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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ana Paula Azarias da Fonseca
A construção da
educação na revista Veja
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
São Paulo
2008
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Ana Paula Azarias da Fonseca
A construção da
educação na revista Veja
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Dissertação realizada com o apoio do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico CNPq Brasil e apresentada à
Banca Examinadora como exigência parcial para
obtenção do título de MESTRE em Comunicação e
Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. José Luiz
Aidar Prado.
São Paulo
2008
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Aprovado em / / .
BANCA EXAMINADORA
DEDICATÓRIA
Aos meus pais, Paulo e Zezé, com todo amor e gratidão.
À “vovys” querida, centenária, a senhora me inspira.
Ao Geraldo, com amor.
AGRADECIMENTOS
Foram muitos os que me ajudaram nesta
empreitada. Sinceros agradecimentos...
... à minha família e ao Geraldo, pelo apoio
total e irrestrito de todas as horas;
... ao prof. Aidar, que docemente aceitou a
orientação deste estudo e o conduziu com
muita sabedoria e paciência;
... aos amigos de curso, pelas inestimáveis
contribuições em tantas conversas e
debates. Desde já saudades;
... aos amigos Cida e Paulo do COS
irrepreensivelmente fiéis e solícitos;
... à direção, professores e colegas do COS;
... aos professores Leda e Faro, pelas
valiosas contribuições na banca de
qualificação;
... à amiga Carmem pela inestimável
contribuição;
... à amiga Angélica , grande incentivadora;
... à PUC pela oportunidade e ao CNPq pelo
apoio financeiro sem o qual não seria
possível mais esta realização.
Meu sonho de sociedade ultrapassa os limites
do sonhar que aí estão.
Paulo Freire
FONSECA, Ana Paula Azarias da. A construção da educação na revista Veja.
2008. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – SP.
RESUMO
Esta pesquisa examina as reportagens de capa da revista Veja que tematizam a
‘educação’. O corpus compreende as matérias de capa do período 1968-2006 sobre
esse tema. Categorizamos as reportagens em três grandes eixos temáticos: escola;
família; cérebro/inteligência. Tal divisão é de ordem metodológica, havendo, pois,
imbricação de eixos. Nosso exame concentrou-se nas construções discursivas e
estratégias de produção de sentido adotadas pelo enunciador ao propor contratos
comunicativos ao enunciatário, que segundo concluímos ‘deve-saber’ para poder
‘dizer-o-que-fazer’. Examinamos eixos temáticos afins em seus diferentes períodos,
contextualizando, desta forma, as reportagens em seus respectivos cenários
histórico-político-sociais. Investigamos instrumentos e mecanismos empregados pelo
enunciador para persuadir o leitor-enunciatário do ‘dever-fazer’ que a revista
apresenta sob a forma de cartilhas modalizadoras; para tanto nos apoiamos em
teorias do discurso de Fiorin e Barros, Prado, Braga & Calazans, Mira, Scalzo,
Germano entre tantos outros. O exame básico do corpus foi feito com base na
semiótica discursiva. Esta pesquisa, ao propor o debate sobre educação na mídia,
tenta contribuir para elucidar as questões oriundas da imbricação dos campos da
educação e da comunicação. Acreditamos que as mídias têm papel fundamental no
remembramento da educação, de que fala Morin, e este só sepossível através
das mediações e da circulação do capital simbólico.
Palavras-chave: meios de comunicação; mídia impressa semanal; educação;
discurso; Veja.
FONSECA, Ana Paula Azarias da. The Construction of Education on Veja
Weekly Magazine. 2008. Dissertation (Master's Degree in Communication and
Semiotics) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – SP.
ABSTRACT
This study analyzes the cover stories of Veja, a Brazilian weekly magazine, that
focus on ‘education’. The corpus includes cover articles on education published
between 1968-2006. The articles were divided into three thematic axes: school,
family and brain/intelligence. This, however, was a methodological division as the
axes are intertwined. Our analysis focused on the discursive constructions and
strategies for production of meaning adopted by the enunciator when proposing
communicative contracts to the reader. The conclusion of the analysis is that ‘one
must know’ to be able to ‘tell one what to do’. We analyzed similar thematic axes in
different periods which allowed the contextualization of the articles relative to their
respective social, political and historical scenarios. The study also analyzed the
instruments and mechanisms employed by the enunciator to persuade the reader on
“what to do[CN1]”, which is presented by the magazine in the form of modalizing
primers//booklets//statements[CN2] . The study was based on the theories of
discourse of Fiorin & Barros, Prado, Braga & Calazans, Mira, Scalzo and Germano
among others. The basic analysis of the corpus was carried out based on discursive
semiotics. The debate proposed by this study about education in the media aims to
contribute to clarify issues arising from the intertwining of the fields of education and
communication, as stated by Morin, which is only possible through the mediation and
circulation of symbolic capital.
Key words: communication means; weekly printed media; education; discourse;
Veja.
SUMÁRIO
introdução...................................................................................................Erro! Indicador não definido.
divisão do corpus .................................................................................Erro! Indicador não definido.
eixos e grupos temáticos .....................................................................Erro! Indicador não definido.
contribuições da semiótica...................................................................Erro! Indicador não definido.
Parte I
1 entrecruzamento dos campos: educação e comunicação.................Erro! Indicador não definido.
2 a revista veja............................................................................................Erro! Indicador não definido.
2.1 estado da arte................................................................................Erro! Indicador não definido.
3 referências teóricas e corpus ................................................................Erro! Indicador não definido.
Parte II
4 a escolarização em veja .........................................................................Erro! Indicador não definido.
4.1 universidade brasileira...................................................................Erro! Indicador não definido.
4.1.1 antes do ingresso: vestibulares e a escolha da profissão......Erro! Indicador não definido.
4.1.2 durante: problemas da universidade ......................................Erro! Indicador não definido.
4.1.3 depois, cadê o emprego?.......................................................Erro! Indicador não definido.
4.1.4 estudantes e política...............................................................Erro! Indicador não definido.
4.2 educação e sucesso ......................................................................Erro! Indicador não definido.
4.3 políticas públicas e reformas educacionais ...................................Erro! Indicador não definido.
4.4 outras formas de ensinar/aprender................................................Erro! Indicador não definido.
5 família: como educar os filhos ..............................................................Erro! Indicador não definido.
Parte III
considerações finais..................................................................................Erro! Indicador não definido.
referências ..................................................................................................Erro! Indicador não definido.
10
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é uma investigação sobre a construção do tema “educação” nas
reportagens de capa
1
da revista Veja. Para tanto o corpus adotado compreende todas as
matérias de capa que tratem desse tema no período que vai de 1968 (ano de fundação da
revista) a dezembro de 2006. A análise concentra-se nas construções discursivas e nas
estratégias de produção de sentido empregadas nestas reportagens, incluindo o exame dos
sujeitos e objetos que ali comparecem.
A pesquisa coordenada por Prado, “A invenção do Outro na mídia semanal
2
, foi fonte
de inspiração, mas não se pretende tomá-la como modelo, dadas as diferenças estruturais entre
o original, seu objeto e o trabalho aqui proposto. Suas pesquisas e apontamentos indicam, no
entanto, possíveis soluções para este trabalho. Enquanto naquela pesquisa, realizada pelo
Grupo de Pesquisas em Mídia Impressa”, foram considerados vários agendamentos
temáticos divididos em módulos, como por exemplo: “saúde e corpo”, “muçulmanos”,
“mulheres”, “educação”, “negros”, “gays”, “riqueza e sucesso” etc., neste trabalho será
abordado apenas o tema “educação” na revista Veja.
A revista Veja é examinada como um estudo de caso da mídia impressa semanal,
tendo em conta que ela se configura como um importante fenômeno comunicacional
representativo do cenário e da organização jornalística brasileira. A imprensa internacional a
considera como referência mundial para assuntos brasileiros, por isso, também, a opção pela
revista, em função de sua trajetória, ao longo de sua existência e por se configurar como
referencial de informação dentro da sociedade brasileira. Segundo seus editores, para cada
citação de qualquer outra publicação brasileira nos sites de busca da rede mundial
especializados em notícias, Veja surge cerca de uma dezena de vezes (Wikipedia, 2007),
1
Entender-se-á como “reportagem de capa” a matéria central da revista, aquela antecipada na capa.
2
Esta dissertação está ligada ao projeto A invenção do Outro na mídia semanal”, coordenado por JoLuiz
Aidar Prado, que tem por objetivo mapear e analisar as reportagens de capa das principais revistas semanais
brasileiras Carta Capital, Época, Istoé e Veja. Este projeto integra as atividades do Grupo de Pesquisas em
Mídia Impressa que conta com apoio do CNPq e está vinculado ao Programa de Estudos Pós-graduados em
Comunicação e Semiótica da PUC-SP. O resultado é um banco de dados hipermidiático.
11
sendo atualmente a revista mais vendida e mais lida do Brasil, a única revista semanal de
informação no mundo a desfrutar de tal situação. Em outros países, revistas semanais de
informação vendem bem, mas nenhuma é a mais vendida esse posto geralmente fica com as
revistas de tevê” (Scalzo, 2004:31).
Elegeu-se Veja também por ser a publicação semanal de maior circulação no Brasil,
com tiragem superior a 1,2 milhão
3
de exemplares e a quarta maior no mundo
4
. Também
chama atenção o fato de a Editora Abril e da Fundação Victor Civita vincularem à revista o
projeto Veja na Sala de Aula”, o que demonstra a preocupação desta publicação com seu
caráter educativo. Além disso, as organizações Abril possuem outras publicações
5
estritamente educativas que não enfocaremos neste trabalho.
Foram selecionadas somente aquelas reportagens que, explicitamente, tematizem a
educação, ou seja, textos que buscam mapeá-la, principalmente, a partir do ponto de vista de
uma classe média conversadora, em seus mais diversos níveis, do ensino infantil ao superior.
Examinamos o corpus com intuito de investigar como a revista constrói através de
estratégias discursivas o tema educação, ou seja, as estratégias de produção de sentido
empregadas nestas reportagens, carregadas de forte caráter doutrinário, considerando que
ambientes comunicacionais se constituem também como ambientes com possibilidades
educativas e vice-versa, no sentido dos mapas cognitivos que visam por meio de valores
modais ensinar ao enunciatário o “dever-saber” para então poder “dever-fazer”. Objetivamos,
ainda, verificar receitas e valores expressos e/ou indicados nas reportagens sob a forma de
manuais voltados a pais e professores. Tais pontos constituem, assim, a problemática central
deste estudo.
O conhecimento disseminado nas escolas, a tarefa dos docentes, o papel dos pais e da
família e a educação, em sentido amplo, têm sido alvos de constantes debates tanto no meio
acadêmico, quanto na sociedade em geral. Este debate considera diferentes aspectos:
formação docente, o acesso às informações, o comportamento e o relacionamento entre pais e
filhos, as novas descobertas acerca do cérebro e da inteligência e suas implicações na
3
A revista Veja, edição 16/04/2008, informa em seu sumário que a tiragem foi de 1.222.479 (um milhão,
duzentos e vinte e dois mil, quatrocentos e setenta e nove) exemplares.
4
“Veja é hoje a quarta revista de informação mais vendida no mundo, atrás das norte-americanas Time,
Newsweek e US News & World Report.” (Scalzo, 2004:31).
5
A Editora Abril possui publicações de caráter estritamente educativo, as revistas Nova Escola e Sala de Aula, a
primeira voltada ao Ensino Fundamental e a segunda ao Ensino Médio. Estas revistas não serão analisadas neste
trabalho, no entanto demonstram que questões educacionais fazem parte da agenda temática da editora.
12
educação. Em Veja comparecem, no desenvolvimento desses temas as prescrições do
enunciador para os leitores, em termos de “dever-saber” e “dever-fazer” destinado aos pais e
professores, por meio de “receituários” de como agir para bem educar os filhos/alunos
segundo valores mais conservadores, via de regra, encontrados na classe média.
Freqüentemente o enunciador de Veja incorpora em seu discurso e a seu serviço as vozes
científicas, ou seja, os especialistas citados, muitas vezes em voz direta o que cria um efeito
de sentido de verdade, de simulacro da realidade e as direciona em sentidos bem determinados
para, assim, promover a adesão do enunciatário ao contrato comunicativo.
Assim, são aqui examinadas as construções discursivas sobre a educação em Veja,
considerando que por meio da apropriação de recortes da realidade ela constrói re-
interpretações para que o leitor entenda o tema com mais clareza (segundo posição da própria
revista) através de mapas cognitivos destinados a pais e educadores, explicando “como fazer”
para educar. Esta é uma das hipóteses aventadas neste trabalho.
Outra hipótese aqui lançada é a de que a revista, por meio de construções discursivas
verbo-visuais, promove a adesão ou descrédito às políticas e instituições educacionais, num
cenário em que poucos conseguem passar pelo funil educacional, provocado pela escassez das
vagas: a imagem é de que próximo à boca, larga, estão aqueles, os Outros, que ficarão
distantes de uma estreita passagem reservada a pouquíssimos privilegiados social e
financeiramente que, segundo a mídia, conseguem uma famigerada vaga nas universidades de
grife. Notamos ser recorrente a preocupação da revista com o ranking das melhores
universidades como sendo um grande problema para os filhos da classe média leitora-
enunciatária, o que Prado chama de Mesmo
6
. Acreditamos que também reportagens que
valorizam o ensino privado, em detrimento do público, que, por sua vez, surge retratado
euforicamente quando se fala das “ilhas de excelência”. Assim, consideramos que Veja
participa fortemente, via estratégias discursivas, da modelagem da opinião pública a respeito
da educação.
Clarificados o campo do saber, o objeto, a problemática e as hipóteses, tornando-se
agora fundamental apontar os objetivos que motivaram esta pesquisa. O objetivo geral
consiste em examinar o corpus por meio dos caminhos propostos pela semiótica discursiva,
para entender as construções discursivas da revista sobre o tema educação. Para tanto
6
O Mesmo refere-se a modelos aceitos, objetivados pela classe média, que criam dispositivos de identificação
por meio da valorização do crescimento e sucesso pessoal, profissional e social. Prado denomina Mesmo aos
espaços sociais em que são construídos e distribuídos valores dos usuários de dispositivos comunicacionais
sistêmicos, espectadores das diversas mídias. Existem estratégias de visibilidade para o aparecimento das
figuras do Mesmo, dependendo da agenda temática da mídia” (Prado e Bairon, 2007).
13
examinamos, especificamente, o discurso do enunciador nas reportagens sobre educão;
procuramos identificar que elementos discursivos estão presentes no discurso de Veja sobre o
tema educação e como são apresentados; e, finalmente, investigamos que instrumentos o
enunciador utiliza para convencer, persuadir o leitor/enunciatário do “dever-saber”, “dever-
fazer”, que a revista apresenta sob a forma de manuais
7
, cartilhas modalizadoras
7
contendo
mandamentos simplificados a serem seguidos como forma de obter sucesso na vida escolar e,
assim, assegurar conseqüente sucesso profissional.
A seguir apresentamos a divisão metodológica adotada a fim de facilitar e ordenar a
análise.
DIVISÃO DO CORPUS
No levantamento preliminar das reportagens, dentro das atividades do Grupo de
Pesquisas em Mídia Impressado Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e
Semiótica da PUC-SP, foram examinadas as revistas semanais de maior expressão nacional
(Carta Capital, Época, Istoé e Veja). Observou-se, no entanto, que a freqüência do tema
“educação” em Veja é consideravelmente maior do que nas outras, daí a opção por examiná-la
exclusivamente
8
.
Eixos e grupos temáticos
As reportagens foram agrupadas em eixos temáticos, e posteriormente cada eixo foi
dividido em grupos temáticos menores. Inicialmente adotamos a divisão temática proposta
7
Manuais são, segundo definição do Minidicionário da Língua Portuguesa (Borba et al. 1988), livros pequenos
e portáteis, contendo o resumo de alguma ciência ou arte; compêndio. Cartilhas, segundo o mesmo dicionário,
são livrinhos nos quais se aprende a ler; são tratados elementares de qualquer arte, ciência ou doutrina. Assim
manuais, cartilhas pressupõem ensinamentos rápidos, fáceis por parte de um enunciador sabedor que condensou
toda uma gama de gama de conhecimentos num manual, rápido, portátil, facilmente aplicável e seguro e que
trazem agregados valores modais de uma classe média sedenta de garantias mínimas de seus padrões de vida. A
semiótica discursiva na sintaxe de seu nível narrativo (ou de superfície) define a unidade operatória elementar da
organização narrativa como sendo o Programa Narrativo (ou Sintagma Elementar da Sintaxe Narrativa),
composto entre outros elementos de valores modais e descritivos. Os primeiros modalizam/modificam as
relações do sujeito com os objetos de valor e os fazeres, são meios para se chegar a determinados fins,
determinados objetos, assim são: o saber/crer; o poder; o querer; e o dever. valor descritivo é a própria
finalidade, o próprio objeto, por exemplo, a riqueza, o sucesso escolar, profissional, acender a uma grande
universidade, potencializar o cérebro, como valores finais a serem alcançados etc.
8
Em Carta Capital, por exemplo, o tema educação é praticamente inexistente, são escassas capas que tratam
unicamente da universidade brasileira, mais especificamente da reforma universitária no país. Em Istoé e Época
os grupos temáticos são, praticamente, os mesmos encontrados em Veja, entretanto a freqüência é mais baixa.
14
pelo Grupo de Pesquisas: analfabetismo, escolha da profissão, vestibular, ensino
fundamental, universidades e outros. No entanto, dada a especificidade desta pesquisa as
reportagens foram reordenadas em três grandes eixos temáticos: A. Escolarização; B.
Família: como educar os filhos; C. Cérebro e Inteligência. Vale ressaltar que esta divisão é
puramente metodológica, pois evidentemente em algumas reportagens os eixos apresentam
pontos de intersecção entre si, com predominância de um ou outro eixo. Abaixo apresentamos
um gráfico representativo da divisão do corpus por eixo temático e suas respectivas
porcentagens:
PERCENTUAL POR EIXO TEMÁTICO
38
5
8
Escola [74,51%]
Família [9,8%]
Cérebro e
Inteligência
[15,7%]
Eixo temático
ocorrências
Gráfico 1 – percentual por eixo temático das reportagens sobre o tema educação em Veja
Os eixos acima foram divididos em grupos temáticos afins e estes divididos em
subgrupos, conforme a especificidade assim o exigiu. Imediatamente após breve descrição de
cada grupo temático seguirão algumas capas a fim de exemplificá-los.
O eixo A. ESCOLARIZAÇÃO contém os seguintes grupos temáticos:
1. O grupo temático ‘Universidade brasileira’ foi dividido em subgrupos:
- Antes: que abarca o subtema vestibulares e a difícil tarefa da escolha da profissão,
aqui figuram reportagens que falam sobre as profissões da moda, o mercado de
trabalho, o sucesso na profissão desde a difícil tarefa de escolhê-la;
15
- Durante: contempla as reportagens que tratam das universidades, suas
características, problemas e crises, por exemplo, as reportagens de 04/06/1975 com
o título Universidade de Campinas: um reduto da cultura brasileiraou UNB:
de novo em crise” de 03/08/77;
- Depois, cadê o emprego?: este subgrupo traz reportagens sobre recém-formados e
(a falta de) empregos; e, por fim, Estudantes e política: este último grupo temático
é bastante datado e aborda as reportagens sobre a ex-UNE, os anos de “chumbo” e
movimento “Fora Collor”.
A seguir algumas capas para exemplificar a divisão proposta:
Edição de 07/04/71 Edição de 08/05/91 Edição de 03/08/77 Edição de 09/10/68
2. O grupo temático Educação e Sucesso traz subtemas como: supercolégios, são
reportagens que se dispõem a ensinar como escolher os melhores colégios, via de regra,
privados; o subtema livro didático traz reportagens que falam dos best sellers dos livros
didáticos; havia no corpus reportagens que falavam sobre a importância do segundo idioma e
sobre a relevância de se falar e escrever bem como meios para consecução e manutenção do
sucesso pessoal e profissional, estas reportagens foram cortadas porque acreditamos que estes
subtemas se afastavam demasiadamente da proposta inicial desta pesquisa de investigar a
educação propriamente dita nas capas de Veja. Seguem alguns exemplos de capas:
16
Edição de 10/08/83 Edição de 02/03/83
3. Políticas blicas e reformas educacionais: este subgrupo temático trata de
assuntos como analfabetismo e MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização),
Educação de Jovens e Adultos (EJA) e reformas do sistema educacional, eventualmente
podendo figurar reportagens acerca da escola pública, se construídas a partir do viés das
políticas públicas na educação. Abaixo algumas capas a título de exemplo:
Edição de 09/09/70 Edição de 15/09/71 Edição de 30/06/71 Edição de 16/02/05
4. Ensino Fundamental
9
e as outras formas de ensinar/aprender: este subgrupo
temático examina aquelas reportagens que se dedicam ao Ensino Fundamental (outrora
chamado Ensino Básico) e às novas formas de ensinar-aprender, como por exemplo, as capas
9
A denominação Ensino Fundamental abrange a faixa etária que vai de 07 e 14 anos, foi definida na LDB
vigente (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Lei 9394/96) e compreende as oito séries iniciais
do sistema educacional, divididas em dois ciclos: no Ciclo I estão as quatro primeiras séries iniciais e o Ciclo II
abrange da à séries. Vale lembrar que a referida lei foi atualizada e tal atualização está em processo, o que
aumentará o Ensino Fundamental para nove anos ao incorporar a pré-escola, antes pertencente ao Ensino Infantil
que vai de zero a seis anos.
17
sobre a “nova” abordagem para a Educação Física e outra sobre uma nova forma de aprender
Matemática:
Edição de 05/09/84 Edição de 30/08/89
O eixo temático B. FAMÍLIA: COMO EDUCAR OS FILHOS traz reportagens de
capa sobre como educar os filhos, sejam eles crianças ou adolescentes. As reportagens
alocadas neste eixo tratam da educação familiar, comportamento e relacionamento entre pais e
filhos. O enunciador de Veja cria o efeito de sentido de que os “novos pais” não estão
preparados para os “novos filhos”, segundo diversas construções discursivas, o enunciador
afirma que estes pais estão confusos e perdidos, como por exemplo, nas capas abaixo:
Edição de 13/07/88 Edição de 16/06/99 Edição de 18/02/04
O eixo temático C. CÉREBRO E INTELIGÊNCIA (sempre que a abordagem falar
em “novas” capacidades e competências do processo ensino-aprendizagem) reúne os grupos
temáticos: Inteligência emocional, como forma de se obter sucesso pessoal e profissional;
Poder da mente: que trata das recentes descobertas acerca do cérebro, mente e inteligência
humana; em Novas tecnologias os jogos eletrônicos e outros artifícios são atrelados ao
18
desenvolvimento da inteligência, com euforização da tecnologia; por fim Corpo e mente: em
busca do equilíbrio. Na seqüência alguns exemplos:
Edição de 21/11/90 Edição de 09/12/92 Edição de 11/01/06 Edição de 04/08/2004
Faz-se necessário elucidar que no decorrer da pesquisa identificamos que este eixo
temático se afastava, em demasia, da proposta deste trabalho, que é, inicialmente, examinar o
agendamento midiático da educação propriamente dita. Estas reportagens enveredam pelos
caminhos das pesquisas em neurociência e suas recentes descobertas sobre o funcionamento
do cérebro humano e como otimizá-lo, via aparatos tecnológicos, o que remete a uma visão
behaviorista do assunto, ademais elas têm uma abordagem muito mais biológica e
comportamental do que educacional. O enunciador onisciente, como faz em todo o corpus,
aqui também procede a mapeamentos do cérebro humano, cita as últimas pesquisas e suas
descobertas no mundo, mas a tônica fica por conta da prescrição de receitas para que o
enunciatário aumente o poder de sua mente, que Veja considera infinito.
Apresentamos na tabela abaixo, um mapeamento estatístico do corpus:
19
EIXO
Grupo temático Reportagens %
universidade brasileira: antes (vestibulares e escolha da
profissão)
7
13,73
universidade brasileira: durante
8
15,69
universidade brasileira: depois, cadê o emprego?
4
7,84
universidade brasileira: estudantes e política
7
13,73
educação e sucesso
4
7,84
Políticas públicas educacionais: analfabetismo
2
3,92
Políticas públicas educacionais: reformas educacionais
4
7,84
ESCOLA
Outras formas de ensinar/aprender
2
3,92
eixo ESCOLA
38
74,51
eixo FAMÍLIA
5
9,80
eixo CÉREBRO E INTELIGÊNCIA
8
15,69
TOTAL DE REPORTAGENS
51
100,00
Tabela 1: Mapa da divisão metodológica das reportagens que compõem o corpus
O gráfico 1 e a tabela 1, esta mais detalhada, nos mostram que o eixo Escola é o
numericamente mais expressivo, representando quase 75% do corpus. Daí depreende-se que
Veja pauta assuntos referentes à formação que recebe o estudante brasileiro, em todos os
níveis. O enunciador está atento ao sistema escolar brasileiro. Freqüentemente encontramos
esta metáfora em escritos sobre a educação: toma-se o sistema
escolar pelo campo educacional, no entanto, este é muito mais amplo
e compreende muitas outras esferas, por exemplo, o ambiente,
incluindo a família, comportamento e entorno social.
Também chamam a atenção os pontos de intersecção de
algumas reportagens que figuram em mais de um eixo temático.
Optamos por adiantar um exemplo: a matéria “Os segredos dos
gênios do vestibular” de 27/02/2002, na qual figuram, de um lado, as
receitas do sucesso de alguns vestibulandos bem sucedidos e, de
outro, o investimento, a atenção, o apoio e a compreensão da família que, neste momento da
20
vida escolar, se mobiliza para que o jovem, em questão, obtenha êxito máximo em sua
empreitada. Esta imbricação de eixos se repete em outras reportagens sobre a universidade
brasileira e política, por exemplo.
CONTRIBUIÇÕES DA SEMIÓTICA
Examinaremos os textos da mídia a partir da semiótica discursiva. Barros (2005:7)
propõe duas concepções que se complementam: uma coloca o texto como objeto de
comunicação e emprega a análise externa, que entende o texto como objeto cultural, inserido
numa sociedade de classes e determinado por formações ideológicas, tendo assim em conta o
contexto sócio-histórico-político que o envolve. A outra concepção coloca o texto como
objeto de significação e parte da análise interna ou estrutural do texto, estrutura/organização
esta que faz dele um “todo de sentido”, como objeto da comunicação que se estabelece entre
um destinador e um destinatário.
Empregaremos alguns aportes da semiótica, não portanto de modo exaustivo, para
permitir o aporte metodológico para desconstrução e investigação dos textos em foco.
Seguem-se, portanto, os principais elementos da semiótica em cada um de seus níveis.
