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Carine Isabel Reis
A MAGIA DA NARRATIVA: UMA LEITURA DE
VOZES DO DESERTO, DE NÉLIDA PIÑON
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Mestrado, Área de
Concentração em Leitura e Cognição,
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC,
como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Letras.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Eunice Terezinha Piazza
Gai
Santa Cruz do Sul, setembro de 2008
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Ao meu amigo e professor Vicentini, o mestre.
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COMISSÃO EXAMINADORA
Titulares
Prof.ª Dr.ª Eunice Terezinha Piazza Gai – Orientadora
Profª. Drª. Nize Maria Campos Pellanda
Profª. Drª. Regina Zilberman
4
AGRADECIMENTOS
Muito obrigada...
... ao meu querido Vanderlei, pelo incentivo, pela paciência e amor nessa caminhada;
... à minha família, especialmente, aos meus pais por todo apoio recebido;
... às minhas colegas de escola que contribuíram com palavras e abraços carinhosos;
... à Profª Eunice Terezinha Piazza Gai, pessoa de grande sabedoria, de incrível
paciência e que muito admiro. Por ter acreditado nessa pesquisa e na minha capacidade,
possibilitou a abertura e a expansão de meus horizontes no universo da Literatura. Muito
aprendi a seu lado, o que me encoraja a alçar vôos mais altos. Obrigada por ajudar-me a
desvendar os mistérios do conhecimento!
... ao Profº Olívio Lopes Vicentini, verdadeiro amigo e um grande guia na minha vida
acadêmica. Nas conversas tidas, nas críticas feitas, enriqueceu o meu conhecimento de mundo
com ensinamentos para toda a vida. Dispôs-se a ler, corrigir e debater esta dissertação, o que
contribuiu imensamente para a qualidade do texto. É uma grande honra poder dizer que os
seus olhos por aqui passaram, que as suas mãos por aqui deixaram marcas e que os seus
saberes orientam o meu “ser professor”. A sua amizade e seu companheirismo são de um
valor inestimável. Obrigada por tudo!
... às professoras Nize e Dulci pela amizade, por todo incentivo recebido e por todas as
inspiradoras conversas autopoiéticas! Minhas luzes!
... às minhas colegas de Mestrado e ao colega Roberto, por todas as experiências e as
amizades construídas, além das maravilhosas conversas tidas ao longo do curso.
... a todos os professores deste programa de pós-graduação, que colaboraram na minha
formação e amadurecimento.
5
Dos diversos instrumentos do
homem, o mais assombroso é, sem
dúvida, o livro. Os demais são
extensões de seu corpo. [...] O
livro, porém, é outra coisa: o livro
é uma extensão da memória e da
imaginação.
Jorge Luis Borges
Todas as obras-primas da
literatura foram obras-primas de
complexidade: a revelação da
condição humana na singularidade
do indivíduo (Montaigne), a
contaminação do real pelo
imaginário (o Dom Quixote, de
Cervantes), o jogo das paixões
humanas (Shakespeare)
Edgar Morin
O tempo para ler, como o tempo
para amar, dilata o tempo para
viver.
Daniel Pennac
6
RESUMO
A narrativa, enquanto uma forma de conhecimento humano, constitui-se no tema central desta
pesquisa. Sempre presente nas interações sociais humanas, não só a narração oral como
também o ato de ler são formas complexas de interação entre sujeitos. Por isso, considera-se a
leitura de narrativas ficcionais uma ação interpretativa que possibilita o conhecimento
integrado da vivência humana. As múltiplas construções de sentidos que uma obra literária
oferece permitem o sujeito refletir sobre o mundo, por possibilitarem uma experiência
criadora no âmbito simbólico. Neste sentido, o objetivo deste trabalho é não discutir a
natureza de uma narrativa como também investigar os processos mentais envolvidos na sua
compreensão. O objeto de estudo é o romance Vozes do deserto, de Nélida Piñon (2006), que
reconta a história da mais famosa das narradoras, Scherezade, no palácio do sultão. A
intenção é difundir a concepção de leitura de narrativas enquanto uma atitude
potencializadora no processo de formação e conhecimento na cultura humana.
Palavras-chave: narrativa literária, interpretação, conhecimento, experiência.
7
ABSTRACT
THE MAGIC OF NARRATIVE: A STUDY OF
VOZES DO DESERTO, BY NÉLIDA PIÑON
The narrative as a form of human knowledge is the subject of this research. Always present in
human social interactions, not only the oral telling but also the act of reading, are complex
forms of interaction between human beings. So, the reading of fictional narratives is
considered an interpretative action that allows the integrated knowledge of human experience.
The multiples meanings constructions that a literary narrative offers allow the human being
reflect about the world, because they permit a creative experience in a symbolic context. So,
the objective of this study is not only discussing the complex nature of a narrative but also
investigate the mental processes involved in the comprehension of a narrative. The study
object is the novel Vozes do deserto, by Nélida Piñon (2006), that recounts the story of the
most famous narrator, Scherezade, in the sultan’s palace. The intention is to spread the
concept of narratives readings as an important attitude in the process of training and
knowledge in human culture.
Key-words: literary narratives, interpretation, knowledge, experience.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................9
1 CONHECIMENTO E NARRATIVA...................................................................................13
1.1 Narratividade: um modo de conhecer/interpretar o ser humano ........................................20
1.2 O processo interpretativo: uma ação humana.....................................................................25
1.2.1 Interpretação: transcender para compreender..................................................................27
1.2.2 Narratividade: uma experiência de escuta.......................................................................31
1.3 Os processos cognitivos inerentes à leitura de narrativas...................................................34
1.4 A importância das narrativas..............................................................................................39
2 A NARRATIVA DE NÉLIDA PIÑON: UMA INTERPRETAÇÃO...................................43
2.1 A arte literária enquanto vivência.......................................................................................44
2.2 O reconhecimento de uma grande escritora e das suas obras.............................................47
2.3 A narratividade em pauta....................................................................................................51
2.4 O Orientalismo ...................................................................................................................55
2.5 As mil e uma noites.............................................................................................................58
2.5.1 O Islamismo na narrativa-mãe.........................................................................................61
2.5.2 As traduções ....................................................................................................................64
2.5.3 O conto-moldura de As mil e uma noites.........................................................................68
2.6 Vozes do Deserto................................................................................................................73
2.6.1 O narrador........................................................................................................................74
2.6.2 As personagens................................................................................................................80
2.6.3 O tempo ...........................................................................................................................91
2.6.4 O espaço ..........................................................................................................................97
2.6.5 A influência popular......................................................................................................101
3 ASPECTOS CONCLUSIVOS............................................................................................105
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................112
INTRODUÇÃO
Ser humano é pertencer a uma espécie que tem uma característica peculiar diante dos
demais seres vivos. Nós não temos as nossas inquietações respondidas por completo e de
modo acabado. Estamos continuamente buscando novas interpretações às nossas atitudes
passadas, presentes e até futuras. Isto é, somos seres que nos investigamos sucessivamente, e
por diferentes ângulos, desejamos chegar mais perto da concepção plena da vida.
Diversas áreas do conhecimento têm investigado o desenvolvimento e o
estabelecimento das práticas do ser humano. Dentre elas destacamos as Ciências Humanas e,
dentro desta, a Literatura, tendo em vista o seu caráter dinâmico e especulativo. Além de ser
constituída de diferentes visões sobre as ações humanas, a arte literária parece ser um campo
fértil para a análise do próprio modo de pensar do homem e do processo interpretativo que as
narrativas exigem, por causa da sua complexa constituição, semelhante à nossa própria
existência. Enfim, as narrativas trazem experiências de vida.
Sabemos que todo homem nasce inserido numa cultura que tem definidas a sua língua
e as suas convenções. Estas são estabelecidas pela interação dos seres que constituem um
determinado grupo. As convenções e as línguas são sistemas simbólicos criados pelo convívio
social tanto para auxiliarem na memória como para serem mediadores do homem no seu meio
de convívio. Assim, fomos nos apropriando desses sistemas por meio de generalizações e pela
interação com os outros do mesmo grupo.
Neste processo de interação, a linguagem surgiu como um dentre os sistemas mais
complexo desenvolvido pelo homem. Ela é conseqüência do convívio social e causa da
complexificação simbólica da cultura e da cognição humana. Isto representa um ciclo muito
dinâmico e maleável, que envolve a cultura, o homem, as suas invenções, os seus conceitos
abstratos e sua cognição em um processo interdependente. Portanto, na interação dos seres
humanos, a linguagem desempenhou, e ainda desempenha, um papel primordial.
A partir do desenvolvimento da escrita, outra ação lingüística humana mostrou-se
muito eficiente tanto nas relações sociais quanto na compreensão de si. Esta ação é a leitura.
Neste trabalho, discutimos o ato de ler enquanto processo interpretativo do homem. Partimos
10
do pressuposto de que interpretar possibilita e amplia diversos conhecimentos humanos, haja
vista o seu aspecto renovador e dinâmico diante das convenções, tidas muitas vezes, como
definitivas. Ao concebermos a leitura como uma ação interpretativa, também estamos
considerando-a no âmbito social, isto é, um fenômeno que abrange as experiências
vivenciadas pelo ser humano.
Neste texto, consideramos que as narrativas literárias estão centradas na
compreensão/interpretação do ser humano. Elas estão intrinsecamente ligadas ao
conhecimento intuitivo e especulativo, por se tratarem de um saber que envolve a natureza
humana, logo não se trata de um terreno sólido. A sua discussão está no âmbito das
experiências possíveis e no processo de investigação da vida humana. Neste sentido,
encaramos a compreensão da arte literária como uma ação em que o ser humano investiga a si
próprio e o mundo.
A partir dessas considerações, este trabalho de conclusão do Curso de Mestrado em
Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), traz reflexões em torno da cognição e
leitura, na linha de pesquisa Texto, Subjetividade e Memória, deste programa, à medida que
investigamos o conhecimento específico existente nas narrativas. Ao propormos uma
discussão sobre a natureza complexa de uma obra e dos processos mentais que são exigidos
para a sua compreensão, procuramos saber qual é a sua relação com a cultura humana e os
efeitos cognitivos dessa organização de experiência. Para melhor esclarecer esses processos,
analisamos o romance Vozes do deserto, de Nélida Piñon (2006), prêmio Jabuti e Príncipe de
Astúrias de Letras, ambos em 2005.
Este trabalho está assim organizado: no primeiro capítulo discutimos diferentes
perspectivas teóricas que tratam do conhecimento e o lugar da arte na relação sujeito/objeto.
Na tradição, a arte foi considerada um perigo para o ser humano e uma criação intuitiva,
segundo Platão, nos textos A República e Íon, respectivamente. O filósofo Hessen (1999) e o
crítico Croce (1993) também discutem a arte no âmbito da intuição. Já o filósofo Gadamer
(1983) abre a perspectiva do conhecimento como interpretação. Assim, pressupomos que
interpretar narrativas literárias é um modo de conhecer que possibilita novas experiências para
o sujeito.
11
No mesmo capítulo, exploramos a narratividade, partindo do pressuposto de que este
modo do organizar a experiência do ser humano possibilita diferentes saberes sobre ele e
sobre suas ações na cultura. Para tanto, o nosso arcabouço teórico está fundamentado nos
estudos de Bruner (1997 e 2002) e Larrosa (1999, 2003, 2004). O primeiro, pesquisador da
área da Psicologia, discute a narratividade e as suas implicações no processo de conhecer do
ser humano. O segundo, apresenta uma visão do ato de ler enquanto ação subjetiva e
intransferível do sujeito, na interpretação de uma narrativa.
A partir disso, analisamos a narratividade com base em Forster (1969), Mark Turner
(1996) e Benjamin (1994). Estes teóricos nos ajudam a compreender a atividade narradora
como essencial nas relações sociais, a partir dos elementos que constituem essa forma de
organização de conhecimentos. Portanto são estudos que contribuem para a investigação dos
processos interpretativos que uma narrativa proporciona sobre a própria condição humana.
Fundamentados nestes autores buscamos, conceituar o conhecimento humano pautado na
narratividade.
No segundo capítulo enfocamos o universo narrativo de Vozes do deserto. Para tanto,
apresentamos uma visão da produção da autora do livro, Nélida Piñon. Importante escritora
contemporânea que tem se destacado nacional e internacionalmente, ao longo de sua carreira,
por ter escrito obras muito expressivas e marcantes na literatura brasileira. Na busca de uma
melhor compreensão da narrativa objeto desta reflexão, que tem como pano de fundo a cultura
árabe, apresentamos os estudos do orientalista Said (2001), que discute a visão que o Ocidente
tem do Oriente. A seguir, fazemos uma síntese a respeito das origens e traduções do texto As
mil e uma noites, a partir das considerações de Wajnberg (1997), de Gomes (2000), e Borges
(1999 e 1983), uma vez que Vozes do deserto tem uma relação explícita com esta narrativa
árabe. Após a contextualização com o texto-mãe, investigamos os elementos narrativos que
constituem o livro alvo deste trabalho.
Por fim, no terceiro capítulo, apresentamos algumas conclusões deste estudo. A partir
da leitura de Vozes do deserto, buscamos evidenciar a complexidade do universo narrativo
enquanto ação interpretativa que proporciona o conhecimento e uma visão integrada do ser
humano. Dessa forma, a interpretação de uma narrativa ficcional não é uma experiência
subjetiva que contempla as inquietações do ser humano por um olhar especulativo, como
também possibilita a expansão os seus horizontes perante a vida, compreendendo que as
12
relações humanas não se limitam às alternativas de respostas “certo ou errado”. Assim, este
estudo pode sugerir outras pesquisas mais específicas sobre a natureza das narrativas
ficcionais.
13
1 CONHECIMENTO E NARRATIVA
A discussão sobre o conhecimento presente na arte é de longa data mas instiga até
hoje. Desde a Antigüidade, Platão já buscava compreender as manifestações artísticas e as
suas implicações na vida humana. Um debate que continua nos estudos contemporâneos da
área, alcançando também o âmbito das narrativas ficcionais. Porém, nem sempre, ao longo da
tradição, o questionamento sobre a natureza hipotética das criações artísticas foi reconhecido
como fonte de saber para o homem. O que prevaleceu foi a lógica e a racionalidade na
resolução de problemas humanos. A literatura enquanto arte foi muitas vezes vista como algo
perigoso para o ser humano. Para que isso fique mais claro, apresentamos algumas
perspectivas que exploram os diferentes modos de conhecer a partir da relação sujeito/objeto e
o lugar da arte em cada uma delas.
Tendo em vista a questão do perigo que a arte representava, temos na Idade Clássica,
Platão (1996)
1
que, no Livro X, ao falar sobre a República ideal, dela baniu os poetas, por
entender que a arte poderia deturpar a vida em sociedade. Platão condenava a arte mimética,
ou seja, a imitação em terceiro grau do mundo das idéias.
Lacoste (1986, p 12)
2
explica que a atitude platônica está pautada na arte enquanto
imitação (mimese), isto é, “uma produção subordinada que se define pela distância, pelo
distanciamento em relação ao ser, à idéia de cama, à forma não-desfigurada”. Ainda segundo
o autor, Platão “não condena as artes enquanto artes; o seu gosto conscientemente arcaizante
leva-o a condenar o ilusionismo da arte revolucionária de sua época, na qual ele uma
concepção estritamente humanista, relativista, próxima dos sofistas
3
” (p.13).
Apesar da polêmica instaurada sobre o papel e a natureza da arte, sabemos que Platão
conhecia bem os efeitos dela para as pessoas. Ele teve, inclusive, a consciência do poder da
1
PLATÃO. A república. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 8. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1996.
2
LACOSTE, Jean. A filosofia da arte. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986.
3
Filósofos da Antigüidade que discursavam em praça pública, o que atraía os estudantes. Os sofistas cobravam
taxas por seus ensinamentos, que tinham como base a argumentação. Dentre os sofistas destacam-se Protágoras,
Górgias e Isócrates.
14
arte como ação potencializadora dos horizontes humanos. Podemos perceber melhor essa
visão no texto Íon (PLATÃO, 1988)
4
, que será abordado mais adiante.
Zilberman (2001)
5
também trata do tema do perigo que a leitura de textos literários
pode ocasionar, ao recordar a insanidade de Dom Quixote, no famoso livro de Cervantes,
devido às suas múltiplas possibilidades de leituras. O cavaleiro pode ser considerado uma
comprovação do que pensava Platão de que a arte poderia distanciar ainda mais o ser humano
do mundo das idéias. Conforme a autora, há de se destacar as diferentes épocas de cada um:
Platão, assistindo à utilização da escrita em detrimento da oralidade; Cervantes, à
mercantilização dos livros literários. No entanto diferente de Platão, Cervantes não repudia o
que vê acontecer; ele vai além: apresenta a figura do leitor. Nas palavras da estudiosa,
Cervantes acena para a característica da “independência que ele [o leitor] passa a deter, já que,
despertado o imaginário por força da leitura, nada mais pode contê-lo ou domá-lo” (p. 27).
A idéia de que a leitura pode ser prejudicial ganhou forças após o século XVII, quando
o livro tornou-se mais popular, chegando a ser tema de autores como Austen, Goethe, entre
outros, segundo Zilberman.
Ainda nesse contexto, a autora comenta que, nas décadas de 1960 e 1970, a leitura e o
leitor se tornam importantes focos de pesquisa. Hans Robert Jauss publica trabalhos voltados
à estética da recepção. Ele considerou o leitor como produtor de sentido de uma obra literária,
o que contribuiu muito para as pesquisas posteriores. A idéia de Jauss, citada e comentada
pela autora, de que o leitor é responsável pela atualização dos textos, além de garantir a
historicidade das obras literárias, também conduz a novas perspectivas teóricas.
Por fim, segundo Zilberman, o caráter social da literatura não se situa no fato de que as
obras possam representar dada realidade, mas sim no de ampliar o horizonte de conhecimento
do mundo. Para Jauss, a literatura desempenha um papel fundamental, porque modifica as
percepções de mundo e rompe com o automatismo. Essa última idéia é também
impulsionadora do nosso estudo.
4
PLATÃO. Íon. Tradução de Victor Jabouille. 2. ed. Lisboa: Editorial Inquérito. 1988.
5
ZILBERMAN, Regina. Fim dos livros, fim dos leitores? São Paulo: SENAC, 2001.
15
Sócrates, no diálogo com o rapsodo
6
Íon, problematiza a criação dos poetas, isto é, o
saber de um poeta estaria relacionado a regras de composição ou à inspiração? Ao buscarem a
reposta, ambos concluem que a arte não é uma criação racional, mas divina. Segundo Sócrates
é a inspiração da Musa que possibilita ao poeta criar. Nesse sentido, a razão não faria parte da
criação artística, uma vez que a razão não seria constituída pelas emoções ou pelo entusiasmo,
o que não satisfaz as necessidades do espírito. Esta é uma antiga discussão que acena para o
modo hipotético do artista ver o mundo, ou seja, a arte abarca as dubiedades humanas, porque
o poeta é um ser liberto de amarras estanques e consegue ter uma visão abrangente do ser
humano, propondo a reflexão sobre a vida do sujeito. A partir dessas considerações, outros
estudiosos complementam a especulação iniciada no livro de Platão, como veremos a seguir.
O primeiro deles, Hessen (1999)
7
, tem os seus conceitos pautados na visão da Teoria
do Conhecimento. Nela, o autor busca inicialmente definir o conhecimento ou mostrar em que
ele consiste, problematizando a relação objeto e sujeito. Um dos componentes dessa relação é
o conhecimento científico que, segundo ele, é caracterizado pela racionalidade do sujeito
perante o objeto. O outro é o conhecimento intuitivo, presente na arte e na literatura narrativa.
No entanto este o filósofo não discute. Ou seja, o autor reconhece que a arte tem uma natureza
intuitiva, que diz respeito à subjetividade humana, mas ele se volta para o campo racional.
Hessen não considera o conhecimento subjetivo como parte do campo científico, tanto
que ele não leva em conta a visão do artista. Para ele, a ciência é a interpretação racional da
realidade e o conhecimento intuitivo, proveniente de aspectos subjetivos, não tem “validade
universal”. Desse modo, ele separa o conhecimento intuitivo do científico, ao afirmar que
[...] a filosofia é também essencialmente distinta da arte. A interpretação do
mundo feita pelo artista provém tão pouco do pensamento puro quanto a
concepção de mundo do homem religioso. Também ele deve sua origem
muito mais à vivência e à intuição. O verdadeiro artista não produz sua obra
com o intelecto, mas a partir da totalidade das forças espirituais (HESSEN,
1999, p. 11).
Para o estudioso, a interpretação do artista é diferente da do filósofo, porque aquele leva em
consideração as experiências e especulações frente à vida humana; o filósofo contempla a
descrição e a demonstração como um modo mais verdadeiro de conhecer.
6
Pessoa que recitava poemas que não eram de sua autoria e sem acompanhamento musical.
7
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Tradução de João Vergílio Gallerani Cuter. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
16
A visão de Hessen nas relações entre sujeito e objeto auxilia a situar a arte no
conhecimento humano. Porém não é nosso objetivo aprofundar esta questão. Pretendemos
simplesmente trazer diferentes posições relacionadas ao tema, principalmente no que diz
respeito à arte, tanto é assim que o próximo teórico apresenta uma outra opinião sobre o
assunto.
Croce (1993)
8
considera a arte uma intuição. Ela pode ser uma forma de conhecer,
porque é constituída de questionamentos sobre o ser humano a partir de uma visão que leva
em conta as forças espirituais. Este conceito tem algumas implicações. Ao explicar a arte
pelo conhecimento intuitivo, o autor esclarece que a natureza artística opera no âmbito da
criação e não na solidez dos fatos físicos. Por ser intuição, a arte “não é um ato utilitário”, mas
uma “atividade estética”, que se diferencia do prazer. Além disso, ela não é uma forma de
moral ou de educação, mas ultrapassa essa esfera, porque propõe a discussão e especulação.
Por fim, Croce defende que a arte, enquanto intuição, relaciona-se ao universal, isto é, ela
proporciona uma reflexão sobre a vivência e isto implica uma atitude que não prioriza a
verdade, mas a coerência da visão artística perante os conflitos do ser humano.
Como se vê, além de complementar as idéias que Sócrates suscitou na Antigüidade, as
considerações de Croce são relevantes, porque esclarecem a natureza das criações artísticas.
Assim como outras formas artísticas (música, pintura...), as narrativas ficcionais são
constituídas de especulações e vão além da sua “provação” no cotidiano; provocam múltiplos
sentimentos e/ou recordações, uma vez que cada leitor tem as suas experiências de vida; além
disso, as narrativas não são governadas por uma moral, pelo contrário, propõem ao leitor a
reflexão a respeito dos seus dogmas; e ainda mais não se reduzem a conceitos de “realidade”,
direcionam-se ao horizonte da possibilidade humana.
Ao tratar a arte e nela as narrativas, Croce (1993, p. 50) defende a idéia de que “o que
coerência e unidade à intuição é o sentimento: a intuição é verdadeiramente intuição
porque representa um sentimento, e dele e sobre ele pode surgir. Não a idéia, mas o
sentimento é o que confere à arte a aérea leveza do símbolo”. Ao referir-se à emoção presente
na arte, o autor considera a intuição como parte integrante do processo cognitivo de criação,
pois são os sentimentos, suscitados pela visão do artista, que validam uma obra artística.
8
CROCE, Benedetto. Breviário de estética. Barcelona: Planeta – De Agostini, 1993.
17
Assim, o sujeito, por um processo subjetivo, tem a oportunidade de transcender os fatos
cotidianos por uma ação intuitiva que reconhece a subjetividade como fonte de saber e de
criação. A partir da afirmação do autor, fica claro que a inspiração é impulsionada pelos
sentimentos e estes também fazem parte da vivência humana. Essa perspectiva proporciona a
compreensão do conhecimento intuitivo humano enquanto constituído de processos reflexivos
que vão além de métodos descritivos e de legitimação racional.
Já Gadamer (1983)
9
orienta para dois modos de organizar o conhecimento: o narrativo,
ligado às ciências humanas, e o científico. Com base nisto, adentramos, especificamente, no
modo narrativo de organização, tendo em vista que buscamos, neste trabalho, investigar o
conhecimento presente em narrativas literárias.
Segundo o mesmo autor, a linguagem é um terreno subjetivo e de ordem prática
(social e efetivada no diálogo). Além de ser um sistema, com o qual o ser humano busca
resolver seus conflitos existenciais. Porém, não é por vias metódicas e parciais, como as da
ciência ou da “lógica”, que o sujeito tem satisfeita a sua procura. Conforme o autor, levar em
consideração as “especulações fantásticas” acerca do homem com uma atitude científica
contribui para o entendimento do todo, isto é, a vida. Neste sentido, a linguagem, um
fenômeno social que possibilita a compreensão do mundo, por ser dinâmica e maleável na
elaboração de conceitos, permite uma volta ou uma retomada dos próprios conceitos e
também a criação de novas concepções sobre fatos cotidianos, a partir do diálogo. Por isso, as
ciências humanas, constituídas pela linguagem, estão relacionadas intrinsecamente à
totalidade da vida humana. Elas são dinâmicas, retomam seus próprios conceitos, que podem
mudar dado o caráter sócio-histórico do ser humano. De acordo com Gadamer, este aspecto
das ciências humanas, aliado à maleabilidade da linguagem, contribui para que o
conhecimento se relacione à atitude de interpretação dos acontecimentos humanos
(hermenêutica), e não apenas à descrição de algo.
O autor, na mesma obra, afirma que a ciência não conta das descontinuidades da
vida humana; ela objetiva o controle e não a reflexão e o equilíbrio de situações humanas.
Parece, então, haver uma discrepância entre a linguagem cotidiana e a ciência, visto que “a
ciência emancipou-se da linguagem, ao haver desenvolvido um sistema próprio de designação
9
GADAMER, Hans-Georg. A razão na época da ciência. Tradução de Ângela Dias. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1983.
18
e de formas simbólicas de apresentação que não pode ser traduzido na linguagem da
consciência cotidiana” (p. 18), ou seja, no campo científico, não é estabelecida uma relação de
diálogo e reflexão da vida, numa perspectiva que leve em conta a retomada de idéias e análise
de conceitos na trajetória do ser humano.
Porém não podemos deixar de apontar o progresso industrial impulsionado pela
ciência, na pretensão de explorar ao máximo a natureza. Apesar disso, Gadamer esclarece que
o automatismo nas formas sociais e o poder de elites contribuem para a depreciação do
espírito humano, justamente por não proporem a reflexão do sujeito dentro da sua história.
está a grande questão: o conhecimento produzido pelo método científico da ciência, muitas
vezes, não desempenha um grande diferencial na vida cotidiana, porque sua comunicação é
limitante. A interação humana é mais do que descrição, é ambígua, dinâmica e mutável.
Propriedades que as áreas humanas já priorizam. Nelas se destacam as artes que, por sua vez,
são constituídas também pelas narrativas literárias. Estas proporcionam um conhecimento por
um processo interpretativo que contempla a intuição e especulação diante das ações humanas.
Ao propor a busca da conscientização do ser humano, o filósofo faz afirmações a
respeito da arte como fonte de reflexão. Ele explica que a arte é a herança das investigações
humanas, porque ela faz a mediação entre concepções teóricas e o nosso mundo. De acordo
com Gadamer, o mundo é sempre estranho para nós, visto que o modificamos e, assim, surge
a necessidade da justificativa, ou seja, o processo de conhecer humano. Ele afirma que nesse
processo “se realiza não só o diálogo que cada ser pensante trava consigo mesmo, mas
também o diálogo no qual estamos todos compreendidos e que nunca cessará” (p.25). Uma
atividade infindável, que não acontece na ciência, uma vez que nela busca-se respostas
fechadas e estagnadas no tempo. Então, o referido teórico justifica a arte como um
conhecimento contínuo do e para o ser humano.
Por sua característica intuitiva, a arte propõe a autocompreensão do ser humano
imerso na sua própria vida. Um processo subjetivo e constituído de especulações espirituais.
Desse modo, a arte faz a mediação entre mundos possíveis e possibilita a sua investigação,
assim como a ciência. No entanto, a arte é uma experiência da verdade que ultrapassa o
conhecimento metódico, ela se relaciona à tradição histórica humana, conforme explica
Gadamer. Nesta perspectiva, o conhecimento é tido como um processo de eterno
questionamento do mundo humano e a arte, por contemplar a práxis do ser humano,
19
possibilita novas investigações a respeito da vida, porque articula conceitos e idéias que
fazem parte da cultura. Além disso, a arte é aberta para novos questionamentos acerca do
homem, uma atitude presente na prática cotidiana.
De acordo com o filósofo, a práxis está voltada às escolhas reflexivas do ser humano.
Por isso a arte se volta para a experiência humana e não a métodos. Ela é reflexão e não a
mera repetição. Um caminho para pensar e compreender o homem numa visão integrada e
renovada. Por isso Gadamer chama a atenção para que diferentes pontos de vista sejam
investigados, sejam consideradas as suas verdades, mas que se mantenha uma atitude aberta
para novas experiências e discussões.
Os diferentes enfoques apresentados em relação ao lugar da arte na tradição nos
evidenciam a fertilidade do tema. A arte e o conhecimento mantêm uma relação complexa e
ao mesmo tempo sutil. É difícil explicar no que consiste a arte, porém não como
desvencilhá-la do processo de conhecer humano enquanto uma atividade que leva em
consideração a subjetividade. Mais do que qualquer outra criação humana, a arte abarca os
conflitos do espírito por uma perspectiva aberta, isto é, a visão intuitiva do artista denuncia as
tensões diárias e propõe ao sujeito uma nova reflexão sobre a sua existência. Ela não firma
valores, problematiza a vida.
Por contemplar a multiplicidade da vivência, a arte é uma possibilidade de
conhecimento do e para o ser humano. No que se refere ao âmbito artístico e nele as
narrativas ficcionais, o conhecimento por elas possibilitado garante a compreensão da vida
por um processo integrado a uma ação especulativa. Desse modo, conhecer é uma ação
reflexiva que ocorre em um nível que o significado ultrapassa o dado e modifica as
experiências do sujeito, logo uma atividade que supera métodos, e que leva em consideração o
diálogo constante do viver. Assim, fazemos alusão ao conhecimento que as narrativas
ficcionais proporcionam ao sujeito.
Tendo em vista que as narrativas pertencem às manifestações lingüísticas,
necessariamente, são constituídas do caráter dinâmico da interação comunicativa. A seguir,
investigamos um modo específico de organizar os saberes: a narratividade.
20
1.1 Narratividade: um modo de conhecer/interpretar o ser humano
Após a reflexão em torno do conhecimento da arte, investigamos a natureza da
narratividade. Como visto, a visão das ciências humanas abrange as questões existenciais de
um modo mais compreensível, à medida que elas (ciências humanas) possibilitam reflexões
inerentes à nossa própria vida social. As narrativas, baseadas nessa visão, como possibilitam o
conhecer? Para responder a essa pergunta, partimos do pressuposto de que a interpretação é
um modo de conhecer. Um processo que leva em consideração a capacidade de criação do
sujeito a partir das suas vivências, isto é, da narração. Para tanto, apresentamos os conceitos
de Bruner (1997 e 2002), pesquisador da área da Psicologia, que explica a narratividade nas
relações sociais e as suas implicações no processo de conhecer humano.
No meio social, as interações humanas vêm calcadas de intenções que no processo
precisam ser entendidas ou negociadas, segundo Bruner (1997)
10
. Para que os sujeitos se
entendam e cheguem a um consenso, a linguagem e a interpretação são fundamentais. O
conhecimento lingüístico não capacita o homem só para a comunicação, mas também para um
nível de compreensão mais complexo de interpretação de si e do outro, ou seja, a linguagem,
por ser inseparável do sujeito, atua junto com ele nas diferentes situações de convívio social,
por isso possibilita a interação. Nesse sentido, os sistemas simbólicos fornecem muitos
saberes, justamente por serem produtos da interação humana. O teórico chama estes saberes
de “psicologia popular”, um modo que o homem tem de organizar a sua experiência no
mundo social
11
.
