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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
MARCUS SACRINI A. FERRAZ
FENOMENOLOGIA E ONTOLOGIA
EM MERLEAU-PONTY
São Paulo
2008
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MARCUS SACRINI A. FERRAZ
FENOMENOLOGIA E ONTOLOGIA
EM MERLEAU-PONTY
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, sob a
orientação do Prof. Dr. Carlos Alberto
R. de Moura, como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor em
Filosofia.
SÃO PAULO
2008
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Agradecimentos
Ao professor Carlos Alberto, cuja orientação serena e rigorosa, e cujo exemplo
de seriedade e tenacidade muitos anos fornecem a base para todas as minhas
empreitadas acadêmicas;
Aos professores Franklin Leopoldo e Márcio Suzuki, pelas observações críticas
extremamente úteis quando do exame de qualificação;
Ao professor Caetano Plastino, por várias sugestões e pela amizade constante;
Aos meus pais, Erlan e Belarmina;
À Andréa, minha esposa, pelo apoio e incentivo;
Aos amigos João Eduardo, Paulo Piva, João Abreu, Maurício Marsola, Marcelo
Koch, Anderson Gonçalves, Natália Fujita, Leandro Cardim, e muitos outros, pelo
convívio e aprendizado;
Aos funcionários da secretaria do departamento, especialmente Maria Helena,
Marie, Geni, Luciana, Verônica e Ruben;
À FAPESP, cujo apoio foi imprescindível para a realização desse trabalho.
“Para mim, a filosofia consiste em dar um outro nome
ao que foi há muito tempo cristalizado sob esse nome de Deus”
Merleau-Ponty, Parcours II, p.371.
RESUMO
FERRAZ, M. S. A. Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponty. 2008. 271 f. Tese
(Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de
Filosofia, Universidade de São Paulo, 2008.
Resumo: Neste trabalho, buscamos expor e avaliar as diferentes concepções de ser
defendidas por Merleau-Ponty no decorrer de sua obra. De início, explicitamos a
concepção ontológica contida na Fenomenologia da Percepção, e julgamos que ela está
comprometida com conseqüências idealistas. Em seguida, acompanhamos como
Merleau-Ponty esboça, em seus textos finais, uma concepção não idealista do ser, que
admite um excesso daquilo que há em relação àquilo que se fenomenaliza.
Palavras-chave: ontologia – fenomenologia – Merleau-Ponty – idealismo – metafísica
FERRAZ, M. S. A. Phenomenology and Ontology in Merleau-Ponty. 2008. 271 f.
Thesis (Doctorate). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento
de Filosofia, Universidade de São Paulo, 2008.
Abstract: In this work, we aim at showing and evaluating Merleau-Ponty’s different
conceptions of being held in his career. First, we make explicit the ontological
conception included in his book Phenomenology of Perception, and we judge that such
conception is committed to idealistic consequences. Then, we set forth how Merleau-
Ponty outlines, in his final texts, a non-idealistic conception of being, which
acknowledges that what there is exceeds what appears.
Keywords: ontology – phenomenology – Merleau-Ponty – idealism – metaphysics
6
Índice
Lista de abreviaturas...................................................................................................... 8
Introdução....................................................................................................................... 9
Capítulo I – Os impasses da ontologia fenomenológica de Merleau-Ponty..............18
A) As primeiras obras de Merleau-Ponty
A Estrutura do Comportamento. A Fenomenologia da Percepção.
B) As críticas ao projeto filosófico de Merleau-Ponty
Um estudo psicológico. Merleau-Ponty idealista. O problema do passado do mundo. A correlação
perceptiva.
C) O desenvolvimento da ontologia de Merleau-Ponty
Capítulo II – Investigações sobre a linguagem...........................................................52
A) Expressividade e consciência silenciosa
O papel da linguagem. A expressividade da fala. O problema do sentido gestual das palavras.
B) Apropriação da lingüística de Saussure
O escopo da expressividade. A expressividade e a lingüística de Saussure. Dois problemas da lingüística
de Saussure. Crítica ao sentido gestual ou emotivo das palavras.
C) Percepção e linguagem
A percepção enformada culturalmente. A articulação entre vida perceptiva e atividade lingüística. A
fixação dos dados sensíveis pela linguagem.
Capítulo III – Rumo ao ser primordial.......................................................................84
Introdução. A Instituição. A Passividade. Exemplos de passividade. A Natureza. Uma abordagem
histórica. Ciência e natureza. O ser sensível. O corpo sensível. O ser negativo.
Capítulo IV – O método indireto da ontologia madura de Merleau-Ponty...........112
A)Filosofia e ciência
Convergências. Divergências. O método indireto. O duplo papel da ciência.
B) Generalização do método indireto
Análise de alguns fatos históricos. Análise da arte e da psicanálise. A ontologia cartesiana da visão. As
dimensões invisíveis. As idéias sensíveis.
C) A linguagem filosófica como expressão criadora
Fixar as estruturas do ser. O modelo da filosofia como criação. Crítica à ontologia direta.
Capítulo V – Merleau-Ponty intérprete da fenomenologia.....................................151
A) O projeto fenomenológico de Merleau-Ponty
Apresentação. O estudo da percepção. Uma fenomenologia da experiência concreta. Observações críticas.
B) Novos dados indiretos para a ontologia
Fenomenologia e ciências humanas. O ser anterior à constituição. Os limites da fenomenologia.
Capítulo VI – Uma ontologia para a fé perceptiva...................................................177
A) A fé perceptiva
A última filosofia de Merleau-Ponty. Da percepção à fé perceptiva. O problema da ilusão.
B) As teorizações sobre a fé perceptiva
Esquema geral. Análise da ciência. A filosofia reflexiva. A ontologia sartreana. A interrogação filosófica.
A linguagem da filosofia. O problema das essências.
C) A base ontológica da fé perceptiva
A reversibilidade. A carne. O problema da amplitude do ser.
7
Conclusão – Uma concepção de ser renovada..........................................................216
A) Retomada geral
O problema do idealismo. O itinerário de Merleau-Ponty.
B) A carne
O método indireto da ontologia. A sensibilidade intrínseca ao ser. A comunidade carnal entre sujeito e
mundo.
C) A negatividade inerente ao ser
O problema da correlação perceptiva. A invisibilidade. Uma nova teoria do tempo. O ser percebido e o
ser sensível. Uma ontologia metafísica?
Apêndice – Notas inéditas de Merleau-Ponty...........................................................254
Referências bibliográficas...........................................................................................268
8
Lista de abreviaturas
As edições das obras de Merleau-Ponty citadas nesta tese e as respectivas siglas
Introdução
Neste trabalho, analisamos como a problemática ontológica se desenvolve no
decorrer da obra de Merleau-Ponty. Defenderemos que em suas teses de
doutoramento (A Estrutura do Comportamento, publicada em 1942, e Fenomenologia
da Percepção, publicada em 1945), uma doutrina ontológica em vigor (fortemente
marcada por uma inspiração fenomenológica), a qual, posteriormente reconhecida como
insuficiente pelo próprio autor, será modificada nas obras finais. O percurso geral de
nosso trabalho será acompanhar não só a exposição dessa primeira doutrina ontológica e
de suas dificuldades, mas também a subseqüente elaboração de uma nova ontologia. O
foco central de nossa tese será, assim, esclarecer as concepções de ser fornecidas por
Merleau-Ponty em seu itinerário filosófico. O estudo desse itinerário supõe, de nossa
parte, ao menos dois princípios metodológicos: em primeiro lugar, não se tratará de
resumir as diversas obras de Merleau-Ponty, mas sim de selecionar e avaliar
criticamente somente as discussões do autor acerca do problema ontológico. Em
segundo lugar, não assumiremos nenhum esquema prévio acerca de diferentes fases do
pensamento de Merleau-Ponty. Seguiremos a ordem cronológica em que seu
pensamento se desenvolveu, a fim de exibir a persistência de certos temas e a maturação
de outros, sem a preocupação de justificar qualquer esquema genérico de interpretação
da sua obra
1
.
Apesar de aparentemente banal, o percurso por nós escolhido revela o seu
caráter de hipótese de trabalho se confrontado com a posição de alguns dos maiores
comentadores da obra de Merleau-Ponty. Em De l’Être du Phénomène. Sur l’ontologie
de Merleau-Ponty
2
, Renaud Barbaras defende que a ontologia do autor estudado se
consolida verdadeiramente em O Visível e o Invisível, de maneira que “os textos que a
precedem não nos parecem dever ser evocados senão como o caminho que até lá
conduziram”
3
. Para Barbaras, “parece que é à luz de O Visível e o Invisível que os
trabalhos anteriores adquirem coerência e consistência, de tal modo que nós não
podemos lê-los senão por meio da retomada a qual finalmente eles propiciam”
4
. O
1
Aproximamo-nos, assim, da postura metodológica assumida por G. B. Madison (Cf. The
Phenomenology of Merleau-Ponty. A search for the limits of consciousness. Athens: Ohio Univ. Press,
1981, p. xxviii). No entanto, quanto à interpretação dos textos de Merleau-Ponty, divergimos de Madison
em vários pontos, conforme ficará claro no decorrer deste trabalho.
2
Grenoble: Jérôme Millon, 2001.
3
Barbaras, R. op. cit., p.12.
4
Id., ibid.
10
pensamento de Merleau-Ponty seria “profundamente uno”
5
, mas essa unidade implica
somente que O Visível e o Invisível recolhe “tudo o que havia sido pensado antes”
6
numa nova estrutura, de maneira que a Fenomenologia da Percepção deve ser
considerada somente como “um trabalho preliminar”
7
, o qual anuncia uma problemática
ontológica que escapa de seus limites
8
.
Por sua vez, em Merleau-Ponty’s Ontology
9
, M. C. Dillon defende que o
filósofo francês, no decorrer de sua obra, nada faz senão explicitar teses ontológicas
prefiguradas na Fenomenologia da Percepção: “eu argumentarei que, longe de uma
virada ou ruptura na continuidade do pensamento de Merleau-Ponty, um
desenvolvimento consistente de um ponto de vista unitário”
10
. Dillon reconhece haver
diferenças terminológicas importantes entre a Fenomenologia da Percepção e O Visível
e o Invisível, mas nada que implique algum acréscimo teórico que não esteja de alguma
forma subentendido nas primeiras obras de Merleau-Ponty
11
. Assim, segundo essa
interpretação, os principais temas ontológicos tratados por Merleau-Ponty se encontram
antecipados na Fenomenologia da Percepção, a qual não se reduziria a uma obra
preliminar a ser superada pela ontologia madura, pois conteria as teses mais
marcantes dessa última
12
.
Estamos diante de uma divergência marcante. Por um lado, defende-se que a
problemática ontológica está praticamente ausente das primeiras obras de Merleau-
Ponty, e, por outro, defende-se que ela está praticamente incluída nessas primeiras
obras. Daí que a tese assumida por nós não seja óbvia, mas implique uma interpretação
do itinerário filosófico de Merleau-Ponty. Trata-se de uma interpretação média em
relação às duas posturas citadas acima: reconhecemos que uma doutrina ontológica
autônoma na Fenomenologia da Percepção (conforme será exposto em nosso primeiro
capítulo), embora também admitamos que essa não será a sua doutrina ontológica final,
já que modificações importantes ocorrerão (conforme mostramos nos demais capítulos).
5
Id., ibid.
6
Id, ibid..
7
Id., ibid.
8
Ma
11
Para tornar mais claras as especificidades de nossa interpretação, continuaremos a
delineá-la por contraste com alguns dos mais significativos comentários recentes da
obra de Merleau-Ponty.
Quanto ao reconhecimento de uma ontologia nos primeiros textos do filósofo
francês, aproximamo-nos do livro Razão e Experiência. Ensaio sobre Merleau-Ponty
13
,
de Luiz Damon S. Moutinho. Esse autor defende que a perspectiva de renovação das
categorias ontológicas por meio de uma abordagem indireta (tema típico dos cursos de
Merleau-Ponty sobre a natureza, nos anos cinqüenta) se encontra nas teses de
doutoramento do filósofo. As análises contidas em A Estrutura do Comportamento
acerca da Gestalttheorie e das possíveis aplicações da noção de forma na física, biologia
e psicologia mostrariam “que a própria ciência ultrapassou os quadros da ontologia
clássica, que o ser visado por ela não é o ser em si, objetividade e exterioridade puras, e
justamente por isso ela nos convida a redefinir a ontologia”
14
. Assim, no primeiro
livro de Merleau-Ponty, o problema do ser seria abordado em decorrência de uma
reflexão acerca de um ente delimitado pela ciência (a Gestalt). Segundo Damon, o ser
entrevisto pelas pesquisas científicas “é de ordem perceptiva”
15
, e exige uma descrição
dos fenômenos percebidos para sua devida explicitação. Assim, na Fenomenologia da
Percepção Merleau-Ponty utilizaria o instrumental fenomenológico para completar uma
renovação ontológica anunciada em seu primeiro livro. Nós concordamos com esse
movimento argumentativo exposto por Damon, o qual retomamos no primeiro capítulo
desse trabalho. Mas, em seguida, nosso percurso diverge daquele percorrido por esse
autor. Em seu livro, Damon expõe minuciosamente os principais temas da
Fenomenologia da Percepção; de nossa parte, concentramo-nos na doutrina ontológica
contida nesse livro, da qual tentamos expor algumas conseqüências problemáticas, que
teriam levado Merleau-Ponty a reformular, em suas obras finais, sua posição filosófica.
Infelizmente Damon não analisa em detalhe os textos finais de Merleau-Ponty e não se
posiciona, assim, em relação a tais modificações no seu itinerário.
Quanto à análise dessas mudanças, aproximamo-nos de duas leituras. A primeira
delas é formulada por Emmanuel de Saint Aubert no livro Vers une Ontologie Indirecte.
Sources et enjeux critiques de l’appel à l’ontologie chez Merleau-Ponty
16
. Tal como
Damon, esse autor também de000 0 0 12.0097.61826 139.07149 c7JETQ-69hv3 de000 0 0 12.0097.61826 139.07149 (i)-2.0(m9(000 0 0 12h097.61á26 139.07149 (ve)3.9(1.9(c)3.9(o )-80.0(dos )-70.0.0(t))3.0(a)3.9(s)-z0(o s)-1.0(e)4.0(u0(g)10.0(i1.9(c)4.0(a)3.9(s)ET)0(j)-1.9(á)-6.0( )-110(o s)-1.0(e)4.01.9(cn.0(s, )-507a)3.9(i)-2.0(s )-5ETQq/Cs1 cs 0 0(e)4.0(t)-2.0(ur)2.9/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 85.17826 139.07149 cm1.00000 0 0 1.00000 0 0 Tmm)-61)-7.4(6)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 /TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 201.81826 573.71149 cm1.00000 0 0 1.00000 0 0 Tmm)-616
F 0 0 Tmm6
12
obras de Merleau-Ponty, nas quais a investigação fenomenológica da percepção
almejava desvelar um modo primordial de acesso ao ser do mundo, modo que fundaria
todos os demais
17
. Por sua vez, Saint Aubert reconhece que as intenções ontológicas
contidas na Fenomenologia da Percepção são reelaboradas ante as insuficiências
reconhecidas por vários críticos do projeto de Merleau-Ponty, e posteriormente
admitidas pelo próprio filósofo
18
. No entanto, parece-nos que Saint Aubert não
menciona claramente quais as mudanças introduzidas por Merleau-Ponty para suprir as
insuficiências de sua ontologia fenomenológica e, por vezes, a impressão de que a
ontologia final incorpora as principais teses da Fenomenologia da Percepção, como se
fosse meramente requerida por essa última para realizar todas as suas intenções
19
. De
nossa parte, concordamos com o quadro geral apresentado por Saint Aubert (havia um
projeto ontológico na Fenomenologia da Percepção que foi longamente aperfeiçoado
posteriormente); porém, defenderemos que a formulação da ontologia final de Merleau-
Ponty implicará o rompimento com a concepção de ser em vigor em seus livros iniciais.
A segunda leitura que reconhece modificações no itinerário ontológico de
Merleau-Ponty é formulada por Étienne Bimbenet em Nature et Humanité. Le problème
anthropologique dans l’oeuvre de Merleau-Ponty
20
. Esse autor expõe as tentativas pelas
quais Merleau-Ponty tenta superar a cisão entre mundo natural e subjetividade. Sua tese
é que “o ultrapassamento da antinomia entre natureza e consciência pode se operar
no seio de uma ontologia conseqüente, para a qual a natureza não seria o outro do
espírito, nem o espírito o outro da natureza”
21
. Tal ontologia conseqüente seria
desenvolvida somente nos textos finais do filósofo, que em A Estrutura do
Comportamento e na Fenomenologia da Percepção a integração entre natureza e
consciência ocorreria de forma assimétrica, em favor da última. Em A Estrutura do
Comportamento, Merleau-Ponty consideraria as estruturas físicas e vitais como objetos
da percepção (Gestalten), e, desse modo, apresentaria “a natureza material como um
tipo de significação ordenada segundo a consciência”
22
. Além disso, nessa obra, a
inserção da consciência na natureza se limitaria ao reconhecimento de uma história
longínqua da qual a primeira teria sido derivada (estruturação do mundo físico,
estruturação da vida sobre esse mundo e, finalmente, estruturação da consciência sobre
17
Cf. Saint Aubert, op. cit., p.18, 148, 202.
18
Cf. Ibid., p.24, 260.
19
Cf. Ibid., p.17.
20
Paris: Vrin, 2004.
21
Bimbenet, op. cit., p.31.
22
Ibid., p.82.
13
a vida), e da possibilidade de desintegração dos comportamentos elevados (nas
patologias, por exemplo, os sujeitos se reduzem a estereotipias biológicas). Quer dizer
que por “natureza” somente se circunscreveria situações-limite exteriores à consciência,
ao espectador dos fenômenos
23
. na Fenomenologia da Percepção, a natureza seria
associada à vida irrefletida do corpo, sustentáculo íntimo da consciência e não mais,
como em sua obra anterior, a uma região de contingência em que a consciência poderia
decair. Mesmo assim, no livro de 1945, Merleau-Ponty teria submetido a vida irrefletida
“à regra de uma coerência intrínseca”
24
, de maneira a racionalizar a natureza corporal
em que a consciência estaria inscrita. Essa delimitação racional da natureza tornar-se-ia
patente no tratamento da experiência da coisa, em que Merleau-Ponty supõe uma tal
conivência ontológica entre sujeito e mundo que “a coisa recebe um modo de ser que é
exatamente aquele do corpo”
25
. Bimbenet reconhece que, segundo Merleau-Ponty, a
coisa não é um correlato corporal e repousa em si no mundo natural, tese baseada na
premissa de que “o meio atual e atualmente centrado sobre nosso corpo se encontra
repentinamente descentrado em direção a um meio virtualmente participável por todo
outro corpo que eu possa encontrar”
26
. Mas essa justificativa, continua Bimbenet,
somente assume a suposição racional
suposi2-51149 c13826 4.9(ão )-399.9(r)-1y99.9(r)-1e-400.0(a)4.0pbene10.0(á)-10.0(e)4.uto-51149 c1p(l)-1.9r-2.0(nse)2.0(c)4.09(e)3.9(dy99.9(r)-1 )-40.0(p99.9(r)-1 )-90.0ador,
14
distinção entre sujeito e objeto, ser que permitira atestar a pertença sensível do sujeito
ao mundo.
Concordamos com a leitura de Bimbenet, a qual permite finalmente
circunscrever de maneira mais clara as mudanças no itinerário filosófico de Merleau-
Ponty. Nossa tese, ao tentar expor tais mudanças, proporá uma análise paralela àquela
fornecida por Bimbenet. Nós não focaremos o problema das relações entre natureza e
consciência, tal como faz esse autor, mas sim aquele da concepção de ser no decorrer da
obra de Merleau-Ponty. Mas os dois problemas estão intimamente ligados e a análise de
Bimbenet oferece a ocasião para elucidar nossa própria tese. Segundo Bimbenet, as
análises iniciais de Merleau-Ponty sobre as relações entre natureza e consciência
padeciam de intelectualismo, uma vez que a natureza era assimilada a um horizonte de
racionalidade projetado sobre a experiência
28
. Já quanto à concepção de ser,
defenderemos que tais análises padecem de idealismo, pois o ser do mundo é ali
delimitado conforme o que as capacidades perceptivas podem apreender. Por sua vez, as
reflexões finais de Merleau-Ponty acerca de uma natureza primordial de onde brotaria a
própria consciência, tal como aponta Bimbenet, implicam a formulação de uma noção
ampliada de ser, não mais limitada àquilo que as capacidades perceptivas conseguem
assimilar do mundo, mas ser que funda e envolve a própria consciência.
Delimitamos, assim, em paralelo ao estudo de Bimbenet, o escopo geral de
nosso estudo acerca do problema do ser em Merleau-Ponty. Cabe agora esclarecer de
que maneira ordenaremos a análise desse problema em nossa tese. Trata-se, no primeiro
capítulo, de explicitar o projeto ontológico contido nas teses de doutoramento de
Merleau-Ponty, o qual, segundo nossa leitura, se comprometerá com conseqüências
idealistas inaceitáveis para o próprio autor. Nos capítulos seguintes, acompanharemos
como Merleau-Ponty, no decorrer dos anos cinqüenta, esboça uma nova concepção
ontológica, a qual, sem reatar com nenhum tipo de objetivismo realista, superará as
dificuldades idealistas iniciais. No segundo capítulo, consideraremos de que modo as
análises de Merleau-Ponty sobre a linguagem contribuem para sua reflexão ontológica.
No terceiro, exporemos os ganhos teóricos que seus cursos sobre a instituição, a
passividade e a natureza fornecem para a formulação de uma nova concepção de ser. No
quarto, explicitaremos o procedimento metodológico utilizado por Merleau-Ponty
nesses cursos e buscaremos expor como a análise das ciências e das artes em geral
28
Cf. Ibid., 229, 264.
15
contribui para a descrição do ser. No quinto, consideraremos em que medida essas
investigações ontológicas tardias de Merleau-Ponty se afastam da perspectiva
fenomenológica adotada em suas obras iniciais. Por fim, no sexto capítulo e na
conclusão, exporemos as linhas gerais da ontologia final de Merleau-Ponty em contraste
com sua ontologia fenomenológica inicial.
Parece-nos que ao expor essa concepção final de Merleau-Ponty, oferecemos
uma contribuição interpretativa pouco notada pelos comentadores em geral.
Defenderemos que a última concepção do ser esboçada por Merleau-Ponty admite um
excesso ontológico em relação àquilo que se fenomenaliza para as capacidades
perceptivas, e que, dessa maneira, o ser bruto apresentado pelas obras finais do filósofo
não está em uma correlação de direito perfeita com os poderes perceptivos e motores da
subjetividade encarnada, tal como parece ocorrer na Fenomenologia da Percepção.
Alguns comentadores, aqueles que admitem uma harmoniosa continuidade entre a
Fenomenologia da Percepção e O Visível e o Invisível (Dillon e Pietersma, por
exemplo), nem mesmo admitem haver um problema como aquele do excesso do ser em
relação às habilidades perceptivas, já que eles assumem (erroneamente, a nosso ver) que
o ser exposto nas obras finais de Merleau-Ponty não é senão uma explicitação do mundo
percebido tal como apresentado pelo livro de 1945. os comentadores que ao menos
reconhecem o caráter problemático do tema da amplitude do ser em relação às
capacidades perceptivas hesitam em relação a esse ponto. Como veremos em nossa
conclusão, Barbaras, Madison e Franck Robert
29
chegam a reconhecer um excesso do
ser em relação ao que é percebido, mas também sustentam que uma característica
essencial do ser é fenomenalizar-se, de maneira que o que é acaba se confundindo com
o que aparece. De nossa parte, vemos aqui uma simplificação da análise ontológica
final de Merleau-Ponty, a qual embora reconheça um ser sensível que prepara do seu
interior sua fenomenalização (tema tratado com a noção de carne), investiga camadas
ou dimensões ontológicas negativas ou invisíveis (das quais só temos acesso direto à sua
ausência). Pretendemos explicitar, em nossa conclusão, esse duplo aspecto contido na
análise ontológica final de Merleau-Ponty, o qual parece pouco compreendido pelos
comentadores.
Também nos interessa avaliar criticamente os resultados ontológicos obtidos
por Merleau-Ponty. Em nossa conclusão, discutiremos uma suspeita levantada por
29
Quanto a esse último autor, referimo-nos a seu livro Phénoménologie et Ontologie. Merleau-Ponty
lecteur de Husserl et Heidegger. Paris: L’Hamarttan, 2005.
16
Michel Haar
30
, a saber, se tais resultados podem ser tachados de metafísicos, no sentido
das doutrinas metafísicas que, segundo Kant, requeriam uma “crítica”. Retomemos aqui,
para esclarecer tal suspeita, o que se espera de uma empreitada ontológica. Entendemos
por ontologia o estudo das características e estruturas mais gerais da realidade, do ser
em geral, estudo que comporta ao menos duas diferentes abordagens
31
. A primeira delas
seria a abordagem extensional, ou seja, o exame das classes de objetos, fatos ou
situações a que o termo “ser” se aplica. Desse ponto de vista, a investigação ontológica
almeja enumerar aquilo que é, e “ser” significará a totalidade de entes que existem. A
outra abordagem ao problema ontológico é a intensional. Nesse caso, não se trata de
percorrer a extensão de “ser” (a totalidade das coisas que são) para compreender aquilo
que o ser é, não se trata de esgotar a enumeração das coisas ou categorias que existem;
trata-se, por sua vez, de esclarecer como se define o escopo de tal extensão, ou seja, de
esclarecer qual a natureza do ser, quais as características comuns (o modo de ser) por
meio das quais todas as coisas que existem compõem a extensão do termo “ser”.
Importa, nessa abordagem, elucidar qual o sentido de “ser” para então tornar claro
porque se diz de certas coisas ou fatos que eles são e de outros que eles não são.
Parece-nos que Merleau-Ponty, no decorrer de toda a sua carreira filosófica,
segue essa abordagem intensional. Daí que para ele o trabalho da ontologia não seja o
de descobrir fatos ou eventos desconhecidos do mundo, contribuindo, assim, para
alargar nossas classificações enumerativas acerca do que há. Em suas investigações
ontológicas, Merleau-Ponty se dedica a um esforço de renovação conceitual, de
refinamento do aparato lingüístico pelo qual nos referimos ao mundo e ao ser em
geral
32
. Trata-se de criticar o modo pelo qual as categorias herdadas da tradição
filosófica nos fazem entender o ser (modo baseado em cisões bastante discutíveis,
segundo Merleau-Ponty, tal como aquela entre sujeito e objeto) e de formular
30
Cf. Haar, M. “Proximité et distance vis-à-vis de Heidegger chez le dernier Merleau-Ponty”. In: La
Philosophie Française entre Phénoménologie et Métaphysique. Paris: PUF, 1999, p.9-34.
31
Cf. Priest, S. Merleau-Ponty. London: Routledge, 1998, cap. XIV - Being.
32
Importa, assim, oferecer definições das características ou propriedades gerais por meio das quais se
diz que as coisas ou eventos são. Deve-se notar que embora Merleau-Ponty utilize as estruturas
proposicionais consagradas para o conhecimento dos entes particulares (S é P) ao afirmar, por exemplo,
que o ser é perceptível ou que o ser implica um excesso em relação aos fenômenos, etc., o filósofo não
pretende qualificar nenhum ente em particular, mas sim o modo pelo qual as coisas e eventos mundanos
existem. Trata-se, desse modo, de tomar o ser figurativamente como objeto de um discurso moldado para
tratar dos entes, algo que efetivamente jamais ocorre, pois o ser não é nenhum objeto, e sim o princípio ou
estrutura comum a todos os entes. Uma outra estratégia lingüística para a análise ontológica é desenvolver
um discurso que em sua própria forma (e não somente pelo seu conteúdo proposicional) explicite o modo
como o ser é. Em nosso sexto capítulo, comentaremos como Merleau-Ponty também se serve dessa
estratégia em sua obra tardia.
17
filosoficamente certas categorias pelas quais se estabelecerá uma nova compreensão do
sentido do ser do mundo e do sujeito
33
. São os resultados desse esforço de
aperfeiçoamento conceitual da compreensão do ser que, segundo Haar, reproduziriam
alguns vícios das empreitadas metafísicas clássicas. Haar entende por metafísica um
modo particular pelo qual historicamente a investigação ontológica se realizou, modo
que tomaria indevidamente certos aspectos ônticos como o próprio ser em geral
34
.
Cumpre avaliar se a ontologia de Merleau-Ponty partilha desse modo e, assim, recai em
impasses teóricos tradicionalmente conhecidos, ou se realmente forja instrumentos
conceituais para renovar o problema do ser.
33
“A ontologia seria a elaboração das noções que devem substituir aquela de subjetividade
transcendental, aquelas de sujeito, objeto, sentido” (VI, 219, jan. 1959).
34
Além disso, as metafísicas clássicas concebiam o ser como realidade supra-sensível e causa primeira
das aparências fenomênicas.
Capítulo I – Os impasses da ontologia fenomenológica de Merleau-Ponty
Sinopse
De início, retomamos o projeto filosófico contido nas duas primeiras obras de
Merleau-Ponty e em seguida analisamos algumas das críticas endereçadas a ele.
Avaliamos que a crítica de que Merleau-Ponty correria o risco de se limitar a
conclusões de cunho psicológico pode ser superada no quadro da própria
Fenomenologia da Percepção. Porém, defendemos que a crítica de que Merleau-Ponty
se compromete com conseqüências idealistas
1
é correta e que tais conseqüências se
originam de um uso heterodoxo do tema do a priori da correlação, herdado de Husserl.
Por fim, esboçamos o desenvolvimento ulterior da ontologia de Merleau-Ponty, o qual
conjuga a reformulação de algumas teses da Fenomenologia da Percepção com uma
análise da cultura contemporânea.
A) As primeiras obras de Merleau-Ponty
A Estrutura do Comportamento
A tarefa geral do primeiro livro de Merleau-Ponty é reformular as relações entre
natureza e consciência por meio da noção de comportamento. A fim de tornar clara essa
estratégia, responderemos a duas questões: 1) por que as relações entre a natureza e a
consciência devem ser reformuladas? 2) Como a noção de comportamento permite
renovar o entendimento das relações entre esses dois termos?
1) Merleau-Ponty julga insuficientes as abordagens clássicas das relações entre
natureza e consciência. Essas abordagens o o pensamento neokantiano e o
pensamento causal, doutrinas filosóficas pressupostas por algumas teorias científicas.
Daí que os dois primeiros capítulos de A Estrutura do Comportamento acompanhem o
embate entre diferentes teorias psicológicas: ao discutir as limitações e virtudes dessas
doutrinas científicas, também se elucidam, indiretamente, os problemas das concepções
filosóficas sobre as quais tais doutrinas se baseiam.
Retomemos rapidamente a descrição das concepções clássicas contida em A
Estrutura do Comportamento. Para Merleau-Ponty, o pensamento neokantiano se
caracteriza por conceber a natureza como um conjunto de propriedades e relações
1
Usamos o termo “idealismo” para caracterizar a posição filosófica que concebe o ser como aquilo que
pode ser apreendido pela percepção. Nesse sentido, o idealismo não defende que o ser é apenas uma
projeção do pensamento humano sem nenhuma subsistência, uma ilusão, mas sim que a maneira pela qual
as coisas e eventos são se restringe ao que pode ser captado pela percepção humana.
19
objetivas constituídas pela consciência cognitiva. A física, julga Merleau-Ponty, é a
ciência que mais assimila a tese neokantiana, dada a aparente volatização da realidade
segundo o modelo científico adotado (por exemplo, segundo um modelo físico
mecânico, a realidade aparece como conjunto de partículas em movimento; segundo um
modelo dinâmico, como um conjunto de forças em interação). o pensamento causal,
presente, segundo Merleau-Ponty, principalmente na biologia e na psicologia, privilegia
as relações de determinação entre ordens de eventos reais (por exemplo, a ordem
psicológica se constituiria como efeito da fisiológica, o comportamento seria efeito das
pressões do meio) (Cf. SC, 1-2).
As duas abordagens filosóficas expostas acima defendem teses diferentes acerca
das relações entre natureza e consciência. Para o neokantismo, a natureza recebe seu
caráter objetivo dos poderes sintéticos da consciência cognitiva, concebida como uma
entidade pura, ou seja, independente da teia de eventos empíricos (teia que justamente
seria organizada segundo os parâmetros cognitivos da consciência). Por sua vez, para o
pensamento causal, a natureza consiste em um conjunto de eventos reais em mútua
determinação conforme leis próprias. Segundo essa perspectiva, a consciência se reduz
a um ente no interior desse conjunto, e pode ser considerada efeito de eventos físicos
e/ou fisiológicos (conforme uma abordagem materialista) ou uma força vital/espiritual
autônoma (conforme uma abordagem vitalista).
Merleau-Ponty considera insuficientes essas teses decorrentes das concepções
clássicas em pauta. Para justificar tal juízo, o filósofo analisa algumas teorias científicas
e tenta mostrar como as concepções filosóficas em questão comprometem os resultados
obtidos pelas primeiras. Os dois capítulos iniciais de A Estrutura do Comportamento
examinam o pensamento causal, transformado em método pela biologia e pela
psicologia reducionistas (as quais pretendem explicar o comportamento animal e
humano com base em relações de determinação causal
2
). Para Merleau-Ponty, esse
programa reducionista fracassa, pois, como a escola psicológica Gestalttheorie pretende
ter mostrado, há fenômenos que não se resumem à interação causal de elementos
exteriores entre si. Uma melodia, por exemplo, mesmo transportada para um tom que
não partilha nenhum dos sons primitivos, ainda pode ser reconhecida como tal. Isso
ocorre porque, segundo a Gestalttheorie, existe uma forma geral (Gestalt) cujas
propriedades excedem aquelas dos componentes isolados da melodia.
2
Merleau-Ponty avalia principalmente o projeto pavloviano de explicar tanto o comportamento inferior
(animal) quanto o superior (humano) por meio da doutrina do reflexo condicionado (Cf. SC, 55-60).
20
Essa noção de forma fomenta uma explicação alternativa da interação entre
organismo e meio. Muitos experimentos dos gestaltistas pretendem provar que os seres
vivos não reagem automaticamente a estímulos isolados, mas que tais estímulos
recebem seu sentido em relação a uma forma pela qual o organismo apreende a situação
vivida, assim como cada nota realiza sua função em relação ao todo de uma melodia
(Cf. SC, 62). Essas formas, padrões de distribuição dos estímulos perceptivos,
exprimem as estruturas biológicas pelas quais os organismos delimitam um meio
significativo para sua sobrevivência. Por exemplo, dado que certos organismos dispõem
de uma estrutura visual preponderante (e. g., corujas, gatos), determinadas formas
visuais estáveis são privilegiadas em seu comportamento. Do mesmo modo, organismos
com uma estrutura auditiva proeminente (e. g., morcegos, lebres) privilegiam as
Gestalten auditivas, e assim por diante
3
. Essa delimitação de um meio significativo
conforme as estruturas do organismo se antecipa à determinação causal das reações
comportamentais por estímulos objetivos. É porque os organismos existem por meio de
certas estruturas corporais típicas, as quais definem a amplitude de um determinado
campo fenomenal, que certos estímulos podem então figurar significativamente. Assim,
é verdade que os organismos reagem a estímulos do meio ambiente, tal como sustenta o
pensamento causal. Porém, tais estímulos devem ser compatíveis com as estruturas
pelas quais os organismos se inserem no mundo para que possam motivar alguma
reação. Dado que o pensamento causal ignora a delimitação, por meio dessas estruturas,
do campo geral de atuação do organismo, tal doutrina é ineficaz, conclui Merleau-
Ponty, no estudo do comportamento.
A assimilação dos estímulos conforme os padrões estruturais dos organismos
não deve ser confundida com a constituição da natureza pelas sínteses cognitivas da
pura consciência (tese do neokantismo). Na verdade, tal assimilação, sustenta Merleau-
Ponty, consiste em um processo coordenado pelas capacidades perceptivas, as quais
apresentam diretamente os entes e os eventos existentes no mundo (Cf. SC, 227). A
percepção não se limita a forjar representações sobre um mundo que em si mesmo
poderia divergir daquilo que é apreendido. O sentido dos fenômenos apreendidos é
aderente aos eventos materiais apresentados. Assim, as Gestalten percebidas não são
somente unidades de significação constituídas subjetivamente, mas manifestações
fenomênicas que desvelam diretamente os eventos mundanos. Desse modo, a noção de
3
Sobre a distinção entre forma e estrutura e a remissão da primeira à ultima, de modo a Merleau-Ponty
fundar a teoria da percepção sobre uma filosofia do organismo, ver Bimbenet, E. Op. cit., 2004, p. 53-55.
21
Gestalt unifica significação e existência: por meio do arranjo fenomenal percebido,
manifesta-se um sentido que não se reduz a uma mera construção subjetiva, mas que é
inerente ao meio percebido
4
. Por sua vez, o pensamento neokantiano repugna essa
unificação, pois tal escola, segundo a interpretação de Merleau-Ponty, nega o contato da
consciência cognitiva com a realidade concreta. A consciência se relacionaria, conforme
tal escola, apenas com fenômenos constituídos segundo as regras a priori do
pensamento, sem assimilar diretamente as coisas e eventos tomados em si mesmos (Cf.
SC, 224). Dessa maneira, tal como ocorrera com o pensamento causal, o pensamento
neokantiano falha em abranger a complexidade do comportamento entendido por meio
da noção de Gestalt.
2) Passemos agora à segunda questão posta inicialmente (como a noção de
comportamento renova o entendimento das relações entre natureza e consciência?). Para
a Gestalttheorie, o comportamento instaura um campo de formas percebidas por meio
do qual os eventos e coisas exteriores são apreendidos. Segundo Merleau-Ponty, o
estudo desse campo sugere um novo entendimento das relações entre natureza e
consciência: a natureza não se reduz a um conjunto de fenômenos cuja objetividade
decorre da atividade cognitiva; ela se apresenta como estímulos concretos reunidos em
formas significativas. E como essas formas remetem, em última instância, às
potencialidades estruturais dos organismos, a natureza não se exibe como uma ordem de
eventos determinantes da consciência, mas sim como uma camada de fatos sensíveis,
cuja organização é homogênea em relação às formas derivadas das estruturas
perceptivas dos organismos
5
. Por sua vez, a consciência não se confunde com uma pura
subjetividade constituinte ou com uma somatória de estados gerados pelo meio
ambiente; ela existe, em sua forma originária, como abertura perceptiva, a qual
apreende os fatos sensíveis de que a natureza se compõe (Cf. SC, 238-9).
Como vemos, entre natureza e consciência passa a vigorar um tipo de correlação
perceptiva. Admite-se o contato da consciência com a natureza concreta (e não apenas
com a objetividade construída por meio das categorias cognitivas, tal como defende o
pensamento neokantiano) sem, no entanto, reduzir esse contato a determinações causais
(conforme o pensamento causal sustenta). Tais determinações são secundárias ante a
4
“O que há de profundo na ‘Gestalt’ (...) não é a idéia de significação, mas aquela de estrutura, de junção
de uma idéia e de uma existência indiscerníveis, o arranjo contingente pelo qual os materiais se põem
diante de nós a ter sentido, a inteligibilidade em estado nascente” (SC, 223).
5
Essa concepção da natureza será mantida na Fenomenologia da Percepção: “há uma natureza, não
aquela das ciências, mas aquela que a percepção me mostra” (PhP, 494).
22
apresentação da natureza como conjunto de eventos organizados em conformidade com
as estruturas perceptivas. No terceiro capítulo de A Estrutura do Comportamento,
Merleau-Ponty compreende as três ordens constituintes do universo (física, vital e
humana) como diferentes formas (quer dizer, como estruturas concretas ordenadas
conforme parâmetros perceptivos), e não como conjuntos de eventos constituídos pela
consciência ou como séries de fenômenos autônomos que se relacionariam entre si de
maneira causal
6
. Essa aplicação da correlação perceptiva para todos os domínios do
universo implica uma nova filosofia transcendental (Cf. SC, 215), ou seja, uma
renovação da doutrina que considera as estruturas subjetivas como condição da
organização da experiência.
O transcendentalismo de Merleau-Ponty dispensa um puro sujeito cognitivo e
acentua que a natureza deve ser compreendida como reunião de Gestalten com um
sentido inerente aos seus componentes materiais, sentido que é exatamente aquele
apreendido pela consciência perceptiva. Deve-se notar que a consciência perceptiva que
Merleau-Ponty tem em vista é aquela humana. É verdade que todas as espécies animais
instauram, em sua relação com o meio, padrões gestálticos próprios. Isso poderia sugerir
uma multiplicidade de padrões transcendentais de ordenação da experiência. No
entanto, Merleau-Ponty acentua o fato de que a inserção das diversas espécies no meio
ambiente consiste em um evento perceptível para o cientista que estuda o
comportamento. Assim, o filósofo francês considera os processos vitais dos organismos,
bem como os fenômenos físicos no geral, como diferentes estruturas que se manifestam
para a consciência humana
7
. Em sua própria organização interna, crê Merleau-Ponty,
os fenômenos físicos e vitais supõem uma manifestação para a percepção humana, e,
nesse sentido, essa última exerce o papel de instância transcendental última pela qual a
organização de toda a experiência se torna compreensível
8
.
6
Merleau-Ponty espera que “aplicável igualmente aos três campos que acabam de ser definidos, [a noção
de forma] os integraria como três tipos de estruturas, ultrapassando as antinomias do materialismo e do
espiritualismo, do materialismo e do vitalismo” (SC, 141). A forma alimenta uma caracterização do ser da
natureza nem materialista nem espiritualista ou vitalista. Desse modo, a Gestalt fomenta uma reforma das
noções básicas da ontologia.
7
Segundo Merleau-Ponty, cada organismo “é um conjunto significativo para uma consciência que o
conhece, não uma coisa que repousa em si” (SC, 172). Mais à frente, afirma: “nossa experiência externa é
aquela de uma multiplicidade de estruturas, de conjuntos significativos. Uns, que constituirão o mundo
físico, encontram em uma lei matemática a expressão suficiente da sua unidade interior. Outras, chamadas
de seres vivos, oferecem a particularidade de ter um comportamento” (SC, 172-3).
8
Daí Merleau-Ponty afirmar que “o que chamamos natureza é consciência da natureza, o que
chamamos vida é já consciência da vida e o que chamamos psiquismo é ainda um objeto diante da
consciência” (SC, 199).
23
Conforme vimos pouco, a percepção das Gestalten não é uma mera projeção
subjetiva; há uma interação entre capacidades perceptivas e materiais sensíveis de
modo que o sujeito perceptivo apreende um sentido já esboçado na ordenação dos
próprios eventos do universo. Essa tese implica que o domínio transcendental
circunscrito por Merleau-Ponty, contrariamente ao que prega a tradição neokantiana,
não se distingue totalmente dos dados empíricos, ou seja, as formas nas quais os
fenômenos mundanos se manifestam são aquelas que exprimem um contato efetivo com
a natureza percebida. Seria errôneo, segundo essa perspectiva, supor um domínio
transcendental autônomo, composto por puras Gestalten humanas, que tais formas
percebidas nada realizam senão apresentar um sentido latente na própria natureza.
Retomemos o exemplo da melodia para comentar a inseparabilidade entre o
caráter transcendental das formas perceptivas de manifestação fenomênica e os
materiais empíricos sobre os quais tal caráter se exerce: uma melodia é uma forma cujo
sentido não se reduz à soma das notas particulares que a compõem, visto que tal forma
pode se manter em diferentes tonalidades. A melodia pode ser concebida tal qual uma
unidade de significação que atribui funções aos dados sonoros parciais que a compõem,
e, nesse sentido, exerceria um “papel transcendental” na organização de uma
experiência musical. Mas a melodia não se constitui como uma forma abstrata que
subsiste independentemente de quaisquer notas reais; embora a melodia exiba
propriedades que excedem aquelas das notas particulares, sua forma geral pressupõe que
haja notas numa certa relação. Do mesmo modo, as estruturas perceptivo-motoras
humanas não são poderes puros, mas capacidades polarizadas pelas situações mundanas,
de modo que o estudo da atividade transcendental do sujeito perceptivo implica
considerar sua inserção atual num tecido de fenômenos concretos
9
. Segue-se daí que a
análise transcendental esboçada por A Estrutura do Comportamento, e que Merleau-
Ponty desenvolverá em seu segundo livro, não se prestará a descrever condições formais
da experiência (tal como sugere a tradição neokantiana), mas se dedicará a explorar as
vivências particulares em que os parâmetros perceptivos de organização dos dados são
exercidas por um sujeito engajado nas situações mundanas
10
.
9
Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty afirma que “nós apreendemos a unidade de nosso
corpo naquela da coisa e é com base nas coisas que nossas mãos, nossos olhos, todos nossos órgãos dos
sentidos nos aparecem como tantos instrumentos substituíveis” (PhP, 372). Dessa maneira, os sistemas
perceptivos do corpo se revelam como capacidades exploradoras de um meio, capacidades pelas quais
o próprio meio adquire seus limites significativos, quando solicitados pelas situações mundanas.
10
“Seria necessário definir novamente a filosofia transcendental de maneira a nela integrar até o
fenômeno do real (SC, 241).
24
A Fenomenologia da Percepção
A Estrutura do Comportamento concebe a natureza como um conjunto de
estruturas organizadas segundo parâmetros perceptivos. Haveria, assim, um nível em
que o mundo (e o universo em geral) se apresentaria não como reunião de objetos e
eventos determinados segundo rígidas categorias intelectuais (por exemplo, causalidade,
quantidade, medida), mas como um campo organizado segundo uma lógica
perceptiva
11
. Essa tese sugere um tipo de redução fenomenológica (cf. SC, 235-6),
entendida como suspensão da validade ontológica do mundo objetivo tal como tratado
pelas ciências, e explicitação desse nível em que o mundo se manifesta de maneira pré-
objetiva (conforme os parâmetros da percepção ingênua ou cotidiana). Na
Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty desenvolve essa redução ao defender
primeiramente que a camada pré-objetiva de fenômenos é original em relação ao mundo
objetivo tratado pelas ciências, ou seja, que os parâmetros de organização de tal camada
não seguem as relações objetivas estudadas cientificamente, mas exibem uma
inteligibilidade própria
12
. Além disso, Merleau-Ponty defende que a camada pré-
objetiva é originária em relação ao mundo objetivo, o qual seria, então, um constructo
cultural tardio decorrente da experiência pré-objetiva.
Quanto a esse último ponto, Merleau-Ponty sustenta que naturalmente a
consciência perceptiva se dirige para coisas autônomas, já que a experiência corporal
adquiriria unidade por meio de um pólo mundano (Cf. nota 6). Desse modo,
espontaneamente a consciência perceptiva apresenta seus fenômenos como coisas, como
manifestação de um mundo dela independente. As doutrinas objetivistas ignoram que
essa manifestação de algum modo depende dos poderes da consciência e tomam o
mundo objetivo como anterior e determinante dos resultados percebidos. Por sua vez,
Merleau-Ponty defende que não um ser objetivo puro, mas sim um ser inseparável
11
Merleau-Ponty supõe que a experiência perceptiva não se submete à exatidão das categorias intelectuais
objetivas: “nós nos encontramos em presença de um campo de percepção vivida anterior ao número, à
medida, ao espaço, à causalidade e que entretanto se como uma visão perspectiva sobre objetos
dotados de propriedades estáveis, sobre um mundo e um espaço objetivos” (SC, 235-6). Essa tese é
mantida na Fenomenologia da Percepção: “há uma significação do percebido que é sem equivalente no
universo do entendimento, um mundo perceptivo que ainda não é o mundo objetivo, um ser perceptivo
que ainda não é o ser determinado” (PhP, 58).
12
Merleau-Ponty dá alguns exemplos da lógica perceptiva pela qual o campo pré-objetivo se organiza: “a
força do som sob certas condições faz perder altura, a junção de linhas auxiliares torna diferentes duas
figuras objetivamente iguais” (PhP, 14).
25
das estruturas perceptivas pelas quais tudo se manifesta, ser cujo caráter objetivo é um
atributo determinado posteriormente à sua manifestação fenomenal originária
13
.
Uma das principais metas da Fenomenologia da Percepção é descrever esse ser
ainda não objetivado e nem puramente subjetivo (no sentido em que uma idéia, uma
representação criada cognitivamente o é). Para tanto, Merleau-Ponty desenvolve uma
reflexão em três partes. Em primeiro lugar, o filósofo defende que o corpo fenomenal,
ou seja, o corpo como agente nas situações mundanas, é um exemplo desse tipo de ser
pré-objetivo: o corpo o se reduz a um conjunto de eventos determinados cegamente
pelo ambiente, pois dispõe de uma intencionalidade própria, que projeta sobre os
estímulos formas picas de apreender o ambiente (Cf. PhP, 130). Além disso, a
atividade corporal não depende de regras cognitivas a priori, uma vez que a
intencionalidade do corpo não é representacional (como aquela da consciência), mas um
repertório de possibilidades perceptivo-motoras em correlação direta com as situações
dadas (Cf. PhP, 169). Dessa maneira, o corpo fenomenal, nem puramente objetivo ou
subjetivo, apresenta-se como um terceiro tipo de ser (Cf. PhP, 402), o qual é originário
em relação ao corpo tomado como reunião de órgãos e tecidos, tal qual o estudo da
anatomia o considera (Cf. PhP, 403-4).
Em segundo lugar, Merleau-Ponty defende que o mundo percebido também não
corresponde às categorias auto-excludentes de sujeito e objeto. O mundo apresentado
pela percepção ingênua não é um conjunto de eventos absolutamente independentes das
estruturas perceptivas, mas um campo de situações que se manifestam como Gestalten
que a percepção humana pode apreender. Essa tese não reduz o mundo percebido,
acredita Merleau-Ponty, a um mero correlato de atos perceptivos, pois o mundo se
manifesta como repousando em si próprio, e a organização dos seus eventos, embora se
harmonize exatamente com as estruturas do corpo, ocorre nas próprias coisas e
situações e não na subjetividade humana (Cf. PhP, 305). Por conseguinte, o mundo
percebido não é nem mundo objetivo em-si (cujo ser não seria apreendido diretamente
pela percepção) nem mundo para-nós (uma construção subjetiva); ele é em-si-para-nós
(Cf. PhP, 372), ou seja, o mundo possui um caráter autônomo (em-si), ao qual a
experiência perceptiva tem pleno acesso (para nós) (Cf. PhP, 86). O caráter em-si do
mundo, segundo essa perspectiva, não se deve a um conjunto de eventos que não se doa
13
“O que me é dado não é somente a coisa, mas a experiência da coisa, uma transcendência em um rastro
de subjetividade, uma natureza que transparece através de uma história” (PhP, 376).
26
para as capacidades perceptivas, mas apenas ao fato de que a ordenação, o sentido e a
subsistência de tais eventos não é criada pela atividade subjetiva.
Em terceiro e último lugar, a fim de que as ambigüidades da experiência pré-
objetiva (tal como aquela do mundo percebido, o qual é ao mesmo tempo em-si e para-
nós) não se reduzam a uma coletânea de paradoxos, Merleau-Ponty procura desvelar um
padrão de racionalidade que fundamente as descrições da atividade corporal e do
mundo percebido (Cf. PhP 419). Esse padrão é encontrado na temporalidade,
compreendida por Merleau-Ponty como uma estrutura existencial complexa: um
fenômeno geral de escoamento, um fluxo indiviso de passagem (tempo constituinte) se
realiza como uma multiplicidade de instantes sucessivamente organizados como
momentos passados, presentes e futuros (tempo constituído). Entre esses momentos
constituídos, Merleau-Ponty acentua o privilégio do presente, descrito como um foco
estável por meio do qual os demais instantes podem ser reconhecidos como tais
14
. O
filósofo francês se serve da imagem de um jato d’água para esclarecer esse privilégio: o
jato tem uma forma que permanece constante devido à sucessão contínua do fluxo de
água (Cf. PhP, 482). Da mesma maneira, o fluxo de passagem do tempo sustenta uma
forma estável (a consciência presente) em relação à qual diferentes instantes são
discernidos (os momentos passados e futuros).
A distinção entre o foco presente (que se confunde com a perspectiva subjetiva
consciente) e os demais instantes constituídos (que aparecem como eventos autônomos)
permite esclarecer as ambigüidades anteriormente reconhecidas no corpo e no mundo
percebido
15
. Segundo Merleau-Ponty, na experiência presente, o mundo se manifesta
conforme os parâmetros das estruturas perceptivas, mas sem se reduzir a um correlato
subjetivo. Tal irredutibilidade é garantida por uma densidade temporal inerente à
manifestação fenomênica: o mundo percebido abarca os instantes passados em que se
manifestou e anuncia instantes em que se manifestará, ou seja, se estende para o passado
14
Deve-se notar que Merleau-Ponty não define o presente como um instante pontual, mas como um
campo denso, que espontaneamente se abre para o passado e para o futuro. Na verdade, não é possível
determinar com exatidão qual a densidade desse campo presente. Para o filósofo, “meu presente é, se se
quer, esse instante, mas é também esse dia, esse ano, minha vida inteira” (PhP, 481). Essa falta de
precisão quanto aos limites do presente se explica porque “nós consideramos como fazendo parte de
nosso presente tudo o que tem uma relação de sentido com nossas ocupações do momento” (PhP, 484).
15
“É pelo tempo que se pensa o ser, pois é pelas relações entre o tempo sujeito e o tempo objeto que se
pode compreender aquelas do sujeito e do mundo” (PhP, 492).
27
e para o futuro, dimensões que excedem a apreensão subjetiva atual das situações
mundanas
16
.
A temporalidade, sustenta Merleau-Ponty, também esclarece a integração entre
os aspectos psíquicos e fisiológicos da existência humana, ou seja, resolve o clássico
problema das relações entre a alma e o corpo. A vida psíquica confunde-se com o foco
presente, e os processos fisiológicos anônimos remetem a uma multiplicidade de
instantes passados sedimentados na história corporal. Dado que o foco presente não é
um instante pontual, mas sim, tal qual Merleau-Ponty insiste, um campo que envolve
aberturas ao passado e ao futuro, as estereotipias da vida fisiológica nunca são
totalmente estranhas ao sujeito e se integram à vida psíquica como dimensões por meio
das quais essa última se realiza. Por sua vez, visto que a consciência presente jamais
apreende totalmente o passado e o futuro, a vida fisiológica associada a essas dimensões
não se submete plenamente às intenções subjetivas e, por vezes (como no caso das
doenças), fragmenta a unidade da consciência subjetiva presente
17
.
Como se vê, Merleau-Ponty espera que o apelo à temporalidade forneça o
critério de inteligibilidade para seu projeto de apresentar a ambígua camada da
experiência pré-objetiva como originária em relação ao ser objetivo.
B) As críticas ao projeto filosófico de Merleau-Ponty
Um estudo psicológico
Em 1946, Merleau-Ponty é convidado para expor suas idéias num encontro da
Sociedade Francesa de Filosofia, o qual foi publicado com o título O Primado da
Percepção e suas Conseqüências Filosóficas. Nesse encontro, após retomar algumas
das principais teses da Fenomenologia da Percepção (publicada no ano anterior),
Merleau-Ponty recebe diferentes críticas. Uma delas, formulada de maneira diferente
por Émile Bréhier e Jean Hyppolite, procura desconectar as descrições da atividade
perceptiva e a conseqüência, pretendida por Merleau-Ponty, de que a percepção envolve
um modo originário de apresentação do ser. Para Bréhier, a reflexão filosófica surge
exatamente para escapar dos paradoxos alimentados pela percepção vulgar e não deve,
sob o risco de cair em incoerência, tomar a descrição da atividade perceptiva como
16
“A coisa e o mundo existem apenas vividos por mim ou por sujeitos tais como eu, pois são o
encadeamento de nossas perspectivas, mas elas transcendem todas as perspectivas porque esse
encadeamento é temporal e inacabado” (PhP, 385).
17
“A fusão da alma e do corpo no ato, a sublimação da existência biológica em existência pessoal, do
mundo natural em mundo cultural é tornada ao mesmo tempo possível e precária pela estrutura temporal
da nossa existência” (PhP, 100).
28
critério ontológico (Cf. PP, 73). Hyppolite não nenhuma conexão teórica entre as
descrições da percepção e as conseqüências ontológicas buscadas por Merleau-Ponty
(Cf. PP, 97). Ambos os filósofos separam, assim, atividade perceptiva e caracterização
do ser do mundo, de maneira a reduzir a análise da experiência pré-objetiva a um
registro de processos psicológicos, e a Fenomenologia da Percepção (em que tal análise
foi exercida), a uma compilação de impressões subjetivas.
Merleau-Ponty responde a esse tipo de crítica em diversos momentos da sua
carreira. Em uma nota de fevereiro de 1959, publicada em O Visível e o Invisível, o
filósofo afirma que a Fenomenologia da Percepção não é um livro de psicologia, pois
nela ontologia (VI, 228). Essa nota condensa uma reflexão longamente maturada.
Em um texto menos conhecido, o manuscrito da primeira aula do curso O mundo
sensível e o mundo da expressão, ministrado no Collège de France em 1953, Merleau-
Ponty explicita o tema apresentado sucintamente pela nota de O Visível e o Invisível. No
texto de 1953, o filósofo reconhece que a tese do primado da percepção pode ser
interpretada de maneira errônea como fruto de um mero exercício de “fenomenologia”,
entendida como uma “introdução que deixava intacta a questão do ser”
18
. Merleau-
Ponty rejeita tal interpretação ao afirmar: “eu não faço diferença entre ontologia e
fenomenologia; (...) em nossa maneira de perceber está implicado tudo o que nós
somos”
19
. Esse texto confirma que a intenção de Merleau-Ponty ao descrever a
percepção em seus primeiros livros não era coletar dados psicológicos, mas sim
explicitar um modo originário de manifestação do ser (o ser percebido).
A descrição da atividade perceptiva, na Fenomenologia da Percepção, longe de
expor o exercício de uma função psíquica, tenta explicitar como as propriedades e
relações constitutivas das coisas e eventos mundanos se manifestam sensivelmente. Há,
por conseguinte, apesar de Hyppolite não o notar, uma clara conexão teórica entre
descrições fenomenológicas e teses ontológicas no projeto de Merleau-Ponty: o modo
como as coisas aparecem sensivelmente qualifica o modo como elas são. Além disso, se
os resultados de tais teses parecem, à primeira vista, incoerentes (tal qual a
caracterização do mundo como em-si-para-nós), não se trata de abandonar o domínio da
sensibilidade em prol de uma suposta clareza racional, tal como Bréhier parece sugerir.
Esse abandono significaria ignorar o problema da manifestação originária do ser para a
subjetividade e, por conseguinte, mutilar injustificadamente a reflexão ontológica. Em
18
Merleau-Ponty, M. Le monde sensible et le monde de l’expression, apud Saint Aubert, E. Op. cit., p.24.
19
Id., ibid.
29
vez disso, tal como sugere Merleau-Ponty ao estudar a temporalidade, basta encontrar
um padrão de inteligibilidade pelo qual os resultados das descrições perceptivas possam
ser logicamente assimilados.
Como se vê, o quadro teórico da própria Fenomenologia da Percepção contém
argumentos que rejeitam as críticas de psicologismo endereçadas a tal obra. Merleau-
Ponty confirma essa rejeição em O Visível e o Invisível, texto em que, como vimos,
reconhece explicitamente a intenção ontológica da Fenomenologia da Percepção.
Apesar de tal reconhecimento, em O Visível e o Invisível Merleau-Ponty também admite
a necessidade de oferecer uma explicitação ontológica para os resultados da
Fenomenologia da Percepção (Cf. VI, 234, fev. 1959), de modo a afastar os equívocos
de se considerar esse texto como uma investigação psicológica. Cabe perguntar por que
o autor levanta suspeitas acerca da eficiência de a Fenomenologia da Percepção
veicular explicitamente suas intenções ontológicas. Em outra nota de O Visível e o
Invisível, Merleau-Ponty admite o caráter insolúvel de alguns problemas da
Fenomenologia da Percepção porque eles são formulados com base na distinção entre
consciência e objeto (Cf. VI, 250, julho 1959). Essa nota fornece uma pista importante
para entender as inquietudes do filósofo em relação à Fenomenologia da Percepção, as
quais de fato se exprimem nas notas do curso A Passividade, de 1954-1955. Nesse
texto, Merleau-Ponty expõe a raiz das dificuldades do entendimento do projeto
filosófico da Fenomenologia da Percepção: esse livro teria sido mal compreendido
porque “a análise do percebido começa na ontologia comum. Ela se ultrapassa do
interior. Mas o leitor não se conta” (IP, 174). Além disso, afirma Merleau-Ponty
referindo-se a si mesmo, “o próprio autor, preso na ontologia comum, descobre o
percebido como resíduo, exceção, resistência a essa ontologia” (Ibid.), o que geraria
uma descrição redutora do campo fenomenal.
A ontologia comum a que Merleau-Ponty se refere em A Passividade é justamente
aquela que cinde sujeito ou consciência e objeto, tal como O Visível e o Invisível havia
atribuído à Fenomenologia da Percepção. De fato, no livro de 1945 Merleau-Ponty
admite partir do pensamento objetivo (o qual defende a existência de um mundo
formado por propriedades independentes das funções sensoriais/cognitivas humanas e
não apreensíveis diretamente por elas) para explicitar, dadas as deficiências internas a
tal pensamento, a experiência fenomenal que o fundaria (Cf. PhP, 13, nota 1). Essa
explicitação legitima o tom otimista de A Passividade, segundo o qual a ontologia
comum foi ultrapassada pela reflexão fenomenológica. Tal tom não mais figura na nota
30
de O Visível e o Invisível, que simplesmente aponta para a incapacidade de a
Fenomenologia da Percepção resolver a cisão entre consciência e objeto. Dessa
maneira, O Visível e o Invisível sugere que o ultrapassamento da ontologia comum pela
Fenomenologia da Percepção (tal como descrito por A Passividade) não basta para
livrar a doutrina fenomenológica de sérias dificuldades. Nós expusemos na seção
anterior as linhas gerais desse ultrapassamento (Merleau-Ponty propõe o retorno do
mundo determinado estudado cientificamente para a experiência pré-objetiva, de modo
a acentuar o caráter secundário da objetividade em relação à vivência do mundo
percebido pelo corpo. Assim, os fenômenos percebidos não são considerados conteúdos
psicológicos, mas um modo de manifestação do próprio ser do mundo). Resta saber por
que tal estratégia, segundo o próprio filósofo, não é plenamente eficaz.
Merleau-Ponty idealista
Além das críticas recebidas no debate promovido pela Sociedade Francesa de
Filosofia, Merleau-Ponty também foi alvo de textos filosóficos que tentaram revelar
limitações intrínsecas a seu projeto filosófico. Dois artigos se destacam pela agudeza
com que expõem um ponto similar, a saber, supostas conseqüências idealistas da
filosofia de Merleau-Ponty. Trata-se de um artigo de Ferdinand Alquié
20
, o qual
discutiremos nesta sub-seção, e outro de Jean Desanti
21
, comentado na próxima.
Servimo-nos desses textos somente como um recurso para tornar visível a ineficácia do
projeto da Fenomenologia da Percepção, tal como nós a interpretamos. Quer dizer que
não os analisaremos em detalhe, mas apenas extrairemos algumas formulações
argumentativas úteis para nossa exposição geral.
Em seu texto, Alquié sugere que Merleau-Ponty teria confundido os fenômenos
percebidos, os quais são cronologicamente primeiros na ordem do conhecimento
humano, com as propriedades daquilo que existe, as quais seriam primeiras na ordem do
ser do mundo
22
. Ao atribuir alcance ontológico às descrições da atividade perceptiva,
Merleau-Ponty teria submetido ilegitimamente o ser do mundo e do universo em geral
às capacidades humanas de apreensão perceptiva, e reconheceria como existente
20
Alquié, F. “Une philosophie de l’ambiguïté. L’existentialisme de Merleau-Ponty”. Fontaine Vol. IX,
n.59, 1947, p.47-70.
21
Desanti, J. T. “Merleau-Ponty et la décomposition de l’idealisme”. La Nouvelle Critique, n.37, 1951,
p.63-82.
22
Alquié questiona: “Merleau-Ponty não confunde análise psicológica e análise metafísica, investigação
do que é cronologicamente e psicologicamente primeiro e investigação do que é logicamente e
metafisicamente primeiro?” (Alquié, art. cit., p.52-3).
31
aquilo que pode se manifestar ao sujeito. Por conseguinte, Merleau-Ponty teria
assumido um tipo de idealismo subjetivista
23
, uma postura filosófica incapaz de admitir
a hipótese de que possa existir algo que exceda o campo de fenômenos apreensíveis
perceptivelmente, hipótese essa que parece confirmada pelas teorias científicas acerca
de radiações, raios ultravioletas, vírus e muitos outros eventos inobserváveis
diretamente.
Antes de expor a resposta de Merleau-Ponty à hipótese dos entes inobserváveis,
avaliemos a correção da crítica de Alquié. Para tanto, explicitaremos com mais detalhe
o projeto filosófico da Fenomenologia da Percepção. Nesse livro, Merleau-Ponty
defende o caráter originário da experiência pré-objetiva em relação à idéia de mundo
objetivo como um conjunto de eventos independentes da subjetividade e que
determinariam causalmente o conteúdo da percepção. A fim de legitimar tal tese,
Merleau-Ponty tenta descrever aquilo que a experiência perceptiva efetivamente nos
apresenta, ou seja, o mundo percebido (sobre o qual, posteriormente, o mundo objetivo
é construído por meio de teorias e técnicas científicas). Os fenômenos pelos quais o
mundo percebido se manifesta não são tomados por Merleau-Ponty como meros
conteúdos psicológicos (como interpretações de um mundo formado por propriedades
que, em si mesmas, não se doam sensivelmente), mas sim como a apresentação desse
próprio mundo percebido. Quer dizer que a descrição fenomenológica da experiência
não se limita a registrar uma representação psicológica, mas pretende desvelar as
próprias coisas como são, o ser do mundo percebido. Por conseguinte, ao recusar a
prioridade do mundo objetivo em prol do mundo percebido, Merleau-Ponty pretende
oferecer uma caracterização do ser que está na origem da percepção.
Notemos que, para Merleau-Ponty, rejeitar o ser objetivo não significa rejeitar
que a percepção seja resposta à solicitação de um mundo do qual o próprio sujeito surge
e no qual permanece sempre engajado (Cf. PhP, 253). Na verdade, segundo o filósofo, a
atividade perceptiva ocorre como uma sincronização de atitudes perceptivo-motoras
com estímulos que solicitam a atenção corporal (Cf. PhP, 248). Dessa maneira, o
funcionamento da percepção supõe um ser exterior com o qual o sujeito se comunica
(Cf. PhP, 247). Merleau-Ponty chega mesmo a reconhecer, no início do capítulo “O
sentir”, que esse ser fundante da experiência não se limita ao ser sensível, mas envolve
“uma profundidade do objeto que nenhuma antecipação sensorial esgotará” (PhP, 250),
23
Cf. Ibid., p.64.
32
um “horizonte de coisas vistas ou mesmo não visíveis” (PhP, 251). Aqui Merleau-Ponty
considera rapidamente a idéia de um excesso do ser em relação ao aparato perceptivo
humano, ou seja, admite que aquilo que existe ultrapassa o que pode ser sensivelmente
discriminado pelos sujeitos humanos. No entanto, essa breve menção a tal idéia será
mesmo recusada no decorrer da Fenomenologia da Percepção, conforme veremos.
A assunção de que um ser exterior que motiva a percepção não justifica,
segundo Merleau-Ponty, a teoria de que os episódios perceptivos são efeitos passivos de
um mundo objetivo alheio às estruturas subjetivas. Conforme afirmamos acima, o
filósofo descreve a experiência perceptiva como fruto de uma sincronização dos poderes
perceptivo-motores do corpo com as situações factuais, que solicitam a atenção
subjetiva. O sujeito não é invadido por um ser completamente estranho, mas assume
uma postura perceptiva por meio da qual os dados percebidos se determinam e
manifestam algo significativo. Dessa maneira, mais do que efeito do ser exterior, a
percepção é, para Merleau-Ponty, reapresentação do mundo, quer dizer, exibição de
fenômenos que expõem diretamente os eventos pelos quais o mundo existe
24
.
Tal descrição da atividade perceptiva implica que o mundo não é algo alheio à
subjetividade e sim um campo de eventos cujos padrões de organização são esposados
harmonicamente pelos poderes do corpo. Tal harmonia é fundada, segundo a
Fenomenologia da Percepção, em um pacto ou contrato estabelecido naturalmente
entre corpo e mundo (Cf. PhP, 251, 293, 359), de modo que a percepção sempre
apreende significativamente os eventos mundanos com que se depara. Toda
configuração particular de dados sensíveis exige e recebe uma sincronização corporal
correspondente pela qual se apresenta como um fenômeno significativo, quer dizer,
como reconstituição de um evento mundano. Esse resultado ocorre porque o corpo
próprio, sistema de funções pré-pessoais, porta um projeto geral do mundo, um
repertório perceptivo-motor capaz de sincronizar-se com toda situação factual
possível
25
. Vale notar que Merleau-Ponty não oferece nenhuma justificativa para a tese
desse pacto natural entre corpo e mundo, o qual é apresentado como um fato último não
remissível a nenhuma condição explicativa. Como veremos em nosso sexto capítulo, o
24
A percepção “não se primeiramente como um evento no mundo ao qual se poderia aplicar, por
exemplo, a categoria de causalidade, mas como uma re-criação ou uma re-constituição do mundo a cada
momento” (PhP, 240).
25
“Há uma gica do mundo que meu corpo inteiro esposa e pela qual coisas intersensoriais tornam-se
possíveis para nós (...). Ter um corpo é possuir uma montagem universal, uma típica de todos os
desenvolvimentos perceptivos e de todas as correspondências intersensoriais para além do segmento de
mundo que nós percebemos efetivamente” (PhP, 377).
33
filósofo busca uma resposta diferente ao problema da coordenação da atividade
perceptiva com o ser do mundo em O Visível e o Invisível, e, por meio da noção de
reversibilidade, tenta elaborar uma justificativa de cunho ontológico para tal
coordenação.
O reconhecimento de um pacto natural entre corpo e situações mundanas como
fundamento da conformidade entre atividade percebida e ser do mundo não implica,
segundo Merleau-Ponty, a redução desse ser a uma mera projeção subjetiva, a um
correlato corporal. Desse modo, o filósofo rejeita a postura intelectualista segundo a
qual haveria um poder geral subjetivo que portaria antecipadamente o sentido de toda
experiência possível e atribuiria ativamente esse sentido aos fenômenos percebidos
26
.
Conforme vimos na subseção anterior, Merleau-Ponty afirma que o sentido dos
fenômenos percebidos aparece como uma propriedade intrínseca aos eventos mundanos
e não como uma criação do sujeito. A percepção apenas exprimiria significações
inerentes aos fenômenos, mas não as constituiria ativamente (Cf. PhP, 305). A idéia de
pacto natural entre corpo e mundo somente afirma que o sujeito perceptivo porta a
capacidade de reconhecer todas as configurações dos eventos mundanos. Mas o sentido
dessas configurações o é criado pelo sujeito, pois faz parte dos próprios fenômenos
mundanos: as coisas e o mundo se manifestam como portadoras de um sentido
autônomo, como independentes da subjetividade (Cf. PhP, 372).
Poder-se-ia aqui objetar que o simples fato de que as coisas percebidas
aparecem como existentes em si mesmas não basta como garantia de sua independência
em relação à atividade perceptiva, que esse aparecer é sustentado por tal atividade.
Com efeito, Merleau-Ponty não se limita a reconhecer que as coisas surgem para a
subjetividade como dela independentes, mas tenta esclarecer porque seu aparecer ocorre
dessa maneira. Em nossa interpretação, o filósofo apresenta ao menos duas justificativas
para o fato de que na própria experiência as coisas se manifestem como independentes
do sujeito.
Antes de explorar essas justificativas, vale notar que Merleau-Ponty não
apresenta como evidência para a irredutibilidade do ser do mundo a um correlato
corporal a tese de que o ser motivador da percepção excede a manifestação sensível e
contém camadas não diretamente acessíveis à subjetividade humana (tal como
mencionado no início do capítulo “O sentir”). Na verdade, esse fato, reconhecido
26
Essa postura intelectualista é explicitamente criticada no capítulo “O cogito, da Fenomenologia da
Percepção.
34
rapidamente naquele capítulo ao se investigar a gênese da percepção, perde qualquer
relevância no interior da Fenomenologia da Percepção. Merleau-Ponty explica esse
desprezo pelo excesso de ser em relação ao que é perceptível, anos mais tarde, no curso
A Passividade. Ali, o filósofo esclarece que seu projeto na Fenomenologia da
Percepção era “tomar como ser não o ‘em-si’, mas o que se manifesta”
27
. Lembremos
que na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty defende que a percepção
realmente apresenta o ser das coisas e não uma camada de qualidades secundárias
projetadas sobre um mundo em si mesmo diferente daquilo que aparece sensivelmente.
Admitir um excesso do ser em relação ao que aparece significaria, no quadro teórico
desse livro, admitir que a realidade das coisas seria um em-si distinto de seu manifestar-
se, ou seja, um conjunto de propriedades objetivas que as capacidades perceptivas o
conseguem captar. Quer dizer que na Fenomenologia da Percepção, a única alternativa
à manifestação do mundo tal e qual pela atividade perceptiva é a idéia de um em-si
completamente alheio às capacidades subjetivas. Daí que Merleau-Ponty se esforce,
nesse livro, para esclarecer a existência autônoma do mundo sem apelar para um
possível excesso do ser em relação ao seu aparecer. Veremos na conclusão desta tese,
que em sua ontologia final, Merleau-Ponty rejeita o dilema entre conceber o ser como
percebido (plenamente acessível pelo sujeito) ou como ser em-si (ser objetivo,
inacessível para a sensibilidade). O filósofo francês desenvolverá a idéia de um ser que
excede o aparecer fenomênico sem com isso retomar a idéia de um em-si formado por
qualidades absolutamente alheias à subjetividade humana. Por ora, vejamos como ele
defende a tese da existência autônoma do mundo sem apelo a um excesso do ser em
relação ao aparecer.
Retornemos às duas justificativas pelas quais Merleau-Ponty tenta provar que o
ser do mundo não se reduz a um correlato da experiência perceptiva. Como primeira
delas, o filósofo assevera que o espetáculo percebido contém uma infinidade de
relações constitutivas, que em muito ultrapassam aquelas apreendidas atualmente pelo
corpo e que exigiriam um tempo interminável para serem devidamente exploradas (Cf.
PhP, 373-4). Podemos, por exemplo, observar os contornos irregulares e o brilho fosco
de uma pedra sem nos dar conta dos laivos delicados no seu interior. Se quebrarmos a
pedra, perceberemos então os desenhos que escapavam à nossa primeira visada sobre
27
Merleau-Ponty, M. La Passivité apud Saint Aubert, E. Op. cit., p.7.
35
ela e que, ainda assim, dela faziam parte. Dessa maneira, as coisas e o mundo envolvem
uma riqueza de detalhe e articulação que supera a experiência atual do corpo.
Merleau-Ponty reconhece que essa definição da coisa como infinidade de
características é problemática, pois inesgotáveis aspectos constituintes das coisas jamais
podem ser apreendidos por um sujeito finito, quer dizer, por um sujeito que conta com
um tempo limitado e que lida com perspectivas parciais dos fatos mundanos. Assim,
se a confirmação da realidade de uma coisa depende da constatação de seus incontáveis
atributos, então parece que tal confirmação nunca poderia ser feita
28
. A fim de superar
esse problema, Merleau-Ponty expõe a segunda justificativa para a tese da existência
autônoma das coisas para além da sua correlação com o corpo. Trata-se do caráter
temporal da existência dos entes e do mundo em geral. Embora as coisas envolvam
infinitos atributos, não é preciso considerar todos eles de uma vez para confirmar a
sua existência autônoma. Na verdade, se a totalidade dos atributos constituintes das
coisas percebidas pudesse ser apreendida por um ato subjetivo, então tais coisas
seriam possuídas por inteiro pelo sujeito. Nesse sentido, as coisas seriam de fato
reduzidas a um correlato de tal ato cognitivo (Cf. PhP, 269-70). O apelo à
temporalidade pretende esclarecer que não é a totalidade dos atributos constituintes das
coisas a marca da sua realidade, mas sim a parcialidade pela qual eles se manifestam.
Segundo Merleau-Ponty, as coisas se manifestam como uma série aberta, instaladas em
um passado que o sujeito recolhe apenas parcialmente e suscetíveis a apreensões
perceptivas futuras. Dessa maneira, a manifestação fenomênica das coisas será sempre
inacabada, pois o sujeito apreende somente uma fase de uma história que ultrapassa
aquilo que atualmente se doa. Justamente é esse inacabamento das coisas tal como
manifestadas o que lhes garante sua realidade: as coisas percebidas dispõem de uma
espessura passada e de uma abertura ao futuro que não são plenamente assimiláveis pela
consciência presente. É verdade que essa consciência, tal como a concebe Merleau-
Ponty, envolve uma abertura intencional ao futuro e ao passado; no entanto, o
encadeamento dos instantes passados e futuros na experiência presente jamais implica a
posse simultânea de todas as perspectivas e características que compõem a coisa. Os
instantes passados e futuros são referidos à distância pela consciência presente, ou seja,
28
“Assim, parece que somos conduzidos a uma contradição: a crença na coisa e no mundo - pode
significar a presunção de uma síntese acabada, - e entretanto esse acabamento é tornado impossível pela
própria natureza das perspectivas a religar, já que cada uma delas reenvia indefinidamente por seus
horizontes a outras perspectivas” (PhP, 381).
36
são dimensões que lateralmente compõem a espessura da consciência atual, mas que
não são direta e totalmente abarcadas pela vivência presente.
Cabe agora perguntar se as justificativas de Merleau-Ponty ao problema da
independência do ser do mundo em relação aos sujeitos perceptivos são suficientes para
afastar a acusação de idealismo subjetivista. Julgamos que não. O apelo para
características e perspectivas temporais que escapam à sincronização presente do corpo
significa somente que no plano da atualidade a estrita correlação entre os poderes do
corpo e o ser do mundo não se concretiza. Porém, no nível da potencialidade, tal
correlação é mantida. Afinal, Merleau-Ponty sustenta que o corpo porta a lógica do
desenvolvimento de todo evento mundano (Cf. PhP, 377), de modo que, embora as
características e as perspectivas não percebidas atualmente excedam as posturas
envolvidas na sincronização corporal presente, tais características consistem apenas em
manifestações fenomênicas potencialmente apreensíveis pela percepção humana. De
fato, o corpo não apreende todas as características e perspectivas das coisas
simultaneamente, mas, em todo caso, não era por meio dessa totalidade inapreensível
que Merleau-Ponty julgava estabelecer a independência do mundo ante a subjetividade,
e sim por meio da parcialidade e inacabamento da manifestação mundana. No entanto,
em nenhum momento o filósofo considera que as perspectivas parciais não sejam
perfeitamente apreensíveis pelo corpo
29
. Cada uma delas permanece organizada
segundo configurações materiais reconstituíveis pelo repertório perceptivo-motor
corporal, o qual é caracterizado como “uma típica de todo ser possível, uma montagem
universal em relação ao mundo” (PhP, 490). O simples fato de que a organização dos
eventos do mundo ocorra segundo um desenvolvimento temporal parece, assim, não
bastar como prova da irredutibilidade do ser do mundo a um correlato corporal. Essa
insuficiência se torna ainda mais clara se se retoma a teoria do tempo defendida pelo
filósofo.
Segundo a Fenomenologia da Percepção, não temporalidade (ou seja,
eventos ordenados como presentes, passados ou futuros) no mundo considerado em si
mesmo. A sucessão entre as dimensões do tempo (por exemplo, o tornar-se passado de
um evento outrora futuro) surge pela relação entre sujeito e mundo. Os eventos
mundanos recebem um sentido temporal porque são antevistos como protensões, são
29
“Não é necessário (...) perguntar se percebemos verdadeiramente um mundo, deve-se dizer, ao
contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos” (PhP, XI).
37
apreendidos pela consciência presente e então retidos como instantes passados
30
. O
caráter temporal das coisas (o fato de que elas fazem parte de uma história e são assim
apreendidas de maneira inacabada) decorre da estrutura temporal da subjetividade e não
pode, portanto, servir para provar a independência do mundo e das coisas ante tal
subjetividade.
Os dois parágrafos anteriores pretendem mostrar que as razões apresentadas por
Merleau-Ponty para justificar a impressão de que as coisas se manifestam como
repousando em si mesmas não rompem com a limitação do ser do mundo àquilo que as
capacidades perceptivas podem apreender. É verdade que o filósofo defende que as
coisas contêm relações e perspectivas temporais que excedem a tomada de posição atual
do corpo sobre o ambiente. No entanto, tais relações são apenas casos da lógica sensível
dos eventos mundanos, a qual é partilhada totalmente pelo corpo, que esse não
pode assumir as atitudes perceptivo-motoras necessárias para apreender qualquer
manifestação fenomenal possível como também é responsável pela atribuição de um
caráter temporal aos fatos do mundo. Parece, assim, que Alquié tinha razão em
explicitar a posição de Merleau-Ponty como idealismo subjetivista.
É importante esclarecer o alcance da crítica de Alquié. Seria descabido acusar
Merleau-Ponty de imaterialismo, pois claramente ele admite que a percepção responde a
um ser exterior, que a solicita e que não é mera projeção humana. Também não seria
correto atribuir a Merleau-Ponty a doutrina solipsista, como se o ser fosse aquilo que se
manifestasse apenas para o narrador da Fenomenologia da Percepção. Nesse livro, a
percepção é tratada como uma habilidade natural cujos padrões de funcionamento em
princípio valeriam para todos os sujeitos humanos de igual constituição corporal,
independentemente da diversidade cultural
31
, uma habilidade que ligaria todos esses
sujeitos a um mundo único e partilhável
32
. Os fenômenos percebidos não são, desse
ponto de vista, eventos privados, mas acessíveis por qualquer consciência perceptiva
humana. É claro que, ante uma mesma paisagem, dois sujeitos, localizados em posições
30
“O tempo não é um processo real, uma sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar. Ele nasce de
minha relação com as coisas” (PhP, 471).
31
Merleau-Ponty dá o exemplo da noção de permanência dos objetos apesar das oscilações do campo
visual (quando da mudança do olhar) como uma habilidade que “não é aprendida, ela faz parte das
montagens naturais do sujeito psicofísico” (PhP, 59). No geral, as capacidades perceptivas descritas por
Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção são desse tipo, ou seja, são capacidades de um nível
“que não é somente aquele de minha vida individual, mas aquele de ‘todo homem’” (PhP, 505).
32
“Meu corpo, que assegura por meus hábitos minha inserção no mundo humano, o faz justamente me
projetando primeiramente em um mundo natural que sempre transparece sobre o outro” (PhP, 339). “As
funções sensoriais e perceptivas depositam diante delas um mundo natural” (PhP, 400).
38
diferentes, experimentam perspectivas diferentes. Mas tais diferenças estão previamente
subsumidas ao horizonte perceptivo de cada um deles como possibilidades de eventos
futuros. Cada perspectiva perceptiva, acredita Merleau-Ponty, deve ser concebida como
partilhável por todos os sujeitos, de modo que nenhuma manifestação fenomênica se
reduz a um espetáculo exclusivo de uma só subjetividade
33
.
Embora Merleau-Ponty admita um ser exterior que motiva a percepção e o
caráter público dos fenômenos percebidos, julgamos que sua concepção ontológica
geral limita tal ser a propriedades sensíveis que o corpo humano é capaz de reconhecer.
Com efeito, uma passagem em que Merleau-Ponty admite explicitamente a
delimitação do ser àquilo que se manifesta à subjetividade:
as leis do nosso pensamento e nossas evidências são bem fatos, mas
inseparáveis de nós, implicados em toda concepção que nós possamos formar
do ser e do possível. Não se trata de nos limitar aos fenômenos, de fechar a
consciência em seus próprios estados reservando a possibilidade de um outro
ser além do ser aparente, nem de tratar nosso pensamento como um fato entre
os fatos, mas de definir o ser como aquilo que nos aparece e a consciência
como fato universal (PhP, 455, grifo nosso)
Aqui, Merleau-Ponty define o ser do mundo (ser exterior, que motiva a
percepção) como ser sensível, ou seja, como um conjunto de atributos apreensíveis
pelas capacidades perceptivas do corpo humano. O filósofo assume, como vimos, que
tais atributos não são constituídos por atos subjetivos, e, por conseguinte, aparecem
como repousando em si. Esses atos apenas reconstituiriam estruturas de organização
próprias ao ser mundano. Porém, na doutrina da Fenomenologia da Percepção, tais
estruturas são aquelas passíveis de reconhecimento subjetivo, de modo que em
decorrência de um pacto originário o mundo é exatamente aquilo que se manifesta para
o repertório perceptivo-motor do corpo
34
.
33
“As experiências dos outros ou aquelas que eu obteria me deslocando apenas desenvolvem o que está
indicado pelos horizontes de minha experiência atual e a ela não acrescentam nada” (PhP, 390). Para
Bimbenet, conforme vimos na introdução desta tese, essa certeza de que uma concordância
intersubjetiva no nível perceptivo explicitaria tendências intelectualistas na Fenomenologia da
Percepção.
34
Não é verdade, assim, tal como julga Madison, que “a análise de Merleau-Ponty acerca da coisa e do
mundo natural levanta e deixa em suspenso a questão que é de fato a “besta negra” [bête noire] da
fenomenologia. É a questão do estatuto ontológico do mundo, do ser do mundo” (Madison, G. B. Op. cit.,
p.32). Para Madison, Merleau-Ponty “não tem sucesso em elucidar (...) a velha questão da relação entre
ser e aparecer, ser e fenômeno” (Ibid., p.36). Porém, Merleau-Ponty oferece claramente em seu livro de
1945 uma posição quanto às relações entre ser e aparecer: o fenomenólogo toma o que se fenomenaliza
como ser, e, desse modo, identifica o ser do mundo ao seu aparecer. Pode-se questionar se essa resposta é
39
O problema do passado do mundo
A circunscrição do ser do mundo àquilo que se manifesta para o repertório
perceptivo-motor humano exclui a hipótese de que possa existir algo que exceda o
campo de fenômenos apreensíveis subjetivamente. No entanto, muitos eventos que
claramente extrapolam as capacidades perceptivas humanas foram reconhecidos por
diversas teorias científicas. Pensemos, por exemplo, nas radiações, na fissão de
partículas, nos genes, nos processos que geraram o universo e em tantos outros entes ou
eventos inobserváveis diretamente, mas que podem ser apreendidos por meio de seus
efeitos, esses sim compatíveis com as estruturas perceptíveis humanas. Qual estatuto
ontológico é atribuído por Merleau-Ponty à categoria de entes ou eventos
inobserváveis? O filósofo não aborda diretamente esse problema em seu caráter geral,
mas discute um caso que esclarece sua postura filosófica ante tal gênero de dificuldade.
Trata-se do tema da anterioridade de nosso planeta em relação à vida humana. A
seguir, vamos enfatizar consideravelmente esse caso, pois vemos nele uma
conseqüência extraída por Merleau-Ponty de sua concepção ontológica geral,
conseqüência por meio da qual será possível explicitar as limitações dessa concepção.
