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nossa história pessoal e, aquela outra, que nos circunda. Para isto, ao olhar o
mapa, ancorei no Oriente Médio. Aquela região que quebrou o paradigma da
invisibilidade e engendrou o monoteísmo. Um deus invisível e abstrato. Um
novo conceito de fé. Portanto, avançando um pouco mais, enveredei pelo
deserto, esta paisagem cruzada por caravanas, mentiras, histórias, intrigas,
demônios, especiarias, seda. Estas rotas propícias a toda espécie de narrativa.
Depois, coloquei a emblemática Scherezade no âmago mesmo de Bagdad, a
cidade mítica e eterna. Com Scherezade e sua trupe à frente, circundados pela
tirania do Califa, a imaginação se alvoroça e pretende triunfar. Daí, foi o
fazer do romance ao longo de cinco anos, enquanto lia, estudava, adentrava-
me pelo mundo islâmico. Um saber que, afinal, precisei dissolver em prol da
integridade ficcional.
Neste comentário, a escritora confere à imaginação o papel principal da trama,
chamando a atenção para esta capacidade humana, ressaltando a sua importância na vida.
Tendo escolhido Bagdá como cenário da história, (o que não foi aleatório), Nélida Piñon
retoma a discussão em torno do poder e da falta de imaginação na vivência humana, e com
Scherezade, apresenta outros temas, entre eles a opressão feminina. O Oriente Médio já foi o
centro do mundo por ter tido o caráter polissêmico e fértil diante das situações conturbadas do
seu povo, porém, como lembra Piñon com grande astúcia, a questão do monoteísmo por si só
já é algo da imaginação. Uma forma de apresentar e alertar, característica do artista como
alguém frente ao seu tempo, sobre a capacidade de criação do ser humano, além disso, uma
forma de realizar um trabalho artístico bem organizado a fim de provocar o leitor.
Nélida Piñon, na entrevista à Carmen Sigüenza
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, do jornal Folha On Line, explicou
que Bagdá e região “é um lugar no qual se reúnem três religiões monoteístas que abraçam um
Deus invisível, e isso também é pura imaginação, porque é algo não tangível, não palpável; é
tão sutil que seus efeitos provocam versões distintas". Aliada à idéia de criação imaginativa, a
autora levanta a questão da discriminação sofrida por muitas mulheres justamente em um
povo caracterizado pela imaginação, porém que não “vê” essa situação. É uma forma de
instigar o leitor e, por meio dessa obra, não deixar esvaecer o problema. O fato de Piñon
escolher a história de As mil e uma noites, e tratar de uma cultura que oprime a mulher,
mostra que nas situações mais extremas é que a capacidade criativa se sobressai, e então há a
ruptura com os padrões convencionais. Ruptura essa pautada na narratividade e no processo
de interpretação, ou seja, na organização cognitiva de conhecimento mais eficaz para atingir o
âmago humano, e assim, conquistar o que se deseja. Embora relacionado ao povo árabe,
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SIGÜENZA, Carmen. Nélida Piñon diz que “as palavras erotizam a realidade”. Folha On Line, out. 2005.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u54426.shtml> Acesso em: 25 nov. 2007.