Para que funcionem e sejam entendidos os saberes culturais, de acordo com o autor
(BRUNER, 2002)
12
, duas formas de funcionamento cognitivo: o narrativo e o científico
(lógico-científico), que auxiliam na organização do conhecimento. Ele afirma que estes dois
modos de pensar e organizar a experiência humana são complementares, mas irredutíveis um
ao outro, pois se diferenciam pelos seus modos de verificação. Uma concepção próxima às
10
BRUNER, J. Atos de significação. Tradução de Sandra Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
11
O estudioso em questão propõe uma nova visão a respeito da cultura e do pensamento humano. Ele afirma que
é “a cultura, e não a biologia, o que molda a vida e a mente humanas, que significado à ação, situando seus
estados subjacentes em um sistema interpretativo” (BRUNER, 1997, p. 40). Isto é, ao criar significados, o
homem organiza sua experiência no mundo, o conhecimento de si e do outro com quem se relaciona.
12
BRUNER, J. Realidade mental, mundos possíveis. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.
21
idéias de Gadamer, debatidas anteriormente, isto é, tanto o modo narrativo quanto o científico
podem ser usados para convencer alguém, mas do que eles convencem é fundamentalmente
diferente: os argumentos convencem alguém de sua veracidade; as histórias de sua
semelhança com a vida” (p. 14).
O pensamento lógico-científico procura descrever e justificar as “verdades” empíricas;
o narrativo procura investigar as ações humanas, mas de forma especulativa e interpretativa.
O primeiro tende a explicar e justificar os acontecimentos, utilizando-se da argumentação para
atingir a verdade dos fatos. O segundo se ocupa das vicissitudes humanas e da criação de
mundos possíveis pela imaginação, questionando o mundo cotidiano.
Bruner (2002), interessado em desvendar o poder da narrativa, argumenta que ela é
constituída de mecanismos psicológicos relacionados à “vida real”, e que na leitura ocorre um
processo de identificação dos elementos reais no fato narrado, isto é, a interpretação. O
teórico esclarece que a narrativa aborda as ações, intenções, vicissitudes e conseqüências da
vida humana, e, assim, “se esforça para colocar seus milagres atemporais nas circunstâncias
da experiência e localizar a experiência como epifanias do comum” (p. 14). É desse modo que
a narrativa, pelo ato de ler, se relaciona à subjetividade e, assim, oferece ao leitor a
possibilidade de criar mundos e compreender, de forma integrada, o significado das suas
próprias ações.
A criação de mundos pela narrativa levanta outra questão interessante sobre a sua
relação com o ser humano. Numa narrativa, os elementos envolvidos são retirados da própria
vida humana, mas adaptados à realidade do próprio romance. Bruner (2002, p. 26) afirma que
“os textos de ficção constituem seus próprios objetos e não copiam coisas já existentes”, pois
é “o elemento da indeterminação que evoca o texto a se “comunicarcom o leitor, [...], a
intenção é iniciar e orientar uma busca por significados entre um aspecto de significados
possíveis”. Isto é, a narrativa busca proporcionar a construção hipotética de mundos e de
situações compreensivas, pela perturbação da subjetividade do leitor. A criação hipotética,
intuitiva de mundos possíveis pelas narrativas é o processo complexo da cognição humana,
visto que, conforme esse autor, envolve a criação e a interpretação de significados, a
“sujeitificação” por personagens e situações conhecidas e a possibilidade de uma “perspectiva
múltipla”, a abertura para diferentes visões. Nesse sentido, as narrativas se mostram
22
potenciais de conhecimentos diversos e perturbadores diante das alternativas de compreensão
de realidades propostas.
Portanto, dos dois modos de organização de conhecimento apresentados por Bruner
(2002), fica evidente a capacidade de criação do modo narrativo. Este, por dar espaço à
reflexão diante das metáforas e de situações verossímeis apresentadas, possibilita gerar
hipóteses sobre um mundo que o próprio leitor vai desvendando e construindo. Embora a
organização intrínseca das narrativas não se altere, elas são dinâmicas na perspectiva de sua
interpretação e discussão. Esta é a característica de alternatividade da narração que se mostra
inerente à vida cotidiana do ser humano. O texto narrativo é caracterizado pela ambigüidade e
dinamicidade presentes também na vida do sujeito, uma vez que a cada retomada da narração
pode haver novas reflexões, isto é, ele não é estanque, mas aberto a novas considerações. É
por isso que as narrativas ficcionais são importantes à medida que oferecem novas visões da
vida para o ser humano, mesmo que o texto em si não mude.
Bruner (1997) afirma que a organização do conhecimento humano é feita pelo
princípio narrativo. Esse organizar, para ele, depende de três características fundamentais da
narratividade, quais sejam: a seqüencialidade, a apresentação de um comportamento
excepcional e a função de uma narrativa enquanto possibilidade de compreensão de um
desvio de comportamento padrão. Tais características explicamos a seguir.
No que se refere à seqüência dos eventos em uma narrativa, Bruner (1997) a considera
um arranjo complexo e fundamental na leitura. Ele afirma que a seqüencialidade de uma
história está intrinsecamente ligada aos seus outros elementos, que são os acontecimentos
envolvendo personagens humanas. Estas só ganham vida no desenrolar da narrativa. O teórico
esclarece que compreender uma narrativa é um ato duplo: “o intérprete tem que captar o
enredo configurador da narrativa a fim de extrair significado de seus constituintes, os quais
ele deve relacionar com o enredo. Mas a configuração do enredo deve, em si, ser extraída da
sucessão de eventos” (p.46). Podemos dizer que isto significaria o processo de leitura
compreensiva do que está sendo narrado. Isto é um aspecto muito importante na interação e
na organização do conhecimento humano, haja vista que um relato é a forma mais simples de
entender um acontecimento. A narração é um modo fundamentalmente humano de organizar e
interpretar experiências, porque ela envolve questões humanas e é constituída por elementos
que tratam da cultura humana. No entanto, não deixa de ser um processo mental complexo.
23
Quanto ao assunto que uma narrativa explora, Bruner, na mesma obra, declara ser algo
excepcional em relação ao comum. Isto é, por uma cultura ser constituída de padrões
convencionais, ela também apresenta procedimentos interpretativos desses padrões. O
estudioso explica que a narrativa e a interpretação narrativa permitem o questionamento das
regras sociais pelos sujeitos. A visão de uma narrativa possibilita a compreensão dos
significados implícitos das convenções. Nas próprias palavras do teórico, “as histórias
atingem seus significados explicando desvios do comum de uma forma compreensível,
oferecendo a “lógica impossível” (p.49). Portanto uma narrativa é uma forma de ver um
acontecimento por um outro viés, ou seja, a exceção que ela apresenta faz sentido por ser um
olhar diferente sobre o que acontece na vida do sujeito.
A interpretação narrativa, no processo complexo da leitura, apresenta uma visão
diferente diante das questões humanas e do cotidiano. Para Bruner (2002), as histórias
literárias são sobre acontecimentos em um mundo “real”, mas elas “tornam este mundo
estranho de uma forma nova, resgatam-no da obviedade, preenchem-no com lacunas que
convidam o leitor [...] a tornar-se um escritor” (p. 25). Nesse sentido, a narrativa é um
conhecimento especulativo que tem como ponto central o possível e a visão integral do ser
humano nas mais diversas situações. Mas é papel do leitor desvendar o “estranho” diante da
obviedade apresentada em uma história. Por isso a narrativa se mostra tão rica de
experiências.
É de grande importância a compreensão de um fato excepcional apresentado por uma
narrativa. Porém, isto é possível pelo fato de uma narração ser constituída de elementos
verossímeis. A sua natureza apresenta aspectos tão “humanos” justamente para tratar de uma
atitude humana não canônica. Bruner (1997) esclarece que em uma narrativa há uma intenção
que possibilita a compreensão de um acontecimento que foge ao esperado, utilizando-se da
surpresa, a violação ao esperado. O inusitado instiga e até impõe uma reflexão ao sujeito
sobre aquilo que lhe é tão familiar. Ele chega ao que seria “uma história boa”, aquela que é
“aberta a várias leituras, um tanto sujeita aos caprichos de estados intencionais
indeterminados” (p.53). Dessa forma, a característica verossímil da narrativa se estabelece
como um potencial interpretativo muito rico das ações humanas no plano das possibilidades
justamente por abarcar situações admissíveis dentro de um mundo criado e inspirado na vida
cotidiana.
24
Por ser constituída pela verossimilhança que remete à subjetividade, o mesmo autor
acredita que o ser humano se identifica muito com histórias, pois possibilitam uma
experiência dúplice: a identificação de situações prováveis, e também, a fantasia inspirada
na vida social concreta. Além disso, uma narrativa é sempre sobre “alguém”, isto é, ela é
construída por um olhar humano. Por isso Bruner acredita que uma narrativa é uma garantia
perene da humanidade de continuar indo “mais além” das realidades oferecidas. Ele afirma
que o ser humano se identifica muito mais com uma história do que com as premissas de um
relato “científico”, justamente por ela ser formada de elementos humanos e permitir novos
conceitos, novas visões e reflexões sobre aquilo que o rodeia.
Tendo esclarecidas as três características, podemos entender porque Bruner declara
que a organização da experiência humana é feita pela narratividade. O autor acredita que as
interações humanas apresentam essas características por serem de fácil compreensão e de
simples organização, dado que abarcam a memória, a produção, a conservação e a alteração
de significados. Tanto que se algo fora do comum está acontecendo, a explicação será dada
em narrativa e com as características apresentadas. Dessa forma, falar e fazer são ações
inseparáveis do ser humano. Além disso, seja no modo escrito ou oral, a narratividade é um
ato que transita entre as convenções da cultura e o mundo dos desejos porque ela é sensível
com as ações culturais e o drama subjetivo humano, por isso a narratividade é chamada pelo
autor de “moeda de troca” (BRUNER, 2002).
Sendo assim, a vida em uma cultura fornece conhecimentos que possibilitam a
convivência entre as pessoas. Os saberes dos significados
13
e das regras convencionais
permitem a interação entre os sujeitos de um determinado grupo. Para tanto, no processo
interativo humano, a comunicação narrativa é um conhecimento importante na práxis
discursiva e que tem características básicas para seu funcionamento tais como: apresenta
ações verossímeis, tem uma seqüencialidade, discute as atitudes humanas frente às
convenções sociais; e é orientada por uma visão também humana. Bruner (2002) esclarece
também que a linguagem, por ser um conhecimento cultural, é aberta à negociação e à criação
13
Na busca de compreender as ações e os conflitos subjetivos humanos, surge o questionamento em torno do
significado presente nas práticas sociais. Bruner (1997), conceitua o significado como sendo um fenômeno
culturalmente intermediário que depende da existência prévia de um sistema compartilhado de símbolos” (p. 66)
que estão sujeitos à interação humana, coordenada por normas. Este é o complexo ciclo interativo humano, isto
é, o significado é resultado da prática humana e da busca do uso coordenado de sistemas criados para que tornem
o relacionamento dos sujeitos possível e, ao mesmo tempo, é flexível no que se refere à criação de novos
significados, a partir dos códigos já existentes.
25
de significados, tendo em vista que o ser humano faz parte da cultura que herda e que pode
transformá-la.
Assim, a narratividade desempenha uma função essencial na cultura humana. Os
aspectos apontados por Bruner sobre esse modo de organizar vivências fornecem bases tanto à
idéia de narratividade, enquanto ação constituinte das relações sociais humanas, quanto ao
estilo escrito no âmbito das narrativas literárias. Isto é, quando se fala em narrativas estamos
lidando com um estilo artístico que explora diversas questões humanas e que possui
características próprias, que aqui foram debatidas.
A narrativa é um modo de ver o mundo muito especial. De acordo com as
considerações de Bruner (2002), a arte da narração literária nos permite uma abertura para
novos dilemas, por meio de hipóteses, e a repensar o cotidiano. Isto é, “a literatura
subjuntiviza, torna estranho, transforma o óbvio em menos óbvio, o incompreensível menos
incompreensível, questões de valor mais abertas à razão e à intuição” (p.165). Uma habilidade
humana que discute permanentemente o próprio ser nas mais diversas situações e busca a
visão integrada do homem a partir da sua vivência social.
Após as explanações de Bruner a respeito das características da narrativa e as suas
implicações nas relações culturais, partimos para os conceitos de Larrosa sobre a interpretação
narrativa.
1.2 O processo interpretativo: uma ação humana
Para discutirmos o papel formativo e transformador da leitura na vivência humana,
recorremos também aos estudos de Larrosa (2003)
14
, que apresentam uma visão do ato de ler
enquanto ação subjetiva e intransferível do sujeito. Além disso, ele afirma que a leitura é um
ato interpretativo de si próprio, ou seja, auxilia o sujeito a ter uma compreensão mais
abrangente de si e do seu meio por um processo que leva em consideração o que ele sabe.
Para tanto, a imaginação, capacidade de criação, é um recurso importante para a efetivação da
14
LARROSA, J. La experiencia de la lectura: estúdios sobre literatura y formación. 2. ed. México: Fondo de
Cultura Econômica, 2003.
26
interpretação. O teórico assinala que a imaginação é um pressuposto das narrativas literárias e
que elas, assim constituídas, proporcionam, pela língua, a reconstrução e a incrementação do
cotidiano do sujeito. Larrosa, então, discute a leitura em duas perspectivas: a leitura como
formação e a formação como leitura.
Inicialmente discutimos alguns conceitos importantes que caracterizam a leitura como
ato interpretativo da vivência humana. A interpretação é uma ação, porque implica a atuação
do sujeito, isto é, no processo interpretativo, o leitor tem a possibilidade de analisar a sua
situação a partir de um contexto dado numa narrativa; é uma auto-avaliação, mas que pode
envolver o seu meio, tendo em vista que o ser humano é um ser integrado a uma rede social.
Nesse sentido, Larrosa explica que a ação interpretativa não só está agregada à experiência de
conhecer novas circunstâncias, como também aos sentimentos.
O teórico define a experiência como o amadurecimento do sujeito no decorrer da sua
vida. Experienciar é um saber subjetivo, pessoal e inseparável do ser humano, visto que
constitui o seu caráter, além de ser entendida como uma atividade que supera as frivolidades
cotidianas para um nível mais compreensível dos fatos. Larrosa (2003, p. 28) assim
conceitualiza experiência: “seria o que nos passa; não aquilo que passa, mas o que nos
passa”
15
, ou seja, é tudo aquilo que o sujeito vivenciou. As vivências, por sua vez, são os
conhecimentos do sujeito, pois o constituem: ao marcar a sua subjetividade, deixa marcado o
seu processo de vida, em virtude de saber algo que antes não sabia, não havia experienciado;
logo, já não é mais o mesmo.
Há de se acenar para o fato de que, ao se tratar de narrativas e para que estas
possibilitem experiências ao sujeito, é preciso que ele também se valha da imaginação, cuja
característica criadora constitui a capacidade humana de viver. Em relação às narrativas, por
elas serem organizadas lingüisticamente, é essencial para a compreensão de uma história a
criação imagética por parte do sujeito. A reprodução, por parte do leitor, daquilo que a
narrativa expõe é composta, necessariamente, pelas experiências dele, mas que são
incrementadas, por sua vez, pela situação narrada. Dessa forma, o sujeito tem ampliado o seu
conhecimento, não só por vivências do cotidiano, mas também por vivências ficcionais,
podendo ser até mais férteis e complexas. Esclarecidos esses conceitos, passamos para as duas
15
Nas suas palavras, em espanhol, “sería lo que nos pasa. No lo que pasa, sino lo que nos pasa”, no original.
27
perspectivas de leitura de Larrosa. Em relação à leitura como formação, o teórico explica que
ler não é uma atividade subjetiva do leitor como também o constitui e o transforma. Ler
não é um ato trivial, mas sim complexo, pois, como Larrosa afirma, a interpretação de uma
obra se no mundo da imaginação, e o sujeito não é mais o mesmo após a leitura, porque
viveu alguma experiência. Dada a característica potencializadora da ação interpretativa, o
estudioso esclarece que a leitura como formação é “pensar essa misteriosa atividade que é a
leitura como algo que se relaciona com aquilo que nos faz ser o que somos”
16
(p.26).
O teórico chama a atenção para a abrangência do ato de ler, ou seja, como este ato
afeta o leitor, tendo em vista que há, no processo interpretativo, o envolvimento da
subjetividade do sujeito e a da sua capacidade imaginativa. Um processo dinâmico, complexo
e pessoal, por isso potencializador do ser do sujeito. Portanto a interpretação narrativa
influencia na formação da subjetividade humana. Vale ressaltar que o teórico em questão não
conceitua formação como algo rígido, pré-existente ou uniforme, mas sim uma formação ativa
e particular de cada ser humano na atividade interpretativa de uma narrativa.
Essa é a premissa do autor para explicar a perspectiva de formação como leitura e,
além disso, considera que a interpretação é uma produção de sentido sobre o ser humano. É a
atitude do sujeito frente ao que lhe acontece. Assim, a relação com a narrativa é importante,
tendo em vista que é com ela que o sujeito intercambeia saberes, tanto os seus quanto os da
situação narrada. Por isso a idéia de formação definida por Larrosa é compreender o que a
narrativa tem a dizer, para que possibilite um novo conhecimento ao sujeito, por um processo
de enriquecimento subjetivo e pela transcendência de um fato dado.
1.2.1 Interpretação: transcender para compreender
Em relação à narrativa literária, Larrosa (2003) afirma que ela, juntamente com a
Filosofia e a História, pode auxiliar a mudar a vida de um sujeito. Ele explica, inicialmente,
que a vida humana possui a característica narrativa e a compreensão de si implica na
conversão do tempo convencional para o tempo humano, ou seja, do sentido. Portanto saber
16
Em espanhol, no original, “pensar esa misteriosa actividad que es la lectura como algo que tiene a ver com
aquello que nos hacer ser lo somos”.
28
quem é o ser humano “implica uma interpretação narrativa”
17
(p.38) dos fatos e das emoções
que o constituem. O estudioso ainda explica que compreender o outro exige a mesma coisa,
isto é, narrar-se faz parte das relações sociais. É evidente, então, a importância da
narratividade na cultura humana, haja vista que a troca de experiências e a organização de
conhecimentos acontecem nessa prática: o sujeito e o seu meio são mediados pela
interpretação narrativa.
Dessa forma, a narratividade desempenha uma função propriamente humana, tanto no
contexto social quanto subjetivamente: organizar as diferentes experiências vividas para que
sejam entendidas. Uma atividade que possibilita transcender ao fato dado, ou seja, ter uma
atitude interpretativa da vida. O mesmo processo acontece nas narrativas literárias, em que a
criação é o elo entre autor e leitor, mas nesta relação é fundamental que se compreenda a
visão que está sendo proporcionada e revelada no texto, a partir das inquietudes humanas
(explícitas ou não). Interpretar a criação é também postar-se diante de um fato que provoca e
abre, no âmbito da possibilidade, a discussão e ressignificação do viver social.
No processo interpretativo, fica claro que a sua realização não se pela decifração de
códigos, que ela ocorre lingüisticamente, mas necessita uma relação de sentido entre o
sujeito e o texto, para compreender o que ele diz e o que não diz. É uma atividade que permite
uma abertura, porém é imprescindível abandonar a arrogância e se deixar guiar por uma
inquietude que potencializa a imaginação. A interpretação narrativa leva o sujeito a pensar em
si próprio, por isso perigosa, de acordo com Larrosa (2003). É uma atitude perigosa, porque
tem a força de “afetar” o leitor perante o mundo organizado em que se encontra: problematiza
a validade das convenções e, sendo assim, pode alterar os conceitos por uma ação reflexiva
que amplia horizontes. Por isso, interpretar é ultrapassar o código da língua, é silenciar para
ouvir novas experiências e acrescentá-las ou não à sua própria vivência; é formação e
deformação da subjetividade para que haja a “trans-formação”
18
.
Nessa perspectiva, é importante destacar com Larrosa (2003), que as narrativas
literárias auxiliam na potencialidade criadora do ser humano no âmbito da especulação e não
da moral ou normatização. As narrativas estão relacionadas à existência humana no sentido de
abertura e da pluralidade. O autor explica ainda que os segredos delas não são todos
17
No original significa “implica una interpretación narrativa”.
18
No original escrito “trans-formación”.
29
desvendados, os comentários a seu respeito não têm um limite, pois quanto mais acreditamos
que sabemos o que o autor disse na obra, mais ampla ela se mostra sobre o que não disse. Isto
é, “a literatura nunca se entrega totalmente ao mundo, à cultura ou à personalidade do leitor”
19
(p. 519). Ela é infinita diante da sua manipulação, mantendo-se intacta. Estas o
características que perpetuam as narrativas na história humana: as inquietudes que apresentam
não são respondidas e dadas por encerradas. Elas sempre deixam algo inconcluso. Por isso
mostram a sua força. O que é limitado e violável é o próprio ser humano, na sua condição de
subordinado de si e do seu meio.
As experiências interpretativas são experiências intertextuais, afirma Larrosa (2003).
Ele considera que o ser humano é um ser que compreende a si e aos outros pelo modo
narrativo, e assim é estabelecido um sentido para a vida humana (subjetiva e social). Este
sentido do ser depende das histórias a que o sujeito teve acesso (lidas ou escutadas) ao longo
de sua vida, haja vista que foram as mediadoras das práticas sociais, e, assim, a
intertextualidade narrativa tem um caráter pragmático. Dessa forma, o sujeito que dá sentido à
sua existência por uma interpretação narrativa, que, por sua vez, é um processo lingüístico,
constitui-se dentro desse sistema; logo, é impensável o ser humano fora da linguagem, conclui
o teórico.
A interpretação narrativa leva em consideração duas perspectivas temporais: a
temporalidade intrínseca da vida e o sentido do que o sujeito é para si mesmo a partir de suas
experiências. Na obra referida, Larrosa afirma que o processo interpretativo não só é marcado
por uma consciência de durabilidade em um tempo, como também as experiências dentro
deste tempo. Este último aspecto possibilita ao sujeito interpretar-se, pois a experiência
permite a elaboração do sentido da existência, ou seja, a articulação dos acontecimentos
vividos pelo sujeito é caracterizada por sua significância. E ao elaborar esse processo, o
sujeito tem sempre a chance de reelaborar, atualizar e problematizar quem ele é. Larrosa
(2003, p. 615) assim explica esta questão: “toda viagem verdadeira é viagem interior e toda
experiência verdadeira é experiência de si próprio
20
. Isto é, o sentido da vida é um processo
subjetivo, narrativo e interpretativo, a fim de elaborar a sua identidade pessoal.
19
Em espanhol, no original, “la literatura nunca se entrega totalmente al mundo, a la cultura o a la personalidad
del lector”.
20
Escrito, no original “todo viaje verdadero es viaje interior y toda experiencia verdadera es experiencia de uno
mismo”.
30
Larrosa (2003) esclarece também que quanto mais o sujeito tiver acesso às mais
diferentes histórias, mais recursos terá à disposição para interpretar a si e aos outros, tendo em
vista que a narrativa é uma prática social discursiva. Sendo assim, além de ter uma
importância subjetiva, a narratividade desempenha um papel muito importante para a
compreensão das relações sociais, porque possibilita uma multiplicidade de interpretações da
cultura humana e de repensar as convenções estabelecidas. Como se vê, o estudioso conclui
que a vida é uma conversação polifônica de narrativas e experiências interpretativas.
A relevância e os efeitos das narrativas literárias marcam a relação entre o leitor e o
texto, entre a vida cotidiana e a ficcional, do tempo convencional e do tempo subjetivo, numa
prática que não busca a verdade, mas a possibilidade. Larrosa (2003, p. 536-537)
21
afirma,
então, que
[...] a literatura que tem o poder de transformar não é aquela que se dirige
diretamente ao leitor dizendo-lhe como tem que ver o mundo e o que deve
fazer, não é aquela que lhe oferece uma imagem do mundo nem a que lhe diz
como deve interpretar-se e as suas próprias ações; tampouco é a que renuncia
o mundo e a vida dos homens e se dobra sobre si mesma. A função da
literatura consiste em violentar e questionar a linguagem trivial e fossilizada,
violentando e questionando, ao mesmo tempo, as convenções que nos dão o
mundo como algo já pensado e dito, como algo evidente, como algo que
nos é imposto sem reflexão.
A reflexão é a interiorização da experiência pelo sujeito. No processo interpretativo, o
ser humano tem a chance de enriquecer-se de experiências numa prática ativa que leva em
consideração o estabelecimento de uma relação de escuta e compreensão da dimensão pessoal
e social de si mesmo. Com as narrativas, a reflexão não é, como apontado pelo teórico, algo
simples. Ela é assinalada por rupturas e novas visões frente ao que se vive. Podemos dizer que
é um “voltar a agir” perante às idéias já pensadas e impostas. Ao experienciar, com a
atividade interpretativa, a subjetividade é alterada, se transforma, o que gera a consciência, a
identidade humana.
21
Nas suas palavras, no original “la literatura que tiene el poder de cambiar no es aquella que se dirige
directamente al lector diciéndole mo tiene que ver el mundo y qué debe hacer, no es aquella que le ofrece una
imagem del mundo ni la que le dicta cómo debe interpretarse a mismo y a sus propias acciones; pero tampoco
es la que renuncia al mundo y a la vida de los hombres y se dobla sobre misma. La función de la literatura
consiste en violentar y cuestionar el lenguaje trivial y fosilizado violentando y cuestionando, al mismo tiempo,
las convenciones que nos dan el mundo como algo ya pensado y ya dicho, como algo evidente, como algo que se
nos impone sin reflexión”.
31
1.2.2 Narratividade: uma experiência de escuta
A identificação humana nas narrativas se quando a leitura é escuta, como explica
Larrosa (2003). Para que isso ocorra, é preciso um “silêncio”, isto é, a experiência de solidão.
A relação com o texto, dessa forma, é um distanciamento temporal: o mundo cotidiano fica
suspenso para dar lugar à criação. O estudioso justifica o silêncio e a solidão porque
“necessitamos ausentar-nos para ler, porque falamos demais sem dizer nada, porque
escutamos demais sem ouvir nada, porque estamos demais na fala”
22
(p.600). Ele chama a
atenção para as idéias que não são resultados de reflexão, são meras informações que
circundam o sujeito, de uma forma que impede a produção de saberes.
Larrosa também afirma que o silêncio possibilita uma certa sensação, uma recuperação
da unidade do ser, no seu “ensimesmamento”. No entanto, esse “silêncio” é sonoro, à medida
que deixamos o texto falar; não a falação rotineira, mas a fala da escrita: ler, logo, interpretar.
Nessa perspectiva, o filósofo aconselha
[...] não leias como se estivesses na fala, não leias o que meramente pode vir
na fala, somente o que não pode estar na fala, o que não se pode dizer nem
ouvir na fala, o que somente se pode dar como lido..., e isso o que lês não
fales, não o digas, não o comentes, não o expliques, não digas nada, não que
ao introduzi-lo na fala o dissipas e o percas ao convertê-lo em objeto de
conversação (LARROSA, 2003, p. 602-603).
23
A idéia de Larrosa é justamente preservar o silêncio e a relação estabelecida com o
texto; preservar a integridade da interpretação, não despejá-la ao vento como muitos fazem
porque a experiência é subjetiva. Preservar a humildade da escuta de narrativas é deixar aberta
a possibilidade de criar e também do sujeito se permitir novos conhecimentos, tendo em vista
que o sentido do que é o ser humano é construído a partir de uma interpretação narrativa de si
dentro de um contexto social.
No processo de escuta da interpretação narrativa, há a construção de sentidos na
relação entre o presente e o ausente, entre o dito e o não dito, entre o que está escrito e não
22
No original, significa “necesitamos retirarnos a leer porque hablamos demasiado sin decir nada, porque
escuchamos demasiado sin oír nada, porque estamos demasiado en el habla”.
23
No original, em espanhol, “no leas como si estuvieras en el habla, no leas lo que meramente puede venir en el
habla, lee solo lo que no puede estar en el habla, lo que no puede decirse ni oírse en el habla, lo que solo puede
darse como leído..., y de eso que lees no hables, no digas palabra, no lo comentes, no lo expliques, no digas
nada, no sea que al introducirlo en el habla lo pulverices y lo pierdas al convertilo en objeto de conversación”.
32
está escrito no texto, segundo Larrosa (1999)
24
. Isso faz com que o leitor se responsabilize
pela busca do que a narrativa diz, porque ele está sendo questionado. Por isso é importante o
silêncio e a humildade para conhecer além do que se sabe. O filósofo, na obra referida,
explica, então, que ler “não é uma experiência pessoal ou, dito de outro modo, a leitura é uma
experiência em que o pessoal fica abandonado como condição da própria experiência” (p.
104). Parece um paradoxo, porém, a atividade da interpretação é outra perante o mundo,
requer que o “já dito e estabelecido” lugar à imaginação, tendo em vista que o mundo tem
a chance de ser criado novamente.
Larrosa (1999) afirma que o olhar do leitor, após a interpretação narrativa, continua
sendo interpretação, porque a linguagem constitui o ser humano e as suas relações sociais,
mas é um olhar integrado da sua vivência. O leitor se encontra com o mundo e, da mesma
forma, encontra-se. O processo interpretativo, que possibilita novos conhecimentos, faz com
que o sujeito encontre um mundo completo, não fragmentado e classificado, ou seja,
compreende que a linguagem é viver e que por isso, o interpretar “é um deixar aparecer o
existente em seu ser, em sua plenitude e em seu distanciamento, isto é, em sua verdade” (p.
113).
De acordo com o estudioso, o “ensimesmamento”, a partir das narrativas, é a
possibilidade de novas criações e também de olhares frente ao mundo, ou melhor, “o livro é
aquilo que ensinou o leitor a ler o mundo poeticamente” (LARROSA, 1999, p. 111). A ação
do leitor no processo interpretativo, que leva em consideração uma atitude de escuta, ressalta
que a abertura para novos olhares é muito válida para a própria existência. Assim, questionar-
se é não um processo de interpretação que pode proporcionar ao ser humano agilidade e
movimento como também uma visão plena da vida, nas suas relações sociais.
Em um outro trabalho, Larrosa (2004)
25
esclarece que o processo interpretativo não é
transmissão de um método com regras para que todos sigam. Saber ler é interiorizar novas
experiências, por isso não é algo que se possa ensinar, segundo o autor. Ler é “uma arte livre e
infinita que requer inocência, sensibilidade, coragem e talvez um pouco de maldade”. Além
disso, os livros “estão para serem lidos e suas leituras possíveis são múltiplas e infinitas; o
24
LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Tradução de Alfredo Veiga-Neto. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.
25
LARROSA, Jorge. Nietzche & a educação. Traduzido por Semíramis Gorini da Veiga. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004.
33
mundo está para ser lido de outras formas; nós mesmos ainda não fomos lidos” (p. 27). O
teórico chama a atenção para uma nova atitude diante das narrativas literárias em que a
superficialidade das análises dê lugar para a “interiorização” de experiências. É preciso deixar
livre o caminho da criação por parte do sujeito, sem impor limites, preconceitos ou caminhos
“seguros” para a aventura. É um processo dinâmico, cuja pluralidade de construção de
sentidos à existência humana mostra que as narrativas são terrenos muito férteis de
possibilidades.