A concepção científica comumente aceita assevera que a Terra é um corpo
celeste que em muito precedeu os seres humanos e, por conseguinte, as capacidades
perceptivas segundo as quais os fenômenos mundanos são subjetivamente apreendidos.
Merleau-Ponty avalia tal concepção ao analisar a hipótese do matemático e astrônomo
Laplace (1749-1827), segundo a qual a Terra surgiu de uma nebulosa extremamente
condensada e quente. O fenomenólogo interpreta essa hipótese da seguinte maneira:
“cada uma dessas palavras como cada uma das equações da física pressupõe nossa
experiência pré-científica do mundo e essa referência ao mundo vivido contribui para
constituir sua significação válida” (PhP, 494). Quer dizer que a compreensão dos termos
em que a hipótese de Laplace é formulada exige o apelo à experiência perceptiva
35
. Por
exemplo, Merleau-Ponty defende que “nada me faria alguma vez compreender o que
poderia ser uma nebulosa que não seria vista por ninguém” (PhP, 494). O entendimento
adequada ou suficiente, tal como Alquié faz, mas não ignorar que ao menos uma resposta ao problema
em questão.
35
Daí que para Merleau-Ponty “não há mundo sem uma Existência que lhe traga a estrutura” (PhP, 494).
40
daquilo a que o termo “nebulosa” se refere supõe um testemunho perceptivo, ou seja,
supõe imaginar o ente referido de um certo ponto de vista, manifestando-se de uma
certa maneira para um suposto observador. Por conseguinte, para se referir ao passado
do mundo ou mesmo para crer que tal passado existiu é necessário um campo
perceptivo presente (Cf. PhP, 240). Nesse sentido, para Merleau-Ponty, esse passado
não é algo que excede as estruturas perceptivas do corpo. Na verdade, o conjunto de
fatos de que o passado do mundo se compõe só pode ser revelado, segundo essa
perspectiva, por meio de constructos teóricos erigidos segundo as delimitações
conceituais fornecidas pela percepção. Qual estatuto teórico conceder então aos eventos
que compuseram esse passado? Eis a resposta de Merleau-Ponty: “a nebulosa de
Laplace não está atrás de nós, em nossa origem, ela está diante de nós, no mundo
cultural” (PhP, 494). Dado que para o filósofo todo ser concebível deve se moldar
segundo os parâmetros do ser percebido, segue-se que os entes que pretensamente
excedem essa estrita correlação são na verdade meras criações culturais que, embora
tentem descrever eventos independentes e anteriores ao ser humano, decorrem das
potencialidades cognitivas humanas.
Em um virulento artigo, Jean Desanti critica essa resposta ao problema dos entes
e situações inobserváveis. Desanti interpreta a posição do fenomenólogo da seguinte
maneira: “a terra, a natureza passam para o ‘mundo cultural’: elas não são mais ‘seres’,
mas significações adquiridas sobre o fundo inalienável de uma experiência original e
estritamente minha”
36
. Merleau-Ponty teria limitado aquilo que existe àquilo que se
manifesta para o sujeito. Por conseguinte, os eventos que excedem tais capacidades
seriam então concebidos como meras construções culturais. Assim, por exemplo, o
passado do mundo não consistiria em um conjunto de fatos ocorridos de maneira
autônoma, conforme advoga a visão científica, mas se reduziria a uma significação
tardiamente construída com base nos fenômenos percebidos. Para Desanti, trata-se de
uma tese inaceitável, que os eventos astronômicos que deram origem à Terra
ocorreram de maneira independente da experiência humana (a qual nem mesmo existia
quando da sua realização) e não podem, portanto, ser reduzidos a construções da cultura
humana.
Nas notas do curso A Passividade, Merleau-Ponty tenta responder às críticas
recebidas de Desanti. Nesse texto, o filósofo esclarece que ao localizar a nebulosa da
36
Desanti, J. T. Op. cit., p.71.
41
hipótese de Laplace no mundo cultural, apenas rejeitava que tal ente fizesse parte de um
em-si completamente independente da subjetividade humana. Para Merleau-Ponty, essa
concepção de em-si não pode nem mesmo ser pensada (já que todo ser concebível supõe
um testemunho perceptivo), de maneira que é impossível atribuí-la à nebulosa (Cf. IP,
172). Além disso, vale notar que Merleau-Ponty não defende que o ser do mundo é
contemporâneo à percepção humana. Na Fenomenologia da Percepção, o filósofo
esboça uma noção de passado do ser sem se comprometer com a idéia de um em-si
independente da subjetividade. Segundo esse livro, o mundo se manifesta como
porque a própria percepção é um processo temporal que não se abre para
possibilidades futuras mas também reúne em sua visada atual as perspectivas passadas.
Esse encadeamento de perspectivas passadas remeteria ao ser exterior na origem do
processo perceptivo
37
. Dessa maneira, a percepção atestaria um ser sensível anterior a
ela e que a alimentaria.
Serão essas respostas suficientes para sustentar as teses acerca do passado do
mundo e, no geral, acerca dos entes inobserváveis? Primeiramente, avaliemos a
tentativa de caracterizar o passado do mundo por meio da remissão da percepção ao ser
exterior que a motivaria. Tal esforço nos parece insuficiente, pois apenas atesta que o
ser que atualmente motiva a percepção não é constituído por ela, mas nada esclarece
acerca da história desse ser antes de se apresentar como percebido, justamente o que
está em questão com a hipótese da nebulosa. Em segundo lugar, quanto à réplica contida
em A Passividade, ela somente repete a estratégia básica da Fenomenologia da
Percepção (rejeitar a noção de ser em-si e conceber o ser do mundo com base na
aparição fenomênica), mas não acrescenta nenhuma nova evidência contra as objeções
de Desanti.
Vamos desenvolver por nossa conta a crítica de Desanti, a fim de tornar clara a
insuficiência da posição de Merleau-Ponty acerca do problema dos entes ou eventos
inobserváveis. Tal insuficiência decorre da confusão entre a concepção do ser como X e
a existência do ser concebido como X. Merleau-Ponty defende que qualquer concepção
possível do ser pressupõe um testemunho perceptivo e que, nesse sentido, qualquer
concepção ontológica é relativa à nossa experiência pré-objetiva, a qual fornece os
37
“O ato de olhar é indivisivelmente prospectivo, pois o objeto está no termo de meu movimento de
fixação, e retrospectivo, pois vai se dar como anterior à sua aparição, como o ‘estímulo’, o motivo ou o
primeiro motor de todo o processo desde o seu início” (PhP, 276-7).
42
padrões últimos de compreensão dos eventos e coisas componentes do mundo
38
. Daí
Merleau-Ponty afirmar que o passado do mundo não pode ser pensado como algo
independente das estruturas perceptivas atuais humanas (Cf. PhP, 240). No entanto,
julgamos que não se segue do fato de as concepções ontológicas serem relativas às
estruturas perceptivas humanas que a existência do ser assim concebida ocorra em
virtude dessas estruturas perceptivas
39
. Assim, embora Merleau-Ponty insista em que o
passado do mundo é concebível relativamente às estruturas perceptivas atuais, não se
segue daí que a existência desse passado decorra dessas estruturas ou que seja delas
dependente, tal como o filósofo parece inferir. Com efeito, Merleau-Ponty não admite
explicitamente que não é em virtude das estruturas perceptivas que o ser do mundo se
organiza, se sustenta e se modifica. Pelo contrário, o fato de que uma nebulosa deva ser
concebida segundo parâmetros perceptivos basta para ela ser localizada no mundo
cultural. O fenomenólogo não considera que tal nebulosa pudesse ser um ente que
existiu no universo físico bem antes de qualquer mundo cultural ter sido criado. Em
suma, ele não reconhece a existência autônoma e anterior do mundo para além da sua
concepção segundo as estruturas da atividade perceptiva.
É importante observar que nenhum filósofo tem a obrigação de reconhecer tal
autonomia e de, por conseguinte, desenvolver uma postura realista. No decorrer da
história da filosofia, diversas posturas anti-realistas foram assumidas coerentemente.
Aliás, notamos que Merleau-Ponty parece estar comprometido com uma delas, o
idealismo subjetivista. No entanto, ele jamais admitiu tal postura. Assim, sua filiação ao
idealismo não foi uma opção teórica, mas uma conseqüência extraída por seus críticos
ante algumas teses expostas na Fenomenologia da Percepção. Uma vez que Merleau-
Ponty não distingue claramente entre a concepção do ser (dependente dos parâmetros
perceptivos) e a existência do ser (independente de tais parâmetros), ele parece se
comprometer, na Fenomenologia da Percepção, com a redução de tudo o que existe
àquilo que se concebe segundo os parâmetros da percepção. Como acabamos de
mencionar, Merleau-Ponty se nega a admitir tal conseqüência e tenta responder a seus
críticos (Cf. IP, 172). Porém, conforme pretendemos mostrar a seguir, tal é o modo
38
O fenomenólogo concorda, nesse ponto específico, com a posição berkeleyana: “como dizia Berkeley,
mesmo um deserto nunca visitado tem pelo menos um espectador, e este somos nós mesmos quando
pensamos nele, quer dizer, quando fazemos a experiência mental de percebê-lo” (PhP, 370).
39
Servimo-nos aqui da distinção entre ser relativo a um esquema conceitual e existir em virtude de um
esquema conceitual, apresentada por Ernst Sosa em “Putnam’s Pragmatic Realism”. In: The Journal of
Philosophy, Vol. 90, n.12, 1993.
43
como o filósofo arma seu projeto na Fenomenologia da Percepção que é bastante
plausível a interpretação dessa última como um projeto idealista.
A correlação perceptiva
Vimos que ao realizar o projeto de reconduzir o ser objetivo à sua gênese na
experiência pré-objetiva, Merleau-Ponty define o ser do mundo como um conjunto de
eventos e coisas cujas características constitutivas são exatamente aquelas apreendidas
pela percepção. Dessa maneira, o filósofo exclui a possibilidade de que algo exceda a
manifestação perceptiva. Aqueles eventos ou propriedades que aparentemente
ultrapassam tal manifestação são considerados como constructos culturais tardios.
Investigaremos, nesta subseção, as razões teóricas que comprometem Merleau-Ponty
com tais teses.
O projeto filosófico da Fenomenologia da Percepção se enraíza em A Estrutura
do Comportamento, mais especificamente na tentativa de transformar a correlação entre
Gestalten (físicas, vitais ou psíquicas) e experiência perceptiva em um novo modelo
para esclarecer as relações entre natureza e consciência. Essa tentativa implica uma
interpretação transcendental dos resultados da Gestalttheorie, ou seja, implica
abandonar a perspectiva materialista que, segundo Merleau-Ponty, caracteriza toda
investigação psicológica (Cf. SC, 143), e trazer à luz o problema da constituição do
mundo objetivo por meio da experiência das Gestalten. Dessa maneira, o filósofo se
serve das pesquisas psicológicas para realizar uma redução fenomenológica moderada,
que não culmina em um sujeito transcendental puro como condição da experiência e sim
no corpo fenomenal entrelaçado em um campo de situações concretas. Tendo em vista
esse campo concreto, Merleau-Ponty tenta descrever a constituição da objetividade.
Em que medida essa estratégia geral vincula o filósofo às conseqüências
idealistas extraídas por seus críticos? Na apresentação de Merleau-Ponty à Sociedade
Francesa de Filosofia em 1946, Jean Beaufret aponta um problema contrário àquele
explicitado por Bréhier e Hyppolite. Vimos que esses autores não concordavam com a
derivação de conseqüências ontológicas das descrições da atividade perceptiva.
Beaufret, por sua vez, não rejeita tal derivação, mas lamenta que ela não tenha sido bem
realizada por Merleau-Ponty, que teria ficado preso ao vocabulário idealista de Husserl
(Cf. PP, 103). Seria, assim, a filiação ao idealismo husserliano a razão das dificuldades
de Merleau-Ponty. A pista oferecida por Beaufret nos parece profícua. Cabe agora
44
examinar se realmente a apropriação da fenomenologia husserliana por Merleau-Ponty
compromete-o com o idealismo.
Retomemos rapidamente alguns aspectos do projeto husserliano, a fim de avaliar
como Merleau-Ponty se serve do instrumental desenvolvido pelo filósofo alemão. Ao
menos a partir do texto A Idéia da Fenomenologia, composto por cinco palestras
ministradas em 1907, Husserl desenvolve a fenomenologia transcendental, uma
investigação filosófica que visa esclarecer de que maneira a possibilidade de conhecer
eventos e objetos mundanos se funda nas estruturas da consciência. Nesse texto, a fim
de delimitar tal vida subjetiva em seu caráter transcendental, Husserl primeiramente
propõe a suspensão da crença na existência do mundo e do sujeito humano empírico
(existência que compõe o que Husserl chama de transcendência). Em seguida, o filósofo
se dedica a estudar o puro fluxo de vivências da consciência (denominado de imanência
transcendental), ao qual não atribui nenhuma interpretação ontológica (por exemplo, se
tal fluxo é efeito de processos fisiológicos, se é manifestação de um espírito, etc.). Uma
vez executada tal redução fenomenológica, iniciam-se as investigações acerca da
constituição da objetividade por meio das vivências fenomênicas. Cumpre notar que a
análise dessas vivências, da imanência transcendental, não se limita aos conteúdos
internos da consciência. O critério pelo qual Husserl delimita os temas a serem
examinados é aquele da evidência, entendida como doação clara à apreensão
subjetiva
40
. Esse critério permite que os fenômenos mundanos sejam tematizados pela
fenomenologia transcendental. Por exemplo, quando se observa um cubo, sempre duas
ou três faces desse objeto se manifestam, e tais perspectivas são apreendidas com
evidência. O cubo aparece para a consciência humana como uma manifestação
fenomênica parcial, a qual não se confunde com a existência transcendente do cubo
(definida como sólido de seis faces iguais), a qual não se doa de uma maneira
fenomenologicamente evidente.
Embora os fenômenos apresentem os objetos mundanos, não se deve confundi-
los com tais objetos entendidos como entidades autônomas. Segundo Husserl, os
fenômenos são os modos de apresentação de objetos, perspectivas parciais pelas quais
coisas e eventos são apreendidos
41
. Tais modos de apresentação são subjetivos, no
sentido em que eles sempre remetem ao ponto de vista do observador; mas eles não são
40
Cf. Husserl, E. Die Idee der Phänomenologie Fünf Vorlesungen. Hua. II, Haag: Martinus Nijhoff,
1950, p.17-18.
41
Cf. Ibid., § 44-46.
45
internos à consciência, como, por exemplo, um ato de imaginação e seu conteúdo são.
Na verdade, para Husserl, os modos de manifestação fenomênicos delimitam um campo
neutro em relação à cisão entre interioridade mental e exterioridade mundana,
delimitam um campo em que o mundo se manifesta de maneira subjetiva sem ser uma
mera criação da consciência.
A primeira caracterização desse campo aberto após a redução fenomenológica é
o seu estrito caráter correlacional em relação à atividade subjetiva. Segundo Husserl,
todo fenômeno se relaciona a algum tipo de ato subjetivo pelo qual se manifesta e vice
versa. Explicita-se aqui o a priori da correlação, a regra segundo a qual na investigação
fenomenológica todo dado fenomenal deve ser remetido a um ato subjetivo e todo ato
subjetivo deve ser estudado em seu caráter intencional, ou seja, enquanto se dirige para
ou visa algo
42
. Essa regra direciona o desenrolar da investigação fenomenológica, a qual
pretende mostrar como os fenômenos se manifestam por meio dos atos subjetivos e
como, por meio do campo transcendental de fenômenos, a noção de objetividade é
constituída.
Cumpre notar que a investigação husserliana não se dedica a estudar fenômenos
particulares, mas sim a essência, ou seja, os aspectos invariantes que definem classes de
fenômenos
43
. Assim, por exemplo, não interessa examinar as características de um cubo
ou de uma casa percebida, mas sim a maneira pela qual fenômenos de objetos materiais,
com formas reconhecíveis visual ou tactilmente e que duram no tempo (quer dizer,
fenômenos com tais características eidéticas) se organizam em correlação com as
capacidades perceptivas humanas. Além disso, Husserl não pretende teorizar acerca do
ser dos objetos transcendentes, que o domínio fenomenológico abarca a
manifestação de tais objetos, mas não a sua existência transcendente. Dessa maneira,
Husserl mantém uma nítida distinção entre o objeto considerado como um ente existente
por si próprio e o objeto como conjunto de modos de doação subjetivos (objeto
intencional). Um exemplo de A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia
Transcendental deixa clara a restrição da fenomenologia ao estudo da aparição do ser,
sem se enveredar pela teorização acerca do próprio ser: “de uma árvore, pode-se
enunciar que ela queima, mas uma árvore percebida ‘enquanto tal’ não pode queimar”
44
.
Husserl exemplifica aqui a diferença entre fenômeno e objeto: o primeiro é um
42
Ibid., p.73.
43
Id., ibid.
44
Husserl, E. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie.
Hua. VI. Haag: Martinus Nijhoff, 1962, § 70, p.245.
46
componente da correlação fenomenológica entre pólo subjetivo e objeto intencional e só
se sustenta enquanto vigora tal correlação; o segundo é um ente autônomo submetido
a modificações físico-químicas. Atribuir tais modificações ao fenômeno seria confundir
o domínio da atitude fenomenológica com o domínio dos entes naturais estudados pelas
ciências empíricas.
É claro que Husserl não almeja duplicar o mundo, como se houvesse os objetos
neles mesmos e, diferentes desses, os objetos intencionais ou fenomenais. Os
fenômenos são justamente a manifestação do objeto transcendente. No entanto, Husserl
parece considerar que nem todas as propriedades que se sabe pertencer aos objetos
transcendentes podem ser verificadas por meio dos modos de doação fenomênico
(conforme mencionamos quanto ao exemplo do cubo). Quer dizer que o objeto puro e
simples pode envolver um complexo de propriedades não necessariamente apreensíveis
fenomenalmente. Daí a necessidade de manter a diferença entre objeto puro e simples
ou transcendente e manifestação fenomênica. É verdade que o objeto intencional não é
um outro objeto, completamente diferente do objeto transcendente, e sim o modo como
esse objeto se manifesta. Mas essa tese não implica que a totalidade das propriedades
objetivas de direito se manifestará como fenômeno.
Voltemos agora ao projeto fenomenológico de Merleau-Ponty. Certamente esse
filósofo herda e reconfigura vários temas da fenomenologia husserliana, estabelecendo
com essa última uma relação complexa, cuja amplitude tentaremos delinear no quinto
capítulo. Mas que dizer especificamente do a priori da correlação? Merleau-Ponty
mantém tal princípio? Certamente não há, em seus textos, a assunção de regras
universais a priori, que dirigem todas as descrições particulares. Trata-se, nesses textos,
justamente de descrever diferentes casos concretos para explicitar as maneiras típicas
pelas quais o corpo humano se insere no mundo percebido. No entanto, à medida que se
expõem seus resultados, as descrições fornecidas por Merleau-Ponty instauram uma
rígida correlação entre o mundo percebido e os poderes perceptivo-motores do corpo
humano. Por um lado, o filósofo defende que “é essencial à minha visão se referir não
somente a um pretenso visível, mas ainda a um ser atualmente visto” (PhP, 429). Dessa
maneira, a análise dos episódios perceptivos sempre envolve a exposição de alguma
situação mundana efetiva. Por outro lado, lembremos que as capacidades perceptivas
humanas portam “o projeto de todo ser possível” (PhP, 411), de maneira que a
investigação de qualquer evento do mundo remete a alguma capacidade perceptiva. Por
conseguinte, ao menos no nível das funções perceptivas, Merleau-Ponty assume uma
47
estrita correlação entre pólo subjetivo e mundano, de modo que, nessa esfera, vigora um
princípio descritivo semelhante ao a priori da correlação husserliano, chamado por nós
de correlação perceptiva.
Deve-se notar que a correlação perceptiva transforma significativamente a idéia
de a priori da correlação, formulada por Husserl. A mútua relação acentuada por
Merleau-Ponty não ocorre entre puras essências e puros atos subjetivos (tal como
sugeria Husserl ao menos em A Idéia da Fenomenologia), mas entre fenômenos
concretos e o corpo fenomenal. Esses fenômenos concretos não são, para o filósofo
francês, representações de um ser que em si mesmo poderia divergir daquilo que
aparece, mas sim, conforme sua teoria da atividade perceptiva, a reconstituição do modo
pelo qual os eventos e entes materiais existem
45
. Vimos que para Merleau-Ponty o que
se manifesta fenomenalmente é uma perfeita reconstituição do ser do mundo,
reconstituição decorrente das sincronizações de atitudes perceptivo-motoras ante as
solicitações sensíveis. Tal perfeição seria fundada em um pacto natural segundo o qual
as propriedades pelas quais as coisas e eventos se organizam são exatamente aquelas
apreendidas pela subjetividade. E uma vez que aquilo que se manifesta para a percepção
é o próprio ser das coisas (ainda que numa progressão interminável), de direito a
correlação perceptiva proposta por Merleau-Ponty apreende o mundo em sua total
complexidade. Assim, a idéia de a priori da correlação (a qual Husserl formulara como
critério de demarcação epistemológica do campo fenomenológico) passa a servir de
princípio de delimitação ontológica, pelo qual se decide sobre aquilo que é: tudo o que
pode existir deve ser apreensível pelas capacidades perceptivas.
Para Merleau-Ponty, o ser das coisas e do mundo é exatamente o que se
manifesta fenomenalmente (Cf. PhP, 455). Ele não considera que possa haver
propriedades que não sejam apreensíveis diretamente pela percepção. Dessa maneira, a
diferença entre objeto puro e simples e fenômenos é dissolvida. O estudo desses últimos
pretende esgotar as propriedades do primeiro. Essa postura é confirmada no texto “O
metafísico no homem”, de 1947. Ali, o filósofo assevera que há um “fato metafísico
fundamental”, ou seja, uma base sobre a qual toda sua teoria ontológica se erige. Esse
fato fundamental se exprime na dupla afirmação: “eu estou certo de que há ser sob a
45
Por exemplo, Merleau-Ponty afirma que “a perspectiva não me aparece como uma deformação
subjetiva das coisas, mas ao contrário como uma das suas propriedades, talvez sua propriedade essencial”
(SC, 201). Assim, o fato de que as coisas se manifestam parcialmente, segundo uma determinada
perspectiva, deve ser considerado um fator componente do ser de tais coisas, então definidas como
intrinsecamente parciais, inacabadas.
48
condição de não buscar outro tipo de ser que o ser-para-mim”
(SnS, 114). Dessa
maneira, a investigação ontológica deve se limitar a estudar o ser passível de apreensão
subjetiva. Dada essa tese, acreditamos que dificilmente Merleau-Ponty pode recusar a
conseqüência de ter se filiado a um certo tipo de idealismo, conforme Alquié
apontara.
Vimos que Jean Beaufret suspeitava que as dificuldades na doutrina da
Fenomenologia da Percepção vinham de certos princípios da obra de Husserl. Porém,
não é verdade que Merleau-Ponty simplesmente se filiou ao idealismo transcendental
husserliano. O filósofo francês o modifica em uma doutrina própria, com a qual
dificilmente Husserl concordaria. Husserl mantém uma distinção entre atitude
transcendental e atitude natural, entre objeto intencional e objeto puro e simples.
Merleau-Ponty parece unificar os domínios da atitude transcendental (referente à
manifestação do ser) com aquele da atitude natural (referente à caracterização do ser).
Dessa maneira, faltam instrumentos teóricos para reconhecer qualquer tipo de ser que
exceda aquilo que é apreensível diretamente pelas capacidades perceptivas.
O fato de que Merleau-Ponty parece não dispor de meios teóricos, nos anos
quarenta, para anular as conseqüências idealistas de seu projeto filosófico pode ter
motivado a avaliação tardia de que certos problemas da Fenomenologia da Percepção
eram insolúveis (Cf. VI, 250, julho 1959). Vimos que Merleau-Ponty admitira partir,
nessa obra, da ontologia comum (que opõe sujeito e objeto) e buscar um meio
ontológico neutro, anterior à tal cisão. Porém, como resultado, parece ter favorecido
excessivamente as estruturas subjetivas, as capacidades perceptivas humanas. Assim, o
meio ontológico a que o filósofo efetivamente chega se limita a uma expressão dos
poderes da subjetividade encarnada. É verdade que Merleau-Ponty, nos anos quarenta,
rejeitou a idéia de um ser objetivo completamente alheio às estruturas subjetivas mas
não consegue conceber o mundo senão como subjetivo, quer dizer, como limitado às
estruturas perceptivas humanas
46
. Daí a incapacidade de a Fenomenologia da
Percepção superar a cisão entre sujeito e objeto: tal obra somente favorece um dos
termos dessa cisão, mas, dessa forma, ainda se submete a ela. É essa incapacidade
inerente ao projeto da Fenomenologia da Percepção que os textos seguintes de
Merleau-Ponty tentarão corrigir, como veremos no decorrer desta tese.
46
“O sujeito é ser-no-mundo e o mundo permanece ‘subjetivo’ pois sua textura e articulações são
desenhadas pelo movimento de articulação do sujeito” (PhP, 491-2).
49
C) O desenvolvimento da ontologia de Merleau-Ponty
Tentamos expor, na seção anterior, de que modo a investigação fenomenológica
de Merleau-Ponty já envolve teses sobre o ser do mundo e mesmo do universo em geral.
Essa exposição nos leva a rejeitar a interpretação de que a Fenomenologia da
Percepção é apenas uma obra preliminar em relação ao desenvolvimento de uma
ontologia por Merleau-Ponty
47
. Também acompanhamos que certas posições defendidas
naquele livro implicam conseqüências idealistas, as quais o filósofo reluta em assumir.
É importante notar, tal como comenta Emmanuel de Saint Aubert, que as críticas
recebidas por Merleau-Ponty repercutiram nas reflexões posteriores do filósofo: ele não
só retorna várias vezes ao conteúdo de tais críticas para tentar respondê-las mas também
insiste na necessidade de esclarecer o alcance ontológico dos resultados da
Fenomenologia da Percepção, de maneira a evitar interpretações como aquelas de
Alquié e Desanti (Cf. VI, 228, 234, fev. 1959)
48
. Haverá, por conseguinte, um esforço
da parte de Merleau-Ponty para elucidar e desenvolver suas teses ontológicas, o qual
tentaremos acompanhar em detalhe
49
. Veremos que Merleau-Ponty formulará uma
concepção não idealista do ser que motiva a percepção, sem, no entanto, definir tal ser
como em-si objetivo.
A fim de facilitar metodologicamente a exposição desse resultado final da
ontologia de Merleau-Ponty, identificamos três linhas de reflexão pelas quais ele se
realiza
50
. Na primeira delas, Merleau-Ponty retoma alguns temas esboçados na
Fenomenologia da Percepção a fim de retificar algumas das teses ali expostas. Esse
percurso se compõe principalmente dos cursos A Instituição, A Passividade e A
Natureza; nós o exploramos no terceiro capítulo. Na segunda linha, Merleau-Ponty
aprimora a idéia de que a investigação ontológica deve ser indireta, princípio que já está
em funcionamento em A Estrutura do Comportamento e Fenomenologia da Percepção.
Os principais textos que servem a tal propósito são Notas de Cursos 1959-1961 e O
47
Posição defendida por R. Barbaras em De l’être du phénomène. Sur l’ontologie de Merleau-Ponty. Ed.
supra, p.12.
48
Após expor as críticas de Alquié a Merleau-Ponty, Saint Aubert comenta: “como se pode imaginar,
esse retrato de idealista, mais ainda que os outros, acabou por desconcertar o interessado, que ruminará a
crítica de Alquié até os últimos manuscritos envolvendo O Visível e o Invisível e Ser e Mundo(Saint
Aubert, E. Op. cit., p.29). Em seguida, para legitimar seu comentário, Saint Aubert transcreve diversos
textos inéditos em que Merleau-Ponty analisa as críticas de Alquié.
49
Rejeitamos, assim, a tese de M. C. Dillon, segundo a qual toda a ontologia ulterior Merleau-Ponty é
apenas uma explicitação de teses prefiguradas na Fenomenologia da Percepção. Cf. M. C. Dillon,
Merleau-Ponty’s Ontology. Evanston: Northwestern Univ. Press, 1997, p.155.
50
Merleau-Ponty não distingue, tal como as exporemos, tais linhas. No entanto, tal distinção é bastante
útil para reconhecer nos diversos textos e cursos do autor uma progressão rumo à sua ontologia final.
50
Olho e o Espírito, os quais serão estudados no capítulo quarto. Na terceira linha,
Merleau-Ponty elabora uma longa reflexão crítica, espalhada em diversos textos, acerca
da fenomenologia, e tenta extrair dessa doutrina uma noção ampliada do ser, não mais
limitada às capacidades subjetivas de discriminação de fenômenos. Essa reflexão será
exposta em nosso quinto capítulo. Tentaremos, com tal divisão temática, levar em conta
os principais momentos da elaboração da ontologia de Merleau-Ponty, que culmina com
o texto inacabado O Visível e o Invisível, o qual analisaremos no sexto capítulo desta
tese.
Antes de expor os três caminhos pelos quais acreditamos que a ontologia de
Merleau-Ponty se desenvolve, vamos nos dedicar a um outro tema, em nosso segundo
capítulo, com repercussões claras sobre a reflexão ontológica. Trata-se da investigação
da linguagem. No curso A Passividade, o filósofo admite que na Fenomenologia da
Percepção havia acentuado demasiadamente a experiência sensível de coisas e deixado
de lado os aspectos culturais imediatamente envolvidos na doação fenomênica (Cf. IP,
174). A Fenomenologia da Percepção concebe a atividade perceptiva como um contato
com um fundo de natureza universalmente partilhado sob as diferentes culturas (Cf.
PhP, 339-340). Mas, conforme Merleau-Ponty defende nos anos cinqüenta, essa
51
artísticas, a qual abala as categorias filosóficas básicas (tais como sujeito, objeto,
sentido - Cf. VI, 219, jan. 1959) e sugere uma renovação do discurso ontológico. A crise
da cultura é, assim, uma oportunidade para forjar categorias que melhor exprimam o
contato humano com o real. A meta de Merleau-Ponty é explicitar filosoficamente uma
nova noção de ser que já se deixaria entrever em meio às convulsões da vida cultural
contemporânea (Cf. NC, 37). Desse modo, como veremos no decorrer de nossos
capítulos, a formulação de uma ontologia por Merleau-Ponty não é uma tarefa que se
limita a sanar alguns problemas teóricos de seus primeiros textos, mas um
empreendimento que visa renovar as bases dos sistemas simbólicos e das relações
interpessoais da civilização contemporânea.
Capítulo II – Investigações sobre a linguagem
Sinopse
Neste capítulo, contrastamos a relação entre atividade lingüística e perceptiva
tal qual apresentada pela Fenomenologia da Percepção (baseada na tese do sentido
gestual ou emotivo das palavras) com aquela desenvolvida após a apropriação da
lingüística de Saussure. A postura final de Merleau-Ponty quanto a essa relação servirá
de princípio metodológico pelo qual a sua ontologia será desenvolvida.
A) Expressividade e consciência silenciosa
O papel da linguagem
A partir dos anos cinqüenta, Merleau-Ponty almeja alargar suas pesquisas
fenomenológicas de modo a incluir o campo do conhecimento e da cultura em geral
entre os temas estudados (Cf. PII, 41). A Fenomenologia da Percepção, julga o filósofo
em 1954, permanece excessivamente centrada na análise da apreensão sensível solitária
de coisas ou situações e não atribui o devido peso às inter-relações culturais, as quais,
como veremos, interferem na doação fenomênica (Cf. IP, 174). No livro de 1945,
Merleau-Ponty simplesmente considera a atividade perceptiva como fundante de todos
os demais atos subjetivos (Cf. PhP, V) e, na medida em que admite que tal atividade
liga todos os sujeitos a um mundo natural aquém de toda particularidade antropológica
(Cf. PhP, 381), também a considera fundante das relações intersubjetivas. Porém, nos
anos cinqüenta, o filósofo admite que as capacidades perceptivas são ao menos
parcialmente moldadas pelo contexto social e cultural em que se desenvolvem
1
. A
percepção não ofereceria, dessa maneira, conteúdos pré-culturais disponíveis a
quaisquer sujeitos; a atividade perceptiva seria parte de uma experiência global
composta por diversos elementos civilizacionais (tais como hábitos, crenças, e
conhecimentos técnicos).
Uma conseqüência dessa nova delimitação da atividade perceptiva é a ausência
de uma passagem direta entre a vivência sensível e as inter-relações sociais. Na
Fenomenologia da Percepção, a atividade perceptiva é descrita não como um poder
ligado à individualidade de cada corpo, mas como um conjunto de operações anônimas
universalmente partilhadas por todos os humanos de mesma constituição
1
“A ‘coisa natural’ só aparece como tal a uma cultura. Há uma história da percepção” (IP, 178).
53
psicofisiológica (Cf. PhP, 45-6, 59, 505). Além disso, os conteúdos percebidos, longe de
serem concebidos como eventos privados, são apresentados como perspectivas do
mundo acessíveis aos diferentes sujeitos perceptivos
2
. Tais conteúdos não são átomos
singulares, sem comum medida com a experiência alheia, mas cristalizações de
situações típicas pelas quais o mundo se apresenta a todos os sujeitos perceptivos, os
quais, por conseguinte, não estão jamais isolados em vivências perceptivas
absolutamente individuais
3
. Desse modo, segundo a Fenomenologia da Percepção, as
experiências sensíveis não implicam privacidade e são organizadas como um campo
intersubjetivamente partilhável. Porém, se, tal como Merleau-Ponty admite nos anos
cinqüenta, a percepção envolve parâmetros culturais e sociais em suas capacidades
discriminativas, então ela deixa de valer como instância imediata de mútua
compreensão silenciosa.
É verdade que Merleau-Ponty não descarta o caráter partilhável da vida sensível
nos anos cinqüenta. Em A Prosa do Mundo (de 1951-1952), Merleau-Ponty defende que
“há uma universalidade do sentir e é sobre ela que repousa (...) a generalização do
meu corpo, a percepção de outrem” (PM, 191). Assim, o sujeito, considerado como
corpo que percebe, é um organismo anônimo que não exclui a perspectiva de outros
sujeitos perceptivos. No entanto, tal como pretendemos mostrar, nessa época, o filósofo
parece reconhecer que a universalidade do sentir não se impõe por si própria e não pode
valer, isoladamente, como garantia de compreensão intersubjetiva. O estudo das
relações intersubjetivas e culturais efetivas, tal como pretendido por Merleau-Ponty para
alargar as análises da Fenomenologia da Percepção, exige a exploração detalhada de
um outro tópico, a saber, o da linguagem. Como veremos, será apenas por meio da
linguagem que a experiência sensível, marcada pelo contexto histórico-cultural, poderá
realmente valer como universalidade sensível
4
.
Não pretendemos, neste capítulo, reproduzir toda a complexidade das análises
elaboradas por Merleau-Ponty sobre a linguagem. Apenas tentaremos esboçar os traços
2
“As experiências de outrem ou aquelas que eu obteria me deslocando apenas desenvolvem o que está
indicado pelos horizontes de minha experiência atual e a ela não acrescentam nada” (PhP, 390).
3
“Consideremos por exemplo o sentir. (...) Entre essa experiência do vermelho que eu tenho e aquela de
que os outros me falam nenhuma confrontação direta será alguma vez possível. (...) Entretanto, a
individualidade dessas experiências não é pura. (...) O vermelho concreto se destaca então sobre um fundo
de generalidade e é por isso que, mesmo sem passar ao ponto de vista de outrem, eu me apreendo em
minha percepção como um sujeito perceptivo e não como uma consciência sem igual” (PhP, 514-5).
4
Em um texto de 1951, em que apresenta um projeto de ensino por ocasião de sua candidatura ao Collège
de France, Merleau-Ponty afirma que “nos é necessário ver como nossa própria encarnação, pelo uso
lingüístico que fazemos do nosso corpo, é o que nos permite, de uma certa maneira de não permanecer
confinados nos limites de nosso ponto de vista tal como ele é definido pelo corpo ‘natural’” (PII, 24).
54
gerais de duas concepções de linguagem presentes em sua obra, a primeira exposta na
Fenomenologia da Percepção e a segunda elaborada no início dos anos cinqüenta.
Nossa principal meta será esclarecer que ao desenvolver sua segunda concepção de
linguagem (a qual implica uma autocrítica quanto a alguns aspectos da primeira),
Merleau-Ponty formula as bases da estratégia metodológica pela qual se dedicará à sua
ontologia madura.
A expressividade da fala
Antes de expor as teses maduras de Merleau-Ponty sobre a linguagem e suas
relações com a percepção, vamos acompanhar suas reflexões iniciais sobre o tema, de
modo a tornar explícitas, em seguida, as modificações propostas nos anos cinqüenta. No
capítulo da Fenomenologia da Percepção intitulado “O corpo como expressão e a fala”,
Merleau-Ponty defende a tese de que o pensamento não preexiste à sua expressão
lingüística. O argumento para tal é um modus tollens, irrecusável quanto à sua forma: se
a fala pressupusesse um pensamento anterior, então sempre haveria clareza antecipada
sobre aquilo que vai ser dito. Porém não essa clareza. Logo, não um pensamento
prévio condicionando a fala. Para garantir a verdade da segunda premissa, Merleau-
Ponty evoca uma situação bastante habitual para oradores e escritores: a tomada de
consciência de certas idéias apenas quando da sua formulação explícita (Cf. PhP, 206).
Essa situação revela que, longe de ser um veículo exterior de significações intelectuais
prévias, a fala realiza o pensamento.
Pode-se apresentar como exceção à evidência fornecida por Merleau-Ponty as
situações em que os sujeitos têm plena clareza da sua intenção intelectual bem antes de
a formularem explicitamente (quando se quer saber as horas ou pedir alguma
informação, por exemplo). De fato, o filósofo admite a existência desse tipo de situação
lingüística, em que a fala somente repete um sentido sedimentado, sem nenhuma
intenção criativa. Trata-se, nesse caso, da fala secundária, a qual traduz um pensamento
já delineado anteriormente (Cf. PhP, 446). É preciso distinguir desse uso reprodutivo da
linguagem, uma fala originária, a qual, formula um sentido inédito. É no caso dessa fala
originária que o sujeito não pensa previamente o sentido daquilo que diz, pois o seu
pensamento será justamente produzido pelo ato de expressão. Não há, nesse caso, o
apelo a idéias já estabelecidas (tais como “as horas” ou “o caminho”, no caso de
questões sobre horários e localizações), que são então meramente representadas por
vocábulos, mas sim a aplicação de um poder de criar sentido por meio das próprias
55
palavras. A fala se aproxima, assim, da intencionalidade gestual, a qual também
dispensa uma representação intelectual prévia do fim a ser alcançado pelo corpo. Os
gestos seguem uma inteligibilidade espontânea do corpo, que sabe se pôr em situação
sem calcular intelectualmente os ângulos e distâncias envolvidos em seus movimentos.
Para Merleau-Ponty, tanto a fala quanto os gestos são casos de um poder geral pelo qual
o corpo utiliza suas capacidades para organizar um meio significativo (Cf. PhP, 221).
Merleau-Ponty considera que a operação expressiva da fala difere em ao menos
um ponto das demais intencionalidades corporais. Trata-se do fato de que a fala se
sedimenta e institui um saber intersubjetivo. As significações criadas pela fala
originária de um sujeito podem ser retomadas por outros e se tornarem um recurso
expressivo disponível a vários falantes. Na verdade, crê Merleau-Ponty, todas as
significações cristalizadas e repetidas pela fala secundária foram em algum momento
significações pronunciadas pela primeira vez e que fixaram um sentido inexistente
outrora (Cf. PhP, 226). Desse ponto de vista, a fala originária alimenta a fala secundária.
Porém, o filósofo nota que o contrário também ocorre: a fala originária supõe um
sistema lingüístico devidamente estabelecido, composto por um vocabulário e uma
sintaxe definida, o qual serve de base para que uma significação inédita seja criada.
assim uma circularidade inerente ao processo da fala: cada ato veiculando um novo
sentido se ergue de um sistema lingüístico previamente disponível, o qual, por sua vez,
não é senão uma sedimentação de inúmeros atos que outrora criaram um sentido inédito
(Cf. PhP, 229).
Merleau-Ponty expõe duas conseqüências da sedimentação da linguagem. A
primeira delas é a idéia de que um pensamento independente da expressão
lingüística. Dado que a maior parte das falas cotidianas apenas reitera formas
expressivas cujas significações são mutuamente partilhadas e não exigem nenhum
esforço compreensivo, parece então que a atividade lingüística decorre de um
pensamento conceitual anterior às palavras. Cria-se assim a ilusão de que uma vida
conceitual da consciência independente das habilidades expressivas. Contudo, o
pensamento, entendido como posse de idéias claras, é, segundo Merleau-Ponty, um
resultado da fala originária e não sua condição (Cf. PhP, 446).
A segunda conseqüência da sedimentação da fala é a idéia de verdade, no
sentido de desvelamento de uma realidade independente dos sujeitos. Por meio da
linguagem, teorias explicativas dos eventos do mundo e da história do universo são
formuladas. No entanto, para Merleau-Ponty, a tentativa de apresentar pela linguagem
56
um estado de coisas dela completamente independente é uma expectativa gerada pela
própria atividade expressiva, a qual se faz esquecer em prol daquilo que é significado
(Cf. PhP, 459). A linguagem nos dirige diretamente para os referentes dos termos
usados e apaga o fato de que a delimitação de tais referentes ocorre por meio dos
recursos lingüísticos disponíveis. Para Merleau-Ponty, não se tem acesso a um universo
pura e simplesmente independente dos sujeitos, mas sempre a uma apresentação
particular da realidade decorrente de um determinado uso das significações
lingüísticas.
As duas conseqüências da sedimentação da linguagem (as idéias de um
pensamento e de uma verdade independentes dos meios de expressão) devem ser
matizadas como ilusões necessárias do processo de funcionamento da linguagem.
Afinal, segundo a Fenomenologia da Percepção, não um pensamento transcendente
à fala (que essa tentaria traduzir) nem acesso teórico a uma realidade absolutamente
independente da referência lingüística. Em suma, essas duas idéias devem ser tomadas
como resultados da atividade expressiva e devem remeter a essa atividade como sua
condição de possibilidade.
O problema do sentido gestual das palavras
A subseção anterior mostra que a Fenomenologia da Percepção antecipa o
estudo da linguagem como fundante do saber intersubjetivo e da noção de verdade, tal
como Merleau-Ponty desenvolve nos anos cinqüenta. No entanto, tal análise padece de
dificuldades reconhecidas pelo próprio autor. No Visível e o Invisível, o filósofo afirma
que a ligação entre os capítulos sobre o cogito e sobre a linguagem da Fenomenologia
da Percepção não foi bem feita (Cf. VI, 227, fev. 59). Tentemos entender tal juízo.
Segundo a Fenomenologia da Percepção, sob a atividade subjetiva exprimida em
formulações predicativas (pelas quais o sujeito pode se referir linguisticamente a si
mesmo), há um contato pré-reflexivo da consciência perceptiva consigo própria anterior
à linguagem. Na Fenomenologia da Percepção, esse contato é imprescindível para que
o sujeito unifique todos os seus atos perceptivos particulares, pelos quais se engaja nas
situações mundanas. Se o sujeito “se ignorasse, ele seria, com efeito, uma coisa, e nada
poderia fazer com que ele em seguida se tornasse consciência” (PhP, p.463), defende o
filósofo. Desse modo, todos os atos perceptivos são remetidos a um pensamento geral
tácito (Cf. PhP, 459), ou, do contrário, não haveria subjetividade (no sentido de um foco
de ações presentes a si mesmas), já que essa se reduziria a um agregado de eventos
57
causais
5
. Desse ponto de vista, o cogito tácito (compreendido como uma experiência
silenciosa de si mesmo enquanto ser consciente) funda todos os engajamentos
particulares da consciência. Desde então, a expressão lingüística somente continua a
atividade perceptiva e a esta remete como seu fundamento
6
. Merleau-Ponty sugere,
dessa maneira, que todas as significações lingüísticas decorrem da experiência
perceptiva silenciosa
7
. Dessa perspectiva, a linguagem se torna um veículo secundário,
uma tradução de uma apreensão imediata do sentido das vivências pela consciência
perceptiva
8
.
Essa análise do cogito tácito soa incompatível com o capítulo “O corpo como
expressão e a fala”, segundo o qual a linguagem condiciona a referência da consciência
a si mesma. Nesse capítulo, Merleau-Ponty repudia a idéia de um pensamento geral
tácito, pois defende que todo pensamento se constitui pela mobilização das significações
disponíveis rumo a um sentido novo
9
. A idéia de que haveria um tal pensamento tácito,
um contato imediato de si consigo é, desse ponto de vista, uma ilusão decorrente do
acesso imediato aos pensamentos sedimentados. Mas esse acesso não implica haver
uma síntese dos pensamentos prévia à linguagem. Na verdade, conforme tal perspectiva,
o sujeito toma contato paulatinamente com seus pensamentos, à medida que os constrói
por meio do exercício interminável da expressão, e esse contato não tem seu sucesso
antecipado por uma consciência silenciosa geral que garantiria de antemão o sentido de
todos os atos expressivos particulares.
Como se vê, por um lado, Merleau-Ponty defende que um pensamento silencioso
funda a linguagem e atribui sentido às palavras; por outro, o autor expõe que é a
expressividade lingüística que possibilita tal pensamento silencioso. Cabe aqui
perguntar por que o autor chega a esse tratamento paradoxal da linguagem na
Fenomenologia da Percepção. Para responder, notemos que o filósofo defende haver na
linguagem diferentes níveis especializados de significação. Seria assim possível, por
5
Minha visão, por exemplo, é bem ‘pensamento de ver’ se por isso se quer dizer que ela não é
simplesmente uma função como a digestão ou a respiração, um feixe de processos recortados em um
conjunto que acontece ter um sentido, mas que ela mesma é este conjunto e este sentido, essa
anterioridade do futuro em relação ao presente, do todo em relação às partes” (PhP, 463).
6
“Temos a experiência de nós mesmos, desta consciência que somos, é sobre essa experiência que se
medem todas as significações da linguagem e é ela que faz com que a linguagem justamente queira dizer
algo” (PhP, X).
7
A linguagem “pressupõe uma consciência da linguagem, um silêncio da consciência que envolve o
mundo falante e no qual primeiramente as palavras recebem configuração e sentido” (PhP, 462).
8
Na consciência perceptiva, “vê-se aparecer não somente o que as palavras querem dizer, mas também o
que as coisas querem dizer” (PhP, X).
9
“O pensamento não é nada de ‘interior’. Ele não existe fora do mundo e das palavras” (PhP, 213).
58
exemplo, diferenciar o puro material sonoro, a intenção verbal (ou a “fisionomia” pela
qual a palavra é apreendida) e o conceito veiculado pelos vocábulos (Cf. PhP, 227).
Essa distinção torna compreensível certas patologias em que os doentes conseguem ler
um texto embora não o entendam (Cf. PhP, 212). Nesse caso, embora tenham perdido a
camada conceitual da linguagem, esses doentes ainda contam com a fisionomia
existencial da linguagem. Essa fisionomia das palavras seria a camada originária de
significação, camada pela qual as palavras podem ser reconhecidas por seu valor
emotivo ou por induzirem uma certa mímica gestual da sua pronúncia (Cf. PhP, 212).
Merleau-Ponty defende que é por meio desse sentido gestual ou emotivo que a
expressividade criadora da fala se manifesta
10
. Assim, a criação de sentido não ocorre
diretamente sobre os conceitos, mas no nível da significação gestual ou emotiva da
linguagem, a qual é diretamente modulada pela fala e transformada então em resultados
inéditos.
Como tal significação gestual ou emotiva se forma? Segundo Merleau-Ponty,
trata-se da expressão verbal de situações vividas pelo corpo. A palavra “granizo”,
exemplifica o filósofo (Cf. PhP, 461-2), exige uma determinada modulação do aparelho
fonador para ser pronunciada. O sentido de tal palavra, correlato a tal “gesticulação”
verbal, não é senão o modo como o objeto referido é apreendido pela experiência
humana
11
. Por conseguinte, o sentido gestual das palavras (aquele que permite a
produção de significações inéditas) corresponde a padrões da experiência muda do
corpo.
Merleau-Ponty estende essa análise e julga resolver o espinhoso problema da
origem histórica da linguagem por meio do sentido gestual. Cada língua teria surgido de
“um sistema de expressão muito reduzido mas tal que, por exemplo, não seria arbitrário
chamar de luz a luz se se chama de noite a noite” (PhP, 218). Esses vocábulos
primitivos da linguagem exprimiriam a essência emocional de experiências típicas com
que o corpo se defronta. Assim, ao menos em seu início, as línguas não seriam formadas
por vocábulos arbitrários, mas por palavras que figurariam diretamente as situações
vividas.
10
“Nós descobrimos sob a significação conceitual das palavras uma significação existencial, que não é
somente traduzida por elas, mas que as habita e é delas inseparável” (PhP, 212). “A significação
conceitual se forma por antecipação a partir de uma significação gestual que, ela, é imanente à fala” (PhP,
209).
11
Merleau-Ponty cita o “espanto diante destes grãos duros, friáveis e dissolventes que caem prontos do
céu” (PhP, 462) como componentes do sentido de “granizo”.
59
Dificilmente essa hipótese da origem das línguas pode ser testada, uma vez que
não há registros que comprovem se as línguas realmente se originaram como um
reduzido sistema expressivo ligado diretamente à experiência. Os exemplos
apresentados por Merleau-Ponty pouco convencem, que “luz” e “noite” são
vocábulos contemporâneos cujas transformações lingüísticas podem ser acompanhadas,
e não palavras originárias, pelas quais os primeiros falantes exprimiram sua vivência do
mundo. Permanece, ao menos, a sugestão geral de Merleau-Ponty de que certas
palavras, ainda que posteriormente modificados pelo uso, podem exprimir diretamente
certas experiências típicas do corpo. As experiências assim exprimidas comporiam o
sentido gestual ou emotivo das palavras. Julgamos tal tese bastante problemática, pois,
segundo ela, a camada de significação a que se atribui a capacidade expressiva
(capacidade que não seria condicionada por nenhum pensamento anterior à linguagem)
é justamente aquela que depende da consciência silenciosa do corpo para ser formada.
Assim, a propriedade de criação de pensamentos concedida por Merleau-Ponty à
expressividade lingüística não pode ser coerentemente compreendida, que o meio
pelo qual tal expressividade realizar-se-ia (o sentido gestual ou emotivo) é apresentado
como uma tradução do pensamento silencioso da consciência perceptiva. Daí o caráter
paradoxal da análise da linguagem pela Fenomenologia da Percepção: Merleau-Ponty
oscila entre a autonomia do poder expressivo e seu condicionamento pela consciência
silenciosa porque atribui essas duas características incompatíveis à mesma camada da
linguagem, aquela do sentido gestual ou emotivo.
Julgamos que a dificuldade da Fenomenologia da Percepção (apontada por O
Visível e o Invisível) em harmonizar expressividade lingüística e consciência silenciosa
não se resolve. Em nossa leitura, Merleau-Ponty chega a formular uma reflexão
coerente acerca das relações entre ambas após estudar a lingüística de Saussure, como
veremos em seguida.
B) Apropriação da lingüística de Saussure
O escopo da expressividade
Ao acentuar o poder da expressividade lingüística e conceber de uma nova
maneira (não como tradução direta) o enraizamento sensível da linguagem, os estudos
desenvolvidos por Merleau-Ponty nos anos cinqüenta dissolvem o paradoxo das análises
60
da Fenomenologia da Percepção sobre a atividade lingüística
12
. Nesta seção,
acompanharemos essa ênfase na expressividade, e na próxima exporemos como
Merleau-Ponty articula linguagem e experiência silenciosa.
Em 1951, o filósofo anuncia que escreve um livro sobre o poder expressivo da
linguagem na literatura (Cf. PII, 44). Com essa opção, Merleau-Ponty apela a um
âmbito em que a expressividade criadora é bastante visível, de modo a ser mais fácil
caracterizá-la. No resumo do curso Investigação sobre o uso literário da linguagem,
ministrado em 1952-3, o filósofo lamenta que a maioria das reflexões sobre a linguagem
considere excessivamente os enunciados prontos e ignore, por conseguinte, a função
criativa da linguagem, pela qual uma significação nova se instala e reorganiza o uso dos
signos antigos (Cf. RC, 22). Dado que tais enunciados são o registro sedimentado dessa
função criativa, se se limita a estudá-los, perde-se então o fenômeno central da atividade
lingüística. Por sua vez, tal fenômeno se manifesta de modo patente na literatura, que
longe de se limitar a enunciar idéias pré-concebidas, os escritores, crê Merleau-Ponty,
realizam uma intenção expressiva que se estabelece de fato posteriormente à escrita.
Desse modo, ao estudar a expressão literária, o filósofo pretende exibir claramente a
expressividade lingüística, a qual poderia ser subestimada caso se estudasse apenas os
enunciados exatos. Pretende-se partir do âmbito em que a instauração expressiva de
sentido é inegável para então revelar a vigência de tal expediente mesmo em usos
lingüísticos aparentemente alheios à criação expressiva, tais como aquele do algoritmo
matemático. Esse é o projeto a que Merleau-Ponty se dedica em A Prosa do Mundo,
escrito entre 1951-2, mas só publicado postumamente.
Como as obras literárias realizam a virtude expressiva da linguagem? Por um
lado, julga Merleau-Ponty, os próprios escritores não dominam previamente aquilo que
escreverão, mas delimitam paulatinamente um novo campo de significações pelo uso
criativo da linguagem: das expressões sedimentadas extraem-se novas significações. Por
outro, esse uso também vigora quando da leitura das obras. Obviamente os leitores estão
inseridos na língua em que a obra foi escrita. Começa-se a leitura com base no sentido
comum das palavras. Porém, ao menos na leitura das grandes obras literárias,
lentamente ocorre um desvio da designação ordinária das palavras, e o livro atribui um
sentido inédito a alguns vocábulos. Muitas palavras ou expressões comuns que
12
Em uma nota de O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty resume a sua solução final ao paradoxo da
linguagem presente na Fenomenologia da Percepção: “o que eu chamo cogito tácito é impossível. Para
ter a idéia de ‘pensar’ (no sentido de ‘pensamento de ver e de sentir’) (...), para voltar à imanência e à
consciência de... é necessário ter palavras” (VI, 222, jan. 59).
61
estabelecem a comunicação banal entre os falantes sofrem, por meio do trabalho do
escritor, um tipo de torção expressiva. Esboça-se, por conseguinte, um sentido que
jamais tinha sido formulado, de modo que, por fim, a leitura amplia o campo
significativo do leitor
13
.
Merleau-Ponty nota que, uma vez realizado, o processo expressivo se apaga. As
novas significações se sedimentam e são assimiladas de tal forma pelo leitor que nele
pode surgir a ilusão de que o livro foi compreendido com seu sistema de significações
prévio àquela leitura. De fato, essa ilusão é alimentada pelo movimento expressivo da
linguagem, o qual elimina seus traços em prol das significações constituídas, as quais
passam a ser referidas de maneira imediata, independentemente do processo pelo qual
foram criadas (Cf. PM, 15). O esquecimento de que a expressão é a matriz dos
vocábulos disponíveis leva a uma concepção da linguagem como mero instrumento de
um sistema de significações puramente intelectuais, que seriam somente traduzidas
pelos signos lingüísticos (mas não criadas por meio do seu uso). Segundo tal concepção,
o leitor de uma obra literária (ou mesmo o participante de um diálogo) conta
previamente com o sistema de significações que permite decodificar todas as
combinações de vocábulos apresentadas pelo texto (ou pelo interlocutor). Por
conseguinte, só se compreenderia aquilo que já se sabia antecipadamente, e a linguagem
não seria senão um meio para veicular significações já claramente possuídas pelos
sujeitos (Cf. PM, 12-13).
Para Merleau-Ponty, a noção de algoritmo, tal como ela é comumente
apresentada pelas ciências exatas, exemplifica essa concepção de uma linguagem que
prescinde do processo expressivo. O algoritmo seria um conjunto de procedimentos de
cálculo para solucionar certos problemas típicos. A fim de alcançar tais soluções, partir-
se-ia de definições iniciais claras dos dados ou relações em questão, os quais seriam
associados a signos arbitrariamente escolhidos. Em seguida, seriam definidas as
operações necessárias para a solução dos problemas em vista e estabelecer-se-ia um
método claro para sua aplicação. Parece aqui não haver nada de implícito no uso da
linguagem, que todo novo resultado seria deduzido dos princípios assumidos
anteriormente de maneira explícita. Desse modo, parece não haver, no caso do
algoritmo, possibilidades expressivas nos signos em questão, que supostamente eles
13
Merleau-Ponty o seguinte exemplo, extraído da leitura de Sthendal: “eu sei, antes de ler Stendhal, o
que é um patife e, portanto, eu posso compreender o que ele quer dizer quando escreve que o fiscal Rossi
é um patife. Mas quando o fiscal Rossi começa a viver, não é mais ele que é um patife, é o patife que é
um fiscal Rossi” (PM, 19).
62
não poderiam veicular nada além daquilo que lhes foi associado convencionalmente. O
sistema de signos do algoritmo seria somente um veículo de significações cujo escopo
estaria definido independentemente de tal sistema (Cf. PM, 169). Além disso, as
conseqüências a serem obtidas pela aplicação do algoritmo (novas significações
metodicamente derivadas do sistema inicial) parecem se relacionar somente de maneira
contingente com os signos usados em sua descoberta. Uma vez que se supõe que tais
signos são meramente convencionais, pouco importam os termos pelos quais as novas
significações são exprimidas. Essas últimas parecem subsistir independentemente de sua
veiculação pelo sistema convencional algorítmico, como se fossem essências
inteligíveis cujas propriedades intrínsecas seriam não construídas mas reveladas pelo
instrumental lingüístico (Cf. PM, 166).
Merleau-Ponty avalia que essa interpretação essencialista do procedimento
algorítmico reproduz inconscientemente uma operação própria da atividade perceptiva.
Sempre limitado a perspectivas parciais dos objetos e eventos, o sujeito perceptivo não
hesita em crer espontaneamente na existência de coisas independentes da percepção.
Dessa maneira, a atividade perceptiva como instituição precária da abertura para as
coisas é ignorada, e o sujeito se dirige diretamente para elas. Por sua vez, a suposição de
que o algoritmo apenas extrai conseqüências de um campo de significações ideais que
preexistiria à sua formulação repõe no nível do conhecimento intelectual o movimento
espontâneo perceptivo, que organiza os fenômenos como um mundo independente das
perspectivas parciais pelas quais se manifesta
14
.
O mundo de coisas independentes anunciado pela percepção, crê Merleau-Ponty,
jamais se impõe completamente aos sujeitos, pois sempre aparece de maneira parcial e
limitada às estruturas da percepção humana. Por conseguinte, sempre a possibilidade
de retornar das coisas (às quais a consciência espontaneamente se dirige) aos
fenômenos, ou seja, explicitar o caráter irremediavelmente subjetivo da organização da
experiência. Na Fenomenologia da Percepção, tal possibilidade legitima a investigação
fenomenológica da vida perceptiva (Cf. PhP, 376). Do mesmo modo, a suposição de
que um mundo de essências a ser revelado pelo algoritmo deve dar lugar à
explicitação das contribuições criativas da linguagem na resolução dos problemas em
causa.
14
A noção de essência seria formada “no contato com e pela imitação da coisa percebida tal como a
percepção nos apresenta” (PM, 173). Vale notar que Merleau-Ponty defendia essa idéia na
Fenomenologia da Percepção: “não que o pensamento geométrico transcenda a consciência perceptiva, é
do mundo da percepção que eu empresto a noção de essência” (PhP, 444).
63
Para realizar tal explicitação, Merleau-Ponty sugere descrever o trabalho
algorítmico matemático não como desvelamento de essências autônomas, mas como
exploração paulatina, por meio da aplicação de regras formais, de conjuntos de
relações
15
. Os objetos matemáticos devem ser concebidos, assim, como séries de
relações que abrem um horizonte de investigação (Cf. PM, 177). Longe de serem
essências de antemão prontas, tais séries comportam transformações propiciadas por
operações expressivas pelas quais o conjunto de relações iniciais seria englobado em um
sistema mais amplo. Embora as futuras relações não estejam efetivamente contidas nas
iniciais, o horizonte aberto por essas indica um campo de soluções pelas quais os
problemas em pauta poderão ser reestruturados, quer dizer, assimilados em conjuntos
relacionais mais complexos. Esse desdobramento do saber matemático (e algorítmico
em geral) supõe a reordenação ou ampliação do sentido de certos signos em estruturas
mais vastas, o que indica que o poder expressivo da linguagem se exerce mesmo no
domínio dos signos formais matemáticos
16
.
A expressividade e a lingüística de Saussure
Vimos que em A Prosa do Mundo Merleau-Ponty estende o fenômeno da
expressão, no qual de significações adquiridas se produz um sentido inédito, a todos os
âmbitos da linguagem. Não só na fala ou na escrita literária, mas mesmo na produção de
conhecimentos exatos a linguagem exerce seu poder criativo
17
. Merleau-Ponty pretende
que a descrição das operações expressivas da linguagem não seja um conjunto de
relatos subjetivos que em nada contribuem para caracterizar as propriedades objetivas
da atividade lingüística. Sua estratégia para garantir o interesse ontológico das
descrições fenomenológicas da linguagem é explicitar a concordância dessas análises
com um estudo científico sobre o tema (no caso, a lingüística desenvolvida por
Ferdinand de Saussure).
15
“Em vez de dizer que constatamos certas propriedades dos seres matemáticos, dir-se-ia mais
exatamente que constatamos a possibilidade de princípio de enriquecer e de precisar as relações que
serviram para definir nosso objeto, de prosseguir com a construção de conjuntos matemáticos coerentes
somente esboçados por nossas definições” (PM, 171).
16
Segundo Merleau-Ponty, “o essencial do pensamento matemático está nesse momento em que a
estrutura se descentra, se abre a uma interrogação e se reorganiza segundo um sentido novo que,
entretanto, é o sentido dessa mesma estrutura” (PM, 178).
17
A Prosa do Mundo não se refere mais à fala falada e à fala falante, mas sim a uma linguagem falada,
“aquela que é adquirida, e que desaparece ante o sentido do qual ela tornou-se portadora” (PM, 17), e a
uma linguagem falante, “aquela que se faz no momento da expressão, que vai me fazer escorregar dos
signos ao sentido” (Ibid.). Desse modo, Merleau-Ponty expande para a totalidade da vida lingüística a
idéia, presente na Fenomenologia da Percepção, de uma atividade criadora de significações e de um uso
reprodutivo de tais significações.
64
Aqui Merleau-Ponty utiliza para seus estudos da linguagem um argumento
semelhante aquele, exposto no capítulo anterior, pelo qual defendia haver conseqüências
ontológicas inerentes à sua descrição da percepção. Quanto à percepção, Merleau-Ponty
afirma que todo acesso ao ser e toda concepção teórica do ser deve passar pela
experiência sensível, de modo que as estruturas perceptivas contribuem para a
compreensão da realidade e não são meros efeitos de um mundo independente delas.
Analogamente, crê Merleau-Ponty, a descrição da experiência da linguagem e a sua
teorização pela lingüística não são independentes
18
. Assim, por um lado, a vivência do
fenômeno lingüístico implica certa caracterização do ser da linguagem,
caracterização útil para o trabalho do lingüista. Por outro, as análises teóricas do
lingüista ajudam a esclarecer alguns equívocos que poderiam desvirtuar a descrição
concreta da linguagem. Vejamos nesta e na próxima subseção como as descrições
fenomenológicas da expressividade favorecem a teorização lingüística. Em seguida, na
subseção “crítica ao sentido gestual ou emotivo das palavras”, veremos como algumas
teses da lingüística auxiliam as descrições fenomenológicas.
acompanhamos como Merleau-Ponty estende a expressão criadora para
diversos domínios da linguagem, de modo a não limitá-la apenas ao campo dos atos
verbais. Notemos agora que, dessa maneira, o filósofo francês altera o sentido de uma
famosa distinção proposta por Saussure, entre fala e língua. Para Saussure, a língua é
um conjunto de signos depositado passivamente nos falantes e que lhes permitem
exercer sua faculdade natural de linguagem
19
. Já a fala é um ato individual, fruto da
vontade dos sujeitos, os quais se servem da língua para exprimirem verbalmente suas
idéias (Cf. CLG, 30). Segundo Saussure, língua e fala são interdependentes, uma vez
que o sistema lingüístico é necessário para a articulação da fala e essa é a atividade pela
qual a língua é criada (CLG, 37). Desse modo, o lingüista reconhece que todas as
modificações da língua se originam em criações individuais que, posteriormente
assimiladas pela comunidade falante, alteram a fisionomia do sistema lingüístico (Cf.
CLG, 37, 138, 231-2). Saussure descarta, entretanto, que as alterações deliberadas
tenham melhor chance de serem incorporadas pela língua que aquelas casuais.
Permanecem apenas as modificações assimiladas pelo uso, o qual lentamente
18
No artigo “Sobre a fenomenologia da linguagem”, de 1951, Merleau-Ponty assevera que o resultado
das descrições fenomenológicas da linguagem “não é somente uma curiosidade psicológica”, mas sim
uma “nova concepção do ser” (S, 110).
19
Cf. Saussure, F. de Cours de Linguistique Genérale. Edition critique. Paris: Payot, 1985, p.30,
doravante citado como CLG.
65
transforma um estado da língua em outro. Uma vez que os falantes sempre estão diante
de um estado da língua e normalmente não podem coordenar mudanças que se
prolongam muito além do tempo de suas vidas, para Saussure, os sucessivos estados da
língua não são instrumentos em vista de alguma meta expressiva, mas sim o arranjo
casual dos elementos que os constituem (Cf. CLG, 117).
Saussure rejeita que o caráter fortuito dos estados da língua implique a redução
de tais estados a uma somatória incoerente de acasos históricos. Na verdade, esse autor
distingue duas perspectivas sobre a língua: a diacrônica, que considera as modificações
da língua no decorrer do tempo, e a sincrônica, que considera um estado sistemático da
língua. Assim, para além das fatalidades diacrônicas que constituem os vocábulos, é
possível considerar a ngua como um sistema ordenado cujos componentes portam um
sentido delimitável e coerente
20
.
Merleau-Ponty concorda com a tese da autonomia do sentido sincrônico em
relação à sucessão diacrônica. Para ele, “a linguagem não é, no instante em que
funciona, simples resultado do passado que ela arrasta atrás de si” (PM, 32). uma
ordenação sistemática que se impõe sobre os acasos pelos quais a linguagem se
organiza. Mas a concordância de Merleau-Ponty é extraída de premissas diferentes
daquelas de Saussure. O fenomenólogo associa explicitamente a fala à sincronia, de
modo que, para ele, o estudo de um estado sistemático da língua não é senão a análise
de falas individuais sedimentadas e partilhadas pelos falantes (Cf. PM, 35)
21
. Ora, se um
estado sincrônico é o conjunto ordenado das falas de um determinado período, então tal
estado não será assim o fortuito quanto Saussure julgava. Afinal, mesmo ele admite
que cada ato de fala tem um caráter intencional irrecusável (Cf. CLG, pp.30-31).
Merleau-Ponty simplesmente estende a intenção expressiva que governa as falas
individuais para o sistema sincrônico em geral. Assim, para o filósofo, a mútua vontade
de compreensão dos falantes coordenaria, ao menos em certa medida, as alterações
aleatórias diacrônicas. Os acasos objetivos que rompem a unidade de um estado
20
Embora acentuasse que a oposição entre essas perspectivas “se impõe o mais imperiosamente” (CLG,
p.116), Saussure jamais deixou de notar a dinâmica entre elas: “a cada instante, a linguagem implica ao
mesmo tempo um sistema estabelecido e uma evolução; a cada momento ela é uma instituição atual e um
produto do passado” (CLG, 24).
21
Trata-se de uma tese esboçada na Fenomenologia da Percepção, em que Merleau-Ponty parece
reformular a distinção entre língua e fala segundo a sua tematização do problema: “poderíamos dizer,
retomando uma distinção célebre, que as linguagens, quer dizer, os sistemas constituídos de vocabulário e
de sintaxe (...) são o depósito e a sedimentação de atos de fala nos quais o sentido não formulado não
apenas encontra o meio de traduzir-se no exterior, mas ainda adquire a existência para si mesmo, e é
verdadeiramente criado como sentido” (PhP, p.229).
66
sincrônico seriam retomados pela intenção expressiva dos falantes, que organizaria tais
acasos em um novo sistema
22
. Haveria, por conseguinte, uma racionalidade implícita à
sucessão de estados sincrônicos, a qual seria sustentada pela intenção coletiva de manter
um certo nível expressivo
23
.
Merleau-Ponty oferece um exemplo da ordenação expressiva dos acasos
lingüísticos: na passagem do latim para o francês os elementos desagregadores do
primeiro (tais quais a queda da última sílaba das palavras) se tornam elementos
expressivos do segundo (a tônica na última laba, tão marcante no francês). Dessa
maneira, a dissolução de um certo sistema de falas gera um outro, ainda mais eficaz que
o anterior, julga o filósofo (Cf. PM, 49). Esse exemplo ilustra que para Merleau-Ponty
as modificações do sistema sincrônico não são geradas por fatos aleatórios, mas são
motivadas pela decadência de um estado sistemático da língua, cujos escombros valem
como fatos brutos sobre as quais a intenção expressiva dos falantes reconstrói a
sistematicidade da língua. As mudanças sincrônicas não seriam, desse modo, fortuitas,
mas respostas à perda de expressividade de uma língua.
Deve-se notar que Merleau-Ponty não propõe que desde a origem das línguas os
seres humanos mantêm
67
Dois problemas da lingüística saussuriana
Merleau-Ponty considera, vimos pouco, que uma intenção comunicativa
coordena, ao menos em certos períodos, as mudanças nas línguas. Tentaremos mostrar
agora que com tal concepção é possível esboçar uma solução para dois problemas da
lingüística de Saussure.
a) O primeiro se refere ao papel das falas individuais nas mudanças da língua. Saussure
enumera alguns processos pelos quais as modificações lingüísticas ocorrem no decorrer
do tempo. as mudanças fonéticas, que, por um lado, enfraquecem os laços entre as
palavras e apagam seus elementos formadores (e. g., em latim inimicus pode ser
analisado como junção do prefixo in a imicus; o termo francês ennemi, derivado por
alteração fonética do primeiro, não comporta análise semelhante). Por outro lado, tais
mudanças por vezes aproximam grupos de vocábulos pela formação de correlações
entre determinados sons (e. g., em alemão há a alternância e:i, que marca a passagem de
algumas formas verbais infinitivas para suas respectivas formas passadas: beissen
biss; leiten litt). também a etimologia popular, deformação forçada das palavras
para acomodá-las aos elementos que se crê nelas encontrar (e. g.: do francês aventure
surge o alemão Abenteuer, logo equivocadamente associado a Abend, noite). Outro
processo é a aglutinação ou solidificação de dois termos frequentemente pronunciados
em seqüência (e. g.: tous jours toujours) (Cf. CLG, p.218).
Cumpre agora analisar o papel da analogia, aparente fonte de criatividade da
língua, já que por meio dela um número indefinido de sintagmas (termos a serem
proferidos) pode ser forjado. Um sintagma analógico seria formado à imagem de outro
conforme uma regra determinada (e. g., oratorem : orator = honorarem : X; esse X
será honor). Para Saussure, a analogia favorece a regularidade na produção de
vocábulos, de modo a compensar a desorganização da língua gerada por certas
variações fonéticas e pela etimologia popular (Cf. CLG, 222). Saussure afirma,
entretanto, que os fenômenos analógicos “não são mudanças” (CLG, p.223), pois a
inovação surgida não é exatamente uma alteração de algo anterior, como ocorre nas
variações fonéticas, mas somente a explicitação de um vocábulo por meio de uma regra
vigente na língua. É verdade que Saussure considera a analogia como um fenômeno ao
menos parcialmente psicológico, pois seus resultados são da ordem da fala. No entanto,
para ele, trata-se primordialmente de um fenômeno gramatical, independente da
consciência subjetiva. Assim, quanto aos resultados da analogia (o aspecto psicológico,
subjetivo desse fenômeno), Saussure os considera como mera vocalização de
68
sintagmas. Essa vocalização é considerada insignificante se comparada com o processo
gramatical inconsciente que a precede e a torna possível (Cf. CLG, 227). Nesse
processo, os tipos sintagmáticos em vigor na língua servem de modelo para a expressão
de idéias (por exemplo, em português o prefixo “in” e o sufixo “vel” geralmente
indicam ação ou evento que não pode ser realizado, tal como se nota nos vocábulos
“indelével”, “incoercível”, “impossível”). Assim, para Saussure, a intenção expressiva
individual se molda inconscientemente aos parâmetros lingüísticos disponíveis (e. g.:
para expressar que um plano econômico de governo era inalterável, um antigo ministro
brasileiro denominou-o “imexível”, seguindo, desse modo, os princípios morfológicos
em vigor no português). Segundo o lingüista, essa necessária acomodação das intenções
expressivas às possibilidades gramaticais disponíveis indica que a produtividade
analógica ocorre na própria língua enquanto sistema sedimentado inconscientemente
nos falantes, como se tal sistema pré-determinasse as linhas gerais da sua evolução. As
falas são, desse ponto de vista, realizações contingentes do sistema da língua, o qual
acaba por delimitar antecipadamente todas as possibilidades da expressão individual.
Como ocorreria tal delimitação? Saussure defende que simultaneamente a cada
fala subsistem diversas séries inconscientes, em que os vocábulos pronunciados são
associados a inúmeros outros (Cf. CLG, 178). Ao se pronunciar qualquer palavra,
haveria, dessa maneira, relações inconscientes que a associariam a diferentes vocábulos,
seja por analogia de significado ou de imagem acústica, ainda que esses últimos nunca
tenham sido realmente pronunciados e nem jamais o sejam. Essas relações associativas
não dependem da fala e, virtualmente, contêm todas as suas futuras criações. Assim,
Saussure considera que a analogia não altera o sistema sincrônico (Cf. CLG, 223), pois,
de fato, todas as futuras associações valem como possibilidades inconscientemente
ligadas aos sintagmas efetivamente falados. Desse ponto de vista, as “criações”
analógicas são, na verdade, meras atualizações de virtualidades pré-determinadas. Por
conseguinte, Saussure, que de início afirmara que a fala é a fonte pela qual a língua é
criada (Cf. CLG, 37), acaba por defender que no caso da analogia (em que
aparentemente havia criação subjetiva e não somente contingências de pronúncia ou
confusões, como nos respectivos casos de mudanças vocálicas e etimologia popular) a
fala nada produz e não é senão o veículo de manifestação de virtualidades do sistema
lingüístico, as quais delimitam previamente a amplitude significativa de todos os
vocábulos possíveis. Ficamos, desse modo, sem entender como a fala realiza a sua
virtude criadora.
69
b) O segundo problema é aquele da compreensão entre os falantes. Saussure defende
que o sentido dos termos não é uma propriedade inerente a cada palavra, mas sim fruto
das relações entre os diversos vocábulos de uma língua. Essa é a hipótese do caráter
diacrítico dos signos lingüísticos, a qual exporemos com mais detalhe na próxima
seção. Essa apresentação sumária do diacrítico nos basta ao menos para apresentar uma
dificuldade que de imediato dele decorre. Se o sentido de cada termo depende da sua
relação com os demais, então parece ser necessário que haja uma coincidência perfeita
do conjunto de oposições lingüísticas dos falantes para que eles verdadeiramente se
entendam. A língua deveria ser uniformemente partilhada de modo a evitar que alguns
indivíduos se sirvam de oposições semânticas que faltam a outros, o que equivaleria a
encerrá-los em dialetos individuais
25
. Porém, com efeito, facilmente se comprova que
existe uma enorme diferença de patrimônio lexical tanto entre os falantes de um mesmo
idioma quanto entre as diversas fases da vida de um mesmo indivíduo. Se o sentido
depende estritamente das relações opositivas de um sistema sincrônico, então falantes
com sistemas levemente diferentes não se compreendem totalmente, e nenhum deles
pode ter certeza de entender suas expressões de outrora, quando sabiam menos palavras.
Saussure não oferece uma resposta clara para esse problema. Uma possível
solução baseada nas suas teses seria apelar para as associações inconscientes de cada
falante: as analogias virtuais (que recobrem toda a potencialidade do sistema
lingüístico) seriam levadas em conta na compreensão dos sintagmas proferidos e
preencheriam inconscientemente os termos ausentes no léxico dos sujeitos, de maneira a
permitir que todos se compreendessem. Apesar da amplitude desigual dos sistemas
diacríticos individuais explícitos, todos esses sistemas individuais se igualariam em
potencialidade expressiva. Inconscientemente, todos os falantes se serviriam das
mesmas oposições diacríticas e, por conseguinte, se entenderiam adequadamente.
Tal solução implica que toda novidade expressiva estaria antecipada em um
pensamento inconsciente. Conseqüentemente, não haveria efetiva criação lingüística e
toda comunicação seria mera ocasião para atualizar significações preexistentes. Essa
concepção da linguagem se aproxima daquela, combatida por Merleau-Ponty desde a
Fenomenologia da Percepção, que supõe um pensamento transcendente à fala, o qual
essa última apenas traduziria. As descrições da expressividade criadora contidas nesse
25
Essa dificuldade da lingüística saussuriana é apresentada por Tullio de Mauro em Une Introduction à la
Sémantique. Paris: Payot, 1969, cap. V.
70
livro e em A Prosa do Mundo são fortes contra-exemplos a esse tipo de concepção, e
sugerem que um outro tipo de solução deve ser buscada para o problema da mútua
compreensão entre os falantes.
A ênfase de Merleau-Ponty na expressividade lingüística aponta para uma
resposta aos dois problemas expostos acima. Quanto ao primeiro, lembremos que, para
Saussure, quaisquer novos sintagmas estão antecipados nas associações potenciais que
constituiriam, juntamente com aqueles sintagmas efetivos, o caráter sincrônico da
língua. Isso deixa a fala numa situação paradoxal: por um lado ela é apresentada como
fonte das criações da língua; por outro, (se se exclui as variações fonéticas contingentes
e as distorções da etimologia popular) ela meramente atualiza um sentido antecipado
pelo sistema lingüístico. Merleau-Ponty escapa desse paradoxo ao atribuir de fato
função criativa à fala. Para ele, os novos vocábulos e seu ganho de expressividade são
fundados pela produtividade da fala. Desse ponto de vista, dizer que todas as
possibilidades expressivas já estão antecipadas inconscientemente na língua é uma
ilusão retrospectiva que em nada esclarece por que alguns sintagmas são pronunciados e
outros não. Na verdade, segundo a concepção de Merleau-Ponty, em vez de ser
insignificante vocalização de um sistema pré-arranjado, a fala cria os sintagmas, os
quais supõem como base do fenômeno expressivo outros sintagmas cristalizados na
língua, mas não todos os sintagmas possíveis ordenados inconscientemente. Do
contrário, como entender que apenas alguns dos supostos sintagmas já
inconscientemente formados se manifestam? O que tornaria a manifestação desses mais
provável que a de outros? A tese de Merleau-Ponty escapa dessas dificuldades: os
sintagmas proferidos não figuravam em alguma camada inconsciente mas são
verdadeiramente produzidos pela fala, e então passam a fazer parte do sistema da
língua.
Quanto ao segundo problema, Merleau-Ponty defende que a fala dirigida por um
sujeito a outro não é significativa apenas porque o ouvinte associa os termos a
significações que ele já porta. Se a comunicação se reduzisse a essa remissão da
experiência a um quadro de significações prévias, então nada de novo poderia ser
apreendido por meio dela. Tal como aparece na Fenomenologia da Percepção, o
sentido veiculado pelas falas é “uma certa carência que procura preencher-se” (PhP,
214), ou seja, não está contido em seu veículo expressivo. Segundo essa concepção, o
sentido não é imanente aos signos e nem mesmo ao sistema da língua considerado como
71
conjunto de sintagmas em oposição
26
. Assim, não é preciso supor a identidade do
patrimônio diacrítico dos falantes para que haja compreensão. Essa identidade pode ser,
quando muito, um telos regulador, que, para Merleau-Ponty, cada pensamento
veiculado pela língua tenta justamente se fazer universalmente compreensível (Cf. PII,
43-4). O sucesso de tal tentativa não está garantido previamente por virtualidades
portadoras de todas as significações possíveis de uma língua. Pelo contrário, se se
devesse partir de um sistema de significações completo de antemão, então a
comunicação seria supérflua. No entanto, os sujeitos se motivam a comunicar-se
justamente porque diferentes ordenações dos vocábulos, que veiculam idéias não
possuídas por todos. Comunica-se porque é possível aprender novas significações e não
somente para confirmar ou meramente explicitar que virtualmente se sabia. As
significações são, desse ponto de vista, intenções esboçadas em direção às quais os
falantes se dirigem, de maneira a exceder, por vezes, seu repertório semântico e a criar
novos recursos expressivos. Esse processo expressivo não exige a coincidência prévia
das oposições diacríticas dos falantes para ocorrer, embora possa tender para uma tal
coincidência. Não se trata, assim, de supor que de início os falantes se entendem (fato
para o qual inúmeros contra-exemplos), mas sim de reconhecer que eles buscam se
compreender e que tentam, para tanto, aproximar os seus sistemas de significação.
Desse modo, a ausência de uma comum medida dos sistemas diacríticos individuais não
é somente um empecilho para a comunicação, mas também, e principalmente, um
motivador para que essa última seja construída ativamente.
Crítica ao sentido gestual ou emotivo das palavras
Acompanhamos nas duas últimas subseções como Merleau-Ponty se aproxima
da lingüística de Saussure de modo a salientar o interesse teórico de suas descrições
fenomenológicas da fala. Na verdade, longe de simplesmente filiar-se à doutrina
saussuriana, o fenomenólogo a desenvolve enquanto investigação da expressividade da
fala, investigação que permite resolver ao menos dois problemas da teoria saussuriana.
Não se trata, porém, de criar uma ciência lingüística própria, e sim de explicitar como o
estudo objetivo da linguagem pode ser beneficiado ao se enfatizar o papel da
expressividade criadora.
26
“A linguagem, considerada parte por parte, não contém seu sentido, (...) toda comunicação supõe,
naquele que escuta, uma retomada criativa do que é ouvido” (PII, 43).
72
Mas não a teorização sobre a linguagem é favorecida pelas descrições
fenomenológicas da experiência. Outrossim, tal teorização auxilia a corrigir alguns
equívocos que obsedavam a descrição fenomenológica do funcionamento da linguagem.
De fato, Saussure oferece uma explicação para o modo como a linguagem significa que
muito repercutirá na obra de Merleau-Ponty. Trata-se da hipótese, mencionada
rapidamente acima, do caráter diacrítico dos vocábulos. Com tal hipótese, Saussure se
opõe à concepção da linguagem como nomenclatura, ou seja, como um conjunto de
termos ligados a referentes previamente determinados
27
. De certa maneira, Merleau-
Ponty defendia uma concepção nomenclaturista da linguagem na Fenomenologia da
Percepção. O sentido gestual ou emotivo das palavras, camada primeira de significação,
da qual o sentido conceitual se derivaria, era apresentado como uma expressão direta de
certas atitudes típicas do corpo ante o meio ambiente. Tais vivências silenciosas
fundariam a linguagem e permitiriam que os falantes de diferentes línguas pudessem se
traduzir (Cf. PhP, 462).
A hipótese do caráter diacrítico dos vocábulos leva à rejeição de que as palavras
significam por rotulação de um significado delas autônomo, seja esse significado uma
coisa percebida, um conceito ou mesmo uma essência emotiva apreendida pelo corpo.
Segundo tal hipótese, cada palavra (e mesmo cada fonema) significa e é reconhecível
por meio de suas relações com as demais palavras (ou fonemas) do sistema lingüístico.
Assim, mesmo os significados dos vocábulos são determinados por relações opositivas
e não correspondem a uma camada independente e pré-determinada, à qual
simplesmente se atribuiria “rótulos”. Saussure ilustra essa tese com o seguinte exemplo:
geralmente se diz que o termo francês “mouton” (“carneiro”) corresponde ao termo
inglês “sheep”; mas não se trata de uma correspondência exata, como se ambos os
termos nomeassem a mesma realidade independente das línguas em que são usados.
Afinal, argumenta o lingüista, em inglês, “sheep” se opõe a “mutton (“carne de
carneiro preparada e servida à mesa”), uma relação entre termos que não ocorre em
francês. Nessa língua, mouton” significa tanto o animal carneiro quanto sua carne já
pronta para alimentação humana. Desse modo, a extensão significativa de “mouton” e
27
Vale notar que em um certo momento do Curso de Lingüística Geral, Saussure ainda se mantém preso
à concepção nomenclaturista, ainda que transportada para o nível psíquico: o autor apresenta o signo
lingüístico como unidade entre significante (som) e significado (conceito). Em seguida dá o seguinte
exemplo: ao significado “boi” corresponderiam diferentes significantes conforme a língua (“boeuf” em
francês, “ochs” em alemão, etc.) (Cf. CLG, 100). Aqui, Saussure ainda sustenta a concepção segundo a
qual os vocábulos apenas rotulam uma realidade preexistente.
73
“sheep” não é a mesma; eles não se referem a uma realidade apreendida de maneira
idêntica pela língua inglesa e francesa (Cf. CLG, 160).
Para Saussure, esse exemplo evidencia que os vocábulos lingüísticos significam
não por meio de algum conteúdo próprio, mas sim por causa das oposições com outros
termos da língua, oposições pelas quais o seu campo semântico é determinado
28
. Assim,
longe de ser uma coletânea de “rótulos” aplicáveis a uma realidade pré-determinada,
cada língua é um sistema de oposições que impõe uma discriminação particular à
experiência, discriminação que não encontra paralelo perfeito em outra língua.
Se se aceita que toda língua funciona como um sistema diacrítico, então qual o
estatuto teórico do sentido gestual ou emotivo das palavras? Segundo a hipótese do
sentido gestual, as palavras (ou ao menos algumas palavras) significam porque veiculam
certas atitudes típicas do corpo ante o mundo. Conforme a lingüística saussuriana, esse
tipo de associação de conteúdos pessoais às palavras não é o que atribui a sua
significação. Afinal, o sentido emotivo dos vocábulos decorreria das vivências
particulares de cada indivíduo. Ora, nada impede que os indivíduos confiram
associações emotivas diversas a determinados vocábulos, conforme a singularidade de
cada experiência individual. Dessa maneira, não haveria como garantir uma base de
compreensão mínima para a comunicação. Para Saussure, o significado dos vocábulos
não decorre de tal fonte, tão passível de discrepâncias, mas sim de sua delimitação
opositiva no interior do sistema lingüístico. Vimos que as oposições diacríticas também
não são uniformemente partilhadas. No entanto, os discrepantes sistemas de relações
opositivas podem ser ao menos aproximados pelo aprendizado de vocábulos
específicos. a discrepância de sentido emotivo exigiria a partilha da intensidade e
especificidade de experiências individuais, o que parece bastante improvável.
