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CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Mirelle Ferreira Borges
Heitor Villa-Lobos, o músico educador
Dissertação de mestrado apresentada
ao Departamento de História do
Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia da Universidade Federal
Fluminense como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em
História.
.
Orientador: Prof. Dr. Jorge Ferreira
Niterói
2008
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Resumo
A dissertação aborda as idéias de Heitor Villa-Lobos, contextualizando-as
historicamente. A partir dos anos de 1930, o maestro colocou em prática o
seu projeto do canto orfeônico cujo objetivo era ensinar a música nas
escolas, despertar o civismo e unir a nação, que cantaria a uma só voz.
Apresentando a sua estética monumental, Villa-Lobos inseriu-se num
grupo de intelectuais que, a partir do apoio estatal, percebeu a
possibilidade de colocar em prática os seus projetos. Para isso, trabalhou
intensamente na organização dos espetáculos orfeônicos, que contavam
com a presença de inúmeros políticos importantes e atuantes no período. À
frente da SEMA (Superintendência de Educação Musical e Artística), o
maestro organizava a estrutura administrativa necessária à implementação
do seu ideal. Pretendo recuperar o pensamento de Villa-Lobos enquanto
educador e analisar a relação entre Estado e Intelectuais no período de
1932 a 1945 utilizando os conceitos e métodos oferecidos pela História
das Idéias e pela História Política Renovada
.
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Abstract
This dissertation discusses the ideas of Heitor Villa-Lobos,
contextualizing them historically. From years of 1930, the conductor put
into practice the choral society project, whose goal was to teach music in
schools, arouse civic pride and unite the nation, which would sing in one
voice. Presenting his monumental aesthetic, Villa-Lobos entered into a
group of intellectuals who, from the State support, saw the possibility of
putting in practice their projects. For achieving that, he worked intensely
organizing choral society spectacles, which was attend by numerous
important engaged politicians at the period. As a director of SEMA
(Superintendency of Artistic and Musical Education), the conductor
organized the administrative structure wich was necessary to the
implementation of his ideal. I plan to recover the Villa-Lobos thought as
an educator, and analyze the relationship between the State and
Intellectuals from1932 to 1945 using the concepts and methods provided
by History of Ideas and the Renewed Political History.
Palavras-chave: 1. Canto orfeônico. 2. Intelectuais e Estado. 3. Heitor Villa-Lobos
4
4
SUMÁRIO
Agradecimentos......................................................................................................................4
Introdução..............................................................................................................................6
Capítulo I - Ministério Capanema: Intelectuais e políticas públicas
1. O ministério e suas políticas públicas...............................................................................13
2. Intelectuais, Estado e Ministério Capanema ....................................................................36
3. Villa-Lobos e a SEMA..................................................................................................... 51
Capítulo II - O pensamento de Heitor Villa-Lobos: Educação e Música
1. As palavras do maestro.................................................................................................... 59
2. Contextualizando as idéias de Villa-Lobos...................................................................... 80
Capítulo III - O Brasil cantando a uma só voz: Estado, música e nacionalismo
1. A história do canto orfeônico........................................................................................... 87
2. O embate entre Villa-Lobos e o Estado......................................................................... 108
3. O nacionalismo de Villa-Lobos..................................................................................... 115
Considerações finais.........................................................................................................120
Fontes.................................................................................................................................123
Bibliografia.......................................................................................................................126
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5
Agradecimentos
São muitos a serem citados. Agradeço à minha família e ao meu orientador pela
compreensão e dedicação. Aos meus amigos que me distraíam nos momentos mais difíceis,
aos meus alunos que me ensinam tanto em cada dia, aos meus colegas de trabalho que
torceram tanto por essa pesquisa. Agradeço pelo incentivo, palavras de apoio e carinho.
Aos funcionários do Museu Villa-Lobos pela paciência e boa vontade. A todos os que estão
presentes em minha trajetória, pois representam para mim, sinceramente, alavancas de
crescimento, possibilidades de aprendizado. O aprendiz estuda, se dedica e compreende que
tem sempre mais a aprender. Quando nos deparamos com um desafio, enxergamos mais
atentamente a importância de todos os que estão ao nosso redor.
6
6
Introdução
“Na verdade, cada coisa [Ding] capaz de se modificar traz em si a
própria medida de seu tempo; essa medida continua existindo;
mesmo se não houver mais nenhuma outra ali; não há duas coisas
no mundo que tenham a mesma medida de tempo(...) Pode-se
afirmar, portanto, com certeza e também com alguma audácia, que
há, no universo, a um mesmo e único tempo, um número incontável
de outros tempos”.
Johann Gottfried Von Herder
Em tempos do Ministério Gustavo Capanema, várias características de outros
tempos são superpostas. Embora fosse marcado pela inovação, o seu desenvolvimento
contava com a elaboração de determinada cultura política que já se apresentava antes
mesmo da “eclosão” do movimento modernista. Arrebatador, o Ministério expôs
transformações extremamente significantes nas esferas da Saúde, Cultura e Educação. A
partir da necessidade de construção de uma mentalidade que “confortasse” as vontades
políticas daquele momento, intelectuais entram em cena descortinando os véus da
nacionalidade que deveria ser construída.
Diante de contexto tão desafiador, entra em cena o Maestro. O compositor Heitor,
de mente efervescente, capaz de criar fantásticas histórias que serão repassadas por
gerações e gerações, repetidas em diversos momentos da historiografia. Heitor Villa-Lobos,
o músico educador, desenvolveu na década de 1930 um projeto educacional que pretendia
estabelecer o ensino do canto nas escolas, cujo objetivo era despertar o gosto pela música, o
civismo e a cidadania, que, naquele momento, apresentava linhas bem diferentes dos
tempos atuais.
Antes mesmo dos laços unirem as políticas públicas implementadas no Ministério
Capanema aos projetos do maestro, uma geração de intelectuais iniciava a atuação no palco
da construção do “cenário” nacional. Diversas tendências surgiram, a educação se tornou a
arena de debates onde as bases da construção da nacionalidade se consolidariam.
Representantes de diversos setores, militares, Igreja, intelectuais de Minas Gerais, Rio de
Janeiro, São Paulo, integrantes do movimento modernista, escreviam então as suas versões
da história.
7
7
Recém-chegado da França, em fevereiro de 1932, o maestro Villa-Lobos recebeu de
Anísio Teixeira o convite para chefiar o Serviço de Música e Canto Orfeônico da capital da
República. Acusado por alguns estudiosos de aceitar o projeto apenas por uma questão
monetária, o músico trabalhou exaustivamente para implementar o seu projeto, organizando
então inúmeras concentrações orfeônicas em diversos estados do Brasil, convidando a
nação a cantar a uma só voz. O propósito era a integração, nas palavras do maestro “a
elevação das almas pela música”. Destinadas a estudantes, trabalhadores, donas de casa,
ricos, pobres, militares, civis, as concentrações apresentavam a verdadeira majestade da
monumentalidade pretendida.
Em 1932, Getúlio Vargas assinou um decreto que tornava obrigatório o ensino do
canto orfeônico em todas as escolas no Brasil, ou seja, o Estado patrocinou o projeto de
Villa-Lobos. De 1932 a 1941 o músico se dedicou às pesquisas sobre educação musical,
elaborando textos, métodos e aulas que se encaixassem no perfil das escolas brasileiras.
Assim, para facilitar o ensino de ritmo, regência de corais e notação musical, criou o
sistema de Manossolfa. Em 1936, Villa-Lobos foi convidado para apresentar seu plano
educacional no I Congresso de Educação Musical de Praga, sendo o único representante da
América Latina.
Para entender o elo existente entre Villa Lobos e o Estado, é importante
contextualizar historicamente o período em que Villa Lobos esteve inserido. Getúlio
Vargas, em 1930, representou uma ruptura histórica na relação Povo – Presidente da
República. Getúlio criou normas trabalhistas e voltou-se para a negociação com o povo.
Segundo Ângela de Castro
1
, existiu um sistema de troca simbólica, uma negociação entre o
presidente e os trabalhadores. Não se trata de uma classe trabalhadora manipulada e sem
consciência. As pessoas sabiam negociar com o poder. O modelo adotado pelo Estado seria
a ampliação da participação do povo, organizada nas associações profissionais, sindicatos
que poderiam ser oficializados. Esta era uma forma de organizar e também de direcionar as
reivindicações trabalhistas.
Alguns estudos realizados sobre o período priorizam a repressão e a propaganda
política na análise do governo Vargas que teriam permitido uma “manipulação” da classe
1
Ver: GOMES, Ângela de Castro. A Política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o
público e o privado. In: NOVAIS, Fernando A. História da vida privada no Brasil: Contrastes da intimidade
contemporânea. São Paulo, Cia. das Letras, 1998.
8
8
operária e de intelectuais que se colocavam a serviço da “cooptação ideológica”. Em alguns
estudos realizados sobre o período do Estado Novo (1937-1945) chega-se compará-lo até
mesmo à Alemanha Nazista
2
.
Segundo Jorge Ferreira
3
, este tipo de análise não leva em consideração a
importância das tradições culturais no processo de formação das classes sociais, pois os
trabalhadores, camponeses, pessoas comuns e também intelectuais como Villa Lobos
produziam seus valores, crenças e idéias. Villa realizou um diálogo entre a cultura erudita e
a cultura popular.
No período do Estado Novo, o autoritarismo permitia a divulgação e a consolidação
de mensagens oficiais, tanto via propaganda como via censura, mas o sucesso do Estado
Novo não se deu apenas por esse aparato ideológico, mas também por articular um amplo e
diversificado campo de políticas públicas, destacando obras sociais desenvolvidas pelo
Ministério da Educação, da Saúde e do Trabalho, Indústria e Comércio e Hospitais, escolas
secundárias e profissionais, pensões, aposentadorias, carteiras de trabalho, estabilidade de
emprego e, principalmente, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) criavam o vínculo
entre presidente e “as experiências imediatas das massas”. Essas, finalmente organizadas
segundo as novas instituições criadas, saíram do plano excludente em que se encontravam
na antiga república, exprimindo as suas aspirações e sendo ouvidas pelas elites
governamentais. Os trabalhadores, pela primeira vez, sentiam que eram ouvidos, sentiam-se
reconhecidos.
E assim, estavam lado a lado, povo a quem se apelava como fonte e base do
governo e que era identificado na população de trabalhadores corporativamente e
hierarquizada; de outro, o Estado que estava personalizado na figura de Vargas. Esta
relação entre líder e massa tinha a dupla feição da representação de interesses e da
representação simbólica. O projeto varguista permitia a participação do povo no cenário
político. O queremismo foi um dos indicadores mais claros da popularidade de Vargas.
Mas este Estado possuía ainda o seu aparelho repressor que dominou também a
questão cultural, destacando-se o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) que dava
2
Ver: BANDEIRA, Moniz. Trabalhismo e socialismo no Brasil: A internacional socialista e a América
Latina. São Paulo: Global, 1985.
3
FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil: o imaginário do povo. Rio de Janeiro: Editora Fundação
Getúlio Vargas, 1997. Página 14
9
9
ênfase à imprensa e encaminhava a cultura política. A cultura passou a ser mesclada com
organização política e assim o Estado criou seus aparatos culturais próprios, que estariam
destinados a produzir e a difundir sua concepção de mundo para a sociedade brasileira.
Com a presença do DIP, em 1935, os programas das emissoras de rádio sofreram
interferências do Estado, o programa “A Hora do Brasil” passou a ser veiculado e dedicou
parte do seu horário à música brasileira.
Em 1937 foi instituída a censura à imprensa, teatro, cinema, rádio e música.
Segundo Mônica Velloso, um dos importantes mecanismos de controle seria a revista de
Cultura Política que possuía a proposta de “definir e esclarecer” o rumo das
transformações sociais e políticas do país. As realizações do governo nos mais diversos
setores – política, economia, técnica, arte, letras, ciências foram registradas. A Revista
anunciou o seu propósito de promover e estimular o debate entre a problemática regional,
desde que se circunscreva em um contexto nacional
4
. Porém, segundo Contier, não existem
registros nos documentos de época sobre a interferência do DIP em peças vocais ou trechos
instrumentais. A partir de 1937, o governo passou a organizar e a disciplinar o ensino do
canto orfeônico nas escolas adotando muitas formas de divulgar a música nacional tomando
medidas como a integração do Instituto Nacional de Música junto à Universidade do Brasil.
O rádio, o jornal e o disco passaram a ter grande importância para os ideólogos do
Estado Novo. A música seria um recurso capaz de politizar de forma mais eficaz as massas
populares. Lorenzo Fernandez defendeu o projeto de Villa Lobos em prol da
democratização e popularização da arte culta entre o povo. O canto coletivo simbolizava o
progresso e um pólo legitimador de nacionalidade, pois “somente os grandes povos sabem
cantar (...,) é um fato altamente impressionante, pela sua grandeza, ouvir a enorme multidão
cantar, numa praça pública, hinos patrióticos.”
5
A característica do “Novo” referia-se à modernização do país. Pela primeira vez, em
toda a história do Brasil, existiu um olhar para a questão da nacionalidade. Voltando-se
para a tradição entraríamos em contato com o nacional. O modelo liberal importado foi
recusado. Desta forma, moderno e tradicional se uniram com a finalidade de formar o
princípio doutrinário que deteve o regime. Segundo Lucia Lippi Oliveira, para alguns
4
VELLOSO, Mônica Pimenta. Cultura e Poder Político: Uma configuração do campo intelectual. In:
Estado Novo: Ideologia e Poder. Zahar Editores, 1982, RJ.
5
O canto coral nas escolas. Revista Ilustração Musical, Rio de Janeiro, Ano II, 1931, p.67
10
10
autores como Almir de Andrade e Azevedo Amaral, “a integração entre modernismo e
Estado Novo estaria fundada no fato de os modernistas se oporem ao “ufanismo”, à
grandeza territorial garantidora de grandeza nacional e de aprofundarem uma tradição: a
denúncia do Brasil arcaico e atrasado”
6
. No modernismo acontece uma inversão de valores:
O que antes era visto como negativo passa agora a ser positivo – a autenticidade nacional.
Seria presente antes de 1930 a falta de patriotismo por conta da carência de razões para
amar o Brasil.
Após a Revolução de 1930, o Estado fundou sua base de política cultural, sendo um
marco neste sentido a criação do Ministério da Educação e desdobramentos em diversos
órgãos. Intelectuais de várias linhas de pensamento como modernistas, positivistas,
católicos e até mesmo socialistas participaram deste processo que promoveu a relação entre
Estado e cultura. A ideologia formulada nos primeiros anos do Governo de Vargas possuiu
fortes contatos com idéias antiliberais que foram defendidas por Francisco Campos, o
primeiro Ministro da Educação. O Ministro foi demitido em 1932 ficando em seu cargo
Washington Pires. Em 1934 Gustavo Capanema, substituindo Washington Pires, foi
nomeado ministro e nomeou Carlos Drummond de Andrade chefe de seu gabinete. A
atuação dos intelectuais se deu na medida em que possuíam a idéia de que só os mesmos
poderiam “salvar” o Brasil, já que estavam interados com a cultura popular. Os intelectuais
possuíam características próprias e idéias análogas em alguns casos, mas ainda assim
participaram de projetos de características distintas.
No campo da música, a Revolução de 1930 marcou um movimento de ruptura.
Anteriormente não era atribuída à música uma importância social, existindo uma forte
ligação entre a elite burguesa e a música cosmopolita, universal e romântica. A literatura
proletária e romances regionalistas fizeram as críticas aos valores patriarcais e oligárquicos
do período histórico anterior. Nesse contexto, em 1933, Gilberto Freyre publicou Casa
Grande e Senzala, obra que mudou o enfoque dado à análise da questão das raças que
formavam o país. Outros intelectuais como Sergio Buarque de Holanda, Cassiano Ricardo e
Alceu Amoroso Lima permitiram o repensar sobre o Brasil.
6
Oliveira, Lucia Lippi. Vargas, os intelectuais e as raízes da ordem. In: As instituições brasileiras da Era
Vargas/ organizadora Maria Celina D’Araújo. Rio de Janeiro: EdUERJ: Ed. FGV, 1999.
11
11
O Ministério da Educação e Cultura, em tempos de Gustavo Capanema, apoiou o
projeto de Villa Lobos na defesa da arte nacional. Diversos tipos de materiais foram
utilizados para a atração do povo às grandes concentrações cívico artísticas. O repertório
básico dos espetáculos era constituído por hinos patrióticos, hino nacional e hinos
folclóricos. O canto coletivo representou um marco porque inovou contra a ideologia
reinante durante a República Velha de egoísmo e individualismo. Existiu o esforço de
integrar o indivíduo à coletividade. Segundo Contier, “a estetização da política ligou-se aos
espetáculos artístico-cívicos, almejando despertar no Homem brasileiro o espírito de
renúncia às coisas materiais mediante a exaltação do trabalho, da disciplina, da fé e do
amor pelo Brasil”
7
.
A partir das reformas estabelecidas pelo presidente Getúlio Vargas, o projeto do
músico educador recebeu então o apoio também do Ministro Gustavo Capanema. À frente
da SEMA (Superintendência de Ensino Musical e Artístico), Villa-Lobos desenvolveu toda
a estrutura administrativa necessária para a implantação definitiva do ensino do canto
orfeônico nas escolas do Distrito Federal.
A partir do período do Estado Novo, as concentrações orfeônicas ganharam mais
força, incorporando um caráter monumental mais sólido, palco de verdadeira demonstração
de civismo e nacionalidade. Diferentes agentes políticos compareciam às concentrações,
sendo comum também a homenagem ao Presidente Getúlio Vargas. As concentrações
orfeônicas eram amplamente divulgadas nos jornais da época, relatando as comemorações
mais destacadas naquele período, principalmente aquelas que envolviam a chamada
“Semana da Pátria” e a “Hora da Independência”.
Porém, o palco da construção da nacionalidade também apresentou a existência de
tensões entre o maestro e o Estado. Em tal contexto, Villa-Lobos, através do conhecimento
específico da música e do seu prestígio como funcionário detentor de autonomia, adotou as
posturas necessárias para manter o seu prestígio. Rompendo com a perspectiva de inocência
política do maestro e também com o modelo de manipulação ideológica, procuramos
entender os diferentes tempos superpostos em Villa-Lobos e como o maestro interagia com
sua geração.
7
CONTIER, Arnaldo Daraya. Passarinhada do Brasil: canto orfeônico, educação e getulismo. SP: EDUSC, ,
1998.
12
12
Nas páginas que se seguem, apresentarei um estudo sobre as principais políticas
públicas estabelecidas no Ministério de Gustavo Capanema, marcado pela ampla adesão de
intelectuais que viram no patrocínio do Estado a possibilidade do desenvolvimento de
vários projetos. Temas como as reformas educacionais, o pensamento pedagógico do
período, grupos que rivalizavam politicamente questões referentes à educação estarão em
pauta. O percurso de Gustavo Capanema no Ministério da Educação e Cultura foi marcado
por um trabalho exaustivo, onde o Ministro buscou desenvolver várias esferas ainda
carentes no Brasil, marcado por resquícios de uma República Liberal.
Realizo também um debate sobre a tradição biográfica lançada pelo musicólogo
Vasco Mariz que, ao escrever uma biografia de Villa-Lobos, praticamente reproduziu o que
o músico queria sobre sua própria imagem. No segundo capítulo, o pensamento de Villa-
Lobos é apresentado, focalizando a sua perspectiva sobre a educação musical. Os seus
escritos são analisados como fontes, apresento uma contextualização das suas idéias,
buscando as fontes de suas inspirações, a questão do folclore nacional, do projeto de Villa-
Lobos.
Já no terceiro capítulo, faço uma análise das concentrações orfeônicas, resgatando,
através da descrição densa, os detalhes da organização dos eventos, entendendo que Villa-
Lobos desenvolveu o projeto de construção de uma coletividade através da música, onde
crianças de escolas públicas se apresentavam em grandes estádios, com a presença de
outros estudantes e de autoridades. Na apresentação de hinos patrióticos, Villa-Lobos
enxergava a demonstração do sentido cívico e da força de vontade para a integração do
indivíduo no coletivo. Por desenvolver um projeto de caráter nacionalista, foi acusado de
defensor de idéias fascistas. Porém, a interação política do seu projeto estava voltada para a
união de todas as classes sociais, cantando a "Força da Vontade Brasileira".
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13
Capítulo I - Ministério Capanema: Intelectuais e políticas públicas
“É inútil gastar tempo e dinheiro ensinando gente sem fé na sua própria energia, gente sem vontade e
sem rumo, gente sem fé na sua pessoa, na sua família, no seu povo e na sua pátria. Educar e ensinar
são coisas próximas e diferentes. O Brasil precisa saber – porque no mundo moderno só há uma
espécie de povo forte: é o povo que sabe.
Mas antes disso, o Brasil precisa acostumar-se a pensar na sua própria existência, abandonando o
comodismo da vida ao Deus dará.
Se o problema da instrução é mais difícil, porque é muito mais caro e nos dias correntes exige meios
técnicos que custam dinheiro que o povo não tem, já o problema da educação – o problema de criar
novos hábitos individuais, domésticos e cívicos, o problema de acostumar-se – custará esforço, mas
não custará dinheiro. Mesmo porque, se o ensino depende mais dos órgãos que governam, a
educação, amparada, prestigiada pelo poder público, tem de ser obra fundamental de todos. (...)
Esses conceitos (...) levam-me sem nenhuma lisonja a dizer-vos, senhor ministro Capanema, que a
vossa energia moça e sempre voltada para o que a vida nacional pode ter de belo, vem dando à nossa
terra as mais altas afirmações de inteligência e de cultura. (...)
Nenhum de nós tem mais, hoje, aquele otimismo quase infantil dos nossos pais, para quem o Brasil
era como país de Maíra de certas tribos índias – a região sem males em que o homem só precisava de
estender o braço para colher flores e frutos. Mas, no seu lugar, sentimos hoje, todos, velhos e moços,
a fé constante dos que sabem das luzes e sombras da terra em que nasceram.”
8
Roquette Pinto
1. O ministério e suas políticas públicas
As Bachianas brasileiras número 7”, de Heitor Villa-Lobos, foram escritas em
homenagem ao Ministro Gustavo Capanema. A obra citada é composta de quatro partes,
baseada em manifestações musicais particulares de diferentes localidades do Brasil.
Percebemos nas “Bachianas brasileiras” um aspecto paradoxal, já que Villa-Lobos utiliza
o recurso polifônico de Bach, construindo assim a estética monumental
9
, marcada pela
exaltação nacional.
Alguns intelectuais como Heitor Villa-Lobos, Roquete Pinto, Carlos Drummond de
Andrade, entre outros, que trabalharam no Ministério Capanema e contribuíram com o
projeto do período do Estado Novo, sendo, décadas depois acusados de “marionetes do
Estado”, fantoches incapazes de exercer o “verdadeiro papel dos intelectuais”. Análises
8
Discurso proferido por Roquette Pinto na inauguração do Palácio da Cultura em 3 de outubro de 1945.
9
Sobre a estética monumental de Villa-Lobos, ver: NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: Modernismo e
música popular. Rio de Janeiro, Editora FGV, 1998.
14
14
simplistas sobre o período citado ainda são abordadas e defendidas, embora muitos estudos
tenham avançado em relação a essa perspectiva
10
.
Para entendermos o contexto em que se insere o debate acima mencionado, vale a
análise minuciosa de políticas e reformas implementadas durante o Ministério de Gustavo
Capanema, o ministro homenageado por Heitor Villa-Lobos. O Ministério Capanema
desenvolveu-se no contexto da propagação de políticas, por parte do Estado, onde o bem
comum estaria acima dos interesses privados. O Estado seria o porta-voz das necessidades
do povo. Como porta-voz dessas necessidades, reformas foram implementadas nas esferas
da Saúde, Educação, Trabalho, Cultura, Política, dentre outras. A atuação do ministro
Capanema se deu, em sua maior parte, no contexto do Estado Novo, onde o Estado
implementara políticas específicas que representavam rupturas e também continuidades em
relação aos períodos anteriores da história do Brasil.
A vida política de Gustavo Capanema foi iniciada em Minas Gerais, mais
especificamente nos anos de 1930, quando se tornou secretário do Interior no Governo
Olegário Maciel. Embora estivesse na função de chefe de polícia, não se tornou defensor do
uso da força e manteve-se sempre fiel aos temas culturais da juventude mineira de
intelectuais. Segundo Carlos Drummond de Andrade, amigo do Ministro, Capanema
“foi no MEC uma usina de idéias que se tornaram realidades. Varreu a rotina e
implantou novas formas de educar e civilizar o homem brasileiro. Foi o ministro
que deu maior atenção às inovações artísticas, mas foi também o ministro que
cuidou da erradicação da lepra e da malária, da organização industrial e da educação
física (...) E foi também o homem humilde por excelência que não se cansava de
ouvir a opinião dos entendidos, as críticas bem-intencionadas, até, suportando com
paciência cristã, as mal intencionadas”.
11
Capanema trabalhou em seu ministério de maneira obsessiva, implementando
políticas tão inovadoras que, em alguns casos, chegava a desafiar interesses políticos do
Estado. O ministério foi marcado pelo diálogo entre diversos intelectuais de diferentes
vertentes, sufocado certas vezes por ambigüidades, mas o ministro possuía uma
extravagante capacidade de equilíbrio e reconciliação.
10
Destacamos como perspectivas inovadoras sobre o tema, os seguintes trabalhos: BOMENY, Helena: Org.
Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. GOMES, Angela de
Castro. Org. Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000.
11
Carlos Drummond de Andrade. “Capanema faz falta? Enorme.”Jornal do Brasil, 7 de Dezembro de 1978.
15
15
Antes mesmo do Ministério de Gustavo Capanema, ainda no início da década de
1920, percebemos a existência de uma forte preocupação, por parte do Estado, com o setor
da Educação. A Educação, no contexto apresentado, foi marcada por uma forte relevância
política, pois consolidava o poder de “lapidar” a sociedade, com a formação de novas
mentalidades que abririam novos espaços de participação e possibilidades de mobilidade
social. A nova interpretação do papel da Educação era vital para a modernização do Novo
Estado que se inaugurara
12
.
A década de 1930 estabeleceu a relevância de componentes ideológicos que
estavam cada vez mais presentes no cotidiano da sociedade, na vida política, sendo a
Educação de extrema relevância já que se apresentaria como a principal arena em que
combates ideológicos seriam travados.
A instituição que se inseriu com grande influência no debate educacional do período
foi a Igreja Católica. Havia também o projeto da Escola Nova, defendido por Anísio
Teixeira
13
como Escola Progressiva. Anísio Teixeira merece destaque no debate sugerido,
pois representou um dos importantes ícones para se pensar a Educação no período referido.
Anísio tornou-se diretor de Instrução Pública do Distrito Federal de 1931 a 1934, ocupou a
Secretaria de Educação e Cultura permanecendo até dezembro de 1935, sendo
consideravelmente combatido pelos representantes da Igreja. Os ideólogos da Escola Nova
defendiam a existência de uma “escola pública, universal e gratuita”. A educação deveria
ser um campo aberto, proporcionada de forma igual a toda a sociedade. A igualdade
educacional promoveria assim, como efeito, a igualdade básica de oportunidades. A base
teórica da Escola Nova defendia também a existência de novas metodologias, novos
princípios pedagógicos, que buscavam práticas mais criativas e menos rígidas de
aprendizagem, buscando cessar a transmissão autoritária e repetitiva de ensinamentos e
conhecimentos.
O estudo do pensamento de Anísio Teixeira e das políticas implementadas por sua
atuação na Secretaria de Educação são importantes para entendermos o contexto em que o
12
Sobre os debates referentes à Educação no período, ver: SCHWARTZMAN, Simon: Org. Tempos de
Capanema. São Paulo: Paz e Terra: FGV, 2000.; Nunes, Clarice. As políticas públicas de Educação de
Gustavo Capanema no governo Vargas. In: BOMENY, Helena: Org. Constelação Capanema: intelectuais e
políticas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
13
No período em que Anísio Teixeira ocupou o cargo de Secretário de Educação e Cultura, realizou
pessoalmente o convite à Heitor Villa-Lobos para dirigir os projetos do desenvolvimento do Canto Orfeônico
em escolas públicas.
16
16
Ministério Capanema, sucessor da atuação de Anísio na gestão da educação, se inseria.
Anísio Teixeira defendia a máxima de que “Educação não é privilégio”. Para o pensador, a
Educação era um direito social que devia ser pautado na democratização de um ensino de
qualidade e na pesquisa qualificada, buscando a reinvenção da ciência, da cultura, da
política e da própria sociedade brasileira.
Anísio Teixeira formou-se em Direito pela Universidade do Rio de Janeiro em 1922
e, na mesma década de 1920, viajou para os EUA, onde teve contato com a obra do filósofo
americano John Dewey, marcando definitivamente a sua trajetória de intelectual da
educação. Em 1930, publicou os ensaios de Dewey sob o título “Vida e Educação”. Em
1931, a convite do prefeito Pedro Ernesto Batista assumiu a Diretoria da Instrução Pública
do Distrito Federal, onde conduziu uma reforma da instrução pública que atingia as escolas
primárias, secundárias, chegando à criação de uma universidade municipal, a Universidade
do Distrito Federal. Deixou o cargo em 1935, pois pressões políticas inviabilizavam a sua
permanência na função.
Anísio fez parte de uma geração de intelectuais que tinha como preocupação a
organização da nação, no início do século XX, com a formação de uma cultura que visava
formar a unidade através da instrução pública. Por meio da influência do pensamento de
Dewey, Anísio passou a combater a improvisação e o autodidatismo no Brasil, buscando
operacionalizar uma política e criar a pesquisa educacional.
Segundo Clarice Nunes
14
, sob o ângulo da Educação Popular, Anísio Teixeira
realizara uma intervenção sobre a educação das classes populares no espaço da cidade.
Como defensor da democracia, acreditava que a carência dos indivíduos era proveniente da
omissão dos governos na direção da reconstrução das condições sociais e escolares que lhes
garantiriam a formação de cidadãos, acima de tudo. Para ele, a escola deveria ser um
espaço real em que a criança praticaria uma vida melhor com acesso à arte, ciência, saúde,
recreação, estudo, livros, revistas e, sobretudo, professores bem preparados.
Na esfera da formação de intelectuais, Anísio pretendia criar instituições, incluindo
as universitárias, para disseminar a produção científica, filosófica e literária, tendo a
pesquisa vinculada à docência. “A trajetória de Anísio Teixeira em defesa da universidade
14
NUNES, Clarice. Anísio Teixeira entre nós: A defesa da educação como direito de todos. Educação e
Sociedade, ano XXI, Número 73, Dezembro/00.
17
17
pública e de instituições públicas de pesquisa ou de financiamento a ela tem implícita
convicção de que não há país capaz de sobrevivência digna sem instituições, sobretudo
como a universidade, capazes de produzir conhecimentos e propor soluções próprias às
questões que o afligem”.
15
O que a Universidade do Distrito Federal
16
(UDF) trazia de inovador é que
funcionava como um locus de aglutinação de professores. Através dessa instituição, pela
primeira vez na história do país, o magistério submetia-se a uma formação de nível superior
com a “Escola de Educação” situada ao lado do Instituto de Filosofia e Letras, Instituto de
Ciências, Instituto de Política e Direito, Instituto de Artes e Desenho e do Instituto de
Música. A Escola de Educação trabalhava com a concepção de que o profissional da área
era um intelectual e por isso a melhoria da qualificação docente se fazia cada vez mais
necessária, com o alargamento dos conhecimentos, sendo a prática profissional um
amálgama de ciência e arte, com o objetivo de investigar, ensinar a investigar e transmitir
conhecimentos produzidos.
A concepção educacional implementada através da UDF, de atuação na capital
federal do período, teve o seu projeto sufocado pelo governo Vargas e o Ministério
Capanema, sendo ela incorporada ao novo projeto estabelecido pela Universidade do Brasil
em 1939. O projeto estatal baseava-se na construção do país através dos valores nacionais,
com a atuação de líderes formados pelo próprio Estado, configurando-se como marca da
ausência da democracia política. Mesmo experimentando esse desfecho, a UDF deixou um
legado às próximas gerações, legado que em parte também teria sido incorporado no
projeto do Ministro Capanema. A herança deixada seria o pensamento de que a
Universidade deveria estar ligada à sociedade, com a utilização da crítica e da autocrítica
no conhecimento científico.
Como já afirmei anteriormente, foi no pensamento de Dewey, filósofo norte-
americano, que Anísio se inspirou para pensar a Educação. Dewey era um intelectual
engajado, que, no contexto do debate sobre a política de imigração dos EUA, em 1921,
criticava os impasses da democracia norte-americana e colaborava com instituições
voltadas para a população pobre e imigrante. Além disso, percebemos em Anísio os ecos da
15
Idem, página 17.
16
Sobre o olhar de Anísio Teixeira em direção à formação dos professores, ver: TEIXEIRA, Anísio. O
problema da formação do magistério. Educação e Ciências Sociais, 3 (8): 139-141, 1958.
18
18
crítica que Dewey proferiu em relação à Igreja. Em sua obra “A common faith”, Dewey
sustenta a teoria de que não existia crise religiosa, que a mesma poderia se caracterizar
como crise teológica, crise da Igreja e da política clerical. Defendia que o “divino” era a
união ativa entre o ideal e o real, criticava tanto o ateísmo agressivo como o
sobrenaturalismo natural.
Na prática, percebemos que Dewey reforçou em Anísio Teixeira a possibilidade de
aliança entre o místico e o político através da intuição, onde o místico não seria um “enlevo
sobrenatural, mas o movimento de jogar a sua inteligência e sentimento na conversão do
seu pensamento em ação e da sua imaginação em experiência social”.
17
Sustentava ainda
que a natureza humana era capaz de modificar instintos, sendo unitária com a capacidade
de abrigar um conjunto de valores, evitando assim a idéia de determinismo social e moral,
ressaltando os valores da individualidade, já que o “controle dos instintos” poderia se
apresentar como manifestação da liberdade. A educação, nessa esfera, surgiria como uma
possibilidade de modificação de certos hábitos adquiridos provocando a mudança de
costumes, de maneira histórica.
Dewey marcou o pensamento de educadores porque os fez pensar que a teoria social
deveria ser um guia metodológico de investigação e planejamento. Em sua obra
“Democracy and Education”, coloca em questão a discussão da vocação e critica a idéia de
preparação profissional para atender às necessidades do regime industrial existente,
proporcionando às classes sociais menos favorecidas uma educação técnica para profissões
especializadas, uma educação limitada, sob a direção de terceiros. Para Dewey, era o estudo
das ciências, acima de tudo, que teria um papel fundamental para reforçar o caráter e o
espírito dos Homens. Segundo Clarice Nunes,
“a realização vocacional encontra em Dewey sua resolução na defesa de um sistema
público de educação que permita a todos usufruírem os benefícios da igualdade no
aparelhamento das futuras carreiras. Essa proposta o afasta da perspectiva estreita
da educação confessional quanto de certas “seitas escolanovistas”. Além disso,
afasta-o da imagem cristalizada que os comentaristas apresentam: a de idealizador
de uma escola vocacional para a classe trabalhadora, entendida como preparação
profissional direcionada para os interesses da indústria.