Sobre as diversas possibilidades de aventuras e experiências com as narrativas,
Larrosa (2004, p. 30) faz uma analogia com o próprio mundo, isto é, “todo texto, como o
mundo, como o próprio homem é fluído, é um devir que nunca se aproxima ao ser, pois não
existe ser, um movimento que nunca se aproxima à verdade, pois não existe a verdade. O
mundo é uma fábula; seus sentidos, infinitos; a leitura, uma arte”. Por serem as experiências
um processo subjetivo, a vivência humana ganha diversas interpretações e por isso ocorre a
indefinição do ser, tendo em vista a amplitude de respostas. Desse modo, a verdade não é uma
só, pois cada sujeito interpreta a sua vida e as relações sociais de modo diferente, e é isso que
as narrativas possibilitam: olhares diferentes para si e para o mundo. O estudioso ressalta que
a interpretação narrativa é um campo em que as convenções não são seguidas, justamente para
que o sujeito se experiencie neste contexto ativo, na busca do sentido de viver. Sem uma
resposta única, compreende que ele mesmo é constituído por mistérios e contradições, e que a
objetividade restringe as possibilidades de experiências. Por isso, a objetividade não faz parte
da ficção, mas sim a imaginação, que permite novas aventuras dentro da infinitude de
sentidos, ou seja, a arte de interpretar.
A partir dos conceitos de Larrosa sobre o conhecimento narrativo, podemos dizer que
se trata de uma organização muito importante tanto para a subjetividade do sujeito quanto
para a compreensão do seu meio. No que se refere às narrativas ficcionais, a experiência
narrativa possibilita a ampliação da sua capacidade criadora e assim possibilite repensar os
dogmas que constituem o sujeito. Isso potencializa as relações cotidianas no sentido de
problematizar a vivência por uma atividade hipotética, pela transcendência das linhas do texto
na busca de novas situações. Isto é, no processo interpretativo, escutar no silêncio o que o
texto tem a dizer exige a coragem e a ousadia do sujeito de aceitar novos desafios por uma
experiência subjetiva, mas integrada ao seu viver dinâmico.
34
A seguir, passamos a investigar os processos cognitivos pautados na narratividade.
1.3 Os processos cognitivos inerentes à leitura de narrativas
Depois de verificarmos as características do conhecimento narrativo e suas
implicações no processo interpretativo humano, prosseguimos com as considerações de
Turner (1996), Benjamin (1994) e Forster (1969), estudiosos da narratividade, em um âmbito
mais especulativo. Estamos nos aprofundando na discussão do papel das narrativas na ação
interpretativa do ser humano para, mais adiante, analisarmos Vozes do deserto, nosso objeto
de estudo. Neste item, buscamos analisar em que aspectos a narratividade influencia na
cognição humana, tendo em vista que o processo cognitivo é individual e intransferível, a
narração é uma ação hipotética que implica a compreensão do meio em que se vive.
A partir da investigação e análise das experiências diárias do ser humano, Turner
(1996)
26
apresenta as suas considerações sobre a natureza narrativa evidente nestas práticas.
O autor define a narratividade como um modo de interação e de interpretação muito complexa
e de suma importância para homem. Para identificar quais os aspectos desse modo de
organização do pensamento que auxiliam na compreensão da vivência humana, o teórico
explora as características de narrativas, que também contribuem para explicar a linguagem
humana como proveniente da sua mente literária.
Turner parte do pressuposto de que o ser humano tem uma habilidade indispensável
nas ações diárias. Esta habilidade é a imaginação narrativa, uma capacidade essencial para a
cognição humana. Uma característica essencialmente mental que auxilia no planejamento,
predição e explicação das atitudes humanas, ou seja, é uma forma de pensarmos antes de
agirmos, segundo o teórico na obra referida. Logo, a imaginação narrativa influencia na
elaboração de uma história e no objetivo a ser alcançado com ela na práxis humana.
Para que no processo interpretativo entendamos a utilidade e o objetivo de uma
história, Turner explica que é a projeção que nos possibilita compreendê-la. Conforme o
26
TURNER, M. The literary mind. Oxford: Oxford University Press, 1996. Trata-se de uma edição escrita em
inglês, já que não há a tradução para língua portuguesa. Assim, as citações e as traduções são de nossa autoria.
35
autor, projeção é combinação de diferentes elementos na história que fazem referências às
ações e características essencialmente humanas. É um processo de identificação. Dadas as
circunstâncias na interação social, a projeção, característica da capacidade narrativa e presente
em uma história, contribui para um determinado fim, seja pelos elementos com que é
formada, seja pelos sentidos por estes apresentados. Por isso, a narrativa é uma forma básica
de conhecimento. Ela engloba um processo de construção de sentido que é singular na
trajetória humana e seus constituintes se projetam nas atividades cotidianas por um processo
de interpretação e identificação.
Esses dois conceitos fazem parte do trabalho interpretativo e da elaboração de uma
narrativa. A arte, que é um campo de investigação dos saberes e das atitudes humanas, propõe
a reflexão dos padrões estabelecidos em uma sociedade. A manifestação artística abre, por
diferentes ângulos, especulações frente a um dado. As narrativas literárias se valem deste
processo na sua interpretação. Isto é, por envolver elementos identificáveis na vida humana,
elas se caracterizam como complexas, tanto na sua elaboração, quanto na sua compreensão.
Dessa forma, a capacidade narrativa e a projeção são aspectos que qualificam o processo
cognitivo humano como narrativo. A capacidade de utilizar elementos e situações da vida,
juntamente com o sentido que eles carregam, porém atribuindo-lhes novas configurações a
fim de provocarem e serem reavaliados, definem a habilidade narrativa como constituinte da
própria cultura humana.
Com os conceitos de capacidade narrativa e projeção, o teórico investiga as relações
diárias e esclarece que elas têm como base interativa a narração. Ele afirma ser este também o
modo do pensamento humano, pois é uma forma de pensar antes da ação. Por isso, uma ação
mental essencial, isto é, apresenta uma atitude frente a uma situação identificada como
humana. A compreensão desta visão também é uma ação muito ativa, embora inconsciente,
como afirma Turner (1996, p. 6)
27
:
A facilidade com que nós interpretamos uma declaração e construímos
sentidos nessa linha é absolutamente enganoso: nós sentimos como se s
estivéssemos fazendo nenhum trabalho. [...] Nós usamos um complicado
inconsciente conhecimento para entender a fala, mas nós nos sentimos
27
No original, em inglês, “the ease with which we interpret statements and construct meanings in this fashion is
absolutely misleading: we feel as if we are doing no work at all. [...] we use complicated unconscious knowledge
to understand the speech but feel as we are passive, as if we merely listen while the understanding happens by
magic”.
36
passivos, como se nós apenas escutássemos enquanto o entendimento
acontece como mágica.
A compreensão e a interpretação dos sentidos envolvidos em uma história
caracterizam a ação cognitiva humana. Turner explica que a narrativa é uma atividade mental
essencial do pensamento do ser humano, tendo em vista a possibilidade de experiências e a
análise da sua vivência. A habilidade narrativa caracteriza o ser humano. Apesar de muitas
histórias serem inventadas, elas fazem parte e são fundamentais na nossa vida por serem
constituídas de intencionalidade e por utilizarem processos de projeção e análise da vivência.
Assim como na criação, na compreensão de uma narrativa, Turner esclarece que são
associados os elementos e as ações, dentro de um evento, a partir do que temos na nossa
memória, ou seja, usamos as nossas experiências para interpretar uma história, ou “esquemas
de imagem”, como denomina o teórico. Os esquemas de imagem são os nossos padrões ou
modelos, carregados de percepção, a que recorremos para combinar e entender as imagens e
eventos que as histórias propõem. Eles envolvem a noção de tempo, espaço e seqüencialidade
que, como nós também conhecemos, auxiliam na compreensão e na construção de conceitos
abstratos ou para identificar uma contradição dentro de uma narrativa ou nas próprias
convenções sociais.
Além disso, especificamente, Turner apresenta quatro características da imaginação
narrativa, quais sejam: predição, avaliação, planejamento e explicação. A predição diz
respeito ao reconhecimento da seqüencialidade de uma ação numa história. A avaliação se
refere à análise das ações presentes na narrativa e a sua relação com a nossa própria vida. O
planejamento envolve a organização de elementos e situações tipicamente humanas numa
narração. A explicação auxilia, pela narração de atitudes ou ações humanas, em uma situação
inusitada, a compreensão da nossa vivência. Estas atribuições da imaginação narrativa
confirmam o ato de narrar como uma ação cognitiva fundamentalmente humana, pois envolve
o conhecimento intuitivo e as vivências, o que possibilita o nosso desenvolvimento mental e a
análise de nós mesmos.
O teórico ainda cita outros exemplos, pelos quais compreendemos que a narrativa é
fundamental na compreensão de eventos. A habilidade narrativa humana desenvolveu-se pelo
fato de reconhecermos na natureza, principalmente, um sujeito, uma ação e uma conseqüência
da ação do sujeito no seu meio. Ou seja, eventos são histórias com um espaço, determinado
37
ou não, com um lugar e um tempo (seqüencialidade). De acordo com Turner, nós entendemos
um evento por sua estrutura interna, uma característica presente no nosso modo de interpretar,
isto é, a capacidade narrativa está enraizada como um esquema na nossa mente para
entendermos pequenas histórias espaciais (small spacial stories). Isto é reforçado pelas
experiências que já tivemos e nas quais nós nos fundamentamos para entender uma narrativa.
Turner afirma também que as narrativas (populares e literárias) fornecem diferentes
significados para conceitos tidos como fixos. Ele esclarece que o significado não é estático,
mas sim dinâmico e elaborado para fins específicos. Para o compreendermos, a capacidade
narrativa é de suma importância, porque ela se articula não com novos como também com
os conceitos que já temos em mente. Em uma narração o significado não está em uma ação ou
em uma personagem, mas no todo da obra. O ato de interpretar, que utiliza as nossas
vivências num processo de combinar novas experiências, é o que possibilita entendermos uma
história, logo o seu significado.
O autor explica que esta é uma das maiores vantagens da capacidade narrativa: a
liberdade de transformar vivências no nível mental, no qual criamos espaços, tempos e lugares
genéricos importantes à medida que proporcionam novas reflexões pela imaginação. Portanto
elaboramos novos conceitos e inferências para outras situações humanas. Dessa forma, Turner
(1996, p. 86)
28
resume “sentidos, desse modo, não são objetos mentais ligados a lugares
inconcebíveis, mas são operações complexas de projeção, combinações e integrações de
múltiplos lugares”.
O que Turner esclarece é que estes múltiplos espaços são preenchidos segundo o que
melhor explica o implícito. O subentendido está sempre interligado a uma situação que exige
operações complexas de interpretação, isto é a projeção, ou melhor, uma história é projetada
para um determinado contexto e para entender essa relação é preciso associar os conceitos
conhecidos com os que a história sugere. Portanto, interpretar requer um processo dinâmico e
análogo, visto que toda nova experiência é integrada ao estabelecido com o qual
construímos novos conhecimentos.
28
No original, “meanings, in this way, are not mental objects bounded inconceptual places but rather complex
operations of projection, blending, and integrating over multiple spaces.”
38
Na trajetória humana de reconhecimento das suas ações no seu meio, Turner afirma
que a nossa capacidade narrativa desenvolveu-se também com o auxílio do sistema sensório,
tanto que o teórico nos denomina de “seres sensórios”
29
. Ele explica que a habilidade sensória
nos permitiu entender ações em um contexto por diferentes pontos de vista e focos. Ao
interpretarmos, usamos a nossa habilidade imaginativa para ver a mesma história por outros
ângulos, isto também implica a compreensão temporal e espacial da ação contada. Novamente
constatamos que interpretar uma narrativa é um ato complexo. Requisita de nossa capacidade
de narrar a habilidade imaginativa e transcender para novos pontos de vista, para vermos a
totalidade da história. Dessa forma, pontos de vistas, focos e os seus constituintes
(personagens, tempo, espaço), na imaginação, nos fornecem modos de construir nossa própria
definição, segundo o autor (p.134) são “modos de entendimentos de quem somos, o que
significa para nós ter uma vida particular [...]. É a principal razão para recomendar
psicoterapia para pessoas não obviamente insanas”
30
.
Perante os estudos de Turner fica evidente a importância de considerarmos a
habilidade narrativa no desenvolvimento cognitivo e social humano. A linguagem enquanto
ação do homem obteve da natureza narrativa uma fonte para seu estabelecimento na cultura e
um modo de compreensão do próprio ser humano. A narratividade por ser uma complexa
atividade e constituinte do processo interpretativo de uma história, relaciona-se à própria
vivência por se tratar de um modo de conhecer e uma organização de saberes do e para o ser
humano.
Para fundamentar melhor o processo cognitivo constituído pela narratividade,
apresentamos Benjamin (1994)
31
que explica que as novas situações comunicativas estão
ancoradas na informação e não na narrativa. Ele afirma que narrar é trocar experiências, mas é
uma faculdade humana que não vem sendo considerada tão importante nas interações, pois a
enorme quantidade de informações que nos rodeiam, parecem, fornecer mais conhecimentos.
O teórico explica que as informações não proporcionam experiências, pois não nos
transformam. Não é um todo organizado, preocupado em levantar questões que possibilitem a
29
No original, em inglês, “sensory beings”.
30
Nas suas palavras, no original, “ways of understanding who we are, what it means to be us, to have a particular
life. [...] It is a principal reason for recommending psycotherapy to people not obviously insane”.
31
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed.
Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
39
transcendência de um fato; são limitadas. Não refletimos o bastante para que elas se tornem
experiências, nos transformem e “a razão é que os fatos nos chegam acompanhados de
explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e
quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações”,
afirma Benjamin (1994, p. 203). O teórico assinala que o ser humano não está mais sendo
levado a pensar, a experimentar novas aventuras, ou seja, ser um sujeito especulativo e
reflexivo. E ele, então, faz um contraponto com as narrativas que não explicam algo, mas
narram para que o leitor possa preencher lacunas e, assim, por diversos ângulos e infinitos
sentidos, ter um conhecimento pleno e não fragmentariamente, como são as informações que,
no fundo, não explicam nada.
Todas essas considerações nos fazem reconhecer a importância da investigação da
capacidade narrativa humana, visto que ela está presente em todos os acontecimentos
culturais. É uma propriedade humana tão presente e essencial, tanto na interação social quanto
subjetiva que, muitas vezes, nos passa despercebida. Para tanto, analisar melhor este aspecto
humano no âmbito da organização do conhecimento será o nosso próximo passo.
1.4 A importância das narrativas
Forster (1969)
32
considera o romance uma amálgama humana muito complexa. O
romancista aborda questões existenciais que, na vida cotidiana, ficam em segundo plano,
porque ele próprio é um ser humano e trata da sua condição. Tendo a narrativa como um
mundo a ser explorado na sua totalidade, seja para estudo dos seus constituintes seja para
determiná-la em um tempo cronológico, devemos analisar o seu conjunto, pois ela trata da
vida humana e esta, se vista parcialmente, é sem sentido.
De acordo com Forster, narrar é uma característica humana muito antiga, que envolve
processos mentais complexos como compreender o sistema simbólico, a memória e a
imaginação. Todo esse processo desencadeado na compreensão de uma narrativa instiga os
32
FORSTER, E. M., Aspectos do romance. Tradução de Maria Helena Martins. Porto Alegre: Editora Globo,
1969.
40
sentimentos subjetivos. Nossos ancestrais contavam histórias dentro das cavernas como
meio de sobrevivência.
A narrativa nos instiga, nos envolve, não dúvida. Mas que poder é esse? Forster
explica que um romance é um terreno muito rico de experiências humanas. Por mais que seja
uma criação, é uma criação para a subjetividade, isto é, dentro de um livro, em meio às
palavras, podemos encontrar nós mesmos e assim o ato de interpretar passa a ser exigido pela
história. O processo criador de um romance pelo seu autor diz respeito à sua própria condição
de ser humano e por isso penetrar nesse mundo se torna uma experiência ao conhecermos uma
visão frente à vida. Forster assim conclui: “a sufocante qualidade humana do romance não
deve ser evitada; o romance está encharcado de humanidade” (p.17), o que contribui para
captar o leitor e instigá-lo a interpretar a narrativa, uma vez que isso é muito enriquecedor.
Forster parte do pressuposto de que narrar “estórias” é o eixo central de um romance e
que interpretá-lo é um processo significativo. Uma história tem os seus fatos organizados em
um tempo, mas para nos envolver ela precisa apresentar algo mais ou seja, o “valor”, visto
que as lembranças estão carregadas de um sentimento e não apenas organizadas
cronologicamente em nossa mente. Mas ele adverte que o romance não pode negar o tempo.
Em suas palavras, “o que a história faz é narrar a vida no tempo” (p.22). O conjunto das ações
em uma história está organizado numa seqüência e instiga a nossa curiosidade para o fato a
seguir. Além disso, para que uma narrativa nos cative, os sentimentos completam-na, ou seja,
há uma conexão com a nossa subjetividade.
Estar ligado às nossas emoções faz com que o romance proporcione a reflexão de um
lado obscuro do ser humano, o das “paixões”. Forster afirma que os atos observáveis de um
sujeito dizem respeito à sua História. No entanto, o mundo interior humano, muitas vezes
inacessível nas relações diárias, é o foco do romance, isto é, “expressar este lado da natureza
humana é uma das principais funções do romance” (p. 35). Nesse contexto, as personagens
romanescas são mais entendidas e definidas do que as pessoas com quem nos relacionamos no
cotidiano, justamente porque elas, mesmo sendo criações, não têm segredos e sabemos muito
a seu respeito. É isso o que nos possibilita novas experiências, isto é, a interpretação passa a
ser um ato de grande potencial devido às possíveis reflexões frente a uma dada situação,
através do aspecto da verossimilhança de uma história.
41
O estudioso ressalta ainda que as personagens criadas não são iguais às pessoas com
quem nos relacionamos. Por mais que estejam ligadas às situações que identificamos na vida
cotidiana, as personagens de um romance pertencem àquele universo; transportá-las para
nossa vivência diária é impossível, são mundos diferentes, embora semelhantes. Numa
narrativa, explica Forster, podemos “conhecer as pessoas perfeitamente, [...] uma
compensação para sua imprecisão na vida”, e conclui: a ficção é mais verdadeira que a
história, pois vai além dos fatos comprovados” (p. 49). Isso caracteriza o aspecto fundamental
da natureza da narrativa: trata-se da identificação com a existência humana numa perspectiva
de ampliação da percepção, ou seja, da percepção da própria vida.
A organização de um romance busca capturar o leitor. Forster explica que além da
curiosidade sobre o “e depois” numa história, a interpretação permite explorar mais
profundamente uma narrativa. Isto é, as palavras mostram um pouco do que o autor preparou.
Compreender os atalhos, a falta ou não de explicações das personagens é compromisso do
leitor. Sendo assim, no momento em que perguntamos o motivo das ações numa narrativa,
estamos mergulhando no enredo que o autor preparou, nos mistérios da história. Forster
aconselha que, para decifrar um mistério, “parte da mente deve ser deixada para trás,
matutando, enquanto a outra parte deve prosseguir seu caminho” (p. 70), isto porque o enredo
exige inteligência e memória.
Estes dois aspectos também contribuem para o entendimento de outros aspectos de
uma narrativa que o leitor, no pacto com o autor, pode se deparar. O autor é o grande
estrategista de uma história e o leitor precisa estar disposto a aceitar o que lhe é proposto para
atingir o objetivo da narrativa, caso contrário não haverá o estabelecimento da relação. A
verossimilhança é um aspecto fundamental de um romance, no entanto, às vezes, nos
deparamos com elementos fantásticos que não têm a mesma forma na nossa vida. A fantasia é
mais um aspecto que o romancista precisa organizar num romance, juntamente com seus
outros constituintes, segundo as leis romanescas. Sobre a fantasia, Forster esclarece que ela
nos exige uma adaptação frente à algo sobrenatural.
Outro aspecto que constitui uma narrativa é a profecia. Segundo Forster, se trata de
“um tom de voz” (p.100), isto é, uma humana que exerce, implicitamente, uma força nas
ações das personagens. Portanto, importante na compreensão da história. Além disso, o
teórico chama a atenção para o fato de o romancista “manipular o feixe de luz que
42
ocasionalmente toca os objetos espanados com tanto cuidado pela mão do senso comum, e os
torna mais vívidos do que jamais poderiam ser em seu estado doméstico” (p. 117). Precisamos
analisar qual a implicação de uma postura de nos acontecimentos dentro de uma narrativa;
o romancista transformou algo comum em algo peculiar e isso tem uma razão que o leitor
deve desvendar com humildade, conforme o estudioso.
Nesse sentido, o romance nos possibilita compreender a complexidade das próprias
relações humanas por apresentar algo inusitado e que mexe com os nossos saberes. Forster
(p.132) explica que “os seres humanos têm a sua grande “chance” no romance” e a sua idéia
principal é de “expansão”, abertura. Mesmo sendo um conhecimento humano tão antigo, a
narrativa ainda é de suma importância para os seres humanos, tendo em vista que, ao narrar, o
autor organiza os fatos em uma seqüência de tempo e quem os interpreta se dispõe a
compreendê-los. Ambos os sujeitos precisam lidar com o sistema simbólico, a memória e a
imaginação. Por desencadear esses mecanismos e provocar os sentimentos é que a narrativa é
considerada um fenômeno complexo da atividade cognitiva humana.
Os estudos de Forster esclarecem que os mecanismos da narrativa são diversos, mas
tratam sempre da natureza humana. A narrativa se apresenta como uma visão de mundo para a
nossa própria reflexão; não é trivial a complexidade de um romance, uma vez que propõe a
discussão da vivência humana. O teórico conclui dizendo que “se a natureza humana de fato
se alterar, será porque os indivíduos conseguiram olhar para si mesmos de uma nova maneira.
Aqui e acolá pessoas estão tentando fazer isso muito poucas pessoas, mas alguns
romancistas entre elas” (p. 134). Dessa forma, a interpretação de narrativas se mostra uma
atitude potencializadora frente aos atos e relações humanas.
43
2 A NARRATIVA DE NÉLIDA PIÑON: UMA INTERPRETAÇÃO
Após as explanações teóricas sobre o universo narrativo humano, partimos para o
entendimento da visão de mundo da escritora Nélida Piñon. A visão de mundo influencia nas
suas obras narrativas, já que são constituídas de ações humanas, porém no nível da
imaginação. Por se tratar de uma escritora contemporânea e ainda atuante na sociedade,
muitas das informações pesquisadas sobre ela foram retiradas de sites de jornais, de
pesquisadores da área da Literatura e até da própria página da autora, na internete. Portanto é
importante que destaquemos estas fontes de pesquisa, tendo em vista o papel das novas
tecnologias na divulgação de trabalhos, e principalmente, sobre as mais recentes publicações a
respeito da autora em questão.
Grande estudiosa e apaixonada pela imaginação humana, Nélida Piñon se destaca
nacional e internacionalmente no mundo literário, acadêmico e político. Hoje, aos 70 anos de
idade, tem uma carreira bem sucedida com vários prêmios, destacando-se o Príncipe de
Astúrias de Letras 2005 e o Jabuti, também do mesmo ano, pelo livro Vozes do Deserto,
editado inicialmente em 2004. Foi ela a primeira pessoa brasileira e de ngua portuguesa a
receber o prêmio espanhol. Além disso, empossada na Academia Brasileira de Letras desde
1990, foi a primeira mulher a presidir a instituição, nos anos de 1996 e 1997, período do seu
centenário.
Nascida em uma família de origem galega, Nélida Piñon desde a infância teve um
incentivo cultural muito grande. Influenciada pelo avô Daniel, que se aventurou pelo oceano
em busca de melhores oportunidades; pelo pai Lino, leitor assíduo, e pela mãe companheira,
Olívia Carmen, vivenciou, na família, diversas experiências importantes que serviram de base
para as suas criações, segundo ela mesma explica na entrevista dada à Edla van Steen
(1982)
33
. Foram os seus antecessores, sejam eles pertencentes ao círculo familiar ou de âmbito
literário, que imprimiram na sua genialidade a característica narrativa e instigante diante das
relações humanas.
33
STEEN, van Edla. Viver & escrever. Porto Alegre, L± Brasília, INL, 1982.
44
2.1 A arte literária enquanto vivência
Em uma entrevista concedida à Clarice Lispector (1975)
34
, Nélida Piñon explicava
que o início da sua escrita foi devagar, mas com a experiência dos anos e com a paixão ela
conquistava o conhecimento necessário para “traduzir o que a lucidez o pode, às vezes
explicar, porque se desfaz à proximidade da matéria ígnea” (p. 188). Ainda neste depoimento,
ela esclarece que todas as pessoas resultam “de vertentes complexas, desaguando num oceano
onde é difícil catalogar fauna e flora” (p. 192). Isto é, a ambigüidade da palavra desde cedo,
por diferentes fontes, a instigou a entrar no mundo dos narradores e, junto deles a, “assumir o
compromisso com a vida, a imaginação e a realidade”, afirma (p. 188). Foi-lhe permitida a
vivência em eventos culturais no Rio de Janeiro na infância e adolescência, porque tinha
feito a opção de ser uma escritora e ainda perseguidora persistente das inquietações do
mundo, o que também contribuiu para o conhecimento de autores, peças e escritores do
mundo artístico em geral.
Ainda no seu diálogo com Lispector (1975, p. 190-191), Nélida Piñon deixa claro o
aspecto da disciplina como fator essencial para um escritor em relação a sua obra, ao afirmar:
Tenho horror à palavra inspiração, que me recorda indolência, adiantamento,
olhar fechado, um corpo emprestado de onde a consciência foi expulsa.
Acredito profundamente na disciplina como uma prática que permite
desaguar no trabalho mesmo o que existe de imponderável e dificilmente
explicável na criação. Por mais que se presida um texto, existem nele
elementos que nos superam, abrigados em nossas fendas pessoais, no
inconsciente e na mitologia coletivos, no ar que se traga. Não me descuido do
irracional, que também é uma dádiva, um conhecimento sempre atualizado.
[...] Talvez pudéssemos estabelecer o princípio de que o esforço e o produto
da colheita são resultantes da disciplina. Porém a força que libera a semente a
germinar (e que maravilhosa contrafação) resulta de um favorecimento
poético que alguns criadores guardam em si como constante reserva.
Nesta declaração, a entrevistada explica que a escrita literária não é dom e nem um
prêmio divino, mas um árduo trabalho de captação, compreensão dos fatos humanos e com
um modo muito particular e atento de articular as ações cotidianas no momento da criação. A
escrita exige a análise do “irracional” e do “imponderável”, presentes nas redes humanas, o
que requer um esforço muito grande para organizar os conhecimentos culturais, a visão do
34
LISPECTOR, Clarice. De corpo inteiro. Editora Artenova. Rio de Janeiro, 1975.
45
autor a fim de que se chegue a uma forma e expressão estética que libere o leitor para novas
experiências.
Mais recentemente, Nélida Piñon explica para Wagner Lemos (2005?)
35
, em entrevista
publicada no site do mesmo, a respeito do trabalho de um escritor, o estado de vigília de um
criador juntamente com “a reflexão, com a experiência, com as manhas e as seduções do
próprio ofício”. E esclarece, na mesma entrevista, assim como na década de 70 afirmava,
sobre a formação e o ato criador literários:
Tive a sorte de ler tudo que queria. Jamais sofri censura. Portanto, tive acesso
a toda classe de escritores que foram, de verdade, meus mestres. Lia-os com
volúpia, aprendendo como forjavam eles um texto que me induzisse a crer em
seus inventos. Percebi, cedo, que para armar uma estrutura narrativa, não
bastava talento. A ele era mister aduzir trato diário com a palavra, com a
emoção, que a epopéia secreta do texto filtra, definir o tempo que é
simultaneamente sutil e pesado, entrelaçar espaços e ação, aprender a pensar
enquanto cria, sem perder de vista a carnalidade misteriosa dos personagens.
Jamais esquecer que a ilusão, de qualquer parágrafo, tem por fim convencer o
leitor de que é ele cúmplice da nossa odisséia narrativa.
Nessa passagem é possível constatar que a escrita narrativa é um ato extremamente
compenetrado na organização da palavra e todo o sentido que ela carrega, juntamente com os
aspectos estruturais da narração e envolvidos de uma emoção compreensível. O resultado
deste trabalho complexo, oriundo da criatividade do autor e da sua sensibilidade frente à vida,
também exige a colaboração do leitor para a efetivação dessa “odisséia”. A escritora em
análise é perspicaz nesse aspecto: seduzida pelo poder mágico do narrar, quer que o seu leitor,
seja no tempo que for, também fique encantado por esse conhecimento milenar.
Na conversa com Lispector (1975, p. 193), Nélida Piñon também explicava a atitude
participativa do leitor diante do seu texto:
Não sou uma escritora que injeta anestesia nos círculos mentais do leitor.
Exijo que ele participe do meu esforço em criar formas novas, todos s
integrados na aventura de ampliar e enriquecer o repertório humano. Acredito
porém que a possível distância entre escritor e leitor seja provisória. Em
breve defasagem que se elimina à medida que o texto é descosido e se insere
à linguagem e necessidade do leitor sempre em desenvolvimento. Não se
pode esquecer que o artista é um veloz andarilho no tempo, com propriedade
de antecipar-se à sua época, razão de dever aguardar que o leitor dirija-se ao
seu texto e o interprete.
35
LEMOS, Wagner. Nélida Piñon. Entrevista. 2005? Disponível em:
www.wagnerlemos.com.br/nelidapinon.htm> Acesso em 25 nov. 2007
46
Consciente da força de um texto e a sua função de mexer com conceitos, muitas vezes,
tão assimilados e não revistos, Nélida Piñon caracteriza assim também a sua escrita. Quer
sacudir o leitor; agitar-lhe a alma. Dessa forma, dando-lhe vez no processo de interpretar o
mundo com o escritor. Essa posição ativa do leitor faz com que se crie um vínculo mais
próximo do autor, à medida que ele se apodera do texto e desvenda as artimanhas narrativas
deixadas pelo criador. A escritora em destaque deixa claro que o artista, como um “andarilho
no tempo”, é um sujeito consciente da sua função social e perseguidor das motivações
humanas, além de ressaltar a tarefa do leitor no processo da interpretação de uma obra, frente
à vivência humana.
Sobre a prosa de Nélida Piñon, o professor Dixon (2002, p. 201)
36
explica que ela “não
é para leitores passivos, pois insiste em ressaltar seu tecido verbal, ora com figuras poéticas de
grande força rica, ora com frases que simplesmente nos desafiam pela opacidade”. São
artifícios da autora para capturar o leitor a ponto de desestabilizá-lo, ou seja, a sua linguagem
é forte para, justamente, tocar o sujeito e comprometê-lo na interpretação de uma obra; ou, às
vezes opaca, uma característica da narração e um modo de deixar o leitor instigado. Lembra o
teórico que o olhar feminino, presente nas criações de Nélida Piñon, “ressalta o valor do
processo, do meio, como uma experiência que deve ser prolongada” (p. 208), um aspecto
visível em Vozes do deserto, uma vez que narra a clausura de Scherezade e outras mulheres
no palácio do sultão (análise feita adiante), ou seja, o livro chama a atenção para a questão da
mulher. Entendemos que a interpretação das obras desta escritora são experiências que
revelam o processo narrativo enquanto ação de conhecimento, de ir além das linhas do texto,
priorizando o aprender durante a leitura.
Nélida Piñon esteve presente nas manifestações contra a censura nas décadas de 1960
1970, no Brasil, juntamente com outros intelectuais da época, segundo Villarino Pardo
(2004a)
37
. Os escritores brasileiros exigiam maior liberdade, flexibilidade e reconhecimento
por parte das editoras, que não tinham interesse em publicar obras de novos autores ou de
escritoras. Este foi um período de luta para a dinamização do sistema literário brasileiro e de
união dos escritores em prol da sua profissionalização, explica a estudiosa. Neste contexto,
36
DIXON, Paul. Gênero sexual e os paradigmas narrativos de Nélida Piñon. Veredas – Revista da Associação
Internacional de Lusitanistas. Porto Alegre: EDIPUCRS, v. 5, p. 201-210, dez. 2002.
37
VILLARINO PARDO, M. Carmen. Encontro de escritores brasileiros nos finais da década de 1970: um
mecanismo de institucionalização e de mercado. Estudos de literatura brasileira contemporânea, Brasília, n. 23,
p. 151-168, jan/jun. 2004a.
