bastide nos afirma que “durante muito tempo foi subestimado o papel
desempenhado pelo negro na formação social do Rio Grande do Sul”. Mas ao
definir seu papel o autor, inteligentemente, separa-os em dois tipos de negros,
dois tipos de tratamento, o negro da estância e o negro da charqueada. O
negro da criação de gado nas estâncias familiares e o negro na produção
sistemática e industrial das charqueadas. E, com certeza, é desse segundo
negro que temos o maior montante da população escrava, que em 1814
contava 20.611 escravos para 32.300 habitantes brancos da província do Rio
Grande do Sul.
Nada pode diminuir o sofrimento que a escravidão proporciona. A
escravidão, pura e somente, é o maior castigo aplicável a um ser livre. Não
se pode ter uma escravidão boa, estes são conceitos antagônicos. Mas ao
analisarmos o texto de Bastide, no qual ele evoca e cita os viajantes – cronistas
que formam a principal fonte histórica dos tempos passados, com seu olhar de
estrangeiros, que percorreram o Brasil de norte a sul podemos entender ou
pelo menos relevar a afirmação de escravidão branda. Ao visitar uma estância
de criação de gado no Rio Grande do Sul, este estrangeiro encontrou aqui um
escravo agasalhado e calçado em razão do frio, alimentado-se com carne, e
tendo este item incluso na sua base alimentar, mas, acima de tudo,
empunhando faca de ponta e montaria eqüina. Essas características tornaram
a figura da escravidão mais aceitável para o observador. Mas, de qualquer
maneira, não servem para afirmar que o escravo era feliz com a sua condição,
como consta no texto de Bastide (op. cit., p.175): “Pode ser escravo; porém leva
exatamente a mesma vida que o senhor”.
A idéia de “democracia racial” contida no texto de Bastide, condiz com
os discursos ideológicos existentes na produção intelectual da província no
período do fim do século XIX e início do século XX. A criação desse mito está
vinculada a uma prática de seleção de fontes históricas, em que “os
pesquisadores consideraram somente as ocorrências comprometidas com os
seus interesses” (GUTFREIND, 1992, p.16). Para exemplificar essa afirmação,
recorremos novamente a Saint-Hilaire (1999, p,47), quando em determinado
momento de sua viagem afirma que:
Não há, em todo o Brasil, um lugar onde os escravos sejam mais
felizes que nesta capitania. Os senhores trabalham tanto quanto os
escravos, mantêm-se próximo deles e tratam-nos com menos
desprezo. O escravo come a vontade, não e mal vestido, não anda a
e sua principal ocupação consiste em galopar pelos campos,
cousa mais sadia que fatigante. Enfim, eles fazem sentir aos animais
que o cercam uma superioridade consoladora de sua condição baixa,
elevando-se aos seus próprios olhos.
Porém, logo na seqüência de seu diário, o viajante francês conta de
explicar as suas afirmações, a fim de não deixar confusões sobre seus
posicionamentos:
Afirmei que nesta Capitania os negros são tratados com bondade e
que os brancos com eles se familiarizam, mais que em outros pontos
do País. Referia-me aos escravos das estâncias, que são em
pequeno número; nas xarqueadas a coisa muda de figura, porque
sendo os negros em grande número e cheios de vícios, trazidos da
Capital, torna-se necessário tratá-los com mais energia. (IBID,
IBIDEM, p.73).
Essa clássica citação de Saint-Hilaire serve-nos como exemplo de
como a historiografia selecionou as fontes, em alguns momentos, conforme a
necessidade de defesa da sua ideologia. Criou-se, assim, o mito da
democracia racial no Rio Grande do Sul a partir das afirmações primeiras do
viajante francês, descartando as afirmações subseqüentes de correção de seu
ponto de vista. Isso fica claro nas leituras de autores do início do século XX,
como Múcio Teixeira, Jorge Salis Goulart ou Souza Docca, entre outros autores
tradicionais da historiografia rio-grandense, que afirmam que não houve aqui
escravidão em larga escala, e a sua pouca ocorrência caracteriza-se pela
passividade e harmonia nas relações entre senhores e escravos. Essa foi a
visão oficial da história rio-grandense, difundida e estudada pelos demais
estados brasileiros, e que serviu, na década de 50, de base para a pesquisa
de Roger Bastide.
Juntamente com a constituição desse mito racial, ocorreu a construção
da chamada “democracia social” ou “democracia sulina”. Tal idéia constituía-se
na existência de uma democracia patriarcal nas estâncias, onde as partes
relacionavam-se com laços fraternais, sendo encarregado da organização
dessa “família” o estancieiro patriarca. Jorge Salis Goulart (1985, p.28), no
capítulo intitulado Democracia, exemplifica muito bem essa idéia ao afirmar
que: “Entre chefes e empregados, pela natureza de ligações amistosas que os
uniam, se encontra muito do caráter da vida patriarcal, onde o patrão se
entrega com seus subordinados aos trabalhos da comunidade”.
Do mesmo modo que Goulart os estancieiros relacionarem-se com
seus subordinados, também as estâncias relacionarem-se entre si, sempre
em prol da melhoria estadual. Com isso, suas afirmações idealizam a
democracia estancieira no sul do país, através da formação de uma imagem
mítica da relação patriótica da elite rio-grandense com o seu estado e nação.
Podemos identificar claramente que tal ideologia é intrínseca em seu discurso:
Não tem o estancieiro [rio grandense] aquele egoísmo que caracteriza
os grandes senhores europeus e por isso chega a sacrificar a sua
fortuna pela felicidade da província. A unidade é a estância; mas não
é uma unidade que rejeite todo o espírito de associação. Não: as
estâncias, como força social, sempre operam ligadas umas às outras,
nunca se combatem e todas as vezes que se unem é visando um
bem comum, um ideal superior, colocando, acima de tudo, a
grandeza geral. (op. cit., p.28).
Seguindo esse mesmo viés, o pensador fluminense Oliveira Vianna
corrobora para a manutenção de tal mito ao afirmar que, no Rio Grande do Sul,
havia uma “tradição de igualdade e familiaridade entre patrões e servidores,
essa interpenetração das duas classes rurais – a alta e a baixa, a senhorial e a
servil; fenômeno este que constitui, na sua substancialidade, o espírito da
democracia rio-grandense”. No decorrer de seu texto complementa que o meio
ambiente foi fator decisivo no desenvolvimento da leveza do trabalho: “o pampa
com sua amplitude, seu desafogo, a sua horizontalidade, a sua vegetação
graminosa faz do trabalho pastoril um verdadeiro esporte”. (VIANNA apud
OLIVEN, 1992, p.51).
Esse “mito da produção sem trabalho” é completamente descontruído
pelo artigo de mesmo nome de Décio Freitas, onde afirma que por constituir
“uma história sem povo”, a historiografia criou fortes alicerces para a
dominação ideológica no Rio Grande do Sul (FREITAS, 1980 p.24). Essa
afirmação de Freitas sintetiza o pensamento de Gutfreind sobre a produção
historiográfica do início do século XX. Segundo a autora, a historiografia nesse
período serviu como veículo ideológico para as necessidades políticas dos
partidos rio grandenses. Além disso, através da produção do IHGRS, foi porta-
voz da ascensão ideológica da política rio grandense, que visava projetar-se ao
poder nacional. Em seu discurso de posse no IHGRS, Mansueto Bernardi
que acreditava ser a história a “mestra da vida”, responsável por educar e
indicar o caminho a seguir explicita o posicionamento do pensamento rio
grandense no período:
Essa faculdade de escolher caminhos, de aferir valores e de julgar
homens e eventos, a história confere. medindo, pesando,
comparando, é possível averiguar, e portanto eleger o que é melhor.
Creio que do Rio Grande do Sul, um dos estados mais saudáveis do
Brasil do que são provas nossas ações e relações cívicas,
individuais e coletivas – como já partiu o impulso inicial, deve também
partir a campanha decisiva no saneamento moral e político da Nação.
Creio que, dentre os condutores de rebanhos nas coxilhas, sairão, na
hora propícia, os condutores triunfantes das multidões nacionais.
O minuano precisa soprar em todo o país. (BERNARDI apud
GUTFREIND, 1992, p.34).
A defesa da história como exemplo de conduta e posicionamento
ideológico é exacerbada nos discursos dos pensadores do período. Dessa
forma, podemos tomar como prática historiográfica os discursos de ingresso de
Rubens de Barcellos no IHGRS, onde afirma que “o historiador tinha a função
de recolher, guardar e ordenar a tradição de um povo na linguagem e nas
ações, cabendo a ele a escolha dos fatos que lhe parecessem dignos de
serem conservados na memória”. (GUTFREIND, 1992, p.30. Grifo nosso).
4 GAÚCHO, VISÕES DA LITERATURA
“A estória não quer ser história.
A estória, em rigor, deve ser contra a História.
A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota”.
João Guimarães Rosa
“Estudar a literatura rio-grandense é, de certo modo, abrir um
livro de sociologia”
Guilhermino Cesar
Neste capítulo analisamos as obras O Gaúcho, de José de Alencar, e O
Vaqueano, de Apolinário Porto Alegre, partindo da questão de como se
construiu as personagens, o gaúcho e o vaqueano, buscando demosntrar,
através das suas características, as contribuições para a criação da ideologia
do gaúcho herói.
Para isso, dividimos o capítulo em duas partes: onde serão analisadas
as obras separadamente. Na primeira segue a análise da obra O Gaúcho,
focando-se o primeiro tomo do livro, por nele estar a criação das personagens.
Na segunda parte, analisamos a obra O vaqueano.
4.1 O GAÚCHO
No prefácio de sua obra Sonhos D’ouro, Alencar discursa sobre os
lugares da literatura nacional no fim do século XIX. Assim como acredita não
existir uma literatura nacional consistente, com uma troca entre escritores e
leitores, acredita também ser isso um reflexo da falta de um pensamento de
nacionalidade dentro do Brasil, ainda atrelado a uma repetição da cultura vinda
de além mar.
Para Alencar, a nacionalidade original que aqui surgia era uma fusão de
duas naturezas, a lusa e a americana, e assim deveria ser difundida. Assim,
critica os “gênios de Portugal”, que afirmavam que o Brasil não deveria ter uma
literatura nacional, e os críticos brasileiros, que defendiam tal postura: “os
ditadores não consentem; que de fazer? Resignemo-nos”. Aproveita então
para criticar os seus desafetos políticos por não terem como objetivo
desenvolver aqui um povo culturalmente nacionalista: “este império, a quem a
Providência rasga infinitos horizontes, é uma nação oca; não tem poesia nativa,
nem perfume seu”. (ALENCAR, 1954, p.33).
Tendo em vista tais posicionamentos com relação à literatura e à política
cultural no império, Alencar estabelece nesse prefácio o resumo teórico do
projeto do romantismo, definindo a literatura como veículo para a manifestação
de uma identidade nacional: “a literatura nacional que outra cousa é senão a
alma da pátria, que transmigrou para este solo virgem com uma raça ilustre,
aqui impregnou-se da seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço; e
cada dia se enriquece ao contato de outros povos e ao influxo da civilização?”
(op. cit., p.34).
Divide então essa literatura em três fases: a primitiva, a histórica e uma
fase que estava ainda em desenvolvimento, a qual chama de “a infância de
nossa literatura”.
A primitiva consiste nas “lendas e mitos da terra selvagem e
conquistada”. Como exemplo dessa fase, apresenta Iracema, uma obra “para
aqueles que veneram na terra da pátria a mãe fecunda alma mater, e não
enxergam nela somente o chão onde pisam”. (op. cit., p.34).
A fase histórica “representa o consórcio do povo invasor com a terra
americana, que dele recebia a cultura, e lhe retribuía nos eflúvios de sua
natureza virgem e nas reverberações de um solo esplêndido”. Esse período
colonial encerra-se com a independência. A essa fase pertencem os romances
O guarani e Minas de Prata, que tratam da “gestação lenta do povo americano,
que devia sair da estirpe lusa, para continuar no novo mundo as gloriosas
tradições de seu progenitor”. (op. cit., p.34).
A terceira fase inicia-se com a independência política e, como ainda
estava em desenvolvimento, Alencar afirma que ainda “espera escritores que
lhe dêem os últimos traços e formem o verdadeiro gosto nacional, fazendo
calar as pretensões hoje tão acesas, de nos recolonizarem pela alma e pelo
coração, que não o podem pelo braço”. Os romances O Tronco do Ipê, Til e
O Gaúcho participam desse projeto nacional de buscar, como se num passado
mítico, numa cultura original, que manteve a pureza dos tempos de outrora, os
elementos necessários para formular o grande painel da identidade nacional.