Segundo a lingüística de Saussure, o sentido gestual ou emotivo se reduz a um
conjunto de associações secundárias pelas quais os indivíduos relacionam determinadas
vivências particulares a certos vocábulos. Mas não é por meio de tais associações que os
vocábulos portam algum significado lingüístico. Nos anos cinqüenta, Merleau-Ponty
parece concordar com tal tese. Em A Prosa do Mundo, a camada primordial da
linguagem não é mais apresentada como o sentido gestual, conforme defendia a
Fenomenologia da Percepção, mas sim como o princípio de diferenciação dos
vocábulos que atua na cadeia verbal (por meio do qual as relações opositivas se
28
Saussure acredita que “um termo pode ser modificado sem que se toque seja no seu sentido seja nos
seus sons, unicamente pelo fato de um termo vizinho ter sofrido uma modificação” (CLG, 166).
74
formam) (Cf. PM, 45-6). Desse ponto de vista, o sentido lingüístico se origina não da
associação de um vocábulo a uma certa essência afetiva de experiências de que o corpo
guarda o estilo, mas da diferenciação dos próprios vocábulos pela fala, diferenciação
pela qual os campos extensionais de significação dos vocábulos são delimitados.
Para Saussure, essa diferenciação primordial dos vocábulos ocorre de maneira
arbitrária. Por arbitrário, o lingüista se refere ao caráter aleatório do laço entre os
significantes e os significados no sistema da língua. Os vocábulos não são fundados
nem em aspectos do mundo percebido nem no privilégio de certos fonemas, e devem
sua feição somente a relações opositivas casuais com os demais
29
. Por exemplo,
diferenças fônicas ignoradas em uma língua servem para constituir relações opositivas
em outra (e. g.: o “i” longo ou curto no italiano “mite” [suave] não faz diferença. Já em
alemão, ele pode distinguir “Mitte” [centro] e “miete” [flexão do verbo louvar])
30
. O
mesmo fenômeno ocorre em relação aos significados: os jovens humanos que em
português são designados por vocábulos de gêneros diferentes, “meninoou “menina”,
em alemão são indicados por uma única palavra, “Kind”, de gênero neutro. Tais
exemplos ilustram que a formação das palavras não responde a nenhuma exigência
natural advinda quer dos sons das palavras quer dos seus referentes. A delimitação
opositiva dos vocábulos se baseia somente no seu uso por uma comunidade lingüística.
As línguas são arranjos contingentes de palavras, os quais revelam diferentes modos
pelos quais as sociedades humanas se referem à realidade.
O caráter arbitrário do signo não deve ser compreendido como convencional. Na
verdade, a hipótese de que as palavras se delimitam arbitrariamente é contrária à idéia
de que elas tenham surgido por convenção. Afinal, se o sentido das palavras fosse
estabelecido por convenção, então ele responderia a exigências racionais tais como
simplicidade, ausência de equívocos, etc. (conforme ocorre na definição convencional
de termos técnicos, por exemplo). Ora, não se observa que tais exigências, que regem o
estabelecimento de línguas artificiais, coordenem a delimitação do sentido dos termos
usados nas línguas naturais. Nessas últimas, os vocábulos são instituídos apenas por
oposições mútuas casualmente estabelecidas, oposições que não excluem equívocos,
29
Claro que Saussure considera uma motivação relativa quanto aos signos derivados. Por exemplo, no
sistema decimal, o termo “dezenove” não é completamente arbitrário, pois segue-se de “dez” e “nove”,
esses últimos termos foram forjados arbitrariamente.
30
Outra evidência em favor da arbitrariedade fônica dos signos é o fato de a capacidade articulatória
espontânea das crianças ser mais vasta que aquela de pronúncia dos vocábulos, a qual deve se limitar aos
fonemas utilizados por sua língua. Assim, não são as possibilidades articulatórias que determinam as
regras fônicas das línguas, mas o contrário, ou seja, certas regras, já arbitrariamente constituídas,
delimitam a amplitude articulatória dos falantes (Cf. PPE, 24).
75
obscuridades e que não circunscrevem os referentes segundo padrões prévios de
racionalidade (os quais, por exemplo, exigiriam que os referentes devessem ser coisas
individuais ou fatos isolados, etc.), mas segundo resultados fortuitos das relações
opositivas ente os termos. Assim, por exemplo, não coisas individuais são referidas
pelas línguas naturais, mas situações complexas, processos, impressões fugazes, etc., ou
seja, não se segue nenhum padrão racional de discriminação dos entes, mas justamente
os padrões de discriminação são formados pelos vocábulos. Além disso, a hipótese de
que o sentido das palavras é instaurado convencionalmente é insatisfatória, uma vez que
o estabelecimento de convenções supõe alguma linguagem em funcionamento (por meio
da qual os sujeitos chegariam ao acordo em vista), e, desse modo, o apelo a convenções
não explica a origem do sentido dessa linguagem que possibilita as próprias
convenções.
C) Percepção e linguagem
A percepção enformada culturalmente
Em diversos textos, Merleau-Ponty assimila a idéia do sentido lingüístico como
fruto de relações opositivas entre vocábulos formados arbitrariamente. No artigo “A
linguagem indireta e as vozes do silêncio”, o filósofo afirma: “o que aprendemos em
Saussure, é que os signos um a um não significam nada, que cada um entre eles menos
exprime um sentido que marca um desvio de sentido entre ele mesmo e os outros” (S,
49). Em A Natureza, Merleau-Ponty admite que a linguagem se opõe “a toda
predestinação dos signos a um significado: o laço não é dado (imitação), ele é criado por
um princípio interno de diferenciação dos signos em uma língua” (N, 289). Essa
assimilação da idéia da linguagem como sistema diacrítico implica alterar o papel da
atividade perceptiva (tal como defendido pela Fenomenologia da Percepção) no
funcionamento da linguagem. Afinal, longe de traduzir ou registrar uma realidade
autonomamente percebida, conforme esse livro parecia defender com a tese do sentido
emotivo, as nguas, segundo a concepção diacrítica, fornecem os instrumentos pelos
quais determinados eventos ou coisas podem ser referidos, de modo a direcionar as
capacidades discriminativas inerentes à percepção.
Merleau-Ponty chega a reconhecer essa modelação das capacidades perceptivas
pela linguagem em raras passagens da Fenomenologia da Percepção. Ele afirma, por
exemplo, que “a denominação dos objetos não vem depois do reconhecimento, ela é o
próprio reconhecimento (...), a palavra traz o sentido e, impondo-o ao objeto, tenho
76
consciência de atingi-lo” (PhP, 207). Em seguida, retoma um exemplo de A Estrutura
do Comportamento (Cf. SC, 184) ao defender que “para a criança o objeto é
conhecido quando é nomeado, o nome é a essência do objeto e reside nele do mesmo
modo que sua cor e que sua forma” (PhP, 207). No entanto, de modo geral, o filósofo
apresenta, na Fenomenologia da Percepção, o campo percebido como um conjunto de
fenômenos organizado “segundo regras próprias” (PhP, 46), as quais, por decorrerem de
capacidades naturais (Cf. PhP, 59), produziriam conteúdos partilháveis por todos os
sujeitos independentemente da língua ou cultura (Cf. PhP, 505).
Por sua vez, nos anos cinqüenta, Merleau-Ponty admite um certo nível de
enformação cultural do campo perceptivo, em concordância, como veremos logo a
seguir, com a tese saussuriana do caráter arbitrário dos signos lingüísticos. As
considerações mais claras do filósofo a respeito dessa enformação se referem à pintura.
Em “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, Merleau-Ponty critica a idéia de que
a perspectiva planimétrica, muito utilizada na pintura clássica, se impõe aos artistas por
meio da percepção. Na verdade, tal perspectiva não seria a apresentação direta do
mundo sensível, mas uma certa maneira, determinada culturalmente, de apreendê-lo,
maneira que não é necessariamente exigida pelo mundo percebido, que esse também
faculta outras decodificações do campo fenomenal (expressadas, por exemplo, pelos
trabalhos de Matisse, Klee e outros pintores modernos que, em muitos casos, dispensam
a perspectiva planimétrica). Por conseguinte, a percepção não se limita a veicular
padrões naturais de organização do campo fenomenal, mas atualiza determinados
parâmetros de manifestação fenomênica culturalmente carregados (Cf. S, 61). Desse
modo, mais do que revelar conteúdos universalmente partilháveis, a atividade
perceptiva “projeta no mundo a assinatura de uma civilização” (PM, p.97). Quer dizer
que os poderes discriminativos do aparato perceptivo não fornecem, ao menos de
imediato, dados idênticos para todos os seres humanos, que tais poderes, pelo menos
até certo grau, favorecem certas discriminações no campo fenomenal decorrentes do
meio cultural em que se desenvolvem. Dado que a linguagem é um dos componentes
mais marcantes da cultura humana, podemos inferir que Merleau-Ponty admite, nos
anos cinqüenta, que as línguas intensificam diferenças nas capacidades discriminativas
de sujeitos perceptivos de contextos histórico-culturais diversos
31
.
31
Ao expor o caráter diacrítico das línguas, Merleau-Ponty usa o seguinte exemplo: “há em certas línguas
duas palavras para designar o sol, conforme se fale do sol nele mesmo ou de sua radiação sobre a Terra”
77
A articulação entre vida perceptiva e atividade lingüística
Vimos que Merleau-Ponty reconhece a importância da linguagem e da cultura
em geral na organização do campo fenomenal. No entanto, conforme relatam as atas do
Colóquio de Bonneval (1960) sobre o inconsciente, para Merleau-Ponty “a abertura ao
ser não é lingüística: é na percepção que ele o lugar natal da fala” (PII, 274). Dessa
maneira, mesmo em seus anos finais, o filósofo não considera que a linguagem é a
responsável pela inserção do sujeito no mundo, mas sim que ela se estabelece sobre
uma abertura originalmente perceptiva. Essa posição, antes de se opor, na verdade
complementa aquela defendida nos anos cinqüenta, exposta pouco: Merleau-Ponty
havia reconhecido que a vida perceptiva sempre veicula a marca de uma civilização,
marca que provavelmente incluía certos padrões discriminativos favorecidos por
determinados vocábulos ou expressões lingüísticas. No entanto, tal como o filósofo
acentua em 1960, essa veiculação não é absolutamente autônoma e depende da abertura
perceptiva ao ser. Vamos tentar esclarecer o que significa tal dependência e, no geral,
como vida perceptiva e vida lingüística se articulam.
É preciso notar, de início, que Merleau-Ponty sempre considera a linguagem um
tipo de intencionalidade corporal. Essa tese, exposta na Fenomenologia da
Percepção, permanece no decorrer dos anos cinqüenta
32
. Lembremos do exemplo da
passagem do latim para o francês. Não se trata de um decreto dos sujeitos falantes, pois
tais eventos são por demais hesitantes para assim se definirem. Porém, são também
muito sistemáticos para que se reduzam a uma justaposição de acontecimentos
aleatórios. Ocorre que os diversos acasos pelos quais uma língua se desarticula, tais
como a queda da última sílaba das palavras, organizam-se como elementos de um novo
sistema expressivo (no caso, a tônica na última sílaba das palavras), que restabelece ou
mesmo amplia as possibilidades comunicativas ameaçadas pela decadência da primeira.
Ora, a retomada de acasos factuais e sua transformação em um campo significativo é o
modo como Merleau-Ponty descreve a atividade corporal (Cf. PhP, 226). O corpo
responde às situações mundanas projetando uma forma significativa sobre os estímulos.
(PPE, 83). Assim, certas línguas contribuem para a percepção do sol como um fator agente sobre o
planeta, enquanto outras favorecem sua apreensão como um objeto.
32
Cf. S, 111. Assim, mesmo com a apropriação da lingüística de Saussure, Merleau-Ponty mantém o
enraizamento corporal da linguagem. (Cf. Thierry, Y. Du corps parlant. Le langage chez Merleau-Ponty.
Bruxelles: Ousia, 1987, p.34).
78
Do mesmo modo, a intencionalidade expressiva responde aos acasos lingüísticos ao
constituir novas maneiras de se comunicar.
Apesar de a linguagem ser considerada por Merleau-Ponty uma intencionalidade
corporal, tal qual a percepção, não é possível afirmar que ambas forneçam conteúdos
homogêneos. Surge daí o problema da articulação entre vida perceptiva e expressão
lingüística. Certamente é preciso haver dados perceptivos, uma experiência do mundo,
para que o princípio discriminativo da fala atue de modo a elaborar um sistema de
oposições lingüísticas. No entanto (conforme ensina a lingüística saussuriana, que
Merleau-Ponty, ao menos nesse ponto, parece seguir
33
), a experiência perceptiva não
determina quais signos serão formulados e nem o seu significado. Se se aceita a tese do
arbitrário do signo, então as vivências sensíveis (e mesmo afetivas) não condicionam os
significados lingüísticos e a articulação entre esses e as primeiras não ocorre como
simples tradução ou registro dessas vivências nos vocábulos, conforme a
Fenomenologia da Percepção parecia propor por meio da tese do sentido gestual das
palavras. A auto-organização do campo fenomenal e as vivências corporais não
determinam o sentido das palavras, pois essas se formam segundo um princípio de
mútua oposição que é indeterminado em relação aos conteúdos percebidos. Não há,
assim, homogeneidade entre conteúdo percebido e falado, que as diferentes línguas
instituem diferentes possibilidades referenciais em relação ao campo perceptivo. O
problema é então esclarecer como a vida perceptiva e a vida expressiva do sujeito
podem se conciliar. A dificuldade, como Merleau-Ponty admite até em seus textos
finais, é que por meio de um simbolismo arbitrário, a linguagem instaura um contato
com o mundo aparentemente heterogêneo àquele instituído pela percepção
34
. No
entanto, embora os sistemas lingüísticos não sejam determinados pela organização dos
conteúdos do campo fenomenal, eles pressupõem essa última (conforme a fala de
Merleau-Ponty no colóquio de Bonneval), de modo que alguma relação de continuidade
entre ambos deve haver.
Uma vez rejeitada que a articulação entre percepção e linguagem se por um
tipo de tradução direta dos conteúdos da primeira pela segunda, como esclarecer a
relação entre ambas? Mauro Carbone defende que a relação entre percepção e
33
Tal como a citação de A Natureza nas páginas setenta e cinco confirma.
34
Segundo as notas de O Visível e o Invisível, é o mesmo sujeito encarnado “que percebe e que fala” (VI,
252, set. 59). No entanto, as diferenças entre ambas as funções levam Merleau-Ponty a afirmar o seguinte:
“o que é preciso esclarecer: a perturbação introduzida pela fala no Ser pré-lingüístico” (VI, 252, set. 59).
79
linguagem é aquela de uma homogeneidade formal entre ambas
35
. Progressivamente,
Merleau-Ponty teria interpretado que a estrutura figura/fundo, pela qual a percepção se
organiza, funciona tal qual uma série de oposições diacríticas. Analogamente aos
vocábulos, cada figura percebida só se delimitaria por sua relação opositiva com os
elementos do fundo do qual ela é segregada. Segundo Carbone, essa interpretação é o
que permite [a Merleau-Ponty] abandonar a tendência (...) de conceber a vida irrefletida
e silenciosa da consciência como fundo positivo de sentido em relação ao qual a
linguagem se apresenta como segunda e derivada”
36
. Na verdade, haveria uma “forma
diacrítica comum”
37
à experiência silenciosa e à linguageira; ambas organizam
similarmente os seus dados, de modo a constituir uma experiência significativa por
meio de relações opositivas entre seus respectivos dados
38
.
A tese de uma homologia estrutural entre percepção e linguagem garante que a
primeira não funciona de maneira completamente diferente da segunda. Ambas
atualizam um modo pico pelo qual o corpo organiza uma experiência significativa, a
saber, não por atribuição direta de sentido a conteúdos autônomos, mas por um
princípio de diferenciação relacional de dados que atua seja nas habilidades perceptivas
seja na cadeia verbal. Tal tese revela, assim, a unidade formal de diferentes
intencionalidades corporais. No entanto, ela não esclarece como percepção e linguagem
de fato se relacionam. A homologia estrutural entre ambas por si só não explica como os
conteúdos percebidos são exprimidos lingüisticamente. Que a percepção se organize
indiretamente, por um conjunto de oposições entre tema percebido e fundo, pouco
elucida o funcionamento da linguagem em relação a ela, já que as diferenciações
arbitrárias da cadeia verbal não correspondem exatamente a nenhum padrão de
diferenciações perceptivas. O simples fato de que diferentes línguas cujas oposições
internas não são equivalentes revela que elas não seguem alguma diferenciação
diacrítica fundante supostamente oferecida pela percepção. Assim, mesmo que se
admita que a atividade lingüística e a perceptiva signifiquem por meio de conjuntos de
35
Cf. Carbone, M. “La dicibilité du monde. La période intermédiaire de la pensée de Merleau-Ponty à
partir de Saussure”. In: VV.AA. Merleau-Ponty – le philosophe et son langage. Paris: Vrin, 1993.
36
Ibid., p.98.
37
Ibid., p.99.
38
A interpretação de Carbone é consistente com os textos de Merleau-Ponty. O filósofo afirma, por
exemplo, que “a análise saussuriana das relações entre significantes e das relações de significantes à
significados e de significações como diferenças de significações confirma e reencontra a idéia da
percepção como desvio em relação a um nível (VI, 252, set. 59). Assim, para Merleau-Ponty, a
percepção é “sistema diacrítico, relativo, opositivo” (VI, 263, out. 59), e, nesse sentido, como afirma em
A Natureza, “a vida da linguagem reproduz em um outro nível as estruturas perceptivas” (N, 274).
80
oposições, não se segue que tais conjuntos se recubram perfeitamente ou se co-
determinem harmoniosamente. Resta ainda esclarecer como o campo perceptivo e a
atividade lingüística efetivamente se articulam.
A fixação dos dados sensíveis pela linguagem
Como notamos na subseção anterior, Merleau-Ponty caracteriza a ordenação
própria à vida perceptiva como diacrítica. Quer dizer que a experiência sensível não é a
assimilação de significações silenciosas positivas. Concebida como estrutura diacrítica,
a experiência não fornece senão um conjunto de desvios, de intervalos e de
descontinuidades entre os componentes sensíveis dos objetos percebidos, e entre esses e
o horizonte sobre o qual se perfilam. Assim, os dados percebidos não portam em si
mesmos um sentido, mas o constituem por mútua oposição. Essa tese traz
conseqüências para a investigação ontológica pretendida por Merleau-Ponty: a
experiência perceptiva não oferece um acesso direto ao ser sensível que motiva a
percepção, tal como a Fenomenologia da Percepção parecia supor. Nesse livro,
Merleau-Ponty admite que a percepção reconstitui o ser exterior que a motiva (Cf. PhP,
240). Tal reconstituição manifestava de maneira bastante satisfatória as propriedades e
estruturas do mundo. Com a interpretação diacrítica da percepção, Merleau-Ponty
parece admitir que a reconstituição do ser pela experiência não expõe diretamente as
propriedades do ser, mas depende de relações opositivas entre os dados sensíveis. Essas
relações, por sua vez, não são sempre as mesmas para todos os sujeitos em todos os
tempos, que podem ser favorecidas por hábitos culturais não partilhados
universalmente, tal como sugerimos há pouco.
Vimos que a percepção ordena a apresentação do mundo sensível de modo
indireto. Além disso, deve-se considerar que os conteúdos percebidos não são
simplesmente traduzidos pela linguagem, mas expressos por esse outro sistema
diacrítico, ou seja, pelas oposições lingüísticas (responsáveis pelas significações
linguageiras). Como essa expressão ocorre? Para Merleau-Ponty, a relação efetiva entre
percepção e linguagem é de fixação da última pela primeira. Falar ou escrever é bem
traduzir uma experiência, mas que se torna texto pela fala que ela suscita” (RC, 41),
afirma o filósofo no resumo do curso O Problema da fala, ministrado em 1953-4. Quer
dizer que embora a linguagem suponha a abertura perceptiva originária, essa última não
deve ser concebida como um núcleo de vivências duráveis e diretamente disponíveis aos
sujeitos perceptivos. Afinal, a própria percepção, conforme já acentuamos, se ordena
81
como sistema de significações indiretas. Os conteúdos percebidos não são significações
silenciosas simples às quais se aplicaria rótulos verbais; tais conteúdos são
delimitados enquanto tais por meio de sua expressão em signos lingüísticos partilháveis
e sedimentáveis. Assim, não basta afirmar que a linguagem é fundada pela experiência
perceptiva; é preciso também acentuar que a linguagem é um poder intencional que
transfigura as fugidias experiências sensíveis (que estão em sua base) em idealidades
culturais. A expressão da experiência sensível por meio de vocábulos sedimentados e
partilhados torna possível a um sujeito tanto desvelar a sua vida silenciosa particular aos
demais sujeitos que comungam do mesmo código lingüístico quanto apreender a
experiência sensível dos outros falantes (Cf. PM, 122).
É dessa maneira que a universalidade do sentir, admitida por Merleau-Ponty
em A Prosa do Mundo (conforme mencionamos no início deste capítulo), de fato se
realiza. Por meio das palavras, um sujeito transmite a outros a sua experiência
perceptiva e desperta nesses a partilha sensível daquilo que é comunicado. A descrição
verbal de uma paisagem longínqua, por exemplo, expõe a um ouvinte que a desconhece
uma experiência que ele mesmo poderia ter se diante dela estivesse. O caráter
eminentemente partilhável da visão de tal paisagem é confirmado por meio do diálogo.
Em si mesma, como evento silencioso, a vivência sensível da paisagem se confundiria
com a perspectiva individual, aparentemente intransferível, que cada sujeito apreende
do mundo. Porém, por meio da linguagem, tal como afirma Merleau-Ponty, “a
totalidade privada fraterniza com a totalidade social” (PM, 202), quer dizer, a
perspectiva subjetiva em que cada sujeito está confinado se revela não como ponto de
vista inacessível, mas como um foco de experiências eminentemente partilháveis.
Destarte, o exercício da linguagem permite que a universalidade tácita do sentir (o fato
de que todos os sujeitos de mesma constituição psicofisiológica experimentam
perspectivas intercambiáveis do mesmo mundo) seja reconhecida como
verdadeiramente universal (Cf. PM, 197, 202)
39
.
39
Em nossa leitura, a universalidade do sentir pode ser reconhecida explicitamente apesar das diferenças
culturais e lingüísticas que favorecem determinadas maneiras de apreender os dados fenomênicos.
Afirmamos, na subseção “A percepção enformada culturalmente” que, dada a enformação cultural da
atividade perceptiva, os conteúdos sensíveis não são de imediato diretamente partilháveis. Porém,
supomos que por meio do aprendizado de uma língua e de uma cultura diferente, um sujeito pode
confirmar em sua própria experiência uma maneira de discriminar certos dados no campo fenomenal a
qual não era possuída de início por ele. Assim, embora não haja um modo de apreender os dados
perceptivos, os diferentes parâmetros culturais de discriminação de dados fenomênicos são
potencialidades que todo sujeito perceptivo, como portador de uma função universal, a saber, o sentir, em
princípio poderia atualizar.
82
Deve-se notar que a linguagem comunica a experiência por palavras gerais, que
não foram talhadas para exprimir essa ou aquela vivência particular. Por exemplo, as
cores e as formas figuradas no campo fenomenal são apresentadas por vocábulos
públicos (verde, cônico, etc.), que, em princípio, não se referem a nenhuma experiência
em particular. A linguagem explicita o caráter geral da vivência sensível, e ao fazê-lo,
parece que as vivências perdem qualquer conteúdo singular e se explicitam apenas em
seus aspectos abstratos. No entanto, para Merleau-Ponty, essa aparente limitação pode
ser compensada pelo fenômeno da expressividade. Segundo o filósofo, “a linguagem
pode ser tratada como uma gesticulação de tal modo variada, precisa, sistemática e
capaz de recortes tão numerosos, que a estrutura interna do enunciado pode
finalmente convir à situação mental à qual ela responde e dela se torna o signo sem
equívoco” (PII, 43). Não se trata de defender que haja, de início, vocábulos que
diretamente traduzem a particularidade de cada experiência. Mas, indiretamente, por
meio de torções expressivas impostas às palavras, ao menos existe a possibilidade de
que o caráter único das experiências silenciosas seja comunicado
40
.
Essa capacidade de fixação e desvelamento indireto da experiência silenciosa
será um dos principais recursos pelos quais Merleau-Ponty elaborará a sua ontologia
final. Como veremos em nosso sexto capítulo, a investigação do ser bruto pretendida
por O Visível e o Invisível não se realiza como uma designação simples dos
componentes da realidade, como se se pudesse enumerar diretamente as propriedades
do ser. Conforme vimos, dois sistemas diacríticos impedem o acesso direto ao ser:
primeiramente, a percepção já ordena os dados como uma série de oposições, as quais
podem ser motivadas por fatores culturais particulares. Em seguida, a linguagem fixa a
experiência perceptiva de maneira indireta, servindo-se de um sistema de oposições de
termos arbitrários em relação aos conteúdos percebidos. Ante a impossibilidade de um
acesso direto ao ser, Merleau-Ponty, em sua investigação ontológica madura, tenta
aplicar o potencial indireto da linguagem para explicitar a camada ontológica da qual o
próprio sujeito surgiria. Dessa maneira, as longas reflexões sobre o tema da linguagem
não ampliam o escopo das análises fenomenológicas iniciais, mas também instituem
a orientação metodológica pela qual a investigação ontológica futura deve se cumprir:
40
Para Merleau-Ponty, na literatura essa expressão extremamente refinada da experiência ocorre
regularmente. Afinal, para ele, o escritor é justamente alguém que tenta “colocar em circulação não
apenas os aspectos estatísticos e comuns do mundo, mas até a maneira pela qual [o mundo] toca um
indivíduo e se introduz em sua experiência” (RC, 39).
83
expressão indireta, por meio de capacidades expressivas lingüísticas, do ser silencioso
que funda tal expressividade.
Mas não se deve pensar que os dados sobre os quais a ontologia, de uma
maneira indireta, será formulada, provenham somente da percepção. É verdade que
neste capítulo acentuamos o problema da articulação entre vida perceptiva e atividade
lingüística. Mas a solução oferecida por Merleau-Ponty (reconstrução expressiva da
experiência), a qual fornece a diretiva principal do uso da linguagem na empreitada
ontológica, não se aplica somente aos dados obtidos pelas descrições da percepção
ingênua. No geral, com as reflexões sobre a linguagem do início dos anos cinqüenta,
Merleau-Ponty reconhece que não via de acesso imediato ao ser e que a percepção,
assim como a linguagem (e suas manifestações particulares seja na ciência seja nas
artes), se relaciona com o ser indiretamente. Assim, conforme veremos nos capítulos a
seguir, uma das principais marcas da ontologia madura de Merleau-Ponty se não
condicionar a caracterização ontológica do mundo ao comentário dos dados advindos da
percepção ingênua, tal como parecia ocorrer na Fenomenologia da Percepção. Ao
assumir o caráter indireto da expressão (seja perceptiva ou lingüística), Merleau-Ponty
deixa de favorecer os conteúdos percebidos como parâmetro pelo qual se pode delimitar
diretamente a amplitude do ser, e concebe um novo tipo de abordagem ao problema
ontológico. Neste segundo capítulo, apenas tentamos mostrar como a orientação geral
para essa nova abordagem se forma na obra de Merleau-Ponty. Mas cumpre ainda expor
como tal abordagem será efetivamente utilizada.
Capítulo III – Rumo ao ser primordial
Sinopse
Neste capítulo, analisamos trechos dos cursos A Instituição, A Passividade e A
Natureza em que Merleau-Ponty esboça uma concepção do ser que não supõe a
atividade subjetiva para sustentar suas características (ser primordial). De A
Instituição, acompanhamos a descrição de estruturas significativas que não se ordenam
como objetos intencionais. De A Passividade, acompanhamos como a investigação dos
estratos passivos da subjetividade sugere a existência de camadas mundanas que
escapam à apreensão ativa do sujeito. Finalmente, dos cursos de A Natureza,
acompanhamos a descrição do ser natural como conjunto de estruturas que
autonomamente se ordenam como sensíveis, embora não se reduzam aquilo que é
perceptível.
Introdução
No capítulo anterior, expusemos um dos principais tópicos pelos quais Merleau-
Ponty realiza a ampliação do escopo temático de sua análise fenomenológica nos anos
cinqüenta, a saber, aquele da linguagem. Essa ampliação visava corrigir alguns
problemas localizados pelo próprio Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção
(Cf. IP, 174-178). Além disso, o resultado de tal ampliação oferece um direcionamento
metodológico para a investigação ontológica anunciada. Por sua vez, neste terceiro
capítulo, acompanharemos como, no decorrer de alguns de seus cursos ministrados nos
anos cinqüenta (A Instituição, A Passividade e A Natureza), Merleau-Ponty avança no
desenvolvimento de tal investigação ontológica, de maneira a apontar soluções para
alguns dos impasses da Fenomenologia da Percepção. Interessa-nos principalmente
explicitar os esforços de Merleau-Ponty para elaborar uma noção de ser que escape das
acusações de idealismo subjetivista, recebidas por ele em relação ao seu livro de 1945,
conforme vimos em nosso primeiro capítulo.
A Instituição
No curso A Instituição, ministrado em 1954-1955 no Collège de France,
Merleau-Ponty pretende apreender em diferentes âmbitos um mesmo padrão de
articulação significativa de fatos. Trata-se de explicitar como se elabora um sentido por
meio de acúmulo e reorganização de experiências sedimentadas. Esse tipo de sentido se
85
manifestaria tanto na vida animal ou na puberdade humana quanto no avanço do saber
teórico. O conceito de instituição
86
IP, 54). Um dos exemplos de tal complexidade provém da análise da puberdade. Nessa
fase do desenvolvimento humano, ocorre a reativação das fantasias sexuais infantis;
porém, essa reativação não acontece apenas no nível da imaginação, pois agora o corpo
está hormonalmente maduro para vivenciar o que fora antecipado como fantasia. Assim,
a instituição da sexualidade humana não se reduz a um amadurecimento linear de
funções biológicas, mas implica a reintegração em um nível mais amplo de vivências
outrora antecipadas pela imaginação (Cf. IP, 56).
Segundo Merleau-Ponty, a instituição também torna compreensível a ordenação
do sentido no nível das relações humanas. O filósofo usa como exemplo a história da
pintura: cada pintor, ao definir seu estilo, retoma ao menos algumas obras
historicamente relevantes. Há, assim, uma assimilação do passado artístico, o qual serve
de base para que novas soluções estéticas sejam buscadas. Por sua vez, as novas obras
produzidas podem se sedimentar e servir como ponto de partida para o trabalho de
outros pintores futuros (Cf. IP, 78-9). Essa lógica de sedimentação e retomada o
estaria limitada às atividades artísticas, mas se reproduziria no âmbito do saber exato.
Para Merleau-Ponty, a formulação de uma verdade matemática, por exemplo, decorre de
um processo de generalização e integração dos saberes anteriores: um conhecimento
matemático é adquirido quando novas fórmulas, além de exprimirem novas relações,
subsumem parte ou mesmo a totalidade do conhecimento passado sob um novo modelo
(IP, 95).
No último trecho de seu curso, Merleau-Ponty almeja mostrar que os processos
instituintes também se encontram na história pública. Por exemplo, alguns povos se
questionam pelo problema da sociedade verdadeira e, por conseqüência, tentam retomar
sua história sedimentada a fim de extraírem dela alguma direção a seguir. Quanto a esse
tópico da história pública, vale mencionar que Merleau-Ponty não pretende transformar
a reflexão consciente sobre a história em critério de superioridade. Há certamente
sociedades que não demonstram a preocupação de “se instituírem”, no sentido de
fomentar um determinado arranjo social em contraste com seu passado. Isso o
significa que tais sociedades são inferiores ou primitivas. A comparação entre
sociedades, se possível, deveria levar em conta diferentes parâmetros e não a
capacidade de auto-reflexão ou autotransformação
2
. Reconhecer a instituição em certas
2
Merleau-Ponty assevera quanto às sociedades em que não se encontra a instituição do seu futuro sobre a
retomada do passado: “o que não quer dizer que sob certas relações elas não sejam mais belas” (IP, 122).
87
sociedades não implica, assim, atribuir a elas valor em detrimento de outros
agrupamentos humanos.
Após expor os diversos âmbitos em que Merleau-Ponty encontra processos
instituintes, cumpre-nos questionar pelo sentido filosófico da instituição. Com esse
conceito, forja-se uma rubrica geral para o processo de estabelecimento de sentido por
reordenação de estruturas sedimentadas. Esse processo não é coordenado ativamente
pela consciência humana, que ocorre em níveis que escapam a esse poder de ação
direto, tais como a instituição do simbolismo primitivo entre os animais ou a instituição
da história do conhecimento científico (um processo cuja duração excede em muito
aquela vivenciada por uma consciência subjetiva). Deve-se acentuar o fato de que a
instituição supõe uma espessura temporal própria, já que a retomada de configurações
passadas e a instauração de linhas de força pelas quais os eventos futuros se ordenam
não se reduzem ao desdobramento da temporalidade imanente à subjetividade, pois,
como acabamos de ver, tais processos instituintes excedem aquilo que é ordenado pela
consciência subjetiva (CF. IP, 102). Dessa maneira, a instituição não pode ser definida
como um objeto intencional, o qual se manifestaria exatamente conforme os poderes
cognitivos ou perceptivos do sujeito. A instituição não é correlata das visadas
subjetivas, seus processos não são transparentes para a subjetividade, mas formam como
que um horizonte sobre o qual a atividade consciente se exerce.
O conceito de instituição é um dos primeiros marcos pelos quais Merleau-Ponty
tenta sistematizar o tema dos padrões de significação que não supõem uma correlação
estrita com a subjetividade humana. O aprofundamento da reflexão em torno desse tema
marcará os avanços da sua ontologia final em relação às posições da Fenomenologia da
Percepção expostas por nós no primeiro capítulo. Tal avanço se faz notar de maneira
ainda mais notória nos cursos A Passividade e A Natureza.
Somente acentuemos, antes de analisar tais cursos, que ao ser reconhecida em
diversos âmbitos da existência, a instituição corrige a análise empobrecida da
Fenomenologia da Percepção, por demais limitada à relação muda entre o sentir e a
coisa material
3
. Assim, a investigação fenomenológica se amplia e inclui certas
estruturas significativas atuantes também no mundo cultural, sem com isso abandonar as
3
No curso A Passividade, Merleau-Ponty explicita sua intenção de ampliar o escopo da investigação
fenomenológica: é necessário descrever “na ordem do percebido, não somente Dingwahrnehmung
[percepção de coisa], mas Verhalten [comportamento] do qual ela é um caso particular; não somente um
campo sensorial, mas campos ideológico, imaginário, mítico, práxico, simbólico ambiente histórico e
percepção como leitura desse ambiente” (IP, 175).
88
bases sensíveis da experiência, ambos os tópicos recobertos pelo vasto escopo da
instituição.
A Passividade
No curso A Passividade, também ministrado em 1954-1955, Merleau-Ponty
busca explicitar os níveis em que a experiência humana não pode ser definida como um
fluxo de vivências ativamente ordenadas. Com a noção de passividade, o filósofo tenta
apreender as dimensões da existência anteriores ou independentes das decisões
voluntárias. Daí que nesse curso, se estude o sono, os sonhos, o inconsciente e a
memória. Trata-se de mostrar por meio desses eventos ou estados que a subjetividade
humana comporta diversas camadas constitutivas, e que a atividade consciente é apenas
parte de um campo existencial mais vasto.
A investigação de camadas passivas no interior da subjetividade instaura a
questão de saber como ocorre a integração entre tais camadas e as capacidades ativas do
sujeito. Merleau-Ponty analisa e rejeita, no início do seu curso, a solução a esse
problema oferecida por Lachièze-Rey (Cf. IP, 157-8). Segundo esse autor, o sujeito
humano transforma as situações em que é passivamente afetado ao assimilá-las de modo
voluntário: é verdade que o sujeito se encontra inserido em um contexto sócio-histórico
não constituído pelos poderes da consciência; no entanto, por meio da sua decisão, o
sujeito apreende e se insere ativamente em tal contexto. Para Merleau-Ponty, a posição
de Lachièze-Rey contém apenas uma solução aparente ao problema da integração entre
passividade e atividade (Cf. IP, 157), pois somente constata haver, por um lado, a
inserção no mundo prévia às decisões subjetivas (passividade), e, por outro, as decisões
que se voltam sobre tal inserção (atividade). Ora, essa constatação de duas esferas
autônomas na subjetividade apenas repõe o problema da integração de ambas, mas não
o soluciona.
Cumpre notar que a posição de Lachièze-Rey muito se assemelha àquela do
próprio Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção. Segundo esse livro,
inicialmente o sujeito se encontra engajado passivamente em contextos não constituídos
por ele (Cf. PhP, 500). Porém, o sujeito pode exercer sua liberdade e assumir
resolutamente essas condições casuais pelas quais existia a então (Cf. PhP, 520).
Desse modo, Merleau-Ponty parece admitir, no livro de 1945, a coexistência de dois
princípios distintos na subjetividade (o passivo e o ativo), sem se questionar
adequadamente pela possibilidade da sua integração. Como a atividade surge em um
89
sujeito originariamente passivo? Será tal atividade uma transformação da passividade ou
um princípio independente dessa última? Se se trata de uma transformação, como é
possível que a passividade se metamorfoseie em seu contrário? E se se trata de um
princípio independente, qual sua fonte e qual seu estatuto ontológico? Na
Fenomenologia da Percepção essas questões não são claramente respondidas. Desse
modo, julgamos que a crítica a Lachièze-Rey no curso A Passividade vale tanto como
auto-crítica implícita à posição insuficiente da Fenomenologia da Percepção no que
concerne a esse tema quanto como estímulo para que se formule uma nova concepção
de subjetividade.
Exemplos de passividade
Vamos expor, em suas linhas gerais, os temas que Merleau-Ponty subsume ao
conceito de passividade em seu curso de 1954-1955. O primeiro deles é aquele do sono
e do sonho. Quanto a esse tema, o filósofo desenvolve sua análise em contraposição
àquela de Sartre. Segundo Merleau-Ponty, para Sartre dormir “é como estar na vigília, é
ter consciência de alguma coisa, com simples diferença na estruturação hilética:
adequação em um caso, inadequação em outro” (IP, 195). Sartre conceberia a entrada no
sono e/ou sonho (ele não teria distinguido adequadamente entre esses dois estados)
como desligamento do mundo e livre exercício da consciência imageante, cujas
significações produzidas nesse estado não precisariam se adequar à matéria sensível (tal
como ocorre na percepção). Para Merleau-Ponty, essa concepção acentua
demasiadamente o papel ativo da consciência como produtora dos sonhos, e, desse
modo, ignora a especificidade do sono, do qual a atividade onírica é derivada.
O sono supõe, assim nos conta Merleau-Ponty, o afrouxamento dos sistemas
discriminativos da percepção, os quais nos oferecem, na vigília, a paisagem estável do
mundo. Dormir não implica um desligamento total em relação ao meio ambiente (do
contrário não haveria como explicar o retorno à vigília por meio de ruídos, toques, ou
seja, por meio de estímulos mundanos que despertam o corpo), mas supõe certamente
uma redução significativa, ao menos temporariamente, das capacidades perceptivo-
motoras. É sobre essa regressão dos poderes subjetivos imposta pelo sono que os
sonhos, com sua lógica bastante peculiar, ocorrem. “O sonho não é o sono, é o
compromisso do sono com a vigília” (IP, 197), afirma Merleau-Ponty. No sono, a
situação geral da vida subjetiva não é aniquilada; porém, como os sistemas diacríticos
do corpo estão entorpecidos, o sujeito se relaciona com tal situação não por uma tomada
90
de posição efetiva, mas pelo sonho, ou seja, por uma ordenação frouxa do seu drama
individual num campo de presença montado espontaneamente com fragmentos da
vigília e da memória. Assim, o sonho não decorre da atividade de uma consciência
imageante, mas da passividade do corpo. Daí que os sonhos se ordenem por uma
linguagem por vezes confusa (fruto do adormecimento dos sistemas discriminativos da
percepção), a qual não é ativamente criada pelo sujeito, mas a qual justamente exprime
a passividade do estado corporal do sono.
Merleau-Ponty estende para o tema do inconsciente seu esforço de conceber o
simbolismo do sonho como expressão de um nível existencial anterior à atividade
subjetiva. Segundo o filósofo, com a noção de inconsciente a tradição psicanalítica
busca compreender aquelas situações que são vividas pelo sujeito sem um saber
explícito, embora elas sejam passíveis de reconhecimento posterior. Uma viúva
solitária, por exemplo, arruma distraidamente a mesa do café com duas xícaras. Em
seguida, dá-se conta de seu engano e nele reconhece uma tentativa de superar os
sofrimentos da solidão. Nesse caso, a arrumação da mesa com duas xícaras teria
ocorrido de modo inconsciente: a viúva não sabia explicitamente que assim agia. No
entanto, a intenção de superar a solidão não era totalmente ignorada pela mulher, que
em seguida a reconhece como uma preocupação incômoda e constante. Esse exemplo
simples ilustra a ambigüidade entre um não saber e uma não ignorância, ambigüidade
que justamente se tenta apreender pela noção de inconsciente.
Merleau-Ponty rejeita conceber o inconsciente como uma segunda consciência
no interior da subjetividade. Segundo essa interpretação rejeitada, haveria um saber
explícito das intenções do sujeito (em nosso exemplo, a insatisfação com a viuvez), o
qual, diante de mecanismos de repressão, poderia se manifestar seja numa linguagem
cifrada seja em lapsos comportamentais (arrumar a mesa com duas xícaras, no exemplo
acima). Deve-se supor, segundo tal interpretação, um sujeito do inconsciente, que, de
um ponto de vista privilegiado, sabe antecipada e adequadamente a verdade das
experiências do sujeito consciente. Por sua vez, Merleau-Ponty propõe uma
interpretação alternativa, que dispensa a suposição de dois sujeitos na mesma pessoa.
Para ele, as ambigüidades do inconsciente se tornam compreensíveis se remetidas à
percepção. A atividade perceptiva não apenas apreende conteúdos positivos, mas
também envolve a não percepção de diversos elementos que compõem o horizonte
perceptivo (partes dos objetos e da paisagem que não são vistas, vários ruídos de fundo
que não são registrados, etc.). Os dados sensíveis compõem uma situação complexa, da
91
qual o sujeito perceptivo não se conta completamente, embora, se necessário, possa
estender sua atenção para certas configurações do campo que compunham a paisagem
geral percebida, porém não de maneira explícita. A abertura perceptiva para o mundo
seria, assim, o modo pelo qual o inconsciente originariamente se ordenaria (Cf. IP,
212).
Segundo Merleau-Ponty, a abertura perceptiva institui matrizes simbólicas por
meio das quais as situações vividas são apreendidas. Certas situações, por exemplo, são
imediatamente percebidas como tensas ou agradáveis sem que se tenha explicitamente
avaliado os elementos que as compõem. Ocorre que as experiências particulares são
assimiladas a certos padrões pelos quais a percepção discerne seus dados. Em nosso
exemplo da viúva, os gestos de arrumação da mesa naturalmente envolviam
ressonâncias do convívio com o marido, e espontaneamente reproduziram uma situação
habitual que, no entanto, não podia mais se repetir. Não é preciso supor um sujeito
oculto que ativamente tenha orquestrado o lapso comportamental; basta reconhecer a
eficácia passiva de um modo geral de perceber e se inserir no mundo, o qual por vezes
se sobrepõe àquilo que a especificidade da situação em questão exigira, tal como a
arrumação de uma mesa com duas xícaras por uma viúva exemplifica. A situação
particular requeria não mais de uma xícara. Porém, o caráter típico ou familiar que
compunha tal situação, e que estava associado a duas xícaras, se impõe sobre a vivência
atual.
O exemplo da viúva nos ajuda a entender de que maneira Merleau-Ponty
pretende que sua noção de inconsciente se aplique ao caso das vivências traumáticas, as
quais, segundo certas interpretações, seriam recalcadas mas mesmo assim coordenariam
algumas atitudes dos indivíduos. Segundo o filósofo, não é preciso supor um
reservatório de representações inacessíveis à consciência senão de maneira distorcida ou
figurativa (mas plenamente explícitas para o suposto sujeito do inconsciente). Na
verdade, os eventos traumatizantes instituíram matrizes simbólicas e sugeririam
condutas estereotipadas ante as situações particulares que remetem a tais matrizes. Não
haveria, desse ponto de vista, uma causalidade oculta, provinda de representações
reprimidas, a determinar certas atitudes subjetivas, mas sim marcos gerais, atuantes na
percepção, que delimitam a apreensão dos eventos mundanos
4
.
4
Em A Natureza Merleau-Ponty relativiza o papel do inconsciente do recalque, o qual seria “uma
formação secundária, contemporânea da formação de um sistema percepção-consciência” (N, 381). Por
sua vez, o “inconsciente primordial seria o deixar-ser, o ser inicial, a indivisão do sentir” (Ibid.). O
92
A reflexão de Merleau-Ponty sobre o inconsciente se desenvolve em um
questionamento acerca da memória, ou seja, da conservação do passado na vida atual. É
no presente que o reconhecimento de algo como passado ocorre; no entanto, para o
filósofo, não é por meio da consciência presente que o passado é constituído enquanto
tal. Se assim fosse, o conteúdo ao qual se atribuiria a significação “passado” seria na
verdade um conteúdo presente, e, desse modo, não haveria acesso verdadeiro ao
passado (Cf. IP, 269). Para Merleau-Ponty, a memória não se limita a recriar ativamente
conteúdos sensíveis que deixaram de existir. uma presença do passado que
passivamente se impõe ao sujeito. Essa presença ocorre por meio do corpo: “lembrar-se
de qualquer coisa é lembrar-se do modo como se tinha acesso a esse qualquer coisa (...),
é então lembrar-se de uma certa maneira de ser corpo” (IP, 269). O problema da
memória se inverte: não é mais a conservação da imagem e a capacidade mental de
recriá-la que faz com que haja passado para nós, mas é porque o corpo passivamente
adquire uma espessura temporal e assim nos liga diretamente com o passado que as
lembranças podem ser conservadas e ressurgir para a consciência presente.
Ao atribuir uma espessura temporal ao corpo, Merleau-Ponty se afasta da
doutrina da temporalidade tal como exposta na Fenomenologia da Percepção. Segundo
esse livro, o tempo é um fluxo contínuo de passagem, que se marca como instantes
diferenciados. Esse fluxo se confunde com a própria vida da consciência subjetiva, e é
apenas por meio dela que, de um modo derivado, pode-se atribuir um caráter temporal
aos eventos do mundo (Cf. PhP, 471). Já em A Passividade, baseado em algumas
descrições de Proust, Merleau-Ponty afirma que o tempo “se no esquema corporal”
(IP, 255). Dessa maneira, não são estruturas subjetivas aquelas pelas quais ocorre a
temporalidade, mas sim estrutura anônimas, oriundas do corpo, as quais passivamente
ordenam o fluir temporal. “Uma grande fadiga e seu ‘deslocamento orgânico’ pode nos
inconsciente do recalque seria somente uma modulação particular (referente a eventos traumáticos) do
modo geral pelo qual as matrizes simbólicas funcionam normalmente na percepção. Além disso, Merleau-
Ponty questiona a concepção do conteúdo do inconsciente do recalque como repositório de representações
traumáticas vividas na primeira infância e então conservadas. O filósofo sugere que essa concepção
projeta sobre a vida infantil o modo adulto de compreender e assimilar as vivências. Afinal, a noção de
representações cujo sentido (incompatível com a consciência) deve ser reprimido supõe justamente uma
consciência de si plenamente estabelecida, em oposição à qual determinado conteúdo deve permanecer
inconsciente. Ora, por sua vez, o eu infantil “não se fala nem se pensa” (N, 352), e dificilmente
classificaria tais vivências com o mesmo peso pelo qual alguns psicólogos as tacham de traumáticas. Em
suma, a consciência infantil não disporia dos mecanismos de defesa pelos quais o inconsciente do
recalque seria constituído. Aquilo que muito posteriormente os adultos sob tratamento psicanalítico
reconhecem como recalques infantis seriam então projeções tardias das supostas causas dos conflitos
atuais na infância, mas não explicitações de um conteúdo que desde o início da vida porta o mesmo
caráter traumático.
93
recolocar no nível das fadigas da infância e nos a infância” (IP, 276), exemplifica
Merleau-Ponty.
Vale notar que na Fenomenologia da Percepção Merleau-Ponty admite
rapidamente a existência de um tempo generalizado anterior à temporalidade subjetiva.
“Esse tempo é aquele de nossas funções corporais, que são cíclicas como ele, é também
aquele da natureza com a qual nós coexistimos” (PhP, 517). No entanto, naquele livro,
essa tese de um tempo generalizado, partilhado pelo corpo e pela natureza, não é
desenvolvida, que vigora a concepção que identifica temporalidade e subjetividade.
Por sua vez, no decorrer dos anos cinqüenta, Merleau-Ponty busca dessubjetivar o
tempo, de modo a associá-lo primeiramente ao corpo e posteriormente ao próprio ser
(como veremos em nossa análise dos cursos sobre a natureza, logo a seguir, e em nossa
conclusão)
5
.
Uma vez retomados os estudos pelos quais Merleau-Ponty explicita a
passividade, tentemos sintetizar o interesse filosófico de tal empreitada. Trata-se, sem
dúvida, de explicitar estruturas existenciais que antecedem a e/ou são independentes da
atividade subjetiva. Essas estruturas estabelecem um contato com o mundo diferente
daquele obtido pela compreensão ativa das situações vividas. Nesse sentido, o
reconhecimento de estruturas passivas da existência humana sugere uma renovação
ontológica: essas estruturas nos abrem para o mundo não como um conjunto de objetos
delimitados pelas capacidades cognitivas, mas como campo denso de eventos, que
mobiliza a subjetividade de uma maneira que ela mesma não coordena totalmente.
Assim, por exemplo, as matrizes simbólicas captadas pela percepção, longe de ser
projeções da subjetividade, parecem exprimir uma articulação de sentido inerente ao
mundo sensível. Por sua vez, a temporalidade, não mais concebida como expressão da
subjetividade, parece se caracterizar como registro corporal de um fluxo de passagem
que pertence à própria natureza. Desse modo, os sistemas passivos do corpo sugerem a
investigação do mundo não como correlato dos poderes da subjetividade, mas como
uma infra-estrutura sobre a qual a subjetividade se erige. É o estudo dessa infra-
estrutura que os três cursos de Merleau-Ponty sobre a natureza oferecem.
5
Deve-se também notar que Merleau-Ponty se refere na Fenomenologia da Percepção a excertos de
Proust para defender o papel constitutivo do corpo na ordenação das memórias (Cf. PhP, 211). No entanto
essa menção ocorre no capítulo “O corpo como expressão e a fala”; no capítulo referente à temporalidade,
o corpo tem pouco ou nenhum papel na ordenação do fluir temporal.
94
A Natureza
Merleau-Ponty ministra três cursos sobre a natureza (entre 1956 e 1960). No
primeiro deles (1956-1957), avalia as principais concepções filosóficas sobre a natureza
à luz de algumas teorias da física contemporânea. No segundo (1957-1958), apresenta
reflexões sobre a animalidade e a vida em geral. Finalmente, no terceiro (1959-1960),
esboça uma passagem do mundo animal ao mundo da cultura por meio de considerações
acerca do corpo humano. Com tais cursos, o filósofo explora detalhadamente a infra-
estrutura ontológica da qual o ser humano se erige (vislumbrada no curso A
Passividade). Essa exploração implica significativas alterações em sua perspectiva
teórica, tal como indica o seguinte excerto do resumo do primeiro curso sobre a
natureza: “se nós não nos resignamos a dizer que um mundo de onde seriam retiradas as
consciências não é nada, que uma Natureza sem testemunhos não teria sido e não seria,
nos é necessário de algum modo reconhecer o ser primordial que não é ainda o ser
sujeito nem o ser objeto, e que desconcerta a reflexão em todos os sentidos” (N, 357).
Nesse trecho, Merleau-Ponty se esforça por não mais limitar o ser do mundo
àquilo que é passível de apreensão pela consciência humana. Vimos, em nosso primeiro
capítulo, que na Fenomenologia da Percepção o ser é definido como aquilo que se
manifesta sensivelmente (Cf. PhP, 455). Essa perspectiva ainda era defendida no curso
A Passividade, segundo o qual “o homem jamais pode pensar uma natureza sem o
homem” (IP, 172). É verdade que no curso de 1954-1955, Merleau-Ponty admite uma
relativização da atividade perceptiva
6
. Mas essa relativização se refere apenas ao
reconhecimento de que certos conteúdos percebidos decorrem de limitações da
perspectiva subjetiva e não correspondem ao modo como a situação está de fato
ordenada (por exemplo, a percepção de que o sol se move). No que tange à concepção
de ser em geral, a percepção permanecia como principal critério ontológico
7
, no sentido
em que o ser ainda era definido como ser perceptível. Por sua vez, nos cursos sobre a
natureza, conforme o excerto citado acima expõe, Merleau-Ponty parece relativizar até
mesmo esse último privilégio da consciência perceptiva, pois admite um ser primordial
que existe independentemente de qualquer apreensão subjetiva. Dessa maneira, o
filósofo recusa a tese de que o ser supõe um testemunho subjetivo tácito que o delimite
6
Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty apresentava a percepção como “acesso à verdade”
(PhP, XI), e, por conseguinte, defendia: “o levantar do sol e em geral o percebido é ‘real’” (PhP, 396).
em A Passividade, admite que “seria falso crer no sol móvel” (IP, 173) tal como manifestado pela
percepção ingênua.
7
“Há, na ordem do ser e não do ente, uma verdade da percepção que permanece” (IP, 173).
95
de antemão como ser percebido. Trata-se, sem dúvida, de uma recusa desconcertante
para a reflexão de cunho fenomenológico, tal como desenvolvida nas obras anteriores
de Merleau-Ponty. Lembremos, por exemplo, que no artigo “O metafísico no homem”,
de 1947, Merleau-Ponty reconhecia como fato metafísico fundamental que existe o
ser-para-mim e que fora da correlação com a subjetividade não havia sentido em
prosseguir com uma investigação ontológica (Cf. SnS, 114). Por sua vez, nos anos
cinqüenta, o filósofo parece abandonar tal concepção e reconhecer que a investigação
ontológica deve buscar o ser anterior à correlação subjetiva, ou seja, deve deixar de
focar o ser que dela resulta (ser-para-mim) e explicitar o ser que a funda e a torna
possível (ser primordial)
8
. Vejamos em que medida os cursos sobre a natureza fornecem
subsídios para essa tarefa.
Uma abordagem histórica
Na parte inicial de seu curso de 1956-1957, Merleau-Ponty apresenta uma
história conceitual da idéia de natureza tal como exposta por diversos filósofos. Por
meio dessa história, o filósofo pretende mostrar que a concepção da natureza como
autoprodução de um sentido independente e anterior à atividade subjetiva por diversas
vezes figurou como alternativa teórica às idéias tradicionais mecanicistas ou
intelectualistas acerca do mundo natural. Porém, tal alternativa jamais foi desenvolvida
adequadamente pelos filósofos em pauta, os quais oscilam entre ela e tais idéias
tradicionais da natureza.
Descartes, por exemplo, define, por um lado, a natureza como um produto do
poder divino, produto sem interioridade própria. A natureza teria sido criada como total
positividade, como atualização plena de todas as suas possibilidades, de modo a não
haver nenhuma finalidade a ser atingida. Por conseguinte, o mundo natural deve ser
estudado como um mecanismo ordenado por um sistema eterno de leis (Cf. N, 26-33).
Por outro lado, ao considerar o composto humano de alma e corpo, Descartes hesita em
submetê-lo às mesmas regras mecanicistas que regeriam o restante da natureza material.
Parece mesmo haver uma tentativa de conceder à extensão corporal atributos da
substância espiritual, tal como a unidade interna de todas as suas funções. Assim como
8
Não é verdade, assim, tal como julga Madison, que “a questão referente àquilo que o Ser poderia ser
sem o homem ou antes dele não parece ter muito sentido para Merleau-Ponty” (Madison, G. B. The
Phenomenology of Merleau-Ponty. A search for the limits of consciousness. Ed. supra, p.221). Talvez
essa questão não fizesse muito sentido na época da Fenomenologia da Percepção, mas certamente é
bastante significativa nas suas reflexões dos anos cinqüenta.
96
no espírito a imaginação, a vontade e demais atos estão subsumidos ao auto-
reconhecimento do sujeito como base da vida psíquica, do mesmo modo no corpo, a
motricidade, a percepção e demais funções não seriam sistemas mecânicos separados,
mas sim expressões de uma unidade de princípio, aquela das intenções corporais (Cf. N,
38). No entanto, Descartes não avança em uma reflexão acerca da existência encarnada,
cujas aparentes peculiaridades são remetidas às idéias confusas da vida cotidiana. Uma
vez assumido o método que busca idéias claras e distintas, é a concepção mecanicista da
natureza que vigora.
Também há oscilação na definição da natureza por Kant. Por um lado, o filósofo
alemão concede poder constituinte às categorias do entendimento humano, de modo que
a natureza se reduz aos objetos da experiência ordenados conforme os poderes da
subjetividade humana. Por outro lado, essa concepção depende da existência de uma
natureza prévia, a qual fornece os dados sensíveis sobre os quais a atividade constituinte
subjetiva se exerce. Haveria assim uma natureza fáctica que sustentaria os poderes da
subjetividade. No entanto, uma vez que a doutrina kantiana se limita a estudar os
fenômenos tais como constituídos pelas categorias cognitivas, tal natureza fáctica não é
devidamente explicitada (Cf. N, 40-47).
É possível encontrar também em Husserl uma dupla tendência na reflexão sobre
a natureza. No início de Idéias II, Husserl apresenta a natureza como esfera das meras
coisas (blosse Sachen), quer dizer, das coisas abstraídas de quaisquer significados
subjetivos e consideradas apenas em sua materialidade. Essa concepção seria aquela da
atitude teórica, na qual o conhecimento científico é produzido. Porém, ao lado dessa
concepção, Husserl desenvolve a noção de natureza como um campo primordial que
estaria na origem da noção de meras coisas materiais. Esse campo primordial seria
ordenado não pelas categorias do entendimento, mas conforme as capacidades
corporais. Somente após um longo processo de objetivação (que envolve um esforço
conjunto de diversos sujeitos) surgiria a idéia de meras coisas materiais. Inicialmente,
na experiência concreta, a natureza se apresentaria como um ser pré-objetivo que torna
possível e sustenta os poderes subjetivos
9
. No entanto, Husserl intitula essas análises de
9
Segundo Merleau-Ponty, Schelling foi o filósofo que começou a articular uma concepção de natureza
anterior à sua apreensão intelectual. “O que Schelling quer dizer é que se redescobre a natureza em nossa
experiência perceptiva antes da reflexão” (N, 63), defende o fenomenólogo. Schelling teria buscado, ao
estudar a percepção, uma unidade primordial do sujeito com a natureza: “o que se chama de eu e o que se
chama de ser vivo têm uma raiz comum no Ser pré-objetivo” (N, 64).
97
preparatórias, feitas ainda sob a atitude natural, excluindo seus resultados do nível
transcendental puro (Cf. N, 102-113).
Ciência e natureza
A história conceitual apresentada por Merleau-Ponty no início de seu curso
sobre a natureza é bem mais complexa do que os tópicos apontados por nós na subseção
passada. Interessou-nos somente expor as tensões encontradas por Merleau-Ponty na
reflexão de alguns autores. Essas tensões são significativas, pois anunciam a concepção
que o filósofo francês desenvolverá, a saber aquela de uma natureza fáctica, cuja
produtividade (que os autores estudados apenas entreviram sem assumi-la
explicitamente) é anterior ao uso ativo das capacidades subjetivas.
Merleau-Ponty busca apoio na ciência contemporânea para desenvolver tal
concepção. As teorias físicas do início do culo vinte não corroboram a concepção de
natureza como um mecanismo perfeitamente comandado por leis eternas ou
perfeitamente determinado por categorias do entendimento. A mecânica quântica,
acredita o filósofo, ensina que, ao menos no nível subatômico, não há um conhecimento
determinado pleno, pois nesse nível a probabilidade se manifesta como uma
propriedade constituinte do ser (Cf. N, 125-132). Além disso, a ciência contemporânea
sugere uma compreensão renovada do espaço e do tempo. Quanto ao primeiro, as
métricas não euclidianas mostram que a geometria clássica não possui nenhum
privilégio ontológico, quer dizer, não espelha o ser de um modo mais ou menos
adequado que outras geometrias. Haveria um espaço polimorfo, que aceita diversas
métricas sem privilegiar nenhuma em particular. Quanto ao tempo, a idéia de que
uma sucessão de instantes objetiva, válida para todo o universo (em relação à qual cada
objeto exibiria uma única localização temporal) é rejeitada pela física relativista.
Segundo essa última, o tempo não é um fenômeno indiferente aos acontecimentos que
nele se desenrolam, nem aos pontos de vista subjetivos (Cf. N, 139-152).
Essa renovação das noções básicas da física (determinação, espaço e tempo)
sugere uma idéia de natureza não mecanicista e não intelectualista. Merleau-Ponty se
serve das reflexões de Whitehead para dar forma a essa nova idéia decorrente das
teorias científicas contemporâneas. Segundo Whitehead, a natureza era concebida pela
maior parte dos cientistas e filósofos modernos (por exemplo, por Laplace) como
conjunto de objetos espaço-temporais existentes em instantes sucessivos que deixam de
existir tão logo se tornem passados e que ainda não existem enquanto instantes futuros.
98
Quer dizer que a natureza existiria como uma seqüência de instantes presentes que se
sucedem como flashes descontínuos (Cf. N, 154). Whitehead rompe com essa definição.
Para ele, a natureza não é um conjunto de objetos inertes submetidos a uma sucessão de
instantes descontínuos. Haveria uma atividade interna de passagem no interior da
natureza, ou seja, espontaneamente o mundo natural se ordenaria em conjuntos de
relações que desdobram uma espacialidade e uma temporalidade próprias (Cf. N, 155-
165).
Merleau-Ponty passa a considerar, com base nas reflexões de Whitehead, a
existência de um tempo cósmico (Cf. N, 181), quer dizer, de um tempo inerente à
natureza, o qual não é atribuído aos eventos pelas formas da sensibilidade humana,
como julga o kantis-ETQq00 reW* n0131a es1 cis1 d1e s1(hi)-1.9(t)-2[(c)3.9po9(s1)4.0( )-279.n0(a)3.9(ve)49(m)-2.0(e)4.0(nt)-2.0(1e)3.9à(i)-29(s1)4.0( )-250.0(na)4.0(t109.9(pur)3.0(e)3.9()-12.0(e)e)3.9M erlau
-
Ppoo a d pas(e)3.(ul)-2.u beveuntd,à a9(ve)49(m)-2 ad 2,d,Ppasmcim
99
presente não mais existiria senão como memória subjetiva. Por conseqüência, “se se
pudesse abolir em pensamento todas as consciências, restaria um brotamento de ser
instantâneo, aniquilado assim que se manifestasse” (N, 357), que toda duração
temporal (o que supõe a passagem do presente em passado e a sua conservação ou
sedimentação) ocorreria em virtude da consciência. Ora, tal como vimos no
parágrafo anterior, Merleau-Ponty bem poderia ter incluído nessa longa tradição
filosófica a Fenomenologia da Percepção, pois nesse livro o mundo natural também é
definido pela instantaneidade, e as dimensões temporais, associadas à subjetividade.
Desse modo, as posições assumidas em A Natureza servem como autocrítica implícita e
preparam o desenvolvimento de uma nova concepção de ser, a qual incluirá a
temporalidade entre seus atributos.
Embora aponte para uma noção de ser cujos atributos são fundantes daquilo que
a subjetividade pode experimentar (sem que necessariamente se reduzam àquilo que
está em correlação com os poderes subjetivos), o primeiro curso de Merleau-Ponty
sobre a natureza não despreza o ser percebido, ou seja, o ser tal como se manifesta em
correlação com as capacidades perceptivas humanas. Ocorre que tal ser percebido
recebe um papel mais modesto se comparado com aquele de definição geral do ser,
exercido na Fenomenologia da Percepção. Retomemos o tema dos entes e eventos
inobserváveis, exposto no primeiro capítulo, para esclarecer esse novo papel.
Conforme vimos, Merleau-Ponty, na Fenomenologia da Percepção, parecia
definir os entes ou eventos inobserváveis como constructos culturais, pois não haveria
verdadeiramente ser para além daquilo que se manifesta sensivelmente. Já em A
Natureza, o filósofo parece admitir que aquilo que existe não é somente o que se
manifesta perceptivelmente, embora ainda sustente que o que quer que exista deve ser
assimilado subjetivamente de maneira perceptiva. Essa mudança de perspectiva se torna
patente quando Merleau-Ponty se refere aos temas estudados pela microfísica
contemporânea. É em relação a eles que o ser percebido exercerá o seu novo papel, a
saber, de parâmetro de inteligibilidade ou modelo analógico
12
. Para Merleau-Ponty,
alguns problemas da física contemporânea, tais como a dualidade na interpretação de
certas medidas (que podem ser analisadas como o registro do comportamento seja de
partículas seja de ondas, conforme o observador interfira ou não no experimento), se
aproximam do modo ambíguo como a percepção ordena seus dados. Na percepção, de
12
“O campo perceptivo nos oferece o primeiro modelo do Ser sobre o qual a ciência trabalha a fim de dar
uma visão articulada do Ser” (N, 144).
100
um campo global alguns dados são segregados e apreendidos como coisas. Quer dizer
que as coisas percebidas não são núcleos duros de ser determinado, mas modulações do
campo perceptivo conforme a atenção do sujeito. Ora, os microfenômenos estudados
pela mecânica quântica parecem se organizar como o campo perceptivo, ou seja, tal
qual um campo polimorfo que sustenta diversos eventos prováveis, os quais se
individuam segundo a interferência subjetiva (Cf. N, 144). A física contemporânea não
implicaria, por conseguinte, um desmentido da experiência ingênua, mas a confirmaria
ao menos como inserção em um campo de eventos anterior aos sistemas clássicos de
medida. A seguinte afirmação de Merleau-Ponty exprime essa perspectiva: “poder-se-ia
dizer que a atitude do homem que percebe (...) simboliza com a atitude científica, nesse
sentido que o homem de antes da ciência está tão pouco afundado no espaço euclidiano
quanto o homem posterior à ciência” (N, 144). Importa aqui salientar que a atribuição
do papel de modelo à percepção (quanto aos temas da microfísica) implica reconhecer
algo modelado, que em si mesmo não é perceptível (embora partilhe de algumas
características também encontradas no campo perceptivo, o que justamente permite a
relação de modelagem conceitual). Assim, em A Natureza, Merleau-Ponty parece ter
desenvolvido instrumentos teóricos para reconhecer a existência de X para além da
concepção de X segundo os parâmetros perceptivos. Não é porque se pode conceber
X como percebido que X exista em si mesmo como necessariamente perceptível. Os
eventos microfísicos, por exemplo, não são neles mesmos perceptíveis, mas não são, por
isso, meros constructos culturais, tais quais ficções ou lendas. Trata-se, ao menos
pretensamente, de eventos que compõem a natureza, embora sejam compreendidos
pelos seres humanos conforme as restrições perceptivas desses últimos.
Notemos, no entanto, que modelo ou guia para o entendimento de alguns temas
da física contemporânea não será o papel final atribuído por Merleau-Ponty ao ser
percebido. No segundo e terceiros cursos de A Natureza, de fato o ser percebido
caracteriza uma camada ou estrato do ser do mundo, embora não mais a sua totalidade,
conforme veremos no restante do capítulo.
O ser sensível
Em seu segundo curso sobre a natureza, Merleau-Ponty deixa de se centrar nos
fenômenos físicos e se dedica a estudar alguns temas das ciências biológicas em geral.
Entre os muitos tópicos discutidos, destaca-se aquele do mimetismo, cuja análise
fornece elementos cruciais para a configuração de uma nova postura ontológica. No
101
mimetismo, constata o filósofo, os organismos se confundem com o meio ambiente, o
qual é anterior e indiferente a eles. Assim, por meio de certas estruturas orgânicas,
alguns animais se assemelham a determinadas configurações geográficas. aqui uma
dupla camada de eventos. Em primeiro lugar, o ambiente geográfico se manifesta de
uma certa maneira, faz-se sensível em cores, formas e texturas determinadas. Em
seguida, o modo como o corpo de alguns animais se desenvolve é tal que esses animais
se manifestam, ou seja, fazem-se sensíveis, de maneira a confundir-se com o meio. Quer
dizer que tanto o meio ambiente como os animais se organizam como sensibilidade
potencial, sua forma é aquela para uma percepção possível, a qual, no caso do
mimetismo, confunde as cores e formas dos seres vivos com aquelas da paisagem (Cf.
N, 240-248).
Como conclusão da análise do mimetismo, Merleau-Ponty afirma: “o
comportamento pode se definir por uma relação perceptiva e que o Ser não pode ser
definido fora do Ser percebido” (N, 247). Aqui vemos claramente que o ser percebido
não se limita a mero padrão de inteligibilidade dos fenômenos físicos (como concluíra o
primeiro curso sobre a natureza), mas constitui uma camada autônoma do ser. O mundo
natural e os seres vivos incluem em seu existir uma referência a uma percepção
possível, eles se ordenam como ser sensível. Deve-se notar que essa tese não significa
um retorno à perspectiva teórica da Fenomenologia da Percepção, mas justamente uma
importante alteração dessa última. Não se trata mais de partir de uma análise das
capacidades perceptivas e então definir o ser como aquilo que aparece para o sujeito (tal
qual aquela obra propunha). Trata-se, por sua vez, de reconhecer que o mundo, antes e
independentemente de sua apreensão pelo sujeito perceptivo, organiza-se como
sensibilidade iminente, de modo que as capacidades perceptivas podem então se
exercer. Não é, assim, em decorrência da atividade perceptiva que se deve definir o ser
como percebido (não é por se restringir o ser ao aparecer que se deve atribuir estatuto de
realidade às manifestações sensíveis), mas sim porque em sua própria arquitetônica a
natureza é sensível e se abre para visadas perceptivas.
O corpo sensível
Em seu terceiro curso sobre a natureza, Merleau-Ponty passa a considerar não
apenas o corpo dos animais que se mimetizam como inseridos no ser sensível, mas
também o próprio corpo humano, o qual porta em si um duplo aspecto. Por um lado, o
corpo é medida de todas as coisas sensíveis (Cf. N, 273). Esse atributo não traz
102
nenhuma novidade para os leitores de Merleau-Ponty, uma vez que a Fenomenologia da
Percepção o acentuara vigorosamente. Segundo esse livro, a presença ou ausência das
manifestações sensíveis decorre do modo como os sistemas corporais atribuem uma
forma significativa aos estímulos (Cf. PhP, 89). Tais sistemas fornecem, assim, a
medida daquilo que pode ser experimentado. Em A Natureza, Merleau-Ponty não rejeita
essa capacidade transcendental do corpo, mas contrabalança esse atributo com um
segundo aspecto, a saber, o fato de o corpo ser uma coisa sensível entre outras coisas
sensíveis do mundo (Cf. N, 273).
Esse segundo aspecto do corpo implica novidades em relação às análises da
Fenomenologia da Percepção. Nesse livro, Merleau-Ponty se esforça por caracterizar a
absoluta singularidade do corpo próprio ante os objetos do mundo. O filósofo se serve
do exemplo de duas mãos que se tocam para tanto. “Se eu posso apalpar com minha
mão esquerda minha mão direita enquanto ela toca um objeto, a mão direita objeto não é
a mão direita tocante” (PhP, 108). Há, assim, uma ambivalência inerente ao corpo: a
mesma mão pode ser ativa (poder de exploração) e passiva (pacote inerte de ossos e
carne). No entanto, essas características são mutuamente excludentes: em sua função
exploratória o corpo não se reconhece como massa passiva e vice versa. Essa mútua
exclusão implica que o corpo como veículo de intenções ativas, o corpo-sujeito que
organiza o ambiente, jamais se confunde com um objeto. O corpo ativo é a medida pela
qual as coisas as experiências se ordenam, e ele não se assemelha a nenhuma dessas
coisas
13
.
em A Natureza, o corpo ativo não mais é considerado como excludente do
corpo sensível (o qual seria semelhante, nesse aspecto, às coisas). O exemplo das mãos
que se tocam é reutilizado por Merleau-Ponty, agora em favor de uma nova tese.
“Minha mão é coisa sobretudo para a outra mão que a toca” (N, 285), constata o
filósofo. Não se trata mais de reconhecer a absoluta irredutibilidade entre esses dois
aspectos. Pelo contrário, Merleau-Ponty admite que “há um tipo de identidade do
tocante e do tocado” (Ibid.), sustentada pelo fato de que a mão que toca poderia se
tornar tocada e vice versa. O filósofo continua a defender que a identidade plena entre
esses aspectos não se verifica: “no momento em que a mão tocada se torna tocante, ela
cessa de ser tocada” (Ibid.). Mas sua conclusão geral não é em favor da singularidade do
13
“Enquanto ou toca o mundo, meu corpo não pode ser visto ou tocado [por si mesmo]. O que o
impede de ser alguma vez um objeto, de ser alguma vez ‘completamente constituído’, é que ele é isso
pelo que há objetos” (PhP, 108).
103
corpo-sujeito em relação às coisas; na verdade, o exemplo das mãos que se tocam
permite apreender “meu corpo em sua duplicidade, como coisa e veículo de minha
relação com as coisas. São os dois ‘lados’ de uma experiência, conjugados e
incompossíveis, complementares” (Ibid.). Assim, Merleau-Ponty acentua que o corpo-
sujeito não é completamente distinto das coisas, que seu poder exploratório somente
revela uma face da existência corporal, a qual também se define por seu caráter sensível,
caráter partilhado pelas coisas do mundo.
É por meio dessa comunidade sensível entre corpo e mundo que se esclarece a
gênese das capacidades perceptivas. O modo como Merleau-Ponty expõe esse tema
parece sugerir, por vezes, que a reflexividade corporal (a referência do corpo a si
próprio, de modo a assumir os papéis reversíveis de tocante e tocado) é a responsável
por tornar possível a relação com o mundo: “o corpo como tocante-tocado, vidente-
visto, lugar de um tipo de reflexão e por capaz de se remeter a outra coisa que sua
própria massa, de fechar seu circuito sobre o visível” (N, 270-1). Parece, assim, que a
relação do corpo consigo é condição necessária e suficiente para qualquer
reconhecimento dos dados exteriores, como se, ao se tocar, o corpo instaurasse uma
capacidade que então poderia se aplicar ao mundo
14
. Essa é a interpretação defendida
por Raphaël Gély em La Genèse du Sentir – Essai sur Merleau-Ponty
15
. Para esse autor,
“a abertura do corpo ao mundo não tem nada de imediato
16
”. Como então ela surge? “É
na medida em que o corpo humano é constituído de modo tal que um processo de
gênese do sentir pode advir nele que esse mesmo corpo pode se estender a isso que o
envolve”
17
. Segundo Gély, a experiência das mãos que se tocam é o modelo da criação
de um espaço do sentir. “No seio de nossa experiência, o sentir se deixa descrever como
um espaço de integração que é uma dupla explosão estabilizada das duas mãos uma para
outra”
18
. Com essa metáfora da explosão, Gély expõe que o sentir surge como esforço
para integrar os papéis incompossíveis das mãos (tocante/ tocada), de maneira a se
estabelecer uma dimensão de interação do corpo com as coisas.
Essa interpretação parece, como vimos, abonada pelo próprio Merleau-Ponty.
No entanto, defenderemos que ela não é completa. É verdade que a relação entre
tocante/tocado garante ao corpo a instauração de um espaço ou dimensão na qual pode
14
“Como [o corpo] tem essa referência a outra coisa que si? Ele está aberto em circuito com o mundo
porque ele está aberto: ele se vê, ele se toca” (N, 279).
15
Bruxelles: Ousia, 2000.
16
Ibid., p.79.
17
Id., ibid.
18
Ibid., p.70.
104
sentir a si mesmo. Desse modo, o corpo obtém estados afetivos e toma consciência de si
próprio. Mas como explicar a passagem da instauração do espaço do sentir intra-
corporal para a relação com o meio? Parece-nos que a instauração da reflexividade
tocante/tocado não é condição suficiente para a entrada em vigor de tal relação. É
preciso afirmar mais do que a reflexividade corporal para compreender o circuito com o
mundo; trata-se de reconhecer que as coisas partilham do mesmo estofo sensível que o
corpo e então se manifestam para seus poderes ativos (Cf. N, 280). É porque as coisas
são sensíveis (assim como a mão tocada é sensível para a tocante) que o poder
exploratório do corpo pode se aplicar sobre elas. Mas que as coisas sejam sensíveis e
que o corpo carregue em si esse parentesco com elas não é ocasionado pela
reflexividade entre tocante/tocado. Trata-se de características ontológicas oriundas da
própria estrutura do mundo.
Explicitemos um pouco mais nossa tese: o corpo pode perceber outra coisa que
si próprio não apenas porque há a instauração de uma interioridade senciente pela
relação entre seus aspectos passivos e ativos, mas principalmente porque as coisas a que
o corpo se dirige são sensíveis e se abrem aos poderes sencientes. Notemos que em
relação à reflexividade corporal, a atividade exploratória do corpo não é senão a outra
face de seu caráter sensível, passivo. A mão tocante, at.9(por)3l 1 Toé.9(s)-1.0(e)4.0(80(po )2.9(que)(80(po-1.0(e)4.0(l)-2.00 1.00000 0 0 Tm[(, )-)-180.0(a)4.)910.9(a)-6.0( )-9.9(que)3.9( )] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.0000387 0 12.00000 85.17826 594.35149 cm1.0000of-1.0( )-160( )-20.0( )-9.9(a)30(e)4.0(x)-10.2.05)-1.0( )-1o2.05asis m0 Tm[(c)4.9.9(s)--240.0(de)4.0( )50( )-69.9(pou(e)3.(e)-6.0(ns)-1 )-69.9(c)-6, 0( )-160.0(a)4.054.0( )-70.0(00000 0.9(T)1..9(r)2.3(e)4.0(l)-2.0(.0(sà(c)3.9(e)3.0( )-(a)3.9(ç)-pode)4.0( )-70.0(pep)2.9(e)4.A)2.0( )a)4.0(ç)-650( )-69.9(pr)-6, pou(e)3-69.9(pb)2.9(po )10000 0 0 Tm[(e)4.0(m)-2.0( )] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00003660 12.00000 124.29826 573.71149 cm1.0000u0 0 Tm[(e)4.0(m)-2.0( )] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf9112.00003660 12.00000 124.29826 573.71149 cm1.0000-69.9(pou(e)3( )9(quedu0 0 Tm[(E)1.0(x)-10.0((r)3.x)-10.0(i)-2.0(v81.00000 0 0 Tm[(, )-179.9(/240.0(de)4.09(e)3.9(, )-180o9.9(t)-1.93.9(o)-10.0(ot)-2.0(e)-1.0(i)-2.0(a)3.9(s )-110.9(c)4.0(o8910.0(i)-2.v0( )-160.1-2.0(v81.00 )-160.9(e)3.3.0(c)-5.81.00 )-160.9(e)3.é)-6.0( )-289.9(se10.0(se)2.9(nsí)-2.9(81.00-12.0(is)-1.0(c)-(a)3.9(t9)-2.0(a)3.91.93.9(o)-2.9(que)81.00 )-160.9(e)3.é)-6.0( (se)2.9b.9(pa)-5.9(r)30(e)4.0(x)-10.0(i)4.0(s)-1.0( )-150.0(da)-5.9( )] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00003450 12.00000 289.05826 552.95149 cm1.0000p)-10.0(ot)-2.0( )-10.09(r)-7.0(a1)4.0(ç)-61)3.9(s)-1.0()00000 0 9.9(do )-109.9()-289.9()-61)3.9(0(ópr)2.9(i)-1.9(a)3sã)2.9(odsm)-3.0(o. )-19.e)3.9( )-109.pa(pr)3.0(e)-6a.e qu prat que00.0(0( )-10.0(e)4.0(A)2.0( )-0 0 0 -7.0(a)3.1159.9(a)4.0(os)-.0(he)4.1-6.0(g)10.0)4.0(f)0 0 Tmodo; t prisaspril(e)3.9(, )-18.9(ó)-10.outra
105
orientação em relação ao ambiente sensível, e não que essa última se origine totalmente
da reflexividade corporal.
O ser negativo
Tentamos mostrar que conforme os cursos sobre a natureza a experiência não
apenas se torna possível por meio das capacidades perceptivas do corpo, tal como a
Fenomenologia da Percepção acentuava, mas também, e principalmente, por meio da
sensibilidade inerente às coisas e ao corpo. O seguinte trecho do segundo curso sobre a
natureza exprime bem essa perspectiva:
admitir a existência de um órgão do sentido é admitir um milagre tão
notável quanto admitir uma semelhança entre a borboleta e o meio, já
que, no órgão do sentido, a matéria é disposta de tal modo que ela é
sensível a um meio no qual o órgão não está. É assim que a fisiologia do
aparelho visual é tal que a estrutura física desse aparelho permite atingir
estruturas de perspectiva correspondendo a formas do ambiente (N,
243).
Segundo esse excerto, a sensibilidade partilhada por órgãos corporais e por
coisas mundanas sustenta a experiência. O corpo pode perceber algo porque sua
estrutura sensível e aquela das coisas são comuns; não assim nenhuma
incompatibilidade entre o ser do mundo e aquele do corpo: ambos são arquitetônicas
sensíveis que se ordenam como visíveis ou tocáveis, quer dizer, que se organizam para
uma percepção possível (justamente aquela que o poder senciente do corpo exerce).
notamos que essas conclusões não estavam contidas na Fenomenologia da
Percepção. Nesse livro, tal como vimos em nosso primeiro capítulo, a existência do
mundo era delimitada conforme o repertório perceptivo do sujeito perceptivo, o qual
portaria um projeto de todo ser possível (Cf. PhP, 411). Por sua vez, em A Natureza,
Merleau-Ponty considera que é pela organização interna ao próprio ser, tal como o
fenômeno do mimetismo exemplifica, que o mundo se faz sensível e se abre para a
percepção. Nesse texto, o filósofo não parte dos poderes do corpo próprio para concluir
acerca dos componentes ontológicos do mundo, mas se baseia nesses componentes para
então justificar a atuação de tais poderes. No entanto, apesar das diferentes perspectivas
teóricas assumidas na Fenomenologia da Percepção e em A Natureza, pode-se alegar
que os resultados de ambas as obras convergem. Renaud Barbaras nos ajuda a explicitar
esse ponto de vista. Segundo esse autor, as análises de A Natureza que reconhecem uma
106
sensibilidade inerente ao ser implicariam que não diferença entre realidade e
manifestação sensível, pois a ordenação natural do mundo não é senão aquela que
implica uma percepção possível:
A realidade não é nada mais que essa aparência, mas a aparência é uma
realidade original e específica; ela existe ‘em si’ como aparência e assim
não depende da consciência. A realidade, então, não é fenomenal porque
se refere à consciência (essa ainda era a posição de A Estrutura do
Comportamento e da Fenomenologia da Percepção); antes, a realidade
se refere à consciência porque ela é em si mesmo fenomenal
20
.
Barbaras resume, desse modo, sua interpretação das alterações no pensamento de
Merleau-Ponty: de início, em A Estrutura do Comportamento e na Fenomenologia da
Percepção, o filósofo partia da consciência perceptiva e concluía que o ser era idêntico
a seu aparecer; em A Natureza, Merleau-Ponty parte do próprio ser, mas também
conclui que esse ser não se distingue do seu aparecer.
Defenderemos que essa interpretação não é correta, já que as análises de
Merleau-Ponty acerca das estruturas do mundo (consideradas de maneira autônoma e
não em sua correlação com a consciência perceptiva) não se limitam a concluir que o
ser se abre a uma percepção possível e é completamente fenomenal ou apreensível pelas
capacidades perceptivas. É verdade, Merleau-Ponty admite que é “a partir do sensível
que podemos compreender o Ser” (N, 335), ou seja, que é por meio da camada
ontológica organizada para uma percepção possível que temos acesso direto às
estruturas do mundo. Mas isso não significa que o ser se reduza a essa camada que se
fenomenaliza. Com efeito, Merleau-Ponty também sustenta a “inclusão do Ser visível
em um Ser mais vasto” (N, 335), de modo a admitir que o ser perceptível não é a
totalidade do ser. O ser do mundo se compõe, assim, não só de eventos ou coisas que se
fenomenalizam; também estruturas invisíveis, que não se doam à percepção humana
senão como ausência e que, mesmo assim, participam da ordenação dos eventos
mundanos. Alguns estudos contemporâneos de biologia, retomados pelo filósofo,
exemplificam essa negatividade operante no interior do ser.
Em seu segundo curso sobre a natureza, Merleau-Ponty se dedica longamente a
expor alguns estudos de embriologia conduzidos por Coghill
21
e por Gesell
22
, os quais
20
Barbaras, R. “A phenomenology of life”. In: Carman, T., Hansen M. (eds.). The Cambridge
Companion to Merleau-Ponty. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2005, p.226.
21
Coghill, G. E. Anatomy and the Problem of Behaviour. New York/London, Macmillan, 1929.
22
Gesell, A., L’Embryologie du Comportement. Paris: PUF, 1945.
107
tentam articular de uma maneira inovadora o desenvolvimento anatômico e
comportamental. Com base nesses autores, o filósofo formula uma concepção de
ontogênese mais vasta que aquela reducionista, segundo a qual decorrem da maturação
de estruturas fisiológicas os comportamentos, concebidos como padrões de reação
determinadas previamente
23
. Por um lado, Merleau-Ponty acentua que no
desenvolvimento embrionário ocorrem certas reações comportamentais que se
antecipam aos dispositivos nervosos que os facultariam. Por exemplo, o feto humano,
antes mesmo de dispor dos sistemas neurais que coordenam os batimentos cardíacos,
apresenta, em algumas situações (ao menos após nove semanas e meia de gestação),
sinais cardíacos que se assemelham àqueles de adultos em situações parecidas (Cf. N,
197). Há, assim, potencialidades comportamentais intrínsecas ao embrião que
antecedem a especialização anatômica dos centros fisiológicos coordenadores das ações
corporais. Para explicar essa antecipação comportamental em relação à maturação
neural, Coghill cunha a noção de gradientes: diferentes níveis de suscetibilidade dos
tecidos embrionários a impulsos elétricos ou bioquímicos (Cf. N, 191). Por meio desses
gradientes, desenvolvem-se as oposições morfológicas do embrião, de maneira a se
distinguir, por exemplo, um pólo vegetativo ou posterior e um pólo animal ou anterior.
Essa distinção possibilita a distribuição de certas funções correlacionadas com tais pólos
morfológicos, e, por conseguinte, torna possível a manifestação de certos
comportamentos embrionários pré-neurais. Tais comportamentos não se limitam a
manifestar a ativação de estruturas fisiológicas determinadas, uma vez que eles estão
inscritos em fases da morfogênese embrionária prévias ao funcionamento de tais
estruturas.