47
fica clara a posição de Nélida Piñon e de outros intelectuais a respeito do papel da literatura
para a identidade de um povo. Villarino Pardo esclarece, então, que além da censura, os
escritores precisavam resolver outros problemas, tais como: a valorização do escritor, elucidar
a função atuante do escritor na sociedade e assim, conquistar mais leitores.
Nessa situação, podemos verificar o lugar da mulher, especialmente, na literatura
brasileira. Embora não seja o foco deste trabalho, não há como não fazer referência ao assunto
quando tratamos de Nélida Piñon. De acordo com Villarino (2004b)
38
, ela juntamente com
Clarice Lispector, Ligia Fagundes Telles e outras, apresentaram em suas obras a condição
feminina na época (anos 60-70), isto é,
[...] bastante natural que a literatura de autoria feminina dos anos 70
tematizasse insistentemente as conseqüências da sujeição da mulher ao
poderio masculino da sociedade em que vivia. E essa narrativa da época
exprime com vigor o conflito daquelas mulheres que adquirem consciência
da escravidão mascarada de realeza nos domínios do lar e das barreiras
encontradas no sentido de buscar uma saída para a sua própria liberdade.
(VILLARINO PARDO, 2004b, p. 284).
Uma luta que acontece hoje ainda. A mulher sofre preconceitos e discriminação na
sociedade atual. O que não passa despercebido por escritoras como Nélida Piñon. Em Vozes
do deserto uma das temáticas apresentadas é a situação feminina, embora retratada na antiga
história de Scherezade e o sultão. Podemos dizer que a releitura de Nélida Piñon, nesse livro,
é uma forma de atualizar e reavaliar o tema no momento presente. A retomada desse assunto
não foi por acaso.
2.2 O reconhecimento de uma grande escritora e das suas obras
A visão de Nélida Piñon frente à arte da escrita narrativa não é de um ser humano
consciente dos problemas do seu tempo, como também da importância da narratividade e da
influência que ela exerce junto à cultura humana. Com este ímpeto, ao longo de sua carreira,
ela tem publicado os primeiros contos em 1959, posteriormente, nesse gênero, Tempo das
38
VILLARINO PARDO, M. Carmen. Entre a via-crucis e o prazer – Representação da mulher transgressora na
prosa brasileira recente (de autoria feminina). In: TOSCANO, Ana Maria da Costa, GODSLAND, Shelley
(Orgs.). Mulheres Má – Percepção e representação da mulher transgressora no mundo luso-hispânico. Porto:
Universidade Fernando Pessoa, 2004b, p. 283-298.
48
Frutas (1966), Sala de Armas (1973), O Calor das Coisas (1980), O Cortejo do Divino
(1999); os romances: Guia-mapa de Gabriel Arcanjo (1961), Madeira Feita Cruz (1963),
Fundador (1969), A Casa da Paixão (1972), Tebas do meu Coração (1974), A Força do
Destino (1977), A República dos Sonhos (1984), A Doce Canção de Caetana (1987), romance
infanto-juvenil A Roda do Vento (1996), O Presumível Coração da América (2002), uma
seleção de discursos, e o romance Vozes do Deserto publicado, em 4 de março de 2004.
Além disso, é reconhecida internacionalmente, tendo seus trabalhos publicados para
mais de 20 países em 10 idiomas diferentes, como também foi premiada em vários concursos
e universidades que já lecionou (EUA e Europa). Fez parte e dirigiu diversas entidades ligadas
à cultura literária, revistas e jornais, sendo formada em jornalismo pela PUC, do Rio de
Janeiro. Participante de vários congressos nacionais e internacionais, e palestrante em vários
eventos, Nélida Piñon levou a literatura brasileira para diversos países. É feminista e luta pela
igualdade social. Acompanhou muitas mobilizações em prol da mulher e reconhece o quanto
ainda de ser feito para o reconhecimento feminino na literatura nacional como no mundo.
No entanto, um dos seus objetivos é conseguir compreender o ser humano nas mais diversas
visões, homem ou mulher, e sobre isso afirma, na entrevista dada à Carmen Sigüenza
(2005)
39
, da Folha On Line, e publicada no site do respectivo jornal, deseja “ser uma escritora
protéica e assimilar muitas formas humanas e poder me tornar criança, homem, vegetal ou
animal. Ser polissêmica e camaleônica", ela se justifica afirmando que "se Flaubert teve a
pretensão deslumbrante de dizer que Madame Bovary era ele, eu também posso ser tudo. Para
mim, a melhor maneira de dirigir um projeto de criação é sendo capaz de se colocar nas veias
alheias".
Sobre a característica de escrever excelentes obras, fruto de uma exaustiva reflexão e
estudo do ser humano, Teixeira (1995, p. 115)
40
, no seu artigo, explica que Nélida Piñon sabe
muito bem
[...] fabricar imagens, cunhar palavras, construir estruturas inauditas, cultivar
o idioma, além de contar estórias de sofrimentos, paixões, sonhos pesadelos
ou devaneios, [...] estudos miniaturizados da maravilhosa comédia humana.
Ela não evade a luta. Ela aceita o desafio e escolhe as suas armas: palavras,
palavras, palavras, palavras.
39
SIGÜENZA, Carmen. Nélida Piñon diz que “as palavras erotizam a realidade”. Folha On Line, out. 2005.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u54426.shtml> Acesso em: 25 nov. 2007.
40
TEIXEIRA, Vera Regina. Texto, contexto e pretexto na obra de Nélida Piñon. In: Letras de hoje. Porto Alegre.
v. 30, nº 1, mar 1995, p.109-117.
49
Consciente e responsável do e no seu compromisso de escrever, a escritora investiga
as diversas facetas humanas. No seu último trabalho não é diferente. Apesar de se reportar
para uma história antiga, Vozes do deserto abarca justamente a imaginação narrativa, a grande
paixão da autora, assim como outros temas da vida humana. Este livro conta os bastidores da
trama dAs mil e uma noites, isto é, a saga de Scherezade e de um grupo de mulheres que
vivem no palácio do Sultão. Este, após ter sido traído pela sultana, condena toda nova esposa
à morte. A filha do Vizir se dispõe a interromper a série de assassinatos com a sua habilidade
de contar histórias. Scherezade, com a ajuda da irmã Dinazarda, das escravas e por fim, de
Jasmine, surpreende o Sultão, que suspende a morte da princesa, noite após noite, com o
propósito de escutar-lhe aventuras diversas.
Na entrega do Prêmio Príncipe de Astúrias de Letras, em 2005, Nélida Piñon (2005)
41
discursa, entre outros temas, sobre o papel da arte perante os conflitos humanos e deixa claro
sua importância na defesa e na busca de uma vida mais digna:
É certo que vivemos distantes do epicentro cosmopolita, mas somos
igualmente partícipes dos fados e das aventuras contemporâneas. Com igual
severidade, registramos a apologia do mal em nome da salvaguarda da
alma, a ascensão da barbárie, a palidez crescente dos princípios humanísticos
tão ameaçados. Na ânsia, porém, de fertilizar o presente, e torná-lo mais
solidário, expressamos inconformidade com uma ordem que, a pretexto de
defender falsas premissas, imola inocentes, incensa a abundância para alguns
em troca do sacrifício da maioria. Debatemo-nos contra aqueles profetas que,
brandindo o sentimento da imortalidade, da insensatez, da intolerância,
desprezam a alteridade, expurgam o opositor, isolam os que os ameaçam
empobrecer, recusam as diferenças étnicas, lingüísticas , estéticas, teológicas.
Como se lhes havendo sido dado o privilégio de inaugurar uma sociedade ao
seu feitio, desconsideram o estatuto da vida.
Nestas épocas nossas, o ceticismo e a indiferença se credenciam robustas,
como se fora de sua essência moral desqualificar qualquer ato que se
empenhe em superar a distância que nos separa do próximo.
A matéria da arte, no entanto, resiste às crises que assolam as civilizações e
recusa acordos prévios para existir. Afinal, feita de assombros, a arte
origina-se do nosso humanismo. É perene, ainda que semeie angústias,
discórdias.
Na entrevista dada ao professor Wagner Lemos (2005?), Nélida Piñon explica a sua
escolha por escrever um livro que tratasse da narração, dizendo que
[...] nos anos que se seguiram empenhei-me a fazer da própria narrativa
personagem de um romance. Queria imergir em um universo que explicasse a
vocação humana para resgatar valores de que dependemos para legitimar
41
PIÑON, Nélida. Prêmio Príncipe de Astúrias de Letras 2005. Discurso. Disponível em:
www.nelidapinon.com.br> Acesso em 25 out. 2007.
50
nossa história pessoal e, aquela outra, que nos circunda. Para isto, ao olhar o
mapa, ancorei no Oriente dio. Aquela região que quebrou o paradigma da
invisibilidade e engendrou o monoteísmo. Um deus invisível e abstrato. Um
novo conceito de fé. Portanto, avançando um pouco mais, enveredei pelo
deserto, esta paisagem cruzada por caravanas, mentiras, histórias, intrigas,
demônios, especiarias, seda. Estas rotas propícias a toda espécie de narrativa.
Depois, coloquei a emblemática Scherezade no âmago mesmo de Bagdad, a
cidade mítica e eterna. Com Scherezade e sua trupe à frente, circundados pela
tirania do Califa, a imaginação se alvoroça e pretende triunfar. Daí, foi o
fazer do romance ao longo de cinco anos, enquanto lia, estudava, adentrava-
me pelo mundo islâmico. Um saber que, afinal, precisei dissolver em prol da
integridade ficcional.
Neste comentário, a escritora confere à imaginação o papel principal da trama,
chamando a atenção para esta capacidade humana, ressaltando a sua importância na vida.
Tendo escolhido Bagdá como cenário da história, (o que não foi aleatório), Nélida Piñon
retoma a discussão em torno do poder e da falta de imaginação na vivência humana, e com
Scherezade, apresenta outros temas, entre eles a opressão feminina. O Oriente Médio foi o
centro do mundo por ter tido o caráter polissêmico e fértil diante das situações conturbadas do
seu povo, porém, como lembra Piñon com grande astúcia, a questão do monoteísmo por si
é algo da imaginação. Uma forma de apresentar e alertar, característica do artista como
alguém frente ao seu tempo, sobre a capacidade de criação do ser humano, além disso, uma
forma de realizar um trabalho artístico bem organizado a fim de provocar o leitor.
Nélida Piñon, na entrevista à Carmen Sigüenza
42
, do jornal Folha On Line, explicou
que Bagdá e região “é um lugar no qual se reúnem três religiões monoteístas que abraçam um
Deus invisível, e isso também é pura imaginação, porque é algo não tangível, não palpável; é
tão sutil que seus efeitos provocam versões distintas". Aliada à idéia de criação imaginativa, a
autora levanta a questão da discriminação sofrida por muitas mulheres justamente em um
povo caracterizado pela imaginação, porém que o “vê” essa situação. É uma forma de
instigar o leitor e, por meio dessa obra, não deixar esvaecer o problema. O fato de Piñon
escolher a história de As mil e uma noites, e tratar de uma cultura que oprime a mulher,
mostra que nas situações mais extremas é que a capacidade criativa se sobressai, e então há a
ruptura com os padrões convencionais. Ruptura essa pautada na narratividade e no processo
de interpretação, ou seja, na organização cognitiva de conhecimento mais eficaz para atingir o
âmago humano, e assim, conquistar o que se deseja. Embora relacionado ao povo árabe,
42
SIGÜENZA, Carmen. Nélida Piñon diz que “as palavras erotizam a realidade”. Folha On Line, out. 2005.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u54426.shtml> Acesso em: 25 nov. 2007.
51
podemos fazer uma reflexão sobre isso na nossa própria cultura e os desafios que as mulheres
ainda têm para resolver até que tenham a sua devida dignidade e o respeito na sociedade.
Conhecedora do papel da narratividade na cognição e no processo de conhecer
humano, Nélida Piñon é uma autora que considera a Literatura como uma ação
transformadora para o sujeito e, a partir disso, tem uma visão de mundo muito apurada. Nas
suas obras o leitor é envolvido por narrações que possibilitam a compreensão dele e daquilo
que o rodeia, bem como tem a oportunidade de refletir sobre vários temas. Isto porque suas
obras são constituídas de reflexões profundas sobre o ser humano, que possibilitam ao leitor
novas experiências e descobrir novos pontos de vista, além de serem articuladas de modo que
validam o que ele sabe, mas que propõem a superação do dado. Piñon marca as suas obras
com o poder da capacidade narrativa em um nível que o leitor tem a chance de expandir seus
horizontes, por contextos mais claros que os da sua vida cotidiana, como também ele se
provocado, na criação hipotética, para refletir além das palavras escritas.
A partir do que foi visto a respeito de Nélida Piñon, fica evidente o alto grau de
criação desta escritora. Com influências recebidas de sua própria história familiar e das
mudanças sociais que presenciou ao longo da vida, as suas obras têm a característica de
proporcionarem ao leitor um conflito. Articulando com a narrativa a angústia do ser humano,
ela busca atingir a alma do seu leitor para que ele não discuta os conflitos como também
sinta o valor e a função da arte: problematizar e conscientizar. Esta é a visão crítica e atuante
da escritora com as suas obras.
Para que isso fique mais claro, prosseguimos com uma breve reflexão sobre o enredo
de Vozes do deserto e mais adiante analisamos a narrativa conforme o estudo teórico
apresentado.
2.3 A narratividade em pauta
A mais recente e premiada obra de Nélida Piñon é o nosso objeto de análise. Por se
tratar de uma obra contemporânea e de amplo destaque no mundo literário, Vozes do deserto
tem um enredo fascinante que abarca, entre outros temas, a narratividade e a imaginação
52
humana. Por isso fizemos a escolha dessa narrativa, que, apesar de ter uma história conhecida,
Piñon a apresenta renovada. É isto que buscamos verificar e explicar a partir das
considerações teóricas anteriormente apresentadas.
Retomar e esclarecer a vocação humana” de narrar, visto que legitima a capacidade
do homem de articular com significados e elementos inspirados na sua própria vivência
social, almejou Nélida Piñon ao escrever Vozes do deserto. Era uma idéia a ser desenvolvida
que muito lhe perseguia, enquanto alguém que sempre esteve instigada a compreender o
ser humano, por isso, ao longo de cinco anos, fez um austero e profundo trabalho sobre a
cultura árabe. Em virtude da sua trajetória investigativa, afirma a Luiz Costa Pereira Junior
(2005?)
43
, em uma entrevista concedida à Revista Língua Portuguesa:
Era inevitável chegar a esse romance. Eu vinha pensando na arte de fabular
por anos e sabia que era a pessoa para isso. Porque tenho uma grande
reflexão sobre a narrativa, dei aula sobre criação literária, em meus cursos
internacionais falo muito das técnicas e procedimentos narrativos, e vinha
desejando fazer um livro que pensasse a imaginação e a fabulação como se
fossem protagonistas. Mas como fazer isso sem correr o risco de fazer um
ensaio? Cada vez mais eu amplio minha ação, não como escritora. Faço
ensaio, discursos, tenho uma reflexão, organização mental de ensaísta e um
ímpeto de narradora.
Vemos que Nélida Piñon, ao escrever esse romance, tem muito bem esclarecido o
papel da sua condição enquanto escritora. Vozes do deserto é também resultado de toda a sua
vida de estudo e dedicação no âmbito literário. Assim, ao explorar a narratividade humana,
articula com a antiga história de Scherezade vários temas humanos atuais para fortalecer a sua
obra. Para tanto, neste item fazemos uma apreciação rápida de alguns aspectos da referida
narrativa.
Vozes do deserto tem um narrador que é a grande voz do livro e apresenta ao leitor
uma postura distinta frente às questões sociais, femininas e discursivas. Assim, o leitor toma
conhecimento de toda a trama seduzido pelo narrador. Ele informa os pensamentos, as
conversas das personagens (discurso indireto); informa sobre o califado, a cultura e costumes
árabes. Faz perguntas; dialoga com o leitor; vai lhe dando pistas das próximas ações. Ele
informa e aponta o que o leitor não pode deixar de ver; o que pode, ele encontrará no livro da
43
JUNIOR, Luiz Costa Pereira. A paixão feminina pela palavra. Revista Língua Portuguesa. São Paulo, 2005?.
Disponível em: http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp> Acesso em: 25 nov. 2007.
53
história original. Além do mais, o desafio interpretativo do livro começa pelo título: uma
metáfora que vai sendo compreendida à medida que entramos na trama.
Ao se falar em narrador, implicitamente fala-se em narração. Este constituinte do livro
é elaborado com grande destreza por Nélida Piñon, isto é, ao mesmo tempo que, pelas linhas
escritas o narrador explica o poder fascinante das narrativas na relação Scherezade/Califa, ele
constrói uma relação com o próprio leitor. Por analogia, podemos dizer que o leitor é o Califa.
Já o narrador é a Scherezade, que precisa manter o Sultão interessado em suas histórias. Dessa
forma o narrador busca instigar o leitor, para que ele se sinta na obrigação de continuar a
leitura, ou seja, que ele se comprometa com o processo interpretativo. Uma importante ação
para reflexão e enriquecimento das relações humanas, tendo em vista a criação e a reflexão
proporcionada pela narração.
Como tema principal, narrar também é a arma da princesa para vencer a falta de
imaginação do Sultão. Propõe-lhe um mergulho às suas raízes, uma viagem no tapete mágico
das narrativas, visto que elas têm o conhecimento condensado do mundo através dos mitos.
Nesta perspectiva, a imaginação é considerada um poder criador, capacitador e libertador do
homem, das suas amarras: Scherezade, através do narrador, mostra a fertilidade da
imaginação, que tem como recurso a sabedoria popular. Ela, com grande talento e encanto,
elabora tramas inusitadas, que prendem a atenção do Sultão. Dessa forma, tem o direito de
viver, como também vai despertando no Califa a característica humana de inventar, de se
proporcionar novas experiências com as narrações. O leitor acompanha esse processo
juntamente com a voz guia do narrador.
Entre as personagens destacam-se as femininas. Além de Scherezade, há também a sua
irmã Dinazarda, as escravas do califa das quais se destaca Jasmine. O narrador
informações sobre a mãe das meninas e sobre Fátima, quem criou Scherezade. Este é dos
temas que Nélida Piñon utiliza para reforçar a narrativa: a mulher na sociedade e a sua ajuda
mútua. Isto é, a mãe das meninas morre um tempo depois do nascimento de Scherezade. A
família da mãe tinha a característica de contar belas histórias. Fátima cria Scherezade;
aprimora-lhe a habilidade de narrar, levando-a, inclusive, ao bazar (o que não era permitido);
nessas fugas, a menina era disfarçada de menino ou de cega, o que lhe proporcionava grandes
experiências, importantes para o seu repertório de fantasias. Dinazarda tem características do
pai: gosta de mandar e ser obedecida, afligia-se com a irmã muitas vezes devido à situação em
54
que se encontravam. Jasmine é a própria representante dos povos do deserto que têm a suas
vozes caladas; sendo uma serviçal a inteira disposição das irmãs, reconhece o seu povo e a sua
vida nas narrações de Scherezade, além de aprender o ofício de narrar. Scherezade é a mulher
que ousa diante do perigo, grande articuladora de histórias, sabe muito bem amarrar todas as
pontas da narrativa e reconhecer o grande papel da criação na vida humana pelas narrações,
pois elas articulam com significados, sedimentam saberes, são dinâmicas e lidam com as
emoções que caracterizam e purificam o ser humano.
Outro aspecto que chama atenção é a submissão feminina, não na cultura árabe,
mas em muitas outras, como na ocidental. Neste romance são evidentes as restrições à mulher,
principalmente no âmbito social, isto é, ela deve muita obediência aos preceitos religiosos e a
seu marido; ele também deve respeitar a sua esposa, porém tem mais direitos e poder do que a
mulher. No romance, Piñon explora a analogia entre a noite e o ser feminino, caracterizando a
mulher tão misteriosa quanto a escuridão, fingida e obscura, o que deixa os homens
apreensivos. As personagens femininas, neste livro, ressaltam o poder da mulher frente a sua
situação e da importância de se ajudarem. Dinazarda, por exemplo, substitui o pai em muitas
tarefas no califado e substitui a irmã na cama do califa; Scherezade busca e conquista a sua
liberdade; Jasmine, que é uma princesa do deserto comprada, consegue ter uma colocação
superior na escala social e passa a ser a nova contadora de histórias. É como se o narrador
advertisse: cuidado com as mulheres.
Além disso, o livro explora não a religiosidade, a organização social e os costumes
do povo árabe, como também as relações de poder. Sobre este último aspecto, o narrador
comenta muito sobre o Vizir. Ele sofre pelo perigo iminente das filhas e, simultaneamente,
não deixa de lado os compromissos que tem dentro do califado. Ele não deixa os seus
problemas pessoais interferirem no seu trabalho. Mas, por fim, ajuda as filhas. Estes aspectos
são discutidos mais adiante, ao fazermos a relação da narrativa-mãe, As mil e uma noites, e
Vozes do deserto, seguida da análise do livro de Nélida Piñon.
A seguir, fazemos uma contextualização de questões que permeiam o romance alvo do
nosso estudo, isto é, contamos com o referencial teórico que nos auxilia a compreender mais a
história de Vozes do deserto. Inicialmente, apresentamos os estudos do teórico Said (2001)
44
a
44
SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Tradução Tomás Rosa Bueno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
55
respeito do Orientalismo, para compreendermos os conceitos que o Ocidente tem a respeito
do Oriente. Em seguida, apresentamos o estudo acerca das origens, características e traduções
de As mil e uma noites. Assim, teremos um bom suporte informativo para compreendermos o
livro de Nélida Piñon, em virtude de ele fazer referência à narrativa árabe. Para isso,
utilizamos os estudos de Daisy Wajnberg (1997), de Gomes (2000), e Borges (1999 e 1983)
no que se refere às origens e traduções deste texto. Depois, tratamos do livro de Nélida Piñon.
Todo esse arranjo é importante para que tenhamos claro o diálogo entre das duas obras, bem
como as suas singularidades. Desse modo, temos como referencial do texto-mãe uma tradução
francesa de Galland (2000) para a língua portuguesa.
2.4 O Orientalismo
Antes de adentrarmos no universo de Scherezade, tanto de As mil e uma noites quanto
de Vozes do deserto, é importante compreendermos a visão que o Ocidente tem do Oriente.
Para tanto apresentamos as consideração de Said (2001). Ele explica as idéias do mundo
ocidental a respeito da cultura oriental. O orientalismo, afirma o teórico, é o estudo do
Ocidente sobre o Oriente e ele reflete sobre este conceito ao longo do tempo. O termo surgiu
entre as academias para especificar que tipo de estudo estava sendo realizado enfocando o
Oriente.
O autor afirma que o orientalismo também é “um estilo de pensamento baseado em
uma distinção ontológica e epistemológica feita entre o “Oriente” e (a maior parte do tempo)
“o Ocidente” (p.14), uma postura para a elaboração de teorias e investigações das culturas dos
dois “blocos”. Said ainda complementa que estas pesquisas, que tiveram início no século
XVIII, são um modo de “dominar” o Oriente. Isso demonstra uma “rede de interesse” dos
ocidentais para com os orientais. Nessa perspectiva, o teórico explica que o ocidental teve a
sua identidade esclarecida pelos estudos orientalistas. As considerações de Said auxiliam na
compreensão da imagem que fizemos do oriental, da sua cultura e história.
Quando falamos em Oriente, normalmente, criamos uma impressão de que essa parte
do mundo está muito longe, ou que nem pertence ao “mundo” em que estamos. Said (2001)
explica que o Oriente é “uma idéia que tem uma história e uma tradição de pensamento,
56
imagística e vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente”, além de
considerar que “a relação entre Ocidente e o Oriente é uma relação de poder, de dominação,
de graus variados de uma complexa hegemonia” (p.17). O que o autor esclarece é que além de
uma idéia, o Oriente foi um terreno fértil de investimentos: pesquisas e teorias a fim de
desvendá-lo, porém de uma maneira que prevalecesse o poder ocidental.
As investigações realizadas auxiliaram não na definição do próprio conceito de
“europeu” como também na sua “superioridade”, isto é, Said explica que as idéias do oriental
proporcionaram o reconhecimento do lugar europeu. Nessa analogia, foi constatado o “atraso
oriental”, logo um terreno que precisava de pesquisa e “auxílio”. Sobre isso o estudioso
afirma que
[...] o orientalismo não é um mero tema político de estudos ou campo
refletido passivamente pela cultura, pela erudição e pelas instituições; nem é
uma ampla e difusa coleção de textos sobre o Oriente; nem é representativo
ou de expressivo de algum nefando complô imperialista “ocidental” para
subjugar o mundo “oriental”. É antes uma distribuição de consciência
geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos sociológicos, históricos
e filológicos; é uma elaboração não de uma distinção básica, como
também de toda um série de “interesses” [...] é, acima de tudo, um discurso...
As considerações do autor abrem uma discussão frente ao que conhecemos,
idealizamos como sendo o “Oriente”. Não é uma idéia ingênua e gica. Muitas vezes, é um
tipo de dominação até porque é uma representação que possibilita a compreensão e a
divulgação das suas manifestações culturais no Ocidente. Porém Said (p.35) propõe que o
orientalismo atual faça o estudo de alternativas contemporâneas, ou seja, “que investigue
como se podem estudar outras culturas e outros povos desde uma perspectiva libertária, ou
não-representativa e o-manipulativa.”, o que deveria ter acontecido desde as primeiras
excursões.
No estudo do orientalismo, Said reconhece que na sua época áurea, culo XIX, ele
contribuiu na formação de pesquisadores e o estudo de idiomas orientais e as suas gramáticas.
Porém, “o orientalismo atropelou o Oriente” (p.105); ele foi considerado estanque, ou seja,
não progredia de acordo com a filosofia ocidental. O fascínio dado ao Leste tem relação com
o conhecimento, por isso o “atropelo”. Descrever, catalogar, traduzir e compreender as
línguas e culturas orientais era possuir, literalmente, o oriental, no Ocidente.
57
Atualmente, o orientalista é um estudioso social, mas também como afirma Said, além
dele há outros interesses, tais como, o estabelecimento de empresas, expedições militares e de
pesquisa. Muitos dos estudos têm como enfoque o Islã e o povo árabe, especialmente feitas
por instituições norte-americanas. De acordo com o autor, o árabe é considerado uma
“ameaça”, o que deixa transparecer que o orientalismo “acomodou-se com êxito ao novo
imperialismo” para “dominar a Ásia” (p.326). O teórico ainda afirma que enquanto os EUA
têm várias instituições que estudam o árabe, o contrário, não existe. E isto causa a dominação
desse povo, isto é, o consumismo tomou conta daquela região, acarretando a padronização nas
atitudes sociais, culturais e intelectuais, numa atitude de desconsiderar a própria história e
origem de um povo.
As considerações apresentadas por Said são importantes para que tenhamos clara a
idéia do conhecimento enquanto fator de dominação, como tem feito o sistema do
orientalismo. Podemos considerar que isso esclarece a nossa própria fonte de pensamento, ou
seja, quais os implícitos das atribuições sobre o Oriente, de onde e de quem elas provêm?
Uma reflexão que mexe com preconceitos ocultos e a análise de ações (de caráter dominador,
como é o caso dos conflitos armados ou de expansão de territórios) passadas e
contemporâneas naquela região, as quais não tiveram o apenas intuito de fortalecer ou
desvendar os povos orientais, mas principalmente, uma forma de fortalecer o Ocidente. Nessa
perspectiva, ao focalizarmos os estudos em torno da narrativa, o orientalismo nos auxilia,
porque elucida sobre conceitos de uma cultura tão antiga e tão rica como é a dos povos do
“leste” e nos previne o olhar em relação à interpretação do texto.
Adentramos justamente nesses povos que tiveram uma trajetória rica explorando a
natureza do narrar como um conhecimento constituído de saberes humanos, bem como
essenciais para as práticas sociais. A narrativa é uma forma de conhecer a própria trajetória
humana, com a qual procuramos investigar a sua constituição, analisando qual é o papel que
desempenha hoje, tendo em vista a sua potencialidade frente às questões humanas e que
muito tempo se faz presente nas práticas culturais. Portanto, ao termos consciência de que as
nossas idéias sobre o povo oriental não são tão ingênuas quanto parecem, e, juntamente com o
estudo do potencial narrativo, consideramos que podemos desmistificar muitos (pré)conceitos
sobre aquela cultura. Isso será feito mediante a compreensão de todo um contexto que
permeia e dá sustentação a uma narrativa, como é o caso do livro Vozes do deserto. Assim, no
próximo item fazemos uma contextualização da narrativa-mãe, As mil e uma noites.
58
2.5 As mil e uma noites
Pretendemos investigar, agora, a origem de As mil e uma noites. Mais adiante vamos
discutir as influências recebidas de diferentes povos e as suas traduções. Tão misteriosas e
mágicas quanto as histórias do repertório de Scherezade, são as especulações referentes à
origem do fabuloso livro que as contém.
De acordo com os estudos de Wajnberg (1997)
45
, muitos contos presentes nesta obra
têm raízes nas culturas hindu e persa. A autora afirma que, o historiador e antologista
Mas’ûdi, vivido entre os anos de 896-956, cita, nos seus estudos sobre a cultura muçulmana
na Idade Média, um livro árabe, o Hasar Afsanah (As mil histórias extraordinárias). As
histórias nele contidas seriam de origem persa. Para o grande público, ele era conhecido como
Alf laila ua laila (As mil e uma noites). Segundo a autora, este exemplar tem um conto-
moldura como o de As mil e uma noites, isto é, um rei traído, que por causa da sua mágoa,
passa a matar toda nova esposa a cada manhã, até que uma começa a lhe contar histórias com
a ajuda da sua criada. Cerca de 40 anos após o estudo de Mas’ûdi, é editado um catálogo, o
Fihrist, do livreiro Ibn an-Nadîm, contendo histórias dos contadores da noite, também de
origem persa e traduzido para o árabe, explica Wajnberg.
Os livros citados por Mas’ûdi são do século X, o que indica o antigo hábito de narrar
(contar e ouvir) entre os povos orientais. Além disso, eles trazem informações sobre a cultura
árabe-muçulmana, inclusive sobre o hábito de Alexandre da Macedônia de ouvir histórias de
contadores durante a noite (Wajnberg explica que o livro Hasar Afsanah era usado para
entreter reis). Isso indica a origem do enredo do texto As mil e uma noites.
Na obra referida, a estudiosa esclarece que a cultura persa é intermediária entre a Índia
e os povos árabes, devido “à localização da civilização persa, situada numa autêntica
encruzilhada entre o Oriente e o Ocidente”, ou seja, “a matriz geradora do primeiro núcleo das
Noites estaria na Índia” (p.62). Wajnberg afirma que essa historicidade do texto narrativa-mãe
é consenso para grande parte dos pesquisadores da área: caracterizado como um livro misto.
Por fim, Wajnberg (1997, p. 65) declara que
45
WAJNBERG, Daisy. Jardim de arabescos: uma leitura das Mil e Uma Noites. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
59
[...] as Noites seriam uma obra anônima, construída por diversas camadas
sobrepostas, num processo de muitas e várias passagens, que implicam em
remanejamentos e adaptações nos seus vários momentos. Esta hipótese
parece sustentar com suficiente verossimilhança a evidente heterogeneidade
de elementos e estilos, correspondentes a diversas épocas, onde a existência
de muitos manuscritos acusaria inclusive a pluralidade das pátrias do livro.