Em sua busca, Alencar expõe a sua inspiração:
Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização, que de
repente cambia a cor local, encontra-se ainda a pureza original, sem
mescla, esse viver singelo de nossos pais, tradições, costumes e
linguagem, com um sainete todo brasileiro. Há, não somente no país,
como nas grandes cidades, até mesmo na corte, desses recantos,
que guardam intactos, ou quase, o passado. (op. cit., p.35).
Para o sucesso de tal empreitada, Alencar solicita aos críticos que
empenhem-se em aceitar, e não em barrar, os novos rumos da cultura
nacional, que pelos neologismos vão introduzindo os novos costumes, ao invés
de, como de costume, “andarem assim a tasquinhar com dente de traça nos
folhetinistas do romance, da comédia e do jornal”. E assim convoca todos:
Sobretudo compreendam os críticos a missão dos poetas, escritores
e artistas, nesse período especial e ambíguo da formação de uma
nacionalidade. São estes os operários incumbidos de polir o talhe e
as feições da individualidade que se vai esboçando no viver do povo.
Palavra que inventa a multidão, inovação que adota o uso, caprichos
que surgem no espírito do idiota inspirado: tudo isto lança o poeta no
seu cadinho, para escoimá-lo das fezes que porventura lhe ficaram no
chão onde esteve, e apurar o ouro fino. (op. cit., p. 36).
Flávio Loureiro Chaves, em seu livro História e Literatura, desenvolve
uma análise para a síntese teórica do programa assumido pelo romantismo
brasileiro, através da leitura do prefácio de Sonhos Douro:
Não se trata apenas da maturidade intelectual de Alencar. Esta
passagem é a súmula do projeto formulado na segunda metade do
século XIX com vistas à aquisição da identidade nacional e sua
expressão literária. Caminham juntas aqui a política e a literatura,
uma coisa refere obrigatoriamente a outra, e Alencar se faz o
paradigma da mentalidade do seu tempo. O romantismo visava
intencionalmente à documentação direta da realidade e, por outro
lado, idealizava-a na concepção do homem americano, mestiço e
colonizado, que precisava ser nobilitado com a aura do mito.
(CHAVES, 1991, p.15)
Dentro dessa análise, Chaves afirma que a obra de Alencar obedeceu a
um desígnio histórico para criar assim o espaço necessário para o surgimento
o grande painel da identidade nacional. Dessa forma, não se limitando a
observar a História, o romantismo “assumiu programaticamente a tarefa de
“fazer” a História para construí-la sob uma determinada perspectiva”. (op. cit.,
p. 16). A partir disso, Chaves identifica a origem da matéria arqueológica dos
romances de Alencar, e assim afirma:
Bem assim, entende-se por que, pagando um alto preço em
detrimento da ficção, ele praticamente beirou os limites da mera
crônica de tipos e costumes justamente naqueles casos em que essa
intenção programática se tornou mais evidente: O Gaúcho, As minas
de prata e A guerra dos mascates. (op. cit., p.16).
Nessa construção, as personagens criadas pelo romancista seguem os
padrões dos heróis românticos, porém fundidas pelo cadinho nacional, e desta
fusão deveria surgir o novo, o homem americano. Diferente do europeu, porém
não o oposto, e sim o fruto de uma troca entre o melhor de duas culturas. Para
Alencar, a perseguida renovação da civilização através do seu renascimento no
novo mundo passava pela literatura e pelo seu projeto nacionalista do
romantismo. Com relação a isso Chaves afirma:
Foi para adotar esta imagem ideal de eficácia política e literária,
totalizando o mito, que Alencar provocou a confluência entre a
História e a Literatura, justamente no território da ficção. Ao fazê-lo,
traçou em linha reta o objetivo final do romance histórico, recém-
nascido e acionado subterraneamente pela força poderosa da
ideologia. Cabia-lhe reivindicar para uma nacionalidade ainda
emergente e mal definida a missão épica de regenerar a humanidade,
nada mais nada menos. (op. cit., p.17).
José de Alencar nunca esteve no Rio Grande do Sul. Dessa terra o que
teve foi apenas “apontamentos que um parente lhe ministrou, ao voltar da
campanha contra o ditador Rosas, e um dos apêndices da História da
República Jesuítica do Paraguai, do cônego João Pedro Gay.” (MEYER, 1954,
p.255).
No prefácio da obra O Gaúcho, na edição lançada em 1954, Augusto
Meyer afirma que existem duras contradições no romance de Alencar, pois “o
melhor e o pior andam lado a lado, em boa camaradagem”. Sendo assim, o
crítico divide a obra em três partes: 1. “Um drama hamletiano”; 2. “uma
admirável sucessão de quadros, em que o paisagista soberbo e o afoito
animalista conseguiram realizar um verdadeiro milagre de arte visionária”; 3.
“um mau romance regional, feito de remendos de notas, informações precárias,
intuições nem sempre bem aproveitadas”. (op. cit., p.5). Dentre todos, este
último aspecto é o responsável pelas maiores críticas, principalmente de
escritores provincianos, que no período desenvolviam um trabalho voltado
para a literatura regionalista mais realista. É o caso de Bernardo Taveira Junior,
escritor que perseguia uma interpretação realista do regionalismo rio-
grandense. Em nota no prefácio de seu livro de poesias, denominado
Provincianas, criticou a falta de veracidade na descrição da natureza e dos
costumes da província:
Sênio, quando se não quisesse dar o trabalho de visitar nossa terra,
de estudá-la e conhecê-la, tinha aqui inumeráveis pessoas que, como
se costuma dizer, conhecem a província a palmos, e das quais, sem
incômodo seu, podia colher as mais exatas, fidedignas e minuciosas
informações sobre quanto tão desnaturadamente fantasiou no seu
Gaúcho! (TAVEIRA JUNIOR apud MEYER, 1954 p.5, grifo do autor).
Embora corrobore com a crítica em relação ao fracasso do romance de
Alencar como obra regionalista principalmente se olharmos do ponto de vista
do regionalismo incipiente, com as formas limitadoras da perspectiva realista
Augusto Meyer sai em defesa da obra romântica, quando as críticas primam
por descartá-la. E o faz através de um ataque ao realismo. Julga ser esta uma
escola “em que a verossimilhança acabou jungida à superstição grosseira do
documento humano, para negar-lhe qualquer valor, como obra literária”, e com
isso questiona as razões da arte, que na sua opinião deveriam prevalecer às
razões de estilo e inventiva poética, e que o fundo de criação é livre e presente
em todas as grandes manifestações da fantasia literária. Assim dirige-se a
esses críticos: “Mas, se era fato a realidade a última instância, em tais casos,
por que motivo não se bandeavam logo para a sociologia, em vez de
macaqueá-la no romance?” (op. cit., p.7).
Meyer vai mais além em sua defesa, ao desclassificar obras que primam
somente pelo real, limitando a sua imaginação, descartando as vantagens de
criação que a arte lhes permite:
Pelas mesmas razões, na escala de valores relativos do nosso
patrimônio, viverá o romance de Alencar, com todas as suas
claudicações de veracidade e apesar de sua audácia às vezes
leviana e enfática, muito mais que os romances e contos fiéis e
medíocres, decalcados meticulosamente sobre o contorno real da
vida campeira. Estes, no andar do tempo, condenados pela própria
mesquinhez dos seus limites, acabarão transformados em meros
subsídios para o folclorista, o etnógrafo, o estudioso de vocabulários
regionais. (op. cit., p.8).
Seguindo a análise proposta no prefácio da obra, Meyer acredita que o
ponto alto da narrativa no qual Alencar demonstra todo seu valor de “maior
criador da prosa romântica, na língua portuguesa”, é a análise dos motivos
psicológicos do romance. E ele propõe uma intertextualidade com Hamlet,
de William Shakespeare, assim como propôs Araripe Junior: “Manuel Canho
viveu em sua mente como uma alma profunda e hamleticamente indignada”.
(ARARIPE JUNIOR apud MEYER. 1954, p.9).
Meyer acredita terem as obras pontos de coincidência com relação ao
modelo de construção da personagem, e assim analisa:
O assassinato de seu pai pelo Barreda desencadeou no espírito do
menino arisco um tumulto de ódio e um fervor fanático de vingança,
prelibada em todas as minúcias, como no caso do jovem príncipe;
repete-se o juramento solene; repete-se também a circunstancia do
casamento imediato da e de Manoel, agravando a reação e
despertando nele o misoginismo que é um dos vincos do seu caráter;
como a Hamlet, tudo lhe parece embuste na sociedade dos homens,
embora ainda acredite na amizade dos cavalos, que são seus
Horácios; a cena em que Manoel Canho deixa de matar o Barreda,
porque o assassino de seu pai está gravemente enfermo, e matá-lo
assim, todo entregue, parece-lhe desvirtuar o sentido da sagrada
vingança, lembra de algum modo a cena em que Hamlet decide
poupar o Rei, quando o surpreende a orar, de joelhos”. (MEYER,
1954, p.9).
Meyer justifica tal conjetura ao “desenferrujar” a hipótese de Araripe
Júnior como uma vontade de pesquisar e esclarecer outros aspectos dentro da
obra, que não fossem as questão de imprecisão regionalista, tão atacadas
pelos críticos de O Gaúcho. Assim, tenta destacar em sua análise que, mesmo
tendo como base documental apenas algumas notas de um parente-soldado,
que lutou ao lado de rio-grandenses no Paraguai, a perspicácia do qualificado
escritor assegurou-lhe a constituição de um cenário que, segundo Meyer,
poderia estar presente nas obras dos regionalistas rio-grandenses do período,
e pertencer assim a uma “antologia do nosso regionalismo”. (op. cit., p.10).
Ainda acrescenta que o personagem Manoel Canho, assim como seus irmãos
gêmeos Arnaldo Loureiro, de O Sertanejo, e Mário, de Tronco do Ipê,
constituem “uma versão do herói romântico, ainda em pleno prestígio; tentar
compreendê-lo desligado de sua família romanesca, à luz de um critério
realista, não em cabimento algum, do ponto de vista rigorosamente crítico”. (op.
cit., p.10).
José de Alencar inicia seu livro com a descrição da paisagem sulina, no
capítulo intitulado “O pampa”. Por não conhecer a geografia das terras do Rio
Grande do Sul, constrói a paisagem do pampa de acordo com os relatos que
possuía. Por sua qualidade de paisagista, Alencar consegue gerar um cenário
bastante propício para a criação de sua personagem romântica. O espaço
criado caracteriza-se pela questão existencialista proposta pelo autor, onde a
imensidão do cenário contrasta com a insignificância do indivíduo que nela
habita, mas, ao mesmo tempo, o indivíduo se faz repleto de virtudes por habitar
nessa imensidão.
Descreve o pampa como vastas campinas melancólicas e solenes, com
a savana se desfraldando, a perder de vista, igualando-se a um verde oceano.
que de mais profunda solidão e mais pavoroso do que a imensidão dos
mares. No oceano, “no seio das suas ondas o nauta sente-se isolado”,
contudo, afirma que esta cena é vivaz e palpitante, que ressumbra de possante
vitalidade, sendo repleto de força criadora (ALENCAR, 1954, p.18).
Contrário ao oceano, “o pampa é o pasmo, é o torpor da natureza. O
viajante perdido na imensa planície, fica mais que isolado, fica opresso. Em
torno dele se faz vácuo: súbita paralisia invade o espaço, que pesa sobre o
homem como lívida mortalha”. (op. cit., p.18).
Segundo a crítica de Araripe Junior, em seu estudo José de Alencar, que
nesta pesquisa é estudado pelas letras de Augusto Meyer, o pampa imaginado
por Alencar, com características de divagações existencialistas, é fruto de
questões psicológicas do próprio autor, e assim explica: “o verdadeiro pampa
não foi observado pelo romancista; este que fica esboçado nas páginas do
livro não passa de um sonho, de um pesadelo: pintura mais exata das
desolações, das tristezas que povoam a mente do escritor”. (ARARIPE
JUNIOR apud MEYER, 1954, p.6). Araripe vincula a nota amarga de
misantropia que transparece na escrita do romance aos dissabores vividos por
Alencar no período da composição. Exatamente no ano de 1870, Alencar viu-
se forçado a abdicar o seu cargo de deputado, seis meses após ter pedido
demissão do cargo de ministro da justiça. A renúncia definitiva da política, após
ter dedicado-se veemente durante alguns anos, chegando a abandonar a
literatura, deu-se mais por sentimentos de frustração e tristeza do que por
outros motivos, como a sua saúde debilitada ou a falta de tempo para se
dedicar à literatura. Nesse período, segundo o próprio autor, ele entrou em sua
idade de velhice literária, onde sua produção ficou marcada pelos “dissabores,
as tristezas íntimas e o pessimismo cruel”. (MENEZES, 1977, p.275).