Por outro lado, Merleau-Ponty expõe que o desenvolvimento local anatômico do
embrião também antecipa a manifestação do seu comportamento. No feto humano com
oito semanas, por exemplo, ocorre o afastamento entre o polegar e os demais dedos
das mãos, de modo a configurar um certo padrão anatômico cujo efetivo uso se
manifestará vários meses após o nascimento, quando o bebê aprender a pegar objetos
pela oposição entre o polegar e os outros dedos (Cf. N, 197). Esse exemplo evidencia
que o corpo, ao menos em seu estado embrionário, se define por uma referência a
comportamentos possíveis. A base material do corpo é, assim, aberta a possibilidades
ulteriores, que justificam as estruturas anatômicas atuais.
23
“O interesse de uma noção como aquela de comportamento é que ela nos permite remontar aquém da
estrutura fixa que a anatomia revela” (N, 201).
108
Tal como expusemos nos dois parágrafos anteriores, os organismos, julga
Merleau-Ponty, devem ser concebidos como sistemas dinâmicos que em seu
desenvolvimento, ora por meio dos comportamentos ora por meio da anatomia,
antecipam possibilidades sobre seu próprio ser atual, de modo a instaurar um
desequilíbrio entre funções comportamentais e aparato orgânico (Cf. N, 207). Esse
desequilíbrio revela que os organismos, ao menos no caso do embrião, são como que
obsedados por suas possibilidades, no sentido de que seus padrões atuais de organização
não se esgotam em si mesmos e impõem uma referência a uma totalidade futura ainda
ausente
24
.
No que concerne à nossa discussão acerca do excesso do ser em relação ao ser
sensível, importa notar que na ontogênese animal a coesão do organismo se forma por
referência a uma totalidade invisível (Cf. N, 303). Existe uma negatividade operante na
ordenação da vida, quer dizer, o organismo não se reduz àquilo que pode ser
positivamente apreendido pela percepção. É verdade que o exemplo do mimetismo
mostrara que o organismo se ordena para uma percepção possível, e que, por
conseguinte, ao menos parte de seu ser é sensibilidade iminente. No entanto, os estudos
da embriologia mostram que o organismo não se reduz àquilo que se manifesta
perceptivelmente; pois nele uma referência a estruturas anatômicas ou padrões
comportamentais futuros, ordenados como uma Gestalt ausente, cuja totalidade não está
em correlação com nenhuma percepção possível. Essa totalidade ausente pela qual os
desequilíbrios inerentes ao desenvolvimento ontogenético se rearranjam em equilíbrios
futuros parece funcionar como um princípio ou dimensão invisível pela qual a vida se
ordena. Como veremos em nossa conclusão, será por meio da noção de dimensões
invisíveis, ou seja, de eixos inaparentes pelos quais uma multiplicidade de fenômenos se
organiza, que Merleau-Ponty defenderá uma diferença irredutível entre o ser e o ser
percebido
25
.
24
“Em virtude de sua iniciativa endógena, o organismo traça o que será sua vida futura, ele desenha seu
meio (Umwelt); ele contém um projeto em referência ao todo de sua vida” (N, 202).
25
As análises acerca da embriologia exemplificam essa diferença, a qual é tratada de maneira mais
explícita nas notas de trabalho de O Visível e o Invisível. Deve-se notar que as análises dos organismos
como entes que envolvem uma negatividade não apreensível diretamente implicam uma mudança de
concepção em relação a algumas teses de A Estrutura do Comportamento. Nesse livro, o organismo era
definido como “um conjunto significativo para uma consciência que o conhece, não uma coisa que
repousa em si” (SC, 172). Já em A Natureza, embora não seja definido como uma coisa em si, o
organismo, em sua totalidade, não está em correlação com alguma consciência perceptiva, pois é
entrecortado por elementos negativos, que excedem aquilo que é apreensível positivamente.
109
Conforme nossa interpretação, não é correto afirmar que Merleau-Ponty
identifica o ser a estruturas sensíveis que se manifestam para a percepção humana, tal
como Barbaras propõe. A identificação entre o ser e o aparecer sensível tornaria difícil a
compreensão da negatividade operante pela qual se tenta esclarecer o desenvolvimento
ontogenético. E, de fato, notamos dificuldades na exposição de Barbaras sobre esse
tema. Como vimos, em sua interpretação de Merleau-Ponty, esse autor define a
realidade em termos de fenomenalidade: o ser não é nada mais que aquilo que se
manifesta para a percepção. Isso não ocorreria porque o ser dependeria da consciência,
mas porque em si mesmo o ser é sensibilidade iminente
26
. Embora não dependa da
consciência, o ser, porque se constitui como sensibilidade, é “correlativo com o sentido
subjetivo”
27
, ou seja, sua organização é exatamente aquela apreendida pela percepção,
defende Barbaras. Ora, não parece possível definir a totalidade ausente do organismo
(já que ela envolve possibilidades que não são perceptíveis atualmente) como
fenomenal. No entanto, é o que Barbaras sugere; para ele o organismo enquanto
totalidade que excede suas partes atuais “existe para alguém, envolve referência a um
ponto de vista”
28
. Qual justifica Barbaras fornece para sua interpretação? Segundo esse
autor, a totalidade ausente do organismo “é fenomenal no sentido que é irredutível a
eventos microscópicos (físico-químicos); ela pressupõe um ponto de vista”
29
. Assim,
para rejeitar a redução da totalidade do organismo a eventos objetivos dever-se-ia
aceitar que ela se manifesta para uma percepção possível. Barbaras parece supor aqui
um dilema (ou o ser é objetivo, conjunto de múltiplos eventos em si, ou é fenomenal,
voltado para uma percepção subjetiva) com o qual Merleau-Ponty, ao menos em seus
textos maduros, não concorda. Parece-nos que o filósofo define a totalidade do
organismo como uma negatividade que não se manifesta e que não se dirige a nenhum
ponto de vista privilegiado que a apreenderia, embora, mesmo assim, regule o
desenvolvimento orgânico. Desse modo, a totalidade ausente do organismo, ainda que
não se reduzindo a uma reunião de processos sico-químicos atuais, não confirma o
caráter fenomenal do ser, mas, antes, rompe a identificação entre ser e manifestar-se.
Aqui poderia nos ser objetado que os aspectos que formam essa totalidade
ausente são potencialmente apreensíveis pela percepção humana. Na Fenomenologia da
Percepção, defendia-se que embora a totalidade do ser do mundo não seja atualmente
26
Cf. Barbaras, R. “A phenomenology of life”. Ed. supra, p.226.
27
Id., ibid.
28
Ibid., p.224.
29
Ibid., p.225.
110
voltada para a apreensão subjetiva, aquilo que escapa a tal apreensão atual em nada
excede as estruturas subjetivas, que caso tais elementos excedentes se atualizassem,
se ordenariam de forma plenamente apreensível pelas capacidades perceptivas (Cf. PhP,
269-70, 377). A objeção em pauta tenta fazer valer a noção de projeto de todo ser
possível, que Merleau-Ponty atribuía às capacidades perceptivas na Fenomenologia da
Percepção, para as análises de A Natureza. Assim, as estruturas futuras que obsedam o
campo presente do embrião seriam plenamente apreensíveis pela percepção humana, o
que se confirmaria, por exemplo, quando da sua maturação, na idade adulta do
organismo. Nesse estágio, comprovar-se-ia facilmente que os comportamentos ou
sistemas fisiológicos que apenas potencialmente coordenavam o embrião são ordenados
de maneira sensível. De nosso ponto de vista, a objeção em questão supõe 1) que todas
as possibilidades que incitam o desenvolvimento orgânico vão se atualizar, e 2) que
aquelas possibilidades que de fato se atualizam são ordenadas de modo a serem
perfeitamente apreendidas pela subjetividade.
Quanto à primeira suposição, não é obvio que tal atualização plena ocorra. Pode-
se admitir razoavelmente que o aparato orgânico possibilita diferentes padrões
comportamentais (dos quais nem todos se atualizam), e que os comportamentos sempre
podem antecipar alterações fisiológicas não perceptíveis e nem mesmo previsíveis (tais
como no caso de mutações genéticas), e isso no decorrer de toda a vida orgânica, devido
à exposição a inúmeros fatores ambientais. Assim, a maturação do embrião, a passagem
à fase adulta, não valeria como prova de que a totalidade ausente que o obsedava de fato
se tornou estrutura manifesta. O excesso de possibilidades sobre o ser atual pode definir
a existência inteira do organismo, de modo que mesmo os indivíduos adultos nunca se
reduziriam àquilo que sensivelmente aparece. O organismo sempre envolveria uma
latência invisível (ou seja, desequilíbrios inaparentes entre seu aparato anatômico e
comportamental) pela qual sua existência se ordenaria.
Quanto à segunda suposição, não é óbvio que todas as estruturas anatômicas ou
comportamentais que se atualizam na existência do organismo se ordenem de um tal
modo que seu ser se identifica com aquilo que a percepção humana deles apreende. Por
exemplo, Merleau-Ponty apresenta a organização dos pólos morfológicos do embrião
por meio dos gradientes, os quais são concebidos como processos de diferenciação
invisível (Cf. N, 307). Provavelmente, o filósofo considera que os processos de
reconhecimento dos limiares bioquímicos ou elétricos pelos tecidos embrionários não
são fenômenos perceptíveis no mesmo sentido em que o levantar do sol ou o quebrar
111
das ondas são. Nesses últimos casos, trata-se de eventos macroscópicos que se
manifestam para a percepção ingênua antes mesmo de qualquer reflexão acerca da sua
veracidade. Por sua vez, a “percepção” do funcionamento dos gradientes envolve
inúmeros pressupostos teóricos e se torna possível após a elaboração de complexas
hipóteses e pelo uso de poderosos artefatos técnicos que traduzem eventos
microscópicos em dados compreensíveis cientificamente. Não é, assim, claro que todos
os processos do desenvolvimento ontogenético sejam de fato diretamente perceptíveis e
estejam em correlação com o sentido subjetivo, tal como parece propor Barbaras.
Com efeito, Merleau-Ponty não exige tal correlação. Afinal, seu estudo da
embriologia não foi desenvolvido como extração de conseqüências de certos dados
sensíveis fornecidos imediatamente pela percepção. Ao discutir a ontogênese animal, o
filósofo não parece descrever eventos percebidos, assim como a Fenomenologia da
Percepção descrevia a apreensão imediata de um cinzeiro ou de uma chaminé. Os dados
obtidos pela análise dos organismos não provêm dos conteúdos da percepção, e nem
servem, desse modo, para uma confirmação do caráter eminentemente perceptível da
totalidade do ser. Na verdade, ao citar a embriologia, Merleau-Ponty parece ter
suspendido as evidências da percepção e apelado a outra fonte de dados para sua
reflexão. Não se trata mais de descrever aquilo que se manifesta para a consciência
perceptiva, mas de se servir de dados científicos para esclarecer os temas em questão.
Entrevê-se aqui uma mudança significativa de metodologia. A Fenomenologia da
Percepção sugeria como gesto filosófico por excelência o retorno à experiência
perceptiva pré-objetiva, a qual deveria ser descrita sem distorções objetivistas
30
. Por sua
vez, em A Natureza, Merleau-Ponty assume um método por meio do qual tenta
caracterizar o ser não por uma descrição dos conteúdos apreendidos pela percepção (e
então definidos como medida de tudo o que existe), mas por uma análise de diferentes
resultados científicos. Vamos expor, no próximo capítulo, as alterações teóricas
implicadas por tal método em comparação com as teses da Fenomenologia da
Percepção.
30
“O primeiro ato filosófico seria então retornar ao mundo vivido aquém do mundo objetivo, já que é
nele que poderemos compreender os direitos e os limites do mundo objetivo” (PhP, 69).
Capítulo IV – O método indireto da ontologia madura de Merleau-Ponty
Sinopse
De início, retomamos como Merleau-Ponty, desde suas primeiras obras,
desenvolve sua reflexão com base em dados fornecidos pelas ciências. Em seguida,
mostramos que, no final dos anos cinqüenta, Merleau-Ponty generaliza esse método de
circunscrição indireta dos temas filosóficos e se serve da análise de fatos históricos e
produções culturais como fonte de dados para sua investigação. Por fim, esclarecemos
de que maneira, segundo o filósofo estudado, a escrita filosófica deve desenvolver suas
teses com base em tais dados obtidos indiretamente.
A) Filosofia e ciência
Convergências
No capítulo anterior, vimos que Merleau-Ponty recorreu a resultados científicos
acerca de diferentes âmbitos da natureza para esboçar uma investigação do ser
primordial, o qual é anterior à e independente das capacidades humanas. Neste capítulo,
pretendemos esclarecer a legitimidade desse recurso a dados científicos e acompanhar
como Merleau-Ponty formula e justifica o método indireto pelo qual desenvolve sua
última ontologia. Vamos expor, de início, como o filósofo, no decorrer de sua obra, se
relaciona com as ciências.
É possível reconhecer uma dupla atitude de Merleau-Ponty no que concerne às
ciências. Por um lado, o filósofo sempre sustentou um diálogo fecundo com as
disciplinas científicas de seu tempo, e sempre se serviu dos resultados dessas últimas
para alimentar sua reflexão. Por outro, essa proximidade amistosa jamais implicou a
redução da filosofia seja a um comentário acerca dos resultados obtidos pelas doutrinas
científicas seja a uma discussão dos métodos de produção de conhecimento, os quais
seriam exclusivamente utilizados pelas ciências. Merleau-Ponty defende, assim, haver
tarefas eminentemente filosóficas, que não poderiam ser realizadas pelas ciências (ao
menos não pelas ciências tais quais tradicionalmente exercidas, como veremos).
Explicitemos com mais detalhes os dois lados da posição do filósofo.
Devemos notar, primeiramente, que o recurso às ciências não é um
procedimento esporádico ou secundário na obra de Merleau-Ponty. O debate com as
doutrinas científicas percorre, por exemplo, toda A Estrutura do Comportamento, seu
primeiro livro. Ali, o filósofo censura a abordagem que reduz o comportamento à
113
fisiologia dos reflexos. Tal censura não decorre de um ponto de vista puramente
filosófico; é a Gestalttheorie, outra doutrina científica, que fornece as bases para a
crítica às teorias reducionistas e para o estabelecimento de uma nova concepção do
comportamento. A abordagem metodológica da Gestalttheorie possibilita uma
investigação que não reduz o comportamento a reações físico-químicas corporais. Não
se trata, por sua vez, de apelar à interioridade da consciência para salvaguardar a
irredutibilidade do comportamento. Na verdade, contrário a esse último apelo, Merleau-
Ponty reconhece na Gestalttheorie o advento de um método objetivo de apreensão da
atividade comportamental, o qual prescinde do recurso a dados inobserváveis, obtidos
por introspecção. Esse método busca fixar a estrutura da conduta, quer dizer, o sentido
manifestado pelos fenômenos em causa. Esse sentido pode ser apreendido seja pela
notação das respostas comportamentais ante os estímulos seja pelos relatos verbais, que
interpretam as próprias reações. Assim, em um teste psicológico, tanto uma criança que
deve falar quais cores são semelhantes quanto um símio que separa as fichas de cor
idêntica em pires diferentes explicitam uma mesma conduta comportamental (Cf. SC,
198). Por meio de palavras ou de gestos, interessa, no caso, avaliar a capacidade de
distinção cromática. Para tanto, não é preciso apelar para vivências privadas. A
realidade psíquica a ser investigada se manifesta na conduta observável, crê Merleau-
Ponty.
Na Fenomenologia da Percepção, o método enaltecido por A Estrutura do
Comportamento é assumido como resposta às possíveis objeções de que as descrições
de experiências percebidas se limitariam ao registro de vivências privadas. Na verdade,
em tais descrições, trata-se de explicitar o sentido pelo qual espontaneamente os
fenômenos se ordenam (Cf. PhP, 70). Esse sentido é apreendido do mesmo modo como
os psicólogos anotam a conduta dos sujeitos investigados: em ambos os casos, registra-
se uma ordenação pública de dados. A fenomenologia, assim como a psicologia que
estuda as estruturas concretas, não descreve dados introspectivos, mas eventos
observáveis.
Nos cursos reunidos em Psicologia e Pedagogia da Criança, Merleau-Ponty
reconhece que a apreensão de estruturas significativas observáveis não é uma meta
exclusiva da fenomenologia, uma vez que certos cientistas também a buscam. Merleau-
Ponty cita o estudo de Köhler sobre o comportamento de macacos (Cf. PPE, 13-14).
Esse cientista não apresenta os resultados de suas pesquisas apenas em termos
quantitativos, mas utiliza termos que exprimem o modo como certas situações estudadas
114
são apreendidas qualitativamente pelos observadores. Por exemplo, os macacos
estudados podiam não apenas chegar aleatoriamente à solução dos problemas; por vezes
eles “resolviam ativamente” o desafio em questão, ou por vezes ocorria o “bom erro”
com o qual eles aprendiam. Esses resultados exprimidos com termos qualitativos
parecem padecer de um certo antropomorfismo, uma vez que supõem o modo como a
subjetividade do cientista apreende a situação em pauta. No entanto, segundo Merleau-
Ponty, esse aparente antropomorfismo é, na verdade, uma característica indispensável
de uma pesquisa que se preocupa em exprimir a situação investigada tal como ela se
mostra. A investigação de Köhler não ignora a estrutura fenomenal dos casos estudados,
ou seja, o modo como eles se manifestam para a subjetividade cognoscente. Köhler,
assim como Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção, admite que a
manifestação fenomenal dos eventos estudados não é uma mera camada subjetiva que se
poderia dispensar em prol de uma suposta objetividade puramente quantitativa. É
necessário registrar o sentido contido em tal manifestação como componente irredutível
dos eventos estudados.
O exemplo de Köhler confirma que para Merleau-Ponty a ciência, quando estuda
o sentido manifestado nas estruturas fenomênicas, se aproxima da filosofia. Tal como o
filósofo francês afirma em Titres et Travaux, texto editado em Parcours II: o método da
filosofia concreta “está bem longe de ser reservado apenas aos filósofos, sobretudo na
ciência de hoje, mais afastada do que nunca de se limitar à indução empírica” (PII, 25).
Ocorre, dessa maneira, uma extraordinária convergência entre as pesquisas
desenvolvidas pelos pesquisadores de tais estruturas e as intenções da filosofia
fenomenológica, pois esta última visa circunscrever um campo subjetivo por meio do
qual o acesso ao mundo objetivo tornar-se-ia possível (Cf. PhP, 69-71). Com tal
convergência como pano de fundo, Merleau-Ponty chega mesmo a afirmar em um
debate de 1952 que “distinguir aqui entre o cientista e o filósofo é fazer uma distinção
que não corresponde a nada de efetivo” (PII, 375). Com essa afirmação, Merleau-Ponty
rejeita que haja alguma incompatibilidade de princípio entre ciência e filosofia. A
filosofia não é um encadeamento de puras idéias, mas tentativa de explicitar o sentido
das situações em que o ser humano está inserido. Por sua vez, a ciência não é mera
reunião de dados empíricos, pois implica uma elaborada reflexão conceitual acerca dos
problemas de que trata. Desse modo, ciência e filosofia, compreendidas como tentativa
de elucidação da experiência concreta, podem se ajudar consideravelmente.
115
Divergências
Apesar do entusiasmo com as pesquisas científicas que se aproximam da
fenomenologia, de maneira a praticamente reconhecer a indistinção entre ambas em
certos casos privilegiados, Merleau-Ponty resguarda a autonomia da filosofia ante a
ciência: a reflexão filosófica não deve se limitar a assimilar ou comentar dados positivos
das pesquisas científicas. E assim como o recurso a tais dados se faz notar nas
primeiras obras de Merleau-Ponty, do mesmo modo o filósofo sempre manteve uma
postura crítica ante certos compromissos teóricos que viciam os resultados científicos.
Merleau-Ponty não defende que a ciência padece de deformações congênitas
irremediáveis, como se por princípio não pudesse reconhecer a complexidade dos
fenômenos do mundo. Já no início de A Estrutura do Comportamento, o filósofo admite
que a física utiliza “indiferentemente modelos mecânicos, dinâmicos ou mesmo
psicológicos, como se, liberada de pretensões ontológicas, ela se tornasse indiferente às
antinomias clássicas do mecanicismo e do dinamismo, que supõem uma natureza em si”
(SC, 1). Aqui a física exemplifica que, ao menos em princípio, as investigações
científicas não estão presas a nenhuma concepção metafísica em particular. A atividade
científica busca explicar determinados conjuntos de eventos por meio de modelos
teóricos, os quais não estão de antemão comprometidos com nenhuma ontologia. Como
afirma o resumo do primeiro curso sobre a natureza, é impossível recusar [a ciência]
antecipadamente sob o pretexto de que ela trabalha na linha de certos prejuízos
ontológicos” (N, 368). Os cientistas, ao menos idealmente, contam com uma tal
liberdade na formulação das teorias que nenhuma concepção metafísica (a qual poderia
obscurecer a apreensão de certos aspectos da realidade) é antecipadamente favorecida.
A ciência porta idealmente, reconhece Merleau-Ponty, a possibilidade de
explorar a complexidade do mundo sem desqualificar, por preconceito metafísico,
nenhum fenômeno. O fato de que algumas pesquisas psicológicas praticamente se
identifiquem às descrições fenomenológicas, tal como vimos na subseção anterior,
exemplifica essa plasticidade ontológica inerente à atividade científica. No entanto, e
aqui a divergência de Merleau-Ponty em relação à ciência se explicita, historicamente a
maior parte das pesquisas cientificas se desenvolveu conforme uma metodologia que
favorece uma concepção metafísica bastante discutível. Essa metodologia busca isolar
os componentes materiais dos fenômenos, os quais supostamente formariam uma infra-
estrutura compreensível apenas matematicamente. Os dados visados por tal metodologia
são considerados inacessíveis pelas capacidades perceptivas, as quais seriam então
116
incapazes de desvendar a realidade última dos eventos. Anuncia-se aqui a tese
ontológica vinculada a tal metodologia científica: a realidade deve ser considerada
como um conjunto de eventos ou propriedades cuja ordenação é completamente
independente de e inacessível para as capacidades perceptivas humanas.
Chamemos tal opção metodológica e suas conseqüências ontológicas de
objetivismo, ou seja, uma postura teórica segundo a qual a realidade última do mundo é
independente de seu modo de manifestação para a subjetividade. É essa opção
metodológica que impede uma maior integração entre ciência e filosofia, pois a ciência
praticada de maneira objetivista não abarca todos os problemas vislumbrados pela
filosofia, de maneira a tornar legitimo o desenvolvimento de uma investigação filosófica
autônoma. A postura objetivista tende a ignorar o sentido das estruturas concretas
percebidas, o qual é reduzido a um mero efeito psicológico da ordenação real dos dados.
Por sua vez, tal ordenação seria desvelada ao se formular leis gerais que
descreveriam as propriedades inobserváveis do mundo, aquelas que verdadeiramente
constituiriam os eventos estudados. Dessa maneira, a investigação objetivista da
natureza atribui um caráter secundário à manifestação sensível em relação a uma infra-
estrutura plenamente abstraída da apreensão subjetiva das situações vividas. Se os
resultados da ciência são tomados como único acesso seguro aos componentes do
mundo e única fonte confiável para a elaboração de uma ontologia (tal como Merleau-
Ponty julga que eles assim foram tomados na época do Pequeno Racionalismo, século
XIX), então, sob regime objetivista, o ser é concebido como infra-estrutura destituída de
qualidades sensíveis
1
. Contra tal conseqüência, Merleau-Ponty rejeita a definição da
realidade tal como fornecida pela ciência objetivista, e, inspirado pelo Grande
Racionalismo do culo XVII (em que ciência e metafísica conviviam
harmonicamente), esforça-se por formular uma nova noção de ser, a qual, sem se
reduzir ao ser objeto da ontologia objetivista, inclua toda a riqueza dos fenômenos
percebidos.
Vimos, ao citar o exemplo da Gestalttheorie, que certas pesquisas científicas
tentam romper com o objetivismo ao considerar o sentido inerente às estruturas
percebidas como elemento ontológico irredutível a uma infra-estrutura puramente
1
Husserl já havia notado esse corolário ao comentar a matematização da Física moderna. Para ele, o
procedimento de obtenção de formas geométricas ideais (exatas) sobre os dados sensíveis sugeriu uma
interpretação metafísica errônea, a qual toma “pelo Ser verdadeiro o que é método” (Husserl, E. Die
Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie. Ed. supra, § 9h, p.52),
quer dizer, a qual supõe a existência de um mundo plenamente objetivo por trás das formas sensíveis
dadas na percepção.
117
quantitativa. Porém, essas iniciativas são bastante restritas, quase que se limitando em
sua totalidade à psicologia ou a algumas áreas da fisiologia. Elas não implicam, assim, a
elaboração de uma alternativa metodológica geral ao objetivismo. Além disso, tal como
aparece em A Estrutura do Comportamento, tais iniciativas não estão completamente
livres dos pressupostos objetivistas. Nesse livro, Merleau-Ponty lamenta que as
conclusões da Gestalttheorie tendam para um tipo de objetivismo materialista (Cf. SC,
144). Isso ocorreria porque os cientistas da Gestalttheorie defendem que a organização
gestáltica dos eventos biológicos em geral e aqueles da consciência humana são
redutíveis à organização gestáltica de eventos físicos. Dessa maneira, os fenômenos
ligados à vida e ao pensamento seriam efeitos de uma infra-estrutura material, passível,
em princípio, de ser estudada objetivamente. Ante essa postura reducionista, Merleau-
Ponty lamenta que “as categorias da ciência não são feitas para os fenômenos que ela
mesma colocou em evidência” (SC, 33). O filósofo salienta que embora muitas
pesquisas científicas ofereçam resultados que poderiam fomentar uma renovação acerca
do entendimento mais geral sobre os eventos mundanos, tais resultados são
normalmente interpretados segundo os cânones da ontologia objetivista, de maneira que
quaisquer novidades ontológicas neles contidas não são adequadamente desenvolvidas.
A tarefa filosófica é justamente conceber as novas categorias pelas quais os fenômenos
que não se conformam aos padrões objetivistas (embora a eles sejam arbitrariamente
reduzidos) possam ser compreendidos em toda a sua complexidade (Cf. SC, 84).
Esse é o caso dos fenômenos de Gestalt. Para Merleau-Ponty, os próprios
cientistas da Gestalttheorie insistiram em que nenhuma Gestalt pode ser remetida a
causas exteriores externas à sua ordenação imanente (Cf. SC, 144). Ora, para que se
assuma efetivamente tal tese, é necessário rejeitar a redução das Gestalten de eventos
biológicos ou da consciência humana à Gestalten físicas. Por sua vez, essa rejeição
implica assumir a especificidade do nível em que as primeiras se manifestam. As
Gestalten da percepção humana, por exemplo, não devem, então, ser reconduzidas a
eventos físicos no cérebro do sujeito perceptivo. Merleau-Ponty não nega a importância
do substrato neuronal para a percepção; porém, o filósofo defende que os padrões de
organização perceptiva se devem a processos de segregação inerentes ao próprio campo
fenomenal
2
. Assim, de maneira geral, a compreensão de certos eventos exige que as
2
Segundo Merleau-Ponty, “o funcionamento nervoso que distribui aos diferentes pontos do campo
sensorial seus valores espaciais ou cromáticos e que, por exemplo, nos casos normais torna impossível a
diplopia, não é concebível sem referência ao campo fenomenal e a suas leis de equilibro interior” (SC,
118
estruturas manifestadas pela percepção sejam tomadas como constituintes últimos da
realidade, e não como efeitos de uma infra-estrutura objetiva. Na Fenomenologia da
Percepção, Merleau-Ponty desenvolve a idéia de que o ser fenomenal é irredutível ao
ser objetivo. Esse último seria composto por atributos unívocos e exatos; já o ser
fenomenal seria em si mesmo indeterminado (sem limites ou medidas precisas) e
ambíguo (comporta diferentes sentidos) (Cf. PhP, 12, 18). Essas características
implicam que os eventos fenomenais não são assimiláveis pelos padrões das
investigações estritamente objetivas: não é possível isolar sua infra-estrutura material
sem a correspondente perda de algumas de suas propriedades mais importantes. E por
salientar essa originalidade do ser fenomenal ou percebido como constituinte irredutível
da realidade, a filosofia desenvolvida por Merleau-Ponty mantém sua autonomia em
relação à ciência, a qual, em sua maior parte, se realiza segundo uma metodologia
objetivista.
O método indireto
A investigação do ser fenomenal, a qual oferece uma nova base teórica para a
compreensão de certos eventos explicitados pela ciência (tais como os fenômenos de
Gestalt), garante, nas primeiras obras de Merleau-Ponty, a irredutibilidade da filosofia à
ciência. Além disso, tal investigação atesta que a obtenção indireta de dados para a
reflexão ontológica (ou seja, obtenção por meio da referência às disciplinas não-
filosóficas) já está presente em A Estrutura do Comportamento, primeira obra de
Merleau-Ponty
3
. Conforme acabamos de expor, nesse livro, o autor se apropria de
alguns resultados obtidos pela Gestalttheorie para rejeitar as concepções reducionistas
do comportamento e da vida perceptiva. Em seguida, na Fenomenologia da Percepção,
tenta desenvolver a noção de ser fenomenal ou percebido como uma categoria que
proporciona uma renovação das concepções ontológicas clássicas e permite
compreender adequadamente os fenômenos de Gestalt.
Vale notar que no livro de 1945, Merleau-Ponty continua a utilizar um método
indireto de reflexão. A explicitação de algumas das principais características do corpo
próprio ocorre por meio do estudo de casos patológicos, os quais permitem revelar por
207). Além disso, o filósofo sustenta que “o espetáculo de uma coisa vista através de seus ‘perfis’, essa
estrutura original não é nada que possa ser ‘explicadopor algum processo fisiológico ou psicológico
real” (SC, 209).
3
Luiz Damon Moutinho explicita esse tema no início de seu livro Razão e Experiência Ensaio sobre
Merleau-Ponty. Ed. supra, conforme mencionamos na introdução.
119
contraste os componentes do funcionamento normal das intencionalidades corporais
4
.
No entanto, parece-nos haver uma diferença crucial entre a reflexão indireta contida na
Fenomenologia da Percepção e aquela realizada nos escritos mais tardios, nos quais o
filósofo explicitamente admite usar um “método indireto”. No livro de 1945, o escopo
da reflexão indireta parece delimitado por uma concepção de ser formulada de maneira
direta. Como vimos em nosso primeiro capítulo, Merleau-Ponty define o ser, nesse
livro, como ser percebido, e restringe aquilo que pode existir àquilo que pode se
manifestar à consciência (Cf. PhP, 455). Notemos que essa definição não resulta da
aplicação de uma reflexão indireta, ou seja, da análise de dados oriundos de disciplinas
não-filosóficas. Merleau-Ponty parece tê-la obtido por confiar em que a percepção
apresenta o mundo tal como é, e que, conversamente, o ser do mundo não excede aquilo
que a percepção apresenta (Cf. PhP, X-XI)
5
. Desse modo, a reflexão indireta contida na
Fenomenologia da Percepção ocorre conforme os limites de uma concepção do ser que
não é derivada de tal reflexão. nos textos finais, o método indireto será utilizado
justamente para elaborar a própria noção geral de ser. Nesses textos, como veremos,
não uma delimitação prévia daquilo que é o ser, no interior da qual o apelo às
disciplinas não-filosóficas somente auxiliaria a desvendar alguns fenômenos. O apelo a
tais disciplinas será fundamental para compreender o que é o próprio ser do mundo.
Vimos, no capítulo anterior, que ao menos a partir do primeiro curso sobre a
natureza (1956), Merleau-Ponty não mais limita aquilo que existe àquilo que é
apreensível pela atividade perceptiva, mas passa a considerar um ser primordial, cuja
ordenação é anterior às capacidades subjetivas e delas independente. Essa consideração
decorre do uso generalizado do método indireto, quer dizer, da sua aplicação para
construir a própria idéia de ser (e não como técnica que supõe uma definição prévia do
ser como ser percebido). Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty supunha que
o sujeito perceptivo portava um projeto de todo ser possível, de modo que as
4
Ao observar as abundantes referências de Merleau-Ponty a estudos psicológicos, pode-se mesmo sugerir
que toda a primeira parte da Fenomenologia da Percepção, dedicada ao corpo, e boa parte da segunda,
dedicada ao mundo, foram construídas com base numa reflexão indireta.
5
Nas poucas vezes em que se refere a conhecimentos que excederiam aqueles apreensíveis pela
percepção, Merleau-Ponty atribui caráter secundário a tais dados ante a experiência perceptiva direta: “o
sol ‘se levanta’ tanto para o cientista quanto para o ignorante, e nossas representações científicas do
sistema solar permanecem da ordem do dizem que, assim como as paisagens lunares, nas quais nós nunca
acreditamos no sentido em que acreditamos no nascer do sol” (PhP, 396). Desse modo, o saber acerca da
astronomia heliocêntrica permanece secundário ante a experiência perceptiva. É que na Fenomenologia
da Percepção, Merleau-Ponty defende que “a experiência dos fenômenos (...) é a explicitação (...) da vida
pré-científica da consciência, que é a única a dar sentido completo às operações da ciência e à qual essas
sempre reenviam” (PhP, 71). Por conseguinte, nenhum dado científico poderia desmentir ou mesmo
relativizar o veredicto da percepção, já que dependeria desse último para fazer sentido.
120
articulações encontradas nos eventos mundanos eram exatamente aquelas reconstituídas
pelos poderes perceptivos humanos (Cf. PhP, 411). No entanto, ao investigar o ser
primordial, o filósofo parece não mais assumir essa suposição. É verdade que ainda é
afirmado que em sua própria organização o ser se abre para uma percepção possível e,
assim, confirma-se como eminentemente sensível. Porém, conforme vimos em relação
aos dados da embriologia, também é verdade que Merleau-Ponty reconhece uma
negatividade operante no interior do ser, a qual não se doa de maneira positiva à
percepção. A investigação do ser primordial, por conseguinte, não se limita à descrição
de estruturas mundanas perceptíveis em correlação com poderes subjetivos.
Para o estudo do ser primordial, o apelo aos dados científicos se torna crucial.
Muitos eventos, tal como a ordenação de tecidos embrionários por meio de gradientes
bioquímicos exemplifica, nem mesmos seriam notados se não se recorresse a pesquisas
científicas e se se confiasse somente na descrição da experiência perceptiva ingênua.
Daí que, para descrever o ser em toda a sua complexidade, não basta se limitar àquilo
que é apreendido perceptivelmente de maneira imediata. É necessário recorrer a uma
abordagem indireta para que certas propriedades sejam apreendidas, quer dizer, referir-
se a hipóteses científicas e aos respectivos testes que confirmam as conseqüências por
elas previstas. Mas ainda que o apelo a dados científicos seja indispensável para
caracterizar um ser que não se restringe ao que é perceptível imediatamente, a reflexão
indireta de Merleau-Ponty não se reduz a um comentário de determinadas teorias. Em
seus textos finais, o filósofo volta a criticar a opção objetivista pela qual as pesquisas
científicas normalmente são realizadas e volta a afirmar a autonomia da filosofia.
Essa perspectiva crítica se explicita, por exemplo, em O Olho e Espírito, texto
publicado em 1961. Ali, Merleau-Ponty critica os procedimentos metodológicos
científicos que tratam “todo ser como ‘objeto em geral’, isto é, ao mesmo tempo como
se ele nada fosse para s, e, no entanto, se achasse predestinado aos nossos artifícios”
(OE, 9). Por um lado, a metodologia objetivista afirma que a realidade mundana se
compõe de uma infra-estrutura material independente da assimilação subjetiva da
experiência. Por outro, reconhece que tal infra-estrutura pode ser apreendida pela
linguagem matemática e pelos instrumentos técnicos, sem se questionar em que medida
tal linguagem e tais instrumentos também não são somente diferentes formas subjetivas
de se relacionar com o mundo. Segundo Merleau-Ponty, ao definir a realidade como
conjunto de objetos, isto é, entes compostos por propriedades determináveis
matematicamente, o pensamento objetivista tende para um “artificialismo absoluto”
121
(OE, 12), pois concebe a realidade como plenamente apreensível por procedimentos
técnicos, quer dizer, como redutível àquilo que as teorias científicas nela distinguem.
Merleau-Ponty recusa conceber o mundo como um conjunto de propriedades
manipuláveis pelas técnicas científicas. Anuncia-se aqui novamente uma tarefa
ontológica para a filosofia. Assim como em A Estrutura do Comportamento a distorção
interpretativa dos dados científicos fomentava a busca filosófica por uma renovação
conceitual, nos últimos textos de Merleau-Ponty o pensamento operatório ou objetivista
pelo qual a ciência se realiza (o qual reduz a realidade a um conjunto de objetos
submetido a técnicas de manipulação) deixa espaço para a investigação de um ser que
não se reduz a propriedades manipuláveis tecnicamente. Deve-se notar que não se trata
mais, nesses últimos textos, de marcar a distância entre ciência e filosofia porque a
primeira ignora a especificidade do ser fenomenal ou percebido, tal como Merleau-
Ponty fizera na Fenomenologia da Percepção. Afinal, o ser primordial que Merleau-
Ponty pretende descrever em seus textos finais não se limita àquilo que pode estar em
correlação direta com as capacidades perceptivas. O ponto de discordância com a
ciência, nesses textos, é que essa última reconhece como ser aquilo que é objeto
manipulável pelo instrumental técnico disponível, uma restrição a que o ser primordial,
composto por dimensões negativas que escapam mesmo à apreensão perceptiva, não se
submete.
O duplo papel da ciência
Deve-se notar que a ciência será não somente meio pelo qual essa nova
investigação ontológica se realizará mas também tema a ser tratado por ela. Vejamos
com mais detalhes ambos os papéis neste e no próximo parágrafo. Como meio, a ciência
oferece dados para a reflexão filosófica, tal como os cursos de A Natureza, analisados
no capítulo anterior, exemplificaram
6
. Quanto a esse aspecto, Merleau-Ponty sustenta
em algumas passagens que as contribuições mais relevantes da ciência para a reflexão
filosófica são negativas, no sentido de refutar algumas das concepções clássicas dos
temas em questão
7
. A física relativista e a mecânica quântica, por exemplo, invalidam a
concepção determinista da natureza formulada por Laplace. Desse modo, as doutrinas
científicas eliminam teses metafísicas que distorcem os fenômenos. No entanto, vimos
6
Segundo Merleau-Ponty, todo filósofo deveria pensar seus temas “com base na experiência sob sua
forma mais rigorosa, quer dizer, com base na ciência” (N, 120).
7
A ciência “tem somente o poder de destituir as pseudo-evidências do seu pretenso caráter de evidência”
(N, 145)
122
no capítulo anterior que Merleau-Ponty parece se servir de alguns dados positivos
oriundos de investigações científicas, tais como aqueles fornecidos pelo estudo do
mimetismo e da embriologia. Estaria assim Merleau-Ponty sendo infiel ao seu próprio
princípio segundo o qual a ciência auxilia a compreender o que o ser não é, mas
nunca o que ele é? Julgamos que não. Merleau-Ponty se serve dos dados científicos para
descobrir “no desenvolvimento do saber os sintomas de uma nova tomada de
consciência da Natureza” (N, 357), ou seja, para encontrar os índices de uma
renovação ontológica por se fazer. Mas esses índices, esses sintomas não são teses
ontológicas prontas, que o filósofo simplesmente recolheria nas doutrinas científicas.
Merleau-Ponty alerta: “certamente, não se deve pedir à ciência uma nova concepção da
Natureza, toda feita” (N, 120). Os dados extraídos dos estudos sobre o mimetismo e a
embriologia não são em si mesmos asserções ontológicas, mas informações que
apontam para certas idéias que o filósofo desenvolve por sua própria conta. Por
exemplo, a teoria do mimetismo não afirma que uma certa camada do mundo é
eminentemente sensível (propriedade partilhada por pelo corpo humano), mas somente
descreve o fenômeno em questão e dele oferece explicações em conformidade com as
teorias gerais aceitas em biologia. A tese ontológica de que há um estofo sensível
comum ao mundo e aos corpos se deve à reflexão filosófica. Do mesmo modo, as
teorias da embriologia não defendem que dimensões negativas do ser; essa é uma
tese filosófica erigida sobre alguns dados fornecidos por tais teorias, mas uma tese
exterior a tais doutrinas. Assim, é verdade que Merleau-Ponty localiza índices
importantes para uma nova ontologia em alguns resultados científicos; porém, tais
índices não são por si mesmos teses ontológicas, de maneira que ainda é possível
sustentar, mesmo utilizando tais índices, que a ciência não oferece verdades ontológicas
positivas.
Como tema da investigação ontológica, a ciência é, para Merleau-Ponty, um
conjunto particular de procedimentos lingüísticos e técnicos pelos quais os seres
humanos estabelecem alguns padrões de contato com o mundo. Entre esses padrões,
destacam-se aqueles da busca por infra-estruturas puramente materiais dos fenômenos,
as quais são remetidas a leis gerais exprimidas matematicamente. Por meio dessas leis,
não o conhecimento é obtido, mas também a capacidade de intervenção na cadeia
causal fenomênica, de maneira a se dominar tecnicamente os eventos em questão.
Interessa a Merleau-Ponty, desse ponto de vista, analisar como as pesquisas científicas,
que qualificam os sistemas estudados como objetos, erigem-se do ser primordial e se
123
tornam possível por meio desse próprio ser. Em O Olho e o Espírito, Merleau-Ponty
recomenda que “o pensamento da ciência pensamento de sobrevôo, pensamento do
objeto em geral volte-se a colocar num ‘há prévio’ (...), no solo do mundo sensível”
(OE, 12). Os procedimentos científicos devem ser analisados como um modo particular
de se relacionar com o mundo, modo cuja legitimidade e limite devem ser esclarecidos.
A ausência de reflexão acerca da especificidade lingüística e técnica da ciência
gera mistificações sobre a atividade científica, conforme Merleau-Ponty explicita no
artigo Einstein e a Crise da Razão. Segundo o filósofo, Einstein dizia que a
conformidade entre a inteligência humana e a própria estrutura do real, ou seja, o fato de
que os eventos da natureza sejam compreensíveis pelo instrumental científico, é um
mistério (Cf. S, 243). A atividade científica ganha, assim, um ar de revelação mística, de
acesso gico a realidades ocultas. O cientista se torna portador de um poder quase
sobrenatural de desvendar a verdade, a qual não está ao alcance das pessoas comuns
(limitadas às aparências sensíveis). Uma vez que a posição epistemológica einsteiniana
não esclarece como a capacidade heurística da ciência decorre de um certo uso
especializado da linguagem e da aplicação de métodos de verificação de hipóteses, essa
posição fomenta a interpretação pela qual se atribui tal capacidade ao gênio individual
dos cientistas. Assim, por vezes, os cientistas são figurados pela opinião pública como
taumaturgos capazes de opinar com autoridade mesmo sobre questões que excedem
aquelas de seu domínio técnico (Cf. S, 245). Segundo Merleau-Ponty, faz-se necessária
uma reflexão acerca do modo como a linguagem e as técnicas científicas se relacionam
com o mundo; dessa maneira será possível oferecer uma imagem menos mistificadora
da ciência.
Deve-se notar que uma das conseqüências da concepção epistemológica que
atribui um caráter quase milagroso ao funcionamento da ciência é reproduzir desprezo
objetivista pela experiência sensível. Afinal, o cientista revelaria, segundo tal
concepção, verdades que, por se ocultarem para além das aparências sensíveis, não se
doam para os comuns mortais. Essa tendência se explicita mais claramente no debate
entre Einstein e Bergson acerca da teoria da relatividade. Para Einstein, julga Merleau-
Ponty “é apenas à ciência que se deve perguntar a verdade sobre o tempo como sobre
todo o resto” (S, 248). A experiência subjetiva do tempo e do próprio mundo pouco ou
nada ensina acerca dos componentes da realidade, os quais seriam desvelados pela
aplicação da matemática às estruturas do universo. Ora, o problema é que os resultados
124
obtidos pela teoria da relatividade destroem as noções comuns de futuro ou passado
8
.
Por conseguinte, tal como Bonan exprime de maneira lapidar, “a física se encontra
nessa situação paradoxal de ela ter o privilégio de descrever a realidade e dessa
última dar uma imagem incoerente”
9
. Segundo a perspectiva de Merleau-Ponty, essa
conseqüência poderia ser minimizada se se explicitasse que os resultados da física
decorrem da aplicação de uma linguagem especializada na interpretação de certos
fenômenos, e não são, assim, uma revelação direta da realidade última do mundo (Cf. S,
248). Se se apresenta a física como tal revelação, os resultados paradoxais da teoria da
relatividade implicam que a aparente coerência da experiência vivida é somente uma
ilusão, um véu de hábitos injustificados que recobrem uma verdade absoluta
acessível aos “iniciados” nas técnicas científicas. Por sua vez, se se compreende a física
como uma empreitada técnica particular no interior das relações humanas com o mundo,
então seus resultados podem ser compreendidos como exploração de possibilidades
contidas no mundo sensível. Longe de destruir a pertinência da experiência vivida, tal
exploração pode explicitar as complexidades do campo polimorfo apresentado pela
percepção, o qual, para Merleau-Ponty (conforme vimos no capítulo anterior), está tão
pouco submetido a localizações espaço-temporais unívocas e gidas quanto os sistemas
físicos estudados pela teoria da relatividade.
B) Generalização do método indireto
Análise de alguns fatos históricos
Merleau-Ponty não se limita a utilizar a ciência como fonte de dados para sua
reflexão indireta acerca do ser. No curso “A filosofia hoje” (1958-1959), ministrado
entre o segundo e o terceiro cursos sobre a natureza, o filósofo investiga outros
empreendimentos culturais (arte, psicanálise) e mesmo fatos históricos, a fim de obter
mais dados para a caracterização do ser primordial. Assim, não os resultados
científicos sugerem uma renovação da ontologia, mas também o movimento da história
e da cultura em geral. No curso de 1958-1959, Merleau-Ponty almeja dar “existência
oficial” (NC, 37) a um tipo de ser que escapa às categorias tradicionais da filosofia (tais
como matéria, espírito, objeto e sujeito), mas com o qual manteríamos contato indireto,
“por nossa ciência e nossa vida privada e pública” (Ibid.). Trata-se aqui de reafirmar a
8
“Essa razão física abunda em paradoxos, e se destrói, por exemplo, quando ela ensina que meu presente
é simultâneo com o futuro de um outro observador bastante afastado de mim, e assim arruína o próprio
sentido de futuro” (S, 248).
9
Bonan, R. Qu’est-ce qu’une Philosophie de la Science? Dijon-Quitigny: CNDT, 1997, p.59.
125
perspectiva filosófica de renovação das categorias mais gerais pelas quais nos referimos
à realidade, perspectiva assumida desde A Estrutura do Comportamento (conforme
apontamos na primeira seção deste capítulo). Porém, em sua fase madura, essa
perspectiva não se realiza por um apelo ao campo fenomenal, tal como a
Fenomenologia da Percepção propunha, mas pela investigação de diversas áreas da
cultura.
Vejamos com mais detalhe o potencial de renovação ontológica contido em três
temas históricos, conforme apresentado no curso “A filosofia hoje”:
1) Crise na avaliação marxista dos conflitos humanos: Merleau-Ponty busca
avaliar criticamente a tese marxista de que a sociedade capitalista é entrecortada por
contradições que seriam superadas por uma revolução comunista. Para tanto, analisa
diretamente a obra de Marx. Segundo Merleau-Ponty, Marx ainda se fiaria num
princípio clássico de universalidade racional, exprimido na crença em uma sociedade
sem divisão de classes. Tal sociedade seria realizada por uma classe social com
potencial universalizante, “liberada em potência de todas as contradições” (NC, 40), a
saber, o proletariado. Para Merleau-Ponty, essa idéia de uma sociedade sem
contradições é abalada por alguns fatos históricos. Nos países em que ocorreu, a
revolução comunista, que deveria justamente produzir tal sociedade universalista,
instaurou sistemas sociais totalitários, em que a elite militar, repleta de privilégios,
reproduzia os vícios sectaristas da sociedade burguesa. Por sua vez, nos países
altamente industrializados (onde, conforme a teoria marxista, a revolução, com maior
probabilidade, ocorreria), o proletariado passa a defender interesses particulares e se
afasta do ideal universalista. Esses fatos impõem a seguinte questão: “saber se há
mesmo de direito compossibilidade dos homens – possibilidade de uma sociedade
orgânica” (Ibid.). A análise marxista do problema histórico-social humano apontava
para uma civilização mundial comunista como solução para os conflitos capitalistas. No
entanto, o movimento da história revela o caráter contingente de tal proposta, a qual não
conseguiu se firmar. Decorre daí uma crise da compreensão marxista do convívio
humano, crise que exige uma renovação conceitual sobre a história e as sociedades
humanas.
A análise exposta no parágrafo anterior reflete os resultados da longa meditação
política de Merleau-Ponty, a qual, como vemos, também se torna estímulo para a
interrogação ontológica. De início, nos anos quarenta, o filósofo defendera um
marxismo filtrado pela fenomenologia, o qual ofereceria um estudo concreto da história
126
(Cf. PhP, 200). Merleau-Ponty acreditava que o marxismo ampliava significativamente
os estudos sobre as instituições sociais ao revelar as relações sobre as quais a
coexistência social efetivamente se sustenta. Essas relações seriam de ordem
econômica, a qual não deve ser compreendida como uma infra-estrutura separada das
demais dimensões da existência humana, mas como um nível das relações humanas em
que o caráter exploratório ou emancipador das sociedades se cristaliza de maneira
visível. As relações econômicas revelam as estruturas de uma sociedade mais do que
sua legislação formal, ai.9(, )-3m1.0çããpador(c)4.0(o)-10.0(nôm)0 12.00000 8 0 scnBT/TT3 1 Th-1.9(. )9(de)( )-130.0677.1514ancó319.9(c)3.9(o.0(319.9hom0(ur)2.9(a)4.9(n)-10.0(a)4.p9(ó)-10.0(319.9TT3 1 Tf)-130.0677.1 )-130.ndui)-2.0(e)4.0(0.0677.1(e)3(s )-360.9(so)-1.0(br)2.9(e)-5.9( )-359.9(a)3.9(s )-360.9(qua)3.9(i)-2.0(s )-360.9(a)-6.594.3 TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/p9(ó)-10.0(51.00000 0u0000 85.17819.9p00000 0 .0(e)3m0(ur)2.9(a)4)3.9(m)-o0000 85”6.0(ç)4.01.((o )-1S3 1 TfnS26 759.951819.9-2..00000 0 0 4.00000 0 0 (l)-2.0(a)r)2.9ontasvs.00000 éeie.0(s)-1.0( )-529.2 85.17819.9-1.9(. )-130.(s )-3.9(de)4.0( )9(de)Tm[(P)-3819.9n(e)30.0(um)-1.9(a0(s)-1-1.0( )-407-2.0m12.000o)99(da)4.0(d)-10.0(e)-5.9( )-129.9(m)-2.0(a)4.0(i)-2.0(s)-1.0( )-129.9(do )-130.0(que)3.573.7çiva3.9(m)-2.0(e)d(e)3p9(ó)-10.0(4.00000 0 0 )3(s )- 03ur. PhP, 200). Merlenôm3eaap0( )-129.claoeu[( )-40.0(hu2.0(a)4.p249.9(s)-1.0(vs)-1.0(.00000 é) 85.1700 0 0 1-1.9(e) 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 202.65826 7595-2.0(a)3.9( )-119.9(i)-2.0(nf)86.3ue)3.573.7vap 0 12.00000 85t14ancgai.9(, )-3m1.0çããpador(c)458.9ueaal0.0(um)od(e) 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 202.65826 759s do que
127
Essa negligência do marxismo, avalia Merleau-Ponty no curso Filosofia e não
filosofia a partir de Hegel” (1960-1961), se explicaria por alguns dos pressupostos
ontológicos vigentes na obra de seu inventor, o próprio Marx.. A doutrina do jovem
Marx não reduz os seres humanos a substâncias com atributos positivamente
determináveis, mas reconhece neles múltiplas possibilidades de se desenvolverem
conforme as diferentes relações estabelecidas com a natureza e conforme a instituição
de uma história em princípio indeterminada (Cf. NC, 346). Não haveria, assim, uma
natureza humana que pudesse ser positivamente descrita. Eis um dos princípios básicos
da dialética de Marx: recusa de definições determinadas em favor da descrição de
relações opositivas dinâmicas entre os temas estudados. Não seria possível, segundo a
dialética, oferecer uma definição tal do ser humano da qual decorresse necessariamente
o curso da história, por exemplo. A subjetividade humana e a história se determinam
reciprocamente e cabe à reflexão dialética explicitar as cristalizações parciais de ambas
e as passagens entre os diversos períodos históricos correlacionados a determinadas
formas de subjetivação.
No entanto, Merleau-Ponty julga que as concepções tardias de Marx supõem
uma idéia positiva de natureza humana, a qual se realizaria plenamente quando da
instauração do comunismo (Cf, NC, 350). Desse modo, a caracterização negativa da
subjetividade seria apenas um preâmbulo circunstancial (dada a ausência factual do
comunismo) para a verdadeira exposição dos atributos constituintes da natureza
humana. A proposta prática de Marx, a revolução, seria o meio para a completa
explicitação dessa natureza humana positiva, que subjazeria à negatividade dialética (a
qual seria somente efeito das condições materiais capitalistas). Dessa maneira, a
concepção tardia de Marx associa a revolução à realização de um estado em que a
natureza humana se afirmaria plenamente, e subestima, assim, a imprevisibilidade
histórica dos movimentos revolucionários, os quais factualmente tenderam a consolidar
Estados totalitários, em que sob a roupagem comunista vigoram as contradições
capitalistas.
A fim de sanar a incapacidade marxista de prever esse risco inerente às
revoluções (incapacidade fundada em uma concepção ontológica, presente no próprio
Marx, a qual descreve a natureza humana como livre de contradições), Merleau-Ponty já
sugeria em Os papéis de Yalta (texto de 1955), que, para ser coerente com seus
princípios dialéticos, um marxismo rigoroso não favorece a crença no fim das
contradições sociais. Afinal, tal crença supõe aceitar uma noção positiva de natureza
128
humana, a qual o próprio método dialético rejeita. No entanto, Merleau-Ponty admite
que, com tal mudança, o marxismo “se transforma em outra filosofia” (S, 345), na qual
não é óbvio nem mesmo se o próprio Marx se reconheceria. Em As Aventuras da
Dialética, Merleau-Ponty aponta para uma filosofia interrogativa da história, a qual, ao
recusar uma descrição direta da suposta natureza humana realizada, exprimiria esse
marxismo renovado. Tal filosofia deveria reconhecer o caráter contingente das
mudanças históricas e questionar, tal como o curso “A filosofia hoje” explicita, se a
condição humana permite uma boa solução para os problemas advindos do convívio
social. Esse questionamento contém ressonâncias ontológicas, uma vez que as
categorias pelas quais tradicionalmente se compreende a intersubjetividade e as relações
com o meio devem ser, por meio dele, renovadas (Cf. AD, 128, 132).
2) Crise nas relações dos seres humanos com a natureza (o micro-mundo): para
Merleau-Ponty a distinção entre objeto natural e artefato é embaralhada na ciência
contemporânea. No nível subatômico, os fenômenos não são simplesmente verificados,
mas produzidos por complexos aparelhos. Revela-se assim uma ambigüidade entre
forças naturais e culturais. Tome-se como exemplo a energia atômica transformada em
artefato bélico. Essa energia, embora inobservável, compõe o mundo tal como o
conhecemos, e poderia mesmo ser usada para destruí-lo (Cf. NC, 42). No entanto, deve-
se considerar que a aniquilação da humanidade por essa energia natural se torna
possível pela domesticação técnica dos seus poderes. Dessa maneira, as forças naturais
parecem condicionadas pelos recursos culturais. Para Merleau-Ponty, esse exemplo
ilustra a situação geral da ciência física: muitos dos seus objetos não são simplesmente
encontrados no mundo, mas derivados das teorias aplicadas. A natureza estudada pelas
ciências e apresentada como objetiva é, assim, construída historicamente com a ajuda
das técnicas de observação e manipulação disponíveis. Essa ambigüidade, julga
Merleau-Ponty, abre a possibilidade de formular uma noção não objetivista de natureza.
3) Crise nas relações entre os seres humanos e a natureza (o macro-mundo): a
exploração técnica do espaço sideral abre a possibilidade, ainda remota é verdade, de
colonizar outros planetas. A Terra perderia, assim, o privilégio de solo da experiência
humana (Cf. NC, 44), que o desenvolvimento das civilizações humanas na Terra se
mostraria um fato contingente, que poderia ser reproduzido em planetas com condições
semelhantes. Em contraste com essa relativização da Terra como base necessária para a
129
vida humana, Merleau-Ponty considera que o possível acesso técnico a outros planetas e
civilizações não abala o caráter central da Terra para a existência humana, mas somente
o estende a todos os outros planetas colonizáveis. Haveria assim algo como um estilo
terreno de existência que seria levado aos demais planetas (Cf. NC, 45)
11
. No entanto,
de maneira geral, Merleau-Ponty reconhece que a exploração técnica do espaço fomenta
o questionamento ontológico acerca da pretensa singularidade da vida humana e das
possibilidades disponíveis a ela no universo físico.
Análise da arte e da psicanálise
Não o movimento histórico e o impacto factual das técnicas científicas
sugerem a renovação dos parâmetros ontológicos clássicos. Além desses temas,
Merleau-Ponty, em “A filosofia hoje”, explora quatro fenômenos culturais, que, por
meio de seu caráter intrinsecamente renovador, permitem vislumbrar certos aspectos das
relações gerais entre sujeitos e mundo que não são devidamente tratados pelas
ontologias clássicas e que fomentam, assim, uma profunda renovação conceitual.
a) Literatura: Merleau-Ponty inicia sua exposição pela poesia contemporânea.
Por meio de recursos expressivos aparentados, Mallarmé e Rimbaud ultrapassam a
distinção clara entre aspecto subjetivo (a significação) e objetivo (o significado visado)
da enunciação. Mallarmé, por exemplo, concebe o significado como circunscrito pelos
sons da significação que o enuncia. Assim, as palavras não são mero veículo para se
dirigir a objetos autônomos, mas condicionantes do modo como os próprios referentes
são determinados. E a poesia, ao jogar com as possibilidades sonoras do idioma em que
é produzida, funda uma nova maneira de discriminar os componentes do mundo (Cf.
NC, 47). Rimbaud, por sua vez, também teria reconhecido uma unidade primordial entre
som e sentido e, dessa maneira, desvelado pela poesia uma camada de experiências que
não pode ser adequadamente reconhecida de maneira prévia à sua denominação poética.
Desse modo, a compreensão tradicional do sentido (referência a um mundo pré-
ordenado) entra em crise ante a experiência poética contemporânea. Porém, alerta
Merleau-Ponty, os poetas contemporâneos correm o risco de, em vez de fomentar uma
nova compreensão da expressividade lingüística, aprofundarem a crise gerada pelo
abalo da concepção clássica de sentido. Buscando romper com o modo tradicional de
11
Merleau-Ponty retoma, assim, a posição defendida por Husserl em Umsturz der kopernikanischen
Lehre: die Erde als Urarche bewegt sich nicht. In: M. Farber (org.), Philosophical Essays in Memory of
Edmund Husserl, Cambridge: Harvard U.P., 1940.
130
conceber a referência ao mundo, os poetas podem se limitar à obsessão por invenções
léxico-gramaticais, as quais os tornam incapazes de comunicar para além de um restrito
círculo de escritores vanguardistas (Cf. NC, 47). Assim, se é verdade que Merleau-
Ponty toma a crise da noção tradicional de sentido como ocasião para uma renovação
das categorias ontológicas, o filósofo também avalia lucidamente os riscos que a
decomposição das categorias clássicas gera.
Em relação à prosa, Merleau-Ponty nota que os autores contemporâneos
romperam com a distinção clássica entre ponto de vista objetivo e subjetivo. Assim,
muitos romances do século vinte exprimem uma implicação mútua entre o eu, os outros
e o mundo, e, dessa forma, põem em questão a concepção de sujeito como ente separado
do meio em que existe (Cf. NC, 48-50).
b) Pintura: segundo Merleau-Ponty, a pintura moderna
12
, assim como a
literatura, abala a concepção tradicional de expressividade artística. Os quadros
clássicos (século XVI-XVII) eram considerados, por autores e teóricos daquela época,
uma representação da realidade, uma imitação daquilo que a percepção normal
ofereceria (Cf. NC, 50). Por meio de recursos expressivos tais como a perspectiva
planimétrica, muitos artistas clássicos pensavam reconstituir os elementos sensíveis de
maneira reconhecível por todo aparelho perceptivo, e, assim, comunicar universalmente
o conteúdo representado pelos quadros.
os artistas modernos reconhecem que a natureza pode ser figurada como
“produto sedimentado [pela] cultura” (NC, 51), e rejeitam o projeto de uma
representação objetiva do mundo. Os recursos expressivos, tais como a perspectiva
planimétrica, não são mais concebidos como procedimentos para ordenar os elementos
sensíveis como signos universalmente reconhecíveis de uma realidade plenamente
determinada. Tais recursos são tomados como técnicas culturalmente desenvolvidas que
extraem diferentes aspectos de uma espacialidade polimorfa, cujas possibilidades
internas não se esgotam segundo sua representação por uma ou outra técnica em
particular. A compreensão moderna da relação entre as linhas pelas quais se desenha e a
tela, suporte das linhas, exemplifica a nova concepção de pintura a que Merleau-Ponty
se refere. De modo geral, os pintores modernos partem de linhas coloridas como
12
Entendemos por pintura moderna aquela praticada pelo último Cézanne, por Matisse, por Klee e por
outros que, como esses, valorizaram os elementos básicos da pintura (linhas, cores, etc), e não apenas seu
caráter representativo.
131
princípio gerador do tema a ser pintado. Essas linhas iniciais funcionam como uma
deformação em um campo homogêneo, a qual gera tensões perceptivas, que, para serem
solucionadas, exigem que se avance coerentemente na pintura até que se encontre o
equilíbrio. Por sua vez, esse equilíbrio final não exprime necessariamente a
representação fiel de um referente, mas, antes, a relação das possibilidades perceptivo-
motoras do pintor com a tela. Não se trata, assim, na pintura contemporânea, de
apresentar uma cópia do mundo, mas de compor um mundo-para-si (Cf. NC, 52), ou
seja, de tornar as tensões pelas quais a pintura ocorre o tema das próprias pinturas. Por
conseguinte, na arte moderna, a explicitação dos referentes escolhidos como temas das
pinturas é indireta, que mediada pela tematização do campo de possibilidades
motoras e perceptivas do pintor.
Merleau-Ponty julga que a arte moderna não pretende retratar fielmente uma
pretensa realidade objetiva, mas interrogar os elementos pelos quais a própria pintura se
faz. Um problema decorrente de sua interpretação é explicar como as pinturas,
elaboradas conforme deformações coerentes pelas quais cada artista se relaciona com
seu meio, podem comunicar um conteúdo válido para outros sujeitos e almejar um valor
universal no sistema da cultura. A interpretação clássica da pintura respondia facilmente
ao problema do valor intersubjetivo das obras: cada pintura pretende reproduzir o
mundo objetivo, o qual seria percebido de maneira homogênea por todos os sujeitos de
constituição psicofísica semelhante. Assim, a pintura bem sucedida apenas reproduziria
os signos sensíveis que ativam a capacidade universal de perceber a natureza
verdadeira. Porém, no caso da pintura moderna, tal como interpretada por Merleau-
Ponty, as obras não são mais concebidas como reprodução de situações reconhecíveis
de imediato por todos os sujeitos, mas como expressão do contato particular do pintor
com o mundo. Como o sentido exprimido por tal contato pode ser efetivamente
comunicado?
No decorrer de sua obra, Merleau-Ponty oferece respostas diferentes a esse
problema. Em “A dúvida de Cézanne”, texto de 1945, o artista é apresentado como
alguém que retoma todos os acidentes constitutivos de sua existência empírica e se
serve deles como instrumentos para produzir uma obra que exprima o caráter único de
sua situação no mundo. A obra de arte é formada, assim, pelos gestos livres de uma
subjetividade que tenta ordenar e direcionar os atributos contingentes da sua vida. Não
há nenhuma garantia de que o produto de tais esforços, que busca transcender os
acidentes da história individual, exceda tal base e seja reconhecido como obra de
132
intrínseco valor histórico-cultural. Todas as pinturas portam igualmente a possibilidade
de comunicar seu sentido para outros sujeitos. Porém, aquelas que o conseguem
dependem da apreciação do público para tanto
13
.
no início dos anos cinqüenta, Merleau-Ponty concebe uma nova resposta ao
problema da comunicabilidade do sentido artístico
14
. A obra artística não seria mais
fruto de gestos motivados somente pela esfera privada da liberdade, pelos quais cada
artista, isoladamente, exprimiria sua situação mundana. Em “A linguagem indireta e as
vozes do silêncio”, texto publicado em 1952, Merleau-Ponty considera que a criação
artística, pela qual o sujeito exprime as singularidades da sua existência, encontra-se
enraizada em uma universalidade prévia. Ao pintar, o artista parte de sua situação
contingente, mas ele o faz segundo as técnicas e os procedimentos sedimentados pelo
contexto cultural. Há, assim, um estado geral da cultura que delimita as possibilidades
expressivas e mesmo direciona as inovações que podem ser realizadas. Desse modo, a
experiência subjetiva da criação revela um vir-a-ser do próprio sentido pictórico e se
insere em uma história que em muito a excede
15
.
As obras artísticas, considera Merleau-Ponty em 1952, não são criações
contingentes que podem ou não se sedimentar como bens culturais segundo as
veleidades dos apreciadores, mas manifestações de possibilidades inseridas no campo
cultural previamente partilhado por artistas e espectadores. Assim concebidas, as obras
não dependem mais da “complacência do público” (S, 92) para comunicar seu sentido.
O artista explicita e resolve tensões internas ao campo geral da cultura; ao realizar sua
obra, ele retoma e faz avançar uma história que forra o seu próprio ato criador. Desse
modo, as obras de arte não são resultados contingentes de liberdades isoladas, mas
expressão e modificação do estado geral da própria arte, e, dessa maneira comunicam
seu sentido e se instauram como patrimônio humano. Ainda que não compreendidas de
imediato, as obras se inserem de tal modo no movimento histórico da arte que suscitam
seu próprio público. Quer dizer, não que o reconhecimento do público atribua valor
universal às criações artísticas, mas essas se impõem de tal forma como retomada e
13
“O artista lança sua obra como um homem lançou a primeira palavra, sem saber se ela será outra coisa
que um grito, se ela se poderá se destacar do fluxo de vida individual no qual ela nasce e apresentar (...) a
existência independente de um sentido identificável” (SnS, 25).
14
Luiz Damon Moutinho comenta com detalhe essa passagem. Cf. Razão e Experiência Ensaio sobre
Merleau-Ponty. Ed. supra, cap. IX “Pintura e linguagem”.
15
“Há uma historicidade de vida (...), aquela que habita o pintor em seu trabalho, quando ele enlaça com
um gesto a tradição que ele retoma e a tradição que ele funda, aquela que o reúne de um golpe a
tudo o que fora alguma vez pintado no mundo, sem que ele tenha de deixar seu lugar, seu tempo(S,
79).
133
transformação da cultura que o público deve reconhecê-las como obras cujo sentido diz
algo para todos que partilham daquele contexto sócio-histórico (Cf. S, 92-3).
No curso “A filosofia hoje”, já no final dos anos cinqüenta, Merleau-Ponty
acrescenta mais um elemento à sua resposta ao problema da comunicabilidade e
universalização da arte. Como vimos há alguns parágrafos, o filósofo interpreta a
empreitada artística contemporânea não como reprodução do mundo objetivo e sim
como explicitação do próprio processo expressivo. Não que a pintura abandone a
figuração dos temas mundanos; na verdade, ela os apresenta sem a obsessão da
verossimilhança fotográfica. A pintura moderna não almeja mais copiar ou imitar uma
pretensa realidade objetiva, mas, avalia o filósofo, “dar a essência” (NC, 54) dos temas
figurados. Por “essência”, Merleau-Ponty entende as matrizes sensíveis mais gerais
pelas quais os temas figurados são reconhecíveis como tais, e não uma fórmula abstrata
na qual se registraria os atributos necessários de um tipo de objeto. Por exemplo, com
poucas pinceladas coloridas, um pintor apresenta uma pessoa ou uma fruta. Dessa
maneira, a essência colorida partilhada por esses temas, anterior às distinções que os
classificam como representantes de reinos bem diferentes (o animal e o vegetal), é
revelada. Parece que em seus anos finais, Merleau-Ponty defende que uma das razões
pelas quais a arte contemporânea comunica seu sentido é a sua capacidade de explicitar
as matrizes ou dimensões sensíveis gerais pelas quais, no geral, a experiência é
ordenada
16
.
Essa empreitada de explicitação de matrizes sensíveis serve como crivo
normativo para guiar a arte contemporânea. Embora não queira “impor nenhum limite à
liberdade do pintor” (NC, 54), Merleau-Ponty toma a tarefa de explicitação dessas
dimensões sensíveis como o horizonte mais geral ao qual o pintor deveria se referir para
ainda comunicar. Para além desse limiar, há o risco de a pintura apenas expor as
estruturas ou elementos de que se serve para figurar algo (texturas, relevos, manchas,
volumes), mas que em si mesmos nada figuram e são como coisas fechadas em si
mesmas. Tal qual ocorria na literatura, a nova concepção de expressividade pictórica
pode tanto conduzir a arte para um domínio no qual a relativização dos cânones
clássicos permite uma expressão do laço originário com o ser quanto anular toda
16
Nessa explicitação, não se trata de apelar para os elementos sensíveis (cor, forma, etc.) como signos
que universalmente desvelariam a realidade objetiva do mundo, tal como, por vezes, a pintura clássica
pretendeu. No entanto, a pretensão de apresentar a natureza das coisas aproxima os modernos dos
clássicos, embora esses últimos estivessem presos a uma concepção ontológica objetivista, e os primeiros
vislumbrem uma noção ampliada de ser, a qual cumpre à filosofia formular.
134
comunicação efetiva. A fim de evitar essa última possibilidade, a pintura não deveria
almejar uma coincidência com os princípios gerais pelos quais as coisas existem
independentemente de sua classificação posterior. Essa coincidência anularia a pintura
como sistema de significação, pois a reduziria a um caso desses princípios (a um
fragmento de superfície com textura, a um conjunto de manchas, etc.). Reduzida a mero
exemplo dos elementos pelos quais a figuração ocorre, a pintura deixaria justamente de
figurar e não mais revelaria como os entes se constituem pela combinação de tais
princípios. Segundo o filósofo, é Paul Klee quem oferece uma “solução” (NC, 55) para
o impasse entre a comunicação da arte contemporânea e o rompimento com os cânones
representativos clássicos. Klee nunca deixou de se considerar em profunda relação com
a natureza à sua volta, a qual ele buscava apresentar em suas telas. O caráter abstrato de
suas obras não romperia o contato com o mundo da experiência cotidiana, mas
exprimiria a fibra interna do mundo natural, como que expondo os eixos ou essências
sensíveis das quais as coisas e eventos são compostos. Segundo Merleau-Ponty, é por
meio da busca dessas essências que a arte contemporânea pode manter algum potencial
comunicativo e, além disso, servir à reflexão ontológica.
c) Música: para Merleau-Ponty, a música contemporânea integra as formas
tonais privilegiadas historicamente em sistemas atonais mais amplos. Desse modo,
revela-se o caráter contingente das normas clássicas de expressão musical, o que, por
sua vez, permite que diferentes possibilidades de criação sejam experimentadas.
Merleau-Ponty alerta, também no caso da música, para o risco de perda do potencial
comunicativo. A excessiva ênfase em colagens de sons sobre os escombros dos sistemas
clássicos de significação musical pode retirar da música a possibilidade de veicular
algum sentido para além da reprodução, aleatória ou planejada, de ruídos. O filósofo
sugere que, para escapar de tal risco, os músicos poderiam buscar os “germes das
135
ser, tal como a irmandade sensível de diversas situações tradicionalmente classificadas
em categorias distintas.
d) Psicanálise: segundo Merleau-Ponty, a psicanálise, compreendida como um
saber terapêutico acerca das relações humanas (Cf. NC, 65), rompe com a concepção
clássica de subjetividade. Tal concepção, que vigorou até o início da século XX, se
exprime na crença de que a subjetividade se identifica com os atos de posição explícita
de sentido ou de fins desejáveis. Com o surgimento da psicanálise, passou-se a
considerar que essa atividade autônoma não esgota a amplitude do campo subjetivo. A
investigação de sonhos ou de lapsos comportamentais traz à tona processos subjetivos
que não são voluntariamente constituídos. E a psicanálise não se limita a reconhecer
uma região de passividade no seio da vida subjetiva. Seus estudos pretendem mostrar
que mesmo o domínio dos atos volitivos supõe por vezes motivações inconscientes. O
estudo dessas motivações sugere uma noção ampliada de subjetividade, a qual
envolveria camadas de representações ou afetos não acessíveis diretamente pela
consciência, mas com poder para determinar os atos dessa última.
A psicanálise desintegra a concepção clássica de subjetividade, baseada na idéia
de um eu plano em plena posse de si mesmo, e passa a investigar domínios
tradicionalmente negligenciados de existências subjetivas, tais como aqueles de
comportamentos irracionais, desejos e memórias, domínios que não se submetem às
decisões ativas dos sujeitos
17
. Merleau-Ponty considera que tal investigação, em vez de
apontar para uma renovação de alguns dos conceitos basilares de nossa cultura (tais
como “sujeito”, “intenção”, “consciência”), pode agravar a crise gerada pela dissolução
dos cânones conceituais clássicos. Esse agravamento decorreria de uma certa
interpretação da prática psicanalítica: após recensear os principais mecanismos pelos
quais as camadas inconscientes influenciam o agir subjetivo, desenvolver-se-ia cnicas
de intervenção gerais para desarticular ou minimizar tal influência. Desse modo, julga
Merleau-Ponty, a psicanálise reproduz os vícios do objetivismo, pois se dirige para um
pretenso objeto autônomo (o inconsciente), o qual seria adequadamente apreendido
pelas técnicas terapêuticas. Já vimos no capítulo anterior as sugestões de Merleau-Ponty
para a correta compreensão do inconsciente (não como um objeto inobservável, mas
como matriz simbólica). Cabe acrescentar agora que, no curso “A filosofia hoje”, o
17
O próprio Merleau-Ponty se enveredou em tal investigação ao explorar a noção de passividade em seu
curso de 1954-1955. Cf. capítulo anterior.
136
filósofo sugere que em vez de delimitar seu campo de ação por imitação das estratégias
objetivistas, os psicanalistas deveriam acentuar o potencial de renovação ontológica
contido em seus temas. Assim, em vez de constituir uma nova disciplina objetiva, a
tematização do inconsciente, da libido e de outros tópicos psicanalíticos deveria
propiciar um saber interpretativo das relações inter-humanas não determinado por
esquemas prévios extremamente rígidos da vida psíquica e, ao menos parcialmente,
fundado por dados empíricos fornecidos pelos resultados clínicos (Cf. NC 149-152).
A ontologia cartesiana da visão
Como vimos, Merleau-Ponty explicita aspectos semelhantes na arte
contemporânea e na psicanálise. Em ambos os casos, o conjunto de definições clássicas
que fixava a identidade de um domínio e seus procedimentos práticos (por exemplo, a
definição da pintura e de como se pinta, ou da subjetividade e de como ela se comporta)
é abalado ante as criações ou teorizações contemporâneas. Tal conjunto se mostra então
como contingente, quer dizer, não como modo único de se obter resultados artísticos ou
de se compreender a subjetividade, mas como modelos privilegiados durante certa fase
histórica. A crise de tais modelos ante os novos sistemas expressivos oferece a ocasião
para renovar o entendimento das categorias ontológicas gerais que subjazem a tais
modelos, tais como aquelas de sentido ou sujeito. No curso “A ontologia cartesiana e a
ontologia de hoje”, ministrado em 1960-1961, Merleau-Ponty pretende “formular
filosoficamente nossa ontologia que permanece implícita” (NC, 166), quer dizer,
pretende sistematizar teoricamente a renovação ontológica que ocorre nos domínios
da arte e da psicanálise, como seu curso anterior evidenciou. Desse modo, é por meio do
domínio da não-filosofia, ou seja, de maneira indireta, que a filosofia pode avançar na
formulação de uma nova ontologia
18
.
Notemos que no curso de 1960-1961, Merleau-Ponty pretende formular uma
ontologia contemporânea “por contraste com a ontologia cartesiana” (NC, 166). Dessa
maneira, o filósofo assume que os estudos acerca de autores e temas clássicos são úteis
para a compreensão dos problemas atuais. Não que a filosofia contemporânea deva se
limitar a tais estudos (de maneira a se tornar história da filosofia). Na verdade, o
18
A expressão “não-filosofia” é ambígua nos textos de Merleau-Ponty. Por vezes, ela indica um estado de
crise da filosofia acadêmica, a qual não conseguiria exprimir a complexidade da ontologia contemporânea
e se prenderia excessivamente ao estudo de tópicos do passado (Cf. NC, 39; VI, 217, jan. 59). Em outras
ocasiões, tal como mencionamos acima, essa expressão indica o conjunto das artes e de disciplinas não
filosóficas que implicitamente se desenvolvem sob uma nova concepção de ser, a qual deve ser
explicitada pela filosofia.
137
passado da filosofia deve ser considerado em relação com as circunstâncias presentes,
para que assim se instaure um campo geral de interrogação, em que os temas de outrora
auxiliem no esclarecimento dos problemas contemporâneos. É o que Merleau-Ponty
pretende ao retomar a análise cartesiana da visão, desenvolvida na Dióptrica.
Para explicar a ação da luz na visão, Descartes utiliza o exemplo do bastão pelo
qual os cegos reconhecem objetos. Desse modo, a visão é aproximada do tato. Nesse
último caso, objetos resistentes se impõem à ação exploratória corporal, a qual deve
então reconhecer a existência de algo com que se defrontou. Por sua vez, no caso da
visão, os dados captados pelos olhos seriam signos sensíveis a serem posteriormente
interpretados como imagens da realidade (Cf. NC, 176-7). Em O Olho e o Espírito,
texto escrito concomitantemente ao curso que analisamos e em que o contraste entre
análise cartesiana e pintura moderna é explorado, Merleau-Ponty julga que Descartes
concebe a visão como “um pensamento que decifra estritamente os signos dados no
corpo” (OE, 41). Descartes defenderia que a ação mecânica da luz sobre os olhos, tal
como a ação de um bastão sobre objetos, impõe rigidamente sensações que
representariam as características do ser exterior. Além disso, Descartes definiria a
pintura como reprodução artificial da visão: a tela, bidimensional, imita, por meio de
certas técnicas de ilusionismo tais como a perspectiva planimétrica, os conteúdos que a
visão obteria caso estivesse diante das coisas representadas nas pinturas (Cf. OE, 44-5).
A explicação cartesiana da visão por meio do modelo do toque é recusada por
Merleau-Ponty. Esse modelo despoja a luz “de sua distância, de sua transcendência”
(NC, 177), ou, como bem formula O Olho e o Espírito, “da ação à distância e da sua
ubiqüidade que fazem toda a dificuldade da visão” (OE, 37). Quer dizer que, para
Merleau-Ponty, a visão não se limita a oferecer signos sensíveis positivos que
caracterizam diretamente o ser exterior. Na verdade, a visão supõe estruturas complexas
tais como a iluminação do ambiente ou a profundidade, as quais não são exatamente
dados positivos, embora colaborem de maneira essencial na ordenação do espetáculo
visível. Segundo Merleau-Ponty, a teoria cartesiana se restringiu a fornecer uma
explicação mecanicista da percepção visual; ela não se dispôs a interrogar as
complexidades envolvidas na visão (Cf. NC, 176). Se assim o tivesse feito, talvez
Descartes tivesse concluído por uma noção do ser cujos atributos não seriam
plenamente atuais e determináveis objetivamente.
138
As dimensões invisíveis
Em contraste com a análise cartesiana da visão, Merleau-Ponty volta a expor, no
curso “A ontologia cartesiana e a ontologia de hoje”, de 1960-1961, os resultados da
pintura moderna (tal como fizera em “A filosofia hoje”). Porém, no curso de 1960-1961,
o filósofo acentua de maneira mais substancial as inovações ontológicas implícitas em
tal pintura. Na seção intitulada “O pensamento fundamental na arte(NC, 167-175),
por exemplo, Merleau-Ponty retoma uma famosa afirmação de Cézanne como emblema
da direção expressiva assumida pela arte moderna: “o que eu tento traduzir-vos é mais
misterioso, emaranha-se nas próprias raízes do ser, na fonte impalpável das sensações”
(NC, 167). Com essa referência à Cézanne no contexto da obtenção de dados indiretos
para a formulação de uma nova ontologia, Merleau-Ponty parece realizar uma sutil
autocrítica. O filósofo havia recorrido às pinturas de Cézanne na Fenomenologia da
Percepção, de 1945. Ali, tais pinturas, as quais, segundo o filósofo, pretendiam exprimir
mesmo o odor das paisagens retratadas, exemplificavam que a realidade consistia em
uma infinidade de relações entre os atributos perceptíveis. Assim, uma paisagem não se
comporia somente de elementos visíveis, mas desses últimos entrelaçados a certos
elementos audíveis, tangíveis, etc (Cf. PhP, 368, 373). No ensaio “A dúvida de
Cézanne”, publicado no mesmo ano, Merleau-Ponty caracteriza a pintura de Cézanne
como tentativa de captar esse sentido complexo inerente aos fenômenos mundanos,
sentido que seria “o berço das coisas” (SnS, 23). Deve-se notar que a expressão “berço
das coisas” também é usada por Merleau-Ponty para caracterizar o campo fenomenal
que teria sido desvelado pela Fenomenologia da Percepção (Cf. PhP, 71). Dessa
maneira, nos anos quarenta, a pintura de Cézanne servia a Merleau-Ponty como
confirmação das descrições fenomenológicas de um campo de sentido originário,
campo por meio do qual se poderia ter acesso aos objetos. Por sua vez, ao retomar
Cézanne no início dos anos sessenta, Merleau-Ponty parece sugerir que o escopo de tais
descrições ainda era muito limitado e que a compreensão do sentido da obra do pintor
exige o desenvolvimento de uma reflexão ontológica, a qual, conforme pretendemos
mostrar, excederá em alguns pontos essenciais a doutrina fenomenológica. Essa
sugestão estaria contida no comentário que Merleau-Ponty acrescenta à citação do
pintor já mencionada acima: Cézanne buscaria “algo que se oferece através das
sensações, mas que está além, na raiz, na fonte, oculto-revelado” (NC, 167). Assim,
mais do que explicitar a infinidade de relações constitutivas dos fenômenos, Merleau-
Ponty julga, nos anos sessenta, que a pintura de Cézanne é um exercício para tornar
139
visíveis dimensões que transcendem a própria visibilidade. E, no geral, é justamente
porque aponta para tais dimensões que a pintura moderna contribui para a reflexão
ontológica, como veremos a seguir.
A percepção ingênua acentua aquilo que é percebido. Embora reconheça,
conforme expusemos no segundo capítulo, que a ordenação do campo perceptivo é
diacrítica (isto é, depende mais da oposição entre dados que da veiculação de um
sentido positivo), Merleau-Ponty parece admitir, mesmo em seus textos finais, que a
visão profana (tal como se refere à percepção ingênua em O Olho e o Espírito [Cf. OE,
27]) valoriza o espetáculo que se doa. Em O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty
comenta que uma visibilidade primeira ou ordinária, que se centra na enumeração
das coisas e qualidades positivamente manifestadas. Essa seria a visibilidade apreendida
pela percepção ingênua. Além dela, o filósofo afirma haver uma visibilidade segunda,
que atentaria para as dimensões gerais que tornam possível tal visibilidade primeira (Cf.
VI, 192). Em O Olho e o Espírito e no curso de 1960-1961, fica claro que é a pintura
que realiza essa visão em segunda potência, visão que parece não ocorrer
espontaneamente na percepção ingênua
19
. Ao pintar o artista moderno não apenas
reproduz os temas percebidos, mas repete a própria ordenação das coisas no mundo
20
.
Dessa maneira, a pintura explicita aquilo que a percepção ingênua não percebe, aquilo
que se mantém invisível para ela (Cf. OE, 27). Eis por que nas reflexões sobre a pintura
do final de sua obra, Merleau-Ponty, longe de somente confirmar as descrições
fenomenológicas do mundo percebido, esboça uma nova noção do ser. O apelo à arte
vem justamente complementar aquilo que uma descrição direta dos conteúdos da
percepção ingênua por si mesma não revelaria. A pintura contemporânea mostra não
somente o que se doa, mas principalmente as estruturas inaparentes pelas quais a
doação sensível ocorre. Uma vez que a pintura rejeita a tarefa de reprodução ou
imitação da realidade e passa a exprimir o modo como as possibilidades perceptivo-
motoras do artista apreendem o mundo (tal como vimos ao analisar o curso “A filosofia
hoje”), ela se torna uma empreitada privilegiada para acompanhar a emergência da
19
Não a pintura excede a visibilidade ingênua. No texto “O metafísico no homem”, de 1947, Merleau-
Ponty defende que algumas teses das ciências humanas (acerca do tema das estruturas) auxiliam a
filosofia a superar os limites dos dados fornecidos pela percepção ingênua: “as ciências do homem, em
sua orientação presente, são metafísicas ou transnaturais no sentido em que elas nos fazem redescobrir,
com a estrutura e a compreensão das estruturas, uma dimensão de ser e um tipo de conhecimento que o
homem esquece na atitude que lhe é natural” (SnS, 113).
20
“Pintura é segregação do Ser em que primeiramente somos e não construção de ‘traços do Ser’ que dele
dariam a ilusão ou a analogia” (NC, 169).
140
visão no interior do ser e, no geral, as condições ontológicas pressupostas pelo exercício
ingênuo da percepção.
A pintura moderna, assim como os estudos da embriologia (conforme vimos no
capítulo anterior), sugere a existência de dimensões (ou princípios de ordenação dos
dados) que são invisíveis, mas que costuram a visibilidade, ou seja, que são condições
gerais pelas quais a visibilidade é apreendida pelo sujeito perceptivo (Cf. NC, 173). Ao
afirmar que tais dimensões são invisíveis, Merleau-Ponty não as concebe como parte de
um mundo em-si ou realidade objetiva oculta sob as aparências. As dimensões são os
componentes gerais do mundo sensível, aqueles por meio dos quais tal mundo se
prepara do seu interior para ser percebido. Porém, ao atuar como dimensões, tais
componentes não se doam diretamente. Anuncia-se aqui uma formulação da idéia de
sensível como um campo não identificável àquilo que é direta ou imediatamente
perceptível. No artigo O filósofo e sua sombra”, de 1959, Merleau-Ponty afirma, ao
interpretar Husserl: “o sensível não é somente as coisas, é também tudo o que se
desenha, mesmo implicitamente, tudo o que deixa seu traço, tudo o que figura,
mesmo a título de desvio [écart] e como uma certa ausência” (S, 217). Dessa acepção
larga de sensível fazem parte as dimensões, as quais, embora inaparentes para uma
apreensão direta, atuam como condições pelas quais a própria sensibilidade se torna
possível
21
.
