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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ceci Maria Costa Baptista Mariani
Marguerite Porete, teóloga do século XIII
Experiência mística e teologia dogmática em
O Espelho das Almas Simples de Marguerite Porete
DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
São Paulo
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ceci Maria Costa Baptista Mariani
Marguerite Porete, teóloga do século XIII
Experiência mística e teologia dogmática em
O Espelho das Almas Simples de Marguerite Porete
Tese apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do
título de Doutora em Ciências da Religião
pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, sob a orientação do
Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé.
São Paulo
2008
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BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
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_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
Dedico essa tese aos meus filhos,
Samuel, Raquel e Ana Clara,
eles que são para mim, as maiores
provas de que Deus é Delicadeza.
Dedico também ao meu marido,
Antonio Luís Mariani, pelo carinho,
cuidado e apoio tão necessários à
realização desse trabalho.
AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos ao Programa de Estudos Pós Graduados em Ciências
da Religião da PUC de São Paulo, ao coordenador Prof. Dr. João Edênio Reis
Valle, e aos professores que me acolheram e me apoiaram ao longo do
itinerário acadêmico que deu como fruto essa tese.
Ao Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé, orientador sério e atento. Obrigada por sua
postura generosa e acolhedora, pelos bons debates e pelas boas idéias.
Ao Prof. Dr. Ênio da Costa Brito, grande mestre, a quem sempre tenho
recorrido desde os tempos da graduação. Obrigada por sua orientação nos
momentos cruciais de discernimento que enfrentei na vida profissional e
acadêmica.
Ao Prof. Dr. Alexandre Otten, teólogo de grande profundidade, com quem tive
oportunidade de partilhar idéias e intuições importantes para o
desenvolvimento desse trabalho. Obrigada pelo apoio e pelas contribuições na
banca de qualificação.
Ao Prof. Dr. João Décio Passos, pelo interesse e apoio nessa tarefa tão
delicada que implica a normalização da redação de uma tese.
Ao Prof. Dr. Luis Alberto De Boni, pelas preciosas contribuições na banca de
qualificação.
À Capes, pela bolsa de subsídio à pesquisa.
Ao NEMES núcleo de pesquisa de mística e santidade, espaço de debates,
de troca de idéias e de intuições, condição imprescindível à pesquisa
acadêmica.
Às pesquisadoras Maria José Caldeira do Amaral, Lílian Wurzba, Ana Cláudia
Patitucci e Maria Cristina Guarnieri, amigas e parceiras, companheiras de
alegrias e tensões nesse caminho para o doutorado.
Ao Prof. Dr. Faustino Teixeira, pelas boas conversas e grandes debates nos
Seminários de Mística Comparada de Juiz de Fora.
Ao Pe. Paulo Pedreira de Freitas, S.J. que me incentivou a dar os primeiros
passos no caminho da espiritualidade inaciana, onde aprendi sobre o valor do
silêncio e descobri a discreta caridade do Espírito.
Ao Prof. Dr. Fr. Oscar Lustosa, que me ajudou a descobrir as riquezas
bibliográficas contidas na Biblioteca Padre Lebret da Escola Dominicana de
Teologia.
Ao Prof. Dr. Antonio Elias Silveira Leite, pela ajuda na tarefa de entendimento e
tradução do Mirouer. Obrigada por me ajudar a perder o medo de enfrentar o
idioma francês.
Ao Prof. Dr. Antonio Bogaz, querido amigo, sempre disposto a ajudar.
Aos meus alunos e alunas da Escola Dominicana de Teologia, do Instituto São
Paulo de Estudos Superiores e da PUC de Campinas com quem tive
oportunidade de falar sobre o Espírito Santo e a mística cristã. Obrigada pelos
questionamentos que me obrigaram a estudar mais!
Finalmente, agradeço a Deus de delicadeza, presença imprescindível, sem a
qual esse trabalho perde todo o sentido!
RESUMO
O ponto de partida dessa pesquisa foi a obra Le Mirouer des Simples Ames de
Marguerite Porete, uma beguina cleriga, da região do Reno e que, segundo
consta, viveu entre a segunda metade do século XIII e início do século XIV.
Uma obra instigante que traz uma contribuição importante para o pensamento
filosófico-teológico e literário. Nosso objetivo, com esse estudo, foi sondar a
mística cristã que atinge seu ápice na alta idade média, aprofundar a
percepção dessa dinâmica, que se expressa como experiência de
aniquilamento, e perceber como ela se desdobra em teologia. O objetivo mais
específico foi aprofundar o significado do pensamento teológico de Marguerite
Porete, fundamentalmente místico, e sua contribuição para teologia sistemática
hoje que pretende ser mais que reunião de conceitos, teologia teórica, mas
teologia que está atenta para a experiência histórica, lugar objetivo de
presença de Deus, mas que, apesar disso, tem enfrentado o risco de perder
sua dimensão contemplativa, lugar subjetivo do encontro místico com Deus,
transcendência livre do espaço e do tempo, portanto da história. Nossa leitura
teológica do Mirouer levou-nos a perceber que a grande contribuição da obra
reside na explicitação da relação entre despojamento de si e liberdade por um
lado e por outro, na ousada afirmação de que Deus é Cortesia, Deus de
delicadeza, doçura e bondade, num mundo cuja imagem privilegiada de Deus é
o Pai poderoso, a um tempo diretor e protetor, fonte de autoridade, Deus de
grande majestade que permanece no céu e que eventualmente mostra sua
mão através das nuvens. Ao Deus que está à frente de um exército constituído
de santos e anjos que exercem a função de intermediários e que manifestam
sua onipresença protetora e julgadora, Marguerite anuncia o Loin-près, aquele
que desde a sua absoluta transcendência, por cortesia, vem a nós e nos
transforma para a comunhão com Ele.
Palavras-chave: Mística Medieval, Teologia Feminina, Marguerite Porete,
Aniquilamento, Cortesia, Teologia do Espírito.
ABSTRACT
The point of departure for this study was the work Le Mirouer des Simples
Ames by Marguerite Porete, who belonged to a religious order in the region of
The Rhine and who, according to history, lived between the second half of the
XIII century and the beginning of the XIV century. It is a stimulating work which
makes an important contribution to philosophical, theological and literary
thinking. Our aim in this study was to explore the Christian mystic, which
reached its peak in the late Middle Ages, to deepen the perception of this
dynamic which is expressed as an experience of annihilation and to perceive
how it unfolds in the theology. The more specific objective was to go deeper
into the meaning of Marguerite Porete´s theological thinking, fundamentally
mystical, and her contribution to systematic theology today, which intends not
only to unite concepts and theological theory, but also to be a theology
attentive to historical experience, the objective site of God´s presence, but
which in spite of this, has confronted the risk of losing its contemplative
dimension, the subjective site of a mystic encounter with God, thus freely
transcending historical time and space. Our theological reading of Mirouer led
us to perceive that the great contribution from this work lies in the explicitness of
the relation between self-deprivation and liberty on the one hand and on the
other, the bold affirmation that God is Graciousness, a God of delicacy,
sweetness and goodness, in a world whose favored image of God is that of the
almighty Father, at one time director, protector and fount of authority, a God of
great majesty who remains in heaven and occasionally extends his hand across
the clouds. To the God who leads an army constituted of angels and saints
who exercise an intermediary function and manifest his protective and judging
omnipresence, Marguerite announces the Loin-près, He who from his absolute
transcendence, through graciousness, comes to us and transforms us for
communion with Him.
Keywords: Medieval Mystic, Feminine Theology, Marguerite Porete,
Annihilation, Graciousness, Theology of the Spirit.
Invoquei o Santo Espírito,
Ele me disse: sofre,
come na paciência
esta amargura,
porque tens boca
e eu não.
Toma o pequeno cálice,
massa de cinza e fel
não transmutados.
É pão de mirra,
come.
Adélia Prado
SUMÁRIO
PREFÁCIO ........................................................................................................ 1
INTRODUÇÃO .................................................................................................. 5
Capítulo I ........................................................................................................ 15
O ESPELHO DAS ALMAS SIMPLES EM FOCO: HISTÓRIA, FILOSOFIA E TEOLOGIA
1. Sobre as fontes e os estudos mais fundamentais ...................................... 16
2. Sobre o itinerário percorrido, as diversas abordagens ............................... 19
2.1. O Mirouer em foco na história das mentalidades .................................... 19
2.2. O Mirouer em foco entre as discussões filosóficas .................................. 20
2.3. O Mirouer em foco entre as discussões feministas .................................. 23
3. Sobre o itinerário que se pretende empreender .......................................... 24
3.1. A influência da teologia negativa .............................................................. 25
3.2. O Mirouer e as fórmulas dogmáticas ........................................................ 26
3.3. Marguerite e Guillaume de Saint-Tierry .................................................... 28
4. Sobre o referencial teológico ....................................................................... 31
4.1. O Dogma Trinitário, fundamento da experiência cristã ............................. 31
4.2. A teologia e o esquecimento do Espírito .................................................. 32
Capítulo II ....................................................................................................... 39
O ESPELHO DAS ALMAS SIMPLES, UM ESPELHO HERÉTICO?
1. O Movimento Beguinal ................................................................................ 41
1.1. O Concílio de Viena e a reprovação de Begardos e Beguinas ................ 44
1.2. Os Irmãos do Livre Espírito ...................................................................... 48
2. O Processo de inquisição contra Marguerite Porete e Guiard de
Cressonessart ....................................................................................... 49
2.1. Uma beguina erudita e um begardo visionário ......................................... 53
3. Marguerite Porete: Uma mulher que se fez espelho de Deus ..................... 57
3.1. A metáfora do espelho .............................................................................. 59
3.2. A simbólica do espelho na tradição cristã antiga e medieval .................. 60
3.3. O Mirouer entre a instrução religiosa e o romance de amor ................... 62
3.4. O Amor Cortês ......................................................................................... 63
3.5. Um espelho para falar do Amor ............................................................... 66
Capítulo III ....................................................................................................... 69
TEOLOGIA, MÍSTICA E HERESIA
1. Pneumatologia: teologia nas bordas da tradição ......................................... 70
2. O Espírito Santo, uma ameaça! ................................................................... 75
2.1. O Espírito Santo como ameaça à autoridade da Escritura ....................... 76
2.2. O Espírito Santo como ameaça ao dogma ............................................... 78
2.3. O Espírito Santo como ameaça à instituição eclesiástica ........................ 88
2.4. O Espírito Santo como ameaça ao espírito humano ................................ 93
3. Mística cristã e Teologia do Espírito ........................................................... 98
3.1. Referências gregas e originalidade cristã ............................................... 102
3.2. Mística e Teologia em Pseudo-Dionísio o Areopagita ............................ 106
3.3. Mística e Teologia entre os medievais: aniquilamento e divinização ..... 114
4. Teologia, mística e heresia ........................................................................ 120
Capítulo IV .................................................................................................... 125
RUMO AO PAÍS DA LIBERDADE PERFEITA
1. O aniquilamento no Mirouer ....................................................................... 126
1.1. Da conversão da vontade ao aniquilamento ........................................... 127
1.2. Jesus, o Verbo que nasce na alma ......................................................... 130
1.3. A trinitária natureza da alma segundo Marguerite Porete ...................... 133
2. A alma aniquilada não tem nada de vontade própria ................................ 134
2.1. Pobreza e aniquilamento ........................................................................ 134
2.2. A alma aniquilada recebe de Deus a justa liberdade do Puro Amor ...... 138
2.3. A alma que não tem vontade é nobre ..................................................... 139
3. O processo do aniquilamento .................................................................... 141
3.1. Dinâmicas binárias ................................................................................. 143
3.2. Os sete estados da alma ........................................................................ 145
3.2.1 A primeira morte: morte ao pecado e vida na graça ............................. 147
3.2.2. A segunda morte: morte à natureza e vida no espírito ........................ 148
3.2.3. A terceira morte: morte ao espírito e vida livre .................................... 156
4. Da liberdade perfeita aos desdobramentos arriscados ............................. 161
Capítulo V .................................................................................................... 165
DEUS É CORTESIA: OUSADA AFIRMAÇÃO POÉTICA DE UMA TEOLOGIA NEGATIVA
1. Teologia negativa e poesia trovadoresca .................................................. 166
1.1. As origens religiosas do Amor Cortês ..................................................... 167
1.1.1. Filosofia Grega, religião celta e crença maniqueísta ........................... 167
1.1.2. A tradição cristã: o amor e a santificação do mundo ........................... 169
1.1.3. O amor cortês e a heresia cátara ........................................................ 171
1.1.4. A influência da mística árabe .............................................................. 173
2. O amor cortês, canção ao amor infinito .................................................... 174
2.1. O amor cortês e a crítica do casamento ................................................ 175
2.2. Um novo lugar da mulher em uma nova relação entre os sexos ........... 176
2.3. A descoberta do amor sem fim .............................................................. 178
3. Mística e paixão ........................................................................................ 180
4. A Canção da Alma Aniquilada .................................................................. 181
CONCLUSÃO ............................................................................................... 195
MARGUERITE PORETE, TEÓLOGA DO SÉCULO XIII
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................ 201
1
PREFÁCIO
A motivação para esse estudo faz parte de um itinerário acadêmico que se
iniciou com o curso de graduação em filosofia. Passando do interior à capital,
no início dos anos 80, deparei-me por um lado com o desafio de encarar os
mestres da suspeita (Marx, Nietzsche e Freud eram os grandes interlocutores
de uma reflexão que se propunha a ser moderna e crítica) e, por outro, com a
convocação para a militância, não apenas para uma militância política, mas,
fundamentalmente, uma militância religiosa, inspirada num jeito novo de ser
Igreja, fruto de uma experiência eclesial que tinha lugar na Arquidiocese de
São Paulo conduzida por Dom Paulo Evaristo Arns. Da filosofia passei à
teologia que nesses anos 80 firmava sua identidade latino-americana como
Teologia da Libertação, uma teologia que se constituía como reflexão nova, em
crítica à perspectiva tradicional neo-escolástica e, também, à moderna teologia
européia.
Querendo aprofundar os estudos teológicos, optei por fazer mestrado na área
de teologia sistemática. A dissertação de mestrado resultou na sistematização
de uma antropologia teológica a partir da obra de Rubem Alves, teólogo
protestante, pensador que, fazendo a crítica do pensamento racional, procura
construir saber “sobre as asas do desejo” segundo a dinâmica da digressão.
“Digressão é justamente não ter método”, ele afirma, citando Barthes, em
entrevista por ocasião da finalização da pesquisa, “o interesse não é chegar lá,
2
mas estar indo...”
1
.Foi um grande exercício, o de sistematizar um referencial
antropológico a partir de um pensamento assistemático.
Ao longo dessa pesquisa fui trabalhando o problema do dualismo e a
preocupação da teologia com sua superação para o melhor entendimento da
espiritualidade
2
. A dissertação intitulou-se “A espiritualidade como experiência
do corpo” e girou em torno das duas preocupações que me inquietaram e que
continuam me inquietando nesse ofício de teóloga: a preocupação com a
experiência de Deus e a preocupação com a corporeidade. Na verdade, o que
me inquieta ainda é a preocupação com as marcas que a experiência de Deus
deixa no corpo. É nesse ponto que me deparei com a mística. Ghislain Lafont,
monge beneditino, esboça essa relação entre corpo e experiência de Deus de
um modo interessante. No sentido de poder estabelecer alguns pontos de
referência para a compreensão da experiência espiritual que é, segundo ele,
saber que não está ao alcance da racionalidade mas no nível das percepções
primeiras nas quais se desenvolve a linguagem e para as quais não há
linguagem, esse autor vai afirmar que a experiência espiritual, o encontro com
o numinoso, deixa marcas no corpo e que é, a partir da observação dessas
marcas, que se pode dizer algo sobre mística. Nesta perspectiva fui
percebendo que o estudo da mística implicaria na observação de corpos
marcados por cicatrizes “risonhas e corrosivas”, sinais de experiências
paradoxalmente vividas como prazer e dor. Corpos de gente que chegou a
experimentar o Transcendente como presença amorosa, que sentiu em si o
Amor que o coração humano mal pode suportar, amor com o qual o próprio
Deus ama.
Em busca de um aprofundamento em torno do tema da mística cheguei à
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), Departamento de
1
Ceci MARIANI, A Espiritualidade como experiência do corpo, anexo, p.X.
2
A antropologia de R. Alves, ao nosso ver, contém elementos que contribuem sobremaneira,
para a superação do dualismo. Isso porque, ao longo de suas obras, vai recolocando o lugar
fundamental do corpo no processo de humanização. Para ele, antes de tudo, o ser humano é
corpo que, mergulhado no mundo, constrói história segundo o movimento de suas emoções. As
mesmas emoções que o mundo moderno considerou como empecilhos ao desenvolvimento
humano e que a ciência propôs neutralizar constituem, para ele, o centro do processo de
humanização. Com isso, propõe uma concepção positiva do inconsciente, lugar das emoções
mais profundas e usa do instrumental psicanalítico, porém, em oposição à psicanálise
ortodoxa, para dizer que a manutenção da vida humana não se apóia sobre a necessidade da
repressão das emoções, mas que o desabrochar da vida supõe o encontro com o desejo,
emoção mais profunda.
3
Ciências da Religião. Na PUC, como ouvinte por dois anos, conheci a doutrina
gnóstica, a mística renana e a teologia ortodoxa, alarguei meu sentido de
Tradição. Foi no contexto dessa reflexão que entrei em contato com textos
místicos de mulheres medievais e, entre eles, o livro de Marguerite Porete, Le
Mirouer des Simples Ames, livro que desde o início me provocou pelo seu
estilo original e pela discussão teológica ousada que apresenta.
Descobri, na leitura dessa obra, que a mística é uma experiência do
pensamento que coloca questões importantes tanto para a Teologia quanto
para as Ciências da Religião. O texto de Marguerite Porete não é fala sobre
Deus, ou sobre o humano aberto para Deus, mas é fala da alma com Deus e
em Deus. No Espelho das Almas Simples, segundo Luisa Muraro, é possível
ouvir as palavras de uma conversação, não apenas nova, mas “inaudita”, entre
uma mulher e Deus.
Uma mulher estava com certeza, ela diz, Deus não sei, mas com certeza ela
não era só, estava um outro ou outra cuja voz não chegava até mim, mas que
ouvia o mesmo porque fazia uma interrupção nas palavras dela, ou melhor,
uma cavidade que transformava a leitura, a tornava semelhante ao gesto de
quem bebe lentamente de uma taça.
3
Na escritura de Marguerite Porete e de outras mulheres desse mesmo período,
o absoluto não é o objeto de uma procura, mas uma vez que é buscado, é
experimentado como uma presença que desfaz aquele que o está buscando,
não só uma, mas muitas vezes. De posse da pergunta pelo absoluto, reflete
ainda Luisa Muraro:
Elas começam da própria experiência e trabalham a tirar do meio e abrir
passagens, desfazem sem substituir o mundo desfeito com produtos de
pensamento e a escritura delas é um desfazer-se de si (...). Não são
construtivas. A pergunta que não desfaz, a procura construtiva, visa a
embaraçar assim tanto a mente com os seus objetos e os seus métodos, que
não aparece mais uma verdadeira pergunta. Como verdadeira pergunta
entendo: uma pergunta cuja resposta não depende de nada que eu tenho e
que sou. Uma verdadeira pergunta chama a existência de outra coisa.
4
A experiência religiosa relatada fala de um amor sem objeto, sempre disposto a
perder e nunca seguro de possuir, amor a nada do que se pode imaginar, no
3
Luisa MURARO. Il Dio delle donne, p. 14.
4
Ibidem, p. 19-20.
4
entanto, algo real e dotado de poder. Deus que se faz reconhecer sem nunca
se deixar pegar. Essa experiência é descrita por essas mulheres como
experiência de liberdade, liberdade religiosa que não é entendida à maneira
moderna como liberdade garantida a partir de um sistema de direitos, mas
liberdade conquistada na relação com Deus. Liberdade de tudo e de todos e
até de Deus, como ousaria dizer Mestre Eckhart. Liberdade que quebra todas
as medidas com amor excessivo e ensina como ser livre na insuperável
assimetria da condição criatural.
5
Com essas referências, estou me aventurando no estudo do relato místico de
Marguerite Porete que, a meu ver, encontra-se no limiar, entre a Teologia e as
Ciências da Religião, como portador da crítica que a mística representa para as
duas maneiras de vivenciar o estudo da religião. Como observa ainda Luisa
Muraro, nos escritos dessas mulheres:
Nem a religião nem a teologia resultavam erradas ou falsas para quem gozava
desta liberdade religiosa, mas falsa e errada tornava-se, à sua luz, a pretensão
de dizer a verdade sobre Deus.
6
5
Cf. Ibidem, p. 23-24.
6
Ibidem, p.25.
5
INTRODUÇÃO
O objeto dessa pesquisa é a obra de Marguerite Porete, mística medieval,
procedente do Condado de Hainaut, cidade de Valenciennes, região do Reno e
que, segundo consta, viveu entre a segunda metade do século XIII e início do
século XIV. Marguerite teria sido uma beguina clériga, isto é, teria feito parte do
Movimento Beguinal.
Esse Movimento foi um movimento espiritual que se desenvolveu como
alternativa de vida religiosa leiga na Renania e Países Baixos. As beguinagens
começam aparecer no final do século XII e foram formadas por pequenas
casas agrupadas. Eram comunidades de homens ou de mulheres que,
conservando-se como leigos ou leigas, assumiam como promessa (e não voto)
a pobreza, a obediência e a castidade. Essas comunidades estavam inseridas
num contexto social urbano.
As beguinas, como eram chamadas as mulheres que faziam parte dessas
comunidades, viviam do próprio trabalho: tecelagem, bordado, costura,
ensinamento de crianças e serviços de damas idosas. Do ponto de vista da
espiritualidade, eram adeptas do evangelismo, perspectiva que se constitui a
partir da emergência dos movimentos mendicantes no seio da experiência
religiosa cristã e implica na vontade de conhecer textos bíblicos na sua
literalidade, na liberdade de pregação, no amor à pobreza, na contestação do
6
mundo e na valorização do estilo de vida mais que a doutrina. Essas mulheres
eram também adeptas de práticas ascéticas.
O movimento espiritual das beguinas permaneceu marginal, pois não obedecia
a uma regra aprovada. As beguinas, que constituíam essas comunidades fora
do controle institucional, passaram a despertar desconfiança e foram
perseguidas pela Igreja oficial. A instituição das beguinas foi reprovada pelo
Concílio de Viena (1311) que afirma, entre outras coisas, que essas mulheres
se perdem em especulações loucas sobre a Trindade, a essência divina e
outros dogmas e pontos da doutrina sobre os sacramentos.
O livro de Marguerite Porete, Le Mirouer des Simples Ames, é um “espelho
medieval”, uma instrução religiosa que, como outros “espelhos”, ilumina a vida
moral ou espiritual. Mas não é só isso, é também, por outro lado, e isso torna o
livro especialmente interessante, um romance de amor, um romance alegórico
cortês depositário de uma cultura laica veiculada pela linguagem vulgar; um
romance como outros que mistura os gêneros épico, cortês, alegórico e é
escrito tanto em versos quanto em prosa
7
.
A obra constitui-se numa alegoria mística sobre o caminho que conduz essa
alma à união perfeita com seu Criador e Senhor. O aniquilamento é seu grande
tema e é descrito como o estado em que as almas simples adquirem a mais
plena liberdade e o saber mais alto. A alma aniquilada, amorosa de Deus,
Marguerite sempre reafirma, recebe mais saber do que o contido nas
escrituras, mais compreensão do que a que está no alcance ou capacidade do
trabalho humano de alguma criatura. A alma, sendo nada, possui tudo e não
possui nada, vê tudo e não vê nada, sabe tudo e não sabe nada
8
. Essa alma
aniquilada é a que se torna capaz de experimentar a “paz de caridade”.
7
Cf. Mari BERTHO, Le Miroir des Ames Simples el aneanties de Marguerite Porete, Un vie
blesée d’ d’amour, Decouvrir, p. 47.
8
Cf. Marguerite PORETE, Le miroir des âmes simples et anéanties, p.58. Usaremos para as
citações do texto de Marguerite a edição em Francês moderno, tradução e notas de Max Huot
de Longchamp. Quando necessário conferir algum elemento mais específico recorreremos à
edição da coleção Corpus Christianorum continuatio Medievalis LXIX, que traz a edição de
Romana Guarnieri a partir do manuscrito em francês medieval ao lado da edição de Paul
Verdeyen, S.J. cuja fonte foram os manuscritos em latim e também à edição espanhola editada
por Blanca Gari. Quando nos referirmos à obra usaremos a palavra Mirouer, como no está no
título em francês medieval.
7
Para Marguerite Porete a alma aniquilada é livre justamente porque não possui
vontade própria. Não é a alma que mora no amor, mas o amor que mora nela,
faz sua vontade por ela, opera nela e sem ela.
A alma não compete. Aniquilando-se, entrega-se... experimenta uma
indiferença radical. Já não pode mais falar de Deus. Se fala é por costume,
bom hábito, ou por mandamento da Igreja. Se anuncia algo, faz sem paixão.
Aquilo que pensa, fala ou faz é exclusivamente obra de Deus, o amor operando
nela. Seu saber e seu fazer de alma aniquilada têm, paradoxalmente,
autoridade divina. Da experiência de maior humilhação, emerge uma radical
liberdade.
Marguerite Porete foi acusada de heresia e queimada em Paris, em 1310.
Afirmam alguns comentadores que sua condenação aconteceu antes de tudo
em razão da ameaça que representava um discurso sobre Deus proferido por
uma mulher leiga que se fazia entender na língua do povo.
9
Discurso perigoso
porque subverte a dinâmica da submissão, descrevendo o ultrapassamento,
através da maior humilhação (o aniquilamento do eu é humilhação ontológica),
de toda a mediação para chegar à união direta com o Transcendente. O saber
e o fazer da alma aniquilada são incontroláveis porque é saber e fazer do Amor
que moram nela.
A obra de Marguerite Porete está apoiada na tradição do neoplatonismo cristão
cuja referência é Agostinho. Para esse autor, na interioridade do sujeito
consciente está a Verdade, o objeto da sua filosofia é "a consciência, cujas
profundidades e mistérios compete à inteligência desvendar..."
10
. Marguerite se
coloca nesse lugar, entre os que buscam o mistério pelo caminho da
interioridade, relata sua experiência mística pessoal e, a partir dela, traça o
caminho místico que fundamenta sua teologia.
A palavra teológica de Marguerite Porete, no entanto, atravessa Agostinho e se
aprofunda no sentido de insistir na impossibilidade do conhecimento de si e do
conhecimento da Deus. Nesse sentido, ela se insere dentro da tradição da
mística renana. Por esse seu caminho, há que se aplicar todos os recursos
disponíveis pela instituição, pela razão e pelo amor, dando tudo de si e mesmo
9
André VAUCHEZ, A espiritualidade na Idade Média, p.157.
10
Cf. Introdução à obra O Mestre de Santo Agostinho por Antônio Soares Pinheiro, p. 25.
8
assim continuando, angustiadamente, no mistério de si e de Deus. É só pelo
atravessamento dessa escravidão - institucional, racional e amorosa - que a
alma chega ao reconhecimento de que não sabe nada de si e nada de Deus e,
então, entregando-se, deixa que Deus opere sua obra. É pelo Fino Amor, o
Amor Cortês, o Espírito Santo, aquele que não tem mãe, que vem do Pai e nos
é dado pelo Filho, Amor de Deus em nós, que Deus atua na alma. O Amor que
ela persegue é o Amor que encontra dentro dela. Amor que vai nomear com
palavras tomadas da poesia provençal.
Marguerite Porete, para se fazer entender, é filósofa, teóloga e poeta. Mulher
erudita que escreve em língua vulgar, utilizando elementos da literatura profana
numa obra que, pelo seu título Mirouer..., espelho, speculum, poderia estar
incluída num gênero literário que o caracterizaria como um livro de instrução
religiosa, se não fosse julgada herética.
A obra de Marguerite Porete é, em nossa opinião, um relato místico que se
desdobra em discussões teológicas dogmáticas. Essa mulher teria sido
teóloga? Esse é o problema que orienta nossa busca.
Nossa hipótese é que além de ser teóloga, Marguerite Porete produziu uma
teologia original, desdobramento incontrolável de experiências religiosas
profundas e contundentes, que se expressa na maneira como articulam os
conceitos de Deus, amor, moral, alma, intelecto, êxtase.
No livro de Marguerite Porete, encontra-se, ao nosso ver, uma teologia
alternativa na medida em que explicita e acentua a experiência mística como
fundamento do saber sobre Deus. No seu relato, a autora se contrapõe, de
certa maneira, à tendência presente na história do cristianismo de entender
teologia como articulação entre dogma e razão ou entendimento racional da
tradição dogmática independente da experiência mística.
O que observamos é que nessa obra existe de fato uma teologia incontrolável
que tem o critério de verdade colocado aquém e além de toda doutrina, aquém
e além de toda palavra, aquém e além de toda realidade, mal suportada pela
instituição por esta característica, e pelo agravante de ser produzida por
mulheres leigas não casadas e não pertencentes a nenhuma família religiosa.
9
Mulheres livres, urbanas, que vivem em pequenas comunidades e sobrevivem
do próprio trabalho.
Esta pesquisa procurou olhar para esse texto sob a inspiração da hipótese da
existência, nesse lugar e nesse tempo, de um saber teológico que não é
discurso sobre Deus em si, fundamentado na tradição, nem discurso sobre
Deus em nós fundamentado na ciência, mas discurso a partir de Deus.
Conhecimento que não se constitui como teologia mística paralela,
independente e de certa maneira periférica, mas como teologia dogmática com
fundamento místico, verdade sobre Deus não passível de ser dominada,
absolutamente transcendente, absolutamente inesperada.
A questão da relação entre fé e experiência foi elemento importante de
discussão na teologia do século XX, trabalhada por todas as teologias que se
confrontaram com a redescoberta da subjetividade realizada pelo pensamento
moderno
11
. No campo católico, esse problema está presente em Blondel, De
Lubac e Rahner, todavia é particularmente abordado, de forma ampla e
original, na obra do teólogo belga Edward Schillebeeckx. A questão da
experiência se coloca, no entanto, como preocupação com a relevância da
experiência humana histórica e com a maneira como essa experiência pode ser
iluminada pela Revelação. Desenvolve-se na teologia católica, especialmente
através da reflexão de Schillebeeckx, a convicção da necessidade de substituir
uma teoria da evolução do dogma por uma teoria hermenêutica segundo a qual
“compreender uma tradição significa reinterpretá-la mediante uma interpretação
dos textos do passado, nos quais a tradição se fixou, mas a partir do presente
de uma situação cultural nova, que, no mundo de hoje, pode ser definida em
termos de secularização e de pluralismo”
12
.
A teologia aqui vai então estar concentrada em enfatizar a experiência como
experiência humana histórica, lugar de onde se articula a pergunta radical pelo
sentido, pergunta que encontra sua resposta definitiva na Revelação.
Todavia, esse movimento tão importante para a renovação da teologia
dogmática, acaba sentindo falta da força da mística que, sendo também
11
Rosino GIBELLINI, A teologia do século XX, p.324.
12
Ibidem, p.327.
10
experiência de Deus, não se identifica necessariamente com o que a teologia
moderna chama de “experiência histórica”.
A mística, como experiência direta de Deus, no entanto, é objeto de
desconfiança da cultura moderna que, mesmo considerando a importância da
história, ainda comunga com Kant da idéia de que a verdadeira doutrina
religiosa é a fundada na crítica da razão prática e na disposição humana para
“cumprir o dever”
13
.
Neste sentido, aprofundar e explicitar a mística cristã, percebê-la como
fundamento de um saber sobre Deus e de uma prática a partir de Deus,
representa, ao nosso ver, esforço atual de pensar a experiência religiosa e
seus desdobramentos teológicos e/ou éticos em resposta aos desafios novos
colocados pela crise da modernidade cujos sintomas são a falência do
racionalismo e do humanismo enquanto referências para o conhecimento; a
destruição do equilíbrio ecológico e o avanço da exclusão social provocados
pela hegemonia do neoliberalismo e globalização; e a crise religiosa, explosão
de uma religiosidade demasiadamente “liberada” de toda a tradição com
condições de servir ao individualismo mais radical.
Quando nos propusemos sondar a mística cristã, que atinge seu ápice na alta
idade média, aprofundar a percepção dessa dinâmica, que se expressa como
experiência de aniquilamento, e perceber como ela se desdobra em teologia,
visualizamos como objetivo a recuperação de um passado no qual
consideramos poder encontrar elementos para o enfrentamento de novos
desafios presentes e futuros.
O objetivo mais específico deste trabalho é aprofundar o significado do
pensamento teológico de Marguerite Porete - fundamentalmente místico - para
a teologia sistemática hoje que pretende ser mais que reunião de conceitos,
teologia teórica, mas teologia que está atenta para a experiência histórica,
lugar objetivo de presença de Deus, mas corre o risco de perder sua dimensão
contemplativa, lugar subjetivo do encontro místico com Deus, transcendência
livre do espaço e do tempo, portanto da história. O que se quer é dar um passo
atrás para uma possibilidade à frente, isto é, buscar no reconhecimento da
13
Cf. Immanuel KANT, O conflito das faculdades, p. 72.
11
teologia, na obra dessa mística, o “aniquilamento místico” como fundamento de
uma Teologia do Espírito que, na medida da sua crítica, alarga os limites da
razão, do afeto e da ação.
Pensamos, portanto, que esse trabalho pode contribuir como um elemento na
tarefa de ajudar a teologia cristã católica a resgatar, de dentro de si mesma, a
mística como momento primeiro, fundante. O intuito é recolher a mística, que
foi relegada a um lugar paralelo (denominada teologia mística) num primeiro
momento e depois, com a vitória do racionalismo que acaba por imperar, a um
lugar marginal, e repensar o seu lugar central dentro do processo de
elaboração da teologia. Resgatar, para o momento atual, marcado por um
secularismo agonizante e pelo oportunismo religioso, o paroxismo do
pensamento transcendente que atravessa o Iluminismo moderno e recompõe
os nexos da reflexão sobre a inteligência da experiência religiosa.
Nosso referencial teórico se encontra no campo da teologia e da filosofia da
religião: Em primeiro lugar, contamos, nesse movimento de resgate do
pensamento teológico de Marguerite Porete, com a referência de estudos
fundamentais publicados no campo da Teologia do Espírito. Entre os tratados
importantes temos o de Ives Congar, Je Crois en L’Esprit Saint, recentemente
traduzido em língua portuguesa com o título Creio no Espírito Santo, os vários
trabalhos publicados de José Comblin, o tratado de Jürgen Moltmann, O
Espírito da Vida - uma pneumatologia integral, a obra de Hermann Brandt, O
risco do Espírito, entre outros. Uma melhor explicitação do referencial teológico
encontra-se desenvolvido no Capítulo I “O Espelho das Almas Simples em
foco: história, filosofia e teologia” da pesquisa, p. 23-31.
Em segundo lugar, contamos, para trabalhar a relação entre teologia e mística
com a importante obra de Bernard McGinn, The Foundations of Mysticis : The
Presence of God: A History of Western Christian Mysticism e a grande obra de
Hans Urs Von Balthazar, La Gloire e la Croix: les aspects esthétiques de la
Révélation e de autores clássicos na área da espiritualidade como L. Bouyer e
Leclercq.
No campo da filosofia da religião, tomamos, como referência, Alain de Libera,
medievalista francês e que tem estudos específicos sobre mística renana. Esse
autor procura destacar a experiência dessas mulheres, em especial de
12
Marguerite Porete, no sentido de entendê-las como filósofas, portanto
pensadoras que articulam um saber acadêmico adquirido de maneira marginal,
já que a mulher está fora da universidade (filosofia, que sendo medieval, não
deixa de ser, em certo sentido, teologia), e um saber da vida.
Desenvolvemos essa pesquisa, em primeiro lugar, apresentando os estudos
realizados em torno da obra de Marguerite Porete, o itinerário empreendido no
âmbito da história que levou ao reencontro entre autora e obra, alguns estudos
realizados no âmbito da filosofia e questionamentos que vem sendo colocados
no âmbito da teologia.
Em segundo lugar, procuramos levantar alguns elementos que ajudam a
reconstituir o contexto em que teria sido produzida a obra, destacamos o
Movimento Beguinal do qual provavelmente fez parte a autora e o processo
inquisitorial que a levou à condenação.
Em terceiro lugar, já que o nosso objetivo é compreender a obra de Marguerite
Porete como uma obra teológica, buscamos estabelecer a relação entre
teologia e mística, relação que foi rompida na passagem da Idade Média para a
Modernidade. Focamos aqui a Teologia do Espírito que, observamos, é aquela
que essa autora procura enfatizar. Procuramos mostrar também a relação entre
a pneumatologia e a heresia, já que a primeira pode ser considerada por vários
autores, como teologia nas bordas da tradição.
Em quarto lugar, passamos a tratar da pneumatologia em O Espelho das
Almas Simples (Le Mirouer des Simples Ames). Para Marguerite a obra do
Espírito implica em dois momentos importantes, o momento do aniquilamento e
o momento da descoberta da verdadeira nobreza. A abertura à operação do
Espírito, para essa autora, conduz a alma à liberdade perfeita.
Finalmente, no quinto capítulo, apresentamos a ousada teologia de Marguerite
Porete, teologia que se expressa através de uma interessante síntese entre
teologia negativa e poesia trovadoresca. À diferença da imagem de Deus Pai
poderoso, diretor e protetor, fonte de autoridade, Marguerite anuncia com sua
poesia que Deus é cortesia, delicadeza, doçura, beleza, bondade...
13
Usamos como referência para os nossos trabalhos a versão de O Espelho das
Almas Simples na edição em Francês moderno, Le Miroir des Âmes Simples et
Anéanties, tradução e notas de Max Huot de Longchamp, acrescentando em
nossas notas, além da página, o capítulo onde se encontra a citação para que
o leitor possa conferir em outra edição. Quando necessário, recorremos à
edição da coleção Corpus Christianorum Continuatio Medievalis LXIX, que
traz a edição de Romana Guarnieri a partir do manuscrito em francês medieval
ao lado da edição de Paul Verdeyen, S.J. cuja fonte foram os manuscritos em
latim e à tradução espanhola editada por Blanca Garí. Queremos observar que
não existe da obra de Marguerite, ainda, nenhuma tradução em língua
portuguesa, por isso as citações necessárias para fundamentação da
argumentação tiveram tradução própria, realizada com a ajuda de trechos
traduzidos por Leda Maria Perillo Seixas que se encontram em parte
publicadas na Revista Último Andar do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Ciências da Religião da PUC de São Paulo
14
.
14
Leda M. P. SEIXAS, Onde a alma começa sua canção, Rev. Último Andar, São Paulo, (6),
11-208, 2002, p.201-208.
14
CAPÍTULO I
O ESPELHO DAS ALMAS SIMPLES EM FOCO: HISTÓRIA,
FILOSOFIA E TEOLOGIA
A obra Le Mirouer des Simples Ames, de Marguerite Porete, datada
provavelmente do final do século XIII, tem sido, desde meados do século XX,
objeto de estudo de historiadores que a tem considerado como fonte
importante para a compreensão dos movimentos espirituais heréticos na Idade
Média tardia.
No entanto, desde os primeiros estudos se constata que essa é uma obra de
grande sutileza intelectual, profundamente marcada por uma atitude filosófica
especulativa própria da mística renana e que, sendo uma obra de grande
alcance espiritual (um Espelho medieval é uma instrução religiosa), é
extremamente original por seu estilo literário profano, elaborado como canção
inflamada e paradoxal ao estilo dos trovadores que cantavam o fino amor, isto
é, o amor cortês.
Ao nosso ver o Mirouer é, além disso, uma obra de teologia que, apesar de ter
sido considerada herética, revela através de sua escritura sutil, consonância e
continuidade com a tradição teológica cristã. O que nos parece é que
Marguerite, com sua capacidade de integrar mística e dogma, ousou comentar,
15
discutir, atravessar e ultrapassar os limites que a instituição impõe à reflexão
teológica, ousadia que acarretou como conseqüência para ela, a morte; e para
o livro, vida para além do seu tempo, vida que talvez ainda possa iluminar a
teologia em tempos atuais.
1. Sobre as fontes e os estudos mais fundamentais
O estudo mais importante sobre essa obra é sem dúvida o de Romana
Guarnieri. Essa autora, em sua pesquisa sobre o Movimento do Livre Espírito
15
,
movimento condenado como herético pelo Concílio de Viena, foi capaz de
identificar o tratado de Marguerite Porete que, após sua dupla condenação e o
fim trágico, foi preservado em diferentes mosteiros como um tratado anônimo,
considerado como um livro de devoção e como um testemunho de uma fé
esclarecida e ortodoxa:
Durante séculos se tem considerado o Mirouer como um tratado anônimo. Nem
o texto em médio-francês, nem os textos em latim mencionam um nome de
autor. Constata-se que os manuscritos preservados provém de diferentes
monastérios. O Mirouer tem então sido considerado como um livro de devoção e
como o testemunho de uma fé esclarecida e ortodoxa. Se os leitores se
inquietam de qualquer passagem duvidosa, seus escrúpulos têm sido
apaziguados pela aprovação do capítulo final. O esquecimento do nome do autor
tem contribuído para a propagação e para a influência da obra.
16
.
Romana Guarnieri, confrontando o conteúdo dos artigos condenados de que se
tem notícia através das atas do processo de Marguerite Porete, foi capaz de
localizá-los nesse tratado e constata então que a obra Le Mirouer des Simples
Ames é de autoria dessa beguina clériga, procedente do Condado de Hainaut,
cidade de Valenciennes, de cuja existência se tem notícia devido a um
processo da inquisição datado de 1309 a 1310. Essa estudiosa anuncia sua
15
Os estudos de Romana Guarniéri sobre o Livre Espírito encontram-se publicados com o título
Il movimento del Libero Spirito. Testi e documenti, no periódico intitulado Archivio Italiano per la
storia della pietá, editado pela Edizioni di Storia e literatura, Volume IV, Roma, 1964. Sobre o
Movimento do Livre Espírito temos em francês o verbete “Frères du Libre Esprit”, dessa mesma
autora no Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et Myistique, Doctrine et Histoire,
BEAUCHESNE, Paris, 1964.
16
Cf. Introdução dos editores à edição bilíngue intitulada Marguerite Porete: Le mirouer des
simples âmes. Margaretae Porete Speculum animarum, edição de Romana Guarnieri e Paul
Verdeyen, Corpus Christianorum, Continuatio Medievalis LXIX, Turnhout, Brepols, p.V.
16
descoberta no periódico Obsservatore Romano de 16 de junho de 1946 num
artigo intitulado Lo specchio delle anime semplici e Margherita Porette.
A primeira edição da obra de Marguerite a partir do único manuscrito acessível
contendo a versão original em médio-francês, o de Chantilly, Musée Condé,
XIV F 26 (Catologue, no. 157), é, portanto, de responsabilidade de Romana
Guarnieri. Essa edição encontra-se publicada juntamente com a pesquisa
histórica sobre o Movimento do Livre Espírito no periódico intitulado Archivio
Italiano per la storia della pietá, Edizioni di Storia e literatura, Volume IV, Roma,
1964. O texto original tem como título: “Le Mirouer des simples ames aneanties
e que seulement demourent em voloir et desir d’amour”.
Tempos depois, Romana Guarnieri publicou uma edição bilíngüe com a versão
original em médio-francês ao lado da edição em latim organizada por Paul
Verdeyen, na coleção Corpus Christianorum, Continuatio Medievalis LXIX,
Turnhout, Brepols, 1986.
O manuscrito francês
17
composto de 119 fólios, conforme podemos ler na
introdução dos editores à edição bilíngüe da coleção Corpus Christianorum,
deve ter sido proveniente da região de Órleans, produzido entre 1450 e 1530.
O livro teria pertencido à priora do convento de Madalena de Órleans
18
.
Segundo esses autores, a Comunidade das Damas Religiosas de Madalena foi
um centro de vida religiosa intensa entre 1475 e 1510. O manuscrito contém
unicamente o texto do Mirouer, escrito por uma só mão à exceção do índice de
capítulos e do poema inicial do fólio 6 que não seria de Marguerite.
Esse manuscrito se aproxima sem dúvida do original autógrafo perdido, no
entanto não se sabe, conforme observam os editores da edição bilíngüe, em
que medida esse manuscrito é de fato uma reprodução fiel. Desse modo torna-
se importante o confronto com a versão latina que teria sido feita, supõe-se,
durante a vida de Marguerite em vista do processo de Inquisição. Na versão
latina encontra-se o texto de aprovação do Mirouer por três clérigos. Segundo
17
CHANTILLY, Musée Condé, F XIV 26 (ancien 986). Catalogue 157.
18
Na primeira página pode-se ler a inscrição: “De conventu Magdalenes prope Aurellianis”. “Ce
presente livre est a Jehanne Bontemps, et le donne et delaisse apres mon trespas a ma fille
Claudine Bontemps, religieuse au dessus dit couvent de la Magdeleine”.Cf. Introdução edição
bilíngue, Marguerite Porete: Le mirouer des simples âmes. Margaretae Porete Speculum
17
ainda os editores da edição bilíngüe, a versão latina contribui para uma melhor
compreensão da versão francesa
19
. A versão latina, de responsabilidade de
Paul Verdeyen,S.J., tem como referência quatro manuscritos completos
conservados na Biblioteca Apostólica Vaticana. Além desses quatro, os
editores fazem referência ao manuscrito de Oxford, que contém apenas
fragmentos do tratado “De simplice anima”. Levanta-se a hipótese de que esse
manuscrito mutilado seria o pertencente à cartuxa de Strasbourg no tempo de
Nicolau de Cusa. O sexto manuscrito latino é o realizado a partir da tradução
do médio-inglês por Richard Methley, morto em 1528. A versão feita a partir
dos manuscritos em médio-inglês é glossada pelo tradutor que procura indicar
a influência de Dionísio, dos Vitorinos e também observa no prólogo a sutileza
das idéias que são incompreensíveis para muitos
20
.
Do Mirouer existem hoje, portanto, além do manuscrito de Chantilly em médio-
francês e dos seis manuscritos latinos, mais três manuscritos em médio inglês
e quatro manuscritos em italiano.
21
Segundo Romana Guarnieri em seus estudos sobre a difusão do Mirouer, nos
séculos posteriores à sua condenação, a obra teria chegado muito cedo à
Inglaterra. Em 1327 teria sido introduzida na cartuxa de Londres por alguém do
séquito da rainha Philippe d’Anjou, esposa de Eduardo III. Aí teria sido feita
uma tradução para o inglês na segunda metade do século XIV. Supõe-se que,
em razão das críticas, o tradutor teria refeito essa tradução, comentando o
texto de uma maneira mais ortodoxa. Segundo Romana Guarnieri, existem três
manuscritos dessa segunda tradução, todas do século XV, e, supõem-se
também que a partir desses manuscritos é que foi elaborada a edição em
inglês moderno, editada por C. Kirchberger com o título The Mirror of simple
Souls, by na unknown French mystic of the thirteenth century, (Londres, 1927),
animarum, edição de Romana Guarnieri e Paul Verdeyen, Corpus Christianorum, Continuatio
Medievalis LXIX, Turnhout, Brepols, p.VIII.
19
Cf. Introdução edição bilíngües, p. VII.
20
Cf. Vitória CIRLOT & Blanca GARÍ, La mirada interior Escritoras mística y visionárias en la
Edad Media, Barceloan, Ediciones Martinez Roca, p. 249 que tem como referência a obra: E.
COLLEDGE, R. GUARNIERI, The glosses by M.N. and Richard Methley to “The Mirror of
simple souls”, Archivio Italiano per la storia della pietá , editado pela Edizioni di Storia e
literatura, v. V, 1968 (p.357-382).
21
Cf. Marie BERTHO, Le Miroir des âmes simples et anéanties de Marguerite Porete Une vie
blessée d’amour, p.8.
18
única edição acessível até a descoberta de Romana Guarnieri
22
. Essa edição
era atribuída a um espiritual francês anônimo.
Sobre os manuscritos em tradução italiana, um encontra-se na biblioteca
municipal de Nápoles e dois outros exemplares da mesma tradução do século
XIV, em Viena e Budapest. Esses três exemplares são atribuídos à bem-
aventurada Marguerite de Hungria. Outra tradução sem autoria encontra-se em
Florença
23
.
2. Sobre o itinerário percorrido, as diversas abordagens
A obra como vimos foi, inicialmente, alvo das pesquisas de autores
interessados em desvendar o significado histórico do fenômeno da inquisição e
das heresias. Além desses trabalhos mais fundamentais, fazem também
referências ao texto que tomamos como objeto de pesquisa, os estudos sobre
história da espiritualidade cristã que destacam e/ou discutem a experiência
espiritual dos leigos na Idade Média. Citamos aqui as clássicas obras de Dom
Jean Leclercq, Dom François Vandenbroucke, Luis Bouyer, La spiritualité du
Moyen Age , publicada em 1961; e de André Vauchez, A Espiritualidade na
Idade Média Ocidental.
2.1. O Mirouer em foco na história das mentalidades
Há que se notar o cuidado especial desse último em destacar os cristãos,
leigos e leigas, que, contribuíram de maneira significativa no aprofundamento
da experiência religiosa medieval, mulheres que, “estranhas ao mundo das
escolas e menos impregnadas de cultura bíblica do que os monges”, afirma
ele, “falaram de Deus por referência ao modelo literário profano do amor
cortês.”
24
22
Romana GUARNIÉRI, Frères du Libre Esprit, Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et
Myistique, Doctrine et Histoire, p.1257.
23
Ibidem, p.1259.
24
André VAUCHEZ, A espiritualidade na Idade Média Ocidental, séculos VIII a XIII, p.157.
19
Vauchez tem razão no que diz, porém, não percebe a sutileza que marca as
obras de algumas dessas mulheres, e aqui nos reportamos à própria
Marguerite Porete, que não faz simplesmente uma poesia de amor sobre a
própria experiência de Deus, mas articula, de maneira original, filosofia,
teologia e literatura profana. Estranha ao mundo das escolas (talvez!), mas não
alienada da experiência do pensamento, essa mulher certamente perfurou
espaços para elaborar pensamento não isolado, mas fundado no quadro de
referências teóricas de sua época.
É, todavia, sob a orientação de André Vauchez que Marie Bertho empreende
uma pesquisa que busca reconstituir o universo mental de Marguerite,
exumando as condições concretas que lhe deram suporte e que emolduram
sua obra. Bertho debruça-se, portanto, sobre a obra para analisar em
profundidade o universo mental de sua produção e de sua recepção. O
trabalho de Marie Bertho está publicado com o título Le Miroir des âmes
simples et anéanties de Marguerite Porete, Une vie blessée d’amour, Paris,
Découvrir, 1993.
2.2. O Mirouer em foco entre as discussões filosóficas
Extrapolando o âmbito da abordagem histórica, constatamos também que o
Mirouer tem tido lugar entre discussões filosóficas, em especial entre autores
como Alain de Libera que trabalha, sobretudo no sentido de uma compreensão
filosófica da mística.
Segundo Michela Pereira, Alain de Libera recorda Marguerite em seu livro
Pensar na Idade Média, São Paulo, Editora 34, 1999, num contexto amplo da
difusão do ideal de vida filosófica fora do ambiente universitário averroista.
Nesse estudo, Alain de Libera aponta Eckhart como o mais significativo
representante dessa postura filosófica. Em Ekhart, essa postura é constituída,
no seu confronto com beguinas, cujas idéias encontram-se formalizadas nos
oito erros apontados pelo Concílio de Viena, a partir da condenação do
20
Mirouer
25
. Alain de Libera acentua que os erros são teológicos e não simples
desvios de conduta e de linguagem, reconhecendo assim, o significado
teológico do livro de Marguerite.
Para esse autor, a noção de mística medieval como um conjunto de
comportamentos ou um tipo particular de indivíduos é uma categoria da
historiografia e não um objeto da história. Para esse autor, a mística renana,
também chamada mística especulativa, é experiência ousada do pensamento
que, caminhando pela negatividade, operando superações sucessivas de todas
as afirmações, despojando-se de todas as imagens, chegando à extenuação
do pensável e do dizível, chega à união com o transcendente, isto é,
experimenta o desconhecido que se instala na alma, no lugar daquilo que nela
é percepção
26
.Para ele, a mística renana nasceu do encontro entre Eckhart
(com sua cultura de Mestre Parisiense) e a doutrina professada pelas beguinas
que buscava uma expressão intelectual superior a seu equipamento de origem
e que não conseguiria, na opinião desse autor, obter por si mesma. Essa tese
de que com Eckhart o pensamento das beguinas, e entre elas o de Marguerite
Porete, ganha uma elaboração filosófica estará presente em outros autores
como no texto de Amy Hollyood intitulado The Soul as Virgin Wife. Mechtild of
Magdeburg, Marguerite Porete and Meister Eckhart, Notre Dame and London,
University of Notre Dame Press, 1995.
No âmbito filosófico, Michela Pereira vai também destacar os estudos de
Christian Trottman e o de Camille Bérubé. No trabalho sobre visão beatífica, La
vision béatifique. Des disputes scolastiques à définition par Benoît XII, Rome,
École Française de Rome, 1995, afirma ela, Trottman dedica um parágrafo ao
Mirouer entendendo que essa obra seria o único exemplo de elaboração da
posição beguinal, e que representaria uma contraposição a São Tomás no que
diz respeito à visão beatífica. O Mirouer estaria em oposição à doutrina tomista
que afirma que a visão da essência de Deus não é possível ao ser humano
25
Cf. Michela PEREIRA. Margherita Porete nella discussione filosofica, Texto apresentado no
IV Seminário di teologia e storia della mística Certosa del Galluzzo Firenze, 1997. Nesse
artigo Michela Pereira busca estabelecer pontos de contato entre o Miruer e a discussão
filosófica-teológica escolástica do século XII. Esse Seminário teve como tema Una rete
d’amore. Lo “Specchio desse anime semplici”di Margherita Porete” e incluiu dois nomes
importantes para o estudo da obra: Luisa Muraro e Romana Guarnieri.
(http://www.sismelfirenze.it/mistica/ita/studiArticoli/margheritaPereira.htm), acessado em
07/07/2004 .
21
senão através da concessão de um habitus sopranaturale, a lumen glorie, que
permitisse superar a limitação do intelecto humano para poder torná-lo
receptivo do objeto infinito que é Deus. O Mirouer, segundo ele, considera o
sétimo estado como pretensão de viver desde essa vida um estado de vida
eterna que é paradoxal e será julgada herética. Trottman, comenta Michela
Pereira, interpreta erroneamente o sétimo estado do percurso místico descrito
por Marguerite. O que parece a Michela Pereira é que para o Mirouer a luz
divina não é uma mediação gnosiológica sui generis que permite ver um objeto
infinito, mas uma substituição do ver da alma pelo ver de Deus, que vê no caso
mesmo através desta portanto uma identidade paradoxal de sujeito e
objeto.
27
Ainda que Trottman interprete erroneamente o sétimo estado do
percurso místico descrito por Marguerite, observa Michela Pereira, ele insere o
Mirouer no contexto de um debate doutrinal central para a Escolástica, uma
obra que tem sido considerada historicamente como um texto devocional.
Quanto a Camille Bérube, cabe aqui destacar sua obra L’Amour de Dieu selon
Jean Duns Scot, Porète, Eckhart, Benoît de Canfield e les Capucins, Roma,
Instituto dei Cappuccini, 1997, que traz um primeiro capítulo dedicado ao Amor
de Deus em Marguerite Porete. Aí Bérubé faz um estudo do Mirouer iniciando
pelos últimos capítulos do texto, a autobiografia da beguina e passa depois a
um segundo item onde destaca nove traços característicos do Mirouer. Num
terceiro item, o autor vai considerar as fontes do Mirouer salientando a
presença no texto da teologia cisterciense através da referência a Guillaume de
Saint-Thierry. Para Michela Pereira, a contribuição do estudo desse autor, no
que diz respeito à relação do Mirouer com as discussões filosóficas, se faz
quando ele introduz o pensamento de Marguerite no círculo do debate
filosófico-teológico dos primeiros anos do século XIII, sem limitar a priori a
relevância do pensamento dessa beguina à relação com Eckhart
28
.
26
Alain de LIBERA, Pensar na Idade Média, p. 288-289.
27
Michela PEREIRA, op. cit..
28
Ibidem.
22
2.3. O Mirouer em foco entre as discussões feministas
E, finalmente, temos estudos como o de Victoria Cirlot e Blanca Gari,
interessados em recuperar a memória de mulheres e suas contribuições para a
história do pensamento. Pesquisadoras de inspiração feminista, no entanto de
um feminismo que ultrapassa a tentação de uma interpretação rasa que opõe
de maneira absoluta, feminino e masculino. Feminismo crítico, mas também
profundamente respeitoso da importância da Tradição. O livro La mirada
interior, escritoras místicas y visionarias en la Edade Media das autoras acima
citadas é um trabalho que retoma escritos de mulheres medievais (por elas
mesmas), na busca de compreender o fenômeno da escritura mística feminina
na Idade Média. As autoras articulam texto e contexto de forma a evitar uma
apropriação contemporânea dessas escrituras que, conferindo nomes
modernos para as experiências próprias de outros tempos, repetem sempre o
movimento de conquista. Vão alertar já na introdução:
Nas cavernas onde essa experiência mora há que aproximar-se com temor e
tremor. Não se pode chegar com os nomes de nosso século e tratar sem mais
de conquistá-la nomeando: histeria, depressão, anorexia.