Os seres que habitam o pampa têm grandes virtudes na alma. A
coragem, a sobriedade, a rapidez são indígenas do pampa:
Até a árvore solitária que se ergue no meio dos pampas é tipo dessas
virtudes. Seu aspecto tem o quer que seja de arrojado e destemido;
naquele tronco derreado, naqueles galhos convulsos, na folhagem
desgrenhada, uma atitude atlética. Logo se conhece que a árvore
lutou contra o pampeiro e venceu. Como a árvore, são a ema, o touro,
o corcel, todos os filhos bravios da savana. Nenhum ente, porém,
inspira mais energicamente a alma pampa do que o homem, o
gaúcho. De cada ser que povoa o deserto, toma ele o melhor, tem a
velocidade da ema ou da corça, os brios do corcel e a veemência do
touro. (ALENCAR, 1954, p.19).
Alencar apresenta o gaúcho equiparando-o com o pampa que ele
construiu para o cenário de sua obra. Dessa forma, inicio à construção do
seu herói, Manoel Canho, pois este gaúcho é tão bravo, enigmático, solitário,
triste, vivaz e surpreendente como o próprio pampa e seus elementos. Ele é
representado como criação do pampa, no sentido de que foi gerado como um
elemento da sua natureza, tal é a sua semelhança. Sua natureza é como a da
árvore: vencedora por ser sobrevivente.
muitas inovações filológicas nessa obra, como atesta o autor nas
notas, porém são os “idiotismos e gírias de campanha” que formam a
linguagem dialetal com a qual o autor construiu o seu texto. (op. cit., p.238).
Para exemplificar tal linguagem, citamos um diálogo de Canho com um
morador de um rancho de estrada, chamado Chico Baeta, no qual uma
característica marcante da linguagem do livro. Após elogiar o cavalo de Canho,
Baeta exclama: “Eh, pingo!. O narrador, então, apressa-se na explicação do
termo, como segue: “Só compreenderá a energia da exclamação de Chico
Baeta quem souber que pingo é o epíteto mais terno que o gaúcho ao seu
cavalo. Quando ele diz ‘meu pingo’ é como se dissesse meu amigo do coração,
meu amigo leal e generoso” (op.cit., p.22). Este tipo de linguagem denuncia o
público que o autor está perseguindo. Ao explicar os termos dialetais
gauchescos usados no texto, podemos afirmar que a obra não foi escrita com o
intuito de atingir a província à qual a trama utiliza como cenário, mas sim um
público que não conhece esse lugar, sua geografia e sua cultura, e
principalmente, sua linguagem dialetal. Mesmo porque esse livro não é uma
simples canção regionalista das tradições gauchescas, mas sim a busca de um
propósito maior: a apresentação e a inclusão da província do Rio Grande do
Sul no contexto cultural nacional, para assim dar cabo ao projeto de unidade
nacional.
A definição de gaúcho para Alencar, que explicita a seus leitores,
encontra-se transcrita nas notas do texto, onde difere gaúcho de peão:
Gaúcho e pião são até certo ponto sinônimos; ambos estes vocábulos
designam o habitante da campanha do Rio Grande, o sertanejo do
Sul, cujos costumes têm muitas afinidades com o vaqueiro do Norte.
Todavia o primeiro destes vocábulos exprime antes o tipo, a casta,
enquanto o que o outro se aplica especialmente ao mister ou
profissão. Assim gaúcho é o habitante livre, altivo e independente da
campanha, que ele percorre como senhor, levando a pátria, como o
antigo Cita, nas patas do seu corcel. Pião é o proletário que se ocupa
de criação do gado nas estâncias, para o que deve ter suma destreza
em montar a cavalo, correr as reses no campo, laçá-las ou boleá-las
sendo preciso.
O habitante da campanha do Sul não se deslustra por ser pião, que
ele tem em conta de uma profissão nobre, mas honra-se de ser
gaúcho, de pertencer a uma casta independente, distinta e mais viril
do que a dos filhos das cidades, enervados pela civilização. Por isso,
muitos estancieiros ricos fazem timbre de ser gaúchos. (op. cit. p.237,
grifos do autor).
A concepção de gaúcho que Alencar traz em suas notas é, em muitos
aspectos, inovadora. Temos aqui uma clara antecipação da literatura aos
outros discursos do conhecimento cultural e, principalmente, do próprio
imaginário da sociedade rio-grandense. No período de 1870, o vocábulo
gaúcho ainda sofria a significação pejorativa que lhe era atribuída desde os
primórdios da colonização do sul do país. Recém começava a sofrer as
mudanças atestadas por Meyer, como vimos, em razão do desaparecimento de
tal tipo social. Utilizar-se do termo gaúcho, foi uma visão de pioneirismo de
Alencar, e tal atitude rendeu diversos desafetos críticos à sua obra. Para
exemplificar isso, podemos lembrar que, por estar no Rio Grande do Sul e
conhecer os costumes dessa província, Apolinário Porto Alegre denominou
vaqueano a sua personagem, evitando o aparecimento do termo gaúcho no
decorrer da obra. Da mesma forma agiram diversos outros autores da
província, permitindo a Alencar a possibilidade de ser o pioneiro dentro da
literatura ao incluir o termo gaúcho como a denominação para os habitantes do
Rio Grande do Sul e para o protagonista de um romance.
Na citação acima podemos perceber a atribuição positiva dada à figura
do gaúcho, que veio a transformar-se em apelido regional por esforços da
literatura e da historiografia, entre outros fatores. A identificação ideológica com
as diversas classes rio-grandenses, o elogio ao campo em detrimento à cidade,
a nobreza da profissão campeira, o caráter da liberdade e da independência de
ser gaúcho, entre outros adjetivos, foram incutidos no significado de gaúcho no
decorrer do século XIX, culminando na criação da imagem ideológica que
carregamos na cultura do estado até os dias de hoje.
Logo no início da narrativa, onde se concentra a criação do cenário e
das personagens, Alencar nos apresenta uma figura que serve como modelo
de gaúcho ideal:
O coronel Bento Gonçalves da Silva, veterano da guerra da Cisplatina
e comandante da fronteia de Jaguarão e Bagé, era então o homem
mais respeitado em toda a campanha do Rio Grande do Sul. Franco e
generoso, bravo com as armas, vazado na mesma têmpera de Osório
e Andrade Neves, montando a cavalo como Cid campeador, era
Bento Gonçalves o ídolo da campanha. (op. cit.,p.25).
Alencar, através da voz do narrador, constrói a figura de Bento
Gonçalves como sendo o grande gaúcho, herói da província. Utiliza-se de uma
figura histórica conhecida no Brasil, que teve seu nome sempre vinculado a
grandes feitos, grandes batalhas e ampla liderança frente à província rio-
grandense, para servir de base para a construção de sua personagem, como
um exemplo de gaúcho a ser seguido. No entanto, a figura heróica de Bento
Gonçalves desempenha a função de representante de todos os gaúchos,
escolhido por estes e com características que os aproximam, legando-lhes as
características que o mitificaram:
Coronel por excelência, aquele que em quem o povo havia
personificado o título, como mais bravo e digno, era Bento Gonçalves.
De uma a outra fronteira da província, os estancieiros muitas vezes
não sabiam ou não se lembravam quem era o presidente e o
comandante das armas; mas qualquer peão ouvindo falar do coronel,
sabia do que se tratava; e não se metessem a tasquinhar nele, que a
faca de ponta saltava logo da bainha. (op. cit., p.26).
Esse exemplo, além de sua importância na construção de uma imagem
de poder ao redor do herói gaúcho, afirmando que o guardião da fronteira e
coronel do povo era mais representativo que qualquer outra instância de poder,
demonstra outra característica marcante da formação rio-grandense: o poder
militar e político o anda separado do poder particular. O estancieiro-militar,
que protegia as fronteiras da invasão do estrangeiro era aqui mais importante e
representativo do que o poder oficial do governo. Esse aspecto também foi
muito difundido na historiografia.
Ao ambientar seu romance no período da Revolução Farroupilha e
utilizar assim um fato historiado e com personagens construídos, tanto
pelos historiógrafos como pelo imaginário coletivo, o autor habilita-se a criar
artisticamente sobre esses fatos e, assim, posicionar-se politicamente no texto,
através da fala do narrador. Ao contextualizar o conflito, que lhe serve como
pano de fundo para a trama, o autor imprime sua visão com relação à
revolução. Afirma que existia no Rio Grande, nos primórdios do levante, uma
“fração que era francamente republicana, e aspirava à independência para a
formação de um estado unido da grande Confederação do Rio da Prata”, e
assim posiciona figuras importantes da guerra, para legitimar-lhe as
afirmações: “Neto e Canabarro eram a alma desta opinião republicana” (op. cit.,
p.112).
Para evocar o caráter nacionalista da revolução, e de seus líderes, o
autor exalta: “a outra fração muito mais numerosa do partido da resistência não
tinha idéias de separação e independência. Limitava-se a restaurar e manter o
que chamava liberdade”, e evidencia o comando de “Bento Gonçalves da Silva,
o homem mais influente da província”, para validar o posicionamento do povo
rio-grandense nessa esfera ideológica. .
A partir do posicionamento nacionalista de Bento Gonçalves, defensor
da liberdade e da unidade nacional, o autor, em busca da unificação cultural no
Brasil, proporciona no uma espécie de transformação de sua figura, de herói
regional à herói nacional:
Por muito tempo Bento Gonçalves, apesar da sedução do mando
supremo, que sorria à sua ambição, resistiu às influencias do grupo
republicano. A história lhe fará essa justiça: que sua energia, a
lealdade de seu caráter, e o grande prestígio de seu nome,
contiveram a revolução, desde muito incubada no animo da
população.
Porventura não atuaria no espírito do coronel o princípio monárquico
tão fortemente quanto o sentimento de nacionalidade e sobretudo da
dignidade da raça. Como brasileiro, devia repugnar-lhe a comunhão
com os povos de origem espanhola, que ele, veterano encanecido
nas pelejas, havia combatido desde os primeiros anos. (op. cit.,
p.113).
Na visão do narrador, ao evitar que o republicanismo separatista se
alastrasse na Revolução Farroupilha e ao mesmo tempo negar as influências
de Rosas e Lavalleja, que se esforçavam em ter Bento Gonçalves na união da
Confederação do Prata, ficando o Rio Grande subjugado aos poderes
castelhanos o coronel ultrapassa a fronteira regional, tornando-se um herói
representativo para toda a nação.
Alencar utiliza-se do personagem Bento Gonçalves para se posicionar
politicamente contra a Revolução Farroupilha, defender o nacionalismo e
condenar a vinculação separatista dos republicanos da província:
Bem longe de defender a revolução, [Bento Gonçalves] a julgou
talvez com extrema severidade. Não foi unicamente um crime político,
um atentado à integridade do império, foi mais do que isso: foi um
grande erro que felizmente não se consumou. A separação do Rio
Grande seria um sacrifício de sua nacionalidade, que brevemente
ficaria absorvida, senão aniquilada pela anarquia das repúblicas
platinas. Não se decepa um membro para dar-lhe força. (op. cit.,
p.113).
Podemos perceber na construção do texto que existe um esforço
constante em evidenciar a questão da identidade nacional e do pertencimento
do Rio Grande do Sul à nação brasileira. Isso se dá por dois pontos: primeiro, a
recorrente afirmação da nacionalidade do protagonista. Segundo, a
diferenciação entre o nacional e o estrangeiro.