18
17
NUNES, Clarice. Anísio Teixeira entre nós: A defesa da educação como direito de todos. Educação e
Sociedade, ano XXI, Número 73, Dezembro/00. Página 26
18
Idem, página 30.
19
19
Percebemos assim como as idéias de Dewey se enraizaram nas ações de Anísio
Teixeira e, por isso mesmo, buscava separar o elo que havia se estabelecido no pensamento
educacional brasileiro entre o processo produtivo e o processo escolar. Percebia a
necessidade do afastamento do modelo implementado pela Psicologia, dando espaço para o
modelo libertador da Filosofia e da Arte. A renovação da escola deveria estar embasada no
fato da criança desejar receber o conhecimento e trabalhar pessoalmente para conquistá-lo.
Essa seria a verdadeira essência da formação do caráter humano.
Todas as teorias Deweyanas fizeram Anísio pensar a filosofia como uma tentativa
de reconciliar o conhecimento científico e a tradição, entre bases culturais do presente e do
passado. Anísio pôde reconciliar o velho e o novo com capacidade de distinguir aspectos
fundamentais do presente. Percebia que o moderno precisava de forma e que ainda estava
prestes a concluir um curso no tempo e na sociedade. A modernidade seria o produto da
ação conjunta de homens de boa vontade, de todas as classes, profissões e culturas,
dedicados a essa tarefa.
19
Para chegar ao ápice da questão, havia a necessidade da
constituição de uma erudição que traria em seu seio tanto a história da cultura como a
ciência moderna. O educador também criticava a existência de uma tradição filosófica
autoritária. Para ele, a filosofia teria como metas tanto o esclarecimento das idéias dos
homens referentes à questões morais e sociais da realidade presente, como o
posicionamento dentro de embates e conflitos, respeitando sempre as aspirações humanas.
Buscava reunir, dentro da esfera da Educação, o pensamento e a ação.
Anísio Teixeira foi perseguido pela Igreja, acusado de comunista, e no mesmo
período a Igreja passava por uma renovação, com a atuação de Alceu Amoroso Lima e
Jackson de Figueiredo. Francisco Campos buscou estabelecer um pacto entre a Igreja
Católica e Getúlio Vargas. Inicialmente, a Igreja colocou-se hostil à Revolução de 1930,
pois se apresentava como uma instituição conservadora, relutante de encarar modificações
bruscas na ordem social. Posteriormente, a Igreja buscou trabalhar baseada em uma
“sociologia cristã”, marcada por um método científico que se aplicaria à sociedade, à
19
Anísio Teixeira pôde interpretar o projeto educacional de Villa-Lobos como uma possibilidade de formar a
nova mentalidade moderna. Seria o músico modernista desenvolvendo um projeto educacional que
contribuiria com a construção da modernidade brasileira.
20
20
religião e à filosofia, com o objetivo de tomar as rédeas no processo de “reespiritualização
da cultura”.
Em abril de 1931, o governo emitiu um decreto que estabelecia a liberdade para o
ensino religioso nas escolas públicas. A Igreja recebeu o decreto com grande satisfação,
pois tal evento surtia como uma comprovação de que Francisco Campos e o governo
provisório se manteriam fiéis ao projeto da “consciência católica”.
A Igreja sentia o seu projeto ser ameaçado pela presença de representantes da
Escola Nova em cargos de grande relevância ligados à Educação (Anísio Teixeira no Rio
de Janeiro e Fernando de Azevedo em São Paulo). Os líderes da Igreja não concordavam
com a concepção educacional da Escola Nova, criticavam a laicização do ensino. Na
tentativa de expor seu ponto de vista acerca das esferas educacionais, a Igreja promoveu
uma ampla divulgação de sua concepção na revista A Ordem. A revista ressaltava a
importância histórica da atuação da Igreja na esfera educacional e defendia a educação nos
moldes tradicionais.
Em 1932, o governo revogou o decreto que permitia o ensino religioso nas escolas
públicas e a Igreja, decepcionada, defende que tal fato teria ocorrido graças à ação da
maçonaria, dos céticos, dos protestantes e dos liberais. O embate entre Igreja e Estado teria
cessado em 1934, quando foram aprovadas duas emendas religiosas. Na primeira, o nome
de Deus seria invocado no preâmbulo do anteprojeto constitucional e, na segunda, se
restabelecia a cooperação entre Igreja e Estado. No contexto dessas modificações, Gustavo
Capanema foi nomeado ministro da Educação e Saúde.
Além da Igreja, outros atores também se interessavam em utilizar a educação a fim
de formar mentalidades. Refiro-me às Forças Armadas
20
, que avaliavam a educação como
uma esfera de importante papel para a implementação de um amplo projeto nacional. O
projeto educacional das Forças Armadas vinculava a Educação às questões de segurança
nacional, defendendo que a mesma poderia transformar-se em uma estratégia para alcançar
a mobilização controlada. Com a liderança de Olavo Bilac, acreditava-se que o principal
objetivo da intervenção do Exército nessa esfera era impedir a propagação de posturas
políticas perigosas à nacionalidade.
20
Sobre a concepção educacional das forças armadas nesse período, ver: AMARAL, Azevedo.O exército e a
educação Nacional”. Nação Armada. Número 4, março de 1940; AMARAL, Azevedo. O ensino pré-militar.
Número 17, abril 1942.
21
21
Afora o projeto das Forças Armadas, havia o interesse na esfera da educação por
outras vertentes mais conservadoras e antidemocráticas. Francisco Campos
21
, em sua obra
“O Estado Nacional”
22
, justificava com suas perspectivas políticas e ideológicas a
necessidade da criação de um Estado autoritário no Brasil, apresentando a falência, naquele
contexto, do modelo liberal-democrático. No projeto de constituição de um Estado
Nacional adverso à democracia liberal, a formação da juventude apresentava-se como
estratégia primordial. O Estado deveria modelar o pensamento da juventude para que esta
estivesse sempre pronta e a postos quando a necessidade da nação a recrutasse. Para obter
êxito, estratégias deveriam ser traçadas, ressaltando-se a importância de rituais, símbolos,
mitos e heróis que deveriam ser proclamados. Além dessas questões, o projeto de Francisco
Campos contaria ainda com a ajuda da Igreja Católica na formação dos jovens.
23
Mesmo com as rivalidades existentes entre diversas tendências, o pensamento
educacional que prevalecera seria o do ministro Capanema que, sob a égide do Estado,
desenvolveu reformas de acordo com as orientações políticas de um projeto bem
direcionado e amplo. Segundo José Silvério Horta
24
, desde 1935 estava prevista a
realização de uma conferência anual de Educação, que reuniria o ministro e os principais
responsáveis pela educação de cada estado da federação. Através de um decreto,
estabeleceu-se que a realização dessa conferência teria como metas a resolução de
problemas escolares e extra-escolares com destaque para os debates concernentes à
organização, difusão e ampliação da qualidade do ensino primário e normal, do ensino
profissional e à organização da chamada “Juventude Brasileira”.
Adiada diversas vezes, a conferência só teria ocorrido no dia 3 de Novembro de
1941. Segundo Capanema, o evento era de vital importância, pois nele seria inaugurado o
21
Político mineiro que, ao lado de Gustavo Capanema, participou do movimento político conhecido como
Legião de Outubro. É necessário ter cuidado para não confundir os
propósitos da Legião de Outubro com as
escolhas políticas de Francisco Campos, afim de não classificar a postura política de Gustavo Capanema de
maneira errônea. Sobre o assunto, ver: GOMES, Ângela de Castro: Org. Regionalismos e centralização
política. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
22
CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional. Sua estrutura, seu conteúdo ideológico. Rio de Janeiro, José
Olympio, 1940.
23
O debate mencionado em relação à Educação está inserido em um contexto de grande embate político entre
diversas vertentes no período citado. Sobre tais embates políticos, ver: GOMES, Ângela de Castro: Org.
Regionalismos e centralização política. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
24
HORTA, Hosé Silvério. A I Conferência Nacional de Educação ou de como homologar sobre a Educação
na presença de educadores. In: GOMES, Ângela de Castro: Org. Capanema: o ministro e seu ministério. Rio
de Janeiro, Editora FGV, 2000.
22
22
estudo das principais bases de organização de um programa nacional de educação, o estudo
e a avaliação de linhas gerais de organização dos sistemas educativos regionais, a avaliação
do ensino profissional e técnico, adequando-se às reais necessidades nacionais e a
promoção das medidas administrativas necessárias ao desenvolvimento da Juventude
Brasileira em todas as escolas do país.
O discurso defendido pelo ministro na Conferência era o de “educar para a pátria”.
Capanema reconheceu os avanços pedagógicos defendidos pelo Movimento da Escola
Nova, mas indicou algumas falhas nessa perspectiva educacional. Segundo o Ministro, a
Educação, de forma alguma, poderia ser neutra no mundo moderno, ela deveria colocar-se a
serviço da nação. A concepção educacional escolanovista limitava-se a preparar cada
homem a conviver entre outros homens, enquanto o ministro enxergava a necessidade de
levar os homens à ação, ao progresso.
Com a instauração do Estado Novo, novos horizontes eram traçados, o Estado
passava por uma reestruturação que objetivava fazer a nação viver, progredir, aumentar seu
poder e sua glória. A Educação seria, então, um instrumento de vital importância para a
promoção do progresso e da glória nacional.Além disso, a Educação teria como função a
formação do cidadão do Estado Novo.
No decorrer da conferência, foi o próprio ministro quem dirigiu os trabalhos,
inserindo nos debates as abordagens que interessavam ao ministério. Despoticamente,
impunha o seu ponto de vista, recusando qualquer indicação ou proposta que não estivesse
de acordo com as premissas iniciais da conferência. “Foi aplaudido em todas as
intervenções por um conjunto de delegados estaduais que agiam quase todo o tempo muito
mais como espectadores entusiasmados e deslumbrados do que como protagonistas
25
”. O
ministro buscou também estabelecer uma definição nítida do papel da União e dos estados
na esfera do ensino. Buscou definir as diretrizes do Plano Nacional de Educação,
ressaltando a importância do ensino primário.
Segundo a obra “Tempos de Capanema”
26
, não existia uma preocupação expressiva
por parte do ministro sobre a esfera do ensino básico, estando a sua maior preocupação
pairando sob o ensino médio e, no planejamento ambicioso da Universidade do Brasil. O
25
Idem. Página 152.
26
SCHWARTZMAN, Simon: Org. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra: FGV, 2000.
23
23
ensino industrial ganhara grande destaque no Ministério Capanema, pois com o
crescimento do setor industrial no Brasil, fazia-se necessária a qualificação da mão-de-obra.
Tal argumento apresentado em “Tempos de Capanema” é equivocado, pois aborda de
maneira bem simples algo que requer uma abrangência de análise. Pensar que o projeto
estatal inseria-se na lógica pura e simples da manutenção de uma elite educada e de uma
classe trabalhadora preparada somente para o mercado recai no erro da “visão maniqueísta”
do Estado. O Ministro, em discurso na Conferência de Educação, profere:
Penso, pois, que a questão estaria resolvida, por um consenso geral, da
seguinte maneira: reconhecido que a educação primária é o primeiro problema
nacional e que a ela deve ser dada toda a importância e todo o cuidado;
estabelecendo o princípio de que esse problema fica reservado, primordialmente, à
competência do estado, por verificar que a União não está em condições de
ministrar o ensino primário e que, em rigor, a municipalidade não se encontra,
financeira e tecnicamente, à altura de proporcionar um ensino primário de primeira
qualidade, no momento atual da nossa evolução administrativa e cultural; fixando a
regra de que ao estado cabe, primordialmente, dar a educação primária de três anos
ou cinco anos, conforme as suas possibilidades. Como ao estado se atribuiu esse
dever primordial, a ele se precisam dar recursos necessários para isso; e como o
estado, no exercício desse dever primordial, executa uma tarefa que é nacional, para
a qual todas as tarefas administrativas devem concorrer, cria-se um fundo estadual
de educação primária , com a contribuição obrigatória, com um mínimo de sua
dotação orçamentária, do próprio estado e dos municípios, colaborando, por outro
lado, o governo federal, com uma parcela conseguida mediante o lançamento de
impostos especiais ou da majoração de impostos”
27
.
O ministro Capanema então coloca a impossibilidade do Estado arcar com os custos
da educação básica, porém, existe a iniciativa para pensar a questão, não ficando dessa
forma de lado a conscientização da necessidade de investimentos na área. Para isso, propôs
a criação do fundo estadual para a educação primária, com a contribuição do governo
federal e dos municípios. Seriam criadas taxas especiais e impostos para a constituição
desse fundo. Outra proposta lançada foi a da criação de algumas seções especiais em
secretarias de Educação com o auxílio do INEP (Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos) para a realização de pesquisa e treinamento de profissionais da área.
27
Notas, Pasta II, p.226-7.
24
24
Com o desenrolar das propostas, veio então a debate a possibilidade da criação da
Juventude Brasileira. O projeto entrara em debate desde 1938 por Francisco Campos e
acabara envolvendo o Ministro da Justiça, o Ministro da Guerra, o Ministro da Educação e
o próprio Presidente Vargas.
Sobre a formação da Juventude Brasileira, percebemos a existência de duas
tendências rivais, disputando espaços no debate: a visão dos militares e a visão do
Ministério da Educação. A maior parte dos militares defendia a necessidade da Juventude
Brasileira se constituir com um caráter extra-escolar, organizando-se segundo as premissas
do escotismo
28
. Já o Ministério da Educação, previa o desenvolvimento de um movimento
voltado para a escola, para o sistema de ensino. As duas tendências desenvolveram embates
no decorrer da Conferência, mas com a intervenção direta do ministro Capanema, a
proposta que defendia os programas e os métodos do escotismo, com a criação de centros
cívicos e agrupamentos juvenis foi rejeitada. Para Capanema, A Juventude Brasileira
deveria ter como base a escola e todas as práticas voltadas para o civismo deveriam ser
desenvolvidas no espaço escolar, com a organização das datas, os nomes, os ideais, tudo
“cultuado” no espaço escolar.
Segundo o Ministro, a Juventude Brasileira apresentava diferenças determinantes
em relação à organização da juventude em outros países. Em primeiro lugar, diferentemente
do caso da Alemanha, Portugal e Itália, A Juventude Brasileira teria como base a escola.
Segundo o Ministro, nesses países a escola ficava limitada à educação intelectual. Em
segundo lugar, a Juventude Brasileira deveria ser tolerante com outras instituições. Além
disso, acreditava que as organizações alemãs e portuguesas possuíam características
despóticas. Em seu discurso, Capanema enfatiza que:
“Que faz a Juventude desses países? Toma da escola a educação física, moral e
cívica, para dar ela mesma, a Juventude, essa modalidade de educação. Resultado: a
escola fica limitada, exclusivamente, à educação intelectual: e há um organismo
exterior à escola, dirigido por outro Ministério – na Itália é o Partido Nacional
Fascista; na Alemanha o Partido Nacional Socialista; em Portugal é o mesmo
Ministério da Educação. A escola fica, dessa forma, violada no seu direito de
28
O movimento dos escoteiros surgiu em 1907, na Inglaterra, através dos ideais de Robert Baden-Powell.
Seus objetivos estavam voltados para a educação de jovens a partir da realização de acampamentos ao ar
livre, com a organização de patrulhas lideradas por chefes de tropas. Marcado pela fraternidade e pela
hierarquia, o movimento dos escoteiros teria chegado ao Brasil por volta de 1910.
25
25
realizar a educação total da criança. Vamos evitar esse tipo de pedagogia.
Respeitemos a escola segundo ela foi sempre definida e desejada pelos maiores
pedagogos da história”
29
.
A I Conferência Nacional de Educação foi encerrada com aplausos dirigidos ao
ministro e com admiração à atuação do Presidente Getúlio Vargas na esfera da Educação.
Os participantes mostraram satisfação e entusiasmo com relação às propostas de Capanema.
A Conferência teve como resultado prático a criação do Fundo Nacional do ensino
primário em 1942 e a celebração entre estados da Federação e União do Convênio Nacional
de Ensino Primário. Diante dos embates e dificuldades, o Plano Nacional de Educação não
foi elaborado, o Código da Educação Nacional não chegou nem mesmo a ser escrito e a
Juventude Brasileira não prosperou. Por volta de 1943, o ministro deparava-se com um
gigante desafio: a conciliação da liberdade com a planificação.
Além do interesse por parte do Estado em realizar investimentos na esfera da
Educação, o ministério Capanema também idealizou políticas reformistas na esfera da
saúde e trabalho de crianças e jovens. A partir de 1930 percebemos uma postura
diferenciada por parte do Estado no que se refere à questão social. Podemos citar como
exemplo dessa nova perspectiva o avanço realizado na legislação, como fruto de um
processo de luta da classe trabalhadora, desde os tempos da Primeira República.
30
Segundo Cynthia Pereira de Sousa
31
, também se tornara marcante no contexto
citado o interesse do Estado no que se refere à família, interesse que se refletiu na criação
do Departamento Nacional da Criança. Havia considerável preocupação por parte do
Estado com a mortalidade infantil, já que o projeto estatal previa a criação de “cidadãos
fortes e capazes”. Em 1933, em virtude da profunda preocupação do Presidente Vargas com
a infância no Brasil, realizou-se a Conferência Nacional de Proteção à Infância. Como
29
Notas, Pasta IV, P.800.
30
Sobre a luta dos trabalhadores e a ação do Estado no período, ver: GOMES, Ângela de Castro. Cidadania e
direitos do Trabalho. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. , 2002. A autora trabalha com a idéia de que no Brasil a
cidadania teria sido construída a partir da garantia dos direitos sociais – mais especificamente do direito do
trabalho – onde a classe trabalhadora e o Estado, em uma relação de troca, constituiriam um pacto de “trocas
simbólicas”. No pacto entre sociedade e Estado, a sociedade não deve ser julgada como “passiva” e
“manipulada”, pois a partir do momento que a classe trabalhadora aceita esse pacto, é capaz de reelaborá-lo.
31
SOUSA, Cinthia Pereira de. Saúde, Educação e trabalho de crianças e jovens: a política social de Getúlio
Vargas. In: GOMES, Ângela de Castro: Org. Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro, Editora
FGV, 2000.
26
26
resultado da conferência, criou-se a Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância,
vinculada ao Ministério da Educação e Saúde Pública.
No mesmo contexto, criou-se um projeto para o Conselho Nacional de Proteção à
Maternidade e à Infância que, embora não tenha vingado, mostrou o empenho do
Ministério da Educação e da Saúde Pública. Por volta de 1937, o Diretor do novo
departamento do Ministério, Olinto de Oliveira, realizou viagens à Liga das Nações (Suíça)
e outros países europeus a fim de colher dados e informações sobre métodos de trabalho,
questões administrativas e estruturais referentes à proteção da maternidade e da infância.
Segundo a autora, Olinto de Oliveira teria ficado impressionado com os modelos adotados
na Itália e na Áustria. Afirma que “um dos aspectos que impressionaram o viajante
brasileiro foi o empenho das autoridades austríacas em desfazer a impressão de um serviço
impessoal, esquematizado, dando a idéia de uma obrigação do Estado para com o indivíduo
necessitado, sem que este se julgue obrigado a qualquer esforço de sua parte para promover
a sua própria subsistência”.
32
Apesar da crescente aspiração existente por parte do governo, havia uma
precariedade de serviços na capital federal e escassez de recursos dos municípios. As
atividades se tornavam restritas pela falta de autonomia, de recursos financeiros e de apoio
dos governos municipais e estaduais.
Realizou-se em outubro de 1943 a II Conferência Nacional de Proteção à Infância.
A Conferência, segundo as orientações do Presidente Vargas, deveria debater e buscar
soluções para os problemas referentes à proteção dos adolescentes desamparados e à
proteção das crianças. O presidente seguiu as orientações do Ministro Capanema, que em
memorial enviado ao mesmo, destacava a importância de três questões essenciais para o
assunto: a formação profissional dos menores através de um aparato organizado e eficaz, a
revisão do Código de Menores e sua proteção jurídica e a garantia da proteção à saúde com
a criação de estabelecimentos sanitários e assistenciais. Segundo o Ministro, não havia um
aparelho nacional que tivesse como função a coordenação e a orientação dos
estabelecimentos de ensino destinados aos menores abandonados.
33
32
Idem, página 225.
33
GC 35.06.22, pasta XVII – 18, série H, 16.8 – 1943.
27
27
No mesmo contexto em que se debatia a situação da infância no Brasil, um
problema tornara-se relevante: o caso do menor trabalhador. Porém, medidas adotadas
ainda no governo provisório do Presidente Vargas buscaram melhorar as condições de
trabalho dos menores da indústria.
34
O objetivo era coibir, através da lei, os abusos
realizados com relação à exploração da força de trabalho dos menores de idade.
Através do decreto-lei número 3.616 de 13 de setembro de 1941, o Estado
proporciona uma maior proteção ao menor no que se refere às relações de trabalho.
Estabeleceu-se a carteira de trabalho para menores de 18 anos e proibiu-se o trabalho de
menores de 14 anos. Para obter a carteira profissional, o menor realizava um exame de
aritmética e português ou apresentava alguma prova que comprovasse a sua conclusão do
curso primário. O mesmo decreto indicava locais perigosos e insalubres para o trabalho dos
menores tais como fábricas com vapores nocivos e muita poeira, minas subterrâneas,
esgotos, matadouros, curtumes, lugares com temperaturas demasiadamente altas ou baixas,
entre outros. Os menores não deveriam exercer atividades e serviços com metais, gases
tóxicos, ácidos, limpeza de máquinas em movimento, linhas de alta tensão. Estavam
proibidas as jornadas de trabalho entre 22 horas e 5 horas e os menores nem mesmo
deveriam prestar serviços domésticos ou ainda trabalhar em oficinas familiares, mesmo que
com o controle de um responsável.
Havia a necessidade de investir na formação dos trabalhadores, para que estes
representassemo-de-obra qualificada. Destacou-se, nesse sentido, a criação do Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) que se formou como o resultado da aliança
entre empresariado industrial e Estado. Funcionários do Ministério Capanema como
Roberto Mange (diretor do Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional do Estado
de São Paulo) e Rodolfo Fuchs (diretor da Divisão de Ensino Industrial do Departamento
Nacional de Educação) realizaram várias viagens a diferentes países com o objetivo de
encontrar profissionais capacitados a formar técnicos industriais brasileiros. Em ofício
enviado ao Ministro, Rodolfo Fuchs acreditava que poderia encontrar tais técnicos nos
EUA, Itália, e mais especificamente na Suíça. Porém, as dificuldades eram muitas: os
técnicos enfrentavam dificuldades de adaptação com o idioma, da precariedade das oficinas
34
O decreto número 22.042, de 3-11-1932 estabeleceu as condições de trabalho dos menores na indústria.
28
28
de trabalho, nível salarial não condizente com a qualificação. A tentativa tornou-se
fracassada.
O empresariado solicitou ao governo, em 1941, investimentos na criação de serviços
de aperfeiçoamento, seleção e formação de operários qualificados. O Ministro Capanema
criou então uma comissão para analisar a forma como as indústrias poderiam participar na
formação e qualificação de seus operários. O SENAI surgiu então nesse contexto.
Problemas sociais e administrativos comprometeram o desenvolvimento do SENAI.
Inicialmente, incorporavam-se ao SENAI indústrias integradas na Confederação Nacional
da Indústria e depois, em 1944, as empresas comerciais foram também incluídas. Em 1942,
foi aprovada a “Lei Orgânica do Ensino Industrial” que estabelecia um sistema paralelo de
ensino onde os cursos realizados no SENAI deveriam ensinar um ofício ao trabalhador.
Em novembro de 1941, o Ministro Capanema realizou outra conferência, desta vez
voltada para os debates concernentes à esfera da saúde pública. Os temas abordados na
ICNS foram a necessidade de desenvolvimento de um plano voltado à proteção da
maternidade, infância e adolescência; a organização sanitária estadual e municipal; a
sistematização de campanhas nacionais contra a tuberculose e a lepra e a determinação de
medidas voltadas ao desenvolvimento do saneamento básico.
Para o Gilberto Hochman
35
, o Ministro Capanema, desde o início de sua gestão,
procurou estabelecer uma ampla reforma administrativa nos serviços federais de saúde, em
concordância com os ideais do governo Vargas, buscando a formação de uma nova nação e
de um novo homem brasileiro, sadio e capaz. Com o estabelecimento das reformas de
Capanema na esfera da saúde pública, o território nacional, para efeitos administrativos, foi
dividido em oito regiões, sendo cada uma delas ligada à uma Delegacia Federal de Saúde.
A função da delegacia era a de realizar a supervisão de atividades necessárias com a
colaboração do governo federal, voltada para os serviços locais de saúde pública e
assistência médica.
Antes mesmo da conferência, ainda em 1937, foi criado o Fundo Nacional de Saúde
que era constituído de recursos especiais para a assistência médico-social, já que a
administração local era ineficiente. Foi criado também o Instituto Nacional de Saúde
35
HOCHMAN, Gilberto e FONSECA, Cristina. A I Conferência Nacional de Saúde: reformas, políticas e
saúde pública em debate no Estado Novo. In: GOMES, Ângela de Castro: Org. Capanema: o ministro e seu
ministério. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000.
29
29
Pública, que realizaria pesquisas com o objetivo de detectar os problemas sanitários do
Brasil, problemas de caráter coletivo.
A realização de conferências sobre saúde pública baseou-se na preocupação do
estabelecimento de parâmetros precisos na relação União – estados – municípios. Para
organizar os debates realizados na ICNS, o governo federal enviou aos governos estaduais
um questionário contendo cento e seis perguntas que abordavam os mais diversos temas. As
perguntas demonstraram a preocupação do governo e, mais especificamente, do ministro
com a situação sanitária e assistencial dos estados na esfera administrativa. A preocupação
voltava-se para o volume de gastos, o número de técnicos, a quantidade de leitos, a
estrutura administrativa, o tipo e a localização dos serviços especializados, etc.
Ainda na ICNS, foram realizadas propostas para que se criasse órgãos voltados à
formação de técnicos da saúde. Tais instituições de formação deveriam ser criadas pelos
estados, seguindo os modelos da escola de enfermeiras D. Ana Nery e do Instituto Oswaldo
Cruz (IOC). Além disso, lançou-se a idéia da criação de uma carreira específica de médico
sanitarista que trabalharia na necessária “moderna organização sanitária”.
Ainda segundo Hochman, mesmo diante do autoritarismo do Estado Novo, a ICNS
foi marcada pelo livre debate entre técnicos, especialistas, representantes do governo
federal e dos estados. A harmonia estabelecida entre as diferentes esferas estaria pautada na
tradição onde médicos e sanitaristas acreditam na eficácia da centralização administrativa
nas mãos da União. Médicos, técnicos e o governo pensavam a questão da saúde pública de
maneira convergente
36
.
Segundo Maurício Lissovsky e Paulo Sérgio Moraes de Sá
37
, os dois primeiros anos
da gestão do ministro Capanema teriam sido dedicados a uma ampla reforma onde os meios
burocráticos e administrativos tiveram uma vital importância. Dentre tais reformas, destaca-
se a construção de uma nova sede para o Ministério, O Palácio Capanema. A construção da
36
Sobre a atuação do Ministério Capanema na esfera da saúde, destaca-se também: HOCHMAN, Gilberto. A
saúde pública em Tempos de Capanema: continuidades e inovações.In: BOMENY, Helena. Org. Constelação
Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
37
LISSOVSKY, Mauricio e SÁ, Paulo Sérgio Moraes de. O novo em construção: o edifício sede do
Ministério da Educação e Saúde e a disputa do espaço arquiteturável nos anos 1930. In: GOMES, Ângela de
Castro: Org. Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000.
30
30
nova sede do Ministério configura muito bem a representação do caráter ministerial: o
novo, a estética modernista andando junto à modernidade do Estado.
No ano de 1935, o Ministério abriu um concurso para que projetos arquitetônicos
fossem apresentados, com o objetivo de construir uma nova sede. A existência de
concursos envolvendo os projetos do ministério representava uma dupla função: a
possibilidade de atingir a sociedade e passar uma imagem democrática já que a análise dos
projetos seria feita fundamentada em critérios técnicos, e não políticos.
O concurso foi muito bem aceito pelos engenheiros e estudantes de arquitetura,
porém, os mais animados foram os artistas modernistas, já que o movimento estava
ganhando novos espaços a partir da semana de arte moderna de 1922, embora ainda
sofresse restrições em algumas escolas e salões nacionais. O júri que teria como tarefa
escolher o projeto contemplado com a vitória, aprovou o trabalho de Arquimedes Memória,
catedrático de grande destaque, autor de várias obras expostas em 1922, diretor da Escola
nacional de Belas-Artes e membro da Ação Integralista Brasileira.
No entanto, através do veto direto do ministro, Arquimedes não pôde desenvolver o
seu projeto. Lúcio Costa, ligado ao movimento modernista, foi o novo escolhido para
coordenar um outro projeto. Após a chegada do convidado Le Courbusier, uma equipe de
arquitetos formada por pessoas como Oscar Niemeyer, Jorge Moreira e José de Souza Reis
e coordenada por Lúcio Costa, entregou ao ministro, em outubro de 1936, um novo projeto.
A reação de Arquimedes Memória já era esperada, que escreve para o presidente Getúlio
Vargas denunciando os laços existentes entre o Ministério da Educação e alguns
representantes da corrente modernista, marcada pela presença de Carlos Drummond de
Andrade junto ao Ministério. A reação do ministro Capanema também é esperada,
procurando defender não só o seu juízo estético, como também a sua capacidade de se
colocar como um “fruidor privilegiado”, aquele que opta por projetos do seu ministério.
Depois de ajustes realizados pela equipe de arquitetos que executara o projeto, o
mesmo teria sido aprovado por Capanema e a construção do edifício do Ministério da
Educação e Saúde, segundo Lissovsky
38
, “é o fruto do desejo irreprimível de construir de
uma administração e de uma época. O Brasil Novo funda-se num projeto construtivo:
assentar as bases da nacionalidade, edificar a pátria, forjar a brasilidade. O Brasil se eleva
38
Idem, página 62.
31
31
em seu “futuro ascensional” e, junto com ele, o ministério ergue seu monumento na
Esplanada do Castelo, no centro da capital da República”.
Se em termos políticos o Brasil se apresentava como novo, naquele contexto, a
arquitetura e a qualidade dos seus edifícios também deveria espargir a forma nova, sem
remeter-se a uma mera coincidência do acaso. O novo na arquitetura, assim como
referência do Estado, vale-se do passado, fundando o futuro
39
. A construção do novo
deveria assentar-se em duas bases: a primeira, ligada à natureza do passado e da tradição
procurando antecipar um futuro plausível e real e a segunda firmada em uma necessidade
de durabilidade. O novo tinha de afirmar-se como coisa que fica e perdura por seus
próprios méritos”.
40
Ao realizarmos uma análise da conjuntura conturbada dos anos 1930 e das
divergências que existiam entre diferentes concepções arquitetônicas presentes no Rio de
Janeiro, percebemos que os defensores do modernismo inseriam-se no debate não apenas
artístico ou técnico. Os modernistas também estavam embebidos em debates políticos.
Apresentava-se aos modernistas a oportunidade de exibir as metáforas de seus projetos e
promover suas capacidades de contemplar a sociedade com respostas às problemáticas
colocadas no campo político e intelectual. A construção do novo edifício expressava então
muitos símbolos, símbolos políticos, intelectuais, culturais e institucionais.
Ainda inserida no conjunto de reformas do Ministério Capanema, encontrava-se a
invenção do patrimônio histórico e da memória nacional. Há destaque aqui para a atuação
de Rodrigo Melo Franco de Andrade
41
. Através do Decreto-lei número 25 de 30-11-1937
39
Segundo estudiosos do modernismo no Brasil, o que distinguiria o modernismo brasileiro do modernismo
europeu, seria a relação de ambos com o passado. O modernismo europeu desconsiderava totalmente o
passado em prol da modernização, enquanto o modernismo brasileiro enfatizava as raízes culturais, o passado,
como bases da construção de um futuro amplo e renovado. Sobre o modernismo no Brasil e no Rio de Janeiro,
ver: VELLOSO, Mônica Pimenta. Que cara tem o Brasil?: Culturas e identidade nacional.Rio de Janeiro,
Ediouro, 2000.
40
LISSOVSKY, Mauricio e SÁ, Paulo Sérgio Moraes de. O novo em construção: o edifício sede do
Ministério da Educação e Saúde e a disputa do espaço arquiteturável nos anos 1930. In: GOMES, Ângela de
Castro: Org. Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000. Página 65
41
Em 30 de Novembro de 1937, o Presidente Vargas assinava o decreto que estabelecia a criação do SPHN,
sendo então Rodrigo Melo Franco de Andrade convidado pelo Ministro Capanema para ocupar a direção da
instituição. Durante o período em que esteve à frente do SPHN, que depois se tornaria IPHAN (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), o Serviço apegava-se à concepção de Patrimônio Histórico
voltada para a tradição, a civilização e o passado. Os bens culturais classificados como patrimônio deveriam
cumprir o papel de mediação entre heróis nacionais, personagens históricos e os brasileiros de diferentes
gerações. A apropriação do passado, tão utilizada pelo Estado Novo, representava um instrumento para educar
a população buscando a sua integração e unidade.
32
32
surgia uma nova estrutura institucional que teria como função a garantia da ação do Estado
na questão da proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Inaugurou-se então o
SPHN (Serviço do Patrimônio Histórico Nacional), que apresentava como características:
“Capítulo I
Finalidade: Tem por objetivo determinar, organizar, conservar, defender, enriquecer e propagar o
patrimônio artístico nacional.
Ao SPHAN compete:
I Determinar e organizar o tombamento geral do patrimônio artístico nacional;
II sugerir a quem de direito as medidas necessárias para conservação, defesa e enriquecimento do
patrimônio artístico nacional;
III determinar e superintender o serviço de conservação e de restauração de obras pertencentes ao
patrimônio artístico nacional;
IV sugerir a quem de direito, bem como determinar dentro de sua alçada a aquisição de obras para o
enriquecimento do patrimônio artístico nacional;
V fazer os serviços de publicidade necessários para propagação e conhecimento do patrimônio
artístico nacional.
Capítulo II
Determinações preliminares
Definição: Entende-se por Patrimônio artístico Nacional todas as obras de arte pura ou de
arte aplicada popular ou erudita, nacional ou estrangeira, pertencentes aos poderes públicos, a
organismos sociais e a particulares e estrangeiros, residentes no Brasil”
42
Dentro da esfera do SPHN, foram criados museus de importante expressão da
nacionalidade como o Museu da Inconfidência, o Museu Imperial e o Museu Nacional de
Belas-Artes. Casas históricas e museus regionais também foram criados e incentivados,
com a elaboração de estruturas administrativas e de objetivos a serem alcançados. A idéia
era fazer o povo brasileiro mais consciente de suas raízes, tradições culturais e valores
nacionais.