29
De Blanca Garí, com a parceria de Alicia Padrós Wolff, é a tradução do Mirouer
para língua espanhola, edição que leva o título Margarita Porete El espejo de
las almas simples/Anónimo: Hermana Katrei, Icaria, Barcelona, 1995. É de se
notar também a presença de dois artigos de Blanca Garí em número da revista
DUODA, revista de estudos feministas, dedicado à Marguerite Porete 9 (1995).
Citamos ainda os estudos de Luisa Muraro, Lingua Materna Scienza Divina.
Scritti sulla filosofia mistica da Margherita Porete, M. D’Auria Editore, Nápoles,
1995. E o mais recente El Dio delle donne, Milano, Mondadori, 2003. Essa
autora, grande leitora de Marguerite Porete, vai trazer à luz vários aspectos do
Mirouer que ela insiste em caracterizar como teologia em língua materna:
(...) dizendo teologia a entendo no sentido mais elementar da palavra, como um
falar de Deus e um fazê-lo falar, prestando a escuta àqueles que dizem ou
29
Victoria Cirlot e Blanca Gari. La mirada interior, escritoras místicas y visionarias en la Edade
Media, p.12.
23
diziam Deus para conseguir dizer de si e do mundo tendo aberto o horizonte a
alguma coisa de melhor, e o céu alto sobre as cabeças deles.
30
Luisa Muraro reconhece no movimento religioso das mulheres no
Medievo, cujas pegadas estão em alguns documentos, uma luta que pode ser
considerada política, uma luta, entretanto, que não teria sido questão de poder
e justiça, mas sim luta para um sentido maior e mais livre do estar no mundo.
3. Sobre o itinerário que se pretende empreender
Segundo J. Orcibal, em artigo intitulado Les “Miroir des simples âmes” e la
“secte” du Libre Esprit, não se tem ainda do Mirouer um estudo que o
compreenda em relação às fontes ditas “ortodoxas”. Embora J. Orcibal
reconheça a grande contribuição de Romana Guarnieri em tornar conhecida a
autoria da obra e estabelecê-la como uma das principais fontes para o estudo
do Movimento do Livre Espírito, esse autor vai levantar um questionamento
interessante sobre a necessidade de alargar a pesquisa em torno do Mirouer,
“primeiro texto místico que conhecemos em francês”.
31
Ele faz notar nesse
artigo a teologia de Marguerite que é certamente ousada, porém, também,
profundamente articulada com a tradição eclesial. Vai dizer que, embora o livro,
em seu estilo literário, elaborado como canção inflamada e paradoxal ao estilo
dos trovadores que cantavam o fino amor, não favoreça a precisão e a exatidão
teológica (de uma teologia entendida como ciência), esse mesmo livro
apresenta claramente sinais de continuidade em relação à mais ortodoxa
tradição teológica.
30
Luisa MURARO, Il Dio delle donne, p.9.
31
J. ORCIBAL, “Le Miroir des simples âmes” et la “sect” du Libre Esprit; Revue de l’histoire des
religions 88, 1969 (vol. 176), p. 35-60.
24
3.1. A influência da teologia negativa
Não se pode deixar de ver no Mirouer, afirma Orcibal, a influência da teologia
negativa de Pseudo-Dionísio, tradição que deixou profundas marcas na
teologia mais ortodoxa como, por exemplo, na de Tomás de Aquino
32
. A
teologia no caminho da negatividade é aquela que pede despojamento,
renúncia dos sentidos, das operações intelectuais, de todo o sensível e do
inteligível, pede que deixe de lado o entender no esforço de subir o mais
possível até a união com aquele que está além de todo ser e de todo o saber.
Os mistérios da Palavra de Deus, simples, absolutos, imutáveis, nas trevas
mais que luminosas do silêncio, mostram seus segredos. Em meio às mais
negras trevas, fulgurantes de luz eles desbordam
33
. A alma abismada, sem
palavras, encantada, exclama: Nada! Dionísio fala sobre a negação em seu
pequeno tratado:
Mas, penso, para celebrar as negações, convém proceder de maneira inversa
daquela que se usa para celebrar as afirmações. Para estas, com efeito, partindo
das mais primitivas como princípios, passamos pelas médias, depois às últimas.
Aqui partimos necessariamente das últimas para nos elevar para as mais
primitivas, por um total despojamento, a fim de conhecer sem véu este
desconhecimento que se pode ter deste ser, para que deste modo esta Treva
supra essencial que dissimula toda luz continue nos seres.
34
É com clareza que podemos notar no Mirouer a presença dessa tradição. No
capítulo 11, o Amor é convocado pela Razão a explicar o incompreensível
itinerário da alma aniquilada para Deus. No final do capítulo a alma se dirige ao
Amor e fala de Deus que a socorre do alto de sua icognocibilidade e funda nela
a possibilidade de amá-lo para além de todo o conhecimento, de todo o amor,
de todo o louvor:
A Alma ao Amor: Mas certamente, caro Amor, eu não esperaria mesmo o menor
ponto sem o socorro desse que ultrapassa meu amor, porque Deus não é outro
que este do qual não se pode absolutamente nada conhecer. Com efeito,
somente ele é meu Deus, do qual não se pode dizer palavra e do qual todos os
32
Está merecendo hoje especial atenção a insistência de santo Tomás, já no limiar de sua
Suma teológica: de Deus conhecemos “o que Ele não é”, “como Ele não é”. Seu ser infinito e
transcendente escapa à nossa compreensão e supera todas as formas de linguagem.” (Cf.
Carlos JOSAPHAT, Evangelho e diálogo inter-religioso, p.154).
33
Cf. PSEUDO DIONISIO AREOPAGITA, A Teologia Mística, Em: Obra Completa, p. 129.
34
Ibidem, p.132-133.
25
habitantes do paraíso não podem atingir sequer um ponto, qualquer que seja o
conhecimento que eles tenham dele. E no que assim o ultrapassa reside a maior
mortificação do amor do meu espírito; e é aí, agora e para sempre toda a glória
do amor de minha alma, e a de todos aqueles que jamais se compreenderam a
si mesmos. (...)
(...) E, portanto, Senhora Amor, meu amor é de tal qualidade, que amo melhor
entender maldizer de você em qualquer coisa, antes que se não diga nada do
todo. E isto é bem o que eu faço: eu maldigo de vós, porque tudo o que eu digo
não é mais que maldizer de sua bondade; mas vós deveis perdoar minha
maledicência, pois, Senhora, aquele que maldiz bem de vós, aquele que sempre
fala de vós, mesmo que não diga jamais nada de sua bondade!
35
Além dessa referência, temos muitas outras. Por exemplo, no final do Capítulo
43, o Amor descreve a alma, aquela cuja memória, entendimento e vontade
são abismados (destruídos) inteiramente em Deus. Na percepção da
inconsistência da identidade humana, ela se liberta. A ascese negativa está
ligada à percepção de que se é Nada:
Essa alma tem sua memória, seu entendimento e sua vontade abismadas
inteiramente em um estado único, abismadas em Deus; e esse estado lhe dá o
ser sem saber, nem sentir nem querer nenhum estado, senão somente aquele
que Deus tem disposto.
36
3.2. O Mirouer e as fórmulas dogmáticas
Há que se destacar também, continua J. Orcibal, o lugar que tem no Mirouer as
fórmulas dogmáticas. Ele cita o capítulo 14 e reconhece ali uma paráfrase do
símbolo de Nicéia e de Constantinopla, fórmula dogmática que explicita a fé
trinitária e define a relação entre o Pai e o Filho, exprimindo com clareza sobre
a unidade de substância ou natureza entre Pai, Filho e Espírito
37
:
Amor: Esta alma sabe, pela virtude da fé, que Deus é todo-poderoso, que ele é
toda sabedoria e bondade perfeita, e que Deus o Pai tem operado a encarnação,
assim como o Filho e o Santo Espírito. Ela sabe assim que Deus o Pai tem unido
a natureza humana à pessoa de Deus o Filho, e que Deus o Filho a tem unido à
sua própria pessoa, e que o Santo Espírito a tem unido à pessoa de Deus o
Filho, se bem que o Pai possui nele uma só natureza, à saber a natureza divina,
que a pessoa do Filho possui nela três naturezas, à saber a mesma natureza
35
Marguerite PORETE, Le Miroir des âmes simples et anéanties, cap.11, p. 66-67.
36
Ibidem, cap.43, p.108.
37
Pode-se conferir o texto dogmático do Concílio Ecumênico de Constantinopla (381) em DS
150. Um estudo sobre as fórmulas dogmáticas encontramos no capítulo 4 do livro A Trindade e
a Sociedade de Leonardo Boff, p.88-101.
26
que a do Pai, a natureza da alma e a natureza do corpo, embora sendo uma só
pessoa na Trindade, e que o Santo Espírito possui nele esta mesma natureza
divina que possui Pai e o Filho. Crer, dizer, pensar nisso, eis a verdadeira
contemplação: uma só pobreza, um só saber, uma só vontade, um só Deus em
três pessoas e três pessoas em um só Deus. Esse Deus é para todos senão sua
natureza divina, mas sua humanidade é somente no paraíso na glória, unida à
pessoa do Filho, assim como ao sacramento do altar.
38
Todavia, mais interessante é a “feliz transposição”, observa Orcibal, do dogma
em mística trinitária. Nesse capítulo onde autora se propõe a falar da
substância eterna, ou de como Amor, engendra a Trindade na alma, a alma
invadida pela bondade divina proclama:
Sim, Unidade, vós engendrais unidade: Unidade reflete seu ardor em unidade; e
esse divino amor de Unidade engendra em alma aniquilada, em alma libertada,
em alma glorificada, a substancia eterna, a fruição comunicável, a conjunção
íntima. Desta substancia eterna, a memória recebe o poder do Pai; desta fruição
comunicável, o entendimento recebe a sabedoria do Filho; e da conjunção
íntima, a vontade recebe a bondade do Santo Espírito, bondade que a une no
amor do Pai e do Filho. Esta conjunção estabelece a alma em ser sem ser que é
Ser, e esse Ser é o Santo Espírito mesmo que é amor do Pai e do Filho. Este
amor do Santo Espírito se escoa na alma e se derrama em abundância de
delícias, pelo Dom único e eminente que o Bem-Amado soberano fez em uma
conjunção muito escolhida e magistral, quando se deu em sua simplicidade e se
fez simples.
39
A alma aniquilada, esvaziada de ser, descreve a presença da conjunção
Trinitária, da substância eterna que frui em seu não ser. No Mirouer, o credo
niceno-constantinopolitano é mais que o fundamento de uma crença, ele é a
referência da experiência mística. Nisso Marguerite se mostra, em sua teologia,
irmanada com a perspectiva cistersiense, expressa nos escritos de Guilherme
de Saint-Thierry, teólogo para quem a teologia deve servir a espiritualidade, e o
dogma deve ser matéria de contemplação e não de especulação. Sobre
Guillaume, afirma Jean-Marie Déchanet, podemos dizer que:
(...) seu poder de dedução, sua lógica, seu senso crítico, estão a serviço de um
pensamento que é pleno de Deus ou que tende logicamente a se expandir em
Deus (...) ele sabe desenvolver um raciocínio, aprofundar ou iluminar os
aspectos do dogma, discute quando necessário e recorre ao silogismo, mas
antes de tudo ele vive sua fé até o extremo.
40
38
Marguerite PORETE, op. cit, p.73.
39
Ibidem, p.190.
40
Jean-Marie DÉCHANET, Guillaume de Saint-Thierry, Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et
Myistique, Doctrine et Histoire, p. 1246.
27
3.3. Marguerite e Guilherme de Saint-Tierry
Para Orcibal é da influência da obra de Guilherme sobre o Mirouer,
especialmente da obra intitulada “Lettre aux Fréres du Mont-Dieu”, que viria
uma das maiores audácias de Marguerite: a glorificação da liberdade do
espírito que consiste em uma verdadeira unidade que impede de querer outra
coisa que não seja o que Deus queira. O estado de “impecabilidade” e a
deificação da alma é, no entanto, uma conseqüência que não só Marguerite
retira da influência da Epistola Aurea, como foi conhecida a obra de Guilherme,
mas também essas mesmas conseqüências, julgadas perigosas no Mirouer, se
encontram presentes nos escritos de outros místicos canonizados
41
.
Marguerite, como Guilherme, produz uma teologia aberta às influências dos
escritos de São Bernardo, de Santo Agostinho, dos Padres da Igreja, e dos
mestres profanos. Segundo Déchanet:
Guilherme aprecia de Platão a teoria das “idéias” e empresta de Plotino muitos
de seus pensamentos fundamentais. Ele cita Horácio, Virgílio, Ovídio e recupera
de Sêneca um grande número de máximas
42
.
No Mirouer nota-se também a referência ao exemplarismo neo-platônico que
preconiza o retorno da alma ao seu primeiro ser. Segundo Macróbio (séc IV-V),
um dos personagens que se destacaram na transmissão da doutrina de
Plotino, citado por Ullmann:
Deus, o Uno-Bem, o Ser supremo, causa e princípio último de todos os demais
seres, engendra necessariamente os seres, em virtude de sua superabundante
fecundidade. Do Uno nasce o Noûs que contém exemplares de todas as coisas
ou idéias. O Noûs, voltando-se ao Uno, produz a Alma do mundo, na qual estão
contidas as almas humanas.
43
Essa doutrina vai ser acolhida na tradição e expressa, por exemplo, de maneira
admirável por Boécio (480-524) no hino da nona poesia do terceiro livro da
Consolatio philosophiae. Nesse hino, continua Ullmann:
41
J. ORCIBAL, op. cit., p.56-58.
42
Jean-Marie DÉCHANET, op. cit., p.1246.
43
Reinholdo Aloysio ULLMANN, Plotino e sua influência na história, Em: Oscar Federico
BAUCHWITZ, O Neoplatonismo, p. 297.
28
Boécio emprega três anáforas Tu, tu, tu -, acentuando o caráter de
exclusividade do Uno no comando do universo. Conclui com uma invocação a
Deus pater -, o qual é descanso tranqüilo para as almas pias, que, num esforço
pessoal, se auto-superam pela contemplação precedida da abstração radical de
tudo que é estranho ao Uno. É mister espancar as nuvens da opinião (nubes
terrenas) e livrar-se dos pesos de chumbo que prendem a alma à terra.
Desimpedida de tudo, a alma fixa os olhos no Uno-Bem e liberta-se da caverna
platônica, sem olhar para trás.
44
Assim como Boécio, os Santos Padres capadócios, Eusébio de Cesaréia,
Basílio, o Grande, Gregório de Nissa, Gregório de Nazianzeno, e no ocidente,
Ambrósio e Agostinho, liam e citavam Plotino. Certamente, é a esse
neoplatonismo cristão que nos remete o Mirouer quando no capítulo 138, a
autora, já falando em primeira pessoa, em nome de sua própria experiência,
explica como a alma retorna a seu primeiro estado:
Assim, o estado desta alma agora é aquele de seu primeiro estado, que é seu
estado próprio; assim ela deixou três e reuniu dois em um só. Mas quando este
estado único existe? Este estado único existe quando a alma é redimida na
simples divindade: é um estado simples de fruição transbordante, em um saber
total, sem sentimento, e acima do pensamento. Este estado simples opera na
alma por caridade, tudo aquilo que ela opera, porque seu querer tornou-se
simples, e esse querer simples não tem ato em si mesmo; e isto depois que ele
venceu a necessidade das duas naturezas, quando o querer foi dado à alma por
esse estado simples. E este querer simples que é querer divino coloca a
alma no estado divino: nada a pode elevar mais alto, nem descer mais baixo,
nem ser mais nadificada em humanidade.
45
Para Marguerite Porete, a alma nadificada, tomada pelo Espírito, deificada, já
não faz nada, nem por causa de Deus, está livre das amarras da causalidade.
Não busca a salvação de si pelas obras porque já não existe em si, sua missão
resume-se em espelhar o Amor, o Fino Amor, o Espírito Santo a quem ela
pertence.
Enfim, constatamos, em consonância com o questionamento de J. Orcibal, que
sobre a obra a autora que elegemos como objeto de estudo, ainda não se
dedicou um estudo teológico contemporâneo, mesmo que em vários estudos
sobre a obra seja citada a sutileza da discussão teológica de Marguerite.
44
Ibidem, p. 297-298.
45
Marguerite PORETE, op. cit., cap.138, p.233.
29
Consideramos que o Mirouer des Simples Ames, contém uma contribuição em
termos de teologia que ainda não foi explorada.
Marguerite, em nossa opinião, ao discutir teologia dogmática a partir da
experiência mística, produz uma teologia que traz de fato problemas. Embora
instigante, ela provoca especialmente a hierarquia e os teólogos por sua livre
redação em língua vulgar
46
. Provoca também por sua perspectiva eclesiológica
que distingue “Santa-Igreja-a-pequena”, a Igreja governada pela Razão e
“Santa-Igreja-a-grande”, composta pelas almas aniquiladas, a Igreja que é
governada por Amor
47
, aquela que sustenta, ensina e nutre toda a Santa Igreja.
O Mirouer, em nossa opinião, pode ser considerado, mais especificamente, um
tratado de Teologia do Espírito, com as mesmas dificuldades que sempre
representaram para a Igreja os escritos que buscaram explicitar uma
pneumatologia.
De fato, desde os primeiros tempos do cristianismo, a comunidade que se
forma como comunidade de vida no Espírito, vive a ambigüidade de
experimentar em seus próprios corpos um ânimo que não vem deles mesmos,
um ânimo que, vindo do transcendente, foge ao controle, não pode ser
enquadrado e, portanto, deve ser discernido (Gl 5,1-26). As primeiras
comunidades vão se sentir inspiradas por uma ordem que subverte a
sensibilidade e a racionalidade e por isso confessam a ressurreição da carne,
que se realiza não para além da morte, mas já em vida. Pelo Batismo o cristão
participa da morte de Jesus Cristo e da sua ressurreição. Morto e ressuscitado
em vida, já não teme, não carece, não deseja. A vida cristã que se desdobra
daí é, então, absurda para os gentios e escandalosa para os judeus.
É dentro dessa mesma inspiração que, pensamos, se coloca a obra única de
Marguerite Porete, que procura, descrevendo o itinerário da alma nadificada,
falar uma palavra sobre o Espírito, que ela nomeia como o Fino Amor, o amor
cortês, aquele mesmo amor cantado pelos trovadores; o amor, mais que amor,
amor ao inacessível, amor divino em vista do qual cavaleiros e damas se
dispõem a morrer.
46
Cf. P. VERDEYEN, Le Procès d’inquisition contre Marguerite Porete et Guiard de
Cressonessart (1309-1310), Revue d’histoire ecclésiastique, 81 (1986) p. 46.
47
Cf. Marguerite PORETE, op. cit., cap.19, p.79-78.
30
4. Sobre o referencial teológico
Nosso referencial para o estudo da obra de Marguerite é a pneumatologia.
Procuraremos ler o Mirouer a partir do que a teologia sistemática tem
aprofundado em relação ao Espírito Santo. Para empreender esse itinerário,
consideramos ser necessário observar o lugar do Tratado do Espírito na
reflexão teológica.
4.1. O Dogma Trinitário, fundamento da experiência cristã
Certamente não nos enganamos em dizer que o dogma definitivo para
cristianismo é o dogma trinitário. Definido fundamentalmente no Concílio de
Constantinopla (381), esse dogma afirma a crença em Deus-Pai, em Deus-
Filho, no Espírito Santo e na Santa Igreja:
Cremos em um só Deus, Pai onipotente, artífice do céu e da terra, de todas as
coisas visíveis e invisíveis.
E em um só Senhor Jesus Cristo, filho unigênito de Deus, e nascido do Pai
antes de todos os séculos, Deus de Deus, luz da Luz, Deus verdadeiro de
Deus verdadeiro, gerado, não feito, consubstancial ao Pai; por meio do qual
tudo foi feito; o qual, em prol de nós, homens, e de nossa salvação, desceu dos
céus, e se encarnou, do Espírito Santo, do seio de Maria Virgem, e se fez
homem; que também foi crucificado por nós, sob Poncio Pilatos, padeceu e foi
sepultado, e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras, e subiu ao céu,
está sentado à direita do Pai e virá novamente para julgar os vivos e os mortos;
cujo reino não terá fim.
E no Espírito Santo, Senhor e vivificador, que procede do Pai e do Filho, que
com o Pai e o Filho simultaneamente é adorado e glorificado, que falou por
meio dos profetas. E a Igreja uma, santa, católica e apostólica. Confesso um só
batismo para a remissão dos pecados. E espero a ressurreição dos mortos e a
vida do século vindouro. Amém. (DS 150)
O símbolo da Trindade nasce de uma experiência concreta de salvação:
experiência de vida na eminência da morte, sobrevivência; experiência de vida
apesar da morte, ressurreição. Origina-se numa comunidade que:
31
Tem como tradição a experiência de Deus que ouve a súplica que emerge de
dentro do sofrimento, que se refere a Deus como JHWH da promessa, Deus de
Abraão, de Isaac e de Jacó, da terra e da descendência prometida ao nômade,
ao que sofre porque não tem segurança de sua sobrevivência, nem de sua
identidade. JHWH dos exércitos, Deus de Moisés, da guerra ao Faraó, aquele
que vem ao encontro do escravo, do que está submetido, obrigado, do que não
é livre. JHWH da Lei, do compromisso com a liberdade, a ALIANÇA. Deus que
em resposta ao desejo de sobrevivência e de liberdade, revela-se como o
OUTRO, alteridade absoluta, em quem se pode confiar.
Conhece a Jesus Cristo, por tudo o que fez e disse, torturado, morto e
ressuscitado, e o proclama Salvador. A comunidade compreende o sentido da
vida, morte e ressurreição de Jesus o Cristo como antecipação do futuro de
libertação para todos. Entende por isso, que a morte já não ameaça, que Deus
é Deus conosco, é o que dá vida plena ao assassinado. Jesus Cristo é, para a
comunidade que o segue, aquele que instaura o Reino que já existe, e que
continua por vir, pois é também horizonte de sentido, perspectiva escatológica.
Experimenta um ânimo, um impulso para a vida que se traduz em movimento
missionário. A comunidade reconhece no evento “Jesus Cristo” a boa notícia
de Deus, vida, mais vida, vida em abundância. Deus-Filho é Evangelho a ser
proclamado e propagado. Aquele que segue a Jesus, o Cristo, vai testemunhar
a comunidade, transtorna-se ele mesmo em Filho. A comunidade experimenta
em si um Espírito que torna atual a presença do mistério de Jesus, o Filho de
Deus, experimenta e professa a fé no Espírito Santo.
Na tradição cristã, portanto, Trindade é o nome do Mistério, unidade na
diversidade, Deus em três pessoas. Símbolo que foi recebido ao longo da
história e aprofundado de várias maneiras, através do qual o cristão professa a
sua fé.
4.2. A teologia e o esquecimento do Espírito
Podemos constatar, todavia, que a teologia no século XX, especialmente
aquela que se coloca no espírito do Concílio Vaticano II, toma consciência de
32
que a tradição teológica sofreu de um “esquecimento do Espírito”,
especialmente a tradição teológica que se afirmou no segundo milênio, depois
da Reforma Gregoriana, sob a referência de um regime de cristandade.
A Igreja Primitiva tem consciência de sua vinculação com o Espírito: ela nasce
do Espírito, é santa pelo Espírito e vive pelo Espírito de Jesus. Desde a origem
tem consciência de seu duplo princípio estruturador: o cristológico e o
pneumatológico.
Para a Igreja Primitiva, o Espírito é a raiz da santidade, apostolicidade,
catolicidade e unidade da Igreja, é Ele que permite a inculturação nas diversas
Igrejas locais. Ela vive o Espírito na Liturgia, na epiclese eucarística, na
iniciação cristã, na santidade dos mártires, no ardor dos missionários, no fervor
dos místicos. Entende que o princípio da pluralidade e comunhão numa mesma
fé é o que dá sentido à fé e firmeza na tribulação.
O Espírito habita os corpos e o corpo orgânico da Igreja, pneumatiza, opera
uma superação gradual da contradição que se estabelece entre os dois
princípios dinâmicos que, segundo Paulo, marcam a experiência humana: de
um lado carne, pecado, escravidão, desordem; de outro, espírito, justiça,
libertação, ordem. A vida no Espírito liberta de toda a forma de servidão e
capacita para a vivência da comunhão. A experiência do Espírito é,
testemunham os discípulos, a presença em seus próprios corpos do mesmo
Espírito que ressuscitou Jesus. Conforme afirma Jorge Pixley:
Um dos frutos mais notáveis da vida nova no Espírito era a alegria que enchia os
corpos dos fiéis. Na lista paulina dos “frutos do Espírito”, alegria vem depois do
amor (GL 5,22). Esta alegria é tanta que enche as vidas dos crentes mesmo no
meio da tribulação que sua identificação pública com a mensagem cristã
acarreta (1 Ts 1,6).
48
A história da doutrina mostra, no entanto, que, embora a experiência do
Espírito tenha sido a primeira e mais íntima maneira de experimentar a Deus, a
reflexão teológica em relação ao Espírito ficou muito atrás da reflexão em torno
48
Jorge PIXLEY. Vida no Espírito, o projeto messiânico de Jesus depois da ressurreição, p.51.
33
de Deus Pai, fonte incriada de todas as coisas e da reflexão sobre o Verbo
encarnado
49
.
O esquecimento do Espírito que vai marcar a teologia no segundo milênio, vão
afirmar os autores, foi fruto de um longo processo que tem início no século IV,
com a virada constantiniana, a chamada conversão de Constantino, e que
ganha maturidade com a instauração do regime de cristandade. Esse processo
vai gerar um momento peculiar no qual a Igreja impregna e aglutina toda a
sociedade civil dentro de uma visão teocrática cujo centro é ocupado pelo
Papa
50
. Esse modelo de organização vai reduzir o Espírito Santo à Igreja e,
pelo menos no ocidente, reduzi-Lo à hierarquia.
As condições para a instauração de um regime de cristandade se estabelecem
com Carlos Magno, que será o responsável pela retomada do antigo esplendor
da fé cristã, depois da invasão e constituição dos reinos bárbaros sobre as
ruínas do Império Romano. Os soberanos carolíngios reunirão esforços no
sentido de instaurar um processo que implica a sacerdotização dos ministérios,
a sedentarização do clero e o estabelecimento da monarquia episcopal que vai
afirmar a organização da Igreja em diocese, província e paróquia. Buscarão
enfatizar o culto até o limite do ritualismo e vão insistir numa moral cujos pontos
fundamentais serão o cultivo de virtudes e a condenação dos pecados que se
multiplicam
51
. O renascimento carolíngio, afirma Morás
(...)foi empreendido sob os auspícios de um ideal de ordem terrena que refletisse
os preceitos divinos de forma a contar com a ajuda e proteção de Deus e do
ponto de vista prático estendeu-se sobre várias frentes: construção de Igrejas,
unificação das prescrições canônicas, correção dos textos bíblicos e relatos
hagiográficos (lendas dos Santos), recuperação de modelos literários e
arquitetônicos, organização e uniformização da liturgia, disseminação do uso do
latim, consolidação do clero, dividido em ordens regulares e seculares, que
assume papel preponderante na estrutura político-administrativa do Estado
52
.
Vem de encontro à instauração do regime de cristandade, a reforma
gregoriana, movimento que vai reivindicar a autonomia de poder para a Igreja.
49
Elizabeth A. JOHNSON. Aquela que É, o mistério de Deus no trabalho teológico feminino,
p.192.
50
cf. Víctor CODINA, Creio no Espírito Santo Pneumatologia Narrativa, p. 34.
51
Ao lado das três faltas irremissíveis que a Igreja primitiva conhecia - idolatria, fornicação e
homicídio - figuram pela primeira vez, nesse período, afirma Vouchez, os oito pecados capitais.
52
Antonio MORÁS, Os entes sobrenaturais na Idade Média. Imaginário, representações e
ordenamento social, p.146-147.
34
O Papa Gregorio VII representou o ápice desse movimento reformador que foi,
de fato, reflexo do conflito entre a hierarquia da Igreja e o Império. Essa luta,
que teve como elementos chaves o tráfico de dignidades eclesiásticas, o
concubinato dos padres e o questionamento da investidura leiga, reivindica
para Igreja a independência em relação ao imperador e o direito exclusivo de
julgar a sociedade cristã.
Entre os gregorianos opera-se também uma mudança na espiritualidade. A
espera escatológica de uma catástrofe última dá lugar a um desejo de construir
o reino de Deus, perspectiva expressa numa entidade político-religiosa, que os
autores na Idade Média chamaram de sancta res publica christiana. Segundo
André Vauchez:
Os resultados da reforma gregoriana foram contraditórios: dessacralizando o
poder temporal e exaltando o sacerdócio, ela teve como conseqüência aumentar
a distância entre os clérigos e os leigos. Os primeiros, com os quais a Igreja
tinha cada vez mais tendência a identificar-se, arrogaram-se o monopólio do
sagrado, enquanto os segundos eram relegados a atividades profanas.
53
Na verdade, afirma José Comblin, desde as lutas entre os Papas e o Império, a
ação do Espírito sofrerá uma dupla redução, ficando ligado à Igreja-instituição e
ao conceito de poder. O Espírito será a força da Igreja contra o Império e sua
ação no mundo estará restrita à intermediação da Igreja institucional:
A Igreja consta de ‘poderes’. Embora haja controvérsias quanto ao número e à
definição dos poderes, consta claramente que o Espírito está presente no poder
sacramental. Os sacramentos são administrados pelo poder do Espírito. Da
mesma maneira o governo da Igreja realiza-se pelo poder do Espírito. O Espírito
é poder e confere poderes espirituais. Estes são pelo menos o poder de ordem
de jurisdição. A eclesiologia que nasce do século XIV vai procurar definir os
poderes da Igreja, situando nela poder do Espírito. As manifestações mais claras
do Espírito Santo serão os sacramentos, os Concílios gerais e o poder do
Papa.
54
No que diz respeito à teologia, vão entrar na penumbra os temas ligados ao
Espírito da teologia patrística, a saber, a participação eclesial de todo o Povo
de Deus na recepção da fé, na liturgia, no governo e eleição dos Bispos e na
53
André VAUCHEZ, A Espiritualidade na Idade Média Ocidental séculos VIII a XIII, p.63.
54
José COMBLIN, O Espírito Santo e a libertação, p.57.
35
autonomia da Igreja local.
55
Estabelece-se um “cristomonismo” e perde-se a
inspiração da comunhão própria da fé num Deus Trinitário.
É o início de um hiato entre teologia e espiritualidade que se radicaliza no
século XIV. A teologia patrística e monástica, centrada na Lectio Divina, que
era uma teologia espiritual e sapiencial será substituída pela teologia
escolástica, centrada na racionalidade da fé, no intellectus fidei.
56
(...) a lição dos monges “transformava a leitura numa ‘meditação’ (meditatio),
uma ‘ruminação’ que deve receber a palavra no ‘ouvido do coração’ (in aure
cordis) e saboreá-la com o ‘palato do coração’ (palatum cordis): uma leitura que
se dissolve na prece. Ao contrário, o que é específico da lição escolástica é
exorcizar toda intromissão subjetiva e instaurar um regime impessoal, do qual o
protagonista é o intelecto metodicamente disciplinado. É nesse sentido que a
lição se insere inteiramente no esquema lógico linguístico da ”questão”.
57
Outra contração no que diz respeito à Teologia do Espírito, vai lembrar
Elizabeth Johnson, se deu com a Reforma Protestante do século XVI. Se por
um lado, a teologia e a piedade protestante vai privatizar a atividade do
Espírito, concentrando-a na obra da justificação e da santificação na vida do
crente, enfatizando os dons do Espírito em relação à certeza da salvação
pessoal, por outro lado, a teologia católica posterior a Trento, como reação, vai
insistir na institucionalização do Espírito, restringindo a atividade do Espírito ao
ofício eclesiástico e ao ministério ordenado:
Os manuais neo-escolásticos amplamente difundidos deste período organizaram
o seu material em blocos seqüenciais a partir de Deus, até chegar a Cristo e à
Igreja, assegurando dessa forma que a liberdade fundamental do Espírito é
controlada pela subordinação à ordem e à disciplina eclesiástica.
58
Sobre a constatação do esquecimento do Espírito na Teologia do Ocidente,
Codina cita o teólogo ortodoxo P. Evidokmov:
A ausência da economia do Espírito Santo na teologia dos últimos séculos, como
também seu cristomonismo, determinam que a liberdade profética, a divinização
da humanidade, a dignidade adulta e régia do laicato e o nascimento da nova
55
Víctor CODINA, op. cit. p. 39.
56
Ibidem, p. 39.
57
Franco ALESSIO, Escolástica. Em: Dicionário temático do Ocidente Medieval, p.372.
58
Elizabeth JOHNSON. Aquela que É, o mistério de Deus no trabalho teológico feminino, p.
194.
36
criatura fiquem substituídos pela instituição hierárquica da Igreja colocada em
termos de obediência e submissão.
59
Mesmo constatando o esquecimento do Espírito, um olhar mais atento à
grande tradição da Igreja nos leva a afirmar junto com o mesmo teólogo Víctor
Codina:
Os santos e os místicos, por sua vez, nunca deixaram de fazer menção do
Espírito do Senhor como fonte de sua vida e de sua experiência cristã. O
chamado “polo profético” da Igreja manteve sempre viva a memória do Espírito
na Igreja, mesmo se, por vezes, o profetismo tenha podido degenerar em
entusiasmos perigosos, selvagens ou heréticos. O erro e a heresia são verdades
que se transformaram em insensatez e que extrapolaram os limites justos e
razoáveis, mas que não podem deixar de ser escutadas.
60
Certamente é na relação entre experiência do Espírito e heresia que reside a
grande dificuldade da Igreja em relação aos movimentos centrados no Espírito.
Movimentos como os que se inspiraram em Joaquim de Fiori, monge
cisterciense e calabrês do fim do século XII que
anunciava a vinda próxima de uma nova era do Espírito Santo, marcada pelo
advento de uma Igreja espiritual, totalmente contemplativa e pura, que difundiria
sobre toda a terra o “Evangelho eterno”.
61
Na nova era, na última era da humanidade,
O Espírito, presente entre todos os homens, lhes ensinará toda a verdade, e
deixará saciados na sua sede de conhecimento, e das trevas chamará à glória
os infelizes que permaneciam na ignorância e na maldade.
62
.
O abade Joaquim de Fiori desde o início carregará a fama ora de profeta, ora
de herege. Suas idéias vão influenciar distintos movimentos místicos da
segunda metade do século XIII e início do século XIV: Irmão do Livre Espírito,
Beguinas, Begardos e, sobretudo, os franciscanos espirituais.
59
Ibidem, p. 41.
60
Victor CODINA, op. cit., p.51.
61
Jacques VERGER, Universidade. Em: Dicionário temático do Ocidente Medieval, p.89
62
João Eduardo Pinto Bastos LUPI, A doutrina de Joaquim de Fiore sobre o Espírito Santo, em
Noeli Dutra ROSSATTO, O simbolismo das festas do Divino Espírito Santo, p.56.
37
Ao nosso ver, é também desse lugar teológico, lugar da Teologia do Espírito
que foi muitas vezes julgada como heresia, que podemos compreender melhor
a obra de Marguerite Porete, teóloga do século XIII, autora de um Tratado de
Pneumatologia escrito em tempos de esquecimento do Espírito.
Para análise teológica do Mirouer, no que diz respeito à pneumatologia,
usaremos como obra de referência o conhecido trabalho sistemático de Yves
Congar, Je Crois en L’Esprit Saint, Paris, Les Éditions du Cerf, 1979, obra em
três volumes que traz na primeira parte uma visão da economia e experiência
do Espírito, na segunda parte a reflexão sobre a presença do Espírito na Igreja
e nas pessoas e por último a discussão dogmática especificamente
pneumatológica. Usaremos além dessa que será a referência principal, obras
de pneumatologia de outros autores como J. Comblin, O tempo da Ação,
ensaio sobre o Espírito e a História, Petrópolis, Vozes, 1982 e O Espírito Santo
e a Libertação, Petrópolis, Vozes, 1988; de Jorge V. Pixley, Vida no Espírito - o
projeto messiânico de Jesus depois da ressurreição. Petrópolis, Vozes, 1997;
de Victor Codina, Creio no Espírito Santo Pneumatologia Narrativa, São
Paulo, Ed. Paulinas, 1997; de Elizabeth Johnson, Aquela que É - o mistério de
Deus no trabalho teológico feminino. Petrópolis, Vozes, 1995; e de Jürgen
Moltmann, O Espírito da Vida - uma pneumatologia integral, Petrópolis, Vozes,
1999.
38
CAPÍTULO II
O ESPELHO DAS ALMAS SIMPLES,
UM ESPELHO HERÉTICO?
Tendo essa pesquisa como objeto uma autora e sua única obra, optamos por,
neste item, tratar as duas como um único assunto. Na verdade Marguerite é
sua obra.
O Mirouer se inicia como um romance de amor, um romance alegórico cortês
depositário de uma cultura laica veiculada pela linguagem vulgar; um romance
como outros que mistura os gêneros épico, cortês, alegórico e é escrito tanto
em verso quanto em prosa
63
.
Esse romance se desenvolve, no entanto, posteriormente, como um tratado
filosófico-teológico que vai buscar discutir o sentido do aniquilamento da alma
no itinerário que leva à união mística. A autora no seu Mirouer faz sua
discussão, trabalha seus argumentos em forma de alegoria em que a “Senhora
Amor”, suserana da Alma Nobre, responde às perguntas da Razão e a instrui.
O romance é então, também, uma instrução religiosa, um Speculum do mesmo
gênero literário do Speculum Virginum, por exemplo. Essa obra medieval, muito
63
Cf. Marie BERTHO, Le Miroir des Ames Simples el aneanties de Marguerite Porete, Un vie
blesée d’amour, p. 47.
39
conhecida entre as mulheres religiosas do movimento cisterciense, fornecerá
símbolos que permitirão a essas mulheres exprimirem e cantarem o amor que
as elevava a Deus
64
.
Ao longo do texto, todavia, a distância entre autora e obra se dissolve e o
Mirouer termina como relato em primeira pessoa da trajetória mística da
própria autora. Ela mesma é, nos capítulos finais, a alma nadificada, raptada
pelo Amado que é o próprio Amor, o Fino Amor. Em vista dessa dinâmica que
marca o desenvolvimento da obra de Marguerite Porete, nos propusemos a
trabalhar em conjunto essa mulher e seu “espelho” ou uma mulher que se fez
espelho de Deus.
Como, de Marguerite pouco se conhece, podemos citar a respeito dela
algumas hipóteses levantadas pelo estudo de Marie Bertho. Essa autora faz
uma reconstrução do ambiente religioso da cidade onde possivelmente
Marguerite cresceu. Esse estudo vai destacar a importância que tiveram as
beguinas em Valenciennes, na segunda metade do século XIII:
Desde o início do movimento beguinal, Valenciennes parece ter reunido
condições políticas, sociais e econômicas próprias à implantação e acolhida das
beguinas. De uma parte, estas se beneficiaram do amparo de dois bispos de
Cambrai Godefroy de Fontaines (1219-1237) e Gui ou Guiard de Laon (1238-
1248, ainda que da benevolência de curas de paróquia que aceitaram mais
facilmente ceder seus direitos à capelas e igrejas de beguinagens que à ordens
mendicantes. De outra parte, o senhorio de mulheres da qual a vila dependeu a
essa época foi propícia às beguinagens. As duas irmãs Jeanne (1205-1244) e
Marguerite de Constantinopla (1244-1280) que se sucederam à frente do
condado de Flandres e de Hainaut foram sensíveis ao movimento (...)
65
Segundo Bertho, tendo em vista a maneira como Marguerite se refere à
incompreensão das beguinas em sua obra, poderia se pensar que ela estaria
entre as beguinas isoladas que viviam sós, em duas ou três em uma casa
situada na vila, sem a segurança nem o amparo da comunidade. Saídas da
nobreza urbana, da rica burguesia mercante ou da pequena burguesia
artesanal, tendo suas necessidade reduzidas ao mínimo, eram mulheres
independentes. Gozariam de uma independência social, desobrigadas que
estavam dos laços filiais ou conjugais, e de uma independência religiosa, à
64
Ibidem, p. 55.
65
Ibidem, p. 23.
40
margem dos laços comunitários e ligadas ao clero apenas pelos laços da
direção de consciência.
66
.
Marguerite teria sido também uma mulher erudita, já que crônicas da época se
referem a ela como beguina clériga. Seria possuidora de uma cultura para além
da educação comum oferecida às mulheres laicas. Como clériga, teria sido
cultivada na “ruminacio” das Escrituras e na “lectio” das obras teológicas.
As quarenta e três citações bíblicas e o seu uso que é feito no Mirouer são
testemunhos em Marguerite de um conhecimento profundo das Santas
Escrituras, do domínio de seus diferentes níveis de leitura e de um cuidado
constante com a pedagogia espiritual.
67
Segundo Luisa Muraro, Marguerite conhecia o texto sagrado por leitura direta,
o lia e o comentava publicamente em francês. Segundo essa autora, no
Mirouer encontram-se marcas de um vínculo com a comunicação oral para um
destinatário coletivo
68
.
É possível também, através de uma análise comparativa, afirma Bertho,
perceber as múltiplas correspondências entre o Mirouer e os tratados teológicos
mais lidos da época. Constata-se assim a familiaridade de Marguerite com a
obra das escolas de pensamento cisterciense, vitorina ou ainda cartuxa
69
.
Além dessas hipóteses, o que se pode dizer de Marguerite e do Mirouer nos
vem dos estudos em torno do Movimento Beguinal e do processo que ambas,
autora e obra, sofreram. O “Espelho” de Marguerite foi julgado herético pela
Inquisição e a autora queimada na Place de Grève em Paris no dia 1
o
de junho
de 1310.
1. O Movimento Beguinal
O estudo do Movimento Beguinal se inscreve no contexto do estudo da
espiritualidade dos leigos na Idade Média e tem como referências históricas
66
Cf. Ibidem, p. 28-29.
67
Ibidem, p. 42.
68
Cf. Luisa MURARO, Margarita Porete, lectora de la Bíblia sobre el tema de la salvación.
Duoda Revista de Estudos Feministas 9 (1995), p. 70.
69
Cf. Ibidem p. 42-43.
41
fundamentais os textos ligados à condenação dos movimentos heréticos
inspirados na doutrina do “livre espírito”. A seita dos “Irmãos do livre espírito”
foi individualizada apenas no século XVIII por Jean-Laurent de Mosheim na
obra De beghardis et beguinabus comentarius editada por G.-H. Martini em
Leipzig, 1790. O nome “Irmãos do Livre Espírito” contém no seu interior uma
série de movimentos espirituais dos séculos XII, entre os quais destacamos os
apostólicos de Tanchelim d’Anver ou Tanchein, morto em 1115 e seu discípulo
Manassés; os cátaros ou Albiguenses; o joaquinismo inspirado em Joaquim de
Fiori; Hugo Speroni e seus discípulos; Amaury de Bène e os amauricienses; os
Irmãos Pobres da Penitência da Ordem de São Francisco de Assis (Pauperes
Christi).
70
Segundo J. Van Mierlo, o Movimento Beguinal se desenvolveu como alternativa
de vida religiosa leiga na Renania e Países Baixos. Essas beguinagens
começam aparecer no final do século XII. São formadas por pequenas casas
agrupadas. Constituem-se comunidades com promessa (e não voto) de
pobreza, obediência e castidade, inseridas num contexto social urbano. Nessas
comunidades, as mulheres vivem do próprio trabalho: tecelagem, bordado,
costura, ensinamento de crianças e serviços de damas idosas.
Para esse mesmo autor, o “Movimento Beguinal” está inserido no movimento
de renovação da vida religiosa que a partir do século X se espalha por todos os
países da Europa Ocidental. O primeiro centro desse movimento de renovação,
afirma o autor, é a Abadia de Brogne perto de Namur e abadias reformadas
pelo santo Abade Gerárd de Brogne ligadas à revitalização do monasticismo
beneditino e no século XI, na Alemanha imperial, a reforma de Hirsau. Essa
renovação possibilitou que o “povo cristão” se associasse à vida das abadias
reformadas, se estabelecesse em torno delas e se pusesse a perseguir um
ideal de perfeição segundo o modelo monástico, seja se ligando estreitamente
à vida dos monges, seja se filiando em confrarias, seja se colocando sob a
direção deles.
71
No século XII, esse fervor popular ganha intensidade e se
estende, constituindo-se numa multidão de fervorosos e fervorosas tocados
70
Romana GUARNIERI, Frères du Libre Esprit. Em: Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et
Myistique, Doctrine et Histoire, p.1247-1248.
71
Cf. J. Van MIERLO, S.J., Béguins, Béguines, Béguinages, em: Dictionnaire de Spiritualité
Ascétique et Myistique, Doctrine et Histoire, p.1343.
42
pelo clima de reforma, inquietos diante de tudo que consideram decadência do
espírito primitivo da Igreja, inconformados, sobretudo com o escândalo de um
clero rico e poderoso. Entre essa multidão, estão os begardos e beguinas que
segundo a chronica regia de Colonia, são os albiguenses dos Países Baixos e
das regiões renanas
72
. Comunidades de homens e mulheres cujo fervor
vivenciado como aspiração à pureza e continência é interpretado como
catarismo
73
.
O Movimento Beguinal esteve no fim do século XII sob a direção dos
cistersienses, e posteriormente sob os “cuidados espirituais” das ordens
religiosas mendicantes. Os franciscanos se dedicaram aos begardos e os
dominicanos às beguinas. É dentro desse movimento que nasce a mística em
língua vulgar, mística que tem como base metafísica o neoplatonismo de Santo
Agostinho.
O mais notável, afirma José Comblin, referindo-se às beguinas, numa de suas
obras:
(...) foi a intensa vida espiritual e mística que essas mulheres viveram e a
literatura espiritual que produziram. Escreviam em língua vulgar flamengo,
francês e alemão. Hadwijch de Antuérpia uma dessas mulheres é
considerada a fundadora da língua flamenga escrita, pois as obras dela são as
mais antigas obras escritas nesse idioma.
Pelo valor espiritual, as obras de Hadewijch de Antuérpia, Hadewijch II, Beatriz
de Nazaré, Mechthild de Magdeburgo, Margarida Porete, Lutgardes de
Tongeren, Yvette de Huy, Maria de Oignies e Cristina a Admirável constituem a
base da mística ulterior e, finalmente, de toda a mística ocidental. Inspiram
Ruusbroec, Tauler e Eckhart.
74
Enquanto movimento de leigos, o Movimento Beguinal, foi desde muito cedo,
alvo da desconfiança eclesiástica. A primeira notícia de reprovação a esse
grupo encontra-se num pequeno tratado Scandalis Ecclesiae redigido pelo
franciscano Gilbert de Tounai e destinado ao Concílio de Lyon de 1274. Em
uma seção intitulada de Beghinis, a obra ataca as interpretações da Escritura e
72
Ibidem, p.1345.
73
A grande heresia do século XII, o Catarismo prega a oposição à matéria, à carne, da qual é
preciso se liberar. Os cátaros reprovam o casamento e a procriação; pregam uma ascese
severa, a espiritualização do culto (a rejeição de cerimônias exteriores, de imagens, dos
sacramentos). Na segunda metade do século XII o catarismo está estabelecido no sul da
França e a ville d’Albi é um de seus centros mais importantes, daí a denominação albiguenses.
74
José, COMBLIN. Vocação para a Liberdade, p.127..
43
o uso da língua vulgar para a leitura da Bíblia em reuniões que deviam ser
comuns entre os membros desse grupo. Mais tarde, eles foram condenados
pelo Concílio de Colonia (1306) e pelo Concílio de Viena (1311-1312)
75
. Neste
último begardos e beguinas foram englobados numa condenação comum
pronunciada por Clemente V contra o begardismo.
1.1. O Concílio de Viena e a reprovação de Bergardos e Beguinas
O Concílio de Viena
76
reprova a instituição dos Begardos e Beguinas em dois
decretos. No primeiro que diz respeito principalmente às bequinas, consta uma
reprovação relativa à questão do hábito que elas usam, mesmo sem serem
religiosas sob a obediência de uma regra aprovada. Consta também a
acusação de que se perdem em "especulações loucas" sobre a Trindade e a
essência divina, sobre outros dogmas ou pontos de doutrina e sobre os
sacramentos. Num segundo decreto que se estende também aos Begardos, o
texto do Concílio enumera oito erros que vão se referir à ousadia de professar
que o homem pode chegar à perfeição de Cristo, ao estado de
"impecabilidade", estado em que não se necessita de jejum ou oração, não se
teme a fraqueza da sensualidade, não se deve mais obediência à autoridade
humana, nem à Igreja. Enumera também como erro a crença numa beatitude
final acessível à natureza humana intelectual ainda nesse mundo, a idéia de
que para esses perfeitos não existe mais necessidade de lutar para adquirir as
virtudes, e que a Eucaristia não requer mais a reverência (essa reverência para
eles, afirma o Concílio, faz decair do estado de contemplação já alcançado).
Os oito erros apontados pelo Concílio de Viena são os seguintes:
75
LECLERCQ, VANDENBROUCKE e BOUYER, La Spiritualité du Moyen Age. p.427.
76
O Concílio de Viena foi convocado, sobretudo para resolver a querela política em torno da
Ordem dos Templários. Esses últimos foram perseguidos pelo rei Felipe IV interessado na
riqueza dos mesmos. Segundo Richard P. McBrien, grande número de templários foram presos
em 1307 e torturados pelo rei que, de posse de confissões arrancadas sob pressão, passou a
exigir do Papa Clemente V a condenação da ordem. O Concílio de Viena acaba por dissolver a
Ordem dos Templários e decretar que todas as propriedades deles fossem transferidas aos
cavaleiros da Ordem de São João de Jerusalém, hoje conhecidos como cavaleiros de Malta.
(Cf. Richard P. MCBRIEN, Os Papas, de São Pedro a João Paulo II, p.240-241).
44
1. Quod home, in vita praesenti,
tantum et talem perfectionis
gradum potest acquirere quod
reddetur penitus iimpeccabilis et
amplius in gratia proficere, posset
aliquis Christo perfectior inveniri.
(1) O homem na vida presente
adquirir tal grau de perfeição que se
torne absolutamente impecável e nem
mais possa progredir na graça. Do
contrário, dizem, se alguém pudesse
sempre progredir, poder-se-ia
encontrar um mais perfeito que Cristo.
2. Quod jejunare non oportet
hominem nec orare, postquam
grandum perfectionis hujusmodi
fuerit assecutus, quia tunc
senssualitas est ita perfecte
spiritui et rationi subjecta quod
homo potest libere corpori
concedere quidquid placet.
(2) Conseguindo tal grau de perfeição
o homem não tem mais necessidade
nem de jejuar, nem de rezar, pois
agora os sentidos estão sujeitos tão
perfeitamente ao espírito e à razão
que o homem pode conceder
livremente ao corpo aquilo que lhe
agrada.
3. Quod illi, Qui sunt in praedicto
gradu perfectionis et spiritu
libertatis, non sunt humanae
subjecti obedientiae, nec ad
aliqua praecepta Eccle siae
obligantur quia, ut asserunt, ub
spiritus Domini ib libertas.
(3) Aqueles que se encontram nesse
grau de perfeição nesse espírito de
liberdade não são sujeitos a nenhuma
autoridade humana, nem obrigados a
algum preceito da Igreja, porque,
como afirmam, “onde há o espírito do
Senhor, há a liberdade”.
4 Quod homo potest ita finalem
beatitudinem, secundum omnem
gradum perfectionis, in praesenti,
assequi sicut eam in vita obtinebit
beata.
(4) O homem pode receber na vida
presente a beatitude definitiva
segundo todos os graus de perfeição,
como a obterá na vida bem-
aventurada.
5.Quod quaelibet intellectualis
natura in seipsa naturaliter est
beata, quodque anima nom
indiget lumine gloriae ipsam
elevante ad Deum videndum et
eo beate fruendum.
(5) Cada natureza intelectiva é bem-
aventurada naturalmente em si
mesma, e para ver Deus e para gozá-
lo na beatitude da alma não tem
necessidade da lua da glória que a
eleve.
6. Quod se in actibus exercere
virtutum est hominis imperpecti, et
perfecta anima licentiat a se
virtutes.
(6) Exercitar-se na virtude é próprio do
homem imperfeito, e a alma perfeita
não tem necessidade disso.
7. Quod mulieribus osculum, cum
ad hoc natura non inclinet, est
mortale peccatum; actus autem
carnalis, cum ad hoc inclinet,
peccatum nom est, maxime cum
tentatur exercens
(7) Beijar uma mulher é pecado
mortal, já que a natureza não inclina
para isso, mas o ato carnal, já que a
isso a natureza se inclina, não é
pecado, especialmente quando quem
o exerce é tentado.
45
8. Quod, in elevatione corporis
Jesu Christi, non debent
assurgere, nec eidem reverentiam
exhibere, asserentes quod esset
imperfectionis eisdem si a puritate
et altituudine suae
contemplacionis tantum
descenderent quod circ
ministerium seu sacramentum
eucharistiae ant circa passionem
humanitatis Christi, aliqua
cogitarent.
(8) à elevação do corpo de Cristo, não
deve levantar-se nem mostrar alguma
reverência, pois afirmam que isso
seria sinal de imperfeição, se
descessem da pureza e da altura de
sua contemplação a ponto de meditar
sobre o mistério ou o sacramento da
Eucaristia ou sobre a paixão da
humanidade de Cristo.
(Censura:) Nos sacro approbante
Concilio sectam ipsam cum
praemissis erroribus damnamus
et reprobamus omnimo inhibentes
districtius, ne quis ipsos de cetero
teneat, approbet vel defendat.
(Censura:) Nós, com o consenso do
santo Concílio, condenamos e
reprovamos totalmente esta seita com
os seus erros, proibindo severamente
que no futuro alguém possa sustentá-
los, aprová-los ou defendê-los. (DS
891-899)
Essas teses do Concílio de Viena, afirmam os autores, tem certamente
como referência a obra Le Mirouer des Simples Ames de Marguerite Porete
onde ela diz, por exemplo, destaca Leclerqc
77
, que a alma aniquilada deve
despedir as virtudes e não estar mais a seu serviço, que essas almas não
precisam mais das consolações e dos dons de Deus:
Algumas dessas teses, sob uma forma mais aceitável, se lêem em um tratado
considerado por longo tempo como obra anônima de um espiritual francês ou
flamengo do fim do XIII
o
século: o Miroir des simples âmes, conhecido somente
em versão inglesa. O autor diz, por exemplo “que a alma aniquilada deve
dispensar as virtudes e não estar mais a seu serviço, porque uma tal alma não
precisa mais das consolações de Deus nem de seus dons, e não deve se
preocupar e nem saberia mesmo fazê-lo, porque é Deus somente Quem retém
sua atenção e essas coisas fariam impedimento”. Essas proposições são
precisamente aquelas que valeram a fogueira a uma devota originária de
Valenciennes, Marguerite Porete, em Paris em 1310. Isso que autoriza a
considerar aquela como autora do Miroir.
78
77
LECLERCQ e outros, La Spiritualité du Moyen Age. p. 428.
78
Ibidem, p. 428-429. Na nota 59, esses autores fazem referência à edição inglesa de 1927, a
saber, Ed. Cl. Kirchberger, coll Orchards Series, 15, Londres. Comentam também nessa nota a
recente (o livro é de 1961) descoberta do original francês contido no manuscrito Chantilly,
Musée Condé 986. Essa edição inglesa, ainda com autoria equivocada deve ter sido aquela
que teria impressionado tanto Simone Weil e que, segundo Luisa Muraro, se faz presente em
suas duas últimas obras: Cahiers d’Amerique e Nuits écrits a Londres (cf. CIRLOT e GARÍ,
Lamirada interior, p.251)
46
De Fato, sobre o tema da despedida das Virtudes, podemos ler no próprio
Mirouer, capítulo sexto uma belíssima poesia, onde Marguerite descreve sua
paixão, sua passagem de escrava, obediente às virtudes de todo coração e sua
posterior libertação:
Eu era estão vossa escrava,
agora disso estou libertada.
Eu tinha posto em vós todo meu coração,
eu o sei:
Eu com isso tenho vivido um certo tempo,
em grande emoção.
Eu com isso tenho sofrido muitos graves tormentos,
muitas penas suportei;
Maravilha é que, absolutamente,
eu tenha disso escapado viva
Mas se é assim, pouco me importa:
de vós, eu estou separada,
Do que eu agradeço a Deus no alto;
eis uma bela jornada!