A autora chama a atenção para a pluralidade de As mil e uma noites, seja por sua
origem, seja por seu conteúdo. Tendo influências de diferentes povos é provável que houvesse
adaptações dos contadores aos detalhes das narrativas ao longo do tempo, tais como:
introdução de características e costumes culturais do contador, mudança de nomes de
personagens, etc. O mesmo processo ocorreu na fabulação dos contos, isto é, a literatura oral,
proveniente da Índia e Pérsia, antes do culo X, tinha a característica de encaixar uma
história na outra por um elemento narrativo (personagem ou espaço). Uma forma de manter o
público atento e um modo de memorizar as histórias. Um aspecto que também aparece no
texto miliumanoitesco. Conforme a autora, o interesse pela oralidade, que exige uma
musicalidade, uma forma poética, um estilo espirituoso nas histórias, se deu também porque
essas narrativas continham “ditos de sabedoria e material didático, até anedotas, coletadas de
todo lugar” (p. 47), além de os povos da Grécia, da Pérsia, judeus e cristãos servirem como
fontes. Estas influências na fabulação de histórias aconteceram entre os séculos VIII e XI,
estando presentes no texto miliumanoitesco.
Wajnberg (1997, p. 70) observa que o livro As mil e uma noites tem uma dupla
compilação: oral e escrita, e que a combinação de contos dentro de outros é uma característica
dos povos islâmicos, ou seja,
[...] as Noites seriam uma obra de compilação de dupla origem, para a qual
concorrem narrativas transmitidas oralmente pelos contadores de histórias e,
por outro lado, obras escritas que posteriormente foram integradas à coleção.
A tradição de escritura desse gênero de narrativas – seja ela inaugurada pelos
persas ou por Alexandre, como conjetura Ibn an-Nadîn é retomada pelos
árabes, ou melhor pelos seus autores reconhecidos e confirmados como
mestres da língua. Teríamos, a partir desse primeiro remanejamento pelos
árabes entre a metade do século VIII e o início do século IX, um tipo de
“romance” – designado pelo termo ajzâ, literalmente traduzido como “partes”
-, caracterizado por tomos separados que comporiam uma soma de contos
numa obra comum.
[...] Tal tipo de literatura composta por partes separadas, convém, portanto, às
especificidades da civilização islâmica medieval, resultando inclusive o
espírito da enciclopédia e mesmo do almanaque, nos quais o acréscimo e a
colagem de materiais são sempre bem-vindos.
60
Outra estudiosa que pesquisou As mil e uma noites foi Gomes (2000)
46
. Ela afirma que
estes povos estavam ligados pelo Mar Mediterrâneo. Trafegavam livremente, praticando o
comércio e se comunicando em vários dialetos. Isto durou até 1250, quando os Mamelucos
tomaram o poder da Ásia e não mais exploraram o mercado mediterrâneo. Esta prática
também influenciou na fabulação de histórias, visto que as trocas de diversas informações
forneciam, especialmente, para os contadores, vários elementos para as suas criações. A
região, dessa maneira, era um lugar fértil de culturas, homens e imaginação.
Wajnberg ainda revela que entre os séculos VIII e IX foi o período da literatura de
“pura invenção”, além de ser época do reinado do lendário califa Harum Al-Rashid
47
. Já nos
séculos XI e XII, na literatura árabe, o acréscimo de contos de magia da cultura egípcia.
Wajnberg continua dizendo que, no século XVII, foram adicionadas histórias da Arábia pré-
islâmica na cultura árabe. Toda essa compilação, portanto, se deu em um longo período o que
implicou não diferentes versões de um mesmo conto como também na combinação de
características de cada narrador, devido à sua cultura. Novamente observamos a fertilidade da
narrativa e a sua antiga relevância.
Gomes (2000), a respeito da origem do livro em questão, acrescenta a este
emaranhado de influências o fato de que, no Cairo, foram achados documentos dos séculos
XII a XV, os quais tinham registrado o cotidiano judaico-árabe. Entre estes achados “o
registro de um empréstimo de um livro chamado As mil e uma noites, no século XII, por um
livreiro local” (p.59). A autora também informa que depois da Guerra Mundial foi
encontrado um fragmento de papel do século IX, de título Kitab Hadith Alf Layla (O livro do
conto das mil e uma noites), o qual também apresenta a história moldura por nós conhecida.
Gomes (2000, p. 63) esclarece que As mil e uma noites foram, então,
[...] produzidas pela deposição sucessiva de estratos de diferentes períodos
históricos, elas são, certamente, um resultado da civilização árabo-islâmica e
de suas vizinhanças político-geográficas, influências que se deixam perceber
nos diferentes temas e estilos nela representados: o período pré-muçulmano
ou sassânida, o Egito antigo, a antigüidade bíblica e mesopotâmica, o Irã, a
46
GOMES, Purificacion Barcia. O método terapêutico de Scheerazade: mil e uma histórias de loucura, de desejo
e cura. São Paulo: Iluminuras, 2000.
47
Sultão famoso por disfarçar-se e freqüentar o mercado de Bagdá anonimamente para saber o que o povo falava
a seu respeito e sobre o seu reinado; é também personagem dos contos de Sherezade e citado em Vozes do
deserto.
61
Índia, a Grécia antiga e sua herdeira, Bizâncio, as Cruzadas e sua influência
ocidental.
Além disso, Wajnberg (1997, p.66) apresenta um resumo em relação à composição do
texto As mil e uma noites, ou seja,
[...] 1) surgimento do mercado cultural árabe de contos de origem persa ou
transmitidos pelo Irã, a partir do meio do século VIII; 2) atividade registro,
paralela a de inúmeras outras obras, durante as próximas cadas, com a
intervenção da figura de Harum ar-Rachîd e a devida atestação histórica desta
atividade para o início do século IX; 3) aclimatação definitiva dos contos
durante todo o século IX, com a participação dos árabes desde o seu tesouro
cultural a com o acréscimo de outras histórias, como a aventura marítima de
Sindbad; 4) adaptação potente e bem sucedida destes contos para o universo
árabe-islâmico, de forma que figurem escrito, lidos e conhecidos - na adad
do homem civilizado do século X.
Nesta retrospectiva histórica podemos dizer que As mil e uma noites tiveram muitas
influências ao longo dos séculos. Isto é, pelo fator temporal, podemos constatar que houve
diferentes edições escritas (originárias da literatura oral daqueles povos), mas com um conto-
moldura parecido, diferenciando apenas as histórias que a personagem Scherezade contava,
seja em relação à quantidade dos contos ou em relação às suas características intrínsecas de
constituição. Estes aspectos são importantes, à medida que observamos que os contos
narrados pela personagem envolvem uma multiplicidade de seres e situações que, segundo os
estudos apontados, são de diferentes povos. A combinação de vários elementos é o que
constitui a magia e a fertilidade do referido texto, e que a cultura árabe absorveu na forma de
registro e constituição dos contos.
Após as discussões sobre as origens de As mil e uma noites, vamos explorar o tema do
islamismo, muito presente no livro árabe.
2.5.1 O Islamismo na narrativa-mãe
As mil e uma noites contemplam aspectos da cultura islâmica e conseqüentemente, do
Alcorão. Ao abordarmos esta questão, simultaneamente exploramos os aspectos oral e escrito
que envolveram a feitura deste livro, dentro do contexto cultural árabe.
62
No período sassânida
48
(pré-islâmico) circulavam contos citados em As mil e uma
noites. De acordo com Gomes (2000), este livro também fazia parte da dinastia Fatímida
49
, no
século XI. Inicialmente, muitos dos contos narrados por Sherezade eram oralmente contados
nos países árabes por volta do século VIII, quando mais tarde o referido livro recebeu as
influências do Islã.
Wajnberg (1997), na sua explanação da criação da religião do Islã, afirma que o
Alcorão, livro sagrado desta religião, foi escrito ao longo de 23 anos, pelo profeta Maomé.
Para este eram reveladas as ordens de Deus, que tiveram início no ano de 610 até a sua morte,
em 632. Neste processo, a escrita foi importante para o registro das mensagens, uma forma de
perpetuar os sermões, embora o profeta tenha recitado as revelações e seus seguidores as
conhecerem na forma oral e as memorizarem. Isso valorizou o sistema de escrita.
Esclarece a pesquisadora que o Alcorão foi importante no “desenvolvimento da
prosa”. Um ano depois da morte de Maomé, o califa Abu-Bakr ordenou a coleta dos registros
dos discursos do profeta (feitos em folha de palmeira, pedra branca, ossos de animais). No
reinado de Otman, foi realizada uma versão canônica escrita do livro sagrado, na língua árabe,
e as cópias foram enviadas para Damasco, Basra e Kufa.
Depois da morte de Maomé, segundo Said (2000), o Islã com o seu crescimento
militar, cultural e religioso, suas extensões abrangeram a Pérsia, a Síria, o Egito, a Turquia, a
África do Norte, a Espanha, a Sicília e partes da França. Conforme o teórico, nos séculos XIII
e XIV, o islamismo atingiu a Indonésia, Índia e China. Fatos que nos auxiliam a compreender
o quanto cresceu este sistema entre os povos da Europa e Ásia.
Para que fique claro, o período áureo do Islã foi entre os séculos X até XIII, conforme
Barcia (2000). Neste período reinaram os Fatímidas e os Aiúbidas
50
. Muitos documentos
48
Regime de governo que comandou a Pérsia entre 224 a 651 d.C. Seus domínios seriam, atualmente, a região
do Iraque, Armênia, Afeganistão, Síria, Arábia e Ásia Central. Estes povos tinham uma religião politeísta. No
final do século VII seus domínios foram conquistados pelo califado. Na conquista dos Califas (depois da morte
de Maomé), o Islamismo foi instituído pela chamada Guerra Santa.
49
Foi uma dinastia ou um califado, assim como os Abássidas, que seguiam as ordens islâmicas. Estas duas
dinastias entraram em conflito para conseguir o título de Califa para o seu governante, após a morte de Maomé,
que não deixou descentes masculinos. Isso fragilizou ambos os governos. Os fatímidas tinham o domínio do
Egito (Cairo), já os abássidas tinham como capital Bagdá, cenário de muitas histórias de As mil e uma noites. Em
1299 ambos os governos foram conquistados pelo Império Otomano.
50
Império que tomou o Egito dos Fatímidas, em 1171, e governou também as regiões da Síria. Teve como
destaque o soberano Saladino, que criou o poderoso exército Mameluco. Em 1250, o exército, com um golpe,
63
provenientes do Egito, Líbano, Síria, Tunísia, Marrocos, Terra Santa e de comunidades judias
na Espanha, comprovam isso. De acordo com a autora, esses documentos revelam a vida das
pessoas naquela época. Havia desde contrato de casamento, bens de enxovais, contabilidade,
casos de divórcios, obrigações de homens e mulheres até a interpretação de sonhos. Trazia
não informações sobre a vida errante dos homens por causa do comércio ou de serviços
prestados a sultões, como também fugas políticas. A errância era um estilo de vida em busca
de conhecimento tanto de cunho religioso (viagens à Meca e à Terra Santa), quanto de
negócios. Isso nos uma idéia do cotidiano no período auge do Islã e facilita a compreensão
destes aspectos culturais presentes em As mil e uma noites.
Tendo em vista que o Alcorão origem à civilização islâmica, Wajnberg esclarece
que deste livro “derivam uma jurisprudência, uma ética, uma estética, uma política” (p. 32).
Portanto, a marca carônica está presente em todas as manifestações culturais de seus
seguidores e da mesma forma nAs mil e uma noites, isto é, incorporada pela cultura árabe,
logo foi abrangendo as ordens do Islã. De acordo com a autora, durante os séculos VIII até IX
ocorre a “arabização e conseqüente islamização do material estrangeiro” (p. 73) contido em
As mil e uma noites. A autora ainda esclarece que
[...] a relevância da redação das Noites pelos árabes é o assentamento [de] um
novo eixo em torno do qual virão a se mover os seus argumentos,
inscrevendo mesmo nesta incorporação ativa um significante de paternidade
em relação à obra. Assim, ao ganhar esse selo islâmico, o que podemos
pensar como texto de partida sofreria uma torção com uma mudança de
sentido, construindo-se um outro edifício com as pedras veneráveis que
restaram do primeiro. (p.74)
Por isso, podemos considerar que o livro As mil e uma noites pertence à literatura
árabe. Muito do que nele é contado expressa abertamente costumes e orientações do
islamismo. Em relação ao que a autora afirma sobre o “primeiro” são os manuscritos (ou que
deles sobraram) traduzidos para o árabe, que deram origem ao texto miliumanoitesco.
Outro evento que influenciou na escritura de As mil e uma noites em árabe foi não a
chegada dos turcos, no século XI, como também a invasão dos mongóis, o que culminou na
destruição de Bagdá e do califado abássida, no século XIII. Conforme Wajnberg (1997, p. 72)
“o Islã ameaçado de desaparição registra todo o tesouro escrito em árabe, compilando e
compondo febrilmente obras de todos os tipos e gêneros, na ânsia de conservar para as
chegou ao poder. Enfraqueceu-se após conflitos com os Mongóis e contra os cristãos. As duas regiões
desenvolveram-se muito culturalmente e também economicamente durante essa soberania.
64
gerações futuras o que foi a glória do império islâmico.” Isto também demonstra a
importância da palavra e da sua preservação, isto é, apesar de a cultura oral dar origem ao
texto das Noites, foi a escrita um dos fatores que lhe garantiu a sobrevivência pelos séculos.
Portanto As mil e uma noites é uma obra pertencente à humanidade.
Assim, compreendemos a presença de normas islâmicas na narrativa-mãe e a maneira
como este texto foi preservado. Ao mergulhar no mundo árabe, a história de As mil e uma
noites recebeu as influências do Islã na sua composição. a escrita, nesse processo,
desempenhou não somente um papel fundamental para a perpetuação da obra, bem como do
próprio Alcorão, um modo de preservar as riquezas árabes. Após o estudo das características
corânicas, passamos para as diversas traduções deste texto árabe para diferentes nações.
2.5.2 As traduções
Após compreendermos as origens de As mil e uma noites, passamos agora à analise de
como esta obra se propagou pelo resto do mundo, chegando até nós. No que se refere às
traduções, nosso estudo está ancorado no trabalho do francês Galland (2000)
51
, uma das mais
difundidas no Ocidente. No entanto, outras obras e cada uma com suas próprias
características e diferentes versões do conto-moldura árabe. De acordo com Wajnberg (1997),
Galland fez a tradução para o francês a partir de um manuscrito do final do século XIII ou
início do século XIV. Essa primeira tradução ocorreu no início do século XVIII (1704-1717).
Segundo Gomes (2000), o esforço de traduzir As mil e uma noites resultou em diversas
versões da narrativa árabe. A seguir apresentamos as principais versões ocidentais, ordenadas
cronologicamente:
- Hammer-Purgstall (1774-1856), na Alemanha, localizou um manuscrito em que o sultão
Schariar arrependeu-se da suas ações e perdoa Scherezade. É o final mais conhecido. Todavia,
estão perdidos o manuscrito e a tradução alemã;
- Edward Lane, inglês, realizou um trabalho que contém um vasto detalhamento do cotidiano
e vocabulário árabe, isso foi por volta de 1828 a 1849;
51
GALLAND, Antoine. As mil e uma noites. Tradução de Alberto Diniz. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, 2
v.
65
- John Pane (1842-1906), inglês, fez a tradução de versos e alguns contos eróticos;
- Richard Burton (1821-1890), famoso estudioso que pesquisou profundamente diferentes
culturas orientais, e também tinha o domínio de muitas línguas tribais. A sua obra é
considerada erudita e com muitas notas explicativas;
- Mardrus (1868-1949), francês, cuja obra “enfatizou, e até incrementou, o caráter erótico” do
texto, segundo explica a autora (p.67);
- Enno Littmann (1875-1958), alemão, apresentou uma boa tradução, mas sem os poemas do
original.
Borges (1999)
52
também fez um estudo sobre as traduções de As mil e uma noites.
Conforme o grande escritor, Galland, além do texto árabe, trazido de Stambul, contou com a
ajuda de um assessor que teria auxiliado na escrita de alguns contos, os quais não constam no
original (entre eles Aladin e as aventuras de Harun al-Rashid). O autor esclarece ainda que a
obra de Galland (de 12 volumes) tem uma característica procedente do decoro, o que contribui
para a magia e invenção do texto.
Lane explora o que Galland deixou implícito. O trabalho de Lane é repleto de
observações, afirma Borges. O escritor estabelece um quadro comparativo entre os dois
tradutores, o que facilita a nossa compreensão, ou seja,
[Galland] domesticava os seus árabes, para que não destoassem
irremediavelmente em Paris; Lane é minuciosamente agareno. Galland
ignorava toda precisão literal; Lane, justifica sua interpretação de cada
palavra duvidosa. Galland invocava um manuscrito invisível e um maronita
morto; Lane fornece a edição e a gina. Galland não se preocupava com
anotações; Lane acumula um caos de esclarecimentos que, organizados,
integram um volume independente.
No que se refere à tradução de Burton, Borges explica que o inglês, que andava
disfarçado (era espião) pela Arábia, fez um extenso trabalho, apesar de uma edição limitada
(1000 exemplares). Além de entreter as pessoas do século XIX, completou a sua obra com as
passagens eróticas, que não foram bem aceitas por algumas instituições, como a Enciclopédia
Britânica.
52
BORGES, Jorge Luis. História da eternidade. In ____: Obras completas. Tradução de Glauco Mattoso [et al.].
São Paulo: Globo, c1998-1999, v. 4.
66
Na autobiografia de Burton, ele próprio esclarece quanto ao original que a sua
procedência data antes de 1400 e que
[...] o arcabouço era “puramente persa”; algumas histórias podem datar do
século VIII, outras do século X, mas a maior parte da obra se concentra no
século XIII, tendo-se acrescentado algumas histórias ainda no século XVIII.
“O autor é desconhecido pela maior das razões: ele nunca existiu”, pois as
Mil e uma noites são da lavra de compiladores e editores desconhecidos.
(RICE, 1993, p. 471)
53
Sobre o trabalho de Mardrus, Borges, na mesma obra, afirma ser a versão mais fiel de
As mil e uma noites. Considera que o francês, na tradução, preocupou-se com as
representações das passagens, uma atitude que implicou a omissão de partes do original.
Porém, sua obra registra o desafio de uma tradução dessa natureza, além de se permitir ousar,
ou seja, ir além das próprias palavras.
Em relação a Littmann, Borges (1999) esclarece que o seu trabalho é não “de um
franqueza total” (p.455) como também fornece explicações sobre o original. O alemão,
conhecedor de línguas orientais, publicou um texto preocupado com a compreensão do
público.
Borges (1983)
54
, ao relatar a origem persa dos contos e que acabaram sendo escritos
em árabe, faz especulações sobre o sentido do título Mil e uma noites. De acordo com ele,
esse nome indica ir além do infinito” (p. 75) e instiga o desejo da leitura. É justamente este
desejo que os persas e hinduístas exploram, isto é, o processo de experiência com a literatura.
O que nota-se na constituição do respectivo livro.
Borges, na obra citada, esclarece que “a gente tem vontade de perder-se em As mil e
uma noites, pois sabe que, se entrar nesse livro, é capaz de esquecer nosso pobre destino
humano” (p.81). O escritor chama a atenção para a vida do livro, ou seja, a possibilidade que
oferece ao leitor de ter novas aventuras e enriquecer a vivência; de deixar-se levar pela ficção,
de modo a compreender os demais sujeitos com quem se relaciona; de distanciar-se (ausentar-
se) para compreender melhor o seu cotidiano.
53
RICE, Edward. Sir Richard Francis Burton: o agente secreto que fez a peregrinação a Meca, descobriu o
Kama Sutra e trouxe as mil e uma noites para o ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
54
BORGES, Jorge Luis. Sete noites. Tradução de João Silvério Trevisan. São Paulo: Max Limonad, 1983.
67
Na sua explanação, Borges acredita que as diferentes versões e traduções o
características deste texto árabe, pelo fato de influenciar vários escritores nos séculos
posteriores, isto é, ele sempre continua. E de acordo com Borges, As mil e uma noites não
são uma coisa morta. Trata-se de um livro tão vasto que nem é preciso lê-lo. Ele é parte prévia
de nossa memória” (1983, p.88). Nessa admiração, constatamos a fertilidade fascinante do
texto das Noites. Não por acaso até hoje instiga e sempre acaba nos seduzindo novamente. É a
força da narrativa presente e latente nos contos de Scherezade, num processo de sedução e
transformação do ser humano: na identificação de um ato tão antigo compreendemos a nossa
própria organização e atuação numa dada cultura, nas experiências e reflexões
proporcionadas; nos dá a permissão de adentrar no mundo da ficção e de nos alimentarmos de
sentimentos de que não dispomos ou ocultamos na severidade do cotidiano; é libertar-se para
o interior e conhecermos melhor, assim como os outros; é identificar e compreender os
significados sutis da vida em sociedade.
Gomes (2000, p. 65) também elenca algumas das dificuldades nessa tradução, tais
como:
Nos manuscritos árabes pré-modernos, não existem sinais para indicar o
discurso direto e o indireto;
Não há letras maiúsculas e minúsculas;
O uso de pronomes é complicado e as dúvidas freqüentes quanto ao referente
só podem ser dirimidas através do contexto;
Pontos ou sinais diacríticos distinguem uma letra da outra, porém muitos
forma perdidos pelos escribas nas sucessivas transcrições;
Não existem bons dicionários de língua pré-moderna. A obra foi basicamente
escrita no médio-árabe língua em uso de 1200 a 1600. [...]
Os trechos que evocam cerimonial, pompa, batalhas sangrentas ou a beleza
extraordinária de uma mulher ou homem, são escritos em prosa rimada (saj).
Intercalam-se poemas, em momentos de intensidade dramática ou lírica [...].
esta é complicada pela riquíssima semântica árabe, que permite uma
infinidade de trocadilhos e jogos de palavras.
Por estas investigações podemos constatar que, no Ocidente, a tradução e a publicação
da narrativa-mãe foi um árduo trabalho. Nessa perspectiva observamos o deleite em relação
ao Oriente, tendo em vista que sempre foi uma terra que proporcionou inúmeras expedições
(comerciais, religiosas, investigativas). Após, esta reflexão sobre as traduções, partimos para a
apresentação do conto-moldura de As mil e uma noites.
68
2.5.3 O conto-moldura de As mil e uma noites
Após explorarmos o contexto da elaboração da narrativa árabe em questão (origem e
tradução), focalizamos o próprio livro. O nosso trabalho tem como base a tradução de
Galland, como informado anteriormente. A explanação dessa obra se faz necessária, tendo em
vista que o livro da nossa análise, Vozes do deserto, tem uma marcante intertextualidade no
que se refere às personagens, ao espaço e ao tempo da narrativa árabe. Isto é, para
entendermos a obra de Nélida Piñon, é preciso, inicialmente, conhecer a base, As mil e uma
noites, para então fazermos um contraponto.
Antes, porém, é preciso que tenhamos definido do que se trata a intertextualidade. Esta
palavra é formada pelo sufixo inter, de origem latina, que tem a noção de relação e, este com
a palavra “texto”, constitui, então, uma relação entre textos. Segundo Remédios (2005, p.
134)
55
, no âmbito literário a intertextualidade “conduz a idéia de intersecção de textos e
discursos, instituintes e instituidores de formações discursivas e suas respectivas condições de
produção”. A estudiosa explica que muitas obras clássicas literárias servem de fonte para
obras posteriores. Podemos verificar isso em Vozes do deserto, uma vez que faz não
referência ao conto-moldura de As mil e uma noites, como também a alguns elementos
narrativos. Além disso, Remédios esclarece que cada obra remete-se a um determinado tempo
e que o seu conteúdo discute as relações humanas no sentido da ruptura, por isso, as
narrativas, mesmo tendo outras narrativas como base, se mostram férteis na capacitação
imaginativa do ser humano.
De acordo com Bakhtin (1998), intertextualidade é o diálogo entre narrativas. Nesse
diálogo acontece a estilização por parte de um autor. O sujeito que se constitui na linguagem
tem como fontes várias “vozes”, e na sua ação comunicativa usa dessas fontes e lhes dá novos
significados. É o que ocorre na literatura. A característica intertextual não é cópia, mas a
recriação, a atualização de significados de textos publicados. É isso o que ocorre em Vozes
do deserto: uma nova história, oriunda de uma outra conhecida, porém recebe um novo
55
REMÉDIOS, Maria L. Ritzel. Literatura portuguesa: textualidade e intertextualidade. In: ORMEZZANO,
Graciela; BARBOSA, Márcia H. S. (Org.) Questões de intertextualidade. Passo Fundo: Editora UPF, 2005. p.
133-152.
69
sentido que se relaciona ao cotidiano contemporâneo, mas sem perder as suas características
principais, o que veremos mais adiante.
O texto árabe teve diferentes leituras e interpretações ao longo de vários estudos. A
técnica de Scherezade instigou tanto os campos da teoria literária quanto os da psicanálise, da
história e do campo esotérico. Não nos aprofundamos nas interpretações que não fossem do
âmbito literário, apenas fazemos uma breve apresentação para verificar a fertilidade dessa
narrativa e, por fim, optamos por seguir a linha intuitiva borgeana, que contempla esta obra no
âmbito da especulação sobre o ser humano.
No que se refere ao campo literário, constatamos as diferentes traduções, também
anteriormente citadas, que envolvem As mil e uma noites. O conto-moldura destes trabalhos é,
em geral, parecido, diferenciando-se apenas nos nomes ou no parentesco das personagens. O
conto-moldura é assim conhecido: o rei Chahzaman, imperador da Grande Tartária, foi visitar
o seu irmão, Chahriar, rei das Índias, da Pérsia e do Turquestão. Ambos eram casados e eram
adorados pelos seus povos.
Chahzaman, para se despedir por mais uma vez da sua esposa, volta para casa.
descobre a traição da mulher com um escravo e, imediatamente, os mata. Chegando ao
palácio do irmão, este o deprimido, mas não conta a Chahriar o motivo. Tendo saído para
uma caçada, Chahriar se ausenta. Chahzaman, que permanece nos aposentos, que a esposa
do irmão, entre escravos e escravas, também comete adultério. Vendo que o seu infortúnio
não é maior que o do irmão, Chahzaman se recupera e conta a Chahriar o que testemunhou da
janela do seu quarto e o motivo da sua tristeza.
Planejaram, os dois, que anunciariam uma viagem, mas ficariam escondidos no
palácio, a fim de flagrar as ações nefastas da sultana e dos escravos. Eis o que acontece. Os
irmãos, então, resolvem viajar para saber se haveria homens mais desonrados do que eles.
Os irmãos viajam muito. Numa noite, ao descansarem em cima da uma árvore,
avistam um enorme gênio sair do mar e carregando consigo um cofre, do qual retira uma linda
mulher e, depois, dorme sobre as pernas dela. A mulher que os dois reis na árvore, ordena
que eles venham até ela e que tenham relações, caso contrário, acordaria o gênio. Após o ato,
ela pede os anéis de cada um e os coloca junto com muitos outros. Esta era a comprovação
70
das traições dela sob a guarda do gênio. Assim, os dois reis concluem que aquele Afrit era
mais desgraçado do que eles e que, portanto, poderiam regressar ao palácio, além de verificar
o quanto a natureza feminina é traidora.
No palácio, Chahriar ordena a morte da sultana e dos escravos, e para não mais ser
traído por nenhuma mulher, decide se casar toda noite com uma donzela e matá-la ao raiar do
dia. O horror se espalha pelo reino e com o passar do tempo restam poucas virgens
disponíveis para o sultão. Até que a própria filha do vizir, grande auxiliar do sultão, se oferece
para se casar com Chahriar. Scherezade leva a irmã Dinazarda consigo ao palácio sob o
pretexto de ficarem juntas na sua última noite. Após a cópula entre Scherezade e o sultão,
Dinarzarda pede ao governante a permissão para que a irmã conte uma de suas fabulosas
histórias, o que lhe é concedido. Scherezade inicia um conto e, ao raiar o dia, ra, dizendo
que contaria o final na próxima noite, caso Chahriar a deixasse viver mais um dia. Ele
permite. E assim, sucessivamente, por mil e uma noites, Scherazade entretém e seduz o sultão
com suas histórias e, consequentemente, fica viva. Por fim, o sultão retira a condenação às
mulheres e toma Scherezade como rainha.
Porém, são interessantes outros finais dados à Scherezade e às suas histórias. Segundo
Gomes (2000), na versão que hoje conhecemos, o sultão ordena que muitas histórias fossem
gravadas em ouro para que se perpetuassem (pelo ouro e pela escrita), e guardá-las na sua
biblioteca. Quanto ao fim de Scherezade, o término feliz é o mais difundido. Escritores
ocidentais de outros tempos, como Piñon, também recriaram outros finais, tais como o
escritor Poe. A autora informa que este escritor contemporâneo, ao também fazer uma
reescrita da narrativa, A milésima segunda noite, cria uma Scherezade que narra histórias com
“todas as novidades da ciência e tecnologia devidamente registradas nas enciclopédias do
século XIX”, porém o sultão “sente-se ultrajado pelo fato de que tentem impingir-lhe
semelhantes tolices, e recusa-se terminantemente a aceitar as novidades apresentadas” (p.18).
Revoltado, o sultão ordena a morte de Scherezade no fim daquela noite. Podemos verificar,
assim, que uma diferença entre as versões orientais antigas e as ocidentais mais modernas,
isto é, as primeiras levantam a questão da perpetuação das histórias, as posteriores
apresentam a visão (re)criadora.
Wajnberg (1997) também traz uma relação de outros finais atribuídos à Scherezade.
Ela explica que no Fihrist, do século X, Scherezade apresenta ao sultão um filho, no fim de
71
suas narrações; no trabalho de Mardrus, Burton, entre outros, a princesa aparece com três
filhos no desfecho, dos quais, um andava, outro engatinhava e o mais novo, mamava; na
tradução de Hammer-Purgstall, a referida personagem só se livra da morte porque está
grávida. São variados os finais da princesa, mas eles não constituem o nosso foco de estudo.
Basta isso para sabermos que Scherezade teve variados destinos. E para complementar, no
livro da nossa análise, a personagem tem ainda um outro epílogo, que mais adiante o
explicamos.
No que se refere à leitura psicanalítica, é intrigante a visão de Scherezade em relação
ao sultão. Tanto nos trabalhos de Gomes (2000), quanto de Wajnberg (1997), é explorado o
processo e a cura do rei, mas por um modo inverso ao praticado pela análise psicanalítica, isto
é, quem fala é Scherezade, já Chahriar escuta as suas histórias. Seduzindo, entretendo e
possibilitando ao califa outras aventuras, ele tem sanado, principalmente, a sua vertigem às
mulheres.
No estudo de Wajnberg (1997), a terapia praticada por Scherazade, ancorada no ato de
narrar e na criação de um ambiente, hora e lugar para isso, apaziguou o sultão e “esta cura se
passaria basicamente no nível da sugestão” (p.170). A autora ainda complementa que a
narração para esta personagem “equivale a retomar a origem da fala, desde que o sujeito se
anuncia como desejante, perdido-e-achado na falta que o inaugura” (p.178). Portanto trata-se
de uma narrativa que possibilita diferentes interpretações e investigações, traz uma
característica humana muito forte, isto é, somos uma espécie que histórica e cognitivamente é
narrativa, tendo em vista as experiências que este modo de conhecer oferece ao ser humano.
No mesmo viés psicanalítico, Gomes (2000) estuda a narração de Scherazade como
um método, em que alguém está doente e alguém lhe conta coisas que aliviam sua dor e,
especialmente nessa obra, misturando mundos totalmente diferentes, como seres
extraordinários e permeados de magia. Ou seja, fantasia e ficção. Além de ser uma astuta
narradora, Scherezade possibilita ao califa mexer com profundas emoções, a nível
sobrenatural. Novamente, percebemos a fertilidade do ato de narrar e que pouco importa se
são ou não plausíveis certos acontecimentos, desde que sejam coerentes no mundo criado,
porque a imaginação pela palavra é um processo tão rico quanto complexo, e presente em
todas as manifestações culturais humanas.