Segundo Cecília Londres
43
, a atuação do ministro Capanema na composição do
patrimônio histórico e artístico nacional não ficou limitada à escolha e avaliação de
técnicos, pois a relação do ministro com os modernistas influenciara a forma expressada na
construção desse patrimônio. Percebe-se nessa esfera, a existência de embates, uma vez que
muitos intelectuais e correntes artísticas buscavam um novo espaço.
Um dos reflexos da política atuante de Capanema foi a construção do prédio do
MES, onde o Ministro se envolveu diretamente com os assuntos da obra realizando
sugestões aos arquitetos e escolhendo diretamente os artistas e as obras de arte. Segundo a
42
Anteprojeto do patrimônio. IN: CAVALCANTI, Lauro. Modernistas na repartição. Rio de Janeiro, Editora
UFRJ, Paço Imperial, Tempo Brasileiro, 1993. Páginas 39 e 40
43
LONDRES, Cecília. A Invenção do Patrimônio e a Memória Nacional. In: BOMENY, Helena: Org.
Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
33
33
autora, “esse envolvimento não decorria apenas de um interesse estratégico, tendo em vista
a importância política e simbólica da obra. Foi também como homem de cultura, e mesmo,
em certo sentido, como criador que Capanema acompanhou e discutiu com arquitetos e
artistas os detalhes dos seus projetos, opinando, intervindo, selecionando e recusando.”
44
Ainda na esfera cultural, o Ministério Capanema realizou avanços significativos no
métier do cinema nacional, embora a ação do Estado estivesse marcada também por
algumas ambigüidades. Segundo Carlos Roberto de Souza
45
, no período da República
Velha o Estado praticamente ignorava o cinema brasileiro. A partir do governo provisório
de Vargas, as pessoas ligadas ao cinema brasileiro começaram a se articular, pressionando e
exigindo mais investimentos no setor. A resposta de Vargas veio através do Decreto
número 21.240 de 4-4-1932, que tinha como objetivo a nacionalização da censura. No
artigo 13º. do referido decreto, fixou-se uma determinada metragem de filmes nacionais
que seriam incluídos na programação mensal. Estava estabelecido então que era obrigatória
a exibição de um curta-metragem brasileiro em todas as sessões de todos os cinemas do
país
46
. Em pouco tempo, centenas de curtas eram distribuídos pelo Brasil e os produtores
mais ousados passaram a investir também nos longas-metragens. Em virtude desse
incentivo, no período de 1934 a 1937, percebeu-se um verdadeiro ressurgimento do cinema
brasileiro.
Em julho de 1934, o Diário Oficial publicou um decreto passando a Comissão de
Censura para o Ministério da Justiça. O projeto também apresentava a criação do DPDC
(Departamento de Propaganda e Difusão Cultural), que possuía uma seção dedicada ao
cinema. A seção resolveria questões ligadas ao setor cinematográfico e seria responsável
pela edição de filmes voltados para a propaganda do governo. O diretor do DPDC era
Lourival Fontes
47
e no ano de 1939 o DPDC transformou-se em DIP (Departamento de
Imprensa e Propaganda).
Com a criação do DPDC, verificamos, inicialmente, uma forte empatia entre
governo e intelectuais para a implantação dos órgãos federais dedicados ao cinema de
44
Idem, página 90.
45
SOUZA, Carlos Roberto de. Cinema em Tempos de Capanema. In: BOMENY, Helena: Org. Constelação
Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
46
Os curtas deveriam antes passar pela aprovação da censura.
47
Sobre Lourival Fontes, ver: OLIVEIRA, Lucia Lippi. O Intelectual do DIP: Lourival Fontes e o Estado
Novo. In: BOMENY, Helena: Org. Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2001.
34
34
propaganda e educativo. Os educadores que defendiam a importância do uso do cinema
com fins pedagógicos foram os signatários do Manifesto da Educação Nova. No mesmo
período, o Ministro Capanema encaminhou ao Presidente Vargas uma petição solicitando a
criação da comissão instaladora do Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince). O
presidente aprovou a solicitação.
Edgard Roquette Pinto, mencionado no início do capítulo, ficou encarregado de
dirigir o Ince e convidou Humberto Mauro para ajudar na equipe. O projeto desenvolvido
por Humberto Mauro no período foi “O descobrimento do Brasil”, que recebeu o apoio do
Ince. Em 1936, integrou-se como colaborador do Ince Heitor Villa-Lobos, escrevendo a
partitura musical do filme. Em 1937, Villa-Lobos e Mauro desenvolveram um intenso
trabalho de pesquisa, incorporando cantos indígenas às gravações, com orquestra e coro em
estúdios de som da Cinédia.
No mesmo ano, independente da produção de “O descobrimento do Brasil”, foram
feitos trinta filmes no formato escolar. A maioria dos filmes tinha o objetivo de instruir,
eram silenciosos e havia um roteiro que o professor deveria ler e depois debater com os
alunos de escolas públicas. O Ince contava com a seguinte estrutura: seção técnica,
biblioteca, sala de projeção, filmoteca e seção de distribuição. Dentro da produção do Ince
percebemos uma distinção clara entre filmes instrutivos (que deveriam ser utilizados em
sala de aula) como Ar atmosférico, Músculos superficiais do corpo humano, Hidrostática,
O céu do Brasil na Capital e filmes de finalidade educativa (que documentavam a história
do Brasil, a literatura brasileira, o ensino técnico e a música nacional). Para Roberto de
Souza, “o Ince só foi viável graças à dedicação da equipe que se foi constituindo sob a
proteção do Ministério da Educação, à liberdade que o ministro concedia a essa equipe e ao
espírito de solidariedade que os fortalecia.”
48
Analisando minuciosamente a ação do Estado no fortalecimento do cinema
nacional, concluímos também a existência de ambigüidades. Embora defendesse o
desenvolvimento do cinema brasileiro, o Estado, certas vezes, se colocava no mercado
como um forte concorrente, desmerecendo e anestesiando as pequenas empresas que
trabalhavam para o cinejornalismo.
48
SOUZA, Carlos Roberto de. Cinema em Tempos de Capanema. In: BOMENY, Helena: Org. Constelação
Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. Página 174
35
35
Com o advento da Segunda Guerra Mundial, as dificuldades do cinema nacional
aumentaram. A queda das importações estabelecera uma forte necessidade de distribuição
de recursos para determinados segmentos industriais como o metalúrgico e têxtil. Surgiram
então novos agentes investidores que deram às empresas e aos filmes um forte tom
comercial. O filme surgia como uma mercadoria, que deveria ser aceita pelo público, sem
apresentar necessariamente um conteúdo enobrecedor. Embora todas as dificuldades
tivessem sido apresentadas, Carlos Souza defende que “não se pode dizer que, para o
cinema brasileiro, os tempos de Capanema foram tempos difíceis, mesmo porque para o
cinema brasileiro não houve até hoje tempo fácil. Mas foram tempos de amadurecimento,
de perda de uma certa ingenuidade vinda dos tempos do cinema silencioso, tempo de um
confronto direto com novas técnicas, novas condições de mercado, tempos de aprendizados
narrativos e formais.”
49
Na esfera teatral, modificações relevantes também ocorreram a partir da chamada
“Era Vargas”. Antes mesmo da Revolução de 1930, Getúlio Vargas apresentou no
parlamento um projeto que tinha como objetivo promover o reconhecimento da profissão
de artista teatral. Tal projeto rompia com os padrões da época, onde homens e
principalmente mulheres eram mal vistos por atuarem na área do teatro
50
.
Em dezembro de 1937, já no período de implantação do Estado Novo, Vargas criou
o Serviço Nacional de Teatro. Essa medida consagrava o reconhecimento, por parte do
Estado, de que o teatro era uma expressão da cultura nacional e tinha como objetivo o
incentivo e o aprimoramento do teatro brasileiro. O Serviço ganharia destaque na promoção
da construção de novos teatros no país, no amparo das companhias de Teatro, na promoção
da seleção de pessoas que possuíam vocação para que as mesmas recebessem a educação
profissional, no incentivo do teatro para adolescentes e crianças nas escolas e no patrocínio
da tradução e da publicação das obras de teatro escritas em outro idioma. Alguns
profissionais da área realizavam críticas à relação que existia entre o Ministro Capanema e
alguns grupos teatrais. Foi comum a denúncia de que existiam determinados grupos
“privilegiados” pelo Ministro, sem levar em conta, a qualidade efetiva do que receberia o
apoio estatal. Porém, foi comum na política desenvolvida por Capanema, a sua
49
Idem, página 180.
50
O projeto se tornou lei através do decreto número 5.492, de 16 de julho de 1928.
36
36
interferência direta em diversos assuntos, principalmente ligados à intelectualidade e seus
projetos, no contexto apresentado
51
.
2. Intelectuais, Estado e Ministério Capanema
Segundo Ângela de Castro
52
, o período do Estado Novo, durante muitas décadas,
ficou “esquecido” pela historiografia brasileira, pois existia, até a década de 1980, uma
forte relutância por parte dos historiadores em trabalhar com a chamada “história do tempo
presente”. No contexto de 1987, o Estado Novo, ao fazer 50 anos, avançou no debate
historiográfico. Novas perspectivas foram apresentadas, mas a luta contra o regime militar e
a preocupação do restabelecimento da democracia no Brasil restringia as interpretações, já
que se lutava contra quaisquer tipos de autoritarismos. Politicamente se fazia necessário,
nos anos de 1970/1980, atacar o regime militar através da ditadura de Vargas, o contexto
influenciava na interpretação. A questão acadêmica era desafiada, pois analisar a
combinação de autoritarismo com modernização era um desafio político, mais do que
teórico.
De fato, a análise do período do Estado Novo é uma tarefa árdua, já que duas
questões fomentam a dificuldade: as ambigüidades da política do período e o debate sobre o
caráter fascista do governo. Ao longo dos anos os historiadores foram abandonando a
categorização de fascista, passando a trabalhar com o termo “Estado autoritário”. Podemos
apontar também como um dos fatores que teriam restringido o estudo do Estado Novo a
ação do marxismo no campo historiográfico nacional, que exigia análises estruturalistas,
voltadas para questões sociais e econômicas, descartando a história política que tinha como
base eventos, indivíduos e datas.
No entanto, a renovação da história política e a sua influência sob a historiografia
brasileira na década de 1980, permitiram o surgimento de novas ferramentas de análise que
levaram a novas interpretações de temas associados ao Estado Novo. A história política
51
Sobre a relação entre Capanema o teatro brasileiro, ver: PEREIRA, Victor Hugo Adler. Os intelectuais, o
mercado e o Estado na modernização do teatro brasileiro.In: BOMENY, Helena: Org. Constelação
Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
52
GOMES, Ângela de Castro. Estado Novo: Ambigüidades e heranças do autoritarismo no Brasil.
37
37
renovada, trabalhando em conjunto com a questão cultural, surgiu com a crise do
paradigma estruturalista.
53
Entre 1987 e 1997, cresceu então o número de estudos sobre o
período, com a exploração de novas abordagens: questões institucionais, a relação entre
Estado e intelectuais, cultura e educação, política e repressão, o mito construído em torno
da figura de Vargas, a questão da legislação, as trocas simbólicas realizadas entre
trabalhadores e presidente, etc. A dimensão do autoritarismo e da repressão passou a ser
analisada em conjunto com o papel do Estado na economia e na sociedade.
Como visão mais abrangente do Estado Novo, podemos destacar o abandono da
designação de fascista/totalitário, utilizando-se o termo autoritário e a periodização em dois
tempos, com destaque para um autoritarismo desmobilizador entre 1937 e 1942 e o
desenvolvimento do pacto político, este abrangendo Estado e Sociedade entre os anos de
1942 e 1945.
Sobre a relação entre Estado e intelectuais, Ângela de Castro Gomes, em sua obra
História e Historiadores
54
, afirma que o Estado Novo representou um período estratégico
da nossa história cultural, já que percebemos a atuação do Estado se colocando como meio
atuante para a construção da nossa história e da nossa nacionalidade. Assim, em 1939,
ocorreu a criação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), onde uma das
prioridades seria então a publicação da Revista Cultura Política
55
, tendo como objetivo a
divulgação da proposta política do novo regime.
Destaca-se também, nesse mesmo período, a formulação do jornal A Manhã. Esse
jornal assumiu uma postura doutrinária e um caráter didático na exposição das idéias do
presidente Getúlio e dos feitos do regime do Estado Novo. Além do jornal mencionado, a
revista Cultura Política também possuía propostas culturais. Nesse sentido, destacava-se o
suplemento literário “Autores e Livros”, que objetivava esclarecer os conteúdos da proposta
cultural estado-novista. Segundo Ângela de Castro,
53
Sobre a renovação da história política, ver: BORGES, Vavy Pacheco. História e política: Laços
permanentes. In: Revista Brasileira de História, número 23/24, São Paulo, 1992; ROSANVALLON, Pierre.
Por uma História conceitual do Político. In: Revista Brasileira de História, número 30, São Paulo, 1995.
GOMES, Ângela de Castro. Política: História, Ciência, Cultura, etc. In: Estudos Históricos, número 17
Editora FGV, CPDOC. Rio de Janeiro, 1996.
54
GOMES, Ângela Maria de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996.
55
Para aprofundar-se no tema, ver: CODATO; Adriano e GUANDALINI, Walter. Os autores e suas idéias:
um estudo sobre a elite intelectual e o discurso político do Estado Novo. In: Estudos Históricos, no. 32, FGV,
2003.
38
38
“tanto no caso de Cultura Política, como no de Autores e Livros, se tratava
fundamentalmente de um esforço pioneiro de definir um sentido para o Estado-nação
e de traçar seus vínculos com a criação cultural em geral e com a escrita da história
em particular. Como D. Pedro II, Getúlio Vargas animava-se do mesmo desejo
legitimador e assumia as mesmas funções de mecenato, mas partia de uma situação
em que já havia todo um conjunto de realizações acumulado ao longo de um “tempo”,
definido pela memória coletiva como “vida nacional”.”
56
Os interesses que se abarcam atualmente diante dos termos nação e nacionalismo
são constantes. Nação e nacionalismo seriam fenômenos políticos que se desenvolveram de
forma específica a partir de finais do século XVIII, estando vinculados à emergência da
moderna sociedade de massas. Para Benedict Anderson, falar em nação seria falar de uma
“comunidade política imaginada”, formada pela ação de aparelhos de Estado cada vez mais
envolvidos com a governabilidade da sociedade e por isso preocupados com o grau de
legitimidade que envolve o povo e o seu soberano. Fatores culturais como consciência
étnica, tradições religiosas e um passado histórico comum são pontos fundamentais para a
formação de nacionalidades.
Hobsbawm, segundo Ângela de Castro
57
, defende que o desenvolvimento de uma
“consciência nacional” ocorre através do tempo e entre grupos e regiões sociais de um país
de forma desigual. Além disso, baseado e Miroslav Hroch, afirma que pode ser feita uma
periodização para entender a chamada “história dos nacionalismos”. Essa história estaria
dividida basicamente em três fases: A primeira cultural, literária e folclórica, a segunda
teria como marca a ação de pioneiros e militantes da chamada “idéia nacional”e a terceira
estaria relacionada ao desenvolvimento de programas nacionalistas que adquiririam a
sustentação das massas.
A idéia de periodização estabelecida por Hobsbawm dá ênfase aos laços que unem o
desenvolvimento dos nacionalismos com as questões técnico-administrativas de
implementação de um governo estatal. Isto quer dizer que o governo precisaria incentivar o
desenvolvimento de uma máquina de agentes operantes que de forma mais complexa,
necessita da identificação e da lealdade de um país. A produção da chamada “consciência
nacional” seria materializada através de uma “engenharia social ideológica consciente e
deliberada” por parte do Estado. O Estado teria como arma a utilização do moderno sistema
56
GOMES, Ângela Maria de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996.
57
Idem, página 18.
39
39
de comunicação, destacando-se a atuação nas escolas primárias e secundárias e com o
passar do tempo utilizando-se dos meios de comunicação de massa. Sendo assim,
percebemos nitidamente a ação de Vargas no período do Estado Novo com a criação de
todo o aparato institucional para garantir o desenvolvimento do nacionalismo a nível
cultural.
O objetivo mais geral do trabalho de Ângela de Castro seria o de “investigar
quando, como e por meio de que agentes as idéias nacionalistas ligadas à produção de um
passado comum passaram a ganhar uma sustentação de massas no Brasil ou, visto por outro
ângulo, tornar-se objeto de políticas públicas mais conscientes.”
58
A hipótese defendida é a
de que no Brasil, no período do Estado Novo, o aparelho do Estado seria marcado pela
modernização, como podemos exemplificar com a criação do Departamento de
Administração do Serviço Público (DASP).
Segundo Ângela, já existe um consenso entre os estudiosos sobre a identidade
nacional no Brasil ao marcar os anos do pós-Primeira Guerra Mundial como um período de
forte nacionalismo militante. Isso estaria presente na formação de ligas e nos inúmeros
congressos e viagens realizados pelas vanguardas culturais do país. Apesar de não
percebermos a presença da propaganda mais ampla, isso não exclui a legitimidade, a
importância e o impacto desse nacionalismo. No mesmo período, Heitor Villa-Lobos, por
exemplo, realizou viagens com o objetivo de conhecer melhor o seu país, assim como
outros intelectuais que participaram do movimento modernista também o fizeram.
59
Um dos fatores que distingue basicamente a ação do Estado na formação dessa
consciência nacional a partir de 1940 do mecenato do Segundo Império, é a presença de
intensos recursos tecnológicos e financeiros. Os agentes ligados à burocracia do Estado
teriam mais facilidades para atingir os seus objetivos.
Ao analisarmos questões dessa natureza precisamos estar atentos para não
confundirmos o engajamento consciente de parcelas da burocracia estatal nesse
58
Idem, página 19.
59
Sobre as viagens realizadas pelos intelectuais modernistas no contexto, ver: VELLOSO, Mônica Pimenta.
Que cara tem o Brasil?: Culturas e identidade nacional.Rio de Janeiro, Ediouro, 2000.
40
40
empreendimento com uma interpretação que leva em consideração o exercício de
manipulação de massas.
60
Para Ângela,
“os elementos simbólicos avocados e os sentimentos mobilizados por uma política
cultural estatal não são escolhas arbitrárias, estando vinculados a tradições cujas
raízes se encontram no passado de comunidades com identidades que têm que ser
levadas em conta. Se há um processo de seleção e recriação de símbolos, a
legitimidade buscada fundamenta-se em valores preexistentes, que devem ser
observados e respeitados, para então serem tratados pela propaganda oficial. É nesse
difícil equilíbrio que a diversidade social e intelectual pode se transformar em
homogeneidade política, que inclui áreas significativas de unidade cultural.”
61
Na unidade cultural avulta a divulgação de uma história nacional que teria como papel
a identificação de uma origem comum e a partir dessa história busca-se refletir sobre o
futuro do Estado-nação.
Os efeitos gerados por uma política cultural podem ser não previsíveis a partir do
momento em que estabelece uma dialética entre a produção e a recepção da mensagem.
Isso nos leva à compreensão não só dos motivos que orientam determinadas políticas como
também das multifacetadas formas pelas quais uma política cultural pode ser apreendida
por grupos diferenciados em determinada comunidade nacional. Podemos assumir então,
em termos teóricos, que o conceito de cultura está associado a uma trama de significados
compartilháveis. O conjunto de significados simbólicos que são intrínsecos à ação humana,
não pode ser tomado como algo homogêneo e sistemático. A política cultural no período do
Estado Novo deve ser interpretada como um conjunto que engloba significados e que
possui pluralidade de pontos de vista, podendo funcionar de maneira contraditória e aberta
e podendo, também, ser absorvida de muitas maneiras.
Muitos estudiosos do processo de formação de estados nacionais concordam com o
fato de que quando se realiza um grande esforço para a implementação de grandes projetos
políticos, a atenção dos dirigentes do Estado se volta para o passado, tentando construir o
seu espaço na história. Para atingir esse objetivo, geralmente são feitas a releitura e a
reescrita dos fatos e das interpretações do calendário cívico de um país.
60
Podemos encontrar tal perspectiva em: MICELLI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil: 1920-
1945. São Paulo, Difel, 1979.
61
GOMES, Ângela Maria de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996.
41
41
O período do Estado Novo não só ganha destaque na nossa história política e
econômica, como também se revela um período essencial na nossa história intelectual, pela
efetiva e consciente política cultural implementada. A partir do momento em que o Estado
Novo buscava demarcar o seu lugar na história do Brasil, se fazia necessário construir uma
“nova” nação com a adoção de um “novo” modelo técnico-administrativo. Busca-se então
uma “nova” legitimidade que irá se inspirar na busca de recursos simbólicos considerados
primordiais. Para executar o projeto, se fazia necessário contar com a ação de especialistas
que deveriam recuperar e divulgar essa história, tanto nos ambientes escolares como fora
deles. “O futuro não se faz sem o passado, e este é um ato humano de rememoração. Seria
básica a realização de um processo de narração da história, que identificasse os
acontecimentos, os personagens e os sentidos dos seus atos.”
62
A partir da história, o Estado
pode mobilizar um povo-nação que compartilha passado comum, mesmo que ele sofra
diferenças locais. A unidade nacional aqui está associada à saga da nossa história.
Para analisar a relação entre Estado, história e construção de uma nova
nacionalidade no período do Estado Novo, Ângela utiliza como fonte a revista Cultura
Política. A criação dessa revista engloba um conjunto de ações da política cultural do
Estado Novo, através da criação de dois importantes órgãos do aparelho de Estado: O
Ministério de Educação e Saúde (MES) e o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).
A preocupação do presidente Getúlio Vargas com a utilização de técnicas avançadas e
modernas no desenvolvimento de propagandas políticas não é própria apenas do período do
Estado Novo, mas teria começado antes mesmo deste regime.
O DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) tinha como principais objetivos a
divulgação e a consolidação da imagem do novo regime que havia se instalado e o combate
à todas as imagens contrárias ao regime. Como destaque neste intuito, podemos apontar a
importância que ganhou a imprensa. Nesse contexto, a revista Cultura Política, dirigida
pelo intelectual Almir de Andrade, defendia que não estava alinhada com partidos políticos,
sendo aberta para intelectuais das mais variadas vertentes ideológicas. No editorial de
abertura da revista, Almir de Andrade afirmava que à Revista Cultura Política cabia
esclarecer e definir, para um público diversificado e amplo, as transformações que estavam
62
Idem, página 23.
42
42
ocorrendo na política, nas artes, ciências e procurar promover um debate com os valores
ligados por tais modificações.
Se observarmos a publicação dessa revista, podemos verificar que existe uma
modificação em seu foque central que pode ser dividido em duas fases essenciais. De
março de 1941 a maio de 1942 percebemos que através de textos densos escritos por
intelectuais renomados como o próprio Almir de Andrade, Francisco Campos e Cassiano
Ricardo, o que se procura enfatizar era não apenas a complexidade de nossa situação, como
também a possibilidade de se deparar com as questões em nome de um ideal nacional.
Existia um único pensamento que unia o Brasil: O Brasil grande e unido, como uma só
alma. Nesta primeira fase da revista, podemos verificar que se construía de maneira mais
erudita um discurso de legitimação do Estado, discutindo-se conceitos como nação, povo,
Estado, burocracia, etc. Além disso, buscou-se também, nessa primeira fase, trabalhar com
o que seria “O pensamento político do chefe do governo”, com o esclarecimento de
questões como o que seria o conceito de democracia defendido pelo Presidente Getúlio
Vargas.
Já no ano de 1942, essa postura da revista sofrerá modificações, decorrentes do
contexto político de alinhamento do Brasil com os EUA e da entrada do Brasil na guerra ao
lado das “democracias”. O papel da revista muda de direção então, pois agora o seu
objetivo seria o de mobilizar e conscientizar a sociedade para o conflito. Temas como
cultura militar, defesa nacional e segurança da pátria são valorizados.
A seção da revista intitulada “Brasil social, intelectual e artístico” traduzia a
importância e o sentido do investimento que o Estado Novo realizava. Nessa seção houve a
colaboração de um grande número de intelectuais. Segundo Ângela, ganham grande
destaque nessa seção os editorais de Rosário Fusco que seguem a lógica de que era
necessário voltar-se para a implementação de uma política cultural e a celebração de um
acordo entre intelectuais e Estado Nacional. No editorial, Rosário Fusco afirma: “A ordem
social, a paz, o trabalho, a tolerância política favorecem o desenvolvimento de todas as
capacidades criadoras da coletividade. Pelo que o povo produz na esfera das letras, das
artes e das ciências, dos usos e costumes sociais pode-se avaliar a sua vitalidade...
63
63
Editorial, Brasil social, intelectual e artístico. Cultura política (1): 227, mar. 1941. In: GOMES, Ângela
Maria de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996. P. 135
43
43
A linguagem utilizada nesse editorial é aquela que valoriza a produção e o trabalho
que está se realizando em todos os níveis, concorrendo para a coletividade. O nível da
produção cultural, que dependente de condições sócio-econômicas e políticas e marcado
pelos usos e costumes da chamada “cultura popular”, é colocado como essencial para a
chamada “vitalidade” de um povo. Existem subdivisões nesses editoriais escritos que
seguem a seguinte ordem: “A ordem política e a evolução social”, “A ordem política e a
evolução artística” e “A ordem política e a evolução intelectual”. A ordem política estaria
em primeiro lugar porque através dela seriam emanados quaisquer tipos de
desenvolvimentos, de acordo com o projeto político do Estado Novo. Quando se refere ao
mundo da cultura, “ela assume uma função tutelar particularmente estratégica e difícil, que
se exprime pelo uso da categoria de “permissão do político” à evolução intelectual.
64
O Estado novo conseguia ótimos resultados na área da política social trabalhista,
estabelecendo o diálogo direto entre o povo e o presidente da República, sem
intermediários. Estabelecia-se a paz social e o crescimento econômico, sendo necessário
adotar o mesmo desenvolvimento em outras esferas. Para o Estado Novo, entendia-se que o
progresso social de uma nação era, além de social, também marcado pelo desenvolvimento
de uma “civilização”. Além disso, existia a mentalidade de que o acordo entre “política” e
“sociedade” não poderia ser feito sem a intervenção e a influência dos intelectuais. Os
intelectuais, nesse sentido, seriam os que melhor captavam e expressavam a consciência
coletiva. Para a compreensão da nacionalidade chegar à sociedade, se tornava essencial o
“hábito de pensar”. O intelectual funcionava então como um “intérprete”, o “erudito”, que
através de sua função de sociólogo, historiador, literato ou artista, traduzia essa
nacionalidade para a sociedade.
Existia até então um inequívoco afastamento entre gerações políticas e intelectuais.
Como exemplos, podemos citar José de Alencar, que não teria fugido de uma “redução
política” preferindo ser tratado como homem das letras. Já Machado de Assis, fazia questão
de proclamar-se indiferente aos interesses políticos.
Para o editorialista da revista, Rosário Fusco, esse “afastamento” dos intelectuais
com relação à política poderia ser interpretado como produto de políticas realizadas
64
GOMES, Ângela Maria de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996. Página
135.
44
44
principalmente na República Velha. “Ante o desprezo com que os governos olhavam as
manifestações do “espírito criador brasileiro”, ante a ausência de qualquer iniciativa
governamental de apoio às obras da inteligência, ante a incompreensão da função social dos
intelectuais, estes respondiam com o seu desinteresse e ceticismo. Os intelectuais, não
satisfeitos com o Brasil e menos ainda com seus governos, não lhes davam atenção.”
65
A partir da década de 1930 os laços entre intelectuais, Estado e política estariam
mais estreitos. Isso ocorreu porque o regime reconhecia a liberdade do intelectual. A troca
de cooperação na administração pública e em inúmeros outros empreendimentos por
amparo político e institucional estreitava cada vez mais esses laços. Essa verdadeira
revolução foi marcada pela importância do Ministério da Educação e Saúde, que consciente
da relação entre “produtos intelectuais” e meio social, procurava garantir as condições para
que a vida cultural girasse em torno dos problemas ligados à nacionalidade e na busca por
soluções. O indicador valioso para avaliar o desenvolvimento de um povo era justamente
observar o ritmo da sua produção intelectual.
Esses laços que se estreitaram essencialmente na década de 1930, foram iniciados
na década de 1920, com a geração dos modernistas. Na realização desse projeto nacional, a
geração dos modernistas merece destaque, pois abordava a temática da brasilidade, do
enaltecimento do que era nacional, com feições militantes. Além disso, esses intelectuais
estavam disponíveis para o preenchimento de alguns cargos políticos no Estado Novo.
Concretizava-se o discurso das capacidades criadoras dos brasileiros em todas as esferas.
Segundo a ideologia do Estado Novo, só era possível encontrar o chamado “espírito
nacional” nos costumes da tradição, da religião, da raça, da língua e da memória do passado
do povo. Toda a política realizada a partir de então era uma espécie de negação do chamado
“materialismo”, presente no período anterior, que tinha como característica a romantização
do futuro, a hipervalorização do presente e a condenação do passado. O Estado novo fazia
então uma nova leitura desse tempo, enfrentando os problemas do presente, sem idealizar
muito o futuro, estando certo de que esse mesmo futuro seria melhor porque não se negava
a reflexão do passado. O passado seria, ao contrário do valor atribuído na república velha,
uma eterna fonte de inspiração.
65
Idem, página 138.
45
45
A busca pela compreensão do passado devia ser trabalhada de forma eficaz e
adequada, sem preconceitos de inferioridade ou de superioridade ufanista. Essas duas
últimas perspectivas eram, de certa forma, destruidoras do chamado “espírito nacional”. “A
nova política do Brasil não inspira outra coisa senão a união da cultura com a vida.
Realista, seus postulados se firmam em bases de uma segurança que, existindo no
presente, vai afirmar seu ponto de apoio nos alicerces do passado.”
66
Percebemos então, com essas indicações, que o Estado Novo marcou um amplo
processo de nova perspectiva cultural, buscando no apoio dos intelectuais e na promoção de
políticas culturais, formas de concretizar o ideal de “união nacional”. No caso específico do
setor da música, podemos perceber o projeto de Heitor Villa-Lobos, ligado ao ensino
musical em escolas públicas, como uma forma de unir a nação, “que cantava a uma só
voz”. Assim como outros intelectuais que perceberam a oportunidade de desenvolver seus
projetos, Villa-Lobos lançou-se na empreitada, sendo acusado muitas vezes de “marionete
do Estado Novo”. Porém ao estudarmos com mais afinco fontes históricas ligadas a esse
projeto de “construção nacional” como a Revista Cultura Política, podemos perceber que
os intelectuais, em especial os modernistas, tiveram a partir de 1930 a possibilidade de
desenvolver seus projetos e de não mais renegar a política. Da mesma forma como os
trabalhadores receberam seus benefícios, os intelectuais podiam agora trabalhar para
traduzir, segundo o regime, a cultura nacional. A inspiração era o povo e o que se produzia
era voltado para o povo.
No ano de 1935, o Ministro Capanema propôs ao Presidente Vargas que o
Ministério da Educação mudasse de nome, tornando-se o Ministério da Cultura Nacional.
Segundo o Ministro, essa nova denominação seria mais adequada para qualificar e
representar os novos empreendimentos culturais que se implementavam no Brasil, no
período de sua gestão.
Segundo Daryle Williams, o Brasil apresenta um forte tradição, formada desde os
primórdios do século XIX, que liga o setor cultural a instituições oficiais, voltadas para as
ciências, letras e artes. Capanema seria então um representante dessa herança, pois no
decorrer de sua gestão, buscou ampliar os laços existentes entre instituições oficiais e a
66
Influência política sobre a evolução social, intelectual e artística do Brasil. Cultura Política (2): 237, abr.
1941. In: GOMES, Ângela Maria de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996.
P.142
46
46
cultura. A partir de 1930, o Estado, que buscava cada vez mais a centralização, passou a
empreender seus esforços na promoção de reformas modernizadoras, configurando assim
uma importante intervenção na esfera cultural.
Com a criação de diversas repartições públicas, novas oportunidades no mercado
cultural foram lançadas. Em algumas instituições tradicionais, esse “novo tempo” acabou
gerando disputas de origem estética e política, disputas também na busca de cargos. A
partir de 1934 duas mudanças foram significativas para o favorecimento das demandas
culturais: a constituição de 1934 que pretendia fazer com que a União, estados e municípios
agissem conjuntamente na promoção desse setor e a entrada de Gustavo Capanema no
ministério, dedicando-se à uma administração cultural.
A relação entre intelectuais e Estado, emTempos de Capanema”, também sentiu
determinados pontos de tensão, de divergências entre Estado e intelectuais. Para evitar um
rompimento total, foi comum o uso dos vínculos de amizade. O ministro buscava um bom
convívio, amizade e colaboração dos intelectuais tentando colocar-se acima de debates
ideológicos que poderiam envolver o seu ministério
67
.
A fim de analisar o contexto intelectual em que Villa-Lobos atuara e por
desdobramento, o contexto da intelectualidade brasileira, a noção de geração se apresenta
como uma ferramenta de vital importância. Segundo Sirinelli
68
, a análise da geração foi
questionada muitas vezes por referir-se ao chamado “tempo curto”, ligada à sucessão de
acontecimentos. Somente as designadas “longa duração” e “média duração” destacavam-se
na historiografia em geral. Outra dificuldade enfrentada por historiadores em relação a esse
objeto é a não-linearidade da geração no que se refere aos aspectos sociais, políticos e
culturais. “A geração, no sentido biológico, é aparentemente um fato natural, mas também
um fato cultural, por um lado modelado pelo acontecimento e por outro derivado, às vezes,
da auto-representação e da auto-proclamação: o sentido de pertencer – ou ter pertencido – a
uma faixa etária com forte identidade diferencial.”
69
67
Ver: SCHWARTZMAN, Simon: Org. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra: FGV, 2000. No caso
específico da relação entre Estado e Villa-Lobos, também percebemos a existência de algumas tensões, porém
tal assunto será abordado mais à frente.
68
SIRINELLI, Jean-François. A geração. In: FERREIRA, Marieta de Morais e AMADO, Janaína (Orgs.).
Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2005.
69
Idem, Página 133.
47
47
Apesar das dificuldades metodológicas em lidar com o conceito de geração, de fato
ela representa uma importante ferramenta de “engrenagem do tempo”, marcada sempre por
um acontecimento inaugurador. A geração é marcada por ciclos e tendências diferentes de
acordo com o aspecto a ser analisado. No que se refere ao estudo do setor cultural, a
geração representa uma importante ferramenta de análise, como já assinalei. Pela esfera da
cultura política, sentimos a grande influência da geração na formação de novas
mentalidades políticas, dentro de um partido, por exemplo.