79
Observando os decretos do Concílio de Viena na sua relação com a obra de
Marguerite podemos ver como Leclercq, que o documento do Concílio compõe
uma condenação geral contra beguinas e begardos usando como referência o
Mirouer que já havia sido condenado em um processo inquisitorial que se
estendeu ao longo de um ano entre março de 1309 e abril de 1310. O Concílio
estabelece assim uma relação entre o Mirouer e todos os agrupamentos
espirituais que partilham dos elementos doutrinais veiculados pelo “livre
espírito”. O livro de Marguerite Porete ou os “erros” apontados pela inquisição
estarão, portanto, em estreita relação com a condenação geral dos “Irmãos do
Livre Espírito”.
79
Marguerite PORETE, op. cit,cap.6, p. 57.
47
1.2. Os Irmãos do Livre Espírito
Fundamental para a compreensão dos “Irmãos do Livre Espírito” são os
estudos de Romana Guarniere sobre esse movimento, estudo inclusive que a
levou, como já foi dito, à descoberta da autoria do Mirouer. Esse trabalho
encontra-se publicado no Archivio Italiano per la storia della pietá IV, Roma,
com o título Il movimento del Libero Spirito. Testi e documenti, 1965 (p.353-
708).
Esse movimento, define essa autora, busca uma forma de ascese, pessoal e
coletiva, extremamente austera, e uma forma de mística de união com Deus
muitas vezes excessiva
80
. Seus adeptos tendem, por um lado, a um misticismo
que arrisca de não ter em conta mais que a liberdade interior e uma
liberalidade que enfrenta toda lei.
Nas comunidades formadas a partir dessa inspiração, se estabelecia uma
distinção nítida entre os incipientes, os proficientes e os perfeitos. Os perfeitos
se diziam reis e rainhas e tinham consciência de que formavam a verdadeira
Igreja, a Igreja espiritual
81
.
O denominador comum que uniu esses vários grupos, para Leclerqc, foi
constituído por um certo panteísmo
82
, pela recusa da hierarquia, pela
indiferença a respeito dos sacramentos e pela licença moral erigida em virtude
para os perfeitos
83
.
A partir dos estudos de Romana Guarnieri, pode-se perceber com clareza as
pontes que se estabelecem entre esse movimento espiritual herético e o
Mirouer. Ela considera o Mirouer de Marguerite Porete como uma das fontes
para o estudo sobre o movimento do “livre espírito” e o processo e execução de
Marguerite como um dos episódios em que se percebe melhor o alcance e o
significado desse movimento
84
.
80
Cf. Romana GUARNIERI, op. cit, p. 1241.
81
Cf. Ibidem, op. cit, p. 1245 e 1246.
82
Panteísmo aqui significa a crença na encarnação do Espírito Santo nos fiéis que diviniza o
humano e abole o mal.
83
LECLERQC e outros, op. cit. p.429.
84
Cf. Romana GUARNIERI, op. cit, p. 1245 e 1246.
48
Essa postura condenatória não foi, todavia, unívoca. O livro de Maguerite foi,
antes da sua primeira condenação em 1306, avaliado e aprovado por três
nomes importantes, representantes dos grandes grupos que participavam das
discussões teológicas da época: um frade menor, um monge cisterciense e um
mestre em teologia da Universidade de Paris. A texto da aprovação figura à
maneira de epílogo nos manuscritos das versões latina e italiana e a modo de
prólogo na versão inglesa.
85
Aprovação e reprovação mostram que a obra está profundamente implicada no difícil
discernimento da hierarquia eclesial a respeito dessa dinâmica espiritual que envolve
o “Movimento Beguinal” e os “Irmãos do Livre Espírito”. Essa dificuldade, no entanto,
não impediu que o livro sobrevivesse à trágica morte de sua autora e que fosse
reconhecido como uma obra que apresenta uma espiritualidade de grande sutileza e
que traz importantes reflexões doutrinais e teológicas.
Para perceber um pouco mais da autora e sua obra consideramos, ser preciso,
depois de visualizada a relação de Marguerite e do Mirouer com o “Movimento
Beguinal” e o “Movimento do Livre Espírito”, estabelecer as distinções, os
elementos que não permitem uma identificação imediata da escritura de
Marguerite com o que se estabeleceu como doutrina comum veiculada pelo
“Movimento do Livre Espírito”. Essa distinção nos parece clara quando Paul
Verdeyen coloca lado a lado o processo contra Marguerite e o processo contra
Guiard de Cressonessart, condenado por defender o comportamento de
Marguerite e por não reconhecer a autoridade do Papa.
2. O Processo de inquisição contra Marguerite Porete e Guiard de
Cressonessart
Os atos do processo contra Marguerite e seu defensor Guiard de
Cressonessart foram conservados nos Archives Nacionales de Paris e nunca
foram editados integralmente. No entanto, pode-se encontrar em estudos
históricos do século XIX, interessados pela documentação relativa à inquisição,
85
O texto da aprovação encontra-se na tradução espanhola editada por Blanca Gari, p.197-
198.
49
publicação de partes do processo. Segundo Verdeyen, essa documentação só
vai ser retomada na segunda metade do último século pelo historiador
americano Robert E. Lerner num estudo sobre o reinado de Felipe, o belo.
Lerner, no entanto, observa Verdeyen, toma o caso de Guiard e o interpreta
como uma peça separada. De fato, completa esse autor, esse begardo
pertence a outro mundo que não ao dessa beguina culta que ele pretende
defender
86
. No artigo que usamos como referência, Verdeyen trabalha com as
peças oficiais do processo e examina também as fontes históricas secundárias
que são a aprovação do Mirouer e o testemunho das crônicas da época, a
saber, crônica de Guillaume de Nagis (morto em 1300) continuada pelos
beneditinos de St-Denis, a crônica de Géraud de Franchet (morto em 1271)
continuada por dominicanos, as grandes crônicas de França, consideradas
como uma história quase oficial dos reis de França, escritas pelos monges de
St-Denis e a crônica de Jean d’Outremeuse.
O processo tem início com a condenação do livro de Marguerite Porete por
teólogos da universidade de Paris em 11 de abril de 1309. Vinte e um mestres
em teologia são convocados pelo inquisidor Guillaume de Paris para fazer o
julgamento de um livro de onde se havia tirado quinze artigos suspeitos. Não
se pode saber pelos documentos se esses teólogos tiveram acesso à obra ou
se apenas julgaram os artigos isolados. Antes do processo oficial, o Mirouer
havia sido condenado por Guy de Colmieu, bispo de Cambrai que, em 1306 fez
queimar o livro em praça pública na cidade de Valenciennes em presença de
sua autora e proibiu, sob pena de excomunhão, que ela difundisse ou pregasse
suas idéias. Consta que Marguerite teria sido detida em meados de 1308 por
Philippe de Marighy, sucessor de Guy de Colmieu e enviada à Paris, acusada
de propagar o livro aos simples e de enviá-lo ao bispo Châlons sur Marne nos
anos que sucederam à primeira condenação. Marguerite teria ficado detida em
París para ser julgada pelo Tribunal da Inquisição. O inquérito teria sido
conduzido pelo inquisidor geral do reino, o dominicano Guillaume de Paris.
87
O processo-verbal que relata a condenação do livro menciona o primeiro e o
décimo quinto artigo julgados, não se sabe, portanto, qual o teor dos quinze
86
P. VERDEYEN, op. cit, p. 48.
87
Cf. CIRCOT e GARÍ, op. cit., p.225-226.
50
artigos que foram julgados e condenados. Do texto em latim citado por
Verdeyen destacamos o trecho referente aos artigos condenados:
Quorum articulorum primus talis est: ‘Quod
anima adnichilata dat licentiam virtutibus
nec est amplius in earum servitute, quia
non habet eas quoad usum, sed virtutes
obedient ad nutum’. Item decimus quintus
articulus est: ‘Quod talis anima num curat
de consolationibus Dei nec de donis eius,
nec debet curare nec potest, quia tota
intenta est circa Deum, et sic impediretur
eius intentio circa Deum’.
88
Desses artigos, o primeiro é o seguinte:
‘Que a alma aniquilada dá licença às
virtudes não está na servidão delas,
porque não as tem quanto ao uso, mas as
virtudes a obedecem a um sinal.
Igualmente o décimo quinto artigo é: que
tal alma não cuida das consolações de
Deus nem de seus dons, porque ela é toda
voltada para Deus, e assim estaria
impedida sua intenção para Deus.
O documento anteriormente citado, e esse foi o motivo da obra ter sido
conservada como anônima, não menciona o nome da autora do livro
condenado nem o título do livro. E. College e R. Guarnieri, no entanto, fazendo
a aproximação entre os artigos condenados e o Mirouer, localizaram o primeiro
artigo sobre a despedida das virtudes no sexto capítulo do Mirouer e o décimo
quinto no capítulo XV, onde ela fala sobre o sacramento do altar. Essa
aproximação, comenta Verdeyen, não deixa dúvida de que é ao Mirouer que o
processo se refere
89
. O nome de Marguerite Porete é citado somente nas atas
de 9 de maio de 1310.
Segundo as atas do processo, Marguerite teria se recusado obstinadamente a
prestar juramento
90
e a sofrer inquérito regulamentar, fato que levou o
inquisidor a pronunciar a excomunhão maior. Por um ano ela permanece nessa
recusa.
É importante ressaltar que o processo de Marguerite é um processo exemplar
na medida em que o inquisidor, na condução do processo, vai evitar a
88
P. VERDEYEN, op. cit, p. 51.
89
Ibidem, p. 52.
90
Segundo Verdeyen, o Concílio de Béziers (1246) teria imposto que todas as pessoas citadas
diante do Tribunal da Inquisição deveriam jurar de dizer a pura e inteira verdade sobre tudo o
que sabem sobre a própria vida, também de todos os vivente e mortos. Esse concílio não fala
de uma possível recusa, todavia, o Manual do Inquisidor de Bernard Gui, de 1325 vai dizer
claramente que essa recusa constitui, ela mesma, uma presunção de heresia. O artigo de
desse autor cita do Manual do Inquisidor, capitulo V que trata da seita dos Begardos mostrando
que Bernard Gui descreve com precisão os procedimentos seguidos por Guillaume de Paris em
1310. (cf. VERDEYEN, op. cit., p.63-64)
51
interferência do poder secular
91
. Ele segue os procedimentos de forma
exemplar: a obrigação de vir a público; o constrangimento a prestar juramento;
a ameaça de excomunhão em caso de recusa; a condenação final após um
ano de excomunhão.
Um ano após a primeira condenação dos artigos do livro pelos mestres em
teologia da Universidade de Paris, se realiza uma segunda consulta. Foram
convocados, então, para a reunião preparatória em março de 1310 onze dos
teólogos que participaram da condenação do livro no ano anterior, sendo que
cinco deles eram professores de direito.
Sobre essa segunda consulta aos teólogos, existem documentos relativos à
reunião preparatória de março de 1310, à primeira consulta aos canonistas em
3 de abril e a uma segunda consulta aos canonistas de 09 de abril de 1310.
No documento relativo à reunião de preparação para a segunda consulta, está
citado Guiard de Cressonessart, begardo da diocese de Beauvais que se erigiu
publicamente como defensor e partidário de Marguerite, tornando-se ele
mesmo suspeito de heresia e associando o seu destino ao dela.
92
Segundo P.
Verdeyen, após essa reunião preparatória, os dois processos passaram a ser
tratados como uma única tarefa. Nos documentos da primeira consulta, aos
canonistas de 3 de abril de 1310, vai ficar claro que se trata de dois casos
justapostos, ligados, mas não identificados. Dois casos que estão ligados
porque se trata da mesma inspiração espiritual, ou seja, a inspiração do "livre
espírito"; no entanto, não identificados, pois se trata de duas posturas
radicalmente diferentes. De um lado esta mulher erudita, instruída e solitária,
autora de uma obra mística-teológica já reconhecida como obra de grande
sutileza e aprovada por três personagens ligados à elite eclesial (um frade
Menor, um cantor da abadia cisterciense de Villers e um teólogo da
Universidade de Paris). De outro lado, um begardo visionário, influenciado por
91
Em paralelo ao julgamento de Marguerite e Guiard está ocorrendo o julgamento dos
templários. Em relação aos últimos existe uma disputa entre o rei e o papa Bonifácio VIII em
torno do direito de condenar e se apossar dos bens dos templários. Essa disputa tem
desdobramentos no que diz respeito ao modo de proceder da Igreja em relação ao julgamento
das heresias. Alguns autores vão entender que o julgamento de Marguerite Porete é uma peça
no jogo político de interesses que envolve o Papa, o Rei e a Ordem dos Templários.(Cf.
VERDEYEN, op. cit. p.85)
92
P. VERDEYEN, op.cit, p. 55.
52
suas visões apocalípticas, e que seria líder de uma confraria religiosa cujo
patrono seria João Batista.
Depois dessa primeira consulta, o processo traz os documentos sobre uma
segunda consulta, documentos interessantes, observa Verdeyen, porque
resumem os elementos capitais que motivaram a condenação dos dois
acusados.
Segundo esses documentos, Guiard quando de seu último interrogatório,
prestou juramento e fez seu depoimento onde responde perguntas sobre sua
identidade e missão, sobre a sua relação com os movimentos espirituais e com
as autoridades eclesiais. Marguerite ao contrário, permanece em silêncio, é,
portanto, julgada e condenada não com base a um depoimento próprio mas no
testemunho de três bispos (Guy de Colmieu, Phillippe de Marigny, Jean de
Châteauvillain) e do inquisidor de Lorraine.
2.1. Uma beguina erudita e um begardo visionário
A análise do material referente à segunda consulta, e uma observação atenta
do desenvolvimento dos dois processos nos oferece grande orientação na
percepção de quem teria sido Marguerite, e de como ela e sua obra teriam sido
conhecidas e julgadas pelos contemporâneos. Esses dados nos permitem
perceber o perigo que sua obra representou, a contribuição sutil e delicada que
deu à espiritualidade cristã, assim como a força de seus argumentos
teológicos.
A fala de Guiard no inquérito possibilita, por um lado, perceber claramente o
tipo de apropriação que o movimento Beguinal teria feito do Mirouer, e por
outro captar elementos para a reflexão sobre o temor da hierarquia e dos
teólogos em relação às conseqüências concretas da divulgação de uma obra
mistico-teológica redigida em língua vulgar.
Guiard vai declarar sua identidade de enviado de Deus e confessar sua
pertença a uma sociedade de homens libertos denominados aderentes do
53
Senhor
93
. Ele vai afirmar diante do Tribunal da Inquisição ser o Anjo de
Filadélfia, uma das Igrejas citadas no livro do Apocalípse (Ap 3, 7-13) cuja
missão, era defender e salvar os fiéis por ele nomeados como “adeptos do
Senhor”
94
Afirma ainda que sua vocação lhe foi revelada por uma iluminação
súbita e instantânea como um abrir de uma porta, e que essa iluminação lhe
deu a graça de uma inteligência mais profunda das escrituras. Essa sua missão
de salvação e abertura da porta teria sido dada diretamente por Cristo aquele
que tem a chave de David, a chave da excelência, pois, seu vigário (o papa),
teria somente a chave do ministério.
Segundo as atas do processo, a Igreja no entendimento do begardo, seria
apenas uma, mas dentro dela, existiriam muitos estados e, entre esses vários
estados, encontrar-se-ia o estado dos libertos, aqueles que tudo abandonaram
para viver segundo o rigor evangélico e mostrar sua luz através uma conduta
exterior que fosse reflexo de um ardor interior. Esses são os que fazem parte
da Igreja Filadélfia
95
.
Ele menciona, durante o inquérito, uma confraria, homens que usam uma
túnica longa e um cinturão de couro e que pertenceriam à sociedade dos
aderentes do Senhor. Essa sua sociedade teria como patrono São João
Batista.
Através do relato da vocação de Guiard, observa Verdeyen, é possível afirmar
que ele teria sido profundamente tocado pelo comentário sobre o Apocalipse
de Pierre Jean Olivi (1248-1298), comentário que inspirou a conduta dos
espirituais da ordem franciscanas e de begardos. Esse texto teria sido
traduzido em língua vulgar e era considerado muito suspeito aos olhos da
inquisição. O depoimento de Guiard remete também à figura de Dolcino,
continua esse autor, chefe da seita dos Apostólicos, condenado e queimado
em 1307. Dolcino atribuía a si mesmo o título de Anjo de Tiatira (Ap 2, 18-29) e
anunciava a vinda de um papa santo, enviado miraculosamente e escolhido por
93
Cf. P. VERDEYEN, op.cit, p. 65-70. Esse autor traz o texto em latim referente ao último
interrogatório onde Guiar presta juramento e faz sua confissão.
94
Cf. Ibidem, p. 65.
95
Esse entendimento é ponto capital em seu processo já que revela um desacordo em relação
ao entendimento tradicional de que existem na Igreja apenas três estados: clerical, religioso e
laical.
54
Deus mesmo e não pelos cardeais. A esse papa, Dolcino deu o título de Anjo
de Filadélfia.
Da análise do interrogatório também se conclui, e isso destacamos de forma
especial, que Guiard teria conhecido e lido o Mirouer de Marguerite e teria se
apropriado dele à sua maneira.
O tema da Chave de Davi, a chave da excelência que abre a porta da
inteligência das Escrituras, estaria relacionado com a referência do Mirouer ao
gentil Loingprès”, que teria as chaves da secreta clausura da alma
contemplativa. Esse tema que na obra de Marguerite supõe um entendimento
espiritual, é interpretado por esse begardo como uma maneira de se
desembaraçar da autoridade eclesiástica. Ele não só afirma que recebeu sua
missão diretamente do Cristo como inventa uma distinção entre a jurisdição
excelente do Cristo e a jurisdição ministerial do Papa, comenta Verdeyen
96
.
Quando Guiard fala da Igreja e dos estados eclesiais, ele estaria assim como
Marguerite distinguindo entre esses estados de vida, um estado de vida
especial, o estado dos perfeitos. Não se pode deixar aqui de entender que esse
tema do estado de perfeição se encontra presente no Mirouer, no que diz
respeito à distinção que Marguerite faz ente “Santa Igreja a Grande” e “Santa
Igreja a Pequena”. No entanto, está claro que essa distinção no Mirouer não
tem caráter institucional, mas místico, e o privilégio de pertencer à “Santa Igreja
a Grande” supõem um doloroso processo de aniquilamento.
Embora se possa estabelecer uma aproximação entre o depoimento de Guiard
e a obra de Marguerite, não se pode deixar de perceber a diferença. A
espiritualidade de Guiard conclui Verdeyen, é muito mais tributária de certos
comentários do Apocalipse que do Mirouer. Sua atitude anti-hierárquica o
coloca próximo à posição dos begardos meridionais citados por Bernard Gui
em seu Manual do Inquisidor. Sua referência à proteção de João Batista
97
sugere um ideal de vida acética e de grande pobreza como a dos begardos
96
Cf. P. VERDEYEN, op. cit. p. 72.
97
Durante o inquérito, Guiard é questionado sobre a sociedade a que pertence e sobre o uso
do hábito. Em sua resposta fala de homens que usam uma túnica longa e um cinturão de couro
e que o elemento essencial para os “aderentes do Senhor” é o cinturão de couro. Fala também
que sabendo da proibição da Igreja em relação à formação de novas ordens, tomou como
patrono do Antigo Testamento.
55
meridionais que estavam sob a proteção dos “espirituais” franciscanos
98
. Fica
claro, portanto, que Guiard foi considerado herético porque afirmou a divisão no
seio da Igreja militante e não reconheceu a supremacia total do papa no
governo da Igreja universal.
Essa diferença, que mostra que Guiard não compreende quase nada do
conteúdo sutil do Mirouer, fica mais explicita quando se acompanha o
desdobramento diferente de cada processo. Para os canonistas, Guiard é
herético, porém, por misericórdia, consideraram que ele não deveria ser
entregue ao braço secular se se arrependesse diante da sentença ou
imediatamente após, como prescreve o canon. Marguerite, ao contrário, foi
condenada como relapsa e entregue ao braço secular para ser executada, pois
a inquisição vai entender que seu silêncio obstinado e sua recusa em prestar
explicações diante da inquisição, já são prova de que ela não queria renegar a
doutrina mistico-teológica que procurou esmiuçar de maneira detalhada no
Mirouer.
Não se pode negar, todavia, que o processo representa talvez uma peça
no jogo político de interesses que se desenrola em torno da questão dos
templários, querela que reflete a disputa pelos bens desses últimos. Para os
autores, a execução de Marguerite e a condenação de Guiard de
Cressonessart teriam querido demostrar que apenas à Igreja pertence a
autoridade para julgar as heresias e sentenciar os hereges. No entanto essa
explicação ainda não é suficiente. Os estudiosos ainda se referem ao problema
do reconhecimento da autoridade religiosa da Igreja pelos simples. Nessa
questão estão imbricadas também as novas ordens mendicantes, franciscanos
e dominicanos responsáveis pela condução espiritual dos leigos. Neste sentido,
Guiard teria sido condenado porque enfrentou franciscanos e dominicanos com
sua pregação sobre um estado de vida eclesial mais rigorosa e evangélica,
mais mendicante que os mendicantes integrados na hierarquia eclesial, aceitos
e reconhecidos como portadores dos rumos da espiritualidade na Igreja.
Marguerite, por sua vez, teria também inquietado as autoridades hierárquicas
com seu livro e sua discussão em torno de pontos que são cruciais para a
dogmática como, por exemplo, a questão da presença real de Jesus Cristo na
98
Ibidem, p.77.
56
hóstia consagrada ou discutindo pontos fundamentais para a teologia moral
como o lugar das virtudes no esforço de alcançar maior perfeição na vida
cristã. Talvez, no entanto, e a essa hipótese que nos inclinamos, a atitude mais
ousada de Marguerite teria sido a de escrever um tratado místico-teológico em
língua vernácula. O Mirouer não é um espelho comum como tantos que se tem
notícia nessa época e que representaram um estilo de instrução religiosa, o
Mirouer é também um “romance de amor”.
3. Marguerite Porete: Uma mulher que se fez espelho de Deus
O livro de Marguerite, Le Mirouer des Simples Ames, constitui-se como já foi
dito, numa alegoria mística sobre o caminho que conduz essa alma à união
perfeita com seu Criador e Senhor. O aniquilamento é seu grande tema e é
descrito como o estado em que as almas simples adquirem a mais plena
liberdade e o saber mais alto. A alma aniquilada, amorosa de Deus, Marguerite
sempre reafirma, recebe mais saber do que o contido nas escrituras, mais
compreensão do que a que está no alcance, capacidade ou do trabalho
humano de alguma criatura. A alma sendo nada, possui tudo e não possui
nada, vê tudo e não vê nada, sabe tudo e não sabe nada
99
. Essa alma
aniquilada é a que se torna capaz de experimentar a “paz de caridade”, como
diz Amor no Mirouer:
Amor: Mas há uma outra vida, que nós chamaremos “paz de caridade na vida
aniquilada”. É disso que vamos falar, em busca de que se possa achar
I Uma alma
II que se salve pela fé
sem obras
III que seja somente do amor
IV que não faça nada por causa de Deus
V que não deixe nada por causa de Deus
VI a quem nada se possa ensinar
VII a quem nada possa retirar
VIII nem dar
IX e que não tem vontade”
100
99
Marguerite PORETE, op.cit., cap.7, p.58
100
Ibidem, cap.5, p.55.
57
Esse aniquilamento supõe, no entanto, uma ascese dolorosa, é um itinerário de
desprendimento de tudo o que representa alguma segurança: os
mandamentos, as virtudes, os conselhos, a natureza, o espírito e finalmente
desprendimento da vontade, do desejo que é o grande motor que vai
alavancando a alma ao encontro com a Deidade. Como bem interpreta Blanca
Garí:
(...) no caminho interior que traça O espelho, o desejo é um dos grandes
impulsos e instrumentos da alma; Marguerite não o rechaça nem o reprime, mas
lhe dá acolhida e o libera, e, como a donzela do primeiro capítulo que um dia se
enamorou de Alexandre, põe em jogo sua imaginação, sua vontade e seus
“métodos” para sonhar com seu rei. Essa vontade e esse desejo para fazer livre
a alma, para arrastá-la e elevá-la até a experiência unitiva, hão de ser, por assim
dizer, desprendidos, liberados dos objetos do desejo, concentrados no livre fluir
em direção ao divino; só então, nesse fluir, nesse voar cada vez mais alto, o
desejo se despoja de conteúdo para ao final despojar-se de si mesmo.
101
A ascese da alma aniquilada é, portanto, um itinerário em que a alma é
chamada a morrer várias vezes, e esses morrer para Marguerite é um estregar-
se totalmente, radicalmente. Para ela, depois da radical escravidão, vem a
liberdade. A alma deve, então, ser escrava na observância dos mandamentos,
na busca de uma vida de virtudes, na escuta dos conselhos, deve se sujeitar à
obediência na luta contra a vontade do espírito. Atravessar esses estados
iniciais para chegar, num quarto estado, através da meditação e da
contemplação, no estado da perfeição de espírito. Nesse estado a alma se
sente ofuscada pela claridade do Amor e, embebedada em suas delícias,
acredita estar no auge da união mística. No entanto, para Marguerite, esse
ainda não é o estágio final. Enquanto a alma conserva a faculdade da vontade,
um querer próprio em si mesma, ainda não está apta para a experiência da
perfeita liberdade.
No relato de Marguerite Porete, há então mais caminho a percorrer. No quinto
estado, ela descreve, a alma vai enfrentar a morte ao espírito, cegueira. Por
iluminação súbita do Espírito Santo, ela se vê como um nada formando um ser
único com o pecado e vê a Deus como o Tudo. Ela é então atraída por Deus,
único que pode nutri-la. Compelida a transportar sua vontade, transporta-se do
101
Blanca GARÍ, El camino ao “País de la liberdad” em El espejo de las almas simples, DUODA
Revista de Estudios Feministas 9 (1995), p.55.
58
nada do pecado onde está para estabelecer morada em Deus, a alma é
transformada em Deus (dentro de Deus), pelo Amor.
Depois desse, em seu itinerário, a alma tem ainda duas etapas até ser, ela
mesma, espelho. Esvaziada de si mesma, absorvida da "deidade", reflete a
claridade. Não pode ser encontrada, porque não existe ali, onde existia a alma,
nada mais que Deus.
3.1. A metáfora do espelho
A metáfora do espelho é ligada, na filosofia ao conhecimento de si e de Deus.
A alma, em virtude da semelhança, espelha Deus, ela é “Imago Dei”. Neste
sentido, o espelho é metáfora que evoca a experiência de Deus.
Na Idade média, surge um grande número de obras que, em seus títulos,
exibem a palavra speculum, ou sua equivalente em língua vernácula. Essas
obras podem ser divididas em dois grupos. O grupo dos "espelhos instrutivos",
como o Speculum Majus de Vincent de Beauvais (cerca de 1256) que com
seus 4 escritos de menor amplitude Speculum naturale, morale, doctrinale,
historiale, engloba as grandes ramificações do saber da época
102
. Esse grupo
visa enriquecer o conhecimento. Esses "espelhos" vão servir de modelo às
enciclopédias inglesas posteriores como o Speculum mundi de John Swans
(1635)
103
. O que nos interessa, no entanto, são as obras que fazem parte de
outro grupo, as dos "espelhos exemplares" ou normativos. Essas obras tinham
como objetivo iluminar a vida moral ou espiritual.
Santo Agostinho vai inaugurar o gênero literário com seu Speculum Quis
Ignorat. Nessa obra, ele recolhe textos escriturísticos, centrando-se nos
mandamentos e em orientações morais, com o objetivo de possibilitar que o
leitor, como que colocado diante do espelho, veja em que medida tem
progredido nos bons costumes e o que ainda falta.
104
No início do século XIV é
muito conhecido o Speculum humanae salvationis, espécie de bíblia rimada e
102
Margot SCHIMIDT, Miroir. Em: Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et Myistique, Doctrine
et Histoire, p. 1292.
103
Ibidem, p. 1292.
104
Ibidem, p. 1292.
59
moralizante que expõe a história da salvação desde a queda dos anjos até o
julgamento final.
Grande parte dos “espelhos exemplares” é dirigida a uma categoria particular
de cristãos. O Speculum Virginum, por exemplo, que é uma obra do século XII,
largamente difundida, é dirigida aos religiosos e está marcado por uma idéia de
progresso humano pela fé e pela virtude, vê a virgindade consagrada como
ápice, sentido mais nobre da vida. Os "espelhos dos pecadores" são muito
numerosos. Outros tantos escritos são também conhecidos como Speculun
Monachorum. Do século XIII ao XV são numerosos os Speculum Sacerdotum
ou Sacertodale. Existem também os "espelhos dos leigos" que se apresentam
em latim ou em língua vernácula.
A obra de Marguerite Porete, Le Mirouer des Simples Ames, escrita em língua
vernácula, estando dentro de um contexto religioso, é "espelho exemplar", isto
é, um escrito inserido num gênero literário pertencente à tradição cristã, com
intenção de "instruir" a respeito de um itinerário espiritual. Por outro lado, o livro
não se restringe à função religiosa, é uma obra claramente marcada por
elementos profanos. É possível afirmar, que no seu Mirouer, a autora vai lançar
mão de conceitos presentes na literatura cortesã, na experiência do "Amor
Cortês", que servirão de referências na tentativa de descrever seu itinerário
espiritual. O livro, portanto, transborda significados simbólicos em duas
direções por que bebe de duas vertentes, da simbólica do espelho considerada
no âmbito religioso e da simbólica do espelho, considerada do âmbito profano.
3.2. A simbólica do espelho na tradição cristã antiga e medieval
O símbolo do espelho evoca a manifestação do transcendente na imanência. O
espelho habita o pensamento cristão em vista da tradição platônica. As idéias
inspiradas no neoplatonismo marcam a percepção do significado do símbolo
como explicita Marie Bertho:
Os Padres da Igreja propõem, à luz da fé cristã, uma compreensão profunda do
espelho como instrumento de retorno ofertado pelo criador às suas criaturas
para que possam voltar até ele. Esta acepção de espelho se funda sobre uma
idéia neoplatonica de mundo. Ela repousa sobre a teoria da emanação segundo
60
a qual a realidade é criada a partir do Um que irradia espontaneamente como o
sol que imite a luz (...) Cravelha mestra dessa cosmologia neoplatônica, os
espelhos constituem por sua combinação a armadura piramidal do Universo ao
longo do qual, de alto a baixo, refletem a hierarquia de reflexos que caem em
cascata do Um original até a matéria, degrau ultimo de dispersão caracterizado
pela multiplicidade. Mas os espelhos são também a possibilidade de remontar
essa hierarquia de reflexos de baixo ao alto e esta qualidade faz dele um
instrumento de retorno para quem o deseja.
105
A escolástica medieval estabelecendo uma ponte com a escritura, vai
desenvolver essa compreensão a partir da referência que se encontra no livro
da Sabedoria, no capítulo 7. Lá, a sabedoria é apresentada como um reflexo da
luz eterna, um espelho nítido da atividade de Deus e uma imagem de sua
bondade. Sem nada mudar, (a sabedoria) tudo renova. Entrando nas almas
boas, prepara os amigos de Deus e os profetas.
No sentido de deixar ver a transcendência, Cristo é, desde os primeiros séculos
e especialmente para a mística medieval, o espelho sem mancha, aquele que
revela o mistério de Deus inacessível. Aqui podemos citar M. Eckart, que
celebra o Cristo como espelho sem mancha onde vemos o que a eterna
sabedoria tem ordenado por todos os tempos.
106
Espelhos são também, os Anjos que, na sua transparência, comunicam a
santidade divina, objeto imediato de sua contemplação, para as essências
inferiores. Essa concepção dos anjos como espelhos será difundida graças aos
comentários que Hugo de São Victor, Alberto o grande, Tomás de Aquino e
outros autores fizeram da obra de Dionísio o areopagita.
107
Tem lugar também, na Idade Média, a utilização do símbolo do espelho para
expressar a excelência incomparável de Maria, exemplo de virgindade fecunda.
E, ao lado de Maria, os Santos são também espelhos colocados diante do
povo.
E finalmente, podemos considerar aqui o homem como espelho. O emprego
mais freqüente e mais significativo da metáfora é aquele que vê na alma um
espelho vivo que reflete a imagem de Deus, na condição de alma pura.
105
Marie BERTHO, op. cit. p. 55-56.
106
Margot SCHIMIDT, op. cit., p.1298
107
Ibidem, p.1298
61
Para M. Eckhart, em cuja obra se constata claramente a influência do Mirouer,
a alma recebe a claridade da luz e reflete. Deus vai habitar a alma como luz
que alcança o espelho e ela, inalterável, O reflete. O nascimento do Filho no
fundo da alma implica um total desprendimento, um caminho que inclui o não
ter e o não ser. A imutabilidade do espelho exprime a identidade absoluta de
Deus em oposição à alteridade da criatura. Neste sentido, está preservada a
diferença ontológica entre criador e criatura. A alma aniquilada pelo caminho do
não ter e do não ser, tem a inalterabilidade de espelho para refletir a Deidade
na sua inacessibilidade. Para M. Eckhart o homem, como espelho de Deus,
não é a fonte de si mesmo, pois ele só existe sendo reflexo de sua origem.
O símbolo do espelho aqui, no contexto medieval, em Marguerite e em Eckhart
evoca, portanto, uma experiência religiosa que se expressa como mística da
“nadificação”, experiência que não passa pela construção de si mesmo, mas
pela morte para todas as estruturas que dão suporte ao ser, para que não
sendo, a alma se lance apaixonada no abismo da Deidade.
3.3. O Mirouer entre a instrução religiosa e o romance de amor
O Mirouer, enquanto Dom de Deus para a alma apaixonada e angustiada pelo
Retorno ou pelo encontro com seu Bem Amado, é uma obra que encontra-se
tensa entre um modelo religioso e um estilo literário profano, o do amor cortês.
O livro é Espelho exemplar diante do qual pode se colocar aquele que quiser
chegar ao país da caridade perfeita. O Espelho é o itinerário de uma alma, da
alma da própria autora (isso ficará claro quando, na segunda parte,
desaparecem os personagens e o texto passa a ser escrito em primeira
pessoa) transformada por Deus, diante do qual aquele que lê, que ouve, vê a si
mesmo e vê a transformação que deve sofrer para chegar ao país da liberdade.
Por outro lado, a obra é também um “Roman” onde se percebe claramente
elementos literários inspirados no amor cortês
108
. Já na introdução, a alma (que
faz escrever esse livro) vai se confessar apaixonada como uma senhorita, que
108
No “Roman de la Rose”, poema do século XIII que trás uma síntese dos preceitos do amor
cortês, encontramos um paralelo interessante: a relação entre espelho e amor. A primeira parte
do poema, atribuída à Guillaume de Lorris se apresenta como a recitação de um sonho de
62
(...) ouviu falar ouviu falar da grande cortesia (afabilidade, doçura) e da grande
nobreza do rei Alexandre, e imediatamente sua vontade o amou por seu
grande renome de gentil homem. Mas ela morava muito longe do grande
senhor em quem ela tem colocado seu amor, ela não pode vê-lo nem tê-lo, e
tem estado amiúde desolada, porque não há nenhum outro amor que a
satisfaça.
109
Foi esse Rei que deixou o livro, que, de qualquer maneira, representa seu amor. A
obra, no esforço de verbalizar o itinerário místico da alma apaixonada, espelha o
amado inacessível. O Mirouer des Simples Ames é, neste sentido, relato de uma
experiência mística, que para se expressar, lança mão de uma construção literária
que se movimenta entre a instrução religiosa e romance cortês.
3.4. O Amor Cortês
Segundo Otávio Paz, nasce no século XI, no sul da França, na região do Languedoc
um discurso poético que vai expressar uma nova maneira de vivenciar o amor, não
como delírio individual, exceção ou extravio, mas como um ideal de vida superior. Amor
que não tem por finalidade o mero prazer carnal nem a reprodução. Amor purificado,
refinado. Otávio Paz se refere ao amor cortês como um "milagre", flor original que brota
de um chão de influências
110
.
Em seu livro, "A dupla chama", esse autor vai destacar, em primeiro lugar, o
século XII como sendo uma época de grande afluência: agricultura próspera,
juventude. O narrador vagueia por um maravilhoso jardim fechado, no interior do qual, encontra
uma sociedade alegre rodeando Amor (personificado). Esse personagem está armado de cinco
arcos e dez flechas. Ao redor dele as personificações das virtudes e das qualidades cortesãs
se entregam à alegria da dança. Explorando o jardim, o herói encontra uma fonte, o lugar onde
Narciso encontrou a morte. Com medo, ele se aproxima do espelho natural no qual Cupido tem
lançado sua semente para prender os amantes. Ele avista, dentro da imagem refletida do
jardim um buquê de rosas com um botão prestes a abrir e se dirige a ele. Nesse momento é
ferido por cinco flechas e passa a render homenagem a seu novo senhor. O herói recebe do
Amor seus mandamentos, conselhos e advertências. Nesse momento começam as provas que
ele deve enfrentar, perigos (Maledicência, Vergonha, Medo, Inveja são os obstáculos
personificados) que se interpõem aos seus esforços de se aproximar da rosa para a colher.
Razão tenta dissuadi-lo e Amigo o encoraja. A Rosa será a bem-amada ideal, simboliza todos
os valores da beleza. A conquista da rosa será a grande aventura à maneira cavalheiresca,
com aspecto de uma guerra.
O nome das personificações ajuda a decifrar a alegoria. O poema tem caráter exemplar. É a
história do Amor e não história de um amor. Na verdade o poema tem elementos de um mito de
iniciação aos mistérios do amor, um itinerário místico que passa pela preparação do neófito,
pela entrada num espaço fechado através de uma porta estreita para uma viajem ao interior,
feridas, desmaios, contrato, primeiro impacto, meio-êxito, segundo prejuízo.
109
Marguerite PORETE, op. cit., prólogo, p. 52.
110
Cf. Octavio PAZ, A dupla chama, p. 69.
63
início da economia urbana, abertura ao exterior e pelo movimento das
cruzadas. Especialmente o sul da França, ele afirma, será privilegiado por ser
lugar de entrecruzamento de influências, desde a dos povos nórdicos até a dos
povos orientais. Por conta dessas influências, destaca-se nesse contexto, uma
evolução da condição feminina (sem a qual não se pode pensar o amor cortês),
conseqüência de uma certa dignidade conferida à mulher pelo cristianismo
(desconhecida no paganismo), do contato com mulheres germânicas, mais
livres que as romanas, e da dinâmica própria do sistema feudal em permanente
guerra que fazia com que os senhores, tendo que se ausentar, entregassem às
suas esposas o governo das terras. Na perspectiva do "amor cortês", existe
uma inversão, a dama é senhora e o cavaleiro, vassalo. Uma mudança de
visão de mundo que tendia a equilibrar a inferioridade social da mulher com a
superioridade no domínio do amor.
111
A tese de Octavio Paz sobre o "amor cortês" é que este foi uma heresia, uma
dissidência, uma transgressão tanto do cristianismo, como das crenças cátaras
e da filosofia platônica do amor. A poesia provençal, acredita esse autor, teria
sido condenada pelos cátaros (se eles não tivessem sucumbido à perseguição
de Inocêncio III) por que não condiz com o rigoroso dualismo da perspectiva
gnóstica e foi, de fato, condenada pela Igreja de Roma porque desdobra numa
atitude perigosa diante do casamento na medida em que tematiza a relação
homem e mulher e condena o casamento porque consideravam um vínculo
contraído, quase sempre sem a vontade da mulher, por razões de interesse
material, político ou familiar.
Em relação ao cristianismo, às crenças cátaras, e o platonismo, o amor cortês
tem em comum uma dinâmica que supõe ascese e iniciação. Entende o amor
como elevação. Os amantes, ao menos por um momento, transcendem sua
condição temporal e se transportam para outro mundo, conhecem uma
realidade oculta não acessível pelo intelecto, mas captada pelo coração. Sua
afinidade com a erótica árabe, de onde se podem afirmar pontos de encontro
com o platonismo, se expressa especialmente, no culto à beleza física, nas
escalas do amor, no elogio à castidade (como método de purificação do desejo
111
Ibidem, p. 86.
64
e não como fim em si mesma), e na visão do amor como a revelação de uma
realidade “trans-humana”, ainda que não como uma via de chegar a Deus.
65
É interessante destacar que o "amor cortês" vai ser descrito pelos poetas
provençais como uma experiência misteriosa. Eles vão usar o termo joi para se
referir a uma estranha exaltação, ao mesmo tempo física e espiritual, uma
alegria que ultrapassa o gozo, um estado de felicidade indefinível. Alguns
chegam a aproximar essa experiência da dos místicos e entendê-la como uma
elevação da alma, uma espécie de êxtase. A joi, no entanto, não nega o gozo
da possessão carnal. Descreve então, uma novidade, na medida que o gozo é
refinado pela espera e pela mesura. A joi é graça natural concedida aos
amantes que conseguem depurar seus desejos.
O "amor cortês" canta o amor que começa com a admiração (a visão do corpo
da mulher amada), que é sucedida pelo entusiasmo (que aumenta com a
espera e a mesura), que enfrenta obstáculos e culmina numa paixão que leva à
felicidade. O amor, nessa perspectiva, é fruto de uma sociedade refinada. A joi
é experiência que resulta da união entre o gozo e a contemplação, o mundo
natural e o espiritual.
112
É nesse estilo literário, expressão de uma visão de mundo, que encontramos
referências para compreender melhor a obra de Marguerite Porete.
113
112
Ibidem, p. 87-88.
113
Teremos oportunidade de voltar ao tema da relação entre o Mirouer e o amor cortês no
capítulo 5.
66
3.5. Um espelho para falar do Amor
No Mirouer, como num romance cavalheiresco existe uma batalha entre o
“entendimento da Razão” e o “entendimento do Amor”. Temor, Tentação e
Vontade Desobediente sob o comando das Virtudes e da Santa Igreja, a
pequena por um lado, e por outro Desejo, Discernimento e Verdade sob o
comando das três Virtudes teologais: Fé, Esperança e Caridade. Como no
Romance da Rosa, explica Bertho, as alegorias tomam a palavra:
“Entendimento do Amor” é interprete da mensagem da Santa Trindade que se
faz também entender no Miroir pelas três vozes de Deus o Pai, do Amor o
Filho e do Santo Espírito. Os atributos da Santa Trindade falam através da
Justiça divina, Bondade do Amor e Pura Cortesia. Enfim, as graças insufladas
pela Santa Trindade na Alma se exprimem através de Paz, Luz e
Conhecimento.
114
Outra imagem relacionada com o romance cortês é a imagem da viajem que a
alma empreende do “país estrangeiro” ao “país da vida”. A busca do fino amor
obedece a um ordenamento sagrado que o cavaleiro deve respeitar para
chegar à câmara onde se encontra sua dama. A alma, no Mirouer, possui
também as qualidades cavalheirescas que são a ausência de remorso e
lamentos, ausência de amor-próprio e de vontade pessoal, conhecimento de
seu nada, conhecimento da bondade divina e aceitação de sua vontade. Com
essas qualidades, ela parte para a conquista da Dama Amor, de quem será
inteiramente submissa como um vassalo que possui uma dívida com seu
senhor que só pode ser paga por cortesia do Senhor. Essa Dama, no entanto é
inacessível a seu amante, da mesma maneira que Deus permanece fora da
vista da alma que caminha até ele. No Mirouer, a alma não conhece o divino
amor até que Deus seja nela.
Transformada pelo inacessível, a busca do fin’amour torna-se uma escola de
renúncia que mergulha a alma nas delícias da alegria, essa divina insatisfação,
mistura inexprimível de prazer e sofrimento que a palavra joie no francês
moderno já não se exprime.
115
114
Marie BERTHO, op. cit. p. 50
115
Ibidem, p. 53-54.
67
E ainda, no capítulo 122, onde se encontra a canção da alma, Marguerite vai
denominar Fin Amour, o Espírito Santo ofertado pelo Filho. O Fin Amour, o
Espírito é o seu bem amado, Deus que não tem mãe, mas que saiu de Deus
Pai e também de Deus Filho
116
. O Amor é seu Amado. Seu coração está de tal
forma unido ao Amor que ela permanece na alegria. Certamente, essa alegria
(joie) da qual fala Marguerite em seus versos, se aproxima muito da estranha
exaltação que cantavam os trovadores. Alegria que é fruto do reconhecimento
do Espírito nela, testemunho de sua própria ressurreição, pneumatização.
Simplificada, com o corpo transformado pelas tantas mortes, Marguerite relata
finalmente seu salto abissal no UM, o Amor que vem do Pai, e do Filho, o UM é
Deus nela, Deus em nós, o Espírito Santo, o Fin Amour..
No texto de Marguerite assim, a linguagem da teologia, a linguagem da
filosofia, e a linguagem da cortesia se tocam, se ajudam, se afastam e se
aproximam, na tentativa de poder dizer o indizível, o inefável, o incontrolável,
Deus abscontitus, porém presente no mundo, no próximo, no mais íntimo de
nós mesmos, no fundo da alma sem fundo como aprofundaria mais tarde M.
Eckhart.
116
Ibidem, p.206.
69
CAPÍTULO III
TEOLOGIA, MÍSTICA E HERESIA
Para entender a obra mística de Marguerite Porete como uma obra de teologia,
consideramos importante trabalhar como ponto de referência de nossa tese, a
relação entre a mística e a teologia.
Entendemos que o foco do discurso da Beguina é o esforço de falar sobre
Deus do lugar da experiência do Espírito, que para a tradição cristã, é Deus
que, em nós, promove as transformações que nos capacitam para o encontro
direto, mística. Existe, portanto, uma relação direta entre mística e Teologia do
Espírito.
As transformações do Espírito que habita a alma aniquilada, no texto de
Marguerite, são as operações do amor (amor entre o Pai e o Filho) que
conduzem o morrer para todas as mediações desde as mais comuns (os
mandamentos, as virtudes, os sacramentos), até as mais refinadas (a razão, o
desejo, as obras) através de um itinerário que implica a vivência radical da
mediação até o esgotamento que leva à ruptura, à negação de tudo que dá
segurança no caminho de encontro face a face com o Mistério inefável, fora de
toda representação que é Deus.
Neste capítulo poderemos ver como, ao longo da tradição cristã, houve uma
dificuldade no que diz respeito à Teologia do Espírito, dificuldade vinculada à
70
liberdade que o Espírito promove no sujeito e na comunidade em relação às
instituições e às exigências da vida em sociedade. O Espírito Santo, veremos,
representou de fato uma ameaça e muitos dos místicos sofreram com a
desconfiança da Instituição. Neste contexto é que compreendemos a obra de
Marguerite Porete, uma obra que, fundada em sua experiência mística,
estabelece uma discussão crítica à teologia de seu tempo, e que a leva ao
tribunal da inquisição.
1. Pneumatologia: teologia nas bordas da tradição
Como já vimos anteriormente, está muito claro, em várias referências atuais, a
constatação da carência de uma reflexão sistemática acerca de Deus-Espírito
Santo
117
e por outro lado, a desconfiança de que a pneumatologia esteve nas
bordas da tradição, na boca do povo, dos hereges e dos místicos.
Referindo-se ao despertar evangelico e experiência do Espírito nos séculos XII
e XIII, Pe. Chenu, introduz seu pequeno artigo com uma interessante referência
a Santo Tomás de Aquino que confirma justamente esta posição marginal
Teologia do Espírito:
A teologia nocional, especulativa, do Espírito é, observa Santo Tomás,
marcada de debilidade pela impotência de um vocabulário técnico para
enunciar as operações não conceitualizáveis do amor tanto em Deus como
nos homens. A experiência é, então, precioso recurso de inteligência e de
expressão.
118
Em sua familiaridade com o Doutor Angélico, Pe. Chenu se permite não citá-lo
com precisão de sorte que não sabemos se a referência à experiência, contida
na última frase, é de Santo Tomás ou se é do próprio Pe. Chenu. Embora
sejam importantes as formulações conceituais, ele acrescenta assumindo a
afirmação como princípio, as ortopraxes têm uma densidade de expressão, de
117
Conforme Hilberath, responsável pelo tratado de pneumatologia contido no Manual de
Dogmática organizado por Theodor Schneider, nos primeiros anos após o Concílio Vaticano II,
os relatos sobre a situação relativa ao tema “experiência e teologia do Espírito Santo” eram
determinados pelo termo chave “esquecimento do Espírito”. (Bernd Jochen HIBERATH, E.
Pneumatologia. Em:Schneider (org), Manual de Dogmática, Petrópolis, p.403).
118
Marie-Dominique CHENU, Despertar evangélico e presença de Espírito, nos séculos XII e
XIII. Em: Hans KÜNG e outros, A Experiência do Espírito Santo, p.142.
71
significação, de conhecimento vivo, de secreta lucidez que comportam em suas
implicações uma sensibilidade viva ao papel e à presença ativa do Espírito.
Neste sentido, ele vai apresentar como testemunhas da presença ativa do
Espírito, agremiações e confrarias que nos séculos XII e XIII, ocupadas com as
novas necessidades proporcionadas pela vida urbana, que se
autocompreenderam sob a proteção e inspiração do Espírito. É possível
observar neste período, afirma ele, o aparecimento de confrarias-comunidade,
de “caridades”, colocadas sob o patrocício do Espírito, ou sob sua inspiração a
exemplo de uma confraria para a construção de uma ponte, colocada sob o
vocábulo do Espírito Santo (Pont-Saint-Esprit) que parece ter sido familiar a
muitas confrarias urbanas por vezes de bom grado revolucionárias. A liberdade
de circular é considerada e praticada como condição da liberdade do Espírito.
As pontes sobre os rios eram uma dessas urgências, assim como a
conservação das estradas, por exemplo, a grande estrada de São Tiago, de
Paris à Espanha.
Além dessas agremiações associadas à liberdade, observa-se também nesse
período, que a denominação “do Espírito” qualificava também
empreendimentos destinados à caridade fraterna a ser exercida em
hospedarias e hospitais.
Pelas exigências mais amplas de necessidades a serem satisfeitas, são mais
freqüentes ainda os casos de construção de hospedarias e de hospitais.
Freqüentemente, ainda nesse caso, é sob a inspiração e o patrocínio do
Espírito Santo que são levadas avante: os fundadores e os administradores
são os “irmãos do Espírito Santo”, e a regra de suas diversas fundações
denomina-se “regra do Espírito Santo”.
119
O levantamento da carta geográfica dessa pululação de confrarias, de
confrarias-comunidades, de “caridades”, permitiria, continua o autor, observar a
estreitíssima conjunção, para além de grupos piedosos, entre a socialização
das necessidades elementares e a fé espontânea na inspiração do Espírito.
Segundo Pe. Chenu, a proteção do Espírito testemunhada por essa vitalidade
urbana que está associada por um lado à liberdade de circular, remete por
outro lado, ao amor fraterno inclusive em sua dimensão política:
119
Ibidem, p. 142
72
Nos comportamentos sugeridos e animados pelo Espírito, é a fraternidade a
qualidade decisiva; mais que uma qualidade, a própria realidade do ser cristão,
enquanto exige a comunhão com o outro em garantia da comunhão com Deus.
A única lei absoluta do Evangelho é o amor fraterno que, inclusive em sua
dimensão política, é o sinal da presença do Espírito.
Outra expressão da tematização popular do Espírito é uma representação da
Trindade num afresco medieval, datado provavelmente do fim do século XIV e
começo do século XV, localizado numa pequena Igreja em Urchalling,
pertencente à antiga Diocese de Chiemgau (entre Salsburgo e Munique). A
pintura, representação de Trindade que mostra no centro o Espírito Santo, faz
parte de um conjunto que deve ser lido como bíblia pauperium (dos pobres) e
foi descoberta quando da reconstrução da Igrejinha danificada na última grande
guerra.
73
Conforme descrição de Verena Wodttke-Werner
120
, o grupo trinitário de três
pessoas mostra três figuras. A partir do mesmo busto ramificam-se três meios
corpos separados, com cabeças distintas. A figura esquerda, em perfil de três
quartos, é mais velha que a do meio, barbuda, com cabelos longos, castanhos
claros e ondulados. A figura do meio é a mais jovem. Tem uma feição sem
barba, marcadamente muito meiga com lábios levantados e com sobrancelhas
em arco e altas. Os cabelos também castanhos claros e longos caem sobre os
ombros. A cabeça está um pouco inclinada para o lado esquerdo, dando a
impressão que é uma figura. A figura da direita é marcada por barba branca,
cabelo curto como o tipo mais velho. Todas as três figuras são rodeadas por
um casaco branco, com forro interno vermelho. O casaco tem duas mangas,
das quais saem respectivamente uma mão que toca a figura do meio no
decote. O gesto é apresentado de tal forma que é transmitida a impressão que
ela pertence a ambas as figuras externas. O casaco que os rodeia e os gestos
das mãos acentuam o amor mútuo entre as três pessoas. Esta unidade é
sublinhada também através de três traves em cruz, as quais, em cor vermelha
e marrom são divididas em três nimbus radiantes de três faces.
A figura do centro que deve reproduzir o Espírito, jovem e de feições femininas,
remete à reflexão do Espírito como Cáritas, amor recíproco entre o Pai e o
Filho. Interessante notar a originalidade da representação Trinitária não apenas
pelo fato do Espírito estar representado por uma figura feminina, mas pelo
lugar central que ele ocupa.
Para Verena Wodttke-Werner, o olhar interessado em Urschalling é dirigido
sobre o Espírito Santo. O sentido teológico da centralidade do Espírito Santo
(lugar que em via de regra é ocupado pelo Pai), interpreta a autora, vem da
consideração presente na Tradição e captada pela arte enquanto Bíblia
pauperum, de que a pessoa do Espírito simboliza a unidade na Trindade, o
amor recíproco entre o Pai e o Filho, Cáritas, soprado pelo Pai e pelo Filho. O
pintor de Urschalling teria orientado inequivocamente a figura feminina na
Igreja. Essa figura, colocado no centro, sinaliza presença do Espírito Santo
protetor e vinculador, em meio à experiência do homem comum, chamado ao
120
Verena WODTKEWERNER, Heiliger Geist oder Heilige Geistin im Trinitätsfresko von
Urschalling?. Em: Elisabeth Moltmann-Wendel (ed.), Die Weiblichkeit Des Heiligen Geites.
Studien zur Feministischen Theologie. Gütersloher, Kaiser, Gutersloher. Verlagsnaus, 1995.
74
conhecimento das verdades essenciais da fé, através da contemplação das
imagens que adornavam a Igreja. Certamente aqui, encontra-se presente a
inspiração agostiniana que perpassa o mundo antigo e adentra a Idade Média.
Para Agostinho, no Espírito, o amor divino, Pai e Filho estão ligados entre si e
ligados também ao mundo. A doação afetuosa de Deus pelo mundo para
Agostinho, comenta a autora, é sentida a partir do início da criação. Em
Agostinho, ela continua, a designação intratrinitária e a economia da salvação
do Espírito como amor divino, deixa-se entrever em muitos textos, em especial
no texto do De Trinitate citado pela autora e que reproduzimos a seguir
121
:
Pelo que se a Escritura proclama. Deus é amor e o Amor vem de Deus e age
em nós para que permaneçamos em Deus e Deus em nós, e isto o sabemos
porque ele nos deu do seu Espírito, então o mesmo Espírito é Deus Amor.
Além disso, se entre os dons de Deus, o maior é a caridade e o Espírito Santo
é o maior dom de Deus o que há de mais conseqüente que seja caridade
aquele que é Deus e procede de Deus? E se o amor com que o Pai ama o seu
Filho e o Filho ama o Pai revela de modo inefável a comunhão entre ambos, o
que há de mais certo que se denominar propriamente caridade aquele que é
Espírito comum a ambos?
122
Outras palavras que serviriam de inspiração para essa representação trinitária
que enfatiza a centralidade do Espírito Santo, destaca Verena Wodttke-Werner,
podem ser encontradas nos escritos de São Bernardo. Esses escritos,
certamente conhecidos e admirados, apresentam uma compreensão do
Espírito Santo como amor afetuoso e chegam a expressar esse afeto de
maneira erótica como demontra a autora nas citações que voltamos a
reproduzir
123
:
Deus é amor (1Jo 4,16). O Espírito é nomeado, sobretudo com o nome de
Cáritas. Ele é o amor do Pai e do Filho e a doçura e a umidade, e o beijo e o
abraço e o que também pode ser a união entre eles dois. Porque
verdadeiramente através da graça do Espírito Santo a alma do homem por um
modo maravilhoso se une com Deus, isto é necessário saber, que este Espírito
naquela comunidade é doador e doação. Ele é mesmo o Espírito, qual anima o
espírito humano e ensina e conserva o amor a Deus, e leva a procurá-lo e
encontrá-lo e mantê-lo e saboreá-lo.
Ele é a inquietação para aqueles que buscam a Deus na humildade. A devoção
para aqueles que adoram no Espírito e na verdade. Ele é a sabedoria para
121
Cf. Ibidem, p. 78-79.