72
A linguagem é um sistema simbólico e a narração faz o uso desse recurso. Desde os
primeiros séculos, como vimos na história de As mil e uma noites, a palavra, inicialmente
oral, desempenhava um papel importante nas tribos e nos mercados. Os contos que ali
foram fabulados, levavam em consideração a sabedoria popular, a moral, as crenças e a sua
interpretação. Quando a escrita proporcionou a permanência dessas manifestações, a memória
(auxiliada pela recitação oral, o encaixe de histórias) foi substancialmente substituída. Nesse
sentido, Scherezade é a personagem que usufrui de grande memória e capacidade de
compilação de histórias, e a escrita desse livro faz jus à preservação e valorização da escrita.
Isto é, duas questões, podemos dizer históricas, que permeiam o texto miliumanoitesco: a
memória e a escrita, ambas são recursos humanos ainda importantes nas relações sociais.
Por isso, o texto de As mil e uma noites também é uma fonte histórica, ao considerarmos o
papel da narratividade, oral ou escrita, na trajetória humana.
No artigo, O poder da palavra, Adélia Meneses
56
explora a força narrativa de
Scherezade. A pesquisadora atribui a característica de magia à palavra e é isso que faz vencer
a ira do sultão, ou seja, no processo narrar-escutar da poesia e literatura, são tratados os
problemas emocionais, sendo que “Scherazade oferece ao sultão uma linguagem, um discurso
simbólico que possa atingi-lo, por inteiriçado e crispado que ele estivesse na sua incapacidade
afetiva. Ela oferece ao sultão o acesso ao mundo simbólico” (p.123). E, consequentemente, as
mulheres e Scherezade são salvas. A autora ainda esclarece que “na narrativa oral, a Palavra é
corpo: modulada pela voz humana, e portanto carregada de marcas corporais; carregada de
valor significante” (p.124). Sendo assim, a palavra é um conhecimento que possibilita
experiências, seja oral ou escrita, o ser humano não atua com ela em diferentes situações,
como também organiza-se para novos conhecimentos que envolvem a ação comunicativa.
Na leitura esotérica, As mil e uma noites apresentam uma curiosidade em relação ao
título, que é ímpar. Segundo Wajnberg (1997), o número par não é bem quisto, pode trazer
azar, conforme os costumes dos povos da época, no século X. Por isso se acredita que os
autores tenham acrescido mais uma unidade. Também possibilita essa leitura devido aos
vários elementos simbólicos que preenchem os contos. Porém não privilegiamos a discussão
dos símbolos que a narrativa explora por não fazer parte do nosso objeto de estudo, citamos
esta leitura a título de informação sobre a abrangência do referido texto.
56
MENESES, Adélia Bezerra. Do poder da palavra. Remate de males, Campinas, n. 7, p. 115-124, 1987.
73
Após todas estas considerações sobre a narrativa-mãe, vamos verificar como está
organizada, na releitura de Nélida Piñon, em Vozes do deserto, os elementos narrativos, bem
como buscamos compreender quais são os conhecimentos que esta narrativa oferece no
processo interpretativo.
2.6 Vozes do Deserto
Após explorarmos a origem e o conto-moldura de As mil e uma noites, adentramos no
tema da narrativa, presente no livro Vozes do deserto
57
. O mais recente e premiado livro de
Nélida Piñon (2006), editado primeiramente em 2004, conta os bastidores da trama de
Scherezade e um grupo de mulheres, no palácio do traído sultão Abássida, cujo nome não é
revelado. Como visto anteriormente, após ter sido traído pela sultana, ele condena toda nova
esposa à morte. A filha do Vizir se dispõe a interromper a série de assassinatos com a sua
habilidade de contar histórias. Scherezade, com a ajuda da irmã Dinazarda, das escravas e por
fim, de Jasmine, surpreende o Sultão, que suspende a morte da princesa, noite após noite, com
o propósito de escutar-lhe aventuras diversas. São estes os elementos que caracterizam a
intertextualidade com a narrativa-mãe, mas também usados para a releitura do conto.
Nesta análise de Vozes do deserto, buscamos verificar o papel das narrativas enquanto
organização de conhecimento sobre o mundo e de que forma elas possibilitam novas
experiências ao leitor, e com isso a sua complexificação cognitiva. Para tanto utilizamos o
referencial teórico apresentado e outros estudiosos que discutem os elementos narrativos. O
livro foco da nossa análise é constituído por 351 páginas e dividido em 64 capítulos somente
enumerados, os quais não têm relação com o número das noites que a princesa passa
fabulando. Assim, os próximos itens tratam dos elementos narrativos que constituem o livro.
Inicialmente, tratamos do narrador da história. Depois, respectivamente, o tempo, as
personagens e, por fim, o espaço em que ela se desenrola, para que possamos compreender a
obra como um todo.
57
PIÑON, Nélida. Vozes do deserto. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
74
2.6.1 O narrador
Vozes do deserto é narrado por uma voz onisciente. É por ela que o leitor toma
conhecimento de toda a história. O narrador informa os pensamentos, as conversas das
personagens (discurso indireto); fornece explicações sobre o califado, a cultura e costumes
árabes. Faz perguntas; dialoga com o leitor e, sutilmente, vai lhe dando pistas dos
acontecimentos futuros. Com ele, o conhecedor de toda a trama, acompanhamos um processo
narrativo complexo, tendo em vista que a voz conta ao leitor, entre outras informações, o que
Scherezade conta ao Califa. Dessa forma, o leitor pode se ver no lugar do próprio rei.
Entretanto, em outras ocasiões, essa voz leva o leitor ao passado das personagens, de forma
sutil, mas arrebatadora.
De acordo com Tacca (1983)
58
, o mundo do romance é constituído por muitas vozes,
ou seja, do autor que voz para o narrador, que por sua vez a empresta para as personagens.
Um processo em que o leitor precisa estar atento, porque ele próprio faz parte, e inclusive tem
influenciado o seu ponto de vista a respeito de uma história. O narrador em questão não tem a
sua origem revelada, mas se aproxima do leitor de tal forma que ele lhe é íntimo e impõe
confiança. Nessa perspectiva o teórico explica que a função da voz narrativa é informar e não
“lhe é permitida a falsidade, nem a dúvida, nem a interrogação nesta informação. Apenas
varia [...] a quantidade de informação” (p. 64)
59
. É desse modo que o leitor é levado a
participar da trama e tem a possibilidade de ter ampliados os seus horizontes de leitura a partir
de uma nova visão da trama de Scherezade. Tacca conclui que a função do narrador é contar e
atua bem se não se afasta desta missão.
Podemos verificar o discurso indireto logo no início da referida história e que reforça
as considerações de Tacca, isto é, a narração da situação que envolve Sherezade, o pai e a
irmã quando aquela comunica a decisão de se casar com o Califa, bem como o quanto o
narrador informa sobre o contexto, vejamos:
[Sherezade] Tenta convencer o pai de ser a única capaz de interromper a
seqüência de mortes dadas às donzelas do reino.o suporta ver o triunfo do
mal que se estampa no rosto do Califa. [...]
58
TACCA, Oscar. As vozes do romance. Tradução de Margarida Coutinho Gouveia. Coimbra: Livraria
Almedina, 1983.
59
Grifo do autor.
75
O pai reage ao ouvir sua proposta. Suplica que desista, sem alterar a decisão
da filha. Volta a insistir, desta vez, golpeando a pureza da língua árabe [...].
Sem envergonhar-se, lança mão de todos os recursos para convencê-la.
Afinal a filha lhe devia, além da vida, o luxo, a nobreza, a educação refinada.
[...]
Também Dinazarda, a irmã mais velha, tenta dissuadi-la. Previa-a incapaz de
dobrar a vontade do soberano. Sendo assim, por que acompanhá-la ao palácio
imperial, como lhe havia pedido e participar de um ato que ora lhe extraía
lágrimas, manifestações de luto prévio? (PIÑON, 2006, p. 7 e 8)
A constituição do contexto inicial da história é rápida e bem sucedida por parte do
narrador. Ele as informações necessárias ao leitor, apresenta a visão de cada personagem
sobre o fato em questão, mas se abstém de qualquer julgamento a respeito. Cumpre a sua
função, de acordo com Tacca, ou seja, conta. Além disso, observamos a sua onisciência.
Tudo isso influencia no processo interpretativo do leitor, tendo em vista a sutileza e a
economia de explicações do narrador; quem o acompanha verifica que se trata de um narrador
maduro e objetivo, porém não menos complexo. O narrador “deve saber para contar” (p.67).
Tacca esclarece que ele determina a perspectiva do romance, dessa forma o “como” conta é
um fator fundamental para a compreensão da narrativa.
Para isso, o autor destaca três diferentes relações entre o que sabe o narrador e as
personagens: onisciente
60
, equisciente e deficiente. O primeiro se refere ao narrador que sabe
mais que as personagens. O segundo, quando os dois têm o mesmo conhecimento dos fatos.
o terceiro, diz respeito à relação de saber inferior do narrador à personagem. Trazemos, a
seguir, diferentes momentos em que o narrador da trama traz explicações que demonstram o
seu conhecimento onisciente sobre diversos fatos no livro em questão, tais como:
- pensamentos de Scherezade - as reflexões da personagem sobre o contexto em que vive e a
sua capacidade de contar histórias após uma noite inteira fabulando:
O que a motiva a perguntar-se que sina a sua, de saber mais que os comuns
dos mortais! De afligir-se com segredos, digos, entraves, que os humanos
foram engendrando como forma de criar uma civilização que coubesse
integral dentro dos muros de Bagdá (p. 53).
- reflexões do Califa – as inquietações do soberano em relação à traição da sultana, no
passado:
A despeito de reinar sobre o califado de Bagdá, a desonra, que ainda hoje o
persegue, inflige-lhe noções distorcidas da realidade. Como confiar na figura
feminina que, mesmo sob vigília, o envergonha diante dos súditos? Jurara
que nenhuma mulher voltaria a traí-lo [...] (p. 71).
60
Omnisciente, na edição referida.
76
- informações sobre a cultura árabe e abássidas anteriores o Califa age ao contrário de
Harum Al-Rachid, sultão muito lembrado por seus disfarces, isto é, “o nobre ancestral que, de
tanto carecer de verdade e da mentira, ia ao mercado disfarçado de olheiro, de mendigo, de
mercador, forçando os súditos a lhe denunciarem a prepotência e os erros” (p. 143). Atitude
que este sultão se negava a ter. Além disso, o narrador descreve o reino e Bagdá, na seguinte
passagem que narra as reações das pessoas após a decisão de Scherezade de se unir ao Califa:
O debate deixara os limites dos aposentos, das dependências dos serviçais,
para circular pelo submundo de Bagdá, constituído de mendigos,
encantadores de serpentes, charlatães, mentirosos que no bazar adotavam
formas obscenas e jocosas enquanto propagavam a notícia da filha do Vizir,
[...], comovia a velha medina que, de hábito, lidava com o engodo e a burla.
Os sentimentos que a jovem inspirava faziam teólogos, filósofos, ilustres
tradutores, incluindo seus mestres, se reunissem pesarosos diante das
portas do palácio do Vizir, e ajoelhados, com os olhos postos em direção a
Meca, escandissem versículos inteiros do Corão com o propósito de fazê-la
desistir de semelhante ato (p. 8 e 9).
Estas são algumas das informações contextuais e das personagens que o narrador
fornece ao leitor durante o ato da leitura. Outras passagens serão vistas ao analisarmos os
outros elementos da narrativa. Fica claro que é por meio de um narrador misterioso e astuto
que o leitor vai desvendando a história. Além disso, ele é exigente com o seu “ouvinte”, isto é,
apesar de dar explicações diversas, a voz que conta a história também faz questão de
preservar alguns segredos, deixando o espectador perturbado.
Essa perturbação é amenizada por declarações do narrador que, inicialmente, podem
não ser compreendidas pelo leitor, mas que com o desenrolar da história, têm um papel
importante para a trama. Vejamos a passagem do capítulo 29, quando o Califa tem
pensamentos sobre Scherezade e sobre as diversas personagens que nela habitam. Por ter
insistido em desvendar esse mistério, ele desconfia que a princesa queria se vingar, ou seja,
“de desaparecer ela do palácio sem se despedir” e ele reflete: “estaria ela amuada, disposta a
deixar-lhe um rastro de ódio, um legado que Dinazarda e Jasmine herdariam?(p.160). O
leitor vai entender a reflexão do sultão ao final da narrativa quando Scherezade foge do
palácio e deixa seu lugar de contadora para Jasmine e Dinazarda junto do sultão, na cama.
Estas e outras pistas fornecem as condições necessárias para a compreensão da totalidade da
obra em questão. Podemos dizer que, neste momento, estas pistas são as artimanhas do
narrador em capturar o seu leitor e um modo sutil de encaminhar a história. São sutilezas tão
próprias da arte narrativa com a função de introjetar no leitor mistérios, inquietações e assim
77
fazê-lo se comprometer com a interpretação da obra. Ao final o leitor compreende
propriamente que o narrador, de modo sábio, lhe dava importantes informações da trama.
O amplo conhecimento do narrador permite que ele e volte dentro da trama
principal, isto é, em meio ao conflito da princesa e do soberano, ele traz informações do
passado das personagens, da história abássida, da cultura árabe, mergulha nos pensamentos
das pessoas e revela as suas aflições. Uma viagem livre que o leitor acompanha como
testemunha da complexidade do ato narrativo. É esta a base da trama que o leitor vai
desvelando à medida que recolhe as pistas deixadas pelo narrador.
Outro teórico que nos auxilia a analisar as artimanhas do narrador de Vozes do deserto
é D’Onófrio (2006)
61
. O estudioso também investiga a natureza da narrativa e explica que a
voz que conta não é o autor da história, mas uma personagem por ele inventada, portanto,
ficcional. E na análise dos narradores no âmbito literário, D’Onófrio também faz distinções.
Ele afirma que, no plano da enunciação
62
, o narrador pressuposto e o narrador-
personagem. No primeiro, caracteristicamente escrito em terceira pessoa, o teórico inclui o
narrador onisciente neutro, o onisciente intruso, o onisciente seletivo e o narrador-câmera. No
segundo, o narrador está dentro da trama e se identifica com a personagem, D’Onófrio
distingue o narrador-protagonista, o narrador-personagem secundário, narrador-testemunha, a
narração dramática. No presente estudo, privilegiamos a primeira análise do estudioso, tendo
em vista que Vozes do deserto é narrado em terceira pessoa.
D’Onófrio explica que o narrador onisciente neutro é aquele que conhece o presente e
o passado das personagens, mas que se preserva neutro. O narrador onisciente intruso é aquele
que interrompe a narração, fazendo considerações sobre a situação, é também irônico. O
narrador onisciente seletivo é aquele que apresenta o ponto de vista de várias personagens ao
passar no plano mental da personagem, este também utiliza o discurso indireto livre “pelo
qual o narrador interpreta com palavras suas as idéias e os sentimentos das personagens” (p.
61). O narrador-câmera é aquele que conta o que observa, não está em diferentes lugares
simultaneamente.
61
D’ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto. São Paulo: Editora Ática, 2006.
62
Plano da enunciação se refere ao processo da leitura, da narração, que envolve o leitor.
78
Com base nessas considerações, podemos afirmar que o narrador do livro em análise
pode ser considerado onisciente seletivo, em virtude de ter uma atuação gradual com o leitor,
isto é, sem atropelamentos narrativos, mas com uma atitude muito perspicaz, deixa pistas para
que o leitor faça a junção dos fatos e informações. Além disso, explicações diversas em
momentos necessários sobre o contexto, que é diferente do que o leitor vive, além de utilizar o
discurso indireto (livre ou não) para melhor possibilitar o entendimento das personagens.
Por tudo o que foi visto deste narrador, concordamos com a afirmação de Scholes e
Kellogg (1977)
63
a respeito de uma narrativa literária, que “não é preciso nada mais nada
menos do que uma estória e um contador” (p. 2). Tendo em vista que o ato de narrar se
constituiu em uma ação importante na história humana, a narrativa escrita também
proporciona uma liberdade de criação à nível imaginativo. Como analisado no trânsito do
narrador de Vozes do deserto, o leitor tem uma liberdade para percorrer os caminhos do seu
guia e, dessa forma, podendo experimentar diferentes situações, na pele de diferentes pessoas.
É o leitor que se permite criar e repensar a história, a partir do que o narrador lhe apresenta.
A partir das experiências do leitor, Scholes e Kellog afirmam que a compreensão de
uma obra é possível quando a junção de dois mundos, isto é, “o ficcional, criado pelo
autor, e o “real”, o universo compreensível” (p.57). O processo interpretativo é possível à
medida que o leitor se ajusta à visão do narrador. Isso, às vezes, exige dele um esforço
grandioso para entender o que lhe é contado, principalmente quando o cotidiano da história é
diferente da vida do leitor. Nesse processo os saberes do leitor devem ser usados
“imaginativamente” para que, de fato, “os mundos” se aproximem, conforme os autores.
Assim, o leitor usa os seus saberes na interpretação de uma história, porém ligados a uma
nova experiência, no âmbito das possibilidades.
Ainda sobre o narrador onisciente, Booth (1980)
64
explica que, numa perspectiva
dessa natureza, é significativa a chance do leitor em ter “a visão interior de outro personagem,
por causa do poder retórico que tal privilégio ao narrador” (p.176). E por se tratar de um
poder retórico, o leitor está por ser submisso a ele porque as descrições interiores das
personagens são selecionadas e transformam por algum tempo o próprio narrador em
63
SCHOLES, Robert; KELLOGG, Robert. A natureza da narrativa. Tradução de Gert Meyer. São Paulo:
McGraw-Hill do Brasil, 1977.
64
BOOTH, Wayne. A retórica da ficção. Tradução de Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa: Arcádia, 1980.
79
personagem, segundo o estudioso. Além de informar sobre vários assuntos, o narrador, dessa
forma se mescla muito e pode ser confundido como personagem.
Booth, na mesma obra, esclarece que narradores desse tipo, ao se apropriarem do
contexto, “persuadem o leitor a aceitá-los como oráculos vivos”, porque “são guias fidedignos
não do mundo dos romances em que aparecem, como também das verdades morais do
mundo exterior do livro” (p. 236). Em relação à voz que narra a trama no palácio do Califa,
podemos considerá-la como um sábio que provoca o leitor a repensar o seu próprio cotidiano
a partir de uma história tão antiga, ou seja, dá-lhe a oportunidade de repensar e compreender
os ecos que ela ainda faz perante às inquietações humanas, em especial as suas.
Segundo Booth, ignorar que uma narrativa possa “ser composta de emoções coloridas”
(p.264) é um equívoco, tendo em vista que as experiências dessa forma estética
proporcionadas ao leitor, são tão fortes quanto as que ele vive no seu cotidiano. Na viagem
que o leitor faz há a chance de ele conhecer uma personagem mais do que outra pessoa e além
de si mesmo, afirma Booth. Um processo acompanhado pela luz do narrador, que sabe de toda
a trama, mas que omite fatos, porém os revela na hora mais apropriada, caso contrário não
instiga a busca de respostas por parte do leitor. O teórico afirma, então, que “temos que
experimentar confusão, temos que tomar o gosto à verdadeira ambigüidade para que a
resolução pareça quer convincente” (p. 304). As experiências dessa natureza complexificam a
vivência do leitor à medida que ele se envolve e pode ter outras visões de uma situação,
fazendo relações com os fatos do seu cotidiano.
Sobre isso, Benjamin (1994)
65
acredita que uma narrativa é importante, à medida que
ela “pode dar-nos o calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino. O que seduz
o leitor no romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro”
(p. 214). No processo interpretativo, o narrador usufrui da sua sabedoria para aconselhar em
diversos casos, e assim, o leitor lida com diferentes conceitos e pode renovar-se com o senso
prático da voz guia.
65
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed.
Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
80
2.6.2 As personagens
Em relação às personagens, o narrador é cerimonioso, isto é, vai lentamente tirando os
véus que as cobrem e, assim, o leitor as conhece. Trata-se de personagens de As mil e uma
noites. Tendo em vista que o narrador vai informando os pensamentos e explicando atitudes
das pessoas da trama, isto possibilita um processo de identificação do ou por parte do leitor.
Ao longo da história, é possível que o leitor verifique mudanças nas personagens que, através
da verossimilhança, ele compreende. Mas sob os cuidados do narrador, a personagem
destaque, Scherezade, continua a ser um enigma. Sobre ela, a voz não dá ao leitor a chance de
conhecê-la mais profundamente, perpetuando, assim, o mistério em torno da mais ardilosa das
narradoras.
Segundo Forster (1969), as personagens
66
são ou pretendem ser sobre seres humanos,
tendo em vista que o próprio autor é um ser humano. A criação de um autor, portanto, tem
uma relação com a vida e com as pessoas. No entanto, num romance a possibilidade de se
ver o lado oculto de uma pessoa, ou seja, as suas paixões e “expressar este lado da natureza
humana é uma das principais funções do romance” (p. 35). O teórico ainda reforça essa
afirmação ao explicar que, na vida cotidiana, as pessoas não conhecem umas às outras de
forma completa, e que o contrário pode vir a acontecer num romance. E assim, as personagens
“parecem mais definidas [...] mesmo se são imperfeitas ou irreais, não contêm nenhum
segredo, enquanto nossos amigos os têm” (p.36). E por retratarem seres humanos, o leitor,
além de perguntar o que acontecerá depois, pergunta a quem acontecerá, num processo de
identificação e reflexão sobre a sua condição humana.
No mundo ficcional do romance, constituído por elementos humanos, há as suas
próprias leis, mas por serem convincentes, são tão válidas quanto as da vida cotidiana,
segundo o teórico em questão. Porém, adverte Forster, que “não devemos esperar uma
coincidência total entre elas e a vida cotidiana, mas apenas um paralelismo com esta” (p.51).
Parece ser uma atribuição muito simples, no entanto demonstra o poder da narrativa em
mergulhar nas questões humanas sem ser uma mera cópia, mas sim uma criação complexa.
66
Chamadas por Forster de pessoas.
81
O narrador esclarece ao leitor esse processo ao apresentar as ações de Scherezade, bem
como a constituição das personagens de suas histórias. Fazemos uma relação dessas
informações presentes ao longo do livro em análise:
Scherezade tem o verbo fácil. As palavras formam uma amálgama
inquebrável. Vão servindo como que de escudo para os personagens a
desfilarem diante do soberano. E embora amigáveis alguns entre si, nem
sempre originam-se estas criaturas da mesma família (p. 25).
O certo é que [Scherezade] não pretende fomentar o ardor narrativo com
sentimentos amargos. Ou fazer de seus personagens réplicas de si mesma.
[...] E, para dar credibilidade à sua tarefa, aspira a desfazer-se das marcas da
sua individualidade (p. 43).
Subjugada ao caráter arredio do Califa, ela dobra e multiplica as malhas do
enredo, cobre suas criaturas com a túnica da humanidade, tecida nas vielas
abafadas de Bagdá (p. 68).
Seu mérito de contadora consistia em acrescentar a cada um deles [enredos]
alusões, arrebatos, imagens, tudo que se cristalizara nos manuscritos e mentes
de Bagdá. [...] Mas faltando pouco para o Califa retornar aos aposentos,
Scherezade tem outras urgências a que atender. Como equilibrar, na dosagem
certa, o desespero e a esperança de certos personagens propensos ao exagero,
com isto prejudicando a naturalidade que devia fluir entre todos (p. 88).
Estas são algumas das passagens com as quais podemos verificar o processo de
criação por parte da princesa. Em relação às personagens, é preciso que a autora domine as de
origens diferentes, tendo em vista as características delas e também o conflito por isso gerado.
Além disso, ela narra a vida humana de Bagdá a partir de pessoas inventadas, mas cobertas de
humanidade e recheadas de novas experiências, provenientes de muito estudo, com isso
mantém-se distante, sem as suas marcas. Por fim, a árdua tarefa de fabular não é um ato
inocente, precisa ser muito bem articulado desde o enredo até a narração propriamente dita,
para que conserve a vida de Scherezade.
Ainda sobre a criação de personagens, Forster (1969) lembra que elas apresentam-se
quando solicitadas, porém cheias de espírito de insubordinação, pois têm numerosas analogias
com as pessoas como nós” (p.52). O teórico explica que o autor, por criar um mundo a partir
da vida humana, enfrenta grandes desafios para compô-lo, visto que ele deve dar conta de
inúmeras questões subjetivas da personagem, o que também é uma característica das pessoas
cotidianas. Isto aparece em momentos solitários de Scherezade, ou seja, o empenho para
articular a personalidade de uma criatura, como nesta passagem:
Sempre reclusa, Scherezade amava o silêncio. [...] Com alguns minutos de
meditação imergia nos conflitos humanos, esquecida das funções diárias. Não
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reclamava comida, água, comprazendo-se em roubar horas do sono para
dedicá-las às aventuras de certo gênio da lâmpada que, naqueles dias, a
perseguia a ponto de ameaçar-lhe a integridade física. Um nio que,
oscilando entre o bem e o mal, alçava a voz para comover o coro de vozes
que, do outro lado do desfiladeiro, solapavam o curso da história de
Scherezade (PIÑON, 2006, p. 110).
Ancoramos nosso estudo sobre a personagem romanesca também em Booth (1980).
Assim como Forster, citado acima, Booth afirma igualmente que a pessoa ficcional tem uma
transparência, que, em comparação às pessoas do cotidiano, não temos. Como elas são
pertencentes a trama análoga à sua vida, o leitor vai em busca da verdade. Porém essa busca é
estimulada por uma questão importante apresentada numa narrativa, a fim de que “o leitor se
interesse em continuar a ler em busca da resposta, ou sinta a importância da resposta quando
esta surge” (p. 300). Isto é, na ação interpretativa, o leitor experimenta novos contextos, o que
Booth recomenda que ele sinta, com isso poderá julgar se a história contada foi convincente
dentro do seu limite e da sua constituição. Esta é a atuação do leitor com a obra, que, segundo
Booth, é preciso que ele se “aplique” no mundo ficcional.
A ação interpretativa do leitor, portanto, “é um tipo de colaboração que pode vir a ser
a mais recompensadora de todas as experiências de leitura”, conforme Booth (1980, p. 322).
A narrativa se mostra uma potencialidade humana frente às suas próprias questões, tendo em
vista a organização que exige, tanto por parte do autor, no trabalho das personagens, quanto
na interpretação do leitor, que carrega consigo outros conceitos, com os quais pode fazer
relações diversas. Esse processo, então, torna-se também um modo de viver.
A partir das considerações feitas sobre a personagem ficcional podemos dizer que de
diferentes romances podemos conhecer diferentes situações e que seguir padrões de
caracterização pode deixar a experiência de leitura limitada. De acordo com Scholes e
Kellogg (1977, p. 112) “reconhecer a existência de diferenças é o começo da sabedoria”, isto
é, a fertilidade de uma narrativa está em ela ser única, mas não reduzida em si mesma, pois
apresenta uma visão da vida e se relaciona com o contexto humano de conhecer: a
experiência. Por isso, analisar as atuações de uma personagem, que pode ser através de um
narrador, poderá ser uma experiências de auto-conhecimento.
Nessa perspectiva, os teóricos explicam que “por mais individualizado que um
personagem possa ser, para o leitor letrado ele só tende a enriquecer pelos diversos métodos
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de semelhança familiar que o ligam ao mundo das idéias, ao mundo social e ao passado
literário” (p. 143). Dessa forma é que a ação interpretativa torna-se uma ação de percepção
múltipla, isto é, pessoal e coletiva. Isso requer uma postura versátil frente aos variados
exemplos humanos presentes em uma narrativa.
Por fim, Tacca (1983) lembra que a personagem é uma criatura do autor e apresentada
por um narrador, porém este tem respeito pela sua complexidade. O narrador sempre a
acompanha, independente do estilo narrativo (direto ou indireto). O conhecimento do narrador
pode se converter em testemunho. Segundo o estudioso, o romance contemporâneo explorou
muitas vezes “a imparcialidade do testemunho objetivo com a visão comprometida, própria do
relato em primeira pessoa” (p.133). Um aspecto presente em Vozes do deserto, ou seja, o
narrador expõe os atos das personagens, muitas vezes sem emitir qualquer julgamento, o que
deixa notável a psique da pessoa em questão. Vejamos a seguinte passagem do livro de Nélida
Piñon (2006, p. 241-242), quando Jasmine encontra, no mercado, um velho sábio contador de
histórias, e este quer saber o por quê da sua vinda:
Com gesto incisivo, insiste que ela lhe fale. Não lhe inflija um silêncio que é
prerrogativa sua. Jasmine reconhece que vale capitular mediante a confissão
de estar ali com o intuito de cobrar-lhe uma tarefa. Alterna mentiras e
verdades até admitir, ao final, ter vindo à cata de peripécias. Carecia de ouvir
aventuras que transportar para casa dentro do alforje, como pão fresco. Viera
com a ilusão de escutar o que ele diria ao próprio Harum Al-Rachid, caso este
abássida ainda vivesse.
Verificamos o que falam a escrava e o derviche. O narrador conta pela sua voz o que
as personagens conversam pelo discurso indireto. Um processo em que o leitor precisa ter
clareza das posições de quem fala, isto é, pela complexidade da troca de vozes o leitor pode
vir a não entender uma situação, caso não seja tão proficiente ou astuto o suficiente para
identificar tal artimanha e perceber a atuação da personagem.
Feito as considerações teóricas a respeito das características de uma personagem e a
relação com as pessoas do cotidiano, apresentamos as que constituem o livro em análise.
Respectivamente, apresentamos as considerações da personagem Scherezade, depois de
Dinazarda, de Jasmine, seguida pelas personagens da mãe das princesas e da ama Fátima. Por
fim, analisamos a pessoa ficcional do Califa e do Vizir.
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SCHEREZADE
É a princesa narradora que busca salvar as donzelas do reino. As implicações da
decisão de Scherezade em ajudar as mulheres o se restringe apenas a ela, mas a todos de
seu convívio familiar ou não. Nem mesmo os protestos do pai (ameaças e o quase suicídio)
fazem Scherezade mudar de idéia. Inicialmente ela apresenta uma postura confiante e
decisiva, sabe o que quer, mas com o passar do tempo está exausta e precisa descansar longe
do palácio, num lugar que pudesse lhe oferecer novas experiências e novos elementos para as
suas histórias.
Diante do seu plano, ela é a mulher que ousa diante do perigo, grande ardilosa de
histórias, sabe muito bem amarrar todas as pontas da narrativa e reconhecer o grande papel da
criação na vida humana pelas narrações, informa o narrador. Sabendo do risco iminente da
morte, sabe que deve ser perfeita na execução do seu trabalho, pois na batalha da vida,
qualquer deslize pode ser fatal.
Ao longo da trama, o narrador comenta sobre os momentos de recolhimento de
Scherezade. A necessidade que ela tem de organizar muito bem as suas narrativas, conhecer
as suas personagens e as ações delas. Muitas vezes está exausta e mergulha no povo do
mercado, fonte da sua imaginação, um mundo permeado de peripécias, armações e proibições,
com uma diversidade enorme de origens, culturas e mercadorias. Sendo assim, narrar é a arma
da princesa para vencer a falta de imaginação do Sultão. Scherezade mostra a fertilidade da
imaginação e tem como recurso a sabedoria popular.
Ela não retrata os saberes mundanos de forma explícita, mas sim dá-lhes um corpo e
uma alma, encantamento, magia e elabora tramas inusitadas, que prendem a atenção do
soberano. Dessa forma, tem o direito de viver, concessão dada noite após noite, e também vai
despertando no Califa a característica humana de inventar, de se proporcionar novas
experiências com as narrações.
Ao contrário de Dinazarda, sua irmã, Scherezade ambiciona não só a sua liberdade
como também das demais mulheres do reino, mas longe dos olhos do Califa. Ela não se sente
comprometida com o sultão, não tem nenhum sentimento que a prenda a ele, tanto que, de
acordo com o narrador, as relações entre eles são um teatro, especialmente na cama. Devido à
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sua formação primorosa com os mais astutos mestres vindos a Bagdá e com as experiências
proporcionadas e vigiadas por Fátima, tinha uma memória fantástica e uma capacidade de
inventar histórias maravilhosas que desde cedo espantavam a todos que a escutavam. E
acredita que o seu poder criador podia vencer a ira do Califa, pois sabia que o poder da
narrativa é mais poderoso e sedutor, que o poder de governar.