Uma dessas condições explicitadas pela pintura dos modernos é a profundidade,
a qual não é representada como a largura dos objetos vista de perfil. Nas obras
modernas, a profundidade não é obtida por recursos ilusionistas, mas, julga Merleau-
Ponty, pela explicitação de um mútuo entrelaçamento entre as coisas, as quais se
ocultam parcialmente uma às outras e instituem, assim, uma densidade no campo visual
(Cf. OE, 64; NC, 167). A profundidade deriva das relações das coisas entre si; ela é
uma condição da visibilidade inerente ao próprio sensível. É porque as coisas estão
naturalmente ofuscadas umas pelas outras que a percepção não as apreende de maneira
plena e não as reduz a simples correlatos de suas visadas particulares (Cf. VI, 268, nov.
59). Essa afirmação se aproxima de certas fórmulas da Fenomenologia da Percepção,
pelas quais se apelava a um excesso fenomenal como garantia da irredutibilidade do
mundo a um correlato corporal (Cf. cap. I). Porém, nesse livro, a profundidade era
tratada como uma dimensão existencial, ou seja, derivada da relação do sujeito com o
21
Veremos na conclusão as conseqüências dessa ampliação do sensível em relação ao perceptível.
141
mundo
22
. Já segundo os textos tardios de Merleau-Ponty, mais do que decorrer da
relação do sujeito com o meio, a profundidade se organiza no interior do próprio ser.
Interessa ao filósofo, nesses textos, acentuar não como a percepção em profundidade
ocorre, tal como fazia na Fenomenologia da Percepção, e sim como as condições da
percepção em profundidade figuram no próprio mundo que se percebe.
Além da noção ontológica de profundidade, Merleau-Ponty também cita,
como exemplo de invisibilidade pela qual o campo visível é sustentado, o imaginário.
Longe de definir esse último como reprodução mental de objetos ou situações ausentes,
Merleau-Ponty o apresenta como “cifra secreta do real” (NC, 174). Com tal expressão, o
filósofo parece sugerir que o imaginário não é efeito de sensações empíricas, mas
também, e principalmente, um arcabouço simbólico pelo qual o real é apreendido (Cf.
OE, 23-4). O imaginário não se limita a reativar sensações prévias; ele se antecipa à
própria experiência e guia a ordenação dos dados sensíveis ao fornecer matrizes
simbólicas sob as quais tais dados são assimilados. Mas não que se trate de uma
projeção arbitrária de processos psicológicos sobre os dados empíricos. É verdade que o
imaginário acolhe o mundo, como temos acentuado até agora; mas Merleau-Ponty
também defende que as matrizes simbólicas do imaginário de algum modo se
encontram no mundo (Cf. NC, 189). Haveria assim, uma circularidade entre imaginário
e mundo: o primeiro oferece padrões de ordenação dos dados; mas tais padrões são
sugeridos pelo próprio mundo.
Essa ordenação de dados inerente ao próprio mundo por meio de dimensões
invisíveis (exemplificadas pelo imaginário e pela profundidade) implica uma nova
noção de sentido. Na Fenomenologia da Percepção, “sentido” indicava uma relação em
que os dados assimilados pela subjetividade remetem a outros dados que se perfilam
paulatinamente conforme a estrutura temporal da experiência
23
. Por sua vez, nos textos
finais, “sentido” é a manifestação de conjuntos significativos ou matrizes simbólicas
que originalmente estão incrustados no próprio ser, matrizes que o sujeito recolhe como
uma inteligibilidade anterior às suas próprias capacidades ativas. O sentido da
experiência deixa assim de resultar de uma intencionalidade subjetiva que sempre
almeja aquilo que está além do dado atual; ele parece instituir-se a si próprio no interior
22
“A profundidade nasce sob meu olhar porque ele procura ver algo” (PhP, 304).
23
“Há sentido para nós quando uma de nossas intenções é preenchida, ou, inversamente, quando uma
multiplicidade de fatos ou de signos se presta de nossa parte a uma retomada que os compreende, em todo
caso, quando um ou vários termos existem como... representantes ou expressão de outra coisa que eles
mesmos” (PhP, 490).
142
do mundo. Para se aproximar dessa inteligibilidade intrínseca ao ser, Merleau-Ponty
apela, na parte final de seu curso “A ontologia cartesiana e a ontologia de hoje” à
literatura, como veremos a seguir.
As idéias sensíveis
Para Merleau-Ponty, o pintor e o escritor contemporâneos exploram o mundo de
maneira invertida. O pintor partiria de estruturas elementares do ser (tais como cor,
textura, formas) e buscaria explicitar como os objetos e situações retratadas se
constituem, em toda sua complexidade, com base na ordenação espontânea desses
elementos ontológicos. Por sua vez, o escritor partiria da narrativa de diferentes
situações ou fatos complexos e almejaria desvendar certas estruturas elementares pelas
quais os temas narrados se ordenam (Cf. NC, 189). Desse modo, a literatura
contemporânea buscaria retraçar uma inteligibilidade (inerente ao ser) responsável pela
ordenação dos entes visíveis.
Proust é um dos escritores, julga Merleau-Ponty, que melhor teria realizado essa
tarefa. O filósofo cita a descrição proustiana, contida no primeiro tomo de Em busca do
tempo perdido, da profunda impressão gerada em Swann por uma certa frase musical.
Embora não remeta a um equivalente conceitual exato, essa frase musical condensava e
veiculava, sempre que ouvida, o amor de Swann por Odette. Não havia um conteúdo
preciso que Swann pudesse abstrair da frase musical e apreender como o sentido
subjetivo despertado pelo som objetivo. A frase musical expunha nela mesma os
sentimentos do personagem, de maneira a servir como molde simbólico por meio do
qual tais sentimentos podiam se reordenar em toda sua intensidade ao próprio Swann.
Proust não descreve a relação de Swann com a frase musical como associação de
experiências (cujo sentido seria previamente articulado) a um “rótulo” musical; na
verdade, é a frase que forma e acessibilidade às próprias vivências amorosas de
Swann. A frase musical funciona, assim, como uma essência ou matriz sensível, a qual,
longe de ser constituída pelos poderes da subjetividade, permite que essa organize a sua
experiência (Cf. NC, 191-195)
24
.
A descrição proustiana revela, assim crê Merleau-Ponty, o modo peculiar pelo
qual a inteligibilidade inerente ao ser atua. Certos entes, assim como a frase musical,
24
Tal como Merleau-Ponty afirma em O Visível e o Invisível, “as idéias musicais ou sensíveis,
precisamente porque elas são negatividade ou ausência circunscrita, nós não as possuímos, elas nos
possuem” (VI, 196).
143
não se reduzem a uma existência isolada em uma determinada localização espaço-
temporal; eles funcionam como idéias ou essências, no sentido de fornecerem os
padrões mais gerais pelos quais uma multiplicidade de fenômenos (no caso, os
sentimentos de Swann por Odette) poderia ser reconhecida como tal. Essas idéias não
são abstrações que registrariam as propriedades partilhadas por uma classe de
indivíduos. Merleau-Ponty as descreve como membrana pela qual o campo da
experiência se ordena (Cf. NC, 195), quer dizer, elas não são construções subjetivas, e
sim expressões de uma capacidade de agregar eventos inerentes ao próprio ser, assim
como as dimensões atuantes no próprio mundo (e que a pintura desvela) preparavam a
visibilidade
25
.
Cumpre questionar aqui se uma diferença entre o tema das dimensões
invisíveis, apresentadas pela pintura, e aquele das essências ou idéias sensíveis, tais
como a frase musical descrita por Proust. Afinal, a frase musical seria imediatamente
perceptível; por sua vez as dimensões do campo visível geralmente não são apreendidas
pela percepção ingênua. A fim de minimizar essa discrepância, acentuemos que o
desvelamento de tais idéias sensíveis ocorre pela literatura, ou seja, envolve criação
artística. Assim, a ordenação difusa da experiência por eixos sensíveis gerais só se torna
clara por meio da narrativa literária. Sem esse trabalho de expressão lingüística, a
função de tais eixos não seria imediatamente apreensível. Quer dizer que embora muitas
das essências reveladas pela literatura sejam sensíveis e não dimensões invisíveis, as
primeiras, tais como essas últimas, não são acessíveis diretamente à percepção ingênua,
e exigem, para se fixar, a retomada expressiva propiciada pela arte, de modo que ambas
só podem ser estudadas pela filosofia de modo indireto.
25
Mauro Carbone compara as idéias ou essências sensíveis exploradas por Merleau-Ponty com as idéias
estéticas de Kant (representações da imaginação que não se submetem adequadamente a nenhum dos
conceitos pelos quais o entendimento ordena a experiência sensível, e que, por isso mesmo, podem
apresentar indiretamente o suprasensível) (Cf. Carbone, M. Il Sensibile e l’Eccedente. Mondo estetico,
arte, pensiero. Milano: Guerini Studio, 1996, p.109-110). Porém, notamos que, para Kant, as idéias
estéticas aparecem como excedente em relação ao mundo perceptível porque o filósofo alemão supõe que
toda experiência sensível é ordenada conforme as categorias puras do entendimento humano. Essa
suposição não é partilhada por Merleau-Ponty. Assim, mais que descrever as idéias sensíveis como
excesso sobre a organização conceitual da experiência, interessa ao filósofo francês apresentá-las como
exemplos de uma inteligibilidade inerente ao ser. Essa inteligibilidade figura para Merleau-Ponty como
uma condição da própria experiência, condição desconhecida por Kant, para quem toda ordenação interior
aos dados provém do entendimento (Cf. Kant, I. Critique of Pure Reason. Transl. by Guyer, P. and Wood,
A. W. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1998, p.248, [B, 134-5]).
144
C) A linguagem filosófica como expressão criadora
Fixar as estruturas do ser
Numa nota de Fevereiro de 1959, Merleau-Ponty faz as seguintes afirmações:
não se pode fazer ontologia direta. Meu método ‘indireto’ (o ser nos entes) é o único
conforme o ser” (VI, 231). As análises apresentadas por nós neste capítulo e no anterior
pretendem esclarecer as razões pelas quais o filósofo justifica tais asserções. Vimos que
sem o apelo ao domínio dos entes (ou seja, aos temas específicos de algumas disciplinas
científicas ou de empreitadas artísticas), a concepção geral de ser a que se chegaria seria
limitada. Se o filósofo se fiasse apenas nas descrições da experiência ingênua como
método para caracterizar o ser (ou seja, definindo diretamente aquilo que existe com
base naquilo que se percebe) provavelmente as dimensões negativas, ausentes dos
conteúdos percebidos (mas que auxiliam a ordená-los), não seriam consideradas. Tais
dimensões se tornam acessíveis seja por meio de teorizações científicas (pensemos no
exemplo da totalidade invisível que guia o desenvolvimento do embrião, apresentado no
capítulo anterior) seja por meio da expressividade artística (conforme vimos na seção
anterior). “O ser é aquilo que exige de nós criação para que dele tenhamos a
experiência” (VI, 248, junho 59), assevera Merleau-Ponty em uma famosa nota. Quer
dizer que não basta abrir os olhos, ouvir os sons, etc. para apreender a totalidade daquilo
que existe, para compreender o modo como as coisas são em sua total complexidade. O
ser depende da inventividade humana para se desvelar, seja por meio de hipóteses
científicas pelas quais inúmeros fenômenos podem ser esclarecidos seja por meio de
obras artísticas nas quais os eixos inaparentes do mundo sensível são explicitados. Daí
que a investigação ontológica não possa se realizar de maneira fecunda sem referência a
disciplinas nas quais os aspectos comumente inapreensíveis do ser se revelam sob o
exercício da criatividade humana, quer dizer, daí que a ontologia possa ser
desenvolvida adequadamente por um método indireto, que obtém os dados de sua
reflexão de disciplinas não filosóficas.
Vamos elucidar com mais detalhes em que consiste essa referência da filosofia
ao domínio da não-filosofia. Não é o caso de simplesmente assimilar todos os dados
fornecidos pelas disciplinas não-filosóficas. Merleau-Ponty encontra em tais disciplinas
alguns índices de uma nova concepção do ser, os quais mais auxiliam na refutação de
certas concepções clássicas do ser (por exemplo, a concepção cartesiana, segundo a qual
o ser é totalmente positivo e atual) do que oferecem por si mesmos uma ontologia
pronta. O filósofo não se filia, assim, às doutrinas científicas ou aos estilos artísticos de
145
que se serve para sua reflexão. Pelo contrário, Merleau-Ponty sustenta posições críticas
em relação a ambos, como resumiremos a seguir.
Quanto aos resultados gerais das ciências, Merleau-Ponty julga que eles
padecem de distorções objetivistas. Daí que a referência a tais dados não seja suficiente
para a formulação de uma ontologia que pretenda apreender o ser primordial em toda a
sua complexidade (como conjunto de dimensões irredutíveis a objetos determinados).
Em O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty explicita esse ponto: “mostrando o desvio da
física e do ser da Physis, da biologia e do ser da vida, trata-se de efetuar a passagem do
ser em si, objetivo, ao ser da Lebenswelt(VI, 218, jan. 59). Assim, é verdade que a
biologia, por exemplo, sugere a concepção de um ser que em si mesmo é sensível e
entrecortado de dimensões negativas. Porém, trata-se apenas de uma sugestão que a
filosofia deve desenvolver por sua conta e risco, pois, em suas conclusões gerais, a
ciência define o ser, assim crê Merleau-Ponty, como objeto em-si, alheio às estruturas
subjetivas (de maneira a rejeitar aquilo de mais inovador que havia em suas sugestões).
Cabe à filosofia explorar as características do ser da vida para além daquilo que pode
ser teorizado de maneira objetiva.
Vimos na última seção que Merleau-Ponty também sustenta uma posição crítica
relação à arte. Embora tenha revelado dimensões ontológicas comumente
imperceptíveis, a arte moderna, dada sua tendência de romper com todas as convenções
e procedimentos técnicos, pode produzir obras que nada exprimem e se mimetizam
com coisas e ruídos do mundo. Não se trata, dessa maneira, para Merleau-Ponty, de
aprovar entusiasticamente todo vanguardismo, mas de notar que por meio do trabalho
de certos autores ou artistas, algumas relações inaparentes com o ser se tornam
visíveis
26
.
Diante dos índices fornecidos pelas disciplinas não-filosóficas, as quais se
voltam para os entes do mundo (por exemplo, os entes vivos, estudados pela biologia;
os entes visíveis, interrogados pela pintura), a filosofia deve, julga Merleau-Ponty,
formular uma concepção de ser que escape das limitações teóricas encontradas em tais
disciplinas. Nesse ponto, ao tentar exprimir as características do ser para além daquilo
que foi vislumbrado nos estudos dos entes, a escrita filosófica deve exercer uma função
criadora análoga àquela da literatura. Conforme havíamos visto em nosso segundo
26
Acentuamos que Merleau-Ponty não propõe critérios normativos que limitem a liberdade artística.
Assim, de seu ponto de vista, não nenhum problema estético com o projeto de uma arte que queira
deixar de ser arte e se igualar às coisas mundanas ou aos utensílios cotidianos. O filósofo apenas defende
que na formulação de uma reflexão ontológica esse tipo de arte pouco auxiliaria.
146
capítulo e na seção anterior deste capítulo, Merleau-Ponty concebe a relação entre
linguagem e experiência como de fixação da última pela primeira, o que se torna patente
na literatura. Sem dúvida, as estruturas ontológicas da experiência possibilitam a
ordenação da vivência subjetiva, tal como o exemplo da frase musical narrada por
Proust ilustra. No entanto, a explicitação de tais estruturas se torna possível pela
linguagem, a qual as apresenta de maneira publicamente acessível e lhes atribui uma
forma resistente para além dos instantes em que efetivamente atuam. Lembremos que as
virtudes da frase musical em relação à subjetividade de Swann foram narradas por
Proust. por meio de tal narrativa literária a própria noção de idéia sensível recebe
seus contornos gerais. De maneira análoga à literatura, a escrita filosófica deve exibir as
estruturas ontológicas, que são anteriores e condicionantes da própria linguagem. Em
uma nota de O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty nos assegura: “a verdade é que o
quale parece opaco, indizível, assim como a vida não inspira nada ao homem que não é
escritor. O sensível é, ao contrário, assim como a vida, tesouro sempre repleto de coisas
a dizer para aquele que é filósofo (quer dizer, escritor)” (VI, 300, maio 60). Assim, é
preciso escrever, ou seja, fixar e exprimir um sentido que não é imediatamente óbvio,
para que a experiência revele seus segredos. É desse modo que Merleau-Ponty pretende
desenvolver sua filosofia final: não se trata somente de coletar dados de outras
disciplinas, mas também de investigar por si o ser do mundo; porém, tal investigação
não se realiza como simples tradução de experiências pré-ordenadas, mas sob o modelo
da expressão criadora extraído da literatura.
Notemos que uma certa concepção do trabalho filosófico como esforço criador
já se encontra na Fenomenologia da Percepção. Merleau-Ponty afirma ali que “o
mundo fenomenológico não é a explicitação de um ser prévio, mas a fundação do ser; a
filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia mas, assim como a arte, é a realização
de uma verdade” (PhP, XV). Não é fácil compreender qual a tese veiculada por esse
trecho. O que significa afirmar que a filosofia não se refere a um ser prévio, mas funda
o próprio ser que investiga? A comparação com a arte pretende esclarecer esse caráter
fundante da filosofia: as obras artísticas não imitariam ou reproduziriam uma realidade
delas independente, mas realizariam uma verdade, quer dizer, explicitariam certos
arranjos de elementos sensíveis que surgem com tal configuração nas próprias obras,
e que assim são tornados possíveis pelo trabalho expressivo. Em que medida essa
capacidade artística permite formular uma analogia que elucida a investigação
filosófica? Deveríamos supor que as situações descritas pela filosofia fenomenológica
147
surgem por tais descrições e, assim, são fundadas pela reflexão filosófica? Ora, se
assim fosse, então a filosofia portaria um poder de ordenar o próprio mundo, e não mais
faria sentido admitir que ela supõe a experiência irrefletida em sua base, como tantas
vezes Merleau-Ponty insiste (Cf. PhP, IX, 74).
Em seus anos finais, como vimos nos parágrafos anteriores, Merleau-Ponty
desenvolve uma concepção mais clara da filosofia como expressão criadora. Não se
trata mais de sustentar que a filosofia funda o próprio ser, pois se reconhece que
estruturas ontológicas (as dimensões invisíveis, por exemplo) que ordenam a
experiência independentemente das capacidades subjetivas. Cumpre à reflexão
filosófica não simplesmente fundar o ser, mas explicitar expressivamente e fixar numa
forma culturalmente partilhável uma ordenação de sentido que se deve ao próprio
mundo.
Crítica à ontologia direta
A tarefa filosófica de expressão criadora do mundo sensível não está limitada a
narrar os objetos apreendidos pela experiência perceptiva ingênua. No geral, a filosofia
não está circunscrita aos conteúdos da percepção ordinária, pois tenta explicitar aquelas
dimensões invisíveis pelas quais essa própria percepção ocorre. No entanto, a
independência em relação ao lastro perceptível não implica uma absoluta liberdade para
o filosofar. A linguagem filosófica deve criar formas pelas quais as articulações do ser
se revelam, mas não que toda expressão filosófica necessariamente o consiga. Assim
como reconhecia limitações nas empreitadas científica e artística, Merleau-Ponty
também alerta para alguns riscos da atividade filosófica. O maior deles parece ser a
excessiva crença nas capacidades divinatórias da linguagem. Segundo Merleau-Ponty,
“é perigoso dar toda liberdade ao filósofo. Fiando-se muito rapidamente na linguagem,
ele seria tima da ilusão de um tesouro incondicionado de sabedoria absoluta” (N,
122). Assim, o fato de que ao filósofo cabe realizar a expressão criadora não implica
atribuir um poder incondicional à linguagem filosófica, como se o que quer que fosse
afirmado revelasse inexoravelmente estruturas do mundo. Sem a necessidade de
148
Merleau-Ponty ilustra essa crença excessiva no privilégio e autonomia do
discurso filosófico com o exemplo de Heidegger. Para o filósofo francês, Heidegger
teria defendido, seja nos textos iniciais seja nos finais, que o discurso filosófico possui
uma capacidade intrínseca de revelar as estruturas ontológicas do mundo, sem depender
dos demais saberes humanos. Merleau-Ponty avalia a fase inicial de Heidegger em seu
curso “As ciências do homem e a fenomenologia”, de 1951. Segundo esse curso,
Heidegger (em Ser e Tempo), ao caracterizar o Dasein humano como intrinsecamente
envolto pelas situações mundanas, admite uma multiplicidade de formas de se dirigir
pratico-cognitivamente ao mundo, formas que se entrelaçam em diversas empreitadas,
sem que nenhuma delas seja ontologicamente privilegiada. No entanto, ao apresentar a
filosofia, Heidegger atribui a ela a capacidade de elucidar o mundo independentemente
de qualquer atividade científica
27
. Assim, na reflexão heideggeriana, “as ciências do
homem são pura e simplesmente subordinadas à filosofia” (PPE, 422), a qual não
admite nenhum critério externo para balizar suas teses, mas também parece exercer o
papel de saber fundante de todos os demais.
Em sua fase final, Heidegger ainda manteria o excessivo privilégio do discurso
filosófico, avalia Merleau-Ponty no curso “A filosofia hoje”. Em textos maduros,
Heidegger desenvolveria uma tese presente em Ser e Tempo, segundo a qual não é
possível referir-se ao ser como aos entes mundanos, que o ser não é algo que possa
ser circunscrito como um objeto do discurso lingüístico. No entanto, Heidegger teria
reconhecido o seguinte nesses textos finais: o fato de que a linguagem existe indica que
ela é habitada pelo ser, que a sustenta enquanto tal. A linguagem manifesta, assim, o
próprio ser; esse não pode ser referido pela linguagem, mas se explicita no próprio
referir-se, na própria atividade lingüística. Caberia então encontrar um tipo de uso da
linguagem que acentue esse próprio manifestar do ser pelas palavras. O modo como
Heidegger concebe a reflexão filosófica em sua última fase, como um pensar que atende
ao chamado do ser, seria essa fala em que o próprio ser se explicitaria. Dessa maneira,
julga Merleau-Ponty, Heidegger almejaria “uma expressão direta do Ser” (NC, 148),
quer dizer, uma explicitação de estruturas ontológicas que ocorreria apenas porque se
usa a linguagem de um modo específico
28
.
27
Cf. Heidegger, M. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer, 2002, §10-11.
28
É verdade que em seus textos finais Merleau-Ponty se apropria de alguns recursos terminológicos de
Heidegger (como o uso de Ser com maiúscula em muitas passagens) e de alguns temas do filósofo alemão
(cf. nota 18 da conclusão). No entanto, parece-nos que as críticas dirigidas explicitamente ao filósofo
alemão indicam que Merleau-Ponty jamais se filiou estritamente à filosofia heideggeriana.
149
Merleau-Ponty recusa que a expressão filosófica possua o privilégio de desvelar
as estruturas do mundo independentemente dos dados de quaisquer outras disciplinas
teóricas ou artísticas. Aceitar esse privilégio implicaria uma ontologia direta, ou seja,
uma caracterização do ser limitada àquelas características que o filósofo tem acesso
imediato, seja por sua experiência perceptiva seja por seu discurso. Por sua vez,
Merleau-Ponty defende que somente um método indireto se conforma às estruturas do
ser, que essas não se limitam àquilo que é diretamente apreensível pelos filósofos. É
preciso apelar para os diversos estudos dos entes (empreitadas científicas ou artísticas) a
fim de que dimensões inaparentes do mundo sejam explicitadas. A expressão filosófica
não possui, assim, um poder inerente de revelar o ser em quaisquer de suas afirmações.
Muitas dessas afirmações podem somente comunicar, sob um sofisticado aparato
conceitual, idiossincrasias sem nenhuma justificativa na natureza das coisas. O critério
que permite distinguir entre uma expressão filosófica que verdadeiramente expõe
estruturas do mundo e outra que somente veicula teses injustificadas é exatamente a
atenção dispensada aos índices fornecidos pelas disciplinas não-filosóficas. A filosofia
não produz fatos novos e não possui temas exclusivos
29
; sua função, enquanto
investigação ontológica é ordenar os fatos conhecidos de modo a fornecer uma
concepção geral daquilo que existe. Mas os fatos a serem ordenados devem ser
coletados de outras disciplinas. Assim, o caráter indireto pelo qual Merleau-Ponty julga
que ontologia deve se realizar implica que a filosofia em geral não avança sozinha em
sua tarefa, e que embora não se reduza a um mero comentário de doutrinas científicas
ou de estilos artísticos, serve-se desses últimos para obter os contornos gerais daquilo
que pretende descrever.
A ontologia almejada por Merleau-Ponty pode progredir por meio dos dados
fornecidos pelas demais disciplinas. Mas que dizer dos dados diretos, isto é, das
descrições fenomenológicas de experiências perceptivas publicamente acessíveis?
Parece que, no decorrer de sua obra, Merleau-Ponty tende para uma maior
independência em relação a tais descrições. As teses da sua ontologiaa7vança r3.9(qui)-1.9(l)-2.0(o)9.9( )] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 s ver.
150
avaliaremos detidamente em que medida Merleau-Ponty se afasta da reflexão
fenomenológica.
Capítulo V – Merleau-Ponty intérprete da fenomenologia
Sinopse
Inicialmente, explicitamos como Merleau-Ponty, nos anos quarenta, se apropria
de temas e procedimentos fenomenológicos conforme seu projeto de explorar a
significação filosófica da percepção. Em seguida, acompanhamos como, nos anos
cinqüenta, os recursos fenomenológicos auxiliam o projeto de conceber uma noção de
ser que não se reduza à manifestação subjetiva, projeto que leva Merleau-Ponty a
reconhecer algumas limitações presentes na fenomenologia.
A) O projeto fenomenológico de Merleau-Ponty
Apresentação
Vimos, no capítulo anterior, que ao apresentar o método indireto como o único
conforme o ser, Merleau-Ponty, em seus anos finais, parece dispensar os dados obtidos
pelas descrições fenomenológicas das vivências subjetivas. Para avaliar tal impressão e,
desse modo, esclarecer como o filósofo desenvolve sua última ontologia, propomos,
neste capítulo, expor como se tecem, de um modo geral, suas relações com a escola
fenomenológica.
É preciso afastar, de início, duas simplificações empobrecedoras das relações
entre Merleau-Ponty e a fenomenologia. Primeiramente, tais relações não devem ser
reduzidas àquelas entre Merleau-Ponty e Husserl. É verdade que o filósofo alemão,
fundador do movimento fenomenológico contemporâneo, será o centro das reflexões de
Merleau-Ponty sobre o tema; em contrapartida, o interesse do filósofo francês não se
limita à obra husserliana, mas abarca os trabalhos de Fink, Gurwitsch, Scheler e
Conrad-Martius, autores cuja contribuição para seu pensamento não pode ser
negligenciada. Em segundo lugar, deve-se recusar a interpretação segundo a qual
haveria um primeiro estágio em que Merleau-Ponty se filia irrestritamente à
fenomenologia, e um segundo estágio no qual ocorreria uma ruptura inexorável. Quanto
a esse ponto, Jacques Taminiaux observa com razão que não encontramos em Merleau-
Ponty “uma obediência filial a esse ponto de vista da consciência que deveria definir a
fenomenologia”
1
, ponto de vista tantas vezes reiterado pelas análises husserlianas do
ego transcendental absoluto. Merleau-Ponty se serve do instrumental fenomenológico
1
Taminiaux, J. “La phénoménologie dans le dernier ouvrage de Merleau-Ponty”. In : Le Regard et
l’Excédent. La Haye : Martinus Nijhoff, 1977, p.73.
152
para desenvolver uma análise da percepção, concebida como experiência irrefletida,
anterior às atividades de uma consciência cognoscente. Assim, deve-se acentuar que
Merleau-Ponty inicia sua carreira filosófica com um projeto filosófico próprio, o qual
guia a leitura dos textos de Husserl e o leva a formular, na Fenomenologia da
Percepção, uma noção ampliada de fenomenologia. Explicitemos a seguir esse ponto.
O estudo da percepção
Merleau-Ponty escreve dois projetos de trabalho, prévios à sua inscrição formal
no doutoramento. No primeiro deles, de 1933, por meio de uma contraposição dos
dados experimentais da Gestalttheorie às posições criticistas, o filósofo sugere que o
conteúdo significativo dos dados sensíveis não se reduz às relações cognitivas ali
projetadas, e conclui que as operações perceptivas não são atividades intelectuais e que
devem, por isso mesmo, ser estudadas em sua especificidade (Cf. PP, 12). No segundo
projeto, de 1934, a fenomenologia é mencionada como alternativa ao neokantismo e
como inspiradora das análises psicológicas da Gestalttheorie, as quais tentariam
circunscrever o caráter específico da percepção (Cf. PP, 23). Maria Luz Pintos
Peñaranda sugere três fatos que podem esclarecer o interesse despertado em Merleau-
Ponty pela fenomenologia de um ano para outro: Sartre vai à Alemanha em 1933-4 e em
seu regresso deve ter entusiasmado Merleau-Ponty com informações acerca dessa
escola; Merleau-Ponty conhece pessoalmente Aron Gurwitsch, importante
fenomenólogo recém-chegado à França, e assiste aos seus cursos; Merleau-Ponty o
famoso artigo de Eugen Fink, assistente de Husserl, publicado em 1933 em Kant
Studien (“Die phänomenologische Philosophie Edmund Husserls in der gegenwärtigen
Kritik”)
2
. Ao menos esses dois últimos fatos tiveram impacto certo sobre o filósofo
francês. Em seu segundo projeto, Merleau-Ponty realmente se serve do artigo de Fink
para afirmar que a fenomenologia “dá ocasião a uma teoria do conhecimento
absolutamente distinta daquela do criticismo” (PP, 21). Além disso, Merleau-Ponty cita
a tese de Gurwitsch (Phänomenologie der Thematik und des reinen Ich. Studien über
Beziehungen von Gestalttheorie und Phänomenologie) como exemplo das contribuições
da fenomenologia a problemas da psicologia.
É notável que um dos objetivos de Gurwitsch em seu trabalho é “desenvolver
certos problemas fenomenológicos com a ajuda das teses teóricas da Gestalt, assim
2
Cf. Pintos Peñaranda, M. L. “Gurwitsch, Goldstein, Merleau-Ponty. Analyse d’une étroite relation”. In:
Chiasmi International, n.6, 2004, p.147-171.
153
como corrigir alguns de seus princípios e, em geral, fazer avançar a fenomenologia ao
longo dessas linhas mais além do estado alcançado pelas Ideen de Husserl”
3
. Os leitores
de Merleau-Ponty facilmente reconhecem nessa citação o movimento argumentativo de
A Estrutura do Comportamento e da introdução da Fenomenologia da Percepção, o que
parece confirmar a importância dos trabalhos de Gurwitsch na elaboração das análises
fenomenológicas do filósofo francês.
Passemos à análise de A Estrutura do Comportamento para expor com mais
detalhes qual o sentido de fenomenologia utilizado por essa obra
4
. No terceiro capítulo
desse livro, Merleau-Ponty se recusa a separar relações significativas e dados
concretos. Essa tese implica a existência de estruturas percebidas cujo sentido seria
inerente aos dados, e não fundado pela atividade sintética do sujeito cognitivo. Por
conseguinte, a natureza percebida não se reduz ao conjunto de objetos constituídos pelo
entendimento, mas se manifesta como diferentes regiões fenomênicas com significação
imanente; além disso, a subjetividade deixa de ser concebida como foco de síntese
intelectual e passa a ser tomada como campo em que diferentes tipos de consciência
(imaginativa, amorosa, reflexiva, etc.) se ordenam. Com o desvelamento dessa
multiplicidade de vivências subjetivas, a qual é remetida à obra de Husserl (Cf. SC,
186), Merleau-Ponty esboça uma primeira demarcação da reflexão fenomenológica em
relação ao criticismo neokantiano.
Os temas fenomenológicos ganham posição central no quarto capítulo de A
Estrutura do Comportamento, o qual se abre com uma descrição da experiência
ingênua, ainda não dissecada pelas teorias científicas. Essa experiência não é senão
aquela do perspectivismo inerente à percepção, conforme descrito por Husserl: cada
percepção oferece apenas alguns perfis por meio dos quais as coisas mesmas se
apresentam (Cf. SC, 202). Para Merleau-Ponty, tal experiência repugna as
interpretações realistas (segundo as quais os conteúdos percebidos são representações
exatas, geradas por ação causal, dos eventos objetivos) pelas quais comumente se tenta
explicar a atividade perceptiva. Para que tais interpretações fossem justificadas, seria
preciso encontrar equivalentes fisiológicos dos temas percebidos, quer dizer, encontrar
3
Gurwitsch, A. Phenomenology of Thematics and of the Pure Ego: Studies of the Relation between
Gestalt Theory and Phenomenology, In: Gurwitsch, A. Studies in Phenomenology and Psychology.
Evanston: Northwestern University Press, 1966, p.176.
4
Vale lembrar que é principalmente a fenomenologia de Husserl a qual será explicitamente discutida
nesse livro, que Gurwitsch não é mencionado nesse texto e o nome de Fink surge raras vezes. Mesmo
assim, como veremos, não haverá uma aplicação estrita da metodologia husserliana e sim o
desenvolvimento de uma análise que deve muito a esses dois autores.
154
(nos processos que ordenam a percepção) efeitos pontualmente correspondentes aos
estímulos objetivos. Segundo Merleau-Ponty, isso não é possível, pois para que tais
estímulos realizem sua função representativa, devem se submeter às leis de ordenação
do próprio campo fenomenal (Cf. SC, 207). Dessa maneira, aquilo que se percebe é um
campo ordenado segundo regras próprias. Não se trata, sem dúvida, de rejeitar que haja
um mundo exterior que motiva a atividade perceptiva; Merleau-Ponty apenas rejeita que
a percepção de tal mundo ocorra de maneira causal linear.
A tese da irredutibilidade da percepção a processos causais lineares conduz
Merleau-Ponty a uma filosofia inspirada no criticismo kantiano, segundo a qual se deve
acentuar que as causas objetivas da percepção (os estímulos sensíveis) supõem a
consciência dessas condições (ou seja, supõem o trabalho de organização inerente ao
campo fenomenal) (Cf. SC, 213). Nesse momento do capítulo, Merleau-Ponty parece
aproximar fenomenologia e criticismo: a fim de caracterizar a análise resultante da
assunção da consciência como atividade que subjaz aos processos causais, o autor
afirma que a filosofia se torna “uma fenomenologia, quer dizer, um inventário da
consciência como meio [milieu] do universo” (SC, 215). Na verdade, longe de assumir o
criticismo neokantiano, o filósofo se filia à atitude transcendental, ou seja, a “uma
filosofia que trata toda realidade concebível como objeto da consciência” (SC, 217).
É inegável que criticismo e fenomenologia partilham da atitude transcendental e
que, nesse sentido, ambos são próximos. A especificidade da fenomenologia começa a
despontar quando Merleau-Ponty defende que a atitude transcendental está somente
numa relação de homonímia (e não de sinonímia) com o criticismo (Cf. SC, 222-3).
Quer dizer que há a possibilidade de atribuir à consciência o papel de meio universal, de
“igualar a consciência à experiência inteira” (SC, 240), sem assumir posições criticistas,
que tal atribuição não é sinônima de tais posições. Notemos que, para o criticismo, a
consciência nunca se relaciona diretamente com o mundo concreto, mas apenas com os
objetos constituídos pela própria atividade cognitiva (Cf. SC, 216). Já a consciência à
qual a atitude transcendental assumida por Merleau-Ponty apela não é essa, e sim a
perceptiva (Cf. SC, 227), concebida como consciência que se relaciona diretamente com
as Gestalten físicas, vitais e humanas. Assim, a consciência é um meio universal não
porque todas as coisas se apresentam como significações que ela constitui ativamente,
mas porque os dados materiais se organizam espontaneamente em formas para a
percepção.
155
Os objetos revelados sob a vigência da atitude transcendental assumida por
Merleau-Ponty são estruturas concretas com uma significação intrínseca (e não meras
representações intelectuais). Essa posição, que sem dúvida afasta o filósofo do
criticismo, não o aproximaria do realismo do qual ele pensava ter se livrado? Afinal,
se a consciência está em correlação não com significações por ela constituídas mas com
estruturas reais, o que então impede de tomar essas últimas como determinantes da
primeira? Para escapar desse risco, deve-se entender que a atitude transcendental
potencializa aquele argumento da anterioridade do campo fenomenal em relação aos
processos causais físicos ou fisiológicos (conforme veremos no parágrafo seguinte).
Essa atitude transcendental referente à experiência concreta derivaria da redução
fenomenológica de Husserl (Cf. SC, 236), expediente que, segundo Merleau-Ponty,
permite marcar o caráter originário da experiência perceptiva ante as teses realistas.
Merleau-Ponty defende, como vimos alguns parágrafos, que os estímulos
objetivos dependem das regras internas ao campo fenomenal, o qual então é fundante
em relação aos processos causais explicativos da percepção. No entanto, o filósofo
reconhece que a consciência, por conta de uma tendência natural, trata as estruturas
percebidas como objetos em si, anteriores e independentes da sua própria atividade. Ao
continuar acriticamente essa teleologia espontânea da percepção, “todas as ciências se
colocam em um mundo ‘completo’ e real sem notar que em relação a esse mundo a
experiência perceptiva é constituinte” (SC, 235). Merleau-Ponty recorre à redução
fenomenológica justamente para anular essa cristalização teórica do senso comum
realista: trata-se de retornar à percepção como experiência originária, na qual a própria
idéia de mundo objetivo surge. A fenomenologia é a doutrina que fornece o método
para que se priorize a relação entre consciência perceptiva e estruturas concretas em
contraposição à idéia de um mundo objetivo tal como delimitado pelo senso comum e
pelas abordagens científicas. Essa temática peculiarizará consideravelmente a
investigação fenomenológica praticada no segundo livro de Merleau-Ponty, a
Fenomenologia da Percepção.
Uma fenomenologia da experiência concreta
Em A Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty se serve da fenomenologia
para superar o pensamento causal e o neokantismo no tratamento da percepção, e para
priorizar a experiência concreta das Gestalten. Na Fenomenologia da Percepção, ainda
se valendo das teses de Gurwitsch e Fink, o autor se aproxima consideravelmente de
156
Husserl, e tenta mostrar que em alguns textos do fundador do movimento
fenomenológico já há elementos que sustentam, ao menos em parte, tal prioridade
5
.
É principalmente no prefácio da Fenomenologia da Percepção que Merleau-
Ponty esclarece o que compreende por fenomenologia. Nesse texto, primeiramente, o
filósofo distingue entre descrição fenomenológica e explicação científica; em seguida,
expõe o sentido da redução fenomenológica; em terceiro, esclarece como as essências
fenomenológicas estão fundadas na experiência factual; por fim, apresenta a
intencionalidade como ligação pré-reflexiva com o mundo. Concentremo-nos
principalmente nos dois primeiros tópicos. No início do prefácio, o autor retoma o
caráter originário da experiência perceptiva ante o mundo objetivo estudado pelas
ciências (tal como havia realçado em A Estrutura do Comportamento). A valorização
fenomenológica da experiência, preconizada por Husserl, implica “a desaprovação da
ciência” (PhP, II), não certamente quanto à correção lógica das teorias ou quanto às suas
aplicações técnicas, mas sim quanto à pretensão filosófica de que as teorias científicas,
ao explicarem objetivamente os eventos mundanos, apresentam de maneira exaustiva o
ser mundano. Merleau-Ponty sustenta que o mundo descrito pela ciência é uma
construção tardia sobre a experiência perceptiva ingênua, e que a ambição da
fenomenologia é justamente recuperar o ponto de vista de tal experiência (Cf. PhP, III).
A ênfase fenomenológica nessa experiência subjetiva não equivale à assunção de
uma postura intelectualista, que apresentaria o mundo como conjunto de significações
constituídas pelo sujeito. Conforme vimos ao analisar A Estrutura do Comportamento, a
atitude transcendental deve vigorar no nível da atividade perceptiva, a qual está em
contato direto com as coisas mundanas. De algum modo, esse resultado já estaria
esboçado na última filosofia de Husserl, crê Merleau-Ponty (Cf. SC, 236). No prefácio
da Fenomenologia da Percepção, o autor explora essa crença mencionada rapidamente
5
Deve-se considerar que tal aproximação se deveu ao esforço de Merleau-Ponty em consultar muitos
textos então inéditos de Husserl. Em 1939, ao visitar os arquivos Husserl em Louvain, o filósofo francês
pôde consultar a obra Erfahurg und Urteil, organizado por L. Landgrebe, e as transcrições de Ideen II,
Umsturz der kopernikanischer Lehre e da parte final da Krisis. Além disso, em 1942, recebeu de Van
Breda, então diretor dos arquivos Husserl, uma cópia de vários manuscritos inéditos de Husserl, incluindo
o artigo “Fenomenologia” da cima quarta edição da enciclopédia Britannica, a lista completa dos
títulos das seções da Krisis e uma cópia da carta de Husserl a Lévy-Bruhl. Nesse mesmo ano, Merleau-
Ponty menciona em carta a Van Breda ter consultado a VI Meditação Cartesiana, de Fink. Em 1944,
várias cópias de textos husserlianos foram confiadas a Tran Duc Thao e Merleau-Ponty, incluindo
Meditações Cartesianas, A Idéia da Fenomenologia e manuscritos do grupo C, que tratam principalmente
da temporalidade. (Cf. Van Breda, H. L. “Maurice Merleau-Ponty et les archives-Husserl à Louvain”. In :
Revue de Métaphysique et de Morale, n.o 4, 1962, p.410-430 ; Cf. Toadvine, T. “Merleau-Ponty’s reading
of Husserl : a chronological overview”. In : Toadvine, T.; Embree, L. (ed.). Merleau-Ponty’s reading of
Husserl. Boston: Kluwer Ac. Publisher, 2002, p. 227-286.).
157
em A Estrutura do Comportamento. O filósofo francês nota uma tensão entre o projeto
inicial de Husserl e suas conseqüências efetivas. Husserl, por meio da redução
fenomenológica, pretenderia explicitar a consciência transcendental, a qual constitui o
sentido dos fenômenos mundanos (Cf. PhP, V). Porém, o interminável questionamento
husserliano acerca da possibilidade da redução indicaria a dificuldade de completar tal
meta. Os vários recomeços da redução tentados por Husserl exprimiriam, na verdade, “a
impossibilidade de uma redução completa” (PhP, VIII)
6
. Segundo Merleau-Ponty, não é
possível explicitar uma consciência que constitui ativamente o sentido das experiências
vividas. Se se põe entre parênteses a existência objetiva do mundo, tal como prescreve o
método fenomenológico, chega-se a resultados não previstos pelo projeto idealista
husserliano
7
. O mundo, por exemplo, longe de se manifestar como conjunto de
fenômenos ordenados pelo sujeito cognoscente, brota na percepção como conteúdo não
constituído por ela, mas ao qual ela responde (Cf. PhP, VIII). Por conseguinte, a
redução fenomenológica em vez de abonar uma perspectiva idealista
8
, fomenta uma
investigação do sentido perceptivo, o qual não surge de atos subjetivos e sim da
correlação espontânea entre os eventos mundanos e a atividade pré-pessoal do corpo
próprio. Essa investigação altera o âmbito da fenomenologia transcendental, uma vez
que, desde então, o “verdadeiro transcendental” não será mais “o conjunto de operações
constitutivas pelas quais um mundo transparente (...) se instalaria diante de um
espectador imparcial, mas a vida ambígua em que se faz a Ursprung das
transcendências” (PhP, 418). Quer dizer que o contato entre o corpo e as coisas torna-se
o foco pelo qual é possível compreender como a experiência do mundo ganha sentido.
Deve-se notar que a posição final de Merleau-Ponty quanto à Husserl na
Fenomenologia da Percepção não é criticar uma empreitada idealista que se contradiz
em seus próprios resultados, mas sim enfatizar certas alterações no itinerário teórico do
6
Em 1957, em sua curta intervenção no colóquio filosófico de Royaumont dedicado à obra de Husserl,
Merleau-Ponty retoma a mesma tese: “o fato de que [Husserl] tenha pensado na [redução] durante vinte e
cinco anos sem interrupção parece indicar que a situação da consciência reduzida não é uma situação
clara nem fácil de formular” (Merleau-Ponty, M. Discusion. In: Husserl. Tercer Colóquio Filosófico de
Royaumont. Buenos Aires: Paidos, 1968, p.143).
7
Marilena Chaui formula bem o teor desses resultados: “a intencionalidade enraíza a consciência, em
lugar de separá-la do mundo; a redução eidética, na tentativa de captar as essências para além da ‘tese
natural do mundo’, descobria a facticidade irredutível que funda o possível sobre o real; a constituição
mergulhava num solo de postulados que desvendam tudo quanto não constituímos” (Chaui, M.
Experiência do Pensamento. Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002,
p.74).
8
Para Merleau-Ponty, “o próprio do idealismo é admitir que toda significação é centrífuga, é um ato (...)
de Sinn-gebung (...). Compreender é sempre em última análise construir, constituir, operar atualmente a
síntese do objeto” (PhP, 490).
158
filósofo alemão que apontariam para uma análise do mundo concreto, análise que o
próprio filósofo francês realiza. Para Merleau-Ponty, Husserl teria partido de um
“logicismo” (PhP, 317, nota), chegaria a uma fase intermediária de forte cunho idealista
(“período das Ideen[PhP, 281, nota]) e passaria a um período final marcado por um
tipo de “existencialismo” (PhP, 317, nota), no qual o filósofo alemão “tomou
plenamente consciência do que queria dizer o retorno ao fenômeno e tacitamente
rompeu com a filosofia das essências” (PhP, 61, nota). É em relação ao projeto do
segundo período que os resultados do terceiro mostrar-se-iam contraditórios. Porém,
importa salientar não a incongruência entre os dois períodos, mas a abertura paulatina
de novas possibilidades para a investigação fenomenológica.
Merleau-Ponty ameniza na própria Fenomenologia da Percepção a sua divisão
tripartite da obra husserliana
9
e admite, por exemplo, o caráter parcial do rompimento
final de Husserl com o idealismo transcendental de sua segunda fase. É verdade que em
sua última filosofia Husserl realiza a descrição do mundo da vida (Lebenswelt), quer
dizer do conjunto de estruturas concretas que sustentam a vida humana e, por
conseguinte, qualquer reflexão filosófica. Porém, o filósofo alemão “acrescenta que, por
uma segunda ‘redução’, as estruturas do mundo vivido devem ser por sua vez
recolocadas no fluxo transcendental de uma constituição universal em que todas as
obscuridades do mundo seriam esclarecidas” (PhP, 419, nota)
10
. Dessa maneira,
Merleau-Ponty não nega que fortes temas idealistas mesmo nos escritos finais de
Husserl. Esse fato, entretanto, apenas acentua o dilema contidos em tais textos: por um
lado, se a redução fenomenológica deve revelar a consciência pura como responsável
pelo sentido da experiência, então não se por que passar pelo mundo vivido em vez
de ir diretamente até tal consciência. Por outro, se a redução passa pelo mundo da vida,
então ela parece desvelar um sentido que não é ativamente constituído e, assim, atesta a
impossibilidade de se realizar completamente. É nessa última direção, apesar das
recaídas, que Merleau-Ponty o pensamento final de Husserl se mover (Cf. PhP, 419,
nota)
11
. Na Fenomenologia da Percepção, o autor, por sua conta e risco, tenta estender
9
Em seus textos tardios, Merleau-Ponty praticamente abandona tal divisão, como veremos.
10
Merleau-Ponty se refere ao trecho de A Crise das Ciências européias em que o eu é apresentado como
centro de toda constituição do sentido (Cf. Husserl, E. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und
die transzendentale Phänomenologie. Ed. supra, § 55, p.190).
11
Dan Zahavi julga tal interpretação convincente. Segundo ele, “embora Husserl insista que a
subjetividade é uma condição de possibilidade para a manifestação [do mundo], ele aparentemente não
pensa que ela seja a única, isto é, embora ela possa ser uma condição necessária, ela não é suficiente.
Uma vez que Husserl ocasionalmente identifica o não-eu com o mundo (Cf. Husserliana XV, 131, 287;
Ms. C2 3a) (...) e mesmo ache necessário falar do mundo como o não-eu transcendental (Cf. Ms. C7 6b),
159
tal direção e explicitar um sentido inerente aos fenômenos percebidos, o qual seria
anterior à atividade constitutiva do sujeito transcendental.
Observações críticas
Vamos avaliar alguns dos riscos corridos por Merleau-Ponty em sua própria
empreitada fenomenológica. Para tanto, vale a pena expor as críticas de Aron Gurwitsch
ao filósofo francês contidas em Teoria do Campo da Consciência, seu livro de 1957.
Nesse livro, tal como já fizera em sua tese, Gurwitsch pretende “menos dar uma
exposição da fenomenologia que fazer avançar certos problemas fenomenológicos”
12
.
No entanto, o autor não deixa de apresentar com clareza o campo de atuação da
fenomenologia. Segundo ele, tal doutrina “não se ocupa dos objetos tais como eles são
realmente, mas dos objetos tais como eles aparecem por meio dos atos de
consciência”
13
. Não se trata de instaurar uma dualidade entre o objeto em si e sua
representação mental; importa assinalar que o que quer que os objetos sejam realmente,
eles devem se manifestar à consciência, e que a fenomenologia se interessa somente por
essa manifestação. Desse modo, a fenomenologia analisa os objetos no como da sua
aparição fenomênica, ou seja, analisa os noemas, as coisas tais como elas se apresentam
por meio de atos particulares de consciência (e esses atos são chamados de noeses)
14
.
O noema, por um lado, não é, tal como as sensações, um componente real dos
atos perceptivos. Afinal, diferentes atos (os quais envolvem diferentes sensações)
podem corresponder a um mesmo noema, tese que Gurwitsch exemplifica com o caso
de alguém que, sem mudar de ponto de observação e assim conservando sua orientação
em relação aos objetos percebidos, abra e feche os olhos diversas vezes
15
. Por outro
lado, como adiantamos, o noema não se confunde com a coisa percebida, pois é
apenas uma das suas manifestações possíveis, a qual está em correlação com um ou com
alguns atos perceptivos. E mesmo se se apela a um encadeamento indefinido de
noemas, não se pode identificá-los à coisa material, visto que os noemas não são
afetados pelas alterações sofridas por essa última. Como acentua Husserl em Idéias I,
penso que se é levado a concluir que ele concebe a constituição como um processo envolvendo diferentes
constituintes transcendentais entrelaçados: subjetividade e mundo” (Zahavi, D. “Merleau-Ponty on
Husserl: a Reappraisal”. In : Toadvine, T.; Embree, L. (eds.). Merleau-Ponty’s reading of Husserl.
Boston: Kluwer Ac. Publisher, 2002, p.13).
12
Gurwitsch, A. Théorie du Champ de la Conscience. Paris: Desclée de Brouwer, 1957, p.7.
13
Ibid., p.151.
14
Como diz Gurwitsch, “os objetos, quaisquer que sejam, reais ou ideais, só figuram nas análises
fenomenológicas na qualidade de noemas e de sistemas de noemas encadeados” (Id., ibid).
15
Cf. Ibid., p.145.
160
uma árvore real “pode queimar, se reduzir a seus elementos químicos, etc. Mas o
sentido o sentido dessa percepção, o qual pertence necessariamente à sua essência
não pode queimar, ele não tem elementos químicos, força ou propriedades naturais”
16
.
Assim, uma coisa material pode ser consumida pelo fogo, mas não os seus noemas (o
que Husserl chama ali de sentido da percepção). Esses, conforme afirma Gurwitsch,
não são senão a coisa tal como ela “aparece em uma apresentação determinada
correspondendo a uma percepção dada”
17
.
Após retomar a exposição de tópicos gerais da fenomenologia por Gurwitsch,
acompanhemos sua crítica a Merleau-Ponty. Gurwitsch censura o filósofo francês por
ter falhado em “distinguir o aspecto noemático do aspecto noético da percepção, e
[falhado] em proceder a uma análise aprofundada do aspecto noemático”
18
. Qual o
motivo que justificaria tal censura? Segundo Gurwitsch, Merleau-Ponty “distingue e
mesmo opõe a coisa dada na ‘evidência própria’ ou ‘evidência perceptiva’ e a série de
aparências ou de aspectos concordantes”
19
. Ora, para Gurwitsch “em uma orientação
estritamente fenomenológica, não lugar para distinguir a coisa mesma de um grupo
sistematicamente encadeado de noemas perceptivos”
20
. Ao fazer tal distinção, Merleau-
Ponty teria incorrido em erro. Lester Embree nos ajuda a entender a posição de
Gurwitsch: se Merleau-Ponty tivesse levado a cabo uma análise noemática conseqüente,
então ele “teria reconhecido que o objeto inteiro está presente em cada um de seus
aspectos ou aparências”
21
, e não teria distinguido entre ambos.
De nossa parte, julgamos haver dois problemas na crítica de Gurwitsch. Em
primeiro lugar, não é correto afirmar que Merleau-Ponty distingue entre a coisa e os
noemas tal como Gurwitsch, e Embree, avaliam que ocorreu. Desde A Estrutura do
Comportamento, Merleau-Ponty admite que uma das principais marcas da percepção,
descrita fenomenologicamente, é que a coisa, em sua totalidade, é co-percebida em cada
aspecto parcial assimilado (Cf. SC, 201-2). Essa tese continua em vigor na
Fenomenologia da Percepção, em que Merleau-Ponty defende que cada aspecto
16
Husserl, E. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie I. Hua. III.
Haag: Martinus Nijhoff, 1950, § 89, p.184
17
Gurwitsch, A. Op. cit., p.148.
18
Ibid., p.241.
19
Ibid., p.239. Gurwitsch parece se referir ao seguinte trecho da Fenomenologia da Percepção: “nós não
começamos por conhecer os aspectos perspectivos da coisa; ela não é mediatizada por nossos sentidos,
por nossas sensações, por nossas perspectivas, nós vamos diretamente a ela e é secundariamente que s
nos apercebemos dos limites de nosso conhecimento e de nós mesmos como cognoscentes” (PhP, 374).
20
Ibid., p.241.
21
Embree, L. “Gurwitsch’s critique of Merleau-Ponty”. In: Journal of the British Society for
Phenomenology. Vol. 12, n. 2, 1981, p.155.
161
percebido de uma coisa remete expressivamente a uma infinidade de outros aspectos, e
que, assim, a percepção jamais apreende propriedades isoladas, mas a coisa em toda a
sua complexidade
22
. O trecho da Fenomenologia da Percepção a que Gurwitsch parece
se referir (cf. nota 19) apenas introduz a passagem da percepção na atitude natural para
a atitude fenomenológica, e, de fato, não defende que a coisa percebida é distinta dos
noemas pelas quais se apresenta. Dessa maneira, a crítica gurwitschena à Merleau-
Ponty, tal como formulada, não procede.
Em segundo lugar, notamos que o próprio Gurwitsch admitira anteriormente que
alguma distinção entre a coisa e seus noemas era necessária. Afinal, “a coisa percebida
pode possuir propriedades que não figuram em uma apresentação particular. Assim,
certas asserções são verdadeiras no que concerne à coisa enquanto existente real e falsas
em relação a um noema perceptivo particular”
23
. Acrescentamos que mesmo em relação
a um encadeamento de noemas muitas asserções referentes às coisas não se confirmam:
lembremos do exemplo de Husserl, segundo o qual nenhum agrupamento noemático
pode pegar fogo. Parece-nos, assim, paradoxal que Gurwitsch tenha acusado Merleau-
Ponty de sustentar uma distinção com a qual, no limite, ele mesmo deve concordar. Não
haveria nenhum erro, do ponto de vista da fenomenologia, em não identificar a
totalidade dos atributos objetivos de uma coisa à manifestação de seus noemas. Essa
diferença entre ambas acentua que a fenomenologia se limita a estudar a aparição ou
fenomenalização das coisas e eventos sem pretender, com isso, que tal aparição abarque
todas as propriedades do seu ser.
Em nosso primeiro capítulo, argumentamos que Merleau-Ponty incorre no
problema oposto àquele apresentado por Gurwitsch: o filósofo francês não teria
distinguido adequadamente entre noema e objeto. Vamos reexaminar rapidamente esse
problema a fim de tornar patente ao menos uma dificuldade do projeto fenomenológico
de Merleau-Ponty. O próprio Gurwitsch fornece elementos para repormos o tópico em
questão. Ele nota que, para Merleau-Ponty, “o problema transcendental concerne
somente à constituição do mundo objetivo tal como ele é em si mesmo, do ‘mundo
verdadeiro e exato’, sobre a base do mundo pré-científico e pré-objetivo tal como ele
22
Citemos ao menos um exemplo fornecido por Merleau-Ponty: “quando eu olho o abajur posto em
minha mesa, eu lhe atribuo não apenas as propriedades visíveis a partir de meu lugar, mas ainda aquelas
que a lareira, as paredes, a mesa podem ‘ver’, o verso de meu abajur é apenas a face que ele mostra’ à
lareira” (PhP, 82).
23
Gurwitsch, A. Op. cit., p.145.
162
aparece na experiência perceptiva imediata”
24
. O filósofo alemão enfatiza que Merleau-
Ponty “não põe questões transcendentais a propósito da constituição desse mundo pré-
objetivo”
25
, o qual seria aceito em sua “facticidade última”
26
. Para Gurwitsch, uma
redução fenomenológica “radical”
27
deveria buscar as condições transcendentais do
mundo percebido, ou seja, deveria reenviar tal experiência ao sistema noético que a
ordena. No entanto, Merleau-Ponty rejeita que tal reenvio possa ser realizado. Vimos
que o filósofo francês não admite a passagem a um nível em que a experiência
perceptiva seria constituída por atos de consciência. Além disso, ele alarga o âmbito do
transcendental ao tomar o contato entre corpo e estruturas concretas percebidas como
foco originário do qual a noção de ser objetivo é tardiamente derivada.
Notemos que uma das conseqüências desse alargamento do transcendental é a
não discriminação entre coisas percebidas (encadeamento de noemas) e coisas em sua
realidade autônoma. Dado que a percepção é tratada em termos de contato direto com
as existências, a fenomenologia merleau-pontyana não discerne entre o como da
manifestação das coisas e essas coisas em si mesmas, e, por conseguinte, não se dedica
somente ao primeiro desses dois termos, tal como recomenda Husserl e Gurwitsch. Não
encontramos na Fenomenologia da Percepção uma distinção entre objeto intencional
(aquele que se manifesta em correlação com os atos subjetivos) e objeto puro e simples
(aquele em sua existência material autônoma). Quando Merleau-Ponty descreve a
ordenação do sentido percebido (o qual seria recolhido pelo corpo e não constituído
pelo sujeito), ele pretende apresentar um sentido presente nas próprias coisas
28
. Não se
trata de descrever relações entre aparências percebidas, relações que poderiam não
corresponder ao substrato material das coisas. Para Merleau-Ponty, o sentido que a
percepção apreende envolve não a fenomenalidade das coisas, mas a sua
materialidade e, no geral, todo o seu ser. Assim, as propriedades componentes das
coisas são exatamente aquelas que se manifestam para a percepção e, conversamente, o
manifestar-se das coisas circunscreve aquilo que elas são (Cf. PhP, 455).
Essa identificação entre manifestação fenomenal e realidade implica que o
mundo objetivo (o conjunto dos eventos físico-químicos independentes da
subjetividade) é somente uma construção intelectual sobre a experiência perceptiva. As
24
Ibid., p.142.
25
Id., ibid.
26
Id., ibid.
27
Id., ibid.
28
“O sentido investe e penetra profundamente a matéria” (PhP, 374).
163
propriedades objetivas formuladas pela ciência seriam especificações de um ser que em
si mesmo se confunde com o aparecer fenomenal. Por mais que a ciência insista em que
propriedades mundanas inapreensíveis pela percepção, trata-se somente de
abstrações cujo sentido remete àquilo que efetivamente se manifesta (Cf. PhP, 71,
494)
29
. Assim, Merleau-Ponty parece não considerar, nos anos quarenta, que existam
propriedades dos objetos que escapem da sua correlação com a subjetividade perceptiva.
Afinal, para ele, “a coisa nunca pode ser separada de alguém que a perceba, nunca pode
ser efetivamente em si, porque suas articulações expressivas são as mesmas de nossa
existência” (PhP, 370). Se essa afirmação se referisse apenas a um domínio noemático
(quer dizer, apenas à manifestação das coisas, sem envolver sua existência pura e
simples), então a expressividade fenomenal não esgotaria as possibilidades do ser dos
objetos. Todavia, uma vez que Merleau-Ponty não distingue entre coisa pura e simples
e noemas, é o próprio ser que se delimita pela amplitude perceptiva do corpo, uma tese
cujo caráter idealista nem mesmo o Husserl de Idéias I, dada ali a clara distinção entre
noema e coisa real, sustentou.
É preciso esclarecer o teor desse caráter idealista presente na obra de Merleau-
Ponty. Em nenhum momento o autor defende algum criacionismo transcendental,
segundo o qual a atividade corporal tiraria de si própria o ser do mundo. A atividade
perceptiva, tal como descrita pela Fenomenologia da Percepção, é motivada (Cf. PhP,
305), de modo que o corpo apenas responde às solicitações sensíveis e, ao menos numa
experiência normal, é dependente dessas últimas. “Jamais minha atitude basta para me
fazer ver verdadeiramente o azul ou verdadeiramente tocar uma superfície dura” (PhP,
248), exemplifica o fenomenólogo. É verdade que o corpo assume uma atitude que
determina um sentido vago presente no sensível; porém, essa atitude pressupõe
justamente que haja um sentido inerente aos estímulos, de modo que o ser do mundo
nunca é reduzido a um conjunto de fenômenos criado pelo corpo.
Mesmo com essa ressalva, a crítica do penúltimo parágrafo se mantém: o
mundo, ainda que não seja produzido pelo corpo, se limita ao que é reconhecível em sua
correlação atual ou possível com os poderes perceptivos do corpo. Na Fenomenologia
da Percepção, Merleau-Ponty não desenvolve a hipótese de um excesso do ser do
29
Vimos no terceiro capítulo que Merleau-Ponty altera consideravelmente sua posição quanto a esse tema
nos anos cinqüenta. Nos cursos sobre a natureza, os dados científicos inobserváveis o aceitos como
índices de um ser primordial que excede os conteúdos apreensíveis pela percepção ingênua.
164
mundo em relação às atividades intencionais subjetivas
30
, de um invisível irredutível à
visibilidade, de uma transcendência que escapa ao campo fenomenal assimilado pelo
corpo. A realidade do mundo, na Fenomenologia da Percepção, se confunde com uma
infinidade de relações perceptivas, que jamais podem ser abarcadas por uma única
experiência corporal. Mas essa impossibilidade decorre apenas da limitação factual do
corpo, pois, por princípio, todas essas relações são correlatas dos poderes intencionais
subjetivos, os quais portam o projeto de todo ser possível (Cf. PhP, 411). Assim,
embora não faça do corpo o demiurgo da realidade, Merleau-Ponty delimita, na
Fenomenologia da Percepção, o ser do mundo segundo o que pode aparecer para a
existência humana.
Vimos, em nosso primeiro capítulo, que, sob críticas de diferentes autores,
Merleau-Ponty reconhece a insuficiência da posição ontológica decorrente de seu
projeto fenomenológico e se dedica a aprimorá-la nos anos cinqüenta. Vejamos como a
fenomenologia figura no novo quadro teórico que o filósofo molda nessa época.
B) Novos dados indiretos para a ontologia
Fenomenologia e ciências humanas
Em meados dos anos cinqüenta Merleau-Ponty aborda a fenomenologia à luz de
um questionamento explicitamente ontológico. Segundo o artigo “Sobre a
Fenomenologia da Linguagem”, de 1951, “o que me é ensinado pela fenomenologia da
linguagem não é somente uma curiosidade psicológica” (S, 110). As análises
fenomenológicas revelam um poder de expressão inerente à fala, o que implica
reconhecer a centralidade do sujeito falante no estudo da língua. E como esse poder é
um caso da intencionalidade corporal (Cf. S, 111), a produtividade da fala deve ser
remetida ao sujeito encarnado, o qual, como sabemos desde a Fenomenologia da
Percepção, está em correlação com o mundo pré-reflexivo. Todos esses temas
envolvem uma “concepção do ser” (S, 118) e não se limitam a relatos psicológicos
31
.
Merleau-Ponty sustenta que esse teor ontológico da fenomenologia se
encontra nos textos do próprio Husserl. A fim de comprovar essa tese, o filósofo francês
retoma um argumento exposto na Fenomenologia da Percepção: é verdade que Husserl
considerava as análises do mundo da vida como meramente preparatórias para a
30
Tal como notamos em nosso primeiro capítulo, Merleau-Ponty chega, ao menos em uma passagem, a
considerar essa hipótese (Cf. PhP, 250-1).
31
Vimos, em nosso primeiro capítulo, que Merleau-Ponty já pretendeu extrair uma concepção de ser das
descrições fenomenológicas na Fenomenologia da Percepção.
165
verdadeira análise transcendental; no entanto, ao se investigar tal mundo, revela-se a
vida encarnada, a qual não pode ser absorvida pela consciência transcendental pura (Cf.
S, 115-6). Dessa maneira, o projeto idealista husserliano ocasião a uma investigação
ontológica do mundo percebido.
Merleau-Ponty desenvolve esse tema do rompimento com o idealismo, que
direciona até então a sua leitura de Husserl, de maneira a exibir uma aproximação entre
os resultados da fenomenologia e aqueles das ciências humanas. Esse é o tópico
principal do curso “As ciências do homem e a fenomenologia” (1951). Nesse curso, o
filósofo retoma alguns elementos da perspectiva interpretativa assumida na
Fenomenologia da Percepção, segundo a qual a problemática husserliana se inicia com
tensões entre psicologismo e logicismo, as quais se resolvem por uma redução
fenomenológica concebida de maneira idealista (retorno à consciência pura como fonte
de todo sentido) (Cf. PPE, 404). Além disso, o filósofo francês também defende que, em
sua última fase, Husserl não mais apelaria a uma consciência fundante dos fenômenos,
mas buscaria “reencontrar um sujeito engajado nos fenômenos” (PPE, 405). Desse
modo, haveria um rompimento mais ou menos explícito com o idealismo da segunda
fase e o reconhecimento da prioridade da experiência concreta em relação às essências
pelas quais a estrutura dos fatos seria conhecida.
Essa reabilitação da experiência concreta aproxima a fenomenologia de várias
ciências humanas. Merleau-Ponty expõe as relações entre o pensamento de Husserl e a
psicologia, a lingüística e a história. O filósofo francês assevera que, num primeiro
momento, Husserl julgaria que por meio de ontologias eidéticas regionais
circunscrevem-se as noções fundamentais a que as disciplinas positivas deveriam se
dedicar. Por exemplo, para estudar o psiquismo, os psicólogos precisam saber de
antemão o que se entende por um fenômeno psíquico, e isso é possível se se dispõe
da essência dessa região em questão, a qual se revelaria para uma intuição eidética (Cf.
PPE, 408). Husserl reconheceria desde cedo que essa intuição eidética depende da
apreensão de fatos, dos quais se buscam justamente as estruturas gerais. O
fenomenólogo alemão teria admitido mais tardiamente que os mesmos fatos também
estão disponíveis para a psicologia empírica, a qual os estuda não por meio de variações
imaginárias, mas por comparações efetivas propiciadas pelos métodos indutivos. Assim,
Husserl não negaria haver um paralelismo geral entre fenomenologia e psicologia
empírica, e rejeitaria a estrita fundação da primeira pela segunda (Cf. PPE, 412). Essa
progressão do pensamento de Husserl se repetiria na questão da linguagem: o filósofo
166
alemão passaria de uma eidética dos modos de significação (a qual revelaria a fonte de
toda língua possível) à consideração de um sentido inerente às falas empíricas, o qual a
lingüística, à sua maneira, também explicitaria. Tal progressão também seria
reconhecível no que concerne ao tema da história: Husserl passaria da busca por uma
filosofia fundada numa evidência atemporal para a valorização da sedimentação
histórica do sentido filosófico. Assim, de modo geral, haveria um esforço de Husserl
para instaurar uma complementaridade entre facticidade e reflexão transcendental, entre
as ciências positivas e a filosofia (Cf. PPE, 415-20). Esse esforço seria, segundo
Merleau-Ponty, mais radical do que aquele de Scheler, defensor da existência de certas
essências eternas (Cf. PPE, 421), e do que aquele de Heidegger, defensor, tal como
expusemos no capítulo anterior, da filosofia como um poder irrestrito de exploração do
mundo, poder independente de qualquer recurso às ciências humanas (Cf. PPE, 422).
No artigo “O filósofo e a sociologia”, publicado em 1951, Merleau-Ponty
salienta que um dos méritos de Husserl é ter elaborado um “domínio e uma atitude de
pesquisa em que a filosofia e o saber efetivo poderiam se encontrar” (S, 128). Essa
aproximação das investigações cientifica e fenomenológica reforça o projeto de
renovação ontológica adotado por Merleau-Ponty nos anos cinqüenta. Vimos que em
“Sobre a fenomenologia da linguagem” o filósofo defende que aos resultados das
descrições fenomenológicas se deve atribuir um teor ontológico. A convergência desses
resultados com os temas das ciências humanas ratifica essa conclusão, pois, segundo
Merleau-Ponty, certos estudos científicos (que pesquisam as estruturas concretas,
conforme o capítulo anterior) sugerem uma renovação ontológica, a qual vai ao
encontro das teses fenomenológicas. As pesquisas lingüísticas, por exemplo, revelam “a
mediação do objetivo e do subjetivo, do interior e do exterior que a filosofia procura”
(PPE, 87). Assim, a explicitação de um ser anterior à cisão entre subjetividade e
objetividade estaria prefigurada seja em algumas pesquisas científicas seja em algumas
descrições da fenomenologia.
O ser anterior à constituição
À medida que a investigação ontológica de Merleau-Ponty avança, altera-se seu
interesse pela fenomenologia. O filósofo abandona a interpretação segundo a qual
haveria três fases distintas na obra de Husserl, e passa a sustentar somente que no
decorrer da maturação do pensamento husserliano ocorre uma oscilação entre projeto e
resultados. Merleau-Ponty expõe como compreende tal maturação no curso “A filosofia
167
hoje” (1958-1959). De início, Husserl pretenderia formular uma filosofia rigorosa e
baseada em princípios apodíticos, a qual se contrapõe ao psicologismo e ao
historicismo. Para tanto, o filósofo alemão buscaria atingir as essências necessárias dos
temas tratados, ou seja, os princípios invariantes pelos quais se pode, por exemplo,
reconhecer um fato como pertencente a uma determinada classe de eventos. As
essências seriam obtidas por uma redução eidética, quer dizer, pela explicitação das
características definidoras dos fatos particulares, aquelas sem as quais eles deixariam de
ser o que são. Nas Investigações Lógicas, Husserl não defenderia que tais essências
existem de maneira autônoma, mas sim que elas são postas por atos de intuição e
vigoram, assim, como correlatas da atividade subjetiva (Cf. NC, 67). Em seguida, no
período das Idéias e de Meditações Cartesianas, Husserl estenderia o anti-realismo
referente às essências para toda relação com o mundo. Nesse período, com a assunção
do idealismo transcendental, o filósofo alemão examinaria de que maneira as
intencionalidades subjetivas condicionam não o acesso às essências dos fatos, mas
mesmo aos objetos da percepção, os quais se doam como conjuntos de fenômenos em
correlação com atos doadores de sentido (Cf. NC, 68). Husserl se encaminharia, assim,
para a explicitação da consciência transcendental, responsável pelo estabelecimento do
sentido das experiências vividas. No entanto, tal como notara na Fenomenologia da
Percepção, Merleau-Ponty sustenta que ao investigar a experiência em suas diversas
camadas (as quais deveriam ser remetidas ao poder constituinte da consciência), Husserl
acabaria por desvelar um sentido sensível fundante da atividade subjetiva. Mas tal
desvelamento é apresentado pelo filósofo francês, nos anos cinqüenta, como um
resultado que convive com a perspectiva idealista, e não (tal qual expunha em algumas
passagens da Fenomenologia da Percepção) como o advento de uma fase
existencialista, em que Husserl encerraria sua carreira.
Importa a Merleau-Ponty, nos anos cinqüenta, tomar esse resultado da filosofia
husserliana como índice de uma ontologia a se realizar. Em seu primeiro curso sobre a
natureza (1956-1957), por exemplo, conforme tratamos no terceiro capítulo, Merleau-
Ponty expõe como Husserl mostra alguns pressupostos pré-reflexivos da atitude teórica,
ou seja, da formulação de conhecimento científico. A noção de coisas objetivas,
independentes da subjetividade, supõe, em primeiro lugar, a atividade corporal. O
sujeito toma consciência das coisas em correlação com os movimentos do corpo próprio
(Cf. N, 108). Em segundo lugar, para que os resultados da percepção não se limitem a
fenômenos privados, é preciso considerar o caráter intersubjetivo da experiência. É a
168
confirmação de que uma coisa se manifesta publicamente (confirmação que exige o
assentimento de vários sujeitos) o que atribui solidez aos temas da experiência
individual, inconfundíveis então com aparências meramente particulares (Cf. N, 109).
Além disso, Merleau-Ponty nota que, em seus textos finais, Husserl apresenta um
terceiro elemento condicionante das idealizações da atitude teórica: um solo ou meio
ambiente em que a existência humana se desenvolve. Esse é o tema do manuscrito “A
Terra como arca originária não se move”, texto que o filósofo francês provavelmente
conhecera em 1939 e que ganha destaque nas reflexões de seus últimos anos de vida.
Husserl reconhece, nesse texto, que a Terra não se reduz a um objeto qualquer no
universo objetivo, mas é a base que sustenta todo pensamento humano, uma camada
concreta que torna possíveis as idealizações criadas pela subjetividade (Cf. N, 110-1).
Merleau-Ponty retoma essas conclusões em seu curso “Husserl nos limites da
fenomenologia” (1959-1960), no qual se dedica a traduzir e analisar alguns textos do
filósofo alemão, principalmente “A origem da geometria como problema histórico-
intencional”, famoso anexo de A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia
Transcendental, além de retornar ao manuscrito “A Terra como arca originária não se
move”. A escolha desses dois textos não é arbitrária. Ao expô-los, Merleau-Ponty
pretende mostrar que, seja em relação à superestrutura ideal (no que tange aos objetos
geométricos) seja no que concerne à base terrena do ego, Husserl vislumbraria temas
que não poderiam ser tratados pela análise constitutiva estrita, pois sua organização
significativa não surgiria de atos de consciência. Segundo o filósofo francês, Husserl,
em “A origem da geometria”, apela para a facticidade da escrita a fim de tornar
compreensível a permanência dos objetos geométricos para além da sua descoberta. É
preciso que as invenções geométricas sejam registradas materialmente para que se
tornem idealidades universalmente disponíveis e independentes dos episódios subjetivos
em que foram criadas. Desse modo, a aparente validade atemporal dos objetos
geométricos supõe os instrumentos culturais de comunidades humanas localizadas
espaço-temporalmente. Por conseguinte, “o mundo ideal [está] apoiado sobre o mundo
sensível” (OG, 69), quer dizer, a validade objetiva das significações geométricas
decorre de processos de instituição de sentido que envolvem condições factuais. Além
disso, nesse mesmo curso, Merleau-Ponty volta a acentuar o estudo husserliano da Terra
como base para o pensamento humano. A Terra seria a arca originária, a qual (assim
como a arca de Noé salvaguardou a vida em meio ao oceano) assegura toda a
possibilidade de existência humana em meio ao universo material (CF. OG, 90). Ao
169
investigar a Terra assim concebida, Husserl teria explicitado uma condição sensível para
a própria reflexão transcendental.
No artigo “O filósofo e sua sombra”, de 1959, Merleau-Ponty continua as
reflexões acerca do reconhecimento de camadas pré-reflexivas pela fenomenologia
husserliana. Tal reconhecimento não teria ocorrido de maneira explícita; porém, sua
presença inegável em alguns textos indica haver um impensado na obra husserliana,
quer dizer, um conjunto de teses que excede o quadro teórico no interior do qual o autor
conscientemente pretende se mover. Como excesso aos próprios instrumentos teóricos
de um autor, o impensado não é obviamente analisado por quem o cria; no entanto,
sugere uma direção a ser explorada pelos leitores (Cf. S, 203). Essa direção, no caso de
Husserl, é exatamente aquela rumo ao mundo pré-reflexivo, cujo sentido não se reduz
àquele constituído pela subjetividade cognoscente. Ao estudar o papel do corpo, da
intersubjetividade e da Terra, Husserl teria desvelado tal mundo como “um inverso das
coisas que nós não constituímos” (S, 227), mas que alimenta a vida subjetiva.
Esse inverso dos atos constituintes não se confunde nem com o em-si objetivista
(já que ela se compõe de significações sensíveis, que se manifestam ao sujeito) nem
com as puras representações subjetivas (já que tal sentido justamente não é constituído
pelo sujeito) (Cf. S, 209). Nas notas do primeiro curso sobre a natureza tomadas por
Xavier Tilliete e publicadas com o título “Husserl e a noção de natureza”, o mundo pré-
reflexivo é “um modo de ser original, um ser em estado selvagem” (PII, 229). Trata-se
daquilo que é denominado carne do sensível (Cf. S, 211), ou seja, arranjos inerentes ao
próprio ser por meio dos quais o mundo se prepara de seu interior para uma apreensão
subjetiva (embora não dependa de tal apreensão para se ordenar como tal)
32
.
Ao explicitar tais arranjos, a fenomenologia, que pretendia afirmar o caráter
ativo da subjetividade em todas as experiências, termina por exibir uma camada
ontológica de que a própria reflexão depende (Cf. NC, 84). Nesse sentido, a
fenomenologia, tal como ocorre com as ciências e as artes (cf. Capítulos III e IV),
sugere uma investigação ontológica do ser primordial, o qual não se confunde com
aquilo que é fruto da atividade subjetiva, sem com isso se identificar a um tipo de em-si
incognoscível. Os resultados da empreitada husserliana são, assim, outra fonte de dados
indiretos para Merleau-Ponty desenvolver sua ontologia. Por conseguinte, em seus anos
finais, mais do que se servir dos conteúdos diretamente fornecidos pelas descrições
32
Analisaremos com mais detalhe essa noção de carne do sensível no próximo capítulo.
170
fenomenológicas, importa a Merleau-Ponty desenvolver aquilo a que tais descrições
apontam como seu limite: um ser que excede o papel de correlato dos atos subjetivos e
fornece a base para tais atos.
Os limites da fenomenologia
Nos anos quarenta, Merleau-Ponty expunha que os resultados não idealistas da
fenomenologia husserliana facultavam a exploração da existência encarnada como tema
básico de uma análise transcendental renovada, da qual, conforme a seção passada, a
Fenomenologia da Percepção seria exemplo. Por sua vez, nos anos cinqüenta, Merleau-
Ponty encontra nesses mesmos resultados uma ocasião para investigar o ser bruto ou
primordial, alheio às categorias clássicas. Essa dupla utilização dos temas husserlianos
se deve ao fato de que Merleau-Ponty, em ambos os casos, os assimila segundo projetos
filosóficos próprios. No primeiro caso, seu projeto era o de extrair conseqüências
filosóficas do estudo da percepção tal como conduzido pela Gestalttheorie. No segundo,
trata-se de conceber uma noção ampliada de ser, que não se limite à manifestação
subjetiva (tal como expusemos nos capítulos anteriores). Assim, as teses husserliana são
ora apropriadas no contexto de uma investigação da existência humana ora no contexto
de uma investigação do ser primordial
33
.
33
Esse procedimento de apropriação de temas filosóficos à luz de uma problemática própria se repete em
relação a Descartes. Em A Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty elogia a radicalidade da intenção
filosófica de Descartes: questionar as justificativas do conhecimento baseadas na existência do mundo
exterior e investigar a estrutura interna da experiência para aí encontrar a base de todo saber (Cf. SC,
210). No entanto, Descartes não seguiria essa via de maneira satisfatória; a experiência revelada pelas
Meditações Metafísicas, por exemplo, é abstrata. Ali, Descartes consideraria somente o pensamento de
ver, e ignoraria que o fato da visão envolve um contato com os eventos mundanos (Cf. SC, 212). Para
corrigir a perspectiva cartesiana, é preciso investigar não a atividade subjetiva inerente à percepção,
mas também o contato do sujeito com as existências concretas, de maneira a rejeitar uma posição
estritamente idealista. Eis a tarefa que Merleau-Ponty pretende cumprir ao elaborar uma fenomenologia
da percepção. Já em seus últimos anos, interessa a Merleau-Ponty explicitar a ontologia de Descartes, a
fim de contrastá-la com a concepção contemporânea do ser. Merleau-Ponty toma Descartes como
“alguém que teve uma certa experiência do Ser exprimido nessa prioridade oficial do conhecimento”
(NC, 233), tema que tanto marca a obra do autor clássico. No entanto, Merleau-Ponty crê que, mesmo se
privilegia o conhecimento, Descartes entrevê o ser pré-reflexivo, e oferece, assim, sugestões proveitosas
para a ontologia contemporânea. Nos primeiros textos de Descartes, tal como Regras para a Direção do
Espírito, a presença do pré-reflexivo no seio da esfera epistêmica seria reconhecível pelo uso de
metáforas sensíveis para as capacidades cognitivas (tal como luz natural para o entendimento humano), as
quais indicariam a prioridade do contato perceptivo com o mundo, contato que se torna modelo da
empreitada do conhecimento (Cf. NC, 224-6). E mesmo nos textos tardios de Descartes, como
Meditações Metafísicas, em que se criticam entre tantos outros prejuízos os dados recebidos pela
percepção, o ser pré-reflexivo ainda seria ali reconhecível. O advento do cogito estaria fundado em uma
experiência irrefletida da subjetividade como campo de manifestação de todos os fenômenos possíveis:
tudo o que aparece deve se conformar às estruturas da consciência humana. É esse projeto silencioso de
todo ser, “essa constatação ou experiência de que eu sou inalienável para mim” (NC, 249), que possibilita
a posterior formulação reflexiva do cogito como natureza intelectual inata e universal. Merleau-Ponty
conclui, assim, que em ambas as fases da filosofia cartesiana é possível encontrar uma referência
171
No interior desse último contexto, Merleau-Ponty julga, como vimos na
subseção passada, que Husserl teria antevisto o ser primordial anterior às cisões entre
propriedades subjetivas e objetivas. Nesta subseção, vamos questionar se a análise
ontológica de tal ser pode se realizar no quadro teórico da própria fenomenologia ou se
exige alguma ruptura com seus procedimentos.
A primeira nota de trabalho publicada em O Visível e o Invisível testemunha a
favor da importância dos temas husserlianos na elaboração da ontologia de Merleau-
Ponty. Ali, em referência a “O filósofo e sua sombra”, o autor planeja “dar um quadro
do Ser selvagem prolongando meu artigo sobre Husserl” (VI, 217, jan. 1959). Será que
a referência ao filósofo alemão indica que o estudo desse ser selvagem (anterior aos atos
de constituição) ocorrerá por meio de um tipo de fenomenologia? A seqüência da nota
desfaz essa impressão: o desvelamento do ser selvagem entrevisto pela fenomenologia
permanece “letra morta enquanto nós não desenraizamos a ‘filosofia objetiva’
(Husserl)” (Ibid.). A fenomenologia husserliana se limitaria a tratar de objetos, e, desse
modo, restringiria as possibilidades de avançar na investigação do ser pré-reflexivo
anunciado sob seus marcos. Merleau-Ponty também acentua outra limitação da
fenomenologia: essa doutrina envolve “uma ontologia que submete tudo o que não é
nada a se apresentar à consciência por meio das Abschattungen e como derivando de
uma doação originária que é um ato, isto é, um Erlebnis entre outros” (VI, 293, abril
1960). A fenomenologia delimitaria o ser como aquilo que pode se manifestar à
consciência e que, assim, se submete às capacidades sintéticas subjetivas. Veremos que
Merleau-Ponty rejeita essa concepção ontológica, a qual não vigoraria somente na obra
husserliana mas mesmo na fenomenologia praticada por ele mesmo nos anos quarenta.
Antes, porém, vejamos como essas duas censuras (filosofia objetiva e limitação do ser
àquilo que se apresenta à consciência) se complementam, ao menos no que se refere à
Husserl.
Em vários momentos de sua obra, Husserl indica que, para aplicar a redução
fenomenológica, deve-se suspender as crenças referentes à existência do mundo
objetivo tal como considerado pelas ciências e pelo senso comum
34
. Desse modo,
revelar-se-ia o mundo fenomênico anterior às idealizações objetivantes (mundo
implícita a um ser pré-reflexivo, e julga que “Descartes é o mais difícil dos autores” (NC, 264), porque tal
referência é difusa e alimenta inúmeros mal-entendidos.
34
Cf. Husserl, E. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie I. Ed.
supra, § 32.
172
chamado por Husserl, em A Crise das Ciências européias, de Lebenswelt)
35
. No
entanto, tal como nota Renaud Barbaras, o mundo da vida descrito por Husserl é “um
mundo de coisas, quer dizer, entidades definidas, determinadas, idênticas a elas
mesmas, sendo de direito o objeto de um saber exaustivo, em suma, acessíveis segundo
seu eidos
36
. Quer dizer que Husserl apresenta o mundo da vida como composto por
entes plenamente determináveis, e, desse modo, ainda sobrepõe ao campo de fenômenos
reduzidos a noção idealizada de objeto. Mas em que sentido a noção de objeto
plenamente determinável implica a imposição de uma idealização sobre o campo
fenomenal?
Segundo Husserl, o sujeito perceptivo se relaciona, em cada vivência, com
alguns aspectos fenomênicos da coisa percebida. À medida que o sujeito altera seu
ponto de vista perceptivo (e o pode fazer indefinidamente), apreende outros aspectos da
coisa e deixa de perceber aqueles primeiros, de maneira que a percepção sempre
apresenta alguns perfis, mas nunca a coisa em sua totalidade. Além disso, a
possibilidade de que aspectos ainda a serem percebidos pelo sujeito desmintam alguns
outros vivenciados e tomados até então como verdadeiros. Dessa maneira, as coisas
percebidas se manifestam de maneira parcial e contingente
37
. Aqui poderia surgir um
tipo de dúvida cética acerca dos resultados da percepção: se a vivência perceptiva é
sempre limitada e falível, como pode o sujeito estar certo de apreender verdadeiramente
uma coisa e não meras seqüências desconexas de aparências subjetivas? A tese
husserliana que evita tal objeção compromete-o com a noção idealizada de objeto,
conforme veremos a seguir.
Para Husserl, a coisa percebida não é senão o conjunto de aspectos fenomênicos
que se manifestam numa série interminável, a qual, por sua vez, se ordena, assim
formula Barbaras, como “progressão orientada”
38
. opera aqui uma primeira
idealização não questionada por Husserl, aquela segundo a qual a infinidade definidora
da coisa é uma seqüência de eventos linearmente percorrível. Merleau-Ponty teria
notado que, se se atenta para a experiência fenomenal, o caráter infinito das coisas e do
35
Cf. Husserl, E. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie.
Ed. supra, § 36-38.
36
Barbaras, R. Le Tournant de l’Expérience. Recherches sur la philosophie de Merleau-Ponty. Ed. supra,
p.67.
37
Cf. Husserl, E. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie I. , Ed.
supra, § 44-46.
38
Barbaras, R. Op. cit., p.69.