122
Santo AGOSTINHO, A Trindade, p.533.
123
Cf. Verena WODTKEWERNER, op.cit. , p. 79-80.
75
quem o encontra, o amor para aquele que o possui, a paz para quem o
saboreia.
124
Para São Bernardo o Espírito Santo que é o amor e que une o Pai e o Filho
como num beijo e num abraço, inclui a comunidade. O beijo é dado também à
comunidade dos crentes e é o sinal do dom de Deus que vem pela
Encarnação, ressalta Verena Wodttke-Werner. Sendo o laço que nos une a
Deus, o Espírito, nos capacita para o amor de Deus. O Espírito Santo é, para
São Bernardo, continua a autora, Dom e executor do espírito da verdade,
piedade e amor em todas as ações humanas. É como em Agostinho, vínculo
de amor intratrinitário e laço/abraço entre criador e criatura.
125
Essa representação, a Trindade de Urschalling, compreensível na Idade Média,
desapareceu das paredes da pequena igrejinha
126
e desapareceu também da
tradição da grande Igreja, talvez porque, de fato, colocar o Espírito Santo no
centro da Trindade seja um risco...
2. O Espírito Santo, uma ameaça!
Outro lugar marginal do Espírito é a heresia. Desde o ínício, as comunidades
cristãs, depois a grande Igreja em formação e, após o cisma de fé, as Igrejas
confessionais, comenta Hilberath
127
, sentiram como perturbadores e perigosos
os movimentos entusiastas e carismáticos que invocavam o Espírito.
Segundo Hermann Brandt, teólogo protestante, o Espírito Santo foi
compreendido como uma ameaça, foi visto e precisava ser visto como uma
ameaça e por isso representa um desafio para a teologia. O desafio do Espírito
deve ser enfrentado, comenta esse autor, para que a teologia não se torne
vítima de cega fascinação, nem da tentação de tornar impermeáveis as
124
Bernardo de CLARAVAL, Livro da Caridade, PL 184, Sp. 604B.
125
Cf. Verena WODTTKE-WERNER , op. cit., p. 80.
126
A representação da Trindade de Urschalling foi “descoberta” (quando e porque motivo teria
sido coberta?) quando da reconstrução da Igrejinha, danificada na última grande guerra.
127
Cf. Bernd Jochen HIBERATH, E. Pneumatologia. Em:Schneider (org), Manual de
Dogmática, p.404.
76
próprias posições
128
. Os movimentos perpassados pelo entusiasmo do Espírito,
rejeitando as mediações, podem de fato, incorrer na tentação do autoritarismo
ou despreender-se da realidade em devaneios sobrenaturais.
De fato, o Espírito, como mostra esse autor, representou ao longo da tradição,
ameaça à autoridade da Escritura, ao dogma, aos meios da graça (pregação e
sacramentos), à instituição eclesiástica e também, modernamente falando, ao
espírito humano. Por conta da tensão, se tem como desdobramento por um
lado, a redução do Espírito aos limites da lei e da instituição e por outro lado, a
marginalização e condenação de teologias que ousaram falar a Deus e sobre
Deus do lugar do Deus que habita em nós.
2.1. O Espírito Santo como ameaça à autoridade da Escritura
Para compreender a ameaça do Espírito Santo à autoridade da Escritura, é
preciso retomar em alguns aspectos o conceito de inspiração no âmbito da
doutrina.
A inspiração do Espírito foi tema da teologia desde as origens em função do
desafio que representou, para as comunidades cristãs o acolhimento da Bíblia
como Palavra de Deus.
O testemunho da tradição garante a verdade de que os livros da Escritura têm
a Deus como seu autor principal e os autores humanos como inspirados pelo
Espírito Santo. Esta tradição já se inicia no interior do Novo Testamento, que
considera os livros do Antigo Testamento como inspirados. Continua e alcança
dos livros do NovoTestamento.
129
Para a época patrística, marcada pela fé na Escritura como palavra de Deus, a
inspiração não constitui um problema especial. Somente com o advento da
Escolástica e mais diretamente com Tomás de Aquino, o tema da inspiração
começará a ter uma sistematização teológica
Estudando o tema da profecia (cf. STH II-II, 171-174), Tomás a interpreta como
aquele carisma que permite ver em profunda unidade revelação e inspiração.
128
Hermann BRANDT, O risco do Espírito, p.9.
129
João Baptista LIBÂNIO. Teologia da Revelação a partir da modernidade. p.327.
77
A primeira sendo conhecimento de verdades divinas, exige a elevação
sobrenatural do espírito, por isso, uma inspiração. Portanto, a inspiração
profética deve considerar-se como um aspecto complementar da revelação;
através dela, o profeta é elevado, por obra do Espírito, a um nível superior de
conhecimento e assim pode comunicar-se e transmitir a revelação divina.
130
Não existe, para a Tradição, portanto, uma identificação imediata entre a
Palavra de Deus e a Escritura. Entre uma e outra se encontra a ação do
Espírito que atua no crente para que ele compreenda o que Deus, na Escritura
quiz revelar. Existe, todavia, aqui, um espaço de liberdade perigoso, pois falta
uma orientação normativa para regulamentar a interpretação da Escritura. Falta
aqui segurança no que diz respeito àquilo que objetivamente Deus quiz
comunicar.
Ao encontro dessa dificuldade e com o objetivo de assegurar que a Escritura
revele a Palavra de Deus sem perigo de erro, a inspiração deixa de ser
entendida como o conhecimento das verdades e passa a ser entendida como
consignação por escrito. O Espírito Santo inspirante será designado em Trento,
Espirito Santo ditante.
131
A doutrina da inspiração verbal afirmada em Trento e reafirmada no Concílio
Vaticano I, na tentativa de assegurar a autoridade da Bíblia com a doutrina da
inspiração através do Espírito Santo, acabou acorrentando o Espírito Santo à
letra.
A diferença entre o Espírito e a letra, ou seja, a soberania do espírito de Deus
sobre a Escritura desaparece como tema. A autoridade da Bíblia se tornou tão
“fundamental” que ela nem necessita de sua fundamentação através da
atuação presente e livre do Espírito. O Espírito que outorgou autoridade à
Biblia, é praticamente supérfluo, o ato da inspiração se tornou um fato passado.
Com a inspiração dos escritos bíblicos o Espírito concluiu o seu propósito.
Agora temos a Escritura, e a doutrina pura zela pela explicação escriturística.
Ou seja, o Espírito Santo é inserido no sistema dogmático.
132
Nessa pespectiva, o Espírito Santo “não deve soprar onde quer”. O que ele diz
às comunidades não pode estar em desconformidade com a escritura. O
Espírito deve transmitir à comunidade o que a doutrina sistematizou em termos
130
Rino FISICHELLA, Inspiração. Em: René LATOURELLE e Rino FISICHELLA, Dicionário de
Teologia Fundamental, p.484-485.
131
Cf. Ibidem, p. 485.
132
Hermann BRANDT, op. cit., p. 13
78
de explicação escriturística. O dogma da inspiração verbal subordinou a Bíblia
à lei da doutrina.
A insistência ainda atual que conclama à fé na Escritura como fundamento
doutrinário intocável, observa Hermann Brandt, revela o temor presente na
tradição cristã, do espírito vivo de Deus que ameaça até mesmo a Bíblia na
medida que, em sua autoridade, não vise fundamentar a boa nova de Jesus
Cristo sempre nova e atual, mas sirva à manutenção do sistema dogmático que
dá suporte à instituição eclesiástica.
2.2. O Espírito Santo como ameaça ao dogma
O dogma é uma etapa necessária à constituição de uma tradição religiosa, ele
reflete o esforço da comunidade para explicitar as razões de sua fé, explicar-se
diante de si mesma e diante dos outros. O dogma é a formulação racional
daquilo que é essencial na recepção e vivência do mistério revelado.
Na tradição cristã, a Revelação teve seu momento constitutivo:
A Revelação consiste naquilo que o próprio Deus nos comunicou através da
história do seu Povo interpretada por pessoas inspiradas, que foram os
profetas e os sábios de Israel, e depois para o fato decisivo de Jesus Cristo, os
evangelistas, os apóstolos e seus porta-vozes.
133
No entanto, conforme essa mesma tradição, Deus continua agindo na história e
na vida, para além do período constitutivo, pela atuação do Espírito. A tradição
cristã verá, a dinâmica renovadora do dogma, como fruto da atuação do
Espírito. O dogma se renova e a tradição permanece viva porque entre os
conceitos e fórmulas dogmáticas e a verdade de Deus que se auto-comunica
em Jesus Cristo, está o Espírito Santo. Segundo W. Kasper, na questão do
dogma está em jogo a verdade, a partir da qual em última análise vive e age
uma pessoa ou sociedade. Todavia, é preciso ter em vista que o conhecimento
humano da verdade é sempre mediado pela linguagem. No entanto, esclarece
Kasper, nenhuma pessoa e nenhuma sociedade prescindem de verdades e
133
Yves CONGAR, Revelação e experiência do Espírito. p. 13.
79
valores de absoluta validade, formulados ou formuláveis em proposições. A
razão e a liberdade humana nessa historicidade, precisam da verdade:
A razão e a liberdade humana nessa historicidade pecisam por necessidade
transcendental de verdade absoluta de início indeterminadamente aberta e de
exigência moral incondicionada, que, porém, podem captar apenas
antecipadamente em determinadas verdades e valores. A conscientização
sobre essas verdades e valores, de que consciente ou inconscientemente todo
homem vive, ocorre por via da vigência e reconhecimento sociais dessas
opções fundamentais.
134
Em seu sentido teológico, o dogma é a verdade definitiva sobre Deus e sobre o
homem, comunicada a nós por Jesus Cristo, no Espírito Santo em vista de uma
verdadeira relação com Deus.
O dogma em seu sentido propriamente teológico funda-se no fato de que Deus
comunica-se a si mesmo em Jesus Cristo de maneira histórica, corporal e
concreta, escatologicamente definitiva, determinando assim definitivamente a
indeterminada abertura do homem e realizando-a e preencendo-a de forma que
a tudo ultrapassa. Em decorrência, a verdade de Jesus Cristo e a verdade
definitiva sobre Deus e sobre o Homem. Esta autocomunicação da verdade e
realidade de Deus no mundo só chega, porém, à sua meta quando é acolhida
no Espírito Santo e nele publicamente testemunha.
135
Permanece, portanto, para a tradição cristã, em se tratando de dogma, a
consciência de que se está diante do mistério do Incriado, “Luz que ultrapassa
qualquer luz”, Treva Superluminosa, segundo Dionísio Areopagita:
Ó Trindade soperexistente, ó superDeus, ó superótimo norteador da teosofia
do cristãos, eleva-nos à sumidade superdesconhecida e superluminosa e
sublimíssima das revelações místicas, onde os mistérios simples, absolutos e
imutáveis da teologia são revelados na treva superluminosa do silêncio que
ensina ocultamente.
136
Faz parte da tradição teológica mais clássica a certeza de que não se possui
conceito adequado de Deus e que os conceitos e as fórmulas dogmáticas
apenas tendem à Verdade impossível de se apreender conceitualmente. A
doxologia, observa Congar, que se contenta em remeter, no louvor e na
adoração, à Realidade “luz que ultrapassa toda luz” é a melhor teologia. É
134
Walter KASPER. Dogma/evolução do dogma. Em: Dicionário de conceitos fundamentais de
teologia, p. 193.
135
Ibidem, p. 193.
136
Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, p.15. Usamos aqui a tradução poética do
tratado do areopagita feita por Marco Lucchesi.
80
preciso ter clareza sobre o papel dos conceitos em teologia e sobre as fórmulas
dogmáticas, adverte esse autor:
Tomás de Aquino, como Alberto ou Boaventura, adota a seguinte definição do
artigo de fé: “Perceptio divinae veritatis tendens in ipsam: uma percepção de
verdade atinente a Deus e que tende a esta mesma verdade”. Não possuímos
conceito adequado de Deus; aplicamos-lhe conceitos criados, através dos
quais tendemos à Sua verdade, sem conseguirmos apreendê-la
conceptualmente.
137
Neste sentido, o importante na fé é a abertura em direção àquilo que ela visa, o
revelado crido e confessado na Igreja, porém aberto a percepções múltiplas.
A verdade é que, na fé, o principal é o intendere, a orientação ou o elã em
direção àquilo que ela visa. Sem dúvida, não há fides qua, abertura e elã do
sujeito, sem fides quae, sem conteúdo determinado, mas este último, o
revelado crido e confessado na Igreja, permanece aberto a percepções
múltiplas.
138
Para a tradição cristã, a verdade é um desígnio contido nos fatos e nas
palavras que são revelados, está voltado mais para os “destinos” que para as
“essências”. A verdade plena é escatológica e, neste sentido, exprime o que as
coisas e os homens estão chamados a serem segundo o plano de Deus. Por
isso, se dirige antes ao coração que à inteligência. O que impede o homem de
ouvir a verdade de Deus, observa Congar, não é a fraqueza da inteligência,
mas a dureza de coração e o orgulho da razão
139
.
Esse designio divino, a Verdade para o cristianismo, está plenamente revelada
em Jesus, Caminho, Verdade e Vida, comprendida e vivida, no entanto, no
Espírito, cuja vinda está ligada à partida e a uma certa ausência de Jesus. O
Espírito fará recordar o que Jesus disse, dará testemunho de Jesus, introduzirá
na verdade total, fará tomar o caminho de verdade e de vida que é Jesus e são
as suas palvras. Assim o Espírito, todo relativo à verdade revelada em Jesus,
é também ele a verdade que habita o cristão, vive na Igreja e conduz à
comunhão com o Pai assegurando a vitória contra as forças de morte a serem
enfrentadas ao longo da vida.
140
A ação do Espírito, percebida na experiência
137
Yves CONGAR, A Palavra e o Espírito, p.16.
138
Ibidem, p. 17.
139
Ibidem, p. 55.
140
Cf. Ibidem, p. 56-58.
81
histórica é, no interior da tradição cristã, o fator responsável pela renovação do
dogma, verdade absoluta que fundamenta e dá sentido à vida do cristão.
A experiência do Espírito será, portanto, entende Congar, a percepção da
realidade de Deus vindo a nós e nos atraindo a Ele para uma vida em
comunhão. Superando a distância, a experiência do Espírito é a consciência da
presença de Deus como fim amado de nossa vida que se torna sensível
através dos sinais e nos efeitos de paz, certeza, consolação, iluminação e tudo
o que acompanha o amor. A experiência do Espírito situa-se no interior da
dinâmica que se estabelece entre Escritura (Revelação constitutiva) e Tradição
Viva (consciência da presença de Deus vindo a nós, ativo em nós e por nós).
141
Essa experiência, explicita o mesmo autor, essa percepção da presença de
Deus como fim amado da vida se expressa na oração, na prática dos
sacramentos da fé, na vida da Igreja, na vivência dos mandamentos, mas mais
intensamente no itinerário excepcional de alguns místicos que descrevem seu
caminho de encontro com o mistério.
O dogma, entendido no sentido largo do termo é, portanto, a Verdade
escatológica revelada plenamente em Jesus Cristo, acolhida pela pessoa em
comunidade no Espírito que conduz toda a criação ao seu destino que é a
comunhão com o Pai. E neste sentido, o Espírito Santo tem aí um papel
fundamental.
A evolução dos dogmas é evento do Espírito; nela o Espírito Santo introduz os
fiéis em toda a verdade e faz com que a palavra de Cristo habite com
superabundância entre eles (DV). Isso ocorre mediante o senso sobrenatural
da fé de todo o povo de Deus, mediante os dons e a graça do Espírito (LG 12),
mediante a intuição interna e a experiência espiritual (DV).
142
O dogma é, portanto, verdade sempre nova por conta da ação do Espírito
Santo que o atualiza em resposta aos desafios novos nessa caminhada em
direção a uma plenitude final.
No sentido estrito, define Kasper, o dogma é uma doutrina definitiva e
obrigatória a todos de modo que sua rejeição implica e, condenação por
141
Ibidem, p. 13-14.
142
Walter KASPER, op. cit. p. 196-197.
82
heresia. E aqui, de fato, o Espírito que amplia e renova a verdade, pode
representar uma ameaça.
Dogma em sentido estrito, num modo de falar corrente desde o século XVIII, é
uma doutrina, na qual a Igreja proclama uma verdade revelada do Antigo ou
Novo Testamento de forma definitiva e obrigatória para todos como
formalmente revelada, de tal forma que sua rejeição se condena como heresia
e se comina com anátema.
143
O sentido estrito do dogma reflete o processo de sacerdotização. Em sua obra,
O dogma que liberta, Juan Luís Segundo vai mostrar como, com sua elevação
a religião oficial do Império Romano, o cristianimo passa a ter pretensões
universais. Este fato torna a manutenção da identidade mais problemática.
Surge, então, uma exigência de uniformidade da fé que se resolve pela
instituição de uma autoridade dogmática vertical, um magistério hierárquico
capaz de definir “os limites” de uma verdade de validade universal. A ortodoxia
se faz sentir como imperativo político e a pluralidade dogmatica como ameaça
perigosa para a Igreja e para a sociedade.
144
. Essa exigência de uniformidade
do dogma aumenta com estreitamento das relações entre o magistério
eclesiástico e o poder secular. A verdade de Deus que era guardada pela
Igreja, passa a ser controlada e definida pelo magistério eclesiástico, que vai
utilizar essa verdade como instrumento de poder para julgar o poder temporal.
Para a compreensão desse processo e suas consequências na redução do
conceito de dogma, é ilustrativo o seguinte exemplo destacado por Juan Luís
Segundo:
Nunca o Papado chega a se sentir tão forte, como com Bonifácio VIII, pelo final
do século XIII, pretendendo gozar da totalidade desse poder “temporal”. Já
indicamos que a famosa “guerra das investiduras”, entre papas e imperadores
do Sacro Império Romano-Germânico, não significou que o papado perdesse
ou recobrasse, sucessivamente, o poder. Tratava-se de quem utilizava o poder
de quem. Num dado momento dessa luta, a 18 de novembro de 1302, o Papa
escreve a famosa bula Unam Sanctam, onde, entre outras coisas, pode-se ler:
“Pelas palavras do Evangelho somos instruídos de que nesta (a Igreja) e em
seu poder, existem duas espadas: a espiritual e a temporal... Mas essa deve
esgrimir-se em favor da Igreja; aquela pela própria Igreja. Uma pela mão do
sacerdote; a outra, pela mão do rei e dos soldados, com a indicação e o
consentimento do sacerdote... O poder espiritual tem que instituir o temporal e
julgá-lo, se não for bom... logo, se o poder terreno se desvia, será julgado pelo
poder espiritual... a não ser que... imagine haver dois princípios, o que
143
Ibidem, p.194.
144
Cf. Juan Luis SEGUNDO, O dogma que liberta fé, revelação e magistério dogmático. p.
261-262.
83
julgamos herético...” (D 469). Em seguida vem o que, nas palavras e na cabeça
do Papa não pode ser outra coisa que uma definição ex catedra: “Pois bem,
submeter-se ao Pontíficie Romano” no espiritual e no temporal, entende-se
pelo anterior declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos como de toda
necessidade de salvação para toda criatura humana”.
145
Pode-se dizer que, no período medieval, sob o regime de cristandade, inicia-se
uma redução no sentido de dogma que perdura até a modernidade. O dogma
se transforma em verdade certa, ortodoxia, defendida e guardada pelo
magistério eclesiástico. Ele será a base da instituição eclesiástica e seu
instrumento de poder. Neste contexto, o sentido de heresia, que a princípio
reflete a preocupação com a fidelidade à boa nova anunciada pelos apóstolos,
passa a significar desobediência à hierarquia eclesiástica.
A heresia na época patrística refletia o temor de que alguns erros pudessem
tornar-se irreversíveis e matar, antes que as crises pudessem produzir efeitos
vivivicantes
146
. A heresia, do ponto de vista teológico, explicita Walter Kasper,
são abalos e deturpação ocorridas ou por adaptação exagerada, sínteses
apressadas ou superficiais, ou por recusa a polemizar e por persistência
tradicionalista e rígida. Surgem também por negação e por isolamento e
abasolutização de um aspecto, e podem ocorrer tanto por exagero como por
redução de aspectos singulares
147
.
Nos primeiros tempos em que as grandes discussões gravitavam, sobretudo
em torno do dogma trinitário, existiam denúncias, juízos teológicos,
condenações, expulsões, desterros, anátemas conciliares e excomunhões, no
145
Ibidem, p. 314-315.
146
“Sabia-se que”, comenta Juan Luís Segundo sobre o aparecimento da heresia na época
patrística, “num certo grau de cristalização, certeza e expansão, uma teologia errada podia
deixar de ser compatível com a participação no caminhar da comunidade cristã e na sua fé”.
Ibidem, p. 263.
147
Cf. Walter KASPER, op. cit. p. 197. É preciso ressaltar aqui que anátemas, excomunhões e
condenações refletem a relação, desde o início tensa, entre Magistério da Igreja e teologia. A
teologia serve ao Magistério e no seu serviço, o teólogo se arrisca. A teologia deve ser ousada
para poder contribuir no aprofundamento da compreensão das verdades de fé e nessa
ousadia, o teólogo se arrisca a ser exposto à incompreensão da comunidade a quem ele serve.
“Do externo - observa Bruno Forte vem ao teólogo, sobretudo a provação de às vezes se
sentir isolado e mesmo incompreendido, julgado não só pelo ‘mundo’, mas até mesmo pela
Igreja, que ele ama e quer servir com espírito e coração. É a hora da solidão, tanto mais
dolorosa para quem, como o teólogo, é chamado a pensar a aliança e a testemunhar Aquele
que tem para nós ‘projetos de paz e não de desventura, para conceder-nos um futuro pleno de
esperança’ (Jr 29,11)” (Bruno FORTE, Teologia em diálogo, p. 45). Na tensão com o
Magistério, continua Bruno Forte, o teólogo deve reconhecer o valor da dúvida sobre si mesmo
e o dever de nunca absolutizar tudo o que seja menos que Deus, a começar de si mesmo.
84
entanto, as primeiras condenações à morte de hereges estão associadas à
pregação anticlerical que se propaga no ocidente a partir do século XII e aqui,
tem uma significativa influência as idéias de Joaquim de Fiori sobre a Nova Era
do Espírito.
148
As teses de Joaquim de Fiori, retomando os temas da liberdade e do
conhecimento inspirado pelo Espírito introduz na história terrestre uma
escatologia caracterizada pela novidade de um regime de interioridade, de
liberdade que abriu as comportas para uma corrente caudalosa de esperança
que chegou a animar protesto social e constestação reformista da Igreja.
O pensamento de Joaquim, explica Congar, procede de uma visão da
concordia ou entendimento de correspondência entre elementos da história
veterotestamentária, os da história evangélica e os passados ou futuros, da
história da Igreja. Assim distintos, cada um dos três estados, é atribuído a uma
pessoa da Santíssima Trindade. Como o Espírito procede do Pai e do Filho, um
“entendimento espiritual” procede do Antigo e do Novo Testamento: é o
Evangelho eterno ou Evangelium Regni que deve suceder ao Evangelho de
Cristo pregado e celebrado até então.
149
148
Consta no dicionário de Idade Média que os primeiros hereges condenados à fogueira no
Ocidente medieval foram 15 clérigos e monjas surpreendidos numa intriga palaciana em
Órleans no ano de 1022 e os membros de uma comunidade religiosa descoberta perto de
Turim em 1028, cuja devoção ao Espírito Santo os levara a manter uma cadeia constante de
oração e a não comer carne nem dormir com as esposas. A rápida propagação da pregação
anticlerical durante o século XII foi aconpanhada de um refinamento da definição de crença
ortodoxa e de um endurecimento de atitudes para com os não ortodoxos. Em 1184, a bula Ab
Abolendum foi publicada numa tentativa de impor uniformidade e ortodoxia; ordenava aos
bispos que procedessem uma investigação anual (inquisitio) em suas dioceses e
excomungassem não só os heréticos mas também as autoridades que não agissem contra
eles. Após o Quarto Concílio de Latrão, tais medidas foram incorporadas à legislação secular,
incluindo a do Império (1220), de Aragão (1223) e da França (1226). A partir de 1231,
inquisidores subordinados diretamente à autoridade papal estiveram em atividade no
Languedoc e em cidades italianas; em 1252 foram autorizados a recorrer à tortura para obter
confissões, e sua ação estendeu-se à maior parte da Europa continental nos séculos
seguintes. (Cf. Dicionário de Idade Média, p.191). É preciso citar, todavia, o caso da
condenação por heresia de Prisciliano, Encrózia e mais dois discípulos, decapitados em 385.
No entanto, a repercussão desta execução capital foi enorme, em todo o ocidente. Muitos
bispos, mesmo os que recusaram apoio a Prisciliano, condenaram a atitude de Idácio e Itácio,
os bispos responsáveis pela condenação e punição aplicada aos hereges pelo Imperador.
Idácio, acabou tendo de renunciar a sua sede episcopal e Itácio foi excomungado. Alguns anos
mais tarde, os seguidores de Prisciliano foram reabilitados. Os restos mortais de Prisciliano
foram reconduzidos à Espanha, onde foram honrados como os de mártir.(Cf. Roque
FRANGIOTTI, História das Heresias (séculos I-VII), p.197-112.)
149
Yves CONGAR, Revelação e experiência do Espírito, p. 167-168.
85
Assim, ao tempo da letra, se sucederá o da liberdade do Espírito. O que era
comumente reservado à escatologia, no fim da história, é aqui introduzido para
dentro da história como objeto de uma expectativa, de uma esperança. Nessa
era ainda haverá uma hierarquia e sacramentos, todavia não mais de forma
institucional, mas de forma carismática, correspondendo mais ao tipo de João
do que a Pedro.
150
O abade Joaquim de Fiori carregará em vida a fama ora de profeta, ora de
herege, mas será ao longo do século subseqüente à sua morte, que a grande
fascinação exercida por seu pensamento será colocada à prova por uma série
de censuras e condenações oficiais e não oficiais.
A primeira condenação oficial em 1215 (IV Concílio Lateranense) foi reflexo do
conflito que residiu na polarização entre o pensamento monástico,
representado por Joaquim, e a nova teologia escolástica, personificada em
Pedro Lombardo. O principal motivo da polêmica foi a publicação do texto
Introdução ao Evangelho Eterno em 1254, pelo jovem franciscano Gerardo de
Borgo san Donnino. Essa introdução, não só vaticinava e proclamava o
imediato advento da “Era do Espírito” para o ano de 1260, mas também
anunciava o triunfo de uma nova ordem monástica (a franciscana) sobre todas
as demais instituições da Igreja. Além disso, identificava os escritos do abade
de Fiore com o próprio Evangelho Eterno, indicado no Apocalipse (Ap 14,16),
como substituto do Evangelho de Cristo.
151
As idéias do Abade de Fiore vão influenciar distintos movimentos místicos da
segunda metade do século XIII e início do século XIV: Irmãos do Livre Espírito,
Beginas, Begardos e, sobretudo os franciscanos espirituais. Movimentos que
incluíram posições contestadoras que se expressaram como recusa dos
sacramentos, da hierarquia da Igreja e do Papa (como entre os “Fratricelli”,
grupo ligado à família franciscana
152
) ou, correntes que assumindo temas
místicos profundos, foram levados ao quietismo, à indiferença às regras
externas até a ausência de reserva moral ou ao sentimento de estar em Deus
até os limites do panteísmo.
150
Ibidem, p.168.
151
Noeli Dutra ROSSATTO. Abade Joaquim e a Nova Era do Espírito. Em: Noeli Dutra
ROSSATTO (org.) O simbolismo das Festas do Divino Espírito Santo.p.36.
86
Essas idéias, de fato, provocam um abalo no sistema que se compôs em torno
do vínculo entre verdade e poder. A teologia centrada no Espírito de Joaquim
de Fiore, dando ênfase à liberdade, ao futuro e traduzindo esses valores
ligados ao Espírito Santo em experiência histórica, representou uma ameaça
porque ensinou que a verdade, acessível pelo Espírito não precisa da
mediação do Magistério Eclesiástico e por isso ameaçou a instituição
eclesiástica que se autocompreendia como guardiã da verdade de Deus.
Contudo tenhamos observado que o Espírito Santo esteve a desafiar a
dogmática cristâ, podemos dizer, por outro lado, que do ponto de vista de uma
formulação sistemática mais estrita, o Espírito Santo encontra-se aprisionado
numa reflexão trinitária especulativa e filosófica, numa discussão metafísica
sobre a trindade em si mesma que obscurece uma outra dimensão da reflexão
teológica que deveria refletir a experiência do Espírito como Deus em ação no
mundo, isto é, o Espírito em sua missão de transformar e elevar o humano e o
mundo, preparar toda a criação reunida em Cristo para o encontro com o Pai.
No desenvolvimento doutrinário que conduziu à formulação do dogma trinitário,
explicita Brandt, o Espírito Santo constitui, a princípio, um problema
secundário.
Tudo girava inicialmente em torno da questão cristológica, isto é, em torno da
resposta da Igreja à doutrina de Ário que havia negado a revelação de Deus
em Cristo. (...) Não parecia necessário “que além da questão da
consubstancialidade do filho com o Pai, ainda se ventilasse questão da posição
do Espírito Santo dentro da divindade.
153
O Concílio de Nicéia vai afirmar a crença em um só Deus, Pai onipotente, em
Jesus Cristo, filho de Deus unigênito, gerado, não criado e consubstancial ao
Pai, e a crença no Espírito Santo. A extrema brevidade da afirmação
pneumatológica no credo niceno oculta aqui, além de uma preocupação mais
centrada no problema cristológico, a falta de uma efetiva compreensão do
Espírito Santo e sua posição na trindade. A afirmação do Espírito como pessoa
trinitária só alcançará expressão dogmática no Credo Niceno-
Constantinopolitano de 381. Esse credo expande a pequena confissão
152
Os “Fratricelli”, se constituíram sob a inspiração de Fiori, um grupo autônomo com proposta
de vivência incondicional da pobreza.
153
H. BRANDT, op. cit., p. 15.
87
concernente ao Espírito, acrescentando que o Espírito é Senhor e Vivificador,
que procede do Pai, que com o Pai e o Filho conjuntamente é adorado e
glorificado, e que falou através dos profetas.
154
Um ano mais tarde a
consubstancialidade do Espírito é finalmente afirmada em reação à heresia de
Macedônio e dos “pneumatômacos”, que entendiam que o Espírito era uma
força, um instrumento de Deus, criado para agir em nós e no mundo. Para os
Padres orientais, afirma Congar, afirmar a consubstancialidade do Espírito é
afirmar ao mesmo tempo a possibilidade da divinização do humano:
Na perspectiva dos Padres orientais, mas também para nós, tratava-se não
somente da verdade de Deus, mas da verdade do homem e de sua destinação
absoluta. Se o Espírito não é substancialmente Deus, nós não seremos de fato
divinizados, dizem Atanásio, em 356, Gregório de Nazianzo em 380, referindo-
se à fórmula do batismo.
155
Essa discussão grega, no entanto, vai se distanciando cada vez mais da
experiência de fé do homem comum que, depois da queda do Império Romano,
será o “bárbaro” convertido ao cristianismo. Para Juan Luis Segundo, o
cristianismo oficializado como religião do império, no contexto de “queda” vai
representar ainda referência de unidade e o dogma para responder a essa
exigência deverá ser fixado e simplificado.
156
A fixação dogmática que trouxe problemas para a concepção de dogma em
geral
157
, trouxe também grave conseqüência para a pneumatologia. A
154
Ibiden, p. 15.
155
Y. CONGAR, op. cit., p. 105.
156
No final do século VI e início do século VII, o cristianismo enfrenta um desafio “novo” e
inesperado: a ocupação do Império Romano pelos povos bárbaros, povos que não estavam
interessandos nos complexos debates em torno de um dos pontos mais delicados e decisivos
do dogma cristão. Calcedônia buscava categorias da linguagem grega que pudessem ser
usadas com propriedade e sentido para poder falar de Jesus de Nazaré como verdadeiro
homem e verdadeiro Deus. O que os povos novos esperavam do cristianismo não era a
maturidade que a mensagem de Jesus poderia dar à sua liberdade, mas perguntavam, de fato,
pelo aumento da eficácia que os ritos cristãos poderiam dar à magia que praticavam. Aos
poucos os problemas antropológicos da teologia paulina desaparecem do horizonte teológico.
Interessa a esses povos, mais do que os temas e os debates, as “teofanias”, os milagres e as
maneiras de manejar o sagrado. J. L. Segundo vai atribuir a fixação e simplificação do dogma a
uma pedagogia apressada que não cuidou de realizar um encontro com esses novos povos em
profundidade. Além do mais, o ensinamento paulino que trabalha com “categorias que
libertavam o homem do temor aos castigos de Deus e da busca da segurança no sagrado,
diante da ameaça desses castigos pautados na lei, não se enquadravam com a necessidade
e o dever o de dirigir, sólida e às vezes violentamente, a conduta e o pensamento do povo a
respeito de seus deveres básicos”. (Cf. Juan Luis SEGUNDO, op. cit., p.285-299).
157
É interessante notar a lucidez de Santo Hilário, citado por Congar, que tem consciência do
limite que representa para a experiência a fixação de um dogma: “Santo Hilário, uma das
grandes testemunhas da fé, se desculpava ao ter de falar desse mistério: a heresia, dizia ele,
88
preocupação central da Teologia do Espírito será a reflexão teológica no
âmbito da Trindade imanente (em si mesma) e não a reflexão sobre a missão
do Espírito, seu papel e sua atuação na economia da salvação. Na verdade, o
que se opera, observa Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento XVI em seu
comentário sobre o Credo, no início da terceira parte, sobre o Espírito e a
Igreja, é uma dicotomia que gera de um lado uma especulação ontológica e de
outro uma teologia antifilosófica da história da salvação:
(...) é característica para os estágios mais antigos do pensamento cristão uma
interferência entre a visão da história da salvação e o enfoque trinitário;
infelizmente, essa interdependência foi sendo esquecida posteriormente, em
detrimento da questão essencial, levando a uma fragmentação em metafísica
teológica, de um lado, e teologia da história do outro.
158
Em vista disso, podemos dizer que o pensamento sobre o Espírito que se
elabora a partir da praxis permanecerá às margens da teologia e representará
uma ameaça, como vimos acontecer com o Joaquimismo e mais tarde com o
pietismo.
2.3. O Espírito Santo como ameaça à instituição eclesiástica
O Espírito é “co-instituinte” da Igreja. Do ponto de vista da tradição teológica, a
Igreja é fruto das duas mãos do Pai. A ação do Espírito conjugada à obra do
Verbo gera e faz crescer a Igreja que está incessantemente chamada à
obediência da fé à Palavra da qual vive. Cristo envia o Espírito e os dois juntos
iluminam a Igreja. O Espírito faz reconhecer e confessar que Jesus é o Senhor
na história. O Paráclito assiste a Igreja em sua missão de conservar, meditar e
transmitir a Palavra ao longo do tempo.
Ele o faz na história, isto é, na sucessão das gerações, no entrechoque das
idéias, no entrelaçamento dos eventos, no surgimento de novos recursos e
novos problemas, de erros, mas também de graças insignes e de humilde
fidelidade... Para isto, Jesus prometeu e o Senhor enviou o Paráclito: nome
nos força a “illicita agere, árdua transcendere, eneffabilia laqui, fazer aquilo que não nos é
permitido, escalar os cumes, expressar as coisas inefáveis.” (Y. CONGAR, op. cit., p.106-107).
158
Joseph, RATZINGER. Introdução ao Cristianismo, Preleções sobre o Símbolo Apostólico,
p.244.
89
difícil de traduzir, pois seriam necessários vários termos simultaneamente:
Advogado, Procurador, Consolador, Assistente.
159
O Verbo e o Espírito, explicita Congar, atuam desde sempre e para sempre (já
e ainda não) na constituição de uma Igreja Una, Católica, Apostólica e Santa. O
Espírito Santo é, portanto, princípio que faz possível a unidade na diversidade,
que a santifica apesar do pecado, que dá a ela uma largura, isto é, uma
universalidade, não deixando que perca a sua identidade apostólica. É só no
Espírito que a Igreja pode ser o que é: sacramento de salvação e caminho de
perfeição apesar de toda a sua limitação.
O Espírito, enquanto princípio de unidade, conduz tantas realidades diferentes
à unidade, animando a diversidade. Não garante a unidade através pressão e
da redução a uma cópia de acordo, mas através de uma delicada comunhão. A
unidade, afirma Congar lembrando Tomás de Aquino, tem sua raiz na caridade
que é única e tem como causa e suporte o mesmo Espírito Santo,
pessoalmente idêntico em todos e nele, ao mesmo tempo, princípio
transcendente de unidade. O Espírito que promove a unidade da Igreja confere
a ela personalidade. Enquanto pessoa, a Igreja não se reduz à totalidade dos
indivíduos que a compõem, mas tem uma realidade própria à qual se aplicam
propriedades específicas e os atributos da unidade, santidade, catolicidade,
indefectibilidade. A pessoa-Igreja é a realidade una e total eficazmente visada
pelo plano ou desígnio de Deus
160
.
O Espírito catoliciza a Igreja tanto no vasto espaço do mundo como no tempo
da história. Neste sentido, a obra que Deus coloca fora de si pela missão do
Verbo e do Espírito é aberta, tem uma perspectiva escatológica
O Espírito Santo atualiza a Páscoa de Cristo em vista da escatologia da
criação. Ele atualiza também a Revelação de Cristo. Ele impulsiona para frente
o Evangelho para o não ainda advindo da história.(...) Ele deverá realizar uma
união entre o dado e o inesperado, o adquirido uma vez por todas e o
perpetuamente inédito e novo.
161
159
Y. CONGAR, A Palavra e o Espírito, p.43.
160
Ibidem, p.32-41.
161
Ibidem, p.57.
90
Congar, em se tratando dessa abertura para o universal que caracteriza a
catolicidade, busca enfatizar a tensão entre a Revelação positiva atestada nas
Escrituras inspiradas e os desafios novos da vida. O desafio aqui é, tendo em
vista a tensão, buscar sempre melhor articulação entre pneumatologia e
cristologia. É na força de Cristo e do Espírito que a Igreja pode permanecer
“imensamente aberta”. Para Congar existiram épocas de cristandade e não de
catolicidade e à nossa época, cabe viver um novo encontro com os povos,
culturas, religiões
162
.
O Espírito mantém a Igreja apostólica. A apostolicidade, define Congar, não se
relaciona apenas com a referência aos apóstolos, mas enquanto atributo da
Igreja, é o dom e a tarefa de manter, garantir a continuidade, a identidade
substancial do fim e o do princípio. O apóstolo é aquele que dá testemunho do
que já chegou, o que foi inaugurado pelo dom de Jesus Cristo, e que afirma,
pelo Espírito, a eficácia atual dessas realidades e a sua consumação
escatológica. O Espírito assiste a Igreja na fidelidade à fé recebida dos
apóstolos, numa história de erros, insuficiências, esquecimentos, impasses,
momento críticos, para que o erro não prevaleça (esse é o sentido da
infalibilidade!).
Todas as propriedades da Igreja se qualificam por uma interpretação mútua,
afirma ainda Congar. A unidade é santa, a apostolicidade é santa, a
catolicidade é santa. A Igreja é santa porque é habitação da trindade, “é templo
santo de Deus onde, pela força da água viva, que é o Espírito Santo, a fé é
celebrada no batismo e no amor-agape na Eucaristia”.
163
A santidade da Igreja, no entanto, está sob o regime do Espírito concedido
(tão-só) em penhor ou em primícias e, por isso, a Igreja, consideravelmente
carnal, está engajada no combate contra a carne. O Espírito que a Igreja
possui como penhor, suscita reformas e novas criações, é ele também, sempre
o “prometido”, aquele que impulsiona para frente a causa do Evangelho.
Congar encerra a reflexão sobre a santidade, explicitando o lugar do Espírito
Santo, fonte da caridade que vincula os santos, na constituição de uma
162
Ibidem, p.58.
163
Ibidem, 78.
91
comunidade de comunhão que se estende aos bem-aventurados do céu e aos
nossos falecidos, comunidade de salvação de cujos bens o fiel tem direito a
participar.
Todavia, no decurso da história eclesiástica se perdeu o equilíbrio entre os
pólos carismático e institucional. O equilíbrio entre autoridade oficial e
“carismática” coincidiu apenas uma única vez, comenta Hermann Brandt, na
pessoa do próprio Jesus.
O que em Jesus se apresenta como uma unidade, constitui para nós uma
misteriosa enigmática tensão: por um lado, Jesus não testemunha nada mais
do que a “tradição”, isto é, a velha exigência e promessa de Deus, e ele mesmo
desaparece completamente por trás deste testemunho. Por outro lado porém, -
isto é, simultaneamente a exigência e a promessa de Deus se tornam
presentes nele imediatamente, e “em autoridade”, isto é, carismáticamente.
164
É um fato, afirma esse autor, que na história dogmática e eclesiástica, uma
tendência que valorizou a instituição imperou sobre uma tendência marcada
pela confiança na liberdade do Espírito e que a tendência para o estático da
instituição em contraposição ao dinâmico do espírito, embora não tenha origem
nesta época, foi fortalecida na era constantiniana.
165
É certo que, muitas vezes, as tentativas de preservar o direito do espírito frente
à tradição é combatida como herética. Essa reação pode ser observada, como
vimos anteriormente, no caso da figura e do pensamento de Joaquim de Fiori.
A condenação das idéias de Joaquim de Fiori mostra uma absoluta confiança
na validade da dimensão institucional da Igreja.
O que se torna visível nesta condenação da igreja espiritual é uma inabalada
confiança na validade e segurança da atual instituição. Exatamente porque
uma futura era do espírito questiona a atual instituição, é necessário destruir o
elemento escatológico da compreensão do espírito.
166
Essa confiança na instituição e seu correspondente medo do Espírito
encontram-se expressos na interpretação de Pentecostes com a qual a Igreja
Católica se contrapôs aos espirituais franciscanos:
O derramamento do espírito não é um evento futuro, mas concretizou-se nos
apóstolos em Pentecostes e pertence, assim ao passado. A atuação posterior
164
H. BRANDT, op. cit., p. 32.
165
Cf. Ibidem, p. 34-35.
166
Ibidem, p. 37.
92
deste espírito derramado realizou-se, porém, apenas através do papa. Não
existe, portanto, uma futura igreja espiritual, mas a Igreja católica é, até a
segunda vinda de Cristo, a única instituição válida perfeitamente suficiente.
167
Contra os espirituais franciscanos, ligados ao pensamento joaquimita, que
questionavam a Igreja a partir de uma visão de futuro, a Igreja católica afirma a
identidade da Igreja de maneira a-histórica. A igreja, como forma institucional é
única e igual ao longo de todos os tempos.
(...) Entre os espirituais a identidade era uma categoria histórica. Eles
compreenderam as regras de S.Francisco como uma atualização das
exigências evangélicas de Cristo para uma nova época da história da salvação
(...) A reação contra o movimento franciscano, por seu lado, representada pela
inquisição eclesiástica, entende a identidade eclesiástica de maneira
totalmente a-histórica, como uma igualdade das instituições eclesiásticas
através dos tempos. (...) Com isto a instituição eclesiástica condenava como
herética uma compreensão de Igreja que exigia a renovação da Igreja
Institucional a partir do espírito. (...) A concepção de uma identidade
eclesiástica que avaliasse criticamente a ordem tradicional da instituição do
ponto de vista futuro do espírito, não tinha lugar na instituição e deveria ser,
conseqüentemente extinta.
168
A história eclesiástica, constata Brandt, revela, portanto, que na tensão entre
carisma e instituição, a tendência para a “ordem” e a preservação do “statatus
quo” é a que predomina e é justamente, nas iniciativas ligadas ao Espírito que
podemos encontrar a crítica e consequentemente o risco da “desordem”
Graças ao Espírito, é possível, sob certas circunstâncias, levantar a exigência
de defender a fé contra o status quo, contra a ordem eclesiástica, conta a
instituição. Apenas ali onde uma instituição eclesiástica concede esta
possibilidade em relação a si mesma, é possível falar efetivamente de
liberdade cristã.
169
A liberdade do Espírito, todavia, exige uma dose de entusiasmo que representa
uma faca de dois gumes: por um lado salva da sonolência em que mergulha a
instituição e por outro lado mata. O entusiasmo pode levar a uma cegueira que
não deixa ver que, muitas vezes, a crítica significa auto-afirmação de si e não
de Deus, perante a Instituição. O espírito em nome do qual se fala pode ser o
espírito de si mesmo e aqui o Espírito Santo pode estar também aprisionado.
Se a instituição se serve, muitas vezes, do Espírito, para garantir seu poder, o
167
Ibidem, p. 37.
168
Ibidem, p. 37-38.
169
Ibidem, p. 41-42.
93
entusiasta, acaba também se servindo do Espírito, para afirmar a perfeição do
seu próprio espírito, e, portanto, coloca também o Espírito a serviço de si
mesmo. Neste sentido se coloca a necessidade do discernimento, que é
temática sempre associada ao Espírito Santo.
2.4. O Espírito Santo como ameaça ao espírito humano
E finalmente, outro tema relacionado ao Espírito é, na tradição cristã, o
nascimento do homem novo, o humano transformado por Deus, transfigurado,
taborizado, divinizado. Com base na reflexão teológica sistemática sobre o
humano, podemos afirmar que, do ponto de vista antropológico, a obra do Pai,
do Filho e do Espírito em nós, é libertação, justificação, regeneração e
santificação da vida, operada em nós por obra do Pai, do Filho e vivenciada no
Espírito Santo.
A revelação neotestamentária afirma uma novidade radical. No Novo
Testamento, o Espírito de Deus não se apodera dos indivíduos em ocasiões
particulares, como no Antigo Testamento. Pelo dom do Espírito, o povo de
Deus existe em condições novas: de Corpo de Cristo e Templo do Espírito. Na
antropologia cristã, o homem novo é aquele em que o Espírito Santo habita e
torna filho de Deus como uma presença nova, sobrenatural divinizante.
Segundo Congar:
Deus, já presente por sua ação de criador e, portanto, substancialmente
porque sua ação é ele mesmo -, mas apenas por causa de ser e de operação,
se doa e torna-se presente substancialmente como objeto de conhecimento e
de amor, como termo de nosso retorno a ele enquanto Pai. Essa presença é
pessoal: Deus não está somente em nós, mas conosco e nós com ele.
170
O testemunho dos místicos é bastante esclarecedor a esse respeito, quando
fala de Deus agindo, vindo soberanamente à alma para se unir a ela, nela,
como ela está com ele, nele...
A vida nova no Espírito e segundo o Espírito é vida “em Cristo”, vida filial. O
Espírito Santo que habita o cristão de maneira pessoal e própria não age
170
Yves CONGAR, Ele é o Senhor e dá a vida, p.119.
94
independentemente do Pai e do Filho. O Espírito Santo é o único que pode nos
fazer atingir a verdade teândrica de Cristo em sua profundidade e nos conduzir
ao âmago da vida filial que é, escreve Congar, juntarmo-nos a Jesus em sua
oração:
Nós conhecemos bem essa oração: “Eu te louvo, Pai” (Lc 10, 21, “sob a ação
do Espírito Santo”); ”Pai, glorifica teu filho” (Jo 17,1); “Abba, Pai...” (no
Getsêmani: Mc 14, 36; Lc 22,42); “Pai, em tuas mãos entrego o meu
espírito”(Lc 23,46). E, aquela que conhecemos bem: “Quando rezardes, dizei:
Pai...” (Lc 11,2; Mt 6,9).
171
A filiação é, portanto, dom e promessa e o Espírito é ao mesmo tempo apelo ou
exigência e princípio da vida santa. O Espírito que habita o humano e o mundo,
promovendo a filiação como dom e promessa, liberta a liberdade humana para
um novo modo de existir. O fruto do Espírito é o Homem Novo, libertado para o
Amor.
A liberdade do Espírito, todavia, se experimenta na luta contra a carne. Este
termo, segundo as escrituras, é uma categoria polivalente, define Congar,
significa a condição terrena do homem e, nessa medida, é boa em si mesma.
Por outro lado e ao mesmo tempo, a carne manifesta a fraqueza e a
insuficiência da condição humana em relação à ordem divina
172
.
Para o cristão que deve se aplicar em viver sob o regime do Espírito, a carne
será expressão do princípio ou da sede de uma oposição ao que o Espírito
quer. Neste contexto de tensão, o Espírito atua para a conversão do pecador,
faz emergir diante da vida nova oferecida pelo Senhor Jesus, a consciência da
miséria
O Espírito age dentro, onde ele penetra como uma unção. Ele nos faz
experimentar, num nível mais profundo que o do remorso por esta ou aquela
falta, a atração soberana do Absoluto, do Puro, do Verídico, de uma vida nova
oferecida pelo Senhor Jesus e ele nos dá, diante de tudo isso, uma consciência
pungente de nossa miséria, da mentira e do egoísmo dos quais nossa vida está
cheia. Nós nos sentimos julgados e, ao mesmo tempo, antecipados pelo
perdão e pela graça. Caem então nossas falsas desculpas, o sistema de
autojustificação e de construção egocêntrica de nossa vida.
173
171
Ibidem, p.147.
172
Cf. Ibidem, p. 163.
173
Ibidem, p.169-170.
95
Essa é a verdade que promove a liberdade. O Espírito faz conhecer aquilo que
escraviza, colocando-nos diante do dom de Deus. A liberdade cristã é
combinação de despojamento e ousadia, experiência paradoxal só possível ao
humano pelo Espírito se Deus que o habita.
O tema da liberdade do Espírito é bastante abrangente. Para J. Moltmann, o
tema da liberdade, enquanto obra da Trindade, desperta em nós novas forças e
abre, através de circunstâncias históricas, novas oportunidades em torno de
nós. Isto quer dizer que a Palavra, no tempo propício, libera as energias
internas da fé, da esperança e do amor e, esse liberar das energias pode ser
entendido como testemunho interno do Espírito Santo que liberta para a
vida.
174
A liberdade que, segundo Congar, nasce do reconhecimento da
pequenez humana diante do dom de Deus, é, na perspectiva de Moltmann,
participação na dinâmica criativa de Deus que abre possibilidades inusitadas e
que alimenta a esperança no futuro. Neste sentido, este último afirma:
Crer desperta confiança em possibilidades ainda não realizadas no homem, na
própria pessoa e nos outros. Crer, por isso, significa ultrapassar os limites da
realidade dada e determinada pelo passado e buscar as possibilidades de vida que
não se realizaram.
175
“Espírito” é libertação interior e exterior experimentada a partir do
reconhecimento de Deus como “Senhor”. Senhorio que é proclamado a partir
da experiência do êxodo e da experiência da ressurreição e que é garantia de
liberdade diante da opressão e da morte. É na fraqueza da escravidão e na
impotência diante da morte que o cristão acolhe o dom de Deus que o faz livre
para a vida que não passa.
O Espírito que liberta, também justifica. A justificação, segundo Moltmann é
experiência do Espírito que corrige uns e outros e se constitui em força para o
agir dos justos e para a construção da paz. Enquanto experiência promovida
pelo Espírito de Deus, explicita Moltmann, a justificação é perceptível na dor
dos espoliados que clamam por seus direitos roubados; na má consciência ou
consciência de culpa, na insegurança interior e falta de paz dos autores da
injustiça; na instabilidade das condições injustas que exigem, para seu
174
Cf. Jürgen MOLTMANN, O Espírito da Vida, uma pneumatologia integral, p. 103-105.
175
Ibidem, p. 116.
96
sustento, medidas sempre mais violentas. O Espírito de Deus que justifica é a
presença solidária de Cristo nas e junto das vítimas da violência, é força de
expiação da ação vicária de Cristo pelas vítimas e nelas, é o amor divino que
sustenta, com o objetivo de cura, mesmo as comunidades humanas que se
autodestroem. Por isso, afirma Moltmann,
O Espírito Santo é a justiça de Deus que faz justiça aos espoliados, que
justifica e que corrige. Nele se torna possível a comunhão duradoura com
Deus, com as outras pessoas e com a natureza. Por isso, sob este aspecto
também podemos chamar o Espírito Santo de justificação da vida.
176
O Espírito Santo que justifica, também regenera. A “regeneração”, enquanto
páscoa, é passagem desta vida mortal e transitória à vida imortal e eterna, uma
modificação na substância íntima se opera na criatura provocando a renovação
nas atitudes e na condução da vida. Entre as múltiplas experiências de
regeneração, Moltmann destaca a experiência da efusiva alegria e a
experiência da paz que pressupõe a justiça, abrange a salvação e promove a
felicidade de corpo e alma, felicidade integral. Essa paz com Deus e essa
alegria pascoal são experiências do Espírito Santo, afirma Moltmann e
complementa
Se este Espírito de Deus é o “Espírito da ressurreição”, então somos possuídos
por uma esperança que vê diante de si possibilidades ilimitadas, porque olha
para o futuro de Deus. O coração se alarga. As metas da esperança da própria
vida e as próprias expectativas de vida se fundem nas promessas de Deus de
uma nova criação de todas as coisas. A própria vida finita e limitada recebe daí
um significado infinito. A profundeza transcendente do Espírito de Deus e a
amplidão escatológica do Espírito da ressurreição faz com que não possamos
falar de nossa “regeneração” como de uma experiência única e acabada que
tivéssemos deixado para trás. Permanecemos no experimentar a renovação e
o renovar-nos caminha conosco.
177
A espiritualidade cristã, enquanto renascimento, continua Moltmann, supõe
progressos no conhecimento de Deus, na libertação da vontade e na certeza
do coração. Progresso em perspectiva escatológica já que o que aqui é
experimentado como amor de Deus é apenas o início do que será
experimentado como glória de Deus. A santidade, esclarece esse autor, não é
um estado. Fundamentada na pertença a Deus cujo Espírito enche a terra e
176
Ibidem, p.140.
177
Ibidem, p.150.
97
constitui a vida a tudo quanto vive, a santidade é uma relação que se desdobra
num agir peculiar, agir de seguimento de Jesus, O Filho unigênito de Deus,
aquele que é espelho do desejo de Deus e promessa para toda a criação. Os
crentes, ao responder à palavra vivificante de Deus, não são objetos passivos
da santificação da criação por Deus, mas transformam-se em sujeitos. Neste
sentido, observa Moltmann,
Levam uma vida “peculiar”, porque não vivem mais segundo o ethos de sua
sociedade, mas já vivem de uma maneira cada vez mais intensa segundo a lei
do Reino de Deus, isto é, o Sermão da Montanha de Jesus. Santificação é
seguimento de Jesus, é tornar-se vivo no Espírito de Deus
178
.
Segundo Congar, os frutos do Espírito resultam em “disponibilidade pacífica e
alegre para acolher o outro, para amá-lo na paciência e na tranquilidade”
179
Nasce, então, pela verdade e a graça do Espírito que une transcendência e
imanência, o homem para Deus e para os outros, “livre e verdadeiro, exigente e
misericordioso, concentrado e aberto a todos”
180
, destinado às bem-
aventuranças. O Homem Novo é o humano libertado para a vida no Amor.
O Espírito que transforma o humano, segundo a perspectiva paulina, pode,
todavia, se transformar numa ameaça ao espírito humano.
Para os antigos Padres da Igreja, o humano é corpo, alma e espírito e este é a
melhor parte, aquela que o faz aberto à transcendência. São Jerônimo,
interpretando Gálatas 5, 16 (“Andai no Espírito, e jamais satisfareis a
concupuscência da carne), explica Brandt, vai dizer que o homem é carnal
quando se deixa levar pelos seus prazeres e desejos corporais, ou quando
segue sua “alma”, indecisa entre as influências da carne e do espírito. Quando
determinado pelo Espírito Santo, o homem é espiritual.
181
O espírito aqui é o que faz o humano aberto a Deus e como Imago Dei, capaz
para conhecer segundo a ciência divina e para amar conforme o amor divino,
absolutamente gratuito e desinteressado de qualquer retribuição.
Para os antigos, o espírito humano movido por Deus que habita o humano, o
abre para Deus fora do humano, o Pai revelado pelo Filho. No interior dessa
178
Ibidem, p.169.
179
Y. CONGAR, op. cit., p.190.
180
Ibidem, p.190.
98
dinâmica complexa de inter-relação que envolve Deus Pai, Filho, Espírito Santo
e o homem, o perigo é a confusão entre o espírito humano e o espírito divino, é
apresentar como sendo divino, o que é meramente humano.
Os místicos, neste sentido, vão falar de aniquilamento, desprendimento,
indiferença, despojamento necessário para que não haja confusão, mas
transformação do espírito (a melhor parte do homem) pelo espírito divino.
O Espírito Santo é aqui, de fato, uma ameaça ao espírito humano que,
querendo preservar-se a todo custo, apegado a si mesmo, não se deixa
transformar pelo Espírito.
Mais ameaçador ainda é o Espírito Santo para os modernos, eles que,
identificando o Espírito Absoluto e o espírito humano, acabam idealizando o
espírito humano e naturalizando o Espírito Divino.