De acordo com Fiorin (2001:17) a semântica do discurso é: Gerativa, ao propor
modelos dos níveis de invariância do sentido e ao considerar os elementos do nível de
superfície poder-fazer; Sintagmática porque explica a produção e a interpretação do
discurso; e Geral porque examina a unicidade de sentido, ou seja, um mesmo conteúdo
manifestado por diferentes planos de expressão. Assim, temos explicitado o modelo que
constitui o Percurso Gerativo de Sentido (PGS), que por sua vez é a sucessão de patamares
que mostram como se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do nível mais
simples ao mais complexo. Há, segundo Fiorin e Barros, três patamares. Transcrevemos a
seguir um quadro ligeiramente modificado de Fiorin (2001:17), que julgamos elucidativo.
Cada nível possui uma sintaxe e uma semântica, no entanto, não empregaremos nesta
pesquisa todos os níveis citados assim, temos:
21
SINTAXE SEMÂNTICA
Estruturas semio-narrativas Fundamental (nível profundo) Semântica Fundamental
Narrativa (nível de superfície) Semântica Narrativa
Estruturas discursivas Discursiva (nível da manifestação) a
discursivização pressupõe: actorizalização;
temporalização; espacialização)
Semântica Discursiva
(Tematização e
Figurativização).
1. NÍVEL FUNDAMENTAL
Semântica do Nível Fundamental
Abriga as categorias semânticas que estão na base da constituição de um texto. Por
exemplo, as categorias do nível fundamental /parcialidade/ versus /totalidade/; /natureza/
versus /cultura/; /vida/ versus /morte/ etc. Uma categoria semântica fundamenta-se numa
oposição, numa diferença, mas é necessário que exista um elemento comum, caso contrário
configura-se uma violência semântica, por exemplo, /democracia/ versus /consumismo/ ou
/sensibilidade/ versus /horizontalidade/.
Em uma categoria semântica termos opostos têm relação de contrariedade e
pressuposição recíproca (p. ex.: masculino pressupõe o feminino). Se negarmos cada um dos
termos contrários teremos os dois contraditórios (p. ex.: /não masculinidade/ e /não
feminilidade/, também contrários entre si. Assim, temos o quadrado semiótico básico
22
Cada elemento da categoria semântica de base recebe a qualificação semântica
/eufórica/ ou /disfórica/; atribui-se à euforia valoração positiva e à disforia é atribuída
valoração negativa. Segundo Fiorin “estes valores independem da axiologia do leitor, pois
estão inscritos no texto”, assim dois textos podem valorizar distintamente a mesma categoria
de base. Fiorin (2001:20) dá como exemplo /natureza/ versus /civilização/ em um texto
construído a partir de ponto de vista de um ecologista e outro a partir do ponto de vista de um
político. Desta forma euforização e disforização são valorações amplamente empregadas pelo
enunciador de Veja em suas construções discursivas a fim de auxiliar no estabelecimento do
contrato comunicativo entre ele e o enunciatário.
2. NÍVEL NARRATIVO
A priori é necessário “...fazer uma distinção entre narratividade e narração. Aquela é
componente de todos os textos, enquanto esta concerne a uma determinada classe de textos. A
narratividade é uma transformação situada entre dois estados sucessivos diferentes. (...) ocorre
uma narrativa mínima, quando se tem um estado inicial, uma transformação e um estado
final.”, assim a narrativa mínima é entendida como “transformação de conteúdo” (Fiorin,
2001:21). Neste sentido verificamos que o enunciador transforma o não-saber-fazer do
enunciatário em dever- poder-fazer.
A semântica narrativa examina os valores inscritos nos objetos:
23
a. objetos modais: querer, dever, saber, poder fazer. São, pois, elementos cuja
aquisição é necessária para o sujeito realizar a performance principal, ou seja, para se
obter outro objeto de valor (Fiorin, 2001:21).
b. objetos de valor: é aquilo com que se entra em conjunção ou disjunção na
performance principal, ou seja, é o objetivo último do sujeito (o que Diana Barros
chama de valores descritivos) (idem).
No nosso caso o saber educar, o saber escolher a “melhor” educação, fazendo do
enunciatário um sujeito preparado para o enfrentamento das questões da educação.
Objeto-valor e objeto-modal são posições na seqüência narrativa. Um mesmo objeto-
concreto pode recobrir diferentes objetos-valor numa narrativa (por exemplo, “casa” pode
concretizar /abrigo/; /conforto/; /status/; /esconderijo/ etc.) (idem).
3. NÍVEL DISCURSIVO
Projeções da Enunciação no Enunciado
Segundo (Fiorin, 2001:40-44) a enunciação (eu-aqui-agora) instaura o discurso-
enunciado e assim projeta para fora de si os atores do discurso e suas coordenadas espaço-
temporais, assim, utiliza-se das categorias de pessoa, tempo e espaço. Nesse processo a
enunciação faz uso de dois mecanismos básicos:
a. debreagem que pode ser enunciativa (eu/tu aqui agora) ou enunciva (ele
então – lá). três tipos de debreagens enunciativas e enuncivas: actancial (pessoa);
espacial (espaço); temporal (tempo). Ainda sobre as debreagens (enunciativa e
enunciva), elas podem produzir dois tipos básicos de discurso: os de primeira e de
terceira pessoa, criando respectivamente efeitos de sentido de subjetividade e de
objetividade. Enfim, primeira ou terceira pessoa é uma escolha do enunciador visando
um efeito de subjetividade ou objetividade. Pode, também, o enunciador operar
debreagens internas (de grau), ele a palavra a uma das pessoas do enunciado ou
da enunciação e produz simulacros de diálogos no texto, estabelecendo interlocutores,
criando, assim, a unidade discursiva discurso direto (o que cria um efeito de sentido de
verdade) ao dar voz a atores inscritos no discurso, assim proporciona ao
enunciatário a ilusão de estar ouvindo o outro (suas “verdadeiras” palavras). O que
parece acontecer quando o enunciador de Veja evoca a voz aos especialistas, criando
assim um efeito de sentido de trazer a verdade ao seu enunciatário (Fiorin, 2001:40-
44).
24
Estes recursos não são aleatórios, mas fazem parte da arquitetura do texto com
vistas a produzir determinados efeitos de sentido.
b. embreagem – mecanismo em que ocorre suspensão das oposições de pessoa,
tempo ou espaço (idem).
Relações entre Enunciador e Enunciatário
A finalidade última do ato de comunicação não é informar, mas persuadir o outro a
aceitar o que está sendo comunicado. Por isso, o ato de comunicação é um complexo jogo de
manipulação para fazer o enunciatário crer naquilo que se transmite. Linguagem é sempre
comunicação, portanto persuasão, mas o é na medida em que é produção de sentido (Fiorin,
2001:52).
Neste jogo persuasivo, o enunciador utiliza procedimentos argumentativos para levar o
enunciatário a admitir como válido o sentido produzido. Argumentação é um conjunto de
procedimentos lingüísticos e lógicos do enunciador para convencer o enunciatário. dois
procedimentos argumentativos muito freqüentes: ilustração (na qual o narrador enuncia uma
afirmação geral e exemplos com a finalidade de comprová-la); figuras de pensamento
(empregadas pelo enunciador para fazer o enunciatário crer naquilo que ele enuncia, também
chamadas de figuras de linguagem) (Fiorin, 2001:53-55).
Semântica Discursiva
A semântica discursiva é que reveste e, por isso, concretiza as mudanças do nível
narrativo. Ficam evidentes, segundo Fiorin (2001:64-65), as oposições tema-figura em termos
de concreto-abstrato e vale lembrar que estes não são termos polares que se opõem de maneira
absoluta, mas constituem um continuum em que se vai gradualmente do mais abstrato ao mais
concreto. Concreto é o termo que tem existência própria e abstrato é aquele que depende de
outro para existir, como por exemplo, mulher é um termo concreto e beleza é abstrato, ou
seja, algo ou alguém é que a possui. Assim, figura é algo do mundo natural (existente ou
construído, ficcional ou não) e tema é um “investimento semântico” conceitual “que não
remete ao mundo natural” (idem).
Textos figurativos ou temáticos dependem do “grau de concretude dos elementos
semânticos que revestem os esquemas narrativos”. Textos figurativos “criam um efeito de
sentido de realidade, constroem um simulacro da realidade, representando, pois, o mundo,”
enquanto que textos temáticos “procuram explicar a realidade, classificam e ordenam a
realidade significante” (Fiorin, 2001:64-65). Assim “discursos figurativos têm função
25
descritiva ou representativa, enquanto os temáticos têm função predicativa ou interpretativa. É
importante lembrar que, ao se falar em textos figurativos ou temáticos, fala-se em textos com
predominância de um ou outro e não de sua exclusividade (idem).
Para encerrar este breve inventário vale ressaltar que grosso modo o texto existe
quando entendido na dualidade que o define: objeto de significação e objeto de comunicação.
Mais recentemente a semiótica caminha nessa direção e procura conciliar, com o mesmo
aparato teórico-metodológico, as análises ditas “interna” e “externa” do texto. A fim de
explicar o que o texto diz e como o diz, a semiótica trata de examinar os procedimentos de
organização textual e, concomitantemente, os mecanismos enunciativos de produção e
recepção do texto (Barros, 2005:7) grifo nosso. A partir daí investigaremos: Quem e como são
apresentados os sujeitos da narrativa sobre educação? O que e como o dizem? Que objetos de
valores os põem em movimento? Quais linhas de tensão afloram no discurso?
Na dia em questão encontramos textos verbais e visuais e os efeitos de sentido
produzidos na imbricação do lingüístico [verbal] com o imagético [visual]. Assim torna-se
premente o exame dessas relações verbo-visuais tanto da capa quanto das imagens internas
das reportagens principais do corpus. A semiótica fornece, neste sentido, instrumentos
rigorosos para tal empreitada.
26
PARTE I
1 ENTRECRUZAMENTO DOS CAMPOS: EDUCAÇÃO E
COMUNICAÇÃO
Entendemos que os meios de comunicação interferem diretamente no processo de
formação global do indivíduo, o que torna premente o desenvolvimento de pesquisas
integradas entre o campo comunicacional e o campo educacional.
Antes, porém, se faz necessário clarificar alguns conceitos de ambos os campos.
Estamos habituados a pensar na aprendizagem como conseqüência da Educação (aqui
entendida à redução de sistema educacional organizado”), no entanto, ela é inerente ao
humano. Braga & Calazans (2001:36) afirmam que “desde sempre, olhando os céus, seguindo
o curso dos rios, compartilhando o calor das fogueiras”, este humano aprendeu com o mundo
da vida e os objetos do seu entorno. Entretanto, anterior à transmissão dos saberes e
conhecimentos sistematizados e, conseqüentemente, dos processos de aprendizagem dos
conhecimentos prontos e acabados, o humano, desde o nascimento, lança mão de outro
aprender, aquele derivado de seu contato imediato com o mundo, quer por experimentação,
quer por tentativa e erro e reflexão em ambientes sócio-familiares. Da percepção de que
ações sobre a aprendizagem podem ser organizadas (idem) e sistematizadas, decorre a
definição do conceito de Educação e, por conseqüência, a organização de todo o sistema
educacional. Tais ações, percebidas e problematizadas em seus resultados e processos, se
desentranham e distinguem” de processos espontâneos “da vida” (idem).
Segundo os autores supra a sociedade reconhece, ao menos, três espaços elementares
de aprendizagem: na família (nos espaços privados, em acordo com a dinâmica espontânea
dos núcleos familiares); na cultura (nos espaços sociais, públicos); e as práticas, do fazer (nos
espaços profissionais, porém não exclusivamente). também um espaço no qual os autores
acreditam que “a vida ensina”, que equivale ao interstício da espontaneidade, da naturalidade
dos processos vivenciais, sem a presença de um trabalho organizado. Assim nos espaços em
que nem família nem a vida ensinam, entra então a Escola” (idem), planejando, organizando
e fornecendo aprendizagem via ensino (atividade em que a Escola fala pela sociedade e é
por esta legitimada)” (2001:36-37).
27
Vale lembrar que o campo educacional é muito mais amplo que o espaço abarcado
pelas estruturas do sistema educativo de um país ou estado, embora forneça a parte mais
visível e sistematizada do campo (Braga & Calazans, 2001:43) (grifo nosso).
Não é a proposta, deste trabalho, adentrar nas questões acerca da aprendizagem, mas
apenas ressaltar que a aprendizagem escolar é legitimada pela sociedade que a gerou. Para sua
própria organização, foram criados complexos sistemas para obtenção de aprendizagem,
necessários à inserção social do indivíduo. Assim, parte do que se denomina aprendizagem é
trabalhado no espaço educacional escolar. O Iluminismo dotou a sociedade de forte
valoração do aprender, como processualidade de formação/modificação do indivíduo,
potencializando-o como vetor de modificação da própria sociedade” (idem).
O século XX foi pródigo em mudanças da sociedade, tanto em perspectivas político-
econômicas, como em avanços tecnológicos e mudanças paradigmáticas, culturais e
comportamentais. O espaço educacional também elaborou novas questões, descobriu outros
problemas e estabeleceu metas, processos e outros paradigmas. Considerando a premente
articulação entre sociedade e seus sistemas educacionais fica fácil perceber que quaisquer
modificações num dos pólos repercute, conseqüentemente, no outro. As interações entre
escola e sociedade são intensificadas e cotidianizadas, favorecendo o desenvolvimento de
novas questões nestas relações: Novas formas da sociedade fazem surgir novos problemas,
estimulam novos agentes e novas percepções sobre o papel dos participantes da aventura
educacional.” (Braga & Calazans, 2001:45-46)
De acordo com os autores supracitados a educação se desenvolve na tensionalidade
entre indivíduo e sociedade. Famílias e estudantes buscam na educação a possibilidade de
crescimento pessoal, de desenvolvimento de potencialidades, de melhor preparo para o
enfrentamento da vida e a construção de uma trajetória pessoal. A sociedade, por sua vez,
solicita pessoas qualificadas conforme suas expectativas, direcionando a formação com base
em necessidades coletivas e impondo princípios e processos cultural e socialmente
legitimados.
Currículo e conteúdos de ensino são selecionados para e pela escola no seio da cultura,
que figura como um “repertório”, um índice no qual se recorta o que interessa ao ensino
sistematizado. De outro lado, a cultura pode ser vista como a propulsora, o esquema gerador
das escolhas do ensino. Assim, ocorrem seleções na e da cultura, nos termos de Raymond
Willians (Braga & Calazans, 2001:52-53). Isso denota uma constante negociação entre escola
e os diversos agentes sociais, na busca de equilíbrios, constantemente refeitos, entre o que a
sociedade solicita e o que o seu sistema educacional seleciona e propõe. Percebe-se que este
28
quadro sofre abalos com a entrada em cena das comunicações mediáticas, que por sua vez
geram outros insumos, desequilíbrios, novas necessidades e processos (idem).
Braga & Calazans (2001:56) consideram que ambos os campos, comunicação e
educação, possuem abrangência muito ampla sobre variados aspectos, desta forma parece ser
insuficiente a descrição de interface por interdisciplinaridade, assim as
preocupações comunicacionais da Educação e as preocupações
educacionais (sobre aprendizagem) na comunicação parecem se
interpenetrarem mutuamente em seus campos originais e assim solicitam
reflexões visando ao reposicionamento de suas práticas e conceitos (idem).
Para tanto, os autores sugerem diferentes ângulos de interface entre os campos da
educação e da comunicação:
- o encontro entre sistema escolar e a sociedade da comunicação’,
considerando a necessidade educacional de formar e socializar os
estudantes para esta, neste ângulo comparecem duas possibilidades
complementares entre si: o “estudo para os meios” nos ambientes escolares
e o desenvolvimento da “leitura crítica” desses meios; [Sendo este último
nossa proposta com esta pesquisa]
- com a presença de um aparato complexo de comunicações gerais em uma
sociedade mediatizada, os saberes circulam na sociedade de modo
acelerado, diversificado, a partir de fontes variadas, e vinculados a
objetivos muito diferenciados. Mais que simplesmente saberes”,
multiplicam-se dispositivos de mediação e circulação dos saberes. Em
conseqüência, modificam-se as aprendizagens relacionadas a tais saberes.
Comparece ainda a angulação dasrelações de fluxo entre saberes/processos
da escola e saberes/processos disponibilizados mediaticamente (tendo em
conta o aumento de dispositivos de mediação e circulação dos saberes).
Em suma, “aprende-se de outro modo, outras coisas”;
- os modos diferenciados de disponibilizar atualizações de conhecimentos
caracterizam mais um espaço de interface. A mídia disponibiliza para a
sociedade informações sobre os diversos campos de atividade humana com
muita agilidade, mas de modo assistemático. A escola absorve
conhecimentos de campos restritos de modo refletido e sistematizado, mas
com certa lentidão. E é essa diversidade de lógicas que gera um espaço de
articulações sujeito a tensões. O que gera um duplo desafio para ambos os
campos: para a escola, o de encontrar modos próprios (sistematizados e
refletidos) de interagir com a atualidade acelerada. Para a mídia, o de
29
inscrever essa atualidade em referências de percepção pública geral e leiga,
que, entretanto viabilizem a construção de relacionamentos e
sistematizações;
- as interações entre campos especializados e a sociedade leiga é um terreno
em que tanto os processos comunicacionais quanto os educacionais se
encontram em relações de fluxo;
- assim “entendendo a educação também como um campo especializado a
ser vigiado’, controlado e noticiado pelos meios, em outras palavras, o
sistema educacional em seus processos e objetivos são tema e objeto de
observação mediática e, portanto, submetido a uma interação social
ampla e crítica”;
- finalmente e talvez o ângulo de interface mais relevante entre os campos
seja o espaço da transdisciplinaridade, no qual processos, conceitos e
reflexões de um campo sejam postos, todos, a serviço do desenvolvimento do
outro campo, através de um trabalho em comum.” (Braga & Calazans,
2001:57-70) (mantivemos os grifos dos autores).
Ainda de acordo com Braga & Calazans sobre as possibilidades de aprendizagem via
processualidades midiáticas:
A aprendizagem social, via processos mediáticos, parece bastante ampla e
complexa, como se duplicasse, num outro nível e com outro contorno, os
demais processos de aprendizagem estabelecidos. As aprendizagens
culturais (de inserção ou contraste), aquilo que aprendíamos na escola, em
termos de modos outros e práticos de resolver as questões do cotidiano, mas
igualmente questões práticas ficcionais em que personagens enfrentam tais
questões e modelizam comportamentos possíveis, e ainda questões práticas
colocadas pela situação de interação em mundo amplamente mediatizado.
A ampliação das aprendizagens mediatizadas, do século XX, não se deixa
circunscrever facilmente. Decorre do aprofundamento dos processos
mediatizados da sociedade contemporânea, uma outra processualidade
comunicacional de interesse geral, ao lado da propagação de idéias,
imagens e produtos; da informação de atualidade e do entretenimento - a
aprendizagem. Esta parece menos evidente que as anteriores porque não se
destaca como alternativa de formalização dos produtos, mas como um
processo imbricado e porque não se resolve no campo da comunicação
social, como ‘processo educativo’, mas sim como uma aprendizagem difusa
extracurricular, extra-educacional, ao lado da família, da cultura e da vida
prática
(2001:64-66) grifo nosso.
30
Tudo isto pode ser assinalado desde antes do século XX. Com o invento de Gutenberg
e o advento do livro passaram a ser disponibilizados conhecimentos, narrativas ficcionais e
aconselhamentos familiares, entre outros. Os jornais e revistas, dentro de suas linhas de ação,
têm tido penetração igual ou superior. Entretanto, o livro e, posteriormente, os jornais e as
revistas encontraram processos de inserção nos espaços socialmente constituídos para a
aprendizagem. Assim, se o livro tornou-se vetor essencial do aprender na escola, o jornal e as
revistas tornaram-se importantes coadjuvantes do aprender no mundo, quer seja política,
cultural, prática (Braga & Calazans, 2001).
31
2 A REVISTA VEJA
A sociedade, tal como um organismo vivo, está constantemente a reordenar-se,
reorganizando relações, dinâmicas e tensões. De acordo com Braga & Calazans:
a percepção de que a instauração burguesa (da sociedade moderna) acabou
por desenvolver uma cultura de massa’ não determinada pela tradição
o que gera uma preocupação expressa com a ‘comunicação’ em espaços
mais amplos e generalizados que aqueles determinados pela política, pelas
artes, pelo direito ou pela moral estabelecida. (...) é neste período que são
desenvolvidas tecnologias que viabilizam o registro e o ‘transporte’ de...
informações e imagens
(2001:17)
.
Martín-Barbero (2006) afirma que entre os anos 30 e 60, o populismo, em maior ou
menor intensidade, foi a estratégia política que marcou as lutas em quase todas as sociedades
latino-americanas. É a primeira estratégia que busca resolver a crise do Estado aberta em
1930, em grande parte da região”.
Por volta dos anos 1960 uma nova ordem político-econômica se instaurou e ganhou
força nas décadas de 90. Com ela estabeleceu-se também uma nova ordem mediática,
grandemente afetada pelo processo de globalização, pelos avanços tecnológicos e pela
desregulamentação do setor de telecomunicações.
A centralidade da cultura é, pois, algo do passado. Importa hoje entender que a cultura
é a mesma e que as questões centrais sobre a cultura são as mesmas em todos os lugares, a
transnacionalização a que Martín-Barbero se refere, sobre isto Rossini (2001) afirma que
o jeans usado por brasileiros é o mesmo dos asiáticos; o McDonald's é
encontrado em qualquer esquina de qualquer metrópole, pequena ou
grande, salvaguardadas as especificidades, exigências e gostos locais. A
questão da identidade se recoloca fortemente em fins do séc. XX e início do
séc. XXI, devido a uma espécie de homogeneização cultural que as pessoas
percebem, grandemente reforçada pelos meios de comunicação.
Para Stuart Hall apud Rossini (2001) “a identidade, ou a identificação, é aquilo que
sutura, que dá liga a um grupo social, estando, pois, sujeita ao jogo da diferença”:
Como num processo, a identificação opera por meio da différance, ela
envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a demarcação de fronteiras
32
simbólicas, a produção de ‘efeitos de fronteira’. Para consolidar o processo,
ela precisa daquilo que é deixado de fora – o exterior que a constitui (idem).
Assim, o conceito de mestiçagem colabora com o panorama latino-americano de
constituição plural das identidades nacionais. A mestiçagem (imbricação entre diversos
códigos, textos, séries, enfim matrizes culturais, as mais diversas, que se entrelaçam e se
traduzem, resultando em novos cenários, polifônicos, polissêmicos) carece de leituras e
(re)interpretações constantes que dialoguem entre si, para além da superficialidade.
Segundo Martín-Barbero (2006:234) a partir dos anos 60
iniciou-se outra etapa na constituição do massivo na América Latina.
Quando o modelo de substituição de importações atingiu ‘os limites de sua
coexistência com os setores arcaicos da sociedade’ e o populismo não
conseguiria se manter sem radicalizar as reformas sociais e o mito, as
estratégias do desenvolvimento viriam a substituir a esgotada política de
soluções tecnocráticas e o estímulo ao consumo. Quando os meios de
comunicação são desviados de sua política é que o dispositivo econômico se
apodera deles e a ideologia se torna informadora de um discurso de massa,
que tem como função fazer os pobres sonharem o mesmo sonho dos ricos, de
consumir os mesmos produtos”, [o mesmo capital simbólico tão caro ao
Mesmo (nos termos de Prado & Bairon, 2007) como forma de
pertencimento]
.
(...) A imprensa também participou do processo de outorga de cidadania às
massas urbanas. E o fez quando se deu a explosão daquilo que conformava
sua unidade, que era o círculo letrado, e a ruptura com uma matriz cultural
dominante. Sobrecarregada tanto pelos processos de transnacionalização
quanto pela emergência de sujeitos sociais e identidades culturais novas, a
comunicação estava se convertendo num espaço estratégico a partir do qual
se podem pensar os bloqueios e as contradições que dinamizam essas
‘sociedades-encruzilhada’, a meio caminho entre um subdesenvolvimento
acelerado e uma modernização compulsiva” (idem).
A linguagem do sistema, em certo sentido, é surrealista, ou seja, sem grande controle
exercido pela razão, “não quando converte a riqueza da terra em pobreza do homem, mas
também e, principalmente, quando transforma as carências e as aspirações mais básicas do ser
humano num desejo consumista voraz”, quase insano (idem).
33
De acordo com Mira (2001:75)
10
, nesta esteira de conformações nacionais, políticas,
identitárias, em 1968, Roberto Civita, filho mais velho de Victor Civita, abraça o grande
projeto de lançar uma revista de informação semanal ao estilo da estadunidense Time e tem
como público-alvo as classes média e alta da sociedade brasileira.”
No Brasil, Mira apud Travancas (2002) afirma que questões amplas, de alcance
nacional, mais a busca de um jornalismo investigativo em um período ''delicado'' são assuntos
debatidos a partir da publicação da revista Realidade
11
. O país vivia um momento de intensas
transformações, com instalação de um grande mercado automobilístico, com vultuosos
investimentos no setor; somando-se a este cenário a expansão do turismo, foram estes os
fatores estreitamente relacionados com o nascimento e o sucesso da revista Quatro Rodas
12
por exemplo.
De acordo com pesquisas de Mira (2001:77) a revista Veja foi lançada com grande
estardalhaço no dia 8 de setembro de 1968. Uma campanha publicitária inédita foi feita no dia
anterior”:
Durante 12 minutos, às 22h. quase todas as emissoras de TV do país, numa
rede só formada anteriormente para graves declarações de chefes de Estado
brasileiros, transmitiram imagens da produção e do trabalho experimental
de seus repórteres. Desfilaram pelo vídeo, sendo entrevistados, para ajudar
a lançar a imagem de Veja, personagens variados que iam de Agnaldo
Rayol ao presidente do Conselho de Segurança das Nações Unidas
13
.
Igualmente inédito foi o esquema de distribuição, que lançou mão de todos
os meios de transporte conhecidos, ‘frotas de ônibus, caminhões, trens e
aviões cargueiros especialmente fretados’, para fazer a nora revista chegar
às bancas em quase todos os municípios brasileiros na segunda-feira, o
primeiro dia útil da semana. Desde então, Veja, passou a exigir de sua
editora um esquema todo especial de impressão e distribuição que deve agir
com toda a rapidez da madrugada de sábado, dia do fechamento da revista,
10
Ver também Scalzo (2004:31)
11
A revista Realidade é um marco na história do jornalismo brasileiro (...) a publicação da Editora Abril,
lançada em 1966 e produzida durante 10 anos consecutivos, representa para os profissionais da imprensa e
para os estudiosos da vida cultural brasileira um momento obrigatório de referência, tanto pela abrangência
dos temas que reportou como pela forma como o fez” Faro (1998:4). Ver também Mira (2001:68-74).