Tudo isso lhe deu envergadura para encarar o tirano sultão e fazê-lo experimentar
novas situações com a parcela mais pobre do reino. O narrador informa que “Scherezade não
teme a morte. Não acredita que o poder do mundo, representado pelo Califa, a quem o pai
serve, decrete por meio de sua morte o extermínio de sua imaginação” (PIÑON, 2006, p.7).
Esta é a frase inicial do livro que mostra a convicção da referida princesa. Mais adiante, a
mesma voz afirma que ela está “preparada para consertar o corpo gasto do amante com
receitas mágicas, poções milenares” (p.19).
Com a grande sabedoria dos povos do deserto e com a sua capacidade extraordinária,
Scherezade vai tecendo tramas com as palavras pesadas uma a uma. O poder da criação de
histórias é capaz de restaurar a dor do Califa. A imaginação é o fogo das narrativas que se
alastra pela alma de quem escuta a princesa. Um fardo muito difícil que requer atenção diária
e absoluta.
A princesa fala pouco durante o dia, apesar de estar cercada de presentes e escravas. O
seu processo criador, o narrador não expõe explicitamente, mas por descrições podemos dizer
que é extenuante. Não é a toa que ela se deixa cair nos braços das suas ajudantes após uma
noite inteira de fabulação, em que trava uma luta entre a vida e a morte, com um Califa
necessitado de humanidade. O seu corpo miúdo carece de descanso não agüenta mais essa
rotina que lhe rouba a saúde. Até o dia em que fica muito doente, mas é salva com os
bálsamos de Jasmine. Nesse momento Scherezade escolhe as suas sucessoras e planeja a fuga
do palácio. Quando isso acontece, ela vai ao encontro de Fátima, que mora no deserto, com a
certeza de que cumpriu a sua missão.
DINAZARDA
Junto com Scherezade encontram-se Dinazarda e as escravas do Sultão, destacando-se
Jasmine. Dinazarda, a irmã mais velha, tem características do pai: gosta de mandar e ser
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obedecida, aflige-se com a irmã muitas vezes. Elas, em certos momentos, têm
desentendimentos mediante a situação em que se encontram. Porém, Dinazarda se arrepende e
não deixa a irmã entregue ao verdugo. A primogênita das filhas do Vizir tem um papel
fundamental na execução do plano de Scherazade, é ela quem pede ao Califa, após a cópula
com a irmã caçula, que permita, por uma última vez, que Scherezade conte uma de suas
maravilhosas histórias. Este ato surpreende o sultão, que não recusa o pedido e nem desconfia
do plano que estava sendo colocado em prática.
Além disso, Dinazarda é ambiciosa. Tem gosto pelos negócios do reino e sempre
pediu informações ao pai. Tinha muito bem desenvolvida a capacidade de convencimento. E
no espaço que ocupam no palácio, ela, lentamente, vai modificando a rotina: ordens aos
empregados, dá dicas na cozinha, decide sobre os trajes de Scherezade e organiza as escravas.
Outro ato de Dinazarda, decisivo para a trama, foi o envio de Jasmine ao mercado de
Bagdá para captar histórias que, no futuro, pudessem auxiliar Scherezade. Nesse período a
irmã está receosa quanto à capacidade da contadora que, com o mais simples deslize nas
narrações, poderia encontrar a morte. Dinarzarda, sempre presente em todas as noites de
fabulação da irmã, está à espreita do Califa e inúmeras vezes, por uma sutil comunicação,
informa à Scherezade o estado do sultão, como também lhe dava ordens para mudar e
melhorar as histórias. Nesse ambiente, Dinazarda sofre com a situação da sua irmã, tendo em
vista que esta não tem nenhuma experiência no jogo da sedução e do prazer carnal, ela tem
pena da irmã que pode não ter os seus desejos realizados pelo sultão, já que ele não demonstra
nenhum interesse pelas necessidades femininas.
O seu papel passa de coadjuvante à principal no momento em que Scherezade deixa o
palácio. Como sempre fora o sonho de Dinazarda exercer um poder no califado, apesar das
dificuldades e restrições, ela passa a ocupar o lugar da irmã no leito do sultão e tem o objetivo
de dar-lhe um herdeiro. O governante, que nessas alturas sabia das ações de Dinazarda em
diferentes alas do palácio, via nela uma pessoa de confiança e capaz de ajudá-lo.
JASMINE
Scherezade e Dinazarda contam com a ajuda das outras escravas do Sultão. Entre elas
destaca-se Jasmine, serva leal e companheira das irmãs. É a própria representante dos povos
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do deserto que têm as suas vozes caladas. Sendo uma serviçal à inteira disposição das
princesas, reconhece o seu povo e a sua vida nas narrações de Scherezade, além de aprender o
ofício de narrar. A sua trajetória na narrativa é crescente, isto é, à medida que o leitor toma
conhecimento da história, simultaneamente acompanha a transformação de Jasmine. De uma
simples serviçal, passa a ter o lugar de contadora de histórias. O narrador é complacente com
esta personagem, tanto que segue o caminho de sua formação enquanto tecelã de aventuras
dos povos que passam no mercado em Bagdá.
O processo de Jasmine cativa o leitor e chama a sua atenção para as fontes das
narrativas: a sabedoria popular. A escrava se pertencente a um povo que tem grandes
riquezas culturais, capazes de enfeitiçar e seduzir o sultão. Com essa personagem, o leitor tem
a possibilidade de refletir sobre a capacidade narrativa humana e a si próprio, ou seja, Jasmine
é uma narradora em formação e é compreensível o seu processo à medida que reconhece os
saberes da sua cultura de origem nas próprias histórias de Scherezade, passando a valorizá-
los.
MÃE E FÁTIMA
Ainda sobre as personagens femininas, destacam-se também a e das princesas e
Fátima. A mãe morre um tempo depois do nascimento de Scherezade. Tinha uma boa relação
com o Vizir e pouco antes de falecer pediu-lhe que respeitasse Dinazarda, por ter uma
personalidade forte, e que oferecesse a melhor educação à filha caçula. A família da mãe
tinha o costume de contar belas histórias. Depois de sua morte, tima criou Scherezade;
aprimorou-lhe a habilidade de narrar levando-a inclusive ao bazar (o que não era permitido).
Nessas fugas a menina era disfarçada de menino ou de cega, o que lhe proporcionava
experiências importantes para o seu repertório de fantasias. As demais escravas auxiliam na
execução dos planos de Scherezade, principalmente na sua substituição na cama com o Califa
e na fuga da princesa. Cria-se um vínculo muito forte entre as mulheres, todas na busca da
libertação.
Com as personagens femininas destaca-se a situação da mulher na cultura árabe, à
medida que é privada de grande parte dos afazeres fora da sua casa. No âmbito político ainda
mais; ela deve muita obediência aos preceitos religiosos e a seu marido; ele também deve
respeitar a sua esposa (detalhe da relação sexual orientado pelo Corão), porém tem mais
88
direitos e poderes. uma analogia, no texto de Nélida Piñon, entre a noite e o ser feminino,
caracterizando a mulher tão misteriosa quanto à noite, fingida, e obscura, o que deixa os
homens apreensivos.
Por fim, Scherezade, com a ajuda do pai e das outras mulheres, foge para o deserto até
a casa de Fátima e conquista a liberdade. Dinazarda substitui o pai em muitas tarefas no
califado e toma o lugar da irmã na cama do Sultão; Jasmine, que é uma princesa do deserto
comprada, consegue ter uma colocação superior na escala social e passa a ser contadora de
histórias.
No que tange às mulheres, a sensualidade permeia essas personagens. Como parte do
jogo da sedução e presente nas histórias de Scherezade, a sensualidade é um dos itens que o
narrador orienta o leitor a acompanhar. É uma artimanha da voz para também seduzir o leitor
a permanecer atento na trama.
CALIFA
Proveniente de uma grei muito poderosa, o sultão foi também criado nos moldes da
realeza abássida. Tendo como missão guardar os tesouros herdados, governar com mãos de
ferro o reino e se mostrar uma pessoa extremamente forte, com os anos, se tornou insensível
às pessoas que o rodeavam. A sua educação priorizava a formação de um guerreiro e de um
homem voraz. Esse último aspecto fez com que ele não valorizasse as mulheres, não se
interessasse por seus desejos e nem se sensibilizasse com as demonstrações de afeto por parte
de suas concubinas. Sabia o quanto as pessoas poderiam ser traiçoeiras, assim, governava com
muito rigor.
Após a traição da sultana, passou a considerar toda mulher uma traidora e, como não
poderia descumprir as regras do Corão, ao se casar, após a cópula, mandava o verdugo matar
a sua esposa, a fim de não ser enganado novamente. Mas isso não o fazia esquecer a sultana e
a ira que tinha por ela. Ao se submeter às narrações de Scherezade, o Califa se via dividido
em cumprir o seu juramento e em escutar as aventuras de pessoas e seres fantásticos, que a
filha do Vizir lhe apresentava.
89
Após a primeira noite, o sultão, não menos ameaçador, passa a experimentar outros
contextos de vida, diferentes das preocupações do reino, que tanto o incomodavam.
Mergulhou nas histórias a ponto de não mais sair do palácio e de pensar nos enredos durante o
dia. Afinal, por que sair se o povo se mostrava o falso, se tinha a oportunidade de conhecê-
lo nas histórias de Scherezade? Essa postura caseira fez com que se livrasse do peso que seu
ancestral Harum Al-Rachid deixou antes de morrer, ou seja, este ficou famoso porque se
disfarçava e ia ao mercado de Bagdá a fim de saber o que seu povo achava de seu governante.
A força criadora de Scherezade também instiga o Califa. Ele tenta fabular junto com a
princesa, mas ela se recusa a aceitar. Ele se arrisca no terreno da fabulação narrativa, mas se
vê incapaz de compô-las no mesmo nível da princesa. Percebe que não possui esta habilidade,
contudo pode acabar com a contadora. Nessa luta, sabe que Scherezade vence, pois ela tem a
imaginação que ele não possui. Esse conflito faz com que o sultão passe a admirá-la
secretamente.
As mudanças do Califa vão ficando visíveis à medida que, longe de Scherezade, ele
refletia sobre as histórias da noite anterior e se mostrava ansioso pela continuação do relato
iniciado. Porém se sentia inseguro por estar tão abalado com “as mentiras” contadas pela
princesa. A sua capacidade da contadora de “filtrar a matéria do mundo” (PIÑON, 2006,
p.148) e torná-las fabulosas histórias, surpreendia o sultão não só no seu mísero conhecimento
da alma humana, como também não conseguia decretar a morte de sua esposa.
O narrador de Vozes do deserto explica que “o Califa percebe que a imaginação jamais
repousa. É onerosa, promíscua, prisioneira de ilimitados recursos. Com suas combinações
inverossímeis e infinitas, ela circula por um território ocupado pelos mestres dos disparates”
(PIÑON, 2006, p.161). Dessa forma, a imaginação vai ganhando corpo para o sultão e
reconhece que é um poder que não possui, além de não conhecer e ficar surpreso com as
artimanhas de seu povo. Após a viagem em terras longínquas, ele sente-se “revigorado pela
experiência humana” (p.229) e impõe à Scherezade esmero no cultivo de emoções e
aventuras, a fim de permanecer viva. Mas a esperta princesa havia introduzido a espada da
imaginação na alma do sultão pelo caos das narrativas, isto é, ele já estava comprometido com
a aventura ficcional.
90
As narrativas são voláteis e intuitivas porque exploram a capacidade da invenção
humana. É o que fez Scherezade com o sultão, conforme explica o narrador no livro em
análise, isto é,
[...] a cada noite Scherezade envolve o Califa em teia sutil. Apaziga-lhe os
nervos, enquanto seus ritmos narrativos expressam a dança dos sentimentos.
Suas histórias, semeadas de atitudes heróicas e imprudentes, saciam os
ouvintes famintos, mantendo o interesse do Califa até o amanhecer (PIÑON,
2006, p.35).
Ela sabia que a força da imaginação era sua garantia de vida e fazer o sultão se
permitir viver novas aventuras seria devolver a paz ao reinado. Um processo de transformação
muito audacioso, mas que revela todo o potencial narrativo humano. A princesa sabia tecer a
manta que devolveria a paz ao coração árido do sultão. Instigar a curiosidade para que o
governante se sentisse responsável e na mão das personagens oriundas do povo, fazia-o viajar
para além das paredes do palácio, uma experiência possibilitada pela filha do Vizir. Além
disso, ela injetava no Califa emoções contraditórias para exorcizar as emoções dele tão
contidas, provando assim que o mundo “exato” não era a solução ou a mais segura das
alternativas, por limitar a visão da vida; a imaginação, contudo, proporcionava viver outros
papéis humanos e libertar o espírito das convenções.
Além disso, a sua relação com Scherezade tem só este fim: proporcionar aventuras que
amenizem a vivência. Nesse processo, o Califa, cansado e sentindo a velhice lhe bater à porta,
tem a chance de se humanizar, de sentir emoções, de viver aventuras que o deixam inquieto.
Assim, o Califa se transforma, envolvido pelo prazer que as histórias lhe proporcionam, foi,
aos poucos, repensando as suas atitudes. As mudanças do sultão foram provenientes das
diferentes experiências com as narrativas, isto é, ele viveu novas aventuras e junto com as
personagens (Ali Babá, Amim,...), com os quais refletia, passou a repensar a sua própria
conduta e os seus conceitos, principalmente, frente às mulheres.
A mudança do sultão traído se dá, justamente, ao superar os seus conflitos, quando, ao
se distanciar deles, vive novas situações que lhe trazem outros sentimentos. A transformação
do rei é possível pelo processo de sedução das histórias, ou seja, ele, assim como o leitor, se
instigado a saber o que pode vir a acontecer ao longo de uma história e com personagens
diferentes daquilo que conhece. Verificamos a mudança do Califa, segundo o narrador, ao
considerar a possibilidade de dispensar Scherezade, tendo em vista que “sentia-se quite com
91
as mulheres e com a vida” (PIÑON, 2006, p. 341). Porém não fala à princesa que, mesmo
assim, foge, mas deixa outra contadora para integrar a vida do soberano.
VIZIR
O pai de Scherezade e Dinazarda é um alto funcionário fiel do Califa. Desempenha as
suas atividades, no palácio, muito bem. E desde a morte da esposa, as filhas são o seu grande
tesouro. Aconselhado pela mulher à véspera do fim, proporciona a Scherezade uma educação
primorosa e a Dinarzada muita paciência, além de detalhes de transações comerciais do reino.
Praticante dos mandamentos de Maomé, temia que as filhas não seguissem os seus
ensinamentos. Porém viu-se contrariado por elas.
No caminho em que Scherezade decide andar, e levando também Dinazarda, o Vizir
sofre pelo perigo iminente das filhas. No entanto, não deixa de lado os compromissos que tem
dentro do califado. Ele não deixa os seus problemas pessoais interferirem no seu trabalho. O
que tenta fazer é afastar o Sultão do palácio, visitar o povo, verificar as fronteiras, ou gerar
uma guerra para fortificar o reino. Mas isso não ocorre. O Sultão não quer sair, pois ele
conhece o seu povo pelas histórias de Scherezade.
O narrador não se detém muito sobre o Vizir, mas percebemos que ele sempre está por
perto do Califa, uma forma de saber que suas filhas estão vivas. Ele tem uma ativa
participação na fuga de Scherezade, ao disponibilizar o seu servo e assegurar a sua saída pelos
portões traseiros do palácio, juntando-se a uma caravana em direção ao deserto. De certo
modo, o Vizir também se transforma e “sucumbe ao poder das narrativas”, isto é, Scherezade.
2.6.3 O tempo
Sobre o constituinte temporal do referido livro, podemos apontar diferentes
anacronias. De acordo com Genette (s/d)
67
, anacronia é a discordância entre a ordem
cronológica dos fatos e a ordem apresentada na narrativa, isto é, a ordem dos fatos que o
67 GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. Tradução de Maria Alzira Seixo. VEJA, s/d.
92
narrador apresenta, nem sempre é a ordem “natural” dos acontecimentos. Os lapsos temporais
podem ser feitos para o passado das personagens, quanto para o futuro delas.
O tempo cronológico do livro da nossa análise segue, em geral, linearmente. O
narrador informa desde a chegada das princesas no palácio, a rotina da clausura das mulheres
e, por fim, a sua libertação. Se compararmos o início do livro de Nélida com a tradução dAs
mil e uma noites, de Galland, veremos a omissão de informações. No livro brasileiro, o
narrador começa informando a decisão de Scherezade de se entregar ao Califa na defesa das
mulheres do reino e não como fez a outra obra ao narrar, primeiramente, as circunstâncias do
flagrante do sultão traído. Podemos dizer que o narrador de Vozes do deserto partiu do
pressuposto de que o leitor já soubesse do perigo da união de Scherezade com o sultão e o que
motivou a desilusão do governante. Porém, para garantir a compreensão leitora, o narrador, no
capítulo 24, conta detalhes da traição que abalara o sultão.
Porém, a referida narrativa apresenta outros lapsos temporais. Genette, na mesma
obra, denomina prolepses aos acontecimentos do futuro da trama informados pelo narrador e
analepses às regressões no tempo, muitas vezes para explicar algo que influencia no tempo
cronológico da história. As analepses podem ser externas, internas ou mistas (estas, pouco
freqüentes em narrativas). Segundo esse autor, as analepses externas se referem aos
acontecimentos passados que não interferem de modo imediato no fato principal de uma
narrativa. As internas, ao contrário, pois auxiliam na compreensão de fatos presentes. Estes
conceitos também são utilizados para avaliar as prolepses.
No livro em questão de Nélida Piñon, podemos dizer que o narrador não usa as
prolepses de modo explícito, mas alguns indícios do que pode acontecer com as
personagens, e o leitor atento vai recolhendo as pistas e as compreendendo ao longo da leitura
(um fato explorado no item anterior com o exemplo do capítulo 29, do livro da análise). Já, as
analepses são mais usadas pelo narrador, tendo em vista que ele explica fatos do passado das
personagens ou da cultura árabe. Isso auxilia o leitor a compreender melhor as ações das
personagens e o contexto em que se deu a história. Vejamos o exemplo:
Scherezade não podia mais esperar. Chegara a hora de romper as amarras,
de visitar o mercado. Também Fátima já não tinha como prorrogar esta
decisão. Assim, antes de se dirigirem ao centro de Bagdá, ela cuidou de
impedir que o Vizir descobrisse o grave delito. Para apagar em Scherezade as
marcas da procedência nobre, a fez passar por um rapaz imberbe, de
93
compleição delicada. [...] Dessa forma respondendo ao duplo estado com
uma sabedoria que iria lhe faltar no futuro, caso ficasse unicamente ancorada
no corpo feminino. (PIÑON, 2006, p. 153)
Esta passagem é muito rica. Inicialmente pelo valor da narração, por se tratar da
formação de Scherezade enquanto contadora e as suas experiências, já que muitas delas
embasariam suas histórias, tanto que o narrador explica a importância de conhecer variados
pontos de vista. Depois, esclarece a restrição das mulheres para conviver mais ativamente na
sociedade, especialmente no setor econômico, e com isso as artimanhas para que as regras
fossem burladas, como é o caso do disfarce. Por fim, se trata de uma informação do passado
da princesa que necessariamente, o narrador não tinha a obrigação de contar. Porém, ele faz
essa regressão para que o leitor participe da sua onisciência e compreenda melhor a vida da
princesa antes de chegar ao palácio e contar belíssimas histórias.
Genette, na mesma obra, alerta para a duração e a repetição dos lapsos temporais, visto
que eles influenciam na ação interpretativa do leitor. Em Vozes do deserto, podemos dizer que
o elemento narrativo tempo, juntamente com a ação do narrador, é o grande articulador da
narrativa em questão, pela organização da história. O teórico afirma também que o autor de
uma obra precisa ter um cuidado extremo na apresentação de anacronias numa história para
que não corra o risco de perder o foco da linha principal de uma narração. Por isso, os lapsos
temporais devem ser uma informação relevante dentro do contexto da história. Da mesma
forma, o leitor precisa considerá-los fundamentais para a interpretação de um romance.
Para que entendamos melhor a função das anacronias dentro de uma narrativa,
recorremos ao conceito de verossimilhança, instaurado na Antiguidade. Um lapso temporal
para que contribua para o entendimento de uma narração, precisa trazer para o leitor uma
informação a mais, ou seja, que ela reforce o sentido do possível numa história, sem ser
necessariamente verdadeiro, mas lógico no arranjo interno da narrativa. Ao fazer o
encadeamento dos fatos, sejam eles do passado ou até do futuro de uma personagem ou de um
espaço, as anacronias precisam ser um aliado na ação interpretativa do leitor, fazendo com
que ele fique instigado e se comprometa com a leitura de uma narrativa.
Em relação às anacronias do romance analisado, em geral, elas desempenham um
papel essencial no processo interpretativo da obra. O narrador é experiente o bastante para
informar aspectos passados das personagens e a históricos da cultura e formação árabe,
94
como quando explica sobre os Califas anteriores ao esposo de Scherezade, o desfecho dos
descendentes de Maomé e a luta entre eles, o contexto familiar das princesas, da escrava
Jasmine e até do sultão.
Nessa perspectiva a duração dos lapsos temporais pode variar entre poucos parágrafos
a um capítulo inteiro, conforme a sua utilidade para a narrativa. O narrador faz uma breve
explicação quando o assunto é mais compreensível ao leitor. Vejamos uma passagem em que
Dinazarda reflete sobre a condição da contadora de histórias, vivida por sua irmã, que é
seguida por uma explicação do passado de Scherezade e logo após, o narrador apresenta as
reflexões do Califa sobre a performance da princesa, isto é, um retorno ao presente da
narrativa (no palácio):
Também Dinazarda, olhando a irquase imolada, revolta-se. Não
podendo envenenar o Califa e sair ilesa do crime, aparenta
resignação. Mostra-se insensível ao drama de Scherezade que
transmite ao soberano as claves da imaginação humana [...]
Desde que Scherezade enunciara a primeira frase, sob a vigília de
Fátima que, com a vara à mão, ia afugentando fantasmas e gênios do
mal, a jovem evoluíra de forma vertiginosa. Para isto orquestrando
frases, dando-lhe suntuosidade, captando as peripécias que
hipnotizavam o Califa.
Atento, ele registra como a jovem fomenta as emoções. A insídia
com que, havendo perdido a vergonha, desliza pelos desvãos das
vidas secretas de Simbad e Zoneida, desrespeitando limites (PIÑON,
2006, p.75).
em relação aos lapsos temporais mais longos, podemos citar os capítulos 8, 19 e 24.
Com o primeiro, o leitor fica a par da solidão do Califa que desde a infância não teve limites
nas conquistas femininas, tinha a fêmea que quisesse. Isso fez com que ele desenvolvesse a
volúpia e não o amor por uma mulher e, para aumentar a sua desilusão, mesmo após a traição
da sultana, tinha o ser feminino em sua cama “como um mal necessário” (PIÑON, 2006, p.
48). O segundo faz um regressão temporal para explicar o contexto familiar do Vizir com as
suas filhas, também esclarece sobre a educação delas e a relação de cada uma com os pais,
bem como a personalidade forte de Dinazarda e a tendência precoce de Scherezade de criar e
narrar histórias incríveis. Por fim, com o capítulo 24, o narrador proporciona ao leitor as
circunstâncias em que ocorreu a traição da Sultana, bem como os seus sentimentos na época
do acontecido como os atuais.
Além do mais, a repetição de uma mesma anacronia é uma forma de lembrar e reforçar
a memória do leitor sobre um determinado fato. Podemos verificar isso em relação à formação
95
de Scherezade e as suas experiências secretas no mercado de Bagdá nos capítulos 15, 16, 28,
31, 32, 45. Dentre estes, nos capítulos 28 e 45, o narrador explorou mais o assunto,
prevalecendo, em grande parte, a aventura da princesa no mercado; nos demais, as descrições
e considerações a respeito são mais breves. Verificamos, então, que o narrador se preocupa
com o processo de interpretação do leitor e quer que ele entenda as fontes e o
desenvolvimento da arte narrativa pela princesa. A repetição de tais anacronias tem um
objetivo implícito: mostrar que a base das narrativas pode ser os conhecimentos populares,
que neles estão condensados os mitos, os conselhos, visões de mundo e as representações
sociais. Além disso, contribui para que entendamos o desafio do artista na articulação desses
saberes, de modo criativo e sedutor, em narrativas.
Continuando com as considerações de Genette a respeito do tempo nas narrativas,
podemos considerar como prolepses as pistas que o narrador vai deixando sobre
acontecimentos futuros que envolvem as personagens de Vozes do deserto. Não são
informações narradas por completo, mas um modo de preparar o leitor para as próximas
surpresas, tais como os desejos de Dinazarda e da escrava Jasmine, assim descritos, no
capítulo 11, do livro em análise:
Fora tão difícil convencer Dinazarda a segui-la [Scherezade] quanto ganhar a
autorização do pai.[...] Albergava, sem dúvida, outro tipo de ambição, sobre a
qual nada dizia.[...]
[Jasmine] Tinha pretensões de ascender na hierarquia da corte. E em troca
dos favores docilmente prestados, não voltar a ser vendida para outro califa,
menos afortunado que aquele. Aspirava associar-se no futuro imediato às
histórias de Scherezade e engrossá-las com suas mensagens adulteradas
(PIÑON, 2006, p.63).
As ambições se concretizam no final da narrativa, isto é, Dinazarda se torna a nova
esposa do Califa e a escrava Jasmine, depois de um longo processo, passa a ser a nova
contadora de histórias do soberano. Fatos que são revelados nos últimos dois capítulos da
trama. Podemos dizer que as informações futuras dadas pelo narrador são prolepses internas,
já que no momento oportuno, há o arremate de uma pista deixada anteriormente.
Sobre as analepses, exemplificadas acima, podemos considerar que na sua grande
maioria são internas, devido a sua importância para a compreensão do contexto central da
narrativa. Outra razão é que a distância temporal entre o leitor e a trama de Scherezade é
significativa. Por isso, as informações sobre o passado tanto das personagens, quanto da
história árabe, são de grande valia para o processo interpretativo.
96
Por fim, podemos apontar o tempo intrapsicológico no pensamento das personagens.
De acordo com D’Onófrio (2006)
68
é preciso ter claro o tempo da enunciação (discurso) e o
tempo do enunciado (diegese). O primeiro é aquele formado no ato da leitura, em que
narrador e leitor fazem um pacto. O segundo é o tempo da história narrada que pode ser
cronológico ou psicológico. O cronológico auxilia no entendimento do leitor em relação ao
conjunto da história. O psicológico é o tempo interior da personagem; é presente contínuo de
um fato, de uma percepção, alterado pela memória e pelo futuro. São as reflexões que uma
determinada personagem faz e que o narrador apresenta ao leitor. Em Vozes do deserto, as
divagações das personagens são apresentadas ao longo da narrativa junto aos demais tempos,
isto é, ao longo da leitura. Quem lê precisa lidar com os diferentes tempos que surgem
repentinamente. Porém o astuto narrador nem sempre apresenta o caos interior da
personagem, é o leitor que precisa, então, preencher a lacuna. Assim, podemos verificar que o
fator temporal é um componente fundamental para a compreensão da narrativa e também uma
ferramenta do narrador para seduzir o leitor.
O elemento temporal de uma história, segundo Forster (1969), instiga a curiosidade do
leitor. Conforme o teórico, uma história é constituída por acontecimentos dispostos em sua
seqüência no tempo e à medida que o leitor vai se envolvendo na trama, quer saber o que virá
depois. A organização dos fatos (futuros e passados) de uma narrativa pode servir de apoio
para o narrador captar o seu acompanhante de aventuras.
Forster também lembra que a vida do ser humano não é comandada pelo tempo
convencional, mas também por tempos passados e futuros que são constituídos de
sentimentos. Além de ser um elo para a instauração da verossimilhança, o tempo, mesmo que
o leitor não perceba o papel dele na sua vida, em uma narrativa desempenha um fator
primordial à medida que agrega um valor para a própria história. Sendo assim, explica o
estudioso que o “valor” precisa ser levado em conta pelo narrador a fim de que o leitor, na
ação interpretativa, identifique e capte os sentimentos que perpassam as atitudes das
personagens em uma reflexão que transcende o tempo convencionado e, da mesma forma, ele
pode refletir sobre as emoções que constituem o seu cotidiano, verificando que são elas que
marcam a vida no tempo, ou seja, o “valor” dado a certos acontecimentos é o que prevalece.
Vejamos o seguinte trecho em que o Califa e as princesas se encontram pela primeira vez:
68
D’ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto. São Paulo: Editora Ática, 2006.
97
E quando o Califa finalmente lhes é anunciado, os trajes das jovens, de tom
pastel, sem qualquer enfeite, empalidecem em acentuado contraste com os
suntuosos adereços do Califa, em meio aos quais se destaca o seu turbante
branco. Assim como as jóias que integram o tesouro abássida, exibidas por
ele sem constrangimento e que reverberam à luz do sol (PIÑON, 2006 p. 10).
Podemos observar que as roupas das princesas diferem das vestimentas e acessórios do
sultão. Esses detalhes informados pelo narrador, proporcionam ao leitor um “valor”, ou seja, a
diferença do poder entre as personagens. É de fácil entendimento que a riqueza do sultão é
imensa, em comparação com as irmãs e por sipode ser um tipo de imposição. Conforme as
considerações de Forster, o leitor atento poderá constatar que o poder imposto pela riqueza
era uma prática muito antiga e que ele pode fazer uma análise dessa questão no seu próprio
cotidiano. Isso é o estabelecimento de relações dos elementos narrativos com a sua vivência,
capazes de suscitar no leitor sentimentos e assim, a verossimilhança. Além de caracterizarem
o tempo da narrativa, é uma oportunidade que o leitor tem para problematizar o seu cotidiano
e verificar que o mundo ficcional é tão “real” quanto o seu.
2.6.4 O espaço
Do mesmo modo que o texto mãe, Vozes do deserto, desenvolve-se principalmente na
parte do palácio reservado às mulheres, é também nesse espaço que ocorre a luta da vida e da
morte, o confronto entre Scherezade e o Sultão. O palácio se encontra na cidade de Bagdá,
que é o centro comercial da época por receber diversas caravanas vindas de diferentes partes
do Oriente para comercializarem as suas mercadorias. Rodeado de muito luxo e cerimonial, a
casa do Califa é um lugar tomado pela subordinação. Sendo o sultão o senhor dos senhores,
acima dele Alá, a sua autoridade é respeitada e temida por todos, mas não menos invejada,
como deixa subentender o narrador, isto é, ele tem inimigos para combater.
O palácio é uma construção do avô do Califa e que faz na sua decoração menção ao
passado abássida, as suas lutas e conquistas. Esse espaço faz referência ao cotidiano da trama,
como podemos verificar quando as princesas chegam ao palácio e vêem o “mármore
translúcido”, como também o cadafalso que é uma “construção esmerada” e a vista do
palácio, isto é, das janelas “Scherezade cerra os olho, não quer ver a silhueta da cidade que se
espelha nos jardins. Ou descobrir a câmara da morte que se projeta contra a parede próxima
98
aos aposentos”. Dinazarda está “enamorada dos jardins imperiais, ela esmiúça das janelas
em arco as aléias [...] distrai-se com os pássaros que, em vôo rasante, pousam no pombal de
arquitetura exuberante” (PIÑON, 2006, p. 10-11). Esses detalhes dão indícios da
grandiosidade do palácio. Em outras ocasiões, o narrador informa sobre um chafariz nos
jardins, sobre a cozinha e as comidas, o harém do sultão, o quarto onde estão as princesas, a
sala do trono, onde ele recebe pessoas vindas de diferentes lugares, com as mais diversas
propostas.