3. Mística cristã e Teologia do Espírito
A experiência do espírito é propriamente aquela que podemos chamar também
de experiência mística, define Marco Vannini em um pequeno livro introdutório,
no entanto muito esclarecedor:
Trata-se, com efeito, essencialmente de um ato de conhecimento, que é
também amor, que é também compreensão de tudo aquilo que é. “Nela, o bem
dos outros te é precioso absolutamente tanto quanto o teu, e nada menos,
porque tu não és mais o pequeno, o limitado e o servil Konrad ou Heinrich”,
afirma Eckhart, “mas espírito”. “Pois o Senhor é o espírito, e onde está o
espírito do Senhor, aí está a liberdade”, escreve Paulo (2Cor 3, 17), referindo-
se certamente não à licenciosidade dos sectários do “Livre Espírito”, mas à
experiência específica da liberdade, que é a do fim da vontade.
182
A mística deve ser compreendida, o mesmo autor esclarece, no âmbito da
antropologia clássica e cristã, que falava do homem como um complexo de
corpo-alma-espírito
Na experiência (através da qual se pode dar conta também da elaboração
teológica, que de outro modo permaneceria abstrata e teórica), espírito é o
181
Cf. Hermann BRANDT, op. cit., p. 44
182
Marco VANNINI, Introdução à Mística, p.15-16. Marco Vannini é um estudioso italiano da
mística especulativa. Além de traduzir toda a obra de Mestre Eckhart para o italiano, cuidou
também das edições de Marguerite Porete, Tauler, Gerson, Lutero e Silesius.
99
conceito que sintetiza a inteligência em seu nível mais elevado, capaz de ir
além da aparente oposição dos contrários, e o amor, sempre em seu ser mais
amplo, não depende do objeto, estendido ao universal, “sem porquê”.
Inteligência e amor são, na tradição mística medieval, os dois olhos da alma,
que tornam claro e puro o seu olhar, ou seja, que a tornam espírito. (...) Juntos,
profundamente unidos até formar uma única operação, essa inteligência e esse
amor são o espírito, que é, por conseguinte, absolutamente humano, aliás,
constitutivo essencial do homem.
183
Próprio da mística, o mesmo autor continua, e daí a referência ao mistério, é a
experiência de unidade com Deus que não cabe na linguagem. Quando o
místico tenta manifestar a experiência da profunda união eu-Deus, na qual o eu
não é mais o pequeno eu psicológico, centro da vontade particular, e Deus não
é mais o Ser supremo, alto e Outro, o místico começa a claudicar, torna-se
equívoco e atrai a suspeita dos guardiões da ortodoxia. Absurdo para o místico
é o termo eu, porque é Deus quem constitui o mais profundo “eu”. Também
absurdo é o termo Deus definido positivamente como se tratasse de um ente
em meio a outros tantos, um objeto em meio a tantos objetos: a mística tem
necessidade, por conseguinte, de uma dialética que não fique presa na rede
das (falsas) oposições, e que diante da insuficiência da linguagem, privilegie o
silêncio.
O núcleo místico do cristianismo deve ser compreendido a partir da mensagem
essencial de Jesus: o reino de Deus está presente e se encontra dentro de
vocês. A mística cristã vai afirmar a união com Deus em Cristo.
A mística, enquanto “ser um só espírito com o Senhor”, está radicada no
Evangelho e constitui o seu núcleo; em Paulo se concentra sobre a
transformação do homem carnal e psíquico em homem espiritual que tem os
mesmos sentimentos de Cristo
184
.
Para Paulo, segundo Congar, o Espírito que fez da humanidade de Jesus, uma
humanidade completa de Filho de Deus, opera também em nós (Paulo se
dirige sempre às comunidades cristãs), transformando-nos em filhos no Filho,
chamados a herdar a Promessa feita a Abraão, promessa ligada à fé de
Abraão e que se realiza na economia da fé, não da lei. No Filho, aprendemos a
dizer “Abbá, Pai!” (Rm 8,14-17). No Filho o próprio Deus se comunica conosco,
183
Ibidem, p. 17.
184
Ibidem, p. 24.
100
se torna ativo em nós para aí suscitar os atos da vida filial, os de “Cristo em
nós”. Neste sentido,
Não é a substância de Deus que toma o lugar de nossa substância, é a
comunicação de um dinamismo, de uma faculdade de ação, e somos nós que
agimos.
185
Diante de Jesus e nele (identificada com Ele), a comunidade - a experiência do
Espírito que Paulo descreve é fundamentalmente eclesial capta sua
responsabilidade salvífica, a responsabilidade pela libertação do pecado.
Reunidos em liturgia, vê a meta, angustia-se na visão de um mundo que impõe
limites à ação de Deus e geme, lança suspiros. O Espírito, afirma Käsemann,
interpretando Rm 8, 26-27,se manifesta na terra, nos gemidos inefáveis dos
crentes que, reconhecendo a sua impotência e a responsabilidade do dever,
como filhos de Deus, salvar a criação, inspira, põe na boca do crente, palavras
indizíveis palavras que brotam das profundezas e que são incompreensíveis
para os que não passaram pela conversão com as quais a comunidade pode
pedir a Deus aquilo que ele quer dar: a verdadeira salvação. Em Cristo,
segundo Paulo, a comunidade vive a liberdade na esperança e assume a
responsabilidade da libertação pelo poder do amor.
186
João, o evangelista que sublinha a divindade de Cristo, a sua identidade com o
Pai (elemento, esse, de ruptura total com o judaísmo) e, paralelamente a
relação de amizade não de subordinação que une os discípulos a Jesus, a
tal ponto que estes farão obras maiores que as realizadas por Ele (Jo 14,12),
vai estar também nos fundamentos da mística. Os conceitos joaninos da
realidade de Deus como Espírito, da divindade de Cristo e da comunhão
espiritual entre ele e o fiel sejam eles de origem grega ou não são, de
qualquer forma, o fundamento primeiro da mística
187
.
Em João, Jesus vem de Deus, se faz carne totalmente voltado para Deus,
comunica a vida eterna que é a vida no Amor que é o próprio Deus. O Espírito
é dado aos seguidores de Jesus para que, conhecendo a Verdade que é a
salvação pelo poder do Amor, tenham a vida em abundância. A revelação
suprema de João é que a unidade com Deus união mística - se dá na
185
Y. CONGAR, Revelação e experiência do Espírito, p. 52.
186
Cf. Ernst KÄSEMANN, Perspectivas Paulinas, p.195-217.
101
vivência do Amor que é o próprio Deus ofertado pelo Filho, o outro Paráclito
prometido no último discurso (Jo 14, 16-17) - defensor, auxílio, consolador,
assistente, advogado, procurador, conselheiro, mediador, o que exorta e lança
apelos urgentes - aquele que, estando no mundo e entre os discípulos até a
plenitude dos tempos, ensinará e recordará (Jo 14,26), dará testemunho de
Jesus (Jo 15, 26-27), estabelecerá a culpabilidade do mundo (Jo 16, 7-11) e
conduzirá os discípulos à plenitude da verdade 16, 13-15).
188
O Espírito não
inventa, ele não inova outra economia, ele vivifica a carne e as palavras de
Jesus, ele faz que suas palavras sejam relembradas e faz com que toda a
verdade penetre nelas
189
.
Nos escritos Joaninos, o Espírito, Deus em nós, é Amor que impulsiona a
realização do mistério cristão para frente, na história dos homens. No
Apocalípse, o testemunho de Jesus é chamado de “o espírito da profecia” (Ap
19,10).
O Espírito não se revela por si mesmo, ele aparece relacionado com Jesus,
comunicado por ele, intervém junto às Igrejas à Igreja para adverti-las e
conduzi-las na verdade. É sem cessar para elas uma inspiração de Jesus, uma
aspiração ao Senhor Jesus: “O Espírito e a Esposa dizem: Vem! (Ap 22,17)”.
Isso através de uma situação de tribulação e de luta, o combate da fé, que
corresponde ao que dizem o quarto evangelho e a primeira carta de João
190
.
Contudo, tenhamos explicitado o núcleo neo-testamentário da mística,
devemos agora retomar o caminho, procurando entender a mística no contexto
de uma cosmovisão grega que pressupõe uma compreensão antropológica
clássica que, pensando o humano como um complexo de carne-alma-espírito,
vislumbra a divinização.
Segundo Lima Vaz, o sentido original do termo mística remete à uma
cosmovisão Neo-platônica:
(...) o sentido original, e que vigorou por longo tempo, do termo mística e de
seus derivados diz respeito a uma forma superior de experiência, de natureza
religiosa, ou religioso-filosófica (Plotino), que se desenrola , - normalmente num
plano transracional não aquém, mas além da razão, mas, por outro lado,
mobiliza as mais poderosas energias psíquicas do indivíduo. Orientadas pela
187
Marco VANNINI, op. cit., p. 24.
188
Cf. Y. CONGAR, op. cit., p.79.
189
Ibidem, p. 83.
190
Ibidem, p. 87.
102
intencionalidade própria dessa original experiência que aponta para uma
realidade transcendente, essas energias elevam o ser humano às mais altas
formas de conhecimento e de amor que lhe é dado alcançar nessa vida.”
191
Mística é, portanto, antes de tudo, ascese do espírito humano em busca do
Absoluto transcendente (ponto de referência fora dele) que o atrai e o
transforma. Essa experiência, do ponto de vista do sujeito, afirma Lima Vaz,
que ocorre onde cessa o discurso da razão, é experiência inefável do Absoluto,
absolutamente singular e impossível de ser partilhada. Considerada do ponto
de vista do objeto, a experiência mística, complementa o autor, move-se na
esfera de uma transcendência real, movimento que implica, segundo ele, num
primeiro momento, a posição entre parênteses do mundo
192
. Neste sentido, a
experiência mística, enquanto busca do Absoluto transcendente, significa
esforço de superação da imanência e, portanto, crítica do mundo.
3.1. Referências gregas e originalidade cristã
Para Lima Vaz, uma interpretação adequada da experiência mística supõe uma
concepção antropológica. O fundamento antropológico da experiência mística,
afirma ele, supõe uma concepção de ser humano aberto a uma dupla
concepção de transcendência: a transcendência da inteligência espiritual e a
transcendência ontológica do absoluto.
A teoria da experiência mística, seja a que está implícita no próprio testemunho
dos místicos, seja a que é explicitada na reflexão filosófica e teológica, é
constituída, portanto, sobre um fundamento antropológico, no qual a concepção
do ser humano está aberta ao acolhimento de uma dupla dimensão da
transcendência: a) de uma lado, a transcendência da inteligência espiritual,
seja sobre o entendimento discursivo e o livre-arbítrio, seja sobre as atividades
próprias do psiquismo; b) de outro, a transcendência ontológica do Absoluto,
sobre o sujeito finito que a ele se une na experiência mística.
193
A experiência mística tem, então, como referência um modelo antropológico
dotado de uma estrutura vertical aberta:
191
Henrique C.LIMA VAZ, Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, p. 9-10.
192
Cf. Ibidem, p. 10-11.
193
Ibidem, p. 20-21.
103
(...) coroada pela fina ponta do espírito (noûs ou mens), capaz de captar a
universalidade formal do ser e de afirmar seu existir real (Metafísica), ou de
unir-se fruitivamente ao Absoluto (Mística).
194
A transcrição conceitual dessa estrutura antropológica vertical, continua Lima
Vaz, se fará segundo dois esquemas clássicos:
(...) a) O esquema dual corpo-alma, construído segundo um procedimento
analítico análise da substância “ser humano” em seus princípios constitutivos;
b) e o esquema trial corpo-alma-espírito, constituído segundo um procedimento
dialético articulação do movimento de auto-expressão de ser humano na
passagem da natureza dada à forma manifestada.
A teoria mística, portanto, segundo Lima Vaz, apóia-se num substrato
antropológico que reúne motivos platônicos, estóicos e cristãos, substrato que
afirma a natureza do espírito enquanto este é capaz de elevar-se à experiência
fruitiva do Absoluto.
A teoria mística (...) apóia-se, portanto, num substrato antropológico, que é a
natureza do espírito enquanto este é capaz de elevar-se por suas próprias
forças mística natural ou pela graça divina mística sobrenatunal à
experiência fruitiva do Absoluto em si mesmo ou em alguma de suas
manifestações.
Contudo, depois de considerada a relação entre a experiência mística e a
cosmovisão grega, é preciso perceber, por outro lado, a originalidade da
mística como espiritualidade cristã.
A palavra mística aplicada a uma certa maneira de conhecer Deus diretamente
e de maneira quase experimental, segundo L. Bouyer, tem sua origem no uso
original que encontra dentro da tradição cristã. Segundo esse autor, os
empregos pré-cristãos mais antigos da palavra não têm esse sentido:
(...) Na religiosidade helenista, o “segredo” que é propriamente “místico”,
não é o segredo de algum inefável conhecimento religioso, mas é o
segredo de um rito em sua pura materialidade.
195
194
Ibidem, p. 21.
195
L. BOUYER. “MYSTIQUE” Essai sur l’histoire dúm mot. La Vie Spirituali, no.9 - 15 Mai
1949.
104
Na perspectiva desse autor, a história da palavra “mística” na literatura cristã
vai mostrar que o sentido dessa palavra não se explica simplesmente pela
referência ou dependência do cristianismo em relação ao helenismo, mas o
sentido da mística cristã se explicita por referência à Bíblia e à liturgia,
especialmente à liturgia eucarística.
Os textos cristãos, com efeito, onde a palavras “µιστιχοσ” vai ganhar o sentido
propriamente religioso e doutrinal que ele não tinha antes, podem ser
classificados, a grosso modo, em três grandes divisões: a primeira bíblica, a
segunda litúrgica e a terceira espiritual.
196
O uso mais original do vocabulário mistérico remonta o emprego em
Alexandria, num sentido puramente metafórico. A palavra mística, dizendo
respeito a algo que toca de maneira muito viva a imaginação grega acabou por
oferecer um rico simbolismo poético para designar as reflexões e a
investigação sobre o enigma do mundo, o pensamento metafísico, religioso ou
não, ou ainda, toda a descoberta laboriosa relacionada a qualquer objeto
197
.
Em Fílon de Alexandria, afirma Bouyer, ela foi um meio de poetizar exposições
técnicas das questões mais obscuras. Em Clemente e Orígenes, ela vai
designar, habitualmente, tudo o que toca àquilo que eles consideram como o
mais difícil problema teológico posto pelo cristianismo, a saber, a idéia
fundamental evangélica e paulina que toda a Bíblia e toda a história do Povo de
Deus, não encontra sentido definitivo senão em Cristo.
Para os Padres Gregos, a mística é, antes de tudo, a realidade divina que o
Cristo nos traz, que o Evangelho nos revela, que dá sentido definitivo a toda a
Escritura:
É místico, portanto, todo conhecimento das coisas divinas às quais se
ascendem por Cristo, em seguida, por derivação, estas coisas em si mesmas.
Enfim, a palavra passa, sempre na mesma linha, pela realidade espiritual do
culto “em Espírito e em Verdade”, oposta à vacuidade de uma religião exterior
que a vinda do Salvador não revivificou.
198
Do contexto Bíblico, continua esse autor, a palavra mística passa ao contexto
sacramental, em especial, ao eucarístico. O que se vê nos textos antigos,
196
Ibidem, p.8.
197
Cf. Ibidem, p.7.
105
explicita ele, é o duplo cuidado de insistir sobre a realidade da Eucaristia que é
o Cristo e todos os dons que dele não se separam (os sacramentos) e sobre o
fato de que essa realidade é ainda, de certa maneira, velada. A última Ceia vai
inspirar uma série de textos onde o sentido da palavra mística passa da idéia
de compreensão das Escrituras à idéia de uma realidade sacramental. Nestes
textos, comenta o autor, os Padres da época constantiniana vão aplicar, pela
primeira vez, a terminologia dos rituais pagãos aos ritos cristãos.
Nestes textos onde esta referência primeira à realidade sobrenatural do Cristo
aparece ainda subjacente, mais onde uma primeira transferência deliberada à
celebração do mistério cristão dos termos dos mistérios pagãos suplantados
por ele parece não estar excluída, o conjunto da liturgia eucarística é chamado
“culto mistérico”, “hierurgia mística”. Esse é, com efeito, um traço marcante da
terminologia litúrgica dos Padres da época constantiniana, o de aplicar pela
primeira vez, aos ritos cristãos, as expressões emprestadas dos rituais
pagãos.
199
A palavra mística designa, então, sempre a mesma realidade central do
cristianismo, seja sob o aspecto de revelação final do plano de Deus discernido
através das Escrituras, elaborado através de toda a história humana; seja sob o
aspecto do símbolo sacramental que contém ele mesmo o objeto desta
revelação e que acaba por ele de se realizar em nós.
O terceiro sentido da palavra mística, ainda segundo esse autor, sentido que
não se desenvolve independentemente do uso da palavra no contexto
exegético e litúrgico, mas que adquire o sentido espiritual de modo inefável de
conhecimento experimental das coisas divinas, encontra-se em Dionísio, o
Areopagita.
Em sua “Teologia Mística”, Dionísio, inspirado na tradição exegética sobre
Moisés, em especial pelas Homilias sobre o Êxodo de Orígenes e pela Vida de
Moisés de Gregório de Nissa, nos diz que entramos “nas Trevas
verdadeiramente místicas do não-cognocível”, quando tocamos o objeto único
do Evangelho que nos é apresentado através da multiplicidade de suas
palavras, além dos detalhes tanto das consagrações litúrgicas quanto das luzes
particulares da revelação bíblica
200
. Neste sentido, o Evangelho, vasto e
198
Ibidem, p.13.
199
Ibidem, p.15.
200
Cf. Ibidem, p. 20.
106
conciso, é expressão da Causa universal e benfeitora que transcende todas as
coisas.
(...) Parece-me que aí esta um maravilhoso pensamento, porque se a Causa
universal e benfeitora se exprime com muitas palavras, ela não é nem racional
nem inteligível, pois transcende todas as coisas de maneira supra-essencial e
não manifesta a descoberto e verdadeiramente a não ser àqueles que vão
além de toda consagração ritual e de toda purificação, que ultrapassam toda
ascensão dos cumes mais santos, que abandonam todas as luzes divinas,
todas as palavras e todas as razões celestes, para dessa forma penetrar nessa
Treva em que, segundo a Escritura, Aquele que é totalmente transcendente
existe com uma existência absoluta.
201
O objeto único do Evangelho, presente e velado, explicita Bouyer, é o mesmo
que os Padres da Igreja depois de Paulo chamam Mistérion”, e que em
Dionísio é “o Deus que permanece em uma luz inacessível” se deixando
misteriosamente tocar por nós em Jesus Cristo
202
.
3.2. Mística e Teologia em Pseudo-Dionísio o Areopagita
A explicitação do modo inefável de conhecimento experimental das coisas
divinas a que se chega pela transformação que a Trindade opera no mundo é,
em Dionísio Teologia. Transformação que é obra de Deus triuno, pelo Filho,
Jesus supra-essencial que revestiu verdadeiramente a natureza humana, no
Espírito, que é o modo como do próprio coração do Bem imaterial e indivisível
saem as luzes da bondade que se difundem e ao mesmo tempo permanecem,
graças ao seu eterno renascimento, nele mesmo, e cada uma em si e todas
mutuamente umas com as outras
203
.
Em Dionísio, Mística é teologia e neste sentido, sua Teologia Mística, pequeno
tratado de importância fundamental para todo o desenvolvimento do
pensamento cristão, é o ápice de toda a sua teologia. Ele não só cria o termo
“teologia mística”, afirma Bernard McGinn, como dá expressão sistemática à
visão dialética da relação entre Deus e o mundo que foi a fonte de sistemas
201
PSEUDO-DIONÍSIO, o Areopagita. Em: Obras Completas, p.131.
202
Cf. L. BOUYER, op. cit., p.20.
203
Cf. PSEUDO-DIONÍSIO, o Areopagita. op. cit., p.133.
107
mistico-especulativos por pelo menos mil anos
204
. A estrutura do sistema
teológico de Dionísio, segundo esse autor, é a mais importante contribuição
para a história da mística latina. O centro da teológia de Dionísio, ele explicita,
é a explanação sobre como o completamente icognoscível Deus se manifesta
na criação a fim de que todos possam alcançar união com a não-manifestada
Fonte. O programa de Dionísio, ele afirma, é uma ordem na qual o Eros divino
refrata-se nas múltiplas teofanias do universo e através da qual, é possível o
retorno erótico de toda a multiplicidade para a simples unidade
205
.
Segundo Balthasar, em Dionísio, tudo é em tudo, conforme a grande corrente
do ser como fluxo e refluxo, proodos e epistrophê, movimento, cujo sentido, é a
manifestação do que não aparece, de Deus sempre maior e sempre mais
escondido. Movimento que contempla uma relação entre negação e afirmação
que se encontra no sentido grego de manifestação (Platão, Plotino, Proclos,
Gregório de Nissa e Agostinho), mas que em Dionísio, encontra um equilíbrio
perfeito:
(...) o extraordinário movimento ascendente de negação, se intensificando
muitas vezes até o extremo que subordina a catafáfica (atribuição de todos os
nomes) à apofática (rejeição de todos os nomes), não se inflama portanto
jamais e sempre mais ardentemente senão que ao movimento descendente
de Deus que se comunica nas manifestações.
206
.
Diante dessas manifestações de Deus nas aparências, não se observa em
Dionísio, e isso é o que lhe é característico, afirma Balthasar, nenhum
menosprezo, na medida que esta atitude repercutiria nas relações com Deus
que aparece.
O conhecimento de Deus requer, portanto, uma penetração sempre mais
profunda e o ultrapassamento sempre mais completo da imagem, e as duas
coisas não separadas, nem justapostas, mas se integrando sempre mais
profundamente. A teologia é adoração admirada diante da Beleza insondável
que aparece em todas as manifestações. Porque Deus é em tudo e além de
tudo, a existência e o conhecimento são uma celebração permanente da glória
204
Bernard McGINN, The Foundations of Mysticism: The Presence of God: A History of
Western Christian Mysticism, p.158.
205
Cf. Ibidem, p. 161.
108
divina que reina em tudo e além de tudo e que se comunica em tudo. A teologia
é, portanto, antes de tudo iniciação.
No sentido mais largo a teologia é a ordem concêntrica do céu e da terra, dos
anjos e dos homens unidos num canto de louvor em torno do trono do Invisível:
palavra que se propaga em círculos sempre mais vastos, toda em torno do
centro do silêncio; sonoridade em torno do silêncio essencial, oculto de uma
maneira inacessível.
207
Para Dionísio, complementa Balthasar, o silêncio central não é vazio, mas é
Palavra original e perfeitamente simples que se situa além de todas as palavras
sonoras.
A teologia que para Dionísio tem seu ápice na teologia negativa, não é mística
iconoclasta, mas é esforço tenso que se exerce num movimento que vai da
catafasis à apofásis e contempla o material (expresso em termos sensíveis); o
intelectual (expresso em termos positivos) e o divino (expresso em termos
negativos). A teologia se articula como saber que supõe três graus: o
simbólico, o inteligível e o místico.
Dionísio contempla os símbolos na criação com uma complacência estética,
afirma Balthasar. Vê a Deus nas coisas. As cores, formas, essências,
propriedades, são teofanias imediatas. São véus amados que ele abandona
por amor ao velado. Dionísio vai dizer sobre as coisas, em relação à Deus, que
são “similitude dessemelhante”, são semelhantes no que elas imitam tanto
quanto podem, o Inimitável, dessemelhantes no que os efeitos permanecem
inferiores à causa e se afastam dela numa medida que escapa a todo limite e à
toda comparação
208
.
O símbolo sensível fala de Deus somente graças à mediação do espírito que
compreende, afirma Balthasar, passando para a teologia de Dionísio em seu
segundo grau
209
. Aqui, o que o espírito compreende de Deus são “os nomes
206
Hans Urs Von BALTHAZAR, La Gloire e la Croix: les aspects esthétiques de la Révélation,
p.150-151.
207
Ibidem, p. 158.
208
Cf. Ibidem, p.164.
209
É importante obeservar aqui que, embora Balthasar veja na teologia de Dionísio uma
distinção de graus, ele ao mesmo tempo ressalta que esses graus se condicionam
reciprocamente. Não se pode dizer, ele afirma, que os símbolos e os conceitos sejam
expressões da imanência de Deus e que a mística seja expressão da transcendência. Em
Dionísio, os símbolos e conceitos são decifráveis somente na medida de sua referência à Deus
que é o “Tolamente Outro”, aquele que é celebrado através das negações da Mística. Em todos
109
divinos” no cosmos, expressão de comunicação autêntica e da vontade de
Deus de se fazer compreensível. Todavia, e aqui novamente de maneira
dialética, completa o autor citando “Nomes Divinos”, o espírito que compreende
pode compreender teologicamente a comunicação complexiva de Deus da qual
ele é parte, somente se reconhece que toda sua compreensão de Deus é
apreensão do incompreensível.
Para Dionísio, o incompreensível está no realmente compreensível, por ser
precisamente o Deus incompreensível todo ele que se manifesta em suas
comunicações. Não há em Dionísio nenhum traço de abismos sem fundo
gnósticos e hegelianos, cuja obscuridade se esclareceria em uma
compreensão de conjunto. Ao contrário, em toda a sua obra existe a
consciência de que na máxima incompreensão encontramos com o Mistério e
de que na máxima incompreensão estamos envoltos pela suprema luz
divina.
210
Segundo Balthasar, a teologia de Dionísio, enquanto eidética teológica, abarca
em primeiro lugar a interpretação do mundo como ato de comunicação de Deus
(processão ou no grego proodos). Isso é o que constitui o conteúdo dos
“Nomes Divinos”. Em segundo lugar, encontra-se a interpretação do mundo
como resultado dessa comunicação divina, a “ordem sagrada”, hierarquia
disposta por Deus que é ordem como retorno da criatura a Deus (no grego
episthophé)
211
. Essa dinâmica que é participação no imparticipável implica
“multiplicação” e “diferenciação”, “proximidade” e “distancia” como em Orígenes
e Plotino, mas em Dionísio, ressalta Balthasar, adquire um sentido diferente
porque é dinâmica em que a finitude e o limite não são rechaçados, mas
afirmados, pois, é a partir da peculiaridade de cada um, que Deus retira o
índivíduo de si, levando-o a uma unidade não confusa entre si e Deus.
(...)Dionísio não tem em vista uma ontologia imanente da criatura, e não quer
fornecer uma doutrina de Deus em si mesmo. Ele quer somente (em “Nomes
Divinos”) celebrar aquela Providência que é a Bondade por excelência e da
qual se diz que é a origem de todo bem, celebrado-a como Causa universal do
bem, como Ser, como Vida, como Sabedoria, como Produtora da essência,
como Fonte de vida, como Causa de tudo o que tem parte com sabedoria, com
a essência, com a vida, com a inteligência, com a razão e com a sensação.
212
os graus, permanece a tensão colocada pelo desejo de conhecer o incognoscível. (Cf. Von
BALTHASAR, op.cit., p.163).
210
Ibidem, p. 169.
211
Cf. Ibidem, p. 169.
110
Esse Deus, inominável em si e para nós, é para Dionísio, todo o nome no
mundo, toda forma, sem ter forma. Ele que cria de sí, no mundo, toda
proporção e contraste está por sua vez, acima de toda identidade e da não-
identidade, da igualdade e da desigualdade, da semelhança e da
dessemelhança, da grandeza e da pequenez, do movimento e da quietude.
Neste sentido, por estar acima de tudo, do repouso e do movimento, da finitude
e da infinitude, Deus não está em oposição direta com criatura alguma. Em
Dionísio, a criatura que deriva e é um nome de Deus, é afirmada em sua
limitação e finitude. Para ele, a qualidade peculiar do indivíduo em sua
desiqualdade é tão positiva e definitiva quanto a afinidade, a harmonia das
partes dos conjuntos e o hálito comum que tudo penetra. O que aproxima a
criação de Deus não é Deus que ela expressa, porque ele permanece além de
tudo, mas é o retorno, movimento passivo-ativo da criação de saída de si, em
direção a Ele.
Neste contexto é que se entende o segundo momento do movimento da
teologia de Dionísio, que consiste na interpretação do mundo como “ordem
sagrada”, hierarquia disposta por Deus que é ordem como retorno da criatura.
Segundo Dionísio, hierarquia é ordem segundo um “estado” e não segundo
uma “função” como costumamos pensar. Trata-se, afirma Balthasar de estar
posto num lugar determinado pela ordem do ser, pelo conhecimento e pela
atividade para daí empreender o movimento de retorno. Ser, conhecer e agir
são, fatores que se determinam de e para a transcendência, para atingir, na
medida do possível, a assimilação à Deus e a imitação de Deus. Conhecimento
é, então, em primeiro lugar, apreensão da luz espiritual de Deus e ação é
transmissão dessa luz por imitação de Deus que sai de si, se comunica. Mas
porque, a criatura que sai é, ao mesmo tempo, criatura caída, a conversão a
Deus requer como pressuposto uma purificação, um movimento de retorno. A
criatura encontra a si mesma e realiza sua ordem essencial neste movimento
extático até Deus. Esse movimento tem, portanto, carater triádico: “purificação”
que corresponde ao movimento de retorno (epistrophé), “iluminação” que
corresponde à autorevelação da luz íntima de Deus (proodos) e a “perfeição”
212
Ibidem, p. 172.
111
que consiste na “união” (henosis) com Deus que permanece imóvel em si
mesmo.
213
.
Do ponto de vista do indivíduo, o movimento é resposta estritamente
complementar à articulação da revelação, resposta passiva ao Deus ativo, mas
é também movimento ativo em busca de Deus. O espírito que tem a Deus além
de si, deve, em imitação ao Deus que sai de si e se comunica, sair de si e
comunicar o que tem alcançado à outros.
(...) assim como Deus desce abaixo de si, assim o espírito que tem a Deus
mais além de si, desce abaixo de si para transmitir o que tem alcançado,
àqueles que não o tem. Esta atividade comunicativa conserva necessariamente
o caráter triádico que deve dar-se entre a criatura e Deus, e o espírito pode
assim purificar aos demais orientando-os à Deus, porque Deus o purifica; pode
iluminar para Deus porque é iluminado, e pode contribuir à unificação com
Deus porque está ele mesmo, unificado.
214
O sentido último das hierarquias é, do ponto de vista de Dionísio, não o
conhecimento ou a representação de Deus, mas o amor entendido como “amor
incessante à Deus”, ao que nos elevam a “purificação”, a “iluminação” e a
“unificação”.
A teologia espiritual de Dionísio, a eidética teológica é aqui, portanto,
interpretação da relação entre Deus e o mundo captada e comunicada por
aquele que empreende o caminho religioso em direção à Deus que é em tudo e
além de tudo.
A teologia mística, completa Balthasar, constitui o ápice de toda a afirmação
teológica de maneira que, teologia simbólica, espiritual e mística se necessitam
mutuamente. Nesta teologia, afirma ainda Balthasar, não há tensão entre
dogmática e mística.
A experiência mística, em Dionísio, segundo Balthasar, é a realização do que
Deus, que é Treva mais que luminosa, opera no ser e no conhecer humano
que se volta para ele em relação estabelecida por ele. A experiência mística
aqui, não é, insiste Balthasar, uma experiência psicológica. Ela representa uma
realização filosófica-teológica do que é: êxtase de si à Deus por imitação do
eros extático divino que entra por amor, na multiplicidade do mundo. Esse
213
Cf. Ibidem, p. 179.
112
êxtase não será em Dionísio, perda de identidade, mas é fundamento e
aprofundamento dela
215
.
A relação da criatura com Deus sempre maior é, em Dionísio, relação
estabelecida por Deus a partir da criação. Nesta relação, cabe a Deus mesmo
elevar os véus dissimuladores do ser e do conhecer criados. A impressão
negativa disso que Deus opera, é o método de pensar apofático.
O método de negação contínua e de remoção crescente dos envoltórios
simbólicos sensíveis e dos conceitos espirituais não é, para Dionísio, separado
da experiência positivamente mística que procede de Deus. O que de concreto
ele tem constantemente em vista, não é o método de pensamento, mas é um
encontro carregado de experiência, evento que se realiza diante do mistério do
Deus vivo apreendido na fé. Por isso, o “terceiro passo”, somente mencionado
e que ultrapassa a afirmação e a negação, o movimento de ultrapassamento
(hyperochê) não é um “método” de conhecimento, mas uma demonstração que
além de toda a afirmação e negação de que é capaz a criatura, não há mais
que a transcendência absoluta de Deus. A palavra suprema da teologia
mística” deve então ser que Deus não é somente além de todas as afirmações,
mas também além de todas as negações.
216
Neste sentido, Deus que levanta o véu leva àquele que fecha os olhos,
transformando o ser e o conhecer, à afirmação de que Deus é além de todas
as afirmações e negações, Treva mais que luminosa.
Através de expressões em parte herdadas de Plotino e Proclus (unificação sem
conhecimento; se lançar ao raio tenebroso, contato), Dionísio descreve, de um
ponto de vista teológico e não psicológico, o sentido positivo das negações.
O sistema de Dionísio vislumbra, portanto, como finalidade última desse
movimento de participação em Deus, a união mística, considerada por ele em
termos de divinização. Segundo Bernard McGinn, em Dionísio, a divinização
consiste em ser, tanto quanto possível, como Deus e unido a Ele.
(...) Divinização (geralmente theósis) é a dádiva que Deus confere aos seres
dotados de razão e inteligência (Hierarquia Eclesiástica 1.4) através da
participação deles nas hierarquias. (...)
Em identificando união e divinização, Dionísius (was tying) sua nova forma de
misticismo dialético que teria se tornado exemplar no pensamento cristão.
217
214
Ibidem, p. 180.
215
Cf. Ibidem, p. 187.
216
Ibidem, p. 188.
217
Bernard McGINN, op. cit., p.178.
113
Dionísio concorda com autores cristãos antigos ao acreditar que a alma é
divina e pode alcançar uma forma de união indistinta com Deus, mas, em sua
visão menos platônica do que a de muitos autores patrísticos, comenta
McGinn, entende que ela é divina somente como uma manifestação e é
unificada e divinizada somente pelo eros ascendente de Deus. Divinização,
neste sentido, é um dom e não um direito de nascença
218
.
A união mística, identificada aqui com a divinização, será, portanto, na
concepção de Dionísio, baseada na transcendentalização do conhecimento em
não conhecimento e do desejo erótico
219
em possessão extática. Amor e
conhecimento têm papel essencial na ascese amorosa. Para Dionísio, o desejo
amoroso (Eros) que é ao mesmo tempo amor caridoso (Aghapé), pode ser
entendido como poder para efetuar união, reunião e conservação.
Todavia, dirigindo-se àqueles que sabem entender o verdadeiro sentido das
palavras divinas, os santos teólogos, para lhes revelar os segredos divinos,
atribuem mesmo valor às duas expressões de caridade e desejo. Com efeito,
as duas designam um mesmo poder de unificação e de reunião, e mais ainda
de conservação, que pertencem desde toda eternidade ao Belo-e-Bem graças
ao Belo-e-Bem; que emana do Belo-e-Bem; que une uns aos outros os seres
da mesma categoria; que leva os superiores a exercer sua providência em
relação aos inferiores; que converte os inferiores e os liga aos superiores.
220
Esse desejo amoroso é capacidade que preexiste em Deus, na Tearquia, e é a
partir dela, comunicado à criação, no cósmico pulsar da processão e reversão.
O desejo amoroso que vem de Deus, em Deus, para nós, é extático. Graças a
ele, afirma Dionísio, os amorosos não mais se pertencem, mas pertencem
àqueles que amam. É poder de unificação pelo êxtase que é saída de si para o
exercício da providência e da comunhão.
(...) O próprio Deus, que é causa universal e cujo desejo amoroso, ao mesmo
tempo belo e bom, se estende à totalidade dos seres pela superabundância de
sua bondade amorosa, sai também de si mesmo quando exerce suas
Providências em relação a todos os seres e que de alguma foram ele os cativa
pelo sortilégio de sua bondade, de sua caridade e de seu desejo. É assim que,
total e perfeitamente transcendente, não condescende menos ao cuidado de
218
Cf. Ibidem, p. 178.
219
É importante lembrar que Eros deve aqui ser entendido, não a partir de uma perspectiva
sexualizada e intersubjetiva, mas como princípio metafísico.
220
Pseudo-Dionísio, o Areopagita, Os Nomes Divinos, 4.12 (709C-709D), Em: Obras
Completas, p. 53.
114
todos os seres graças a este poder extático, supra-essencial e indivisível que
lhe pertence.
221
A teologia segundo Dionísio o Areopagita, em sua dinâmica dialética,
contempla liberdade e transformação que se processa no contexto da
contemplação da presença amorosa de Deus Triuno que, saindo de si sem
deixar de ser em si mesmo pela encarnação do Verbo, opera a salvação,
conduzindo, no Espírito, a criação inteira ao encontro consigo. A mística, no
contexto da espiritualidade cristã, tendo como referencial mais original a
sistematização do Areopagita, vai ser, portanto, teologia que tematiza a
liberdade, como saída de si com a finalidade última da união transformadora
(divinização) pelo amor que é Deus, absolutamente transcendente e totalmente
presente em toda a criação. Neste sentido, podemos, portanto, identificar
mística e teologia do Espírito, na medida que é teologia que se constitui a partir
da experiência do Espírito, Deus que habita o mundo e promove a filiação do
humano no Verbo, para conduzí-lo à liberdade perfeita onde reina o Amor.
3.3. Mística e Teologia entre os medievais: aniquilamento e divinização
Dois grandes nomes passaram decididamente do momento patrístico da
teologia ao momento medieval, Agostinho e Dionísio o Aeropagita. Esses
autores são considerados determinantes para a teologia e para a cultura
ocidental.
A teologia na alta Idade Média não parece ter conhecido a tensão entre a
inteligência interior e a confrontação com culturas diferentes. Conforme afirma
Lafont
(...) diríamos que o pensamento religioso da alta Idade Média pode ser incluído
na categoria iluminação recebida de Agostinho e Dionísio com matizes diversos
e que nada conseguiu substituir. Tal categoria segue um modo de pensar
hierárquico, segundo o qual todo benefício efetivo (remissão dos pecados,
graça), todo conhecimento verdadeiro (verdade da Escritura, verdade da fé,
ensinamento moral) é dom vindo do Além e incita ao retorno à anagogia.
222
221
Ibidem, 4.13 (712A-712B), p.54.
222
Ghislain LAFONT, História Teológica da Igreja Católica. Itinerário e formas da teologia,
p.106.
115
Os séculos XII e XIII vão conhecer, todavia, grandes transformações. O
pensamento no contexto de grandes mudanças no estilo de vida das pessoas
em vista da evolução tecnológica, da nova organização do espaço,
administração do dinheiro, enfim da nova conjuntura técnica e social
223
, vai
tornar-se mais especulativo e crítico, como observa Bruno Forte:
(...) na tensão entre o “sic” e o “non”, atraído por argumentações opostas, que
colhem momentos e aspectos diversos da realidade e que fazem “problema”, o
espírito descobre-se a si mesmo como problemático e inquieto, sedento de
análises e distinções esclarecedoras.
224
Enquanto a teologia patrística e monástica que dominou até a alta Idade Média
é contemplativa, simbólica e totalizante, atenta à trama profunda da realidade
imersa no mistério, a mentalidade escolástica vive da análise metódica e
crítica, do raciocínio dialético
225
.
(...) posto na presença de proposições opostas, o espírito deve encontrar uma
razão em favor de um dos termos da alternativa, ou alguma distinção que
permita atribuir a cada um sua parte da verdade.
226
Outro desafio para a teologia representou o contato com textos filosóficos e
teológicos de origem grega, judaica e árabe disponíveis a partir do final do
século XII e início do século XIII, traduzidos para o latim em sua literalidade
própria graças aos movimentos ligados à cruzada. Essas novas referências vão
deixar marcas na teologia e contribuir para aprofundar no interior das mesmas
223
Em vários autores encontramos a descrição histórica detalhada desses novos tempos. Aqui
temos como referência especialmente André VAUCHEZ, A Espiritualidade na Idade Média
Ocidental, séculos VIII a XIII, p.65-124. Nesta obra, Vauchez vai descrever essas
transformação e ressaltar especialmente as transformações na espiritualidade no que se refere
à experiência clerical, mas fundamentalmente em relação à experiência laical. Ele vai falar de
uma grande explosão espiritual fora da instituição eclesiástica. Analisando testemunhos
indiretos (especialmente as condenações formuladas nos concílios ou contidas nos
penitenciais), descobre um conjunto de práticas religiosas populares que acabam
determinando o desaparecimento de uma concepção de fé cristã caracterizada por sua
dimensão de mistério e espera dos últimos tempos (própria da patrística) e o surgimento de
outro conjunto de representações fundamentadas na descoberta do Cristo histórico, na
valorização da vida moral e na importância dada aos ritos e gestos.
224
Bruno FORTE, A teologia como companhia, memória e profecia, p.100.
225
É referência interessante para a compreensão da transformação filosófica-teológica desse
momento a figura da Pedro Abelardo cf. interessante trabalho em língua portuguesa de
Orlando Vilela, O drama Heloísa Abelardo.
226
Bruno FORTE, op.cit., p. 103.
116
questões teológicas, o problema de Deus (essência, conhecimento,
nominação) - o problema do mundo (gênese, estrutura, dinamismo), o
problema do homem (conhecimento, liberdade, salvação) - sob a referência de
nova preocupação epistemológica, isto é, a dificuldade em conciliar o dado da
fé e as conclusões da razão quando parece haver incompatibilidade.
227
Neste contexto, se instaura no seio da teologia, um impasse: a exaltação da
transcendência divina em incompatibilidade com as possibilidades da razão.
Essa perspectiva que será trabalhada na teologia pelos nominalistas de
Ockham, encontra-se, afirma Deblaere, em discussões nas Quaestiones
ensinadas em Paris desde 1200
228
.
Diante desse impasse a teologia vai recorrer ao Areopagita que, já presente no
Ocidentre através das traduções de Johannes Scotus Erígena, passa a ser
largamente comentado:
Confrontados com esse impasse, os teólogos procuram na Teologia Mística do
Areopagita, onde Deus é superessentialis e supercognitus no interior da
negação de todo conhecimento, a chave de uma resposta que satisfaça
filosofia e fé.
229
Os teólogos de tendência mística como Guilherme de Saint-Thierry, em relação
a esse impasse, vão afirmar a simplificação e a unificação como operação das
potências (inteligência e vontade) em um só dinamismo, e também, por outro
lado, a grandeza do homem, infinito por natureza pelo dom de Deus
230
.
Mas são as mulheres que, segundo Dablaere, ousam desenvolver um modo de
pensamento original e dinâmico, que responde mais ao caráter da experiência,
que é corroborada pela Escritura.
Hadewijch d’Anvers, cujos escritos datam dos anos 1220-1240, em suas cartas
espirituais insiste explicitamente, comenta esse autor, responde à teologia do
Deus incognocível, infinitamente grande em comparação ao homem, ousando
afirmar a grandeza da alma que é pela graça, aquilo que Deus é por natureza,
divina e capaz, portanto, de uma verdadeira troca de amor com Ele. Deblaere
227
Cf, Ghislain LAFONT, op. cit., p. 123-125.
228
Cf. Albert DEBLAERE, Theóries de la mystique chrétienne. Em: Dictionnaire de Spiritualité
Ascétique et Mystique, Doctrine et Histoire, p. 1904.
229
Ibidem, p. 1905.
230
Cf. Ibidem, p. 1906.
117
cita as cartas 4 e 18, e aqui reproduzimos a citação em vista da clareza com a
qual ela ilustra o argumento:
A razão sabe que Deus deve ser temido, que ele é grande e que o homem é
pequeno. Mas se ela tem medo da grandeza divina ao lado de sua pequenez,
se ela não ousa afrontar e duvidar de ser a criança preferida, não pode
conceber que o Ser imenso lhe convém, - isso resulta que muitas das almas
não tentam uma vida tão grande. (...) compreenda então a natureza profunda
de vossa alma, e o que isto quer dizer: “alma”. A alma é um ser que atinge o
olhar de Deus, e por quem Deus em troca é visível... A alma é um abismo sem
fundo em quem Deus se satisfaz, enquanto que reciprocamente ela se satisfaz
nele. A alma é para Deus um caminho livre, onde se lançar até suas últimas
profundezas; e Deus é para a alma em troca, o caminho da liberdade, até esse
fundo do Ser divino que nada pode tocar senão o fundo da alma. E se Deus
não lhe pertence inteiramente, ele não lhe satisfaz.
231
Segundo Pablo Maria Bernardo, autor da tradução e apresentação das cartas
do antigo médio neerlandês para o espanhol, os escritos de Hadewijch são
originais na medida em que tem no centro da sua visão de existência uma
maneira própria de considerar o mistério de Deus, a Santíssima Trindade.
Própria dela, afirma ele, é a visão essencialmente dinâmica de Deus, Deus uno
em suas tensões. Unidade e Trindade não se prestam a uma dialética, como
sucede no mundo dos filósofos, mas para ela, origina uma expansão das
energias divinas e uma torrente de amor, Deus é irradiação de riquezas e
forças. Hadewijch fala de Deus como claridade, excesso.
232
Contemporânea de Hadewijch, Beatrice de Nazareth vai se referir à grandeza
da alma e afirmar que a primeira virtude da alma consagrada a Deus deve ser
a nobreza, termo surpreendente para a época que conhecia a nobreza apenas
sob a forma de orgulho, primeiro pecado capital
233
.
O tema da grandeza infinita do homem e, portanto, de um amor recíproco entre
iguais teria ocupado um lugar comum em toda verdadeira mística ao fim da
Idade Média
234
. Na verdade, a mística medieval, em resposta aos desafios
colocados pela teologia vai lidar com o paradoxo que se estabelece entre o
aniquilamento e a divinização, dinâmica contraditória própria do Homem Novo
que nasce pela força do Espírito Santo que habita o homem e o mundo. Neste
231
Ibidem, p. 1906. A tradução das cartas de Hadewijch para a lingua portuguesa foi publicada
pelas Edições Paulinas em 1999, com o título Deus, Amor e Amante.
232
Hadewijch, Deus Amor e Amante, p.20.
233
Cf. Albert DEBLAERE, op. cit., p. 1907.
234
Ibidem, p. 1907.
118
sentido, de fato, podemos dizer que entre os místicos encontramos aquilo que
existe de mais rico em termos do que hoje chamamos Teologia do Espírito.
Nessa perspectiva, Deus que vem a nós em seu amor misericordioso, opera no
humano, na alma (que é o princípio transcendente do humano) um êxodo, uma
saída de sí, uma transformação ontológica que a capacita, divinizando-a para o
encontro, isto é, para a união mística com o mistério. O encontro amoroso que
transforma, conforma o amante que, por sua vez, toma a forma do amado. O
Amor então inunda os sentido e irrompe na alma inaugurando uma outra
maneira de conhecer e uma nova forma de relacionar-se. Como podemos ler
na obra de Mechthild de Magdeburg
235
, mística alemã da Baixa Saxonia, o
conhecimento se funda na luz que flui da Deidade revelando à alma a verdade
de Deus que é Amor.
Nos escritos de Mechthild encontra-se a experiência espiritual unida a uma
objetividade teológica. Ali a teologia não se opõe à experiência, se desdobra
dela. No centro do texto encontra-se uma primeira pessoa em diálogo com
Deus, às vezes objetivada como ela, a alma, mas que é retomada como “eu
que, em contanto com o transcendente, introduz a descontinuidade no tempo.
Esse mesmo “eu” busca também se compreender no tempo da vida e nesse
sentido inclui passagens autobiográficas. A contemplação da escritura, nesses
mesmos escritos, move o desejo para o encontro com Jesus, Deus ao alcance
de nossa admiração, ao alcance do nosso amor. Mechthild descreve sua
paixão pelo Filho, Deus que é conosco. Ama a Deus que desce e quer descer
com ele, sofrer com ele e transformar-se nele. Mechthild, como outras
mulheres religiosas, vai a Deus arrebatada de desejo erótico e conhece por
Jesus, no Espírito, Agapè, o Amor que é o próprio Deus. Mechthild anuncia a
Trindade da qual ela mesma participa.
A humanidade de nosso Senhor é uma imagem inteligível da sua Divindade
eterna, de maneira que possamos alcançar a divindade com a humanidade, e,
como a Santíssima Trindade, usufruir (deleitar-se), beijar e abraçar Deus de
235
Mechthild de Megdeburg, mística alemã, da Baixa Saxonia, nascida em 1210, entra da
Beguinagem de Magdeburg em 1230 e se dedica ao cuidado dos pobres e dos doente. Desde
criança é favorecida por revelações divinas e entre os anos 1250 e 1264, a conselho de seu
diretor espiritual, escreve suas revelações, a obra que chega até nós com o seguinte título: Das
flieBende Licht der Gottheit. A obra, dizem comentadores, é de uma originalidade
impressionante, tanto na maneira como usa a linguagem, no caso o alemão, para dizer o
indizível, quanto no estilo, que escapa a qualquer definição, na medida em que combinam
prosa e poesia, confissões e solilóquios com doxologia, revelações, visões e liturgia.
119
uma maneira incompreensível, que nem o Céu, nem o inferno, nem o
purgatório poderão, jamais, alcançar ou resistir. A eterna Divindade
resplandece, iluminando todos os abençoados que estão na sua presença,
deixando-os prontos para o amor, para que eles regozijem livremente e vivam
para sempre do sofrimento interior. A humanidade de nosso Senhor saúda,
exulta e ama sua carne e seu sangue sem cessar. Embora não exista mais
carne nem sangue lá, ainda assim o parentesco fraternal é tão grande que Ele
tem que amar sua natureza humana de um modo especial.
236
Essa teologia que reflete os anseios de liberdade perfeita e descreve as
transformações na alma operadas pelo amor, estará, entretanto, sob suspeita.
Ela foje ao controle institucional. Mechtilde teme pelo livro que se sente, por
Deus, obrigada a escrever, sabe que ele reflete um conhecimento que não é
mais um conhecimento ingênuo. Ela tem noção do perigo que ele representa
como crítica ao mundo e à Igreja
Por todos os dias de minha vida antes de eu ter começado este livro e antes de
uma única palavra ter adentrado a minha alma, eu era uma das mais ingênuas
pessoas que já seguiram a vida religiosa. Nada sabia da maldade do diabo;
não tinha consciência da fragilidade do mundo; também desconhecia a
falsidade das pessoas na vida religiosa. Eu tenho de falar em honra a Deus e
em prol do ensinamento do livro (...).
237
Nesse contexto filosófico-teológico situamos a obra de Marguerite Porete. Sua
teologia será também, como a dessas mulheres, desdobramento incontrolável
de experiências religiosas profundas e contundentes. Teologia fundada na
experiência direta do mistério de Deus, edificada sob a autoridade do Espírito
Santo, O “Fino Amor”, que pelo caminho do aniquilamento, conduz a alma ao
país da liberdade perfeita onde é possível fruir em Deus.
Marguerite, como vimos, teve a obra julgada e ela mesma foi condena pela
Inquisição e queimada como herética em 1º de junho de 1310, na praça de
Grève, em Paris, diante de autoridades civis e religiosas e de um grande
público comovido.
236
MECHTHILD DE MAGDEBURG, The FlowingLight of Godhead, p.274.
237
Ibidem, p.139.
120
4. Teologia, mística e heresia
Se a mística é, em sentido mais específico, uma forma intensiva do elemento
cognitivo que nos une com Deus na fé de maneira paradoxal, de sorte que
conduz ao segundo plano toda representação da fé, podemos então afirmar
que a mística se encontra sempre entre a teologia e a heresia. Entre a busca
do sentido mais profundo das palavras mediadoras teologia - que se
esfacelam quando no encontro com o Deus vivo que não cabe em nenhuma
representação. O místico vai ser confundido com o herege, na medida que seu
discurso é crítico e seus esforços de um falar sobre Deus do lugar de Deus,
muitas vezes marcados por paradoxos e afirmações incompreensíveis.
É claro para a teologia hoje, a partir da releitura das tensões vividas ao longo
da história da teologia, que Deus, enquanto realidade, excede todos os nossos
esforços de pensar e refletir e que a tradição mística, entre o silêncio e o
discurso sobre Deus tem, para essa compreensão, uma contribuição
fundamental
238
. Retomando essa tradição, um teólogo moderno como é o
dominicano Edward Schillebeeckx, vai afirmar um “novo conceito”
239
de
revelação capaz de levar em conta e articular tanto a teologia positiva quanto a
teologia negativa. Neste sentido, ele afirma:
Pelo fato de existir em absoluta liberdade com Deus, ele nos revela que todas
as nossas imagens divinas (não a sua própria realidade) são de fato produtos e
projeções humanas que como tais não estão em condições de descrever a
realidade divina. Este ponto mais precário de todas as nossas imagens de
Deus, não é absolutamente construção ou projeção humana, mas é, ao invés
(assim se pode e se deve também interpretar, e assim também se interpreta
pelos crentes), uma projeção desde Deus em nossa direção, através de
mediações históricas e mundanas. Desde sua realidade mesma, todas as
nossas imagens projetivas de Deus são recusadas e desvirtuadas. Neste efeito
sobre as nossas imagens de Deus, no esfacelamento contínuo de toda imagem
238
A cultura moderna, racional e técnica, observa Schillebeeckx, por um lado, levou ao
desaparecimento da transcendência e, por outro, torna possível uma nova exigência mística.
“Na insatisfação com uma cultura meramente técnica ele afirma surge uma nova categoria:
a da pura gratuidade de Deus. Ele não é necessário. Deus não cai sob a categoria da precisão,
mas do desejo e amor: do não-devido e não-merecido, como quando alguém nos traz um
ramalhete de flores e respondemos sinceramente: ‘Não era preciso!’. Tal é o verdadeiro luxo da
vida, o luxo necessário do dom de um ramalhete de flores.” Edward SCHILLEBEECKX, História
humana, revelação de Deus, 1994, p.97).
239
“Novo”, não em relação à concepção de revelação vivida e refletida ao longo de toda a
história eclesiástica, mas “novo”, em especial, diante da redução do conceito de revelação
operada no interior da modernidade, por uma teologia manualística, onde a revelação é
entendida como ditado divino e a verdade de fé como um conjunto de afirmações perenes,
imutáveis e descoladas da vivência dos fíéis.
121
de Deus produzida em nós, revela-se como um alguém ou algo em e em
relação para com nossas projeções.
240
Ao orarmos ao Deus vivo, como faz o místico para Schillebeeckx a mística
não é um setor especial da vida cristã, mas uma forma intensiva de experiência
de Deus na fé
241
usamos nossas imagens (como mediação) que são ao
mesmo tempo esfaceladas na própria oração
Ao orarmos ao Deus real e vivo, temos diante dos olhos apenas “imagens de
Deus” que são esfaceladas na própria oração pelo referente “real” ao qual
rezamos. (...) O referente “real” do nome de Deus não deve, portanto, confundir
com nossos objetos de experiência e tampouco com nossas construções e
projeções, que, não obstante, desempenham algum papel em toda fé em
Deus.
242
A experiência do encontro imediato com Deus provoca a visão de uma
possibilidade nova, radicalmente diferente do que foi e do que é. Caem por
terra as velhas imagens de mundo e de si mesmo. As velhas palavras já não
servem para expressar a nova experiência, ocorre, em resumo, ruptura e
vivência de algo inusitado
Algo de transcendente e ao mesmo tempo abrangente de tudo; origem tanto de
toda objetividade como de toda subjetividade. Uma experiência salvífica
incondicionada, experiência também de totalidade e de reconciliação... não
obstante constatação de sofrimento e não-reconciliação.
243
Depois da visão, os místicos e místicas descrevem o tormento. Angústia da
busca por algo que não é igual a nada que seja possível pensar, imaginar,
querer.
240
Edward SCHILLEBEECKX, História humana, revelação de Deus, p.105.
241
Afirmando-se nessa posição, Schillebeeckx, faz um esclarecimento conceitual no que diz
respeito à maneira como a tradição da espiritualidade católica tem compreendido a mística:
“Desde os séculas XVII e XVIII, mística tornou-se uma espécie de insulto aplicado a fenômenos
prodigiosos e misteriosos, ocultos e irracionais. Na segunda metade do século XIX e no século
XX, a mística voltou a ter valor positivo. Mas na tradição da espiritualidade católica vieram a
primeiro plano, no que respeita à determinação positiva do que é mística, duas orientações: 1.
A interpretação tomista carmelitana e também dominicana do que é mística. Essa vê a
natureza da vida mística uma forma intensiva da fé, esperança e amor teologais. 2. Segundo
uma concepção mais voluntarista, sobretudo jesuíta, de espiritualidade, mística não reside no
nível da vida teologal, mas abrange um campo especial de fenômenos extraordinários (muitas
vezes ainda suspeitos): visões, êxtases, levitações e quejandos. Mística é, de conformidade
com isso, um campo inteiramente próprio, que não se deixa reconduzir à vida cristã normal de
fé”. (Ibidem, p. 98)
242
Ibidem, p.105.