12
Ver também Mira (2001:61-68).
13
Pereira, Raimundo. Uma história de Veja. Reflexões de um dia de aniversário. São Paulo, Veja, set/72 apud
Mira (2001:77).
34
até a segunda-feira, quando deverá tê-la entregue a 20 mil pontos de
venda no país e nas casas de aproximadamente 800 mil assinantes.
O lançamento de Veja lembra muito o de O Cruzeiro. Os números são
maiores, mas a ambição é a mesma. Como Assis Chateaubriand, Victor
Civita queria uma revista de abrangência nacional. Como Claudia, Quatro
Rodas e Realidade, Veja queria ir ao encontro do Brasil. Dessa vez através
da informação:
O Brasil não pode mais ser o velho arquipélago separado pela distância, o
espaço geográfico, a ignorância, os preconceitos e os regionalismos:
precisa de informação a fim de escolher novos rumos. Precisa saber o que
está acontecendo nas fronteiras da ciência, da tecnologia e da arte no
mundo inteiro. Precisa acompanhar o extraordinário desenvolvimento dos
negócios, da educação, do esporte, da religião. Precisa estar, enfim, bem
informado. E este é o objetivo de Veja
14
.
Diferentemente do discurso desenvolvimentista que lançara Quatro Rodas, o
editorial de Victor Civita, nos remete ao clima de integração nacional que
reinava na época: a idéia de um Brasil que precisava integrar suas partes
mais atrasadas às mais avançadas, por uma questão de segurança, na visão
dos militares, pela necessidade de modernização, como queriam os
empresários. (...) Sabemos que a grande porta-voz do regime militar foi a
Rede Globo de Televisão. Veja e a Abril também cresceram com o regime
militar, mas a revista, nos seus primeiros anos, manteve-se mais
independente. Várias vezes esteve às voltas com a censura: teve exemplares
apreendidos e, como o restante da imprensa, viveu vários anos sob censura
prévia.
... a maior e mais polêmica revista brasileira chegou às bancas pela
primeira vez num momento ‘em que o mundo estava explodindo à sua volta’:
1968. Mas os planos para sua realização, de acordo com a versão de sua
editora, datavam de dez anos antes: teriam vindo na ‘bagagem’ de Roberto
Civita, que chegara dos EUA em 1958. Contudo, Victor Civita teria achado
cedo demais para uma editora que publicava somente história em
quadrinhos e fotonovelas voar tão alto.
Ao longo dos anos 60, a empresa se consolida e o nome de Roberto Civita se
firma. De início, ele atua como diretor de publicidade em Quatro Rodas. Em
1966, seu nome aparece como diretor de Realidade, revista cuja
14
Civita, Victor. Carta ao leitor. São Paulo, Veja, n. 1, set/68 apud Mira (2001:78).
35
concepção é atribuída a ele. Mas é em 1968 que o filho mais velho de Victor
Civita abraça o seu grande projeto, o lançamento de uma revista de
informação semanal do estilo de Time. Como o pai, ou talvez mais ainda,
Roberto – na verdade Robert tem uma formação norte-americana. Na
Universidade da Pennsylvânia, forma-se em Economia e Jornalismo, onde
elabora trabalho de conclusão de curso sobre editora da Philadelphia, a
Curtis. Terminado o curso, é escolhido para ser estagiário no grupo Time-
Life.
Como ele mesmo explicou, essas duas experiências foram tremendamente
importantes para sua futura carreira como editor:
‘Na minha tese sobre a Curtis e em um ano e pouco que eu passei como
trainee em Time... entendi melhor o que é a atividade jornalística, como se
faziam grande revistas... e o tipo de recurso que você tem que colocar a
disposição para as pessoas que fazem revistas...
15
(2001:77-78)
Ainda de acordo com Mira (2001:79) Veja tem sido, ao longo dos anos a porta-voz da
linha econômica e política da Editora Abril, a única revista diretamente
ligada ao seu presidente. Roberto Civita. Por isso, seu papel ideológico
nesses campos é crucial. Através de suas matérias, procura-se ‘mudar a
cabeça das pessoas’, como disse o próprio. (...) poderíamos dizer que,
grosso modo, os próprios criadores da revista vêem nela uma publicação
que, no início, foi mais combativa em relação ao regime militar. Era o
momento da chamada linha-dura no poder, e Veja se posicionava contra as
arbitrariedades do regime, em especial contra o AI-5, o fechamento do
congresso, a suspensão dos direitos civis, a censura e, obviamente, a tortura
(...)
No seu quarto aniversário, quando Veja consegue várias entrevistas sobre a
demorada sucessão de Costa e Silva com fontes consideradas inatingíveis,
Raimundo Pereira, um de seus criadores, observa:
“Veja agora parece estar começando a enfrentar o problema contrário:
acesso às e confiança das fontes muito maior, de um modo geral, que o resto
da imprensa, o que, em certos casos, pode torná-la ou fazê-la parecer, mais
íntima das autoridades que a prudência recomenda
16
.”
15
Roberto Civita, depoimento para o Projeto Memória da Abril, São Paulo, s/d (Mira, 2001:75).
16
Pereira, Raimundo. Uma história de Veja. Reflexões de um dia de aniversário apud Mira (2001:79).
36
Após a aludida cobertura, em 1969, a revista começou a ganhar prestígio,
tornando-se, paulatinamente, uma mídia impressa tão obrigatória quanto a
Rede Globo na TV. Essa busca de abarcar a nação teve muitos tropeços.
Durante os cinco primeiros anos , Veja operou no vermelho (...) Para além
da falta de recursos que as revistas anteriores tiveram que superar, Veja
enfrenta a difícil adaptação do modelo Time à tradição jornalística
brasileira e aos hábitos de leitura do público(2001:79-80).
Scalzo salienta que na história da revista houve rias dificuldades, censuras, barreiras
e prejuízos a vencer:
Veja lutou com dificuldade, durante sete anos, contra os prejuízos e contra a
censura militar, até acertar sua fórmula. As vendas começaram a melhorar
quando a revista passou a ser por assinatura, em 1971. Hoje, as assinaturas
correspondem a 80% da venda dos cerca de 1.200.000 exemplares semanais
(2004:31).
A autora Maria Celeste Mira sobre o fracasso inicial de Veja considera que o principal
motivo foi
... a decepção dos leitores, que esperavam uma revista diferente. O próprio
nome fazia supor que ela seria semelhante a Look. Tão próximo era o título
que esbarrou no registro internacional da revista norte-americana,
obrigando a empresa a mudá-lo ligeiramente para Veja e Leia para
contornar o problema, até o desaparecimento de Look no início dos anos
70. A campanha de lançamento dera a entender que a Abril estaria
lançando a sua Manchete, ou seja, uma revista semanal ilustrada, quando o
que se pretendia lançar era uma revista semanal de informação semelhante
à Time e Newsweek (2001:81-82).
Nos anos 70, Veja ainda recebe bastante pressão do regime militar, em
particular em relação à Mino Carta, a quem a direção da Abril resolve
demitir em 1975, um ano antes do fim da censura. Em solidariedade ao
criador e diretor da revista, vários outros jornalistas se demitem. Para
Raimundo Pereira e outros colaboradores de primeira hora, Veja mudou
muito depois disso:
“Eu tenho uma opinião bastante negativa do quadro. Acho que o que existe
é bastante insatisfatório. Em primeiro lugar, Veja, a grande revista,
desempenha um papel político ruim. Seu saldo essencial tem sido o de
apoiar a política do governo. Salvo um período de resistência aos aspectos
mais nocivos do regime, quando era editada por Mino Carta, ela tem sido
37
uma revista a serviço de grupos palacianos, com um estilo de jornalismo
que se tem deteriorado em função disso
17
.”
Augusto Nunes, redator-chefe da revista nos anos 80, concorda que a linha
editorial da revista é conservadora (2001:79).
Por fim, vale lembrar que a revista Veja aborda temas ligados ao cotidiano da classe
média brasileira e, por vezes, mundial como política, economia, cultura, religião,
comportamento, guerras, conflitos e negociações diplomáticas. Seus textos são elaborados por
jornalistas, porém, nem todas as matérias são assinadas. Com certa regularidade são
agendados temas como tecnologia, ecologia, religião, corpo e beleza, saúde, educação,
violência, entre outros. Possui, ainda, seções fixas sobre cultura geral, cinema, teatro,
literatura, música, gastronomia e guias práticos sobre assuntos diversos. A revista é entregue
aos seus assinantes nos sábados e nas bancas aos domingos, mas traz a data das quartas-feiras.
2.1 ESTADO DA ARTE
Estudar a mídia é um risco (...) isso implica, inevitável e necessariamente, um
processo de desfamiliarização. Questionar o dado-por-certo. Mergulhar abaixo da
superfície do significado. Recusar o óbvio, o literal, o singular. Em nosso trabalho,
muitas vezes e com razão, o simples se torna complexo, o óbvio opaco. Luzes
brilhantes fazem desaparecer as sombras. Está tudo nos cantos (Silverstone,
2002:35 apud Schwertner
18
, 2007).
“Estudar a mídia. Delongar-se em cada imagem. Deixar-se tocar por elas, surpreender-
se com outras formas de linguagem (...). Estranhar o cotidiano, o rotineiro, o 'dado-por-certo'
do discurso. Pois não o essas também tarefas inerentes à Educação?(Schwertner, 2007).
Por acreditar nisso, pretendemos colocar em xeque os discursos acerca de comunicação e
educação, e assim como Schwertner, assumir os riscos que se apresentem pelo caminho. Em
nosso levantamento acerca do estado da arte do objeto nos deparamos com algumas questões
17
Silva, Carlos Eduardo Lins da. Quinze anos de Veja. Revistas semanais de informação consolidam sua
posição no mercado, Revista Crítica da Informação, set/83
18
Suzana Feldens Schwertner é psicóloga, mestre em Educação (PPGEDU/UFRGS), membro do NEMES
(Núcleo de Estudos sobre Mídia, Educação e Subjetividade, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Educação
da UFRGS) e membro do corpo clínico do GAEPSI (Grupo de Atendimento e Estudos em Psicoterapia).
38
examinadas em trabalhos diversos, com enfoques diferenciados, porém pertinentes ao campo
de interface entre Comunicação e Educação.
Em nossas pesquisas encontramos inúmeros trabalhos sobre o uso da imprensa na sala
de aula, e como seria inviável citar a todos, elegemos alguns que julgamos mais pertinentes à
reflexão que aqui nos propomos, como por exemplo, o artigo de Caldas (2006)
19
intitulado
Mídia, escola e leitura crítica do mundo” que procede a
...uma reflexão sobre o uso da imprensa na sala de aula e sua relação com o
processo de aprendizagem. Questiona a excessiva inserção de fragmentos
do discurso jornalístico nos livros didáticos em detrimento de outros
gêneros. Discute a qualidade da narrativa jornalística e os riscos que ela
encerra se não houver uma leitura crítica da mídia. Defende a necessidade
de trabalho integrado entre educadores e jornalistas para a real
compreensão do processo de produção da imprensa, construção da
linguagem e da linha editorial dos veículos de comunicação.
A autora considera que os percursos metodológicos entre as áreas de comunicação e
educação vêm sendo trilhados muito tempo, de forma paralela, sem que os especialistas
desses campos do conhecimento consigam chegar a um denominador comum para a interface
necessária ...”
Vermelho
20
& Areu
21
(2005) realizaram um estudo acerca do Estado da arte da área
de educação & comunicação em periódicos brasileiros”, mesmo título do artigo que procurou
relatar os resultados da pesquisa bibliográfica, acerca do levantamento de artigos publicados
em 58 periódicos nacionais das áreas de educação e comunicação, entre 1982 e 2002,
totalizando 1599 artigos. O objetivo eraidentificar aspectos da produção veiculada em
periódicos científicos nacionais que abordavam temáticas envolvendo simultaneamente a
educação e a comunicaçãoe a partir daí, identificar aspectos relevantes e/ou lacunas nesta
produção. Apresentamos a seguir alguns achados dessas autoras:
19
Graça Caldas é doutora em Ciências da Comunicação pela USP; professora e pesquisadora do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP); coordenadora
científica da s-Graduação das Faculdades Metropolitanas de Campinas (METROCAMP); professora e
pesquisadora associada do curso de Jornalismo Científico do LABJOR/UNICAMP
20
Doutora em educação e professora do Mestrado em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná –
PUC-PR.
21
Doutora em Comunicação Social e professora do setor de comunicação da PUC-PR.
39
Tabela 2: textos lidos, divididos por área, região e ano de publicação (Vermelho & Areu, 2005).
Para correta leitura da tabela 2 transcrevemos resumidamente as orientações das
autoras supra:
código para definir a área: 01 para textos da área de Comunicação e 02 de
Educação; NE para estados do Nordeste; S para os do Sul; SE para os do
Sudeste; CO para os do Centro-Oeste, com isso o código 01CO, por
exemplo, significa que são textos oriundos dos periódicos da área da
comunicação publicados na região Centro-Oeste.
Há várias tabelas e dados elucidativos, mas aqui nos atemos a apresentação dos
achados mais relevantes de Vermelho & Areu (2005), os
... resultados ... não esgotam todas as possibilidades de análise a partir dos
dados coletados, mas nos mostram ... tendências da produção na área no
período analisado e num determinado tipo de veículo de divulgação das
pesquisas, que são os periódicos. Um dos aspectos que identificamos após a
leitura do material é que uma boa parte dos textos que são resultados de
40
pesquisas não apresentam de forma clara os aspectos metodológicos e
norteadores do trabalho. Ainda que devamos considerar que um artigo num
periódico não é a mesma coisa que um relatório de pesquisa, ainda assim
essas informações auxiliam os leitores a terem uma compreensão mais clara
da problemática abordada, do contexto espacial e temporal em que foi
realizada a pesquisa, os sujeitos envolvidos etc.
... outra consideração ... não diz respeito especificamente ao conteúdo dos
textos lidos, mas às dificuldades encontradas para a realização desta
pesquisa, pois em alguns momentos foi possível identificar um certo descaso
de algumas instituições com o acervo de periódicos, o que nos parece uma
contradição com as políticas para a pesquisa científica, já que os periódicos
são considerados um dos espaços reivindicados para divulgação dos
resultados de pesquisa e, também, esse aspecto pode nos indicar que existe
uma certa preferência por textos no formato de livros do que de artigos em
periódicos. Com isso, cabe a nós pesquisadores repensar qual o papel que
esse veículo ocupa no processo de formação de novos profissionais, para o
avanço das pesquisas e do conhecimento sobre a área mídia e educação, e
finalmente, qual a função social dos periódicos para as instituições e
profissionais
.
Especificamente sobre o conteúdo dos artigos lidos as autoras fazem algumas
inferências as quais permitem apontar, ainda que resumidamente, alguns aspectos:
- o crescimento de publicações envolvendo a temática Educação &
Comunicação a partir da segunda metade da década de 1990;
- a liderança do Sudeste sobre a produção brasileira em ambas as áreas;
- a Televisão e dia Impressa sendo as mais estudadas durante todo o
período analisado;
- a Mídia como o sujeito mais privilegiado, seguido pelos Alunos e
Professores, nos indicando que a produção tomou o interior da escola,
mais especificamente a sala de aula, como foco de estudo;
- os três problemas relação do sujeito com a mídia, conteúdo da mídia e
metodologia se constituíram nos aspectos centrais das problemáticas
abordadas na produção brasileira nesse período analisado;
- o Ensino Fundamental e Graduação como o período de formação mais
estudado, o que nos indica uma lacuna em relação à educação infantil, ao
ensino médio e à educação extra-escolar;
41
- e, finalmente, as pesquisas serem predominantemente empíricas, ou seja,
buscando na realidade respostas ou novas inquietações para os
pesquisadores.
42
3 REFERÊNCIAS TEÓRICAS E CORPUS
Para fundamentação teórica comparecem os conceitos abaixo e seus respectivos
autores, que aparecerão no texto na medida em que se fizerem necessários para construção e
argumentação da análise.
Como dissemos interessa-nos examinar: quem e como são apresentados os sujeitos
das narrativas acerca da educação, bem como, o que e como dizem; os objetos de valor que os
põem em movimento; as linhas de tensão que afloram no discurso. Neste exame propomos
que, igualmente como sugere Fischer (2002b:84)
22
se busquem os enunciados de certos
discursos, de certos regimes de verdade, próprios de uma época, produzidos, veiculados e
recebidos de formas muito específicas, que falam de um certo tempo e lugar... de
determinadas relações de poder...” no sentindo de Foucault “...que produzem sujeitos de uma
certa forma”. Interessa-nos examinar os modos de existência propostos na mídia à crianças,
a jovens, a educadores, modos que não se separam de modos de enunciação, de práticas de
linguagem, de celebração de certas verdades tornadas hegemônicas.” (idem)
Abordaremos a visibilidade (ou não) de certos sujeitos e/ou objetos nos termos
adotados por Prado (2007), em pesquisa concluída em início de 2008, na qual desenvolveu
estratégias de análise das figuras do ’Mesmo’ e do ’Outro’ na mídia impressa semanal a fim
de construir modos de intervenção em termos de um projeto de educação para a mídia”.
Prado (2007) entende por
‘Mesmo’ as séries de paisagens culturais e políticas euforizadas pela mídia
e homólogas à valorização média de seus públicos”. E chama de “‘Outro’ as
séries de paisagens culturais e políticas frente às quais a mídia estabelece
distâncias relativas, calculadas, homólogas ao afastamento que seus
públicos mantêm”. Assim sendo, frente ao Outro é preciso resguardar-se,
qualificando-o de exótico, ao exibi-lo para o display, mas em outros casos, é
preciso ocultá-lo do holofote, deixá-lo às margens; assim, ele pode ser
assimilado, admitido ou segregado (conf. Landowski, 2003); em certos
22
Em seu artigo “Problematizações sobre o exercício do ver: mídia e pesquisa em educação” Fischer (2002b:84)
trata da mídia televisiva, evidentemente guardadas todas as proporções e particularidades de cada objeto, mas
analogamente, também nos interessa as imbricações do campo comunicacional com o campo educacional.
43
casos, será necessário inscrevê-lo como inimigo, excluindo-o. (Prado e
Bairon, 2007).
Ao concentrar nosso exame nas construções discursivas e nas estratégias de produção
de sentido adotadas pelo enunciador, sujeito produtor do enunciado, utilizamos como
instrumento a semiótica discursiva proposta por Barros e Fiorin.
CULTURA, COMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO
Assim, Fischer (2002b:93) considera que “a análise de processos comunicacionais, à
medida que conta da complexidade da produção/emissão/veiculação, igualmente da
recepção/apropriação, e, principalmente, de temáticas contemporâneas, pode ser oferecida
como possível, plausível e produtiva, nas análises que se quer empreender no cruzamento dos
campos da educação e da comunicação. As análises dos meios de comunicação e informação
estão a exigir, nestes tempos, articulações mais densas e comprometidas com a complexidade
presente tanto nos processos comunicacionais quanto nos educacionais.”
Santaella (2005) afirma que “o mundo vem sendo crescentemente povoado de novos
signos. Tal proliferação cria uma necessidade de que se possa lê-los, dialogar com eles em um
nível um pouco mais profundo do aquele que nasce da mera convivência e familiaridade”.
Assim, de acordo com Moran (1991) “educar para a comunicação implica auxiliar na
compreensão de novas codificações, das sutilezas da imagem e, sobretudo, da articulação
entre visual e verbal”.
Importa na análise aquilo que perpassa a informação, os dados de estrutura (interna e
externa) do discurso, considerado o contexto sócio-histórico-político, bem como a detecção de
relações de força entre classes e grupos. Deve-se evitar no exame um tom apocalíptico da
onipresença do Estado, tendo em vista a investigação dos espaços, possíveis, que a sociedade
civil conquista no discurso. No entanto, não pode ser ingênua, deslumbrando-se com o tom
“crítico” de muitas matérias, até porque a informação é conjunto de interpretação e omissões
significativas, onde hegemonicamente, um dos pólos prevalece (Barros, 2005; Moran, 1991).
A finalidade de análise do discurso é, de um lado, desmistificar os meios de
comunicação como representantes isentos da sociedade, “neutros” e observar como informam
a partir de perspectivas, em geral, elitistas. De outro lado, visa observar as concretizações
desse fenômeno, a necessidade de credibilidade diante de toda a sociedade, o que limita a
interferência da elite nas informações. Não se trata de afastar as pessoas dos jornais e revistas,
44
mas de ajudá-las a perceber melhor o contexto da informação, alguns mecanismos internos da
informação como indústria e produto, despertando nelas a necessidade de comparar notícias,
sem deixar-se levar pela primeira fonte (Moran, 1991).
45
PARTE II
4 A ESCOLARIZAÇÃO EM VEJA
4.1 UNIVERSIDADE BRASILEIRA
Neste capítulo nos dedicamos a examinar o discurso que Veja constrói acerca
da universidade brasileira, as dificuldades de acesso, dada à escassez de vagas, e
as condições sócio-econômicas que, por vezes, impedem a permanência nos
bancos escolares. Além disso, tratamos dos problemas estruturais da universidade e
finalmente do drama da classe média na consecução de um bom emprego para os
filhos recém-formados.
4.1.1 ANTES DO INGRESSO: VESTIBULARES E A ESCOLHA DA
PROFISSÃO
A reportagem de capa de 21/08/1970 tem por título
Vestibular: a difícil competiçãoe título interno Vestibular:
Poucos chegam ao vestibular. Ainda assim, são muitos para
as vagas na universidade. Fraudes, psicotrópicos e até
consultas às cartomantes: esses recursos são lidos?”, a
idéia do título se estende por quase toda a reportagem,
tratando das dificuldades de passar pelo vestibular, referido
e fortemente enfatizado como “doloroso rito de iniciação à
vida”. A capa traz em primeiro plano o olhar concentrado da aluna, a expressão
preocupada, a caneta na boca, assim remetendo a um significado icônico de
nervosismo e conduzindo o percurso do olhar para a prova; este conjunto conota
uma enorme tensão em torno do tema vestibular. Há predominância de tons marrons
e pastéis opacos, reforçando a idéia de peso, tensão e preocupação. Ao fundo,
desfocado, outros estudantes que parecem ter também as cabeças abaixadas,
em sinal de concentração nas provas. O enquadramento da capa, tão próximo,
46
mostrando uma adolescente num momento que, aparentemente, parece difícil,
sugere que ela fala diretamente com os enunciatários: vestibulando e família
(preocupem-se realmente!).
A tensão inicial da capa, manifestada no corpo da reportagem por um exército
(ver próxima foto) que o enunciatário tem a vencer, é fortemente confirmada no
interior da reportagem em diversas passagens: “desmaios e crises nervosas de
candidatos. (Em São Paulo, um jovem que fazia o exame da PUC 3,5 candidatos
para cada vaga –, levado às pressas ao posto médico instalado no Ginásio do
Ibirapuera (...), queixou-se: ‘Doutor o que há com meu braço? Já fiz dois vestibulares
e não tive nada. Agora não o sinto mais’.)”; “Em Fortaleza, o clima de tensão... levou
candidatos a formarem filas diante das tendas de madames Miracelli e Triana, as
duas cartomantes mais conhecidas da cidade”; “Mas o pânico mesmo é no segundo
semestre”; “No fim do ano o apavoramento é total (...) então, a gente toma todo
mundo toma Reactivan (um estimulante que aumenta a capacidade de percepção
e cria um estado de euforia; poucas doses bastam para viciar)”; “Emagreci 6 quilos
nos últimos meses. Nos últimos quinze dias não agüentava mais estudar e parei.
Olhava os livros e tinha vontade de vomitar.”
Nas primeiras ginas da reportagem emerge uma grande foto que toma as
duas páginas iniciais, abaixo reproduzidas. A legenda diz: “Ginásio do Ibirapuera,
São Paulo, (6700 candidatos): umas das muitas frentes da grande competição” a
palavra “frente” sonoramente lembra front, remetendo à guerra e suas estratégias;
assim, pode-se dizer que tem-se um exército retratado. A foto com enquadramento
amplo, à distância, bem como sua iluminação e o percurso do olhar difusos, o a
impressão de querer proporcionar ao enunciatário uma visão de conjunto, o que se
verifica também no plano verbal (texto, gráficos e entrevistas).
47
Vale lembrar que internamente a revista é predominantemente
monocromática, havendo, no entanto, apenas duas páginas coloridas (36 e 37) na
qual figuram fotos que revelam tensão, nervosismo e pretensas técnicas para ajudar
o vestibulando naquele derradeiro momento. A imagem em plano aberto (do tipo
vista aérea) é retomada e reitera o tema do “sofrer junto”.
É uma reportagem dramática, tensa, que evoca a lógica do ter que entrar
numa “grande” universidade como forma de garantir o sucesso, o que cria angústias
e mais tensão no enunciatário. A alteração da agenda midiática em função dos
vestibulares reforça esta lógica: “Em quase todas as cidades, os jornais e estações
48
de rádio prepararam esquemas especiais de cobertura dos vestibulares,
reproduzindo diariamente as provas e seus resultados”; “O ‘Jornal dos Sports’, do
Rio, usou oito repórteres e 150 colaboradores (todos estudantes) na sua cobertura e
criou também um serviço especial, o ‘telefone do estudante’, exclusivamente para
responder às consultas.”, entre outros exemplos semelhantes. também um outro
paradigma vigente, o de que é necessário um sacrifício sobre-humano, repleto de
privações para conseguir a sonhada vaga numa universidade considerada boa. Este
paradigma é invertido em reportagens mais recentes. A seguir, transcrevemos um
trecho que julgamos elucidativo para o que discutimos até agora acerca desta
reportagem:
Para os alunos que disputaram o vestibular, o rito de iniciação apesar
de doloroso, era um privilégio. Eles eram em geral filhos da classe
média ou rica e submetiam-se a essa ‘iniciação à vida’ em busca de
um prêmio: um possível título de bacharel. Como aceitaram o
esforço? Um deles, carioca, dezenove anos, conta: No começo do
ano a gente se matricula no colégio e no cursinho. é moleza.
para a gente pegar um cinema, praia e uma boatezinha aos sábados.
Depois do segundo mês, a coisa aperta um pouco e a gente encolhe
o fim de semana. Mas o pânico mesmo é no segundo semestre. Os
cursinhos começam a dar vestibulares simulados (...). No fim do ano
é apavoramento total.
está presente a idéia dos “gênios dos vestibulares”. vários deles
retratados na reportagem, mas ainda é um “gênio” que deve fazer grandes
sacrifícios, quase deixando de viver em função de ser aprovado nos vestibulares.