173
mundo não aparece dessa maneira
39
. Novamente Barbaras auxilia a esclarecer o ponto
em questão: o infinito, em sua vivência pré-reflexiva seria apenas “a transcendência
pura do mundo”
40
, quer dizer, o fato de que o ser sempre excede aquilo que os sujeitos
dele vivenciam, mas o excede não de uma maneira seqüencialmente ordenada, e sim
como latência de aspectos ou eventos apenas pressentidos (e não ordenados como algo
a se percorrer).
Por meio de sua noção idealizada de infinidade ou infinito, Husserl sustenta que
a coisa percebida porta uma unidade para além de suas manifestações parciais: se a
infinidade de aspectos da coisa percebida se doa progressivamente para uma
consciência, então, ao menos em princípio, a consciência poderia apreender
adequadamente a coisa em sua totalidade. Afinal, as propriedades componentes das
coisas fenomenais seriam correlatas de atos de consciência, os quais então assimilam
sem perda toda a complexidade inerente às primeiras. Essa possibilidade (sustentada
pela noção idealizada de infinito) garante que as manifestações parciais remetem
verdadeiramente a uma coisa
41
. Quer dizer que as coisas percebidas não são parciais e
inacabadas, mas incluem, ao menos idealmente, a possibilidade de determinação de
todos os seus aspectos. Assim, na fenomenologia husserliana, as aparências parciais da
percepção são coordenadas pela idéia de objeto, compreendido como ente cujas
propriedades são passíveis de plena assimilação pela consciência
42
.
Agora é possível compreender por que Merleau-Ponty julga que a
fenomenologia husserliana é uma filosofia objetiva. Tal fenomenologia sustenta que as
aparências parciais e contingentes reveladas após a redução fenomenológica supõem um
mundo de objetos determináveis. Também se torna possível entender porque a filosofia
objetiva é justamente aquela que trata tudo o que existe como manifestação fenomênica
para uma consciência. Embora suponha que as coisas são plenamente determináveis,
39
“É necessário que [o infinito] seja o que nos ultrapassa; infinito de Offenheit e não de Unendlichkeit
infinito da Lebenswelt e não infinito de idealização” (VI, 221, junho 1959). Merleau-Ponty opõe, assim, o
infinito idealizado (Unendlichkeit) ao verdadeiro infinito do mundo da vida. Em outra nota, Merleau-
Ponty assevera: “a Unendlichkeit é no fundo em-si, ob-jeto” (VI, 300, maio 1960). Assim, a noção
idealizada de infinito se liga à idéia de objeto determinado.
40
Barbaras, R. Le tournant...,p. 69.
41
Segundo Husserl, “a todo objeto ‘que existe verdadeiramente’ corresponde por princípio (no a priori da
generalidade incondicionada de essências) a idéia de uma consciência possível na qual o próprio objeto
pode ser apreendido de maneira originária e desde então perfeitamente adequada. Reciprocamente, se
essa possibilidade é garantida, o objeto é, ipso facto, o que existe verdadeiramente” (Husserl, E. Ideen zu
einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie I. Ed. supra,§ 142, p.296).
42
Deve-se notar que essas considerações husserlianas acerca da determinação das propriedades objetivas
pela consciência se referem ao domínio dos objetos intencionais e não àquele dos objetos puros e simples
(ou seja, objetos considerados conforme a atitude natural). Quer dizer que essas considerações não
apagam a distinção entre atitude natural e fenomenológica, mas a supõem.
174
Husserl deve explicar seu aparente inacabamento e parcialidade. Essas características,
que implicam a indeterminação da experiência perceptiva, são remetidas ao modo de
funcionamento da consciência, a qual é capaz de apreender, de uma vez, poucos
dados de uma realidade em si mesma completamente determinável. O aparecer
fenomênico é então concebido como um interminável processo de perfilação de coisas
(determináveis em si mesmas) a uma instância que reúne de maneira paulatina os
aspectos parciais manifestados. Assim, a tese que limita todo ser a se manifestar por
aspectos fenomênicos parciais complementa aquela segundo a qual a indeterminação
não é uma característica da realidade, uma vez que essa é composta por objetos a priori
determináveis pelos atos de consciência.
Por sua vez, Merleau-Ponty rejeita interpretar o campo fenomenal aberto pela
redução fenomenológica como manifestação parcial de objetos em si mesmos
determináveis. Essa concepção ontológica limita o alcance das descrições
fenomenológicas em geral, circunscritas então à narrativa de propriedades parciais de
objetos em correlação com atos de consciência. As dificuldades de Husserl para assumir
como tema autônomo (e não como preâmbulo do puro transcendental) o ser pré-
reflexivo entrevisto ao se tratar da Terra ou do corpo próprio decorreriam dessa
limitação ontológica sobre a qual sua fenomenologia se erige. Para o filósofo alemão, a
passagem ao transcendental envolve a postulação de que os temas descritos devem ser
concebidos como objetos por princípio adequados, cuja aparente indeterminação se
deve a limitações intrínsecas à consciência.
na Fenomenologia da Percepção Merleau-Ponty recusava a passagem a uma
consciência transcendental que eliminaria qualquer obscuridade presente na experiência
do mundo fenomênico (Cf. PhP, 419, nota). Além disso, nesse livro, o autor não
idealiza a experiência perceptiva de maneira a sobrepor a seus aspectos indeterminados
a noção de objeto em si mesmo determinável. Pelo contrário, o filósofo admite que a
indeterminação e o inacabamento são componentes irredutíveis da experiência
fenomenal
43
. Contudo, nesse livro, a rejeição da tese de que o ser se compõe de um
conjunto de objetos idealmente determináveis não é acompanhada da recusa da tese que
a complementa, a saber, que as coisas e o mundo, em sua totalidade, não são correlatos
de atos de consciência. Tal como procuramos mostrar em nosso primeiro capítulo,
43
“No mundo tomado em si tudo é determinado. Há muitos fenômenos confusos, como uma paisagem em
um dia de névoa, mas justamente nós sempre admitimos que nenhuma paisagem real é em si confusa. Ela
o é para nós. (...) [No entanto,] é necessário reconhecer o indeterminado como um fenômeno positivo”
(PhP, 12).
175
Merleau-Ponty, na Fenomenologia da Percepção, sustenta que o ser é exatamente
aquilo que se manifesta para a consciência perceptiva (Cf. PhP, 455). em seus textos
dos anos cinqüenta (conforme acompanhamos nos capítulos III e IV), o filósofo parece
rejeitar a circunscrição do ser àquilo que se apresenta para a consciência subjetiva. Essa
rejeição melhor se harmoniza com a tese de um ser em si mesmo indeterminado (já
vislumbrada na Fenomenologia da Percepção), o qual, conforme tais textos, não se
resume a propriedades determináveis pela consciência, que excede aquilo que se doa
à subjetividade. A exposição das características desse ser não depende das descrições
fenomenológicas, já que essas tratam daquilo que se exibe à consciência. Para estudar as
características que escapam à consciência imediata, que a ela são ausentes, o filósofo
desenvolveu o seu método indireto, conforme expusemos no capítulo anterior.
A ontologia madura de Merleau-Ponty não é fenomenológica, no sentido em que
ela não se limita a analisar o que se manifesta à consciência. No entanto, como vimos,
as descrições fenomenológicas husserlianas que apontam para o ser primordial aquém
dos atos de constituição subjetivos são índices da nova concepção de ser almejada.
Além disso, alguns conceitos fenomenológicos podem ser reelaborados de modo a
tomarem parte no quadro teórico de uma ontologia do ser bruto. A noção de horizonte,
por exemplo, é tomada por Merleau-Ponty não (tal como era para Husserl) como
consciência indeterminada de um conjunto de objetos que constituem o fundo ou
entorno sensível de uma coisa percebida ou como consciência indeterminada da
totalidade de aspectos dessa coisa
44
. Nas notas de leitura de Teoria do Campo da
Consciência (livro de Gurwitsch), escritas em 1959-60, Merleau-Ponty afirma: “o
horizonte não é a extensão da zona da visão clara em que se realizam essas estruturas
[da consciência], ele é o meio dessas estruturas cristalizadas”
45
46
. Assim, o horizonte
seria um modo de ordenação de coisas e eventos inerente ao ser, modo segundo o qual a
disposição espacial dessas coisas e eventos implica que uns se sobreponham
parcialmente aos outros e instaurem uma profundidade imanente ao mundo.
A noção de Lebenswelt também é reformulada por Merleau-Ponty: ela deixa de
ser concebida como conjunto de estruturas da experiência em correlação implícita com a
44
Cf. Husserl, E. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie.
Ed. supra, § 47.
45
Merleau-Ponty, M. “Notes de lecture et commentaires sur Théorie du champ de la conscience de Aron
Gurwitsch”. In: Revue de Métaphysique et de Morale, n. 3, 1997, p.332.
46
Sobre a apropriação ontológica do tema fenomenológico do horizonte por Merleau-Ponty, cf. Fontaine,
P. “Le concept phénoménologique d’horizon”. In: Cahiers Philosophiques, n. 87, juin 2001, p. 9-31.
176
consciência transcendental
47
e passa a indicar o mundo anterior à atividade constituinte
da subjetividade, pátria do ser selvagem. Com essa reformulação, Merleau-Ponty
responde à crítica de Gurwitsch segundo a qual teria tomado injustificadamente o
mundo percebido como fato último na Fenomenologia da Percepção. Gurwitsch insistia
em buscar a gênese desse mundo nos atos constituintes da consciência transcendental.
Por sua vez, Merleau-Ponty defende em suas notas de leitura: “não há sentido em
constituir a Lebenswelt, seria destruí-lo”
48
. A análise constitutiva fenomenológica
fornece as leis eidéticas segundo as quais certos tipos de atos de consciência se
relacionam com certos tipos de manifestação fenomênica. Ora, essa explicitação das
estruturas eidéticas de correlação entre noeses e noemas supõe, assim julga Merleau-
Ponty, a experiência dos fatos (justamente dos quais se busca as características
invariantes). Por conseguinte, “o mundo como Ser (...) é a fonte do eidos mundo”
49
, ou
seja, uma anterioridade da existência mundana em relação à formulação das
essências, as quais exibem os traços invariantes desse mundo. Quer dizer que uma
análise constitutiva do mundo percebido, tal como sugeria Gurwitsch, supõe o ser desse
mundo, ser que não é produto de nenhuma atividade intencional mas que funda a
possibilidade de qualquer uma delas. A gênese dos fenômenos não será então remetida
por Merleau-Ponty à consciência transcendental; na verdade, para entendê-la, trata-se de
buscar o “desvelamento do Ser selvagem ou bruto pelo caminho de Husserl e da
Lebenswelt sobre o qual se abre” (VI, 234, fev. 1959). Desse modo, não é por uma
fenomenologia transcendental que se pode esclarecer o sentido dos fenômenos da
Lebenswelt, mas sim por uma ontologia que exponha as principais características do ser
do mundo sensível. Essa ontologia, que não está comprometida com os procedimentos e
resultados gerais da fenomenologia, é esboçada por Merleau-Ponty em O Visível e o
Invisível, como veremos no capítulo seguinte.
47
Cf. Husserl, E. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie.
Ed. supra, § 55.
48
Merleau-Ponty, M. “Notes de lecture et commentaires sur Théorie du champ de la conscience de Aron
Gurwitsch”. Ed. supra, p.338.
49
Id., ibid.
Capítulo VI – Uma ontologia para a fé perceptiva
Sinopse
De início, expomos como o tema da perceptiva é apresentado em O Visível e o
Invisível por contraste com a Fenomenologia da Percepção. Em seguida,
acompanhamos a enumeração das dificuldades das doutrinas clássicas em lidar com tal
tema. Por fim, esclarecemos a doutrina ontológica que torna a perceptiva
compreensível teoricamente.
A) A fé perceptiva
A última filosofia de Merleau-Ponty
Neste capítulo, estudaremos O Visível e o Invisível a fim de esclarecer as linhas
gerais do projeto ontológico final de Merleau-Ponty, além de acentuar algumas
diferenças entre a reflexão esboçada e aquela desenvolvida na Fenomenologia da
Percepção. Vamos nos concentrar em alguns tópicos dos quatro capítulos e no pequeno
anexo do livro, sem nos deter nas notas de trabalho, as quais serão consideradas com
mais detalhes no próximo capítulo. De início, é importante notar que a meta da
investigação filosófica apresentada por O Visível e o Invisível é exprimir a experiência
silenciosa, o contato perceptivo (anterior à atividade reflexiva) com o mundo (Cf. VI,
18, 164). Merleau-Ponty chega mesmo a retomar a famosa frase de Husserl que
guiava as análises da Fenomenologia da Percepção (“é a experiência ainda muda que se
trata de levar à expressão pura de seu próprio sentido”
1
) e com ela encerra o terceiro
capítulo de O Visível e o Invisível (Cf. VI, 169), como que resumindo a discussão
precedente sobre a natureza da interrogação filosófica.
Buscamos diferenças entre O Visível e o Invisível e a Fenomenologia da
Percepção, e, no entanto, admitimos de início que a meta filosófica de ambos é a
mesma: a Fenomenologia da Percepção almejava explicitar a experiência pré-reflexiva
(Cf. PhP, XIII, 75), um mote reiterado por O Visível e o Invisível. Essa reiteração
poderia sugerir que Merleau-Ponty retoma a análise fenomenológica em seu último
livro. Mas isso seria verdadeiro se a investigação da experiência pré-reflexiva
exigisse o método fenomenológico. É verdade que ao praticar a fenomenologia, nos
anos quarenta, Merleau-Ponty investigou a experiência antepredicativa, mas não se
1
Husserl, E. Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge. Hua I. Haag: Martinus Nijhoff, 1950,
segunda meditação, § 16. Na Fenomenologia da Percepção, essa frase é mencionada na p.X.
178
segue daí que todo estudo de tal experiência implique a abordagem fenomenológica.
Defenderemos que, embora o autor retome em O Visível e o Invisível alguns dos
principais temas da Fenomenologia da Percepção, o resultado final oferecido pelos
quatro capítulos esboçados daquele livro não é uma análise fenomenológica, e sim uma
interrogação ontológica que chega mesmo a romper com alguns princípios da
fenomenologia. A retomada dos temas fenomenológicos ocorre não porque Merleau-
Ponty se dedica a uma nova análise fenomenológica, mas porque o filósofo se preocupa
em recuperar algumas teses da Fenomenologia da Percepção no contexto de uma nova
ontologia, cujos traços principais tentaremos delinear a seguir
2
.
Da percepção à fé perceptiva
O Visível e o Invisível se inicia com a exposição, ainda não filosoficamente
elucidada, da experiência da perceptiva. Por meio dessa noção, Merleau-Ponty tenta
capturar a “crença” (independente de qualquer esforço reflexivo) pela qual normalmente
os sujeitos acreditam estar em contato com o mundo tal como ele existe em si mesmo
3
.
O filósofo parece simplesmente repetir o sentido que atribuíra à noção de
perceptiva na Fenomenologia da Percepção. Ali, Merleau-Ponty associava tal noção à
consciência pré-reflexiva e à vida perceptiva em geral: a “fé perceptiva” apenas
explicita o sentido de “percepção”, ao tornar patente o fato de que a atividade perceptiva
adere ao mundo mesmo sem dispor de dados absolutamente certos e mesmo sem
realizar verificações teóricas que atestassem a certeza de suas visadas (Cf. PhP, 344,
371, 395, 415, 468). Porém, o uso da expressão “fé perceptiva” em O Visível e o
Invisível veicula certas decisões filosóficas pelas quais o filósofo se afasta de suas
posições anteriores. É o que fica claro no anexo de seu último livro. Ali, Merleau-Ponty
esclarece que pretende investigar o contato com o mundo bruto, e, para tanto, interroga
a experiência ingênua tal como ela aparece para o “homem natural” (VI, 210), quer
dizer, aquele que não reflete sobre sua vivência. Vimos em nosso primeiro capítulo que
a Fenomenologia da Percepção também pretendia descrever a experiência ingênua, e
que, desse modo, mais uma vez as semelhanças parecem se sobrepor às diferenças entre
o início e o fim da obra do filósofo. No entanto, tais diferenças se tornam mais salientes
quando Merleau-Ponty afirma, na seqüência do anexo, que os conceitos filosóficos ou
2
Segundo Merleau-Ponty, a “necessidade de levar [os resultados da PhP] à explicitação ontológica”
(VI, 234, fev. 1959).
3
“Nós vemos as próprias coisas, o mundo é o que nós vemos” (VI, 17).
179
psicológicos tradicionais não são adequados para descrever a experiência ingênua,
que muitas vezes eles impõem sobre ela distinções teóricas artificiais. Esse seria o caso
do termo “percepção”, que pressuporia a cisão do fluxo vivido em diferentes atos
perceptivos, cada um em referência a coisas determinadas. Além disso, o termo
“percepção” se aplicaria, no mais das vezes, a coisas materiais e espaciais, o que parece
excluir qualquer relação de algo invisível com o mundo percebido (Cf. VI, 207). Para
Merleau-Ponty, a experiência da abertura originária para o mundo desconhece tais
restrições. Não é claro, de início, que a experiência bruta do mundo seja de coisas bem
definidas em correlação com atos pontuais, ou que um domínio invisível não se mostre
indiretamente, por meio do que é dado aos sujeitos. Por julgar que o termo “percepção”
decide esses pontos de maneira injustificada, Merleau-Ponty o abandona em favor de
“fé perceptiva”, descrição pretensamente neutra em relação aos temas mencionados.
Surpreendente nessa análise terminológica é que Merleau-Ponty parecia utilizar
o termo “percepção” sem implicar seja uma referência a coisas definidas seja a exclusão
de um domínio invisível. A Fenomenologia da Percepção considera que jamais se
percebe as coisas por inteiro, que elas sempre se mostram de maneira parcial
4
. E não
as coisas não são percebidas como objetos bem definidos, mas também algo que não
é “coisa”, o horizonte, (e, por meio dele, toda a amplidão do mundo) também é
percebido
5
. Além disso, Merleau-Ponty considera que mesmo a ausência dos objetos
também é percebida
6
. Não deixa, por conseguinte, de ser estranha a recusa de um
vocábulo por atribuir a ele um sentido que a própria Fenomenologia da Percepção
expusera que não lhe cabia exclusivamente. Porém, embora as razões apresentadas pelo
anexo de O Visível e o Invisível não pareçam ser suficientes para o abandono do termo
“percepção”, a idéia geral de que a “fé perceptiva” não está comprometida com certas
decisões teóricas pelas quais a “percepção” era definida nos anos quarenta se confirma.
Para explicitar tal confirmação, devemos retornar ao início de O Visível e o Invisível.
Conforme apontamos pouco, O Visível e o Invisível se abre com a exposição
da opinião injustificada (trazida pela experiência perceptiva) de que estamos em contato
4
“Ver é entrar em um universo de seres que se mostram, e eles não se mostrariam se eles não pudessem
esconder-se uns atrás dos outros ou atrás de mim” (PhP, 82).
5
“Quando eu olho o horizonte, ele não me faz pensar nessa outra paisagem que eu veria se eu
estivesse, essa em uma terceira paisagem e assim por diante, eu não me represento nada, mas todas as
paisagens estão já no encadeamento concordante e na infinidade aberta de suas perspectivas” (PhP,
380).
6
“O percebido não é necessariamente um objeto presente diante de mim como termo a conhecer, ele pode
ser uma ‘unidade de valor’ que me é presente de um modo prático. Se se retirou um quadro de um
cômodo em que habitamos, nós podemos perceber uma mudança sem saber qual” (PhP, 371).
180
com o mundo tal como ele é. Em seguida, Merleau-Ponty indica que, embora vivida de
maneira simples e convincente, essa fé perceptiva leva a um paradoxo quando
teorizada. Ocorre que a vivência da perceptiva admite de bom grado que o contato
com o mundo se por intermédio da atividade do corpo e dependa das capacidades
desse último. Porém, o corpo porta uma ambigüidade insuperável: por meio dele se
atinge as coisas mesmas mas também é possível se isolar em aparências fantasmáticas,
eventos reveladores dos limites e da falibilidade da atividade corporal (Cf. VI, 21-23). O
corpo, dessa maneira, é meio de acesso e de afastamento em relação ao mundo, e,
mesmo assim, o sujeito perceptivo ingênuo crê atingir o próprio mundo por meio dele.
Essa pretensão ou perceptiva não é problemática na experiência ingênua. No entanto,
quando formulada em tese, tal como fizemos, gera um saber paradoxal. É como se uma
tese de cunho objetivo (o mundo se apresenta tal como é) devesse ser compatibilizada
com uma tese de cunho subjetivo (o mundo é o que se apresenta por meio das estruturas
corporais). Trata-se de uma junção teoricamente difícil, uma vez que não parece ser
possível atingir sempre o mundo tal como ele é por meio de estruturas corporais, as
quais por vezes somente apresentam imagens subjetivas, a que nada de real
corresponde. Um dos grandes desafios de O Visível e o Invisível, uma vez admitida a
interrogação da experiência ingênua como tarefa da filosofia, é tornar teoricamente
compatíveis essas características da fé perceptiva. Como veremos, será por meio do
desenvolvimento das noções ontológicas sugeridas pelo método indireto que tal meta
poderá ser cumprida. Esse desenvolvimento implica distinguir a fé perceptiva da
consciência pré-reflexiva ou percepção tal como concebida nos anos quarenta.
Lembremos que na Fenomenologia da Percepção, a consciência perceptiva era o
fundo silencioso de todos os atos subjetivos e a responsável (dado seu contato direto
com o mundo) pela distinção entre realidade e sonho (Cf. PhP, XI). Além de definir a
percepção como fonte de nossa relação com o ser, Merleau-Ponty, conversamente,
definia o ser como aquilo passível de se manifestar de modo fenomênico (Cf. PhP, 455),
ou seja, como o que é composto por propriedades subjetivamente apreensíveis. Todo
ente ou evento que pareça escapar aos limites da experiência humana (como o passado
do mundo, por exemplo) era reduzido a construções culturais, a significações tardias
erigidas sobre a experiência pré-reflexiva (Cf. PhP, 494), a qual acaba por delimitar a
amplitude daquilo que existe.
É exatamente essa delimitação subjetiva do ser que é rompida em O Visível e o
Invisível. O mundo é aquilo que aparece, mas também o mundo é dado por meio do
181
corpo e limitado ao domínio exploratório desse último, eis o duplo sentido da
perceptiva. O corpo tanto leva a subjetividade até o mundo como também pode afastá-la
dele, dadas as limitações das estruturas corporais (especializadas em apenas alguns
aspectos do ser, tais como a visibilidade e a tangibilidade). Uma vez exposta essa dupla
característica da perceptiva, Merleau-Ponty extrai a seguinte conclusão: o mundo não
é o que eu percebo em uma “proximidade absoluta” (VI, 23), ele também está numa
“distância irremediável” (Ibid.), pois a sua presença depende de condições corporais que
podem ser insuficientes para apresentá-lo em sua totalidade. Assim, a experiência
perceptiva não implica, em O Visível e o Invisível, uma correlação exaustiva com o
real, que a abertura inicial ao mundo não exclui de direito uma ocultação possível
(Cf. VI, 48). Como nota Merleau-Ponty, “a certeza que eu tenho de estar vinculado ao
mundo por meu olhar me promete um pseudo-mundo de fantasmas se eu o deixo
errar” (VI, 47). e incredulidade estão unidas na experiência perceptiva, assevera O
Visível e o Invisível. Daí que a abertura originária ao ser não possa mais ser identificada
à percepção, tal como descrita nos anos quarenta. Segundo O Visível e o Invisível,
embora o mundo se revele ao sujeito pela atividade perceptiva, essa apresentação
depende de estruturas que não abrangem a totalidade daquilo que existe. a
possibilidade de que o ser se oculte à atividade perceptiva, ou seja, de que as estruturas
corporais não apreendam a sua totalidade, ressalva ausente na Fenomenologia da
Percepção. Nesse livro, conforme vimos no primeiro capítulo, tudo o que escapa à
experiência atual do corpo era ainda concebido como estrutura perceptivelmente
apreensível. O caráter autônomo do mundo era concebido como uma infinidade de
relações expressivas entre os eventos, a qual jamais poderia ser apreendida de uma
vez pelo corpo e se reduzir, assim, a um mero correlato subjetivo (Cf. PhP, 373-4). No
entanto, nenhuma dessas relações constitutivas do em-si mundano excediam por
princípio as capacidades perceptivas, as quais dispunham da lógica total da organização
dos fatos mundanos (Cf. PhP, 377).
Por sua vez, em O Visível e o Invisível, ao tratar da experiência perceptiva em
termos de abertura e encobrimento do ser, Merleau-Ponty abandona a estrita correlação
entre realidade e conteúdo perceptivo: a manifestação perceptiva do mundo não anula
mas antes alimenta (dada a forma como se cumpre, por meio do corpo) a possibilidade
de ocultação de ao menos parte do ser. Por meio dessa interpretação da perceptiva,
Merleau-Ponty não mais se compromete com a tese de que tudo o que existe ou deve se
conformar aos parâmetros perceptivos ou então deve ser considerado uma significação
182
cultural construída sobre esses parâmetros (Cf. PhP, 494). Em O Visível e o Invisível,
uma tese semelhante é atribuída à filosofia reflexiva, para quem “é fora de questão que
o mundo possa preexistir à minha consciência do mundo” (VI, 70). É para esse tipo de
filosofia (a qual atribui ao pensamento humano o papel de organizador da experiência)
que não há interrogação “sobre o que pode ser o Ser antes que ele seja pensado por
mim” (VI, 72). Segundo a filosofia reflexiva, os objetos mundanos devem corresponder
à atividade constitutiva do sujeito, ou seja, devem ser moldados segundo os poderes de
síntese desse último. Na Fenomenologia da Percepção, esse tipo de limitação da
amplitude do ser conforme as capacidades subjetivas de reconhecimento ainda
continuava em vigor, embora não mais em relação ao pensamento e sim às estruturas
perceptivas do corpo. Por meio da atividade perceptiva, o corpo era responsável, nesse
livro, por atribuir uma estrutura ordenada ao mundo (Cf. PhP, 494). Desse modo, o
sujeito perceptivo descrito por Merleau-Ponty repetia a função geral que o sujeito
cognitivo exerce na filosofia reflexiva
7
. Em O Visível e o Invisível, o filósofo
problematiza essa concepção: a abertura perceptiva apresenta o mundo, mas não em sua
totalidade, pois o ser pode se encobrir ante as estruturas corporais, ou seja, pode não se
doar diretamente como visível, tangível, etc., mas permanecer como aspecto ou
dimensão invisível, que só se doa originariamente como ausência
8
.
7
Seguimos, quanto a esse ponto, a interpretação de Vincent Peillon (La Tradition de l’Esprit. Itinéraire
de Maurice Merleau-Ponty. Paris: Bernard Grasset, 1994, p.150-1). Esse autor defende que embora
Merleau-Ponty sustente uma concepção de sujeito bem diferente daquela de Descartes ou Kant (filósofos
tachados de intelectualistas na Fenomenologia da Percepção), seus resultados são convergentes com os
desses autores. Merleau-Ponty censura Descartes e Kant por favorecerem o sujeito como constituinte das
relações com o mundo. Entre sujeito e mundo deveria haver relações “rigorosamente bilaterais” (PhP,
IV), isto é, esses autores deveriam considerar que ambos os pólos, subjetivo e objetivo, contribuem
igualmente para a elaboração da experiência vivida. No entanto, dificilmente o próprio Merleau-Ponty
sustentaria tal reciprocidade entre sujeito e mundo. Embora tente reconhecer uma transcendência inerente
ao mundo, ou seja, uma densidade e autonomia que escapam aos poderes da consciência, Merleau-Ponty
acaba por defender que é o próprio sujeito que atribui transcendência ao mundo (já que em seu
movimento de existir, sempre se lança para fora de si e molda assim um campo ontológico exterior a si), e
que as articulações e estruturas que compõem o mundo são aquelas que correspondem às capacidades
perceptivo-motoras do sujeito (Cf. PhP, 491-2). É claro que para o fenomenólogo francês o sujeito da
experiência é o corpo próprio, o qual não forja representações de objetos baseadas em categorias
formais, mas se refere a situações que se perfilam gradualmente e jamais são possuídas por completo (Cf.
PhP, 163, nota). Mas mesmo ao apresentar como sujeito da percepção não uma consciência conceitual e
sim o corpo, Merleau-Ponty ainda defende na Fenomenologia da Percepção que é por meio de poderes
subjetivos (no caso, não poderes intelectuais, mas perceptivo-motores) que o mundo recebe a sua
estrutura geral (Cf. PhP, 494).
8
E essa dimensão invisível estrutural, que de direito escaparia aos poderes perceptivos, não se confunde
com os casos em que ocorre a percepção da ausência de determinados objetos (tal como Merleau-Ponty
considerava na Fenomenologia da Percepção cf. nota 6 supra). Nesses últimos casos, o ausente em
questão poderia ser assimilado como presença, como algo que se doa positivamente; por sua vez, não
essa possibilidade em relação à dimensão invisível do ser.
183
Françoise Dastur resume de maneira bastante elucidativa esse ponto ao expor o
que está implicado no uso da expressão “fé perceptiva” em O Visível e o Invisível: “esta
abertura, que é a experiência, pode nos abrir a uma ausência originária e não somente a
uma presença originária, de modo que não nos é mais possível opor estritamente
presença e ausência, visibilidade e invisibilidade, mas nos é necessário, antes, analisar
[faire l’épreuve de] seu mútuo entrelaçamento”
9
. Assim, ao tratar do contato com o
mundo em termos de fé perceptiva em O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty não
retoma as virtudes da consciência perceptiva descrita pela Fenomenologia da
Percepção, mas considera a possibilidade de que o ser se encubra, e que, por
conseguinte, não se esgote em sua presença perceptiva.
O problema da ilusão
Em O Visível e o Invisível Merleau-Ponty não descreve mais a experiência
perceptiva apenas como abertura, mas também como encobrimento do ser. Essa última
característica esclarece a especificidade do sentido de “fé perceptiva” ante o termo
“percepção”, tal como usado pelo filósofo nos anos quarenta. Notemos que ao
exemplificar o encobrimento inerente à perceptiva, Merleau-Ponty assevera que o
corpo pode gerar um pseudo-mundo fantasmagórico (Cf. VI, 47). Esse tipo de exemplo
pode nos levar a crer que todo o problema da perceptiva se restringe ao
reconhecimento de que os poderes perceptivos não estão imunes a erros ou ilusões. Ora,
não é nesse ponto que o projeto filosófico da Fenomenologia da Percepção e de O
Visível e o Invisível se distinguem. No primeiro desses livros, Merleau-Ponty já trata do
tema da ilusão sensível e oferece uma análise que, na verdade, O Visível e o Invisível
retoma em seus termos gerais. No livro de 1945, o filósofo admitia que uma aparência
perceptiva tomada isoladamente pode ser enganosa. Afinal, cada ato perceptivo
apreende apenas dados parciais das coisas e situações, e adere a seu conteúdo (nele crê,
poderíamos dizer) mesmo sem abarcar todos os componentes daquilo que se doa à
percepção. No entanto, os dados parciais sempre envolvem espontaneamente outros
dados co-percebidos, que instituem horizontes de verificações passíveis de exploração
10
(por exemplo, se vejo uma face de uma caixa de papelão, “percebo” concomitantemente
suas outras faces, as quais meu olhar busca de maneira espontânea como expectativas
9
Dastur, F. “La foi perceptive et l’invisible”. In: Chair et Langage. Paris: Encre Marine, 2001, p.115.
10
São dois os horizontes: o interno, referente aos aspectos que compõem a coisa percebida, e o externo,
referente ao fundo sensível sobre o qual a coisa se destaca.
184
que complementariam essa percepção da face isolada). É por meio da exploração desses
horizontes (aos quais toda visada parcial se liga espontaneamente) que se pode
reconhecer uma ilusão (por exemplo, ao procurar a face lateral da caixa e nada
encontrar, meu olhar reconhece que se tratava somente de uma imagem bidimensional
que imitava uma caixa). A ilusão se caracteriza, assim, como um dado aberrante, que
destoa do encadeamento harmônico de aspectos percebidos. Há então uma relação
cerrada entre a possível falha de percepções individuais e a sua substituição por
apreensões perceptivas mais confiáveis (Cf. PhP, 343, 396). Quanto mais concordante a
exploração dos horizontes co-percebidos, mais confiável se torna a percepção de uma
certa coisa ou situação. E quanto mais confiável essa percepção, conhece-se as
estruturas do mundo de maneira mais precisa, embora não de maneira absolutamente
completa, que em princípio toda percepção pode ser corrigida por visadas futuras.
Acentuemos que em O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty volta a definir a ilusão
sensível por seu contraste com a explicitação concordante dos horizontes perceptivos.
Esse processo de desilusão é apresentado como meio para uma “experiência definitiva
do ‘real’” (VI, 63), a qual apreende de maneira confiável e precisa alguns aspectos do
mundo.
É preciso cuidado ao correlacionar esse problema da diferença entre experiência
verdadeira e ilusória com aquele da distinção, propiciada pela fé perceptiva, entre
abertura ao mundo e encobrimento do ser. A compreensão errada desses temas nos
levaria a perder a originalidade de O Visível e o Invisível ante a Fenomenologia da
Percepção. Consideremos um primeiro esquema do problema:
abertura: experiência verdadeira do mundo
1) Fé perceptiva
encobrimento: ilusão/engano
Sabemos que para Merleau-Ponty a perceptiva se compõe de duas dimensões,
abertura ao mundo e seu encobrimento. Se se identifica a abertura à experiência da
realidade e o encobrimento à ilusão, então não haveria como distinguir entre verdade e
engano perceptivo, já que ambos corresponderiam a características constituintes da
experiência perceptiva, conforme a exposição da fé perceptiva no início de O Visível e o
Invisível. A fim de manter a possibilidade de distinção segura entre experiência
verdadeira e ilusória seria necessário, segundo essa primeira interpretação, atribuir um
185
privilégio muito maior à abertura que ao encobrimento, o qual seria compreendido
como visada enganosa a ser corrigida pelo processo de exploração de horizontes
propiciado pela abertura geral ao mundo. Por conseguinte, perder-se-ia a originalidade
da fé perceptiva, ou seja, o fato de que nela há uma presença irrecusável do ser sem que
isso exclua a sua distância irremediável.
A fim de harmonizar as características da fé perceptiva e a distinção entre
experiência verdadeira e ilusória, propomos o seguinte esquema:
real
abertura: distinção
2) Fé perceptiva: ilusão
encobrimento: as estruturas corporais não esgotam o ser
Nessa interpretação, não incompatibilidade entre as dimensões da
perceptiva e a eficácia desta em distinguir experiência verdadeira e ilusória, uma
operação que ocorre no interior da abertura do mundo, ou seja, no interior da
experiência das coisas tal como elas são. Essa operação não anula, entretanto, a
dimensão de encobrimento inerente à perceptiva, dimensão que decorreria das
características estruturais do corpo. Por sua vez, reconhecer uma dimensão de
encobrimento na perceptiva não significa afirmar que o corpo está encerrado em
ilusões e jamais nos dará o mundo tal como ele é. De fato, naquilo que o corpo percebe,
a distinção entre experiência verdadeira e ilusória ocorre de maneira bastante
satisfatória, tal como a análise da desilusão evidenciou. Porém, com a noção de
encobrimento ontológico, Merleau-Ponty parece indicar que o ser pode ser composto,
ao menos parcialmente, de propriedades que nossas capacidades perceptivas não
reconhecem, de propriedades invisíveis, que se ocultam para os poderes imediatos de
nossa estrutura corporal, e em relação às quais não faz sentido aplicar a distinção entre
experiência verdadeira e ilusória.
O encobrimento ontológico e o problema da distinção entre percepção verídica e
ilusória são de ordens distintas. É possível, por conseguinte, conciliar a tese de um ser
que não se reduz à sua manifestação subjetiva (ser que envolve dimensões invisíveis) e
a capacidade perceptiva de diferenciar experiência verídica e ilusória: o fato de que
possa haver mais ser do que aquele apreendido diretamente, quer dizer, de que o ser
pode se ocultar para nosso aparato perceptivo-motor imediato, não implica que no
âmbito do ser percebido não possa haver a distinção mencionada. E que essa distinção
186
ocorra, não implica que as propriedades subjetivamente apreensíveis esgotem todas as
estruturas ontológicas do mundo. Assim, por exemplo, é possível diferenciar entre a
percepção de uma paisagem marítima à luz matinal e uma miragem, embora vários
componentes dessa paisagem percebida (os raios ultravioletas, por exemplo) sejam
elementos do mundo ocultos para o corpo, elementos que não se revelam diretamente
para a percepção humana.
Até agora, preocupamo-nos em esclarecer que as características da perceptiva
não se reduzem às capacidades de distinção entre experiência verdadeira e ilusória. Mas
ainda falta explorar justamente aquilo que constitui de maneira positiva a perceptiva:
misto de apresentação e recuo do mundo. Toda a dificuldade é compreender como as
possibilidades de abertura e encobrimento contidas na perceptiva não se contrariam,
e, que a experiência ingênua, apresente o mundo por meio de capacidades perceptivas
subjetivas. Como bem formula Merleau-Ponty, o problema da perceptiva é que ela
“paradoxalmente nos assegura levar-nos às próprias coisas, dando-nos acesso a elas por
meio do corpo, que, portanto, nos abria para o mundo, fechando-nos na série de nossos
acontecimentos privados” (VI, 50). Falta ainda expor a exploração filosófica de
Merleau-Ponty que compatibiliza as teses aparentemente opostas veiculadas pela fé
perceptiva.
B) As teorizações sobre a fé perceptiva
Esquema geral
Antes de oferecer sua resposta, Merleau-Ponty analisa o tratamento dado ao
problema da perceptiva por diferentes empreitadas teóricas. No decorrer dessa
análise, ao tornar claras as limitações dessas empreitadas, Merleau-Ponty delineia a
forma de interrogação filosófica conveniente para investigar a perceptiva. Vamos
acompanhar as linhas gerais dessa análise crítica contida nos três primeiros capítulos de
O Visível e o Invisível, para então finalmente expor a abordagem positiva do tema em
questão, contida no quarto capítulo desse livro.
Lembremos que a perceptiva impõe uma mistura entre uma tese de cunho
objetivo (o mundo se apresenta tal como é) e uma de cunho subjetivo (o mundo se
apresenta por meio das capacidades perceptivas). As duas primeiras empreitadas
teóricas estudadas por Merleau-Ponty se caracterizam por romper essa tensão interna à
atividade perceptiva e privilegiar apenas um dos aspectos da complexa experiência
originária que se tratava de esclarecer. A primeira delas é a ciência objetivista, que faz
187
da experiência perceptiva o resultado de relações materiais determinadas causalmente.
Por conseguinte, o paradoxo da perceptiva é dissolvido em favor da exposição do
mundo tal como ele é. A segunda delas é a filosofia reflexiva, que acentua em demasia o
papel das capacidades subjetivas na apresentação do mundo, o qual deve se conformar
às possibilidades internas da subjetividade cognoscente. Não reproduziremos aqui todos
os tópicos examinados por Merleau-Ponty quanto a esses dois métodos teóricos (o
científico e o reflexivo). Interessa-nos somente mostrar os problemas de ambos em
relação à fé perceptiva.
Análise da ciência
Para Merleau-Ponty, as pesquisas objetivistas (no sentido já especificado no
quarto capítulo) tentam reconstruir a experiência perceptiva como efeito de processos
causais puramente físicos. No entanto, essa reconstrução, julga o filósofo, longe de
dissipar a importância da perceptiva como contato primordial com o mundo,
pressupõe-na (Cf. VI, 31). Afinal, tais pesquisas, que tomam os dados fenomenais como
meros índices de relações físicas, admitem que as operações matemáticas, pelas quais
essas relações são descritas, são adequadas ao ser objetivo, quer dizer, se conformam a
ele e o descrevem tal como ele é. Ora, essa admissão transporta de maneira acrítica a
crença perceptiva no contato direto com o mundo para a investigação científica (Cf. VI,
32, 35, 36-7)
11
. Haveria, assim, uma ambigüidade das pesquisas objetivistas em relação
à fé perceptiva: ao mesmo tempo em que elas a reduzem a um efeito de relações causais
objetivas, tais pesquisas se servem da crença fundamental veiculada por tal (atingir
diretamente o ser), a qual é reproduzida no nível da relação entre aparato científico e ser
objetivo.
Além de pressupor o modo pelo qual a atividade perceptiva se dirige para o ser,
as pesquisas objetivistas deveriam reconhecer, sugere Merleau-Ponty, que a própria
experiência perceptiva é, em alguma medida, uma condição para o entendimento dos
sistemas físicos. Segundo o filósofo, a física contemporânea teria explicitado que as
propriedades das partículas não são descritíveis em termos puramente objetivos, mas
sim em relação à experiência do observador. Segue-se que tal experiência não é
efeito de relações exteriores a ela, mas parte indispensável do sistema natural físico a
11
Vimos no segundo capítulo que Merleau-Ponty defendera tese semelhante, em A Prosa do Mundo,
quanto à interpretação realista das entidades matemáticas. Essa interpretação, segundo a qual haveria um
mundo de entes matemáticos independente de nosso conhecimento, reproduz a crença em um mundo
independente da subjetividade, crença que se origina na atividade perceptiva (Cf. PM, 172-3).
188
ser compreendido (Cf. VI, 31-2)
12
. Dessa maneira, os resultados da física de partículas
sugerem uma reforma ontológica que substitua as noções opostas de objeto físico e de
interioridade psíquica por aquela de campo de experiência. Merleau-Ponty lamenta que
tal reforma não tenha ocorrido plenamente, uma vez que os resultados experimentais
inovadores são comumente traduzidos para a ontologia objetivista tradicional
13
. No
entanto, importa notar, e não no âmbito da física, mas também da psicologia
14
, a
insuficiência da abordagem que supõe de antemão a antinomia entre um domínio
objetivo e um subjetivo. Para Merleau-Ponty, a abertura perceptiva ao mundo repugna
essa distinção e sustentá-la implica, assim, a recusa em compreender a complexidade
pela qual o mundo se mostra para nós. Infelizmente, julga o filósofo, as abordagens
científicas mais difundidas são aquelas que pressupõem tal distinção (e favorecem o ser
objetivo como causa do subjetivo), e, desse modo, elas devem ser deixadas da lado na
investigação da perceptiva. Por sua vez, a crítica às abordagens objetivistas não
compromete Merleau-Ponty com uma perspectiva anti-científica, a qual, por exemplo,
circunscreveria um conjunto de fatos que por princípio escaparia aos métodos
científicos (Cf. VI, 40, 46). A fé perceptiva não é um tema por princípio alheio à análise
científica; porém, uma vez que o objetivismo compõe a metodologia em voga na maior
parte das investigações científicas, trata-se de um tema que não é adequadamente
estudado por essas últimas
15
.
A filosofia reflexiva
Após a análise da ciência, Merleau-Ponty passa a expor as diferentes estratégias
da filosofia ante a perceptiva. Vimos que a ciência, tal como exposta acima, tentava
assimilar o caráter irremediavelmente subjetivo da apresentação do mundo a relações
objetivas. Essa assimilação dissolvia o paradoxo da perceptiva, embora a perspectiva
ingênua de atingir o mundo tal como ele é continuasse atuante ao menos na metodologia
objetivista. a primeira variante filosófica examinada em O Visível e o Invisível, a
12
Vimos, no terceiro capítulo, que Merleau-Ponty já defendera, nos cursos editados em A Natureza, a tese
de que os conteúdos percebidos devem servir de modelo às teorias físicas.
13
Merleau-Ponty explorara as dificuldades da ciência em aceitar uma nova ontologia em A Estrutura
do Comportamento (Cf. SC, 33, 84, 145).
14
Merleau-Ponty analisa a
189
filosofia reflexiva, se caracteriza por executar o movimento oposto: assimilar as relações
objetivas às capacidades subjetivas. Merleau-Ponty tem em vista o idealismo radical,
que converte a atividade perceptiva em um modo de pensamento e interpreta a
experiência do mundo como atualização de possibilidades internas do sujeito cognitivo
(Cf. VI, 48-9).
Essa conversão idealista extingue o paradoxo da fé perceptiva ao reduzir o
mundo percebido a possibilidades intelectuais do sujeito cognoscente. É verdade que
mesmo a filosofia reflexiva não pode negar que as coisas percebidas parecem existir de
maneira autônoma, independentemente dos poderes subjetivos (o que justamente gera o
paradoxo da perceptiva). Porém, segundo tal doutrina, essa dificuldade superficial é
superada pela tese da estrita correlação entre a estrutura das coisas (e do mundo em
geral) e a estrutura do pensamento humano. Por trás da ingenuidade e das confusões do
sujeito empírico vigoraria a clareza do sujeito transcendental, para quem o mundo
fenomênico jamais extrapola as possibilidades de seu arcabouço intelectual. Assim, sob
os equívocos da perceptiva, a filosofia reflexiva localiza um pensamento constituinte
que delimita a amplitude da experiência e justifica a certeza ingênua de se estar em
contato com as próprias coisas ao defender que tais coisas jamais escapam às
capacidades cognitivas humanas.
Merleau-Ponty rejeita a estratégia pela qual a filosofia reflexiva pensa resolver o
enigma da perceptiva, e apresenta ao menos dois argumentos para tanto. No primeiro
deles, o filósofo mostra que a suposição de um pensamento ordenador sob a
perceptiva está errada; no segundo, revela como os procedimentos reflexivos dependem
da atividade perceptiva, a qual, então, é fundante em relação ao pensamento, conforme
veremos a seguir.
No primeiro argumento (Cf. VI, 53-4), o filósofo nota, de início, que a filosofia
reflexiva pretende descobrir um pensamento constituinte da experiência, o qual seria
sempre ativo. No entanto, não é possível desvelar tal pensamento constituinte, pois todo
pensamento é uma modificação de uma experiência irrefletida anterior. Portanto, deve-
se reconhecer que o pensamento não é co-extensivo com a experiência, mas posterior a
ela.
Segundo esse argumento, não é correto postular um pensamento constituinte que
organiza e delimita a experiência, pois desse modo se perderia um dos principais
aspectos dessa última: o seu caráter irrefletido. O que caracteriza a experiência
perceptiva, ao menos na descrição de Merleau-Ponty, é a sua independência de atos
190
reflexivos ou pensamentos expressos
16
. O pensamento reflexivo nasce de um estado de
ignorância inicial. Ao postular a identidade entre pensamento e experiência, a filosofia
reflexiva torna incompreensível o surgimento do primeiro, um processo que pressupõe
um estado irrefletido prévio.
O segundo argumento (Cf. VI. 58-9) conclui que a reflexão é dependente das
estruturas perceptivas. Para tanto, Merleau-Ponty retoma o movimento argumentativo
da filosofia reflexiva: trata-se de uma passagem da análise da percepção bruta para a
análise do pensamento sobre a percepção. Nessa passagem, supõe-se que a coisa
percebida na experiência em questão se mantenha a mesma. Essa convicção de que o
conteúdo da experiência vivida permanece idêntico na reflexão sobre tal experiência se
origina na atividade perceptiva. Afinal, o entrelaçamento espontâneo da duração da
percepção bruta com aquela do exame reflexivo é da ordem da sensibilidade, é uma das
estruturas da percepção corporal.
Nesse argumento, Merleau-Ponty mostra que a reflexão depende das virtudes da
retenção temporal. E como o filósofo atribui essas virtudes à experiência corporal, fica
claro que a reflexão supõe, como sua condição, a vivência irrefletida. Já havíamos
notado a remissão das estruturas da temporalidade à experiência corporal ao analisar os
cursos A Instituição e A Passividade, em nosso terceiro capítulo. Em O Visível e o
Invisível, o filósofo mantém esses resultados: é por meio das modificações do ponto de
vista corporal em relação às coisas percebidas (ou seja, por meio da duração corporal)
que o sujeito aprende sobre a permanência dessas (ou seja, sobre uma duração inerente
às coisas) (Cf. VI, 58). E a convicção irrefletida da permanência das coisas numa
duração contínua está na base do esforço intelectual de manutenção de um mesmo
objeto ante o olhar reflexivo. Assim, o funcionamento da reflexão decorre de uma
estrutura intencional que se enraíza na vivência do corpo.
Contra a filosofia reflexiva, Merleau-Ponty sugere uma sobre-reflexão
[surréflexion] (VI, 60, 69), ou seja, uma reflexão que se mantenha atenta às
modificações que ela mesma produz sobre a experiência irrefletida e que, dessa forma,
reconheça a autonomia dessa última ante os procedimentos reflexivos. Era apenas por
ignorar essas modificações que a filosofia reflexiva assimilava a perceptiva a um
pensamento constituinte. Como vimos, essa assimilação é falsa, uma vez que a atividade
perceptiva somente fornece o solo sobre o qual a reflexão pode se erguer.
16
Essa tese já se encontra na Fenomenologia da Percepção (Cf. p.IV, IX, 75).
191
A atividade perceptiva envolve uma mistura, difícil de ser explicada
teoricamente, entre uma tese “objetiva” e uma “subjetiva”. Vimos, nas duas últimas
seções, que tanto a ciência quanto a filosofia reflexiva tentam submeter uma dessas
teses à outra. O seu fracasso comprova a necessidade de respeitar os dois aspectos
constituintes da perceptiva. No segundo capítulo de O Visível e o Invisível, Merleau-
Ponty analisa uma estratégia que pretende considerar a fé perceptiva em sua real
complexidade: a filosofia de Sartre.
A ontologia sartreana
Na primeira e maior seção do segundo capítulo de O Visível e o Invisível,
intitulada “A perceptiva e a negatividade”, Merleau-Ponty expõe como Sartre,
principalmente em O Ser e o Nada, lida com o problema da fé perceptiva. Dessa análise,
bastante longa e detalhada, reproduziremos somente sua estrutura argumentativa geral, a
qual é composta de três partes. Na primeira delas, consideram-se as aparentes virtudes
da ontologia sartreana quanto ao tema da fé perceptiva (parágrafos três a sete do
segundo capítulo). Na segunda, avalia-se o esquema lógico-conceitual dessa ontologia
(parágrafos oito a doze) e, na terceira, a descrição da experiência provida por ela
(parágrafos treze a quinze).
De início, Merleau-Ponty expõe como a ontologia sartreana parece preservar as
características da perceptiva. Após definir o mundo como plena positividade (ser em-
si) e desinflar a esfera da subjetividade ao concebê-la como pura negatividade (para-si),
Sartre extrai al.9(a)-67 0 scnre 0(ons)-1.9(e)3.qüê(e)4.00(c)3.9(i)-2.cnrd9(a)3.9(s ) 490.0(r)-6.9(e)3.[(l)-2.0(a)4.0(ç)3.9(n)-9.9(ê)3.9(s)-1.0( )-289.0(e)3.9(nt)-1.9(r)-6.9(e)3.0( )-289.0(e)3.9(ss)-1.enrdo(vi)-1.9(s ) 490.pól(i)-12.os,(s ) 490.(na)4.0(s)-1.0( )-289.9(qua)3.9(i)-2.0(s)-11.0( )] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 85.178260411.55149 cm1.00000 0 0 1.00000 0 0 Tm9(a)3.9(pe)3.9(r)3.0(e)3.9(nt)m 299.9(e)3.9(x239.9(pr)2.9(i)-2.0(m)-1.9(i)-2.9(r)3.0( )240.0(o -79.9(c)3.90(nt)-1.9(e)3.úd0(o -79.9(da)3.9( -210.0(f)2.éva)4.0( )-10.9(p)-10.0(e)3.9(r)3.9(c)-5.9(e)3.9(pt)-1.9(i)-2.0(va)3.9(. )-19.C(S)-4.0(om)-1.9(o )240.0(o 1-20.0(m)-2.0(undo 1-20.éva)4.0( 289.9(a)3.b(os)-1.09(l)-1.ut))-7.9(a)3.0(m)-1.9(e)3.9(nt)-1.9(e)3.9( )-10.0(e)3.0(m)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 495.338260411.55149 cm1.00000 0 0 1.00000 0 0 Tm[(-)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 931.298260411.55149 cm1.00000 0 0 1.00000 0 0 Tm9(s)-1.0(i)-1.0(,)-10.0( )] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 85.178228390.91149 cm1.00000 0 0 1.00000 0 0 Tmé(e)3.9( )-10.0(pos)-1.0(sí)-2.90(e)3.9(l)-2.0( 289.9(a)3.9(f)2.9(i)-2.9(r)3.mnt))-2.cn)cT0(r)2.9( 179.9(qua)-5.9( )-10.0(e)4.l(i)-12.9(e)3.9( )-10.0(e)4.0(x)-10.0(i)-2.9(s)-1.0(j)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 455.938228390.91149 cm1.00000 0 0 1.00000 0 0 Tm0(e)4.00( )-10.0(de)3.(o 1-20.0(m 0 scn)cTn9(e)4.0(i)-2.0(r)-6.9(a)3. (x)-10.0(i)-2.9(nde)-5.p0(e)3.9(nde)3.9(nt)-1.9(e)3.9( -79.9( 289.9(a)3.9( )-9.9(su)-1.0obj)-2.0(e)4.0(t)-2.0(i)-2.0(vi)-2.0(da)4.0( 299.9(e)3..9( )-9.N))-1.9(o )240.0(e)4.0(nt)-12.0(a)4.9(nt)-2.00(, )] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 85.178226338.27149 cm1.00000 0 0 1.00000 0 0 Tm0(c)3.9(om)-1.9(o 1)-10.0(e)4.0(s)-1.0(sa)3.0( )1-79.9(é)3.9( )-109.u9(m)-2.0( )-109.9(pu)-10.0(r)2.9(o )-109.n0(a)-5.unda)3.9(o 1)-10.n9(ã)4.0(o )-109.0(s)-1.0(pos)-1.0(i)-2.0(st)-2.qua)-5.9( ))-10.0(so)-1.znvié e seompré êsnt preêncié or valgum1210.0( )] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 85.178224249.51149 cm1.00000 0 0 1.00000 0 0 Tm9(a)3.9(sp)-1.0(3.3.9(c)4.0(t)-2.0(o )0199.9((,)-10.0( )0199.pepa)-6.0(r)3.9(sp)-1.0(e)4.0(c)3.9(t)-2.0(i)-1.9(ve)-6.0( )1249.9(0( )0199.ons)-1.9(e)3.0(r)-6.0( )1-20.0(e)4.0(m)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.000025631.298224249.51149 cm1.00000 0 0 1.00000 0 0 Tm[(-)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.000006035.258224249.51149 cm1.00000 0 0 1.00000 0 0 Tmpos)-1.0(i)-2..0( )0199.D(N)-7.9(e)4.í(i)-2.0( )-109.0(s)-1.00(r)-6.g9(e)-6.0( )o mundo feumeualo parao ual1 é
i
nt
e
192
aparentemente também teria respeitado: a abertura a um mundo intersubjetivo (Cf. VI,
83). No primeiro capítulo de O Visível e o Invisível a intersubjetividade não é, ao menos
de início, parte das “crenças” veiculadas pela fé perceptiva. Na verdade, ali, apela-se à
intersubjetividade somente como a um recurso tardio para tentar resolver o paradoxo da
perceptiva (Cf. VI, Cap. I, § 6-7): a presença de outrem poderia confirmar que as
coisas existem como tais mesmo se limitadas aos relatos dos poderes do corpo, que
elas seriam percebidas não por um sujeito, mas por vários. Contudo, o fato de que o
sujeito A possa perceber o sujeito B em contato com as mesmas coisas que ele (A)
reconhece, não resolve o caráter paradoxal da perceptiva, mas somente o reitera.
Afinal, B é percebido por meio das estruturas corporais de A, e a mesma proximidade e
distância instauradas por elas em relação ao mundo se repetem quanto a B, mais um
tema percebido que depende da fé perceptiva de A
17
.
Já no segundo capítulo, Merleau-Ponty admite explicitamente que o problema da
perceptiva não se restringe ao contato entre sujeito e mundo, mas também abrange a
relação entre os sujeitos: percebem-se outros sujeitos, os quais aparecem em sua
existência autônoma, embora o acesso a eles seja limitado àquilo que se manifesta na
experiência perceptiva.
Dissemos que em princípio Sartre também parece respeitar a experiência
intersubjetiva tal como ela se manifesta por meio da perceptiva. De fato, é possível
conceber, sob a terminologia sartreana, que diferentes subjetividades sejam preenchidas
pela plenitude do em-si e se relacionem em um mundo comum. Contudo, Merleau-
Ponty julga que Sartre não chega realmente a conceber um campo de relações efetivas
entre sujeitos, mas que apenas propõe uma difícil convivência entre vários mundos
privados. Ao definir cada sujeito como puro nada, Sartre implica que cada um se dirige
ao ser em-si e é moldado pelas situações mundanas. Na condição de sujeitos situados,
os para-sis deixam expostas a situação exterior em que cada um deles se torna
reconhecível, conforme as determinações históricas e sociais do mundo. Assim, cada
para-si estabelece contato com a situação mundana que nega o puro nada
constitutivo de outro para-si. Não há relação efetiva entre os sujeitos, mas somente a
exibição dos aspectos situacionais passivamente cristalizados em cada para-si (Cf. VI,
99).
17
“A intervenção de outrem não resolve o paradoxo interno de minha percepção: ela acrescenta a ele esse
outro enigma da propagação em outrem de minha vida mais secreta” (VI, 27).
193
Segundo Merleau-Ponty, a experiência intersubjetiva, tal como descrita por
Sartre, não acrescenta nenhum novo conhecimento aos sujeitos, ou seja, não é fonte de
aprendizado sobre si próprio. Para a filosofia sartreana, a intersubjetividade ocorre
principalmente por meio do olhar, o qual alcança somente os sujeitos enquanto
cristalizados nas situações mundanas. Dessa maneira, o olhar apresenta outrem não
como puro para-si, mas como sujeito objetivado pelas relações mundanas. Mas essa
objetivação, cada sujeito a conhece interiormente, pois o preenchimento do nada pelo
ser do mundo é decorrente da sua própria estrutura ontológica subjetiva. Por
conseguinte, julga Merleau-Ponty, a intersubjetividade narrada por Sartre não vai além
de uma confirmação empírica do envolvimento do nada subjetivo no ser mundano (Cf.
VI, 99). Conforme vimos no segundo capítulo, para Merleau-Ponty a intersubjetividade
fornece mais do que uma verificação de estruturas ontológicas independentes de e
anteriores ao contato inter-humano. Que se considere, por exemplo, a inserção dos
sujeitos no mundo por meio de suas vivências sensíveis. O exercício intersubjetivo da
linguagem oferece as condições para que as experiências sensíveis realizem sua
pretensão de validade universal. Assim, as relações intersubjetivas não apenas
explicitam as estruturas ontológicas pelas quais os sujeitos se inserem em seu meio, mas
compõem essas próprias estruturas de maneira indispensável.
Ao expor o tema da relação entre os para-sis, começamos a acompanhar a
avaliação de Sartre por Merleau-Ponty. As limitações sartreanas quanto à
intersubjetividade decorrem da sua definição de sujeito como nada e de ser como em-si,
a qual já delimita de antemão as relações intersubjetivas como exteriores, ou seja,
mediadas por situações mundanas em que cada para-si jamais se mostra tal como é.
Esse veredicto sobre a intersubjetividade sartreana está inserido em uma avaliação
global da filosofia de Sartre por Merleau-Ponty, a qual examina, em primeiro lugar, o
seu esquema lógico-conceitual (Cf. VI, Cap. II, § 8-12). Acompanhemos mais de perto
essa análise.
Segundo Merleau-Ponty, Sartre parte da oposição entre ser e nada, e promete um
ser mais amplo (que incluiria o nada) como resultado final de sua ontologia (Cf. VI, 93).
Dadas as definições iniciais do nada como ausência de propriedades e do ser como
plenitude absoluta, segue-se uma relação bastante rígida entre sujeito e mundo: o
primeiro se abre imediatamente para o segundo, preenchendo-se do ser, o qual, por sua
vez, nega a pureza da subjetividade ao torná-la sempre situada. No entanto, a relação
entre ser e nada também é bastante frágil, uma vez que ambos são opostos absolutos que
194
jamais se confundem de fato. Essas relações ambivalentes entre ser e nada frustram,
julga Merleau-Ponty, as pretensões sartreanas de apresentar uma noção ampliada de ser
em geral. Uma vez que o ser é definido como oposto ao nada, não passagem lógica
que permita a incorporação desse último no primeiro. Seria necessário modificar as
definições iniciais para obter o resultado esperado, o que Sartre não faz.
Merleau-Ponty considera uma possível objeção à sua análise: revelar a
ambivalência do esquema conceitual sartreano seria insuficiente para criticá-lo, pois
Sartre estaria na verdade oferecendo uma descrição da experiência (Cf. VI, 104). Quer
dizer que Sartre tomaria como base para a sua filosofia certos fatos inegáveis da
existência humana, de modo que seu esquema lógico-conceitual não seria senão uma
decorrência da maneira como nossas vivências inevitavelmente ocorrem. A
ambivalência do esquema lógico-conceitual não seria, assim, um problema, mas
simplesmente a expressão da experiência, a qual, ela mesma, seria ambivalente.
Para responder a essa objeção, Merleau-Ponty passa a avaliar a qualidade
descritiva da filosofia sartreana (Cf. VI, Cap. III, § 13-15). Apresentar a experiência (tal
qual propõe Sartre) como relação entre um nada (exterior ao mundo) em contato direto
com o ser pleno captaria somente a impressão subjetiva, gerada pela atividade visual, de
se abranger o mundo inteiro pelo olhar sem se misturar com nenhum evento ou situação
mundana (já que o sujeito seria algo oculto, atrás dos olhos). No entanto, essa
impressão de que se pode sobrevoar o mundo sem estar nele envolvido não corresponde
à totalidade da experiência visual. Merleau-Ponty defende que o exercício da visão
supõe um sistema orgânico visual, o qual é visível: o sujeito vidente possui olhos, os
quais estão inseridos em um corpo e funcionam de acordo com o equilíbrio sistêmico
desse último em relação ao meio ambiente. Mais do que oferecer uma descrição
naturalista do exercício da visão, importa a Merleau-Ponty acentuar que tal exercício
supõe uma camada passiva, ou seja, supõe o corpo como massa visível. E trata-se de
reconhecer que por meio dessa camada, o corpo partilha dos atributos sensíveis das
coisas mundanas, tais como a visibilidade e a tangibilidade. Por conseguinte, ao se
realizar por meio do corpo, a subjetividade não pode ser caracterizada como puro nada
oposto ao mundo, já que ambos compartilham certas propriedades ontológicas.
Merleau-Ponty considera, a título de hipótese, que a experiência se limite àquilo
que Sartre descreve. Mesmo assim, a descrição articulada em termos de relações entre
em-si e para-si seria insuficiente. Afinal, se o ser fosse realmente em-si, massa plena
independente da subjetividade, então não haveria como o sujeito se relacionar
195
diretamente com ele, uma vez que o olhar humano sempre o apresenta como ser visto,
ou seja, ser de algum modo ligado às estruturas subjetivas. Além disso, se a
consciência fosse um puro nada, ela deveria estar de tal forma preenchida pelo ser que
não haveria nem mesmo espetáculo subjetivo, mas apenas uma reiteração contínua da
plenitude do em-si. No entanto, o mundo é percebido de acordo com os poderes da
subjetividade, os quais (conforme Merleau-Ponty considerou ao analisar a fé perceptiva)
podem não esgotar toda a amplitude do ser.
Merleau-Ponty conclui da análise exposta nos dois parágrafos precedentes que a
tentativa de salvar a ontologia sartreana ao caracterizá-la como descrição da experiência
não funciona. O mesmo problema localizado no esquema lógico-conceitual (as
limitações geradas pelas definições iniciais) reaparece no nível descritivo. Se se parte da
oposição radical entre ser e nada, não se pode atingir as metas propostas, sejam elas ou
uma definição mais ampla do ser ou a descrição da experiência vivida em toda a sua
complexidade. Para atingi-las, Sartre deveria ter revisto o seu ponto de partida, o qual
envenena todo o desenrolar da sua filosofia.
Para manter-se fiel à fé perceptiva, Merleau-Ponty sugere abandonar o esquema
geral da filosofia sartreana em prol de uma descrição mais refinada da experiência.
Vimos que não é possível definir a subjetividade como um nada que coincide
plenamente com a visão, pois o sujeito vidente existe como corpo enredado no ser
visível. Além disso, deve-se notar que o sujeito não o seu próprio corpo por
completo, o que implica uma opacidade do vidente em relação a si próprio (Cf. VI,
107), tópico que deveria ser explorado em uma descrição do “pólo subjetivo” da
experiência. Já no que concerne ao “pólo objetivo” da experiência, trata-se de defender
que jamais o ser se apresenta como puro em-si. Segundo Merleau-Ponty, “o que é
primeiro não é o ser pleno e positivo sobre o fundo do nada, é um campo de aparências”
(VI, 109), em que o desvelamento e o encobrimento do mundo não são excludentes (Cf.
VI, 106). O ser se caracteriza, assim, por uma profundidade inesgotável (Cf. VI, 107);
ele não é um bloco pleno, mas um horizonte constituído de várias dimensões (tais como
a sensível e a histórico-cultural [Cf. VI, 115], por exemplo), às quais o sujeito assimila
apenas parcialmente.
Um sujeito opaco, que não possui experiência ou conhecimento adequados de si
mesmo, e um ser profundo, que não se deixa abarcar totalmente pelo aparato perceptivo.
Eis os temas anunciados por uma interrogação filosófica mais fiel à perceptiva, que
196
não a submeta a oposições conceituais extremamente gerais, abstratas, tal como aquela
entre ser e nada.
A interrogação filosófica
No final da primeira seção e em toda a segunda seção do segundo capítulo de O
Visível e o Invisível, Merleau-Ponty circunscreve as linhas gerais de uma investigação
filosófica que explicite a opacidade do sujeito e a profundidade do ser. De início, o
filósofo pondera se o termo “dialética” não denominaria o sentido de sua crítica à
filosofia sartreana em nome de uma maior fidelidade à abertura e ao encobrimento que
compõem a perceptiva. Se se define “dialética” como explicitação dos processos
concretos pelos quais os temas estudados se ordenam, então esse termo bem caberia à
sua empreitada. Porém, para Merleau-Ponty a “dialética” também é associada à
subsunção de tais processos a leis abstratas, o que apaga a especificidade dos casos em
nome de um esquema geral. Para evitar qualquer aproximação com esse último sentido,
o filósofo sugere o termo “hiperdialética” (VI, 127) como marca de uma reflexão que
evita as sínteses gerais e as abstrações, procedimentos por vezes associados à dialética.
O apelo a uma hiperdialética ecoa aquele a uma sobre-reflexão. Em ambos os casos,
Merleau-Ponty almeja uma análise filosófica precavida dos erros que levam a
subestimar as particularidades das vivências pré-reflexivas ante o aparato conceitual
reflexivo.
Acompanhemos como Merleau-Ponty explicita essa análise que pretende
exceder as limitações das reflexões filosóficas tradicionais. Lembremos, conforme
apontamos no início deste capítulo, que para ele a filosofia deve retornar à experiência
em que os sujeitos se encontram enredados antes de exercer a reflexão (Cf. VI, 135), e
esse retorno deve ocorrer sem substituir a perceptiva por relações entre conceitos
abstratos, como ocorreu na filosofia sartreana. Deve-se agora notar que voltar-se para a
experiência não significa perguntar se o mundo por ela apresentado existe
verdadeiramente, ou se se tem realmente acesso à realidade e não se está, por exemplo,
limitado a um sonho bem ordenado. Esse questionamento de índole cética é
explicitamente rejeitado por Merleau-Ponty. no primeiro capítulo de O Visível e o
Invisível, o filósofo o critica por dois motivos (Cf. VI, 19-21):
a) tal questionamento supõe a experiência do mundo a qual é então posta em dúvida:
ao considerar a possibilidade de que todas as percepções sejam falsas, a interrogação
cética generaliza algo que normalmente se reconhece em algumas percepções, a saber, o
197
fato de que elas são ilusórias. Mas o procedimento para atribuir caráter ilusório
(falsidade) a algumas percepções se serve, como vimos, do desenrolar concordante de
várias outras percepções, as quais são consideradas verdadeiras. Assim, essa atribuição
de possível falsidade a todas as percepções admite algum contato com o real, em nome
do qual elas poderiam ser assim tachadas. Uma vez que o falso pode ser definido em
relação ao verdadeiro, o questionamento da totalidade da apresentação do ser por meio
da percepção longe de romper o laço com o mundo depende ainda de alguma
manifestação verdadeira do ser, a qual, para Merleau-Ponty, se efetua pela
perceptiva.
b) o questionamento cético supõe uma noção dogmática de ser em-si: a comparação
das percepções com os sonhos trata ambos como estados mentais aos quais talvez nada
objetivo corresponda. Percepção e sonho são definidos como atividades da interioridade
psíquica, e todo o problema se resume a perguntar por sua adequação a um ser em-si, o
qual se admite existir mesmo se se duvida das formas de acesso a ele. Merleau-Ponty
rejeita definir a percepção como estado mental ao qual pode ou não corresponder um
aspecto de um mundo em-si. Em sua descrição da perceptiva, uma das principais
características da atividade perceptiva é a abertura efetiva para o mundo, para as coisas.
No segundo capítulo de O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty apresenta mais
uma ressalva contra a interrogação cética (Cf. VI, 128-9):
c) o questionamento cético admite uma noção obscura de existência: a pergunta pela
distinção entre a existência do mundo e um sonho bem ordenado supõe que o sonho
exista de algum modo; na verdade, questiona-se, à luz dessa existência do sonho, se o
mundo seria tal como aparece. Mas o modo de existência do sonho (ou de qualquer
instância utilizada para problematizar o acesso perceptivo ao mundo) permanece
obscuro. Não se sabe, por exemplo, se ele implica ou não a autonomia de um reino
psíquico em relação ao mundo exterior. Seria preciso esclarecer o sentido desse modo
de existência para então avaliar se ele comporta o uso que o cético dele faz.
Dadas essas dificuldades do questionamento cético, Merleau-Ponty o rejeita
como modelo para a interrogação filosófica. A meta de tal interrogação não é, por
conseguinte, questionar se o mundo é, mas sim revelar o que ele é. Vimos que o
questionamento cético supõe um contato tácito com o mundo. A interrogação filosófica
buscada por Merleau-Ponty expõe esse pressuposto e torna esse laço entre sujeito e
mundo, o qual é mantido pela fé perceptiva, o tema da sua análise.
198
Merleau-Ponty enumera ao menos três características dessa interrogação que se
volta para experiência pré-reflexiva. A primeira delas é que por não buscar preencher
uma incógnita delimitada, mas sim explicitar a manifestação do mundo pela
perceptiva, a interrogação filosófica se difere daquelas cotidianas tais como “que horas
são?”, “onde se localiza a cidade de Socorro?”, e mesmo daquelas científicas (“como
funciona o mecanismo Y?”, quais os componentes do processo Z?”). As questões
cotidianas ou científicas são respondidas pela circunscrição de aspectos de um objeto ou
fato específico. a questão filosófica não investiga entes determinados, mas sim o ser
anterior a toda objetivação (Cf. VI, 135). No curso “A filosofia hoje” (1958-1959),
Merleau-Ponty explicita um pouco mais qual o sentido de se dirigir a esse ser pré-
objetivo. Ali, o filósofo afirma que a interrogação filosófica implica uma “consideração
do todo e de suas articulações” (NC, 37). Eis a razão pela qual a filosofia não busca
circunscrever incógnitas delimitadas: importa investigar a experiência humana e o ser
do mundo, do qual ela se erige, em sua totalidade. Não se trata assim de analisar fatos
ou situações particulares, mas sim de esclarecer as noções mais gerais pelas quais se
reconhecem os fatos e por meio das quais eles são classificados em categorias diversas.
A segunda característica é que a problemática filosófica subjaz ao
questionamento do senso comum. Normalmente, as pessoas se satisfazem, por
praticidade, com respostas simples às questões cotidianas (sobre as horas ou a
localização, etc.), uma vez que os dados das respostas servem somente como
instrumento na realização de compromissos ou na manutenção do bem-estar. Não
necessidade de interrogar a natureza do tempo toda vez que se pergunta pelas horas,
pois o que se quer saber, na maior parte dos casos, é apenas um dado específico, que
auxilia na realização de um fim já delimitado anteriormente. Contudo, esses hábitos
pragmáticos não aniquilam o caráter enigmático da experiência do tempo e do espaço.
Segundo Merleau-Ponty, é a interrogação filosófica que desvela esses enigmas,
interrogação subjacente àquelas cotidianas, que essas poderiam ser desdobradas até
expor os enigmas da existência (Cf. VI, 138-9). Suponhamos, a título de
exemplificação, que alguém não se contente com uma resposta pontual (14:30h, por
exemplo) a uma pergunta sobre as horas, e questione então como se chega a tal saber.
Isso exige a retomada de um arsenal de conhecimentos mais vasto, acerca da
segmentação do tempo que a Terra leva para girar em torno de si mesma de maneira a
compor, assim, um dia solar. Mesmo após tal resposta, inúmeras questões ainda são
possíveis: se em um suposto planeta sem rotação os seus habitantes teriam alguma
199
noção de hora; se a noção do tempo, pela qual se definem as horas, depende daquela de
movimento; qual noção de tempo poderia haver sem nenhum movimento planetário; e
assim por diante. Esse exemplo simples explicita que o tipo de interrogação pelo qual a
filosofia se caracteriza para Merleau-Ponty (interrogação que não supõe dado nenhum
contexto com base no qual se delimita uma incógnita, mas que questiona a origem de
todos os contextos) jaz sob as indagações mais banais.
No terceiro capítulo de O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty explicita a terceira
característica da questão filosófica: a auto-referencialidade. A interrogação filosófica
não se dirige apenas para temas gerais, mas também para si mesma como questão (Cf.
VI, 157). Quer dizer que os modos pelos quais o filosofar se realiza não estão todos
definidos de antemão, mas também são problematizados à medida que se cumprem.
Essa autoproblematização da filosofia se torna aparente quanto ao tema da linguagem,
como veremos a seguir
18
.
A linguagem da filosofia
A interrogação filosófica é um procedimento lingüístico que, como bem formula
Merleau-Ponty, se dirige para “essa mistura do mundo e de nós que precede a reflexão”
(VI, 136). algo de paradoxal nessa empreitada. Afinal, trata-se de questionar a
experiência muda, a qual não pode, diretamente, oferecer nenhuma resposta. Na
verdade, toda resposta obtida será construída pela própria filosofia, o que parece indicar
que não se atingiu verdadeiramente a experiência pré-reflexiva. Emile Bréhier havia
notado um problema semelhante na palestra ministrada por Merleau-Ponty à Sociedade
Francesa de Filosofia em 1946: o retorno à experiência imediata parece exigir o silêncio
da parte do filósofo, já que a expressão filosófica implicaria trair o mutismo constitutivo
de tal experiência (Cf. PP, 77).
Merleau-Ponty alegara naquela ocasião que não propunha uma fusão com a
experiência imediata pura, mas sim a compreensão do âmbito antepredicativo por meio
do aparato crítico e expressivo (Cf. PP, 77). Não haveria, assim, problema em admitir
que a experiência vivida pode ser levada em conta após sua tradução lingüística.
Contudo, não ficava claro, na solução exposta em 1946, como a experiência
antepredicativa poderia ser respeitada ao ser tratada predicativamente pela filosofia. Em
O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty esclarece esse tópico ao defender que a questão
18
Tal como o filósofo afirma em uma nota de trabalho: “a definição da filosofia comportaria uma
elucidação da própria expressão filosófica” (VI, 219, jan. 1959).
200
filosófica: a) não é um exercício lingüístico independente do ser do mundo, e b) que as
respostas por ela fornecidas não se compõem de definições estipulativas ou
convencionais, as quais seriam totalmente arbitrárias em relação à experiência vivida.
Quanto ao primeiro ponto, notemos que, para Merleau-Ponty, o próprio mundo
se caracteriza como interrogativo
19
. O filósofo parece sugerir que o mundo interpela os
sujeitos e os leva a verbalizar as interrogações filosóficas. Esse processo seria
reconhecível, por exemplo, na experiência da admiração: algum evento ou coisa rompe
as expectativas subjetivas formadas com base na regularidade cotidiana e fomenta um
questionamento acerca das características do ser para além dos padrões de repetição de
fenômenos assimilados pelo agir instrumental
20
. Assim, o questionamento filosófico,
tal como apresentado por Merleau-Ponty, não seria uma iniciativa plenamente
voluntária, decorrente apenas do exercício das habilidades cognitivas humanas. Na
verdade, a questão filosófica verbaliza enigmas que o próprio ser dirige ao sujeito.
Quanto ao segundo ponto, Merleau-Ponty defende que a questão filosófica não é
solucionada por definições artificiais. A linguagem filosófica, tal como vimos no
segundo e quarto capítulos, deve se exercer como atividade criadora que explicita as
articulações do mundo sensível, sem substituí-las por um jogo entre conceitos abstratos
(Cf. VI, 136-7). O uso criador da linguagem exibe, em sua própria estrutura, o modo
como o ser do mundo se ordena. Afinal, a linguagem não é concebida por Merleau-
Ponty como simples tradução de pensamentos claros, e sim como um processo mais
amplo que aqueles pertencentes à consciência cognitiva, o qual se realiza por meio do
sujeito, mas não é constituído por ele
21
. A linguagem filosófica não diz ou veicula
proposicionalmente o excesso do ser em relação ao aparato cognitivo humano, mas
também mostra nas próprias formas do discurso a complexa ordenação ontológica do
real. Nos últimos textos de Merleau-Ponty, é visível o abandono progressivo de
conceitos clássicos (sujeito, objeto, relação, etc.) em prol de termos figurativos ou
metafóricos (turbilhão, quiasma, carne, reversibilidade, etc.), os quais, longe de exercer
19
“A filosofia interroga a perceptiva, - mas não espera nem recebe uma resposta no sentido ordinário,
(...) porque o mundo existente existe sob a forma interrogativa” (VI, 137). “O interrogativo não é um
modo derivado por inversão ou troca do indicativo e do positivo (...), mas uma maneira original de visar
algo, por assim dizer, uma questão-saber, que não pode por princípio ser ultrapassada por nenhum
enunciado ou ‘resposta’, talvez, por conseguinte, o modo próprio de nossa relação com o Ser, como se ele
fosse o interlocutor mudo ou reticente de nossas questões” (VI, 168-9).
20
Seguimos aqui a interpretação de Martin Gagnon. Cf. “Étonnement et interrogation Essai sur
Merleau-Ponty”. In: Revue Philosophique de Louvain, Vol. 93, n.3, 1995, p.370-391.
21
“A linguagem nos tem e (...) não somos nós que temos a linguagem. (...) é o ser que fala em nós e não
nós que falamos do ser” (VI, 244, maio 1959).
201
mera função ilustrativa, aproximariam o pensamento das estruturas do ser
22
. Não se
trata, certamente, de buscar termos que melhor coincidam com a experiência, ou seja,
termos cujo conteúdo veiculasse adequadamente os eventos em questão
23
. Trata-se,
antes, de exibir, pelo recurso à pluralidade de metáforas e à multiplicidade de
descrições, que a realidade rejeita definições unívocas e envolve latências para além das
manifestações atuais, envolve uma profundidade que alimenta diferentes configurações
fenomênicas que se sucedem sem esgotar a complexidade do ser. É essa latência ou
profundidade (não exprimível tal qual os conteúdos positivos da experiência) a que a
linguagem filosófica deve aludir
24
.
O problema das essências
O questionamento filosófico deveria exprimir, não pelo seu conteúdo, mas
pela sua própria forma, a inesgotabilidade de um ser opaco às estruturas perceptivas
subjetivas. Não se trata, assim, de conceber a investigação filosófica como mera
formulação de definições que pretensamente resolveriam os enigmas da existência
humana seriam resolvidos. Os problemas filosóficos gerais não admitem, julga Merleau-
Ponty, respostas definitivas, que aquilo mesmo que é questionado (em última
instância, o ser do mundo) jamais se desvela totalmente e, por conseguinte, não poderia
se esgotar nas descrições ou classificações pontuais propiciadas pelo discurso
declarativo. Cabe à filosofia encontrar meios de exprimir essa negatividade inerente ao
ser, ou seja, exprimir o excesso do ser em relação a todos os fatos, assimiláveis pelo
sujeito perceptivo. Na seção seguinte, veremos algumas noções forjadas por Merleau-
22
Cf. Saint-Aubert, E. Du Lien des Êtres aux Éléments de l’Être. Merleau-Ponty au tournant des années
1945-51. Paris : Vrin, 2004, Introdução.
23
Cf. Tréguier, J. M. Le Corps selon la Chair. Paris: Kimé, 1996, segunda parte – O método do discurso.
24
Um recurso lingüístico usado por Merleau-Ponty para salientar essa latência do ser é, em vez da
invenção de conceitos, a exploração do sentido de termos da linguagem comum (por exemplo, carne e
entrelaçamento), por meio dos quais o filósofo explicita relações ontológicas inaparentes, que não são
captadas pelo arcabouço conceitual da tradição filosófica (Cf. Saint-Aubert, E. Du lien..., Introdução).
Segundo N. Depraz, esses termos, conforme usados por Merleau-Ponty, “possuem a estranha ressonância
conjugada do abstrato e do concreto, como certas alegorias em busca de uma concretização do abstrato.
(...) O conceitual, longe de ser abolido, encontra seu impulso e seu rejuvenescimento nos recursos
oferecidos pelas palavras que são mais concretas” (Depraz, N., “Selon quels critères peut-on definir une
écriture phénoménologique?”. In: VV. AA. Merleau-Ponty et le littéraire. Paris: Presses de l’École
Normale Supérieure, 1997, p.51). Um bom caso dessa expressão concreta de relações que escapam às
categorias abstratas tradicionais ocorre com o termo “quiasma”. Esse termo, que normalmente indica
cruzamento de tecidos (sentido biológico) ou uma série de termos que se espelham num paralelismo
invertido (ABCD : D’C’B’A’, e. g.; eis o sentido retórico dessa palavra), é utilizado por Merleau-Ponty
para comentar, por exemplo, as relações entre o corpo percipiente e o mundo sensível: a sensibilidade
inerente ao mundo é espelhada de maneira invertida pelo corpo, o qual, então, não é sensível, mas
também senciente.
202
Ponty para captar ao menos algumas propriedades desse ser primordial (por exemplo, a
caracterização do ser não como somatória de fatos, mas como um conjunto de
membranas ou estilos gerais que envolvem e possibilitam a ordenação dos fatos
mundanos). Antes, porém, acompanhemos como no terceiro capítulo de O Visível e o
Invisível Merleau-Ponty rejeita que a investigação filosófica se limite a buscar
essências, quer dizer, entidades puramente intelectuais que exprimiriam as propriedades
responsáveis por uma definição necessária de algum fato ou evento em questão
25
.
Assimilar a investigação filosófica à busca de essências seria como que um refinamento
da concepção de filosofia como formulação de definições rigorosas e unívocas. Nesse
último caso, as definições obtidas poderiam implicar distinções arbitrárias ante a
complexidade do ser do mundo, tal como vimos na subseção passada. O apelo às
essências garantiria então que as definições e distinções obtidas apreendem
necessariamente o conteúdo estudado.
Para Merleau-Ponty, as essências não são uma resposta adequada à interrogação
filosófica. A investigação acerca do ser primordial do mundo não poderia se completar
pela explicitação de essências, pois o saber de que um mundo não é dado por elas, e
sim pela fé perceptiva
26
. Além disso, a formulação de essências decorre do poder
subjetivo de variar, por recurso à imaginação, alguma experiência concreta, a fim de
desvelar seus componentes definidores (Cf. VI, 147). Esse poder subjetivo depende do
bom funcionamento das capacidades cognitivas, as quais, por sua vez, remetem à
história pessoal, às condições fisiológicas, enfim, às vivências factuais de cada
indivíduo. Assim, seja quanto ao seu conteúdo seja quanto ao método de obtê-la, a
essência é dependente da experiência sensível e não pode, portanto, servir de resposta
última à interrogação filosófica sobre tal experiência.
Merleau-Ponty considera a seguinte objeção à sua análise: embora o acesso às
essências dependa de fato de fatores sensíveis, por princípio dever-se-ia defini-las como
puros entes inteligíveis (Cf. VI, 149). As essências valeriam, assim, como reguladores
25
Ao atacar tal posição, Merleau-Ponty não confronta diretamente a noção de essência defendida por
Husserl, a qual, conforme o filósofo francês já mostrara em outros textos (Cf. PhP, IX-XII; PPE,411-12),
supõe um contato prévio com os fatos e mesmo a reformulação do seu conteúdo conforme
particularidades encontradas na experiência. Em O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty volta a afirmar o
caráter pouco dogmático da formulação de essências pelo filósofo alemão: “o próprio Husserl não obteve
uma Wesenschau que não tenha em seguida retomado e retrabalhado (...), de modo que seria ingênuo
procurar a solidez em um céu de idéias ou em um fundo de sentido” (VI, 153). Assim, ao criticar a noção
de essência como ente intelectual puro, Merleau-Ponty tem em vista uma certa interpretação vulgar da
doutrina husserliana, mas não essa própria doutrina.
26
“O ser da essência não é primeiro, não repousa sobre si próprio; não é ele que pode nos ensinar o que é
o Ser” (VI, 145).
203
de um processo de idealização (quer dizer, de busca de traços necessários para além da
multiplicidade casual da experiência), o qual, dadas nossas condições fácticas, é sempre
imperfeito. Aqui, o suposto objetor cinde o nível dos fatos daquele da pureza inteligível,
e sugere que esse último é o verdadeiro portador do sentido do primeiro. Neles mesmos,
os fatos seriam apenas indivíduos isolados; a sua compreensão como exemplos de certos
tipos de eventos (ou seja, o desvelamento de sua estrutura inteligível) dependeria de um
apelo à essência de que tais fatos são meros casos, essência que, embora nunca seja
apreendida em sua perfeição, permitiria discriminar os aspectos gerais de cada
experiência factual.
A fim de replicar a tal objeção, Merleau-Ponty expõe e critica o pressuposto da
separação entre fatos e essências puras. Apenas se se supõe um sujeito puramente
intelectual, livre das amarras do sensível e capaz de contemplar do exterior a ordem dos
eventos, é que se pode conceber uma essência pura, responsável pela inteligibilidade
dos eventos mundanos, os quais, na realidade factual, estariam dispersos. Tal essência
seria o “objeto” apreendido por um sujeito purificado do sensível. Merleau-Ponty rejeita
que se possa conceber um sujeito assim; para o filósofo, tal como apontamos, a
subjetividade humana se realiza pelo corpo, o qual partilha de certas propriedades das
coisas. Como elas, o corpo é um ente visível, tangível, e essa comunidade ontológica
implica que o corpo (e a subjetividade, que por meio dele existe) faz parte do mundo
sensível e não pode, portanto, se definir como puro poder de contemplação.