No primeiro caso, podemos percebe que o narrador, muitas vezes,
refere-se à Manoel Canho como “o brasileiro”. Geralmente isso ocorre em
momentos de afirmação das qualidades do gaúcho. Outras vezes, o próprio
Manoel Canho afirma a sua nacionalidade, como se retirasse dela uma
confirmação de suas qualidades. Num diálogo com um caçador que queria
roubar-lhe a égua, Canho gravemente afirma, como demonstrando sua
lealdade ao animal: “e eu juro, palavra de um brasileiro, que se tiver o
atrevimento de pôr-lhe a o, hei de montá-lo como um porco do mato que é,
para cortá-lo com essas chilenas”. (op. cit., p.50, grifo nosso). Essa afirmação
do gaúcho que se diz brasileiro é importante para a construção da imagem da
província como estado nacional e de seu povo como brasileiro, para o projeto
que o romance se presta.
No segundo caso, para compreendermos a criação da identidade
nacional através da diferença, é preciso conceitualizá-la. Essa construção pode
ser definida de duas formas: a definição essencialista e a definição não
essencialista.
Conforme Woodward (2005, p.12), a definiçãoo essencialista focaliza
“as diferenças, assim como as características comuns ou compartilhadas” entre
as diferentes culturas de fronteira, mas atenta também para as formas pelas
quais a definição daquilo que significa ser “gaúcho” mudou ao longo dos anos.
Essa definição caracteriza a corrente historiográfica “platina” da história rio
grandense como sua seguidora, tendo como ótimo exemplo o artigo Gaúcho:
História de uma palavra, de Augusto Meyer.
a definição essencialista da identidade gaúcha sugere que, seguindo
os pressupostos de Woodward (ibid, ibidem), “existe um conjunto cristalino,
autêntico” de características que todos os gaúchos partilham e que não se
altera ao longo do tempo. Essa definição é a que encontramos nas obras
literárias que compõe o corpus desta pesquisa e também na corrente
historiográfica “lusitana” da história rio-grandense.
Partindo então da definição de que “toda identidade se define em
relação a algo que lhe é exterior” (ORTIZ, 2003, p.7), distinguindo-se pela
diferença, ao posicionar o estrangeiro como personagem vilão, com diversas
características depreciativas, Alencar demonstra que a personagem gaúcho-
nacional não compartilha de tais características, sendo assim o oposto de tal
caracterização.
Em uma cena do livro, quando Bento Gonçalves mantém Juan
Lavalleda, herói da independência de Montevidéu, em sua casa, como
prisioneiro e hóspede, o narrador demonstra como era a rivalidade entre as
pátrias: “Por momentos arrependia-se do que tinha feito, e lamentava não ter
morrido combatendo contra Frutuoso Rivera ou Bento Gonçalves, antes do que
sujeitar-se à humilhação de render as armas. E a quem? A brasileiros”.
(ALENCAR, 1954, p.29). Vê-se aqui que, embora fossem tidos ambos como
heróis gaúchos, um de cada lado da fronteira, o narrador oculta tal informação
e refere-se à Bento Gonçalves e a seu exército como “brasileiros”. Em resposta
à Lavalleda, a fala de Bento Gonçalves vai ao encontro dessa diferenciação na
nacionalidade: “Em outro momento e outro lugar, eu lhe mostraria que um
brasileiro não vale um, mas dez homens; enquanto que são precisos dois
castelhanos para fazer meio brasileiro. O senhor deve saber disto”. (op. cit.,
p.30).
Em outra parte do diálogo entre os dois heróis provincianos, Lavalleda
questiona e insulta Bento Gonçalves por ter tanto poder no Rio Grande e não
ter feito desta província uma pátria independente do Brasil, desdenhando por
ser o Brasil um império governado “por um menino de dez anos”. Nesse
momento, através da fala de Bento Gonçalves, vê-se o posicionamento de
união patriótica da obra de Alencar:
Sou brasileiro, nasci cidadão do império, e assim hei de viver
enquanto houver liberdade em meu país; porque para mim a
liberdade não é uma burla para enganar o povo, mas o primeiro bem,
que não se perde sem desonra e não se tira sem traição. Quando eu
me convencer que para ser livre, é preciso deixar de ser imperialista,
não careço que ninguém me lembre o que me cabe fazer. O coronel
Bento Gonçalves saberá cumprir o seu dever. (op. cit., p.31).
Nesse trecho podemos tomar o Coronel como representante da voz do
Rio Grande do Sul com relação ao discurso patriótico.
Em favor da identidade nacional, essa obra coloca os seus vilões como
sendo estrangeiros, para evidenciar a “boa índole” do habitante da província. O
perigo vem sempre de fora. Primeiro com Lavalleda, que é preso por Bento
Gonçalves; em seguida, com o assassinato de João Canho, pai de Manoel, em
uma briga contra um bando de gaúchos orientais; por fim, o mascate chileno D.
Romero García, grande vilão da trama. Bem apessoado, de fala mansa,
galanteador, adepto de festas, música e trovas, D. Romero percorria a
província em busca de bons negócios de contrabando. Manoel Canho sempre
alimentou um enorme desgostou por esta figura, desde o episódio da conquista
da égua Morena, que tinha sido colocada em aposta por D. Romero.
Sucederam-se fatos que fizeram com que o desgosto de Canho se
transformasse em ódio a esse inimigo chileno. O primeiro motivo foi o rapto e o
aprisionamento da égua Morena, pelo chileno, enquanto esta tentava salvar
seu filhote recém-nascido, que ficara preso dentro de uma gruta após o ataque
de um puma. O segundo foi o noivado com sua irmã caçula Jacintinha, sem o
consentimento do único homem da casa, que era Canho. Quando ficou
sabendo do noivado, Canho apressou-se em proibir o casamento, tendo em
vista a índole de galanteador do pretendente. O terceiro, e mais grave, foi o
fato que levou Canho a matar D. Romero. Durante uma viagem de Canho a
Buenos Aires, à serviço de Bento Gonçalves e da Revolução Farroupilha, D.
Romero utilizou-se de doces envenenados para conquistar Catita, noiva de
Canho, e assim desonrá-la dentro de sua própria casa. Ao retornar de viagem,
Canho tomou parte dos acontecimentos e saiu à caça de Romero, acabando
por matá-lo.
O assassinato de João Canho por um castelhano, quando Manoel era
ainda um menino, é ponto principal desta narrativa. A partir do desejo de
vingança de Manoel Canho é possível verificar a criação de diversas imagens
ideológicas com relação ao protagonista gaúcho, como, por exemplo, o
nacionalismo, o ímpeto guerreiro, a herança de ginete, a repulsa às mulheres e
o sentimento de honra despertado pela vingança sagrada.
João Canho é um típico gaúcho, segundo a imagem que se quer mostrar
dessa personagem. Em sua descrição, o narrador apresenta-o como sendo o
“primeiro amansador ou peão de toda aquela campanha; à sua destreza em
montar e governar o animal com qualquer das mãos deveu a ele o apelido que
adotou por nome”. (op. cit., p.77). Consta que João Canho serviu ao seu
compadre Bento Gonçalves na campanha da Cisplatina, “pelejando
corajosamente em vários combates”. Ao fim da guerra, veio estabelecer-se
num rancho em Poncho Verde, onde vivia com a mulher e dois filhos, às custas
do ofício de amansador e ferrador. Era para Manoel o maior herói. O menino o
admirava e acompanhava em suas lidas campeiras. Orgulhava-se da fama de
seu pai, alimentada pelas trovas enaltecedoras das façanhas, sempre contada
por soldados que batalharam junto com Canho. Com essa convivência e
admiração foi se criando a índole do jovem Canho, como segue:
A alma do menino foi-se moldando naturalmente pelo tipo que
admirava. A vida de peão inspirava-lhe entusiasmo. O baguá era para
ele o símbolo da força e da fereza; domar o cavalo selvagem, o filho
indômito dos pampas, significava o maior triunfo a que podia aspirar o
homem. O amansador era o rei do deserto. (op. cit., p.77).
A cena do assassinato serve à construção da imagem do gaúcho, ao
evocar as questões ideológicas levantadas anteriormente. Ao abrigar em sua
casa um brasileiro de Alegrete, sem nem conhecer o indivíduo, nem mesmo as
causas da perseguição, porém que fugia de um bando de castelhanos
demonstrando assim que, como diz, o gaúcho está “pronto sempre a servir um
patrício” João Canho encontra-se envolto em uma grande peleia. Quando
tentam invadir a sua casa, em busca do fugitivo, os quatro castelhanos tem que
enfrentar o valente gaúcho, que protegia sua casa, sua família e sua honra:
“Ainda que fossem vinte. Nesta casa ninguém entra sem a licença de seu
dono”. (op. cit., p.79). Neste embate, João Canho consegue expulsar três
castelhanos, demonstrando uma imensa força guerreira, a valiosa coragem do
soldado gaúcho, porém havia um atocaiado que acaba por matar-lhe de forma
covarde. O narrador interpreta que o assassino traiu as regras da luta, pois foi
covarde ao matar Canho pelas costas, e não em combate leal. Essa regra é a
regra de honra dos duelos, trazida aqui para a personalidade do gaúcho. Esse
episódio incutiu em Manoel Canho a necessidade da vingança sagrada, onde
deveria matar o assassino de seu pai, para devolver-lhe a honra, mas em um
combate justo.
Outra característica de Manoel Canho que é construída após a morte de
seu pai é a de sua repulsa com relação às mulheres. Logo após a morte de
João, o fugitivo de Alegrete, que se chamava Loureiro, se oferece à mãe de
Manoel para restituir-lhe o lugar do falecido, em virtude de ser o causador de
tal desgraça. Ela aceita devido à necessidade de um marido para criar os
filhos. Porém Manoel Canho não aceita tal matrimônio, julgando ser essa a
maior das traições contra seu pai, pois acreditava que o amor oferecido uma
vez pela sua mãe a seu pai deveria ser único e eterno, e era sua obrigação
como viúva chorar a morte do marido. Além do mais, Manoel não conseguia
suportar a idéia de outro homem ocupar o espaço que era de seu pai, seu
herói. Considerando sua mãe traidora da honra da família, desloca tal
sentimento a todas as mulheres, e julga-as sendo incapazes de praticar atos
como de lealdade e honra.
Canho cresceu com a obrigação de dar a seu pai uma vingança digna.
Tais aspectos, como honra e vingança, são recorrentes nessa obra. Assim, é
atribuído ao gaúcho, e por conseqüência a toda cultura gauchesca, esses
aspectos culturais como se fossem da sua natureza. Manoel Canho parte em
busca de seu objetivo, mas o sem antes trabalhar muito para poder deixar
sua mãe e sua irmã com condições de se manterem, caso não pudesse voltar.
Porém, durante esta espera, que durou longos doze anos, Canho alimentou
diariamente o seu desejo e seu dever de vingança. Ao chegar à casa do
inimigo foi impedido de executá-lo, pois este se encontrava gravemente
enfermo. Sem identificar-se, Canho acompanhou a doença do castelhano, que
se chamava Barreda, servindo de enfermeiro para a sua melhora. Era
necessário matá-lo, porém causava-lhe horror vingar-se de forma tão vulgar.
Buscando uma razão para tal tratamento misericordioso com seu inimigo, o
narrador explica: “Aquele homem era sagrado para ele como a vítima votada
ao sacrifício. Aquela vida lhe pertencia; fazia parte de sua alma; pois era o
objeto de uma vingança tanto tempo afagada” (op. cit., p.71). Canho precisava
matá-lo, porém era preciso recuperar a saúde de Barreda, para ficarem frente a
frente em um duelo honrado. verificamos a construção de uma imagem
ideológica do gaúcho, que é o aspecto honrado de suas relações. Após a
convalescença de Barreda, Canho tornou a bater em sua casa. Estava para
duelar em nome de seu pai, montado no velho cavalo de seu pai e
empunhando a lança que lhe ferira à morte. E assim o fez, matou seu inimigo
em combate, cravando-lhe a lança que havia deixado em seu pai doze
anos. Porém, como respeitoso gaúcho que é, Canho deu uma cova e uma cruz
ao argentino.
Foi de seu pai o exemplo de glorificação pela lida campeira. Desde
menino, acompanhava-o nos trabalhos da fazenda, e assim criou suas
características de homem do campo:
O menino sentiu em si esta mesma natureza, o germe daquelas
virtudes, e assim gradualmente ia-se operando em seu caráter uma
espécie de identificação entre o cavalo e o cavaleiro. Era a misteriosa
formação do centauro. (op. cit., p.78, grifo nosso).
Essa criação do centauro, através da excessiva aproximação de Canho
aos cavalos, é ponto principal nas críticas à verossimilhança do livro. Para
exemplificar e justificar a afirmação de aproximação excessiva, descrevo a
cena em que Canho “conquistou” a sua égua, a Morena:
Tratava-se de uma égua à qual ginete nenhum conseguia montar.