Na capa da reportagem de 07/04/1971 Cursinho, a
passagem obrigatória o percurso do olhar é direcionado,
por meio de faixas vermelhas, ao fundo, para uma caixa ao
centro; no alto desta caixa aparece em vermelho a palavra
“cursinho” e em seu interior há uma
profusão de pessoas, o que dá a
impressão de sufocamento. Estas são
empurradas, esmagadas contra a
passagem que é estreita e obrigatória; a idéia é ratificada pelo
conteúdo lingüístico. Depois da porta aparece um caminho
49
vermelho, que parece mais com uma massa líquida grossa e vermelha, amorfa,
processada pelo cursinho. Conotativamente podemos falar numa massa amorfa, de
vestibulandos, que caminha feito gado para o funil dos vestibulares. Na reportagem
de 29/04/1987 “Universidade: onde estão as soluções” surge figurativizada num
infográfico (ver figura acima) também esta idéia de estreitamento do funil.
O enunciador de Veja não reconhece o cursinho pré-vestibular como uma
modalidade de ensino legítima, de saída, chamando-o de “bastardo”, “herói
improvisado do ensino”: “o cursinho (...) foi um filho espúrio, destinado a corrigir na
prática o erro da teoria”. Essa reportagem tem certo ar de saudosismo do ensino
considerado “de boa qualidade” e narra as perspectivas históricas do surgimento dos
cursinhos: no princípio, como aulas particulares em substituição aos cursos pré-
universitários e, num segundo momento, o seu estabelecimento comercial em
decorrência das dificuldades e desejos dos vestibulandos. O enunciador afirma que
estas são “as únicas instituições capazes de ajudar os estudantes”.
Numa subdivisão do texto intitulada “Cará, cará, cará” (onomatopéia que
representaria as moléculas de água chocando-se entre si, exemplo, em voz direta,
do método de um professor de cursinho para explicar os estados físicos da água), o
enunciador afirma, mesclando primeira e terceira pessoa, que o importante são os
resultados obtidos: passar nos grandes vestibulares e, para tanto, descreve métodos
inovadores, relata experiências e traça um paralelo, ainda que ligeiro, entre o
professor da escola pública e o professor do cursinho, resultando euforizado este
último.
O enunciador segue comparando a infra-estrutura da escola pública com a do
cursinho no quesito “material didático” (apostilas e livrões), contra sua ausência na
escola pública e a perda de tempo por parte do professor ao ter que escrever tudo
no quadro negro. “O professor de cursinho tem outra vantagem sobre seus colegas:
raramente perde tempo escrevendo no quadro-negro. Seus alunos recebem as
aulas transcritas em apostilas”. A crítica que educadores e sindicatos costumam
realizar a este modelo de ensino apostilado refere-se à pausteurização dos
conteúdos, acabando, desta forma, com a autonomia de cátedra do docente.
É explícita a euforização dos cursinhos: o enunciador promove uma espécie
de RX dos cursinhos, relatando sua organização didática, financeira e legal. Por fim,
na última página, figura um “Guia dos cursinhos” relacionando quarenta e cinco
50
cursinhos das principais cidades brasileiras (Belo Horizonte, Brasília, Campinas,
Curitiba, Goiânia, Guanabara – hoje Rio de Janeiro –, Porto Alegre e São Paulo)
A capa, de 14/12/1983, com título Vestibulares: a
corrida para a informática”, traz ao centro a figura de um
computador exibindo um gráfico e sobreposto a livros,
prancheta e papéis, sua disposição sobre estes materiais
pode dar o sentido simbólico de que ele ultrapassou tais
outros recursos. Entendemos que era, para a época, um
computador atualizado. À sua volta e sobre ele figuram
canecas, subtendendo que havia alguém trabalhando
intensamente, o que é reiterado pelo recurso verbal do
título “a corrida para a informática”.
Na primeira página figura como primeiro elemento a
foto reproduzida ao lado, em que aparecem quatro
estudantes. A única mulher traz nos braços uma apostila
do cursinho Objetivo, reiterando a idéia, desenvolvida
em outras reportagens, de que o cursinho pré-vestibular é
condição sine qua non para ingresso nas “grandes”
universidades. A legenda reitera a idéia central da
reportagem, antecipada na capa: ...quatro certezas de que o futuro está nos
computadores”. Abaixo figura o nome da sessão “educação”, o título interno O
diploma do futuro” e a chamada “O Vestibular-1984, menos concorrido que os
anteriores, inaugura a era da informática e recupera o interesse pelas ciências
humanas”. A reportagem, de início, apresenta dados, sujeitos e expectativas na
corrida pela informatização, indicando um cenário animador para este setor.
A informatização do mundo é inegável e crescente, e a reportagem procura
delinear este quadro “inicial” tanto de procura pelas carreiras da área de informática,
como por vagas em diferentes áreas (contrapondo ciências humanas versus exatas),
além de estabelecer a oposição mercado de trabalho versus formação ou retorno
financeiro versus expectativa de crescimento pessoal. O panorama traçado é o de
que o mercado de trabalho não está favorável, à exceção das carreiras da área de
informática, enunciadas na reportagem como promissoras: “... o professor Song, da
USP, prevê um futuro colorido para seus alunos”. O enunciador promove a
construção de um cenário desolador para as áreas de ciências humanas e exatas e
51
considera que a grande saída para um emprego garantido está na escolha pela área
de informática.
O enunciador ressalta que o acesso ao ensino superior se deve muito mais a
um desejo de “adquirir cultura geral” ou “expectativa de crescimento pessoal” do que
ao aspecto profissional ou da possibilidade de sucesso numa determinada carreira;
para justificar seu argumento ele apresenta dados da CAPES
23
, afirmando que “A
taxa de estudantes que nunca trabalharam, e investem em sua formação de olhos
postos num emprego, gira em torno de 30% do total ou pouco menos de 400.000
universitários”. Com isso ele afirma que “Os resultados da pesquisa enterram na
gaveta dos mitos a imagem do universitário jovem, trajando jeans e sobrevivendo
com mesadas enviadas pela família.” E segue buscando apoio na voz do
especialista: “‘Sabe-se que agora (1983) o universitário típico é alguém que já estava
no mercado, não um desempregado à procura de trabalho’, afirma Cláudio Moura
Castro”. Neste sentido o enunciador enfatiza que
o sistema educacional brasileiro terá contraído uma doença grave.
Em países desenvolvidos, não é preciso cursar uma faculdade para
decifrar as notícias de jornais basta passar pelo colegial (atual
Ensino Médio) para atingir esse nível de compreensão dos fatos... o
que ajuda a explicar o reflorescimento do interesse pelas ciências
humanas... em muitos casos o curso superior transforma-se numa
monumental tentativa de recuperação cultural.
Por fim, o enunciador enfatiza, com tal argumento, que diante do quadro de
desemprego a única saída para garantir o emprego é a área de informática. Na
página 105 figura um quadro “Os caminhos para o mundo dos computadores” que
visa clarificar um pouco sobre as atribuições e tarefas de um
profissional de informática.
A reportagem de 20/01/1988, com título de capa
Vestibular: fraude; desrespeito; corrupção; desordem;
inécpiae título interno “A resposta certa é a fraude: O maior
escândalo da história do vestibular invalida a Cesgranrio e
atrapalha a vida do estudante”, trata do escândalo do
vestibular fraudado de 1988. A construção imagética
23
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
52
utilizada na capa traz um fundo branco chapado, como se fosse uma questão-teste
de vestibular, em que as opções são os graves problemas contextuais do vestibular
naquela época.
A reportagem é iniciada com um ícone que traz um lápis em cima
de uma nota de dinheiro (ver figura ao lado). O enunciador, nesta
reportagem, adota um tom de denúncia, fala da corrupção no país, tanto
na esfera pública, quanto na esfera privada, do suborno ao guarda de trânsito às
grandes licitações públicas; além disso, ele traz dados acerca dos vestibulares pelo
país afora e delineia a evolução dos números no decorrer do tempo.
Veja procura dar voz à indignação geral e em certa medida desacredita o País
na frase: Muito brasileiramente, aprendem, na carne, que Macunaíma tinha razão:
‘Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são.’” e Sabe-se que o Estado e as
instituições brasileiras são responsáveis por muita coisa de ruim que ocorre no país
mas não neste caso. A revista enuncia o fortalecimento das instituições
democráticas como forma de combate à corrupção e também das ações dos
governos militares.
Nesta reportagem Veja adota um tom investigativo e acusatório, figura um box
no qual o enunciador mostra esquematicamente o processo de produção do
vestibular Cesgranrio questionando, várias vezes, o então presidente da entidade e,
por fim, evoca o inferno de Dante (num artigo suplementar e seqüencial de Roberto
Pompeu de Toledo O aprendizado na fraude: Num ambiente como o oitavo círculo
do inferno, onde Dante colocava os fraudulentos, o maior perigo é a sedução da
tirania”). Depois apela à moral: No inferno de Dante, a corrupção, ou antes a fraude
– como a chamava o poeta –, está situada no oitavo círculo, ainda abaixo da
violência, que ocupa o sétimo. Para ele tratava-se de algo
ainda mais sujo e mais contrário à Deus.
A reportagem de 20/08/1997, Profissões: as mais
promissoras; as congestionadas; como escolher a sua”, se
propõe de saída a ensinar o leitor a escolher a “melhor” ou
pelo menos a mais rentável profissão; na capa sobre um
fundo azul figuram setas que apontam em diferentes
direções, mas três se sobressaem, a saber: “direito”,
“engenharia” e “medicina”. De fato, essas três carreiras
53
estiveram em evidência durante o século XX. O que o enunciador faz é se colocar
como onisciente a respeito das diversas carreiras (título interno Navegando num
mar de profissões”): ele se propõe ser a carta de navegação neste mar tortuoso, e
sabe a rota que o leitor deve seguir, apresentando-a da forma mais “didática”
possível, com dicas e muito dever-fazer direcionado aos vestibulandos e às suas
famílias. Vale lembrar que esta é uma matéria assinada por Izalco Sardenberg e
Karina Pastore.
O enunciador cita estimativas de consultores, mas não os nomeia:
Estimativas de consultores de recursos humanos dão conta de que apenas cinco de
cada 100 vestibulandos de primeira viagem estão absolutamente certos de sua
escolha antes da inscrição para as provas.” Para minimizar o problema, a revista traz
um teste vocacional e um especial anexo à reportagem Tirando dúvidas de última
hora: Direito e medicina continuam bem, economia e agronomia estão entre as
opções mais promissorasuma espécie de guia do vestibulando que traz um breve
inventário de quinze profissões “Veja preparou uma lista com quinze profissões e foi
verificar quanto ganham os profissionais, como vivem, quanto tempo levam para
chegar ao auge.”, são elas: engenharia; direito; odontologia; educação física;
computação; biologia; turismo; enfermagem; medicina; agronomia; arquitetura;
economia; psicologia; administração e jornalismo.
Percebe-se que a grande preocupação do enunciador é ensinar ao
enunciatário o caminho mais seguro para se obter sucesso e dinheiro na profissão
que abraçar. Há neste item duas construções discursivas que chamaram nossa
atenção, no tópico “Profissão campeã de versatilidade”. Ao delinear o perfil da
engenharia, o enunciador dispara: ... o engenheiro responsável tem muito mais
responsabilidade do que apenas fazer cálculos ou dar pinga aos peões”, o que
consideramos uma afirmativa preconceituosa, indelicada e de extremo mau gosto. A
outra construção é uma inserção de voz direta no discurso, em que o enunciador fala
diretamente com o leitor, no item Sem vagas e com falso glamour”, tratando da
última profissão delineada, o jornalismo: Os bons postos estão todos ocupados ,
vagas são abertas a conta-gotas e ninguém tem plano de abandonar o emprego que
conquistou a muito custo (inclusive este repórter)...”. Cada profissão retratada leva
uma assinatura diferente, embora algumas se repitam; o item jornalismo é assinado
por Esdras Paiva de Brasília e o item referente à engenharia por Izalco Sardenberg.
54
O enunciador procura retratar as angústias de se escolher uma profissão e
generaliza o problema por meio de exemplos e comparações com outros países, o
que reforça a idéia de onisciência. De fato, escolher uma profissão aos dezessete
anos de idade é tarefa árdua para vestibulando e família: “‘A única vocação do ser
humano é não ter vocação nenhuma.’ filosofa o professor Bock. Embora o
enunciador enfatize a escolha da profissão visando o sucesso, ele afirma
reiteradamente que
O único critério apropriado para tomar uma decisão difícil é fazê-lo
solitariamente. Deve-se ter em mente apenas a busca da satisfação
pessoal. ‘Ninguém vai ser feliz fazendo o que não gosta, ainda que
consiga ganhar um bom salário no final do mês’, diz o pedagogo
Celso Ferreti.
Na reportagem de 12/11/1997, com título de capa
O terror do vestibulare com título interno Escravos da
angústia: Na reta final do vestibular os jovens se apavoram
com a idéia de fracassar e vivem sob tensão”, o
enunciador por meio do texto e, principalmente, das
imagens internas e da capa, reflete a angústia, a
preocupação, a aflição, o cansaço e o medo dos
vestibulandos frente a esse exame. A capa traz um fundo
quente, alaranjado e sobre ele um monstro de cor escura,
que baba e saliva, tem grandes e afiadas garras que vem devorar o vestibulando
aflito e o leitor-enunciatário.
A reportagem traz, nas duas páginas iniciais, pouco texto verbal e muitas
fotos que figurativizam a angústia de vestibulandos anônimos (ver fotos abaixo). São
rostos agoniados, com a mão no rosto,
causando o efeito de sentido de angústia
e de sofrimento próprios de um rito de
passagem. A tônica central da
reportagem é a angústia, o desespero e
o terror do vestibular 1997: Estão aterrorizados pelo fantasma do vestibular”, ...a
estudante, Viviane Kunisawa, 17 anos, afirma que não consegue pensar em outra
coisa além de vestibular, não importa a hora do dia ou da noite. Engordou 8 quilos
55
de tanto comer chocolate nas madrugadas de estudo.”; “...angústias que estão à flor
da pele.”
O paradigma proposto naquele momento (1997), nessa reportagem, é o da
pressa, da urgência, da necessidade do vale-tudo para garantir uma vaga nas
universidades enunciadas como de boa qualidade, o que faz com que os candidatos
abandonem qualquer atividade, antes prazerosa, que possa lhes tirar algumas
poucas horas de estudo; a idéia é ficar full time sobre os livros. Mais tarde, na
reportagem de 27/02/2002, o enunciador colocará este modelo por terra.
O enunciador procura mostrar todas as faces daquilo que gera angústia nos
vestibulandos: as várias tentativas até conseguir passar no vestibular; o tempo
dedicado aos estudos; os sacrifícios e as renúncias que fazem os vestibulandos; o
comportamento e os estímulos da família (inclusive com dicas e conselhos para os
pais, um box intitulado Como ajudar os filhosno qual figura o imperativo do
“dever-saber” para poder “dever-fazer”: “não se meta a professor”; “mude de
assunto”; “leve-o para passear”; “não se faça de vítima”; ”não chantageie seu filho”;
”respeite os limites de seu filho”); as estratégias utilizadas incluem desde
acompanhamento médico e medicamentoso até auto-ajuda, com palestras e livros
do autor Lair Ribeiro, guru da auto-ajuda no Brasil. No tópico Luxo de elite o
enunciador questiona o fato de o teste resumir os conhecimentos de uma vida de
estudo num único dia” e afirma que
é um tipo de avaliação perversa em que agilidade pode contar mais
que conhecimento. Um candidato que conhece todas as respostas
mas precisaria de quinze minutos a mais do que o tempo
regulamentar para assiná-las arrisca-se a perder a vaga para alguém
com menos conhecimento mas capaz de entender-se melhor com o
relógio.
Veja segue comparando a realidade brasileira, de acesso ao ensino superior,
com a de outros países, como Estados Unidos, Inglaterra e França, além de traçar
um panorama histórico de acesso à universidade no Brasil. O enunciador evoca a
voz da especialista para enunciar que
a faculdade, hoje, é a tábua de salvação das famílias de classe
média, que não conseguem acumular bens e precisam recompor seu
patrimônio a cada geração’, explica a socióloga Gisela Taschner, da
Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo. Atualmente, 8% dos
brasileiros possuem diploma universitário. ‘A universidade é
56
valorizada porque, no mundo de hoje, o capital do cidadão médio é
sua escolaridade’.
Questionamos quem será que Veja chama de “cidadão médio”; é possível que
seja a classe média descrita a seguir:
Para as famílias que se equilibram com dificuldade entre a prestação
da casa e a possibilidade trocar de carro no final do ano, a faculdade
dos filhos é o único patrimônio que se pode deixar. Para os filhos das
famílias humildes , o diploma é uma das poucas esperanças de
ascensão social.
Por fim, o enunciador fecha a reportagem com a faceta de ritual de
passagem contida nos vestibulares. Há neste momento um reforço da pressão
sobre o vestibulando: Para os melhores cargos, o critério de desempate entre os
candidatos começa a ser o mestrado ou o doutorado. Portanto, não entrar na
faculdade significa ser passado para trás e distanciar-se dos amigos que
conseguiram avançar.” Nasce um sentimento de não pertencimento ao grupo/tribo.
A reportagem de 27/02/2002, com título de capa
Os segredos dos gênios do vestibular” e com título interno
Por que eles foram os primeiros”, é bastante
emblemática. A capa tem um fundo amarelo ouro, o que
sugestiona a idéia de vitória, estando à frente o estudante
Lucas, um jovem comum, de calça jeans e camiseta,
agachado, sorridente, com a cabeça raspada, trajes usuais
para quem ingressa na universidade.
Extraímos um dos subtítulos da capa As receitas
do sucesso de outros campeões nos testesno qual o enunciador, de acordo com a
lógica do indivíduo vencedor, constrói a figura do herói, do campeão, que deixa
qualquer jovem absorto. A identificação aqui é construída a partir da modalização do
“poder ser”: Você também pode ser um campeão!o dito “campeão” é aqui um
sujeito bem sucedido em sua vida escolar; a ênfase não recai sobre o objetivo maior
da educação moderna, que não é somente o de construir “campeões”, mas cidadãos
cônscios de sua importância, responsabilidade e seus valores, a partir de onde o
êxito escolar deveria ser repensado. A criação de modelitos heróicos e
extraordinários não resolve por si as questões educacionais do País, mas atende
aos anseios e afetos da classe média. A mídia, via de regra, ensina o caminho do
57
sucesso por meio de manuais, com mandamentos, passos ou segredos revelados
que alimentam o imaginário das classes mais abastadas. Por exemplo, quando a
mãe da personagem central da narrativa, o estudante Lucas Martins Zomignani
Mendes, ensina que ... um dos segredos para dar boa educação aos filhos é não
economizar em livros. Às vezes eu comprava uma obra pela capa e deixava à
disposição das crianças’, lembra.” ninguém se colocará contra o princípio elementar
de dar livros aos filhos, mas é importante ressaltar que nem de longe esta é a
realidade da maioria esmagadora das famílias brasileiras. também boxes com
imperativos do dever-fazer, contendo, entre outros: “Conselhos para passar nos
melhores vestibulares”. Um exemplo: Escolha cedo o curso universitário que
pretende fazer. Isso ajuda a diminuir a tensão às vésperas da prova e a dirigir o
plano de estudo a um objetivo específico”. Outro box enuncia: “O que atrapalha”.
É salutar atentar para as fontes utilizadas
nestas construções: coordenadores da Fuvest-USP e
colégio Bandeirantes, além do sujeito central da
narrativa, Lucas Mendes que, com 18 anos à época da
reportagem, fora “o primeiro colocado em três dos mais
concorridos
vestibulares do
país”, USP, UNICAMP e FGV, além de ser
aprovado também na seleção do ITA.
Também figuram fotos dele em momentos
descontraídos, praticando tênis, com a
família, com a namorada e com a banda (ver
fotos ao lado), o que vem inverter o paradigma anterior do vestibulando esgotado,
massacrado pelos estudos e que não faz outra coisa a não ser estudar: “Não
abandone as atividades que dão prazer, como praticar esportes, namorar e ir a
festas e shows. Basta adotar um ritmo que não atrapalhe o estudo.ou ainda Não
mergulhe desesperadamente nos estudos. Folgas semanais são fundamentais para
a estabilidade emocional.” Este comportamento, anteriormente disforizado, neste
agora da reportagem é largamente euforizado. A preocupação de Veja com a figura
os ditos “gênios” dos vestibulares não é de hoje: na reportagem de 28/01/1970 na
página 41 figura o box “Como chegar em primeiro lugar não sendo gênio
58
O enunciador imperativamente dita as soluções quase mágicas para que
qualquer jovem se torne também um campeão, mas parece desconsiderar o
ambiente sócio-cultural e as condições extremamente favoráveis do herói da capa.
um box Conselhos para passar nos melhores vestibularesquebrado em duas
partes; na página 90 figura O que ajuda”, com dez dicas para ajudar os
vestibulandos e os pais. No entanto, coisas que não dependem somente do
estudante, como por exemplo o primeiro conselho: A primeira regra é um ensino
médio bem-feito. A boa escola não deve passar o conteúdo das matérias como
ensinar o aluno a pensar sobre o que aprendeu.”. Na página seguinte o box continua
O que atrapalha” – são mais dez dicas.
Há um artigo anexo à reportagem Os novos donos da educação”. É claro que
se trata de uma figura, mas será possível pensar que a educação possa ter donos?
Este artigo euforiza o ensino privado tradicional, os bons colégios particulares, as
escolas consideradas “tradicionais e respeitadas” ao mesmo tempo que as confronta
com escolas particulares que utilizam os sistemas pedagógicos apostilados, de certa
forma disforizando-as. O assunto é tratado em termos de cifras, o que reporta à
quase total mercantilização da educação; em outros termos, no neoliberalismo
levado a efeito na educação, novamente a escola pública aparece vilipendiada: A
rede pública não oferece, de modo geral, ensino de qualidade que garanta a
aprovação”, em oposição, por exemplo, ao Colégio Bandeirantes, considerado uma
escola de primeira linha em São Paulo”.
A construção discursiva que evoca a idéia do funil estreito pelo qual só alguns
poucos e felizardos vestibulandos conseguem passar está presente em todas as
reportagens. Em algumas está mesmo declarado, explícito: ... o estreito funil do
vestibular, pelo qual poucos passam, o intimidou os mais velhos nem as freiras”;
... o funil decretado”. A idéia é estudar sobremaneira, de forma sobre-humana para
vencer os desafios do vestibular, ou seja, entrar na universidade não é tarefa fácil e
o enunciador onisciente de Veja está aqui com seu deve-fazer para orientar um leitor
que ele considera perdido, errante.
59
4.1.2 DURANTE: PROBLEMAS DA UNIVERSIDADE
A reportagem de 08/01/1975
entrou no corpus não pela chamada
principal, mas pela segunda chamada
da capa no canto superior esquerdo;
sobre uma tarja amarela figuram letras
vermelhas com o título Os estudantes e a
Universidade”. Esta reportagem trata dos problemas
estruturais da universidade antes do ingresso e durante
o curso. O título interno da reportagem propõe
Grandezas e misérias do estudante: Na universidade, uma dura travessia com
muitas barreiras”. O enunciador se propõe, novamente, a traçar um panorama
estrutural da universidade brasileira. Consideramos uma boa reportagem com
questionamentos pertinentes àquele momento político-econômico que o País
atravessava. No que tange ao ingresso o enunciador afirma
... se a Universidade brasileira fosse uma realidade tão sinistra como
a pintam seus críticos mais radicais, ela dificilmente mobilizaria, a
cada ano, tão viçoso contingente humano. Mas, por outro lado,não é
menos verdadeiro que os novos convivas admitidos ao exclusivo
festim universitário pelos exames deste ano correm o risco de
padecer, num futuro não muito remoto, da mesma inapetência
didática e do difuso desalento que atacam seus colegas de hoje. (...)
a Universidade é sobretudo uma espinhosa travessia.
Com efeito, a universidade brasileira sofre de graves problemas estruturais. O
enunciador, em certa medida, argumenta bem a respeito. De outro lado, entendemos
também que um sem número de estudantes via, e ainda vê, no ensino superior a
possibilidade de ascensão social, de uma vida melhor, mais digna e talvez mais
justa. A reportagem segue criticando o sistema avaliativo dos vestibulares
argumentando que
‘não a menor condição de se avaliar o nível intelectual do
candidato’, confessou Edson Machado, diretor do Departamento de
Assuntos Universitários do MEC reconhecendo literalmente que a
sistemática dos testes de múltipla escolha pode, no máximo, aferir
superficialmente o nível de informação do vestibulando em
60
disciplinas específicas. Seletivo, injusto, o vestibular acaba
normalmente carreando seus benefícios apenas para uma facção
bem definida de candidatos.
O enunciador o traz nenhum grande fato novo, faz referência à
disponibilidade financeira do estudante e ao volume de conhecimentos adquiridos, o
que, via de regra, acarreta maior índice de aprovação em vestibulares e avança
mostrando como a Universidade tenta, mesmo que claudiante, dar conta do
contingente de alunos carentes que chegam às suas portas, principalmente no que
tange à alimentação e alojamento. Para tanto, o enunciador cita exemplos de
algumas universidades, evoca vozes especialistas e reforça o discurso trazendo
fotos de refeitórios lotados. É citado o sucateamento das universidades com relação
à pouca quantidade de livros nas bibliotecas, à qualidade do ensino que descresce,
à evasão, à moradia e à alimentação ruins. Apesar disso, e até em função da política
militar castradora, a reportagem, embora faça críticas, não chega a “bater de frente”
com o governo militar; em outras reportagens o enunciador recomenda cautela aos
estudantes desalentados.
O enunciador identifica, como o fez em outras reportagens examinadas, o
fenômeno da apatia estudantil e como os estudantes tentam digerir a censura e a
castração impostas naquele momento.
Freqüentemente sarcásticos diante de seus atemorizados mestres,
mas em geral, conscientes de que ‘eles têm tantos problemas como
nós’, os universitários brasileiros não se mostram tão indulgentes
em relação à enigmática instituição que os abriga transferindo para
a Universidade todo o ônus da deficiente formação profissional de
que são vítimas e da aridez cultural com que convivem.
Transcrevemos, abaixo, o trecho que narra a reação de estudantes mais
conservadores frente ao tenso período que se atravessava:
Enredadas na formidável tarefa de reanimar organismos longamente
minados por uma insidiosa anemia, muitas agremiações estudantis
têm recorrido a extravagantes e quase sempre inócuos expedientes.
(...) E até na vetusta Faculdade de Direito da USP, no largo São
Francisco, o progressivo descrédito do outrora prestigioso Centro
Acadêmico XI de Agosto acabou estimulando o advento e a
expansão de um exótico Partido Acadêmico Monarquista. Sustentado
numa trêfega plataforma que incluía (...) a volta da monarquia, da
61
escravidão e a criação do ‘feudo acadêmico XI de Agosto’, o PAM foi
vencido, nas últimas eleições, por escassa margem de votos.