243
Ibidem, p.101.
122
Introduz-se o que muitos místicos chamam de fase de “purificação”(catarse)
por concentração rigorosa; (...). Esta Segunda fase termina em geral por noite
e deserto; verdadeira mística com freqüência não é algo agradável, mas
tormento.
244
No terceiro momento, é o momento do encontro com a totalidade que
transforma, pneumatifica e deixa como marca da presença do amado, o divino
como “imediaticidade mediatizada”. Depois da experiência desintegrante,
compaixão integrante e reconciliante.
Mas sempre é experiência de totalidade que se faz: uma espécie de sentimento
da presença de toda a realidade, e até da origem de tudo. (...) O místico
deixará, com efeito, tudo para trás; tudo abandonará, até a si próprio, porém na
gratuidade de Deus reencontra tudo centuplicado, também a si próprio. Mística
verdadeira jamais será fuga do mundo, mas, passando primeiro por experiência
originária desintegrante, compaixão integrante e reconciliante com o universo.
Aproximação e nenhuma fuga.
245
A tradição mística cristã, põe em palavras a inefabilidade dessa experiência
religiosa falando de tríplice caminho de vida: a “via afirmativa”, a “via negativa”
e a “via eminencie”.
O místico vai “falar de Deus” fazer teologia - sempre com “temor
246
” porque,
tomado de desejo e amor, vai trilhar, atravessar e ultrapassar o caminho das
afirmações para chegar na “via eminentiae”, caminho marcado pela liberdade
conquitada no despojamento, condição em que a teologia discurso sobre
Deus a partir de Deus é palavra que renasce do silêncio. Na “via afirmativa”,
os crentes usam nomes e imagens de Deus, representações de fé. Na “via
negativa”, os nomes atribuidos a Deus são negados, não para cair em silêncio
que nada diz (quietismo), mas para, a partir do silêncio, passar a uma terceira
instância denominada “via eminentiae”. Na “via eminentiae”, os crentes
conhecem que Deus situa-se além de todos os nomes e imagens, mas ele é,
afirma Schillebeeckx
De forma eminente-divina e por nós não descritível, tudo o que se pode
encontrar de bom, verdadeiro e belo no mundo dos homens e de sua história.
(...)
244
Ibidem, p. 101.
245
Ibidem, p. 101-102.
246
Temor e não tremor. O temor é a impressão na consciência que fica do encontro com
aquele que é “Totalmente Outro”, alteridade absoluta: o Santo dos Santos (Cf. Rudolf OTTO, O
Sagrado, passim).
123
Entendida corretamente, essa “via eminentiae” leva-nos não a um conceito
grego puramente contemplativo da mística, mas a uma visão cristã, tal como
Eckhart a formula. Ele considera como modelo de toda mística não Maria,
voltada contemplativamente a si mesma, e sim Marta que ativamente se
preocupa com os homens a partir de Deus.
247
O místico não nega a mediação, mas a esgota. No seu anseio pelo encontro
direto com Deus, assume a mediação até o ponto de ultrapassá-la.
Ultrapassando toda a mediação e alcançando o silêncio, o místico, começa a
dizer “a Deus e sobre Deus”, palavras novas. Esse processo o coloca numa
delicada situação frente à instituição que tende, muitas vezes, a atribuir valor
absoluto àquilo que deve ser assumido como mediação. A teologia que é fruto
do itinerário místico será sempre, como pudemos ver uma ameaça à
autoridade da escritura, uma ameaça ao dogma, uma ameaça à Intituição
eclesiástica e uma ameaça ao espírito humano centrado sobre si mesmo.
No próximo capítulo veremos, então, a teologia de Marguerite Porete, mística
do século XIII, que compõe uma reflexão pneumatológica, uma explicitação
sobre o Espírito Santo, “Fino Amor” (Deus) que transforma a alma,
aniquelando-a em preparação para o encontro com Deus (que é o Amor),
encontro que se dá agora, e que se dará num futuro escatológico que ela
denominará, “país da liberdade perfeita”.
247
Ibidem, p. 107.
125
CAPÍTULO IV
RUMO AO PAÍS DA LIBERDADE PERFEITA
A experiência pessoal do mistério é uma angústia que mexe por dentro,
incomoda e deixa no corpo as marcas da estranheza, inquietude e
mendicância...
A pneumatologia do Mirouer supõe o aniquilamento. O caminho que Marguerite
Porete traça, fundamentada em sua própria experiência, implica um doloroso
processo de saída de si em direção a Deus que, em sua liberdade, não cabe
nas expectativas humanas. Saída de si e salto no vazio.
O ultrapassamento da instituição, da natureza, do espírito e da vontade é sua
proposta mistagógica. Marguerite capta que Deus não se impõe. Ensina que é
preciso se dispor a trabalhar o próprio corpo como o lavrador trabalha a terra,
atravessar as afeições como escrava submissa (das Virtudes ou da Razão), até
que, possuída pelo Amor que retira dela, por fim, todo desejo, possa saltar no
abismo de Deus.
Neste capítulo, procuraremos discutir o caminho do aniquilamento proposto por
Marguerite Porete, processo que leva a alma ao país da liberdade perfeita onde
é possível fruir em Deus - Pai, Filho e Espírito Santo, o Fin Amour.
126
1. O aniquilamento no Mirouer.
O Mirouer de Marguerite Porete, como vimos, é um romance que fala do
itinerário de uma dama apaixonada por um rei. O depositário de seu amor é
Alexandre, rei de grande poder e cortesia que se encontra muito longe
248
. A
obra é também uma instrução religiosa que descreve o itinerário de uma alma
aniquilada, apaixonada e transformada por Deus. O livro, segundo a introdução
da autora, é um presente desse rei, que é, ao mesmo tempo, em sua alegoria,
o próprio Deus, e descreve o itinerário e a condição livre e aniquilada de uma
alma, a sua própria alma. Descrever essa transformação é falar do seu rei, é
apresentar Deus, o seu amado, melhor do que os retratos que a imaginação,
ocupada em acalentar o desejo, pode desenhar.
Já no prólogo do livro, a autora anuncia, usando as referências do romance
cortês, aquilo que, ao longo da tradição teológica cristã, procurou-se sempre
explicitar, mas que é sempre tão difícil de compreender: a precariedade de toda
a imagem de Deus. Neste sentido, podemos dizer que o texto é místico, pois,
supõe conhecimento negativo uma vez que, o Deus que se revela permanece
absconditus, e a alma que O conhece, saindo de si, se abre para o domínio do
supra racional.
Toda imagem de Deus, pressupõe o Mirouer, quer ser instrumento de
aproximação e acaba, muitas vezes, se constituindo em risco de
distanciamento. Até o grande desejo de Deus pode, testemunha a alma
aniquilada, usando como imagem a donzela que procura consolo no retrato do
amado que seu desejo produz, fazer a alma permanecer à distância daquele
com o qual, almeja união. Neste sentido a alma que faz escrever o livro se
coloca:
Mas sim, certamente! É bem o que vou dizer: eu tenho ouvido falar de um rei
de grande poder, que por cortesia e por sua grande nobreza e generosidade
era como um nobre Alexandre; mas ele está tão longe de mim, e eu estou tão
248
O tema de Alexandre, difundido no século XIII e fortemente ligado aos princípios do amor
cortês, é muito antigo. Segundo nota 12 do prólogo da edição espanhola de Blanca Garí, sua
origem se encontra em Pseudo Calístenes do século II, traduzido ao latim no século IV,
resumido no século IX, retomado por Alberich de Pisançon no século XII e seguido por outros
entre os quais, encontramos O Roman d’Alexandre de Alexandre de Bernay, obra que faz
referência à rainha índia Candace que, tendo notícia da chegada de Alexandre Magno, pediu a
um pintor para que o retratasse, para que pudesse reconhecê-lo.
127
longe dele, que não posso ter consolo em mim mesma. E em razão de que me
lembre dele, ele me deixou esse livro que representa de qualquer maneira seu
amor. Por melhor que eu veja sua imagem, eu não estarei menos em país
estrangeiro, afastada do palácio onde moram os mais nobres amigos desse
senhor, eles são tudo o que há de puro, refinados e libertados graças aos dons
do rei com o qual eles moram.
249
O maior esforço de Marguerite, talvez seja o de buscar explicitar esse papel
paradoxal do desejo que, como já havia sido expresso pelos contemplativos,
tem poder para alavancar a alma em direção ao bem-amado Senhor, mas ao
mesmo tempo, como alerta Marguerite, pode ser um entrave no caminho que
leva à liberdade e à paz da perfeita caridade.
Neste sentido, podemos entender porque a autora vai afirmar que a verdadeira
maneira de compreender o que o livro diz é saber que a alma aniquilada não
tem nenhuma vontade
250
.
1.1. Da conversão da vontade ao aniquilamento
A tradição renana, da qual faz parte o pensamento de Marguerite Porete, está
sem dúvida vinculada ao pensamento agostiniano. Tem um lugar especial na
obra de Marguerite a reflexão sobre a vontade e o seu papel na busca de
Deus, tema que é central na antropologia agostiniana.
Segundo Mariana Sérvulo da Cunha, Agostinho introduz na filosofia uma nova
noção de vontade que não se vê no mundo greco-romano. Antes dele, não se
encontra na patrística qualquer uso significativo do termo. Para ele, afirma
essa autora, a vida intelectual do ser humano está intimamente unida à
vontade e influenciada por ela. A vontade e o amor tem a função de união e
separação. A vontade diz à memória o que reter e o que esquecer; diz ao
intelecto o que escolher para o entendimento; é ela que faz trabalhar, que os
reúne e o que separa
251
. Entre o que se sabe e o ato de pensar, existe a
vontade que move a alma e liga inteligência e memória no sentido do
249
Marguerite PORETE, op. cit., prólogo, p. 52.
250
Ibidem, cap.12, p. 68.
251
Cf. Mariana Palozzi SÉRVULO DA CUNHA, Movimento da Alma, invenção por Agostinho do
conceito de vontade. p. 24.
128
conhecimento: conhecimento das coisas sensíveis, conhecimento de si,
conhecimento de Deus, que é a Verdade.
Para Agostinho conhecer é, fundamentalmente, saber a verdade sobre si
mesmo e contemplar-se na própria verdade, é conhecer-se como devemos ser
segundo as razões eternas e imutáveis, entregues nas mãos Daquele que nos
governa e acima das coisas que devemos dominar.
No entanto a alma, devido à concupiscência, explica Agostinho, “age como
esquecida de si mesma” ao invés de permanecer no gozo do Bem, que é Deus
em todas as coisas. Ao invés de fazer-se, com a ajuda dele semelhante a ele,
afasta-se e ilude-se, entregando-se ao desejo possessivo de conhecer o
mundo exterior, cujas delícias ama e teme perder. A alma, esquecida de si
mesma, é atormentada pela preocupação em ter o que teme perder.
Pois a alma vê algumas coisas intrinsecamente belas numa natureza superior,
que é Deus. E quando deveria estar permanecendo no gozo desse Bem, ao
querer atribuí-lo a si mesma não quer fazer-se semelhante a Deus com o
auxílio de Deus, mas ser o que ela é por si própria, afastando-se dele e
resvalando. Firma-se cada vez menos, porque se ilude, pensando subir cada
vez mais alto. Não se basta a si mesma, e nem lhe basta bem algum, ao se
afastar daquele que unicamente se basta. Por isso devido à sua pobreza e às
dificuldades sem conta, entrega-se excessivamente às suas próprias atividades
e aos prazeres misturados a inquietações insaciáveis que suscita. E então,
pelo ávido desejo de adquirir conhecimento do mundo exterior, cujas delícias
ama e teme perder, caso não as retiver com muito cuidado, perde a
tranqüilidade, e tanto menos pensa em si mesma quanto mais segura está de
que não pode perder-se a si mesma. (Só se preocupa com o que pode perder,
não consigo mesma).
252
O erro da alma, segundo Agostinho, é assimilar-se ao mundo que ama e que
carrega dentro de si através de imagens produzidas pelo pensamento. Incorre
em erro a alma que levada por esse grande amor, esquece-se de sua própria
natureza e considera-se a si mesma da mesma natureza do objeto cuja
imagem carrega dentro de si.
Mas como se habituou a colocar amor nas coisas em que pensa com amor, ou
seja, às coisas sensíveis ou corporais, não consegue pensar em si mesma sem
essas imagens corporais. Daí, nasce o vergonhoso erro de ver-se impotente
para afastar de si as imagens das coisas sensíveis, a fim de contemplar-se a si
mesma em sua pureza. De maneira estranha, as coisas apegaram-se a ela
com o visco do amor, daí a sua impureza.
253
252
Santo AGOSTINHO, A Trindade, p.320.
253
Ibidem, p. 324.
129
Neste contexto, onde ser é conhecer-se, conhecer-se implica desvencilhar-se,
isto é, desapegar-se do que à alma se acrescentou. Neste sentido, recomenda
Agostinho:
Que a alma conheça-se, portanto, a si mesma, e não se busque como se
tivesse ausente, mas fixe em si mesma a intenção da vontade que vagueia por
outras coisas e pense em si mesma. Verá assim que nunca deixou de se amar
nem de se conhecer, mas ao amar outras coisas confundiu-se com elas e, de
certo modo, com elas adquiriu consistência.
254
Respondendo ao convite para conhecer-se, nasce o humano como eu interior,
nasce do alto como afirma o evangelho de João
255
, deixando de ser coisa e
abrindo-se à transcendência. Em Agostinho, no entanto, a conversão à
interioridade, que vai implicar a possibilidade do exercício da liberdade perfeita
- condição almejada pela alma aniquilada de Marguerite - só ocorre na medida
do convite feito por Deus. A iluminação será, para Agostinho, a luz pela qual, o
homem é convidado a transcender-se.
A iluminação que permite julgar o que é verdadeiro, bom e belo, implica
conversão, resposta ao chamado de Deus para passar do âmbito da
exterioridade que nos determina para o âmbito da interioridade onde é possível
a verdadeira liberdade de ser. Como bem explicita Esteban Ramírez Ruiz em
artigo sobre a filosofia da interioridade de Agostinho:
O homem é interior quando se renova, quando se transforma, quando
transcende a corrupção do homem exterior, quando supera sua própria
mutabilidade. E a verdade se encontra aí; porque próprio da verdade é
transformar, mudar em melhor, permitir essa transcendência e essa superação.
E em que sentido se realiza esta renovação? No sentido de recuperar a
imagem de Deus, quer dizer, no sentido de adquirir a verdadeira liberdade.
256
A questão da Iluminação está, em Agostinho, profundamente vinculada ao
problema da liberdade. A iluminação é, para ele, a “intervenção” de Deus que
dá ao humano, capacidade para ser responsável por seus atos. Segundo Ruiz,
a partir de Agostinho podemos dizer que
254
Ibidem, p. 325.
255
Conferir o tema do “nascer do alto” na passagem do encontro de Jesus com Nicodemos
em Jo 3, 1-21.
130
Deus ao criar as coisas, põe nelas os princípios que determinam o
desenvolvimento de sua atividade; mas para criar um eu, necessita fazer uma
nova intervenção para que aquele ser se libere de sua condição de ser coisa e
se lance a imitar a interioridade divina. Essa intervenção é a iluminação. Deus
dá a luz e a eficácia que necessita o eu para poder ser dono de seus atos.
257
O livre arbítrio que nasce como libertação das determinações da exterioridade,
supõe libertação do pecado. Pela iluminação, o humano tem sua liberdade
libertada para ser ou não ser, torna-se responsável pela própria salvação ou
perdição. O pecado é o livre-arbítrio que decidiu por não ser. No humano,
todavia, o livre-arbítrio não só pode produzir sua própria negação, fazendo a
opção pelo não ser, mas tem a necessidade de fazê-lo, explica Ruiz, há algo
que vincula “pesadíssimamente” o humano à sua exterioridade. Por isso, o
livre-arbítrio não pode se realizar sem a libertação pela graça que, em uma
primeira etapa libera da necessidade de pecar e em uma segunda etapa, libera
da possibilidade de pecar.
Para Agostinho, afirma Ruiz, a iluminação da Verdade não é algo inato, mas
uma oferta atual para que o homem se transcenda a si mesmo. A Graça não
implica, portanto, a atração por um objeto ou por uma operação, a graça é uma
atração pela liberdade. A graça implica o deleite ante a beleza de Deus que
permite ao homem ser dono de seus atos. Contra o prazer de ser coisa, se
opõe o prazer de ser um eu, de ser livre, ser interior a si mesmo
258
. Esse
deleite da beleza que está no profundo do homem interior nos remete à
reflexão sobre o significado da realidade de Cristo, o Verbo de Deus, dentro do
mundo e da interioridade.
1.2. Jesus, o Verbo que nasce na alma
Em sua teoria do conhecimento, Agostinho considera que a mente em suas
três faculdades fundamentais possui regras imutáveis segundo as quais essas
faculdades geram o conhecimento. Concebemos, diante de algo que nos vem
256
Esteban Ramírez RUIZ, El camino de la interioridad em la Búsqueda de Dios. Em: La
Búsqueda de Dios. La Dimensión Contemplativa de la Espiritualidad Agustiniana. Curso
Internacional de Espiritualidad. Publicaciones Agustinianas, Roma,1981.p.19.
257
Ibidem, p. 21.
131
do exterior, um verbo interior que, unido ao “mistério da voz” ou de algum sinal
corporal, comunica, exterioriza o conhecimento. O verbo na alma é, portanto
gerado a partir da Verdade eterna que é em nós. O juízo que fazemos do que
nos vem à mente, reside na memória em nós que vem do alto como luz
transcendente que revela a Verdade. Na Verdade eterna, afirma Agostinho,
contemplamos com o olhar da mente a forma que serve de modelo a nosso ser
segundo à qual se realiza a justiça:
Naquela Verdade eterna, segundo a qual todas as coisas temporais foram
feitas, é que contemplamos com o olhar da mente a forma que serve de
modelo a nosso ser, e conforme a qual fazemos tudo o que realizamos em nós
ou nos corpos, quando agimos segundo a verdadeira e reta razão.
259
Esse verbo é, para Agostinho, todavia, concebido por amor. O verbo é
concebido pelo amor às criaturas ou pelo amor ao Criador, ao eterno. Haverá
concupiscência ao se amar a criatura pela criatura e caridade quando o amor
às criaturas conduz ao gozo daquilo que não nos pode ser tirado, isto é, o gozo
em Deus. Isso não quer dizer, explica Agostinho, que a criatura não deva ser
amada. No amor das coisas carnais e temporais, continua Agostinho, o que foi
concebido só nasce ao ser possuído:
(...) não basta à avareza conhecer e amar as riquezas se não as possuir; nem
conhecer e amar os prazeres da mesa e da cama, se não os desfrutar de fato;
nem conhecer e amar as honras e o poder, se não os conseguir. E acontece
que mesmo tendo conseguido tudo isso não lhe traz satisfação.(...) O espírito
nesse caso inflama-se e adoece pela falta do cobiçado, até alcançá-lo; ou de
certo modo até dá-lo à luz. (...) Com efeito, a concupiscência, tendo concebido,
dá à luz o pecado (Tg 1,15).
260
A concupiscência é o mau direcionamento da vontade que, querendo amar,
procura possuir. O verbo, ao contrário do pecado, não é concebido pela
concupiscência, mas pelo amor, o verbo é o conhecimento unido ao amor, isto
é, conhecimento gerado pela vontade que traz à mente o objeto e o julga
segundo a luz eterna, memória divina que habita a alma. A alma que conhece
segundo a justiça divina, goza das coisas em Deus, ama o mundo e os irmãos
com caridade.
258
Cf. Ibidem, p. 28.
259
Santo AGOSTINHO, op.cit., p. 299.
260
Ibidem, p.301-302.
132
Passando em revista aos conhecimentos adquiridos pela memória e a
inteligência, verificar-se-á se a vontade os dirige a outro fim ou se descansa
neles mesmos como um fim alcançado. Com efeito, usar de alguma coisa é
dispor dela sob a direção da vontade; gozar dela, é empregá-la com prazer,
não em vista de algo que se espera a mais, mas já pela posse. Portanto, todo
aquele que goza de algo, possui essa coisa a seu uso. Dispõe dela sob a
direção da vontade, com a finalidade de seu deleite. Amas ao contrário, nem
todo o que se utiliza de algo, goza dessa coisa, pois acontece nesse caso que
aquilo que possui à sua disposição, ele não o procura por si mesmo, mas em
vista de outro fim.
261
Amar o irmão, explica Agostinho, é conhecer mais o Amor que o irmão, na
medida que o amor é o que é mais presente e mais íntimo àquele que ama.
Que ninguém diga: “Não sei o que é amar”. Que ele ame o seu irmão e estará
amando o próprio Amor. Pois assim conhecerá melhor o amor com que ama do
que o irmão a quem ama. Pode desse modo ter de Deus um conhecimento
maior do que tem do irmão. Sim, Deus torna-se mais conhecido, por que lhe é
mais íntimo. Mais conhecido porque mais seguro. Ao abraçar a Deus que é
Amor, abraças a Deus por amor.
262
Conhece a Deus, portanto, aquele que, mais do que o objeto do amor, ama o
amor, que une, amor que habita na alma. Conhece a Deus, segundo
Agostinho, aquele que aceita a Verdade anunciada por Cristo, “Deus é Amor”.
A Verdade anunciada, no entanto, não do exterior, mas do interior. Neste
sentido, recebe a luz que ilumina a realidade aquele que pela conversão,
assimila-se a Jesus Cristo. Ele, o Filho é, para Agostinho, o Mestre interior, é o
Verbo que nasce na alma possibilitando ao humano ser Imagem de Deus,
participar da Trindade.
Neste contexto, onde ser implica conhecer a verdade sobre si, e a partir dela a
verdade de Deus e a verdade sobre o mundo, a vontade tem um lugar
fundamental.
O conhecimento da alma que se conhece como aquela que conhece
quando se dirige às coisas eternas, conduz ao conhecimento de Deus.
Conhecer a Trindade, Deus que é Amor, é, em primeiro lugar, perceber em si a
dinâmica trinitária da alma que conhece porque ama. A alma conhece que
Deus é Amor quando ama o irmão, quando deseja que ele viva na justiça.
261
Ibidem, p. 332.
262
Ibidem, p. 280.
133
Desprezemos pois todas as coisas mortais por amor pelos outros, amor que
nos faça desejar que eles vivam na justiça. Desse modo, poderemos estar
dispostos a morrer quando necessário pelos irmãos, como o Senhor Jesus
Cristo nos ensinou com seu exemplo.
263
Parece claro que Marguerite Porete trabalha a partir dessas referências
considerando que ser é conhecer e conhecer é fruir em Deus que é Amor.
Assim como para Agostinho, para ela, a vontade tem na dinâmica do ser, um
papel fundamental. Vemos no Mirouer que ela entende que a radical conversão
da vontade é a sua morte, morte da vontade própria para que o Amor, que é
Deus, seja definitivamente na alma.
Para anunciar essa descoberta, fruto de seu próprio itinerário místico, a autora
empreende em seu texto uma grande discussão da qual participam,
personificadas, as várias categorias teológicas vigentes em sua época: Razão,
Amor, Virtudes, Igreja (a grande e a pequena)...
1.3. A trinitária natureza da alma segundo Marguerite Porete
Antes de empreender o caminho para a compreensão da importância do
abandono da vontade própria para o processo de aniquilamento que leva à
liberdade perfeita, faz-se necessário ter claro que, assim como Agostinho,
Marguerite entende que a alma recebe a imagem da Trindade na criação e
essa imagem é a condição para sua transformação da pecaminosa separação
de Deus para a incorporação na vida divina, o retorno da alma à sua
preexistência em Deus.
264
Segundo Marguerite, a alma espelha a processão das Pessoas da Trindade na
relação trinitária que se estabelece entre suas faculdades: “habilidade” (ou
“arte”), “intelecto” e “entendimento”. Como explicita Babinski a partir da leitura
do capítulo 110:
(...) a habilidade natural é a substância da alma e espelha o Pai; intelecto,
como o Filho, é gerado de habilidade natural; e entendimento, refletindo o
263
Ibidem, p.277.
264
Cf. Ellen BABINSKI, Christological transformation in The Mirror of Souls, by Marguerite Porete, Theology
Today, abril de 2003, p.34-48. Em: http:www.24houscholar.com/p/articles/mi_qa3664/is_20034/ai_n9185568,
acesso em 13/04/2006.
134
Espírito santo, é gerado de ambos, de natural habilidade e do intelecto. Essas
faculdades recebem a divina transformação da totalidade da Trindade através
do trabalho e poder do Espírito Santo (...).
265
E no Mirouer, como vimos, a alma invadida pela bondade divina exulta o amor
de Deus que engendra na alma aniquilada a substância eterna que é o Pai, a
fruição comunicável que é o Filho e a conjunção íntima que é o Espírito
266
.
Todavia, se a alma não se esvazia de sua vontade própria e permanece em
seu nada, torna-se orgulhosa e frívola e não atinge a plenitude do que se
empreende, a justa vontade de Deus.
267
2. A alma aniquilada não tem nada de vontade própria
Para Marguerite, a alma não tem querer, nem pode querer o querer de Deus,
pois sua pequenez de criatura não alcança a grandeza de Deus. No entanto,
Deus quer que a alma queira e tenha esse querer que é o querer divino, querer
que dá seu ser à criatura livre. O querer que Deus lhe faz querer, explica a
alma - dirigindo-se à razão que “na grosseria de sua incompreensão” aponta a
contradição naquilo que a alma tem afirmado sobre o nada-querer - atrai para
ela as torrentes do conhecimento divino, o âmago do amor divino e a união do
louvor divino.
268
2.1. Pobreza e aniquilamento
A alma que não tem querer é a alma aniquilada, personagem central com quem
falam e de quem falam Amor e Razão, personificados. Amor busca sempre
explicar, aquilo que Razão espantada, não consegue compreender, a saber,
265
Ibidem.
266
Cf. Marguerite PORETE, op.cit., cap.115, p.190, citada no capítulo 1, p.26.
267
Cf. Ibidem, cap.110, p.186.
268
Ibidem, cap.12, p. 69.
135
que a alma amorosa de Deus, experimenta maior liberdade quando não tem
nada de vontade própria, nem ao menos vontade de Salvação.
269
Isso que Amor quer explicar, ensina Marguerite, fazendo dialogar Amor e
Razão, nenhum mestre em Sabedoria vinda da Natureza, nenhum mestre em
Escrituras, nem aquele que permanece no amor e na obediência das virtudes
pode compreender. Somente compreende essa verdade aquele que possui
Fino Amor e Caridade
270
. A alma aniquilada não tem em conta nada, explica
Amor, não tem em conta nem vergonha nem honra, nem pobreza nem riqueza,
nem amor nem ódio, nem inferno nem paraíso
271
.
Bem, para falar brevemente, nomeamos uma alma entre todas, uma que não
deseja nem despreza pobreza e tribulação, missa e sermão, jejum e oração, e
que dá à Natureza tudo o que lhe falta sem remorso de consciência: pois bem!
Esta Natureza é tão bem ordenada pela transformação de união do amor ao
qual a vontade desta alma é cônjuge, que ela não pede nada que seja proibido.
Esta alma não tem cuidado de nada que lhe falte, senão no momento que lhe
falta; e este cuidado, ninguém pode perder se é inocente.
272
Inconformada, Razão quer explicações sobre essas palavras duvidosas pois,
tudo isso lhe parece estranho já que é da Razão aconselhar a alma no sentido
de desejar o desprezo, a pobreza e a tribulação, as missas e os sermões, os
jejuns e as orações, conforme explicitado no capítulo 13,
Com efeito, segundo minha maneira de compreender (...) o melhor que eu
aconselharia seria o desprezo, a pobreza e as tribulações de todas as sortes,
as missas e os sermões, os jejuns e as orações, seria ter medo dos amores de
toda sorte pelo perigo que aí se possa encontrar, desejar acima de tudo o
paraíso e ter medo do inferno, recusar as honras, as coisas temporais e tudo o
que é prazeroso, negando à Natureza o que ela pede, senão somente aquilo,
sem o que ela não pode viver, ao exemplo do sofrimento e da paixão de Nosso
Senhor Jesus Cristo.
273
269
Como vimos, a teologia medieval vive com grande intensidade a discussão sobre a
inacessibilidade de Deus pela razão. De um lado, encontra-se a escolástica, mais especulativa,
que argumenta, valorizando a análise metódica e crítica, o raciocínio dialético; e de outro lado,
estão os teólogos contemplativos, como Guilherme de Saint Tierry que reafirmam a
simplificação e unificação das potências (inteligência e vontade) em um só dinamismo possível
pelo dom de Deus que promove a grandeza do homem. Marguerite é beguina, as beguinas já
haviam se colocado no âmbito dessa discussão, argumentando de maneira original, já que se
fundavam nas transformações que Deus opera nelas mesmas, mulheres de vida com estilo de
vida contemplativa. Essas mulheres tiveram a ousadia de entrar nessa discussão carregando,
como testemunha do que falam, o próprio corpo transformado.
270
Cf. Marguerite PORETE, op. cit, cap.9, p. 61.
271
Cf. ibidem, cap.7, p. 58.
272
Ibidem, cap.9, p. 61.
273
Ibidem, cap.13, p. 71.
136
Por isso, reconhece Razão, esse livro não pode ser entendido segundo a sua
maneira, mas sim por virtude da Fé e pela força do Amor a quem, ela mesma
sabe obedecer. Àquele que tem a luz da Fé e a força do Amor, conclui Razão,
com a conhecida afirmação de Santo Agostinho, tudo que lhe apraz é
permitido:
(...) quem quer que tenha essas duas cordas em seu arco a saber a luz da Fé
e a força do Amor -, tem a permissão de fazer o que lhe agrade, em
testemunho do Amor que diz à alma: “Bem-Amada, ama e faz o que quiser!
274
Isso só é possível, insiste Marguerite, fazendo falar Amor, porque a alma
recebeu de Deus o dom de não querer nada por si mesma, mas esvaziada de
seu próprio querer, “querer somente a vontade de Deus e suportar em paz as
disposições divinas”.
275
A alma aniquilada, e agora passamos ao capítulo 23, se apóia sobre dois
pilares que a faz forte contra seus inimigos, forte como um castelo sobre um
monte rodeado pelo mar. Um dos pilares, é o conhecimento de sua própria
pobreza. O outro é o conhecimento elevado que ela recebe da pura Divindade.
De tão tomada pelo conhecimento de sua pobreza, a alma é estranha aos
olhos do mundo e aos olhos dos seus. Por outro lado, ela é tão embriagada do
conhecimento do amor e da graça da pura divindade, que está sempre bêbada
de conhecimento e repleta de louvores do amor divino. Bêbada não somente
do que tem bebido, mas bêbada do que jamais bebeu e do que jamais beberá.
Bêbada da bebida que bebe seu bem-amado, pois que, entre ele e ela, por
transformação do amor, não há nenhuma diferença. Esta alma é um abismo
pela humildade de sua memória, de seu entendimento e de sua vontade, ao
mesmo tempo em que é muito livre pelo amor da Divindade.
Acontece de existir muitas rolhas em um tonel, mas o vinho mais claro, mais
novo, mais proveitoso, mais deleitável e mais embriagador, é o vinho da rolha
de cima, essa é a bebida soberana que ninguém bebe, senão a Trindade. E
dessa bebida, sem que ela aí tenha bebido, a alma aniquilada, a alma
libertada, a alma esquecida é bêbada, inteiramente bêbada e mais que bêbada,
ainda que ela aí não tenha bebido nunca e nem aí jamais beberá.
276
274
Ibidem, cap.13, p. 71.
275
Cf. Ibidem, cap.13, p.72.
276
Ibidem, cap.23, p. 85.
137
A alma aniquilada, conhecendo sua pobreza, ao mesmo tempo, conhece a
bondade de Deus que é a sua salvação. Pois, Deus de bondade não poderia
deixar de favorecê-la em sua mendicância, já que não favorecê-la, argumenta a
autora, no capítulo 117, seria se renegar como Deus de absoluta bondade.
Tamanha pobreza, entretanto, afirma o mais-alto Espírito, que não está mais
sob o domínio da razão
277
, não poderia se acomodar com menos do que o
cume da abundância de toda a bondade divina
Com efeito, eu tenho por minha natureza própria isso que é maldade, e sou
portanto toda malícia; enquanto que aquele que é a soma de todo o bem,
contém nele mesmo e por sua natureza própria, toda bondade, e ele é portanto
todo bondade. Assim eu sou toda malícia e ele, ele é toda bondade. Ora, é ao
mais pobre que se deve dar esmola, sob pena de lhe retirar o que lhe pertence
por direito; e Deus não pode ser injusto sem se renegar. Por isso sua bondade
é minha, pelo fato de minha necessidade e da justiça de sua bondade: porque
eu sou toda malícia e ele toda bondade, ele me faz querer toda sua bondade
para que possa ser absorvida minha maldade! Minha pobreza não pode se
acomodar com menos! E sua bondade não poderia suportar que eu mendigue,
porque ela é poderosa e forte; mesmo que ele me encontrasse forçada a
mendigar se ele não me desse toda sua bondade, porque eu sou toda malícia;
e nada menos que o cume da abundância de toda sua bondade pode encher o
abismo de minha própria maldade.
278
A salvação consiste, portanto, afirma a alma aniquilada, no conhecimento da
bondade de Deus a partir do reconhecimento da própria maldade e não em
alguma obra de bondade que ela teria podido fazer. A alma, por si mesma, não
pode nada fazer para saldar suas dívidas
Sim, eu não tenho tido e não posso nada ganhar de mim mesma, e ninguém
pode nada me dar para pagar minhas dívidas.
279
A autocompreensão da alma como mina de desgraça, explica Babinski, é ao
mesmo tempo, o meio pelo qual a alma recebe a divindade. Neste sentido, a
humildade torna-se a ocasião para o divino preenchimento.
280
277
Esse personagem fala como a alma aniquilada, portanto, podemos entender que essas são
afirmações dela.
278
Ibidem, cap.117, p. 192.
279
Ibidem, cap.117, p. 193.
280
Ellen BABINSKI, op. cit..
138
Com a vontade humana aniquilada, conformada à vontade de Deus, explica a
alma que tem feito o mal, a alma não pode mais pecar, não pode mais
contradizer a Deus:
Meu Deus, como é doce considerar essa vontade! E nos tem feito capazes,
não que me seja impossível de pecar se quero, mas é impossível que eu peque
se minha vontade não o quer. Assim somos nós plenamente capazes de
cumprir sua vontade se ele permanece em nós sem que nós o busquemos
algures (...).
281
2.2. A alma aniquilada recebe de Deus a justa liberdade do Puro Amor
Quando não tem nenhum desejo, nem sentir, nem a menor afeição de espírito
em nenhum momento, essas almas estão na justa liberdade do Puro Amor.
Assim como o sol recebe a claridade de Deus e reluz sobre todas as coisas
sem aí contrair nenhuma impureza, essas almas recebem seu estado de Deus
e em Deus sem contrair de impureza, qualquer coisa que elas queiram ou
entendam fora delas mesmas
282
.
O Puro Amor é o amor que não espera recompensa, nem ao menos a
recompensa da consolação que conforta a alma e a faz sentir a doçura da
oração. O único exercício dessa alma é a Meditação-do-Amor-Puro que só tem
uma única intenção, a de amar sempre lealmente sem querer receber nenhuma
recompensa, exercício que a alma não pode fazer, a não ser que abra mão de
si mesma. A alma pela Meditação-do-Amor-Puro sabe que o melhor é
dispensar sua própria obra e querer perfeitamente a vontade de Deus e,
portanto, deixa que Deus faça sua obra e disponha de sua vontade. Melhor é,
para a alma, deixar que a obra de Deus seja feita, considera Amor, do que
gozar dos confortos que ele pode lhe proporcionar.
283
Em sua liberdade, a alma aniquilada dispensa as virtudes e dá à natureza o
que ela pede porque sua natureza está transformada pelo Amor
284
. Essa alma
281
Marguerite PORETE, op. cit., cap.109, p.185.
282
Ibidem, p.86-87.
283
Cf. Ibidem, p. 88-89.
284
É importante lembrar que, diante da instauração do feudalismo, a reforma monástica do
século XI e início do século XII acentuou a repressão do prazer por conta da revalorização do
“ideal ascético” que domina a espiritualidade monacal. Segundo Le Goff, “A reforma acentua a
privação e a renúncia no domínio alimentar (jejuns e proibições de certos alimentos) e a
139
é como a águia, diz Amor no capítulo 22, que voa alto porque é emplumada
pelo Fino Amor.
Ela olha em toda a sua claridade a bondade do sol, seus raios e seu esplendor
que lhe dá como alimento a medula do alto cedro.
(...)
Não se assusta pela tribulação, nem se detém na consolação, nem se aflige da
tentação, nem é diminuída por qualquer subtração. Ela está em comunhão com
todos na largueza da caridade pura; também não pede nada a ninguém, por
causa da nobre cortesia da pura vontade de que Deus a tem preenchido. Ela é
sempre séria sem tristeza e alegre sem dissolução, pois nela Deus tem
santificado seu nome, e a Trindade divina aí tem sua morada.
285
Para Marguerite, essa liberdade sem desejo é o que todos devem almejar, é
essa nutrição que os que estão famintos devem buscar:
Vós outros, os pequenos, vós que encontram vossa nutrição no querer e no
desejar, desejem ser tal, pois quem pode desejar o menos e não desejar o
mais, não é digno que Deus lhe dê o menor de seus bens, por causa da
covardia que o cobre como verniz, ele se deixa ir em sua pobre coragem, se
bem que o vejamos sempre faminto.
286
A ousadia da autora é propor o caminho do aniquilamento que implica não
desejar nada para que o desejo de Deus, a vontade de Deus, o amor de Deus
que a ultrapassa faça nela sua morada.
2.3. A alma que não tem vontade é nobre
A nobreza na mentalidade medieval tem como elemento fundamental o sangue
nasce-se “nobre de sangue” e define-se pelo gozo da libertas
(...) a independência em relação a toda pessoa privada, a faculdade de dispor
de si e de seus bens, a capacidade de julgar, verossimilmente apoiada na
posse do ban, do direito de comandar, proibir, punir, procedente do nascimento
e da propriedade de um alódio.
287
imposição de sofrimentos voluntários. Os piedosos leigos (é o caso do rei da França, São Luís,
no século XIII) podem se submeter a mortificações corporais comparáveis àquelas que se
infligem os acetas: o uso do cilício, a flagelação, a vigília, dormir diretamente sobre o solo...”
(Jacques LE GOFF e Nicolas Truong, Uma história do corpo na Idade Média, p.37-38.)
285
Marguerite PORETE, op. cit, cap.22, p. 83-84.
286
Ibidem, cap.22, p. 84.
287
Léopold GÉNICOT, “Nobreza”. Em Jacques LE GOFF e Jean- Claude SCHMITT, Dicionário
Temático do Ocidente Medieval, p.281.
140
O homem nobre, para a tradição renana, da qual participa Marguerite Porete, é
também livre, no entanto, não porque nasceu numa condição, mas porque
“partiu para uma terra distante, a fim de tomar posse de um reino, e regressou”,
explica M. Eckhart em seu sermão O homem nobre. O homem nobre,
argumenta ele, inspirado em Agostinho, é aquele que avança no caminho do
desprendimento, degrau a degrau, até o limite que implica despojar-se da
própria imagem humana para assumir a imagem divina:
O primeiro degrau é aquele do homem interior e novo, diz Santo Agostinho,
consiste em modelar o homem sua vida pelo exemplo de pessoas boas e
santas, mas continuando a caminhar pegado à cadeira e cosido às paredes, e
a sustentar-se com leite.
O segundo degrau é aquele em que o homem já não olha apenas para os
modelos exteriores, inclusive os de homens bons. Mas corre a buscar,
pressuroso, a doutrina e o conselho de Deus e da sabedoria divina, dando as
costas à humanidade e voltando o rosto para Deus, deixando o regaço da mãe
e sorrindo para o pai.
O terceiro degrau consiste em apartar-se o homem mais e mais de sua mãe e
em distanciar-se sempre mais de seu colo, fugindo ao cuidado e depondo o
temor, de modo tal que, embora pudesse praticar o mal e a injustiça sem dar
escândalo a toda a gente, nem assim queria fazê-lo; tão íntima é sua união de
amor com Deus, e tão zelosa a sua diligência (que não descansa) até que seja
introduzido na alegria, na doçura e na bem-aventurança que lhe façam
aborrecer tudo que lhe é dessemelhante e alheio.
O quarto degrau consiste em que o homem cresça e se fixe mais e mais no
amor e em Deus, dispondo-se assim a enfrentar com vontade e gosto, com
sofreguidão e alegria, toda espécie de provação, de tentação, de contrariedade
e de padecimento.
O quinto degrau está em que o homem viva em toda a parte na paz interior,
descansando tranqüilamente na riqueza e na superabundância da suprema e
inefável sabedoria.
O sexto degrau consiste no despojar-se da imagem (humana) e no revestir a
imagem da eternidade divina, pelo esquecimento total e perfeito da vida
transitória e temporal, de tal modo que, feito filho de Deus, e atraído por Deus,
o homem se transmude em imagem de Deus.
288
É nobre aquele que se despoja de si e nasce do alto. O segredo da nobreza é
revelado pelo Filho de Deus.
Com referência a este homem interior e nobre, no qual se encontra impressa e
implantada a semente de Deus e a imagem de Deus, e à maneira como se
manifesta esta semente e esta imagem da natureza e da essência divina, o
Filho de Deus, e como dela se toma conhecimento, e também como por vezes
ela se oculta sobre isso o grande mestre Orígenes apresenta uma
288
Mestre ECKHART, A Mística de Ser e de não Ter, p. 92-93.
141
comparação: O Filho de Deus, diz, está no fundo da alma como uma fonte
viva.
289
A nobreza, para Marguerite Porete, é também a condição que nos vem do
aniquilamento. Esta alma que não tem nada de vontade, afirma a autora
através de Amor, não se importa de que Deus faça isso ou aquilo, contanto que
faça nela a vontade Dele, é liberada e contente. Não lhe faz falta “nem inferno,
nem paraíso, nem alguma coisa criada”. Mais vale à alma, ela diz, o nada
querer em Deus que o bem querer por Deus.
290
A alma aniquilada é nobre porque, pelo aniquilamento, acolhe a obra de Deus
nela. Essa alma que leva a marca de Deus como o lacre toma a forma do selo,
sabe que a obra de Deus na criação não é condená-la, mas conformá-la a
Ele.
291
Este é o segredo do Filho que é dado à ela pelo amor do Espírito Santo,
diz Marguerite. A alma aniquilada é, portanto, semelhante à divindade.
A liberdade perfeita que define a nobreza, vem pela graça de Deus que dá à
alma o conhecimento do seu nada, conhecimento que leva do mais profundo
abismo à mais elevada condição. Em sua nobreza, a oração e a prece da alma,
já não pede mais nada, repousa em paz.
Pois, uma vez que não quero nada, sou somente nele, sem mim, e toda
liberada, no momento que quero qualquer coisa, eu sou comigo, e perco minha
liberdade.
292
3. O processo do aniquilamento
O caminho que leva à liberdade perfeita, descrito por Marguerite no Espelho, é
um itinerário que supõe o ultrapassamento de vários estados de alma. A
autora, inserida na tradição descreve esse caminho segundo enumerações
tradicionais (três mortes, sete estados).
No século XII tem lugar dentro do escolasticismo, um campo distinto de
teologia mística constituído por um estudo sistemático, doutrinal da jornada
289
Ibidem, p. 93.
290
Marguerite PORETE, op. cit., cap.49, p. 114.
291
Ibidem, cap.50, p. 115.
292
Ibidem, cap.51, p. 116.
142
contemplativa da alma na direção da união com Deus por meio dos diferentes
estágios da vida espiritual. Uma expressão clássica dessa teologia mística,
observa Sheldrake, é a obra De triplice via de são Boaventura
293
que descreve
as três etapas indispensáveis para a ascensão do humano à felicidade perfeita
para a qual foi criado: a da progressiva purificação (via purgativa); a da
iluminação (via iluminativa) e a da vida unitiva. Cada uma destas etapas,
explicita Velasco,
comporta a prática de exercícios indispensáveis e comuns às três vias: a
meditação, a oração e a contemplação. A elas acompanham a prática de
determinadas virtudes, como a humildade, e de exercícios minuciosamente
especificados, como o exame de consciência, a mortificação, a reforma de
vida, a contrição dos pecados, a via purgativa; a imitação de Cristo, a prática
dos conselhos evangélicos e a devoção à Virgem, na via iluminativa; e o
exercício do amor, a adoração como forma peculiar de oração, a devoção, a
vida eucarística e a contemplação em suas formas mais perfeitas, na via
unitiva.
294
A doutrina espiritual de são Boaventura, explica esse autor, traduz as
exigências de um itinerário que tem em vista o estado propriamente místico,
que ele descreve mediante categorias que são apresentadas como graus
sucessivos, onde a última fase é descrita como contemplação intelectual e
sapiencial, como êxtase da inteligência e da vontade, como rapto e morte
mística enquanto cessação do uso das faculdades
295
A finalidade última da
atividade toda da vida humana, para São Boaventura, é a união com Deus
através do amor.
Neste contexto, Marguerite descreve seu itinerário místico que, no entanto,
como bem observa McGinn, mesmo sendo descrito como itinerário linear, por
outro lado, deve ser entendido dentro das dinâmicas binárias com as quais a
autora trabalha ao longo de todo o livro.
293
Philip SHELDRAKE, Espiritualidade e teologia. Vida cristã e fé trinitária, p. 61.
294
Juan Martín VELASCO, Doze místicos cristãos, experiência de fé e oração. Petrópolis,
Vozes, 2003. p.80-81.
295
Cf. Ibidem, p. 81.
143
3.1. Dinâmicas binárias
Binárias personificações e condições, observa McGinn, são essenciais para
entender a sua mensagem de Marguerite Porete. Compõem essa dinâmica
binária, as oposições entre Amor e Razão, entre “Santa Igreja a grande” e
“Santa Igreja a pequena”; o contraste entre a obra da salvação que se espera
do serviço às virtudes e a graça da salvação pela fé; a transição da alma do
embaraçamento para o desembaraçamento.
296
Essas oposições binárias ficam mais complexas quando os binários, que
aparecem inicialmente como opostos, começam a aparecer como correlativos e
nivelados para depois serem considerados numa fusão dialética.
Razão morre, como podemos ver, mas pode voltar à vida porque a transformação
mística da alma demanda ambas Razão e Amor. “Santa Igreja a grande”, o reino
do amor e liberdade, a despeito de sua superioridade, não interrompe seu diálogo
com “Santa Igreja a pequena”, onde Razão governa. Apesar da alma aniquilada se
despedir das virtudes na medida em que são forças de dominação externas, elas
também permanecem como expressões conaturais do seu novo ser. Essa
tendência de juntar oposições é mais ousadamente expressa em como Porete
sugere que “descer” no pecado é necessário para “ascender” para a união.
297
Oposições binárias, podemos entender, estão relacionadas com o
entendimento que Marguerite tem da implicação da transformação crística no
processo de aniquilamento. Nesse processo, segundo ela, a alma deve, tendo
Jesus Cristo como modelo, descer ao pecado, assumir a culpa do mundo,
esvaziando-se, não pelo abandono do mundo, mas pelo mergulho “kenótico”.
No capítulo 40 do Mirouer, na discussão que faz sobre o pecado, podemos
observar essa dinâmica de descenso e esvaziamento da alma aniquilada no
seguimento da Segunda Pessoa da Trindade. A alma que se percebe como
menor, assume o pecado que mata o mundo e é elevada pelo Espírito. Nesse
capítulo, Amor, respondendo à Razão que lhe pergunta sobre quem é
chamada sábia, chama de supremamente sábia a alma que está abismada em
humildade:
296
Cf. Bernard McGinn, The Flowering of Mysticism: men and women in the new mysticism, p.
253.
297
Ibidem, p. 254.
144
Amor: Eu chamo essa alma supremamente sábia entre minhas eleitas; mas a
pequenez não pode apreciar nem conhecer uma coisa de grande valor.
Razão: Sim, Senhora Amor, mas quem vós chamais sábia?
Amor: É o ser abismado em humildade.
Razão: Sim, Amor, mas quem é abismado em humildade?
Amor: Aquele que, não tendo nenhuma culpa, sabe portanto que não tem razão
em nada. Aquele que está no conhecimento de sua culpa vê tão claramente que se
vê abaixo de todas as criaturas em um oceano de pecado. E porque seus inimigos
são escravos do pecado e porque essa alma tem visto desde longo tempo que ela
está abaixo deles, escrava ela também do pecado (sem nenhuma comparação
entre ela e eles, no que diz respeito a ele e suas obras!), ela sendo reduzida à
nada por essa consideração, e à menos que nada em tudo o que ela considera.
Ela tem entendido dizer desde muito tempo pelo Espírito Santo que Deus porá o
menor no mais elevado, por sua tão louvável bondade.
298
O dinamismo crístico, explicita Babinski
299
, reside atrás e abaixo da elaboração
de Porete sobre a transformação da alma que no aniquilamento se conforma
ao seu modelo Jesus Cristo. O aniquilamento da alma é crístico na medida em
que é Jesus Cristo o modelo para nós nesse caminho de querer somente a
vontade de Deus
O Filho de Deus-Pai é meu espelho nisso, porque Deus o pai nos dá seu Filho em
nossa salvação; e em nos fazendo esse dom, ele não considera nada além que
nossa salvação. E o Filho nos resgata morrendo em obediência a seu pai, e isso
fazendo, ele não considera nada além que somente a vontade de seu Pai. Como o
Filho de Deus é nosso modelo, nós devemos seguí-Lo, considerando também e
querendo em todas as coisas somente a vontade divina: assim seremos nós filhos
de Deus o pai à exemplo de seu filho Jesus Cristo.
300
Outra referência cristológica do itinerário espiritual descrito por Marguerite, diz
respeito ao retorno à liberdade de Deus, sua ousada afirmação sobre a pré-
existência da alma. Segundo o Mirouer, Deus ama eternamente aquele que
pretendeu criar. Ama desde sempre. Seu amor pela alma não tem começo nem
fim, explica a alma aniquilada no capítulo 35, respondendo ao questionamento
da Razão que a lembra de “não há muito tempo ter sido criada”
(...) Razão, se eu sou amada sem fim pelas três Pessoas da Trindade, eu tenho
então sido amada delas sem começo. Pois assim como por sua bondade ele me
amará sem fim, do mesmo modo tenho estado eu no saber de sua sabedoria visto
que ela estabeleceu que eu seja criada pela operação de seu poder divino. Assim
portanto, visto que eu tenho estado na ciência divina desde que Deus é, ele que é
298
Marguerite PORETE, op. cit.,cap.40, p. 104.
299
Ellen BABINSKI, op.cit..
300
Marguerite PORETE, op. cit., cap.109 p. 185.
145
sem começo, e que eu aí serei sem fim, daí se segue que ele ama desde sempre
diz a alma - por sua bondade a obra que fará em mim seu divino poder.
301
Neste sentido, a alma é amada desde sempre no desejo de Deus que a quis
criar, portanto, pré-existe em Deus. Para Marguerite Porete, a humanidade é
enviada eternamente para a divindade através da Segunda Pessoa da
Trindade. A eterna pré-existência da alma em Deus antes da criação, interpreta
Babinski, pode ser a perfeita existência no Logos
A perfeição dada para a alma pelo trabalho e poder do Espírito Santo é a perfeição
da totalidade da Trindade. Sendo assim, o retorno da alma para seu estado de pré-
existência é expresso pela frase “ela tem de Deus o que Ela tem, e ela é o que
Deus é através da transformação do amor,” um eco da ocidental fórmula nicena da
processão das Pessoas da Trindade.
302
Com o aniquilamento da vontade independente, explicita Babinski, a graça
transforma a alma no que Jesus Cristo é por natureza: verdadeiramente
humano e verdadeiramente divino.
3.2. Os sete estados da alma
O caminho da liberdade que implica o aniquilamento da vontade se faz, para
Porete, atravessando três mortes e passando por sete estados. Passamos
agora a refletir sobre esse itinerário proposto no Mirouer, itinerário composto a
partir da experiência do Espírito que, habitando a alma, conduz à liberdade
perfeita. Itinerário místico, no sentido mesmo de mística como qualidade de
uma teologia, fala sobre Deus que, fundada na experiência, empreende um
caminho negativo, crítico. O caminho da alma aniquilada é descrito como o
duro caminho daquele que deve esgotar todas as mediações propostas na
passagem de um estado a outro, atravessar e se liberar de tudo o que serve de
apoio para um mergulho incondicional em Deus, o Loin-Près, totalmente
transcendente e absolutamente próximo.
Nesse itinerário, os quatro primeiros passos ainda implicam em grande
escravidão, escravidão do pecado, escravidão da natureza, escravidão da
301
Ibidem, cap.35, p. 99.
146
razão, escravidão do desejo. Nesses estágios, a alma embaraçada consigo
mesma, vive contradições e constrangimentos. O quinto estado será para
Marguerite um marco fundamental. Depois de morta para o pecado e morta
para a natureza, a alma que se dispôs a empreender esse caminho,
experimenta a morte para o espírito, porta de entrada para a vida de glória que
será plena somente quando da união definitiva com o amado Loin-Près.
Podemos conferir a explicação de Marguerite sobre o movimento de Deus na
alma segundo sete estados, “ouvindo” as palavras de Amor:
Eu tenho dito que existem setes estados de alma, alguns mais difíceis de
compreender que outros e sem comparação entre eles; porque isso que
poderíamos dizer de uma gota de água ao lado do mar inteiro em sua imensidão,
poderíamos dizer do primeiro estado de graça ao lado do segundo, e assim por
diante nos outros, sem comparação entre eles. Entretanto, entre os quatro
primeiros, não há um tão grande que a alma não viva aí em grande escravidão;
mas o quinto é na liberdade da caridade, porque ele é desembaraçado de todas as
coisas; e o sexto é glorioso, porque a abertura do doce movimento que dá o
amado Loin-Près não é outra coisa que uma visão do que Deus quer que a alma
tenha de sua própria glória que ela possuirá eternamente. E é porque ele lhe
mostra por sua bondade no sexto estado o que pertence ao sétimo; essa
manifestação provém do sétimo estado e procura o sexto, mas ela é dada tão
rápido, que mesmo a quem é dada não percebe de modo nenhum o dom que lhe é
feito.
303
O itinerário descrito no Mirouer é o “movimento” que o amado Loin-Près - que
não é outro que não a Trindade mesma opera na alma para a manifestação
de sua glória. Essa operação, da qual ninguém pode falar senão a divindade
mesma, proporciona à alma uma experiência paradoxal de conhecimento e
desconhecimento:
Disso, ninguém pode falar, senão a divindade mesma; pois a alma a quem esse
Loin-Près se dá tem tão grande conhecimento de Deus, de si e de todas as coisas,
que ela vê em Deus mesmo, por conhecimento divino, que a luz desse
conhecimento lhe tira do conhecimento dela mesma, de Deus e de todas as
coisas.
304
302
Ellen BABINSKI, op.cit..
303
Marguerite PORETE, op.cit., cap.61, p.128.
304
Ibidem, cap.61, p.128.
147
3.2.1 A primeira morte: morte ao pecado e vida na graça
A primeira morte, a morte ao pecado, leva ao primeiro estado, nomeado no
Mirouer, como vida na graça. Nessas pessoas, mortas ao pecado não deve
restar “nem cor, nem sabor, nem odor de nenhuma coisa que Deus proíba em
sua Lei”, esse é aquele para quem “basta se guardar de fazer o que Deus
proíbe e poder fazer o que Deus manda”.
305
. Essas pessoas não experimentam
nenhuma censura, nem remorso de consciência, dizem a verdade, mas são
bem pouco corteses, são os de condição mais humilde sobre a terra e ainda
mais humilde no céu porque não querem fazer nada para chegar à nobreza dos
que se dispõem a morrer da morte à natureza que é a segunda morte
306
. Sobre
esses que são mortos ao pecado mortal e nascidos para a vida da graça, fala
Amor
Eles querem bem as honras e se sentem perdidos se são desprezados, mas eles
se guardam da vanglória e da impaciência que leva à morte do pecado. Eles amam
as riquezas e são tristes quando são pobres. E se são ricos, perder qualquer coisa
os torna tristes -, mas sempre se guardam da morte do pecado, e não querem
amar suas riquezas contra a vontade de Deus, perdendo ou ganhando. E eles
amam estar à vontade e se repousar ao seu bom prazer, mas eles se guardam da
desordem.
307
Esses, para quem basta serem salvos, Amor os chama de Vilãos, pessoas
grosseiras, voltadas para seu próprio interesse, com modos de mercadores.
Ocupados consigo mesmos, esquecem as obras de cortesia de Deus, isto é, os
insuportáveis sofrimentos e os dons desses sofrimentos do Filho que é para
nós, um espelho e um modelo. Esses são salvos, mas são deixados fora dos
segredos de Amor
308
.