A partir do Ministério de Gustavo Capanema, percebemos uma geração de
intelectuais implementando seus projetos que apresentaram perspectivas convergentes com
os interesses do Estado. Tal geração, marcada por uma forte influência do modernismo em
muitas áreas, terá como base um resgate de transformações culturais que ocorriam antes
mesmo da Semana de Arte Moderna de 1922, com características bem específicas.
Segundo Mônica Velloso
70
, o conceito de modernismo vem sendo amplamente
discutido pela historiografia. No caso do Brasil, ocorreu a consolidação de uma tradição
intelectual que determinava o início da modernidade na década de 1920, formada a partir da
intelectualidade paulista. Em tal perspectiva, a Semana de Arte Moderna de 1922 ganhou
status de referência, porém, para encarar a questão da formação da modernidade brasileira é
preciso entender um fenômeno bem complexo, em formação muito antes da emblemática
semana de 1922.
Na realidade, já por volta de 1870, surgia uma geração de intelectuais, que no
contexto de modificações técnico-científicas, sofria impactos de uma realidade que alterou
sensibilidades sociais e percepções, marcando a formação de novos horizontes. Destaca-se
em tal processo o Manifesto Republicano de 1870, documento que apontou a escravidão
como uma barreira que impedia o acesso do Brasil à modernidade.
Iniciou-se na Faculdade de Direito de Recife um movimento intelectual que tinha
como objetivo a inserção do Brasil na cultura ocidental. Tal movimento inspirava-se no
paradigma científico dos evolucionistas, chegando à conclusão de que o clima e a
miscigenação influenciavam na conduta intelectual. A nacionalidade era ainda uma pedra
70
VELLOSO, Mônica. O Modernismo e a questão nacional. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de
Almeida Neves (Org). O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente - da proclamação da
república à revolução de 1930. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
48
48
bruta a ser lapidada e as elites intelectuais resgatariam a missão de organizar tal
nacionalidade a partir de referências científicas.
Embora a geração de intelectuais de 1870 apresentasse um discurso de ênfase
autoritária, lançava no ar a semente do debate sobre a identidade múltipla da nacionalidade,
semente essa que caíra no solo fértil modernista, formando múltiplos gérmens de
interpretações. Sobre a relação existente entre a geração de 1870 e a geração de 1930,
Mônica Velloso afirma que: “Não importa quãos precários sejam esses vínculos
identificadores entre as diferentes gerações de intelectuais. É necessário considerar que em
todo processo de leitura há uma seleção de idéias, uma absorção diferenciada que é ditada
pelas necessidades do contexto político-cultural. Para a geração de 1870, “ser moderno”
significava, sobretudo, buscar uma compreensão do significado de ser brasileiro,
compreensão essa que deveria ser mediada pelo instrumental cientificista
71
. O movimento
modernista fez uso dos estudos etnográficos da geração de 1870. Porém, a historiografia
não focalizou os laços de continuidade entre tais gerações, sendo amplamente influenciada
pela memória do movimento modernista paulista que se nomeou arauto do modernismo
brasileiro.
72
O modernismo deve ser entendido como o resultado de um processo histórico que
pode combinar várias tradições diferentes. No Rio de Janeiro, o grupo de intelectuais que se
destacou nesse processo foi marcado pela boemia, voltado para a produção de humor,
fazendo parte dele cronistas como José do Patrocínio Filho, Emílio de Menezes e Lima
Barreto e caricaturistas como Kalixto e Raul Pederneiras. A intelectualidade boêmia
participou de várias lutas políticas, sendo as mais expressivas a luta pela República e o
movimento abolicionista.
Apesar do estabelecimento da República, as elites políticas ainda apresentavam-se
com a incapacidade de incorporar as camadas populares. Intelectuais boêmios aliaram-se
aos grupos populares, expressando-se contra a exclusão social, havia um intenso
intercâmbio cultural entre tais grupos. Já na década de 1920, Sérgio Buarque de Holanda e
71
Idem, página 357.
72
São estudos que rompem com tal perspectiva do movimento modernista paulista: MORAES, Eduardo
Jardim de. A brasilidade modernista na dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Graal, 1979; SUSSEKIND,
Flora; Cinematógrafo das letras: literatura, técnica e modernização do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987; SANTIAGO, Silviano. A permanência do discurso da tradição no modernismo. In: Nas malhas
das letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; MORAES, Eduardo Jardim de. Modernismo revisitado.
Estudos históricos, Rio de Janeiro, v.1, n.2.
49
49
Prudente de Moraes Neto organizavam reuniões que contavam com a participação de
nomes como Patrício Teixeira, Donga, Pixinguinha e Gilberto Freire. Emblematicamente,
isso representava trocas culturais entre diferentes segmentos sociais.
Já o movimento modernista paulista apresentava nuances específicas. Destacavam-
se então duas perspectivas diferentes. Havia o grupo dos verde-amarelos formado por
Cândido Mota Filho, Plínio Salgado, Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo, de cunho
conservador, que entendia a formação da brasilidade a partir do “regresso ao passado” com
um forte apelo etnocêntrico. Tal perspectiva rapidamente inseriu-se na política, pois
Cassiano Ricardo destacou-se na formação da ideologia do Estado Novo e Plínio Salgado
ganhou status de líder do Integralismo.
Outra vertente do modernismo paulista estava inserida na perspectiva do Manifesto
Pau-Brasil, publicado por Oswald de Andrade em 1924. Os defensores de tal vertente
reuniam esforços para unir a “intelectualidade” e o “popular”. Já no Manifesto Antropófago
publicado em 1928, Oswald de Andrade enfatiza a brasilidade a partir da aglutinação de
culturas. Destacaram-se como referências desta vertente Mário de Andrade, Paulo Prado,
Tarsila do Amaral
73
, Villa-Lobos, entre outros.
A existência das múltiplas vertentes modernistas, marcadas pelas influências de
diferentes gerações, demonstra a pluralidade do movimento no tempo e no espaço. Porém, a
versão verde-amarela da nacionalidade fixou-se na memória nacional, sendo amplamente
utilizada no discurso do período do Estado Novo. Verifica-se a existência de um
movimento vasto, amplo, que em certos casos estreitou seus laços com a política na década
de 1930, contando com a eficácia de uma ampla rede de relações intelectuais. São heranças
e perspectivas de uma geração multifacetada que apontam para a construção do futuro.
Segundo Koselleck
74
, de acordo com a seqüência das diferentes gerações históricas,
a relação entre passado e futuro foi alterada. A partir do avanço do chamado “novo tempo”
moderno, o futuro passou a se apresentar de maneira mais desafiadora, já que o mundo da
técnica permite experimentar, cada vez mais, tempos breves. Utilizando-se das várias
73
O quadro Abaporu expressa a perspectiva do “comedor de culturas”, já que “abaporu” é uma palavra de
origem indígena (aba = homem ; poru = que come).
74
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado – Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto: Editora PUC Rio, 2006.
50
50
temporalidades contidas no quadro “Batalha de Alexandre”, de Albrecht Altdorfer, trabalha
a idéia de que o presente e o passado estão entrelaçados em um horizonte histórico comum.
A história da Cristandade sempre trabalhara na perspectiva do “fim dos tempos”, na
visão escatológica do mundo, apresentando-se como fator de integração da Igreja. No
contexto da Reforma Religiosa, a necessidade de paz evocava um “novo princípio”; o
princípio da política. A partir do século XVIII, entrou em cena o antagonismo entre o
espírito cético e humanista em oposição aos oráculos e as superstições. “O cálculo político
e a contenção humanista delimitaram um novo horizonte para o futuro”.
75
A partir de então
o homem experimentou a modernidade, consciente de estar vivendo na mesma, sendo que
nela destacaram-se o prognóstico racional e a filosofia da história
76
. A partir da utilização
do cálculo racional surge uma nova concepção de futuro, que representa então um campo
de “probabilidades finitas”.
A utilização do prognóstico está ligada a uma determinada situação política. Ainda
segundo o autor, “o prognóstico é um momento consciente de ação política. Ele está
relacionado a eventos cujo ineditismo ele próprio libera. O tempo passa a derivar, então, do
próprio prognóstico, de uma maneira continuada e imprevisivelmente previsível”.
77
Enquanto a profecia apocalíptica destruía o tempo, de cujo fim se alimentava, o prognóstico
é capaz de produzir o tempo que o engendra, em direção ao que ele se projeta. Tal
prognóstico baseia-se em configurações específicas e estilizadas das formas de controle
político e temporal.
No entanto, a passagem do futuro profetizado pelo cristianismo para o futuro
prognosticável, de cunho iluminista, não rompeu totalmente com a perspectiva das
previsões cristãs. Na realidade, o prognóstico funciona na direção de inscrever o passado no
futuro. “Por essa qualidade futura continuamente garantida ao passado é possível tanto
assegurar quanto limitar o espaço da manobra do Estado. À medida que o passado só pode
ser experimentado porque ele mesmo contém um elemento de futuridade – e vice-versa - , a
75
Idem, página 30.
76
Para aprofundar mais o tema, verificar o estudo de Koselleck sobre a formação da moral maçônica e
iluminista e suas perspectivas políticas no século XVIII. O autor trabalha a perspectiva do prognóstico e da
filosofia da história em: KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo
burguês. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999.
77
Idem, página 32.
51
51
existência política do Estado e tributária de uma estrutura temporal que pode ser entendida
como uma capacidade estática de movimentação”.
78
Tais referências de Koselleck nos remetem a uma análise sobre o contexto político e
de produção intelectual no período do Estado Novo. Através das diferentes gerações de
modernistas, percebemos a utilização do passado como fonte de inspiração, o presente
como um campo fértil para a ação, com a adoção de políticas “racionais”, em busca de um
futuro glorioso, produto do prognóstico racional patrocinado pelo Estado. Buscava-se o
rompimento com a República Velha, representada como atraso, ressaltando as dúvidas e
incertezas sobre o Brasil, o povo brasileiro. Os intelectuais modernistas, herdeiros de uma
tradição intelectual anterior, buscaram tais respostas, rumo à consolidação de bases para o
prognóstico racional e definitivamente, rumo ao futuro glorioso, conforme as necessidades
e perspectivas do Estado.
3. Villa-Lobos e a SEMA
O musicólogo e diplomata Vasco Mariz criou uma tradição biográfica sobre Villa-
Lobos, mas, para compreender a lógica dessa história de vida, vale atentar para algumas
indicações teóricas de Pierre Bourdieu.
79
Segundo o autor, a história de vida seria uma das
noções do senso comum que teriam entrado como “contrabando” no universo científico.
Pois, para o senso comum, a vida seria como um caminho, um trajeto, uma estrada,
caracterizada por começo, etapas e um fim, resguardando um duplo sentido de término e
finalidade. Para Bourdieu, esse tipo de interpretação aceita a filosofia da história no sentido
de sucessão de acontecimentos históricos, dos fatos, do relato em si, que se refere à
biografia ou autobiografia. O sujeito e o objeto da biografia, ou seja, o investigador e o
investigado teriam, de certa forma, o mesmo interesse em aceitar o postulado do sentido da
existência narrada. Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é,
como o relato coerente de uma seqüência de acontecimentos com significado e direção,
talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência
78
Idem, página 36.
79
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: Janaína Amado e Marieta de Moraes. Usos e abusos da
História Oral. Rio de Janeiro, editora FGV, 2005. Página 183.
52
52
que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar. Seria uma história
desprovida de significação”.
80
Seria um erro, portanto, nos furtarmos à questão dos mecanismos sociais que
favorecem ou autorizam a experiência comum da vida como totalidade ou unidade. No
habitus podemos encontrar o princípio ativo, irredutível às percepções passivas da
unificação das práticas e representações. O mundo social seria provido de todo tipo de
instituição de unificação do eu e de totalização. Nesse sentido, podemos destacar como
exemplo a questão do nome próprio que, segundo Krispke, citado por Bourdieu, designa o
mesmo objeto em qualquer universo possível.
O relato de vida, de certa forma, tenderia então a aproximar-se de um modelo oficial
de representação. A história de vida conduziria à noção de trajetória como série de
posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente num espaço que é ele próprio um
devir, estando sujeito a incessantes transformações”.
81
Concluindo, o autor afirma que não
se pode compreender uma trajetória sem ter previamente construído os estados sucessivos
do campo no qual ela se desenrolou e o conjunto de relações que uniram o agente
considerado ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontado
com o mesmo espaço dos possíveis.
No ano de 1949, o musicólogo Vasco Mariz publicou a primeira obra biográfica de
Heitor Villa-Lobos
82
. Obra que seguiu o padrão clássico das biografias em geral, marcada
pela narração densa, utilizando-se das técnicas literárias, sem comprometimento com as
fontes que comprovassem as informações presentes em seu conteúdo. Não nos cabe aqui
exigir do musicólogo uma postura de historiador, com suas metodologias específicas e a
contextualização histórica das relações sociais. Na realidade, a biografia citada foi escrita
em circunstâncias muito especiais, já que o autor teve contato direto com o biografado,
sofrendo em alguns momentos fortes pressões de Villa-Lobos
83
. O fato é que muitos
trabalhos realizados posteriormente sobre Villa-Lobos, pautaram-se em informações da
80
Idem, página 185.
81
Idem, página 189.
82
MARIZ, Vasco. Heitor Villa-Lobos, compositor brasileiro. Rio de Janeiro: Divisão Cultural do Ministério
das Relações exteriores, 1949.
83
Sobre o assunto ver: GUÉRIOS, Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação.
Rio de Janeiro, Editora FGV, 2003.
53
53
obra de Vasco Mariz e acabaram formando uma verdadeira imagem mitológica do músico,
especialmente sobre aspectos de sua vida.
Segundo Anália Chernãvsky
84
, quando Vasco Mariz escreveu tal obra – que se
tornou a grande referência para todas as outras biografias escritas sobre Villa-Lobos – o
diplomata e musicólogo correspondia-se freqüentemente com o maestro, estabelecendo
assim uma sólida relação de amizade: Mariz era amigo, admirador e intérprete de Villa-
Lobos. Analisando as correspondências trocadas entre os amigos no período, conclui-se que
o musicólogo, que no momento da publicação da biografia servia na Embaixada do Brasil
em Belgrado, divulgava a obra de Villa-Lobos na Europa e conseguia concertos para o
maestro.
Além da questão dos laços de amizade que uniam Villa-Lobos e Vasco Mariz,
devemos levar em consideração que a obra foi editada pelo Ministério das Relações
Exteriores, no governo Dutra, onde normalmente se busca destacar os aspectos positivos
das personalidades do país, enfatizando sempre os valores associados à pátria. Como Villa-
Lobos já era um músico bastante respeitado na década de 1940, a apologia a Villa-Lobos
significaria, de certa forma, uma “exaltação à pátria”.
Ainda segundo Chernãvsky, em 1941, oito anos antes da publicação da obra de
Mariz, Villa-Lobos publicou uma autobiografia na Revista Música Viva
85
. O discurso
utilizado pelo maestro em tal obra foi praticamente repetido por Vasco Mariz
posteriormente, com uma divisão dos capítulos relacionada à infância, chorões, juventude,
inovação, Semana de Arte Moderna, Europa, maturidade e Educação. A autobiografia de
Villa-Lobos formou um padrão seguido por Vasco Mariz, que se repetiu em diversas outras
biografias do músico
86
.
Segundo informações que podem ser comprovadas através das diversas fontes
históricas, Heitor Villa-Lobos, filho de Raul Villa-Lobos e Noêmia nasceu em 5 de março
de 1887 na Rua Ipiranga, bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. O nome Villa-Lobos
possui origem andaluza, porém a influência da música espanhola em sua obra foi
84
CHERNÃVSKY, Anália. Um maestro no gabinete: música e política no tempo de Villa-Lobos. Campinas,
São Paulo, 2003.
85
VILLA-LOBOS, Heitor. Casos e fatos importantes sobre Heitor Villa-Lobos numa biografia autêntica
resumida. In: Revista Música Viva jan/fev. 1941 – Ano I – no. 7/8.
86
Outra biografia que repete esse padrão da escrita na divisão dos capítulos é a de Lisa Peppecorn. Ver:
PEPPECORN, Lisa. Villa-Lobos. Rio de Janeiro, Ediouro, 2000.
54
54
coincidência. O pai de Villa Lobos, Raul, nasceu no Rio de Janeiro e algumas fontes
confirmam a ligação do mesmo com a revolução Federalista do Rio Grande do Sul,
participou na medida em que escrevia artigos para jornais gaúchos. Raul foi funcionário da
Biblioteca Nacional com o cargo de amanuense. Acusado pelo governo de Floriano Peixoto
de subversão, fugiu para Sapucaia, interior do Rio de Janeiro e depois para Bicas e Santana
de Cataguases, em Minas Gerais. Passado o período de turbulência política, Raul foi
nomeado chefe da Biblioteca do Senado e deixou como herança para o filho o aprendizado
e o gosto pela música. A mãe de Villa-Lobos, Noêmia dos Santos Monteiro, era filha e neta
de comerciantes portugueses radicados em Friburgo. Desejou para Heitor uma carreira mais
“sólida”, como a Medicina, o que possibilitou um grande embate entre mãe e filho.
A ida da família Villa-Lobos para o interior de Minas Gerais, quando Heitor ainda
possuía cinco anos de idade, foi explicitada na obra de Vasco Mariz como evento de grande
importância, já que através dessa viagem o menino Heitor teria feito contato com músicos
caipiras. Segundo a narração de Mariz, Villa-Lobos teria, desde esse período, a ambição de
coletar material para sua futura obra. Percebemos aqui uma idéia de suposição imposta
como verdade na escrita, o que acabou perpassando por outras obras escritas sobre Villa-
Lobos, trabalhando com a idéia de que o menino possuía o “dom” para a composição.
Como podemos afirmar que o menino Heitor, aos cinco anos de idade, já pensava na
ruptura estética musical que realizaria quando adulto? A afirmação apresentada por Vasco
Mariz baseou-se principalmente em entrevistas que realizou com o biografado, associando
ainda a viagem de Villa-Lobos para Minas Gerais à obra composta em 1930, O trenzinho
caipira.
Como percebemos na trajetória de vários compositores clássicos que se destacaram
no cenário da música
87
, Heitor Villa-Lobos foi educado no contexto de uma família
extremamente musical. A casa de Villa-Lobos reunia aos sábados nomes respeitados na
época, onde eram tocadas músicas até de madrugada. Através de sua Tia ZiZinha, “Tuhú”,
apelido de Villa, aprendeu a apreciar a obra de Johann Sebastian Bach, compositor que
influenciou bastante a sua obra. Segundo muitas biografias escritas sobre Villa-Lobos, com
87
Temos como exemplos Wolfgang Amadeus Mozart, que foi educado por um pai músico; Johann Sebastian
Bach também nasceu em uma família de músicos, Felix Mendelssohn Bartholdy não pertencia a uma família
de músicos, especificamente, mas tal família era repleta de professores e figuras importantes nas letras,
ciências e nas artes; Charles Gounod como filho de uma pianista, dentre outros. Tais informações demonstram
a importância do contexto familiar na formação intelectual de músicos.
55
55
a morte do pai em 1899, ele passaria a tocar seu instrumento preferido, o violoncelo, em
teatros e cafés. Aperfeiçoou o estudo do instrumento com o mestre Benno Niederberger.
Começou a estudar violão, contrariando a mãe e a partir de então a influência de músicos
populares como Quincas Laranjeiras, Anacleto de Medeiros, Irineu de Almeida e José
Cavaquinho se tornou presente. A fim de conhecer as belezas do Brasil, teria viajado pela
Bahia, Espírito Santo e Pernambuco, onde, além das capitais, conheceu fazendas, engenhos
e vilarejos. Fez um intervalo nessas viagens em 1907 e matriculou-se no curso de harmonia
de Frederico Nascimento, no INM (Instituto Nacional de Música), mas em pouco tempo
desistiu por conta do dogmatismo dos professores. A partir de então, tornou-se autodidata
88
.
Geralmente os trabalhos biográficos sobre Villa-Lobos dão grande ênfase às
supostas viagens que teria realizado pelo Brasil nas primeiras décadas do século XX.
Porém, atualmente, muitos estudiosos afirmam com mais clareza que parte desses relatos
era fruto da imaginação do músico. A partir da obra de Vasco Mariz, essas viagens
acabaram se tornando “verdadeiras”, sendo repetidas em vários outros estudos
89
.Segundo
Paulo Renato Guérios
90
, Villa-Lobos possuía uma influência muito forte sobre tudo que se
escrevia a seu respeito e utilizando-se de uma imaginação fértil para a construção da
imagem de compositor genuinamente brasileiro, resgatou em seus relatos essas “memórias
confusas” que acabaram se repetindo em tais obras.
Analisando atentamente as questões que dizem respeito às prováveis viagens de
Villa-Lobos, percebemos a existência de verdadeiras fábulas criadas pelo compositor. Em
1905, com apenas 18 anos, provavelmente o jovem músico vendeu muitos livros da
biblioteca herdada pelo pai para viajar pelo Brasil, com relatos de naufrágios no Rio
Solimões, dificuldades para salvar instrumentos, entre outras coisas. Quanto à suposta
participação de Villa-Lobos na expedição Rondon, onde teria convivido com tribos
88
São biografias que ostentam tal discurso sobre o contato de Villa-Lobos com músicos populares e a
influência de Bach em sua obra: HORTA, Luiz Paulo. Villa-Lobos: Uma introdução. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 1987 e SILVA, Francisco Pereira da. Villa-Lobos. São Paulo: Editora Três, 1974. Além destas,
sempre destacamos a autobiografia de Villa-Lobos e a biografia escrita por Vasco Mariz.
89
São exemplos de estudos sobre Villa-Lobos que repetiram a tradição biográfica de Vasco Mariz, referentes
às supostas viagens do músico, ver: SCHIC, Anna-Stella. Villa-Lobos: Souvenirs de l’Indien Blanc. Paris:
Actes Sud, 1987; HORTA, Luis Paulo. Heitor Villa-Lobos. Rio: Ed. Alumbramento, Livro Arte, 1986;
HELM, Everett. “Tanz des weissen Indianers. Der Komponist Brasiliens: Heitor Villa-Lobos (Dance of the
White indian: HeitorVilla-Lobos, Brasilian Composer. In Stuttgart Zeitung 1, 1967; STORNI, Eduardo.
Heitor Villa-Lobos: Genial y desconocido. In Scherzo 12, 1987.
90
Guérios, Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2003.
56
56
indígenas, pode-se afirmar que é fruto da imaginação do músico. Não existe sequer uma
fonte que comprove tal participação e o cunhado de Villa-Lobos, Romeu Bormann, fez
parte dessa expedição como telegrafista, relatando posteriormente à família todos os
detalhes da mesma. Segundo Maria Augusta Machado
91
, “o que certamente causou a Villa-
Lobos um enorme interesse foi o relato da reação dos índios ao ouvirem a voz de Caruso
num gramofone e os 38 fonogramas de músicas indígenas gravados por Roquette Pinto”.
Em entrevista concedida à jornalista francesa Lucie Mardrus, Villa-Lobos conta que
conseguiu se libertar de índios antropófagos colocando sua música para os mesmos
ouvirem. Provavelmente, uma apropriação da história de Caruso, onde os índios ficaram
encantados com sua voz.
92
Por volta de 1913, casado com Lucília Guimarães, pianista que lecionava para
ajudar nas despesas da casa, Villa tocava em teatros e cafés e enfrentava as críticas de sua
mãe, preocupada com a situação da família. Na década de 1920, Heitor Villa-Lobos atuou
ao lado de artistas modernistas, apresentando-se na Semana de Arte Moderna como único
compositor brasileiro
93
. Na maioria das biografias e trabalhos escritos sobre o músico
destacam-se termos como compositor original, genial, genuinamente brasileiro, conhecedor
das tradições, inspirado pelo povo, inocente. Na realidade, sempre os biógrafos enfatizam
mais os aspectos referentes à música, ao modernismo, às “supostas viagens”, do que os
fatos ligados à posição política de Villa-Lobos enquanto educador. A postura e a posição
política de Villa-Lobos enquanto educador é a grande ênfase do meu trabalho.
Logo após a realização da Semana de Arte Moderna de 1922 Villa-Lobos partiu
rumo à Paris. Já em 1923, suas peças eram apresentadas na Europa. Consolidada sua
carreira no exterior, Villa-Lobos retornou ao Brasil em junho de 1930, realizando vários
concertos de conteúdo nacional e patriótico. Segundo Contier
94
, o maestro recebeu o apoio
91
MACHADO, Maria Augusta. Notas biográficas sobre a infância e a mocidade. In: Villa-Lobos. Revista
Quadrimestral da Academia Brasileira de Música, n. 3, setembro de 1999.
92
Segundo Chernãvsky, Vasco Mariz e Lisa Peppercorn, em edições mais recentes de suas obras, reconhecem
que as viagens antes abordadas em seus textos tratam-se de invenções de Villa-Lobos.
93
Para aprofundar-se no movimento modernista, na Semana de Arte Moderna de 1992, ver: WISNIK, José
Miguel. O coro dos contrários: A música em torno da Semana de 22. 2 ed. São Paulo, Duas Cidades, 1983.;
Naves, Santuza Cambraia. O violão azul: Modernismo e música popular. Rio de Janeiro, Editora FGV, 1998.
Página 63; TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000;
KIEFER, Bruno. Villa-Lobos e a Semana de Arte Moderna. In: Revista de Teatro, n. 461, 1987.
94
CONTIER, Arnaldo Daraya. Passarinhada do Brasil: canto orfeônico, educação e getulismo. SP: EDUSC, ,
1998.
57
57
do interventor paulista João Alberto. Tais apresentações se expandiram, chegando então a
cinqüenta e quatro cidades, sendo apresentados hinos como P´ra Frente, Ó Brasil, Meu
país e Brasil Novo. Foram realizadas várias concentrações em diversas partes diferentes do
Brasil, reunindo 15000 crianças (1932) no estádio do Fluminense e 60000 pessoas (1931)
no Parque Antártica, em São Paulo.
Villa-Lobos lutou pela institucionalização do canto orfeônico, enviando, em 1932,
uma carta para o presidente Getúlio Vargas, onde argumentava a importância da música
como importante veículo para a construção de uma cultura nacional
95
. Em fevereiro do
mesmo ano, o maestro recebeu de Anísio Teixeira o convite para chefiar o Serviço de
Música e Canto Orfeônico da capital da República.
O maestro trabalhou então ostensivamente e já em março de 1932 lançara um edital
convocando professores para o Curso de Pedagogia de Música e Canto Orfeônico.
Participaram da aula inaugural professores do INM (Instituto Nacional de Música) e
artistas. Já em Maio de 1932, criou o Orfeão dos Professores, que desenvolvia atividades
como os “Concertos da Juventude”, voltados para a apresentação da música erudita aos
operários e pessoas sem recursos e apresentações educativas, realizadas para pais e alunos.
Através do Decreto Municipal número 4.387, o Serviço de Música e Canto
Orfeônico, dirigido por Villa-Lobos, transformou-se numa Superintendência subordinada
ao Departamento de Educação do Distrito Federal, sendo então denominada SEMA
(Superintendência de Educação Musical e Artística). Tal decreto ocorreu em setembro de
1933. Segundo Guérios
96
, “nesse mesmo ano Villa-Lobos criou mais três níveis de cursos
para professores que quisessem se especializar no assunto e ministrar cursos de iniciação,
recebendo diplomas oficiais de professor de música e canto orfeônico. Também tornou
obrigatória a participação de professores de escolas primárias em seu curso de iniciação
numa decisão que gerou certa antipatia”.
95
No conteúdo da carta, Villa-Lobos afirmava: “... eficaz de propaganda do Brasil, no estrangeiro, sobretudo
se for lançada por elementos genuinamente brasileiros, porque desta forma ficará mais gravada a
personalidade nacional, processo este que melhor define uma raça, mesmo que esta seja mista e não tenha tido
uma velha tradição(...) mostre Vossa Excelência Senhor Presidente, aos derrotistas mentirosos ou aos
pessimistas que vivem não acreditando num milagre da proteção do vosso governo às nossas artes, que Vossa
Excelência é de fato o lutador consciente e realizador, tornando, incontinenti, uma realidade o Departamento
Nacional de Proteção às Artes.”Idem. Ibidem. (Página 28).
96
GUÉRIOS, Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2003. Página 185.
58
58
Além de investir na formação dos professores, os alunos eram freqüentemente
estimulados. Os alunos que participavam do projeto visitavam outras escolas, com o
objetivo de realizar uma integração marcada pela confraternização. Além disso, os orfeões
de algumas escolas recebiam convites para participar de programas de rádio. A partir de
1934, Villa-Lobos passou a defender a necessidade de tornar o ensino da música
obrigatório no currículo de todas as escolas. Para facilitar o processo da implementação de
tal ensino, se prontificava a enviar caravanas de professores formados pelo INM (Instituto
Nacional de Música) para levar métodos e instruções a todos os lugares do país. Tantas
idéias, projetos e realizações merecem uma reflexão mais detalhada. No segundo capítulo
então, realizaremos a análise das principais obras e relatórios escritos por Villa-Lobos em
meio a esse turbilhão de realizações.
59
59
Capítulo II - O pensamento de Heitor Villa-Lobos: Educação e Música
“A música, eu a considero, em princípio, como um indispensável alimento para a
alma humana. Por conseguinte, um elemento e fator imprescindível à educação do
caráter da juventude. O adulto pode ter o direito lógico e livre de julgá-la como o
mais agradável divertimento do espírito, uma vez que tenha sua alma bem formada
sob a influência das forças misteriosamente magnéticas com que o poder sugestivo
dos sons civilizados atua nos seres. Qualquer opinião sobre música, desintegradas
dos princípios mencionados, torna-se apenas uma resultante da ousadia, do
temperamento descontrolado pela má educação social em relação à sensibilidade dos
fenômenos artísticos. Quem assim procede, age como se falasse no deserto com a
ilusão de estar sendo ouvido ou, como um chinês discursando, na sua língua, em
plena tribo de ameríndios.”
97
Heitor Villa-Lobos
1. As palavras do maestro
A estética da obra de Villa-Lobos é caracterizada como monumental, sublime e
popular
98
. O maestro trabalha com o ideal da Bildung. Trata-se de um conceito de cultura
formulado pelos alemães no final do século XVIII que quer dizer “formação” ou
“autoformação”, trabalhando com a idéia de aperfeiçoamento individual e preservação das
particularidades buscando a originalidade. Porém, a originalidade não se realiza através da
simplicidade, ao contrário, o sujeito individual se relaciona e interage com o mundo
exterior. E assim, partindo-se da tese, atinge-se a síntese que é representada pela totalidade.
Segundo José Miguel Wisnik
99
, o modernismo europeu possuía dois procedimentos
estéticos diferentes: o engenheiro, que possui um rigor produtivo e o procedimento da
bricolagem. Villa Lobos seria um bricouler, pois possui a característica de realizar suas
obras de uma forma incorporativa, utilizando os instrumentos já disponíveis,
diferentemente do engenheiro que associa às suas tarefas a apreensão de matérias-primas e
de utensílios concebidos e procurados na medida do seu projeto.
97
VILLA-LOBOS, Heitor. Educação Musical. Boletim Latino Americano de Música, Ano VI, Tomo VI –
Rio de Janeiro, 1946. Página 6.
98
Sobre a estética de Villa-Lobos, ver: NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: Modernismo e música
popular. Rio de Janeiro, Editora FGV, 1998.
99
WISNIK, José Miguel. O coro dos contrários: A música em torno da Semana de 22. 2 ed. São Paulo, Duas
Cidades, 1983.
60
60
Conhecido no meio musical brasileiro, Villa, incentivado por amigos, foi para a
Europa. Na França, foi ajudado por Arthur Rubinstein e Vera Janacópulus, artistas que
divulgaram a sua obra em vários países. A viagem de Villa à Paris foi muito produtiva, pois
além de ser reconhecido internacionalmente, foi acolhido como membro da International
Society for Comtemporary Music, ganhando mais destaque no Brasil.
Villa Lobos não voltou ao Brasil como um músico virtuose. O músico virtuose é
aquele músico treinado, não um músico completo. Segundo Mário de Andrade, o músico
virtuose constituía negativamente os valores do mundo burguês, pois participava da
transformação da música em puro comércio. Manuel Bandeira
100
escreve para Ariel, em
1924, sobre Villa Lobos:
“Villa Lobos acaba de chegar de Paris. Quem chega de Paris espera-se
que venha cheio de Paris. Entretanto Villa Lobos chegou de lá cheio de
Villa Lobos. A ardente fé, a vontade tenaz, a fecunda capacidade de
trabalho que o caracterizam renovam a cada momento em torno dele
aquela atmosfera de egotismo tão propícia à criações verdadeiramente
pessoais. A maioria dos artistas estrangeiros que vão à Paris estudar ou
trabalhar quase nada logram fazer nos primeiros tempos (...). Fica-lhes a
sensibilidade como que desnorteada pelo tumulto de todo um mundo
novo de sensações. A sensibilidade de Villa Lobos, porém, resistiu ao
choque traumático Paris(...) A formação dos outros com que vem de fora
para dentro; a dele, de dentro para fora. Formação vulcânica, não
sedimentária. A qualidade dominante de seu espírito é a imaginação, a
que deve a sua música pela prodigiosa riqueza de ritmos e de
combinações de timbres que espantou a Schloezer. Villa Lobos não
precisava ouvir com os ouvidos do corpo as excelentes orquestras de
Paris. Pela sua imaginação alucinatória ele as antecipava interiormente”.
A temporada que Villa passou na Europa nos anos de 1920 criou um clima propício
para que composse a série dos Choros. Importantes para esta obra foram suas viagens por
todo o país, antes da Europa, a convivência nos chorões cariocas após a morte de seu pai e
seu forte nacionalismo. Segundo Vasco Mariz
101
,
100
NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: Modernismo e música popular. Rio de Janeiro, Editora FGV,
1998. Página 63.
101
MARIZ, Vasco. Heitor Villa Lobos. Ministério das relações exteriores, divisão cultural. Rio de Janeiro,
1949.
61
61
ao compor o Choro número um, em 1920, Villa Lobos ensaiava uma
nova forma musical, procurando retratar, numa peça para violão solo,
fortemente sincopada, a saudosa atmosfera dos músicos populares no
Rio de Janeiro. O choro número dois, escrito em Paris, em 1924, ainda
não revela a amplitude que tomaria a série. É um duo nostálgico de
flauta e clarinete, tipicamente brasileiro”.
As principais obras de Villa Lobos podem ser divididas em 9 Bachianas brasileiras,
14 choros, 17 quartetos de cordas, 16 cirandas, 12 sinfonias, serestas, sonatas, trios, poemas
sinfônicos, peças para piano, ballets, 5 óperas, peças para piano e orquestra. Sua música
apresenta uma fusão entre o erudito e o popular, porém, a sua inspiração vai ser encontrada
na natureza do Brasil. Incorporou em sua obra os elementos culturais das três raças que
predominam no país: branca, negra e indígena. A música popular sempre atraiu Villa, até
mesmo em sua infância. Quando era criança, desejava aproximar-se dos músicos populares,
mas seu pai, músico acadêmico e rigoroso, não deixava. Tinha apenas 13 anos quando
compôs para violão a sua primeira peça em forma livre: A “panqueca”. Interessante ainda
ressaltar que o violão, nesse período, não era um instrumento respeitado pelas elites, sendo
assim caracterizado como popular e Villa Lobos o utilizava.
