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desnecessário, ocioso e termina implicando, além de muito trabalho adicional, um
cuidado extremado para não fazer decair no puramente idiossincrático aquilo que
parece ser a tentativa de estabelecer um diálogo mais amplo sobre as questões que
interessam ao indivíduo em sua singularidade (den enkelte). Isso quer dizer que aqui
se lê Kierkegaard não tanto a partir de um entendimento da sua escrita como diálogo
unilateral com Regine, não a partir daquilo que lhe é interior ou idiossincrático, mas
precisamente ali onde esta interioridade, ao expor-se em linguagem pública e indireta,
manifesta não só uma relação determinada –com Regine – mas também (pelo menos)
a tentativa de estabelecer relações discursivas mais amplas. O que aqui se quer
apontar, assim, é que se a hipótese que guia a presente exposição, de que o esforço
discursivo de Kierkegaard se determina como esforço de expor a relação comunicativa
como única possibilidade de constituição “finita” de uma relação com a verdade, a
relação da sua comunicação com Regine (seus motivos, suas indas e vindas, etc.) são
e permanecerão sempre absolutamente alheios a qualquer outro leitor. Mas, mais
exatamente, essa hipótese de leitura assume que mesmo que elas se dirijam também
a Regine, elas não manifestam um diálogo exclusivo, razão pela qual este diálogo
proposto de modo indireto pode interessar a qualquer leitor cujo ponto de vista sobre a
linguagem ou a história possa ter pontos de contato com Kierkegaard. Voltaremos
ainda, sob um ponto de vista bem determinado, a contrapor a leitura de Temor e
Tremor como escrito “para Regine” e a relacionar este caráter comunicativo ou direto
da linguagem indireta, ou seja, este nível propriamente comunicativo de contradição
comportado pela linguagem, a partir do elemento mais “geral” comportado nessa
exigência de comunicação, o qual só se expõe inteiramente na comunicação com o
“próximo”. Apenas como exemplos de esforço para a atenção com a relação entre a
escrita de Kierkegaard e seus quid pro quo com Regine Olsen, que sem dúvida
elucidam também aspectos interessantes e ajudam a compreender a relação entre
discurso e experiência como central em sua escrita, mas ao mesmo tempo podem
obscurecer, e freqüentemente o fazem, este caráter mais “geral” contido na
comunicação Kierkegaardiana, confrontar Vergote, Henri-Bernard. Sens et Repetition,
Essai sur l’ironie Kierkegaardienne, Tomes I e II, Paris, Cerf/Orante, 1982. Cf. tb.
Brun, Jean. Introdução à Kierkegaard, S. A. Crainte et Tremblement. Lukács, em A
Alma e as formas, foi dos primeiros a analisar a relação Kierkegaard-Regine em
estreita correlação com os problemas mais propriamente filosóficos de Kierkegaard.
Que essa correlação demasiado imediata (que é no fundo o que é negado aqui) possa
iludir, é precisamente o perigo contido em partir-se da centralidade desta relação. Em
Lukács, por exemplo, ela termina significando uma afirmação deveras complicada e de
longa influência: a afirmação de um certo ascetismo, que marcaria a posição filosófica
de Kierkegaard (o qual se expressa na sua recusa a uma relação real e carnal com
Regine), ascetismo que determinaria certa impotência da crítica do mundo
apresentada em sua obra. Se tal afirmação é ou não exata quanto ao caso Regine já
dissemos que não nos interessa discutir. Ela é, entretanto, certa e significativamente
inexata quanto à posição de Kierkegaard diante do mundo. A este aspecto voltaremos
ainda algumas vezes de modo mais exato e pontuado. Já em Temor e Tremor ,
entretanto e apenas diante do que até aqui dissemos, é possível afirmar que a posição
da “interioridade escondida” não implica uma relação ascética, antes ao contrário, ela
determina uma clara oposição concreta ao mundo. Ela, entretanto, não significa uma
posição simplesmente “engajada” no sentido de autorizar um discurso “militante” ou
simples e diretamente afirmativo, razão pela qual, cremos, ele poderia ser facilmente
confundido, talvez, mais com uma posição cínica (que a bem da verdade Lukács
sequer sugere ser a de Kierkegaard) que com o romantismo que a leitura apresentada
por Lukács sugere, ao vincular a interioridade a uma certa impotência da interioridade
diante do mundo. A questão de Lukács diz respeito ao centro de nossa leitura, porque