O enunciador executa um procedimento de debreagem enunciativa ao trazer
um box no qual ele voz direta a universitários de todo o país, via de regra,
criticando a universidade brasileira; vale lembrar que o jogo militar ainda era
bastante duro e o enunciador procura ser cauteloso.
A reportagem intitulada Universidade de
Campinas: um reduto da cultura brasileira de
04/06/1975 é uma reportagem que traz poucos pontos
de intersecção com a educação, por este motivo não
vamos nos deter em seu exame. Na capa figura a
construção de um olhar amplo, o percurso do olhar
caminha do saguão para o recurso lingüístico deslocado
para o canto inferior esquerdo.
A reportagem aborda uma Conferência sobre
História e Ciências Sociais, promovida pela Universidade
de Campinas, e suas relações com a política nacional” na qual compareceram
grandes teóricos internacionais. Os principais tópicos abordados são: as pesquisas
em ciênciais sociais, a universidade e seus problemas estruturais, ainda que mais
brevemente do que em outras reportagens, as pesquisas e ligeiros lances dos
conferencistas convidados (Hobsbawn; Juan Linz; Rudolph Bell; Meyer; O’Donnell;
Jong e Ericson); o atraso cultural brasileiro, com enfoque para a demora na tradução
e publicação, em português, de teses e pesquisas, inclusive sobre assuntos
brasileiros; o descomprometimento, o descaso e a arrogância dos políticos
brasileiros, de então, para com as pesquisas acadêmicas e, finalmente, o tópico
mais desenvolvido: Unicamp e a cidade de Campinas, entretanto a reportagem
adquire um tom muito mais de coluna social, bastante provinciana, assim, extraímos
um trecho a fim de ilustrar
Ciosa de sua ancestral reputação de ‘Cidade das Artes’, Campinas
oferecia, assim, atrativos para todos os paladares. Os mais exigentes
elegeram claramente a irônica perversidade de ‘Ricardo III’, em
respeito ao autor do texto, Shakespeare, mas também pela presença
de um ator de porte de Juca de Oliveira, dirigido por um dos
melhores diretores do país, Antunes Filho. À honrosa deferência
62
prestada pelo grupo teatral Thearte à cidade, distinguindo-a com
a estréia nacional da peça, na última terça-feira, a sociedade local
soube responder com grande gala. Um magnífico e vaporoso desfile
das personalidades da elite campineira percorreu as passadeiras
vermelhas do Teatro Municipal José de Castro Mendes ...
No que se refere à Unicamp a reportagem examina os problemas estruturais
de um organismo em formação, mas a coloca como a melhor do país, assistindo
ativamente à comunidade de seu entorno. Há um trecho em que o enunciador chega
a ser extremamente sarcástico, usando, para se referir a um treinamento fornecido a
professores da rede municipal, o verbo adestrar, o que nos causa indignação e
repúdio:
... o Diário Oficial da Prefeitura [de Campinas] anunciou a celebração
de outro frutífero convênio com a Unicamp. Numa primeira etapa,
sessenta professores da rede pré-escolar municipal serão
adestrados na Faculdade de Educação, assimilando até o final do
ano as mais ousadas inovações em técnicas de ensino. [grifo nosso]
Acerca do fato das cncias sociais serem perseguidas e sufocadas, o
enunciador afirma:
... Kenneth Ericson, cuja palestra sobre movimentos operários
precisou ser fechada a um grupo exclusivamente de professores,
destacou sem saber um fato ainda mais preocupante: as ciências
sociais, à força de serem confundidas com ação política, correm o
risco de se transformar no país em atividade clandestina.
Nesta linha de pensamento ressaltamos as construções discursivas do medo
de uma censura que contagia estrangeiros e parece indignar o enunciador:
Hobsbawn, que ao comentar candidamente durante a conferência
ser ‘um historiador marxista’ alarmou o auditório, acabou por levar
tão a sério os problemas de seus colegas brasileiros a ponto de
aconselhar aos debatedores evitar referências muito explícitas à
realidade nacional.
Corroborando ainda sobre o medo das retaliações da censura e das
perseguições militares aos pesquisadores acadêmicos, sobretudo, da área de
humanidades, o enunciador ironiza:
Depois de onze anos de silêncio, essa conferência foi a primeira
tentativa significativa para recuperar o tempo perdido pelas
universidades brasileiras. (...) não deixa de ser sintomático que esta
63
tentativa esteja acontecendo num centro mais afastado, como
Campinas. (...) Assim, dependendo da tolerância do governo,
Campinas pode ser o primeiro sinal de ressurreição dos estudos
sociais no Brasil ou a última fronteira dessa migração cultural para o
interior. A menos que se pense em criar na Amazônia um grande
parque nacional para índios, antropólogos, sociólogos, politicólogos e
historiadores.
Ali poderiam discutir à vontade. Desde que em tupi-guarani.
Na revista Veja de 15/10/1980 é apresentado na
capa o ministro da educação de então, Eduardo Portella,
com olhar direcionado à direita, sem encarar o leitor,
tendo a boca ligeiramente articulada, como se dissesse
algo, talvez a frase que intitula a chamada da edição: A
crise da Universidade
É uma reportagem que de início se propõe a tratar
da crise da universidade brasileira e que depois se
dedica a examinar mais de perto a crise da USP, como
índicio da crise nacional vivenciada nos meios acadêmicos. Em certa medida,
absolve o ministro da educação de então, Portella, e ao mesmo tempo critica o
regime militar, afirmando que a crise da USP advém de outrora.
O cenário construído pelo enunciador é desolador, assim como a face de
Portella. A reportagem apresenta dados e recursos imagéticos, que produzem um
efeito de sentido de muita preocupação, no olhar perdido, nas idéias manuscritas do
ministro, as greves e pressões oriundas de diferentes setores da sociedade, como
por exemplo o governo representado pelas intrépidas agências de informação,
repressão e censura – a sociedade civil, as universidades e os estudantes.
O enunciador apresenta uma universidade sucateada, ilustrando com vários
exemplos: biblioteca semmpadas, com teto desabado há mais de dois anos,
permanecendo até hoje sem conserto; o centro acadêmico tem que se reunir no
banheiro; entre outros exemplos abundantes. Em contrapartida, o enunciador cita
alguns exemplos do que ele chama de “boa vontade” e “competência acadêmica”; é
fato que boa parte do sucateamento das universidades se deve não somente à
escassez no repasse de recursos governamentais, mas também à ingerência dos
recursos.
64
Em nossa experiência, em instituição de ensino superior privada, pudemos
observar e acompanhar de perto as incoerências administrativas e desperdícios
(outra grave questão) de quem pouco ou nada conhece de
determinado curso, nem tampouco de suas necessidades
específicas; gasta-se o dinheiro em obras e
implementações pouco ou nada salutares/eficientes à
operacionalização dos cursos e da própria instituição. O
enunciador o apenas nesta reportagem, mas em quase
todas, salienta o descaso dos profissionais envolvidos
neste processo. Como exemplo citamos o caso abaixo, da
reportagem de 25/07/1984, Professores em greve:
universidade doente”,
o professor Franklin Trein, do Institudo de Filosofia da UFRJ ...
alguns anos... conseguiu que editoras alemãs produzissem
traduções em português de obras fundamentais para o ensino de
Filosofia, e que seriam fornecidas à universidade sem qualquer ônus.
‘Precisávamos apenas que a reitoria oficializasse o pedido, mas
ninguém se interessou pelo assunto’, lamenta.
A respeito das greves que pululavam país afora, vale ressaltar que era um
momento de reabertura política e portanto de mudanças, em que o regime militar
promoveu nas universidades e na educação, de modo geral, um empobrecimento
acadêmico. É inteligível que o setor tenha reagido naquele momento de
redemocratização.
O enunciador de Veja euforiza o neoliberalismo e até mesmo o estimula, o
que pudemos constatar em várias reportagens. Citaremos algumas a título de
exemplo, como na matéria de 25/07/1984, há pouco citada:
... a Coppe da UFRJ desenvolveu um tipo de aço com liga de nióbio,
produzindo chapas mais leves, que estão sendo utilizadas na lataria
dos automóveis Escort, da Ford. Experiências como essas sugerem
que nem de verbas governamentais nascem as produções
acadêmicas de monta.
65
Na reportagem de 30/04/1997, As melhores e as
piores faculdades do Brasil”, a respeito do Provão,
encontra-se novamente uma visão maniqueísta; vários
subtítulos, mas um em especial chama a atenção: “Clube
dos AAA”, fazendo referência aos cursos avaliados com
triplo A (conceito atribuído às instituições que conseguem
bom desempenho). Ao constatar o desempenho do que o
enunciador chama de as “piores faculdades”, ele conclui
que “ensino medíocre é um problema em todo o mundoe
não só do Brasil. Ainda sobre as piores notas no Provão, vale lembrar que o
enunciador ressalta a função social das faculdades que ele considerou medíocres,
pois promovem o desenvolvimento de regiões, nas quais muitas vezes esta é a
única opção possível, por mais paradoxal que pareça muitos estudantes de baixa
renda (que não estudaram em institutos privilegiados, o que o enunciador denomina
de “supercolégios”, nem tampouco têm dinheiro para pagar cursinhos pré-vestibular)
conseguem, ainda que sofregamente, pagar por estas faculdades que Veja chama
de medíocres, eles conseguem muitas vezes com um curso superior alcançar certa
ascensão social e profissional. Via de regra, a universidade particular é disforizada,
porém entendida como um mal necessário.
Ademais, o enunciador traça o perfil do universitário brasileiro e identifica o
fenômeno de grande apatia estudantil. Via de regra, é um estudante que acredita
que “dá para ir levando” a faculdade. Podemos entender que tal fenômeno se dá, em
grande parte, em decorrência de todo um processo de desmonte do engajamento
estudantil durante o regime militar, verificável nas reportagens examinadas acerca
deste tema.
Outra questão que nos saltou aos olhos refere-se às parcerias universidade-
empresa. Não estamos, em hipótese alguma, nos colocando contra os convênios ou
as parcerias público-privado. Ao contrário, consideramos esse um expediente
extremamente válido e necessário, tanto para a vida econômico-acadêmica do país,
quanto para as empresas. O que nos chama atenção é a forma como o enunciador
euforiza medidas que caminham na direção da política de Estado-mínimo.
A escola de engenharia civil da Universidade Federal Fluminense
montou uma bem trançada rede de convênios que aumenta – e muito
a sua receita anual. “Não podemos viver apenas de verbas do
66
governo. Por isso fomos buscar recursos lá fora”, explica o diretor do
centro tecnológico da universidade, Heitor Luiz Soares Moura
Em seu discurso o enunciador disforiza determinadas pesquisas acadêmicas.
É certo que, por vezes, se tornam insipientes e aqui não estamos de forma alguma
vilipendiando estas pesquisas, mas que se produzir, também, pesquisas que
proporcionem retorno social a quem paga impostos.
Na reportagem de 29/04/1987, Universidades:
onde estão as soluções”, Veja acaba por vilipendiar a
greve dos professores das universidades federais; alguns
argumentos são efetivamente procedentes, outros nem
tanto, ao atacar a universidade brasileira, seus professores
e funcionários, falta chamar-lhes de ociosos. É certo
que a universidade pública
brasileira tem profundos
problemas estruturais, como
qualquer outra quina estatal brasileira, ou mesmo
estrangeira, daí a vilipendiar a universidade como um
todo, vai uma distância. ... Nos últimos tempos, todo o
potencialmente rico debate sobre a universidade brasileira
... ficou reduzido a sua vertente mais imediata, prática e
academicamente inútil. O enunciador alega que as
discussões e reinvidicações ficam tão somente em torno de questões salariais e
orçamentárias, como se estas não fossem de fato importantes.
Aproximamos propositadamente estas duas últimas capas, que tratam do
tema universidade brasileira. Esta aproximação clarifica como este enunciador
constrói discursivamente a idéia de que o diploma é muito mais um problema do que
uma solução para o país, criando até mesmo certa inconsistência com ‘n’ traços do
discurso verbal. Porque, de saída, ele já instaura a falência das universidades
segundo sua óptica, a posteriori no corpo das reportagens a revista resgata o valor
do ensino superior como porta de acesso para o sucesso da carreira dos filhos. O
impacto imagético de ver no diploma uma bomba é, no mínimo, algo desalentador,
por isso consideramos ser de mau gosto tal construção discursiva. O diploma sob o
carimbo vermelho “reprovado” também causa estranheza e joga numa mesma vala
comum todo e qualquer diploma. Os problemas estruturais das universidades
67
brasileiras são inegáveis, daí a reprová-las ou explodí-las deliberadamente vai um
longo caminho, a expressão “suicídio das elites” nos provoca indignação, ir para a
universidade configuraria suicídio? A elite, acaso, comete suicídio ao confiar seus
filhos à universidade? De que suicídio fala o enunciador? Talvez de um suicídio
profissional, mas qual seria a alternativa? O recurso verbal, as cores, o percurso do
olhar, tudo conduz a um efeito de sentido desalentador, desesperador.
Outra questão recorrente é a construção discursiva que coloca, sob uma
óptica maniqueísta: universidade pública versus universidade privada; o enunciador
instaura em dado momento esta oposição, em outros salienta que universidades
de boa e de qualidade, tanto no ensino superior público, quanto na rede privada
e ao enunciar a baixa qualidade usa, por vezes, adjetivos bastante agressivos, como
por exemplo na reportagem de 15/10/80 A crise da universidade”: “arapucas” (p.
28); “organizações piratas(p. 29); “espeluncas” (p. 31); citamos as páginas com a
intenção de evidenciar que, estes adjetivos, figuram por toda matéria. Por vezes, o
enunciador de Veja ataca frontalmente o ensino privado, como por exemplo na
reportagem de 08/05/1991O suícidio das elites
O panorama fica mais sombrio quando entra em cena o ensino
superior privado. O Brasil é um dos raríssimos países do planeta em
que as faculdades particulares têm como primeiro objetivo o lucro e
muito atrás uma educação que atenda à necessidades nacionais.
Se houvesse universidades privadas, funcionando tal como elas
são hoje, o Brasil do futuro estaria repleto de técnicos em turismo,
comunicadores e advogados, e quase não teria médicos,
engenheiros e pesquisadores.
A respeito da avaliação de desempenho das universidades Veja é categórica,
defende e euforiza abertamente o assunto. Citaremos a seguir as reportagens que
defendem uma avaliação sistemática como tábua de salvação para as pendengas
do ensino superior brasileiro; são elas, entre outras: 08/05/1991 O suícidio das
elites”; 29/04/1987 Universidades: onde estão as soluções”, na qual o enunciador
busca apoio na voz dos especialistas Gianotti, da USP e de Moura e Castro (que
posteriormente configurará como articulista de Veja); e também na reportagem de
30/04/1997.
68
Por fim, a reportagem mais recente do corpus sobre
o ranking das universidades no sistema avaliativo do
Ensino Superior é a de 31/03/2004, “Os 260 melhores
cursos”, que emerge da capa em segunda chamada sobre
uma tarja amarela ouro à esquerda, novamente o ouro da
vitória. É uma reportagem curta, recheada pelos
dados/ranking do último Provão, porém não traz dados
novos acerca da universidade brasileira e continua a
colocar a educação como um remédio para a infinidade
dos problemas sociais que atingem a sociedade brasileira. Apesar de tudo o que o
enunciador constrói, conclui-se que ele considera ruim o cenário universitário
brasileiro, mas que ainda é o melhor caminho para um possível e desejável sucesso
de seu enunciatário.
4.1.3 DEPOIS, CADÊ O EMPREGO?
Na capa da reportagem de 01/09/76 “Os
universitários sem trabalho” figuram transeuntes,
destacando um recém-formado, com beca e capelo, no
primeiro plano sentando de costas num banco público
sobre um fundo predominantemente branco. Ele um
jornal na sessão “empregos diversos” o que pode denotar
que este recém-formado está
procurando não um determinado, mas
qualquer emprego.
na reportagem uma disforização do diploma de filosofia
e do próprio diploma, quando o enunciador questiona sua
utilidade, argumento reforçado pelo recurso imagético da foto ao
lado e tanto mais pela legenda “A brasiliense Lúcia: afogada em
diplomas”.
A partir de 1968 o MEC estimulou “uma frenética semeadura de cursos
superiores” dado o “excedentede alunos aprovados nos vestibulares que ficaram
69
sem vagas. Veja se coloca claramente contra o “excesso de oferta” provocado pela
“democratização do ensino” na abertura de novas faculdades. O enunciador afirma
que houve um aumento vertiginoso das escolas particulares nos últimos dez anos,
porém não dados acerca dos profissionais universitários desempregados. É
citada utilização maciça de estagiários, que vêem no estágio uma porta de acesso
para uma possível colocação no mercado de trabalho.
O enunciador por vezes se coloca pessimista com relação ao mercado, outras
vezes é otimista; por exemplo, ao falar do “mito do desemprego”, ele questiona:
teria a sociedade brasileira, em seu estágio atual, condições de
absorver os 150.000 universitários que se formam atualmente? A
resposta surpreendentemente poderia ser afirmativa. O professor
Edson Machado, diretor do Departamento de Assuntos Universitários
(DAU) do MEC, por exemplo, acha que não existem mercados
saturados. “O que existe é distribuição, geográfica e setorial, dos
profissionais, altamente relacionada com a distribuição de escolas
superiores.”
E segue afirmando que consegue emprego quem tem mobilidade geográfica.
O enunciador sugere ainda que a demanda deva ser pensada em termos de
qualidade versus quantidade.
Outro argumento que nos chama atenção é o da contenção da exagerada
expansão das faculdades. O enunciador coloca o problema em termos de corte
dessa expansão versus o processo natural do mercado. E vai além, ao citar a
misteriosa “mão invisível” da economia (fazendo referência ao conceito da “mão
invisível do mercado”, de Adam Smith). Ele finaliza a reportagem citando os
problemas e emperramentos burocráticos das universidades como fator que dificulta
a formação e o conseqüente ingresso dos recém-formados
no mercado de trabalho.
um ponto comum nas reportagens deste
subgrupo, apresentando novamente a figura de um funil na
organização acadêmica, que agora na saída, ou seja, o
mercado de trabalho é quem seleciona, porém de maneira
mais agressiva e mais concorrida. Na reportagem de
04/12/1996 O desafio do emprego a presença do funil
estreito está de volta no título interno da reportagem O
70
funil estreitou”. Fala-se em requisitos triviais, que podem não ser tão triviais assim
para a realidade brasileira. Para o enunciador o RH (departamento de recursos
humanos) é o novo bicho-papão dos recém-formados. Também chama atenção o
fato de duas capas trazerem a palavra “desafio”, a de 04/12/1996, O desafio do
emprego”, e a de 17/12/2003,O desafio de arranjar emprego”. A propósito, o
emprego, na capa acima, está no topo de uma longa escada e vem iluminado por
uma luz divina que se abre do céu e é quase inatingível, exceto para o leitor de Veja,
pois seu enunciador se propõe a ensinar como superar as pedras do caminho.
O enunciador reconhece que o grau de exigência é estratosférico e
conselhos àquele profissional que estacionou. A elevação do grau de exigência gera
uma sensação de angústia: “o sentimento generalizado é de perplexidade, de
injustiça”. E alerta: “O desemprego é uma das coisas mais dramáticas que pode
acontecer na vida de uma pessoa.”
A revista cita a abertura da economia iniciada no governo Collor, o que
acarretou mudança nos padrões de emprego e nas aptidões exigidas para lidar com
a modernização do maquinário e do mercado: “Não podemos deixar uma máquina
com essa sofisticação na mão de trabalhadores despreparados”. Em contrapartida,
cita a não modernização das escolas e sua defasagem tecnológica e curricular frente
ao mercado, no que as empresas se vêem obrigadas a proporcionarem “programas
de treinamento de funcionários.” Segundo o enunciador, os padrões educacionais
estão aquém do desejado; para tanto ele cita dados sem citar as fontes. A LDB 9394
de 1996
24
fala amplamente em qualificar os estudantes para o trabalho. um box
“Prepare seu filhote”, no qual o enunciador, preocupado, indica o dever-fazer aos
pais para “ajustar a educação das crianças às novas exigências” mercadológicas.
ainda um outro box, com título “O que a empresa quer”, no qual figura um
forte manual do dever-fazer, como por exemplo no segundo item: “Os melhores
empregos vão para aqueles que têm pós-graduação e viveram algum tempo no
exterior. Por isso, faça tudo o que estiver ao seu alcance para viajar e,
principalmente, estudar fora.”
24
LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9394/96, em vigor.
71
A capa de 23/09/1998, A chave do emprego”, com
título interno: “Estudar vale ouro”, euforiza novamente a
educação como porta de acesso aos melhores empregos.
Traz formandos de diversas profissões o que vem indicado
por seus trajes e pelos objetos que seguram nas mãos.
Estão todos sorridentes, o que infere otimismo do
enunciador. A chamada abaixo do título interno “Pesquisa
mostra até onde a escola aumenta a chance de conseguir
emprego, multiplica o salário e garante o sucesso na
carreira.” indica que a educação, em certa medida, garante o sucesso profissional,
ou seja, tem mais sucesso quem estuda mais: Estudar bastante e fazer a escolha
certa da profissão são dois requisitos básicos para quem está entrando no mercado
de trabalho na virada do milênio”. Figura o infográfico “detalhes que fazem a
diferença”, que explica como o enunciatário pode alcançar as melhores vagas: “Ter
fluência em inglês”; “Aperfeiçoar-se” (lato sensu, mestrado e doutorado); “Acumular
experiência”; “Não fumar”; “Trabalhar numa multinacional”.
O enunciador alerta a respeito da escolha da profissão, pois não basta
estudar, sendo necessário também saber escolher a profissão. Nesta reportagem é
euforizada a escolarização como forma de obter êxito profissional (com indicações
de onde vagas sobrando geograficamente e por área de atuação) e
consequentemente maiores ganhos salariais. Por fim, o enunciador traz um teste
“Avalie suas chances de obter um emprego” que visa levar o enunciatário a refletir
sobre sua vida profissional.
Na reportagem de 17/12/2003 “O desafio de arranjar
emprego”, o título interno “O segundo vestibular” denota
mais concorrência feroz. A chamada abaixo do título
interno “Pesquisa mostra até onde a escola aumenta a
chance de conseguir emprego, multiplica o salário e
garante o sucesso na carreira.” a impressão de que a
escola não é mais o lugar aonde se vai para adquirir e
construir conhecimentos, mas sim exclusivamente para se
preparar para a ferocidade do mercado. O enunciador afirma que a concorrência do
mercado de trabalho é maior que o vestibular para medicina.
72
Esta matéria se propõe a traçar o perfil dos vencedores, dos vitoriosos, no
entanto o perfil da família de um dos campeões retratados está muito além do
padrão brasileiro: “Filho de um empresário e de uma professora universitária, Bovo
foi criado num lar mais intelectualizado do que a média nacional” e completa
“Quando se diz que Bovo é um exemplo de adversário, não significa que represente
a média dos que disputam as boas vagas em oferta. Nada disso, Bovo está muito
acima da média dos candidatos. Ele representa, sim, o perfil dos vitoriosos.”
Seguindo esta linha, Veja se propõe a traçar um perfil do bom universitário brasileiro,
indicando que ele mais e também ressalta a importância da personalidade dos
candidatos na hora de conseguir um bom emprego, citando o jargão da área e
euforizando a “atitude proativa” dos candidatos.
A seleção é vista pelo enunciador como algo selvagem, na qual o candidato
deverá usar todas as armas disponíveis e arremata com o dever-fazer elementar: “É
fundamental estudar numa universidade conceituada”, pois, segundo o enunciador,
uma faculdade de terceira linha no currículo pode prejudicar o candidato. A revista
euforiza o sujeito que trabalha por conta própria e apresenta o empreendedorismo
como alternativa a um mercado cada vez mais saturado. Por fim, figura o box “As
críticas do mercado”, no qual “empregadores reclamam que as universidades não
preparam os alunos para a realidade do mercado de trabalho.”
4.1.4 ESTUDANTES E POLÍTICA
Quanto mais pobre é a política, mais
doutrinária, mais radical, mais tenta impor seus
pontos de vista.
Mikhail Gorbatchev apud Germano (1993)
Vale lembrar que a revista Veja da década de 60 e início dos anos 70
apresenta, em certas temáticas, um enunciador outro comparado ao de hoje, até
mesmo em função do momento sócio-político em que eram impostos repressão,
medo e silêncio. Não pretendemos fazer uma larga análise do período em
referência, mas propiciar um aporte mínimo necessário para compreensão das
73
matérias elaboradas nos chamados “anos de chumbo”; para tanto, recorremos ao
autor José Willington Germano que contextualiza o período em apreço:
O golpe de Estado de 1964 depõe o presidente João Goulart e põe
fim à ‘democracia populista’ iniciada em 1946. Fruto de uma coalizão
civil e militar, o golpe configura a ascensão de um novo bloco no
poder
25
, que envolve uma articulação entre o conjunto das classes
dominantes, ou seja, a burguesia industrial e financeira nacional e
internacional –, o capital mercantil, latifundiários e militares, bem
como uma camada (de caráter civil) de intelectuais e tecnocratas. O
espectro de interesses representados por esse conjunto autoriza-nos
a qualificá-lo como uma elite. (grifo do autor)
O golpe de 64 expressa o rompimento de uma situação histórico-
política caracterizada por um equilíbrio de forças de perspectiva
catastrófica’ (Gramsci, 1977:1619), representada pela crise política e
econômica uma crise de hegemonia desencadeada no Brasil em
princípios dos anos 60. Uma solução ‘arbitral’ de cunho cesarista põe
fim à crise. (...) não se trata, em nenhuma hipótese, de um cesarismo
de tipo clássico que se traduz pela presença de uma “personalidade
‘heróica’ e representativa”, de um líder carismático, enfim, que
concentra todos os poderes, porém de uma espécie de ‘cesarismo
sem César(Gramsci, 1977:1.619). Isso significa que entre nós (...)
esteve presente um outro traço fundamental do cesarismo, que é a
ausência do controle social sobre o poder político, consubstanciado
na notável autonomia das Forças Armadas que exerceram o
comando do Estado brasileiro entre 1964 e 1985.