Arisca, disparava mordidas e coices a quem tentasse aproximar-se do animal.
Quando montada, arremessava o ginete como se fosse uma erupção,
conforme descrição do narrador. Tal era o arredio do animal, que seu dono, o
mascate chileno D. Romero, oferecia a égua de presente a quem conseguisse
montá-la. O animal é descrito como sendo o mais formoso da espécie, tendo
na sua pelagem “uma roupagem baia, que nos cambiantes luminosos parecia
veludo tecido a fio de ouro”. De fato, ninguém no recinto conseguiu montar a
égua. Foi quando Canho aceitou o desafio. Para ele, os ginetes ali presentes
não conseguiam montar pois “não sabem levá-la”. Assim, depois de certificar-
se que a aposta ainda valia a posse do animal, Canho aproximou-se da égua
fitando-lhe os olhos e soltando dos lábios “um murmurejo semelhante ao rincho
débil do poldrinho recém-nascido, quando busca a têta materna”. Esse
movimento amansou o animal e permitiu a aproximação. Manoel então abraçou
ternamente a égua, encostando a cabeça na sua face, “o bruto entendia o
homem”. Nesse momento a égua “espreguiçou o lombo, recurvando o pescoço
para estreitar o gaúcho; e um relincho de alegria arregaçou-lhe o beiço”. Canho
então montou e em gracioso galope afagou as finas crinas do animal, que
voltou-lhe o rosto para fitar em seus olhos, como se quisesse “agradecer-lhe a
carícia”. E assim ficou a égua, “domada, ou antes, rendida pelo amor”. (op. cit.,
p.40).
Assim, a construção do personagem gaúcho nesta obra corroborou com
a ideologia do homem montado, do mito do centauro:
Enfim o cavalo era para o gaúcho um próximo, não pela forma, mas
pela magnanimidade e nobreza das paixões. Entendia ele [Canho]
que Deus havia feito os outros animais para vários fins recônditos em
sua alta sabedoria; mas o cavalo, esse Deus o criara exclusivamente
para companheiro e amigo do homem.
Tinha razão.
Se o homem é o rei da criação, o cavalo serve-lhe de trono. Veículo e
arma ao mesmo tempo, ele nos suprime as distancias pela rapidez, e
centuplica nossas forças. Para o gaúcho, especialmente para o filho
errante da campanha, esse vínculo se estreita.
O peixe carece d’água, o pássaro do ambiente, para que se movam e
existam. Como eles, o gaúcho tem um elemento, que é o cavalo. A pé
está em seco, faltam-lhe as asas. Nele se realiza o mito da
antiguidade: o homem não passa de um busto apenas; seu corpo
consiste no bruto. Uni as duas naturezas incompletas: este ser
híbrido, é o gaúcho, o centauro da América. (op. cit., p.45).
Sua devoção aos cavalos fez de Canho, segundo o narrador, o gaúcho
mais popular dentre os quadrúpedes do pampa. Em algumas passagens, o
narrador chega a afirmar que Canho era reconhecido pelos cavalos em todos
os cantos do Rio Grande, existiam estâncias em que “anunciavam a chegada
de Manoel pelo relincho estridente, que era o riso viril e sonoro do cavalo” (op.
cit., p.46).
A identificação do gaúcho como centauro dos pampas é um tema
recorrente na historiografia e na literatura de cunho tradicionalista. Essa
imagem foi construída para acompanhar a saga guerreira deste personagem,
que é um herói misto de gente e natureza. Se na literatura foi largamente
usada como figuração e enredo das tramas, na historiografia essa criação
serviu de sustentação da imagem ideológica do gaúcho herói, que se instituiu
como identidade regional. Segundo o filósofo inglês K. K. Ruthven, os
mitólogos acreditam que o real significado de um mito “tenha talvez se perdido
acidentalmente através dos acasos da transmissão oral; ou pode ter sido oculto
deliberadamente pelos fazedores de mitos, que relutaram em dizer tudo o que
sabiam; ou ainda, pode ter sido adulterado pelos revisionistas políticos ou
religiosos” (RUTHVEN, 1997, p.15). O mito sempre tem em si algo de verdade,
e assim complementa Ruthven: “o tegumento é fictício, mas o núcleo é
verdadeiro” (op. cit., p.41). Não podemos negar a importância da montaria
eqüina no desenvolvimento da cultura regional do Rio Grande do Sul. Ela
realmente serviu para aumentar a força de trabalho e, principalmente, encurtou
distâncias de campo aberto. Porém, partindo dessas afirmações, houve um
enorme exagero literário, em ambas as áreas.
Dentro de um quadro explicativo dos costumes do gaúcho, o sociólogo
francês Roger Bastide, insere o cavalo como ponto pertinente para a sua
formação.
O gaúcho identifica-se com o seu corcel. Sua psicologia é a do
homem montado, que desce da sela para cozinhar, nos braseiros,
pedaços de carne de boi enfiados em compridos paus que servem de
espeto, e que come ainda sangrentos (o famoso churrasco do Rio
Grande do Sul); desapeia também de noite para prosear, em roda de
fogo, com os empregados, com os peões, pois as noites são frias, e
ali fica bebendo chimarrão [...]. (BASTIDE, 1975, p.78)
Como vemos na análise de Bastide, a influência do cavalo na cultura rio-
grandense está nivelada aos grandes símbolos da cultura gaúcha: o churrasco
e o chimarrão. Outra informação importante é a afirmação de que o gaúcho
permanece montado durante a maior parte do seu tempo, descendo apenas
para comer e prosear, sendo ele o peão ou chefe da estância.
A aproximação aos cavalos é evidenciada pelo narrador em oposição à
repulsa de Canho para com a raça humana. Acredita serem os cavalos os
únicos seres capazes de fidelidade e companheirismo, ao contrário dos
humanos, que já tinham lhe provado que a lealdade era sentimento oportunista.
Porém, muito mais do que repulsa, Canho alimenta pelas mulheres um forte
desprezo. Para ele mulher é sinônimo de desgraça e traição. Essa crença vem,
em grande parte, da incompreendida atitude da mãe em casar-se novamente,
após a morte de seu pai. Isso fica evidenciado no texto. Durante um diálogo,
Canho afirma que conhece bem as mulheres, que “gostam de todos, mas não
podem viver para um só: e morre aquele a quem pertenciam, não se
lembram dele; e começam a querer bem a outro”. Aqui fica clara a referência
ao segundo casamento da viúva de seu pai. Em seguida, compara a lealdade
de uma mulher à de sua égua: “onde acha você uma rapariga capaz de fazer o
mesmo que a baia? Porque salvei-lhe o filho, tornou-se cativa; e para me
acompanhar e me servir deixou sua terra, suas amigas e sua liberdade”
(ALENCAR, 1954, p.64). Essa imagem construída no romance, de que o
gaúcho do campo está mais atento para os animais do que para as mulheres,
também é uma idéia antecipada pela literatura, em relação à história e à
sociologia. Ela será recorrente nos livros do século XX, que analisam a cultura
gaúcha, como por exemplo, a obra de Roger Bastide (1975, p.177), como
segue:
E também a afeição que liga os homens aos animais. pois um
amor profundo une o gaúcho ao seu cavalo, maior muitas vezes do
que o que dedica à mulher. [...] Tudo que é sentimental repugna a
estes machos, orgulhosos de sua virilidade, e que ao vêem na mulher
senão simples pretexto para estadeá-la.
Nichols (1946, p.40) ainda acrescenta que “existe uma influência
psicológica do cavalo sobre o homem”. A questão do centauro aqui deixa de
ser somente a necessidade da utilização do cavalo pelo gaúcho para atingir o
nível de influência social e cultural do animal sobre o ser humano, na definição
de sua liberdade e a sua maneira de lidar com o trabalho e com o pampa.
4.2 O VAQUEANO
Todas as críticas literárias analisadas nesta pesquisa vão ao encontro
da afirmação de que O vaqueano surge como uma adequação da obra O
Gaúcho para a realidade rio-grandense. Conforme afirma Chaves:
Em 1870, José de Alencar lançou O Gaúcho com grande repercussão
nacional. Apenas dois anos depois Apolinário Porto Alegre, inspirado
no modelo, publicou O Vaqueano; mas acrescentou-lhe a observação
direta do meio, que faltava por completo ao escritor cearense. Ele é,
portanto, o legítimo fundador do regionalismo literário sul-rio-
grandense, que nesse momento deixa de ser mero sentimento
coletivo e se traduz como um programa de ação. (CHAVES, 1994,
p.13).
As semelhanças são diversas: a temática, o herói, a construção
romântica, a linguagem dialetal, a exaltação do nacional, a ambientação na
Revolução Farroupilha, a utilização de heróis farroupilhas como personagens
do romance, a vingança como questão crucial na definição da obra e
construção das personagens. Porém, diferenciam-se na maneira de descrever
o Rio Grande do Sul e seu povo. A característica mais marcante nessa
diferenciação é com relação ao nome da obra e da personagem principal.
Apolinário denomina seu romance O Vaqueano por questões de respeito à sua
província. O termo gaúcho, na época em que a obra foi escrita, ainda possuía o
sentido pejorativo que carregou desde seu surgimento, quando era usado para
denominar os marginais do campo, ladrões e contrabandistas de gado.
Outra diferença refere-se à inserção em sua obra de índios e de negros,
personagens que constituíram o povo rio-grandense e estão ocultos na obra de
Alencar. Não existe também em O Vaqueano referencia alguma aos
castelhanos. Apolinário não se utiliza da diferenciação entre brasileiros e
castelhanos para definir a identidade nacional, como fez Alencar. Porém, em
momento algum nessa obra aparecem referências ao separativismo da
revolução ou a independência rio-grandense, sempre vinculando o Rio Grande
do Sul como província ligada ao império, mesmo estando em campos opostos.
Os exageros literários de aproximação do peão aos cavalos não
aparecem em O Vaqueano, assim como as constantes referências a costumes
regionais, como alimentação e vestuário, nem mesmo as descrições e
explicações de termos do dialeto campeiro. Tal fato pode ser explicado com
uma citação de Jorge Luis Borges, ao lembrar de uma passagem de Gibbon,
na qual informa que no livro árabe por excelência, o Alcorão, não existem
citações de camelos. Borges assim complementa:
yo creo que si hubiera alguna duda sobre la autenticidad del Alcorán
bastaría esta ausencia de camellos para probar que es árabe. Fue
escrito por Mahoma, y Mahoma, como árabe, no tenía por qué saber
que los camellos eran especialmente árabes; eran para él parte de la
realidad, no tenía por qué distinguirlos; en cambio, un falsario, un
turista, un nacionalista árabe, lo primero que hubiera hecho es
prodigar camellos, caravanas de camellos en cada página; pero
Mahoma, como árabe, estaba tranquilo: sabía que podía ser árabe sin
camellos” (BORGES, 2000, p.130).
Com isso, informa a literatura argentina que mostrar a argentinidade não
significa obrigar-se a abarrotar seus textos com gauchos, compadritos, pampa,
cavalos, etc. A nacionalidade não pode ser separada da escrita do texto, e “ser
argentino es uma fatalidad, y en ese caso lo seremos de cualquier modo” (op.
cit., p.130). Portanto, por ser rio-grandense, Apolinário tem os aspectos
culturais de sua província muito latentes, não precisando evidenciá-los a cada
momento. Ao contrário de Alencar, que por não conhecer esta realidade
explicava e exagerava em cada citação dos aspectos culturais da província.
Por ser um escritor de prestígio, Alencar teve sua obra agraciada em
todo o país, porém muito criticada pelos rio-grandenses. Apolinário teve um
menor reconhecimento a nível nacional, por ser um escritor provinciano, mas
sua narrativa gozou de um grande êxito na província. Em parte pela novidade
do tema, mas sobretudo pela amorosa fidelidade de seu autor ao retratar a
fisionomia moral do homem rio-grandense. O personagem, ainda quase
desconhecido dos escritores rio-grandenses, era um tipo agreste de rastreador,
leal e forte, corajoso e desinteressado, e acabou influenciando a maioria dos
escritores regionalista do Rio Grande do Sul.
Pouco se produziu de análise sobre Apolinário Porto Alegre e sua obra.
Dentre os textos estudados durante esta pesquisa, devemos levar em conta a
importância destacada por Guilhermino Cesar a este autor dentro da história da
literatura do Rio Grande do Sul, em obra de mesmo nome, dedicando um
capítulo à análise de sua obra.