Dada a impossibilidade de um sujeito puro, não há, por conseguinte, poder
subjetivo capaz de atingir uma essência pura, e essa não realiza nenhuma função
organizadora da experiência humana. É verdade que ainda seria possível postular as
essências puras como entidades pertencentes a uma ordem inteligível, a uma realidade
aquém da compreensão humana. No entanto, além de absolutamente inverificável,
tratar-se-ia de uma hipótese desnecessária para compreender a organização da
experiência. Lembremos que ao postular as essências puras, o objetor pensava desvelar
certos núcleos inteligíveis por meio dos quais os fatos dispersos da experiência seriam
então reunidos em espécies e gêneros. Entretanto, para Merleau-Ponty, a experiência
não é uma aglomeração desordenada de fatos. Com efeito, o filósofo admite que algo
como “idéias” forma a textura da experiência, mas não se trata de entidades
pertencentes a uma ordem diferente da facticidade (Cf. VI, 157). O filósofo se refere a
agrupamentos espontâneos de fatos, os quais indicam haver na experiência certos
204
estilos gerais que funcionam como que uma idealidade primitiva, a qual, do interior do
próprio sensível ordena os eventos mundanos (Cf. VI, 151-2).
Uma das principais tarefas da ontologia final esboçada por Merleau-Ponty é
descrever essa inteligibilidade inerente ao mundo. Sem dúvida, trata-se, assim, de tentar
cumprir a prometida reabilitação ontológica do sensível” (S, 210), antevista nos
últimos trabalhos de Husserl, os quais apontavam para uma camada de fenômenos cujo
sentido não derivava dos atos constituintes da subjetividade, mas formava uma base
necessária para o exercício de tais atos. Uma vez que se reconhecem princípios gerais
de ordenação inerentes ao mundo sensível, então as manifestações fenomênicas não
devem ser apresentadas como eventos separados do sentido (o qual seria atribuído
somente pelas funções da inteligência) e nem como meros índices verificadores da
existência de eventos e coisas, cujas qualificações eidéticas poderiam ser
determinadas pelo exercício intelectual. Carlos Alberto R. de Moura cita essas duas
características rejeitadas por Merleau-Ponty (o sensível como apartado do sentido e
como mera instância de verificação de uma realidade que não explicita suas
qualificações por meio da experiência) como parte da concepção moderna (partilhada,
por exemplo, por racionalistas e empiristas do século XVII) que minimiza a relevância
ontológica do sensível, uma vez que, no geral, esse era concebido somente como signo
de uma realidade que, em si mesma, não se doaria à sensibilidade humana
27
. A
reabilitação ontológica do sensível pretendida por Merleau-Ponty, embora não reduza o
ser àquilo que é percebido, atribui sentido e ordenação espontânea à camada sensível
do ser. O reconhecimento das dimensões invisíveis e idéias sensíveis, conforme
analisamos no quarto capítulo, exemplifica o esforço de atribuir uma inteligibilidade
inerente ao mundo sensível, a qual torna dispensável o apelo a um reino de puras
essências como portador do sentido da experiência.
No final do terceiro capítulo de O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty sustenta
que a explicitação filosófica da inteligibilidade inerente ao ser sensível não é fusão ou
coincidência com a experiência do mundo
28
. Na verdade, essa idéia de coincidência
27
Cf. Moura, C. A. R. de, “Entre fenomenologia e ontologia: Merleau-Ponty na encruzilhada”. In:
Racionalidade e Crise. SP: Discurso e UFPR Ed., 2001, p. 271-293.
28
Merleau-Ponty reconhece que Bergson propõe um tipo de retorno à experiência da duração, mas
esclarece que ao criticar a idéia de fusão não se refere a tal filósofo, o qual teria proposto somente uma
coincidência parcial com o real (Cf. VI, 165), mediada pela linguagem (Cf. VI, 163). No geral, pode-se
afirmar que no terceiro capítulo de O Visível e o Invisível Merleau-Ponty não critica diretamente Husserl
e Bergson, mas parece atacar interpretações distorcidas da fenomenologia e do bergsonismo, quer dizer,
os mitos teóricos (essências inteligíveis e coincidência total) que se criam injustificadamente em torno de
tais doutrinas.
205
gera um dilema insolúvel: ou há a experiência imediata como tal, mas então não poderia
ocorrer sua expressão filosófica (já que essa implica o uso da linguagem, a qual se
interpõe entre o imediato e a consciência do filósofo) ou a expressão filosófica do
imediato, mas então esse último nunca se doa como tal (já que a expressão pode
oferecer uma reconstrução da experiência) (Cf. VI, 160-1). Para escapar de tal dilema, o
filósofo defende, como vimos, um uso especial das operações lingüísticas, de modo a
exibir não só pelo conteúdo, mas pela forma do discurso filosófico a inesgotabilidade do
ser, o qual não é um depósito de coisas inertes, mas um processo de diferenciação de
dimensões por meio das quais os eventos mundanos se ordenam
29
.
No próximo capítulo, exporemos com mais detalhes como o tema da
invisibilidade substancia aquele das dimensões ou essências inerentes ao sensível. Por
ora, bastou-nos acompanhar de que maneira, mediante a crítica de várias doutrinas,
Merleau-Ponty explicita a organização espontânea do mundo sensível. Essa tarefa, que
em seus termos gerais repete aquela da Fenomenologia da Percepção, revela sua
originalidade por tentar respeitar não a abertura para o mundo propiciada pela
perceptiva, mas também o encobrimento do ser. Vejamos a seguir como Merleau-Ponty
tenta elaborar de maneira positiva os dados fornecidos pela fé perceptiva. Acentuaremos
primeiramente o desenvolvimento de noções acerca da abertura para o mundo, e
deixaremos a análise acerca do encobrimento para o final desse capítulo e para o
próximo.
C) A base ontológica da fé perceptiva
A reversibilidade
Merleau-Ponty iniciou O Visível e o Invisível com uma exposição da
perceptiva, ou seja, das “opiniões” transmitidas espontaneamente pela experiência pré-
objetiva. Aparentemente, tratava-se de uma retomada das descrições fenomenológicas
da consciência pré-reflexiva, realizadas pela Fenomenologia da Percepção. Porém,
defendemos que a fé perceptiva não é equivalente a tal consciência, uma tese que
explicitaremos um pouco mais ao analisar alguns tópicos contidos no quarto capítulo de
O Visível e o Invisível.
Nesse capítulo, “O entrelaço, o quiasma”, o enigma de nosso contato perceptivo
com o mundo é finalmente abordado de maneira positiva. De um modo geral, os três
29
“O originário se cliva e a filosofia deve acompanhar essa clivagem, essa não-coincidência, essa
diferenciação” (VI, 163).
206
primeiros capítulos serviram para delimitar o exercício da interrogação filosófica por
contraste com várias tentativas fracassadas de resolver o paradoxo da perceptiva.
no quarto capítulo, Merleau-Ponty exerce tal interrogação de maneira a tornar
compreensível o contato perceptivo dos sujeitos com o mundo. Segundo os dados da
perceptiva, o mundo apresentado pelos sentidos parece repousar em si mesmo,
independentemente da subjetividade, e, no entanto, tudo o que dele se sabe procede de
estruturas perceptivas, as quais, conforme o filósofo admitiu no primeiro capítulo de O
Visível e o Invisível, podem ocultar o ser e não somente revelá-lo. Como é possível
então o mundo doar-se como tal mesmo se se está limitado a estruturas subjetivas? O
problema filosófico da perceptiva é conciliar esses dois aspectos contrários (a
existência independente do mundo e o fato de que tudo o que dele se sabe, mesmo sobre
sua independência em relação aos sujeitos, depende das estruturas perceptivas), que co-
existem harmonicamente na experiência.
A exposição das teorias que falharam em compreender a fé perceptiva ajuda
Merleau-Ponty ao menos a debuxar um formato geral do que ele crê ser o exercício
correto da reflexão filosófica: retorno à experiência por meio de uma expressão
lingüística criadora, que exibe a organização complexa do ser. O filósofo rejeita os
procedimentos reflexivos que resolvem de maneira artificial o paradoxo da
perceptiva, e tenta explicitar pelo uso de novas noções o mecanismo tácito da atividade
perceptiva, no qual jaz o segredo do equilíbrio entre um mundo que não depende de
estruturas perceptivas para existir e que existe, ao menos parcialmente, tal como essas
estruturas o apresentam.
Vimos que Merleau-Ponty rejeitou as respostas extremas ao enigma da
perceptiva: o objetivismo (o mundo é um agregado de objetos absolutamente
determinados e independentes do sujeito) e o subjetivismo (há um sujeito pensante que
reduz tudo aquilo que existe àquilo que se conforma às estruturas intelectuais). Essas
concepções inviabilizavam a própria noção de experiência, a qual parece envolver uma
mistura de objetividade (de um ser independente do sujeito) e subjetividade (de uma
atividade exploratória sobre o ser). Atribuir toda importância a um desses aspectos em
detrimento do outro implica destruir o delicado equilíbrio da experiência: o objetivismo
anula toda contribuição subjetiva à essa última, como se ela se reduzisse a um efeito
direto das condições exteriores
30
. o subjetivismo ignora que o sujeito não é um puro
30
Em muitos momentos de sua obra, Merleau-Ponty considera, contra essa perspectiva, o fato de que as
propriedades do campo fenomenal não são redutíveis àquelas dos estímulos objetivos, o que indica, por
207
poder de contemplação, e que, como sujeito encarnado, faz parte do mundo sensível
sobre o qual se volta.
O objetivismo e o subjetivismo são doutrinas construídas sobre a perceptiva,
mas que não respeitam sua complexidade. Para Merleau-Ponty, uma ontologia
implícita à essa fé, uma certa decodificação do ser, que, uma vez explicitada, tornará
compreensível o aspecto paradoxal da atividade perceptiva e tornadispensáveis essas
doutrinas parciais. A fim de iniciar a exposição da ontologia subjacente à perceptiva,
o filósofo explora a tese de que o corpo faz parte do próprio sensível desvelado pelos
poderes perceptivos. Segundo tal tese, o corpo é um ente visível e tangível que se volta
para o mundo, o qual se compõe de aspectos visíveis e tangíveis (Cf. VI, 180). Dado
que o corpo é semelhante às coisas sobre as quais se volta, segue-se que as suas
estruturas (que possibilitam a experiência) não são somente subjetivas, mas também
partilhadas pelo mundo. Por conseguinte, a experiência não é um impeditivo para a
afirmação de que o mundo existe tal como é, pois as estruturas corporais que sustentam
tal experiência são semelhantes àquelas pelas quais o mundo se organiza (visibilidade,
tangibilidade, por exemplo). As estruturas “subjetivas” fazem parte do ser do mundo e
não poderiam, portanto, impedir que o sujeito tenha acesso àquilo mesmo de que
emerge. O corpo nunca pode estar completamente separado do ser, nunca pode isolar-se
somente em ilusões, pois também é esse mesmo ser, também é visibilidade,
sensibilidade, as quais, por uma reversibilidade inerente à constituição corporal,
voltam-se para o mundo como capacidade ativa de vidência, de tato e, no geral, de
senciência.
O parentesco íntimo entre corpo e mundo impede a redução da atividade
perceptiva a um evento da interioridade psíquica talvez cortado do mundo real, ou seja,
impede o ceticismo radical em relação ao contato pré-reflexivo com o mundo, e torna
legítima a tese de que é o próprio ser (ao menos suas camadas sensíveis) aquilo que o
corpo apreende. Os dois aspectos da perceptiva (apresentar o próprio mundo por
meio de capacidades subjetivas) deixam de ser paradoxais uma vez compreendida a
comunidade genética entre corpo e mundo
31
. O corpo é o local em que ocorre um
notável enrolamento do sensível sobre si mesmo, em que a passividade sensível se torna
conseguinte, que um processo de organização dos dados que se sobrepõe à causalidade linear entre
estímulo e resposta (Cf. SC, 207, PhP 14, PPE, 431).
31
“O corpo nos une diretamente às coisas por sua própria ontogênese, soldando (...) a massa sensível que
ele é e a massa do sensível onde ele nasce por segregação, e para a qual, como vidente, ele permanece
aberto” (VI, 177).
208
atividade senciente. A experiência não é senão essa reversibilidade em ação: os poderes
sencientes do corpo se abrem para um ser do qual ele também faz parte
32
.
Deve-se notar, entretanto, que a reversibilidade entre sensível e senciente não se
realiza nas coisas, as quais são apenas sensíveis. É verdade que Merleau-Ponty parece
atribuir senciência ao mundo, quando, ao comentar a experiência de alguns pintores,
afirma que “vidente e visível se mutuam reciprocamente e que não se sabe mais quem
e quem é visto” (VI, 181). Mas, de fato, o que o filósofo pretende acentuar, e para
isso usa o exemplo dos pintores, é que uma das características do sentir é um grau de
passividade em relação aos objetos sobre os quais a atividade senciente se exerce.
Merleau-Ponty explicita essa característica ao examinar a experiência do tato, na qual
distingue três níveis constituintes do sentir, os quais também seriam encontrados na
visão (Cf. VI, 174-5)
33
:
a) um tocar do liso e do rugoso (apreensão das qualidades táteis), o qual
corresponderia, na visão, à apreensão de cores e formas;
b) um tocar das coisas sobre nós, um sentimento passivo do corpo, como se esse
fosse também tocado por elas. Essa é a característica que, no caso da visão, discutíamos
pouco quanto ao exemplo dos pintores. Será que ela implica haver uma visão das
próprias coisas que revelaria a passividade da visão humana? Na verdade, não se trata
de atribuir vidência aos objetos visíveis, mas somente de esclarecer que o sujeito
também é um ente visível aberto a outras visões possíveis, tal como ainda discutiremos
mais adiante.
c) um tocar do tocar (uma mão pode apalpar a outra), o qual nunca é perfeito, uma
vez que uma mão, ao ser tocada pela outra, deixa de ser tocante e, dessa forma, nunca
há coincidência total entre as duas mãos como órgãos ativos (Cf. VI, 191-2). Em
relação à atividade visual, essa terceira característica corresponde à impossibilidade de
que a visão se apreenda diretamente como ativa. uma auto-referência indireta do
sujeito vidente, o qual por intermédio de espelhos (ou de outros tipos de superfícies que
reflitam a luz), acompanha o próprio movimento dos olhos. No entanto, os olhos são
32
Vale notar que com essa doutrina da reversibilidade, Merleau-Ponty oferece uma justificativa
ontológica para o acordo entre o conteúdo perceptivo e as estruturas mundanas. Na Fenomenologia da
Percepção, como atestamos em nosso primeiro capítulo, apenas se assumia haver um pacto natural entre
corpo e mundo, segundo o qual ocorre a feliz coincidência de que a lógica pela qual os eventos mundanos
se desenrolam é exatamente a gica pela qual os poderes perceptivos apreendem seus dados. Não havia,
naquele livro, nenhuma tentativa de esclarecer quais as condições para que tal pacto se estabeleça,
justamente o que o tema da reversibilidade oferece.
33
Merleau-Ponty não menciona se a audição, o olfato e o paladar são assim constituídos.
209
apreendidos, nesse caso, como algo visível que se move (e não como a própria
capacidade vidente).
Retornemos à segunda característica, o sentimento de passividade do corpo ante
o objeto sobre o qual as capacidades ativas se exercem. Não problema, quanto ao
tato, em admitir que a coisa tocada exerce como que um toque sobre a mão tocante:
trata-se da resistência aos movimentos exploratórios oferecida pelos entes materiais, a
qual obriga o sujeito a se reconhecer como tangível. A dificuldade surge em relação à
visão, pois poder-se-ia julgar necessário que as coisas realmente observassem o sujeito
para que a visibilidade fosse atribuída a esse último, o que não é verdadeiro. Trata-se
somente de defender que a atividade visual implica uma passividade no sentido de que o
vidente também poderia ser observado do ponto de vista daquilo que é visto, mas não
que ele realmente seja observado dali. Para Merleau-Ponty, o exercício da visão implica
que “um outro me veria, instalado no meio do visível” (VI, 175). Esse é o sentido da
passividade sensível no caso da visão. Não se trata, portanto, de atribuir senciência à
paisagem vista, mas apenas de acentuar que o sujeito vidente assume ante ela um ponto
de vista em princípio visível, que ele sofreria a vidência de um outro sujeito ali
localizado
34
.
A carne
Vimos que a reversibilidade entre as dimensões senciente e sensível da
existência encarnada, e a comunidade entre essa última e as propriedades sensíveis do
ser, esclarecem a apresentação do mundo pela perceptiva. Notemos agora que
Merleau-Ponty oferece uma resposta semelhante ao problema da percepção de outrem: a
generalidade sensível do mundo é partilhada por vários corpos humanos
sencientes/sensíveis, os quais se reconhecem mutuamente porque, ao menos nesse nível
geral, não estão plenamente separados
35
. Segue-se que as vivências sensíveis de outrem
não são totalmente inacessíveis, uma vez que a atividade perceptiva de todos os sujeitos
depende de estruturas típicas de sensibilidade, as quais embora não coincidam
plenamente (como os casos de daltonismo facilmente explicitam quanto à visão, por
34
Concordamos com a interpretação desse tema por M. C. Dillon, para quem os objetos visíveis “definem
um ponto de vista sobre [o sujeito] que torna visível para ele algo que de outra maneira permaneceria
invisível seu fora, sua fisionomia, sua presença carnal” (Dillon, M. C. Merleau-Ponty’s Ontology. Ed.
supra, p.161-2).
35
“Não aqui problema do alter ego porque não é o eu que vê, não é ele que vê, e porque uma
visibilidade anônima nos habita a ambos, uma visão em geral, em virtude dessa propriedade primordial
que pertence à carne de, estando aqui e agora, irradiar-se a todo lugar e para sempre; de, sendo indivíduo,
ser também dimensão e universal” (VI, 185).
210
exemplo), desvelam ao menos operações gerais concordantes dos corpos em direção ao
mundo (a visão, a audição, etc.). Essas operações circunscrevem vivências subjetivas
que, em grande medida, são intercambiáveis entre os sujeitos. Isso ocorre porque
uma reversibilidade entre os sujeitos, os quais trocam os papéis ativo/passivo seja no
toque (ao tocar o sujeito B, o sujeito A também se reconhece tocado por B, e vice
versa), na visão (o sujeito A e é visto por B, e vice versa) ou no diálogo (em que A e
B alternam os papéis de falante e ouvinte
36
). Essa partilha das vivências reversíveis
entre os sujeitos implica que a experiência sensível não é somente um evento privado.
Merleau-Ponty a define como “retorno sobre si do visível, aderência carnal do senciente
àquilo que é sentido e deste ao senciente” (VI, 185). A experiência supõe, tal como já
vimos no terceiro capítulo, uma sensibilidade geral do mundo, a qual alimenta
diferentes perspectivas individuais sobre as coisas e os eventos, perspectivas que,
embora não sejam totalmente coincidentes, também não são totalmente excludentes.
A multiplicidade perspectiva atestada pela diversidade de sujeitos perceptivos
não implica a instauração de múltiplos mundos privados inacessíveis. A justificativa
pela qual Merleau-Ponty rejeita tal instauração reproduz no nível intersubjetivo a
comunidade ontológica defendida ao se estudar a relação de um sujeito com o mundo.
Quanto à essa relação, o filósofo sustentou que o sujeito perceptivo se compõe de certas
propriedades mundanas (visibilidade e tangibilidade, por exemplo), e que as
capacidades perceptivas (vidência, tato, e. g.) são somente o inverso de tais
propriedades. A atividade senciente se mostra, assim, invariavelmente ligada a uma
passividade sensível pela qual o corpo compartilha de atributos mundanos. Daí que a
experiência sensível não seja um mero espetáculo privado, mas uma abertura para o
mundo tal como ele é: as estruturas perceptivas responsáveis pela experiência não são
estranhas aos atributos (sensíveis) do mundo, mas se baseiam neles para funcionar, e
não há, assim, nenhum impedimento de princípio para que tais atributos sejam
explicitados por meio delas. Ao apresentar o mundo como sensível, a percepção não
projeta uma camada de aparências psicológicas sobre um ser em si mesmo
incognoscível, mas revela atributos reais que são como aqueles que constituem o
36
Na verdade, segundo A Prosa do Mundo, no diálogo ocorre mais do que essa simples alternância de
papéis: “eu não sou somente ativo quando eu falo, mas eu precedo minha fala no auditor; eu não sou
passivo quando eu escuto, mas eu falo segundo... o que o outro diz. Falar não é somente uma iniciativa
minha, escutar não é sofrer a iniciativa de outro(PM, 200). “Na fala se realiza o impossível acordo de
duas totalidades rivais (...) porque ela (...) nos transforma no outro, e ele em nós, porque ela abole os
limites do meu e do não-meu e faz cessar a alternativa do que tem sentido para mim e do que é não-senso
para mim, de mim como sujeito e do outro como objeto” (PM, 202).
211
próprio corpo percipiente (tangibilidade, visibilidade, etc.). É preciso que haja
visibilidade para que a visão ocorra, ou tangibilidade para que o tato atue, e esses
poderes subjetivos (visão, tato) se abrem justamente para sua contrapartida passiva que
os possibilita (desvelam o mundo como visível, tangível)
37
. De maneira análoga, no
caso da intersubjetividade, as experiências de cada sujeito não são senão diferentes
aplicações do poder senciente sobre uma base sensível comum, partilhada por todos os
corpos percipientes (e pelo mundo). Uma vez que os poderes sencientes surgem da
reversibilidade de certas propriedades passivas universalmente partilhadas, eles não
constituem reinos privados, mas somente diferentes perspectivas perceptivas
transponíveis. Assim, ao menos no nível carnal comunidade entre os diversos
sujeitos.
Essa comunidade sensível entre o mundo e os corpos, responsável tanto por
justificar os conteúdos percebidos quanto a possibilidade de relações intersubjetivas, é
exprimida por Merleau-Ponty pela noção de carne. O vocábulo “carne” normalmente
descreve certos tecidos musculares dos animais e, num sentido mais metafórico e
religioso, indica tudo aquilo que é sensível na existência humana por oposição ao
espírito. Merleau-Ponty utiliza o vocábulo de modo a amplificar esse caráter sensível
tão marcante na existência dos organismos, e aplica-o ao próprio ser. Daí que o filósofo
afirme haver uma carne do mundo (Cf. VI, 297, maio 1960): não se trata, sem dúvida,
de antropomorfismo, de projetar sobre o ser propriedades exclusivas da subjetividade
humana, mas sim de tentar exprimir o caráter sensível partilhado tanto pelo mundo
quanto pelo corpo percipiente
38
. Com a noção de carne, Merleau-Ponty busca captar a
idéia de uma sensibilidade geral que se manifesta em diferentes situações ou entes sem
perder sua unidade
39
.
37
É claro que algumas experiências visuais ou tácteis podem se revelar ilusórias. No entanto, como já
expusemos no início do capítulo, os enganos ocasionais o descobertos justamente quando confrontados
com experiências tomadas como verdadeiras, as quais, por sua vez, se servem da visibilidade e
tangibilidade gerais do mundo como componentes de todas as experiências possíveis.
38
É dessa maneira que Merleau-Ponty conceitualiza a idéia de um ser que se prepara de seu interior para
ser percebido, tal como expôs em seus cursos sobre a natureza (Cf. cap. III).
39
Vale notar que “a carne do mundo não é se sentir tal como minha carne ela é sensível e não
senciente” (VI, 298, maio 1960). Haar formula um incômodo problema quanto a esse ponto: a carne
oferece as condições passivas da experiência (a visibilidade, a tangibilidade). Mas a atividade senciente
não pode ser remetida a tal camada sensível do mundo, de modo que nem todos os atributos do corpo
decorrem dessa camada, a qual deixa então de ser a fonte única da experiência (Cf. Haar, M. Op. cit.,
p.28-31). Seria necessário a Merleau-Ponty esclarecer o que deve se acrescentar à carne sensível para que
surja a senciência, ou seja, explorar o problema para o qual “reversibilidadeé somente um título e não
uma resposta. O filósofo aceita como um fato que o sensível se reverta em seu contrário nos corpos vivos,
mas não explora detalhadamente como isso é possível, nem, no geral, a relação entre vida e senciência
(cf. nota 19 da conclusão para um outro aspecto do mesmo problema).
212
A carne atua como um elemento, no sentido em que os gregos definiam o fogo
ou o ar, quer dizer, ela é um tipo de ser genérico, que compõe os entes mais diversos,
sem se esgotar em nenhum deles. Tomada como elemento, a carne não é identificável a)
nem a uma representação subjetiva, b) nem à matéria. Os argumentos de Merleau-Ponty
para essa tese são os seguintes (Cf. VI, 181-2):
a) O sujeito não se enreda em suas representações, mas as constrói segundo seu
poder intelectual. Porém, em relação à carne, o sujeito está nela inserido, faz parte de
uma membrana sensível que escapa ao seu pleno controle. Daí que a carne não seja
apenas um ente mental. b) Merleau-Ponty entende matéria no sentido de corpúsculos
que se adicionam para formar os objetos. Esses corpúsculos são indivíduos espaço-
temporais. Nesse sentido, a carne não é matéria, pois ela é um estilo de ser geral, que se
encontra em diferentes momentos e lugares, e não um conjunto de indivíduos
40
.
A noção de carne implica o abandono da cisão total entre sujeito e objeto, já que
se trata de um estilo de ser partilhado por ambos. Assim, é verdade que a perceptiva
parecia unir uma tese “objetiva” e uma “subjetiva”, como mencionamos antes. Mas isso
é possível porque antes de assumirem posições antagônicas, sujeito e objeto
compartem um mesmo campo sensível. Daí que Merleau-Ponty alegue que a carne
designa algo que nunca havia sido tratado pela filosofia tradicional (Cf. VI, 181). Não
se trata de exprimir por meio dessa noção uma substância ou mesmo uma região
ontológica particular, mas sim um certo nível de ser, um estrato que envolve diferentes
entes enumerados pelas ontologias clássicas, e que propicia, desse modo, um novo
entendimento das relações entre o ser humano e o mundo. Daí também que o filósofo
não tenha desenvolvido sua ontologia como uma enumeração dos entes que existem,
conforme apontamos na introdução. Essa enumeração poderia ignorar os níveis ou
dimensões pelas quais os entes existem (das quais a carne é um exemplo), dimensões
que elas mesmas não são entes.
Deve-se notar que a descrição da carne não encerra a tarefa da ontologia, como
se o ser se limitasse a tal camada sensível
41
. A noção de carne fornece os fundamentos
ontológicos para compreender como ocorre a abertura perceptiva ao mundo; porém não
40
Merleau-Ponty não expõe: 1) se ele aceita ou rejeita a noção de matéria; 2) se há alguma relação entre a
carne e a matéria, se, por exemplo, a primeira poderia ser alguma propriedade emergente da segunda.
Dado o inacabamento da sua ontologia, não é possível oferecer um esclarecimento seguro para esses
pontos.
41
Tal como parece julgar G. B. Madison, para quem, “a ‘carne’ não é senão o Ser”, “o ser bruto é a
carne” (Madison, G. B. The Phenomenology of Merleau-Ponty. A search for the limits of consciousness.
Ed. supra, p.168).
213
devemos esquecer que concomitantemente a essa abertura, a fé perceptiva também
atestava um encobrimento do ser. A ontologia não pode, assim, se satisfazer em
apresentar o ser que se manifesta, mas deve refletir acerca desse ser que se oculta, tal
como veremos a seguir
42
.
O problema da amplitude do ser
O enigma da fé perceptiva (apresentação do próprio mundo pelas estruturas
subjetivas) é elucidado pela análise da carne, exposta por Merleau-Ponty no quarto
capítulo de O Visível e o Invisível. Como vimos, a homogeneidade carnal entre corpo e
mundo garante que os conteúdos percebidos não são representações dubitáveis, mas
manifestação do estrato sensível comum a ambos
43
. Pode-se aqui objetar que a
caracterização ontológica proposta por Merleau-Ponty se limita a enraizar no mundo
propriedades que são reconhecíveis subjetivamente (visibilidade, tangibilidade, etc.), de
modo que ainda se continua a tomar os dados da consciência perceptiva como modelo
para a definição do ser, exatamente como ocorria na Fenomenologia da Percepção.
Dessa maneira, o ser ainda seria concebível como ser perceptível, e, por conseguinte, as
críticas sofridas por Merleau-Ponty nos anos quarenta ainda seriam válidas.
A objeção em pauta defende que as teses ontológicas de O Visível e o Invisível
se limitam a confirmar a correlação entre o corpo senciente e o mundo sensível, insígnia
da Fenomenologia da Percepção. A fim de rejeitar essa conclusão, lembremos, em
primeiro lugar, que Merleau-Ponty acentua com veemência que sua caracterização do
ser carnal não é antropológica, não é uma narrativa das projeções humanas sobre o
mundo (Cf. VI, 177). Sua tese é que o corpo não é um centro de atividade pelo qual
toda paisagem percebida se manifesta como tal, mas que ele participa passivamente do
próprio mundo enquanto corpo tangível, visível, em suma, enquanto ente sensível.
Importa aqui notar que o caráter sensível do corpo não é uma propriedade meramente
subjetiva, mas uma característica partilhada por ele e pelas coisas. Assim, a gênese
dessa comunidade não se encontra mais na função de projeção do corpo, a qual
42
Saint-Aubert, que estudou minuciosamente os inéditos de Merleau-Ponty, afirma que o nenhuma
menção em todos os escritos do filósofo francês a uma “ontologia da carne” (Cf. Saint-Aubert, E. Vers
une Ontologie Indirecte. Ed. supra, p.148). Quer dizer que a ontologia pretendida por Merleau-Ponty não
pode ser adequadamente qualificada como estudo da camada sensível mundana descrita pela carne. Por
sua vez, esse filósofo menciona muitas vezes o projeto de uma ontologia do ser bruto ou selvagem, quer
dizer, do ser que não foi ainda filtrado pelas capacidades subjetivas, sejam elas intelectuais ou mesmo
perceptivas. Parece, assim, que o ser estudado por Merleau-Ponty não se limita ao ser perceptível.
43
A experiência sensível exibe “a pertença do corpo ao Ser e a pertinência corporal de todo ser que me é
de uma vez por todas atestado pelo visível” (VI, 156).
214
atribuiria ao mundo o caráter sensível
44
, e sim nas propriedades sensíveis do próprio ser.
Para O Visível e o Invisível, é porque o ser é sensível que o corpo pode então se voltar
para ele. Essa tese inverte aquela da Fenomenologia da Percepção, segundo a qual
porque o corpo se volta para o ser e encontra caracteres sensíveis, então este último
deve ser definido como ser sensível ou percebido. Em O Visível e o Invisível, o filósofo
admite explicitamente que as coisas, mesmo se elas gravitam em torno dos poderes
corporais, “não pressupõem o homem” (VI, 269, nov. 1959), quer dizer, as coisas não
existem como entes sensíveis por causa dos atos perceptivos; pelo contrário é porque
elas são entes sensíveis que os atos perceptivos podem se exercer corretamente e
apresentar o mundo
45
.
Embora as condições da atividade perceptiva tenham sido remetidas ao ser (o
qual seria nele mesmo sensível) e não mais derivem das capacidades corporais, a
objeção em pauta ainda poderia ser sustentada. Afinal, pode-se pensar que as análises
ontológicas de O Visível e o Invisível apenas complementam as descrições sumárias do
ser exterior com o qual as capacidades perceptivas deveriam se sincronizar, conforme
apresentado pela Fenomenologia da Percepção (Cf. PhP, 247). Vimos, no primeiro
capítulo, que Merleau-Ponty não negava, nos anos quarenta, a existência do ser do
mundo, mas que o identificava àquilo que poderia se manifestar para as capacidades
perceptivas (Cf. PhP, 455). Parece que em O Visível e o Invisível, ao caracterizar o
mundo como carne sensível, Merleau-Ponty confirmaria integralmente sua posição
215
processos reflexivos (Cf. VI, 207-208); ela não se limita, assim, a registrar os dados
sensoriais positivamente apreendidos. Daí que no anexo de O Visível e o Invisível,
Merleau-Ponty, ao assumir novamente que a meta da interrogação filosófica é descrever
o ser com o qual se tem contato originário, afirme que tal meta não implica reduzir o ser
àquilo que pode figurar em uma vivência perceptiva. A seguinte passagem sobre o tema
é esclarecedora: “não está nem mesmo excluído que encontrássemos [na experiência]
um movimento em direção aquilo que em nenhum caso poderia estar presente a nós no
original e cuja ausência irremediável incluir-se-ia, assim, no número de nossas
experiências originárias” (VI, 209). Merleau-Ponty admite aqui a possibilidade de que
não apenas aquilo que se apresenta de maneira positiva seja doado de maneira
originária, mas também aquilo que se ausenta. Quer dizer que pode haver ser para além
do que se doa positivamente como conteúdo de uma experiência perceptiva. Essa era
exatamente a possibilidade explicitada pela ocultação do ser inerente à fé perceptiva:
reconhecimento de camadas ontológicas que se ausentam da apreensão direta propiciada
pelas capacidades perceptivas, as quais se voltam apenas para a carne sensível do ser.
Com a noção de reversibilidade, Merleau-Ponty sustenta que a experiência de fato é
uma abertura para o ser e que, no interior dela, pode-se distinguir entre fenômenos
verídicos e ilusões. Mas nada disso implica, porém, que as características apreendidas
perceptivelmente circunscrevem a totalidade daquilo que é. O ser não só se mostra para
a perceptiva, mas também se encobre perante ela. Esse encobrimento, que exige um
método indireto para ser investigado (já que seu conteúdo justamente não se doa
diretamente às capacidades perceptivas) será tematizado ao Merleau-Ponty estudar, por
exemplo, as dimensões invisíveis pelas quais os fatos se organizam, e, no geral, por
todos os aspectos negativos do ser, quer dizer, aqueles que não se reduzem aos dados
apreendidos de maneira positiva pela percepção. Vimos que ao analisar a experiência da
doação originária na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty recebeu diversas
críticas por haver assumido um certo idealismo subjetivista. Em O Visível e o Invisível,
ao retomar o projeto de estudar a doação originária, Merleau-Ponty antecipa a
objeção de idealismo
46
. Veremos, na conclusão de nosso trabalho, que em sua resposta a
tal objeção Merleau-Ponty reconhece uma maior amplitude do ser em relação às
propriedades perceptivelmente apreensíveis, de maneira a romper com o pendor
idealista da ontologia contida na Fenomenologia da Percepção.
46
“O propósito de perguntar à própria experiência seu segredo não é já uma decisão [parti pris]
idealista?” (VI, 209).
Conclusão – Uma concepção de ser renovada
Sinopse
Neste capítulo final, retomamos inicialmente os problemas filosóficos derivados da tese
de que o ser se limita ao que é apreensível pelas capacidades perceptivas, defendida na
Fenomenologia da Percepção. Em seguida, analisamos, em duas partes, como, em sua
ontologia ulterior, Merleau-Ponty resolve os inconvenientes de sua posição inicial. Na
primeira delas, expomos como a noção de carne fornece uma justificativa, obtida por
uma metodologia indireta, ao papel de cânone ontológico atribuído à percepção. Na
segunda, mostramos como Merleau-Ponty complementa a noção de carne com a idéia
de uma negatividade ontológica, a qual evita a redução do ser àquilo que é perceptível.
A) Retomada geral
O problema do idealismo
No primeiro capítulo, vimos que longe de se limitar a uma descrição da
experiência subjetiva, a Fenomenologia da Percepção envolve reflexões ontológicas,
pois descreve os fenômenos como um modo de ser originário em relação à objetividade
e à subjetividade. Com efeito, uma das principais metas desse livro era mostrar como o
ser, antes de limitar-se a um conjunto de objetos absolutamente independentes ou de
representações subjetivas, manifesta-se como ser percebido, quer dizer, como um
campo de configurações fenomenais pré-objetivas, que estariam correlacionadas aos
poderes intencionais pré-subjetivos do corpo próprio. No entanto, desde logo depois de
sua publicação, a Fenomenologia da Percepção recebeu várias críticas, dentre as quais
utilizamos aquelas de Alquié e Desanti como ponto de partida para explicitar como
Merleau-Ponty involuntariamente acaba por se filiar, nesse livro, ao idealismo
subjetivista, concepção segundo a qual o ser se limita ao que a percepção humana pode
apreender
1
.
A incômoda proximidade com o idealismo, explicitamente rejeitada por
Merleau-Ponty, torna-se evidente (segundo nossa interpretação) ao se analisar suas teses
acerca do passado
217
concebidos como eventos que são visíveis, audíveis, etc.). Assim, a existência de tais
eventos só poderia nos aparecer como aquela de entes culturais construídos conforme as
habilidades perceptivas humanas. Pareceu-nos, assim, que Merleau-Ponty, na
Fenomenologia da Percepção, não dispõe de instrumentos teóricos que lhe permitam
admitir a existência autônoma dos eventos constituintes do passado do mundo. Nesse
livro, o filósofo silencia acerca da existência dos processos anteriores à vida humana
tomados por si mesmos, ou seja, acerca de tais processos considerados
independentemente da concepção que os seres humanos deles formulam (e, da mesma
forma, Merleau-Ponty também não problematiza adequadamente o tema da existência
autônoma de qualquer dimensão ou componente do mundo de direito invisível). Essa
lacuna na concepção ontológica contida em tal obra legitima as críticas de idealismo
recebidas.
O itinerário de Merleau-Ponty
Conforme mencionamos no primeiro capítulo, Merleau-Ponty jamais
pretendeu desenvolver uma doutrina idealista. Para ele, a interpretação de seu projeto
filosófico como idealismo é um grave mal-entendido. Entretanto, o filósofo chega
mesmo a admitir que, tal como formulado na Fenomenologia da Percepção, seu projeto
filosófico poderia ser de fato interpretado erroneamente, e que era necessário esclarecer
sua intenção filosófica (Cf. VI, 228, 234, fev. 1959).
Acompanhamos, a partir do segundo capítulo, o percurso de Merleau-Ponty para
o amadurecimento de sua reflexão ontológica, de modo a suprir as lacunas teóricas da
Fenomenologia da Percepção. Interessou-nos particularmente acentuar as diversas
linhas de trabalho pelas quais Merleau-Ponty aperfeiçoa a posição filosófica exposta na
Fenomenologia da Percepção (Cf. cap. III, IV, V). Além disso, tentamos esclarecer em
que medida, por meio da ampliação do escopo de sua investigação (de modo a enfatizar
notadamente a linguagem), o filósofo elabora uma refinada concepção da expressão
filosófica (Cf. cap. II), a qual é aplicada na formulação dos principais tópicos de sua
obra final, O Visível e o Invisível (Cf. cap. VI). Cumpre-nos agora expor de modo mais
sistemático as principais teses da ontologia final de Merleau-Ponty, e esclarecer em que
medida elas resolvem os problemas da sua ontologia fenomenológica inicial.
218
Servimo-nos, como texto básico para tal exposição, das notas de trabalho dos
últimos anos de vida do filósofo
2
. Essa opção se justifica porque tais notas, mesmo não
tendo sido escritas para publicação, registram a vivacidade das reflexões finais do autor.
O fato de que tais reflexões não chegaram a se completar devido à morte prematura do
filósofo ainda mais nos obriga a apelar a tais notas, que por meio delas dispomos de
um registro pelo qual a imagem geral da sua última ontologia pode ao menos
parcialmente ser restituída. Deve-se observar também que as notas de trabalho são
contemporâneas de outros textos ou cursos escritos por Merleau-Ponty
3
. A sua escolha
como texto de base para este último capítulo se deve, assim, à possibilidade de
confirmar (mas também de esclarecer e, nesse sentido, ampliar) as principais teses
ontológicas expostas nesses outros textos, os quais, ao menos em sua maioria, foram
estudados por nós nos capítulos anteriores deste trabalho.
B) A carne
O método indireto da ontologia
Vimos, no primeiro capítulo, que Merleau-Ponty nos anos quarenta buscava
descrever um nível ontológico pré-objetivo (que não se confunde com as propriedades
objetivas estudadas pelas ciências) e pré-subjetivo (que não se confunde com as idéias e
representações da consciência cognitiva) (Cf. PhP, 73-77). Tal nível era então descrito
como campo fenomenal, quer dizer, como campo de “aparências” que ainda não são
puros objetos e cujo aparecer está relacionado com as estruturas perceptivo-motoras da
vida corporal anônima. Defendemos, ainda no primeiro capítulo, que mesmo não tendo
apresentado esse campo originário como uma criação subjetiva, Merleau-Ponty ainda se
mantém preso, na Fenomenologia da Percepção, a uma postura idealista, que nessa
obra o ser manifestado por tal campo se define em termos daquilo que é perceptível pela
subjetividade humana. Essa conseqüência é confirmada por Merleau-Ponty no artigo “O
metafísico no homem”, de 1947, em que reconhece como fato fundante de sua
investigação ontológica (designada então como metafísica) a asserção de que ser
para mim (Cf. SnS, 114). Assim, Merleau-Ponty concedia, nessa época, uma
2
Além das notas publicadas em O Visível e o Invisível, utilizaremos algumas notas inéditas transcritas por
Renaud Barbaras e gentilmente cedidas para pesquisa. A fim de que os leitores apreciem de maneira
independente esses textos, reproduzimos, no apêndice, em sua integridade (ou ao menos os excertos
principais, como no caso do item a) as notas inéditas citadas neste trabalho.
3
As notas a serem citadas aqui foram compostas entre 1958 e 1961. Nesses anos, Merleau-Ponty
ministrou cursos sobre a natureza, sobre Husserl e sobre a possibilidade da filosofia. Além disso, publicou
O Olho e o Espírito e escreveu artigos importantes tais como “O filósofo e sua sombra”.
219
proeminência tal à subjetividade encarnada de maneira a atribuir a ela o papel de única
medida pela qual se poderia decidir sobre o que existe e o que não existe.
Em algumas notas inéditas do final dos anos cinqüenta, um caminho alternativo
para o desenvolvimento da ontologia é indicado: “nossa corporeidade: não colocá-la no
centro como eu fiz na Fenomenologia da Percepção
4
, apresenta uma delas. Em outra
nota, Merleau-Ponty analisa possíveis caminhos para progredir em suas reflexões
ontológicas. Um deles é o seguinte: “partir dos resultados da Fenomenologia da
Percepção e mostrar que é necessário transformá-los em ontologia: 1/ passar da
afirmação do ‘percebido’ àquela do Ser bruto, 2/ passar da idéia do corpo como sujeito
àquela do ser indiviso”
5
. Nessas duas notas, Merleau-Ponty exprime sua intenção de
rejeitar o papel central atribuído à subjetividade encarnada para então poder avançar em
seu projeto de descrever um campo de ser anterior à cisão entre sujeito e objeto. Um
contraste com a Fenomenologia da Percepção tornará clara a intenção filosófica em
pauta aqui. Segundo o livro de 1945, “o corpo próprio está no mundo como o coração
no organismo: ele mantém continuamente em vida o espetáculo visível, ele o anima e o
nutre interiormente, e forma com ele um sistema” (PhP, 235). Quer dizer que os
aspectos sensíveis do mundo se ordenam em função da atividade corporal, a qual
condiciona a própria existência dos espetáculos visíveis. Já em O Visível e o Invisível,
Merleau-Ponty assume a tarefa de “descrever o visível como algo que se realiza por
meio do homem, mas que não é absolutamente antropológico” (VI, 322, março 1961).
Aqui, os espetáculos visíveis (e, no geral, os aspectos sensíveis do mundo) são
considerados anteriores e independentes das capacidades subjetivas. Embora se realizem
por meio de tais capacidades (ou seja, se manifestem ao sujeito como sensíveis), tais
aspectos são tratados como componentes inerentes do ser do mundo e não pressupõem a
subjetividade para existir.
Notemos, tal como Merleau-Ponty anuncia em uma das notas inéditas citada
acima, que a alternativa vislumbrada ante a rejeição da centralidade do corpo é o ser
bruto ou indiviso. Quer dizer que o estudo desse ser não está comprometido com a
perspectiva teórica que se limita a investigar aquilo que se manifesta para as
capacidades corporais. Segundo Merleau-Ponty, essa perspectiva é aquela da
fenomenologia. Essa doutrina, defende o filósofo, pressupõe uma ontologia segundo a
qual tudo o que existe deve se apresentar à consciência como elo numa cadeia
4
Nota n.50, sem data, agrupada ao esboço de Être et Monde. Ver item a do apêndice.
5
Texto n.13 (Mercredi, 7/10/58 [?]). Ver item b do apêndice.
220
interminável de vivências ordenadas segundo uma temporalidade imanente (Cf. VI, 293,
abril 1960). Embora ao mencionar tal ontologia Merleau-Ponty se dirigisse
explicitamente aos textos de Husserl, é possível nela reconhecer algumas teses da
Fenomenologia da Percepção, obra segundo a qual a consciência perceptiva anônima
porta em si as estruturas pelas quais todo ser possível pode se manifestar (Cf. PhP, 377,
411, 490). Assim, romper com o papel central da subjetividade encarnada, tal como as
notas inéditas citadas no parágrafo anterior sugerem, implicará distanciar-se da análise
fenomenológica. Trata-
221
fenômeno percebido não segue pontualmente os estímulos percebidos e se organiza
segundo uma lógica própria (Cf. PhP, 14). Por conseguinte, conforme essas asserções
do próprio Merleau-Ponty, o campo fenomenal não reproduz fielmente o ser motivador
da percepção, mas impõe-lhe parâmetros próprios de organização dos dados
assimilados. Essa tese implica que a mera descrição direta dos dados percebidos não
basta para explicitar todas as características do ser do mundo, de modo que uma
ontologia não pode se fiar apenas em tal descrição. Vimos, ao analisar a Fenomenologia
da Percepção, que, descrito por meio dos resultados da atividade perceptiva, o ser do
mundo se limitava àquilo que podia figurar no fluxo de vivências subjetivas, e era, desse
modo, identificado ao mundo fenomenal percebido. Com tal postura, Merleau-Ponty
parecia então filiar-se ao idealismo subjetivista. Porém, nos anos cinqüenta, o filósofo
desenvolve uma nova abordagem ontológica e busca analisar de maneira autônoma esse
ser de que a percepção se origina, sem sobrepor a ele (ao menos não de imediato), os
resultados da vida perceptiva.
Aqui cabe perguntar como deve proceder uma ontologia que rejeita a descrição
fenomenológica das vivências subjetivas como principal procedimento metodológico.
Numa nota de fevereiro de 1959, publicada em O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty
enaltece o método científico que considera como desconhecidos os temas a serem
estudados. Por exemplo, ao examinar as estruturas da linguagem, o lingüista
desconsidera o fato de que tais estruturas são vividas pelos próprios cientistas. Dessa
maneira, é possível descobrir condicionantes inaparentes de tais estruturas, os quais
seriam indevidamente ignorados caso se acentuasse em demasia a vivência subjetiva de
tais estruturas (Cf. VI, 232-3, fev. 1959). Segundo Merleau-Ponty, esse distanciamento
metodológico do tema a ser estudado é um dos principais componentes de toda reflexão
crítica (VI, 233, fev. 1959), e serve de modelo para os esforços filosóficos. Por
conseguinte, a análise filosófica não deve se limitar a uma descrição fenomenológica do
fluxo subjetivo de vividos
9
. Com efeito, o estudo do ser bruto pretendido por Merleau-
Ponty não será derivado da descrição das experiências vividas, mas será realizado por
meio de uma restituição indireta da camada originária que alimenta a vivência
subjetiva. Trata-se de aproximar-se do ser por meio dos seres, ou seja, por meio de
diversos estudos dos entes do mundo (estudos científicos e artísticos, por exemplo).
Esses estudos auxiliam a romper com definições dogmáticas do ser, baseadas apenas na
9
“Essa reflexão não é, não pode ser limitação à fenomenologia dos Erlebnisse [vivências]. (...) A filosofia
não tem nada a ver com o privilégio dos Erlebnisse, da psicologia da vivência, etc.” (VI, 233, fev. 1959).
222
descrição direta das vivências, e também indicam diversos tópicos a serem
desenvolvidos pela filosofia
10
. A própria escrita filosófica deve reproduzir esse
movimento argumentativo indireto. Segundo Merleau-Ponty, quando se tenta
caracterizar positivamente o ser (para além da contribuição no geral negativa das
ciências), não se deve buscar traduzir uma experiência privilegiada do ser, um contato
direto com as estruturas ontológicas do mundo, mas sim tentar fixar um estado de coisas
ao qual não se tem acesso claro antes da sua expressão (Cf. cap. II).
Lembremos, como já expusemos no quarto capítulo, que o método indireto já era
utilizado por Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção. No entanto, tal método
não contribuía para a definição de ser ali em vigor, a qual derivava da identificação
daquilo que é àquilo que se manifesta à consciência perceptiva (Cf. PhP, 455). É nesse
sentido que a ontologia daquele texto é fenomenológica: a compreensão geral de ser
decorre de uma análise daquilo que se fenomenaliza para a consciência humana. Já nos
anos cinqüenta, a concepção de ser não se segue de uma análise daquilo que se
apresenta diretamente à consciência subjetiva, mas de uma investigação de diversos
índices sugeridos pelas ciências e artes em geral. Aplica-se assim o método indireto para
a própria definição do que se compreende por ser.
A sensibilidade intrínseca ao ser
O rompimento com a familiaridade da vivência subjetiva (marca distintiva do
método indireto), e o conseqüente abandono da descrição da experiência perceptiva
como caracterização do ser, não implicarão, entretanto, admitir que o ser é
essencialmente estranho à subjetividade e que todo contato entre ambos é contingente.
Merleau-Ponty pretende que o rompimento inicial com os dados fenomenológicos (de
modo a rejeitar a centralidade da vida subjetiva e as conseqüências idealistas daí
decorrentes) estabeleça uma familiaridade entre o sujeito e o ser ainda mais
fundamental
11
do que aquela derivada da definição do ser como ser para mim (definição
segundo a qual tudo aquilo que existe se conforma aos parâmetros de apreensão
subjetiva de dados sensíveis). O estabelecimento dessa nova familiaridade ocorre
porque em vez de tomar o escopo de atuação das capacidades perceptivas como a
10
Conforme vimos no quarto capítulo, não teses ontológicas prontas nas ciências ou artes, mas sim
índices de uma concepção ontológica que cabe à filosofia desenvolver.
11
“Essa abstenção de toda Einfühlung [empatia] com a linguagem, com os animais, etc. reconduz a uma
Einfühlung superior, é destinada a torná-la possível” (VI, 233, fev. 1959).
223
extensão daquilo que existe, Merleau-Ponty passa a buscar a gênese da própria
sensibilidade nos padrões de organização inerentes ao mundo.
Essa mudança de perspectiva metodológica implica, na verdade, a inversão do
procedimento fenomenológico (que partia da experiência para então qualificar o ser
como aquilo que é percebido). Tal inversão é tornada clara em duas notas de trabalho.
Num texto inédito de 1958, Merleau-Ponty considera algumas maneiras de retomar os
resultados da Fenomenologia da Percepção e avançar para além deles. Uma das
alternativas seria reconhecer que o ser “é, não o percebido, mas isto em vista do que
percepção”
12
. Uma nota de novembro de 1959, publicada em O Visível e o Invisível,
exprime a mesma idéia. Segundo esse texto, “o próprio do percebido: estar já aí, não ser
pelo ato de percepção, ser a razão desse ato” (VI, 268). Essas duas notas esclarecem que
não se deve caracterizar o ser como sensível apenas porque ele é efetivamente
percebido assim pelo corpo, como se a subjetividade humana tivesse o poder de atribuir
essa propriedade às coisas e ao mundo. Pelo contrário, é porque o ser é em si mesmo
visibilidade, sensibilidade latente, que a percepção pode então se exercer e confirmar o
caráter sensível do mundo. Desse modo, porque se organiza autonomamente como
sensível, o ser, longe de se opor à subjetividade (como a clássica cisão entre sujeito e
objeto levava a supor), é aquilo que prepara, do seu interior, a sua apreensão subjetiva
13
.
Quer dizer que o ser é solidário com uma visão sobre o ser, no sentido de que há uma
sensibilidade inerente ao mundo, a qual se doa para o foco subjetivo, que então a
recolhe
14
. Merleau-Ponty assevera em uma nota inédita que essa concepção do ser como
sensibilidade iminente “incorpora o homem na definição do mundo, faz aparecer o
homem como ingrediente do mundo, pedaço do mundo que se dobra sobre si próprio”
15
.
A percepção humana é, segundo essa perspectiva, parte de um processo de manifestação
sensível inerente ao próprio ser.
Essa última sentença permite comprovar que a ontologia indireta de Merleau-
Ponty cumpre a promessa de revelar uma familiaridade originária entre a experiência
humana e as estruturas ontológicas do mundo (Cf. VI, 233, fev. 1959). Lembremos que
a ontologia derivada das descrições da Fenomenologia da Percepção limitava-se a
caracterizar o ser como aquilo que se apresentava às capacidades subjetivas de
12
Nota 12b, ver item c do apêndice.
13
O ser “não se opõe ao para si”, mas, antes, “só tem coesão para um si” (VI, 250, julho 1959).
14
Aqui vale retomar os exemplos de mimetismo (cf. cap. III), fenômeno que evidencia que um dos fatores
de organização das formas animais é o fato de que elas serão vistas por outros animais.
15
Nota 12 de um grupo de 22. Ver item d do apêndice.
224
apreensão perceptiva (Cf. PhP, 455). O ser era então reduzido ao ser perceptível apenas
porque esse era o limite que as estruturas do corpo podem apreender. Por sua vez, os
estudos tardios da ontologia indireta mostram que não é somente por essa razão que se
deve conceber o ser como ser perceptível, mas sim em razão da própria arquitetônica
interna ao mundo. Nos textos tardios de Merleau-Ponty, a tese de que o ser é por sua
própria organização sensível não decorre de uma análise direta dos conteúdos positivos
da experiência perceptiva, mas é justamente a tese que legitima a pretensão de que tais
conteúdos revelem o ser tal como ele é.
Notemos que, por meio do método indireto, Merleau-Ponty admite claramente a
independência do ser em relação à existência humana, assunção que, conforme nosso
primeiro capítulo, não estava posta de uma maneira clara na Fenomenologia da
Percepção
16
. Nos anos finais, para se afirmar que ser não é necessário reconhecer
haver uma correlação com as capacidades perceptivas humanas. No entanto, o
reconhecimento de tal independência não significa reatar com uma concepção
objetivista do em-si, a qual definiria o ser como conjunto de propriedades físico-
químicas inatingíveis pela atividade perceptiva humana
17
. Assim, Merleau-Ponty admite
que o mundo existe de maneira autônoma; mas também sustenta que em seu próprio
desenvolvimento o mundo se abre para uma perspectiva subjetiva, constitui-se como
algo que se doa a aparelhos perceptivos, os quais, como vamos enfatizar a seguir, não
são algo estranho ao ser do mundo, mas estruturas que partilham do seu estofo
ontológico
18
.
16
Numa nota publicada de novembro de 1959, Merleau-Ponty reconhece que “as coisas o pressupõem
o homem” (VI, 269). Numa nota inédita, afirma “a anterioridade do em-si sobre o para-si” (nota 40b, de
1955; ver item e do apêndice).
17
Na mesma nota inédita de 1955, Merleau-Ponty assevera: “esse em-si, eu me nego a concebê-lo como o
faz o realismo dos cientistas, eu digo que em sua própria textura ele reenvia a meu (um) centro de
perspectiva, que deve se conceber em termos de espetáculo percebido” (nota 40b, ver item e do apêndice).
18
O movimento argumentativo que localiza no próprio ser as bases pelas quais as capacidades humanas
podem ser exercidas aproxima Merleau-Ponty da última filosofia de Heidegger, o qual, após a famosa
Kehre, passou a priorizar o auto-desvelamento do ser e não mais o Dasein humano como o ente pelo qual
se poderia compreender tal desvelamento. Michel Haar defende que Merleau-Ponty parece ter retido da
ontologia heideggeriana somente “o esquema regulador da prioridade do Ser sobre o homem” (Haar, M.
“Proximité et distance vis-à-vis de Heidegger chez le dernier Merleau-Ponty”. Ed. supra, p.14), já que a
problemática de um ser sensível que contém o estofo de todas as estruturas ulteriores (Cf. VI, 250, julho
1959) é estranha a Heidegger. Saint-Aubert confirma a tese de Haar ao notar que, nos anos finais,
Merleau-Ponty de fato assume alguns termos do léxico heideggeriano, mas apenas como instrumentos
para desenvolver uma reflexão própria, sem se preocupar em filiar-se às posições do filósofo alemão (Cf.
Saint-Aubert, E. Vers une Ontologie Indirecte. Ed. supra, p.103).
225
A comunidade carnal entre sujeito e mundo
A caracterização do ser como inerentemente sensível é uma tese filosófica pela
qual Merleau-Ponty pretende superar a cisão entre sujeito e objeto em que a
Fenomenologia da Percepção teria ficado presa (Cf. VI, 250, julho 1959). Segundo sua
ontologia final, o ser sensível contém as condições da sensibilidade posteriormente
exercida pelo sujeito perceptivo. Dessa maneira, ao incluir a sensibilidade na definição
do ser, Merleau-Ponty desvela um campo ontológico que antecipa as capacidades
subjetivas sem se reduzir a um constructo subjetivo (já que tal campo existe de maneira
autônoma e não apenas por ser correlato da experiência subjetiva). Por sua vez, esse
campo de ser sensível não se reduz à pura objetividade, noção que excluía as
características sensíveis do ser mundano e as concebia como efeito psicológico da
relação entre sujeito e ambiente.
Notemos que a atribuição de sensibilidade ao ser permite esclarecer a relação
perceptiva estabelecida entre o sujeito e tal ser sensível. De início, a afirmação de que o
ser se prepara do seu interior para se manifestar a uma subjetividade, de que o ser se
dirige para um foco de visão, pode alimentar a incômoda suspeita de que tal foco não
faz parte desse ser que se revela, o que reinstalaria um tipo de dualismo substancial.
Contra essa suspeita, Merleau-Ponty elabora a tese da sensibilidade inerente ao ser por
meio da noção de carne. Tal como vimos em nosso capítulo anterior, com essa noção,
tenta-se captar a sensibilidade geral partilhada pelo corpo humano e pelo mundo, ou
seja, a comunidade de fundo entre os pólos subjetivo e objetivo. Não basta, assim,
mostrar que o ser é sensível e se abre para uma apreensão subjetiva; trata-se de
esclarecer que o sujeito perceptivo se compõe dessa mesma sensibilidade inerente ao
mundo. A subjetividade humana não é, segundo tal perspectiva, um puro exercício de
poderes intencionais completamente heterogêneos às estruturas do mundo, mas é fruto
da concentração de tais estruturas em um ente particular (o corpo percipiente). É
verdade que o corpo, pondera Merleau-Ponty, o se reduz a uma coisa sensível em
meio a outras coisas, pois é o mensurador geral pelo qual todas as coisas aparecem
como percebidas (Cf. VI, 297, maio 1960). No entanto, o filósofo assevera: “é pela
carne do mundo que se pode afinal de contas compreender o corpo próprio” (VI, 299,
maio 1960), ou seja, é apenas porque um ser que em si mesmo é sensibilidade
iminente (carne do mundo) que a carne corporal pode exercer seu papel ativo. Dessa
maneira, com a noção de carne Merleau-Ponty pretende finalmente ter se esquivado da
226
cisão entre sujeito e objeto sem favorecer nenhum desses termos extremos, mas por
reconhecer o elemento comum de que ambos derivam
19
.
Por meio da noção de comunidade carnal entre corpo e mundo, Merleau-Ponty
pretende corrigir ao menos mais um problema localizado por ele mesmo na
Fenomenologia da Percepção. Em O Visível e o Invisível, o filósofo admite que seu
livro anterior se mantém ao menos em parte filiado à filosofia da consciência (Cf. VI,
237, fev. 1959), ou seja, a uma filosofia que prioriza a subjetividade reflexiva na
compreensão quer do contato de si com o mundo quer do contato de si consigo. Na
Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty combate de maneira explícita o primado
da consciência reflexiva quanto ao contato humano com o mundo
20
. No entanto, no que
se refere ao contato da subjetividade consigo, Merleau-Ponty de fato parece ainda
admitir um contato direto consigo. Essa seria a conseqüência da assunção da idéia de
cogito tácito naquela obra. Com tal idéia, Merleau-Ponty pretendia garantir que a
subjetividade integrasse os diversos episódios de sua vida de modo a apreender-se a si
própria, do seu interior, como una. Segundo a Fenomenologia da Percepção, essa
apreensão não ocorre de maneira transparente, quer dizer, por meio de uma reflexão que
ativamente sintetizaria todas as vivências particulares. Haveria uma remissão
espontânea de todas as vivências particulares à abertura perceptiva geral pela qual o
sujeito se relaciona com seu ambiente. Essa abertura geral conteria em si mesma o
projeto de toda manifestação fenomênica possível, quer dizer, um repertório de
capacidades por meio das quais toda configuração perceptiva pode ser assimilada pelo
19
Michel Haar não se convence de que tal resultado tenha sido obtido por completo. Como vimos,
Merleau-Ponty teria localizado a gênese das capacidades perceptivas no próprio ser, de modo a dar um
caráter secundário à atividade subjetiva em relação à sensibilidade inerente ao mundo. Para Haar, “a
essência dessa subjetividade descentrada que não tem mais a iniciativa da síntese perceptiva, e nem da
fala ou do pensamento, do mesmo modo que ela não se deu a vida permanece totalmente não pensada”
(Haar, M. Art. cit.., p.22-3). Segundo Haar, a insuficiência de Merleau-Ponty em conceber
adequadamente o modo de ser da subjetividade descentrada torna-se explícita, por exemplo, na sua
exposição da senciência. Como dissemos, Merleau-Ponty pretende exibir as condições da percepção na
sensibilidade inerente ao ser. Mas essa sensibilidade é eminentemente passiva e a percepção, por sua vez,
se exerce de modo ativo, como senciência. Merleau-Ponty apenas menciona que a senciência resultaria de
uma parte sensível do mundo (o corpo próprio) voltar-se para o resto do mundo (Cf. VI, 299, maio 1960),
mas não esclarece o que é esse voltar-se, ou seja, como a atividade surge de um ser passivo. Haar
problematiza a posição de Merleau-Ponty ao perguntar: se a carne do mundo é só sensível e não senciente
(Cf. VI, 298, maio 1960), se “ela tem menos atributos que meu corpo, como é possível lê-la como uma
matriz e um meio’ universal, um ‘elemento’? Como afirmar que ‘meu corpo é feito da mesma carne que
o mundo’, se essa carne é infinitamente mais pobre que a minha?” (Haar, M. Art. cit., p.28). A senciência
não teria, assim, sua gênese no ser carnal, o qual é eminentemente passivo. A fim de evitar a estranha
conseqüência de que a senciência não está incluída no próprio ser de que a subjetividade surge, seria
preciso esclarecer melhor a sua origem.
20
Cf., por exemplo, o capítulo “A espacialidade do corpo próprio”, em que Merleau-Ponty descreve uma
intencionalidade própria à atividade corporal, irredutível à intencionalidade da consciência cognitiva.
227
sujeito (Cf. PhP, 411). Dessa maneira, toda vivência particular se refere a um cogito
tácito, pelo qual o sujeito se reconhece em todos os seus engajamentos parciais
21
.
Mesmo com a ressalva de que a unificação das vivências não ocorre por uma reflexão
ativa, Merleau-Ponty ainda sustenta, na Fenomenologia da Percepção, uma presença a
si da consciência por meio de uma ligação interna entre as vivências. É exatamente essa
tese que será abandonada em sua ontologia final, como veremos a seguir.
A noção de carne implica tomar a subjetividade como parte de um campo de
sensibilidade mundana. O sujeito não é senão um foco em que tal sensibilidade se
concentra e, de maneira ativa, volta-se sobre o próprio mundo. No sujeito ocorre, assim,
uma reversibilidade entre sua camada passiva (sensível) e ativa (senciente): o sujeito é
um foco de atividade, mas tal foco não é incomensurável com o ser do mundo, pois se
sustenta pelo caráter passivo/sensível do corpo. A idéia de reversibilidade auxilia
Merleau-Ponty a reformular a concepção de unificação dos vividos por meio de um
contato interno de si consigo, tese defendida pela Fenomenologia da Percepção.
Conforme os textos finais de Merleau-Ponty, o sujeito só se reconhece como fluxo ativo
de vivências por meio da sua base passiva. Assim, por exemplo, o sujeito vidente não se
apreende a si mesmo como um foco ativo de visão, mas sim como um ente visível em
meio a outros visíveis. Quer dizer que o sujeito não unifica suas vivências por um
contato interno consigo que acompanharia todo engajamento particular, mas se
apreende ao reconhecer a si próprio como sujeito passivo e inserido no mundo sensível.
Esse reconhecimento não atinge a coincidência total de si consigo, uma vez que,
segundo Merleau-Ponty, as duas camadas reversíveis do corpo jamais se identificam,
quer dizer, o corpo não pode apreender a si mesmo como corpo ativo, mas somente
como corpo passivo. Por exemplo, o sujeito vidente se apreende como visível e não
como poder explorador, o corpo tocante se reconhece como massa tocada e não como
puro poder tocante (Cf. VI, 309, nov. 1960). Assim, a noção final de sujeito esboçada
por Merleau-Ponty dispensa a coincidência consigo e é marcada apenas por uma “não-
diferença” (VI, 254, set. 1959) entre suas camadas constituintes
22
.
21
“Ultrapassado de todos os lados por meus próprios atos, afogado na generalidade, todavia sou aquele
por quem eles são vividos, com minha primeira percepção foi inaugurado um ser insaciável que se
apropria de tudo aquilo que pode encontrar, a quem nada pode ser pura e simplesmente dado porque ele
recebeu o mundo em partilha e desde então traz em si mesmo o projeto de todo ser possível, porque de
uma vez por todas este foi cimentado em seu campo de experiências” (PhP, 411).
22
Cassou-Noguès extrai bem as conseqüências dessas teses tardias de Merleau-Ponty: “a experiência de
si, se ver, falar de si ocorre na carne e não na interioridade do sujeito. O sujeito se apreende do
exterior, reconhecendo-se em um corpo dado no campo do visível, identificando-se com palavras
228
Vimos que com a noção de carne, Merleau-Ponty esboça a idéia de um campo
ontológico anterior à cisão entre sujeito e objeto, e desenvolve uma nova análise da
reflexão e da subjetividade. Cumpre notar agora que esses dois resultados reunidos
justificam o proeminente papel atribuído por Merleau-Ponty à percepção (desde seus
primeiros escritos até seus textos finais) de medida pela qual todo tipo de ser pode ser
concebido. Já expusemos que em seus anos finais o filósofo analisa o ser não como
correlato da experiência humana, mas como campo sensível do qual tal experiência se
origina. Desse modo, não se considera ser somente aquilo que é percebido (tal como
ocorria na Fenomenologia da Percepção), mas, pelo contrário, porque o ser é sensível,
esclarece-se como pode haver percepção. Quer dizer que a atividade perceptiva é
secundária em relação a um ser que traz em si mesmo as condições da atividade
perceptiva. Mesmo após assumir tal tese, Merleau-Ponty ainda defende, em seus últimos
textos, que não é possível conceber nenhum tipo de ser sem referência à atividade
perceptiva subjetiva (Cf. VI, 218, jan. 1959)
23
. Para entender o sentido de tal afirmação,
consideremos os dois resultados mencionados acima. Comecemos pelo segundo deles
(uma concepção renovada da subjetividade).
Merleau-Ponty concebe o sujeito como um foco no qual a sensibilidade do
mundo se concentra e se reverte em senciência, voltando-se então sobre o próprio
mundo. Os conteúdos percebidos são, assim, perspectivas sobre o ser (as quais, ao
menos em condições ideais, poderiam ser assumidas por diferentes sujeitos) e não
vivências privadas
24
. Acrescentemos a essa tese o primeiro resultado obtido por
Merleau-Ponty com a noção de carne: o ser carnal (anterior à cisão entre sujeito e
objeto), que se organiza como espetáculo percebido. Vimos que a subjetividade se
forma com base em um ser passivo que se reverte em atividade (ela não é um fluxo de
vivências fechado em si mesmo). Ao voltar-se sobre o ser, a percepção encontra
estruturas sensíveis inerentes ao mundo. Quer dizer que o exercício da percepção, longe
de projetar uma camada de qualidades antropomórficas sobre o mundo, capta estruturas
descobertas no campo da linguagem” (Cassou-Noguès, P. “La définition du sujet dans Le Visible et
L’Invisible”. In: Merleau-Ponty aux Frontières de l’Invisible. Milano: Mimesis, 2003, p.174).
23
Em uma nota publicada, Merleau-Ponty chega a remeter a organização dimensional do sensível (tema
de que trataremos na próxima seção) ao corpo: “mas, enquanto as coisas se tornam dimensões quando
elas são recebidas em um campo, meu corpo é esse próprio campo, i. e., um sensível que é dimensional
por si mesmo, mensurador universal” (VI, 308, junho 1960). No entanto, no decorrer de sua
argumentação, tal como pretendemos mostrar, Merleau-Ponty atribui ao próprio ser o papel de campo
dimensional e não ao corpo. Nessa nota citada, Merleau-Ponty parece somente reafirmar o papel
proeminente da sensibilidade humana, o qual tentamos explicar a seguir.
24
Numa nota inédita, Merleau-Ponty critica o “erro imenso de considerar [a subjetividade] como fluxo de
Erlebnisse. Ela é antes de tudo campo” (nota 1a, dezembro de 1959. Ver item f do apêndice).
229
intrínsecas ao ser. É, assim, por meio da percepção que o ser do mundo se revela tal
como ele é. Por conseguinte, outros tipos de ser tradicionalmente concebidos (por
exemplo, o ser-objeto, conjunto de propriedades explicitadas pela matemática) são
somente uma variação da forma sensível pela qual o ser do mundo se apresenta
originariamente. Daí que em O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty afirme que a
descrição da atividade perceptiva, tal como realizada pela Fenomenologia da
Percepção, não deva ser considerada como um estudo psicológico, mas sim como
caracterização ontológica do ser do mundo (Cf. VI, 228, fev. 1959)
25
. Dado que em si
mesmo o ser é sensível, é então pela atividade perceptiva (considerada como atualização
de uma perspectiva subjetiva partilhável implicada na organização do mundo, e não
como fluxo de eventos privados) que o ser se revela. Descrever a percepção é, segundo
esse ponto de vista, descrever o modo pelo qual o ser do mundo se manifesta enquanto
tal. Esse resultado, antes fruto da análise fenomenológica das vivências subjetivas, é
confirmado pela ontologia indireta dos textos finais de Merleau-Ponty.
C) A negatividade inerente ao ser
O problema da correlação perceptiva
Acompanhamos na seção anterior como Merleau-Ponty desenvolve sua
ontologia final sem depender de uma descrição direta da experiência perceptiva, mas de
forma a obter resultados que legitimem a prioridade da descrição perceptiva como via
para a caracterização do ser. Em uma nota inédita de 1959, o filósofo resume de
maneira lapidar sua intenção: “eu busco um meio ontológico, o campo que reúna o
objeto e a consciência. E isso é bem necessário se se quer sair da filosofia idealista”
26
.
Para afastar-se da redução idealista do ser àquilo que se manifesta diretamente à
subjetividade, é necessário investigar o campo do qual a própria atividade subjetiva
25
Nesta nota de O Visível e o Invisível, o filósofo afirma que tal papel ontológico atribuído à descrição da
percepção tornar-se-ia claro se se considerasse o caráter dependente do ser estudado pela ciência (ser
objetivo) em relação ao ser percebido. Num texto inédito, Merleau-Ponty desenvolve essa idéia: os
objetos estudados pela ciência, “na medida em que podem ser ditos existentes, é que eles são direta ou
indiretamente perceptíveis ou sensíveis” (nota 12; ver item g do apêndice). É, assim, com base naquilo
que se manifesta sensivelmente que se pode conceber os entes inobserváveis descritos pelas teorias
científicas. O conhecimento dos microfenômenos, por exemplo,é possível pela aplicação da percepção
humana a uma escala de objetos diferente daquela sobre a qual ela normalmente é exercida. Segundo uma
nota publicada em O Visível e o Invisível, “os conhecimentos em > ou < escala (macrofenômenos
microfísicas) são determinação em pontilhado (por instrumentos matem., i. e., inventário de estruturas) de
núcleos de ser cuja atualidade só a percepção me dá e que só podem ser concebidos por empréstimo à sua
membrana” (VI, 276, junho 1960). Assim, por exemplo, embora os átomos não sejam objetos
perceptíveis, os modelos pelos quais eles são concebidos (e. g., o modelo planetário do átomo, formulado
por Rutherford) são baseados em estruturas compreensíveis sensivelmente.
26
Nota 4; ver item h do apêndice.
230
brota, o campo em que tal atividade é preparada e que porta suas condições mais gerais.
Daí o desenvolvimento da noção de carne, camada ontológica em que certas
propriedades posteriormente atribuídas aos sujeitos ou aos objetos coexistem de maneira
indivisa. Como vimos, a carne exprime a idéia de que o ser que motiva e nutre a
percepção já é sensibilidade iminente, é solidário com uma perspectiva subjetiva
sobre o ser. A noção de carne torna, assim, compreensível que os conteúdos percebidos
não sejam meras representações psicológicas, mas apresentações dos componentes do
mundo tal como eles são.
Como notamos no final do capítulo anterior, Merleau-Ponty parece, em seus
textos finais, chegar às mesmas teses defendidas pela Fenomenologia da Percepção.
Certamente o filósofo mudou o itinerário (abandonou a caracterização do ser por meio
da descrição das vivências subjetivas e desenvolveu uma análise ontológica indireta, por
meio dos resultados das ciências e artes), mas seu destino parece ter sido o mesmo.
Afinal, nesses textos finais, como vemos, o ser ainda é apresentado como ser
perceptível, e a percepção ainda é considerada como cânone para qualquer ser
concebível. É verdade que a correlação entre ser e atividade perceptiva não está mais no
início da reflexão (o ser não se define como sensível porque é percebido pelo sujeito),
mas ela parece sintetizar o resultado final a que se chega (dado que o ser é sensível,
então aquilo que o sujeito percebe é o ser). Se for assim, então Merleau-Ponty parece
não ter avançado nada em relação à posição assumida na Fenomenologia da Percepção.
E as conseqüências idealistas padecidas por essa última poderiam reaparecer e abalar
sua ontologia final.
Expor uma conseqüência desse tipo parece a intenção de Michel Haar ao criticar
a aparente ausência de limites da noção de carne. Uma vez que Merleau-Ponty define a
carne como uma camada sensível originária, da qual objetos e sujeitos decorrem,
parece, por conseguinte, que todos os processos e eventos mundanos deveriam partilhar
os atributos de tal camada, tal como a sensibilidade iminente. Haar se pergunta se “se
deve chamar de ‘sensibilidade’ os processos subatômicos”
27
. Sua indagação tenta
despertar um desconforto ante as conseqüências da posição de Merleau-Ponty: atribuir
sensibilidade aos componentes do mundo implicaria reconhecer que mesmo os
microfenômenos são sensíveis. Essa conseqüência seria absurda, pois comumente
supõe-se que em si mesmos os microfenômenos não são sensíveis e só podem ser
27
Haar, M. Art. cit., p.19.
231
estudados de maneira indireta. Ora, em nosso primeiro capítulo, tentamos expor um
desconforto semelhante, gerado pelas teses da Fenomenologia da Percepção quanto aos
eventos que antecederam o surgimento da vida humana na Terra. Segundo tal obra, tais
eventos devem ser concebidos como construções culturais, pois tudo o que deles
poderia ser mencionado são formulações teóricas que devem se conformar aos
parâmetros da consciência perceptiva humana (Cf. PhP, 494). A exposição da ontologia
final de Merleau-Ponty, conforme a seção anterior, parece confirmar esse resultado: nos
últimos textos do filósofo, o ser é por ele mesmo sensível, de modo que a percepção
apreende-o privilegiadamente, em seu modo originário. Além disso, vimos que esses
mesmos textos defendem que os eventos que aparentemente excedem a percepção
(micro e macrofenômenos) podem ser compreendidos enquanto são percebidos (Cf.
nota 25 deste capítulo). Enfim, Merleau-Ponty parece não reconhecer, mesmo em seus
últimos anos, nenhum excesso do ser para além da sua correlação com as capacidades
perceptivas humanas.
A ontologia final de Merleau-Ponty parece estar de pleno acordo com os textos
fenomenológicos iniciais, e apenas fornece uma nova justificativa para os resultados
obtidos inicialmente. Essa interpretação, segundo a qual uma perfeita continuidade
entre a Fenomenologia da Percepção e O Visível e o Invisível, foi defendida por
alguns comentadores. Em nossa introdução, mencionamos M. C. Dillon como
representante dessa linha interpretativa. Mas outros autores também partilham da
mesma posição. É o caso de Henry Pietersma, para quem a doutrina ontológica
esboçada nas últimas obras de Merleau-Ponty seria um complemento do estudo da
percepção antepredicativa realizado na Fenomenologia da Percepção
28
. A análise da
percepção nessa obra “projeta uma ontologia da carne”
29
, por meio da qual o ser seria
concebido como aquilo que pode ser perceptivelmente acessível. Não haveria, assim,
nenhuma exterioridade entre a atividade percipiente e o ser; ambos se conformariam de
maneira harmoniosa. Por meio da noção de carne, Merleau-Ponty pretenderia, assim,
“nos assegurar que não outro ser senão aquele com que estamos em contato pela
percepção primordial”
30
.
Defenderemos a partir de agora que a interpretação segundo a qual a última
ontologia de Merleau-Ponty apenas confirma os resultados da sua ontologia
28
Cf. Pietersma, H. Phenomenological Epistemology. Ed. supra, p. 151.
29
Ibid., p.128.
30
Ibid., p.178.
232
fenomenológica primeva é falsa e deriva de uma leitura parcial dos seus textos. Não se
trata, sem dúvida, de rejeitar os resultados estabelecidos acerca da carne como ser
sensível, mas de inseri-los numa renovação conceitual da própria noção de sensível,
pela qual Merleau-Ponty justamente desenvolve as teses mais originais de sua última
filosofia. Pretendemos expor essa renovação da idéia de sensível e, assim, explicitar que
o filósofo rompe com algumas teses de sua ontologia fenomenológica inicial,
particularmente com a vigência da correlação entre ser e capacidades perceptivas.
Veremos, por fim, que a ontologia final de Merleau-Ponty, embora remeta em muitos
pontos às teses defendidas por suas primeiras obras, compõe um quadro teórico
irredutível a elas.
Segundo a leitura que Pietersma apresenta da obra de Merleau-Ponty, o ser é
aquilo que aparece para um corpo senciente. No entanto, como expusemos em nosso
sexto capítulo, a abertura perceptiva espontânea para o mundo (a perceptiva) não se
limita a recolher dados positivos, mas também implica o reconhecimento de ausências
originárias, de um encobrimento constituinte da experiência. Dessa maneira, o ser
sensível investigado por Merleau-Ponty não é apenas um conjunto de propriedades
diretamente perceptíveis; o ser sensível também comporta não-percepção,
encobrimento, e, nesse sentido, explicitação daquilo que não se apresenta como
conteúdo percebido, mas somente como falta
31
.
Merleau-Ponty obtém esse resultado por admitir uma negatividade inerente ao
ser, ou seja, por reconhecer que o modo como eventos e entes existem não se reduz à
pura atualidade de dados positivamente apreensíveis pela percepção. O ser inclui
possibilidades internas de organização, não no sentido de alternativas gicas abstratas,
mas no sentido de latências estruturais que embora não sejam dados positivos atuais,
ajudam a compor o campo da experiência
32
. Será ao desenvolver essa idéia de
possibilidade ou negatividade inerente ao ser que Merleau-Ponty evita a redução do ser
carnal ou sensível a um correlato dos poderes perceptivos
33
. O filósofo explora tal idéia
31
Retomamos aqui a seguinte citação, já exposta no quarto capítulo: “o sensível não é somente as coisas,
é também tudo o que se desenha, mesmo implicitamente, tudo o que deixa seu traço, tudo o que aí
figura, mesmo a título de desvio [écart] e como uma certa ausência” (S, 217).
32
Numa nota publicada em O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty associa claramente a negatividade a
uma noção expandida de ser sensível, que a ontologia deve estudar: “a negatividade que habita o tocar (e
que eu não devo minimizar: é ela que faz com que o corpo não seja um fato empírico, que ele tenha
significação ontológica) (...) é o outro lado ou o inverso (ou a outra dimensionalidade) do Ser sensível”
(VI, 303, maio 1960).
33
Numa nota inédita, Merleau-Ponty afirma: “o possível bruto, aquele dos contornos, das
‘configurações’, aquele das coisas ‘escondidas’ por outras, aquele do efeito túnel, a massa de ser que faz
com que o ser não seja ser percebido” (nota 36a, agosto de 1959, ver item i do apêndice).
233
ao menos em relação a três temas. O primeiro deles se refere à ontogênese animal: os
embriões exibem certos comportamentos antes mesmo que sua base anatômica esteja
suficientemente desenvolvida, como se a totalidade das funções maduras implicitamente
atuasse na manutenção da vida animal em desenvolvimento. Dado que expusemos tal
tópico em nosso terceiro capítulo, não o retomaremos aqui. O segundo tema se refere à
noção de invisibilidade e o terceiro ao esboço de uma teoria do tempo como
componente do ser e não como estrutura da existência humana. Vamos acompanhar em
detalhe esses dois últimos temas a fim de completar a exposição da ontologia final de
Merleau-Ponty, iniciada, na seção anterior, com a noção de carne
34
.
A invisibilidade
Voltemo-nos, em primeiro lugar, para a noção de invisibilidade. Em uma famosa
nota de O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty enumera diferentes sentidos em que se
usa o termo “invisível”: a) algo não visível atualmente, mas de direito acessível à visão;
b) as dimensões do campo visível; c) o que se manifesta para o tato ou por meio dos
movimentos cinestésicos em geral; d) os lekta
35
e o cogito (Cf. VI, 305, maio 1960).
Deve-se notar que o primeiro sentido de invisível aí enumerado é frequentemente
tratado por Merleau-Ponty como um homônimo que de modo algum exprime a sua
intenção em elevar a invisibilidade a conceito filosófico. Por sua vez, tal intenção é
desenvolvida pelo filósofo em relação aos sentidos b e d (quanto ao item c, o filósofo
parece somente mencionar os dados perceptivos que não são obtidos pela visão. Esse
uso de “invisível” não contribui com a tese da irredutibilidade do ser ao ser percebido,
que, obviamente, tal uso ainda implica que o ser está em correlação com os outros
sentidos da percepção humana, excluída a visão). Em termos gerais, a intenção
filosófica de Merleau-Ponty é reformular certas dualidades, aparentemente
intransponíveis, herdadas da tradição filosófica (por exemplo, corpo/alma,
34
Renaud Barbaras expõe como a tese acerca da negatividade inerente ao ser se desenvolve com base na
crítica bergsoniana à tradição metafísica. Segundo tal crítica, a tradição filosófica concebe o ser como
pura positividade, que resiste a um estágio de não-ser supostamente anterior à existência do mundo. Ora,
essa concepção seria injustificada, pois o ser deve ser abordado nele mesmo e não como algo perfilado
sobre a hipótese de um nada anterior. Segundo Barbaras, Merleau-Ponty extrai dessa crítica a idéia de
dimensões negativas intrínsecas ao ser: abordado sem o pressuposto de um nada prévio que ele viria
superar, o ser “não exige mais a positividade que somente o nada impunha a ele e pode portanto
comportar uma dimensão de negatividade” (Barbaras, R. “Le Tournant de l’Expérience Merleau-Ponty
et Bergson”. In: Le Tournant de l’Expérience. Recherches sur la Philosophie de Merleau-Ponty. Ed.
supra, p.50).
35
Termo da epistemologia estóica que indica os “dizíveis”, isto é, as expressões lingüísticas pelas quais
os pensamentos se referem às coisas.
234
fato/essência), de modo que a sua reconceitualização por meio da oposição
visível/invisível dissolva a incomensurabilidade entre os termos em questão. Numa nota
inédita de 1958, Merleau-Ponty esclarece o poder heurístico de sua nova terminologia:
“o espírito ou a consciência excede o corpo fenomenal emergindo (emergente) no
invisível. um certo dualismo, incontestável. Mas esse dualismo não significa duas
substâncias: significa apenas um certo desnível da significação apontando para fora da
massa sensível”
36
. Concebidas com base na oposição visível/invisível, as noções de
alma e de corpo não se opõem como diferentes substâncias por princípio
incomunicáveis. Aquilo que é tratado como invisível remete ainda ao visível como seu
inverso e não se apresenta como algo plenamente independente da visibilidade, o que
exclui o dualismo substancial
37
.
O campo temático em que Merleau-Ponty melhor desenvolveu as relações entre
visibilidade e invisibilidade foi aquele referente às dimensões da experiência visual
(item b enumerado no parágrafo anterior). O filósofo defende que nenhum ente visível é
um objeto cujo ser se esgota em sua manifestação atual. na própria visibilidade
uma invisibilidade atuante, que não se reduz ao fato de que existem perspectivas ou
aspectos que não são visíveis atualmente mas poderiam sê-lo sob outras condições
38
. O
que é então essa invisibilidade presente na visibilidade? Trata-se daquilo que Merleau-
Ponty denomina dimensões, sistemas de ordenação pelos quais os entes visíveis
particulares podem ser vistos. Para o filósofo, o mundo sensível não se reduz a um
conjunto de entes ou processos individuais, uma vez que tais individualidades são
organizadas conforme certos padrões gerais de familiaridade. Esses sistemas não são
objetos, mas matrizes pelas quais a percepção desses objetos se torna possível. Deve-se
notar que, segundo Merleau-Ponty, tais matrizes não são formadas por componentes
diferentes daqueles que constituem os entes particulares. Quer dizer que as dimensões,
que excedem a estrita correlação entre a atividade perceptiva e os dados positivamente
apreendidos, não são algo absolutamente estranho ao ser sensível apresentado pela
36
Nota 26b, ver item j do apêndice.
37
“O invisível não é o contraditório do visível: o próprio visível tem uma membrana de invisível e o in-
visível é a contrapartida secreta do visível” (VI, 265, nov. 1959). No prefácio de Signes, Merleau-Ponty
volta a expor as vantagens epistemológicas da sua terminologia, dessa vez em relação aos conceitos
fundamentais da filosofia de Sartre: “antes do ser e do nada, seria melhor falar do visível e do invisível,
repetindo que eles não são contraditórios” (S, 30). Deve-se notar que Merleau-Ponty não pretende
assumir um monismo substancial ao apontar a mútua dependência entre o visível e o invisível (Cf. nota
26b, item j do apêndice). O desnível entre visível e invisível significa, na verdade, que ambos são como
diferentes ordens emergentes, as quais, embora correlacionadas, são irredutíveis entre si.
38
“O invisível não é um outro visível (‘possível’ no sentido lógico), um positivo somente ausente” (VI,
300, maio 1960)
235
percepção, não são parte de um em-si formado por qualidades objetivas independentes
da sensibilidade. Na verdade, as dimensões são formadas por componentes sensíveis
também encontrados nos entes, embora em uma função diferente, a saber, aquela de
propriedade geral pela qual todo um campo de indivíduos se arranja. Assim, a dimensão
surgiria da generalização dos componentes sensíveis, tornados então matrizes de
organização do campo, e não mais atributos individuais. Daí que, como afirmamos
pouco, os entes visíveis não sejam pura positividade: seus aspectos sensíveis comportam
uma latência estrutural, eles podem se generalizar e se tornar níveis inaparentes pelos
quais as coisas aparecem.