Apesar da iniciativa e do caráter burguês, coube às Forças Armadas
a intervenção executiva do golpe, mediante o qual assumiram o
poder do Estado durante vinte e um anos. O poder central foi assim
enormemente fortalecido, ao mesmo tempo em que foi exercido, não
por uma personalidade eminente um César –, porém por um
25
Conforme Poulantzas (1977:229) apud Germano (1993:17) o conceito de bloco no poder ‘indica (...) a
unidade contraditória particular das classes ou frações de classe politicamente dominantes, na sua relação com
uma forma particular do Estado capitalista’. Diz ainda o mesmo autor que ’o bloco no poder constitui uma
unidade contraditória de classes politicamente dominantes sob a égide da fração hegemônica’(pp. 223-4,
grifos no original). Poulantzas faz também uma distinção entre bloco no poder e alianças, visando salientar a
natureza das contradições que gravitam em torno do Estado. Para ele, a ‘unidade relativa’ é permeada de
menor grau de contradição no caso do bloco no poder do que no tocante à aliança.
74
‘executivo invisível’ chamado ‘Sistema (Fernandes, 1979:43), que
trocava formalmente de comando periodicamente.
Por contraposição à ‘democracia populista’, ao assumirem o poder
em 1964, os militares implantaram um regime autoritário que
segundo Loewenstein (1983:72) se caracteriza pelo fato de o ‘poder
não estar submetido a nenhum limite, estar fora de qualquer controle
político’ – e ditatorial, embora não se revista de uma forma totalitária.
O fato é que se configura uma hipertrofia do Executivo combinada a
uma existência praticamente simbólica dos demais poderes, uma vez
que estamos diante de um Poder Legislativo que não legisla e de um
Poder Judiciário que não julga, mas que atuam conforme a vontade e
a conveniência do Executivo.
Por sua vez, a intervenção dos militares na política, dando margem
ao surgimento dos Estados militares cujos regimes assumem
freqüentemente a forma de ditaduras militares, tem sido identificada
por alguns autores como um traço característico dos países ditos do
‘Terceiro Mundo'. (...) João Quartim de Moraes (1987:30) ao afirmar
que, em 1970, de 83 desses países, 43, isto é, mais de 50% estavam
submetidos a regimes militares. No que toca particularmente à
América Latina, escreve Rouquié (1984:XIV) que, ‘em 1954, de vinte
países latino-americanos, treze eram governados por militares. Em
1980, dois terços da população total da América considerada latina
viviam em países de regimes militares ou sob o domínio militar’. Isto
revela, sem dúvida, a magnitude e a relevância da questão do
exercício do poder político por militares entre nós.
É evidente que a conformação do poder político nesses diferentes
países depende dos seus respectivos desenvolvimentos históricos.
Em todo caso é patente que o militarismo na América Latina se
acentuou após a Segunda Guerra Mundial e, para isso, contou com o
decidido apoio norte-americano, numa espécie de latino-
americanização da Guerra Fria. Além disso, no que pesem as
particularidades internas de cada país, a intervenção militar
respondeu tanto ‘às determinações básicas do capital como às
reivindicações e lutas de movimentos sociais e partidos de base
popular’ (Ianni, 1986:35).
O controle militar sobre o Estado implica uma determinada forma de
dominação e, por conseguinte, de atuação prática em diversos
75
campos da vida econômica, social e política do país, na qual se situa
a política educacional. (1993:17-19)
Contextualizada a dureza do período militar, faz-se necessário clarificar, ainda
que brevemente, os meandros da política educacional desse período, entendida por
Germano (1993) como
‘...o conjunto de medidas tomadas (ou apenas formuladas) pelo
[Estado] e que dizem respeito ao aparelho de ensino (propriamente
escolar ou não)...’ (Cunha, 1983:439). Ela visa, essencialmente, à
reprodução da força de trabalho (mediante à escolarização e
qualificação); à formação dos intelectuais (em diferentes níveis); à
disseminação da “concepção de mundo” dominante (com vistas a
contribuir para a legitimação do sistema político e da sociedade
estabelecida); à substituição de tarefas afetas a outras atividades
sociais, cujas funções foram prejudicadas pelo desenvolvimento
capitalista (como, por exemplo: a adoção de creches como forma de
possibilitar a permanência no mercado da força de trabalho
feminina), além da evidente regulação dos requisitos necessários ao
funcionamento do sistema educacional. (grifo nosso)
Deve ser ressaltado que, muito embora as atribuições
tradicionalmente imputadas ao setor educacional (como qualificação,
integração, socialização, equalização social e substituição de
funções)
26
apontem no sentido da reprodução social, nem por isso
deixa de existir nas escolas e universidades um potencial crítico e
contestatório que pode, segundo Habermas ‘conduzir a conflitos
desestabilizadores para o sistema’ (in: Offe, 1990:51). Importa ainda
salientar que a escolarização e a qualificação da força de trabalho
dizem respeito a uma das funções primordiais do Estado capitalista.
(1993:101-3)
26
Por sua vez, estudar a política educacional implica reconhecer as funções do sistema educacional sob o
capitalismo. Nessa perspectiva, Offe (1990:45), ao analisar o sistema educacional de sociedades capitalistas
industriais avançadas, identifica quatro pontos de referência funcionais: qualificação, integração, equalização,
substituição. (...) estes pontos são: (1) o problema da qualificação conteudística, bem como da geração de
disponibilidade da força de trabalho; (2) a integração social da força de trabalho nas condições que
caracterizam as relações de produção capitalista; (3) a criação de legitimação que o sistema político –
considerando sua precariedade, frente à impossibilidade de efetivar ou ignorar o postulado básico da igualdade
necessita conseguir; (4) a substituição freqüente de subsistemas sociais, cujas funções foram prejudicadas
pelo desenvolvimento industrial capitalista’.
76
Contextualizado o cenário histórico-político e
educacional do regime militar no Brasil, vamos nos dedicar
ao exame das reportagens que tratam do subtema
estudantes e política: a capa de 09/10/1968, A incrível
batalha dos estudantes”, trata do combate entre
estudantes da Universidade Mackenzie e da USP, na Rua
Maria Antônia em São Paulo. O enunciador se
pronuncia a respeito logo na “Carta do Editor” que se
localiza na contracapa; quem assina é o próprio Victor
Civita. ele relaciona “acontecimentos que ensangüentaram uma praça da Cidade
do México”, o combate da Maria Antônia e intervenções ocorridas na Roma antiga
para enunciar afinal
Somos obrigados a comparecer em peso a todo espetáculo para
manter a ordem e a paz. A moda pegou: aplaudem e vaiam tudo.
Se não formos enérgicos, são capazes até de subverter a ordem. Os
tempos amargos e difíceis não poupam ninguém, incluindo cantores
e público dos festivais de música popular, mas a frase é de um
guarda pretoriano da antiga Roma, pronunciada 2 mil anos. Ao
que parece os homens vivem inquietos desde sempre e mesmo esta
questão das vaias não é nova.
No título interno da reportagem Destruição e
morte POR QUÊ? as letras utilizadas na palavra “por
quê” estão grafadas em maiúsculo e o muito maiores
do que o resto da frase; abaixo figura a foto de um
estudante morto durante o confronto. Seu corpo é
carregado por estudantes (ver foto ao lado). Da forma
como foi construído o título, associado à imagem,
provoca o efeito de sentido de comoção, indignação e
questionamento frente à estupidez dos fatos. A revista, nesta reportagem, enuncia
que faltaram líderes com visão das conseqüências (a morte do Jo Guimarães,
estudante de 20 anos, durante a batalha da Maria Antônia; muitos feridos; prédios
danificados; carros virados e incendiados.) um box no meio da reportagem Os
estudantes não ouviam os seus líderes”, que reforça a idéia de falta de liderança.
77
A obliqüidade presente nas
fotos indica a tensividade constante
nesta reportagem. Na primeira foto
o disparo que corta a rua: o fotógrafo
o registrou em diagonal, com pessoas
em movimento, fugindo dos disparos;
também nas outras fotos está
presente a diagonalidade: nos frascos
de coquetéis Molotov enfileirados, no
rapaz que se abaixa; no grupo
entrincheirado e na foto da direita a disposição das pessoas. Os fios que cortam a
rua provocam um efeito de continuum, ou seja, está presente a idéia de uma batalha
sem fim. O aporte imagético desta reportagem é riquíssimo e ocupa boa parte da
matéria: uma planta das duas universidades na Rua Maria Antônia, cria-se um
efeito de sentido de guerra, o mapa sobre a mesa; José Dirceu (à época líder
estudantil) figura em foco com braços abertos; figura a camiseta ensangüentada do
estudante morto, usada como bandeira; figuram tropas que avançam sobre
estudantes; figura um estudante com pedaço de pau correndo na rua, entre tantas
outras, a idéia de simulacro da realidade está construída. uma seqüência de três
fotos que nos chamou atenção, não por sua obliqüidade e tensividade, mas,
principalmente, porque o jovem, na foto ao centro, nos aponta uma arma.
Ainda na página 16 uma construção discursiva merece destaque: Às 2 da
tarde a reitora do Mackenzie, Esther Figueiredo Ferraz, pediu uma tropa de choque
– 30 guardas-civis – para ‘proteger o patrimônio da escola’” – e não os estudantes.
Nesta reportagem e nas outras que se seguem, referentes ao período militar,
o enunciador narra os acontecimentos com riqueza de detalhes, procedendo a
78
reflexões detalhadas sobre o cenário político de então (obviamente a partir de sua
lógica); a tensividade é uma constante enunciada no discurso verbal e fortemente,
reforçada pelo visual.
Na reportagem de 16/10/1968, Todos presos:
assim acabou o congresso da ex-UNE”, figura na capa,
sobre um fundo branco, a foto de estudantes presos em
cima de caminhões, cercados por tropas armadas; abaixo,
em letras vermelhas maiúsculas o enunciador grita:
“TODOS PRESOS”, em construção que denota crise. Na
“Carta do Editor” Victor Civita nos informa que esta edição
teve de ser refeita na última hora: “a redação mobilizou
repórteres e fotógrafos que trouxeram a notícia mais
importante da semana (...) o Congresso da ex-UNE tinha sido encerrado com a
prisão dos seus participantes.” E cita Carlos Lacerda, que observou: “somente no
Brasil é que se poderia realizar uma reunião ‘clandestina’ de mais de setecentas
pessoas...”. Vale lembrar que “eram 920 pessoas, entre estudantes e jornalistas,
cansados e sujos de lama”. O enunciador afirma que todos estavam cansados, com
olheiras, sujos e com frio, enrolados em cobertores, “não pareciam os perigosos
líderes estudantis do Brasil inteiro...”. Ainda na “Carta do Editor” é ressaltada a
importância das fotos coloridas para auxiliar o enunciador a contar os
acontecimentos.
Vale lembrar que a reportagem acima (“Todos presos: assim acabou o
congresso da ex-UNEde 16/10/1968) foi veiculada uma semana após a A incrível
batalha dos estudantes de 09/10/1968, examinada pouco, nela o recurso
imagético tem papel fundamental de reiteração do discurso. As fotos são exatamente
da mesma cena (ver fotos abaixo), o que muda é apenas o ângulo: JoDirceu
aparece com os braços abertos, erguidos, em cima do que parece ser um ônibus ou
caminhão, instaurando assim a obliqüidade.
79
Estas duas reportagens constituem edições históricas, dada a riqueza de
detalhes com que o enunciador conta os dois episódios: confronto da Rua Maria
Antônia e fim do Congresso da ex-UNE. Em certa medida, ousamos dizer que ele
sugere alguma simpatia pela causa estudantil, apesar das críticas, o que vamos
verificar em reportagens posteriores.
Na edição de 01/09/1971, intitulada Universidade
brasileira, 1971”, a construção discursiva da capa é bastante
interessante, pois figura a imagem em preto e branco
(contrastando com as letras vermelhas do título) de um
jovem descontraído, cabelos compridos, camisa xadrez
ligeiramente aberta na frente, empunhando um cartaz; esta
imagem remonta à idéia de uma passeata, de uma
reivindicação aberta em espaço público, de contestação.
Ainda sobre o cartaz, nele figura uma foto, duplicata do mesmo jovem e assim a
cena se repete ao infinito, dando a impressão de reivindicações sem fim.
Na carta ao leitor (p. 15) o enunciador se antecipa e traz o então ministro da
Educação, Jarbas Passarinho, em voz indireta
Como diz o ministro Jarbas Passarinho, da Educação, depois dos
acontecimentos de três anos atrás, os universitários brasileiros
retraíram-se até ficarem estranhamente à margem da vida da nação.
É uma penosa situação que o governo não deseja, pois não aceita a
versão pela qual estudante deve apenas estudar’, da mesma
maneira que não admite, por parte dos estudantes, a radicalização
Edição de 09/10/1968
Edição de 16/10/1968
80
de posições insufladas pela subversão. O que Veja constatou (...) no
texto final de Bernardo Mendonça é que em grande parte o
retraimento de hoje nasce de uma melancólica forma de medo, que
silencia a universidade, tanto quanto silenciou um estudante paulista.
O texto refere-se à morte do estudante Edson Luís da Lima Souto, morto
numa passeata em março de 1968, no Rio de Janeiro. A reportagem inicia-se com
uma descrição do restaurante Calabouço, local histórico onde eram organizadas
algumas passeatas. O enunciador segue relatando o episódio da morte do estudante
Edson.
Também são enunciados vários outros episódios; o enunciador daquele
momento se pensa onisciente e procura traçar um panorama geral dos conflitos
entre universitários e militares, trazendo depoimentos de ambos os lados, citando o
fechamento de vários diretórios acadêmicos pelo país afora e, sobretudo,
enfatizando o silêncio em decorrência do medo dos estudantes, o que acarretará
uma posterior apatia para assuntos políticos e até mesmo culturais. O título interno
da reportagem chama atenção para isto: A paz do silêncio no campus”: outros
subtítulos também chamam a atenção: “Limites prudentes ou “Todo cuidado é
pouco”. O enunciador recomenda e deseja, ainda que implicitamente, ação com
cautela por parte dos estudantes.
Se de um lado é preciso vencer o desinteresse dos que estão
entrando agora na faculdade, os membros dos diretórios não podem
evitar, de outro lado, a descrença dos veteranos que assistiram aos
incêndios de 1968 e às cinzas de depois. [
Vale lembrar que 1968
foi um ano repleto de conflitos estudantis pelo mundo afora.]
Na época dessa edição os estudantes ainda eram vistos pela sociedade, de
modo geral, como comunistas subversivos e perigosos. Veja, nessa reportagem,
procura dar voz aos dois lados, estudantes e Estado, como por exemplo, no box
intitulado A palavra do ministro”; a voz dos estudantes figura no desenrolar do
texto. A revista chega a fazer críticas, ainda que de maneira polida, ao regime
político de então, mas critica também a postura, em certa medida, alienada, de boa
parte dos estudantes. O enunciador deixa mostrar seu otimismo e aposta nos
estudantes, além do desejo de que se resgate a força dos diretórios.
81
Seguimos com a reportagem de 11/05/1977
intitulada A presença dos estudantes”, com título interno:
Novas figuras na política”. Na capa temos a vista aérea
de uma massa de estudantes, construção bastante ao
gosto do enunciador, que afirma na “Carta ao leitor”, novo
nome do editorial da revista, que “...os universitários
estavam voltando a ser um dado de relevo na equação
política do país.” Agora quem assina o editorial é José
Roberto Guzzo ou simplesmente J.R.G.
O enunciador de saída afirma que “...pareceu iminente, para quem se
lembrava, a reedição dos conflitos de rua dos turbulentos idos de 1968.” que
desta vez “... tanto manifestantes quanto policiais exibiram uma nítida disposição de
evitar o confronto direto.” Os estudantes agora reivindicam que presos sejam
libertados a passeata pró-anistia) e a reportagem segue com reflexões do cenário
estudantil e político. Ainda é muito presente a intransigência do regime militar, mas o
momento segundo o autor parece ser de um pouco mais de consenso: “Tarso
Dutra (...): ‘Polícia não resolve problemas de estudantes. Agrava-os. O governo
precisa ser sensível aos reclamos estudantis, sob pena de dessintonizar-se com a
nação inteira’”.
A capa da reportagem de 03/08/1977 Universidade
de Brasília: DE NOVO EM CRISEtraz o reitor linha-dura,
o físico e capitão-de-mar-e-guerra José Carlos de Almeida
Azevedo, a quem o enunciador chama de “atual regente
da sinfonia de acertos e desacertos executada pela
administração da universidade”. Com título interno As
tropas voltaram à universidade,a reportagem se dedica a
contar a história da UnB, sua concepção libertária e
revolucionária, suas crises passadas e atuais. A presença
das tropas na universidade foi algo de uma atrocidade sem limites, os recursos
imagéticos, novamente, são de uma riqueza ímpar no que tange àquele episódio de
invasão da universidade. O caos foi tanto “que, em certo momento, o próprio reitor
Azevedo se viu detido por policiais zelosos em excesso.” Mas uma passagem em
especial chamou-nos a atenção, inclusive pelo reforço imagético do personagem
(ver foto abaixo)
82
... dos três policias à paisana se destacou um
preto alto, de quase 2 metros de altura,
campeão brasiliense de boxe, matriculado no
curso de Arquitetura, conhecido como
‘Paulão’ nome de imediato trocado por
alunos, professores e funcionários da UnB
para ‘King Kong’. Ele se notabilizou por seu
método de trabalho: aproximava-se da vítima,
agarrava-a pela nuca e a conduzia até o camburão. Às vezes levava
dois alunos ao mesmo tempo, um com cada mão, e chegou ameaçar
fotógrafos e jornalistas que trabalham no local.
Figura a idéia, em quase todas as reportagens desse subgrupo, de que
estudantes devem estudar, mas não devem se envolver em política, como por
exemplo, na fala de Azevedo ao encontrar mendigos pedindo esmolas: “Tanto
problema por ser resolvido e esses estudantes discutindo política.”
A reportagem de capa de 10/10/1979, UNE: A
esquerda na universidade”, com título interno “A UNE volta
para ficar”, trata do ressurgimento da UNE no cenário
nacional e enfatiza características do perfil de seu novo
líder, Rui César Costa Silva. O enunciador procede a um
levantamento histórico-político da vida da UNE e embora,
deixe transparecer algum apreço por ver a união estudantil
em atividade, traz depoimentos que, em certa medida,
desacreditam-na: “‘Deixa os garotos brincarem’, comentou
Golbery do Couto e Silva, ao saber... que um grupo de estudantes havia ocupado
simbolicamente o velho prédio da UNE na praia do Flamengo, no Rio.” As fotos
presentes na reportagem e o texto verbal não denotam mais a tensividade de
outrora; ao contrário, há um clima de descontração e até mesmo sorrisos.
Parece ser uma regra geral, neste subgrupo temático, que o enunciador
privilegie muito mais os aspectos políticos do que os educacionais.
83
A última reportagem deste subgrupo é a de
19/08/1992, “Anjos rebeldes: Colegiais na rua pedem a
saída de Collor”, (ver capa acima), com título interno
Alegria, alegria”. Em sua capa figura sobre um fundo
vermelho cor que cria um efeito de sentido de
tensionalidade, de conflito uma foto de uma animada
passeata estudantil (cheia de cartazes bem-humorados,
palmas e o que parecem ser gritos de ordem) pedindo o
impeachment do então presidente Fernando Collor de
Mello. O enunciador está eufórico, feliz com a volta da rebeldia juvenil e das
manifestações estudantis tantos anos depois e ironiza ainda na capa “Secundaristas
do Colégio São Vicente de Paulo, o mesmo onde Collor estudou”. Diferentemente
das reportagens do período militar, esta não procede a uma reflexão mais profunda
sobre o momento político vivido àquela época. O enunciador de 1992 se sente à
vontade para emitir suas opiniões, agora ele é intrépido, tendo deixado de lado a
cautela que tanto recomendou. Os tempos são outros. É preciso lembrar que Veja
havia investido na candidatura Collor.
Nesta reportagem mistura-se arte, vida e história, segundo o próprio
enunciador. À época era veiculada na rede Globo de televisão uma minissérie
que retratava a juventude militante do período militar:
Foram momentos poéticos, nos quais se confundiram ficção e
realidade, passado e presente, a minissérie Anos Rebeldes e a CPI
de PC. Alegria, alegria: a rebeldia juvenil está de volta, juntando
mauricinhos e militantes, skatistas e esquentados. (...) nada mais
salutar que, na rua, de lábios adolescentes, brotem palavras claras.
A foto dos estudantes durante a passeata reitera a fala do enunciador;
embaixo a legenda reforça: “...embalada pela música de Caetano Veloso e pelos
Anos Rebeldes.”
Aqui segue um depoimento pessoal, uma vez que também fui uma “cara-
pintada”, com 18 anos à época: uma das maiores críticas destas mobilizações
consistia no fato de que os estudantes de então não eram tão politizados e que
estariam seduzidos, motivados, contagiados muito mais pela mídia do que por uma
efetiva consciência dos fatos políticos daquele momento. Ademais, parecia ser algo
muito positivo ou engajado, ainda que não valorássemos muito bem a gravidade dos
84
fatos que nos cercavam, mas havia qualquer coisa de nostalgia, de resgate daquela
juventude de outrora. Queríamos ser tão engajados, tão batalhadores, queríamos
também deixar nosso nome na história, como fizeram os rebeldes do período militar.
Mas o enunciador afirma: “... no Rio e em São Paulo, uma garotada bonita e bem-
humorada, habituada a freqüentar shopping centers e curtir a praia, entendeu muito
bem o que está se passando nas altas esferas do poder.” Entendemos sim, que
havia desvios, roubalheira, irregularidades, mas talvez não alcançássemos a
compreensão da intrincada teia estabelecida na política nacional de então.
Por fim, salientamos o fato de o enunciador trazer de volta uma fala de JK
sobre este tipo de manifestação
... as manifestações dos jovens mostraram apenas o nariz daquilo
que o presidente Juscelino Kubitschek chamava de ‘o monstro’.
O monstro, explicava Juscelino, é difícil de combater porque está em
todos os lugares. O monstro está nas salas de aula, nas filas de
supermercado, nos estádios de futebol, nas fábricas, nos escritórios.
O monstro é a opinião pública. (...) Os signos do monstro aparecem
nas passeatas e fora delas.
Consideramos ser esta uma reportagem muito mais alegórica, emocional e
muito menos politizada, no sentido de não proceder a uma reflexão um pouco mais
aprofundada acerca do cenário político em apreço, como fez outrora o enunciador.
85
4.2 EDUCAÇÃO E SUCESSO
Neste subgrupo examinamos aquelas reportagens que associam a obtenção
de êxito e sucesso à educação a partir da lógica do indivíduo vencedor, a quem, por
vezes, o enunciador chama de vencedor ou vitorioso. Em certa medida, surge
euforizado o neoliberalismo.
Neste item traremos as capas e as considerações
acerca do subgrupo. A reportagem de 10/08/1983, “Onde
o ensino médio é melhor: os supercolégios”, traz em sua
capa a imagem de uma estudante com longos cabelos,
sentada num banco escolar, debruçada sobre o que
parecem ser livros ou cadernos. A imagem recebeu
tratamento gráfico e o que parecia ser uma foto tomou
aspecto de uma pintura. No título interno aparece
Colégios nota 10e na chamada que figura abaixo dele,
Com alto nível de ensino, eles aguçam o interesse dos alunos, dispensam o serviço
dos cursinhos e são úteis pela vida afora”, pode-se notar a euforização do que o
enunciador chama de supercolégios.
A capa de 13/08/1997 Por que o bom ensino é
tão caro: os supercolégios da elite” traz uma apostila
sobre uma mesa, com fundo branco, figurando do lado
direito a ponta de um livro, do lado esquerdo lapiseira,
borracha, uma régua e um lápis, abaixo um compasso e
acima o teclado de um computador e um mouse. a
impressão de que havia alguém estudando, além da
idéia de que todos os recursos estão à disposição
daqueles estudantes que Veja chama de elite. Vale
lembrar que em 1997 ainda eram poucas as casas que possuíam computadores. O
título interno resgata a idéia do “funil”, que nesta reportagem é a questão
econômica que está em foco: Um funil econômicoe abaixo a chamada que explica
86
do que se trata As escolas campeãs dos grandes
vestibulares aumentaram suas anuidades 49% mais que a
inflação do Real”.
A capa de 02/03/1983, Os reis do livro didático”,
traz o autor sucesso de vendas de livros didáticos de
matemática: Benedito Castrucci. A capa tem fundo
marrom, a frente figura uma coleção de livros, aquele que
está em destaque A conquista da Matemática tem cor
vermelha, a capa do livro está modificada e traz foto do autor que usa óculos e tem
fisionomia séria. No canto esquerdo do livro figura a observação: BENEDITO
CASTRUCCI: autor de 40 livros de Matemática, com 6
milhões de exemplares vendidos”, num país que vende
poucos livros pode ser considerado um dado positivo,
ainda que insuficiente para atender a demanda estudantil.
A capa de 1º/09/1999, O rei do ensino: ele tinha
o maior colégio e o maior cursinho do Brasil. Agora tem
também a maior universidade”, traz o empresário do ramo
educacional João Carlos Di Genio, proprietário do
conglomerado Objetivo-UNIP, sua fisionomia é séria, sóbria, está vestindo terno e
gravata azuis. Ao fundo aparece uma sala de aula com carteiras e lousa. As
palavras “Rei do ensino” estão grafadas em letras maiúsculas vermelhas assim
como o nome da revista, o que pode dar a impressão de que Di Genio é rei absoluto
na educação privada. O título interno pode ser considerado polêmico O dono do
ensino” – pois pode o ensino, na assepsia da palavra, ter donos?
Salientamos a seguir algumas construções discursivas que pedem reflexão a
respeito. O enunciador de Veja, via de regra, gosta de traçar o perfil dos sujeitos
vencedores que figuram nestas reportagens, considerados heróis, vitoriosos, gênios,
pertencentes a uma seleta elite minoritária. As escolas retratadas são consideradas
excepcionais, todas particulares e delas são euforizados didática, metodologia,
corpo docente e os recursos disponíveis, sempre os mais modernos e atualizados.
Veja gosta de salientar que a “espinha dorsal da sociedade brasileira” está sendo
forjada nos “supercolégios da elite”. Recortamos dois trechos que evidenciam bem
este argumento:
87
O diretor e mentor intelectual do Santa Cruz, o padre Paul-Eugène
Charbonneau, canadense de 58 anos [diz] ‘Damos uma boa
formação humana e cristã e temos a perfeita consciência de estar
formando a espinhal dorsal da sociedade brasileira’ (Veja,
10/08/1983).
Entre os 39 milhões de jovens e crianças que voltaram às aulas na
semana passada, estão o futuro presidente da República, os
próximos ministros, banqueiros, professores universitários, médicos,
empresários, cientistas. Talvez alguns astronautas. Fora as exceções
de sempre, nascidas num instante de sorte ou em torno de um
talento fulgurante, se pode dizer onde estão sendo forjados os
brasileiros que dentro de vinte anos estarão nos melhores empregos
e cargos disponíveis. (Veja, 13/08/1997).