Vale ressaltar que estes detalhes do palácio são muito bem explorados pelo narrador
do livro em análise, em comparação ao texto mãe. Em As mil e uma noites o espaço da trama
entre Scherezade e o sultão Chariar, praticamente, não é explicado, tendo em vista que esse
lugar não faz parte do foco da narrativa, ou seja, os lugares importantes são aqueles narrados
pela princesa, os que ela cria, não onde ela se encontra. em Vozes do deserto, por estar tão
íntimo das personagens e dos seus conflitos, o espaço que elas percorrem, de fato ou
mentalmente, contribui para o entendimento do leitor, seja para imaginar o contexto da época
ou para entendimento dos significados de construções ou a ausência delas.
Bakhtin (1998)
69
utiliza o conceito de cronotopo para a relação do tempo e do espaço
na literatura para reforçar a idéia de indissolubilidade destes elementos narrativos, pois o
tempo “condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível” e o espaço “intensifica-se,
penetra no movimento do tempo, do enredo e da história” (p. 211). A interligação que o
teórico explica do tempo e do espaço pode ser também analisada no livro de nossa análise,
pois o mergulho em diferentes tempos (como visto anteriormente) exige, naturalmente um
espaço; um lugar descrito pertence a um dado momento da narrativa. Portanto, ambos têm
um papel fundamental na compreensão leitora. Vejamos uma passagem em que Scherezade
passa dos muros do palácio e pensa no ambiente da casa paterna:
Às vezes ausenta-se dos aposentos, deixando o corpo para trás. Retorna,
então, à casa do pai e rejubila-se ao ser recebida à porta pelos serviçais que se
inclinam à sua passagem. A mesa, coberta de iguarias da infância, é prova de
estar ainda presente na casa do Vizir. Sob a guarda de tantas memórias,
reconstituídas entre as paredes da morada, tudo a protege, não se sente
autorizada a morrer (PIÑON, 2006, p.35)
69
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4. ed. Tradução de Aurora
Fornoni Bernardini [et al.]. UNESP: São Paulo, 1998.
99
Verificamos que se trata de uma regressão temporal e imaginária, isto é, a princesa
pensa como estaria a sua casa se, por acaso, voltasse para lá. Para isso ela utiliza lembranças
do seu lar. Nesse lapso são descritos objetos, o cômodo e o ambiente, ou seja, o espaço. O
cronotopo informado pelo narrador é extremamente rico e complexo, porque se os elementos
temporal e espacial não estivessem de tal forma imbricados, o leitor não experimentaria a
atmosfera boa e acolhedora do respectivo lar. Além disso, o leitor acompanha o processo de
criação de Scherezade pela necessidade de (re)vivenciar situações, reforçar sentimentos,
lembrar de objetos que a auxiliem na fabulação de histórias, como também a importância de
afastar-se, mesmo mentalmente, do ambiente pesado do quarto em que se encontra para não
perecer.
Ao redor do palácio está o mercado. Fonte de experiência para Scherezade e Jasmine.
É um lugar permeado de muito mistério e artimanhas. Por ser constituído de muitos
comerciantes, a presença também de muitas caravanas que trazem diferentes iguarias para
vender. Essas caravanas podem ser estrangeiras ou do deserto, que circunda Bagdá. Jasmine,
proveniente de um desses grupos, compreende grande parte das histórias de Scherezade,
quando,
[...] por força da imaginação da princesa, volta a ouvir os brados das cabras,
dos beduínos, mades como ela. Vê-se de novo na tenda familiar, cujos
detalhes recompõe na memória. No interior da tenda, acompanhada de
pastores suados, que arfam e gemem em conjunto, Jasmine contempla o teto
de lona, atraída pelo equilíbrio delicado da armação. Um trabalho feito de
tiras finas tecidas com e pêlos de animal e costuradas de uma borda a
outra. O toldo que, pelo seu peso, apóia-se sobre o cavalete amparado por
correias esticadas e largas, fixas com cordas a piquetes, e que resistem ao
vento.
[...] À simples lembrança, o passado chega-lhe em golfadas, perseguindo-a
com o cheiro intenso das cabras recém-nascidas, que dormiam entre eles para
não se extraviarem (PIÑON, 2006, p. 98-99).
Os espaços mentais das personagens, conhecidos pela voz do narrador, também são
muito importantes na trama. Nas fugas das personagens no tempo ou na reconstituição de
outros lugares fora do palácio, o leitor também tem a chance de sair daquele cadafalso. Além
disso, nas viagens introspectivas ele tem uma noção da personalidade das personagens e de
sua história. Portanto é uma possibilidade do próprio leitor saber dos outros lugares que
permeiam Bagdá e o interior das pessoas, assim como de si mesmo.
100
Nessas fugas espaciais, que também são temporais, o leitor é deslocado da trama
principal, isto é, são estratégias de que o narrador se vale para arrancar o leitor de uma
situação extrema ou até de testar a sua competência leitora. A questão de novos ambientes é
um mecanismo que o narrador utiliza sem aviso prévio, e dessa forma, o leitor tem o
compromisso de se aventurar pelos caminhos que lhe são propostos, mas com uma postura
vigilante.
Genette (1972)
70
afirma que as descrições espaciais têm uma “intenção clara” porque
significam algo, têm um motivo: explicar e deixar inteligível um lugar. O teórico explica que
a “linguagem é toda tecida por espaço” (p.105) e, por ser ela um fenômeno interativo, faz
referência a um locus que é o da situação comunicativa. O que nem sempre é perceptível aos
sujeitos. Dessa forma o fator espacial se transforma em linguagem porque atua na
compreensão de um contexto. Ele torna-se fala ou escrita, tanto que é assim que o leitor, no
processo interpretativo, cria e visualiza uma história.
Segundo D’Onófrio (2006), o espaço e o tempo são “componentes sintático-
semânticos de uma narrativa e se definem pelo ator a que estão conjuntas” (p. 96). A questão
que envolve o tempo e o espaço leva em consideração a construção do sentido de uma
narração. Por isso são componentes que influenciam na instauração da imaginação e
comprometem a compreensão do leitor. O tempo e o espaço, por estarem vinculados com as
personagens, contribuem para a experiência interpretativa, na instauração da verossimilhança
da história.
Pode-se fazer uma distinção dos lugares. O teórico em questão explica que pode haver
o espaço tópico, atópico e utópico. O primeiro é o espaço em que se vive com segurança. O
segundo diz respeito ao lugar da luta, da angústia. E o terceiro, é o da imaginação. Em Vozes
do deserto podemos dizer que o lugar tópico é o palácio e a casa do Vizir; o atópico é o quarto
onde se encontra Scherezade e as outras mulheres, como também o cadafalso; o utópico o
deserto e o mercado.
Sem dúvida o que mais instiga é o espaço utópico referido na trama, além de ser mais
difícil. O leitor precisa interagir juntamente com o narrador para acompanhar os lugares (e o
70
GENETTE, Gerard. Figuras. Tradução de Ivonne Floripes Mantoanelli. Perspectiva: São Paulo, 1972.
101
tempo) imaginários, que a imaginação é o assunto principal do livro. Scherezade quer
libertar o Califa para usar a sua imaginação adormecida. Do mesmo modo, o narrador interage
com o leitor, ao fazê-lo a quase todo instante deslocar-se de um lugar para outro, em
diferentes tempos e com cada personagem. Uma gama de informações que o leitor precisa
tecer com muito cuidado e esmero, para não perder a linha da fantasia e se deixar tragar pelo
deserto da falta de inventividade, o que descaracteriza um ser humano da sua espécie.
Bachelard (s/d)
71
também faz considerações sobre os aspectos semânticos dos espaços.
Segundo ele, a “casatem um valor de refúgio e proteção, o que o narrador informa sobre a
casa de Scherezade: um lugar de paz e que a auxilia a superar as adversidades no palácio. A
partir de uma imagem explicativa de Jung, Bachelard também afirma que a “casa” é formada
por um porão e um sótão. No porão estão localizados os medos humanos e no sótão, as
soluções. No que se refere a Vozes do deserto, podemos considerar que o quarto em que ela se
encontra é como um porão para Scherezade, pois ela vive rodeada de escuridão e ameaças. O
sótão poderíamos considerá-lo como sendo a casa da ama Fátima, em que os problemas da
princesa são resolvidos; é o seu lugar desejado. Além disso, no processo interpretativo, o
leitor tem a possibilidade de verificar que, por mais grandioso e exuberante que é o palácio do
Califa, ele não oferece intimidade. a casa do pai e de Fátima, que são muito mais simples,
tem uma conotação de aconchego. Compreendemos que as imagens impulsionam muito a
criação por parte do leitor, como também são carregadas de significado e inferências que ele
precisa organizar e transcender para entender o papel delas no processo interpretativo de uma
narrativa.
No próximo item exploramos uma idéia muito presente em Vozes do deserto e
importante fonte de experiências para Scherezade, isto é, os conhecimentos populares.
2.6.5 A influência popular
Como fora enfocado anteriormente, as fontes das narrativas de Scherezade são de
origem popular. A princesa, conforme informado pelo narrador, mergulha no povo árabe e nas
71
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos
Leal. Rio de Janeiro: Eldorado Tijuca, s/d.
102
suas práticas sociais a fim de seduzir o sultão e ter a vida garantida por mais um dia. É
interessante esta estratégia, tendo em vista que os elementos das histórias são justamente
aqueles não pertencentes ao convívio do rei.
Sobre as manifestações culturais populares, Bakhtin (1993)
72
, tem um interessante
estudo sobre a obra de Rabelais
73
e que serve de base teórica para analisar as fontes de criação
de Scherezade. Ao investigarmos este aspecto de Vozes do deserto, presente no texto de As
mil e uma noites, estamos nos direcionando a um lado pouco explorado pela tradição. Bakhtin
afirma que um estudo dessa natureza exige uma nova postura tanto de gosto literário quanto
conceitual. Da mesma forma que o teórico analisa o carnaval na obra do escritor francês,
podemos utilizar as suas considerações no nosso trabalho.
Não cenas carnavalescas no livro em foco, mas as explicações de Bakhtin sobre a
visão do popular diante do mundo são válidas para a nossa análise. Isto é, quando o narrador
faz referência ao mercado de Bagdá e aos diferentes tipos humanos lá presentes (desde
mendigos, ladrões, mulheres audaciosas até ilustres governantes disfarçados), podemos dizer
que a alternância e a peripécia são elementos que instigam mistérios, assim como as festas
descritas por Rabelais e analisadas pelo teórico russo.
Esse mistério não escapa às histórias dos contadores das ruas de Bagdá. As
personagens mais audaciosas são aquelas de origem humilde e que conseguiram grandes
feitos, por saberem diversas artimanhas. Bakhtin utiliza o conceito de “grotesco” para se
referir ao povo e às suas manifestações que se renovam constantemente. Tal conceito também
pode ser usado para as práticas do povo de Bagdá, referidas no livro de Piñon, tanto para os
que vivem no deserto quanto os mercadores da cidade, pois essas classes se diferenciam do
grupo dominante, que é o do Califa.
Bakhtin, na mesma obra, afirma que o “aspecto essencial do grotesco é a
deformidade. A estética do grotesco é em grande parte a estética do disforme” (p. 38), o que
fica claro na narrativa em análise. A princesa seduz o Califa com histórias que levam em
consideração o disforme, ou seja, o moribundo que trapaça um grande gênio, o mercador que
72
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.
Tradução de Yara Frateschi. 2. ed. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Edunb, 1993.
73
Rabelais foi um escritor francês que viveu entre os séculos XV e XVI e que explorou nas suas obras as
atividades das classes populares na Idade Média e no Renascimento.
103
consegue enfrentar todas as dificuldades para conquistar a amada, o jovem aguerrido que,
com a ajuda de uma mulher, engana 40 ladrões e fica muito rico, e assim por diante. Ela, pelas
narrativas, cativa o sultão por aventuras que ele não conhece, proporciona novas vivências
com e por elementos fora do convencional. Por serem desconhecidos, provocam no sultão a
curiosidade e a compaixão.
Nessa perspectiva, o teórico russo (1993, p. 43) explica que “a função do grotesco é
liberar o homem das formas de necessidade inumana em que se baseiam as idéias dominantes
sobre o mundo” e ainda que “o grotesco derruba essa necessidade e descobre seu caráter
relativo e limitado”. Isto é, o grotesco causa estranheza, mexe com as idéias tidas como
imutáveis, porque o ser humano não é um ser estanque, mas dinâmico e as relações sociais
que não reconhecem essa característica é porque, então, constituem-se de ações inumanas, de
opressão. Justamente por isso é que Scherezade cria aventuras com pessoas e artimanhas do
povo. As suas histórias mostram para o sultão novas situações de vida, ao mesmo tempo em
que toma conhecimento do seu cotidiano restrito. Ele tem provocado a sua base, os seus
conceitos e assim aumentando também a possibilidade de expansão dos seus horizontes
conceituais sobre a vida.
Outro aspecto interessante do livro de Nélida Piñon é que Scherezade teve as duas
fontes de conhecimento: a formal e a popular. Em relação à formal, o narrador explica que o
pai sempre possibilitou a ela encontros com os maiores sábios que passavam por Bagdá, na
sua infância, isto é, teve “à disposição mestres em medicina, filosofia, história, arte e religião,
todos os que despertaram a atenção de Scherezade para aspectos sagrados e profanos do
cotidiano” (PIÑON, 2006 p. 7). Estas foram as primeiras fontes de conhecimento da princesa,
que foram possíveis graças ao pai. A fonte popular foi proporcionada pela ama Fátima,
com quem aprendeu a contar histórias, a mergulhar no povo árabe por diferentes tipos
humanos, transformando-se em grandes experiências para a princesa. Sobre os recursos de
Fátima, o narrador diz que ela estava “aflita para municiar a menina com ingredientes que lhe
ampliassem o território infantil e a projetassem a centros distantes do palácio do pai, onde o
espetáculo da vida, que havia por todas as partes, reverberava incongruente e polifacetado”
(PIÑON, 2006, p.152).
Em Vozes do deserto fica explícito que as fontes populares são muito mais férteis que
a educação formal. É nelas que a alternância de vozes, de rostos, de origens, de profissões e
104
de histórias possibilitam um melhor entendimento da cultura humana. Especialmente as
histórias que armazenam grandes enigmas, sentimentos humanos e a sabedoria para enfrentar
tiranos, intempéries da natureza ou paixões proibidas. Dessa forma, o processo narrativo
acaba envolvendo envolve justamente a transformação do ser humano pela identificação e a
resolução (ou tomada de consciência) das próprias emoções pela própria constituição das
narrativas. É o que ocorre com o Califa: seduzido pelas histórias de Scherezade, tem o seu
próprio espírito acalmado pelo mergulho nos sentimentos, que muito havia ignorado. Um
processo muito ativo de interpretação.
Além disso, o narrador esclarece que Scherezade, para reavivar a memória, buscava
por meio de cheiros, objetos e comidas, imaginar a trajetória percorrida por tais iguarias. Um
modo de estar novamente no meio do povo andarilho e fortificar as suas histórias. Jasmine
teve um papel fundamental nisso. Era ela quem trazia e fazia pequenos ornamentos nas
refeições da princesa, para que de algum modo pudesse ajudá-la na tarefa de humanizar o
sultão. A sua presença auxiliava a filha do Vizir em busca de elementos para as narrativas,
tendo em vista que a escrava tinha características físicas dos povos do deserto, tais como a
“pele trigueira”, seu cheiro e o modo de andar e falar. Sendo as aventuras narradas o alimento
da alma humana, tanto que Jasmine as considera como pão fresco”, elas são usadas por
Scherezade para vencer a falta de imaginação do sultão. Ela dá ao soberano o alimento que ele
necessita para viver, para se descobrir como um ser humano que precisa da fantasia para
exorcizar as suas emoções, tratar as suas “loucuras” pelas loucuras de seres inventados.
Nessa perspectiva, Bakhtin explica que não se pode ignorar o papel da cultura popular
nas manifestações literárias. O mesmo ponto de vista é apresentado no livro de Nélida Piñon,
isto é, sendo uma prática humana tão antiga, as narrativas levam em consideração as
sabedorias que, muitas vezes, não têm o devido reconhecimento pela classe dominante. Não é
a toa que as aventuras apresentadas pela princesa sensibilizam o Califa, pois, pela forma de
interação mais eficiente e complexa, que é uma narrativa, ele teve a possibilidade de ter ricas
experiências, além de conhecer o seu povo. Portanto este foi um modo de mostrar que as
manifestações culturais populares devem ser respeitadas e são tão válidas quanto as formais.
105
3 ASPECTOS CONCLUSIVOS
Nossa análise do livro Vozes do deserto, com base no arcabouço teórico utilizado nos
leva à constatação de que a natureza narrativa é uma ação humana enriquecedora de
experiências, tanto subjetivas quanto pragmáticas. Trata-se de um conhecimento que abrange
e amplia a vivência do sujeito, no âmbito da vida pessoal e das relações sociais. Além disso, a
ação de interpretar é uma atividade hipotética que, embora pareça simples, é complexa e
poderosa. As narrativas ficcionais apresentam uma visão sobre a vida e potencializam os
horizontes do sujeito em relação a um processo genuinamente humano, sem desvalorizar o
que ele mesmo já conhece, porém problematizando uma dada conjuntura.
Nessa perspectiva tomamos o ser humano como um ser que se constitui e interage no
âmbito lingüístico. A linguagem é um fenômeno interativo. Sua principal função é possibilitar
a formação e a transformação do sujeito em alguém que analisa a si e o que acontece ao seu
redor. Ao ter essa atitude, os eventos em que o sujeito participa passam a ser experiências
verdadeiras. A interpretação narrativa, que parte do caráter imaginativo do ser humano, abre
caminhos para a compreensão subjetiva e social. A narrativa é composta de elementos
verossímeis que permitem a reflexão do cotidiano e possibilita a quebra de concepções tidas
como imutáveis.
A questão primordial do livro analisado é a capacidade narrativa humana, juntamente
com o seu principal ingrediente, a imaginação. Scherezade, o arquétipo da narração, é a
personagem que o leitor acompanha no processo de criação. Ela representa a ousadia, tem a
imaginação como arma contra o poder dominador do mundo objetivo e sem abertura para
novas experiências. Tanto que o narrador informa a sua coragem logo no início da narrativa:
“Scherezade não teme a morte. Não acredita que o poder do mundo, representado pelo Califa,
a quem o pai serve, decrete por meio de sua morte o extermínio da sua imaginação” (PIÑON,
2006, p. 7). A princesa sabe que o poder imaginativo é mais forte que as convenções
impostas. Sabe, porque teve uma educação esmerada que possibilitou saber diferentes ações
humanas e também foi estimulada a contar histórias.
Scherezade, desde cedo, verificou que a cientificidade humana não proporcionava o
que as narrativas de homens e mulheres ofereciam. A dinamicidade, a especulação, a
106
alternância, a ambigüidade e a imaginação não eram encontradas nos saberes tidos como
“certos”; mas, nas aventuras do mercado, na escuta de histórias todas essas características
humanas eram discutidas, isto é, o ser humano era considerado na sua totalidade. Scherezade
reconheceu logo essas diferenças e pôde saber que interessavam aos seus ouvintes as questões
subjetivas, assim que começou a se aventurar na fabulação de histórias.
Não é por acaso que as características narrativas, debatidas anteriormente neste texto
por Bruner e Turner, são exploradas no livro de Nélida Piñon. Elas fazem parte da trajetória
humana. A objetividade, por sua vez, não conta das vicissitudes do ser humano. É um
conhecimento finito e que diz respeito a um determinado problema. A narratividade é a
possibilidade mais humana de interação, pois leva em conta o processo interpretativo, ou seja,
a amplitude e a possibilidade de conseguir ter outras visões sobre uma situação: por se tratar
de um mundo, o leitor pode verificar cada personagem e entender o seu comportamento.
Além disso, tem sempre a oportunidade de voltar ao texto, porque ele não muda. O que muda
é a visão do leitor perante o texto.
Sobre a imaginação criadora, podemos dizer que Scherezade assinala para a superação
do ser humano em situações em que não é permitida a transgressão. Isto é, o ser humano
deve-se permitir abandonar velhas e opressoras ideologias para dar lugar a novas experiências
de vida. A narrativa é a possibilidade de analisar as relações sociais por uma experiência
subjetiva. Foi o que aconteceu com o Califa: apesar de ser um poderoso chefe, não resistiu aos
encantos das histórias da princesa e se descobriu tão humano como qualquer pessoa do seu
povo. Por sua vez, Scherezade mostra ao leitor que o processo interpretativo é uma ação
enriquecedora e provocadora de mudanças importantes no ser humano. Não foi em vão a
escolha da narrativa como arma para enfrentar a aridez afetiva do sultão.
Dessa forma, a característica intuitiva das narrativas ficcionais, já enunciada por
Platão e defendida por Croce e Gadamer, é um modo de conhecer que leva em conta os
sentimentos. Na relação do sujeito com o mundo fictício, ele não tem uma única verdade, mas
a possibilidade de descobrir diferentes verdades, por um processo de identificação com a sua
vivência, por levar em consideração as emoções, a subjetividade. Ao embrenhar-se nas veias
de diferentes pessoas ou acompanhar intensamente a situação das personagens em uma
história, o sujeito tem nas mãos algo que antes não tinha. Não é mais o mesmo. Tem um
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conhecimento a mais e isso implica comprometer-se com a sua vida, à medida que interpretar
é ver-se, mas à distância, e assim, ele vê a vida em perspectivas múltiplas.
Este é o perigo da leitura, como explicou Larrosa anteriormente nesse texto. É ser
afetado e discutir os próprios dogmas, pôr-se em questão. Este processo fica evidenciado
quando o Califa, ao se permitir novas experiências, sofre, apesar de não querer, com pessoas
fictícias. Ele verifica que no âmbito da subjetividade as regras do mundo ordenado não
funcionam, pois naquele terreno a constante possibilidade de refazer-se e ressignificar a
vivência por múltiplas visões e não somente por uma alternativa, como é no campo científico.
Por sua vez, o leitor também tem os seus horizontes expandidos e é afetado, o que o
compromete para novas reflexões e atitudes no seu cotidiano. Um perigo para os sistemas
ideológicos dominantes.
Isto, portanto, é o grande trunfo da narrativa: possibilitar vivências e compreendê-las
em um mundo fictício. Mas como esclarece Larrosa, é preciso que o leitor tenha uma atitude
de escuta. O conhecimento humano vindo das narrativas é acessível no silêncio, ou seja, na
reflexão dos fatos, nas pistas deixadas pelo narrador, para que, então, ele veja a plenitude da
obra e a viva por um processo de interpretação. Essa experiência, portanto, é dele. Mas
pode ser projetada em suas relações interpessoais.
Nesse sentido, Larrosa (1996) explica que a narrativa proporciona conhecimentos
porque o leitor tem a oportunidade de refletir sobre o que é capaz de pensar com, contra ou a
partir do texto. O processo de interpretação de uma narrativa pode ser feito a partir dos
saberes que o leitor tem; isso também pode ser usado contra o texto, quando o leitor
questiona o que leu; e ainda auxiliar no processo de repensar a vida a partir da leitura
realizada. Isto é, o sentido de ser de um sujeito é necessariamente o que ele compreende e a
compreensão é análoga ao modo como ele elabora os textos de si mesmo “e como são esses
textos depende de sua relação com outros textos e dos dispositivos sociais em que se realizam
a produção e a interpretação dos textos de identidade”
74
(p. 610). Ou seja, o fenômeno
lingüístico é altamente dinâmico e complexo, no qual estão as narrativas envolvidas, bem
como o sujeito. Para que as relações interativas se estabeleçam, compreender-se
narrativamente é essencial, à medida que o outro também é compreendido ao narrar-se.
74
No original assim escrito: “y como son esos textos depende de su relación com otros textos y de los
dispositivos sociales en los que se realiza la producción y la interpretación de los textos de indentidad”.
108
Pôr em questão quem é o ser humano a partir de narrativas é assegurar a interpretação
da vida no âmbito da imaginação, logo, de criação; é permitir desestabilizar-se, por um
processo subjetivo que abre para novas perspectivas coletivas e, assim, a consciência de ter
uma identidade dentro de uma cultura; é comprometer-se em descobrir a inquietude do artista
por uma relação de humildade e de diálogo. Tendo em vista que não reproduzem, mas criam e
possibilitam a recriação, as narrativas fazem a mediação entre o cotidiano e uma nova
situação. Ao analisarmos Vozes do deserto, vemos que isso acontece com as personagens.
Nas reflexões feitas anteriormente a respeito do Califa, é possível verificar que o
processo interpretativo, no referido livro de Nélida Piñon, é muito interessante, desde o tema
até a organização dos elementos da narrativa. A partir dos estudos teóricos realizados,
podemos dizer que o mundo apresentado em Vozes do deserto fornece aos leitores diversos
papéis humanos. A experiente escritora soube perfeitamente abordar diferentes problemáticas
cotidianas que contribuem para diversas reflexões, algumas discutidas no capítulo anterior
75
.
O artista é alguém que vislumbra um futuro, que enxerga e quer que se discutam os problemas
humanos. Apesar de ser uma história antiga, ela não perde o seu valor, pois trata justamente
da característica humana de fabular o seu cotidiano.
No que tange a este livro, a velha história fica ainda mais rica, à medida que o leitor
tem a oportunidade de saber detalhes da rotina da enclausurada princesa e ter esclarecida, por
uma narrativa, a força e a característica humana de narrar. Além disso, ele pode acompanhar a
transformação das personagens ao longo da sua leitura. Porém terá acesso às implicações
dessas transformações se compreender que a narratividade faz parte de sua vivência, ou seja,
se deixar a fantasia conduzi-lo, sem preconceitos, terá a chance de agregar conhecimentos.
Esta é a experiência narrativa: ele a vive. Outro aspecto que vale ressaltar é que o leitor tem
acesso às mudanças das personagens e passa a compreender as suas ambigüidades de uma
forma bem melhor do que se quisesse saber das pessoas com quem convive. O que Forster
chamou de “pântanos férteis”, tendo em vista a constituição das narrativas. O mundo fictício é
a possibilidade do sujeito de enxergar a si e aos outros, por personagens que são mais
“verdadeiros” e confiáveis que as pessoas do convívio, e assim possibilita lidar com
ambigüidades tão próprias da vida social.
75
Analisamos temas que se relacionam à narratividade humana e a sua constituição. Mas Vozes do deserto
permite outras análises mais específicas, tais como a sexualidade, a questão feminina na contemporaneidade, a
situação atual do povo árabe, etc.
109
A fonte narrativa de Scherezade foi, fundamentalmente, o povo árabe. Desde roupas,
cheiros, até pessoas que freqüentavam o palácio lhe forneciam idéias e incrementavam
enredos. Nesse contexto, verificamos que a criação narrativa é análoga à vida humana. Não é
algo sem subsídio, o que ocorre é uma profunda observação e análise do ser humano em uma
determinada situação. O sultão que sempre ignorou o seu povo, pelas histórias da princesa,
teve o seu preconceito ridicularizado, tanto que os personagens populares não o
entretinham muito como também o emocionavam e faziam sofrer. Em Vozes do deserto esta
questão faz com que o leitor analise como estão as minorias do seu meio e tome
conhecimento das históricas disparidades sociais.
Com as narrativas, o leitor tem a possibilidade de esclarecer fatos humanos que nem
sempre são visíveis ou percebidos. E por elas serem infinitas de sentido, sempre têm algo a
dizer, no silêncio do processo interpretativo. Scholes e Kellog (1977, p. 144) afirmam que
“podemos o precisar de grandes públicos para produzir grandes narrativas, mas não
dúvida de que precisamos de grandes públicos para que as narrativas possam ser
compreendidas e valorizadas em grande estilo”. A criação de uma narrativa não implica
grandes acontecimentos até porque o cotidiano, geralmente, não é constituído por ações
surpreendentes. Elas, para desempenharem a sua função de problematização da vivência
humana e, por conseqüência levar à conscientização, precisam ser acessadas por “grandes
públicos”. Um desafio de muitos escritores e inclusive uma questão cultural ainda a ser
problematizada de forma mais intensa, tendo em vista que a narrativa é uma forma
privilegiada de interação humana.
A respeito da presença das narrativas nas atuações culturais, Benjamin (1994) afirma
que ela está cada vez mais escassa. Não a quantidade de narrativas, mas as pessoas que sabem
narrar bem e constata que “é como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos
parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências” (p. 198). O autor
também parte do pressuposto de que narrar é uma forma de conhecer muito importante nas
relações humanas, mas está perdendo o seu lugar para a quantidade enorme de informações
que circulam na vida cotidiana.
Não refletimos o bastante para que as informações se tornem experiências. São vazias
de sentidos humanos, não ecoam como as narrativas. Não dialogam, elas têm um caráter
limitante de perspectivas. E esse modo de “conhecer” o mundo que nos rodeia faz gerar uma
110
grande dificuldade: a do sujeito não se permitir transcender, especular e libertar a sua
capacidade criativa. Por sua vez, os ecos das narrativas, a exemplo de As mil e uma noites,
permitem ao sujeito fazer renovadas discussões; são sempre atuais; possíveis de serem
analisadas, ou seja, são férteis. Benjamin explica, na obra citada neste texto, que a
narrativa, mesmo sendo uma “forma artesanal”, discute a vida na sua totalidade, o que não
podemos deixar enfraquecer por outras formas negligentes que depreciam a capacidade
humana de conhecer pelo processo imaginativo.
As narrativas, afirma Benjamin, ensinam e são constituídas de forças que se perpetuam
e sempre proporcionam novas reflexões. As informações são rápidas e efêmeras, não “ficam”,
são descartáveis, à medida que outras informações tomam o seu lugar. Com as narrativas, não
eliminação, mas sim abertura, amplitude de novas visões diante da vida, por um processo
de esquecimento de si e de assimilação de outras aventuras. O autor explica que o papel
relevante das narrativas não está na descrição de um destino alheio, mas na possibilidade de
“dar-nos o calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino” (1994, p.214), isto é, a
transcendência e a vivência em um âmbito criador.
As narrativas são uma forma de conhecimento do e para o ser humano, tendo em vista
seu caráter infinito de sentidos. São complexas e constituintes da história humana, porque
possibilitam um processo interativo que leva em consideração o simbólico, isto é, a
linguagem e o seu aspecto criativo. Ultrapassa a codificação. Contemplam a relação social,
juntamente com a tomada de consciência da vida, de forma integrada e não fragmentada. São
vivências, criadas por sujeitos, que têm como centro as questões humanas, que por sua vez,
são discutidas por seres humanos. Dessa forma, é que as narrativas se destacam por espelhar a
cultura humana, para que os sujeitos possam analisar, por diferentes atitudes, a própria
existência. E por fim, descobrir que o que os afeta em uma narrativa é essencialmente a
“humanidade” de que é constituída.
É a partir disso que consideramos a ação interpretativa uma atividade importante para
o ser humano no seu meio de convívio. Por mais que sejamos envolvidos por métodos
científicos que apresentem um resultado final, sem permitir que vivamos a situação, ela se
tornará efêmera, porque não deixou suas marcas. Ao contrário das narrativas, que apresentam
um mundo a ser explorado e permitem vivê-lo, seus ecos permanecem conosco, ou seja,
proporcionam experiências, logo, conhecimento.
111
O modo intuitivo de conhecer das narrativas é muito rico e as ambigüidades de que
são constituídas não são, de modo nenhum, “falhas”. São sim, a fonte de vivências e um
caminho de repensar as relações humanas. Longe de objetivar o correto, a natureza narrativa
busca as verdades, numa perspectiva múltipla, isto é, o que cada sujeito tem a contribuir aos
implícitos do romance e o que pode sugerir a partir deles, com o que sabe. Assim, repensar
o papel da narratividade pode vir a ser um passo importante para o ser humano repensar as
atitudes enquanto um ser que busca, incansável, o sentido e a abrangência da sua vida.
112
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