Marguerite vai desenhando, desde aqui, a Côrte de Amor, disposta
hierarquicamente conforme a disposição para o despojamento. Neste sentido,
os de mais alta linhagem serão aqueles que, no maior despojamento,
reconhecem que não podem nada, que não sabem nada, que não valem nada
305
Cf. Ibidem, cap.60, p.126.
306
Cf. Ibidem, cap.62, p.129-130.
307
Ibidem, cap.62, p.129.
308
Cf. Ibidem, cap.63, p.130-131.
148
e que depois de longo tempo de mendicância, são pela graça tomados e
transformados.
3.2.2. A segunda morte: morte à natureza e vida no espírito
A segunda morte é a morte à natureza que leva ao segundo estado, primeiro
passo da vida segundo o espírito, vida que ainda se dá sob o domínio de
Razão. Aqui a alma que já não pode mais deixar de cumprir os mandamentos,
passa a considerar “o que Deus aconselha a seus amigos íntimos”. A alma
nesse estado busca cumprir com perfeição os conselhos do Evangelho e se
esforça para agir não mais sob o conselho dos homens. Procura as obras que
mortificam a natureza, busca viver o abandono das riquezas, das delícias e das
honras. A exemplo de Cristo ela não teme a perda do que tem, nem as
palavras das pessoas, nem a fraqueza do corpo.
309
A alma é, portanto inteiramente espírito. Nesse estágio o corpo é posto à morte
e a vontade se alegra na vergonha, na pobreza e na tribulação. Desse modo
essas criaturas espirituais conhecem a pureza de consciência, a paz das
afeições e a inteligência da razão
310
. Na vida segundo o espírito o ardor do
desejo da vontade do espírito não deve ser recusado. Aqueles que cumprem e
guardam o querer do ardor do desejo da operação do seu espírito conseguem
frear os sentidos para que não ajam por deliberação externa ao querer do
espírito
311
.
Aqui tem papel fundamental o acolhimento das virtudes que, para Marguerite,
são mensageiras do Amor que, desde dentro pedem o senhorio sobre o corpo.
As virtudes são meios para o desembaraçamento do espírito que, antes de
experimentar a liberdade do aniquilamento total, deve ultrapassar os limites
colocados pela natureza.
Marguerite aqui, inserida na tradição medieval, aceita a importância das
virtudes e a contribuição delas no itinerário que leva ao encontro com Deus,
309
Cf. Ibidem, cap. 118, p.195-196.
310
Cf. Ibidem, cap.72, p.140.
311
Cf. Ibidem, cap.79, p.149.
149
mas, por outro lado, compreende que as virtudes, assim como os
mandamentos devem ser superados. Para perceber a compreensão que
Marguerite tem da vivência das virtudes, faz-se necessário retomar alguns
elementos da tradição clássica e medieval.
As virtudes, no sentido clássico, são qualidades cuja posse permitem ao
indivíduo atingir o bem, uma vida completa, vivida da melhor forma. O exercício
da virtude deve levar à escolha do que é correto. Agir virtuosamente não é agir
contra a inclinação (natural), mas é agir com base na inclinação formada pelo
cultivo das virtudes. Na perspectiva clássica, filosófica, sem as virtudes, os
indivíduos podem se tornar presas de emoções e de desejos. O exercício das
virtudes requer a capacidade de julgar e fazer o certo, na hora certa e de
maneira certa, não significa, portanto, disposição para obedecer as normas.
Nessa perspectiva a virtude principal é phronêsis (justiça), que é uma virtude
intelectual, atitude daquele que sabe julgar. Outra virtude importante é a
amizade, que é a virtude que leva ao compartilhamento de tudo o que há de
comum no projeto de criação e no sustento da vida da cidade. A amizade
envolve afeto, mas esse afeto surge dentro de uma relação definida em termos
de uma aliança comum para a busca comum dos bens. A amizade genuína é
aquela que provém de um interesse comum nos bens que são bens para
ambas as partes envolvidas na amizade. O telos clássico em torno do qual se
organizam os valores e, portanto, o exercício das virtudes, é a cidade. Esta
última deve oferecer condições para que os seus cidadãos desfrutem a vida de
contemplação metafísica. Neste sentido, as virtudes têm lugar fundamental na
busca do prazer e da felicidade, prazer que não é ditado pelas necessidades
do corpo (portanto da natureza), ou das paixões, mas pelo conselho da
razão.
312
Esse entendimento de virtudes está presente no Mirouer e discutido por essa
autora que se insere entre aqueles que procuram responder aos desafios de
uma vida que agora não tem como telos a liberdade promovida polis, mas a
liberdade perfeita proporcionada pela união com Deus.
A compreensão que Marguerite tem das virtudes não se afasta daquilo que
corresponde à reflexão filosófica e teológica medieval. A teoria e prática das
150
virtudes na cultura medieval implicam um processo de releitura de uma
referência heróica de virtudes para uma perspectiva cristã, que se fará
contando com a contribuição da perspectiva filosófica clássica.
313
As virtudes que marcavam o passado dos povos que vieram a compor a
sociedade medieval eram fundamentalmente a lealdade à família e aos amigos,
a coragem necessária para sustentar a família ou uma expedição militar, e uma
piedade que aceita os limites e as imposições morais da ordem cósmica,
virtudes que são parcialmente definidas segundo instituições como o código de
vingança nas sagas. O desafio medieval será ligar a prática das virtudes
cardiais que, no séc XIII já estavam classificadas em justiça, prudência,
temperança e coragem às virtudes teologais que são fé, esperança e caridade.
Os pensadores medievais vão entender também, como os antigos, que a
filosofia grega poderia ser um grande instrumento na realização dessa síntese.
É nesse sentido que, para o medieval, assim como para os antigos, a razão
ocupa um papel fundamental de conselheira no exercício das virtudes.
Marguerite não foge a essas referências, no entanto, procura enfatizar que
antes da Razão, está a Humildade que é mãe de Razão e das outras virtudes,
que por sua vez são mães da santidade, mas da santidade que Razão
compreende. Marguerite assim, vai estabelecer uma distinção entre a
santidade, que é fruto da razão e do exercício das virtudes, e a santidade que é
descrita como paz suprema e filha de Deus
314
. O exercício das virtudes é um
momento necessário, entende ela, momento, no entanto, que será, ao longo da
jornada, superado. Isso terá lugar, segundo a mistagogia da autora, quando o
corpo, morto para a natureza, se encontrando transfigurado, já não necessitar
mais delas. Aí então, não haverá mais contradição. Na “vida segundo o
espírito”, ensina Amor, ainda não se pode encontrar a paz. As pessoas nesse
estado fazem o oposto do que quer sua sensualidade, vivem o oposto de seu
prazer, fazem o contrário de sua vontade para não perder a paz. Os que já
superaram esse estágio e já são livres, fazem o oposto: fazem tudo o que lhe
312
Cf. Aladair MacINTYRE, Depois da virtude, p.253-275.
313
Cf. Ibidem p.280-283.
314
Cf. Marguerite PORETE, op.cit., cap.88, p.161.
151
apraz para não perder a paz, “visto que eles são tombados das Virtudes em
Amor, e de Amor em Nada”
315
.
Papel importante na reflexão sobre as virtudes, tem a questão da vontade, que
será para Marguerite o desafio mais importante a ser superado. Na tradição
medieval terá grande influência a perspectiva estóica para a qual a virtude
implica a conformidade com a ordem cósmica que é universal e, ao mesmo
tempo, a luta contra o mundo das circunstâncias físicas e políticas. Para a
perspectiva estóica, viver bem é viver a vida divina expressa na ordem cósmica
e não servir a objetivos privados.
A ética de Abelardo, por exemplo, vai, fazendo a releitura dessa perspectiva
estóica, salientar a relação da vontade humana com o bem e o mal e entender
que a verdadeira arena da moralidade é a da vontade. As virtudes e vícios
serão disposições que vão se apropriar da vontade para conduzi-la para o
pecado ou para obediência à lei divina.
O que o cristianismo requer é uma concepção não apenas dos defeitos do caráter,
ou vícios, mas de infrações à lei divina, dos pecados. O caráter do indivíduo pode
ser, a qualquer momento, um conjunto de virtudes e vícios, e essas disposições
vão se apropriar da vontade para que rume numa ou noutra direção. Mas está
sempre nas mãos da vontade concordar ou discordar desses ditames. Mesmo a
posse de um vício não necessita da realização de qualquer ato errado em especial,
Tudo gira ao redor do caráter do ato interno da vontade. O caráter, portanto, arena
das virtudes e dos vícios, torna-se simplesmente mais uma circunstância do ato
interno da vontade. A verdadeira arena da moralidade é a da vontade, e somente a
da vontade.
316
Neste sentido, o que pede a razão, a partir da releitura cristã, e aqui marcada
pela referência agostiniana, é que as virtudes atuem de forma a converter a
vontade que tende a deleitar-se no mal.
Para Marguerite, em comunhão com a tradição renana, não é o bastante que,
pelo exercício das virtudes, se vença as necessidades e as paixões naturais
exigidas por nossa corporeidade condicionada, ou se converta a vontade de
sua tendência à concupiscência para uma comunhão com a vontade de Deus,
mais radical que isso será o aniquilamento da própria vontade para que se
atinja um estado superior, estado de transfiguração do corpo e do espírito,
estado onde já não existe mais “eu”.
315
Cf. Ibidem, cap.90, p.165.
152
A “vida no espírito” que se inicia com a passagem para o segundo estado é,
para Marguerite, portanto, ainda domestica e servil. Um momento ainda inicial
da jornada, mas fundamental na preparação para o acolhimento de nova morte
e conseqüente nascimento para uma vida que lhe é superior, o estado da
liberdade do nada querer, estado no qual a alma será em tudo satisfeita desse
nada que dá tudo, o quinto estado
317
.
Antes, porém da terceira morte que leva ao quinto estado, Marguerite ainda
relaciona dois estados, passos que vão sendo dados para passar desse
momento onde é fundamental a atuação da vontade e o exercício das virtudes,
para a consideração de que tudo isso é também escravidão e por isso deve ser
deixado para trás.
No terceiro estado
318
, a alma passa a habitar o “país dos extraviados”
319
, país
ainda onde Razão é soberana. Nesse estado, por decisão do espírito ardente
de desejo de amor, a alma multiplica as obras de perfeição, com o intuito de
oferecer ao seu bem-amado o que ele ama. Assim, a criatura nesse estado
ama as obras de bondade e os sacrifícios que elas implicam.
No entanto, nesse ponto, a alma começa a considerar que o maior sacrifício
para ela seria, todavia, se abster da obra que mais ama, das delícias de seu
bom prazer e da vida segundo a vontade em que se nutriu. Ela, então, se
obriga a abster-se da obra e da vontade para destruir seu próprio querer.
Enfrenta o difícil empreendimento de contradizer a vontade do espírito, maior
desafio que vencer a vontade do corpo ou fazer a vontade do espírito.
Então convém triturar a si mesmo, cortando-se e quebrando-se, para assim alargar
o lugar que Amor quererá ter; e convém embaraçar a si mesmo em muitos estados
para se desembaraçar e para atingir seu estado.
320
O que Marguerite constata e procura expressar com grande dificuldade é o
paradoxo que significa abrir mão do desejo de agradar o amado para que não
seja ela a fazer o que quer para ele, mas ele a fazer o que quiser dela. No
terceiro estado, explica Marguerite, a alma percebe que maior desejo de
316
Aladair MacINTYRE, op. cit. p.284.
317
Cf. Ibidem, cap.79, p.149.
318
Cf. Ibidem, cap.118, p.196.
319
Cf. Ibidem, cap.72, p.138.
320
Ibidem, cap.118, p.195-196.
153
agradar ao amado é abrir mão do desejo de realizar aquilo que o agrada, a
saber, as obras de perfeição, o bem ao qual se chega pelo exercício das
virtudes. Neste sentido, o grande compromisso com as virtudes e as obras de
perfeição deve levar à consciência de que o apego a essas obras representa
por outro lado também grande escravidão. Extraviada, portanto, permanecerá a
alma, explica Amor aos “ouvintes” do Mirouer, que se esforça para cumprir a
perfeição dos apóstolos pela aplicação de sua própria vontade, esses
permanecerão embaraçados de si mesmos
321
.
O próximo estado, o quarto, é talvez o mais perigoso pelo seu poder de
sedução, perigoso pelo risco de interromper-se um itinerário em que é possível
ainda vivenciar mais dois estágios até o último estágio na eternidade.
Nesse estado, a alma é absorvida por elevação de amor em delícias de
pensamentos graças à meditação e desprendida de exigência exterior (trabalho
e obediência) graças à elevação da contemplação.
Meditação e contemplação são, na tradição cristã, mediações e Marguerite
compreende muito bem isso, compreende e discute a teologia medieval que se
aplica em definir melhor e explicitar o lugar dessas mediações no itinerário
espiritual da alma, que tem como fim a liberdade perfeita. Ela sabe e procura
repetir sempre que, grande risco corre, aquele que perde de vista a plenitude,
confundido pelas vantagens ou pelas delícias que experimenta nos estágios
intermediários, por não haver realizado o êxtase de si mesmo que o levará de
fato à verdadeira transfiguração.
Na tradição cristã, a meditação é uma forma de oração praticada pelos que
buscam, através do caminho da interiorização, o encontro e a comunhão com
Deus. É atividade orante que comporta uma pluralidade de atos discursivos e
afetivos que gera um conhecimento particular e move a vontade a atos
múltiplos de amor, louvor e gratidão. A finalidade da meditação é alcançar a
graça do conhecimento da verdade de Deus que provoca amor, desejo de
centrar nele a vida. Meditação é, portanto, conhecimento que move a
vontade
322
. A meditação é a porta de acesso à contemplação que é gnosis,
conhecimento íntimo, vital, quase experimental de Deus. Conhecimento do alto
321
Cf. Ibidem, cap.78, p.148.
322
Cf. M. HERRAIZ. Meditação, Em: Dicionário de Mística, p.687-691.
154
que vem de Deus e é entregue por ele àquele que o buscou com amor
(desejos).
Para Agostinho, contemplação é conhecimento que nasce do amor de Deus,
isso quer dizer que, de Deus vem o amor que direciona a vontade para a
verdade, Jesus Cristo. O anúncio que converte a vontade é, neste sentido,
Jesus Cristo vivo na comunidade cristã. A verdade vem então do anúncio e da
vivência das comunidades cristãs.
A contemplação que tem referências bíblicas tanto no Antigo como no Novo
Testamento, vai ganhar, todavia, uma primeira definição formal na teologia
medieval pelos vitorinos. Segundo Hugo de São Vitor “a contemplação é um
olhar do espírito, penetrante e livre, que abraça totalmente as realidades
observadas”. Para Ricardo de São Vitor “a contemplação é um ato do espírito
que penetra livremente as maravilhas que o Senhor espalhou nos mundos
visíveis e invisíveis e mora na admiração”. É de Ricardo de São Vitor a
distinção entre o que mais tarde se chamará contemplação adquirida e
contemplação infusa.
323
Para Tomás de Aguino a contemplação é um ato da inteligência, mas que tem
sua fonte na vontade, é a caridade que estimula a contemplação de Deus. A
contemplação é olhar simples sobre a verdade que termina no amor.
A vida contemplativa consiste essencialmente num ato da inteligência, mas tem
sua fonte na vontade, porque é a caridade que estimula a contemplação de Deus E
como o fim corresponde ao princípio, segue que a vida contemplativa se completa
e se consuma na vontade. Experimenta-se alegria ao contemplar o que se ama, e
essa alegria trazida pelo objeto contemplado estimula a amar ainda mais. Essa é a
última perfeição da vida contemplativa: não simplesmente ver; mas também amar
a verdade divina.
324
Na tradição cristã, a contemplação implica amor ao amor com o qual Jesus
amou o mundo, amor incondicional que é o amor de Deus mesmo, Amor que é
o próprio Deus. A oração contemplativa é atividade espiritual do intelecto e da
vontade que considera o mistério de Deus Pai revelado no Filho por meio do
Espírito para que a alma adira ao amor que salva, amor incondicional, amor de
Deus, amor que é Deus.
323
Cf. L. BORRIELLO. Contemplação, Em: Dicionário de Mística, p.263.
324
São TOMÁS DE AQUINO, STh II-II, q.180, a.7, ad 1.
155
Para São Boaventura, aquele que quer elevar-se a Deus deve evitar o pecado
e aplicar as faculdades naturais sentidos e imaginação; razão e
entendimento; inteligência e consciência para adquirir pela oração a justiça
que purifica, pela meditação a ciência que ilumina e pela contemplação a
sabedoria que aperfeiçoa.
325
Para Marguerite, o estado da alma ao qual conduz a meditação e a
contemplação, é um estado de tão grande amor que a alma entende que não
há vida mais alta que esta, vida saciada de delícias de Amor que a embriaga
completamente.
(...) Amor Gracioso a embriaga completamente, tão forte que ele não a deixa nada
compreender de outro que ele, em razão da força com a qual Amor a deleita. E
portanto, a alma não pode apreciar um outro estado; com efeito, a grande
claridade do Amor tem tanto deslumbrado sua vista, que ela não lhe deixa nada a
ver além de seu amor.
326
Mas lá, diz Marguerite, a alma se engana, pois existem ainda outros dois
estados que Deus ainda possibilita à alma nesse mundo, ainda mais nobres
que aquele em que ela experimenta tamanha doçura e gozo de amor.
Nesse estado, a alma é chamada pela autora de extraviada, pois se encontra
ainda sobre o domínio da razão e embaraçada em sua vontade própria. O
itinerário da alma, então, inclui mais uma morte, a terceira morte é a morte ao
espírito que nadifica e transfigura a alma para a vida no “país da liberdade
perfeita”. Convém que o espírito morra, explica Amor à Razão, para perder sua
vontade.
Razão: Em nome de Deus, Senhora Amor, eu vos peço que me diga porque
convém que o espírito morra para perder sua vontade.
Amor: É porque o espírito é pleno de vontade espiritual, e ninguém pode viver de
vida divina enquanto tenha vontade, nem encontrar satisfação se não perdeu sua
vontade. E o espírito não é perfeitamente morto até que ele tenha perdido o
sentimento de seu amor, e até que morra a vontade que lhe dava vida; e nessa
perda, o querer atinge sua plenitude na satisfação do bom prazer divino; e nessa
morte cresce a vida superior, que é sempre livre ou gloriosa.
327
325
São BOAVENTURA, Itinerário da Mente para Deus, c.1, n.6-8, v.V. Em: DE BONI, Luís A.
(org.). São Boaventura Obras completas, p.169-170.
326
Marguerite PORETE, op.cit., cap. 118, p. 197.
327
Marguerite PORETE, op.cit., cap. 73, p. 141.
156
A alma que não se dispõe a perder sua vontade não está preparada para falar
à Amor em sua câmara secreta. A bem-amada é aquela que não teme perda
nem ganho, senão somente pelo bom prazer de Amor, pois de outro modo, ela
encontraria seu próprio interesse e não o dele.
3.2.3. A terceira morte: morte ao espírito e vida livre
A terceira morte - morte ao espírito é a que leva a alma ao quinto estado,
porta de entrada para o país da liberdade perfeita aonde se chega pelo
aniquilamento da vontade.
O quinto estado se inicia - explica a autora, agora falando por ela mesma, no
capítulo 118 - com duas considerações fundamentais feitas pela alma que está
a caminho da liberdade: a primeira é uma consideração sobre Deus onde a
alma conhece que ele é aquele que é e aquele do qual tudo vem; a segunda é
uma consideração sobre si mesma onde a alma conhece que ela mesma não
é. Através dessas duas considerações, ela vê que Deus, que é todo bondade,
deu a ela, que não é senão inteira malícia, uma vontade livre. Nessa visão
“maravilhosa”, segundo a autora, a alma entende que a vontade livre de Deus é
que ela tenha ser nesse dom que ele lhe faz. Assim, a alma conhece a sua
verdade, isto é, a vontade de Deus para ela. A luz de bondade derramada
sobre a alma mostra a ela o que ela pode ser e onde ela deve estar.
328
Essa luz, continua a autora, que transborda de Deus, faz saber à alma que ela
só poderá querer a Deus se sua vontade se separar de seu querer próprio,
pois, sendo sua natureza inclinada ao mal, seu querer próprio a leva ao nada e
a reduz a menos que nada. E é assim que, nessa luz que faz ver a grandeza e
a bondade de Deus (sua grande misericórdia), a miséria e a pequenez da alma
em si mesma e a vontade divina de fazê-la ser oferecendo à alma sua própria
vontade livre, a alma se retira do querer próprio para se remeter a Deus.
Agora, essa alma é pois “nada”, porque ela vê pela abundância do conhecimento
divino seu nada que a torna nada e a reduz à nada. E assim é ela inteira, porque
ela vê pela profundidade do conhecimento de sua maldade, o qual é tão profundo
328
Cf. Ibidem, cap. 118, p. 198.
157
e tão grande que ela não encontra aí nem começo, nem medida, nem fim, mas um
abismo abissal e sem fundo.
329
O que Marguerite descreve aqui não é muito diferente do que fala Agostinho de
sua própria conversão. A verdade sobre o ser é aquilo que Deus pode fazer
dele, e essa visão é tanto mais encantadora quando desproporcional ao mérito
daquele que a experimenta. No entanto, a conseqüência que Agostinho tira daí
diz respeito à conversão da vontade, e a conseqüência que tira a tradição
renana na qual se insere Marguerite diz respeito ao aniquilamento da vontade.
A alma aniquilada, que é tomada de uma humildade profunda, está nua e já
não tem mais nada a esconder, explica Amor para Razão no capítulo 73
Se ela tivesse cometido tantos pecados que o mundo inteiro tenha jamais
cometido, e feito tanto bem quanto todos os que estão no paraíso, e se todo esse
bem e todo esse mal aparecessem ao povo inteiro, essa alma nisso não sentiria
nem vergonha nem honra por ela mesma, e ela não quereria nem esconder nem
dissimular seu mal.
330
No entanto, é justamente essa grande humildade que coloca essa alma sobre o
trono onde ela reina sem orgulho. Esse rebaixamento a faz ver tão claramente
o verdadeiro sol de bondade que a absorve, a transforma e a une por pura
bondade à bondade divina. Essa alma é então tombada de Amor no nada sem
o qual ela não pode ser inteira.
331
A humildade é, pois, a grande virtude, como vimos, mãe de Razão e de todas
as virtudes. Humildade agora em maiúscula porque é Humildade que promove
a verdadeira santidade. Dessa Humildade só sabe o que sabe não saber nada
que possa pôr em palavras. No entanto, mesmo sem ter palavras, a alma
ensaia uma poesia para falar sem falar de Humildade.
Esta Humildade, que é avó e mãe, é filha da divina majestade. Se bem que ela
nasce da Divindade. Deidade é sua mãe, e a avó de seus ramos, dos quais os
rebentos produzem frutos em abundância. Nós nos calamos, porque falar os
estraga. Essa humildade tem dado o tronco e o fruto de seus rebentos: e por isso
se aproxima a paz desse Loin-Près, ele que a desembaraça de toda operação. O
falar o prejudica, o pensamento o obscurece. Loin-Près a descobre e mais nada a
encobre: ela é livre de todo o serviço e vive em liberdade.
Quem serve, não é livre;
329
Ibidem, cap. 118, p. 199.
330
Ibidem, cap. 73, p.141.
331
Cf. Ibidem, cap. 118, p. 199-200.
158
Quem sente, não é morto;
Quem deseja, quer;
Quem quer, mendiga;
Quem mendiga não alcança
Ao divino contentamento
Mas os que são sempre leais a ela, estão sempre invadidos por Amor, aniquilados
por Amor e derrubados por Amor; pois não tem eles cuidado senão de Amor para
sofrer e suportar sempre mais tormentos, ainda que sejam tão grandes como
grande é a vontade divina. E jamais ama com finesse, a alma que duvida que isso
seja verdade!
332
É nesse sentido, tomada pela visão de “Deus todo bondade” e de si mesma
abismada em humildade, que a alma se despede de Razão e das virtudes. É
pelo esgotamento e não pelo desprezo das mediações que ela chega à
liberdade. Ela que tomou lição na escola de Razão e desejou as obras de
virtudes, encontra-se agora tão elevada e avançada na lição divina que começa
a ler onde Razão termina, e essa lição não é escrita por mãos de homem, mas
pelo Espírito Santo que escreve maravilhosamente na alma que é seu
pergaminho precioso. Na alma se encontra a escola divina, à boca fechada, e a
sabedoria humana não pode a meter em palavras
333
, explica Amor dirigindo-se
à Razão e buscando explicar o paradoxo que representa para ela o júbilo e a
alegria que experimenta a alma ao se sentir livre de Razão e das virtudes.
O exercício das virtudes é trabalho que exige pleno cuidado e é com esses
cuidados que se ganha a subsistência, explica a alma. O próprio Jesus
enobreceu com seu corpo esses cuidados que são os cuidados daqueles que
se salvam com seu trabalho e que tem necessidade de segurança. Jesus
Cristo não os querendo perder, os tem garantido por sua morte, por seus
Evangelhos e por suas Escrituras. No entanto, não é aí que as almas
aniquiladas encontram o reto caminho. Elas encontram na fé e não nas obras,
encontram aos pés daquele que é muito forte e não pode mais morrer, aquele
do qual a doutrina não é escrita na medida que não cabe em uma forma
limitada
334
. Marguerite tem clareza sobre o limite das mediações e considera
que é grande teimosia submeter Deus aos limites das possibilidades humanas.
332
Ibidem, cap. 88, p. 162.
333
Ibidem, cap. 66, p. 133.
334
Cf. Ibidem, cap. 69, p. 135
159
No capítulo 68, a alma aniquilada trata de “bestas” e de “asnos” aqueles que,
vivendo sob o domínio de Razão, não captam o segredo da “Côrte do País da
Liberdade Perfeita” para onde Deus chama aqueles que se dispõe a abrir mão
de si mesmos e acabam por submeter a Ele à leis de sua própria razão. Sua
crítica tão desconfortavelmente direta se completa, no entanto, com uma trova
cheia de delicadeza:
A alma: A todos os que vivem de vosso conselho, que são tão bestas e tão asnos
que me fazem dissimular minha linguagem por causa de sua grosseria, e não falar,
por medo que eles não encontrem a morte no estado de vida, lá onde eu estou em
paz sem mexer; à todos esses, por causa de sua grosseria, eu digo que me fazem
calar e dissimular minha linguagem, o que eu tenho aprendido na côrte secreta do
doce país;
Neste país
cortesia é lei,
Amor é medida,
e bondade é nutrição;
a doçura de lá me atrai,
a beleza de lá me agrada,
a bondade de lá me deleita;
que posso eu doravante,
pois que eu vivo em paz?
335
A alma aniquilada chama, portanto, bestas e asnos aqueles que buscam a
Deus nos monastérios pelas preces, nos paraísos criados, nas palavras
humanas e nas Escrituras. Parece aos principiantes que as pessoas que
procuram a Deus assim, pelas montanhas e vales - considera a alma tem
como certo que ele esteja submetido aos seus sacramentos e às suas obras.
336
A alma aniquilada não trabalha mais por Deus, nem por ela mesma, nem por
seu próximo, porque Deus é que trabalha nela, por ela e sem ela, e a sua
caridade não pode ser comparada a nenhuma obra realizada por criatura.
Nenhuma obra se compara, explica Amor, àquela que Deus faz em uma
criatura em nome de sua bondade por ela
337
.
A dupla visão que tem a alma no quinto estado, ao retirar dela a vontade, o
desejo e a obra de bondade, explica agora a autora no capítulo 118, a deixam
em repouso, isto é, em posse de um estado de liberdade que a descansa de
todas as coisas em uma nobreza excelente.
335
Ibidem, cap. 68, p. 134-135.
336
Cf. Ibidem, cap. 69, p. 136.
337
Cf. Ibidem, cap. 71, p. 138.
160
A seguir vem, para Marguerite Porete, o sexto estado que é o estado em que a
alma é pura e iluminada, mas, adverte, não glorificada, já que a glorificação
pertence ao sétimo estado. Aqui a alma não conhece nada, não ama nada, não
louva nada que não Deus, porque sabe que não existe nada que seja fora dele.
Nesse estado a alma iluminada não vê nem Deus nem ela mesma, mas Deus
se vê por ele mesmo nela, por ela, sem ela. Vê tudo o que é por bondade de
Deus e sua bondade doada é Deus mesmo, a bondade é o que Deus é. No
sexto estado, portanto, a Bondade na alma se vê por sua bondade, se vê na
transformação de amor que opera na alma.
338
Nisso reside a salvação,
conhecer a bondade de Deus naquilo que ele opera na alma. Nesse sentido é
que a alma aniquilada se autocompreende como exemplo de salvação para
toda a criatura:
A alma: Eu vos digo igualmente que o Pai tem derramado em mim toda sua
bondade e que ele me a tem dado. Essa bondade de Deus é dada a conhecer ao
gênero humano por meio de minha maldade. Por isso vê claramente que eu sou
eternamente o louvor de Deus e a salvação da criatura humana, porque a salvação
da criatura humana não é outra que o conhecimento da bondade de Deus.
339
A bondade divina que invade a alma engendra nela Unidade que é a própria
Trindade. A alma aniquilada, transfigurada, torna-se - proclama “a alma
invadida pela bondade divina” - uma só vontade, um só amor, uma só operação
em duas naturezas com o Filho unigênito de Deus:
A alma invadida pela bondade divina: não há mais que uma só vontade, um só
amor, uma só operação em duas naturezas, uma só bondade, graças à conjunção
que opera a força de transformação de amor de meu bem-amado, domínio sem
limite do transbordamento do amor divino que a vontade divina exerce em mim e
por mim, sem que eu a possua.
340
Quanto ao sétimo estado, termina a autora o capítulo 118, Amor o guarda em si
para nos doar na glória eterna.
338
Cf. Ibidem, cap. 118, p. 200-201.
339
Ibidem, cap. 117, p. 193.
340
Ibidem, cap. 115, p. 190.
161
4. Da liberdade perfeita aos desdobramentos arriscados
A liberdade perfeita é, então, para Marguerite, a transfiguração que vem da
operação de Deus na alma que se despojou de todas as seguranças exteriores
(mandamentos, escrituras, conselhos) e de todas as seguranças interiores
(razão e vontade).
A alma, explica a autora aos ouvintes, falando por ela mesma no capítulo 82, é
livre por seus quatre quartiers
341
. Marguerite quer falar aqui, aos “ouvintes” do
Mirouer, sobre os quatro elementos que constituem a nobreza da alma
aniquilada. Quatro elementos que estariam representados nas quatro partes
que compõe o brasão que, ela faz imaginar, poderia identificar esta alma.
O primeiro quartier, isto é, o primeiro elemento pelo qual a alma é livre reside
no fato dela não ter mais nenhuma censura por não realizar mais as obras de
virtude, pois, para Marguerite, as obras de virtude cessam onde o Amor se
exerce. O segundo quartier se refere ao fato da alma não ter mais vontade
própria, mas somente a vontade divina e por isso ela não se inquieta nem da
justiça, nem da misericórdia porque ela estabelece e põe tudo na única vontade
daquele que a ama. O terceiro quartier diz respeito ao fato dela crer que não há
e nem haverá ninguém pior que ela e que também não há ninguém mais
amado do que ela para aquele que a ama tal como ela é. E por último, o quarto
quartier que se relaciona com o fato dela crer que Deus não quer outra coisa
que o que é bom, e que ela não quer outra coisa que a divina vontade. Neste
sentido, a alma é perfeitamente livre porque Deus a transformou em seu
próprio querer.
[A autora, aos ouvintes]: (...) Amor a tem tanto enriquecido dele mesmo, que ele
lhe faz pretender isso, ele que, de e por sua bondade, a tem transformado em sua
bondade; ele que, de e por seu amor, a tem transformado neste seu amor; ele que,
de e por seu querer divino, a tem transformado nesse querer. Ele é isso mesmo
dele mesmo e nele mesmo por ela; e isso, ela o crê e pretende, e de outra forma
ela não seria livre por todos os seus quartiers
342
341
As imagens que Marguerite usa aqui para falar de liberdade encontra referência na
heráldica, ciência dos brasões de armas que tem sua origem na Europa no século XII e que se
desenvolve nos dois séculos seguintes até se converter numa requintada disciplina intelectual
e artística. A heráldica está intimamente associada com os conceitos de nobreza, fidalguia e
cavalaria. (Cf. Dicionário da Idade Média, p.190-191).
342
Marguerite PORETE, op.cit., cap. 82, p. 154.
162
Essa liberdade, portanto, implica a perda de si naquele com quem a alma se
funde, em quem ela se abandona. A alma aniquilada é como um rio que, vindo
do mar, recebe um nome e cumpre sua obra. Quando chega ao mar
novamente, perde seu curso e o nome sob o qual ele correu cumprindo sua
obra. No mar onde ele repousa, já não tem mais nome nem obra, encontra-se
totalmente transformado e recebe o nome da transformação
343
. A alma
aniquilada, no entanto, ao mesmo tempo em que perde seu nome, sua
identidade, recebe, por outro lado, o nome daquele no qual se tem
transformado, é o que explica Amor no capítulo 83, que se segue:
Amor: Agora, essa alma é sem nome, e por isso ela recebe o (nome) da
transformação na qual Amor a tem transformado, como as águas das quais
falamos recebem o nome de “mar”, porque não há mais que mar desde que elas aí
entraram.
(...) Amor atrai toda matéria nele, e é uma mesma coisa que Amor e que essas
almas não mais duas, porque haveria então discórdia entre alas, mas uma só
coisa, e, portanto, há acordo.
344
É importante aqui, perceber o paradoxo desse itinerário que afirma uma
liberdade em que aniquilamento e nobreza coincidem. Dissolução e
transformação de Amor são movimentos contraditórios de uma alma elevada à
vida divina depois de tombada, pela revelação da verdade sobre si mesma, ao
abismo da maior humilhação. A alma aniquilada pela descoberta de si como
nada encontra a plenitude na unidade com o amor misericordioso de Deus que
vem a ela e a habita
345
. A alma aniquilada em seu não saber e em seu nada
querer, encontra o tesouro escondido, contido na Trindade, a saber, a
343
Cf. Ibidem, cap. 82, p. 154.
344
Ibidem, cap. 83, p. 155.
345
A perspectiva de Marguerite lida, assim, com a paradoxal mensagem cristã que busca
unidade com Deus, no entanto, sem apagar a diferença básica entre Deus e o ser humano e a
singularidade de Jesus. Como afirma Sudbrack, essa tensão entre uma perspectiva panteísta
de unidade na dissolução da diferença e uma perspectiva em que se preserva a
transcendência, está presente na mensagem cristã desde o início e reside no mistério da
existência humana e da criação, a partir da vida de Deus e nela. Essa linguagem paradoxal
reflete uma experiência que se encontra além do pensamento lógico-racional e embora
encontre um lastro na grande tradição da Igreja que se desenvolveu com referência a
Dionísio Areopagita é sempre sujeita a julgamentos equivocados. A mística cristã, continua
esse autor, transpõe radicalmente o mistério de Deus à crença no Deus que se tornou humano.
Esse fato radicaliza o mistério de que na eternidade abrangente de Deus o mundo finito pode
ter a sua independência. Essa compreensão, todavia, exige do ser humano a constante e
renovada transposição da compreensão e da vontade racionais para o mistério do “Deus
163
transformação por força do amor faz com que ela seja o que convém a ela ser.
Assim a alma possui tudo, isto é, ela tem o que o Espírito Santo tem, afirma
Marguerite no capítulo 42, dando voz a ele, que aparece aí personificado em
diálogo com Amor, ensinando à “Santa Igreja a pequena”, o que sabe essa
alma, o que ela quer e o que ela tem:
O Santo Espírito [à Santa Igreja a pequena]: O Santa Igreja, queres saber o que
essa alma sabe e o que ela quer? Eu vou lhe dizer, isso que ela quer: essa alma
não sabe mais que uma coisa, que ela não sabe nada; pois não quer ela mais que
uma coisa, é que ela não quer nada. Esse nada-saber e esse nada querer lhe dá
tudo, e lhe faz encontrar o tesouro enterrado e escondido, contido na Trindade
eternamente. E isso, não por natureza divina, porque isso não pode ser, mas pela
força do amor, porque convém que ela seja.
Amor [à Santa Igreja a pequena]: Agora, Santa-Igreja, vós tendes entendido
porque essa alma possui tudo?
O Santo Espírito: Mais ainda: tudo o que eu tenho do Pai e do Filho. E porque ela
tem tudo o que eu tenho, e que o Pai e o Filho não tem nada que eu não tenha em
mim, segundo isso que diz Amor, essa alma tem então, escondido e contido nela,
o tesouro da Trindade.
Santa-Igreja [apequena] à Santo Espírito: Sendo assim, convém então que a
Trindade permaneça nela.
O Santo Espírito: Isso é justo; porque ela é morta ao mundo e o mundo é morto
nela, a Trindade permanece sempre nela.
346
A alma aniquilada, transformada e habitada pelo Espírito, é Santa Igreja,
explica Amor no capítulo 43, se dirigindo à “Santa-Igreja-a-pequena”, aquela
que está sob o domínio de Razão. Essa última é a Igreja institucional, a que
aconselha e orienta na utilização das mediações. Em sua eclesiologia,
Marguerite distingue, portanto, duas Igrejas, que são duas dimensões de uma
só Igreja a caminho. Uma é aquela em que Razão permanece e outra é aquela
em que Amor permanece. Essa, a “Santa Igreja”, é a que sustenta, ensina e
nutre “Santa Igreja a pequena”.
Sendo transformada por Amor em Amor, a alma, perfeitamente livre, é de uma
amável nobreza na prosperidade, de uma alta nobreza na adversidade, e de
uma excelente nobreza em todos os lugares e por isso - tira aqui a autora, as
conseqüências arriscadas que a levaram a uma problemática relação com a
Igreja em sua dimensão institucional - não procura mais a Deus.
sempre maior”. (Cf. Josef SUDBRACK, Mística, a busca do sentido e a experiência do
absoluto, p.45-57).
346
Marguerite PORETE, op.cit., cap. 42, p. 106.
164
No capítulo 85, Amor vai explicar aos ouvintes que a alma sendo livre, mais
que livre, perfeitamente livre, supremamente livre pela transformação operada
nela, não procura mais Deus porque se encontra transformada em Deus.
Vivendo, agora, da vida divina, tem clareza sobre a relatividade de mediações
que atravessou, submetendo-se a elas até o esgotamento:
Amor: Essa alma é esfolada viva estando posta à morte, ela é embrasada pelo
ardor do fogo da caridade, sua cinza é jogada em alto mar pelo nada de sua
vontade. Ela é de uma amável nobreza na prosperidade, de uma alta nobreza na
adversidade, e de uma excelente nobreza em todos os lugares, quaisquer que
sejam. Ela que é tal não torna a procurar mais a Deus, nem na penitência, nem
nos sacramentos da Santa Igreja, nem nos pensamentos, nem nas palavras, nem
nas obras, nem nas criaturas do mundo, nem na misericórdia, nem na glória
gloriosa, nem no conhecimento divino, nem no amor divino, nem no louvor
divino.
347
Da liberdade perfeita adquirida por obra de Deus pela alma abismada em
grande humildade, Marguerite tira, portanto, as conseqüências que
posteriormente serão interpretadas pelo Concílio de Viena, conforme vimos no
segundo capítulo, como doutrina sacrílega e perversa de uma seita de homens
depravados, geralmente chamados Begardos, e de mulheres incrédulas,
geralmente chamadas Beguinas. Entre os erros condenados estão a
impecabilidade da alma, a não necessidade do jejum e da oração, a superação
da contradição entre o corpo e o espírito que faz poder dar à natureza o que
ela pede, a não submissão à Igreja e aos seus preceitos, a dispensa das
virtudes enquanto caminho de perfeição. Essas afirmações, de fato, como já
sabia Marguerite, não são facilmente entendidas e por isso devem ser
compreendidas em seu sentido escondido. Ela tem presente que suas
afirmações são arriscadas e que, não sendo compreendidas no contexto de
Amor, seriam, como acabou acontecendo, sendo mal compreendidas pelo
poder que permaneceu sob o domínio de Razão.
347
Marguerite PORETE, op.cit., cap. 85, p. 157-158.
165
CAPÍTULO V
DEUS É CORTESIA: OUSADA AFIRMAÇÃO POÉTICA
DE UMA TEOLOGIA NEGATIVA
Como vimos anteriormente, a teologia de Marguerite Porete, fundada no
aniquilamento, se situa no âmbito da tradição apofática, que nos remete a
Dionísio Areopagita. A alma aniquilada, vimos, conhece a Deus para além de
todo conhecimento e de todo o amor
348
. A linguagem dessa vida aniquilada,
denominada por ela, vida divina, é o “silêncio secreto do amor divino”.
349
No entanto, paradoxalmente, a alma aniquilada escreve, fala, mas
fundamentalmente canta e, com essa canção, diz o que não se pode dizer, a
saber, “o que” ou “quem” Deus é. O Mirouer de Marguerite, na radicalidade de
sua convicção apofática, emite uma palavra afirmativa sobre Deus. Nele, a
alma cantando a sua alegria, chama a Deus, o Fin Amour, Amor Cortês,
Cortesia. A partir do itinerário místico, Marguerite descobre e anuncia em sua
obra que Deus que é Amor, e o Amor nela, o Espírito Santo, é delicadeza,
doçura, bondade, beleza
350
, atributos de Deus que nos remetem à linguagem
dos trovadores, aqueles que cantam o amor cortês.
348
Marguerite PORETE, op. cit., cap. 11, p. 66-67.
349
Ibidem, cap. 94, p. 168.
350
Cf. Ibidem, cap. 68, já citado à p. 34.
166
1. Teologia negativa e poesia trovadoresca
Os trovadores medievais estão no centro de um novo modo de sentir, afirma
José D’Assunção Barros, costumavam ver a si mesmos como portadores de
um novo tipo de ciência, uma “ciência alegre”, articulada ao mundo e, ao
mesmo tempo, capaz de transcendê-lo. Ciência alegre que implicava, todavia,
o sofrimento, porque era expressão de um aprendizado em que o trovador
tornava-se um mestre da arte de viver intensamente
351
. Criação original dos
travadores, o Amor Cortês, que em sua dinâmica paradoxal implica a relação
entre imanência e transcendência, oferecerá recursos de expressão para a
teologia apofática produzida por mulheres na Idade Média tardia entre as quais
distinguimos Marguerite Porete. De fato, observa Rougemont, mais do que uma
analogia de palavras, pode-se verificar a existência de uma relação entre essas
duas realidades, a realidade da paixão amorosa cantada pelos trovadores e a
realidade da transformação de amor relatada pelos místicos
352
. Tanto uma
realidade quanto outra vai se referir a uma fome, um amor faminto, desejante,
que não pode ser saciado porque se descobre tomado pelo amor do infinito.
Amor que é alegria diante da grandeza do amado e dor pela distância
impossível ao amante, abismado na consciência de sua pequenez e
humildade.
Mística e paixão serão duas experiências amorosas que terão como desfecho a
morte, morte para os limites e condicionamento e abertura para o
incondicionado. O romance vai ter como desfecho a morte dos amantes, que
padecem de um amor que não encontra condições de realização, porque, de
tão grande, não aceita se submeter aos condicionamentos da natureza (não se
sacia com a relação sexual), nem aos condicionamentos da instituição (não se
adequa às exigências dos acordos matrimoniais). A morte também é o
desfecho para o místico, tombado de amor infinito pelo amante a quem
pertence e a quem nunca possuirá. Morte, todavia, que implica, à diferença do
romance, a passagem para uma vida de liberdade. Aqui o amado que é o
351
Cf. José D’Assunção BARROS, Os trovadores medievais e o Amor Cortês reflexões
historiográficas. Revista Alethéia, Abril/Maio 2008, Ano 1Vol.1 N.1,
www.aletheiarevista.com/n1/artigosn1/Barros.pdf, acessado em 15/05/2008.
352
Denis ROUGEMONT, O Amor e o Ocidente, p.127.
167
próprio Amor, transforma o amante, autocomunicando-se, eleva-o para além
dos limites, dando a ele a capacidade de gozar do amor ilimitado que é o amor
gratuito e desinteressado. E assim o desejo faminto descansa, nutrido de
transcendência, em Deus que é Amor.
Para entender melhor o vínculo entre essas duas experiências é preciso,
todavia, retomar as origens religiosas do amor cortês que se situam entre a
filosofia grega, a tradição cristã e a heresia cátara.
1.1. As origens religiosas do Amor Cortês
A angústia mais originária do humano é a divisão entre o amor a esse mundo
material e o desejo de transcendência que representa a intuição de sua origem
imaterial. Essa angústia originária que perpassa a história encontra-se nas
origens religiosas desse fenômeno que se denominou amor cortês. Segundo
Rougemont, para entender essa presença, é preciso ter em conta que o Amor
Cortês tem como pano de fundo a crença maniqueísta que está nos
subterrâneos do mundo indo-europeu desde o século III e que, por sua vez,
nos remetem aos gregos e aos celtas.
1.1.1. Filosofia Grega, religião celta e crença maniqueísta
É certo que o mundo medieval conheceu o amor platônico. Através de Plotino e
do Areopagita transmitiu-se a doutrina do desejo total, isto é, a aspiração
luminosa ou o impulso religioso original que promove a ascese, por degraus de
êxtase, para a origem de tudo o que existe, longe dos corpos e da matéria,
longe do que divide e distingue. Eros, na perspectiva grega, conduz à unidade
última para além e contra a multiplicidade dolorosa. A dialética do Eros,
enquanto movimento do espírito, explica Rougemont, introduz na vida um
elemento estranho que transforma o rumo natural do impulso sexual. O
platonismo exalta um desejo que não decresce e que, sempre insatisfeito,
recusa a possibilidade de se satisfazer no mundo, porque deseja abraçar o
168
Todo.
353
Para esse autor, essa perspectiva grega que compõe o solo de onde
brotará o amor cortês no sul da França no século XII, encontra eco na tradição
dos celtas que haviam conquistado grande parte da Europa atual.
Em três pontos, Rougemont ressalta a proximidade entre a tradição filosófica
grega e a religião celta. Em primeiro lugar está a crença numa vida para além
da morte, vida aventurosa, semelhante à da terra, no entanto mais depurada,
de onde os heróis podiam regressar. Em segundo está o dualismo fundamental
que marca a religião dos druidas com seus deuses que formam duas séries
opostas: deuses luminosos e deuses sombrios. Em terceiro lugar está a
maneira como os druidas representam a aspiração à luz: a fada é Eros
revestido de mulher, símbolo do além que faz desprezar as alegrias
terrestres.
354
É esse pano de fundo, explica Rougemont, que acolhe a partir do século III, a
crença maniqueísta que marca a origem religiosa do amor cortês. O
maniqueísmo, crença dualista que sincretizou doutrinas judeu-cristãs e indo-
iraniana, parte da Pérsia e propaga-se à China, Índia, norte da África e, no
século V, à Espanha e sul da Gália. Baseando-se em dois princípios
conflitantes, anuncia que a salvação reside na libertação do Bem, ou Luz, que
está encerrada na matéria. A concepção maniqueísta lamenta o
aprisionamento da alma no corpo, mas também contempla a possibilidade da
ascender à Luz. Eros, o desejo supremo conduz a alma à felicidade plena que
é a negação da felicidade terrena.
Para Rougemont, essa crença que tem como dogma fundamental a natureza
divina ou angélica da alma, prisioneira das formas criadas e da noite da
matéria, é acolhida e invoca as intuições fundamentais da filosofia grega e da
religião céltica que compunham a herança ancestral do sul da França, a região
do Languedoc.
O impulso da alma para a Luz não deixa de invocar, por um lado, a
“reminiscência do Belo” de que falam os diálogos platônicos e, por outro, a
nostalgia do herói celta regressado do Céu à terra e que se lembra da ilha dos
imortais. Mas esse impulso é constantemente dificultado pelo ciúme de Vênus
(...), que quer reter na sombria matéria o amante, presa do luminoso Desejo.
353
Cf. Ibidem, p. 51.
354
Cf. Ibidem, p.52-54.
169
Tal é o combate do amor sexual e do Amor que exprime a angústia
fundamental dos anjos caídos em corpos demasiados humanos.
355
Essa fé maniqueísta, completa Rougemont, profundamente paradoxal, que
recusa-se à exposição racionalista, impessoal e objetiva, é essencialmente
lírica. Realizando-se numa experiência ao mesmo tempo angustiada e
entusiasta, encontra sua melhor expressão na poesia.
1.1.2. A tradição cristã: o amor e a santificação do mundo
Esse mundo medieval que viu nascer o amor cortês é um mundo convertido ao
cristianismo que, em resposta a essa angústia humana, vai anunciar a
surpreendente novidade do mistério da Encarnação.
O advento de Deus ao mundo é a resposta cristã à experiência do Mal e ao
desejo de êxodo. Para a tradição cristã, Deus vem ao mundo e eleva o mundo
à condição divina, oferecendo como recurso salvífico, Agapè, o amor de
gratuidade. Como alternativa à morte, que na perspectiva dualista, põe fim à
desconfortável tensão entre a carne e o espírito, o Agapè cristão deve conduzir
à ressurreição da carne, pneumatização do corpo pela vivência do amor
fraterno. Neste sentido, explica Rougemont, Agapè é o amor convertido em
“Amor ao próximo”.
Para Eros, a criatura não era mais que um pretexto ilusório, uma ocasião de
exaltação; e era preciso desembaraçar-se dela em seguida, porque o objetivo
era arder de paixão, cada vez mais, até morrer! O ser particular não era mais
que um defeito e um obscurecimento do Ser único. Como amá-lo
verdadeiramente, tal qual era? Estando a salvação no além, o homem religioso
desviava-se das criaturas ignoradas pelo seu deus. Mas o Deus dos cristãos
e só ele, entre todos os deuses que se conhecem não se desviou, pelo
contrário: “ELE AMOU-NOS PRIMEIRO” na nossa forma e nas nossas
limitações. Foi ao ponto de revesti-las. Revestindo a condição do homem
pecador e separado, mas sem pecar e sem dividir, o Amor de Deus abriu-nos
uma via radicalmente nova: a da santificação. O contrário da sublimação que
não era mais que fuga ilusória para lá do concreto da vida.
356
355
Ibidem, p.55-56.
356
Ibidem, p.58.
170
Ao contrário da sublimação que implica um esforço de êxodo do mundo, Agapè
é caminho de santificação. Amor sem interesse de possuir, amor que, sendo
próprio de Deus, não é amor de carência, mas amor de abundância.
O amor que muda, portanto, de sentido. Não é mais desejo angustiado da alma
em busca do Transcendente, mas é, em Cristo, amor divino ao mundo. Para o
cristianismo, o Infinito Encarnado, concede ao mundo o seu próprio amor, o
amor incondicionado. E esse amor é que, transfigurando a criação, a eleva ao
encontro do Transcendente, que ela almeja. É Deus que, doando-se ao mundo,
revestindo-se de finitude, eleva o mundo ao infinito. A criatura então, se une ao
criador, não quando rejeita sua condição finita, mas quando, assumindo essa
condição, acolhe em si o próprio Infinito, que pelo seu amor misericordioso,
reconcilia o finito e o infinito, capacitando a criatura para o exercício desse
amor.
Agapè não é fusão com o transcendente, mas exercício de amor divino,
possível em Cristo, ao humano transfigurado, que tem como responsabilidade
envolver esse mundo numa dinâmica de gratuidade que é comunhão.
É por isso que o amor cristão supõe o amor ao próximo, próximo que é o outro
tal como é na realidade da sua aflição e da sua esperança, amor ao outro sem
o pretexto da exaltação e sem esperança de retribuição. No meio do mundo,
Agapè é amor gratuito de Deus que, entre as criaturas, possibilita a comunhão
que, sendo unidade na diversidade, corresponde à reconciliação entre o finito e
infinito pela via da santificação e não pela via da sublimação.
Ao que parece, Agapè aqui, se opõe a Eros, amor angustiado e entusiasmado
pelo desejo de transcendência.
Florescendo nesse contexto, a cortesia realiza uma estranha síntese entre Eros
e Agapè, amor de sublimação e amor de santificação, síntese que, segundo
Rougemont, está associada ao desenvolvimento da heresia cátara a partir da
região do Languedoc, no sul da França.
357
357
Cf. Ibidem, p.67.
171
1.1.3.O amor cortês e a heresia cátara
O amor cortês floresce na mesma época e na mesma região geográfica que
aparece e se estende a heresia cátara, crença dualista de origem persa, que
entra na Europa ocidental no começo do século XI, vinda da Bulgária e ganha
adeptos em toda a Occitânia.
Em sua cosmogonia, os cátaros vão explicar que o mundo finito e material,
lugar de dor, sofrimento e morte, não é criação de Deus, mas de Lúcifer, o Anjo
revoltado, o Demiurgo. Esse Lúcifer seduziu e arrastou as almas para o mundo
material com a promessa da liberdade para praticar o bem e o mal. Em sua
estratégia de sedução, ele usou uma mulher de beleza esplendorosa capaz de
inflamar as almas de desejo. A partir de então, a alma nesse mundo material,
encontra-se prisioneira da carne, submetida à lei da procriação de da morte, e
separada do espírito que permaneceu no céu.
358
A redenção, no entanto, segundo essa doutrina vem de Cristo que toma a
aparência de homem para mostrar o caminho do regresso à Luz, a heresia
cátara é uma heresia cristã. O princípio da moral cátara é que o Bem, a Virtude
e a Salvação consistem em desprender-se do mundo material, mal por
natureza.
359
Os cátaros rejeitam o dogma da Encarnação, substituem o sacrifício da missa
por uma ceia fraterna que é símbolo de acontecimentos espirituais. Rejeitam
também o batismo de água e assumem como rito maior de sua Igreja, o
batismo pelo Espírito consolador.
360
O consolamentum, como era chamado o rito maior dos cátaros, era dado aos
irmãos que aceitavam, renunciando ao mundo, se consagrar unicamente a
Deus, e se comprometer a jamais mentir nem prestar juramento, a não matar
nem comer animal algum e a abster-se de todo contato com suas mulheres se
358
Cf. Ibidem, p.68-69.
359
Cf. Pedro García RODRÍGUEZ, Amor Cortés y Gnosis Cátara,
http//www.angelfire.com/ma/apuntes/Pedro3.htm, acessado em 31/4/04.
360
Cf. Denis ROUGEMONT, op.cit., p.69.
172
fossem casados.
361
Esses formavam uma comunidade eleita, a dos “Perfeitos”,
ao lado dos que eram os simples “crentes”.
362
Para os cátaros, o fim escatológico é a reintegração da criação na unidade do
Espírito original e a salvação dos pecadores arrastados por Satanás e do
próprio Satanás que entrará de novo na obediência do altíssimo.
363
Insubordinados às autoridades desse mundo, a Igreja e a Coroa, se negavam a
pagar os dízimos e os impostos, rejeitavam a hierarquia e a vassalagem,
rechaçavam a guerra e a família patriarcal. Entendiam que, sendo a procriação
um sofrimento, era preciso evitar o matrimônio. Chegavam mesmo a tolerar o
concubinato que era, para eles, um estado temporal suscetível de modificação.
O concubinato não foi introduzido na Occitânia pelos teóricos cátaros, comenta
Pedro García Dominguez, mas sob a influência deles adquiriu o valor de
protesto contra o matrimônio.
364
Em função dessa postura diante do
casamento, a doutrina cátara vai permitir à mulher desempenhar um papel
diferente do que lhe impunha o casamento no contexto da sociedade cristã
patriarcal.
O catarismo ressalta a dimensão transcendente do desejo que em oposição ao
mundo, concentra-se na busca que é, na verdade, retorno à unidade perdida
com e divindade. E essa busca implica, por sua vez, desprendimento. Amor
então é, nesse contexto, refinamento, isto é, gosto pelas coisas do alto e
desprezo ao mundo que, em suas exigência naturais e institucionais, cerceiam
a liberdade da alma e a fazem permanecer, separado do espírito e presa ao
que é baixo.
Para Rougemont, existe uma ligação profunda entre a cortesia e a atmosfera
religiosa do catarismo, o culto a esse amor refinado, desprendido e desejante.
Isso não significa que o amor cortês corresponda totalmente ao catarismo. Aqui
lembramos Otavio Paz, a quem nos referimos no capítulo II, que considera que
o amor cortês, em relação ao catarismo, foi uma heresia. Na verdade, esse
autor vai considerar o amor cortês uma transgressão não só em relação ao
catarismo, mas também em relação ao cristianismo e à filosofia platônica do
361
Cf. Ibidem, p.69.
362
Cf. Ibidem, p.70-71.
363
Cf. Ibidem, p.70.
173
amor, contudo não podendo deixar de ser entendido fora do entrelaçamento
dessas tradições
365
.