Durante os anos de 1920 compôs 14 choros e em 1930 surgiram as Bachianas
brasileiras. As bachianas são influenciadas por Bach que, segundo Villa Lobos, era um
manancial folclórico universal, intermediário entre os povos. As Bachianas foram
apreciadas tanto no exterior como no Brasil. Nas Bachianas percebemos o traço principal
das obras que são marcadas pelo excesso, resultado da estética da monumentalidade
102
.
Na estética da monumentalidade, o músico recorre a uma diversidade de
informações musicais que vêm das mais diversas tradições. Essas tradições unem
simplicidade e grandiosidade ao mesmo tempo e, sob essa influência, Villa-Lobos compôs
os choros números três e dez. Características também da monumentalidade foram seus
projetos de canto orfeônico que reuniam corais de mais de quarenta mil vozes. Através do
ideal da Bildung, que está associado à idéia de lapidação, transforma-se o material bruto
(fontes populares) através de um processo de cultivo buscando a concepção de sistema
chegando à totalidade.
102
Ver: NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: Modernismo e música popular. Rio de Janeiro, Editora
FGV, 1998.
62
62
No aspecto do tipo de produção musical pode-se realizar uma comparação entre
Heitor Villa-Lobos e Mozart, mesmo tendo os dois compositores experimentado
experiências em diferentes contextos históricos e sociedades distintas. Nobert Elias
103
, em
estudo sobre Wolfgang Amadeus Mozart, afirma que o músico, em finais do século XVIII
procurou um “status” autônomo com relação à música em seu tempo, tendo vivenciado a
chamada passagem da “arte de artesão” para a “arte de artista”, ou seja, da produção
encomendada para a produção dirigida a um mercado autônomo. Desta forma, “à medida
que vai mudando a relação entre os que produzem arte e os que precisam dela e a compram,
muda-se a estrutura da arte, e não o seu valor”
104
. Na arte de artista o gosto do mesmo se
confunde com o gosto do público que admira, compra ou critica. Essa mudança foi produto
do contexto social, pois, “uma das funções importantes da obra de arte é ser uma maneira
de a sociedade se exibir, como grupo e como uma série de indivíduos dentro de um
grupo”
105
. Para o autor, o artista livre dispõe de mais condições para seguir o seu gosto e a
sua compreensão pessoal estética. A arte livre permite o crescimento do
autocondicionamento proveniente do seu produtor.
A relação dessas características da música de Mozart com a música de Villa-Lobos
não fica restrita no campo social, pois a música de ambos realizou uma permanência em
diversas gerações. O caráter manipulador que tem se atribuído às obras de intelectuais
inseridos no governo de Vargas não leva em consideração o fato dos projetos
desenvolvidos pelo maestro se tornaram ferramentas de transformação social. Afinal, a
música de Mozart e de Villa-Lobos não é produto apenas de suas genialidades, mas de uma
sociedade em que as relações se fazem dentro de cada contexto histórico específico. Essa
comparação mostra o caráter social de ambos os músicos.
Villa-Lobos marcou uma ruptura neste sentido passando pelo movimento
modernista na década de 1920, quando sua música não era aceita segundo a estética
musical reinante que era o romantismo de Carlos Gomes, e seu autocondicionamento acaba
por desbancar essa teoria de que sua música poderia ser direcionada por um Estado de
características fascistas. Afinal, a relação de Villa-Lobos com o Estado também
experimentou seus pontos de tensão como veremos mais à frente.
103
ELIAS, Nobert. Mozart: Sociologia de um gênio. Rio de Janeiro, Zahar Editor, 1995.
104
Idem, página 46.
105
Idem, página 49.
63
63
Para estabelecermos uma análise histórica sobre a relação entre Estado e Intelectuais
em tal contexto e sobre os projetos educacionais de Heitor Villa-Lobos, precisamos pensar
questões importantes como projeto e geração. Segundo Gilberto Velho
106
, a atual produção
acadêmica voltada para a questão da identidade é bem significativa e atuante. A sociedade
contemporânea, marcada pela heterogeneidade, fomenta a distinção necessária existente
entre identidade social dada e identidade social adquirida. Afirma que, “se por um lado, as
ideologias individualistas marcam o advento do indivíduo-sujeito, por outro lado expressam
a fragmentação de domínios que sucede a ordem social mais integrada”. Aqui entram em
conflito as questões referentes à tradição e à modernidade.
Com o passar do tempo o indivíduo se destaca, ganhando a característica de sujeito,
rompendo com antigos paradigmas, mudando sua relação com antigas instituições,
desenvolvendo novas formas de sociabilidade. Porém a ruptura não é total, a tradição
sempre estará presente no sistema de representações e em diferentes esferas da vida social.
Na verdade, a vida moderna será marcada pela coexistência de diferentes configurações de
valores. A partir dessa coexistência a noção de projeto é aplicada, voltada para a formação
da identidade.
Em uma sociedade dita tradicional, a memória socialmente construída é aquela
ligada à uma unidade englobante, ainda que ocorra um processo de individuação. Porém, a
individualização é típica da sociedade moderna, a partir do florescimento de filosofias
individualistas que marcam o indivíduo “socialmente significativo como valor básico da
cultura.” Na sociedade de ideologias individualistas a biografia ganha destaque, pois ela
mostra a contínua ascensão de um indivíduo constituidor da sociedade. Além disso, a
memória do indivíduo passa a ser cada vez mais relevante e atuante, embora tenhamos
consciência de que o indivíduo sempre está inserido em unidades hierarquizantes e
englobantes.
A noção de projeto, afirmada como “conduta organizada para atingir finalidades
específicas” expõe a presença de uma individualidade singular ligada à memória que
solidifica a biografia. Ainda segundo Velho, “se a memória permite uma visão retrospectiva
mais ou menos organizada de uma trajetória e biografia, o projeto é a antecipação no futuro
106
VELHO, Gilberto. Memória e Identidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n.95, out-dez, 1988.
64
64
dessa trajetória e biografia, na medida em que busca, através do estabelecimento de
objetivos e fins, a organização dos meios através dos quais esses poderão ser atingidos”.
107
Portanto, a memória e o projeto são aspectos fundamentais para a constituição da
identidade social dos indivíduos. O projeto é sempre formado a partir de conceitos e
experiências que levam em consideração o outro, tornando-se um instrumento de
negociação da realidade, expressando sentimentos, objetivos e interesses em relação ao
mundo. Deve-se também levar em consideração que o projeto é constantemente
reelaborado, o que gera uma dinâmica na memória do indivíduo, marcando o nascimento de
novos significados e sentidos que repercutem na sua identidade.
Villa-Lobos estabelecia a música como “fator imprescindível à educação do caráter
da juventude”, destacando em 1937
108
, que há muitos anos a humanidade mostrava
desinteresse aos valores da coletividade. Questionava-se sobre o fim da alma humana, os
sonhadores, o mistério, o amor à pátria, a arte e a música. Para o maestro, embora
existissem importantes instituições voltadas, naquele momento, para o ensino da música,
como, por exemplo, a Escola Nacional de Música ligada à Universidade do Brasil, a
questão da educação popular ainda não havia sido concluída em sua plenitude.
O maestro acreditava que a melhor maneira para formar a disciplina das gerações
futuras era o canto coletivo. Além da preocupação com a formação de tal geração futura,
mostrava descontentamento com um suposto declínio do nível artístico nacional.
Ostentando um discurso de música como arte universal, levantou a bandeira da
independência da arte musical no Brasil. Segundo Villa-Lobos, a SEMA era fundamental
em tal processo, podendo então preparar uma futura geração de artistas brasileiros. A
SEMA, que quer dizer Superintendência de Educação Musical e Artística, do Departamento
da Educação da Prefeitura do Distrito Federal, planejava, orientava, cultivava e desenvolvia
o estudo da música nas escolas primárias, no ensino secundário e nos demais departamentos
da municipalidade.
Em “Educação Musical
109
, Villa criticou os métodos de ensino da música em sua
época, caracterizando-os como incapazes de levar a música à grande massa. Iniciando as
107
Idem, página 123.
108
VILLA-LOBOS, Heitor. O ensino popular da música no Brasil: O ensino da música e do canto orfeônico
nas escolas. Distrito Federal, 1937.
109
VILLA-LOBOS, Heitor. Educação musical. Boletim Latino Americano de Música. Volume 6 n.4, 1946.
65
65
suas considerações, enfatiza a necessidade de realizar uma distinção entre música popular e
música folclórica, sendo esta última a marca da expansão, o desenvolvimento livre do
próprio povo expresso pelo som, uma densa e verdadeira expressão biológica da raça.
A Educação musical expressaria a sua importância, uma vez que, segundo o
maestro, na arte não existia a liberdade sem o controle da consciência. Os sistemas
educacionais fracassavam porque os jovens ouviam sem parâmetros, sem referências, tendo
a escola então um importante papel na formação da consciência dos mesmos.
O estudo de música voltado para a leitura de notas não poderia ser completo, Villa-
Lobos aponta como estritamente necessários a busca pelo sentido e pela alma. O aluno
deveria familiarizar-se com os sons antes de ser atrapalhado pelas regras. Além destas
questões, Villa enfatiza a necessidade de trabalhar o senso estético coletivo, pois somente
quando as massas apresentassem o ouvido treinado, educado, saberiam distinguir a música
da alma universal da música superficial, acadêmica e vazia.
O maestro expunha a existência de três tipos diferentes de compositores: os que
escrevem as músicas de maneira mecânica seguindo os padrões e a moda da época, os que
escrevem músicas diferentes para serem originais e finalmente, os que fazem músicas
porque não podem viver sem elas.O maestro exalta este último tipo, reafirmando a
necessidade de se trabalhar por um ideal. Ainda sobre os problemas referentes ao ensino da
música em tal contexto, Villa-Lobos defende que “devemos lutar para extirpar do ensino
musical todos os valores falsos, insistindo principalmente na educação do ouvido e da alma
e pondo resolutamente de lado todo o fútil academismo de “música papel” puramente
intelectual. Devemos procurar educar os nossos artistas e compositores de modo a que
acabem apreciando devidamente o seu dever de servidores da humanidade. Só assim a
música florescerá como um elemento vital na nossa estrutura social.
110
Com o objetivo de estabelecer a organização do ensino do canto orfeônico, a SEMA
contava com a participação de um gabinete composto por um assistente técnico, um
encarregado de ensino instrumental e um orientador assistente, sendo dividida em cinco
seções. A primeira seção seria então responsável pela organização dos planos de ensino,
sendo sua atuação estendida a Cursos de Continuação e Aperfeiçoamento da Diretoria de
Educação de Adultos e Difusão Cultural, à Rádio Difusão, às sociedades artísticas e teatros
110
Idem, página 4.
66
66
particulares associados à subvenção da Prefeitura. Villa-Lobos destaca a organização das
seções:
1ª. Seção – Constituída dos seguintes auxiliares: - um encarregado do expediente
(revisor de letra para a música), 4 orientadores do ensino primário, 4 suplentes de
orientadores, 2 encarregados do ensino técnico secundário, um encarregado do
expediente do ensino instrumental, um encarregado do ensino de banda, 4 auxiliares
de expediente, um encarregado de cópias de música, um encarregado de gravação e
impressão de músicas, um encarregado da seção de “Teatro Escolar”, um encarregado
da seção de “Bailados Artísticos”, um contínuo e dois serventes.
2ª. Seção – constará do Orfeão dos Professores, ligada à primeira, pela parte artística
e pedagógica, ocupar-se-á da difusão e educação cívico-artística musical nas seguintes
dependências: Escola José Pedro Varela, (elementar) onde são praticadas as
experiências sobre o ensino musical a serem aplicadas nas demais escolas municipais,
subdivididas em 12 escolas intermediárias, 207 elementares, 4 jardins de infância e 5
experimentais. Fornecerá elementos artísticos aos Teatros Municipais, cuidando da
educação musical na Universidade do Distrito Federal (UDF), cujo ensino é
autônomo e praticado nas seguintes escolas: Escola de Educação, Escola Secundária,
Escola Primária e Jardim de Infância. O Instituto de Artes desta Universidade também
concorrerá com seus trabalhos para o Conservatório Popular de Música Municipal,
em projeto.
3ª. Seção – ligada à segunda pela Técnica, constando da Escola de Banda e Orquestra
que fornecerá elementos necessários à Rádio Difusão (P. R. D. 5.) etc.
4ª. Seção – Ligada diretamente ao gabinete, que se encarrega de cópia e
mimeografação de músicas, letras, etc.
5ª. Seção – dependendo da primeira, encarregar-se-á da gravação e impressão de
músicas. Esta seção funcionará na D. P. A. E. (Divisão de Prédios e Aparelhamentos
Escolares).
Ao analisarmos estas idéias e os relatórios escritos pelo Maestro, percebemos que a
SEMA apresentava uma estrutura organizada, contando com vários funcionários Além
disso, aliava o conhecimento produzido pela Universidade do Distrito Federal, idealizada
por Anísio Teixeira, ao ensino do canto nas escolas. Havia, portanto, uma relação entre as
idéias do maestro, as teorias educacionais formuladas por Dewey e o conto direto com
Anísio Teixeira.
A Universidade do Distrito Federal (UDF) desempenhava um importante papel na
formação de professores secundários de música e canto orfeônico. Segundo Villa-Lobos, a
formação da universidade baseava-se nos princípios do “diferente para o consciente” e do
“consciente para o subconsciente”. O curso da UDF voltado para a formação de tais
professores constava com as seguintes disciplinas: História da Música, História da
67
67
Civilização, Introdução ao Estudo das Artes, Fisiologia do Canto Coral, Prática da
Regência e Canto Orfeônico. A formação dos professores envolvia a área da Música e da
Educação, na Universidade, cujo objetivo, inicialmente, era estabelecer laços de
interdisciplinaridade.
Villa-Lobos previa como objetivo do ensino da música e canto orfeônico nas
escolas do Distrito Federal mostrar aos pais dos alunos, à imprensa e às autoridades do
governo que a música era imprescindível à Educação e à vida. O maestro distribuía críticas,
afirmando que “alguns elementos” realizavam uma grande confusão, não entendo a
diferença entre canto coral, canto lírico e canto orfeônico. Em resposta aos críticos, enfatiza
a eficácia do canto orfeônico na educação do povo.
Como propaganda do canto orfeônico, foram utilizados prospectos que
apresentavam, em frases curtas, uma linguagem acessível. O canto orfeônico exprimia uma
perspectiva da música mais abrangente ao público, rompendo com a idéia de música como
simples passatempo ou divertimento. “Na verdade, a música só poderá ocupar o lugar que o
seu valor lhe confere, quando for devidamente apreciada a sua inestimável cooperação para
a educação social-cívico-artística e considerada indispensável à vida e progresso de um
povo”.
111
O maestro destaca ainda que, a partir de 1930, começou a organizar as suas
expedições com o objetivo de difundir o que chamava “música pura”. Vários panfletos
foram distribuídos, e em companhia de vários músicos virtuoses, as excursões
apresentavam a independência da arte brasileira. Os panfletos e prospectos exortativos
foram distribuídos em fábricas, jornais, escolas e academias, lançados por aviões.
As apresentações orfeônicas não eram exibições artísticas e recreativas. O objetivo
era estabelecer a formação da disciplina coletiva da multidão, pois, segundo o maestro, a
maioria da população brasileira ainda não compreendia a importância da disciplina coletiva
dos homens. O resultado já podia ser percebido através de atitudes cívicas expressadas pelo
povo. O canto orfeônico apresentava, então, três finalidades distintas: disciplina, civismo e
educação artística.
As demonstrações cívico-artísticas eram realizadas em datas comemorativas como
no dia da Independência, da Bandeira, da Pátria, da Música, etc. Villa-Lobos conta que a
111
Idem, página 11.
68
68
fim de homenagear o Secretário da Educação e Cultura que instituiu a obrigatoriedade do
ensino religioso nas escolas a Coligação Católica responsabilizou a SEMA para organizar o
programa da missa campal, onde as músicas seriam cantadas por escolares.
Em relação ao plano geral da orientação do canto orfeônico, existiam as seguintes
esferas de atuação: Curso de Pedagogia de Música e Canto Orfeônico ao Magistério
Municipal, Comissão técnica consultiva para o exame das composições a serem adotadas,
programas anuais detalhados da matéria a ser lecionada, Escolas Especializadas, Orfeões
escolares e artísticos, Orfeão de Professores, Concertos escolares, Organização do
repertório, discoteca e biblioteca de música nas escolas, seleção e distribuição de hinos e
canções para que a música estivesse relacionada a experiência dos alunos na família e na
escola, audições de orfeões nas escolas e em grandes conjuntos, clubes musicais nas
escolas, salas-ambientes, alunos-regentes, concílio cívico-intelectual e artístico formado por
professores municipais.
O Orfeão de Professores foi fundado em maio de 1932, sendo orientado pelo
Departamento de Educação. O seu livro de compromisso foi aberto com algumas palavras
de Roquette Pinto, que escreveu: “Prometo de coração servir à arte para que o Brasil possa,
na disciplina, trabalhar cantando”.
112
Ele contava com 250 vozes, a partir da atuação de
professores da rede de ensino federal, municipal e principalmente particular.
Para consolidar a formação de profissionais qualificados que atuariam no ensino do
canto orfeônico, estabeleceu-se a institucionalização de cursos de orientação. Para isso, em
1932, foi fundado o Curso de Pedagogia de Música e Canto Orfeônico, onde se
matricularam inúmeros profissionais da área da Educação. Os cursos oferecidos eram: 1º.)
Declamação rítmica e Califonia, 2º.) Preparação do Ensino do Canto Orfeônico, 3º.)
Especialização de Música e Canto Orfeônico, 4º.) Prática Orfeônica. O primeiro curso
deveria ensinar os professores das escolas primárias o treino da voz para o início do ensino
do canto nas escolas, o segundo curso seria direcionado aos professores das escolas
primárias voltadas para as turmas do 1º, 2º e 3º anos, sendo preparados segundo as normas
e as técnicas da SEMA, o terceiro curso era voltado para a preparação de professores de
escolas primárias, secundárias e técnicas, além de membros do Orfeão de Professores onde
112
VILLA-LOBOS, Heitor. O ensino popular da música no Brasil. Secretaria Geral de Educação e Cultura.
Rio de Janeiro, 1937. Página 43.
69
69
ocorria o estudo da evolução da música e das técnicas para o desenvolvimento de
programas e, finalmente, no quarto curso, o público do terceiro debatia assuntos como
métodos, análises, programas, etc. Nas escolas particulares foram abertas inscrições para
exame de obtenção de certificados de música e canto orfeônico. O maestro destaca o amplo
interesse por parte dos professores.
O Orfeão dos Professores participava de eventos importantes, de grande
repercussão. Em 28 de Abril de 1935, por exemplo, atuou no chamado “Concerto dos
Operários” realizado no teatro João Caetano. Para divulgar o evento, um folheto foi
distribuído nas ruas, que apresentava o seguinte conteúdo:
...Operários!!! Parem! Parem! Descansem o corpo! Alimentem em poucos minutos
o seu espírito, a sua alma... No domingo de música dos operários, dia 28 de Abril
próximo, às 17 horas no teatro João Caetano não haverá bilhetes nem porteiros. As
portas estarão abertas, de lado a lado, como a um verdadeiro templo. O operário i
tal como é no seu trabalho, e tal como vive em sua intimidade, porque o silêncio
será mantido em sua própria emoção.”
113
As obras apresentadas em tal evento foram variadas: Bach (Prelúdio número 22 e
Fuga número 21), Popular Russo (O Barqueiro do Volga), Antolisei (O Ferreiro), Schubert
(Serenata), Popular Chileno (Ay ay ay), Schuman (Revêrie), Villa-Lobos e Paula Barros (O
canto do Lavrador), Villa-Lobos (Prá frente, ó Brasil) e Rachimaninov (Prelúdio). Os
operários foram homenageados neste evento, marcado por um conteúdo diversificado, mas
que apresentou também a nova perspectiva que se desejava criar naquele período de um
Brasil Novo, que caminhava rumo à evolução. Em “Prá frente, ó Brasil”, temos:
Marchemos pelos montes, pela terra
ao sol de rachar,
Pela estrada de barro ou concreto,
cheia de espinhos,
Trilhos e ninhos, nós marcharemos
sempre a cantar
Pelas cidades, selvas e vales,
também pelos mares,
Ou pelos ares, riachos ou rios, ruelas
113
CONTIER, Arnaldo Daraya. Passarinhada do Brasil : canto orfeônico, educação e getulismo. SP:
EDUSC, 1998. Ibid. p.10.
70
70
ou ruas
Sempre a marchar contentes sem
tréguas!
Só vendo à frente o Brasil!
P’ra frente, ó Brasil!
Ó demos tudo pela Pátria,filhos, ouro,
braços alma honra e gloria,
damos o nosso amor
Damos força sangue e vida, tudo
damos ao Brasil!
Tudo damos com ardor
E nós marchamos sempre alegres,
Sempre alegres nós marchamos sem temor.
A nossa terra é grande e forte,
Inda é maior do que o sertão
Ah também a selva marcha
E o vento canta sempre a passar
Ah também o vento marcha e a selva
passa sempre a cantar.
Marchemos pelos montes, pela terra
ao sol de rachar,
Pela estrada de barro ou concreto,
cheia de espinhos,
Trilhos ou ninhos, nós marcharemos
Tendo á frente o Brasil!
Avante Brasileiros
Marche, Passo certo em terra,
Firme com vontade de marchar
P’ra frente livre e corajoso, p’ra vencer
P’ra defender com altivez a nossa rica
Pátria
Terra firme com vontade de marchar
P’ra frente, livre e corajoso p’ra vencer,
P’ra defender com altivez a nossa rica
Pátria
Com fervor
Ah! Quanto é lindo o Brasil!
Com o Cruzeiro do Sul
Com seu céu cor de anil
Com seu mar todo azul,
e seus rios a correr pelos sertões em flor
Onde é bom de viver
Cultivar todo amor
E nunca mais morrer.
114
114
Ver: GALINARI, Melliandro Mendes. Os hinos de Villa-Lobos e o governo Vargas: Estratégias político-
discursivas de persuasão ideológica. Letras & Letras, Uberlândia 22 (2) 85-103, jul./dez. 2006.
71
71
Analisando “Prá frente, ó Brasil”, Galinari propõe uma análise linguística sobre os
hinos escritos por Villa-Lobos em relação às necessidades discursivas do Estado,
destacando que em tal contexto os hinos passaram a ser privilegiados como estratégias
político-discursivas para alterar a conduta comportamental do povo brasileiro. Percebemos
no hino a valorização das diferentes paisagens brasileiras como maneira de sensibilizar a
perspectiva nacional, o discurso do progresso tem como marca psicológica a percepção do
futuro, o futuro que deve ser glorioso, a partir da ação do povo. Nas palavras “braços,
alma, honra e glória” , o ideário do Brasil Novo que se pretende construir conta com a
conscientização do proletário, que através de uma nova configuração social se torna agente
construtor da nacionalidade. Além disso, o sentimento de passado comum une a todos
através da alma nacional, todos interligados através do sentimento de pertencimento que
transcende a questão da raça e da terra. A honra se expressa através do sentimento cristão, a
base do fator histórico preponderante e mais uma vez, a glória que, a partir do apoio do
Estado, seria garantida rumo à consolidação da nação com grande expressão internacional.
Em “nós marcharemos sempre a cantar”, o aspecto unificador do canto orfeônico, capaz
de reunir a sociedade em objetivo comum é ressaltado.
Outro evento que contou com a atuação do Orfeão dos Professores e merece
destaque foi a Comemoração do dia da Pátria em 6 de Setembro de 1935. Realizado no
teatro Municipal, foi apresentado na abertura o Hino Nacional, seguido do Hino da
República e Hino da Independência. No repertório foram executados P’ra frente ó Brasil
(Villa-Lobos), Pátria (Villa-Lobos e F. Haroldo) e O canto do Pajé (Villa-Lobos e Paula
Barros). Em 30 de Agosto de 1936, no Campo do Russel realizou-se a Manifestação das
Famílias Católicas. Na abertura ocorreu a execução do Hino Nacional, seguidos de Kyrie
(Villa-Lobos), Ave Maria (Carlos Gomes), temas gregorianos com a utilização do sistema
de manossolfa, Sanctus, Benedictus e Agnus Dei (José Maurício) e Invocação à Cruz e
Heróis do Brasil (Villa-Lobos).
Muitos outros eventos contaram com a participação do Orfeão dos Professores
115
,
relatei apenas alguns, de características específicas para demonstrar aspectos relevantes da
sociedade e da política brasileira em tal contexto. Alguns setores da Igreja Católica, por
115
Verificar tabela com todos os eventos realizados de 1932 a 1941 em: PAZ, Ermelinda A. Heitor Villa-
Lobos, o Educador. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, Monografias Premiadas 1988,
Brasília, 1989.
72
72
exemplo, dialogavam com o Estado e proporcionavam ao mesmo a propaganda e a
disseminação de idéias nacionalistas em manifestação destinada ao seu público, onde Villa-
Lobos apresentou o tema dos heróis do Brasil. Além disso, as comemorações do Dia da
Pátria e a Homenagem aos trabalhadores representam aspectos muitos sutis da política
brasileira na década de 1930.
De acordo com a perspectiva pedagógica do maestro, a escola deveria ser o espaço
de encontro de diferentes raças, sendo então “o templo para desenvolver a alma, cultivar o
amor, a beleza, compreender a fé, respeitar o silêncio, adorar os fatos e causas
sobrenaturais, e, finalmente, preocupar-se com todas as qualidades e virtudes, de que mais
depende o progresso da humanidade”
116
. O papel dos professores na escola seria o de
trabalhar na conscientização dos alunos de que a vida não se resume a alegria, prazer e
divertimento, sendo necessária a prática do civismo e da responsabilidade.
Em relação aos métodos e os processos de ensino, esclarece que os professores de
música e canto orfeônico tinham plena liberdade para adotar os seus sistemas de ensino
específicos, desde que seguissem as orientações traçadas pela SEMA. A disciplina total
seria imprescindível para a realização de um bom trabalho, pois um aluno rebelde poderia
influenciar seus colegas, e para manter a disciplina, o professor deveria implementar
habilidades psicológicas e força moral, dependendo da situação. Caso o aluno apresentasse
uma postura inadequada, deveria ser convidado a se retirar do conjunto, ou ser colocado ao
lado como assistente, para que o mesmo observasse o resultado do seu desfalque.
Sobre a prática do teatro escolar, Villa-Lobos destaca que os professores não
deveriam influenciar os alunos a participarem desta atividade com o objetivo de se
tornarem artistas. Os professores teriam então o papel de encaminhar os alunos na
compreensão da “verdadeira finalidade do teatro”, sendo ensinados a criticar os seus
próprios julgamentos e não as obras que assistiam. Ressalta a ineficiência do ensino do
teatro nas escolas porque era necessário destacar nessa esfera a nação, o lar e a escola.
Relata a realização das dramatizações apresentadas em escolas municipais do Distrito
Federal, voltadas para assuntos musicais, sendo exibidas anedotas e biografias sobre
autores estrangeiros e nacionais.
116
VILLA-LOBOS, Heitor. O ensino popular da música no Brasil: O ensino da música e do canto orfeônico
nas escolas. Distrito Federal, 1937. Página 17.
73
73
Villa acreditava que para o desenvolvimento do teatro escolar, se fazia necessário o
estabelecimento de um repertório especializado, formar professores mais qualificados na
área, implementar tal atividade, ainda que experimentalmente, como atividade extra-
curricular obrigatória e associar o teatro às demonstrações orfeônicas. Reafirma a
necessidade da integração cultural rumo ao nacionalismo. O maestro elogia o livro “Teatro
Escolar” de C. Paula Barros porque converge ideologicamente com a SEMA, pois, “o teatro
infantil é um meio em que a crença amplia a percepção, estimula a inteligência, desenvolve
a sensibilidade e a memória, exercita a vida em coletividade, treina a disciplina, fortalece o
ânimo e adquire a calma de espírito”.
117
O ensino instrumental foi implementado em várias escolas técnicas secundárias,
sendo ministrado por professores especialistas contratados, além disso, vários alunos foram
incluídos em bandas militares. Criou-se também uma comissão de professores para a
realização de testes vocacionais e nas escolas técnicas secundárias masculinas eram
desenvolvidas atividades como palestras para a avaliação da capacidade intelectual dos
alunos, disciplina e provas práticas com os instrumentos.
Para demonstrar a eficiência dos métodos implementados pela SEMA, foi
apresentada no 7º. Congresso de Educação uma alegoria intitulada “Evocação à Arte e à
Ciência”, onde a ciência teria sido representada como máquina, onde se imitavam efeitos
rítmicos e de timbre, e a Arte pelo sistema de Manossolfa cantada a uma ou duas vozes,
apresentando temas ameríndios. Já na 3ª. Conferência Pan-Americana da Cruz Vermelha,
as escolas técnicas secundárias se apresentaram no Teatro Municipal. Participaram desta
comemoração mil alunos e no final foram apresentadas saudações orfeônicas com
bandeiras verde e amarelas, que ao serem distribuídas à platéia, formavam a Cruz Vermelha
Brasileira.
Para que a SEMA tivesse acesso a todas as informações necessárias sobre as escolas
técnicas secundárias, professores especializados e tudo o que fosse necessário à
organização dos eventos, foram criados mapas que seriam preenchidos pelas escolas. Com
os citados mapas nas mãos, os representantes da SEMA visitaram as instituições a fim de
organizar o trabalho.
117
Idem, página 29.
74
74
Com o objetivo de expandir o ensino do canto orfeônico no Brasil, a SEMA entrou
em contato com governadores e Diretores de Instruções de outros estados. Já em diversas
unidades da federação o ensino do canto era implementado, muitos professores fizeram
cursos de especialização no Distrito Federal.
Em “A música Nacionalista no Governo Getúlio Vargas”
118
, o maestro destaca a
importância que o governo Vargas atribuiu à música como fator de civismo e cultura para a
integração da consciência nacional. Segundo o maestro, e música não devia ser considerada
um passatempo das elites ou uma diversão mundana. A música seria a voz da
nacionalidade, mostrando “a sua força, a alegria pelo trabalho construtor, a confiança no
futuro da Pátria e na grandeza do seu destino”. Havia a necessidade de trabalhar a
mentalidade infantil a fim de realizar a reforma da mentalidade das futuras gerações. Para
tal, o canto orfeônico se colocaria como um totalizador de fatores educacionais voltados
para tal direção porque além de proporcionar uma iniciação à consciência dos ritmos,
acordes e melodias, realiza uma verdadeira reforma nas sensações estéticas.
O canto coletivo, além dessas rupturas, predispõe o indivíduo à recusa do
individualismo, fazendo crescer cada vez mais o sentimento de coletividade, de
pertencimento, de renúncia e disciplina. Proporciona o envolvimento com a chamada
solidariedade humana, “que requer da criatura uma participação anônima na construção das
grandes nacionalidades”
119
, que aliadas às comemorações importantes de acordo com os
acontecimentos marcantes da história do Brasil, se fixam na mentalidade coletiva. O
maestro expõe que:
Entoando as canções e os hinos comemorativos da Pátria, na celebração dos heróis
nacionais, a infância brasileira vai se impregnando aos poucos desse espírito de
brasilidade, que no futuro deverá marcar todas as suas ações e todos os seus
pensamentos, e adquire, sem dúvida, uma consciência musical autenticamente
brasileira. E as gerações novas, tocadas por esse sopro renovador e dinamogênico,
colocarão acima de todos os interesses humanos o símbolo sagrado da Pátria.
120
Villa-Lobos posiciona-se politicamente ao lado de Vargas, afirmando que o governo
realizou investimentos no sentido de sistematizar todas as energias voltadas para a
118
VILLA-LOBOS, Heitor. A música nacionalista no governo Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: DIP, 1946.
119
Idem, página 10.
120
Idem, página 11.
75
75
construção de “um bom sentido nacionalista”, alargando-se além da nova estrutura política,
social e econômica. O governo Vargas buscou incentivar a vida espiritual do povo
brasileiro, além da proteção à infância, à adolescência e à maternidade assegurando o futuro
da raça, afirmava o maestro.
O maestro enfatiza ainda o declínio que experimentava a Educação brasileira,
segundo sua concepção, antes das reformas estabelecidas no governo Vargas. Tal declínio
estaria explícito no ceticismo e no egoísmo da mocidade que não valorizava as tradições,
não valorizava a possibilidade de desenvolvimento do Brasil. As forças intelectuais se
encontravam em dispersão e cada vez mais o sentimento do que era nacional se tornava
algo secundário. A mocidade não demonstrava então consciência de que possuía a missão
de conduzir o Brasil aos seus destinos de grande potência.
Segundo Villa-Lobos, lutando contra tal perspectiva da Educação brasileira, o
presidente Vargas investiu nos alicerces da nacionalidade, direcionando então esforços para
a conscientização da juventude. Para a formação de tal alicerce, o presidente teria aliado,
progressivamente, as esferas da cultura musical, o canto coletivo e o plano educacional da
escola renovada.
O maestro destaca ainda a ligação entre o que chamou de “Brasil Novo” e a música
nacionalista. Em tal abordagem, o Brasil era ainda um país em formação, apresentando
então aspectos culturais e étnicos indefinidos. Através das viagens que realizou pela
Europa, sentira a indiferença e a incompreensão da música racial no Brasil, marcada pela
materialidade das multidões. A partir de 1930, com o advento do “Brasil Novo”, percebera
a sua missão de trabalhar pela Educação da Pátria, buscando então a institucionalização do
canto orfeônico como fator de civismo e de disciplina coletiva.
Uma das características mais marcantes do governo Vargas seria então a visão do
futuro, a projeção no espaço e no tempo. “Todas as suas criações têm um caráter duradouro
e transcendem dos limites marcados pelas gestões governamentais, visando uma construção
futura”.
121
Em tal contexto, qualquer obra, para ser duradoura, deveria basear-se nas raízes
da nacionalidade e a partir da instituição do ensino da música nas escolas, o governo usou
com perspicácia uma tendência psicológica da raça.
121
Idem, página 39.
76
76
Para o maestro, a música tinha um papel preponderante na formação espiritual dos
povos, enfatizando o seu caráter socializador, que rompe as fronteiras das determinações
estéticas. O canto orfeônico não deveria, portanto, se limitar a exibições públicas, devendo
estar presente na vida escolar, dando-lhe suporte à concepção de mentalidade voltada ao
sentimento cívico.