Cesar abre o capítulo com uma apresentação que destaca a relevância
de Apolinário dentro de seu estudo: “Apolinário Porto Alegre descerra às letras
rio-grandenses uma fase salutar de inquietações e pesquisas, não
ultrapassada, quanto à repercussão no terreno da cultura, por nenhum outro
movimento de iniciativa pessoal”. (CESAR, 2006, p.215). Da mesma forma que
inicia, Cesar encerra este capítulo com um grande elogio à obra de Apolinário:
“Raras vezes, na história do pensamento brasileiro, ter-se-á visto um homem
tão bem dotado para tarefas tão diversas. Interessado por todos os aspectos
da cultura, não chegou, é certo, a produzir obra harmoniosa. Nele, o que
impressiona e domina é o conjunto.” (op. cit., p. 224). Cesar credita esta
desarmonia ao caráter naturalista de Apolinário, o por seguir tal escola, mas
por sua tendência natural a dedicar-se a estudos sociológicos.
Apolinário o foi autor de seguir modas e escolas, porém existem
marcas visíveis da escola romântica no seu texto. Contudo, sua prosa não
encaixa-se perfeitamente nos cânones dessa escola, pois não chegou a
cumprir uma das exigências fundamentais. Cesar vincula tal afirmação ao
tratamento de suas personagens, acusando uma “pobreza de visão do
indivíduo, do homem isolado em luta consigo mesmo. O autor não viu criaturas
humanas, viu o gaúcho, tipo bem diferenciado, característico de uma região”.
(op. cit., p. 221). Dessa forma, mesmo tendo um tratamento romântico no seu
exterior, sua produção aproxima-se do naturalismo pela substância
documental, quando busca focar o ser humano como um produto derivado do
meio ao qual pertence, e assim definir-lhe o comportamento.
Existe nessa obra uma característica marcante com relação à linguagem
dialetal e à evidência da cor local. Nesses pontos Apolinário se aproxima de
Alencar com relação aos posicionamentos ideológicos de suas obras. Podemos
notar tal aproximação na obra Bromélias, quando Apolinário define para sua
obra algo semelhante ao projeto do romantismo de Alencar:
A literatura brasileira é uma mina apenas de leve explorada. No
homem tupi, mesmo em épocas pré-históricas, nos conquistadores,
no africano, nas diferentes raças que surgiram pelo cruzamento do
sangue indígena, ariano e etíope, nas lendas maravilhosas, nas
enormes modificações da língua e dos costumes europeus devido a
este amálgama no cadinho da América, não encontrará assunto para
uma literatura pátria, vigoroso, escultural, o espírito deslumbrado
pelas novidades estrangeiras. (PORTO ALEGRE apud CESAR, 2006,
p.221).
Essa busca sociológica conduziu a obra de Apolinário mais para a
verdade do que para a beleza. Segundo Chaves (1994, p.13), sua escrita
“freqüentemente exagera na deformação do real e perde em veracidade”,
principalmente pelo fato de ter sido ele o prosador que alimentou o propósito de
documentar a vida de sua província. Foi através do estudo do vocabulário que
o autor alcançou a realidade da cultura rio-grandense, obrigando-o a fazer
observações mais detidas. Focou no estudo das peculiaridades dialetais e,
conseqüentemente, dos costumes gaúchos, visando colorir a ficção
16
. Tal
crítica pode ser encontrada de maneira semelhante em quase todas as
análises da obra regionalista de Alencar. Nota-se nas linhas de O Vaqueano
uma prática de mesclar idiotismos do dialeto gauchesco com a mais alta
erudição do português arcaico, como se fosse necessária a inclusão de uma
fala regional, porém sem perder a erudição do texto. Cesar (2006, p.221)
afirma que “a fusão de elementos orais com o lastro erudito tornou-lhe a prosa
pesada e desigual, de valor artístico mais que duvidoso”. Acreditamos que essa
característica seja conseqüência da jovialidade da literatura rio-grandense e do
próprio autor, e também da necessidade de dar-se ares eruditos à revista do
Partenon Literário sem deixar de, ao mesmo tempo, defender o projeto da cor
local do romantismo. De maneira oposta, José de Alencar, em busca de uma
imagem mais real da região que estava descrevendo em O Gaúcho, também
construiu o seu texto baseado na fala dialetal da campanha, principalmente nos
diálogos, porém mesclada a um português mais coloquial, mais nacional, sem
as erudições da língua mãe, como forma de se distanciar da literatura
portuguesa.
Assim como Alencar, Apolinário também perseguia o distanciamento de
Portugal e a independência da literatura nacional e fez isso através da
linguagem e dos temas nacionais. Cesar nos descreve uma cena que serve
como exemplo de tal questão, citando Apolinário:
Numa faina de farinhada, um peão, rusgando com outro que apertava
os tipins na prensa, teve forte pendência em que me foi preciso
intervir.
Dizia-me ele no auge da cólera:
- Veio-me com pabulagens de pongó ou caboteiro, umas coisas de
bambáe...
Mas ante a parlenda do meu patrício, que, durante um bom quarto de
hora, esbofou uma linguagem completamente alheia a mim, fiquei
16
Dessa pesquisa nasceu o Popularium Sul-rio-grandense, uma rica e volumosa obra de
filologia e costumes rio-grandenses.
estatelado. Sem dúvida, tinha mister de recomeçar os meus estudos,
refazê-los desde a cumeeira até os alicerces. Eu nada sabia, e ele, o
rude agricultor e campeiro, era mais digno da América do que eu. Ele
era um brasileiro e eu um manequim da Europa, deslocado no meio
em que nasci, onde vivia e respirava, apesar de conhecer várias
línguas, história, filosofia e quejandas matérias. (PORTO ALEGRE
apud CESAR, 2006, p.219, grifos do autor).
A afirmação de que saber usar o dialeto do campo perfeitamente faz do
campeiro um ser mais digno da América do que o autor demonstra a
necessidade de se retratar na literatura uma linguagem que fosse nacional ou,
acima disso, regional. Em busca de uma literatura nacional e,
conseqüentemente, de uma identidade pátria, era necessário fazer-se notar a
língua do povo, daquele que não escrevia a literatura ou nem sequer lia. Era
necessário ser brasileiro e não mais manequins da Europa.
Os discursos de Apolinário Porto Alegre e José de Alencar assemelham-
se pela ideologia nacionalista. Ambos perseguiam a temática nacional, em prol
do desenvolvimento de uma literatura exclusivamente brasileira. Em defesa de
sua ideologia, os autores pagaram um preço com relação às questões
artísticas das suas obras. Porém, devido a essas obras nacionalistas, tiveram o
grande mérito de lançar a semente que seria cultivada pelos grandes
regionalistas brasileiros e, assim, legar-nos excelentes romances. Dessa forma
Chaves afirma: “O regionalismo gaúcho tudo deve a Apolinário Porto Alegre.
Seu romance legou um tema e inaugurou uma tradição”. (CHAVES, 1994,
p.13). E aqui acrescento também a obra de Alencar, pela sua herança
transmitida a Apolinário e à Sociedade do Partenon Literário.
Passamos para a análise da obra O Vaqueano. O narrador descreve a
província de maneira melancólica. A solidão, o frio, os grandes espaços vazios
são descritos como uma paisagem triste e morta:
Cahia neve em flocos. O frio, intenso. O mystério daquella natureza
recolhida e inanime, profundo e terrivel. Não tinha a melancolia do
deserto, o vago e indefinido que coam nalma as savanas e matas
americanas, tinha mais o tom baço, a desoladora taciturnidade, a
paralysia, a inercia, a apparencia de cadáver que resaltam da quadra
hybernal. Só quem viajou por noites assim através do ermo selvagem,
póde comprehender a expressão aziaga que lhe é própria, os
sentimentos ineffaveis que ele desperta, expressão e sentimentos
que jamais a linguagem conseguiria reproduzir, são tão
indescriptiveis! (PORTO ALEGRE, 1927, p.7).
O narrador questiona: “quem poderia amar-te quadra sem sombras,
brizas, contos e flores?”. Como em O Gaúcho, a construção do cenário
interfere na construção da personagem. Estas terras perigosas e tristes eram a
morada do vaqueano Avençal, terras as quais ele conhecia como a própria
mão. Essas terras tinham o mesmo caráter de Avençal, eram frias, caladas,
misteriosas, guardavam segredo em cada folha do chão, em cada pedra do
caminho, eram cheias de surpresas. Assim, o vaqueano relacionava-se com
essa geografia, tratavam-se como semelhantes.
Na descrição do pampa rio-grandense, Apolinário vai além na
construção desse cenário, em comparação a Alencar. Enquanto Alencar
descreve a savana como sendo um espaço sem fronteiras, sem alterações
geográficas, comparando-a com o oceano, Apolinário insere nessas paisagens
diversos outros elementos. Existem em O Vaqueano grandes selvas e
rochedos, que escondem muitos perigos, como “bugres, onças, rios
invadeáveis, lagos e correntezas, taibés, banhados...” (op.cit., p.10). Na cena
em que descreve a morada de Moysés, nota-se a presença de muitos aspectos
que caracterizam uma grande selva:
Demorava a habitação do mulato numa clareira circular, impenetrável
e oculta para qualquer outro que não fosse elle ou sua gente. O
arvoredo, naturalmente cingido de grossos e longos cipós e
pampanosas trapadeiras, tinha recebido retoques artísticos. [...] uma
cinta de bambús cerrava o ambito [...]. Dum lado desatava-se um
cordão de rochedos alcantilados. Entre eles destacava uma larga
fenda, conseqüência dum raio ou de abalo na crosta do globo.
Constituia uma trincheira natural e inexpugnavel pela qual se ia á
clareira. (op. cit., p.24).
Com relação a esta descrição, acreditamos que no empenho de
descrever uma natureza mais rica, composta de outros elementos que não
fossem somente o campo aberto e infindável, Apolinário exagera na descrição
de uma selva que não caracteriza as nativas concentrações de árvores ao
redor de riachos e sangas ou os capões onde os animais se refugiam da
severidade do clima, tanto no frio como no calor. Porém, tal representação era
necessária para a criação da personagem Moysés, um escravo alforriado, que
cultivava a grande liberdade de viver nas selvas, caçando animais selvagens
com uma tribo de índios guaycanans. Tal imagem pode ser interpretada como
uma volta ao passado mítico do caçador africano, que vivia nas selvas da e
África, gozando de seus frutos e da mais pura e inocente liberdade.
Uma das características da Sociedade do Partenon Literário é a luta pela
liberdade. Tinham ideais republicanos e abolicionistas. Apolinário Porto Alegre
foi um dos porta-vozes do abolicionismo. É possível notar em todas as suas
obras um forte cunho político, de militância pela libertação dos cativos. Mais
importante que isso, Apolinário sempre buscava inserir o negro numa aura de
elogios, destacando as suas qualidades.
Em O Vaqueano, um dos heróis da obra, senão o grande herói, é o
mulato Moysés. Filho oculto do estancieiro Gil de Avençal, Moysés foi alforriado
no ato de seu nascimento. Como perdeu a mãe no parto, foi criado pela casa
grande, tendo convívio próximo com a família do senhor. Foge para a selva
muito jovem após ser acusado pelo assassinato da família de seu patrão e pai.
Cria-se no meio dos guaynacans, tornando-se chefe desta tribo pelas suas
habilidade na caça. O narrador descreve que “não havia na província mais
perito e experimentado caçador”. Descrevendo o poder que o mulato imprimia
sobre os indígenas, o narrador afirma que provinha este “menos da inteligência
superior que incutia respeito aos índios, que da gratidão pelo amor e sympathia
que sempre lhes tributava”. (op. cit., p.21). Nota-se uma distinção de valor de
Apolinário com relação aos negros e aos indígenas. O negro tem um papel
central na obra e é constantemente referenciado com diversos elogios,
enquanto o índio, embora não exista nenhuma nota que o desabone no texto,
está sempre subjugado ao negro. O narrador afirma que os índios da tribo de
Moysés eram melhores por terem logrado os bons costumes do mulato.
Inclusive diferencia o mulato e seus subordinados como civilização e barbárie
(grifo nosso).
Defensor da liberdade, Apolinário deixa clara sua ideologia no texto.