Em geral, percebemos um ar de arrogância nos sujeitos que figuram nas
reportagens deste subgrupo; são construções como as que se seguem que nos
permitem tal afirmação: “Tínhamos um sentimento de superioridade intelectual no
colégio, alimentado por uma dieta obsessiva de informação e cultura.” (Veja,
10/08/1983); ainda na mesma reportagem “A família Montoro teve companhia à
altura nas carteiras do colégio”, entre outras.
A questão financeira é salientada do ponto de vista de um investimento com
retorno garantido. O enunciador concorda que é um peso enorme no orçamento das
famílias, mas de outro lado ressalta que é o melhor caminho para um “futuro
profissional de destaque”. Os supercolégios apesar de caros são disputadíssimos. É
retomada a idéia do funil educacional, e de novo este funil é econômico; segundo
este raciocínio, faz um melhor colégio quem pode pagar; é o caso da reportagem de
13/08/1997 Por que o bom ensino é tão caro: os supercolégios da elite”; seu título
interno diz “Um funil econômico”. Em troca, essas escolas da elite apresentam
excelentes índices de aprovação nos grandes vestibulares do país, entre outros
diferenciais.
Ainda sobre a questão financeira o enunciador parece se contradizer ao
afirmar que “É a afluência de dinheiro que faz dos grandes colégios as potências
que são.” (Veja 13/08/1997), na reportagem de 10/08/1983 o enunciador afirma
que
Um supercolégio (...) não é uma aliança cabalística de dinheiro com
organização. ‘Um supercolégio é simplesmente a reunião de uma
88
boa pedagogia com um aluno interessado, um professor motivado
pelo ensino e um pai atento’, diz padre Charbonneau. ‘Onde esses
elementos se reunirem haverá sempre um supercolégio.
Além da questão financeira Veja se propõe a desvendar o que diferencia um
colégio de um supercolégio; além da didática e da metodologia seria a carga horária
elevada e o alto grau de exigência de seus alunos, daí o enunciador concluir que
nessas escolas estuda-se mais e este seria um dos “segredos” do sucesso dos
supercolégios. Os interlocutores do discurso afirmam que a maior virtude está em
despertar em seus alunos o interesse pela aventura do conhecimento. Na outra
ponta o enunciador, reiteradamente, disforiza a escola pública com adjetivos como
falida, medíocre, destruída, abandonada, entre outros. É fato que a escola pública
sofreu todo um processo de desmonte da sua máquina, e as condições de trabalho
são péssimas, exaustivas, a demanda em sala de aula é, em geral, muito acima do
aceitável, do razoável, mas a escola pública não pode ser unicamente
responsabilizada por todos os males que afligem a sociedade, como insinua o
enunciador de Veja.
Outro ponto observado refere-se àqueles sujeitos que obtiveram êxito no
ramo da educação, que é vista nestas reportagens como um bom e lucrativo
negócio, por exemplo, na matéria de 1º/09/1999, O rei do ensino”, citada pouco,
que tem como tema central o sucesso do empresário João Carlos Di Genio. A
reportagem enuncia virtudes e defeitos de sua universidade e faz corriqueiras
comparações com a USP. O empresário é, em certa medida, euforizado por sua
iniciativa e realizações. Ademais, o papel social das universidades privadas é
euforizado, pois atendem a uma demanda que de outra forma não teria acesso ao
ensino superior. Na reportagem de 02/03/1983, Os reis do livro didático”, é
euforizada a educação como um negócio, no qual é possível ganhar muito dinheiro.
A matéria é recheada de exemplos de sucesso: Benedito Castrucci com a “A
conquista da Matemática”, o grande campeão de vendas daquele momento;
Hermínio Sargentim com seus livros de Português; Osvaldo Sangiorgi também com
livros de Matemática Moderna; Domingos Cegalla com livros de Português e
Gramática, entre outros.
O livro didático é considerado pelo enunciador de Veja como “bote
indispensável à travessia do ano letivo”. Ele traz dados acerca do número de livros
vendidos e fala do mercado em expansão, o que atrai o interesse pelo filão e acaba
89
por produzir bons e maus exemplares, estes com erros crassos, principalmente, nos
livros de História. Fica explicitada a lógica do sucesso: se um autor obtiver sucesso e
vender muito, logo “poderá viver de direitos autorais”. O fato é que a metodologia
empregada nos anos 50, 60 e seguintes busca, em certa medida, simplificar os
conteúdos a fim de torná-los mais significativos aos alunos, tornando-os mais
próximos de sua vivência cotidiana, ou seja, em consonância com o desejo da
comunidade escolar de então, daí o “segredo” do sucesso. Vale lembrar que
surgem, então, professores com novas propostas pedagógicas, mais abertas e mais
próximas da realidade do alunado, por exemplo, Anísio Teixeira e Paulo Freire; com
suas idéias progressistas, libertárias e abertas, ambos sofreram, lamentavelmente,
acirrada perseguição política durante o regime militar, tendo a morte de Anísio
Teixeira se dado sob circunstâncias obscuras.
90
4.3 POLÍTICAS PÚBLICAS E REFORMAS EDUCACIONAIS
O Mobral (Movimento Brasileiro de
Alfabetização, implantado durante o regime
militar) nasceu para negar meu método, para
silenciar meu discurso.
Paulo Freire
Analfabetismo
As reportagens de 09/09/1970, “Analfabetos: isto vai
acabar”, e de 15/09/1971, Mobral: os primeiros dois milhões”,
tratam das políticas públicas adotadas para erradicação do
analfabetismo no Brasil durante o governo Médici. A primeira
capa traz uma digital com um ‘x’ vermelho em cima e na
segunda uma mão rude segura um lápis sob uma mão
feminina que pega na mão para ensinar a escrever. Na
primeira o título está grafado na cor vermelha, na segunda é o
nome da revista que vem grafado em vermelho. Na primeira o
vermelho implica negação, fim do analfabetismo. Na segunda
implica carinho, força de ensino, identificando o vermelho do
logotipo ao vermelho da mão que ensina. O vermelho aqui é
potência.
Nestas reportagens o enunciador se mostra otimista
com a injeção de ânimo que o governo Médici se propõe a dar
ao Mobral
27
; o programa existia, mas foi reestruturado
naquele governo. A primeira reportagem trata desta reestruturação. Segundo o
enunciador, o Movimento tinha a pretensão de acabar com o analfabetismo, no
entanto ensinava o cidadão a escrever o próprio nome, quiçá ler algumas poucas
palavras. O Mobral tinha como política a descentralização, repassando a
27
Segundo Veja “o Mobral [Movimento Brasileiro de Alfabetização] foi criado em dezembro de 1967, mas
durante três anos teve atuação limitada. No ano passado foram tomadas medidas fundamentais para seu
lançamento em massa. Entre elas, a multiplicação de recursos. Além da antiga verba anual de 500.000 cruzeiros,
passou a contar com 30% da receita líquida da Loteria Esportiva e 2% do imposto de renda. Isso deu ao
Movimento, em 1971, recursos de 67 milhões de cruzeiros” (Veja, 15/09/1971).
91
incumbência às Secretarias de Estado e, sobretudo, aos municípios: o enunciador
cita o entusiasmo paulista e o desinteresse mineiro em 1970, como extremos dessa
situação. O problema é agravado ao verificar que as próprias professoras devem
ser, antes, alfabetizadas. Veja, muito ao seu gosto, traça outro perfil: o do analfabeto
brasileiro urbano e problematiza a mudança de referências de um recém-
alfabetizado, dizendo que este não mais conseguirá se integrar ao seu ambiente e
afirma que o Mobral vai libertar: em certa medida, o enunciador auxilia na
propaganda do governo sobre o Movimento, euforizando-o: “Agora, esta infeliz
nação pode ser libertada.” Na reportagem de 15/09/1971 Veja comemora um ano de
Mobral (reestruturado), faz um balanço e apresenta dados otimistas, como por
exemplo, no título interno A derrota da ignorância: O Brasil começa a vencer um
velho inimigoou na passagem “O balanço dos primeiros resultados obtidos pelo
Mobral realmente demonstra a sua força como um poderoso holofote voltado contra
a escuridão do analfabetismo...”, mas por fim ela mesma questiona até que ponto os
indivíduos estão realmente alfabetizados, posto que na maioria dos casos o sujeito
só aprendeu a assinar o nome e a ler parcas palavrinhas. A continuidade prevista do
processo de alfabetização é questionada: “Isto não é tarefa do Mobral”, mas então
de que alfabetização estamos falando? Assinar o próprio nome não implica em
domínio da língua. As fotos reiteram o discurso de apoio ao programa, ao mostrar
estudantes de variadas idades em ação. Nestas reportagens consideramos válido
refletir não somente sobre quem aparece, mas também a respeito de quem não é
citado, como por exemplo, o educador popular Paulo Freire, que foi pioneiro na
implantação de projetos para alfabetização de adultos em frentes de trabalho e que,
durante o período militar, viu-se exilado em virtude de suas ações educativas
libertárias. Estas reportagens sugerem que para acabar com o analfabetismo devem
ser implantadas ações específicas, mas também que se cuidar da reforma do,
então, ensino primário como veremos nas reportagens que se seguem.
92
Reformas educacionais
As reportagens que se seguem tratam das reformas
educacionais, apresentadas como tábua de salvação para o
ensino fundamental das séries iniciais. São elas A minha
professora: ela é boazinha mas”, de 03/03/1971, tendo na
capa um desenho infantil de uma professora, ao fundo uma
folha de caderno; o título da reportagem vem grafado em
letra cursiva (manuscrito) sugerindo uma letra infantil. Dá-se
a idéia de que até as crianças compreendem que o ensino
anda problemático.
A capa de 30/06/1971, A escola, como vai ser”, traz o
então ministro da educação, Jarbas Passarinho, com
expressão séria, firme; ele segura os óculos, o que a
impressão de que está concentrado. Ao fundo figura uma
lousa com um organograma cheio de siglas. A reportagem
trata da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a lei
5692/71. Por fim, a reportagem de 16/02/2005, Revolução
pela educação: a Coréia fez, o Brasil também pode fazer”,
traz um enunciador mais voraz e incisivo, ele enuncia que o
Brasil deve revolucionar seu sistema educacional, a exemplo
do que fez a Coréia, ora considerando as diferenças
estruturais desses dois países, ora desconsiderando; na
capa, uma guerreira empunha uma lança numa das mãos e
na outra segura três lápis, ao fundo a bandeira da Coréia do
Sul (em nenhum momento ele cita abertamente que se fala
da Coréia do Sul, a não ser pela bandeira na capa; o
enunciatário que desconhecer o código, ficará sem saber) e pessoas com braços
erguidos; a idéia é “revolucionar” a e pela educação .
Estas reportagens revelam um ávido desejo do enunciador de se reformar o
ensino brasileiro das séries iniciais, não se esquecendo dos demais estágios. Ele crê
que as reformas sejam a grande saída para o problema educacional no País, na
verdade o que Veja deseja e estimula é uma grande revolução na educação.
Em todas as reportagens os problemas estruturais da educação são
ressaltados: a escassez de verbas, bem como o desperdício, as questões de infra-
93
estrutura precária, o currículo que pede urgente revisão, a
formação docente, isto quando ela existe, a participação
dos pais longe do desejável, a intenção de formar o jovem
para o mercado de trabalho, entre outros. Para todos estes
problemas o enunciador apresenta soluções das mais
variadas. Como exemplo figura a reportagem de 20/11/1991,
Ensino Básico: As opções para resolver o problema que
está na raiz do atraso brasileiro”, na qual o enunciador
apresenta soluções ilustradas por infográficos, compara a situação brasileira com a
de outros países, enfatiza que um país analfabeto é um país pobre e a que
sociedade teria despertado para esta questão, o subtítulo interno corrobora
Finalmente o Brasil entendeu que vai sair da crise quando resolver a tragédia do
ensino básico”. A universidade particular ressurge disforizada, a escola pública é
considerada medíocre e nem mesmo as escolas particulares escapam deste
enunciador feroz que diz que elas “são apenas um pouco melhores” do que as
públicas. De outro lado, critica o assistencialismo empregado na rede pública de
ensino, com o que concordamos. A prefeitura de São Paulo é um bom e atual
exemplo desse assistencialismo insano (a atende as séries iniciais que vão dos 6
aos 10/11 anos nas quais temos vivência), pois distribui material escolar, uniformes,
leite em da marca Ninho (sabidamente vendidos pela comunidade carente) e
merenda escolar balanceada e abundantemente desperdiçada; um aluno que queira
comer somente a fruta, que é entregue de sobremesa, se obrigado a receber a
refeição completa e é orientado a jogar fora tudo aquilo que não queira comer,
desnecessário dizer que toneladas de comida são desperdiçadas por dia. Voltando à
reportagem, ela está recheada de infográficos que visam esclarecer o enunciatário a
respeito das possíveis soluções que o enunciador apresenta, ele acredita que a
educação tem saída e que tudo parece fácil. E pode ser que seja mesmo.
94
4.4 OUTRAS FORMAS DE ENSINAR/APRENDER
As reportagens que se seguem tratam das inovações
metodológicas empregadas no ensino de Educação Física e
Matemática. A capa de 05/09/1984, A educação física e as
crianças: a construção do corpo”, traz, ao centro, uma
menina saltando, ao fundo figuram árvores verdes, o corpo
suspenso, braços e pernas abertas dão a idéia de
movimento, o conjunto detona saúde e que vida saudável se
aprende na escola. O título interno Aprendendo a crescer: A
Educação Física alegra a vida escolar brasileiracompleta o
sentido da capa e acrescenta a idéia de que antes as
atividades físicas não alegravam a vida escolar, o que vem
reforçado na reportagem propriamente dita. A capa de
30/08/1989, Matemática: Enfim, a boa notícia: todos podem
gostar e aprender, traz a cabeça aberta, recheada por
números, incógnitas e fórmulas que emergem do sujeito-
boneco, que tem uma expressão sorridente, o fundo amarelo
ouro nas capas de Veja denota, via de regra, a vitória e o
êxito no aprendizado.
Na primeira reportagem o conceito de Educação Física é atualizado, são
euforizados os novos métodos para ministrar aulas; estes estão atentos aos desejos
e aspirações do alunado que anteriormente julgavam as aulas de Educação Física
“chatérrimas”. Esta idéia vem apoiada em depoimentos, via discurso direto.
Percebemos que o enunciador está “antenado” às novidades do discurso educativo
de então, que defende o respeito à diversidade, aptidões e gostos, o que vem
amplamente defendido e exemplificado por meio do relato de experiências que
deram muito certo. Antes o todo homogeneizava alunos, desconsiderando suas
preferências, então surge um novo paradigma metodológico para ministrar estas
aulas que inclui atenção aos “não-atletas”, processo que passa também pela
formação dos professores de Educação Física. Ao gosto de Veja, o enunciador traça
95
o perfil do estudante brasileiro e suas preferências para execução de atividades
físicas.
Na segunda reportagem com título interno Cálculos de roupa nova o
enunciador euforiza a “nova” metodologia para o ensino de Matemática, no entanto
este método traz somente uma nova roupagem aquilo que era um clamor, uma
tendência da comunidade escolar dedicada à Matemática havia algumas décadas,
embora traga uma proposta ainda mais atualizada (ver exame da reportagem acerca
dos livros didáticos). O enunciador, via de regra, deseja uma revolução na Educação
e sempre que encontra uma brecha defende e argumenta em favor desta revolução,
seja pela Matemática, mas não estritamente, ou por qualquer outro meio: educação
física, reformas, legislação etc. O enunciador argumenta que a Matemática deve ser
levada a sério e que ela tem estreitas relações com o mercado de trabalho, ou seja,
o enunciatário deve aprender Matemática a fim de obter uma melhor colocação na
vida profissional, para tanto Veja defende mudanças no currículo desta matéria.
No próximo capítulo nos dedicaremos a examinar as reportagens do grupo
família e educação dos filhos.
96
5 FAMÍLIA: COMO EDUCAR OS FILHOS
Neste capítulo examinamos as reportagens de capa de Veja que fazem
referência direta e explícita à educação dos filhos. Assim, não compareceram
reportagens sobre cuidados com bebês; infância pobre e antiga Febem; abuso
sexual contra crianças; sexo, tv e crianças; fome, miséria e massacre infantil; morte
de jovens em decorrência do uso de entorpecentes entre outros. Em nossa análise
examinaremos as reportagens de capa que mapearam “novidades” e redescobertas
acerca da educação dos filhos, via de regra, da classe média, considerando atitudes,
comportamentos e relacionamentos.
Analisamos aqui as reportagens que trouxeram receitas sobre o modo como
os pais devem educar os filhos (crianças e adolescentes). Concentramos nossa
análise nas construções discursivas e nas estratégias de produção de sentido
utilizadas nessas reportagens. Assim, relacionamos os sujeitos narrativos que ali
comparecem com o caráter pedagógico dos media, discutido em Orozco Gómez,
tendo em conta que ambientes mediáticos se constituem também como poderosos
ambientes de diversas aprendizagens, sem fazer aqui nenhum juízo de valor, a fim
de verificar a construção das modalizações do “dever-fazer” e do “dever-saber”
apresentadas sob a forma de cartilhas/manuais/receitas em dez passos e, assim,
verificar quais regras, normas e valores modais estão expressos ou indicados nas
reportagens.
Com base no arcabouço teórico de Orozco Gómez e Prado analisamos o
discurso do enunciador de Veja, sobre o já citado “dever-fazer” dos pais no tocante a
educação dos filhos. Para tanto, e como estratégia discursiva, Veja traz indicações
aos pais (de classe média) de como fazê-lo, indicações estas que figuram através
das vozes dos especialistas que, em geral, procuram “traduzir” o conhecimento dito
científico, para uma linguagem mais clara e acessível, sobretudo rápida, em
consonância com o conceito de dromocracia nos termos de Virilio, claramente
perceptível no uso dinâmico dos boxes.
97
Educar os filhos pela “cartilhaVeja
A reportagem de capa de 21/07/2004 intitulada
10 regras básicas para entender e ajudar os filhos”, com
título interno 10 regras fáceis para educar seus anjinhos
– traz recomendações de um enunciador onisciente:
... em dez princípios básicos toda a
gama de atitudes e reações que os pais
devem se condicionar a ter em relação
aos filhos. Apenas dez. Parece simples
demais, mas por trás desse enunciado ergue-se uma das mais
consistentes propostas de educação (...) nos últimos anos. Grifo
nosso para ressaltar, de saída, o “dever-saber” para “poder-dever-
fazer”.
Antes de iniciar a reportagem Veja antecipa, acima do título interno, a
proposta central da reportagem: Equilíbrio entre a ciência e o bom senso, essa é a
fórmula para ajudar os pais a criar filhos mais preparados para a vida.
O enunciador dita e explica passo a passo o caminho para se obter êxito na
educação dos filhos. Ao longo da reportagem surgem pequenos boxes, com letras
grandes e grifadas, contendo rápidas e fáceis explicações de como colocar as regras
em prática, o que e como fazer com cada uma. Em geral, são utilizados verbos de
ação na conjugação imperativa o que denota, em conseqüência, uma posição
imperativa da própria revista, exemplos: box 2 “Demonstre afeto incondicional por
seu filho. Isso não o tornará mimado”, box 4 “Mude a forma de tratar a criança de
acordo com as etapas de crescimento”, box 5 “Estabeleça regras e limites desde
cedo”, box 8 “Evite castigos físicos e agressões verbais”, box 10 “Trate seu filho com
respeito”. Por fim, o enunciador de Veja define direitos e deveres de pais e filhos e
dá outras sugestões de ordem prática (grifo nosso).
Como recurso lingüístico para reforçar, para legitimar o discurso do “dever-
fazer”, mas, sobretudo do “poder-dever-fazer” proposto pelo enunciador são
apresentados pequenos boxes contendo depoimento das mães (retratadas nas fotos
em que figura o modelo de família feliz dos comerciais de margarina) com chamadas
bastante imperativas: “É preciso firmeza” (ver figura 1, reprodução do box),
98
Fig. 1 box interno da reportagem, aqui
surgem figurativizadas a
família classe média brasileira.
“Participação ativa” (ver figura 2, idem, abaixo), “Tempo vale ouro”, “Conselho de
filho” e “Impondo regras”:
IMPONDO REGRAS: Temos três regras em casa que são imutáveis:
as meninas vêem TV depois que escurece, balas e chicletes
aos sábados e domingos e, durante semana, as refeições são feitas
à mesa com a família reunida. Acho que estabelecer regras é uma
maneira de passar segurança às meninas (...)
Figuram fotos (cujos sujeitos narrativos figurativizam a classe média) que, em
geral, remetem ao consumo, como por exemplo: a mãe, dona de loja de roupas em
SP, com suas duas filhas na loja (fig. 1); e com os filhos em carro visivelmente
novo (fig. 2) etc. O manual proposto pelo enunciador dita como educar filhos
colocando limites (palavra recorrente em Veja) e coloca tais regras como
necessárias aos pais que trabalham fora e se sentem desorientados, carentes,
portanto, desse “deve-fazer”.
99
Fig. 2 aqui figura o modelo de família feliz
, carro
visivelmente espaçoso e presumivelmente novo.
.
O enunciador de Veja busca encontrar regras gerais para fazer a ponte entre
o conhecimento especializado e os pais necessitados de orientação. A semiótica
denomina tal procedimento, no nível discursivo, de ilustração, recurso argumentativo
no qual o narrador enuncia uma afirmação geral e exemplos com a finalidade de
Fig. 3 box interno: entrevista de um especialista, recheada de ‘dever-fazer’
100
comprová-la
28
. Está presente a idéia de uma educação ‘moderna’, atualizada, que
veio suplantar a educação tradicional, seus descompassos e conflitos. Assim figura
um box (“Às vezes é preciso curar os pais”) (ver figura 3, página anterior) contendo
entrevista do psicólogo inglês Steve Biddulph, especialista em educação de
crianças, campeão de vendas:
Esta é com certeza a geração mais abandonada de todos os tempos.
Pesquisas feitas na Inglaterra mostram que os pais passam apenas
seis minutos proveitosos com seus filhos por dia. Não basta dar
comida, presentes, sentar na frente da televisão e esperar que seu
filho tenha um comportamento exemplar.
O enunciador de Veja finaliza a reportagem com um box que traz um teste
classificatório elaborado, sob encomenda, pelo especialista acima: Que tipo de pai
(ou mãe) é você?”. Os testes complementam as receitas modalizadoras.
Nesta reportagem Veja constrói um panorama povoado por vozes de
especialistas e depoimentos, para então traçar um panorama das dificuldades em
termos de “dever-saber” como fazer para educar os filhos e atender às exigências
para esta educação, é constante a presença da ciência para apoiar as indicações de
“dever-fazer” dos pais.
Retomando a questão dos depoimentos, trata-se, segundo Fiorin (2001:46-
48), de uma operação de debreagem interna (ou de grau), na qual o enunciador
a palavra a uma das pessoas do enunciado ou da enunciação, e produz
simulacros de diálogos no texto, estabelecendo assim interlocutores e criando a
unidade discursiva do discurso direto (o que cria um efeito de sentido de verdade) ao
dar voz a atores inscritos no discurso, o que proporciona ao enunciatário a ilusão
de estar ouvindo o outro em suas “verdadeiras” palavras (ver figuras 1, 2 e 3).
28
Fiorin (2001:54-55)
101
A reportagem de capa de 18/02/2004 intitulada Filhos tiranos, Pais
perdidostem como título interno A tirania adolescenteinicia constatando que
mudanças ocorreram:
Até poucas décadas atrás, os pais
educavam seus filhos com base numa
regra simples: cabia a eles exercer sua
ascendência sobre a prole de maneira
inquestionável, pois como diziam os
avós dos adultos de hoje – criança não
tinha direito nem querer. Muita coisa
mudou desde então. (...) A tal ponto
que hoje se vive o oposto da rigidez que pontificava antes disso: em
muitos lares, os pais é que se sentem desorientados e os filhos, na
ausência de quem estabeleça limites à sua conduta, assumiram o
papel de tiranos. (...) bomba-relógio que começa a ser gestada cedo,
mas cujos efeitos se agudizam na adolescência. É nesse período
que os pais se sentem mais confusos sobre seu papel.
A foto ao lado reforça a idéia de pais
miniaturizados, oprimidos pela tirania dos filhos
necessitando, portanto, do manual do enunciador que
ordena uma reação efetiva dos pais, e para tanto
autoriza, via especialistas, alguma dose de
intransigência. Tania Zagury, especialista em
educação e voz presente nesta reportagem e naquela de 21/07/2004, além de
figurar também no site da revista: ...defende que práticas que andavam esquecidas
na educação dos filhos sejam resgatadas, em nome do futuro do próprio jovem e
da sociedade.
O enunciador compara, por meio de boxes, os diferentes modos de educar
das décadas de 60, 70 e 80 até os “dias atuais” (2004), além de propor o “resgate”
da autoridade perdida em oposição aos excessos da educação liberal que
deseduca: “Até meados dos anos 60, as regras dentro de casa eram impostas
implacavelmente aos jovens. (...) Hoje, cada sanção precisa ser acompanhada de
boas justificativas e haja suor e lábia para dar 200 explicações.” Tânia (a voz
especializada) defende que não é uma volta à educação rígida de antigamente, e
102
sim a busca de um ponto de equilíbrio que se perdeu em algum momento entre o fim
dos anos 70 e a atualidade.” Trata-se de colocar o novo em relação ao velho, dentro
de uma tendência de tecnologização dos discursos, em geral, mapeando o que
ocorre e apontando aos pais modos de ação com seus filhos. As mudanças (no
presente e no futuro) no âmbito da comunicação social se devem não às novas
tecnologias, mas também à presença maciça dos meios e tecnologias nascidas na
modernidade (ex.: imprensa, rádio, TV...) (Orozco Gómez
29
, 2001).
O enunciador cita nas reportagens deste subgrupo as metodologias
pedagógicas modernas trazidas ao lado das descobertas da neurociência e da
vulgarização de conceitos teóricos, além do entendimento equivocado e uso
indevido dessas teorias para assim explicar a pressuposta desorientação dos pais
acanhados e culpados que estão, o que ocasiona o corriqueiro conflito:
permissividade versus culpa. E isto na opinião da revista estaria atrapalhando a
atuação dos pais na educação dos filhos. Finalmente, para acabar de vez com
culpas e equívocos figuram boxes com dez direitos que os pais, segundo a revista
enfatiza, devem lembrar e praticar. Mas há um outro viés ferozmente enfatizado pelo
enunciador e abrandado no decorrer da reportagem, de que os pais estão fugindo às
suas responsabilidades:
Às vezes não é o uso indevido da psicologia moderna nem a culpa
que causam o estrago: é o desejo de fugir da tarefa difícil que é
educar um adolescente. Alguns pais usam a falta de tempo como
subterfúgio. Outra rota de fuga é aquilo que os educadores
convencionaram chamar de ‘medicalização’ da adolescência: ao
menor sinal de que alguma coisa está fora dos eixos, os pais correm
para um consultório, em vez de tomar eles próprios as rédeas da
situação. (...) Acreditar que a escola possa assumir sozinha o papel
de educar os adolescentes é uma saída pela tangente bastante
comum. A permissividade chegou a um ponto em que os próprios
colégios estão tendo de chamar a atenção dos pais para seus
deveres.