Aqui, no entanto, queremos enfatizar que o amor cortês em relação ao
catarismo, vai também querer ser expressão poética do Fino Amor, amor em
sua dimensão transcendente que, crítico da natureza e da instituição, tem
relação estreita com a mística, caminho de encontro direto com o Mistério.
Neste sentido tocam-se novamente teologia, mística e heresia, buscando na
poesia, condição de expressão do inexprimível.
1.1.4. A influência da mística árabe
A tratarmos das referências religiosas do amor cortês não podemos deixar de
considerar a poesia religiosa árabe que veio se desenvolvendo desde o século
IX e que opera uma síntese tão improvável quanto a operada pelos trovadores
entre maniqueísmo iraniano, neo-platonismo e islamismo
366
.
Segundo Otavio Paz, as afinidades entre a poesia trovadoresca e a erótica
árabe são numerosas: o culto à beleza física, as escalas do amor, o elogio à
castidade como método de purificação do desejo e não um fim em si mesma e
a visão do amor como a revelação de uma realidade transumana. A erótica
árabe, sob influência da filosofia neoplatônica, vai anunciar que o amor mais
sublime é o amor puro vai também exaltar a continência e a castidade.
A mística sufi, uma das riquezas espirituais do Islã, contra a ortodoxia islâmica
que considera a distância entre criador e criatura infranqueável, aceita a união
com Deus e vai expressar essa busca da unidade em tratados sobre o amor
onde a beleza do amado é um caminho para a contemplação das formas
eternas - nesses tratados se percebe claramente a influência grega
367
.
364
Cf. Pedro García RODRÍGUEZ, Ibidem.
365
Conferir referência a Otavio PAZ no capítulo II, p. 62-64.
366
Denis ROUGEMONT, op.cit., p.91.
367
Para Otavio Paz, de um ponto de vista mais estrito, esse platonismo teria chegado aos
poetas provençais, por meio dos árabes, com quem teriam feito contato em virtude da
participação nas cruzadas na Espanha. Cf. Otavio PAZ, A dupla chama, São Paulo, p.74-77.
174
É opinião de Rougemont, em sintonia com outros autores, que a região que vê
nascer o amor cortês foi alvo de “extraordinárias confluências espirituais da
história”: por um lado uma corrente religiosa maniqueísta de origem iraniana
que sobe pela Ásia Menor e pelos Balcãs até a Itália e a França trazendo sua
doutrina esotérica sobre o amor; por outro lado uma retórica requintada que
remonta os Sufis platonizantes e maniqueisantes do Iraque e da Espanha
árabe e que encontram no Sul da França uma sociedade a espera de meios de
linguagem para “dizer o que ela não ousava dizer e nem podia confessar em
língua dos clérigos nem na fala vulgar”. O amor cortês, diz esse autor, nasce
na confluência das “heresias da alma e do desejo”, vindas do Oriente pelas
duas margens do mar civilizador, a religião e a poesia
368
.
2. O amor cortês, canção ao amor infinito
O amor cortês é uma forma nova de poesia, nascida no século XII, no sul da
França, pátria cátara. Esse amor celebra a Dama dos pensamentos, a idéia
platônica do princípio feminino, o culto do amor contra o casamento, e o elogio
da castidade
369
, mas, fundamentalmente, o amor cortês é a poesia do amor
infinito descoberto pela experiência do amor impossível.
No centro das cantigas de amor dos trovadores existe um amante que se
entrega de corpo e alma a uma paixão incontrolável e ao dedicado serviço
amoroso da mulher amada, uma dama, em geral inatingível por estar espacial
ou socialmente inacessível.
370
No paradoxo desse amor impossível, o amante
descobre a transcendência de um desejo que, chamado ao despojamento do
que é possível na proximidade, ao invés de encolher, cresce em intensidade e
ultrapassa os limites dos condicionamentos.
O trovador é o amante que descobre e canta o amor para além dos
condicionamentos naturais (do encontro genital) e também para além dos
limites institucionais (do casamento). Exalta o amor fora do casamento porque
o casamento significa apenas união dos corpos, enquanto que, para ele, o
368
Cf. Denis ROUGEMONT, op. cit., p.96-97.
369
Cf. Ibidem, p.99.
175
amor é mais que isso, ele é Eros supremo que transporta a alma para a união
luminosa além dessa terra. O amor, para o trovador, supõe castidade.
371
2.1. O amor cortês e a crítica ao casamento
O amor cortês se desenvolve no seio de uma revolução psíquica que se opera
no século XII que leva a uma ascensão poderosa e universal do amor crítico do
casamento e ao culto da mulher idealizada.
372
Heloísa, que é uma dama do século XII, traduz essa sensibilidade crítica
cantada pelos poetas, em carta a Abelardo, escrita por ela
373
em reação ao
relato das infelicidades de Abelardo a um amigo, a Historia Calamitatum, a
propósito de sua resistência em aceitar o casamento.
Deus o sabe, jamais procurei em ti senão a ti mesmo. Era somente tu que eu
desejava, não aquilo que te pertencia ou aquilo que representas. Não esperava
nem casamento, nem vantagens materiais, não pensava nem em meu prazer
nem nas minhas vontades; buscava apenas, bem o sabes, satisfazer teus
desejos. O nome de esposa parece mais sagrado e mais forte, entretanto o de
amiga sempre me pareceu mais doce. Teria apreciado, permiti-me dize-lo, o de
concubina ou de mulher de vida fácil, tanto me parecia que, em me humilhando
ainda mais, aumentaria meus títulos a teu reconhecimento e menos
prejudicaria a glória do teu gênio.
374
A essência do amor total que contrapõe Heloísa ao casamento, explica Gilson,
é o grande amor desinteressado que tinha para com Abelardo. Neste contexto,
o casamento, entende Heloísa, que deveria servir para aplacar a fúria do tio
ferido em sua honra e também em seus planos econômicos de casamento para
a sobrinha, excluiria para sempre Abelardo do estado de continência
necessária ao filósofo. O casamento, para Heloísa, seria a desgraça de ambos.
De Abelardo e dela própria que, parecendo a todos ter se beneficiado do
casamento, para ela mesma, teria causado a desgraça de Abelardo, afastando-
370
Cf. José D’Assunção BARROS, op.cit..
371
Cf. Denis ROUGEMONT, op.cit., p.64.
372
Cf. Ibidem, p.100.
373
Independente da discussão sobre a originalidade da correspondência, consideramos aqui,
que essa literatura ilustra bem a sensibilidade da época no tocante ao sentido do casamento.
Para melhor esclarecimento, ver Georges DUBY, As Damas do séc.XII, Heloísa, Leonor, Isolda
e muitas outras, p.69-100.
374
HELOÍSA, Correspondência de Abelardo e Heloísa, p.95.
176
o para sempre do celibato que era, e ela acreditava, condição para a grandeza
de sua filosofia.
Estranha atmosfera é essa que se vivenciou entre os medievais, de louvor a
um amor intenso que, captado em sua transcendência, combina com pureza,
abstinência e castidade. A crítica, empreendida aqui, à sensualidade vivida sob
o impulso da natureza ou sob o controle da instituição, está em função de um
amor puro a que se alcança pela ascese e que implica extravasamento dos
sentidos, ao mesmo tempo em que a sua contenção.
A mesura vai ser a virtude que possibilita ao amante comportar-se com temperança e
moderação diante da relação amorosa que é de completa entrega a algo que não pode
se realizar. A mesura é ascese porque aprimora o espírito no exercício do controle
sobre os sentidos, favorecendo a discrição e evitando os extremos da loucura e da
morte diante do afastamento do objeto amado.
375
2.2. Um novo lugar da mulher em nova relação entre os sexos
O amor cortês conta com uma sensibilidade que supõe uma nova relação entre
os sexos e essa nova relação tem como referência importante às Côrtes de
Amor que se desenvolvem na Occitânia.
A sociedade medieval é patriarcal, o senhor medieval vive para a guerra que é,
para ele, um dever e uma razão para existir. A guerra, além de ser a
oportunidade dele provar sua honra e valor, é também fonte de enriquecimento,
pois, na guerra é permitido o saque, a rapina e a cobrança de resgate pelo
inimigo prisioneiro. Em tempos de paz, o senhor vai se dedicar à caça, que era
para ele, um substituto da guerra e um bom exercício para se manter em
forma. A guerra e a caça retiram, por longos períodos de tempo, o senhor do
castelo, onde permanecem a esposa e os filhos. No sul da França, no entanto,
alvo das já citadas confluências espirituais, o castelo será lugar onde se
desenvolve essa sensibilidade nova, que inverterá o lugar da mulher na relação
entre os sexos. Nas cortes de amor, música e poesia, numa atmosfera religiosa
375
Cf. José D’Assunção BARROS, op.cit..
177
que já não vê a instituição do casamento como valor essencial, inauguram uma
relação onde a mulher se faz educadora do homem.
A primeira Idade Média, observa Ortega y Gasset, foi um tempo varonil. A
segunda Idade Média se caracteriza precisamente pela ascensão sobre o
horizonte histórico do astro feminino. Frente ao ascetismo do guerreiro e do
monge, as damas de Provença se atreveram a insinuar uma disciplina de
interior polimento e de intelectual agudeza
376
.
Essas mulheres levaram o homem occitano a compreender a importância da
mulher na sociedade no campo moral e intelectual. Elas colocavam as regras
dos bons modos e do bom trono. Exigiam do homem uma nova postura de
conquista, não mais pela força, mas por seus méritos. O homem para
conquistar uma mulher deve ser, na cultura da cortesia, virtuoso e refinado.
Deve, e aqui se opera a grande inversão, submeter-se à dama com fidelidade e
fervor, colocar-se a seu serviço, para merecer como recompensa o seu
amor
377
.
A atuação da mulher na cultura da cortesia, ressalta Ortega y Gasset, não se
caracteriza pela ação. Sua influência não é turbulenta como a masculina. É, ao
contrário, “estática, como a da atmosfera” que opera lentamente à maneira de
um clima. O progresso que ela opera, não consiste no aperfeiçoamento das
ciências, das artes, das leis, das técnicas, mas no aperfeiçoamento de si
mesma, tornando-se mais delicada e exigente. Sobre cada ação do homem,
um gesto de reprovação ou um sorriso de aprovação servem à transformação e
inauguração de um novo estilo e tipo de vida.
378
É característica do amor cortês que a mulher seja equiparada a uma suserana.
Ela tem a liberdade de conceder ou não a recompensa que o amante espera e
tem também a liberdade de aceitar ou de recusar o serviço oferecido, observa
Claude Buridant, na introdução ao “Tratado do Amor Cortês” de André
Capelão, obra que data do século XII e que pretendeu codificar de maneira
metódica a arte cortês de amar. Nos diálogos do capítulo VI, continua Buridant,
se referindo à obra de Capelão, a única garantia do amante é a promessa de
376
José ORTEGA Y GASSET, Estúdios sobre el amor, p.4-5.
377
Cf. Pedro García Rodríguez, op. cit., p.15-16.
378
Cf. José ORTEGA Y GASSET, op. cit., p.19-21.
178
amar que é feita pela mulher escolhida a ele, na medida em que descobre nele,
um número suficiente de virtudes para lhe conceder a esperança de ser
amado
379
. O amor deve ser obtido a duras penas, ao preço do enfrentamento
de grandes dificuldades, pois, é no enfrentamento do sofrimento causado pela
inacessibilidade do objeto do desejo que o amor se eleva.
(...) o amor faz um homem grosseiro e sem educação brilhar de elegância; até
a um homem de baixíssimo nascimento ele pode conferir nobreza e caráter;
enche o orgulhoso de humildade, e graças a ele o amante acostuma-se a
prestar com prazer serviços ao outros. Que coisa extraordinária o amor:
permite que tantas virtudes brilhem no homem e confere tantas qualidades a
todos os seres, quaisquer que sejam.
Há também outra coisa no amor que merece mais que um rápido louvor: de
algum modo ele ornamenta o homem com a virtude da castidade, pois aquele
que é iluminado pelos raios do amor a custo pode pensar em estar nos braços
de outra mulher que não seja sua bem-amada, por mais bela que seja essa
mulher.
380
2.3. A descoberta do amor sem fim
Embora o amor cortês esteja voltado ao um objeto inacessível, ele supõe, por
outro lado, uma recompensa suprema, uma grande alegria (joy) que advém da
descoberta, pelo impedimento da posse do amado, do amor sem fim. O amor
puro para André Capelão, explica Buridant, à diferença do amor platônico, não
é amor de uma idéia, mas amor que almeja o encontro físico, o beijo na boca, o
abraço, o contato com a amante nua, mas exclui o prazer último da posse do
outro, a união sexual. O amor puro, assim, alimenta indefinidamente o desejo e
engendra um aperfeiçoamento sem fim. A paixão jamais satisfeita está a salvo
do declínio e do cansaço.
É o amor puro que une os corações de dois amantes com toda a força da
paixão. Consiste na contemplação do espírito e nos sentimentos do coração;
vai até o beijo na boca, o abraço e o contato físico, mas pudico, com a amante
nua; o prazer último está excluído, sendo ele vedado a quem queira amar na
pureza. É a essa espécie de amor que devem apegar-se com todas as forças
aqueles que pretendam amar, pois ele nunca pára de fortalecer-se, e não
sabemos de ninguém que tenha jamais lamentado dedicar-se a ele; e, quanto
mais dádivas ele nos oferece, mais dádivas queremos. Esse amor, como todos
379
Cf. Claude BURIDANT, em: ANDRÉ CAPELÃO, Tratado do Amor Cortês, p.XLVIII.
380
ANDRÉ CAPELÃO, Tratado do Amor Cortês, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p.12-13.
179
reconhecem, tem tal poder que dele nascem todas as virtudes; não causa
prejuízo nenhum a quem o pratica, e nele Deus vê pouca ofensa.
381
O amor, para o trovador, é também forte como a morte! Morte para os limites e
condicionamentos e abertura para o infinito. Morte que é transfiguração,
redenção, o caminho possível para superar definitivamente os limites que
aprisionam o homem, e que, no caso do amor cortês, impedem ao amante a
união definitiva com a amada.
A morte por amor transforma a vida. No dramático universo do amor cortês,
explica Barros, a realidade literária é efetivamente vivenciada. O Amor Cortês,
que é veiculado nas cantigas e nos romances, é também veiculado através de
biografias de alguns de poetas-cantores notáveis por terem sua própria vida
errante pelas cortes da Europa Medieval, transformada pela cortesia
382
.
Os trovadores, portanto, cantando o amor impossível, descobrem o amor
infinito, aquele que em sua realidade paradoxal transforma a vida. Esse amor
é, então, mistério que não tem lugar linguagem, mas que, precisando ser
comunicado, vai encontrar forma de expressão na poesia, a arte de dizer o
indizível. Esse é o amor cantado por Dante e mais tarde, maravilhosamente
definido por Camões:
O amor é o fogo que arde sem se ver.
É ferida que dói e não se sente.
É um contentamento descontente.
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer.
É solitário andar por entre a gente.
É um não contentar-se de contente.
É cuidar que se ganha em se perder.
É um estar-se preso por vontade.
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata a lealdade.
Tão contrario a si é o mesmo amor.
381
Ibidem, p.162-163.
382
Cf. Ibidem, p.10.
180
3. Mística e paixão
É nesse ponto que podemos encontrar os laços que unem mística e cortesia. A
mística que é também relato da transformação operada pela busca do Amor
Infinito, aquele que, em sua transcendência é maior do que tudo o que se pode
pensar e de tudo o que se pode amar.
Como vimos, a teologia negativa ou teologia mística, que tem como referência
Dionísio o Areopagita, se elabora ao encontro com a cultura greco-romana,
buscando conectar, como lembra Frei Carlos Josaphat, imanência e
transcendência, afirmando-se a partir da razão humana consciente de sua
autonomia, ao mesmo tempo em que de sua capacidade de reconhecer e
superar os próprios limites. Uma teologia emerge, entre os Padres da Igreja,
interpretando a revelação bíblica confiada a Israel e realizada em Jesus Cristo,
como sabedoria sobre Deus transcendente que eleva o humano, por seu amor,
para além dos limites do pensamento
383
. Uma sabedoria sobre a indizível
transformação que o Amor opera no mundo e em nós que se afirma como
negativa por se reconhecer incapaz de falar adequadamente do Infinito do
Amor e do dom que sobrevém como “idéia de Deus”.
A mensagem anunciada em nome desse Amor, propondo um projeto de maior
realização da criatura pela graça e pelos caminhos do amor, vai além do que
ela recebeu mas vai também no sentido de sua aspiração infinita.
384
A teologia negativa, continua Josaphat, introduz na noite obscura e ditosa do
perfeito amor que é a realização da vocação humana à transcendência. Essa
realização, testemunham os místicos, supõe um caminho de múltiplos degraus
que se deve galgar em etapas sucessivas.
O ser humano se realiza transcendendo-se sempre, na medida em que vai
tendo a “coragem de ser”, de ser mais e melhor, abrindo-se no conhecer e no
amar, alargando e aprofundando suas relações com as coisas, com o mundo,
sobretudo e por excelência com as pessoas.
385
383
Cf. Carlos JOSAPHAT, Falar de Deus e com Deus. Caminhos e descaminhos das religiões
hoje, p.175.
384
Ibidem, p.176.
385
Ibidem, p. 176-177.
181
A partir da teologia negativa, todavia, se chega na Idade Média, à afirmação da
total impossibilidade para a inteligência humana de alcançar ou ser elevada ao
conhecimento de Deus
Aos textos já conhecidos de Dionísio juntavam-se novas asserções mais
radicais tomadas a alguns santos Padres orientais, especialmente João
Crisóstomo sobre a absoluta e total transcendência de Deus, a qual acarretaria
a impossibilidade de se conhecer a Deus como Ele é, mesmo na visão beatífica
que constitui o objeto da grande esperança cristã.
386
A essa crise corresponde a resposta escolástica de Tomás de Aquino, mas
também, como vimos
387
, a resposta poética da teóloga Marguerite Porete que
vai ousar falar de Deus e a Deus em trovas, elaborando uma teologia ousada
que se expressa em cantigas sobre e ao Amor Infinito, àquele que transcende
a todo nome, mas que, tomada por tão grande amor, a alma não se contém em
O anunciar, mesmo sob o risco de mentir
388
.
4. A Canção da Alma Aniquilada
A canção da alma aniquilada, que inaugura a parte final do Mirouer, é
introduzida por um triplo elogio a essa alma, elogio tecido pela Verdade, pela
Santa Igreja e pela Trindade.
Verdade começa por elogiar a alma que, em sua fina nobreza se despoja de
tudo, sem pedir nada ao Amor, senão “o querer de seu divino prazer”, que quer
nela permanecer. Essa alma aniquilada é identificada, por Verdade, a um poço
profundo, uma fonte bem selada, que tem em si oculto, o sol, isto é, o Espírito
Santo que, através dela, lança raios de divina sabedoria e faz a Verdade luzir.
O Espírito Santo, que permanece na alma despojada de si, reluz a Verdade de
Deus, ensina Marguerite, iniciando a canção que abre uma segunda seção com
a qual vai concluindo sua obra. Nessa conclusão poética, a teóloga usa a
poesia para finalizar a difícil tarefa que é anunciar Deus, cantando as
transformações que ele nela, sem ela, tem operado. A alma aniquilada é aqui,
386
Ibidem, p.180-181.
387
Cf. capítulo 3, p.115.
388
Marguerite Porete, op. cit., cap 119, p. 202-203.
182
trovadora que canta seu amor infinito a Deus, o rei absolutamente
transcendente, impossível ao seu pensar e ao seu desejar, ao mesmo tempo
em que louva a Deus, de imensa delicadeza (Fin Amour, cortesia), o Espírito
Santo que, habitando nela, a transforma para a vida de perfeita liberdade,
tornando-a espelho do Filho.
A Verdade, louvando as almas que estão neste estado:
Oh, esmeralda, pedra preciosa,
Verdadeiro diamante, rainha imperatriz,
Vós dais todas as coisas em vossa fina nobreza,
Sem demandar ao Amor suas riquezas,
Mas somente o querer de seu divino prazer.
Eis que é bem justo,
Porque é o verdadeiro caminho
Do Fino Amor que quer aí permanecer.
Oh, poço profundo e fonte bem selada,
Onde o sol está sutilmente oculto,
Vós lançais vossos raios pela divina ciência;
Isto, nós o sabemos por uma divina sabedoria,
Porque é o seu brilho que sempre nos faz luzir.
389
Ao elogio da verdade, a alma reage, reafirmando seu vínculo com o Amor
Infinito que a aprisionou sob sua tutela. Deus é o amado a quem ela pertence,
de quem ela não ousa falar, mas a quem se encontra totalmente submetida.
Estranha inversão de gênero que se opera no encontro entre a teologia da
beguina e a poesia trovadoresca. A alma de uma mulher torna-se trovadora,
amante, identifica-se com a dinâmica daquele que na poesia trovadoresca, é o
homem. Deus é o Amado, aquele que, em sua inacessibilidade, fascina e
submete, fazendo dela “seu vassalo”, Deus é identificado com a Dama de seus
sonhos, aquele a quem ela dirige um amor transcendente.
A Alma
Oh, Verdade, em nome de Deus,
Não fales senão de mim mesma,
Eu jamais falo dele,
Nada que não seja dado por ele;
E é bem verdade, não duvideis,
Porque jamais nisto tive mestra.
390
389
Ibidem, cap. 120, p.203.
390
Esse verso tem tradução duvidosa quando feita a partir do francês moderno. Se voltarmos
ao original em francês medieval - Car oncques en ce dame de moy ne fu - e compararmos ao
latim - Numquam in hoc fui domina mei - , poderíamos traduzir em português “Nunca nisso fui
senhora de mim”. Usamos para essa comparação a edição bilíngüe da obra de Marguerite
Porete, “Marguerite Porete, Le Mirouer des Simples Ames”, editada por Romana Guarnieri e
183
Se vos agrada saber a quem pertenço,
Vou dizê-lo por pura cortesia:
O Amor a um tal ponto me aprisionou sob sua tutela,
Que não tenho nem sentido, nem querer,
Nem razão de nada fazer,
Se não for, sabei-o, por ele mesmo.
391
Em seguida, vem o elogio da Santa Igreja que parece compreender finalmente
a transformação operada por Deus na alma aniquilada, que a tem feito
anunciadora da vida nova no país da liberdade perfeita, verdadeira estrela que
anuncia o dia, sol sem mácula, lua toda cheia, estandarte que precede o rei.
Aqui a autora ressalta que a liberdade que se funda no aniquilamento da
vontade, coloca a alma acima da Lei e não contra a Lei.
Santa Igreja:
Cortês e bem instruída, eis quem é bendita!
Vós sois a verdadeira estrela que anuncia o dia,
O puro sol sem mácula, sem traço de impureza,
A lua toda cheia, sem jamais vos encobrir;
Vós sois o estandarte que precede o rei.
Vós viveis somente do grão, sem mais vontade,
Enquanto que vivem de palha, de farelo, de muita forragem,
Estes onde se exerce ainda a humana vontade:
Eles são servos da Lei; ela está acima da Lei,
Mas não contra a Lei: a Verdade assim o testemunha.
Ela está cheia e elevada: Deus está na vontade dela.
392
Em resposta a alma se admira de que os que são governados por Razão e
Temor, Desejo, Obra e Vontade, permaneçam sem saber a grande nobreza do
ser em nada tornar-se.
A Alma:
Sim, muito doce Amor divino, que estais na Trindade,
Tal é minha felicidade, que me admiro de que podem durar
Aqueles que a Razão governa, e o Temor, o Desejo, Obra e Vontade,
Sem saber a grande nobreza de permanecer sem falar.
393
Paul Verdeyen S.J. e publicada na coleção Corpus Christianorum, Continuatio Medievalis LXIX,
Turnholti Typographi Brepols Editores Pontificii, MCMLXXXVI, p.336-337.
391
Marguerite PORETE, op. cit, cap.120, p. 203.
392
Ibidem, cap.121, p. 204.
393
Ibidem, cap.121, p.204. Aqui poderíamos também recorrendo ao original em francês
medieval, propor uma tradução alternativa:
Hee, tres douce Amour Divine, (Sim, muito doce Amor Divino)
qui estes en Trinité, (que estais na Trindade,)
Telle heure est, que j’ay merveille (Tal hora é, que me admiro)
184
E finalmente, Santa Trindade testemunha que o saber da alma aniquilada,
adquirido por transformação de amor, é saber experimental, saber que veio a
ela pela proximidade que experimentou, comendo na mesa e bebendo do vinho
de seu Bem-Amado, saber único, segredo apenas concedido aos que
penetram na sua intimidade. No poema atribuído à Trindade percebemos o
esforço da teóloga para expressar aquilo sobre o que não se pode dizer, mas,
todavia, não se deve calar. O segredo revelado de Deus, por Deus, na
intimidade da alma nua, despojada, é incompreensível e condenável para os
que permanecem sob o governo de Razão e de Vontade. Em sua teologia
mística, a Revelação é um segredo, conhecimento do alto (gnose) que vem por
experiência - aqui descrita com imagens sensuais que remetem ao prazer da
mesa onde se saboreia boa comida e se alegra com bons vinhos - e que não
encontra acolhida, porque a Santa Igreja, que deveria acolher a sua
mensagem, permanece pequena, ainda apegada às orientações da vontade
própria e da razão. A Trindade, então, pede, por amor, que se cale, mas ela
insiste em falar, põe-se a dizer, com a permissão do Fino Amor, os versos de
sua canção.
A Santa Trindade:
Oh, pedra vinda do céu,
Eu vos imploro, querida filha: por que vós vos preocupais com isso?
Não há no mundo tão grande clérigo que soube isso que falais;
Fosseis vós à minha mesa, eu vos dava meus víveres;
Assim ficastes bem instruída, e vós saboreastes bem meus víveres,
Meus vinhos de cuba cheia, do qual vos fartastes tanto,
Que apenas por cheirá-los, vós vos enebriastes;
E nunca mais vós mudaríeis.
Vós haveis pois, apreciado meus víveres
E saboreado o vinho novo:
Ninguém além de vós disso saberia falar;
Também poderíeis vós, qual fosse o preço a vós oferecido,
Entregar vosso coração a um outro exercício.
Se vos agrada, minha querida filha,
Minha irmã, minha bem amada,
Eu vos imploro por amor:
Não queirais mais revelar
comment ceulx pevent durer, (como podem permanecer)
Lesquieulx Raison e Crainte gouvernent, (Aqueles que Razão e Temor governam,)
Desir, Ouevre e Voulenté, (Desejo, Obra e Vontade)
Et ne soevent la Grant noblece (Sem saber a grande nobreza)
d’estre a nient deviser. (do ser em nada tornar-se.)
185
Os segredos que sabeis;
Outros se condenarão onde vos salvareis,
Uma vez que a Razão e o Desejo os governam,
E o Temor e a Vontade.
Mas saiba-o, minha filha eleita:
O paraíso a eles é dado.
A alma eleita: O paraíso? Vós não o daríeis a eles de uma maneira diferente?
Os assassinos também o terão, se quiserem pedir perdão! Mas eu não quero
me calar sob o pretexto que quereis, e é por isso que vou dizer os versos de
uma canção, com a permissão do Fino Amor.
394
Depois dessa introdução, a alma começa sua canção, convidando (os ouvintes)
a ver o Filho, Jesus Cristo que, com sua ascensão aos céus, dá a ela o Fino
Amor, o Espírito Santo, graças à sua afeição “a mim mesma, ao meu próximo e
ao mundo inteiro” e graças também “à afeição espiritual e às Virtudes”, às
quais a alma foi submissa por estar sob o poder da Razão e das quais ela
agora está libertada. Em sua canção da alma aniquilada, Marguerite vai
retomar o caminho do aniquilamento, agora em primeira pessoa, explicitando
as transformações que Deus operara nela, retirando-a da servidão e
conduzindo-a a liberdade, pela força do Fino Amor.
Vi a tolice onde eu estava
Naquele tempo quando as servia,
Seguramente eu não sabia
De todo meu coração, isto vos exprimir!
E enquanto que as servia,
Enquanto que as preferia,
Eis a alegria que o Amor me deu:
Isto ouvi alguém falar!
E também simples como estava,
Mesmo se bem mal o estimava,
o Amor me fez querer amá-lo.
395
O Fino Amor é o Espírito Santo, ousa Marguerite, Deus que habita a alma
despojada de tudo, até das faculdades de pensar e de querer, faculdades
fundamentais que determinam o seu ser. É o Fino Amor, o Espírito Santo,
canta a alma, que a faz encontrar os versos da canção com os quais pode
louvar seu bem-amado, seu Amor de longe, aquele que permanecerá, em sua
394
Marguerite PORETE, op. cit., cap.121, p. 204-205.
395
Ibidem, cap 122, p. 206.
186
transcendência, sempre inacessível às possibilidades humanas, inalcançável
pela inteligência e pela vontade.
Pensar não vale aqui mais nada,
Nem trabalhar, nem falar.
O Amor me leva tão alto
- Pensar não vale aqui mais nada
Por seus divinos olhares,
Que não tenho nenhum desejo.
Pensar não vale aqui mais nada
Nem trabalhar, nem falar.
O Amor me fez, em sua nobreza,
Encontrar os versos de minha canção.
Ela canta a pura divindade,
Onde a Razão não saberia falar,
E meu único bem amado:
Ele não tem mãe,
Mas ele saiu de Deus Pai,
E também de Deus Filho.
Seu nome é o Espírito Santo:
Meu coração está com ele de tal forma unido,
Que ele na alegria me faz viver.
O bem amado, ao me amar,
Me dá aqui seu alimento.
Não quero nada lhe pedir,
Porque isto seria grande malícia.
Eu devo pois confiar-me totalmente
A este amor de meu amante.
Aquele do qual nada se sabe dizer, mas de cuja bondade não se pode calar,
continua a autora, possui a alma em seu amor e, dando-se a si mesmo, eleva-a
à liberdade do não querer.
Oh, bem amado, na amável natureza,
Há muito de que vos louvar!
Generoso e cortês sem medida,
Cúmulo de toda bondade,
Vós não quereis mais nada fazer,
Bem amado, sem minha vontade.
Também eu nada devo calar
Vossa bondade, vossa bondade:
Vós sois para mim poderoso e sábio;
Isto não posso esconder.
Ai, ai! Mas a quem, então, vou dizer?
Mesmo um Serafim não o saberia dizer!
Oh, bem amado, tu me possuíste em teu amor,
Para me dar teu grande tesouro,
Que é o de dar-te a ti mesmo,
Tu, a divina bondade.
E se o coração não pode dizer,
Um puro nada querer o adivinha,
187
Ele que tão alto me fez subir,
Por uma união de coração a coração
Que jamais devo revelar.
396
A luz divina liberta a alma do querer ao não querer, aberto ao querer divino.
Esse querer divino possibilita experimentar as delícias do amor trinitário que
não conhece aquele que permanece submetido às limitações da natureza e
aos condicionamentos da razão.
Eu fui outrora reclusa na escravidão de uma prisão,
Quando o Desejo me enclausurava em querer afeição.
Lá me encontrou a luz do ardor do divino amor;
Ela logo matou meu desejo, meu querer e meu afeto,
Que me impediam de ser presa no coração do divino amor.
E a luz divina me libertou da prisão:
Sua nobreza me uniu ao divino querer do Amor,
Onde a Trindade me dá as delícias de seu amor.
Este dom, nenhum homem o conhece,
Por isso, há tempos que ele serve a uma ou outra Virtude,
Que ele percebe através da Natureza, ou se exercita na Razão.
Oh, bem amado, que dirão as beguines,
as pessoas de religião,
Percebendo a excelência de vossa divina canção?
As beguines declaram que sou desgarrada,
E os padres também, os clérigos e os pregadores,
Os agostinianos, os carmelitas e os irmãos menores!
Porque o estado do qual eu falo, é o amor consumado,
Sem salvar a Razão deles, que os faz dizer isto.
Desejo, Querer e Temor lhes retiram, certamente, o conhecimento,
A riqueza e a união da alta luminosidade
Do ardor do divino amor.
397
As delícias de amor que destroem o pensamento, exaltam e transformam, dão
à alma a força do bem amado a quem ela se encontra consagrada.
A Verdade o declara a meu coração:
Eu sou amada de um apenas.
Ela diz que é sem retorno
Que ele me deu seu amor.
Este dom destrói meu pensamento
Das delícias do seu amor,
Delícias que me exaltam e me transformam pela união
Na eterna alegria de estar no divino Amor.
O divino Amor me diz que entrou em mim,
Tão bem que ele pode tudo aquilo que ele quer:
396
Ibidem, cap 122, p. 206-207.
397
Ibidem, cap 122, p. 207-208.
188
A força que ele me deu,
Ela é do bem amado que tenho em amor;
A ele estou consagrada,
E ele quer que eu o ame,
Tão bem que eu o amarei.
398
E a alma proclama finalmente, num verso paradoxal, que ama, mas ao mesmo
tempo, que não pode amar, pois Ele está só a amá-la, porque Ele é e ela não
é. E no seu amar sem amor, nada importa senão aquilo que Ele quer e aquilo
que para Ele vale.
Eu disse: eu o amarei;
Eu minto, eu não me vejo nisso!
Ele está só ao me amar:
Ele é, eu não sou!
E mais nada me importa,
Senão tudo aquilo que ele quer,
Senão tudo aquilo que para ele vale.
Ele está na plenitude
Eu recebo disto a plenitude;
Eis aí o divino coração
E nossos amores leais.
399
Essa parece ser a conclusão do Mirouer de Marguerite
400
, uma poesia para
falar daquilo que não se poder falar, da transformação de amor que operou
nela o bem amado, o Loinprès, seu amor impossível, seu amor infinito.
A canção da alma aniquilada é, portanto, um tratado da Trindade com uma
ênfase pneumatológica de cuja falta padeceu a Igreja ao longo de sua
história
401
. Um tratado, já no momento em que foi escrito, considerado herético.
O Mirouer será considerado pelo grupo do qual faz parte, pelos clérigos, pelos
pregadores, pelos religiosos, produto de uma alma desgarrada.
398
Ibidem, cap.122, p.208.
399
Ibidem, cap.122, p.209.
400
Conforme nota de Max Huot de Ongchamp da Edição em francês moderno (Albin Michel,
1984), com a canção da alma aniquilada, Marguerite Porete parece concluir o Espelho, no
entanto, o livro não termina aqui, um conjunto de considerações são acrescentadas pela autora
Segundo observa esse autor, esse conjunto pede ser considerado um tratado a parte,
elaborado anteriormente e reutilizado no Espelho, por sua autora.
401
É interessante lembrar, como vimos, que nos séculos XII e XIII, houve um grande
movimento de despertar evangélico e de uma sensibilidade viva ao papel e presença do
Espírito. Sobre essa referência cf. artigo de Marie-Dominique CHENU, Despertar evangélico e
presença do Espírito, nos séculos XII e XIII. Em número especial da revista CONCILIUM
intitulado A experiência do Espírito Santo.
189
De fato, desde os primeiros tempos do cristianismo, a comunidade que se
forma como comunidade de vida no Espírito, vive a ambigüidade de
experimentar em seus próprios corpos um ânimo que não vem deles mesmos,
um ânimo que, vindo do Trancendente, foge ao controle, não pode ser
enquadrado, e, portanto, deve ser discernido. As primeiras comunidades vão
se sentir inspiradas por uma ordem que subverte a sensibilidade e a
racionalidade. Confessam por isso a ressurreição da carne, que se realiza não
para além da morte, mas já em vida, na medida em que se participa da morte
de Jesus Cristo e da sua ressurreição pelo Batismo. Morto e ressuscitado em
vida, o cristão já não teme, não carece, não deseja. A ação que se desdobra
daí, é então, absurda para os gentios e escandalosa para os judeus.
Para Marguerite Porete, a alma nadificada, tomada pelo Espírito, já não faz
nada, nem por causa de Deus, está livre das amarras da causalidade. Não
busca a salvação de si pelas obras porque já não existe em si, sua missão
resume-se em espelhar o Amor, o Fino Amor, o Espírito Santo a quem ela
pertence e que nela permanece.
Deus de Amor que Marguerite anuncia não é uma idéia que a alma anseia,
mas é Deus encarnado, possível de ser desejado de corpo e alma, mas
impossível de ser possuído. Terminada a canção da alma aniquilada, um
conjunto de considerações, isto é, meditações bíblicas, são acrescentadas pela
autora e oferecidas como ajuda àqueles que suplicam pelo caminho do país da
liberdade. Essas sete considerações vão explicitar o caminho empreendido por
essa alma apaixonada que aprende, no encontro com o Filho, a alegria de viver
o amor infinito.
Adepta do Evangelismo, que marcou a espiritualidade cristão entre os séculos
XI e XII, a autora faz sua primeira consideração em torno da frase de Jesus no
Evangelho de João: “É preciso que eu me vá, e se eu não for, na verdade vós
não podereis receber o Espírito Santo.” Por que, ela se pergunta, pergunta a
seu pensamento
402
, Jesus teria dito aos apóstolos “É preciso que eu me vá?” E
402
É interessante perceber que Marguerite Porete confia em seu pensamento, valoriza a
dinâmica da razão assim como a valorizam muitos teólogos desse mesmo período. Ao longo do
seu texto, é a Razão quem vai, através de questionamentos, ajudando ao Amor a explicitar o
itinerário e o sentido da vida da alma nadificada. Especialmente sutil é a fala da Razão no
capítulo 13 que reconhece o seu limite e pede ao Amor que continue aprofundando o que a ela
parece incompreensível.
190
a resposta que encontra, obtém da própria Justiça
403
: “...porque eles o amavam
muito ternamente segundo a natureza humana, e muito fracamente segundo
sua natureza divina.”
404
Marguerite Porete interpreta a escritura fundamentada
na própria experiência, através da qual sabe que é preciso amar no vazio para
se libertar do Desejo que enclausura “no querer afeição”
405
.
Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, a autora que não despreza
a razão, não despreza o desejo (se refere a ele em maiúscula), valoriza sua
força. Capta, no entanto, que é atravessando o amor humano, sem se deter
nele que se chega ao Fino Amor. Nesta mesma direção se encontra sua
segunda consideração sobre o amor de Madalena.
No capítulo 124, na segunda consideração, Marguerite Porete considera, em
primeiro lugar, Madalena, a Maria a quem Jesus procura
406
com sua
humanidade, cansado, esgotado, rechaçado, faminto, e a quem ela envia, para
oferecer o que lhe falta ao corpo, para a irmã. Maria o envia a Marta para que
ela o sirva. Mas para amá-lo, considera a autora, ela não envia outra senão a si
mesma. Em segundo lugar, considera Maria que procura Jesus e não encontra.
A tumba está vazia. Procura e ama humanamente, com intensa afeição. Por
estar procurando e amando intensamente, que bem-amado não terá quando
não procurar mais nada e estiver colocada no amor sem a afeição do seu
espírito, pergunta Marguerite Porete. De novo a autora está falando de uma
experiência que se intensifica com o esvaziamento do objeto a que se dirige o
403
O emprego da palavra Justiça aqui está perfeitamente adequado à tradição teológica
agostiniana. Agostinho vai trabalhar a complicada articulação entre a compreensão jurídico-
filosófica da palavra e uma concepção teológica. Em sua síntese vai entender a justiça como
propriedade dinâmica de Deus que é comunicada ao homem por pura graça (cf. De Trinitate
XIII 10, 13-17, 22). No texto de Marguerite Porete, é da Justiça, como a concebe Agostinho,
que vem o sentido da palavra evangélica por pura graça. O Le miroir é, portanto, um texto
construído com referências criteriosas à tradição filosófico-teológica dominante no contexto.
404
Marquerite PORETE, op.cit., cap.126, p.210.
405
Ibiem, cap.123, p.207.
406
Apesar da falta de coerência na composição desta personagem de que sofrem as escrituras
canônicas, a presença de Maria Madalena é marcante. J. DUBY, em sua obra As damas do
século XII, vai comentar a visibilidade a que chega, nesse período, essa personagem
evangélica. Ao longo da tradição teológica, vai permanecer sempre, em relação a essa
personagem, a dificuldade de interpretá-la considerando-a a partir da multiplicidade ou
segundo uma compreensão que trabalha com a referência da unidade. O que é claro para a
teologia é que apesar de hoje já não haver dúvida sobre a pluralidade das personagens,
compreendê-la sob a referência da unidade ilumina o sentido da redenção (cf. DAUZAT, Pierre-
Emmanuel, L’invention de Marie Madaleine. In: Le Monde de la Bible, 143 jun/2002). No
Mirouer, Maria irmã de Marta (Lc 10, 38-42) é a mesma que em João é a testemunha
privilegiada da ressurreição de Jesus.
191
afeto, aquele a quem Maria ama está inacessível. É preciso que ela pare de
buscar o seu Senhor para que Deus realize sua obra nela, para ela e sem ela.
Deus age quando Maria descansa. Em terceiro lugar, nesta mesma
consideração, Marguerite Porete aprofunda o sentido das boas obras e das
boas intenções. Tecendo um comentário em torno da parábola do semeador
(Lc 8, 4-8), ela vai afirmar que as boas obras e as boas intenções são o
trabalho da alma em vista do pecado. A função delas é fazer com que a alma
se desincumba de si mesma. Maria, escreve Marguerite Porete, “tinha tão
ardentemente esta obra de bondade, ela se encarregou de tal forma, e se
atravancou tão fortemente, que esse acúmulo a desincumbiu de si mesma.”
407
Mas o que existe de melhor está mais adiante e é a obra de Deus. As obras
de perfeição e a intenção pura trabalham o corpo como terra a ser
transformada em deserto. Lá, no deserto, Deus opera, faz nascer o novo fruto
do qual Maria vai se nutrir. Maria se encarrega em transformar-se em deserto,
não se preocupa com o fruto. Atinge a plenitude de seu estado, não falando e
buscando, mas calando e sentando.
408
A terceira consideração, em torno do mesmo tema do deserto, destaca a figura
de João Batista. Ele é aquele que aponta para Jesus, mas permanece no
deserto. Não o retém, não o acompanha. Quando Jesus vem a ele para o
batismo e João toca o Filho, nem assim se preocupa com o anúncio, mas faz
caso apenas de Deus que está realizando sua obra. Marguerite Porete
considera que João desaparece, permanece no deserto para que apareça a
obra de Deus em si mesma. Em sua perspectiva, a obra de Deus aparece com
o desaparecimento de si.
Mais perfeitamente santificada foi a Virgem Maria, considera a autora em
quarto lugar. Ela, que experimentou tanto conhecimento, amor e reverência da
Trindade, quando concebe, na virgindade, pelo Espírito Santo, e também tanto
conhecimento do sentido da dor do Filho na cruz, não se importa com o que
deve fazer. Deseja estar no lugar do Filho, mas reconhece a não importância
de si mesma na obra da salvação. Sabe que Deus opera sua obra no Filho de
maneira tão abundante e dolorosa “que ele basta a tudo”.
409
E essa
407
Marguerite PORETE, op.cit., cap.124, p. 213.
408
Ibidem, cap.124, p.214.
409
Ibidem, cap.126, p.216.
192
consideração, testemunha a autora, faz ela mesma sair de si, desincumbir-se
da obsessão pela obra que intenta a salvação do mundo ou de si mesma para
deixar que Deus opere nela a sua obra, a transporte para viver o bom prazer
divino.
Numa Quinta consideração, a autora relata a maneira como foi afetada pela doutrina da
Encarnação. Que um homem sofra por amor, isso não é surpreendente, mas que Deus
saia de si mesmo, essa é a novidade que de fato faz pensar na importância de se estar
definitivamente desimpedido de si mesmo.
O grande salto de Marguerite Porete se faz, todavia, diante do Mistério da
Redenção, e está descrito na sexta consideração. Podemos entender, através
dos pontos que vai considerando, que os tormentos do Filho de Deus por nós
nos transporta para dentro de Deus, faz ser filho como ele é Filho, livres do
pecado e capazes de ver a Trindade Divina. O Filho salva e permite a Deus,
realizar a sua obra. Depois dos cinco passos do aniquilamento, Deus opera na
alma que considera a morte e ressurreição do Filho, sua obra.
410
E, finalmente, ela considera os Serafins, aqueles que estão unidos à vontade
divina. Diante deles, Marguerite Porete descobre, pelo Amor mesmo, que o que
importa é o “querer divino da vontade divina da Trindade toda”.
411
E é essa
palavra do Amor que definitivamente liberta a alma de si mesma para que ela
possa se aproximar dos estados em que deveria estar.
Aquilo que Marguerite Porete descobre em suas considerações, partindo de
perguntas que coloca para seu próprio pensamento, acaba vindo da Justiça (da
graça), da Verdade (do Verbo) e do Amor (do Espírito) para libertá-la de si
mesma, transformando-a em espelho que, na sua inalterabilidade de ser
aniquilado (sem razão, sem vontade, sem ação) espelha a Deidade na sua
inacessibilidade. A alma desaparece para fazer aparecer aquele que não pode
ser controlado, nem pela razão, nem pela vontade e nem pela ação.
410
À primeira vista, o capítulo 128 remete a uma perspectiva gnóstica e ficamos tentados a
interpretar a alma como centelha divina, que volta a Deus, sendo de Deus. A perspectiva de
Marguerite Porete não é, no entanto, dualista. Não se confirma, em sua mística, o desprezo
pelo corpo, mas uma entrega obediente às exigências da inteligência e da vontade tão intensa
e obsessiva que, levando à morte (porque se depara com o vazio de não poder acessar o que
tanto almeja as faculdades da alma), percebe-se ressuscitada por obra de Deus e carregada
para o seio da Trindade, como o Filho.
411
Marguerite PORETE, op.cit., cap.129, p.219.
193
O Mirouer fala de amor, do Amor-Deus absolutamente separado, vindo do Pai
e do Filho, que pode ser experimentado, segundo Marguerite, da mesma forma
como é experimentado o Fino Amor da poesia provençal, aprofundado e
radicalizado no enfrentamento da inacessibilidade do objeto do desejo e no
aniquilamento de si mesmo. Anuncia que Deus é Cortesia, delicadeza, num
mundo cuja imagem privilegiada de Deus é o Pai poderoso, um homem idoso,
a um tempo diretor e protetor, fonte de autoridade. É Deus real, Deus
majestade, Deus que permanece no céu e que eventualmente mostra sua mão
através das nuvens. Deus que está à frente de um exército constituído de
santos e anjos que exercem a função de intermediários e que manifestam sua
onipresença protetora e julgadora.
412
412
Cf. Jacques Le GOFF. O Deus da Idade Média, conversas com Jan-Luc Pouthier, p.37-38.
195
CONCLUSÃO
MARGUERITE PORETE, TEÓLOGA DO SÉCULO XIII
Ao fim desse trabalho esperamos poder ter atingido o objetivo de apresentar o
pensamento teológico de Marguerite Porete, fundamentalmente místico,
explicitando sua teologia crítica e poética. Esse retorno à Idade Média, ao
nosso ver, pode dar uma grande contribuição à teologia resgatando o potencial
crítico e criativo que a mística representa para ela.
Como vimos, até o século XII a teologia era um empreendimento unificado que
implicava a reflexão intelectual, a oração e o viver, englobava uma síntese de
exegese, raciocínio especulativo e contemplação mística:
A unidade da teologia implicava que a reflexão intelectual, a oração e o viver eram,
falando idealmente, um todo integrado. A teologia patrística envolvia a constante
leitura da Escritura, que era então moldada na liturgia e no diálogo crítico com a
cultura filosófica grega. O que resultava na reflexão de temas centrais como
oração, martírio, o estado ou os estágios de vida cristã e assim por diante. Uma
variedade de gêneros provia o meio para essa teologia: sermões, cartas, vida de
santos e regras monásticas.
Ser um teólogo significava que uma pessoa havia contemplado o mistério da
encarnação e possuído uma vivência de fé sobre a qual refletir.
413
Entre o final da Idade Média e a emergência da modernidade opera-se, no
interior da teologia, um processo que traz como conseqüência o divórcio entre
413
Philip SHELDRAKE, Espiritualidade e teologia, vida cristã e fé tritinária, p.55.
196
teologia e mística, a teologia, passa a ser entendida como conhecimento
conceitual e a mística, passa a ser entendida como espiritualidade, vivência da
fé.
Segundo Sheldrake, se observa no ocidente, uma divisão entre o lado afetivo
da fé (ou participação) e o conhecimento conceitual, e no interior do que vai
sendo definido como espiritualidade outra separação em relação à liturgia
pública e à ética. A espiritualidade, concentrada na interioridade vai passando
para as margens da teologia e da cultura como um todo.
414
Por volta do século XVI a relação entre a teologia mística e a teologia em geral
era ambígua na melhor das hipóteses, e antagonística na pior. As divisões no
cristianismo ocidental na esteira da Reforma encorajaram a teologia a se
concentrar no dogmatismo a fim de se tornar guardiã das ortodoxias católica ou
protestante prevalecentes. A teologia dogmática católica romana opunha-se
não só à suposta subjetividade desequilibrada dos protestantes como também
aos reformadores e místicos espirituais em suas próprias fileiras.
415
Os místicos serão, neste novo contexto, alvo de suspeitas porque ousam
orientar as pessoas e explicar as escrituras, a partir das transformações que
Deus-Espírito Santo opera nelas. Santo Inácio de Loyola será suspeito de
inortodoxia por causa da ênfase na liberdade interior e na inspiração pessoal.
Os Exercícios Espirituais que ele propõe como “método” é, de fato, fruto de seu
próprio itinerário espiritual e aquilo que ele sabe de mais profundo sobre Deus,
é decorrente do que ele mesmo viu.
416
Santa Tereza de Ávila será também
vigiada pela Inquisição, relata Elisabeth Reynaud
417
. Sente medo das ameaças
que pesam sobre suas experiências e sobre sua maneira de orar. É
aconselhada a buscar orientação entre os doutores, os letrados, os sábios
teólogos de Salamanca ou de Valladolid que diagnosticam aí a presença do
demônio. Arrasada, Tereza busca outros teólogos. É ouvida por Francisco
Borgia, jesuíta de reputação grandiosa que reconhece nela a ação de Deus.
414
Cf. Philip SHELDRAKE, op. cit., p.63.
415
Ibidem, p.63.
416
As visões de Manresa, relatadas na Autobiografia de Inácio de Loyola, suscedem momentos
de angústia profunda provocadas pelo tormento que representou para Inácio a consciência do
pecado. Descreve aí momentos de grandes “variedades em sua alma”, momentos em que se
encontrava “tão desabrido, que não sentia gosto em rezar, nem ouvir missa, nem em outra
alguma oração”. Atormentado pelo escrúpulo que não o deixa libertar-se da culpa, sente muitas
vezes tentações “como um grande ímpeto de lançar-se de um buraco grande que aquele
quarto tinha, junto do lugar onde fazia oração”. (Cf. Autobiografia de Inácio de Loyola, p.33-37).
417
Cf. Elisabeth REYNAUD, Teresa de Ávila ou o divino prazer, p.145-150.
197
Apesar de ter encontrado defesa junto a personalidade tão ilustre, continuam
as desconfianças de suas experiências místicas por parte dos jesuítas que se
dispõem a zelar pelo seu progresso espiritual.
Para os iluministas, a mística contradiz a ética. Entendida como fé no milagre,
isto é, fé em que o humano estaria submetido a uma influência do sobrenatural,
a mística levaria necessariamente ao quietismo. Para Kant, na obra “O conflito
das faculdades”, a mística se refere a uma experiência que não podendo se
reduzir à regra da razão, acaba sendo apenas interpretação (aleatória,
segundo o nosso entender), de certas sensações, conhecimento interpretativo
sem aplicação prática. Para aceitarmos que a transformação do humano em
um humano melhor seja fruto de uma experiência mística, afirma Kant:
“(...) o homem deveria demonstrar que nele se realizou uma experiência
sobrenatural, a qual é em si mesma uma contradição. Poderia, quando muito,
admitir-se que o homem teria em si mesmo feito uma experiência (por exemplo,
de determinações novas e melhores da vontade), de uma transformação que ele
não sabe explicar de outro modo a não ser por milagre, por conseguinte de algo
sobrenatural. Mas uma experiência, da qual nem sequer se pode convencer que
é, de fato, experiência, porque (enquanto sobrenatural) não pode reduzir-se a
regra alguma da natureza do nosso entendimento, nem comprovar-se, é uma
interpretação de certas sensações, a cujo respeito não se sabe o que com elas
se há de fazer, se terão um objeto efetivo para o conhecimento ou se serão
simples devaneios.”
418
Nessa perspectiva, o que eleva a humanidade é o fato de estarmos
determinados pela razão à observância das leis morais. Ainda segundo Kant,
existe em nós um humano supra-sensível que conhece o Dever. Um poder
inerente ao humano opera, de modo incompreensível, a transformação dos
homens em “homens novos”. Para esse autor, é isso que tem em vista a Bíblia
apresentando o Espírito de Cristo como o exemplo do agir moral. A doutrina, ou
ortodoxia, é o espelho da ética:
E, entre o ortodoxismo sem alma e o misticismo que mata a razão, a doutrina
bíblica da fé, tal como pela razão consegue desabrochar a partir de nós próprios,
é assim a verdadeira doutrina religiosa, fundada no criticismo da razão prática,
agindo com força divina no coração de todos os homens para sua melhoria de
raiz e unindo-se numa Igreja universal (embora invisível).
419
418
Immanuel KANT, O conflito das faculdades, Lisboa, Edições 70, p.70.
419
Ibidem, p. 72.
198
Marcada por essa desconfiança da mística desqualificada pelo imperativo da
ética, a teologia que acolhe a mentalidade moderna vai conceber a separação
entre doutrina e mistério, transformando o dogma em lei do dever.
Nesse contexto, a Teologia Mística de Pseudo Dionísio Areopagita, quando
afirma a transformação humana no encontro com o Incognoscível pelo caminho
do despojamento dos sentidos, da inteligência e pela negação de tudo o que se
pode afirmar sobre Deus (doutrina), estaria, todavia, em oposição à doutrina
cristã, isto é, à verdade de fé que afirma a salvação de Jesus Cristo, a
revelação de um Deus pessoal e a função sacramental da Igreja.
É certo que esse processo representou uma perda para a teologia que, por ter
sido seduzida pela promessa de certezas, se ressente da falta da dimensão
mística que esteve integrada a ela entre a antiguidade e Idade Média.
O Espelho das Almas Simples de Marguerite Porete é, neste sentido, para a
teologia moderna, exemplo de reflexão teológica capaz de integrar mística e
dogma. A mística se apresenta ali de fato como uma forma, um esforço de
apropriação pleno do dogma, que leva a uma transformação substancial da
pessoa. Apropriação que é, por um lado, crítica quando atravessa e nega toda
e qualquer mediação e, por outro lado criativa, quando ousa afirmar sem impor,
uma imagem de Deus, que reconhece precária e insuficiente.
A teologia de Marguerite Porete, como vimos, fundamentalmente marcada pela
teologia negativa de Pseudo Dionísio vai também entender a negação como
caminho para Deus que, para esse último é Trindade supraessencial,
sabedoria mais além do não saber e da luz, trevas luminosas. Em comunhão
com essa tradição, Marguerite vai também entender que o caminho da
negação é empreendido por aqueles que se dispõem a abandonar as
seguranças que proporcionam as coisas que envolvem o incognocível. Sua
reflexão teológica vai insistir na importância do despojamento doloroso de tudo
o que nos assegura da presença do Transcendente, do ultrapassamento das
mediações. Deus, então, não é outro que este do qual não se pode
absolutamente nada conhecer.
No entanto, Deus é, por outro lado, conhecido. A alma aniquilada, aquela que
atravessou três grandes mortes, morte para o pecado, morte para a natureza e
199
morte para o espírito, e cuja memória, entendimento e vontade são abismados
(destruídos) inteiramente em Deus, essa esvaziada de si mesma, capta o
incognocível. Na percepção da inconsistência da identidade humana, na
percepção de que se é Nada, a alma se liberta, empreende sua ascese
negativa, e penetra no mistério do Amado. Descobre, então, delicadeza,
doçura, bondade… Fundamentalmente descobre a cortesia de Deus que, dono
de grande poder, faz sua kenosis, entra no mundo discretamente, pedindo
licença a uma mulher. Marguerite, quando afirma que Deus é Cortesia parece
querer ensinar que, ao mal instalado no mundo, Deus responde com respeito e
delicadeza e que, grandes e difíceis projetos se operam através do que é
pequeno e insignificante.
A mística é aqui, portanto, um caminho de busca do inacessível mistério da fé
que se encontra no interior do dogma, verdade revelada formulada como
doutrina, pela via do aniquilamento de si. No esforço de apropriação do mistério
o sujeito é transformado pela Transcendência que o dogma procura afirmar,
mas não dá a conhecer. A mística então afirma a insuficiência do dogma e ao
mesmo tempo, a doutrina como caminho de encontro com o divino. É nesse
movimento contraditório que se faz a transformação que possibilita a
verdadeira liberdade ou, para alguns, as maiores ousadias: a glorificação da
liberdade do espírito que consiste em uma verdadeira unidade, que impede de
querer outra coisa que não seja o que Deus queira.
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