Segundo Merleau-Ponty, não há incompatibilidade entre o caráter particular e
geral do mesmo atributo sensível: “é precisamente no interior da sua particularidade de
amarelo e graças a ela que o amarelo se torna um universo ou um elemento” (VI, 267,
nov. 1959), exemplifica o filósofo. A generalidade seria uma função imanente ao
sensível, conforme alguns de seus componentes assumam o papel de um elemento, no
sentido de um princípio pré-individual que participa da constituição de diversos entes
particulares. Essa tese de que os entes individuais são atravessados por possibilidades de
generalização (quer dizer, de que nenhum ente se esgote em sua particularidade, mas
participe de dimensões que excedem seu caráter singular) indica, como bem nota
Étienne Bimbenet, que não uma distinção cerrada entre o ser e os entes na filosofia
de Merleau-Ponty. Segundo Bimbenet, “para Merleau-Ponty o ser se descobre menos
em sua diferença ontológica com o ente que na diferença do ente consigo próprio;
menos em seu movimento para a fenomenalização que no movimento dos próprios
fenômenos, ou com os fenômenos como movimento, iminência, potência de outros
fenômenos ainda”
39
. O ser, no sentido geral, não é, assim, um princípio distinto dos
entes, mas o caráter dimensional inerente aos próprios entes.
O exemplo mais desenvolvido de Merleau-Ponty sobre o sensível dimensional é
o da cor amarela: tal cor pode ser atributo de um ente visível, mas também realizar a
função de cor da iluminação geral de um ambiente. Nessa última função, acredita
Merleau-Ponty, a cor se torna um meio inaparente (que não se doa positivamente à
sensibilidade humana) pelo qual os fenômenos são ordenados (Cf. VI, 267, nov. 1959).
Os sujeitos perceptivos comumente apreendem a cor amarela como atributo de diversos
entes particulares, mas não podem apreender, julga o filósofo, a função dimensional
39
Bimbenet, E. Nature et Humanité. Ed. supra, p.242.
236
pela qual um campo sensível é ordenado pela cor amarela. Essa função é invisível, no
sentido que Merleau-Ponty atribui ao termo: um princípio geral que atua na organização
do campo sensível
40
.
Passemos agora a considerar a temática da invisibilidade aplicada ao domínio
das significações lingüísticas e do pensamento em geral (Cf. item d da nota publicada
em VI, 305), considerado então como o outro lado da sensibilidade. Esse outro lado não
deve ser concebido como um mundo inteligível, mas como uma dimensão, um princípio
de equivalência que se mantém enraizado no sensível, mas dele se diferencia (Cf. VI,
263, out. 1959). Esse enraizamento implica que ao menos algumas funções intelectuais
se originam do caráter dimensional do mundo sensível. Vimos que os entes sensíveis
individuais são organizados conforme certas propriedades assumem o papel de
dimensões gerais do mundo sensível. A experiência perceptiva, que supõe a organização
do campo sensível por meio de dimensões gerais, parece servir de base, crê o filósofo,
para o posterior desenvolvimento da capacidade cognitiva de subsumir termos
particulares a classes ou idéias puramente intelectuais. É como se a gênese de tais
capacidades lógicas se encontrasse na imersão do sujeito humano em um sensível
dimensional, em que as coisas participam de princípios de equivalência que as excedem
e as ordenam
41
. É verdade que a dimensão sensível está sempre ligada aos domínios
fenomenais que organiza (embora não se reduza a dados positivos, pois é justamente o
caráter transcendente dos dados, ou seja, o excesso ontológico irredutível à pura
presença atual). Por sua vez, as idéias, não partilham de um lastro sensível com os
termos subsumidos; elas são não-temporais, não-espaciais (Cf. VI, 255, nov. 1959) e
não participam daquilo que é por elas ordenado
42
. Mesmo com tal diferença entre o
sensível e as idealidades, a operação realizada por essas últimas de subsumir termos
40
Como Merleau-Ponty não dá mais nenhum exemplo de atributos sensíveis generalizáveis, fica a
questão de saber se apenas as cores são dimensionais. Numa nota, o filósofo menciona que a percepção
apreende não entes individuais absolutos, mas “coisas que são dimensões, que são mundos” (VI, 267,
nov. 1959). Nessa nota, não é claro se ele se refere apenas às cores de que as coisas são compostas ou à
totalidade de atributos sensíveis das coisas. Caso se trate dessa última alternativa, seria necessário
esclarecer melhor de que maneira outros componentes sensíveis, tais quais as formas ou o peso por
exemplo, podem funcionar como matrizes pelas quais todos os outros objetos são organizados.
41
Numa nota inédita, Merleau-Ponty afirma que “as percepções do visível são já percepções do invisível:
a cor se tornando invisível quando ela passa a nível. O espírito, o conceito, o espiritual não são nada mais
que esta estrutura remanejada, reconstruída pela linguagem” (nota n.7, fevereiro 1960, ver item m do
apêndice).
42
Tal como Husserl exprime de forma lapidar ao criticar a noção de idéia geral abstrata de Locke: “um
triângulo é algo que tem triangularidade. Porém, a triangularidade não é nela mesma algo que tenha
triangularidade” (Husserl, E. Logische Untersuchungen. Coleção Husserliana, XIX/1. The Hague,
Martinus Nijhoff, 1984, p.139). Assim, o conceito pelo qual se define “triângulo” não é um triângulo e, de
maneira geral, tese aceita por Merleau-Ponty, as idéias são de uma ordem diferente daquilo que é
subsumido por elas.
237
particulares derivaria, segundo Merleau-Ponty, da organização dimensional do sentir.
Essa organização funcionaria como uma idealidade primitiva inscrita no interior do
mundo sensível, uma dimensão invisível que sustenta o desenvolvimento das funções
do pensamento
43
.
Tentamos, nos parágrafos anteriores, exibir a amplitude do escopo temático
almejado por Merleau-Ponty com a noção de invisibilidade. Longe de se limitar ao
estrito campo da percepção visual, essa noção se torna um conceito funcional pelo qual
é possível renovar a análise filosófica de diferentes tópicos. Numa nota inédita de 1958,
o filósofo anuncia: “a guerra, a história, o social, os seres culturais, como seres
invisíveis”
44
. Em todos esses casos, tratar-se-ia de buscar “o não-ser sobre o qual se
apóia todo o ser de nossa vida histórica”
45
, quer dizer, as matrizes inaparentes pelas
quais os eventos da história humana se organizam
46
. Merleau-Ponty almejava, assim,
estender a investigação das dimensões inaparentes de organização dos entes ou eventos
para todos os domínios da existência humana. Vale notar que o filósofo chega, de fato, a
esboçar uma análise do contato com outrem em termos da oposição visível/invisível.
Segundo tal análise, cada sujeito vê o corpo do outro, mas não apreende diretamente seu
nível ou dimensão invisível (sua consciência e sua experiência). No entanto, esse nível
se doa, ainda que como ausência, juntamente com o corpo de outrem
47
. A vida invisível
de outrem é assimilada de modo indireto, uma vez que todos os sujeitos se dirigem
ao mesmo mundo sensível e, por meio desse campo partilhado, podem apreender as
intenções alheias
48
.
Importa notar, por fim, que Merleau-Ponty concebe a noção de invisibilidade
como uma armadura geral de sentido que transcende os eventos e coisas particulares, e
que seria responsável pela organização destes. Por meio dessa noção de invisibilidade, o
filósofo pretendia elaborar um esquema ontológico global, pelo qual os mais diversos
campos da vida humana poderiam ser caracterizados para além do seu caráter
43
No quarto capítulo, expusemos com mais detalhes como atua essa idealidade primitiva ou sensível.
44
Nota 24b, ver item n do apêndice.
45
Id., ibid.
46
A mesma intenção é retomada numa nota publicada em O Visível e o Invisível. “Pôr a questão: a vida
invisível, a comunidade invisível, outrem invisível, a cultura invisível” (VI, 278, jan. 1960).
47
Numa nota inédita de janeiro de 1959, Merleau-Ponty afirma: “outrem é o ser não Urpräsentierbar
[apresentável originariamente], que não é suscetível de ser ele mesmo dado sem médium interposto, mas
isso ele o é absolutamente: ele é dado como o que não é originariamente doável (nota 92a, ver item l do
apêndice).
48
“A sensibilidade dos outros é ‘o outro lado’ de seu corpo estesiológico. E esse outro lado,
nichturpräsentierbar, eu posso adivinhá-lo pela articulação do corpo de outrem sobre o meu sensível
(VI, 282, jan. 1960).
238
factualmente positivo, mas sem que esse excesso signifique reatar com um dualismo
ontológico.
Uma nova teoria do tempo
O terceiro tema pelo qual Merleau-Ponty atribui uma espessura ao ser que
escapa à apreensão direta da consciência é aquele do tempo. Na Fenomenologia da
Percepção, o tempo, concebido como uma passagem entre diferentes dimensões (futuro,
presente e passado), era apresentado como uma estrutura da existência humana. No
mundo considerado em si mesmo, haveria um eterno presente sem densidade
temporal
49
. Vimos, em nosso primeiro capítulo, que essa tese, reunida à concepção de
ser em termos de propriedades subjetivamente apreensíveis, impedia Merleau-Ponty de
apreender o passado do mundo como tal. A atribuição de um passado ao mundo era
feita de maneira figurativa, que os eventos mundanos, considerados em si mesmos,
deveriam ser, segundo o livro de 1945, sempre presentes. Qualquer sucessão entre tais
eventos seria apenas uma constatação que, de algum modo, deveria se referir à
subjetividade humana, a qual, naquele livro, era identificada ao próprio tempo
50
.
Numa nota inédita, Merleau-Ponty sustenta que “a subjetividade é tempo mas
nem todo tempo é subjetividade”
51
. Assim, em seus anos finais, o filósofo não deixa de
considerar que subjetividade e temporalidade estão intimamente ligadas e mesmo (em
um certo nível) identificadas, mas recontextualiza tal consideração. Na Fenomenologia
da Percepção, a subjetividade era responsável pela atribuição do caráter temporal aos
eventos do mundo. Em seus últimos anos, Merleau-Ponty abandona essa tese; a
subjetividade ainda será considerada tempo, mas por estruturar-se sobre um tempo que
se origina no próprio ser sensível. Além disso, o modo como a subjetividade recolhe tal
tempo será descrito de uma maneira diferente daquele pelo qual tal subjetividade
vivenciava o tempo de acordo com a Fenomenologia da Percepção.
No livro de 1945, Merleau-Ponty rejeita a concepção temporal linear (sucessão
de instantes fechados em si mesmos) em favor da descrição husserliana da passagem do
49
“O tempo não é um processo real, uma sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar. Ele nasce de
minha relação com o mundo (...). Se destacamos o mundo objetivo das perspectivas finitas que abrem
sobre ele e se o pomos em si, em todas as suas partes podemos encontrar ‘agoras’. Mas ainda, esses
agoras, não estando presentes a ninguém, não m nenhum caráter temporal e não poderiam suceder-se
(PhP, 471).
50
“A passagem do presente a um outro presente, eu não a penso, eu não sou seu espectador, eu a efetuo,
eu estou no presente que virá como meu gesto está em sua meta, eu sou eu mesmo o tempo, um
tempo que ‘permanece’, não ‘se escoa’ nem ‘muda’” (PhP, 481-2).
51
Nota 54a, maio 1959, ver item o do apêndice.
239
tempo. Segundo tal descrição, a experiência temporal não é de momentos discretos, mas
de um campo de presença, quer dizer, de uma zona temporal densa que envolve uma
abertura tanto para o passado imediato (retenção) quanto para o futuro próximo
(protensão). Ainda segundo tal concepção, quando os instantes densos que formam tal
campo decaem no passado, eles são visados de maneira modificada através do novo
instante presente. Assim, por exemplo, o instante denso A, uma vez passado, é retomado
como A’ em relação ao instante presente B. Quando B se torna passado, esse instante é
retomado como B’ em relação a C. Por sua vez, o instante A aparece modificado como
A’’ em relação a C, que é visado não como passado, mas como passado por
intermédio de um outro instante passado, B
52
.
Não é difícil notar, entretanto, que apesar de não se identificar com a sucessão de
instantes pontuais, a descrição husserliana supõe ainda uma seqüência sucessiva, de
campos de presença ou instantes densos, e, nesse sentido, poderia ainda ser classificada
como serial. A fim de enfraquecer tal caráter serial, Merleau-Ponty, na Fenomenologia
da Percepção, sustenta que a descrição do campo de presença como sucessão de
instantes é somente uma descrição parcial da experiência do tempo. Na verdade, se se
desvela a temporalidade constituinte, ou seja, a temporalidade verdadeiramente
originária da consciência, então não há uma multiplicidade de instantes densos (A, B, C)
ordenados sucessivamente, mas um único movimento de escoamento, no qual as
diferentes dimensões (passado, presente e futuro) se recobrem como um ímpeto
generalizado, sem a distinção de momentos discretos (Cf. PhP, 479-482). Esse apelo a
uma temporalidade constituinte una não significa a rejeição da idéia de uma
multiplicidade sucessiva de instantes. Tal multiplicidade será o tempo constituído por
aquele ímpeto indiviso originário. No entanto, esse tempo constituído não exerce um
papel meramente secundário, embora, de fato, seja o termo fundado pelo tempo
constituinte (que é então o termo fundante). Mas nas relações de fundação, tais como
descritas por Merleau-Ponty, o termo fundado é o responsável pela manifestação do
fundante, de modo que circularidade entre ambos, e não precedência causal de um
em relação a outro. Assim, no que se refere ao tempo, são os instantes distintos que
permitem o reconhecimento do fenômeno geral de passagem (Cf. PhP, 484), de maneira
que a multiplicidade sucessiva é o modo pelo qual o escoamento temporal se explicita.
52
“O que me é dado é A visto por transparência através de A’, depois esse conjunto através de A’’ e
assim por diante, como eu vejo o próprio seixo através das massas d’água que escorrem sobre ele” (PhP,
478).
240
Em seus textos finais, Merleau-Ponty sustenta, tal como em sua obra anterior,
que a descrição husserliana do tempo não é uma descrição serial simples, pois apresenta
a formação de uma rede de instantes densos, em que cada um é visado não como um
ponto idêntico, mas como uma manifestação que se perfila conforme sua posição na
camada cumulativa de instantes vividos (Cf. VI, 245, maio 1959). No entanto, não
encontramos mais o apelo a um tempo subjetivo constituinte, o qual matizaria ainda
mais o caráter serial implícito na descrição husserliana. Nesses textos, tal descrição do
tempo é tratada, no geral, como uma concepção serial, ainda que complexa, do tempo.
Conforme tal concepção, o tempo seria uma passagem de instantes ao qual se opõe um
foco de consciência imóvel, que retém sucessivamente os elementos de tal escoamento.
Essa idéia de que a experiência temporal é uma série de campos de presença
progressivamente vividos e retidos será criticada por Merleau-Ponty.
Em suas notas inéditas, o filósofo lamenta que a concepção do tempo serial
tenha sido elevada pela tradição à condição a priori de qualquer experiência. Se o
tempo serial assume esse papel, então as demais temporalidades registradas pela
antropologia (o tempo cíclico, por exemplo) são reduzidas a conteúdos psicológicos já
previamente organizados de maneira serial
53
. No entanto, para Merleau-Ponty, o tempo
serial não é uma condição sem a qual não haveria nenhuma experiência do tempo, mas
sim uma construção cultural, a qual nem mesmo abarca componentes fundamentais da
experiência do tempo
54
. A fim de argumentar em favor dessa tese, o filósofo discute o
fenômeno do esquecimento, o qual não seria adequadamente explicado pela concepção
serial.
Segundo Merleau-Ponty, a principal característica do esquecimento é sua
descontinuidade. Não ocorre que o fluxo temporal acumule instantes vividos em uma
progressão contínua que em certo ponto desaparecia no esquecimento. Tal como nota o
filósofo, alguns instantes vividos longa data permanecem fortemente retidos,
enquanto muitas experiências recentes são logo esquecidas (Cf. VI, 245, maio 1959).
Não há uma correspondência entre os instantes vividos e aqueles esquecidos do seguinte
tipo: os instantes mais antigos são progressivamente esquecidos e os mais novos são
armazenados gradualmente até o esquecimento. Não é assim que a experiência ocorre,
constata Merleau-Ponty. Conforme assevera uma nota inédita, uma lembrança “não é
53
Cf. nota 26, 1958; ver item p do apêndice.
54
Tal como o filósofo afirma em uma nota inédita, “essa referência ao tempo ocidental - cartesiano como
termo de uma alternativa cujo outro [termo] é nada de pensamento e de ser é precisamente a ilusão das
ilusões” (nota 4b, 1958; ver item q do apêndice).
241
um Erlebnis individual reunido por retenção de retenção em sua singularidade”
55
. O
diagrama temporal de Husserl implicava que um instante retido A poderia ser
retomado, do ponto de vista do instante presente C, como A’’, ou seja, como uma
manifestação perfilada através do instante retido B. Segundo Merleau-Ponty, a
experiência do esquecimento deve nos levar a rejeitar essa concepção de contínua
progressão e contínuo acúmulo da experiência temporal. Muitas vezes, o instante A
parece ser lembrado diretamente pelo instante presente C, sem a interpolação de B, quer
dizer, sem a interferência de todos os instantes vividos entre o instante retido em
questão e o presente. Para Merleau-Ponty, a concepção serial do tempo, mesmo em sua
variante husserliana, não explica tal descontinuidade e não pode, portanto, ser
considerada como condição a priori de toda experiência temporal. Essa concepção deve
ser tomada, juntamente com a concepção cíclica registrada pela antropologia, como uma
interpretação cultural da experiência do tempo e não como explicitação da sua estrutura
universal
56
.
Merleau-Ponty esboça uma descrição da experiência temporal (ou seja, do
modo como a subjetividade é tempo) independentemente das interpretações culturais
comumente atribuídas a ela. O filósofo mantém do diagrama temporal husserliano o fato
de que o tempo se autoconstitui, ou seja, de que a subjetividade não é autora do tempo,
mas somente vivencia um fluir originário e a ele opõe uma intencionalidade retensiva (a
qual, como vimos na discussão do esquecimento, não é uma intencionalidade
homogeneamente referida a todos os instante vividos). Dessa maneira, não se trata de
dizer que o tempo é consciência, mas sim que a consciência, por meio da
automanifestação do tempo, organiza-se como um fluxo temporal
57
. E essa ordenação
temporal da experiência subjetiva se reflete em todas as vivências. Daí Merleau-Ponty
afirmar, por exemplo, que a consciência presente é matriz simbólica, ou seja, um
princípio de organização do pensamento (Cf. VI, 243, maio de 1959). No entanto, a
ordenação geral da vida subjetiva por meio do tempo não implica que esse último seja
uma estrutura decorrente da existência humana. Além disso, Merleau-Ponty insiste em
que a consciência subjetiva não se constitui como um foco imóvel por onde escorre
55
Nota 1a, dezembro de 1959; ver item f do apêndice.
56
Numa nota inédita, Merleau-Ponty acentua o papel da linguagem na elaboração da concepção serial do
tempo: “o tempo serial, a ordem ‘objetiva’ das lembranças é construção e sedimentação pela linguagem e
pelas marcas de referência [repères], é idealização” (nota 51, 16/06/59; ver item r do apêndice).
57
Merleau-Ponty comenta em uma nota inédita: “dizendo que o tempo é Selbsterscheinung
[automanifestação], Husserl não diz que ele é ‘consciência’, mas que a ‘consciênciaé fluxo” (Nota 51,
16/06/59, ver item r do apêndice).
242
progressivamente uma série temporal. Na verdade, a consciência do tempo brota como
diferenciação (Cf. VI, 242, maio 1959) em relação a um processo dela independente.
Vejamos com mais detalhe o que significa tal tópico.
Merleau-Ponty defende que, ao menos originariamente, o tempo não é um fluxo
de passagem sempre em referência à existência humana. O tempo se autoconstitui e a
existência humana se temporaliza como que seguindo um processo que a antecede.
Dessa maneira, não é o tempo que se organiza em relação à subjetividade, mas o
contrário, ou seja, a subjetividade se estrutura em relação ao fluir temporal. Essa tese
implica inverter a perspectiva assumida pela Fenomenologia da Percepção. Essa
inversão se torna clara na tentativa de Merleau-Ponty relativizar a concepção do passado
como modificação do presente e, por conseguinte, de atribuir uma espessura própria aos
eventos passados
58
. A Fenomenologia da Percepção defendia que mesmo o passado
longínquo poderia ser considerado como evento temporal por ter sido anteriormente
um presente de uma vida humana
59
. Não haveria, assim, nenhuma autonomia do
passado, quer dizer, nenhum passado que não tenha surgido como modificação de
alguma experiência temporal presente. Essa tese é abandonada por Merleau-Ponty em
seus anos finais. Para tanto, o filósofo considera uma simultaneidade entre passado e
presente, que a análise intencional do tempo, tal como desenvolvida no livro de 1945,
não consegue apreender. Essa simultaneidade o se comprova somente na experiência
descontínua do esquecimento (segundo a qual há vivências antigas que continuam ativas
mesmo se lembranças mais recentes se apagam), mas aparece principalmente no contato
geral do sujeito perceptivo com o mundo. A subjetividade humana não se relaciona,
segundo esse novo ponto de vista, com um mundo plenamente presente, cujas
manifestações parciais seriam retidas como vivências passadas. Há um passado do
próprio mundo, que não resulta de uma modificação da consciência presente, mas
exprime um desenrolar interno ao próprio ser. Segundo Merleau-Ponty, “é a
Bewusstsein von [consciência de], o ter percebido, que é levado pelo passado como ser
maciço. Eu o percebi porque algo ocorrera (VI, 292-3, abril 1960). Assim, a
experiência perceptiva responde a um ser que não se mantém num eterno presente, tal
58
Segundo Franck Robert, Merleau-Ponty pretende “pensar a presença de um passado que não seja
presença de um antigo presente, quer dizer, que não seja definido a partir de uma vivência da consciência
que não seria mais” (Robert, F. Phénoménologie et Ontologie. Merleau-Ponty lecteur de Husserl et
Heidegger. Ed. supra, p.328).
59
“O passado mais distante tem, ele também, sua ordem temporal e uma posição temporal em relação ao
meu presente, mas enquanto ele mesmo foi presente, enquanto ele foi ‘em seu tempoatravessado por
minha vida e enquanto ela prosseguiu até agora” (PhP, 475).
243
como sustentava a Fenomenologia da Percepção, e a experiência atual é simultânea a
uma massa de ser cujo caráter passado não é atribuído pela subjetividade
60
.
É possível compreender agora a tese de Merleau-Ponty segundo a qual a
subjetividade surge como diferenciação em relação a um tempo que a excede. A
subjetividade humana se estabelece como um desvio, como um nível estrutural
particular em relação a uma massa de ser passado (que continua a se autoconstituir de
maneira autônoma) que a consciência presente se limita a recolher. Em relação a essa
massa temporal passada, o sujeito aparece como um ponto móvel (e não como um foco
imóvel por meio do qual as dimensões do tempo se constituem)
61
. O passado não é
assim algo progressivamente constituído pela consciência presente. Pelo contrário, a
consciência se aproxima e se afasta de camadas passadas autônomas, e constitui sua
experiência como uma ordem de diferenciações em relação a um campo temporal que,
em sua totalidade, escapa-lhe como mais uma dimensão invisível do ser.
Segundo Merleau-Ponty, o estabelecimento da experiência temporal humana em
relação à massa temporal autoconstituinte pode receber diferentes interpretações
culturais: as concepções cíclica ou serial do tempo, como vimos pouco, são modos
pelos quais os sujeitos tentam exprimir o processo de diferenciação temporal que molda
a subjetividade como tempo. Deve-se notar que essa diversidade cultural não implica a
admissão de que diversos tempos incomensuráveis entre si. Para Merleau-Ponty,
conforme uma nota inédita, existe um “tempo universal, que encontra na
temporalidade do para-si uma réplica e não seu fundamento”
62
. Os tempos serial e
cíclico são, assim, reconstituições tardias da experiência temporal, conforme os
instrumentos culturais disponíveis; ambos supõem um mesmo processo temporal de
fundo, o qual justamente tais reconstituições tentam esquematizar.
60
Franck Robert comenta a originalidade da tese de um passado inerente ao mundo ante a analítica
husserliana do tempo: “do ponto de vista de Merleau-Ponty, o que faz o sentido do passado enquanto tal
não é, portanto, uma diferença noética própria à consciência do tempo entre uma consciência do presente
e uma consciência do passado: não é um mesmo noema que eu visaria uma primeira vez segundo uma
consciência do presente e uma outra vez segundo uma consciência do passado” (Robert, F. op. cit.,
p.334).
61
Em uma nota inédita, Merleau-Ponty afirma: “o passado próximo me parece afastar-se. O passado
distante não se move mais e sou eu que me afasto dele” (nota 41, 14/06/59; ver item s do apêndice). Vale
notar que a Fenomenologia da Percepção antecipa essa noção de sujeito móvel ante dimensões fixas
do tempo: “se o começo do meu dia já se afasta, o começo da minha semana é um ponto fixo” (PhP, 480).
No entanto, ali, Merleau-Ponty se dedica a desenvolver a idéia da consciência presente como uma forma
permanente em relação à qual os instantes fluem (Cf. PhP, 482).
62
Nota 65b, 1959; ver item t do apêndice.
244
Como se vê, em seus anos finais, Merleau-Ponty admite um tempo independente
da experiência subjetiva temporal
63
. Conforme afirma uma nota inédita, “é
verdadeiramente o ser que se temporaliza e não eu que acrescento o tempo ao ser como
condição de sua Gegenständigkeit [caráter objetivo]”
64
. Para exprimir a idéia de uma
atividade temporal intrínseca ao mundo, e, no geral, de uma intencionalidade inerente
ao ser, o filósofo usa o termo “turbilhão” (Cf. VI, 280, janeiro 1960; VI, 293, abril
1960) Na verdade, esse termo não exprimiria apenas uma autoconstituição temporal do
ser, mas o desenvolvimento espaço-temporal da carne do mundo. Em uma nota de O
Visível e o Invisível, esse tópico é explicitado: “é necessário tomar como primeiro não a
consciência e seu Ablausfphänomen [fenômeno de decurso] com seus fios intencionais
distintos, mas o turbilhão que esse Ablaufsphänomen esquematiza, o turbilhão
espacialiante-temporalizante (que é carne e não consciência diante de um noema)” (VI,
293, abril 1960). O turbilhão indicaria os processos de diferenciação espaço-temporal,
pelos quais a camada sensível do ser se atualizaria.
O ser percebido e o ser sensível
Infelizmente, Merleau-Ponty não maturou suficientemente sua nova concepção
de tempo. Não é possível compreender adequadamente sua tese acerca do turbilhão de
que o tempo se originaria ou sua doutrina acerca da diferenciação pela qual a
temporalidade subjetiva se constitui. No entanto, o esboço legado aos leitores
contemporâneos ao menos deixa clara a intenção de “dessubjetivar” o tempo, ou seja, de
mostrar que em sua ordenação originária, o tempo não é um ímpeto indiviso que se
confunde com a existência humana, mas que essa apenas erige uma temporalidade
derivada de uma deiscência espaço-temporal inerente ao ser
65
. Esse movimento
argumentativo é análogo àquele de enraizar as condições da sensibilidade humana no
mundo sensível (por meio da noção de carne). Nos dois casos, Merleau-Ponty acentua
os componentes autônomos do ser em contraposição ao papel central atribuído ao
sujeito perceptivo pela Fenomenologia da Percepção.
Nas duas últimas subseções, buscamos expor o papel complementar das noções
de tempo e invisibilidade em relação à idéia de carne sensível. Tal complementação
63
Deve-se notar que não se trata do tempo objetivo estudado pela ciência. Merleau-Ponty pretende
descrever “um tempo pré-objetivo e pré-subjetivo” (Nota 2b, 1958; ver item p do apêndice).
64
Nota 14b, 27/10/58; ver item u do apêndice.
65
Em seus textos finais, Merleau-Ponty parece abandonar a idéia de que o tempo constituinte (que funda
a multiplicidade sucessiva temporal) seja um atributo da existência humana, tal como a Fenomenologia
da Percepção defendia.
245
explicita que o ser sensível, na última filosofia de Merleau-Ponty, não é composto
somente por dados positivamente apreensíveis pelas capacidades perceptivas humanas,
mas também por latências inesgotáveis, as quais podem ser reconhecidas seja como um
passado que em muito excede a consciência subjetiva do tempo seja como dimensões
invisíveis pelas quais os entes mundanos aparecem como tais.
Notemos que na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty defendia que o
mundo não era temporal, pois, tomado em si mesmo, deveria ser considerado como
pleno e não poderia, assim, abrigar os desníveis de não-ser pelos quais o passado e o
futuro se organizam em relação ao presente (Cf. PhP, 471). Segundo essa concepção,
toda negatividade, ou seja, toda dimensão de ausência ou de excesso em relação à
atualidade mundana deveria ser remetida à subjetividade. Nos seus textos finais,
Merleau-Ponty rompe com essa idéia e passa a considerar uma negatividade inerente ao
ser, o qual não se reduz, então, a uma somatória de tudo o que positiva e atualmente
existe. Dessa maneira, a suspeita de Michel Haar, segundo a qual Merleau-Ponty te n0(l)-2.0(m)-1.9(e0(a)-6.0(r)39 cm.91149 )-1.9(e0(a))4 rdo nte por ou vea re0.9( )-110.0(r)3.0(e)4.0(4(z)-6.0(a)3.9(m50 1.000404.4( )-159.9(m49 cm1.00000 050 1.00000 0 0 T51149 cm1.00000 0n.0(N)2.0(os)-1.9(e0duz)-6.0(00000 0 0 1.00000 0 0 Tm[(P)-4.0(ont)-12.0(y)20.8.03999[(P)8.03999471r)3.0(i475.64000 -13.68000 reW* n/Cs1 cs 0 0 0 6 0 04 6 nBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 452.97826 490.91149 cm1.00000 079 1.00000()04.0( )-30.0(n0(l)-2.0(m)-1.9(e0(a)-6.0(r.4.0(4(z)-É4.0(4(z 0n 12.00001e)3.9(ss)-1.9(o )-220.0(e)4.0(m)-2.0( )-209.9(r)3.0(e)3.9(l)-2.0(a)-5.9(ç)3.9(ã)4.0(o )44(z0 Tm[(-)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 )3.9(l)-12.0(e)4(de)3.9(y)19.9( )-3cm1.00000 0 0 1.00000 0 0 Tm[(N)2.0(ot)-2.0(e)3.9(m)-1.9(os)-1.0( )-119.9(qu134.85(o )44(z0 Tm[(-)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 t10.0(i)-.9(s)-(m)-1.9(ui)-2.2.0(e)3d19.9(a Tf12.00000 0 1 205.771.00000 0 0 1.00000 0 0 Tm[(não )-159.9(e)3.9(ra)-1.0( )-149.9(t)-2.0(e)1 1.000044(z0 Tm[(-)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 s)-13.9(de)3.9( )-329.9(m)-2.0(unda)3.9(n)-10.0(a)3.9( )-329.9(d)-10.0(e)-6.0(6.9( )-144(z0 Tm[(-)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 cm1.00000 0 0 1.00000 0 0 Tm[(N)2.0(ot)-2.0(e)3.9(m)-1.9(os)-1.0( )-119.9(que35.29 )-144(z0 Tm[(-)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 p)-.9(s)of)cnBT000 0 0 13.93.9(de)3.9( )-329.9(m)-2.0(unda)3.9(n)-10.0(a)3.9( )-329.9(d)-10.0(e)-6.099)-2.0(e)4(z0 Tm[(-)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 (t)-19(o )-120.0(qua)3.2.0(e)3dm)-2.0(e)40(s )-80.9(p)-00000 0 0 1.0003.9(nc)4.3.9(s)-1.0(sa)3.0(do )-110( )-29.9(e)o-80.9(p)-00000de)3.9(,)-10.0( )-210.0(ou )-000 0 0on-89.9(H)-7.9(a)420 0 0 12 cm1.00000 0 0 1.00000 0 0 Tm[(P)-4.0(ont)-12.0(y)20.0( )-90.0(t)-2.0(e)0 0 1.0P)-4.0 0 1.9(undo )] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 sc.0(a)3.9(40 1.00000 0 0 43.9(s)-1.0sg 0 0 T/TT3 3.9( )-29.9(i)n3.9( )-29.9(i)3.9( )4.0(e)3.9(ns)- cm1.00000 )2.9(ga)30(t)-2 0 43.9(d4.0(.40(o )-120.0(qua)3.2.3.9(de)3.9( )-329.9(m)-2.0(unda)3.9(n)-10.0(a)3.9( )-329.9(d)-10.0(e)-6.0(l)0(m)1.0 0 1.9(undo )] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 )-80.9(p)-4)4.0(r)3.0( de)3.9(,)000 0 0 .11149 cmTf12.0000,)10.9(e)34000 0 12.0)-80.9(p)-4)4.0duz)-6.0(, )-( )-15c00000 012.0)0(.40(o 000 0 0st000 23(r)3.0( [(s)-1.0(om)-1.90(s )-80.9(p)-.9(i)d3.9(40 1.0s)-1.3.0(, )-89.9.9(40 1.9 cm1uP)-4.0(o.p)-.9(i)E).9(e)3.9(s)000100000 0 0 1.00000 0 0 Tm[(m)-1.9(a)3.9(s )-30..0(y)20.0( )-90.0(t)-2.0(e)0 0 1.0P)-4.008 0 Tm[(-)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3)-5.9(us)-1.0(ê)3.9(nc)41.9(e)de)3.9(,)-10.0( )-210.0(ou )-0003.9(nn-89.9(H)-7.9(a)0 0 0 1.00000 0 0 Tm[( )-110.0(e)4.0( )-110.0(nã)3.9(o )-109.9(pode)-6.09.0( )-1008 0 Tm[(-)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 /T 0 1oe)31.00ó0 12.00.0(om)-c.0(a)3.93.9(de)3.9( )-329.9(m)-2.0(unda)3.9(n)-10.0(a)3.9( )-329.9(d)-10.0(e)-6.044.89)-4.008 0 Tm[(-)] TJETQq/Cs1 cs 0 0 0 scnur)3.0(o )-02.00000 227.85.17826 519.9(or)2. )-1091.00000 002.00à90(s )-80.9(p)-9)3.0(d0000 0 )-1sedideyima filosofia78.69a(c)3.9(a)4826 573.71140 12.0 a gomaade mundana deo
246
No primeiro capítulo, vimos que Merleau-Ponty parecia aceitar o seguinte
dilema: ou o ser é aquilo que se manifesta para a subjetividade ou o ser é um conjunto
de propriedades objetivas completamente estranhas à subjetividade. Na Fenomenologia
da Percepção, Merleau-Ponty rejeita explicitamente a segunda alternativa e admite a
primeira. Ora, acreditamos que por meio da noção de dimensões transcendentes do ser,
o filósofo recusa na verdade esse próprio dilema, pois dispõe de uma armadura teórica
que lhe permite reconhecer a independência do ser para além daquilo que é
subjetivamente apreendido, sem que tal reconhecimento implique uma defesa do ser
em-si objetivo. Os entes ou eventos inobserváveis podem ser considerados, desse novo
ponto de vista, como componentes de tais dimensões, os quais só se doam como
ausentes (ou seja, indiretamente) e não são positivamente captados pela atividade
perceptiva. O passado do mundo, por exemplo, seria expressão de um processo
autônomo de organização do ser e não um estado de coisas que receberia a
qualificação de passado por meio da modificação retencional de sua manifestação para
uma consciência presente. Pelo contrário, conforme a última ontologia de Merleau-
Ponty, é o tempo presente da consciência que se sustenta pelo passado imemorial do
mundo, por uma história ontológica mais ampla que aquela humana. Assim, em seus
anos finais, o filósofo não define o ser como aquilo que aparece, tal como fizera na
Fenomenologia da Percepção (Cf. PhP, 455), mas insere aquilo que aparece para a
subjetividade humana em um campo ontológico que não se esgota no aparecer
fenomenal. DMerleau-Ponty afirmar, em uma nota inédita, que “o Ser visto como o
Ser percebido está eminentemente contido no Ser”
68
. Esse Ser, esse campo ontológico
que engloba o ser percebido não deve ser concebido como em-si, objetividade positiva,
mas como ser sensível que prepara do seu interior a sua manifestação. Mas o sensível
não se reduz àquilo que se manifesta, àquilo que dele é apreensível diretamente; o
sensível é composto de dimensões que se apresentam como ausentes, de maneira
negativa. Numa outra nota inédita, o filósofo assevera: “o mundo antes de nós, antes da
consciência, no qual cremos, é esse além dos limites do campo de nossa vida, é o Ser”
69
.
Esse texto exprime que o modo pelo qual o ser é não se reduz ao que se manifesta
No entanto, Madison também afirma que “o fenômeno humano é um milagre porque nele e através dele
tudo o que existe se torna significativo” (Ibid., p.251). Madison também afirma que “o Ser sem o homem
não tem sentido, pois o homem (...) é o próprio sentido logos do Ser” (Ibid., p.243). segundo a
nossa interpretação, o fato de que Merleau-Ponty desvela uma sensibilidade inerente ao ser, a qual se
prepara do seu interior para a atividade perceptiva humana, não significa reduzir o ser a tal sensibilidade
ou assumir que o ser depende das capacidades humanas para possuir alguma estrutura ou sentido.
68
Nota 10a de novembro de 1959; ver item v do apêndice.
69
Nota 41a, de setembro de 1959; ver item x do apêndice.
247
perceptivelmente; pelo contrário, a manifestação fenomenal é incluída num processo
que a excede, mesmo sem ser totalmente estranho a ela. Assim, o ser se caracteriza nos
últimos textos de Merleau-Ponty não como um em-si completamente alheio aos
conteúdos das vivências perceptivas, e não somente como esse conteúdo, mas como um
campo geral de dimensões organizadas autonomamente e entre as quais, como um
desvio que as supõe mas que não as abarca, a experiência humana se desenrola.
Uma ontologia metafísica?
Para finalizar esse trabalho, consideremos um problema anunciado na
introdução, a saber, aquele de avaliar se o projeto ontológico final de Merleau-Ponty, ou
seja, se a apresentação de um ser sensível amplo, que inclui dimensões que transcendem
a presença ôntica (quer dizer, que transcendem a doação positiva e atual dos entes), é
uma empreitada metafísica. É verdade que no curso “A filosofia hoje” Merleau-Ponty
apresenta sua investigação como “metafísica no sentido clássico” (NC, 37), já que ela se
dedica a explicitar a totalidade do ser e suas articulações internas. Mas ali Merleau-
Ponty simplesmente parece retomar o espírito geral do Grande Racionalismo (século
XVII), a saber, tratar da totalidade do real sem confundir o ser com os objetos das
ciências, ou as investigações racionais com o conhecimento empírico de relações
causais (Cf. S, 186). Não se trata, sem dúvida, de assumir a idéia de um infinito positivo,
de um Deus todo poderoso que, criador e ordenador não do mundo natural mas
também das almas, legitimaria a expectativa de que há mais ser que aquele tratado pelas
ciências materialistas
70
. Trata-se apenas de reconhecer que os pensadores do século
XVII, ao não reduzirem o problema do ser àquele do conhecimento científico,
demonstraram uma consciência aguda da amplitude da experiência humana, a mesma
que Merleau-Ponty pretende reproduzir em sua própria pesquisa (Cf. S, 191).
A suspeita de que a empreitada filosófica final de Merleau-Ponty é metafísica
não vem simplesmente de sua filiação às intenções do Grande Racionalismo, que,
nesse caso, ao menos aparentemente, o filósofo soube separar tais intenções e a
realização delas por meio do apelo a um infinito positivo. Tal suspeita é alimentada
diretamente por algumas das principais teses da ontologia final de Merleau-Ponty.
Michel Haar nos ajuda a explicitar esse tópico. Segundo esse autor, Merleau-Ponty teria
universalizado o mundo percebido ou sensível, de maneira a tomá-lo como o próprio
70
Veremos que o apelo a um infinito positivo é justamente o que havia de metafísico no Grande
Racionalismo, no sentido que vamos precisar a seguir.
248
ser. Esse seria um procedimento metafísico: nomear como ser um ente ou uma
dimensão ôntica, a qual é então indevidamente hipostasiada. Além disso, a hipóstase
metafísica do sensível por Merleau-Ponty teria sido manifestamente insatisfatória, tal
como argumenta Haar: “para ser universalizável, mesmo metafisicamente, o mundo
percebido não deveria com efeito incluir todas as dimensões? Ora, salta aos olhos que
ele não possui nem a História nem a Fala. A universalidade se torna desde então uma
abstração metafísica”
71
. Haar não se limita, assim, a reconhecer traços metafísicos na
ontologia de Merleau-Ponty, mas nota que esses traços pouco convencem, dado seu
caráter abstrato, limitado.
A fim de avaliar essas críticas, retomemos a diferença, formulada na introdução,
entre ontologia e metafísica. Concebemos a primeira como o estudo dos aspectos mais
gerais do ser, ou seja, não como uma análise de algum ente em particular, mas sim do
próprio ser pelo qual se afirma que todos os entes são. Já a segunda, seria um certo
modo pelo qual a investigação ontológica se realiza. Historicamente a investigação
metafísica descreve o ser como algo absolutamente distinto do sensível, o qual seria
apenas um efeito secundário de uma realidade supra-sensível, quer dizer, realidade
exterior ao mundo manifesto, oposta às aparências e ainda assim causa primeira dessas
últimas
72
. Um aspecto particular desse modo metafísico de investigar o ser, tal como
acentua Haar, é a hipóstase de algum ente ou aspecto ôntico, o qual então é tomado
como ser, como princípio originário que excede todos os entes.
Historicamente a metafísica, no sentido delimitado acima, implicou vários
impasses teóricos, de modo que a designação de alguma empreitada filosófica como
metafísica significa uma qualificação bastante pejorativa. Entre esses impasses estão
aqueles de exceder o domínio da experiência e da verificação de hipóteses no geral, o
que reduz o discurso metafísico a um encadeamento lógico de conceitos cuja validade
objetiva jamais pode ser atestada. Além disso, a hipóstase injustificada de certas
características ônticas implica a incapacidade de apreender a complexidade do real,
que se favorece somente alguns de seus aspectos, tomados então apressadamente como
cânones para se compreender todos os demais. Vale notar aqui que, desde cedo,
Merleau-Ponty se preocupou, ao assumir uma inspiração “metafísica”, em afastar-se
desses impasses. Segundo a Fenomenologia da Percepção, se a metafísica for
71
Haar, M. art. cit., p.33.
72
Daí que o apelo a um infinito positivo seja marca de uma investigação metafísica, conforme
anunciamos na nota 70.
249
concebida como “emergência de um além da natureza” (PhP, 195), então deve-se
reconhecer que ela está “em todo lugar” (Ibid.), quer dizer, que ela não implica a
postulação de um reino supra-sensível, mas sim a reconsideração da amplitude do
próprio mundo sensível. No artigo “O metafísico no homem”, de 1947, Merleau-Ponty
explicita essa amplitude da metafísica: os outros, a história, a cultura, o mundo em
geral; todos esses temas seriam metafísicos (Cf. SnS, 115). Afinal, a experiência do
mundo, em suas diversas camadas (sensível, histórica, cultural, etc.), sempre extrapola a
estrita investigação causal-materialista das ciências da natureza. Sempre aspectos da
experiência irredutíveis aos esquemas heurísticos reducionistas, mas que nem por isso
são parte de um reino inacessível ao conhecimento humano. Quer dizer que a
metafísica, no sentido assumido por Merleau-Ponty, não é índice de um domínio supra-
sensível, mas de um tipo de consciência, de um modo particular de investigar os fatos
cotidianos, que não os reduz a objetos compreensíveis somente pelo aparato técnico-
matemático, mas que neles observa processos expressivos, latências fenomenais, etc.
73
.
Nós reconhecemos, conforme as citações acima, que Merleau-Ponty jamais
pretendeu se filiar à metafísica no sentido pejorativo. Mas nos interessa aqui questionar
se sua ontologia é metafísica, ou seja, se aqueles impasses mencionados no parágrafo
anterior podem ser atribuídos ao seu projeto final. De maneira geral, parece que não.
Como vimos no decorrer dessa tese, o filósofo não defende a hipótese de um ser supra-
sensível, o qual seria causa primeira das aparências sensíveis. Trata-se somente de
conceber um ser sensível amplo, que não rejeita a ocultação, a profundidade invisível.
Não se defende haver uma camada subjacente e exterior aos entes, e sim um excesso
dimensional inerente àquilo mesmo que se manifesta. A invisibilidade, em relação à
qual os entes visíveis estão centrados ou ordenados (Cf. VI, 278, jan. 1960), não é um
substrato independente dos entes, mas seu outro lado, seu inverso (Cf. VI, 303, maio
1960), ou seja, uma latência que entrecorta os próprios entes e que, assim, não é um
princípio autônomo deles separado. O ser dimensional que Merleau-Ponty tenta
descrever se deixa entrever por meio dos entes e está longe da descrição metafísica
do supra-sensível.
No que concerne à suspeita particular de Haar (de que Merleau-Ponty teria
hipostasiado um aspecto ôntico), cabe uma análise mais detalhada. Como expusemos
73
“A metafísica não é uma construção de conceitos pelos quais nós tentaríamos tornar menos sensíveis
nossos paradoxos; é a experiência que nós dele fazemos em todas as situações da história pessoal e
coletiva – e das ações que, assumindo-os, os transformam em razão” (SnS, 117).
250
no capítulo anterior, Merleau-Ponty realmente toma o ser sensível como universal, quer
dizer, como campo ontológico que envolve todas as dimensões do mundo (inclusive
aqueles da história e da fala, conforme Haar havia suspeitado) (Cf. S, 217). A
perspectiva de investigar o ser sensível em seu caráter bruto (quer dizer,
independentemente das idealizações antropológicas projetadas sobre ele) almeja
explicitar um campo anterior às cisões entre sujeito e objeto, atividade e passividade,
cultura e natureza. No início dos anos cinqüenta, Merleau-Ponty apontava para a
expressão como operador capaz de realizar a superação de tais dicotomias
74
. Embora a
expressão jamais saia completamente de cena e continue a exercer importantes papéis
na obra do filósofo (tal como aquele de explicitar a função criadora da arte e da
linguagem), deve-se notar que no final dos anos cinqüenta, o ser sensível universal é
apresentado como matriz da própria expressão, e, por conseguinte, como responsável
último pela superação de tais cisões
75
. Essa gênese da expressão no ser é clara em
relação à linguagem, que, segundo Merleau-Ponty, o ser bruto contém tudo o que
poderá ser dito e antecipa a produção criativa da língua
76
(embora não dispense essa
última, pois depende dela para se manifestar, cf. cap. IV). Além disso, mesmo a
expressividade perceptiva, quer dizer, a remissão espontânea dos fenômenos dados
àqueles visados, decorre de uma profundidade inerente ao mundo, a qual é condição da
organização das coisas em horizontes inesgotáveis (cf. VI, 268, nov. 1959; cf. cap. IV).
Como se vê, em seus anos finais, Merleau-Ponty de fato apresenta o ser sensível como
dimensão ou campo geral capaz de reintegrar algumas das cisões mais agudas da
tradição filosófica. Não certamente apelo a um infinito positivo, a um ser supra-
sensível que guardaria a inteligibilidade das aparências fenomenais para além do seu
caráter objetivo, mas a confiança em que um infinito negativo, quer dizer, um ser
74
“Há no fenômeno da expressão uma ‘boa ambigüidade’, quer dizer, uma espontaneidade que realiza o
que parecia impossível, ao se considerar os elementos separados, que reúne em um só tecido a pluralidade
das mônadas, o passado e o presente, a natureza e a cultura” (PII, 48).
75
De certo modo havia essa perspectiva mesmo no início dos anos cinqüenta. No texto “Titres et
Travaux”, de 1951, Merleau-Ponty exalta a investigação filosófica que se serve dos dados científicos e
afirma: “talvez essas pesquisas convergentes acabarão por evidenciar um meio comum da filosofia e do
saber positivo, e por nos revelar, aquém do sujeito e do objeto puro, como uma terceira dimensão em que
nossa atividade e nossa passividade, nossa autonomia e nossa dependência, cessariam de ser
contraditórias” (PII, 13). Aqui Merleau-Ponty parece apontar para uma camada de ser anterior às
antinomias clássicas.
76
“O mundo perceptivo ‘amorfo’ (...) é no fundo o Ser no sentido de Heidegger (...), que aparece como
contendo tudo o que será alguma vez dito” (VI, 221, jan. 1959). Em outra passagem, Merleau-Ponty
afirma: “se se explicitasse completamente a arquitetônica do corpo humano, sua armadura ontológica e
como ele se e se ouve, veríamos que a estrutura de seu mundo mudo é tal que todas as possibilidades
da linguagem aí estão dadas” (VI, 200).
251
sensível ampliado, que envolve latências dimensionais inesgotáveis, poderia resolver
praticamente todos os problemas filosóficos.
Ante esse infinito negativo, que se encontraria como latência nos próprios fatos,
Merleau-Ponty afirma: “eu sou contra a finitude no sentido empírico, existência de fato
que tem limites, e é por isso que eu sou pela metafísica” (VI, 300, maio 1960). Nessa
afirmação, não é tão claro se Merleau-Ponty distingue entre um sentido positivo de
metafísica e aquele sentido pejorativo, do qual ele sempre procurou se afastar. Afinal,
quanto a esse último, o filósofo se impressionava com a maneira inocente, ingênua pela
qual os grandes racionalistas recorriam ao infinito positivo e, desse modo, acabavam por
se identificar a tal sentido pejorativo (S, 189). No entanto, talvez Merleau-Ponty tenha
reproduzido um artifício semelhante ao atribuir tantos prodígios às latências
inesgotáveis do ser sensível. Concebido tal qual infinito negativo, o ser é apresentado
como o que prepara em si próprio sua manifestação subjetiva (cf. cap. III), como o que
contém antecipadamente a expressão lingüística e como dimensão oculta que resolve as
cisões substanciais clássicas e permite reconfigurar os conceitos filosóficos (cf. NC, 37,
39; VI, 219, jan. 1959).
É legitimo atribuir todas essas realizações ao ser sensível? Haar julgava tal
atribuição uma hipóstase metafísica, a qual, ainda mais, seria imperfeita ou abstrata,
pois o sensível não poderia incluir as dimensões da história e da fala. De nossa parte,
julgamos que a tentativa de ampliar o conceito de sensível era uma via pela qual
Merleau-Ponty antecipadamente se precavia contra tal objeção. O sensível não deve ser
compreendido como campo de assimilação fenomenal positiva, mas como conjunto de
dimensões que se apresentam de maneira originária, ainda que como ausentes
77
. Não
haveria, assim, universalização indevida de um aspecto ôntico (aquele da apreensão de
dados sensoriais
78
), mas tentativa de caracterizar o ser como latências inesgotáveis que
se fazem pressentir como excesso por meio dos entes (Cf. VI, 298, maio 1960). O
projeto de Merleau-Ponty de buscar as dimensões invisíveis da história e da cultura (tal
77
Daí que a doação do mundo para aperceptiva seja estudada, nos textos finais de Merleau-Ponty, não
como mera atividade sensorial, mas como “arquétipo do encontro originário, imitado e renovado no
encontro do passado, do imaginário, da idéia” (VI, 208). Essa doação originária, pela qual o sensível é
caracterizado e de que a percepção é o modelo, não exclui a exposição de ausências irremediáveis, as
quais, como vimos, são desveladas indiretamente (por apelo aos resultados das ciências e artes). Nesse
sentido, Merleau-Ponty afirma: “o sensível é precisamente esse meio em que pode existir o ser sem que
ele tenha de ser posto” (VI, 263, out. 1959).
78
Haar compreende de maneira excessivamente redutora “o campo ‘universal’ do Sensível” como o que
“se doa à percepção(Haar, M. art. cit., p.10), e não leva em conta que esse doar-se pode envolver
dimensões inevitavelmente ausentes.
252
como expusemos neste capítulo) explicita a preocupação de não realizar nenhuma
hipóstase indevida, que abstratamente envolveria a totalidade do real. Tratar-se-ia,
antesd1.000 0 Tm[(a)3.9(m)-1.9(os)-1.0( )-220(c)4.0(i)-i.0(i)-2.0(dar4.0(x)-10(t)-1.9(r)-1.0( nTQqá.0(da)4.0(de)4.(i)-1.9(os)-1.0( (e)1.9(os)-1.0( r4.0(x)d)4.(i)-m70.0(c)3.9(an1.9(os)10.0( )on9.9( )-140.0( j))2.9( 2.9(a)3.9((e)3.9(nt)-2.0(e)4.-10.0t2.0(e)4.0( ) pa0(a)3.9(o t)-1.9(r)os (e.9(a)3m70.0(c)-1.9(on10.0( )one)4.0(s)3.9(ãob.0(a)4.0(m)-dos poTQq.9(7q/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 85.17826 718.55149 cm1.697.9 0 0 1.00000 0 0 Tm[(i)-2.0(a)4.0(,)-H)(i)-2.0(daa0(a)3.9( )-.)3.0)-1.9L)Qq.0( )-270.0bTQq0(l)-12.(nt)-2.0(e)(ne)4.0(s)-100000(só)-1.0( )-50(t)-1(o )-o( )-50(t)m70.0(c)3.9(an(ne)4.0(s)-100000nos)-100000(só)-1.0( )-50(t)1.9(os)-1.0( )-50(t)0(l)-12.0(i)f0(upa)-6.0(0(l)-12.(nt) )-50(t)à1.0( )-6Qqf0(a)3.9(r)]lTJETQq, )-50(t)M.9(os)-1( )-20(l)-1l70.0(c)3.9(aQqu/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 498.69826 739.31115.891.697.9 0 0 1.00000 0 0 Tm[(i)-2.0(a)4.0(,)-/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 498.69826 739.31119.851.697.9 0 0 1.00000 0 0 Tm[(i)-2.0(a)4.0(,)-P)-.9(ão0t2.0ETy)90( )-6Qq1.9(e)3.9( )-boç.0(daa0(a)3 )-6Qq1.0.0(is.0(i)-2.(o )-/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 85.17826 718.55149 cm1.677.1 0 0 1.00000 0 0 Tm[(a)3.9(nt)-2.0(e)4.0(sd)-220(c)4.0(i)-i.0(i)-2.0(daç0(a)3de)3.9( )-8.9(t)-2.0(( )-9pí)-2.0(t)on1.9(os)10/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 175.77826 739.31149.011.677.1 0 0 1.00000 0 0 Tm[(a)3.9(nt)-2.0(e)d-1.0( r4.0(xa1( )-20(l)-1 )-9pí)-(ne)4.0(s)/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.0000050 0 12.00000 175.77826 739.31229 cm1.677.1 0 0 1.00000 0 0 Tm[(a)3.9(nt)-2.0(e)l2.0(e)4.0( )k9(r)] TJET/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 85.17826 718.551249.5m1.677.1 0 0 1.00000 0 0 Tm[(a)3.9(nt)-2.0(e)2.(nt) )8.9(t( )-7.9(m))3.9(an1a0(a)3m70.0(c)3.9(ante)3.9(x)-99Qq1.0.0(m70.0(c )-7.9(mg-1.0( r4(a)3.9(r)]lTJET )8.9(t)-269.9(e)3.9(x)-98.9(tum70.0(c )-7.9(mt4.0(de)4.0( )px)-98.9(tdo )-140.07.9(md)4.0( )m70.0(c)3.9(an1.9(os)de)3.9(TQq/Cs1 cs 0 0 0 scnBT/TT3 1 Tf12.00000 0 0 12.00000 85.17826 718.55149 cm1.656.5 0 0 1.00000 0 0 Tm[(i)-2.0(a)4.0(,)-10.1.9(dv)4.0( )s)-1.9Je.0(da)4..0(c )-21.9(m((l)-1C-1.9Jf(l)-1.)3.22QqV)0( )I)2(a)3,)3.22QqV).0))-1I)12q, )22Qq305, mm9((e)3.9(nt)ie)3.9(x)-9.2Qq1960ex. mNi
253
Merleau-Ponty, embora anule alguns dos problemas contidos em sua ontologia
fenomenológica dos anos quarenta (tais como aquele das conseqüências idealistas),
instaura novas dificuldades, para as quais a morte repentina do filósofo impediu que
alguma resposta articulada fosse oferecida.
descentrar a subjetividade e atribuir uma intencionalidade originária ao próprio ser (Cf. VI, 293, abril
1960).
Apêndice – Notas inéditas de Merleau-Ponty
A fim de tornar acessíveis as notas inéditas de Merleau-Ponty citadas em nosso
texto, reproduzimo-las a seguir exatamente conforme a transcrição de Renaud Barbaras.
As palavras entre colchetes indicam termos de leitura duvidosa ou anotações de
Merleau-Ponty à margem do texto principal.
a) Nota 50, sem data, agrupada ao esboço do plano e da redação de Être et Monde:
[...] Notre corporéité: ne pas la mettre au centre comme j’ai fait dans
Phénoménologie de la Perception : en un sens, elle n’est que la charnière du monde, sa
pesanteur n’est que celle du monde. Elle n’est que puissance d’un [léger] écart par
rapport au monde. Le fait que, par notre mort, notre monde disparaît, permet seulement
de dire que notre corps est cause de notre monde [...].
b) Texto datilografado n.13 (Mercredi 7 octobre [1958 ?]):
Transformer mon: esse est percipi
en écartant toute équivoque psychologiste: il ne s’agit pas d’anthropologie, il s’agit de
l’Être brut ou sauvage.
Il s’agit de rendre sensible l’Être non-substantiel, non-objectif, le Rose Sein
(Heidegger), l’Être qui n’a pas besoin de synopsis (cf. Sartre : il n’y a que de l’être.
Mais il prend dans cette phrase l’être comme identique. Il reste actualiste).
Créatures, homme, Dieu, confusion de notre pensée moderne à l’égard des
trois philosophies possibles, cette confusion liée à notre ignorance de l’Être.
Esquisse de l’ontologie interrogative qui l’expliquerait et la dépasserait. Sartre et
Heidegger. Mais cette ontologie à faire, nous ne pouvons la faire que moyennant
critique point par point du complexe cartésien (critique de l’Ens necessitarium et de la
pensée gativiste-positiviste) (et de toutes ses conséquences). [en marge : voir
Delhomme : La Pensée interrogative].
Voilà le plan prévu.
Mais peut-être faut-il commencer directement par une position de l’ontologie
interrogative i.e. par une description de l’être au présent, fondée sur une élimination de
l’ontique, de la causa sui, de l’ens necessarium.
255
Peut-être aussi : partir de résultats de la Phénoménologie de la Perception et montrer
qu’il faut les transformer en ontologie 1 / Passer de l’affirmation du « perçu » à celle de
l’être brut
2 / Passer de l’idée du corps comme sujet à celle de
l’être indivis.
Poser l’ontologie interrogative comme vision de la membrure nature-homme-être.
Dire que la conception de la philosophie qui est ici présentée dépend de ce qui sera dit
plus loin sur le langage, et ne le commande pas seulement. De même cette ontologie
dépend de ce qui sera dit sur les choses, sur la vie, sur la phusis, et ne le commande pas
seulement. Circularité.
c) Nota 12b, 27 de outubro de 1958 :
Dans mon introduction à l’ontologie
Reprendre les résultats de la Phénoménologie de la Perception et montrer dans
quel sens il faut les interpréter pour aller au-delà par ex. [...] en quel sens l’homme est
premier.
en quel sens cependant l’être
est, non du perçu, mais ce en vue de quoi est la perception [...].
Rappeler une définition de la vérité comme ambiguïté antéprédicative (et la
conception de l’imaginaire comme mythe qui est par même rendue possible) et cela
par opposition à la définition de la vérité comme Richtigkeit.
d) Nota 12 de um grupo de vinte e duas notas de 1958-9:
La vie [de l’emblystome] n’est pas une force cachée sous les détails observables,
« derrière » les apparences : dessous, derrière, on ne trouve jamais que d’autres détails.
La réalité et la totalité sont dans l’apparence, le devenir, la cristallisation que l’on voit.
Non certes dans l’apparence divisée par une attitude analytique, mais dans l’apparence
avant cette division. Cela est vrai de la multiplicité spatiale et de la multiplicité
temporelle d’une vie : elle est le champ qui n’a pas à se recréer à chaque instant ex
nihilo, et qui n’a pas de permanence substantielle, qui n’est à l’abri d’aucun accident,
qui persévère dans l’être si seulement ... rien ne vient l’interrompre.
[...]
Tout cela ne veut-il pas dire quelque chose comme ce que Ruyer dit (mal) ? A
savoir : la vie n’est visible et n’est qu’à une certaine échelle d’observation,
256
macroscopique, mais à cette échelle, entièrement vraie et originale. Elle est solidaire
donc d’une vision. Elle n’est pas en soi, comme le corpuscule insécable. Elle est par la
cohésion avec soi de la forme vraie...
Soit. Mais ce n’est pas dire qu’elle est pour soi, qu’elle est conscience, même
non sensorielle (qu’est-ce qu’une conscience non-sensorielle ?). Il faut donner un nom
et un statut à ce « lieu » se rassemble une vie. Ce n’est ni notre conscience, ni une
conscience. La notion d’échelle n’implique pas celle de sujets observateurs au sens de
« consciences », mais seulement celle de perspectives dessinées par un poste
d’observation, définies par un poste d’où... se fera la vision. Poussé à bout, la réduction
du monde à une suite de perspectives et d’échelles perd tout caractère subjectiviste. Elle
implique qu’on remanie l’idée du monde en une somme d’étants survolés. Elle n’est pas
anthropologique, ni anthropomorphique en ce sens qu’elle incorpore au contraire
l’homme à la finition du monde, fait paraître l’homme comme un ingrédient du
monde, morceau du monde qui se replie sur lui-même l’homme pré-humaniste,
l’homme brut, l’homme [fondateur]. Elle veut dire seulement que la totalité n’est pas
moins réelle que les parties.
e) Nota 40b, 28 de setembro de 1955 :
Reprendre la question de la cosmogonie du monde perçu.
J’admets que le corps est conditionnant par rapport au spectacle perçu, que
l’installation de ce spectacle se fait grâce à l’apparition, dans le monde perçu, de cet
appareil à vivre qu’on appelle mon corps vivant. J’admets dans cette mesure
l’antériorité de l’en-soi sur le pour-soi. Mais, par ailleurs, cet en-soi, je me refuse à le
concevoir comme le fait le réalisme des savants, je dis que dans sa texture même, il
renvoie à mon (un) centre de perspective, qui est à concevoir en termes de spectacle
perçu.
J’admets donc une dialectique, un double point de vue. Mais que signifie cette
dualité, à moins que ce ne soit passage d’un des points de vue dans l’autre ? Et que
signifie passage ? Car il ne faut pas que ce soit « enveloppement ». Il faut que ce soit
contact à distance, contact indirect, obtenu justement parce qu’il n’est pas chosifié, et
qui, sous le regard de la réflexion, devient l’impossible.
Surgissement dans mon champ d’un au-delà de mon champ (mes prédécesseurs,
mes consorts), non pas seulement l’X qui m’objective ou me [...], mais un alter ego
qui est « de mon côté », comme on dit qu’un enfant est « du côté » de son père [avec qui
257
j’entretiens un rapport (d’ailleurs réversible) de générativité (et si je suis son père, il est
mon père – ubiquité de la situation, totalité à l’intérieur de la partialité) ].
La « nature » n’est pas seulement en-soi d’où nous nous ..., mais elle comporte
cette couche de socialité : ce milieu « général » des consorts, leur apparition comme
rameaux d’une même souche.
Et cependant, ce qui est rendu possible par ces [préparations] « naturelles » les
rejette à distance, au passé, ou dépassé quand il passe à l’actuel. Suscitation d’une
liberté par une liberté, l’une est entée sur l’autre comme un corps sur un corps. Et nous
sommes entés sur l’animalité, et l’animalité sur la nature. L’homme ne peut pas devenir
homme, sinon en présence d’un adulte (les enfants « sauvages »). Ceci est l’attestation
de l’irréalité de l’individu.
Réellement, un enfant n’est rien si ne s’offre à lui cet instrument, dont il apprend à
jouer, avec lequel il apprend à devenir homme, et qui est un alter ego. Projection et
introjection, non « conscience ».
Et cependant, tout ceci est pour lui appel à être soi, individu de classe. La
généralité « naturelle » est donc conservée et transformée. La culture est, dans son
contenu, tout autre que la nature, et cependant elle est enracinée dans la Fortpflanzung,
la Fortpflanzung apparaît comme une préparation du rapport alter ego, comme faite
pour lui et lui, fait pour elle.
Donc on ne rattache pas le pour-soi à un en-soi comme à une condition par
rapport à laquelle il serait ultérieur. Le corps lui-même ne peut être perçu qu’intérieur
au champ phénoménal. Mais pas davantage il ne faut enfermer le corps et le monde
« réel » qui traîne après lui dans « ma représentation ». Car celle-ci se donne à moi-
même comme [continuant] une histoire et une nature, qui ne sont pas pour... la suite.
[Inutile] d’espérer enfermer tout ce déploiement extérieur dans un absolu qui soi sujet :
comme il ne serait pas le sujet au sens nous le sommes, il serait pour nous objet pur.
N’étant pas comme nous, fils de la terre, il ne serait pas un toi pour nous : il n’y a de
toi que celui qui peut me répondre, à qui je suis aussi nécessaire qu’il m’est nécessaire.
Ce qu’il y a, c’est donc des perspectives dont chacune s’éprouve comme
différente par rapport aux autres, manque des autres et les éprouve comme différences
par rapport à soi (=X) dont chacune sont les [parois épaisses] parce qu’elles sont tous
les autres sédimentés : mon corps est les autres corps, ma « psyché » les autres psychés,
moi comme sujet transcendantal n’importe quel autre... et cela non en vertu d’une
universalité solipsiste, mais parce que je pose le pied quelque chose est prêt à le
258
recevoir, j’enjambe les « conditions », je les implique dans mon geste, chacun de mes
gestes prend l’inconnu pour connu.
f) Nota 1a, dezembro de 1959 :
Catalogue de Giorgio de [Gisgi?]. [20 lignes de citations].
Cette idée des « éléments », non seulement des éléments de la nature, mais des
éléments de notre vie : la sculpture 58-59 est l’élément route de Carpentras à Aix avec
maman : lignes solennelles bordées d’ombres verticales comme des cyprès ou
horizontales comme les plans du Lubéron cette idée à appliquer à analyse nouvelle de
la subjectivité : erreur immense de la considérer comme flux des Erlebnisse. Elle est
avant tout champ, et même sa temporalité a cette structure. Absurdité de la concevoir
comme un présent ponctuel et la série indéfinie des Erlebnisse ponctuels-individuels qui
seraient le passé. Par exemple, ces sculptures me rappellent de beaux minerais, – un jour
quelqu’un me montrait, avec une sorte de ferveur qui me surprenait, des minerais, et
m’en donnait quelques uns, non sans hésitation. Je n’arrive pas à préciser le souvenir ni
le lieu et reste dans le doute : il me semble (mais plutôt par raisonnement, que c’était au
Congo belge, à E...-ville. Ce ne peut être que là. Mais qui ? Je sais seulement que c’était
une femme). Or ce « souvenir » n’est pas un Erlebnis individuel rejoint par rétention de
rétention dans sa singularité. Ni par « association ». Il est :
1 / une catégorie, un existential [lié], il est vraiment déposé dans cette sculpture que je
vois, comme est déposé dans les trois arbres de Martinville un certain appel.
2 / un élément donc au sens de l’eau, de l’air etc. c’est-à-dire non pas un objet, ni un
individu mais un mode de sentir. Le souvenir comme référence à un Zeitpunkt est à
comprendre comme cas limite de ces matrices. Il n’y a pas de Zeitpunkt, pas plus que de
point spatial. Il n’y a que des taches, temporelles comme spatiales, i.e. des êtres de
transcendance. Et celui qui comprend ces êtres de transcendance est champ et non pas
du tout « représentation ».
g) Nota 19 de um grupo de vinte e duas notas de 1958-9:
L’Être sensible ou brut
Montrer que cela ne veut rien dire: les choses sensibles n’existent pas. Ce qui
existe, ce sont les objets construits par la physique.
En réalité : dans la mesure ils peuvent être dits existants, c’est qu’ils sont
directement ou indirectement perceptibles ou sensibles.
259
A ce titre ils sont bien réels ou des traits du réel
Mais aucun d’eux n’offre la Selbstgegebenheit.
Ils ne sont réels que comme prédicats ou [...] des choses sensibles.
L’être sensible comme transcendance.
C’est lui qui stiftet tout être. Il n’y a pas à choisir entre lui et l’objet de science
d’ailleurs. Car l’être sensible ne se confond nullement avec ce qu’il y a [« d’énoncé »]
dans les qualités sensibles. Et, dans sa structure de champ, il est précisément homogène
à l’objet de science au sens moderne.
Possibilité, d’ailleurs, d’une mathématisation éventuelle aussi bien des sciences
sociales que de psychologie. Ce qui est certain seulement, c’est qu’elle ne nous donnera
pas l’être du social, l’être du monde, la philosophie.
Aucune rivalité, de même, entre mathématisme en biologie et biologie
descriptive.
Le monde de la philosophie, c’est le monde dans son relief, le monde brut et le monde
élaboré dans la perspective du monde brut, c’est le monde de l’homme vivant et non pas
le monde plat des objets.
h) Nota 4 de um grupo de vinte e duas notas de 1958-9:
Valeur du dualisme ou plutôt refus d’un monisme explicatif qui aurait recours à
ontologie « intermédiaire ».
Je cherche un milieu ontologique, le champ qui réunisse l’objet et la conscience. Et il le
faut bien, si l’on veut sortir de la philosophie idéaliste.
Mais le champ, l’être brut, (celui de la nature inanimée, celui de l’organisme) ne doit
pas être conçu comme une étoffe dans laquelle seraient taillés et l’objet et la conscience,
et l’ordre de la causalité et celui du sens. (En marge : donc il faut éclairement radical du
rapport esse – percipi).
C’est une fiction d’imaginer entre le cu et le corps objectif tout un grouillement dans
la nuit [d’êtres] de raison qui seraient des champs superposés et faisant la liaison du
monde de la causalité et du vécu.
Ma vision de l’être brut doit être le refus d’un tel « intermédiaire ». C’est l’idée
d’une philosophie comme usage préobjectif du concept, d’une philosophie comme
remise en présence de la magie naturelle l’objectif et le subjectif sont indivis et
communiquent par leur lien paradoxal, c’est l’idée d’une philosophie comme autre
intelligibilité que l’intelligibilité d’entendement.
260
i) Nota 36a, agosto de 1959 :
Sur Sarte (11 lignes).
[...] Perception. Configuration.
Il y a le possible de réflexion, celui qu’on définit comme attribut de la conscience
« représentation », « projet », « ek-stase ». Et il y a le possible brut ou sauvage, celui
des contours, des « configurations », celui des choses « cachées » par d’autres, celui de
l’effet tunnel, la masse de l’être qui fait que l’être n’est pas être-perçu [...]. Être de
latence, préobjectif.
Possible vertical, moment du monde vertical. L’autre est possible perceptif, celui de la
« possibilité permanente de sensation » sans Vorhabe, qui n’est rien d’autre que : si je
pensais le mouvement, cette expérience serait donnée, donnée dans le sens d’en-soi.
j) Nota 26b, 1958 :
L’esprit ou la conscience déborde le corps phénoménal émergeant (émergent)
dans l’invisible. Il y a là un certain dualisme, incontestable.
Mais ce dualisme ne signifie pas deux substances : il signifie seulement un certain
porte-à-faux de la signification pointant hors la masse du visible. Il signifie un certain
écart par rapport à un niveau où âme et corps se recouvrent.
De même ce [dernier ?] niveau ne signifie pas monisme. Il signifie seulement
que l’esprit prend son élan dans l’ordre de la couche du sentir et de la nature.
Le corps, l’esprit n’est « ni premier ni second ». Ceci à la fois contre monisme et
contre dualisme.
Mais il faut aussi rejeter la conception dialectique [nouvelle], qui n’est rien
d’autre que la bêtise d’un esprit [superstructure formant] l’existence. Bêtise d’idées
telles que : le corps, c’est l’esprit en soi, ou l’esprit, c’est le corps pour soi. Bêtise de
l’hégélianisme.
l) Nota 92a, 11 de janeiro de 1959 :
1/ Non pas une philosophie du pour soi et du pour autrui, mais une philosophie du
Füreinander.
2/ Autrui est l’être non Urpräsentierbar, qui n’est pas susceptible d’être donné lui-
même, sans médium interposé, mais cela il l’est absolument : il est donné lui-même
comme ce qui n’est pas originairement donnable.
261
3/ La corporéité se déduit de la pluralité des sujets : dès qu’ils sont plusieurs, ils sont
donnés l’un à l’autre du dehors, i.e. donnés comme non-donné – présence d’une absence
– manques – négativités qui ne sont pas pour moi seulement.
m) Nota 7, fevereiro de 1960 :
Le langage – l’appareil qui engendre pour nous des perceptions de l’invisible.
Les perceptions du visible sont déjà perceptions de l’invisible : la couleur
devenant invisible quand elle passe en niveau.
L’esprit, le concept, le spirituel ne sont rien que cette structure remaniée,
reconstruite par le langage.
Et, au delà du langage, par le milieu dans lequel il fait signe et qui est aux idées
ce que le monde sensible est aux choses : l’Être.
n) Nota 24b, 1958 :
La guerre, l’histoire, le social, les êtres culturels, comme êtres invisibles. C’est-
à-dire non pas comme significations mais comme... ces arceaux qui unissent dans
l’invisible, les visions [?] que nous voyons, ce vers quoi font signe les traces sensibles
d’un passage de l’événement.
les pivots, les matrices symboliques sont de cet ordre.
Ce non-être sur lequel s’appuie tout l’être de notre vie historique mais : [bêtise de l’idée
de... en face de cela] ? [+ 7 lignes]
o) Nota 54a, maio de 1959 :
Sur l’ouverture -> Fin:
Tout dépend de la saisie du « noyau d’être » dont parle Sartre. Tout dépend de la
possibilité de concevoir une intuition qui ne soit pas coïncidence avec l’Être, mais
vraiment ouverture, qui donne un sens ouvert et non pas un sens clos, i.e. une intuition,
non pas négativiste positiviste, mais vraiment Offenheit. [...].
La subjectivité est temps mais tout temps n’est pas de subjectivité le temps comme
ontogenèse.
p) Nota 2b, 1958 :
Le problème : les structures du temps (cyclique etc.) que révèle l’ethnologie
sont-elles des modalités empiriques, des contenus, des objets ou bien sont-elles des
262
temporalités, bien que la réflexion montre que le temps est unique, comme condition a
priori d’un monde. Ce problème ne comporte pas de solution dans les termes il est
posé là.
Il n’en comporte que si l’on revient du temps schématisé en objet ou
représentation (forme de l’intuition et intuition formelle) à un temps préobjectif et
présubjectif, dont la perception est imperception il faut qu’ici l’« objet » soit, non pas
positif, mais négation de la négation, que la présence soit non-absence, bref que le
temps soit lui aussi mis au nombre des transcendants, être à distance qui ne comporte ni
proximité absolue, ni coïncidence, ni même cette forme subtile de coïncidence qu’est le
« déploiement ». Le temps est ce par rapport à quoi certaines équivalences perceptives
fonctionnent, ou certaines différences, certains écarts. Le temps qui n’est ni nous ni hors
di nous, ni objet ni sujet, mais la membrure même du champ, l’axe autour duquel il est
monté exclut la question de savoir comment il en vient à être pour nous, à être perçu.
Il est dimension d’un champ par lui même amorphe, distribution de valeurs ou de
significations. Comme tous les autres perçus, il se forme, non pas devant nous, mais
entre nous et les « choses ».
Dans ce temps là, ni sériel ni cyclique, qui n’est pas fait de maintenant mais que
est tout apparence, apparence irrécusable, qui n’est jamais contemplé mais toujours
entre nos actes de contemplation, toujours marginal, on peut dire sans contradiction
qu’il est commun à tous les hommes et qu’il n’empêche pas les structurations les plus
opposés, précisément parce que son mode d’être n’est pas l’être-objet, la signification,
mais l’écart entre significations.
L’idée de l’être-à-distance exige corrélativement une idée de la noesis comme
[constellation] [fourmillante] de chemins possibles, d’itinéraires esquissés (la
« sensation » est au bout de ces chemins). L’idée de la perception comme non-
imperception exige aussi un remaniement complet de toutes nos notions du sujet : s’il
n’y a pas thèse il n’y a pas acte, s’il n’y a pas acte, il y a écart par rapport à une
perception globale du monde qui elle-même n’est pas un acte.
q) Nota 4b, 1958 :
Retour à l’Être brut – [ ] : des variétés empiriques ne peuvent rien prouver contre
notre a priori.
Revenir au temps, à l’espace bruts, sauvages, antépredicatifs, « amorphes »
comme à la matrice d’où dérivent les temps cycliques, sériels, etc. On dit : les temps
263
cycliques par ex. ne sont pas d’autres temps, ce sont des contenus, contenus qui, devant
la réflexion, impliquent le temps sériel comme leur condition a priori, ainsi que
[l’indique ?] Kant, puisque ce temps est [ ] ce par quoi est possible la [.....keit]. Mais
cette référence au temps occidental-cartésien comme terme d’une alternative dont
l’autre est néant de pensée et d’être, c’est précisément l’illusion des illusions. La
distinction de forme et contenu, la promotion du temps sériel au rang de forme
universelle de la [.....keit] corrélativement la gradation des autres temps au rang de
« contenus empiriques » « la limite impensables ») c’est précisément ce qui est en
question.
[...]
=> Car le philosophe avec son algèbre de l’être et du néant vise le monde même
et le logos même dont la philosophie est dans le meilleur des cas un équivalent formel et
[ultérieur].
r) Nota 51 (16. VI. 1959) :
Les psychologues montrent que notre appareil perceptif traduit quelquefois en
relations temporelles des relations spatiales (mouvement stroboscopique). Cela veut dire
qu’il est comme un langage dans lequel certaines équivalences permettent des
« opérations » formelles ou aveugles. Il semble en résulter qu’il n’y a pas d’expérience
de l’espace ou du temps, que les espaces et les temps sont toujours des significations
attribuées.
Cependant, il n’y a pas à choisir entre une conception de l’espace et du temps
comme systèmes, langages, et une conception intuitive. Qu’il y ait des illusions fondées
sur les connexions du système ne prouve pas qu’il n’y ait pas d’expérience. Car la
distribution des temps et des espaces est elle-même un phénomène de champ, tout ce
qu’elle prouve, c’est qu’il y a, au-delà du champ temporel ou spatial, un champ
universel, c’est que l’expérience du temps et de l’espace « Selbst » n’est jamais isolée,
qu’elle est centrée [sur/dans/par] une expérience de l’être temps et espace
s’échangent selon une syntaxe étrange. Mais cette expérience de l’être indivis, système
de systèmes, chose des choses, est intuition. Et celle de l’espace et du temps
« attribuées » à des [traits] qui la distinguent de l’espace et du temps vraiment vécus.
(Pourtant j’ai admis dans Phénoménologie de la Perception l’ambivalence de
l’imaginaire et du réel).
264
Temps et espace sont lambeaux de l’expérience intégrale qui est l’expérience du
« Il y a » d’espace-temps. Le mouvement stroboscopique : réapparition du « Il y a » (le
« quelque chose qui se meut ») entre les « positions » qui deviennent sa « trace » : la
« syntaxe » de l’appareil perceptif n’est que sous-produit du « Il y a » de transcendance.
Problème classique : Il y a une conscience de l’espace et cette conscience de
l’espace est à son tour saisie comme laissant un sillage temporel tracé par le je
transcendantal dans le moi empirique.
En partant de la présence d’espace-temps, en faisant de la spatialité un moment
du temps ou de la temporalité un ingrédient indispensable de l’espace, je défais la
dualité : expérience externe – forme du sens intime : il y a un espace du sens intime, et il
y a tissu temporel de l’expérience externe. Le temps cesse d’être une « série ». L’espace
n’est plus simultanéité que de simple vue, par transcendance.
A l’égard de la présence d’espace-temps, l’analyse réflexive n’est plus possible,
qui fondait espace et temps sur un tracé actif, et le lié sur la conscience de liaison. Car
les liens intérieurs à l’espace et ceux qui soutiennent le temps sont désormais
indiscernables : le Dasein est « spatial » et le monde est « subjectif ». Ce qui était
construction ordonnée devient Ineinander, unité d’indivision. Corrélativement, il n’y a
plus conscience de ... l’espace et conscience du ... temps : comme Husserl l’indique, le
passé proche, le passé originaire, n’est pas intentionnalité (pas plus que la « synthèse »
de champ spatial). C’est déhiscence. En disant que le temps est Selbsterscheinung,
Husserl ne dit pas qu’il est « conscience », mais que la « conscience » est flux. Je
continue en disant que l’espace est Selbsterscheinung. La zone de Selbsterscheinung
le champ de la présence espace-temps est conçue elle-même comme arrachement et
non synopsis, écart par rapport au ici-maintenant, Ineinander des Espaces et des Temps.
Il n’y a rien d’autre que cela en moi : le temps serial, l’ordre « objectif » des souvenirs
est construction et sédimentation par le langage et les repères, est idéalisation. La
mémoire originaire est faite d’existentiaux qui, comme contours du paysage temporel,
renferment possibilités instituées d’explicitations, matrices symboliques les apports
de la vie viennent s’inscrire et faire notre « monde » du pour autrui. Une personne,
quelqu’un, est pour nous une telle matrice de là les condensations et déplacements. Et
le problème est de comprendre de quelle sorte est le savoir de présence. Je montre qu’il
est perception-imperception, écart, et que tout ce qui s’y ajoute est encore écart, et que
tout l’édifice d’une vie est aussi construit sur des différences de significations. Mais, de
265
même que cette analyse saussurienne du langage renvoie à une source mythique du
langage (la « convention » d’avant toutes les « conventions ») se fait le surgissement
du langage, de même l’analyse de la présence d’espace-temps comme degré zéro de
toutes les variantes ultérieures renvoie à un horizon d’être.
s) Nota 41, 14 de junho de 1959 :
Insister sur le « passage » du présent : il passe i.e. il va plus loin, il s’éloigne,
mais aussi, puisqu’il reste lui-même dans ce passage, et que je suis hanté par un autre
présent, c’est moi qui éloigne. Comme dans le train : je vois les [vaches] passer et je
sais bien que c’est moi qui passe, du moins [en portant mes yeux assez loin]. Le passé
proche me semble s’éloigner. Le passé lointain ne bouge plus et c’est moi qui m’en
éloigne. Husserl a bien vu que le temps ne paraît en-soi que dans le [... erinnerung] et
non dans la rétention.
t) Nota 65b, do projeto de curso de 1959 :
Cours – conclusions
Montrer dans la conclusion que la question n’est pas du tout de savoir si la
dialectique est « dans les choses » ou « dans les consciences ». Les deux attitudes sont
anti-dialectiques.
Ce qui est dialectique, le seul milieu de la dialectique : « les relations entre
personnes médiatisées par les choses ».
i.e. Stiftung et dialectique
La dialectique, par principe, dépasse le problème [décisionniste] : sens en soi ou
sens pour ma Sinngebung. Certes elle n’opère pas de soi et il faut toujours qu’elle soit
reprise par une conscience vivante pour opérer. Mais néanmoins elle n’est pas intérieure
à cette conscience : elle a ses articulations, elle est un temps universel, qui ne trouve
dans la temporalité du pour soi qu’une réplique et non son fondement.
u) Nota 14b, 27 de outubro de 1958 :
Temps la réflexion sur le temps [que ce soit Saint Augustin, Leibniz, ou
Kant] sous-entend toujours que la conscience du temps est conscience d’une série
temporelle effective on cherche cette série temporelle, on montre qu’elle ne peut être
qu’ « interne » (Husserl) ou qu’elle a en tous cas toujours de conditions internes (Kant) :
266
mais on omet de remarquer que le temps, s’il doit pouvoir s’appliquer à toutes choses,
ne saurait être l’une d’elles ; que la conscience du temps ne peut être coïncidence avec
.... ou constitution d’une série qui serait elle-même tout au plus un être temporel (un
étant au sens de Heidegger).
On ne peut finalement comprendre le temps que comme « pivot »,
« matrice symbolique », ou Geschick : système signifiant, noyau de significations,
articulation du Welt, son articulation fondamentale. Le recours à une série [intérieure ?]
(ou à la conscience d’une série intérieure) n’avance à rien si cette série ne trouve pas
son origine dans un type de déploiement de l’être, dans un [Fug ?] (Fug : droit, faculté ;
Fuge : joint, jointure).
Mais alors comment faire comprendre (comment admettre même) la
conséquence : que je ne suis pas dans [ ? ] le temps ? Pourtant, c’est bien sûr, je n’en
suis qu’à ce point du temps où nous en sommes.
Réponse : preuve que c’est vraiment l’être qui se temporalise et non moi qui
surajoute le temps à l’être comme condition de sa Gegenständigkeit.
v) Nota 10a, Novembro de 1959 :
La pensée est absolument comparable à la perception. C’est le jugement qui en
diffère (la proposition) – mais la pensée productive, et aussi la pensée parlante (qui n’est
pas faite de statements qui, comme la mélodie, n’est pas « réversible »), la « lumière
naturelle » est absolument de l’ordre de la perception : il y a, ici, comme là, champ,
matrices symboliques, lacunes, écueils, niveaux, transparences, perspectives ici
comme le problème des « rapports » du sujet et de l’objet est dénué de sens. L’Être
vu comme l’Être perçu est éminemment contenu dans l’Être. Le « problème » de la
« préexistence » de vrai n’a pas plus de sens que celui de la préexistence de l’en soi
physique.
x) Nota 41a, setembro de 1959 :
Croyons-nous à l’existence des hommes des antipodes ou des hommes des
siècles passés ? Quand on voit photographie (ou cet après-midi tableau d’un pêcheur de
Belle-Île par Monnet en 1886), on s’aperçoit que nous n’y croyons pas et ne pouvons
pas y croire. Il faudrait nous installer dans un avant nous d’où nous serions futurs
contingents, dans un loin de nous d’où nous serions une ombre, c’est impossible. La
préexistence des hommes et du monde, nous n’y croyons que comme nous croyons à la
267
chose avant l’éclairage qui la dévoile : parce qu’elle n’est pas éclairage, parce qu’elle a
ses limites et que l’éclairage est un élément sans limites, parce que la perspective
temporelle conduit vers ce qu’elle éclaire le monde avant nous, avant les consciences,
auquel nous croyons, c’est cet au-delà des limites de champ de notre vie, c’est l’Être. La
mémoire du monde, c’est l’Être, c’est l’inscription.
z) Nota 31a, setembro de 1959 :
Non ? à la fin des phrases, sorte de particule ajoutée depuis 1930.
Cf. La particule Ti (Vendryès).
Il faut considérer le parole comme articulé sur des matrices symboliques,
exactement au même titre que la perception. Matrices symboliques qui ne sont pas des
[concepts], mais des pivots ou charnières, des systèmes tacites d’équivalence. Valeur
d’emploi: structure perceptive. C’est par qu’on voit que parler n’est pas penser le
langage. Le langage se perçoit et se pratique comme l’espace brut se perçoit et se
pratique dans le mouvement.
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