29
Orozco mez trabalha com o caráter pedagógico e desordenamentos educativos, voltados à televidência,
focado na análise da TV. Entendemos, entretanto, que a analogia quanto a responsabilidade educativa possa ser
feita também para a mídia impressa.
103
uma tentativa de conceituar a categoria e assim se seguem explicações
sobre o comportamento adolescente, sua tematização e figurativização e a
identificação por meio de fotos de ídolos rebeldes. A reportagem é finalizada com um
box (“Antigo Egito reclamava deles”) dizendo que o problema é antigo, e que faz
parte do humano essa fase de transição conflituosa. Fica clara a mensagem em
defesa dos direitos dos pais, contra a tirania dos filhos: a função do pai o é ser
amigo e confidente – para isso, os adolescentes têm suas turmas. Papel de pai é ser
pai.E assim finaliza com a defesa, tão enfatizada, da colocação clara e aberta de
limites.
A reportagem de capa de 16/06/1999 – intitulada
Não, não e não!!! Os especialistas dizem que os pais
precisam impor limites para educar os filhos”, com título
interno Por que é preciso dizer nãoinfere que “agora”
educar é saber impor limites. O enunciador onisciente de
Veja compara os anos 60 e os dias atuais (1999). Nesta
reportagem, assim como naquela de 21/07/2004 (“10
regras básicas para entender e ajudar os filhos”), figuram
depoimentos de es, que se sentem perdidas, confusas, divididas e culpadas,
diferentemente daquelas que também em depoimento ressaltam aquilo que funciona
para colocar limites aos filhos.
As vozes onipresentes dos especialistas (pedagogos e psicólogos que são
sucesso de venda de livros sobre a façanha de “dizer não”) afirmam que: liberdade
excessiva produz adultos sem limites e responsabilidades; o ideal é encontrar um
ponto de equilíbrio; e, por fim, o enunciador autoriza os pais a ser intransigentes no
estabelecimento de regras e limites. O enunciador de Veja apóia-se nestas vozes
para reafirmar a nocividade do excesso de liberdade e falta de regras. Abundam
exemplos das dificuldades dos pais com a educação dos filhos:
Você, pai e mãe da virada do século, sabe quanto está difícil educar
filhos. Na hora do banho, o pequeno chora e esperneia. (...) Para os
pais de hoje, nascidos ou educados nos anos 60 e 70 lidar com
essas situações é mais complicado do que se imagina. Dar uma
palmada ou impor um castigo, nem pensar. Afinal essa geração de
pais que cresceu ouvindo dizer que nada é mais saudável do que
104
deixar as crianças exercitarem suas próprias emoções, limites e
potencialidades. (...) E agora? O que fazer (...) se a filha queridinha
do papai aparece em casa de piercing no nariz? Dizer não é um
desafio que está além das forças e convicções de muitos pais e
mães.
No passado os pais “acreditavam que os filhos lhes deviam obediência cega”:
o regime era rígido “para o bem das crianças”. Os jovens pais da nova geração não
acreditam mais nisso. “Aprenderam que, pelo velho modelo, os adultos corriam o
risco de ser tiranos com as crianças, injustos e até mesmo usar os filhos como saco
de pancada apenas para dar vazão às próprias frustrações. (...) pais modernos se
tornaram modernos em excesso”, o sabem dizer “não”, produzindo assim adultos
sem limites e responsabilidades, inábeis ao convívio social.
Ao mapear o tema em todo o mundo Veja constrói a aparência de que sabe o
que está ocorrendo com todos os pais inseguros para “educar” seus filhos, sabe que
este é o assunto do momento entre especialistas no mundo inteiro nesta área e
sabe, também, o que eles discutem. Segundo Prado & Bairon (2007) Veja
acompanha as últimas tendências, compara-as com as de sociedades do passado,
resume e aponta dificuldades, além de indicar caminhos de ação.”
Enfim, como dizer “não” para as crianças de hoje? Segundo Veja, não se trata
de espancar, impor castigos físicos ou humilhações, mas de dar um “tapinha
simbólico” (afirmação de uma especialista inglesa). “Frustração, raiva, ódio, disputa
e privação fazem parte do aprendizado de uma criança tanto quanto o amor, o
carinho e o afeto que ela deve receber dos pais”. Na seqüência, o enunciador
constrói um panorama histórico das mudanças acerca das idéias e conceitos sobre a
infância:
Até a metade desse século, a criança era encarada como um
selvagem a ser civilizado. (...) O pai era o senhor absoluto da casa,
ao qual os filhos deviam prestar respeito e obediência. Dele não se
esperava nenhuma demonstração de carinho ou emoção,
especialmente em relação aos filhos homens. De repente, tudo
mudou. Nos revolucionários anos 60 e 70 ficou-se sabendo que
amor, e amor, era a fórmula infalível para que uma criança
crescesse feliz e emocionalmente estável.
105
O enunciador de Veja reforça a idéia de que a educação dos filhos mudou
muito no último século e que, portanto, os pais devem estar atentos, bem informados
e atualizados e assim a revista contextualiza:
Nos revolucionários anos 60 e 70 (...) All you need is love (tudo o que
você precisa é amor) anunciava uma célebre canção dos Beatles.
Em casa e na escola, as surras de palmatória, cintos e vara
imediatamente deram lugar à liberdade quase absoluta. Alguns pais
chegaram a ponto de não incutir seus princípios religiosos nos filhos,
sob o argumento de que a escolha de uma religião ou nenhuma
deveria ser tomada pelo próprio filho quando ele tivesse a idade
adequada para isso. Nas chamadas escolas alternativas, surgidas
nessa época, os alunos não precisavam fazer provas nem tinham
notas ou regras de conduta. Com isso, a geração que cresceu sob
um domínio de pais autoritários fazia um esforço sincero de dar mais
liberdade aos filhos, para que a espontaneidade das crianças
florescesse sem ser abafada pela opressão dos mais velhos. Em
muitos casos o resultado foi desastroso. Está uma geração de
adolescentes e jovens entre os quais muitos se sentem
despreparados para enfrentar um mundo que cobra eficiência,
respeito e disciplina.
Segundo Veja, nos anos 90, os pais buscavam um ponto de equilíbrio entre
“aquela autoridade opressiva do pai-patrão e a noção de liberdade sem fronteiras
que a sucedeu”. É preciso saber apontar limites. Veja traz a fala de um
psicoterapeuta, consultor dos colégios Santa Cruz e Bandeirantes: “É preciso ser
sempre muito claro e até intransigente quanto às regras e condutas a ser seguidas”.
A revista segue relatando casos concretos de pais hippies na adolescência que
depois foram criticados pelos próprios filhos. Estes, hoje, querem “encontrar um
meio termo entre a educação liberal” que receberam dos pais e aquela autoritária
dos avós. “Quero mostrar tudo o que pode, mas também o que não pode” afirma
uma dessas entrevistadas.
Segundo outra entrevistada, “proibir tudo sem motivo pode frustrar a criança.
uso o ‘não’ quando é realmente necessário”. O enunciador continua defendendo
que
106
como tudo na vida, impor limites também é uma questão de bom
senso. Castigos e reprimendas não têm utilidade alguma se na
relação entre pais e filhos não houver diálogo, compreensão, amor e
carinho. Quando se diz não, é preciso explicar claramente por quê,
(...) raros os pais que conseguem dosar direito essa fórmula.
Geralmente começam a ceder quando o filho ainda é recém-nascido.
(...) Mais tarde, cedem novamente quando ele, mais crescidinho, se
recusa a comer o que os pais lhe oferecem e transforma a hora de
desligar a televisão num pesadelo doméstico. Aos poucos, perdem o
da situação, criando em casa um pequeno déspota. Muitas vezes
o resultado da ausência de limites dentro de casa vai aparecer na
escola, ocasião em que a criança ou o adolescente começam a dar
sinais de problemas emocionais.
Uma especialista (pedagoga) ouvida por Veja diz que é comum que os pais
não tenham a menor idéia do que se passa com os filhos. Essa ausência dos pais
na educação dos filhos
é também responsável pelo aumento da clientela nos consultórios
psicológicos. (...) O psicoterapeuta Eugenio Chipkevich
30
fez uma
pesquisa informal sobre o assunto em escolas particulares de São
Paulo. Constatou que, em algumas turmas, um terço dos alunos
tinha passado por alguma terapia. “Estamos vivendo uma excessiva
medicalização e psicologização das dificuldades das crianças”,
afirma ele. “Os pais preferem pagar para que seus filhos resolvam
essas questões em consultórios psicológicos, em vez de assumir
eles próprios a tarefa de ajudar”. (...) o problema da autoridade e
imposição de limites está particularmente ligado à figura paterna. (...)
o pai moderno está muito mais preocupado com o trabalho, com as
formas de ampliar rendimentos e com a realização pessoal do que
com a educação dos filhos.
30
Em 2002 esse médico que figurativiza a voz do especialista foi preso sob acusação de abuso sexual contra
crianças e adolescentes. Fato que amplamente noticiado pelos media.
107
A reportagem de 13/07/1988, Deixem os seus filhos
em paz”, traz na capa uma criança lendo o livro do qual se
ocupa a reportagem. A matéria a impressão de ser um
grande folheto promotor para venda do livro que figura na
capa (“Uma vida para seu filho”, de Bruno Bettelheim), o qual
Veja considera ser o grande manual para pais que estão
ansiosos com a educação dos filhos. O título interno “A arte de
criar filhos” pressupõe que criar filhos seja algo tão trabalhoso
como uma obra de arte. O enunciador, em meio ao deslumbre com o livro citado,
considera “que a educação perfeita é um mito” e que “fórmulas mágicas” não
existem; a matéria disforiza livros que seguem nesta trilha e euforiza o livro em
questão, afirmando que a “obra ... é um meio seguro para os pais se orientarem em
meio à balbúrdia que é a educação das crianças.”
A reportagem é recheada de conselhos direcionados aos pais, conselhos que
se propõem tranqüilizadores. De outro lado, o enunciador afirma reiteradamente que
não fórmulas ou receitas seguras, mas que “ao menos se pode orientar os pais a
terem determinadas atitudes em relação aos filhos”. O behaviorismo
31
, ligeiramente
definido por Veja, é disforizado na reportagem.
Percebemos que o enunciador dessa reportagem, especificamente, está mais
tolerante com as falhas dos filhos, diferentemente de outras reportagens nas quais
ele é menos condescendente, sugerindo a forte colocação de limites e até mesmo
admitindo o uso de um “tapinha simbólico”.
Na capa da reportagem de 30/07/1997, Sem tempo
para os filhos”, figura um garoto de camisa vermelha e
bermuda, o vermelho da camisa identifica o vermelho do
nome da revista, criando efeito de sentido de
tensionalidade, ele está de costas para o leitor, com vários
brinquedos dispostos ao seu lado e de frente para um
enorme relógio, o tempo, ou a falta dele, que esmaga as
31
Citamos um trecho como ilustração, mas outros: “... behaviorismo, a teoria psicológica que defende que a
criança é uma folha em branco na qual os pais ou educadores, através de treinamento e do desenvolvimento de
certos estímulos, escrevem a seu bel-prazer como ela se comportará no futuro. O behaviorismo, teoria
desenvolvida pelo psicólogo americano John B. Watson nos anos 20, serviu de impulso decisivo para a
enxurrada de livros sobre criação dos filhos.” (Veja, 13/07/1988)
108
relações.
O título interno “Pais e filhos com hora marcadae o subtítulo “Como conciliar,
sem culpa, o trabalho fora de casa com a educação das crianças antecipam a
tônica desta matéria: minimizar a culpa do enunciatário de Veja, que não dispõe de
tempo para estar com os filhos. O argumento principal é: o que conta é qualidade e
não a quantidade do tempo que se passa com as crianças. Para validar seu
argumento o enunciador cita vários exemplos de experiências bem sucedidas: os
sujeitos-mães que figuram na reportagem são executivas workaholic bem sucedidas,
classe média alta, por exemplo. A reportagem está recheada de valores modais do
dever-fazer, indicando o que é “correto”. O box “Conselhos de quem sabe
pressupõe que o enunciatário não sabe o que fazer com seus filhos, por isso o
enunciador-onisciente vem para dizer como ele “deve-fazer” e defende que: “‘O ‘não’
é uma palavra protetora’, como explica a psicóloga Ceres Alves de Araújo,
professora de psicologia da Universidade Católica de São Paulo. (...) apesar das
reclamações, só assim eles [os filhos] se sentem protegidos.”
Esse enquadramento temático repete-se sistematicamente em Veja. A seguir
traçamos uma espécie de mapa de recorrências nas reportagens arroladas:
- Enunciador sabedor onisciente;
- Regras de “dever-fazer” estabelecidas por meio do formato manual que
contem a tradução do discurso científico via especialistas (em geral
aqueles que são sucesso de venda de livros);
- Pais, como sujeitos das narrativas, que não sabem o que se passa com os
filhos ou que não sabem como educá-los;
- Conceituação da categoria adolescente, inclusive em sociedades antigas;
- Uso equivocado de metodologias pedagógicas modernas, somado ao
mapeamento das dificuldades de saber como fazer para educar os filhos;
- Mapa do novo em relação ao velho, comparações da rigidez dos pais de
ontem e a liberalidade dos pais de hoje (educação moderna em
descompasso) e a proposta de um resgate que seja o ponto de equilíbrio
entre estes opostos em nome do futuro do próprio jovem – e da sociedade;
109
- Autorização de certa intransigência por parte dos pais para
estabelecimento dos limites enfatizados necessários, essenciais,
fundamentais. Saber dizer “não” é preciso e necessário;
- Depoimento dos sujeitos narrativos (acompanhados de fotos) relatando
experiências bem sucedidas e, sobretudo, possíveis. O recurso imagético
(fotos e imagens presentes na capa e no interior da reportagem) que
evidencia pais e filhos da classe média reforça o texto verbal e assim cria
efeitos de sentido;
- Uso de linguagem fácil e rápida, veloz por meio do uso de boxes;
- Testes encomendados aos especialistas.
A insistência de Veja em relação ao bom senso, ao intuitivo, está sempre
presente. A revista busca constantemente orientar o leitor perdido num mundo
complexo e acelerado, aceleração esta pensada em termos do conceito de
dromocracia discutida em Virilio (1996), também presente na disposição
diagramática da revista, que busca ser dinâmica, com apresentação de pequenos
boxes de rápida leitura e fácil compreensão, sem delongas, afinal a velocidade
remonta à estratégia (nominação bélica discutida por Virilio) e estratégias o faltam
à Veja.
A conduta dos pais em relação à educação dos filhos tem sido amplamente
discutida em diferentes instâncias sociais (nos media, nas escolas e universidades),
tendo em conta diferentes aspectos: a educação que estes pais receberam; as
informações às quais tem ou não acesso; como devem educar e repreender; por fim,
o que sabem ensinar, tudo isto repercutindo na e por intermédio dos media. Estas
discussões contribuem para a constituição dos discursos veiculados sobre
“educação”, sobre a formação que estes pais receberam e sobre aquela que
proporcionam, bem como sobre as opiniões sobre como criar filhos e o que é ser
pai/mãe nas últimas décadas. Dessa maneira, as formas de atuação dos pais, bem
como as opiniões trabalhadas vão compondo e constituindo as múltiplas imagens
desse atores sociais.
O debate sobre mídia e educação é urgente, para o campo da educação e
dos estudos sobre a complexa rede de produção, circulação e apropriação de
significados, no âmbito das práticas que envolvem a vida cotidiana de milhões de
110
pessoas, em todo o mundo, e as grandes redes de comunicação e informação. Uma
pergunta premente diz respeito ao modo pelo qual os media têm participado da
constituição de sujeitos e subjetividades, exatamente na medida em que produz e
faz circular imagens, significações, enfim, saberes que de alguma forma se dirigem à
educação ou à formação das pessoas, divulgando ou reforçando modos de ser e de
estar na cultura em que vivem (Nemes, 2006).
Em reportagem exibida pelo telejornal SBT Manhã (18/07/2007, edição das
6h.) Hermano Henning noticiou que um jovem de Londrina-PR foi deixado preso com
a anuência de seu pai, que resolveu aplicar-lhe uma lição e não acionou os
advogados de pronto. Posteriormente, voltou atrás. O fato: o jovem pegou a
camionete do pai (grande e aparentemente nova) sem autorização e, embriagado,
capotou-a, sem envolvimento de terceiros. A mãe, entrevistada, disse que o rapaz
será internado em clínica, no interior de São Paulo, para tratamento (Telejornal,
2007). Salientamos que a família em questão, de classe média, é semelhante
àquelas figurativizadas em reportagens sobre educação em Veja em termos de
paradigmas e do sentimento de pertencimento ao grupo do Mesmo. Este fato,
oportuno, vem ao encontro da discussão proposta neste trabalho: a atitude do pai,
ainda que radical, legitima o discurso do enunciador de Veja, que enfatiza a
colocação clara de limites a fim de formar uma sociedade melhor. “Está uma
geração de adolescentes e jovens entre os quais muitos se sentem despreparados
para enfrentar um mundo que cobra eficiência, respeito e disciplina (Veja,
16/06/1999).
Vale ressaltar que não estamos corroborando com os simulacros de realidade
de Veja acerca da educação dos filhos. Não diríamos, neste sentido, que
concordamos com a revista, mas concordamos com o preceito da colocação de
limites aos filhos. Em sala de aula percebemos o quanto a falta de limites é
problemática, considerando que atuamos somente nas quatro séries iniciais, com a
faixa etária que vai dos 6 aos 14 anos (acima de 10-11 anos o aluno está atrasado,
via de regra, em decorrência de problemas de aprendizagem), ou seja, é uma
clientela mais nova, nos parece que com o avanço da faixa etária isto se agrava.
Assim, entendemos que a falta da colocação de limites desde a tenra idade acarrete
situações como a descrita acima e aí sim os pais ficam perdidos.
111
PARTE III
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No exame do corpus identificamos como a revista Veja constrói, via
estratégias discursivas, o tema da educação. Localizamos, pois, estratégias de
produção de sentido empregadas nestas construções discursivas e investigamos o
“dever-fazer” modalizador que implica na apresentação, pelo enunciador, de
ambientes comunicacionais carregados de possibilidades instrucionais voltadas ao
enunciatário. A revista sempre apresenta e reapresenta um “dever-saber” em
relação aos temas da educação, para o enunciatário poder “dever-fazer” no rumo do
sucesso e de valores a ele ligados.
Os valores expressos no discurso, principalmente, sob a forma de manuais
(direcionados a pais e professores) expressam, portanto, os termos dos contratos
comunicativos que se estabelece entre enunciatário e enunciador; se pensarmos em
termos de consumo, evidenciam-se assim os papéis do consumidor e do produtor de
notícias modalizadoras. Esse contrato comunicativo pressupõe isenção, neutralidade
e imparcialidade (comumente expressos nos manuais de jornalismo) por parte do
enunciador. Porém, sabe-se Veja não deseja apenas, e tão somente, informar seu
leitor-enunciatário, mas quer fazer jus a um contrato pressuposto, implícito, no qual
as cláusulas, de alguma forma, visam garantir que o conjunto de valores
modalizadores sejam observados e levados a cabo pela parte “contratante”. O
enunciatário de Veja não consome pura e simplesmente a revista, mas todo aquele
referencial valorativo agregado. Ler Veja implica em pensar como Veja.
Assim pudemos notar que o papel dos pais/família, das escolas e das
políticas públicas voltadas à educação é constantemente questionado e criticado
pelo enunciador onisciente. Muitas das críticas são pertinentes, como por exemplo
no que tange às falhas estruturais das políticas educacionais ou da omissão dos
pais; nestes pontos percebemos um enunciador feroz. Em alguns momentos este
enunciador chega a fazer previsões, por vezes bastante pessimistas, sobre o quadro
educacional brasileiro. É o que ocorre na reportagem O suicídio das elites de
112
08/05/1991. Então ele enuncia soluções de toda ordem para as questões da
educação, seja ela familiar ou institucional, soluções tais que, em geral, se apóiam
em uma argumentação reducionista, simplificadora de problemas mais profundos do
que aquilo que se propõe. O quadro dos problemas educacionais é efetivamente
assustador, mas Veja traça um panorama demasiado pessimista frente às questões
educacionais e a ele somam-se às idéias de caos, de uma situação fora de controle
por parte das autoridades competentes e que, portanto, somente uma “revolução”
poderia dar conta de resolver estas questões e levar o País a frente. A reportagem
de 16/02/2005, Revolução pela educação: a Coréia fez, o Brasil também pode
fazer”, é bastante emblemática neste sentido, embora desconsidere as diferenças
estruturais. Esse excesso no tratamento das questões corrobora para uma
potencialização exacerbada dos problemas e significações a ele atreladas.
Acreditamos que a revista Veja teria condições de promover, a partir do
debate, a mobilização da classe média no sentido de cobrar do Estado uma
participação mais efetiva e eficaz na resolução dos problemas educacionais do país.
Embora a revista, muitas vezes, cobre do poder público medidas mais eficazes e lhe
chame mesmo à responsabilidade pelo setor, o debate parece não ter continuidade
em suas páginas ou para além delas, não se encontrando além delas o eco
desejado. Entendemos que a sociedade esteja saturada de discussões e debates
calcados em modelos e estereótipos e que, portanto, anseia por um debate que
traga efetivas mudanças e/ou alternativas para estas e outras questões sociais.
Infelizmente, tal modelo participativo não emerge nas reportagens examinadas.
O enunciador de Veja se expressa com autoridade e robustez em sua fala,
promovendo, assim, efeitos de sentido de verdade, um simulacro da realidade,
expressando-se com a propriedade de quem sabe o que diz. Coloca-se como
profundo conhecedor da educação, em diferentes subtemas, o que pudemos notar
na passagem pelos diferentes grupos temáticos e quando do levantamento do
estado da arte. Sua condição de onisciência é uma constante do discurso. O
enunciador se propõe a traçar perfis e panoramas nacionais, além de quadros
comparativos com a realidade internacional, em geral com países considerados do
primeiro mundo, primordialmente Estados Unidos e diversos países europeus.
Porém, ao realizar este procedimento, as diferenças estruturais entre as realidades
expostas são quase que anuladas.
113
O agendamento midiático da educação desde 1968, quando eram abordadas
questões mais ligadas ao militarismo e à educação, remonta à idéia da educação
como uma questão nacional e, mais, como uma questão de segurança nacional. Nos
anos seguintes vai-se construindo uma idéia de educação mais ligada ao mercado
de trabalho, no sentido de que somente pela boa educação, em geral privada, o
indivíduo pode alcançar êxito em sua vida profissional e pessoal, em termos da
educação dos filhos. O agendamento midiático da educação e a mudança de foco
ao longo do período em apreço remetem à idéia de que a questão atinge mais
diretamente a classe média, ávida pela garantia do sucesso a qualquer preço; assim,
o enunciador defende a idéia de que a boa educação, segundo seu referencial,
possa ser este “certificado de garantia”, por isso promove a euforização da escola
privada (nos níveis fundamental e médio) ou da revolução na educação.
As reportagens alocadas têm como principais pontos: a formação docente; o
conhecimento por ele construído; o acesso (ou a sua falta) às informações e ao
próprio conhecimento; o comportamento e o relacionamento entre pais, filhos e
família e os novos paradigmas para a educação dos filhos; mais datadas, emergem
as questões da universidade durante o regime militar, bem como questões de ordem
estrutural do ensino superior, tais como sucateamento da máquina, política e
universidades. Além disso, inventariamos também questões estruturais da
universidade brasileira, mapeadas antes do ingresso, durante o curso ou depois da
formatura.
Tais reportagens estão em geral atreladas ao êxito no mercado de trabalho. O
enunciador de Veja, ao construir discursivamente o tema educação, se coloca numa
condição de onisciência e se autoriza a prescrever “receitas” para seu enunciatário,
como por exemplo: como agir com os filhos, como escolher as melhores escolas,
euforizando aqueles que o enunciador considera os melhores livros didáticos ou os
melhores e mais modernos métodos pedagógicos, sempre em termos do “dever-
saber” para realizar o “dever-fazer”. Para tanto, o enunciador de Veja apóia,
freqüentemente, seu discurso nas vozes científicas de especialistas, muitas vezes
citados em discurso direto, provocando efeito de sentido de verdade, a fim de
legitimar o discurso e assim auxiliar na manutenção do contrato comunicativo. O
consumo deste produto midiático proporciona ao enunciatário um sentimento de
preparo para enfrentamento das questões cotidianas figurativizadas e tematizadas
em Veja.
114
A revista Veja, por meio da apropriação de recortes da realidade, constrói re-
interpretações do “mundo da vida”, para que o leitor-enunciatário consiga se
apropriar do tema da educação, do sucesso na profissão e na vida, com mais nitidez
por meio de mapas cognitivos destinados a pais, educadores e dirigentes,
explicitando o “como-fazer” para bem educar. Deste modo, o enunciatário pode
sentir-se mais seguro no enfrentamento de suas questões cotidianas.
A revista promove, por meio de construções discursivas verbo-visuais, ora a
adesão, ora o descrédito às políticas públicas voltadas à educação, considerando,
em larga medida, ausentes o Estado e também as instituições educacionais
públicas, isto no ensino fundamental e médio; no ensino superior uma inversão
desta premissa, num cenário caótico em que só alguns conseguem atravessar o funil
educacional, provocado pela escassez das boas vagas: próximos à saída, bem
estreita e para poucos, estão os Mesmos, os poucos privilegiados social e
financeiramente. De outro lado, longe dessa passagem afunilada para a vida de
sucesso pessoal e profissional, aparecem os Outros, os que não lêem Veja e não
galgarão os degraus da vitória.
Veja valoriza o ensino privado nos níveis fundamental e médio, em detrimento
da escola pública, que, por sua vez, surge retratada euforicamente quando se
fala das “ilhas de excelência”. Nesse sentido, Veja participa fortemente, via
estratégias discursivas, da modelagem da opinião pública a respeito da educação,
pelo menos daquele público que se deixa envolver e firma um contrato comunicativo
com o enunciador.
Entendemos que as possibilidades de exame não se esgotam neste trabalho,
ao contrário, consideramo-lo o início para novas investigações que possam agregar
e aprofundar outros aspectos não contemplados aqui. uma ampla discussão
dessa educação retratada pelos media pode elucidar e auxiliar no entendimento da
ligação entre esses dois campos envolvidos, da educação e da comunicação.
115
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