Numa passagem em que os capitães farroupilhas oferecem-lhe abonos para
unir-se a eles nas lutas, Moysés refuta as promessas devido ao grande
preconceito racial que poderia sofrer nos campos de batalha, mesmo sendo
escravo alforriado. E assim responde aos comandantes:
- Liberdade?! Quem é mais livre que Moysés aqui na serrania, onde
não ódio de raças? Onde o homem domina a terra, onde o amigo
não mente ao amigo e a mulher não mente ao marido? Não quero
mais liberdade do que tenho. Offereceis riquezas? Quem é mais rico
que Moysés? Vede. Desde o cerro ali dependurado ate o fundo dos
taimbés, isto me pertence. Piso a pedra que traz o ouro e a atiro
longe. E é isto que vindes offerecer-me? Parti. Adeus. O mulato vive
bem nas bernas. (op. cit., p.22).
O mulato de Apolinário é livre, vive do que a terra lhe dá, sem a
intervenção da economia do branco. Vive aqui como se vivesse na África da
qual fora arrancado.
Não é apenas na figura de Moysés que Apolinário concentra seu
discurso abolicionista. No decorrer da obra existem diversas cenas que
envolvem escravos e em todas ele é exaltado com um indivíduo de excelente
caráter. Além disso, alguma lendas africanas são retratadas no texto, como por
exemplo a história contada pela mucama de José de Avençal, que “o estimava
como filho”, na noite do assassinato de sua família. Nesse momento, o
narrador interfere no andamento da história para colocar-se contra a
escravidão: “é uma lenda que suaviza o cálice amargo da escravidão, grinalda
de odorosas flores entrelaçadas ás algemas, balsamo anodyno sobre a úlcera
que sangra no peito do captivo”. (op.cit., p.48). A lenda contada pela mucama
descreve a experiência pós-morte de um escravo, onde a morte significa a
libertação do calvário terreno e o descanso eterno no paraíso: “o negro morre
aqui para viver na África. Vae ver berço em que nasceu debaixo das tamareiras
e baobhas, vae correr as areias em que brincou no tempo de criança, vae ver a
patria” (op.cit., p.49). A descrição do passado perdido na África nessa lenda
assemelha-se com o presente vivido pelo mulato Moysés.
Outra passagem importante, onde o narrador demonstra toda a sua luta
contra a escravidão, é a descrição da fuga da mucama e seus companheiros
escravos para salvar o filho de seu patrão. Nesse trecho, o narrador humaniza
os cativos, vestindo-os com alma e sentimentos elevados:
Grandes e nobres romeiros!
Quando podiam quebrar os grilhões da servidão, faziam timbre em
mantel-os, guardando a infancia do unico senhor com todo desvelo,
todo o amor capaz de conter o coração humano para o filho, todo o
culto, que se derrama nas aras divinas! Não digam que era a
fidelidade do cão! Não, por Deus! Onde ha uma alma livre, uma
consciencia, pode haver sacrificio e abnegação, nunca o rastejar
do animal que é servil, submisso, feliz atido ao jugo, porque não
concebe a liberdade e muito menos pode aspiral-a. (op. cit., p.54).
Fator interessante é que mesmo tendo um discurso abolicionista de
defesa do negro como um ser capaz de viver em liberdade, soberano de
caráter, consta no texto uma relação amigável entre senhores e escravos, na
qual o cativo trabalha por respeito e não por obrigação. Tal afirmação corrobora
para a constituição da ideologia da democracia racial dos pampas, pois afirma
que a escravidão foi branda e demonstra um sentimento de coleguismo entre o
escravo e o seu patrão, inexistindo no sul uma exploração escravista nos
moldes da época.
A primeira citação ao vaqueano parte de uma figura heróica da história
da Revolução Farroupilha, David Canabarro: “Não te disse Garibaldi?! Quem
tem a cabeça do vaqueano? Chuéga, é um livro! Até guarda de memória as
macegas e pedregulhos das estradas, no sertão, não ha picada pela qual elle
não se metta”. (op. cit., p.10). A utilização de heróis farroupilhas em contato
direto com personagens fictícios serve como uma forma de exacerbar as
características que lhes são rogadas.
O narrador inicia a construção do vaqueano desta forma: “Jamais
houvera rio-grandense que, como elle, conhecesse a provincia. [...] Constituia
de per si o mais exacto archivo topographico, um mappa vivo e pittoresco”. (op.
cit., p.12).
José de Avençal era conhecido por toda a província, porém não pelo
nome, mas pela profissão que exercia com excelência maior. Sua
superioridade no trabalho de conduzir forasteiros e tropa pelos campos do Rio
Grande do Sul, lhe deram fama e prestígio, sendo reconhecido em cada canto
que percorria. Além das habilidades de guia, destacava-se nas lidas campeiras
e na destreza na guerra: “nos misteres campeiros ninguém o excedia. Iguaes
os encontrava, melhores nunca. [...] Nos manejos da guerra não ficava
somenos” (op. cit., p.13).
Consta que, para os companheiros de acampamento, o vaqueano
possuía alguns defeitos: “Não falava senão em caso de extrema necessidade,
não bebia, jogava menos e fumava pouco ou nada”, mas nem por isso era
menos querido ou admirado. Era um tipo recluso, melancólico e misterioso. Em
combate, o vaqueano é descrito como “o delírio personificado”. Tinha a febre a
morte, lançava-se sobre os inimigos sem pestanejar nem temer. E sempre saía
ileso das peleias, como se a audácia constituísse um escudo impermeável de
balas e lanças.
É dessa forma que o narrador apresenta a personagem vaqueano. E por
fim acrescenta:
O leitor pode por em dúvida o que levamos dito, julgando phantastica
creação, que esfrola o cerebro ardente de poeta.
Engana-se.
Os principaes traços característicos da physionomia que esboçamos
de leve, são tão reaes, que encontramos a cada passo em nossa
província, desde o posteiro até o senhor da estância, desde a
existencia errante do tropeiro até a existencia sedentaria do
guasqueiro ou trançador de lonca”. (op. cit.,p.14).
Nessa fala do narrador podemos perceber a criação da imagem do
campeiro herói. Soma-se toda a história da província, com sua peculiar
formação militar e econômica, com as habilidades pastoris do homem do
campo, e lega-as a todos os seus habitantes, tanto senhores como peões.
Forma-se assim um elo de ligação, um aspecto de cultura regional. Tais
aspectos irão culminar na criação da figura ideológica do gaúcho, que não
se fez nessa obra devido à alteração de significado do termo gaúcho não ter
atingido sua plenitude.
Outra característica dessa citação é a forma como o rio-grandense é
apresentado para o leitor estrangeiro da província. Supondo, assim como o
narrador, que todos os rio-grandenses partilhem dessas mesmas
características, acreditamos não ser necessário apresentar-se a si mesmo.
Portanto, a imagem criada nessa obra, assim como na obra de Alencar, porém
com algumas alterações, também serviu para apresentar a província ao
restante do país e fazer conhecer as qualidades do rio-grandense. Apolinário
também partilhou da tarefa de fazer a identidade nacional. Conforme afirma
Cesar (op. cit., p.187), o autor não descreveu como personagem o rio-
grandense com o intuito apenas de definir-se a si mesmo. “Procurou,
explicando-se, explicar-se ao Brasil”.
Um acontecimento trágico levou José de Avençal a se transformar em O
Vaqueano. Descrevo resumidamente a sucessão dos fatos: José era filho de
Gil de Avençal, um grande estancieiro da campanha da Vacaria, descendente
de português, raça que vencera todos os obstáculos e dotara o Brasil das
fronteiras actuaes”, e vivia na Vacaria, feliz e abastado (op.cit, p.43, grifo
nosso). Um dia seu capataz de confiança, chamado José Capinchos, homem
que era tido como melhor amigo de Avençal, assassinou brutalmente Gil, sua
esposa e seus três filhos pequenos, por sentimento de cobiça. Porém,
Capinchos não foi acusado pelo crime, feito durante a noite e sem
testemunhas. No velório, tratou de jogar a culpa sobre a pessoa de Moysés,
mulato que vivia na fazenda e era filho de Gil. Jo de Avençal, o filho
primogênito, conseguira sobreviver devido uma hábil fuga de sua dedicada
mucama. Durante a fuga, a negra pediu abrigo na fazenda de Amaral, um
nobre estancieiro português, que ao saber da triste história, adotou o garoto
para criar-lhe como filho. Ao atingir a idade de 18 anos, José volta para a
fazenda de seu pai com o intuito de retomar as suas terras, que estavam sobre
a guarda de José Capinchos, e buscar pistas do assassino de sua família.
Durante todos os anos que vivera na fazenda de Amaral, José desenvolvera
habilidades bélicas e campeiras com um único objetivo: vingar a traidora morte
de seus parentes. Juntamente com seu irmão Moysés, descobre que o
assassino de sua família foi o posteiro de confiança de seu pai, José
Capinchos. Porém antes de vingar-se, Avençal apaixona-se por Rosita, filha de
seu inimigo. Moysés leva a cabo seu objetivo e, juntamente com seu irmão e
sua tribo indígena, mata José Capinchos. Tamanho foi o sentimento de
desolação e desgosto por ter sido responsável pela morte do pai de sua amada
que José de Avençal desiste de viver e se põe a correr o estado em busca da
morte. Assim, morre José de Avençal e nasce o vaqueano.
A vingança sagrada e a defesa da honra, são traços comuns da cultura
rio-grandense que se pretende retratar. Se em O Gaúcho ela foi o cerne da
trama, em O Vaqueano aparece da mesma maneira. Quando Avençar atinge
os 18 anos, parte em busca da única idéia que lhe acompanhou durante todos
esses anos afastado da sua fazenda, a vingança. O narrador relaciona-se de
forma ambígua com tal característica. Por um lado opõe-se a esse sentimento,
essa falha do caráter rio-grandense, mas por outro corrobora que a vingança é
um dever moral. E assim divaga:
Vingança! És tu também uma das sombras a embruscar os traços
magistraes de caracter rio-grandense, falha que ninguém pode, nem
deve occultar.
Talvez seja o quinhão ou partilha dos povos cavalheirescos, a quem a
hospitalidade, a lhaneza, a honra e lealdade parecem antes virtudes
innatas do que obediencia as leis do dever ou do resultado de
obrigações moraes.
O céo diria a elle pela voz do evangélio: O perdão resgata o crime.
A lógica das paixões dizia-lhe: A nodoa de sangue lava-se com
sangue.
Fora forçoso obedecer aos próprios pensamentos pessoaes, e aos
dictames de uma educação recebida e conforme ás leis que todas as
edades tem chamado de honra. (op. cit., p.61).
Esta vingança era sagrada para Avençal. Sua vida dependia disso.
Jurou ao da cruz de seus familiares que lavaria a nódoa dessa traição com
o sangue do assassino. Porém seria completa se fosse concretizada num
duelo justo e leal. O assassinato de Capinchos por si nada lhe valeria, seria
como o ato traidor de degolar a sua mãe e seus irmãos enquanto preparavam-
se para ir dormir, como a traição de apunhalar seu pai pelas costas durante
uma caçada. O duelo deveria ser de igual para igual, onde o vencedor sairia
com a sua honra intacta e enaltecida pela luta. Esse era o caráter do rio-
grandense que se construía: bruto, porém leal.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para finalizarmos as idéias que conduziram esta pesquisa é preciso
retomar os pontos que propomos para análise: como as obras historiográficas e
as do corpus literário influenciaram na criação da imagem do gaúcho herói?
Esta foi a questão inicial lançada sobre o material a ser pesquisado, e também
a questão que buscamos responder através da análise desta bibliografia.
Através disso, estipulamos os caminhos de deveríamos seguir para
acharmos as respostas. Supomos como hipóteses que, partindo da idéia de
que a ideologia dos autores não pode ser separada do texto no momento da
escrita, buscamos identificar nas obras a presença dessas ideologias, e como
elas influenciaram na representação do gaúcho nas diferentes disciplinas, em
diferentes períodos. Por ser a escrita um meio de comunicação, acreditamos
na intenção dos autores em divulgar tais imagens ideológicas, a fim de
influenciar culturalmente a sociedade que se inseriam, e assim atingirem um
objetivo maior, tanto político como ideológico.
Para agraciarmos todos estes pontos dividimos a pesquisa em três
capítulos, com responsabilidades diferentes. O capítulo “Formação da
Província de São Pedro: breve introdução dos processos político-militar e
econômico” serviu o propósito de contextualizar a formação social e cultural da
província da São Pedro do Rio Grande do Sul, cenário da criação do gaúcho, e
também de destacar a sua conturbada inserção na conjuntura nacional, através
de complexas questões econômicas e militares. Porém a análise da questão
norteadora recaiu sobre os capítulos “Gaúcho, visões da história” e “Gaúcho,
visões da literatura”.
