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cultural construída sobre esses parâmetros (Cf. PhP, 494). Em O Visível e o Invisível,
uma tese semelhante é atribuída à filosofia reflexiva, para quem “é fora de questão que
o mundo possa preexistir à minha consciência do mundo” (VI, 70). É para esse tipo de
filosofia (a qual atribui ao pensamento humano o papel de organizador da experiência)
que não há interrogação “sobre o que pode ser o Ser antes que ele seja pensado por
mim” (VI, 72). Segundo a filosofia reflexiva, os objetos mundanos devem corresponder
à atividade constitutiva do sujeito, ou seja, devem ser moldados segundo os poderes de
síntese desse último. Na Fenomenologia da Percepção, esse tipo de limitação da
amplitude do ser conforme as capacidades subjetivas de reconhecimento ainda
continuava em vigor, embora não mais em relação ao pensamento e sim às estruturas
perceptivas do corpo. Por meio da atividade perceptiva, o corpo era responsável, nesse
livro, por atribuir uma estrutura ordenada ao mundo (Cf. PhP, 494). Desse modo, o
sujeito perceptivo descrito por Merleau-Ponty repetia a função geral que o sujeito
cognitivo exerce na filosofia reflexiva
7
. Em O Visível e o Invisível, o filósofo
problematiza essa concepção: a abertura perceptiva apresenta o mundo, mas não em sua
totalidade, pois o ser pode se encobrir ante as estruturas corporais, ou seja, pode não se
doar diretamente como visível, tangível, etc., mas permanecer como aspecto ou
dimensão invisível, que só se doa originariamente como ausência
8
.
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Seguimos, quanto a esse ponto, a interpretação de Vincent Peillon (La Tradition de l’Esprit. Itinéraire
de Maurice Merleau-Ponty. Paris: Bernard Grasset, 1994, p.150-1). Esse autor defende que embora
Merleau-Ponty sustente uma concepção de sujeito bem diferente daquela de Descartes ou Kant (filósofos
tachados de intelectualistas na Fenomenologia da Percepção), seus resultados são convergentes com os
desses autores. Merleau-Ponty censura Descartes e Kant por favorecerem o sujeito como constituinte das
relações com o mundo. Entre sujeito e mundo deveria haver relações “rigorosamente bilaterais” (PhP,
IV), isto é, esses autores deveriam considerar que ambos os pólos, subjetivo e objetivo, contribuem
igualmente para a elaboração da experiência vivida. No entanto, dificilmente o próprio Merleau-Ponty
sustentaria tal reciprocidade entre sujeito e mundo. Embora tente reconhecer uma transcendência inerente
ao mundo, ou seja, uma densidade e autonomia que escapam aos poderes da consciência, Merleau-Ponty
acaba por defender que é o próprio sujeito que atribui transcendência ao mundo (já que em seu
movimento de existir, sempre se lança para fora de si e molda assim um campo ontológico exterior a si), e
que as articulações e estruturas que compõem o mundo são aquelas que correspondem às capacidades
perceptivo-motoras do sujeito (Cf. PhP, 491-2). É claro que para o fenomenólogo francês o sujeito da
experiência é o corpo próprio, o qual não forja representações de objetos baseadas em categorias
formais, mas se refere a situações que se perfilam gradualmente e jamais são possuídas por completo (Cf.
PhP, 163, nota). Mas mesmo ao apresentar como sujeito da percepção não uma consciência conceitual e
sim o corpo, Merleau-Ponty ainda defende na Fenomenologia da Percepção que é por meio de poderes
subjetivos (no caso, não poderes intelectuais, mas perceptivo-motores) que o mundo recebe a sua
estrutura geral (Cf. PhP, 494).
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E essa dimensão invisível estrutural, que de direito escaparia aos poderes perceptivos, não se confunde
com os casos em que ocorre a percepção da ausência de determinados objetos (tal como Merleau-Ponty
considerava na Fenomenologia da Percepção – cf. nota 6 supra). Nesses últimos casos, o ausente em
questão poderia ser assimilado como presença, como algo que se doa positivamente; por sua vez, não há
essa possibilidade em relação à dimensão invisível do ser.