O maestro escreve também sobre a musicalidade dos ameríndios, destacando a
catequese realizada pelos missionários que ensinavam aos índios cantos religiosos. Afirma
que os cronistas do século XVI relatam que alguns indígenas poupavam a vida dos seus
inimigos quando descobriam que estes cantavam bem. Villa-Lobos destacava a importância
de José de Anchieta, sendo este um dos fundadores do canto orfeônico no Brasil já que
utilizou a música como fator de disciplina coletiva. Portanto, “não será, também, noutra
esfera da cultura, uma obra de legítima catequese, essa que empreendeu o Estado Novo,
quatro séculos mais tarde, lançando as bases do canto orfeônico nas escolas brasileiras e
procurando, por meio dessa catálise musical e desse renascimento do canto coletivo,
despertar as energias raciais e fortalecer o sentido de civismo?”
122
Villa-Lobos enfatiza os elos existentes entre a sensibilidade infantil, o seu
subconsciente e o folclore. Por isso, as crianças deveriam estudar os compositores
clássicos, mas principalmente estabelecer contato com a música folclórica, já que tal estilo
colocaria a criança em contato com o ritmo. A partir da simplicidade, a criança seria
envolvida. As melodias adequadas então seriam as cantigas de ninar, canções de roda,
marchas, etc. A familiaridade das crianças com o folclore advém das características
psicológicas raciais, a assimilação das melodias do folclore desencadeariam então a
percepção de ressonâncias ancestrais.
Em A Noite, foi editada uma entrevista concedida por Villa-Lobos ao jornal Pour la
Victoire de Nova York, onde afirma que:
“Não sou um folclorista. O folclorista se contenta em realizar uma música
popularizada, isto é, uma música que o povo já exprimiu. Tomar um tema popular,
harmonizá-lo, desenvolver os elementos, colocar tudo sobre papel de música, talvez
seja realmente “compor”, mas não é naturalmente “criar”; não é fazer arte, na
acepção que eu dou a esse termo. O artista não faz pot-pourris de melodias
122
Idem, página 25.
77
77
populares; para ele o folclore é uma pepita de ouro. Sua tarefa consiste em extrair o
metal precioso para em seguida moldá-lo”.
123
Para a implantação do ensino da música e do canto orfeônico nas escolas, Villa-
Lobos afirma ter elaborado um repertório adequado, inspirado no folclore nacional. Para
suprir tal necessidade surgiu a chamada “Colleção Escolar”, editada pela Casa Arthur
Napoleão composta de peças essencialmente folclóricas. Posteriormente, essa coleção deu
origem ao chamado “Guia Prático”, que reunia 137 canções folclóricas
124
.
Segundo Villa-Lobos, o “Guia Prático” era dividido em seis volumes
125
. O primeiro,
composto de 137 canções infantis populares cantadas por crianças de todo o Brasil. O
segundo volume seria marcado por um caráter mais cívico, com uma coleção de hinos
nacionais e estrangeiros, canções patrióticas e escolares. Já o terceiro volume, era
constituído por canções nacionais e estrangeiras, o quarto volume contava com temas
ameríndios da América do Sul e da América do Norte, além de melodias afro-brasileiras. O
quinto volume seria composto por peças da música universal e finalmente, o sexto volume
123
Jornal “A Noite” de 21 de janeiro de 1945.
124
As 137 músicas que formam o chamado “Guia Prático” são: 33 Acordei de Madrugada (1ª e 2ª versões) A
Agulha, Ainda não Comprei, Anda à Roda (1ª, 2ª e 3ª versões), O Anel, Anquinhas, Atché, Ba-be-bi-bobu, Na
Bahia Tem, Bam-ba-la-lão (Senhor Capitão), O Bastão ou Mia Gato, Bela Pastora, Besuntão da Lagoa,
Brinquedo (Olhe aquela Menina), Cachorrinho, Cai, Cai, Balão (Vem cá, Bitu), O Café, Canário, Candeeiro,
A Canoa Virou, Canoinha Nova, A Cantiga de Ninar, A Cantiga de Roda (As Bonecas), capelinha de Melão,
Carambola, Caranguejo (1ª e 2ª versões), Carneirinho, Carneirão, O Castelo, A Praia, Chora, Menina, Chora,
Ó Ciranda, ó Cirandinha, A Cobra e a Rolinha, Co-có-có, As Conchinhas, Condessa, Constante, Constância,
O Corcunda, Na Corda da Viola, A Cotia, O Cravo (1ª versão), O Cravo Brigou com a Rosa (2ª versão), A
Dança da Carranquinha (1ª versão das Anquinhas), De Flor em Flor, Entrei na Roda, Os Escravos de Jó,
Ficarás Sozinha, (Fui no Itororó), Formiguinhas, A Freira, Fui no Itororó (1ª e 2ª versões), Fui Passar na
Ponte, (Na Bahia Tem, 2ª versão), No Fundo do meu Quintal, Garibaldi Foi à Missa, A Gatinha Parda (1ª e 2ª
versões), O Gato, Hei de Namorar, Espanha, Higiene, No Jardim Celestial, João Cambriête, Laranjeira
Pequenina, O Limão (1ª e 2ª versões), Lindas Laranjas, Machadinha, A Mamãe Estava Doente, Mando Tiro-
tiro-lá, Manquinha, Na Mão Direita (2ª versão), A Maré Encheu (1ª e 2ª versões), Mariquita, Muchacha (ou
As Mariquitas), Meninas, ó Meninas, Meu Benzinho, Meu Pai Amarrou meus Olhos, Nesta Rua (Nesta
Noite), Ningueninhas, Olha o Bicho, Olha o Passarinho Dominé, Padre Francisco, Pai Francisco (1ª e 2ª
versões), Passa, Passa, Gavião (Lá na Ponte da Vinhaça), Passarás, não Passarás, O Pastorzinho, O Pescador
da Barquinha, O Pião, Pintor de Cannahy, Pirolito (ou Fiorito), Pobre Cega (1ª e 2ª versões), O Pobre e o
Rico, Pobre Peregrino, Pombinha Rolinha (Brinquedo de Roda), Os Pombinhos (1ª e 2ª versões), A Pombinha
Voou, Lá na Ponte da Vinhaça (Passa, Passa, Gavião), Quando eu Era Pequenino, Quantos Dias Tem o Mês?,
Que Lindos Olhos, Rosa Amarela (1ª e 2ª versões), Samba-Lelê, Sapo Jururu, Senhora Dona Sancha (1ª, 2ª e
3ª versões), Senhora Dona Viúva (Viuvinha), O sim!, Sinh`Aninha, Sodade, Sonho de uma Criança,
Terezinha de Jesus, Uma, Duas Angolinhas, Vai Abóbora, Vamos Atrás da Serra, Oh, Calunga, Vamos,
Maninha (2ª versão), Vamos, Maruca, A Velha que Tinha Nove Filhas, Vem cá Siriri, Vestidinho Branco,
Vila Formosa, Vitu, Viuvinha da Banda d`Além, Viva o Carnaval, Você Diz que Sabe tudo, Xô! Passarinho,
Margarida.
125
Ver: Boletim Latino-Americano de Música, Rio de Janeiro, 6: 531-2, abril, 1946.
78
78
seria uma coletânea minuciosa de peças eruditas incluindo clássicos e modernos,
estrangeiros e nacionais
126
.
Segundo Ermelinda Paz
127
, o fato de Villa-Lobos mencionar a existência de seis
volumes do guia prático é interessante, pois os volumes de tal obra nunca foram
encontrados. Uma provável explicação para esse fato talvez seja a hipótese de que o
maestro tinha planos de formular esses volumes, mas o único conhecido seria o primeiro,
com 137 canções folclóricas. De acordo com o depoimento do professor e musicólogo
Eurico Nogueira França, o maestro muitas vezes planejava algumas obras e não as colocava
no papel. “Ele fala em choros sinfônicos que, na realidade, não existem”
128
. O musicólogo
destaca também que muitas obras de Villa-Lobos não eram datadas de acordo com a
verdadeira origem. Às vezes, o maestro dizia que uma música foi feita em 1958 quando na
realidade as suas características estéticas estavam apontando para o ano de 1963. Tais
práticas do maestro exigem muita atenção dos pesquisadores. Villa-Lobos “mexia” com os
seus dados, com as suas fontes, da maneira que quisesse, acreditando ter mesmo todo o
direito de realizá-lo.
As obras contidas em “O Guia Prático” estavam relacionadas a assuntos com os
quais as crianças se identificavam, abordando temas folclóricos de diferentes regiões do
Brasil. Embora apresentassem conteúdos infantis, a composição de tais músicas, segundo
Eurico Nogueira França, exigia do maestro a criação de uma ciência harmônica individual,
uma capacidade prodigiosa de valorizar o tema.
Fazem parte ainda da obra didática para o ensino do canto orfeônico nas escolas
dois volumes dos livros “Solfejos” e mais dois volumes de “Canto Orfeônico”. Os temas
dos exercícios propostos no primeiro volume de “Solfejos” são canções infantis ligadas ao
folclore como Barca Velha, Terezinha de Jesus, O Cravo e a Rosa, Nesta Rua, etc. Já o
segundo volume de “Solfejos” é mais complexo, dividido em ditados, vocalismo,
imitações, cânones e fugas. O primeiro volume de “Canto Orfeônico” conta com a presença
126
Na coluna “Correio Musical” do Jornal Correio da Manhã, em 16 de novembro de 1944 Eurico Nogueira
França escreve sobre o Guia Prático: “...Pois de fato a originalidade de sua música deriva em grande parte do
emprego que ele faz do nosso folclore, da utilização por vezes genial de temas populares, ou seja, da criação
de uma linguagem integralmente sua, que guarde, no entanto os acentos e as constantes da música do povo,
cuja força expressiva condensa”.
127
PAZ, Ermelinda A. Heitor Villa-Lobos, o Educador. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais, Monografias Premiadas 1988, Brasília, 1989.
128
Idem. Ibidem.
79
79
de marchas e canções variadas, marcadas por ênfase cívica e artística. O segundo volume
possui características semelhantes, sendo modificadas apenas as dificuldades técnicas e
estéticas, mais complexas e avançadas.
Ainda sobre as obras de Villa-Lobos, em 1942, o maestro escreveu as Bachianas
número 7 dedicada ao Ministro Capanema. Nesta obra observa-se o grande caráter
nacionalista da sua música neste período. As Bachianas número 7 são divididas em quatro
partes e têm como inspiração as manifestações musicais de diversas regiões do Brasil: O
“Prelúdio” associado ao “Ponteio” mostra a influência dos violonistas populares, a “Giga”
foi inspirada em festas caipiras realizadas no sul do Brasil, a “Toccata” foi inspirada na
tradição nordestina de promover torneio entre dois cantadores e finalmente a “Fuga” que
usa o processo polifônico de Bach.
Segundo Naves
129
, Villa Lobos compôs uma obra paradoxal na série Bachianas
brasileiras por ter usado o recurso polifônico de Bach em prol de uma estética grandiosa de
exaltação nacional. Porém deve-se realizar a análise de sua música com bastante
meticulosidade para não chegar à observações equivocadas quando se refere ao
nacionalismo. Villa-Lobos acreditava ter o papel de profeta com a sua intenção de formar
os brasileiros através da música.
Os seus projetos pedagógicos existiam antes mesmo da Revolução de 1930 e em
1925 já havia apresentado propostas do governo obtendo sucesso apenas quando Capanema
assumiu o Ministério. Desde então, foram realizadas as grandiosas concentrações
orfeônicas e em algumas delas houve a participação de músicos populares como Augusto
Calheiros, que inaugurou esse tipo de apresentação acompanhado por um conjunto formado
por Pixinguinha, João da Bahiana e Jararaca. Esse projeto se caracterizou, no entanto, pela
junção entre o erudito e o popular, descaracterizando desta forma as análises simplistas de
“manipulações meramente nacionalistas”.
129
NAVES, Santuza Cambraia. Bachianas Brasileiras número 7: De Heitor Villa Lobos para Gustavo
Capanema. In:
129
BOMENY, Helena. Constelação Capanema: Intelectuais e políticas. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2001.
80
80
2. Contextualizando as idéias de Villa-Lobos
Como observamos anteriormente, Villa-Lobos apostava na importância do folclore
como elemento capaz de cativar as crianças ao sentido da união do povo brasileiro,
destacando questões relacionadas à raça. O folclore, na concepção do maestro, representava
o lado primitivo, ingênuo e infantil do povo brasileiro.
Segundo Contier, o maestro enxergava no folclore “o atraso, o marco zero, ou ponto
inicial de um longo caminho a ser trabalhado pelo compositor interessado na construção de
uma arte culta, de conotações nacionalistas”.
130
Abraçando o ideal de educador, Villa
deixava de lado então as suas composições estéticas mais sofisticadas para dedicar-se a
canções inspiradas nas fontes folclóricas.
As mais altas autoridades que atuavam nas esferas da Educação, Cultura e Política
brasileira nas décadas de 1930 e 1940 concordavam com a utilização de temas folclóricos
na composição erudita. Modernistas como Mário de Andrade, Cassiano Ricardo e Renato
Almeida consideravam o folclore a “verdadeira expressão” pura do povo brasileiro. Tais
intelectuais enxergavam nas fontes folclóricas a legitimação do conceito de brasilidade, o
que esbarrava também na discussão voltada para a construção da Nação Brasileira.
A base da representação do nacionalismo modernista musical estaria no folclore,
representando as manifestações musicais rurais. A negação das manifestações musicais
populares urbanas existiu porque viam-nas como centralizadoras, homogêneas e
paternalistas da cultura nacional. No entanto, “o movimento da música popular brasileira,
pelo contrário, procurou “urbanizar” as expressões artísticas folclóricas”
131
.
Um dos representantes da corrente de folcloristas voltados ao nacionalismo musical
foi Renato Almeida. Além dele, outro folclorista, Joaquim Ribeiro, defendia que o folclore
não era apenas um estimulador da imaginação, pois através desta manifestação cultural,
sentimentos de bondade seriam disseminados, voltados, sobretudo, para a solidariedade
humana. A marca ressaltada do folclore seria a imensa capacidade de ensinar com
simplicidade a sabedoria das manifestações populares.
130
CONTIER, Arnaldo Daraya. Passarinhada do Brasil : canto orfeônico, educação e getulismo. SP:
EDUSC, 1998. Página 41.
131
Ver: CHERNÃVSKY, Anália. Um maestro no gabinete: música e política no tempo de Villa-Lobos.
Campinas, SP, 2003.
81
81
Além de ressaltar o caráter educacional e válido do folclore, Renato Almeida
defendia a necessidade de selecionar bem o material a ser utilizado, para evitar que o
homem do campo se envolvesse com informações “indesejáveis”, evitando prejuízo à
moral, ao corpo e à consciência. O folclore desprezado seria aqueles que apresentassem
erros e fantasias excessivas que envolvessem as crianças. A elevada intelectualidade
brasileira também defendia a necessidade de avaliar bem o conteúdo folclórico antes de ser
passado para os alunos nas escolas.
Concluímos então que Villa-Lobos desenvolvera um projeto educacional voltado
para a música com a utilização de temas folclóricos, algo que era bem divulgado em meio a
intelectualidade brasileira naquele contexto. Portanto, não havia nada de inovador e nem de
extraordinário na ação do maestro. O folclore representava uma eficiente possibilidade de
inspiração para a construção da nacionalidade brasileira por apresentar uma linguagem
simples, voltada para o cotidiano brasileiro, que ressalta também o passado das
experiências dos cidadãos simples.
132
Mário de Andrade acreditava que a o povo brasileiro já tinha a arte nacional inserida
em sua consciência, sendo a “missão” do artista voltada para a demonstração dos elementos
culturais, facilitada pela incorporação da forma erudita, capaz de transformar a música
folclórica em música artística. Membro do movimento modernista, nacionalista, acreditava
que o povo seria a eterna inspiração, assumindo assim uma similaridade entre o pensamento
dele e de Villa-Lobos. Para Mário, o cumprimento da missão de colocar em prática a
música folclórica exigia uma tarefa extremamente árdua, já que a banalização e o exotismo
poderiam se apresentar. Para Mário, Villa-Lobos se tornou o compositor brasileiro que
assumiu essa missão de maneira mais expressiva, que através de suas composições
conseguiu captar a essência da beleza estética folclórica. Em “Ensaio sobre a Música
Brasileira”, Mário de Andrade afirma que:
... Mais uma feita, lembro Villa-Lobos. É principalmente na obra dele que
agente encontra já uma variedade maior de sincopado. E sobretudo o
desenvolvimento da manifestação popular. Isso me parece importante. Se de
fato agora que é período de formação devemos empregar com freqüência e
abuso o elemento direto fornecido pelo folclore, carece que a gente não
132
Ainda sobre a importância do folclore no período, ver: VILHENA, Luis Rodolfo. 1997. Projeto e Missão.
O Movimento Folclórico Brasileiro, 1947-1964. Rio de Janeiro: Funarte/Fundação Getulio Vargas.
82
82
esqueça que a música artística não é fenômeno popular porém
desenvolvimento deste. O compositor tem pra empregar não só o sincopado
rico que o populário fornece como pode tirar lições disso. (...) Ainda aqui o
exemplo de Villa-Lobos é primordial. Se aproveitando do cacofonismo
aparente das falas indígenas e africanas e se inspirando nas emboladas ele
trata instrumentalmente a voz com uma originalidade e eficácia que não se
encontra exemplo na música universal
133
.
A partir da construção do “Brasil Novo” idealizado pela Revolução de 1930, o
folclore ganharia então papel de destaque, sendo usado como estratégia para a
implementação da educação artística, cívica e moral. Surgiram então inúmeros trabalhos
sobre o folclore brasileiro, onde os autores destacavam as “falas das camadas subalternas da
sociedade”, emergindo como novas fontes da construção da brasilidade. Como exemplo de
tais trabalhos, Contier menciona os textos escritos por Flaustino Rodrigues Valle, que
acreditava ser o sertão uma verdadeira fonte da música brasileira. As canções entoadas
então nas grandes concentrações buscaram mostrar o sertão como autêntico representante
da brasilidade.
O autor destaca ainda que não havia limites exatos que estabelecessem uma divisão
acerca do pensamento musical brasileiro naquele período, principalmente nos termos que
interligavam a questão nacional e o folclore. Intelectuais como Villa-Lobos, Mário de
Andrade, Renato Almeida, Fabiano Lozano e Lorenzo Fernandes, embora apresentassem
posturas políticas diferenciadas, trabalhavam de maneira consciente a música folclórica. No
caso de Mário de Andrade, só a partir de 1940, quando se aproximara das idéias socialistas,
começara também a se distanciar dos temas folclóricos.
Segundo alguns críticos musicais da época, os temas folclóricos desenvolvidos por
Villa-Lobos apresentavam amplas influências da obra do compositor Stravinski. Villa-
Lobos se defende afirmando que a afinidade musical estaria presente “na semelhança da
origem, nas fontes sonoras de ambos os compositores, que era a música folclórica e popular
de seus próprios países”.
134
A partir de 1930 pesquisadores e compositores dedicaram-se ao folclore infantil e
isso pode ser explicado pela nova ênfase que se dava à História do Brasil naquele período.
133
ANDRADE, 1972 apud CHERNÃVSKI, Anália. Um maestro no gabinete: música e política no tempo de
Villa-Lobos. Campinas, SP, 2003.
134
Jornal O país de 1941.
83
83
Os compositores que ganharam status de “novos bandeirantes” seriam capazes de integrar
as crianças ao projeto nacionalista que visava a construção do “Novo Brasil”. Para Contier,
“somente através de uma nova pedagogia, tornar-se-ia possível criar, para o futuro, um
público mais amplo e mais fiel aos princípios norteadores da chamada música brasileira”.
135
Analisando ainda o contexto educacional em que Villa-Lobos desenvolvia o seu
projeto, entendemos que o modernismo influenciou a esfera do ensino musical. Portanto,
para Rosa Fuchs
136
, a ligação entre modernismo e ensino da música era marcada pela
coexistência entre a tradição e o novo, sendo que estes dois elementos estavam,
constantemente, em tensão. Tal conflito podia ser sentido através do forte apego à ênfase
nacionalista, inspirado pelo folclore, que ganhava então status de “segunda fase do
romantismo”, marcando assim a fusão do velho e do novo. “Deste contexto surgiram
composições musicais de conteúdo romântico (temas folclóricos) que seriam, entretanto,
trabalhadas de forma modernista, concretizando, portanto, este conflito”
137
. A fusão entre o
velho e o novo seria marcada pela influência européia, que não mais absorvida de maneira
passiva e sim de maneira ativa, antropofágica, era submetida a um processo de síntese
nacional, especificamente nacionalista.
Tal síntese nacional emergia de um Brasil que passava pela intensificação dos
avanços tecnológicos, da urbanização, da perspectiva do futuro. O novo cenário propunha
então uma nova estética, que inaugurava uma nova forma de pensar a literatura e as artes.
Levando em consideração o cenário das escolas normais em tal contexto, Rosa Fuchs
destaca que enquanto o modernismo propunha uma nova estética absorvendo o velho,
transformando-o em novo, a escola normal absorvia o novo e o envelhecia.
Rompendo com a idéia e a memória construída em torno do Villa-Lobos pioneiro
em projeto educacional para a esfera da música, se faz importante salientar que já em 1921,
no estado de São Paulo, a atuação de orfeãos normalistas era bem comum. Em 1929,
Fernando de Azevedo, que era Diretor Geral de Instrução Pública, constituiu uma comissão
formada por Eulina de Nazareth, Francisco Braga e Sylvio Salema Ribeiro com o objetivo
de formular um programa de música destinado aos estabelecimentos de ensino do Distrito
Federal. Ou seja, já existia um projeto de música direcionado ao ensino musical nas
135
Idem, página 46.
136
FUKS, Rosa. O discurso do silêncio. Rio de Janeiro, Enelivros, 1991.
137
Idem, página 110.
84
84
escolas, antes mesmo de 1930, elaborado por Francisco Braga na década de 1920. O projeto
de Villa-Lobos então representava uma leitura “modernista” do que já estava se iniciando.
Foi então amplamente influenciado por um forte contexto de modernização em todas as
esferas, dinâmicas reformas e efervescência intelectual, com o diferencial da maior atuação
do Estado na esfera da Educação.
Além da preocupação com o ensino da música nas escolas, a partir dos anos de 1920
surgiu também uma preocupação com a formação dos futuros músicos. A partir da análise
das revistas Klaxon e Ariel, Fuchs entende que havia, em tal contexto, a preocupação de
músicos modernistas com a questão da educação musical. Antônio Sá Pereira, profissional
da música e educador modernista que dirigia a revista Ariel, defendia a necessidade de
trabalhar a formação do músico brasileiro a partir de uma lapidação humanística.
Posteriormente, em 1931, Mário de Andrade, Luciano Gallet (Diretor do Instituto
Nacional de Música) e Sá Pereira montaram um programa para a reforma do ensino oficial
de música a pedido do Presidente da República, Getúlio Vargas. Tal programa foi recusado
pelo governo e em 1954, Villa-Lobos criticou o programa acusando-o de elitista, voltados
para alunos do Instituto Nacional de Música (INM), sendo o seu projeto mais amplo, já que
era destinado aos alunos da rede pública, nas escolas. Para Rosa Fuchs, portanto,
“esta dicotomia entre ensino superior e ensino de base, num país de dimensões
geográficas como o nosso, no qual o ensino da música era ainda incipiente,
necessitando, portanto, de um processo de musicalização a nível das escolas
públicas e das mudanças urgentes na formação do músico, fez parte das
divergências que, naquela época, existiram entre os músicos que se propunham
a uma ação educativo-musical. É importante assinalar que estes eram todos
engajados no modernismo, representando, a fronteira entre o projeto artístico e o
artístico-educacional que se concretizaria nos anos 30.”
138
Na medida em que escreveu relatórios, obras destinadas à Educação musical, o
maestro Villa-Lobos comentava suas perspectivas relacionadas às bases da nacionalidade
em jornais, se enquadrando assim em um grupo de intelectuais voltados para a formação da
cultura. Por outro lado, à frente da SEMA, exerce a função de administrador organizando
tudo o que é necessário para a execução do seu projeto intelectual. Além disso, sua postura
de divulgador se explicita nas apresentações orfeônicas destinadas aos operários, crianças,
138
Idem, página 117.
85
85
cidadãos em geral, cujo repertório expõe também o atendimento ao chamado produzido
pelo Estado.
A elaboração do projeto político-ideológico do Estado Novo que buscava o
convencimento da sociedade de que uma nova ordem teria sido instaurada, recebeu o apoio
do maestro em relação à opinião pública. Sobre a formação da consciência nacional
brasileira, Villa-Lobos destaca que:
“Aproveitar o sortilégio da música como um fator de cultura e de civismo e
integrá-la na própria vida e na consciência nacional – eis o milagre realizado em
dez anos pelo governo do Presidente Getúlio Vargas. (...) a intenção do chefe de
governo não foi a de legar somente ao Brasil uma nova estrutura política, social
e econômica. Ao contrário dos antigos regimes, o atual governo procurou
coordenar todas as forças diretrizes e sistematizar todas as energias num bom
sentido nacionalista”.
139
A recuperação do passado, realizada tão amplamente pelo projeto político do Estado
Novo, também está presente no discurso do maestro. Em termos específicos, a ligação
existente entre passado e presente como fatores imbricados para a formulação da nova
nacionalidade insere-se, em Villa-Lobos, na produção dos temas folclóricos. A valorização
do bandeirante e do jesuíta, destacada na Revista Cultura Política, também se manifesta nos
escritos do músico, como já se mencionou anteriormente. A idéia da formulação de um
Brasil Novo, direcionado pelo Estado; o entendimento do papel que os “profetas”
intelectuais desempenham nesse processo; a moralidade como base sustentadora do avanço
social e a necessidade da formação patriótica da juventude também estão presentes no
pensamento de Villa-Lobos:
“Cheio de fé na força poderosa da música, senti que com o advento desse Brasil
Novo era chegado o momento de realizar uma alta e nobre missão educadora dentro
da minha pátria. Tinha o dever de gratidão para com esta terra que me desvendara
generosamente tesouros inigualáveis de matéria-prima e de beleza musical. Era
preciso pôr toda a minha energia a serviço da Pátria e da coletividade, utilizando a
música como meio de formação e de renovação moral, cívica e artística de um povo.
Senti que era preciso dirigir o pensamento às crianças e ao povo (grifos meus). E
resolvi iniciar uma campanha pelo ensino popular da música no Brasil, crente de
139
VILLA-LOBOS, Heitor. A música nacionalista no governo Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: DIP, 1946.
Página 13.
86
86
que o canto orfeônico é uma fonte de energia cívica vitalizadora e um poderoso
fator educacional. Com o auxílio das forças coordenadoras do atual governo, essa
campanha lançou raízes profundas, cresceu, frutificou e hoje apresenta aspectos
iniludíveis de sólida realização”.
140
A política implementada a partir de uma perspectiva técnica permitiu que
intelectuais como Villa-Lobos desenvolvessem os seus projetos. O Estado, a partir do
momento que busca controlar as rédeas da formação de uma consciência política, através da
ação conjunta do Ministério do Trabalho e da Educação, sente na arte um campo fértil para
a propagação dos seus ideais. Os intelectuais podiam expressar diferentes perspectivas
sobre os assuntos, mas as temáticas geradoras eram determinadas pelo Estado. A noção
estatal de socialização da cultura também se apresenta nos ideais de Villa-Lobos, já que o
seu projeto tinha como principal temática a socialização através da música.
140
Idem. Página 18.
87
87
Capítulo III - O Brasil cantando a uma só voz: Estado, música e nacionalismo
Eu era bastante menino, ainda com uniforme de escola pública –
A escola 3-3 Deodoro. A música começava a enraizar-se em minha
vida. Começara a descobrir, na escola, o encanto pelo Canto
Orfeônico, semente plantada no Brasil pelas mãos de Heitor Villa-
Lobos (...) Como poderia imaginar que uma pessoa pudesse reter
nos dedos tantos mistérios que lhe habilitassem ordenar milhares
de vozes, de diferentes registros, mil crianças de diferentes
vontades? E como poderiam essas crianças obedecê-lo? Haverá de
ser grande a distância a separá-los. E como iriam divisar, então,
suas mãos no gesto de ordem? Não, não poderia ser verdade. No
campo do Vasco, no dia sete de setembro apareceu a figura do
maestro no meio do campo, sob um palanque improvisado. Via-o
tão longe! Eu era um entre milhares de meninos, e toda aquela
balbúrdia cessou como por encanto quando o maestro ergueu os
braços. Não, eu me recusava a acreditar, pois éramos muitos. Um
coro magnífico, como um estrondo ecoou no estádio. Eu mesmo me
surpreendi cantando, atônito, e para mim não havia mais ninguém
ali senão aquele feiticeiro de tantas lendas, um deus com o visível
milagre exposto e presenciado por milhares de crianças além de
mim. Lembro que os meus olhos de menino ficaram turvos e
dourados”.
141
Memórias de um estudante
1. A história do canto orfeônico
No relato acima mencionado percebe-se a emoção e a admiração que um estudante
mostra ao participar de um evento regido por Heitor Villa-Lobos. Esta admiração pode ser
considerada produto do projeto musical do maestro, o projeto educacional do Canto
Orfeônico, que eficazmente, trabalhava a emoção da sociedade através da música. Segundo
Monti
142
, a história do canto está associada a história da humanidade. As primeiras
melodias foram executadas por tribos em homenagens aos deuses. Já na Antiguidade,
Platão e Pitágoras defendiam a necessidade do conhecimento da música, sendo que este
último ressaltava a música humana indicativa da ressonância entre corpo e alma e a música
produzida pelo cosmos, posteriormente denominada música das esferas.
No período clássico da Grécia Antiga foram estabelecidos os pilares do canto coral.
O cristianismo utilizou a música com a estratégia de transmitir palavras litúrgicas para
atrair mais fiéis, destacando-se a formação de escolas de canto a partir do Papa Silvestre I
141
Publicado na série depoimentos, Ed. Museu Villa-Lobos, primeiro volume, 1965.
142
MONTI, Ednardo. Origens do Canto Orfeônico. Revista Brasileira de Música 10/2007.
88
88
no século IV. Com o movimento da Reforma Protestante, reforçou-se o uso do canto coral
nos cultos religiosos, surgindo posteriormente vários corais independentes das Igrejas. A
partir dos séculos XVIII e XIX, o canto coral se consolidou como tradição em vários países
da Europa, principalmente na França, Alemanha e Áustria. Já o “Orpheon” foi divulgado
amplamente na França, com o apoio de Napoleão III. Segundo Goldemberg, “O canto
orfeônico tornou-se muito popular na França por que o canto coletivo era uma atividade
obrigatória nas escolas municipais de Paris e o seu desenvolvimento propiciou o
aparecimento de grandes concentrações orfeônicas que provocavam o entusiasmo geral”.
Ainda segundo Monti , o canto orfeônico pretendia trazer mensagens e incutir
pensamentos em seus praticantes de espectadores, tornando-se um útil instrumento para
objetivos sociais, políticos e ideológicos, atendendo a necessidade do momento político
nacional que a França vivenciava no século XIX”. Afirma que no contexto mencionado, a
harmonização social e a necessidade da unidade da massa veiculada pelo canto orfeônico,
proporcionava um efeito emocional pela linguagem musical, vinculada à transmissão de
conceitos de educação cívica e de valores morais por meio dos textos das canções,
instalando um perfil cívico-patriótico em harmonia com os ideais do Estado na esfera da
Educação.
Como já foi mencionado anteriormente, o maestro Heitor Villa-Lobos entendia que
as demonstrações cívico-orfeônicas representavam um meio de formar a disciplina coletiva
das grandes massas, não estando voltadas assim para a diversão e o lazer. O maestro
apresentava um objetivo político em relação às concentrações, o que o liberta de uma
concepção de “intelectual inocente”, que serve em nome da arte e do sublime. A postura de
Villa-Lobos enquanto educador o coloca como agente direto que busca interferir na
construção de um contexto específico.
As apresentações orfeônicas tiveram como palco o estádio do Fluminense, a
Esplanada do Castelo, o Largo do Russel o estádio do Vasco da Gama, etc. Porém, aquela
realizada em 24 de maio de 1931, no campo da Associação Atlética São Bento (São Paulo),
foi a primeira demonstração orfeônica organizada no Brasil e na América do Sul.
Patrocinada pelo interventor paulista João Alberto, contou com a presença de músicos
populares de renome, como solistas, nas apresentações. (Ver foto I – Demonstração
Orfeônica no Campo do Vasco da Gama).
89
89
Figura I – Concentração Orfeônica realizada em 07/07/1935 no Estádio do Vasco da
Gama
90
90
Ainda em 1936, à frente da SEMA, Villa-Lobos participou do Congresso de
Educação Musical em Praga, que contou com a participação da Áustria, Brasil, Dinamarca,
Espanha, Estados Unidos da América, França, Grã-Bretanha, Japão, Holanda, Polônia,
Romênia, Suécia, Suíça, Tchecoslováquia, Rússia e Iugoslávia. O Ofício
143
número
30/1936 do Itamaraty esclarece como ocorreu a atuação de Villa-Lobos no Congresso.
O maestro, ao chegar em Praga, procurou demonstrar o grau de cultura artística
alcançado pelo Brasil. Isso quer dizer que, de cesta forma, Villa-Lobos fez propaganda do
país no exterior. O maestro apresentou então o seu projeto de ensino do canto nas escolas,
inspirando os participantes do congresso para que a mesma fosse metodologia fosse
divulgada na Tchecoslováquia. O maestro apresentou também um exemplo concreto de seu
método, aplicado às crianças de uma respeitada instituição pedagógica de Praga. Ocorreu
também a execução de várias músicas típicas brasileiras, com o concurso de conhecida
cantora tcheca.
Segundo as informações do Ofício, “o numeroso auditório mostrou-se visivelmente
impressionado e a imprensa reconheceu que, em matéria de educação musical, o Brasil
pode servir de modelo para os países europeus”. A conferência foi dividida em duas partes.
Na primeira parte, expôs o seu plano para a educação primária, secundária e superior,
ressaltando a importância da música como alimento indispensável à vida espiritual. Além
disso, expôs seu ponto de vista a cerca da educação popular, buscando a compreensão
musical do povo, a educação musical como forma de desenvolvimento do sentimento de
civismo, a educação musical como meio de confraternização e como veículo da idéia de
paz entre os homens, os métodos de ensino, além de expor o Guia Prático, voltado para a
orientação dos que se interessam pelo problema da educação musical no Brasil.
Já na segunda parte da Conferência, apresentou métodos específicos para o
desenvolvimento do espírito crítico do aluno em matéria de arte musical, destacou as
referências musicais, além de demonstrar a música artística brasileira através de discos:
“Serestas”, de Villa Lobos, com a cantora Elsie Houston; “Na Bahia tem”, de Villa- Lobos,
com o coral dirigido por Sichan; “Choros n.° 3”, de Villa-Lobos; coral também dirigido por
Sichan. Apresentou também “A melodia das montanhas”, com um jogo pedagógico musical
destinado a desenvolver o espírito de composição melódica nas crianças, apresentou trechos
143
Itamaraty: Ofício número 30/1936.