No capítulo “Gaúcho, visões da história” procuramos demonstrar como a
historiografia, em conjunto com a sociologia e a crítica literária, construiu a
imagem do gaúcho herói, e como essa construção desempenhou um papel de
formação ideológica no diferentes momentos históricos. Como vimos, a
pesquisa de Augusto Meyer (2002) com relação à alteração semântica do
termo “gaúcho”, foi a obra que trilhou os caminhos de nossa análise. Através
dessa obra foi possível perceber como a alteração do significado de gaúcho
serviu à ideologia dos construtores desta imagem ideológica. Ainda nesta obra,
vimos que a valorização do gaúcho não se deu somente em razão do que se
produziu sobre ele embora esta produção seja crucial para a alteração,
principalmente após a sua inserção na sociedade e decorrente
desaparecimento mas deu-se também por sua importância na Revolução
Farroupilha, que lhe proporcionou um maior apreço dos rio-grandenses.
O esforço da historiografia em criar uma imagem glorificada do gaúcho
deu-se no fim do século XIX, mas principalmente, no início do século XX,
portanto, após o seu desaparecimento como indivíduo marginal do pampa.
Neste período, antecipada pela literatura, a historiografia sulina iniciou o seu
trabalho de buscar no passado representações que pudessem definir uma
identidade cultural para o estado, e assim demonstrar o seu pertencimento ao
Brasil. Convém lembrar que, com a proclamação da república, foi necessário
unificar o estado, fortificá-lo culturalmente, para poder alçar objetivos maiores,
num país ainda pouco definido político e culturalmente.
A história passou a perseguir um ideal provinciano de unificação, onde
os atributos heróicos do passado deveriam prevalecer na formação deste povo.
Usou-se então a figura do gaúcho primitivo, recuperando suas características
de homem livre, bravo e habilidoso nas lidas campeiras, porém acrescentando
as imagens de hábil militar, defensor das fronteiras nacionais, patriótico, leal e
honrado. Criou-se essa imagem como o substrato da formação cultural da
província, sendo todos os seus habitantes herdeiros desse herói antigo.
Seguimos nesta pesquisa o trabalho de Ieda Gutfreind (1992), que ao
analisar a historiografia rio-grandense, explicitou esse vínculo entre a criação
histórica e a política no Rio Grande do Sul. Em sua análise, a História, como
discurso científico e verdadeiro, serviu à política através da construção da
imagem mítica do gaúcho, para poder gerar assim, por meio de um ícone
identitário, um elo de ligação entre os habitantes do estado. Era necessária tal
união, pois o Rio Grande do Sul ainda sangrava uma cisão decorrente da
Revolução Federalista de 1893, e que, por não resolvidas as diferenças,
voltaram a se enfrentar em 1923, e assim mantiveram o estado debilitado, com
sua força política dividida.
Ruben Oliven (2006), quando analisou a questão da produção
historiográfica vinculada à criação de imagens ideológicas do gaúcho, para fins
políticos, defendeu que, por estarem escrevendo num período muito próximo à
Revolução de 30, os historiadores tinham como tema central de seus estudos a
formação da nacionalidade e a integração nacional. Recorda que em 1930
“ainda não havia se consolidado a integração econômica e política do país”, e
coube à historiografia o papel de desenvolver o discurso de “brasilidade” (op.
cit., p.76). Em virtude disso se estabeleceu uma divisão entre gaúcho brasileiro
e gaucho argentino, a fim de evocar o caráter nacionalista do povo rio-
grandense. Desta forma conclui Oliven:
Era preciso, portanto, não afirmar a brasilidade do gaúcho, mas
enfatizar seus traços positivos, mesmo que para isso seja necessário
maquilar a realidade, passando por cima dos elementos que
poderiam eventualmente ser considerados “bárbaros”. Estes
deveriam ser “exportados” para o outro lado da fronteira: o Prata. (op.
cit., p.76).
Esta citação sintetiza de diversas formas as idéias desenvolvidas por
esta pesquisa: a separação entre gaúchos e gauchos foi uma diferenciação
utilizada pela historiografia rio-grandense para evidenciar o sentimento de
nacionalidade do Rio Grande do Sul; e também, através de uma prática de
seleção de fontes, criar uma imagem heróica para o passado rio-grandense,
através da figura do gaúcho, evidenciando as suas virtudes e deslocando os
“temas indignos” para o personagem gaucho de além fronteira. Com isso,
criou-se um conjunto de imagens que definiu a unificação da identidade e
cultural regional, unindo o estado e fortificando as suas lideranças.
No capítulo “Gaúcho, visões da literatura” desenvolvemos a análise das
obras do corpus, visando identificar as suas contribuições para a criação da
imagem do gaúcho herói. Dentro da análise, destacamos a construção dos
personagens como veículo condutor da ideologia dos autores e, por este
mesmo ponto, a criação das imagens mitificadoras da personagem gaúcho.
Analisamos que José de Alencar escreveu a obra O Gaúcho dentro do
projeto do romantismo. Este projeto tinha como objetivo literário criar uma
literatura nacional, que trabalhasse com temas e linguagem nacional, visando
distanciar-se da literatura portuguesa. Porém, existiu também um cunho
político-ideológico no projeto, que buscava, através da evidência da cor local,
criar uma unificação nacional pela construção de sua identidade.
Apolinário Porto Alegre também participou desse projeto de construção
da identidade nacional. Não existe uma afirmação do autor de que sua obra
participou do projeto romântico de Alencar, isso fora apenas evidenciado pela
crítica literária. Porém, analisando a sua obra podemos identificar a vasta
influência que O Gaúcho exerceu no O Vaqueano, tanto na construção da obra
como no posicionamento ideológico.
A obra O Gaúcho inseriu-se na fase regionalista do projeto romântico de
Alencar, e estava imbuída em apresentar o rio grande e o gaúcho para a
nação, destacando a sua brasilidade. Para isso, Alencar utilizou o dialeto
gauchesco, com uma linguagem que beirou uma tradução para o português,
explicando constantemente os significados das gírias e idiotismos rio-
grandenses. Buscou também a construção da identidade nacional pela
diferenciação do nacional e do estrangeiro e pela constante afirmação de
pertencimento do gaúcho ao Brasil.
Porém, o ponto principal desta identificação foi a criação de Manoel
Cacho, personagem principal e identificadora do gaúcho. Essa construção
gerou diversas imagens heróicas, e definiu o caráter do habitante do Rio
Grande do Sul pelas características como coragem, valentia, honra, lealdade,
solidão, liberdade, patriotismo, habilidades militares, habilidades campeiras,
entre outras. Estas representações geraram uma figura ideológica mitificada
que serviu como base para a criação da identidade campeira, a unificação
cultural do Rio Grande do Sul e a sua conseqüente inserção na nação.
O livro de Apolinário Porto Alegre foi considerado por muitos teóricos
como uma resposta ao O Gaúcho de Alencar, por razão das imprecisões
culturais constantes na obra do cearense. Assim, O Vaqueano foi analisado
como uma adaptação à obra romântica para as realidades culturais da
província, porém sem descartar as questões ideológicas propostas por Alencar.
A constituição da obra de Apolinário muito se assemelha a obra O
Gaúcho. Para evidenciar esta aproximação, citamos Sergius Gonzaga (1980,
p.128):
José de Avençal, o vaqueano, reproduzia Manoel Canho, seja no
desejo de vingança pelo pai morto, seja nas turvações melancólicas
de seu caráter, seja no confronto honra versus paixão, ou seja ainda
pelo suicídio final do herói. O peso alencariano oprime, as influencias
transbordam: as próprias alusões históricas, ligando a ação da novela
à revolta dos farrapos, parecem ter nascido de O Gaúcho.
A criação do herói em ambas as obras segue o mesmo molde. Tanto o
gaúcho como o vaqueano são descritos com boas doses de adjetivos:
destemido, valente, fechado, livre, honrado, leal, patriótico, hábil nos trabalhos
militares e campeiros. Porém, existe em O Vaqueano uma alteração
substancial: a denominação de vaqueano para a personagem principal, ao
invés de gaúcho, termo que, no período das obras, ainda era dotado de
significados depreciativos. Possui também uma redução nas constantes
citações e referências às características culturais, a qual analisamos que, por
ser o autor nativo do estado, os aspectos culturais e os costumes do Rio
Grande do Sul eram parte da sua realidade, e assim não teriam razão de
serem explicitados. O mesmo acontece com a linguagem, que na obra de
Apolinário se constitui menos dialetal e mais erudita.
As aproximações foram também ideológicas. Ao adaptar a obra de
Alencar para o universo rio-grandense, Apolinário corroborou o projeto
romântico e seus objetivos. Existe em O Vaqueano todos aqueles aspectos que
Alencar definiu no prefácio de Sonhos D’ouro como sendo seu projeto de
valorização do nacional. Contudo, Apolinário inseriu outros aspectos em sua
obra que simbolizaram os seus ideais e de seus pares da Sociedade do
Partenon Literário, como os anseios republicanos e abolicionistas.
As obras criaram imagens que serviram como base para definir uma
cultura regional. Estas imagens, embora fossem influenciadas pela real vida
campeira, foram injetadas de significados heróicos, gerando assim imagens
mitificadas. Através dessa prática, e usufruindo do status de “meio de
comunicação” da literatura, os autores puderam executar seus objetivos e
defende suas ideologias no texto literário, legando ao povo rio-grandense a
construção de um personagem heróico e, influenciando assim, na formação
cultural do Rio Grande do Sul e a sua conseqüente identificação com a cultura
nacional.
Podemos então traçar um paralelo entre a construção historiografia do
fim do século XIX e início do XX e a construção da literatura do projeto
românico: ambas buscaram criar uma imagem identificadora da cultura
nacional. A literatura antecipou a criação do mito do gaúcho, iniciando a
alteração desta figura de andarilho a herói dos pampas. Posteriormente, a
história utilizou-o para fins político-ideológicos nos seus trabalhos do século
XX, definindo a imagem que se instaurou no inconsciente coletivo da
sociedade.
Retomando a definição de ideologia, proposta por Terry Eagleton
(1997, p.15), podemos perceber a inserção dos diferentes discursos nas
diferentes significações do termo. Por ter servido politicamente como veículo
criador de imagem que pudesse identificar o povo rio-grandense e fortalecer a
política para ascender a um posto maior na escala do poder nacional, através
da seleção de fontes, a historiografia rio-grandense encaixa-se em cada um
dos itens propostos por Eagleton.
De forma semelhante, as obras que compõem o corpus literário desta
pesquisa se encaixam nas definições de Eagleton. Apolinário Porto Alegre e
José de Alencar perseguiram em sua escrita ideais previamente estipulados,
com intuito de criar imagens que pudessem agir na alteração da sociedade e
sua cultura. Na história a ideologia a construção da ideologia do gaúcho veio
atender aos propósitos do governo do Rio Grande do Sul, que necessitava do
herói para embasar suas ações políticas, enquanto na literatura não houve esta
vinculação político-partidária, pelo menos de forma explicita.
Como fechamento das idéias que compuseram essa análise, citamos
Flávio Loureiro Chaves (apud Oliven, 2006, p. 66), como exemplo e síntese da
alteração da figura do gaúcho:
À medida que foi desfigurado das origens, o gaúcho também foi
nobilitado. Nobilitou-o esta perspectiva senhorial dos grandes
proprietários rurais aos quais interessava diretamente estabelecer a
identidade entre o peão e o soldado, atribuindo-lhe uma aura heróica.
Nobilitou-o, logo adiante, a palavra dos historiadores, fazendo-o
protagonista duma epopéia brasílica, que vai das Guerras Platinas à
Campanha do Paraguai, passando pela Revolução Farroupilha de
1835. Trata-se essencialmente de um fenômeno ideológico o
processo de construção do gaúcho como campeador e guerreiro,
inserindo-o num espaço histórico onde atributos de coragem,
virilidade, argúcia e mobilidade são exigidos a todo momento,
transportando-o ao plano do mito. E não caso em que transpareça
tão claramente a vitória da ideologia.
Modernamente, o Movimento Tradicionalista Gaúcho mantém acesa a
construção ideológica, reforçando-a como modelo cultural do Rio Grande do
Sul.
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