91
91
de música popular brasileira, tratados de maneira ingênua para as crianças e de maneira
artística para concerto (processo empregado nas escolas).
Segundo Villa-Lobos, "A melodia ou fragmento melódico imprevistos interessarão
à classe desenvolvendo o espírito de observação quanto aos valores relativos, sentido
musical, percepção da tonalidade e do ritmo e o gosto pela composição musical".
144
A
melodia das montanhas foi um processo criado e pelo maestro no desenvolvimento do
canto orfeônico. O objetivo consiste em delinear o contorno de montanhas e acidentes
geográficos sobre uma folha de papel milimetrado, convencionando-se o valor e altura dos
sons, baseando-se em traços horizontais e verticais. O processo foi desenvolvido para que
os alunos construíssem as suas melodias, a fim de estimular e desenvolver a criatividade.
Outro objetivo seria o de colocar em prática os conhecimentos de teoria musical, utilizando
gravuras, desenhos, fotografias de montanhas, morros, que, sendo reproduzidas, poderiam,
posteriormente, serem harmonizadas pelos professores, chegando a uma melodia resultante.
Segundo PAZ
145
, O critério adotado seria:
“1) escreve-se verticalmente, de baixo para cima, a partir do 1 até o lá 6, todas
as notas existentes, diatônicas e cromáticas
2) coloca-se os contornos da melodia que se deseja conhecer. No sentido
horizontal, estes pontos corresponderão aos sons inscritos à margem esquerda. A
Tônica corresponde ao nível do mar, ou seja, à base da montanha. O modo é
escolhido pelo aluno (maior ou menor);
3) anota-se os sons obtidos na pauta. Para se determinar os valores e o
compasso, procede-se do seguinte modo: cada linha vertical corresponde a um
pulso (unidade de tempo) e este, por opção do aluno, pode variar entre a
semicolcheia e a semínima.
Como vemos então, este método desenvolvido por Heitor Villa-Lobos se tornou
conhecido internacionalmente, sendo citado também no Brasil em vários jornais. No Jornal
do Comércio, em 1945, Eurico Nogueira França, importante musicólogo na época, realiza
uma comparação entre a inspiração de Villa-Lobos e a música de Stravinsky:
144
VILLA-LOBOS, H. Educação Musical. In: Boletim Latino-Americano de Música. Rio de Janeiro, 6:531,
abr. 1946.
145
PAZ, Ermelinda A. Heitor Villa-Lobos, o Educador. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais, Monografias Premiadas 1988, Brasília, 1989. Página 63
92
92
“As imagens sonoras conseguidas por tal método serão capazes de traduzir
musicalmente, segundo quer Villa-Lobos, todo um sistema ortográfico. Acontece,
no entanto, que uma montanha majestosa, erguendo-se solitária no horizonte, ao
fundo de uma paisagem, integra-se naturalmente na visão simultânea oferecida por
esse trecho da natureza. Ao passo que a melodia cujos sons façam de repente um
grande e imprevisto intervalo, exprimirá antes uma montanha nascendo de
improviso do seio da terra, pela fôrça de alguma convulsão geológica. O célebre
desenhista Walt Disney viu sem dúvida coisa desse gênero dentro da partitura de
Stravinsky – Le sacre du Printemps – ao criar a Fantasia. A exemplo do maestro
russo, Villa-Lobos possui igualmente um sentido muito profundo da terra e da
instabilidade dessas forças cósmicas que regeneram a formação do mundo”
146
.
O método da melodia das Montanhas foi desenvolvido então para desenvolver nos
alunos a capacidade de formular suas próprias melodias, estreitando a relação entre as
crianças e a música. Villa-Lobos defendia que “a música tem o poder de comunicar, curar,
enobrecer, quando se torna parte da consciência do Homem”.
147
As apresentações
orfeônicas, que contavam com a presença de vários músicos populares, apresentavam
também o objetivo de criar esse elo entre a música e as crianças.
Como já afirmamos, as concentrações orfeônicas contavam com a presença de
músicos populares e um dos primeiros a participar destas apresentações orfeônicas foi
Augusto Calheiros, também conhecido como Patativa do Norte, que cantou o “Sertanejo do
Brasil”, na Hora da Independência de 7 de setembro de 1939. Ainda nesse ano, no mês de
janeiro, o cantor participou da exposição do Estado Novo sobre Danças Típicas Brasileiras,
formando o conjunto regional ao lado de Jararaca, Pixinguinha, João da Baiana, João
Pernambuco, Valzinho, Luperce Miranda, entre outros. No programa deste evento, constam
a apresentação de escolas de samba que tomaram parte no desfile, em algumas danças. Em
7 de setembro de 1940, Francisco Alves, o Rei da Voz, cantou a música “Meu Jardim”, de
Ernesto dos Santos (Donga) e David Nasser, dirigido por Villa-Lobos. Silvio Caldas
também participou de uma das apresentações orfeônicas, cantando a modinha
“Gondoleiro”, acompanhado por banda e coro a duas vozes.
A infra-estrutura que se exigia para a organização das concentrações orfeônicas era
algo realmente grandioso. Analisando os documentos que se encontram no Museu Villa-
Lobos, especialmente aqueles que apresentam informações sobre a famosa “Solenidade da
146
Jornal do comércio de 11 de março de 1945, matéria escrita por Eurico Nogueira França.
147
Frase mencionada por Villa-Lobos no Jornal do comércio de 25 de Fevereiro de 1945.
93
93
Hora da Independência”, podemos concluir que assim como o evento, a disciplina e a
organização eram realmente monumentais. Organizada pelo Ministério da Educação e
colocada em prática na semanas que antecediam o dia 7 de Setembro, representava um
marco para a sociedade brasileiro, pois sua atuação cultural ia além da esfera dos estádios e
das apresentações.
Segundo CHERNÃVSKY
148
, durante a semana de comemoração, todas o comércio
deveria se enfeitar com as cores da bandeira nacional, sendo comum o pronunciamento de
autoridades do Exército, da Marinha, de civis, no programa de Rádio Hora do Brasil. Nas
escolas, os professores eram instruídos a ressaltar a importância das datas cívicas,
principalmente em relação ao evento da independência. Na comemoração da “Hora da
Independência”, na “Semana da Pátria de 1939”, foi apresentado o seguinte programa de
músicas:
Programa
1. Hino Nacional (Francisco Manuel – Duque Estrada)
Oração do Senhor Presidente da República à Nação brasileira
2. Hino Nacional (Francisco Manuel – Duque Estrada)
3. Hino da Independência (Pedro I – Evaristo da Veiga)
4. Coqueiral (Efeito Orfeônico)
5. Hino à Bandeira (Francisco Braga – Olavo Bilac)
6. Imagem da Bandeira (Efeito Orfeônico)
7. Letreiro (Efeito Orfeônico)
8. Hino da República (Leopoldo Miguez – Medeiros e Albuquerque)
9. Ondas (Efeito Orfeônico)
10. Hino Acadêmico (Carlos Gomes – Bittencourt Sampaio)
11. Terror (Efeito Orfeônico)
12. Sete de Setembro (Thiers Cardoso – Obertal Chaves)
13. 1ª. Saudação: Viva o Brasil! (Efeito Orfeônico)
14. 2ª. Saudação: Salve a Terra Brasileira! (Efeito Orfeônico)
15. Canção em louvor no Rio de Janeiro (Ernesto Nazareth – Leôncio Corrêa)
16. Improvisações (Manossolfa)
17. Sertanejo do Brasil (Clóvis Carneiro – Clóvis Carneiro) Solista: Augusto
Calheiros.
18. As cores da bandeira (Efeito Orfeônico)
19. Heróis do Brasil (Villa-Lobos e Paula Barros)
20. Saudação ao Presidente (Efeito Musical)
21. Hino Nacional (Francisco Manuel – Duque Estrada)
Saída dos escolares ao Canto do Pajé
148
CHERNÃVSKY, Anália. Um maestro no gabinete: música e política no tempo de Villa-Lobos. Campinas,
SP, 2003.
94
94
Realizada no Estádio do Clube de Regatas Vasco da Gama, em São Januário, às 16
horas, do dia 7 de Setembro de 1940, a “Hora da Independência” contou com a participação
de 40 mil alunos, sendo apresentada uma organização minuciosa para levá-los até o local da
realização do evento. Havia um programa pré-estabelecido para organizar a entrada e saída
dos escolares que fossem transportados em bondes da Companhia Carril, Força e Luz
(Light) e transportados em ônibus.
Os Diretores das escolas designadas para comparecerem à solenidade receberam
uma gratificação em dinheiro, na base de 1$500 por aluno, para atender as despesas do
fornecimento de uma merenda aos mesmos.
Para auxiliar na organização do evento, os diretores do Instituto de Educação e dos
Departamentos de Educação Primária, Técnico-Profissional, de Educação de Adultos e
Difusão Cultural, de acordo com o Diretor do Departamento de Educação Nacionalista e
em colaboração com os Chefes de Distritos Educacionais, Diretores de Escola, Professores
e demais funcionários deveriam se responsabilizar por todas as providências que se
fizessem necessárias para a organização da concentração, cuidando, especialmente, da
proteção dos escolares, quanto à condução, trajeto (ida e regresso) e alimentação dos
mesmos, cooperando, assim, com as respectivas comissões para completo êxito na
execução do programa da solenidade. Além da merenda, existia no local do evento um
suprimento de emergência, que ficava sob a responsabilidade do Departamento de Saúde
Escolar.
Os alunos deveriam sair das escolas formados por grupos de vozes,
respectivamente, 1.°, 2.°, 3.° e 4.°, com o objetivo de permitir a melhor organização na hora
de entrada no Estádio. Cada grupo era acompanhado por professores de classes ou
inspetores de disciplina escolhidos pelos Diretores das escolas. Os alunos embarcavam nas
respectivas conduções rigorosamente à hora determinada, sendo o Serviço de Educação
Física responsável pelo embarque e desembarque dos alunos e desfile no gramado, à saída
das escolas.
Chegando ao estádio, a partir dos portões de entrada os alunos eram conduzidos ao
gramado pela comissão responsável. Os grupos de vozes eram devidamente organizados e
aguardava-se as ordens da Comissão de Contato Direto com o Regente-Chefe, para
encaminhá-los à Comissão das Arquibancadas, que os localizava de acordo com os grupos
95
95
e as vozes. As escolas, obrigatoriamente, deveriam entrar ou sair do Estádio tendo à sua
frente a Bandeira Brasileira, que deveria ser guardada por dois alunos; que posteriormente
seriam conduzidos a lugar determinado pelo Serviço de Educação Cívica. Depois da
organização dos escolares em seus devidos lugares, nenhum aluno podia se levantar ou se
retirar até o momento da chamada de saída, pelos nomes das escolas, ao menos que se
sentisse mal, deveria esperar atendimento das enfermeiras.
O corpo docente das escolas deveria se apresentar devidamente uniformizado e sem
chapéu, assim como os funcionários, sendo imprescindível a perfeita disciplina. Nas
arquibancadas de vozes só poderiam permanecer professores, inspetores de disciplina e
enfermeiras. Os serventes e outros que acompanhavam escolas deveriam se apresentar ao
Diretor do Departamento de Saúde Escolar para ajudar no serviço de assistência. Os
Professores de Música e Membros do Orfeão de Professores responsáveis pelas Comissões,
após organizarem os alunos, deveriam permanecer junto aos respectivos grupos, exigindo
sempre a constante atenção para o Regente-Chefe, permanecendo sempre junto dos alunos.
A distribuição das bandeiras seria feita pela comissão de Serventes , após a localização dos
escolares nas arquibancadas, a partir da determinação do Regente-Chefe.
Para facilitar a organização, os professores de música deveriam distribuir-se o
máximo possível pelos quatro grupos, cantando sempre, sem marcar compasso e
recomendando com insistência, sempre, o silêncio absoluto; a atenção totalmente voltada
ao Regente-Chefe; a atenção também nas bandas e no canto das outras escolas e a atenção
ao sinal determinado pelo Regente-Chefe de levantar as bandeiras e os Diretores das
Escolas deveriam garantir que as bandeirinhas distribuídas aos alunos fossem depois
devolvidas ao Departamento de Educação Nacionalista (DNE). Nenhuma escola poderia
levantar-se do recinto sem a determinação provinda do palanque do Regente-Chefe. Além
disso, estava determinado que os alunos só poderiam ser entregues aos pais ou responsáveis
nas escolas, após o retorno. A entrada da banda, as ruas de acesso, tudo era previamente
planejado.
O Departamento de educação Nacionalista criou várias comissões especiais,
supervisionadas por Heitor Villa-Lobos, para coordenar as atividades no evento
149
. Existem
149
Foram divididas cinco comissões que apresentavam as seguintes tarefas: Comissão I - Desembarque,
condução e reembarque dos alunos; Comissão II - Encarregada da recepção, colocação e assistência às
representações dos estabelecimentos educacionais portadoras do Pavilhão Nacional; Comissão III - Contato
96
96
determinações que listam os nomes de professores que deveriam organizar os alunos na
estrada do evento, nas diferentes ruas que dão acesso ao estádio. A organização do evento
contava também com uma atuação especial dos professores de Educação Física, sendo estes
responsáveis pelos ensaios. Estes últimos eram realizados nas escolas, com calendário
específico, contando com a presença de Villa-Lobos.
O pianista José Vieira Brandão, amigo e colaborador do maestro, comenta em
Presença de Villa-Lobos
150
que as concentrações envolviam milhares de pessoas que
faziam questão de colaborar. Os amigos de Villa-Lobos ficavam impressionados com a sua
capacidade de organização, além da execução perfeita do programa musical. O maestro
ficava tão envolvido com a música, com a busca pela perfeição, que seria difícil associar a
sua atuação relacionada à uma percepção totalitarista.
Na só as apresentações da Semana da Pátria, mas em geral as concentrações
apresentavam um gigantismo impressionante. O jornal O Globo de 27 de Novembro de
1933 expõe a impressão que se tinha de tais eventos:
A grandiosidade de uma festa de educação cívica, de arte e fé. No campo do
Fluminense vibrou a alma nacional em expressões inéditas. Além da regência
tríplice (a mais suave e doce regência da História do Brasil) dos maestros
Francisco Braga, Joanídia Sodré e Chiafiteli, as mãos dominadoras e os olhos
hipnóticos de Villa-Lobos, o grande educador brasileiro. Não se pode deixar de
ver realçados o brilho e a galhardia com que se incorporaram a essa festa de
ritmo as bandas musicais do exército, polícia, bombeiros e batalhão naval.
Estiveram presentes o Sr. e Sra. Getúlio Vargas, Cardeal D. Sebastião Leme,
professor Anísio Teixeira, Ministro da Marinha, secretários dos demais
ministérios, Dr. Amaral Peixoto, representando o interventor Pedro Ernesto, e
figuras de grande representação social.
151
No ano de 1940, as concentrações orfeônicas chegaram a reunir até 40 mil crianças
e adolescentes. Sobre as concentrações orfeônicas, Carlos Drummond de Andrade
escreveu:
“A multidão em torno vivia uma emoção brasileira e cósmica, estávamos tão
unidos uns aos outros, tão participantes e ao mesmo tempo tão individualizados
e ricos de nós mesmos, na plenitude de nossa capacidade sensorial, era tão belo
direto com o Regente-Chefe; Comissão IV - Encarregada de auxiliar os serviços de posto de assistência
Médica e Comissão V - Encarregada de Distribuir as Bandeiras entre os alunos. Nessas comissões havia uma
metódica divisão de tarefas para organizar o evento, indicando os nomes daqueles que deveriam ajudar.
150
PRESENÇA de Villa-Lobos. Rio de Janeiro, MEC, DAC, MVL, 1970.
151
Jornal O Globo de 27 de Novembro de 1933.
97
97
e esmagador, que para muitos não havia outro jeito senão chorar; chorar de pura
alegria. Através da cortina de lágrimas, desenhava-se a figura nevoenta do
maestro, que captara a essencial musical do nosso povo, índios, negros,
trabalhadores do eito, seresteiros do arrabalde; que lhe juntara ecos e rumores de
rios, encostas, grutas, lavouras, jogos infantis, assobios e risadas de capetas
folclóricos.”
152
A partir da organização dos eventos cívico-musicais, Villa-Lobos e a SEMA
adquiriram grande prestígio em relação às autoridades da Educação, pois se consolidava a
materialização dos ideais defendidos por alguns teólogos do Estado Novo. Villa-Lobos, ao
perceber o sucesso que as concentrações alcançava, reunia cada vez mais esforços para
levar à frente a realização destes mega-eventos. As concentrações orfeônicas representavam
a materialização da união de vitórias particulares, rumo à vitória maior da nação,
abrangendo um amplo sentimento de comoção coletiva. Mostrava-se a conquista ideológica
da nação, principalmente dos cidadãos jovens, que cantavam fervorosamente em
homenagem à Nação e ao Chefe do Estado.
Em tempos de Estado Novo, os eventos representavam o ápice de realização, pois
eram milhares de pessoas, de diferentes classificações etárias (crianças, jovens, adultos,
idosos), diferentes profissões (professores, operários, estudantes, burocratas, músicos) e de
diferentes direções políticas cantando, devidamente organizados, as glórias do Brasil, em
direção a um futuro ainda mais glorioso. A disciplina, a organização, voltavam suas
homenagens ao poder constituído, materializado na figura do Presidente Getúlio Vargas.
Geralmente o Presidente Getúlio Vargas comparecia ao evento da “Hora da
Independência” e proferia um discurso e uma oração em homenagem à festa e ao povo
brasileiro. Ainda segundo Chernãvsky, “este era o ponto máximo da festa, o momento no
qual o apelo do Chefe da Nação entrava em perfeita consonância com o canto dos jovens
(dirigidos por Villa-Lobos) fazendo com que ambos os discursos fossem difundidos em
uma só voz que falava a todos os brasileiros”.
153
Aqui encontramos uma convergência entre
os ideais do Estado relacionados à organicidade e à disciplina coletiva e o projeto de Villa-
Lobos (Ver foto 2 – O poder do Estado presente na comemoração)
152
MAIA, Maria. Villa-Lobos: Alma brasileira. Rio de Janeiro: Contraponto: Petrobrás, 2000. Página 48.
153
Idem, página 109.
98
98
Figura II – Apresentação Orfeônica no Estádio do Vasco da Gama
Gustavo Capanema, Getúlio Vargas e Nelson Rockfeller (com a criança)
99
99
Getúlio Vargas se entusiasmava muito com as concentrações organizadas pelo
maestro, sendo o Canto do Pajé sempre executado nas grandes comemorações. Nos
programas dos eventos, como vimos, havia a presença de hinos e músicas nacionais,
elementos folclóricos puros para demonstrar às crianças que a verdadeira arte não deveria
ser confundida com a chamada “música popularesca”, principalmente evitando a
perspectiva mercantilizada e comercial. No caso do Canto do Pajé, Villa-Lobos pretendeu
homenagear o Presidente da República. Temos então em sua letra, de Paula C. Barros:
Oh, manhã de sol
Anhangá fugiu
Anhangá rê rê
Ah, foi você
Quem me fez sonhar
Para chorar a minha terra
Coaracy rê rê
Anhangá fugiu
Oh, Tupã deus do Brasil
Que o céu enche de sol
De estrelas de luar e de esperança
Oh, Tupã tira de mim esta saudade
Ah, Anhangá me fez
Sonhar com a terra que perdi
Oh, manhã de sol
Anhangá fugiu
Canta a voz do rio
Canta a voz do mar
Tudo a sonhar
O céu e o mar
O campo, as flores
Oh, manhã de sol
Anhangá fugiu
O Tupã deus do Brasil, Presidente Getúlio Vargas, é homenageado representando a
esperança da construção do futuro. O sonho com a terra perdida pode ser resgatado através
da reconstrução do passado proposta pelo projeto ideológico do Estado Novo. A Esperança,
a crença no futuro grandioso representaria as bases de sustentação da formação de uma
100
100
consciência nacional, presentes assim nesta letra. Observamos na música a arte que expõe
as características de um determinado tempo.
Villa-Lobos, segundo Contier
154
, foi o único compositor de grande status
internacional que se envolver em uma causa política e estética de tão grandes proporções.
Marcadas por conotações ufanistas e caráter grandiloqüente, as celebrações de Villa-Lobos
ganhavam um caráter secundário em relação ao discurso proferido, que tinha como
principais características o destaque para o moralismo e a política. A música deveria
inebriar o público, o nacionalismo renasceria nos corações, a comoção nacional seria
colocada em prática.
Países como França, Alemanha, União Soviética, Estados Unidos, Hungria, Brasil,
entre outros, independente das ideologias defendidas naquele contexto, apresentavam
manifestações do canto coral, pois o canto coral sempre representou uma forma de
integração, de exteriorização da coletividade. No entanto, foram nos Estados Totalitários
que o canto coral ganhou mais força, por apresentar uma eficaz ferramenta de
desenvolvimento do sentimento nacionalista. No entanto, qualificar as concentrações
orfeônicas realizadas por Villa-Lobos como totalitaristas é um erro, pois o caso específico
do Brasil deve ser analisado com riqueza de detalhes.
O sucesso das concentrações orfeônicas e a dedicação de Villa-Lobos à função de
representante da SEMA levantou algumas críticas. A aceitação do maestro em relação a
algumas regras do regime surtiu um sentimento de revolta em alguns, como por exemplo,
em Mário de Andrade, que, sendo paulista, não concordava em muitos pontos com o
governo de Getúlio. Na carta escrita a Prudente de Moraes Neto, expõe:
Pru. Talvez seja melhor assim, não falarmos no assunto vivo que interferiu
conosco, a revolução. (...) Sei que, embora estejamos intelectualmente
pertíssimo um do outro, uma diferença irremovível de atitude nos separava
irremediavelmente. (...) Você me pergunta o que penso do Quarteto Brasileiro
número 5 do Vila, e já não me é penoso falar nesse cachorro. É um quarteto bem
Brasil, não tem dúvida, misturada fabulosa de valores e imundícies, de prazeres
reais e promessas que não serão cumpridas. Pouco antes da Revolução de 30, o
Vila Lobos, que aliás, com certa discrição, já lambera o cu do Carlos de
Campos, dedicava um concerto a Júlio Prestes. Nem bem a revolução venceu,
154
CONTIER, Arnaldo Daraya. Passarinhada do Brasil: canto orfeônico, educação e getulismo. SP:
EDUSC, 1998.
101
101
esse indivíduo publicou uma entrevista de insulto aos vencidos, dizendo que
fora revolucionário desde 1500 e até compusera avant-la-lèttre um hino da
revolução que a polícia carioca proibira. Escreveu algumas musiquices
patrióticas, e diariamente, aqui, largava da inocência para ir ilustrar as esporas
com que João Alberto estragou irremediavelmente os tapetes civilizados dos
Campos Elísios [sede do governo de São Paulo]. Bem: o Vila, de amoral
inconsciente que sempre fora, e delicioso, virara canalha com sistema, e nojento.
Mudança tão violenta assim, de contexto moral, havia necessariamente de afetar
a criação; afetou mesmo. A produção musical do Vila baixou de sopetão ao
quase nada, como valor. Compôs uns hinos, uns coros, umas transcrições de
fugas de Bach para celo e piano e umas pecinhas pianísticas, tudo simplesmente
porco. De vez em quando uma linha, uma invenção de efeito, acusava no meio
da porcaria, o gênio despaisado. Aos poucos, essas bunitezas vieram se
amiudando, prova, eu dizia comigo, que o Vila se acostumava aos poucos com a
canalhice consciente. Se acostumou enfim; e desse indivíduo, a quem Deus, em
desespero, de causa neste deserto brasileiro, deu o gênio que tinha que dar pra
algum Brasil no momento, o Quarteto Brasileiro já é fruto maduro. (...) O que
choca mais no Quarteto número 5, é que surgiu um Vila com outra técnica, a
técnica que se aprende, a técnica acadêmica! (...) O equilíbrio é sem exemplo
nas outras obras grandes do Vila: nenhuma hesitação de desenvolvimentos,
nenhuma comprideza indiscreta, escolha quase sempre acertada de elementos
(pois que só a frase de conclusão do terceiro tempo me parece contestável).
Apenas se verificará que houve um capachismo servil na pressurosa e indiscreta
escolha e abundância de temas da rapsódia infantil, no primeiro e quarto tempos.
Houve sim, e isso deriva da “vontade de servir” (por isso que chamei de
capachismo servil...) que o Vila nunca teve e agora tem. Essa vontade de servir a
toda a gente é que faz a imoralidade repulsiva do Quarteto – e que em Ronald,
no Guilherme, sempre repugnou a você. O Vila se escondeu. Se disfarçou. Quer
conciliar as coisas, e, pois que se tornou um sistematizado lambedor de cus,
lambe os ditos do acadêmico criticante como do burguês ouvinte, do modernista
embandeirado como do passadista louco pra se rever no novo. É um Quarteto
gostoso. E o Vila não foi “gostoso”. Os instrumentos estão tratados com um
carinho que jamais, estragador de instrumentos e vozes, o Vila teve. Estão bem
nas suas tessituras propícias, bem nos seus efeitos brilhantes ou amáveis. Pra
soarem bem, como ordena a academia, e agrada a todos, artistas verdadeiros
como o público boçal.
155
Até o momento entendemos que a relação entre Villa-Lobos e o poder constituído se
deu de maneira harmônica e serena. O Estado, através de investimentos e apoio, concede ao
maestro a possibilidade de colocar em prática o seu projeto. O projeto do maestro,
155
Apud GUÉRIOS, Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação. Rio de Janeiro,
Editora FGV, 2003. Páginas 196 e 197.
102
102
desenvolvido a partir da linguagem musical, atendia às necessidades do discurso estado-
novista, recebendo assim o apoio incondicional.
Para entender os custos relacionadas ao patrocínio dos grandes eventos,
Chernãvsky
156
realizou uma análise detalhada dos gastos relacionados às concentrações.
Através da análise de documentos, verifica-se que a realização das concentrações exigia
uma grande liberação de recursos por parte do Estado. Para a realização de dois concertos
em 1936, Villa-Lobos montou uma planilha de custos que deveria ser enviada ao Ministério
da Educação, que demonstra que apenas com a contratação do Orfeão de Professores o
gasto seria de 18:000$000 (dezoito contos de réis), os professores contratados para auxiliar
o Orfeão e a Orquestra custariam aos cofres públicos 16:500$000 (dezesseis contos e
quinhentos mil réis), sem levar em consideração os honorários de Villa-Lobos que, como
regente chefe, receberia 5:000$000 (cinco contos de réis). Depois das negociações com o
Ministro Gustavo Capanema, o valor total dos gastos seria diminuído para 94:000$000
(noventa e quatro contos de réis), inferior ao anterior de 127:000$000 (cento e vinte e sete
contos de réis). Ainda que o valor total dos gastos tenha sido diminuído, os gastos com os
honorários do maestro permaneceria o mesmo.
Para a Semana da Pátria de 1940 e a solenidade da Hora da Independência de 1940,
que foram demonstradas com detalhes anteriormente, foram gastos quase oitocentos contos
de réis, organizados da seguinte maneira:
Importância gasta diretamente pelo Departamento Nacional de Educação
91:411$800
Importância a ser paga pela Companhia de Carris, Luz e Força do Rio de Janeiro
(Light) – 324:411$000
Importância a ser paga ao Maestro Villa-Lobos – 188:500$000
Importância entregue a diversos funcionários do Ministério e da Prefeitura do
Distrito Federal – 109:458$700
Importância a ser entregue ao Serviço de Obras – 85:259$700
Total – 799:041$200
Analisando os dados, percebemos que os gastos referente às concentrações de 1940
foram bem maiores do que dos eventos nos dez anos posteriores, significando isso que os
156
CHERNÃVSKY, Anália. Um maestro no gabinete: música e política no tempo de Villa-Lobos. Campinas,
SP, 2003.
103
103
eventos foram se tornando cada vez maiores, mais expressivos, necessitando da
participação de mais pessoas para atuarem nas apresentações bem como para a organização.
Nesse contexto, o representante do Gabinete Militar da Presidência da República, General
Pinto, enviou uma correspondência ao Presidente Getúlio demonstrando a sua insatisfação
com os gastos excessivos nos grandes eventos, além do superfaturamento de alguns
gastos
157
.
O pagamento de cento e oitenta e oito contos e quinhentos mil réis destinado a
Villa-Lobos não foi realizado imediatamente. Em 9 de Outubro de 1941, foi instituído o
Decreto-Lei N. 3.696, que visava cobrir a despesa do maestro, assim como cobrir outros
gastos referentes às festas da Semana da Pátria.
Em 1941, o Ministério da Educação e Saúde buscou organizar melhor as questões
referentes aos gastos destinados a eventos do 7 de setembro, abrindo assim um crédito
especial de 800:000$000 (oitocentos contos de réis). A título de comparação, para termos
uma referência dessa quantia e a importância que o Estado atribuía a esses eventos, no
mesmo ano o Ministério da Educação e Saúde concedia 202:000$0 (duzentos e dois contos
de réis ) para o Serviço Nacional de Lepra.
Mesmo com as despesas tão elevadas, o Estado continuou financiando a realização
das concentrações orfeônicas, porque elas representavam um marco simbólico muito
importante para a legitimação do poder. Muitos símbolos nacionais, importantes naquele
momento para a legitimação do Estado, eram materializados nas concentrações. Segundo
Contier
158
,
agora, dada a própria organização desses espetáculos, além de puramente se
exaltarem o trabalho e a disciplina como sustentáculo do Brasil Novo,
transmitia-se às crianças, aos professores e aos militares o exemplo vivo de um
trabalho fruto de muita disciplina...Pode-se verificar que o programa a ser
apresentado era de forte conteúdo militar, religioso e político. A música, tida
como uma arte coletiva, procurava transmitir, através de diversos tipos de
efeitos sonoros, um determinado retrato do Brasil a todos os participantes e
espectadores.
157
Ibidem. Página 113.
158
CONTIER, Arnaldo Daraya. Passarinhada do Brasil : canto orfeônico, educação e getulismo. SP:
EDUSC, 1998. Página 69.
104
104
Se por um lado, o Estado se beneficiava com os símbolos expostos e trabalhados nas
grandes concentrações, o maestro também se beneficiava nesse processo. Na década de
1920 o maestro não era tão conhecido no Brasil, sendo que a partir da realização das
concentrações orfeônicas estabelecidas em 1930 sua popularidade aumentou, se tornou
mais conhecido. No entanto, não podemos pensar essas questão de maneira maniqueísta,
estabelecendo que Villa-Lobos só desenvolveu seus projetos por desejar prestígio e fama.
Também seria errôneo pensar que o compositor desenvolveu seus projetos
pensando essencialmente nas questões financeiras, pois as relações humanas são muito
mais abrangentes, não se baseiam somente em uma lógica material. Retornando à
perspectiva de projeto, se ele é formado a partir de conceitos e experiências que levam em
consideração o outro, tornando-se um instrumento de negociação da realidade, expressando
sentimentos, objetivos e interesses em relação ao mundo, não pode ser limitado a uma
esfera específica. Se em um projeto existe a negociação da realidade em interação com os
outros, há uma troca entre diferentes agentes, uma negociação. As motivações serão
múltiplas, embora um fator específico seja ressaltado.
O grande interesse do maestro ao desenvolver o seu projeto, era ensinar música às
crianças nas escolas. Embora fosse bem remunerado pelo Estado, não podemos afirmar que
o salário, o dinheiro, movia o seu trabalho. Embora Villa-Lobos, ao dirigir aos seus
projetos expressasse uma postura política, uma vez que todas as escolhas de um cidadão
representam um ato político, a preocupação principal dela era a música, o ensino, a
educação. Uma vez que o Estado lhe ofereceu as ferramentas para desenvolver o seu
trabalho, em uma troca simbólica, lhe rendeu homenagens também, porém, não só em
harmonias viveram os dois agentes.
Através do Decreto N. 6,215 de 21 de Maio de 1938, a SEMA foi extinta. Além
disso, segundo Chernãvsky
159
, se estabeleceram leis reguladoras para o perfeito
funcionamento do Departamento de Música da Faculdade de Educação do Distrito Federal.
O objetivo era direcionar o ensino de canto orfeônico e música em todas as instituições
subordinadas à Secretaria Geral de Educação e Cultura. Nesse contexto, Villa-Lobos
passou a se dedicar ao projeto de ensino a nível nacional. Através da sua experiência,
159
CHERNÃVSKY, Anália. Um maestro no gabinete: música e política no tempo de Villa-Lobos. Campinas,
SP, 2003. P. 119
105
105
poderia agora coordenar um projeto ainda maior, voltado para a esfera nacional,
abrangendo todas as instituições de ensino.
No ano de 1939, Villa-Lobos apresentou a Gustavo Capanema um plano para
estruturar o ensino da música no sentido cívico. Tal plano previa a criação de um
Departamento Nacional de Música, Educação e Cultura Musical, subordinado diretamente
ao Ministério d a Educação e Saúde. Composto por uma Escola Nacional de Música, Escola
de Estudos Superiores, Escola de Professores e uma Inspetoria Geral e Inspetorias
Regionais de Canto Orfeônico. As inspetorias seriam responsáveis por garantir a execução
correta dos hinos oficiais, a aplicação do canto orfeônico nas escolas, valorizar o folclore,
entre outras coisas. Porém, inicialmente o projeto apresentado por Villa não foi aprovado.
Somente em 1941, no contexto de reformas do ensino secundário, o Ministro
Gustavo Capanema organizou uma comiso para estabelecer reformas também na esfera
do ensino musical, sendo o maestro Villa-Lobos o principal idealizador dessa comissão. Foi
criado então o Departamento Nacional de Música e Teatro, que apresentava três divisões.
A primeira divisão, destinada ao ensino de música e teatro, era composta por
Conservatório Nacional de Música, Conservatório Nacional de Canto Orfeônico e
Conservatório Nacional de Teatro. Teria como funções fiscalizar todos os estabelecimentos
estaduais, municipais e particulares de música, canto orfeônico e teatro; controlar a prática
do canto orfeônico e teatro nos estabelecimentos de ensino secundário, normal e
profissional e controlar a repartição estadual destinada à direção do Canto Orfeônico e
Teatro nas escolas primárias.
A segunda divisão, destinada ao Serviço Nacional de Música, era composta por
Orquestra Nacional, Banda Nacional, tendo como função o amparo e a orientação das
Sociedades Artísticas e dos Conjuntos Musicais (coros, bandas e orquestras); o amparo
pessoal dos artistas; o controle artístico dos concertos, filmagens, gravações e rádio e a
prestação do serviço de gravação e impressão.
Por último, a terceira divisão, destinada ao Serviço Nacional de Teatro, era
composta pelo Teatro Nacional e teria como funções o amparo às Companhias Nacionais
de Teatro, de iniciativa particular e o controle do Teatro de Rádio
160
. Utilizando então as
160
CPDOC – GC g 1937.02.13 – rolo 46 – foto 330 a 353.
106
106
sugestões de Villa-Lobos, O Ministro Gustavo Capanema estabeleceu o decreto-lei que
criava o Departamento Nacional de Música e Teatro.
Em 1942, foi criado o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, instituição que
teria como função trabalhar a formação de professores de canto orfeônico em escolas
primárias e secundárias, formular novas diretrizes técnicas para implantar o ensino do canto
orfeônico em todo o Brasil e desenvolver pesquisas com o objetivo de colher material
folclórico, preparar discos com as músicas que seriam cantadas pelas crianças nas escolas.
As atividades mencionadas então foram supervisionadas por Villa-Lobos, nomeado
primeiro Diretor do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico.
O curso do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico formava em três anos
Professores de Canto Orfeônico, e para o aluno ser aceito, era necessário ser aprovado no
exame do vestibular com aprovação nas disciplinas Teoria Musical e Harmonia do
Conservatório Nacional de Música. Além disso, poderiam ingressar no curso alunos que
tivessem concluído o quinto ano do curso secundário.
Ao ingressar no curso de Formação de Professores Especializados em Música e
Canto Orfeônico, os alunos cumpriam um programa que contava com doze disciplinas:
Solfejo, Ditado e Ritmo (com duração de dois anos), Teoria da Música (também com
duração de dois anos), Prática de conjunto (com duração de 3 anos), História da Música
(com duração de dois anos), Estudo Analítico Elementar (com duração de 1 ano),
Elementos de Contraponto, Morfologia e Composição (duração de dois anos), Fisiologia da
Voz e técnica Vocal (duração de um ano), Folclore (com duração de dois anos), Pedagogia
Escolar (com duração de dois anos), Biologia e Psicologia Educacional (duração de um
ano) e Terapêutica musical educacional (também com a duração de um ano)
161
.
Três anos após a institucionalização do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico,
em 1945, foi criado também um curso de Formação de Músico-Artífice. O objetivo era
formar pessoas especializadas em copiar, gravar e imprimir músicas no Conservatório.
Nesse curso, os alunos estudavam disciplinas voltadas para o aprendizado de cópias de
músicas (Cópia em papel liso e com pentagrama, cópia em papel vegetal e execução de
matrizes para mimeógrafo), gravura musical (preparação de chapas de chumbo para
161
Ver: VILLA-LOBOS, Heitor. Educação musical. Boletim Latino Americano de Música. Volume 6 n.4,
1946.
107
107
gravação), tiragem de provas de chapas e gravação), impressão musical (impressão em
mimeógrafo, impressão em máquina rotativa, reprodução de cópias heliográficas e
reprodução de cópia em relatório).
Todas as modificações e decretos estabelecidos pelo Ministério da Educação
relacionados à esfera da música, contaram com a atuação direta do maestro Villa-Lobos.
Sendo a principal referência na esfera da música, na organização do Canto Orfeônico, o
maestro atuava diretamente na formulação de diretrizes que se aplicariam à Educação nessa
esfera específica, contando sempre com a colaboração do Ministro Gustavo Capanema.
Segundo Chernãvsky
162
, como diretor do Conservatório Nacional do Canto Orfeônico,
“tornou-se também responsável por transmitir ao exterior as diretrizes da Educação musical
aplicadas no Brasil”. Dessa forma, Villa-Lobos também se tornava uma referência
internacional, mostrando em outros países o seu programa de ensino.
Após o encerramento das atividades da SEMA, à frente do Conservatório Nacional
do Canto Orfeônico, Villa-Lobos, o músico educador, escreve um panfleto destinado ao
convite de pessoas para que se inscrevam no curso
163
:
Convite à civilização
(Para aquele que ler e transmitir aos que não sabem)
- não poderá compreender o que significa numa civilização, a liberdade da vida
- encontrará as menores oportunidades para vencer na luta de sua própria
subsistência
- sempre será humilhado perante os letrados
- não poderá raciocinar com consciência sobre sua atuação na vida política,
social, religiosa, econômica e artística de sua pátria
- será sempre ludibriado e atraído para o mal
- viverá às cegas no progresso da humanidade
- não poderá ver, nem admirar as escrituras litúrgicas que nos trazem através dos
séculos os bons ensinamentos
- não poderá decentemente gravar num papel as suas próprias idéias
- nunca será um independente da sua personalidade
É fácil aprender a ler, escrever e a contar,
Depende unicamente da boa vontade
Em um ano apenas estará iniciado a compreender todos os itens acima
mencionados.
162
Ibidem. Página 129.
163
Arquivo do Museu Villa-Lobos. HVL 040211 (Pasta 66)
108
108
O Conservatório Nacional de Canto Orfeônico do Ministério de Educação e
Saúde abre as portas, gratuitamente, aos que querem aprender a ler, escrever,
contar e cantar o Hino Nacional, em um ano.
Horário dos Cursos: Manhã – 8 às 10:00 hs
Tarde – 14 às 16:00 hs
Noite – 18 às 20:00 hs
2. O embate entre Villa-Lobos e o Estado
Segundo Anália Chernãvski
164
, existiram duas questões principais que propiciaram
embates entre o maestro Villa-Lobos e o Estado. A primeira estaria relacionada a uma nova
padronização feita do Hino Nacional no período do Estado Novo e a segunda, relacionada
uma peça chamada “Dança da Terra”, que Villa-Lobos incluiu no programa das
comemorações direcionadas ao Dia da Pátria, em 1943
A questão da padronização do Hino Nacional durou anos, desgastou vários agentes
envolvidos na questão com longo embates. Através do Decreto-Lei N. 259, de 1936, o
Presidente Getúlio Vargas estabelecia a obrigatoriedade do canto do Hino Nacional nas
escolas brasileiras. Em meio a um contexto onde se trabalhavam os símbolos nacionais, a
padronização do canto do Hino Nacional se mostrava como algo urgente, de forte
relevância, sendo necessário também cantá-lo nas escolas a fim de reforçar os símbolos do
regime.
O decreto estabelecia que o canto do Hino Nacional deveria seguir o padrão para
orquestra de Leopoldo Miguez, para bandas do 2º. Tenente Antônio Pinto Júnior do Corpo
de Bombeiros do Distrito Federal, e para canto de Alberto Nepomuceno. Inserido nos
principais debates concernentes à música, ligado ao Estado, Villa-Lobos propôs então à
Gustavo Capanema que se criasse uma comissão para trabalhar as questões da padronização
do hino. Em análise sobre as questões que envolvem o assunto, o maestro demonstrará a
necessidade de trabalhar na formação de profissionais especializados no canto orfeônico
para atuar nas escolas, permitindo assim a perfeita execução do hino.
164
CHERNÃVSKY, Anália. Um maestro no gabinete: música e política no tempo de Villa-Lobos. Campinas,
SP, 2003.
109
109
Villa-Lobos sugeriu alguns nomes para a comissão, porém o Ministério da
Educação só manteve poucos daqueles indicados pelo maestro. Além disso, especialistas do
INM (Instituto Nacional de Música) interferiram na questão, acusando a comissão
organizada e direcionada pos Villa-Lobos de se mostrar incompetente para resolver a
padronização do Hino. Luís Cândido Figueiredo, professor de violoncelo do Instituto
Benjamim Constant e oficial do Exército, enviou uma carta ao Ministro Gustavo Capanema
relatando que, segundo o seu julgamento, a edição do Hino oficial de autoria do maestro
Villa-Lobos era de péssima qualidade. Enviando ao Ministro várias cartas anônimas, Luís
Cândido acusava Villa-Lobos de superfaturar os eventos realizados, formular biografias
inventadas e fornecer informações mentirosas ao jornais brasileiros a cerca das suas
participações em congressos e festivais no exterior. Segundo Chernãvsky
165
,
“Não conhecemos a data exata em que foi enviada essa carta, mas podemos
perceber pelo contexto, que estas informações devem haver chegado às mãos de
Capanema entre a segunda metade do ano de 1937 e a primeira de 1938. Os
reais motivos que levaram Luís Cândido de Figueiredo a apresentar tão graves
denúncias associadas ao nome de Villa-Lobos não são suficientemente claros.
Mas, este professor aposentado de Violoncelo parece haver sido o principal
opositor ao maestro, principalmente durante os anos nos quais a polêmica em
torno de fixação e edição do Hino Nacional e demais hinos cívicos instaurou-se
na capital da República, envolvendo diversos setores da sociedade civil”.
Somente em 1939 a questão da padronização do Hino ganhou novo status, pois o
estreitamento de relação entre o poder constituído pelo Estado Novo com o setor militar
permitiu uma interferência deste último na questão. Um novo grupo de técnicos militares
foi formado para debater também a questão. Os militares defendiam que o Hino deveria ser
executado em si bemol maior, formatação mais voltada para bandas e fanfarras militares,
sendo mais fácil de realizar a afinação dos instrumentos. Porém, o projeto aprovado pelo
governo estabelecia a tonalidade fá maior, cujo objetivo priorizava o canto.
Ainda em 1939 foi formada uma nova comissão para resolver definitivamente a
questão da padronização do hino, contando com a presença de Villa-Lobos, o professor
Andrade Muricy, Olegário Mariano e representantes do Ministério da Guerra. Nessa
165
CHERNÃVSKY, Anália. Um maestro no gabinete: música e política no tempo de Villa-Lobos. Campinas,
SP, 2003. Página 156
110
110
comissão, os militares representavam a maioria, sendo estabelecida uma proposta que
agradasse ambos os lados. As principais autoridades do governo, incluindo o Presidente
Getúlio Vargas, receberam inúmeras sugestões de modificações da letra do Hino Nacional,
porém a letra original foi mantida.
No final de 1939 foi organizada uma nova comissão interministerial formada pelo
Ministério da Educação, Ministério da Marinha e da Ministério da Guerra e da Justiça. O
objetivo era estudar a forma e a representação da Bandeira Nacional. O Ministro Gustavo
Capanema, propôs que se realizassem estudos não apenas sobre a bandeira, mas também
direcionados a todos os símbolos nacionais. Como as deliberações da comissão de 1939
ainda não haviam sido estabelecidas como Lei, algumas modificações foram
implementadas por essa Comissão Ministerial, embora o objetivo fosse manter os mesmos
padrões estabelecidos pela comissão em que Villa-Lobos atuara.
A última comissão formada possuía características diferentes. A começar, a maioria
de seus integrantes era a de militares, contando também com a presença de integrantes do
integralismo. Além disso, o maestro Villa-Lobos estava ausente dessa comissão. A ausência
do compositor permitiu o estabelecimento de que seria “vedada a execução de quaisquer
arranjos vocais do Hino Nacional, a não ser o de Alberto Nepomuceno, ...; igualmente não
será permitida a execução de arranjos artísticos instrumentais do Hino Nacional que não
sejam autorizados pelo Ministério da Educação e Saúde, ouvida a Escola Nacional de
Música”
166
. O artigo 4 do Decreto-Lei também determinava que as duas partes do Hino
deveriam ser cantadas em todas as solenidades, a parte musical tocada sem repetição em
execuções instrumentais simples.
A determinação mencionada ia totalmente contra as expectativas do maestro, que
primava a valorização artística. Além disso, Villa-Lobos defendia a necessidade de abreviar
o canto do Hino em determinadas solenidades, especialmente as que contavam com a
participação de jovens e crianças. Na prática, isso significava que a execução do seu arranjo
a duas vozes para o Hino Nacional se tornou ilegal e seria passível de multa, se executado,
de acordo com o estabelecimento do projeto.
166
Capítulo IV do Decreto-Lei número 4545 de 31 de julho de 1942, voltado para as proibições em relação à
execução do Hino Nacional.
111
111
Apesar desse mal estar estabelecido nessa questão, Villa-Lobos participou de outras
comissões voltadas para discutir os símbolos nacionais, hinos cívicos, continuou sendo a
principal referência na questão das concentrações orfeônicas, na organização dos eventos,
mesmo com o fim da SEMA. Villa-Lobos recebeu amplamente o apoio do Ministro
Gustavo Capanema, o embate gerado em relação ao Hino Nacional estava relacionado à
atuação dos militares na Comissão estabelecida em tempos de Estado Novo, onde tal setor
ganhava força por questão de interesse nacional.
Além do debate sobre a padronização da execução do Hino Nacional, Heitor Villa-
Lobos enfrentou outra dificuldade em sua relação com o Estado no que Chernãvski
convencionou como “Questão Dança da Terra”. A questão surgiu em meados de 1943,
quando Villa-Lobos começava a realizar os preparativos para a comemoração da Semana
da Pátria e da “Hora da Independência”, evento que sempre contava com a presença do
Presidente Getúlio Vargas.
O jornal A notícia de 30 de julho de 1943 criticava a canção “Dança da Terra” que
seria apresentada por crianças através da representação em uma peça. Os pais das crianças
estariam reclamando do conteúdo da peça, que abordava, segundo o jornal, uma “matança
coletiva, na localidade de Pedra Bonita, província de Pernambuco, por volta de 1836, onde
dezenas de habitantes foram sacrificados às custas de uma crença pautada por um
sebastianismo fanático estimulado por cangaceiros mercenários”. O conteúdo da peça não
era aceito por grande parte da sociedade porque o movimento do cangaço era visto como
“inimigo da nação”, o artigo também criticava a existência de algumas expressões
indígenas na canção, uma vez que os índios não participaram do episódio mencionado.
O Ministro Gustavo Capanema recebeu correspondências de pais de alunos
indignados com a “irresponsabilidade” e a falta de critério do maestro Villa-Lobos ao
inserir esse tipo de peça na comemoração da Semana da Pátria. Além das cartas de pais,
Capanema recebeu correspondências de alunos que desejavam a proibição do bailado
apresentado na peça na defesa dos postulados morais que deviam orientar a juventude, já
que o Ministro sempre demonstrara a preocupação com a juventude brasileira. Todos
exigiam que a peça “Dança da Terra” fosse retirada do programa das comemorações.
Os temas ameríndios sempre estiveram presentes na obra do maestro, sendo comum
o seu interesse pela utilização do material folclórico. Como já foi afirmado anteriormente,
112
112
Villa-Lobos entendia que o folclore era capaz de atrair as crianças por conta da sua
linguagem fácil, a questão do cotidiano cultural aplicado na construção de determinada
identidade. Em relação à polêmica criada em torno da “Dança da Terra”, Villa-Lobos não
estava interessado em seus aspectos educativos nem na coerência histórica da apresentação,
sendo o seu principal foco direcionado à questão estética (Ver fotos III e IV – Concentração
Orfeônica em 1943).
Em meio ao contexto de enfraquecimento do Estado Novo, do repúdio à violência
estabelecida pelo nazi-fascismo, uma peça que expõe ação violenta certamente receberá o
repúdio da sociedade, mas as idéias de Villa-Lobos estavam muito distantes de tudo isso.
No entanto, consciente da grande polêmica que envolveu a questão, o maestro, utilizando-
se da sua autoridade e autonomia, adotou as modificações necessárias para resolvê-la.
Assim, incorporou no programa da grande solenidade, logo após a apresentação do bailado
“Dança da Terra”, um canto religioso cujo texto era de Manuel Bandeira, intitulado
“Invocação em Defesa da Pátria”. O canto evocava elementos importantes naquele período
como o pedido pela paz, a proteção de Deus, o pedido para que a guerra se mantivesse
afastada do Brasil.
Avaliando os dois momentos tensos de relação entre Villa-Lobos e o Estado,
percebemos que o maestro, em pouco mais de dez de anos de serviço público, sempre se
destacou com grande prestígio em meio às organizações orfeônicas e soube implementar os
seus projetos de acordo com o que realmente desejava. Em nenhum momento foi
encontrado, ao longo da pesquisa, um documento que mostrasse o Estado apontando de
maneira direta e autoritária o que Villa-Lobos deveria fazer o não.
Apesar dos “embates” que envolveram as questões referentes à padronização do
Hino Nacional, onde nem tudo que fora aprovado estava de acordo com as idéias de Villa-
Lobos, ele continuou atuando em outras comissões que avaliaram outros elementos das
questões nacionais. No caso “Dança da Terra”, através da autonomia concedida para que o
maestro trabalhasse e formulasse o programa das comemorações da maneira que quisesse,
percebemos também a capacidade de negociação, de reformulação, um movimento
contínuo de agente da história que não recebe os elementos de um contexto de maneira
passiva.
113
113
Figura III – Concentração Orfeônica realizada em 07/09/1943 no Estádio do Vasco da Gama, com 44
mil escolares
114
114
Figura IV – Apresentação do bailado “Dança da Terra”, que envolveu tanta polêmica com o
nome do maestro Villa-Lobos. Exibição em 07/09/1943.
115
115
3. O nacionalismo de Villa-Lobos
A partir do século XVIII, a idéia de Nação se fez presente nos grandes centros de
referências políticas mundiais, principalmente no mundo ocidental. Nesse contexto,
segundo Mazzeu
167
, “os conteúdos de ordem política e cultural foram sendo acrescentados
aos conteúdos de ordem econômica e cientificista”. Como a França sempre foi o grande
centro de referência da intelectualidade brasileira, o pensamento europeu, inclusive o que
estava relacionado ao nacionalismo, influenciara os nossos artistas e intelectuais.
Ao longo do percurso da República brasileira, verificamos que sempre diferentes
grupos e perspectivas vão buscar “construir a idéia de Nação”. De acordo com essa
construção, determinadas perspectivas serão legitimadas através da utilização de vários
mecanismos diferentes e marcadas pelo controle e pelo apoio a projetos interessantes.
Contudo, a análise dessa questão deve ser minuciosa, pois existem inúmeros tipos de
nacionalismos. No caso do Estado Novo, por exemplo, o tipo de nacionalismo que o Estado
pretendia construir e consolidar na sociedade pode ter sido pautado nas diferentes
concepções nacionalistas dos intelectuais que colaboraram com o Estado, gerando um outro
tipo de nacionalismo na sociedade. Portanto, esse é um assunto complexo, que deve ser
pensado em detalhes.
As concentrações orfeônicas organizadas pelo maestro Villa-Lobos, em diferentes
contextos em lugares, sempre foram marcadas pelo conteúdo da exaltação nacional. O
nacionalismo estava presente nas obras de Villa-Lobos e em seus projetos, uma vez que
nação é uma construção simbólica, real e imaginária.Para Caldeira Filho, o nacionalismo de
Villa-Lobos era complexo, representado de maneira bem peculiar em sua obra, sendo difícil
a tarefa de defini-lo:
É tão evidente o nacionalismo de Villa-Lobos que se torna difícil explicá-lo,
demonstrá-lo; é tão natural e espontâneo a ambientação brasileira da sua
produção, adere ela tão intimamente à substância artística que se torna
impossível destacá-la e estudá-la em separado. Já nos habituamos a senti-lo
assim e admira que algum brasileiro possa senti-lo diferentemente.
167
MAZZEU, Renato. Heitor Villa-Lobos: Questão nacional e cultura brasileira. Campinas, SP: 2002.
Página 19
116
116
É nacional quanto à tonalidade geográfica da sua pátria, a começar pela
imensidade amazônica várias vezes presente em sua obra. É nacional quanto à
tonalidade étnica pela inspiração ameríndia e africana que tantas vezes o levou a
grandes criações, tratadas segundo a herança cultural do continente europeu. É
nacional ainda quanto à totalidade social, pois que na sua música cantam todos
os brasileiros, e crianças das escolas, o matuto sertanejo, o malandro
carnavalesco, o índio pagão e o jesuíta catequisador. E é principalmente uma
totalidade cultural porque aquilo que ele manipula sonoramente são justamente
os aspectos músico-culturais das raças, regiões e grupos sociais, tal o “Noneto”,
por ele considerado uma síntese do Brasil sonoro. Pode-se mesmo dizer que é
nacional inclusive quanto à totalidade histórica, com os exemplos que são “A
descoberta do Brasil” e “Sume Pater Patrium”. E isso sem falar de outras
“totalidades” referentes aos gêneros, às formas, à veiculação instrumental, a
refletir a variedade caleidoscópica que é o Brasil geográfico, humano e sonoro.
O papel histórico de Villa-Lobos foi tornar possível uma visão de conjunto
dessa imensidade que é a música brasileira, tão difícil de ser apanhada no
individualismo dos artistas e na heterogeneidade dos elementos materiais e
formais nela implicados.(...) Uma música que deriva do chão do Brasil, da sua
natureza, do homem que a habita, do homem que o levou à grandeza de hoje,
sem esquecer os plasmadores históricos da nacionalidade – o ibérico, o
ameríndio e o africano – presente em sua obra. É uma música que deriva
também da cultura brasileira, que lhe reflete a evolução e a caracterização, uma
vez que o nacionalismo consistente na citação e depois na inspiração folclórica
foi largamente superado pelo “nacional”, ou seja, pela criação de quem sente
como brasileiro, espontaneamente, naturalmente, e só em linguagem musical
própria pode exprimir-se. Por isso é também uma música que deriva de
autêntica fonte criadora, de um artista profundamente absorvido pela realidade
que o cerca e totalmente desinteressado de manipulações mais ou menos
engenhosas em que se comprazem os compositores menores.
O nacionalismo de Villa-Lobos é difícil de ser definido porque envolve questões
relacionadas à arte, à sua atuação como funcionário público e à sua posição enquanto
cidadão. Várias foram as propostas desenvolvidas por estudiosos que relacionam a
concepção nacional de Villa-Lobos e outros intelectuais que atuaram no período à
obediência política em relação ao Estado
168
, mas a proposta nacional do maestro se mostra
de maneira bem abrangente.
A sua dedicação ao desenvolvimento de obras folclóricas a serviço do melhor
desempenho no ensino do canto orfeônico representa uma forma autônoma de atuação, uma
vez que dentro da própria lógica das organizações orfeônicas, a questão da padronização do
168
Ver: MICELLI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil: 1920-1945. São Paulo, Difel, 1979.
117
117
Hino Nacional para exibições e na questão “Dança da Terra” tivemos embates entre o
maestro e a posição do Estado.
De maneira alguma o civismo pretendido por Villa-Lobos estaria relacionado ao
patriotismo nazista, como foi acusado em tantas vezes. Segundo Contier
169
, o maestro
enxergava na Revolução, em sentido geral, um fator de purificação e renovação da
sociedade. “Exalta, inclusive, a Revolução Russa de 1917, que havia revelado novos
artistas, amparando-os, e que, além disso, transformou a arte num fator revolucionário”.
Villa admirava todos que apoiavam a cultura e a música.
Em entrevista ao Jornal do Comércio, Villa-Lobos afirma a necessidade de se
universalizar a arte e explica que existe uma grande diferença entre um nacionalista em
“patrioteiro”. Segundo o maestro, “a distinção é importantíssima. Patriotismo em música e
concentração no mesmo é algo muito perigoso. Assim, não se pode produzir grande música
– ao invés tereis propaganda
170
O projeto educacional de Heitor Villa-Lobos foi posto em prática graças ao
patrocínio do Estado, que no contexto realizou diversas políticas educacionais, com
destaque principalmente para o Ministério de Gustavo Capanema. A partir da década de
1930, como já fora mencionado anteriormente, começaram a ser realizadas as
concentrações orfeônicas, preconizadas como rituais comemorativos de forma estratégica, a
favor da construção de uma cultura política pretendida e direcionada pelo Estado.
As concentrações orfeônicas demonstravam um forte cunho nacionalista em sua
forma, e por isso mesmo, o músico Heitor Villa-Lobos foi muitas vezes acusado de fascista,
marionete do “Estado Novo”. No entanto, ao analisarmos a trajetória de Villa-Lobos,
percebemos um grande empenho na construção de um projeto musical voltado para a sua
grande paixão: a música. O sentimento de amor pelo Brasil, em certo sentido, já estava
presente na obra de Villa-Lobos, já na década de 1920, quando na busca pela inovação, o
músico sofreu severas críticas por expressar as paisagens do Brasil na sua música.
A necessidade de realizar o seu projeto, de certa forma, encontrava-se no forte amor
que sentia por sua terra. Villa entendia que a música era universal, mas características da
sua terra poderiam ser retratadas em sua obra. Seria um grande equívoco analisar o projeto
169
CONTIER, Arnaldo Daraya. Passarinhada do Brasil : canto orfeônico, educação e getulismo. SP: EDUSC,
1998. Página 25
170
Jornal do Comércio de 25 de fevereiro de 1945.
118
118
educacional de Villa-Lobos sem levar em consideração a sua obra, até porque muitas de
suas obras eram apresentadas nos eventos. Villa-Lobos não enxergava a nação como raça
ou grupos etnográficos, embora ressaltasse a diversidade racial presente na composição da
sociedade brasileira. Tal diversidade, ao longo dos anos, foi trabalhada pelo maestro a fim
de demonstrar uma nova perspectiva cultural.
Villa-Lobos, ainda que inconscientemente, compartilha da concepção de Renan
171
de que a raça é algo que se faz e se desfaz. O seu projeto musical e a sua obra retratam
diretamente a diversidade presente no Brasil. Portanto, se a forma das concentrações
orfeônicas se assemelham a rituais de caráter fascista, como foi acusado tantas vezes, a
concepção de raça e nação defendidas por Villa-Lobos não se assemelha em nada com a
mentalidade fascista. A concepção de “nacional” para Villa-Lobos é bastante abrangente.
Segundo o maestro, em entrevista ao jornal A manhã
172
,
“A música é universal e o verdadeiro criador sempre universalizou o seu
pensamento. Uma música que não representa o país que dela emana é
demagógica, porque exaltada. Se ela não se projeta para fora, de modo a
colocar-se no local geométrico onde se encontram todas as produções artísticas,
importantes, sejam quais forem suas origens, não passará de uma arte
nacionalista, isto é de uma medíocre “à moda de”... este ou aquele país. É
preciso, no entanto, evitar uma confusão que se pode dar: o povo continua a ser
a eterna fonte de inspiração. É o motor que põe em movimento o pensamento
criador. Essa fonte de inspiração não pode ser senão universal, pois todos os
povos da Terra têm entre si um ponto comum de afinidade: “o primitivismo”. E
depois, é necessário não esquecer que a música constitui uma das primeiras
formas que hajam servido à expressão do sentimento humano. Todo homem,
mesmo o mais selvagem, o mais inculto, traz consigo um desejo de Liberdade
muito além do solfejo de nossos Conservatórios!”.
Ainda segundo Renan, a comunhão de interesses é um poderoso laço entre os
homens. Destacamos então o simbolismo das concentrações orfeônicas, pois elas
representavam a nação unida, cantando em conjunto, rumo à modernidade pretendida
pelo projeto estatal, que mesmo buscando um outro sentido de nacionalismo, utilizou-se
do nacionalismo de Villa-Lobos para legitimar e dar sentido ao projeto político
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RENAN, Ernest. O que é uma nação.In: ROUANET, Maria Helena (org.). Nacionalidade em questão.
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Jornal Correio da manhã, 15 de outubro de 1932.
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estabelecido, que contava com a atuação de diversos intelectuais e artistas de diferentes
concepções políticas e opiniões.
Para Renan
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, “A nação é uma alma, um princípio espiritual. Constituem essa alma,
esse princípio espiritual, duas coisas que para dizer a verdade são uma só. Uma delas é a
posse em comum de um rico legado de lembranças; a outra, o consentimento atual, o
desejo de viver juntos, a vontade de continuar a fazer valer a herança que recebemos
indivisa”. A concepção de nação assinalada por Renan assemelha-se também a de Heitor
Villa-Lobos. Nação é algo mais que uma porção de terra, que uma unidade religiosa, que
um princípio político. A nação é uma união de vontades. E essa união pode ser expressa
através do canto.
A partir da decadência do Estado Novo, Villa-Lobos passou a se dedicar mais à sua
carreira internacional, principalmente nos EUA, onde divulgou a sua música. Compôs para
a orquestra New York Skyline Melody, tendo como inspiração a paisagem de Nova York.
Recusou-se anteriormente de ir aos EUA porque não concordava com a Política da Boa
Vizinhança. Em 1943, Villa recebeu o título de doutor honoris causa, pela Universidade de
Nova York. Posteriormente, recebeu o título de doutor em leis musicais em Londres pelo
Ocidental College. Realizou muitos concertos em Nova York que chegaram a reunir até 10
mil pessoas.
Os anos de vida que Villa teve após a descoberta de sua doença – o câncer – foram
marcados pela depuração artística. Deste período são sete quartetos em corda, as óperas
Yerma, baseada em Garcia Lorca, e A menina das nuvens, os poemas sinfônicos Erosão,
Emperor Jones e Floresta do Amazonas, além das últimas cinco sinfonias que compôs. Só
parou de compor no dia de sua morte: 17 de novembro de 1959. Um dia antes de sua morte,
foi homenageado no cinqüentenário do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, momento de
muita emoção para o músico e para Mindinha, sua segunda mulher.
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RENAN, Ernest. O que é uma nação.In: ROUANET, Maria Helena (org.). Nacionalidade em questão.
EDUERJ. Página 39
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Conclusão
O tempo histórico é um conceito que está associado à ação política e social, a
homens concretos que agem e sofrem as conseqüências de ações, as suas instituições e
organizações. Heitor Villa-Lobos, enquanto músico e educador, adotou uma postura de
agente da história, desenvolvendo o seu projeto de ensino do canto orfeônico nas escolas.
No entanto, por apresentar um trabalho que entrou em consonância com as necessidades do
Estado no período das décadas de 1930 e 1940, foi acusado certas vezes de fascista e de
cooptado pelo Estado.
As concentrações orfeônicas realizadas por Villa-Lobos foram eventos que
buscaram integrar e reunir a nação brasileira. Porém, isso não significa que a sociedade
atuante nos eventos não possuía “consciência política”, impotente diante do poder
ideológico das classes dominantes. Atuando como um sujeito do seu tempo, Villa-Lobos
fez parte de uma geração de intelectuais que buscou o apoio do Estado para a realização dos
seus principais projetos. O maestro, dedicando-se tantos anos à questão do ensino do canto
orfeônico, não pode ser pensando como um materialista em busca de realização financeira,
bem como um manipulado pelos ditames da política.
A experiência temporal dos indivíduos manifesta-se através da linguagem, seja ela
escrita, artística ou musical. No caso específico de Villa-Lobos, a sua experiência temporal
foi marcada pela estética monumental, sendo bastante comum o uso de repertórios
folclóricos. O folclore, por apresentar uma linguagem simples, conseguia reunir o povo e o
Estado, ambos seguindo rumo à modernização do país. No contexto analisado, intelectuais
e o Estado realizaram esforços a fim de estabelecer no Brasil uma escola moderna, o
surgimento de políticas sociais e culturais.
Como vimos, existiram pontos de tensão na relação maestro-Estado, quando o
maestro precisou intervir com a linguagem musical para alterar um possível ponto de
tensão, o fez. Isso o isenta da perspectiva romântica do intelectual inocente, como também
demonstra que Villa-Lobos apresentava uma grande capacidade de interferência na
modificação de uma realidade. Adotando a sua postura de agente modificador, Villa
também expõe a sua face ideológica, do músico que gostaria de perceber a sensibilidade
estética se desenvolvendo, segundo as palavras do maestro, nas consciências das crianças.
121
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A concretização do projeto de ensino musical apresentado não se deu por ter
abarcado o personagem histórico Villa-Lobos. O objetivo não foi o de apresentar o
enaltecimento de um grande personagem histórico. Tal tipo de interpretação é errônea, uma
vez que a história é também feita por pessoas simples. E o que seria do projeto do canto
orfeônico se a sociedade, composta por pessoas simples, não estivesse presente?
Certamente não representaria nada. Portanto, Villa-Lobos foi analisado não como um
personagem grandioso voltado para a chamada “história dos grandes homens”, e sim como
um músico que criou juntamente ao SEMA uma relação de interdependência, produto de
um contexto histórico específico e livre de manipulações.
O maestro, como representante de um tempo, recebeu inúmeras influências. A
influência da família que marcou em sua vida a relevância da música foi extremamente
marcante. O pai de Villa-Lobos e sua tia Zizinha envolviam o pequeno Heitor, ainda
criança, no mundo encantador da música. Portanto, as referências das primeiras notas
quebram a perspectiva de um “gênio” musical, uma vez que desde criança já recebia tal
formação. A partir da juventude, Villa-Lobos passou a ter contato com um instrumento
popular, o violão, além de interagir com músicos populares. O Villa-Lobos adulto, atuante
na Semana de Arte Moderna de 1922, experimentava um tempo onde a perspectiva
modernista já germinava há alguns anos. Os projetos folclóricos surgiram quando outros
músicos também levantavam essa bandeira.
Portanto, chegamos à conclusão de que Villa-Lobos foi um intelectual que agrupou
uma série de características temporais específicas. A compreensão destes aspectos nos
obriga a desmoronar os castelos de ilusões que são trabalhados por alguns estudiosos da
vida e obra do maestro tais como genialidade, predestinação, autodidatismo, missão,
ingenuidade e romantismo.
O fato de rompermos com a perspectiva do Villa-Lobos retratado nas obras do
musicólogo Vasco Mariz não pode também nos levar ao caminho errôneo da idéia de
manipulação ou da perspectiva materialista. As relações humanas não são marcadas apenas
pelas referências materialistas, elas experimentam as trocas simbólicas, específicas de um
determinado tempo. Pensar que Heitor Villa-Lobos desenvolveu o projeto do canto
orfeônico só porque nas cartas que escrevia à sua primeira esposa, Lucília, relatava
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dificuldades econômicas, é pensar segundo a lógica materialista as relações sociais,
humanas e políticas.
O contexto em que o maestro atuara tem como marca principal a efervescência
intelectual. São redes de intelectuais que irão interagir, desenvolver projetos, debater a
questão da nacionalidade, apoiar, rejeitar ou simplesmente assistir a atuação do Estado.
Villa-Lobos apoiou o Estado, em nome da música, da Educação, da perspectiva de futuro.
A perspectiva nacionalista de Villa-Lobos também se apresentava de maneira bem
abrangente. O discurso do maestro sempre apontava na direção da música como arte
universal e que o Brasil deveria se colocar perante o mundo, expressando uma idéia do que
é nacional diferente do conceito de patriotismo. Através das concentrações orfeônicas, o
objetivo era fazer ressurgir a união através do sentimento de pertencer, a união de vontades.
A união de vontades apontava na direção do que o Estado desejava construir. A inspiração
no passado, a união de vontades e a perspectiva da construção de um futuro grandioso.
O projeto do Estado que surgiu com a Revolução de 1930 tinha viés fortemente
autoritário. Porém, intelectuais como Heitor Villa-Lobos, Carlos Drummond de Andrade e
outros percebiam no apoio estatal a possibilidade da concretização de projetos. Projetos
esses que poderiam estar até mesmo no patamar de sonhos. Sonhos não estão “à venda”
para Estados “manipuladores”. Heitor Villa-Lobos sonhou com o ensino musical nas
escolas brasileiras e, apoiado pelo Estado, colocou seu sonho em prática. Na atualidade, a
prática do seu sonho não existe mais. Restou a história de sua vida e principalmente do seu
projeto educacional para refletirmos sobre as relações entre a sociedade e o Estado no
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