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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
“Paraíso Terrestre” ou “Terra sem Mal”?
por Elaine Terezinha Alves de Miranda Carvalho
ORIENTADORA: Profª.Drª.Lieve Troch
Dissertação de mestrado apresentada
em cumprimento parcial às exigências
do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião, para obtenção do
grau de Mestre.
São Bernardo do Campo, janeiro de 2006
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CARVALHO, Elaine Terezinha Alves de Miranda. “Paraíso Terrestre” ou “Terra
sem Mal”?, Dissertação de Mestrado, Universidade Metodista de São Paulo,
São Bernardo do Campo, 2006.
Agradecimentos
Agradeço a CAPES e também ao IEPG que me concedendo bolsas de
estudo entre 2004 e 2006, tornaram possível esta pesquisa.
Diversas (os) amigas (os), professores (as) e secretárias da UMESP que
me apoiaram intelectual e afetivamente nesses dois últimos anos: Mercedes,
Mariana, Antonio de Jesus e Cleber; professores (as) como Lieve, Beatriz,
Sandra, Antonio Carlos, Lauri e as secretárias Ana Fonseca e Márcia Ribeiro. A
algumas dessas pessoas devo agradecimentos especiais, pois recebi ajuda
emocional, burocrática e financeira, que muito me valeram, se não fossem elas,
eu não teria conseguido chegar ao final deste trabalho. Agradeço também aos
amigos (as) que me deram informações preciosas, ou me indicaram livros e
textos importantes para esta pesquisa.
A Saulo, enfim, devo um agradecimento pelo apoio, pelas sugestões,
pelo amor e lealdade, além da colaboração intelectual e amizade, dele recebi
em momento crucial, uma ajuda inestimável no trato com o computador.
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CARVALHO, Elaine Terezinha Alves de Miranda. “Paraíso Terrestre” ou “Terra
sem Mal”?, Dissertação de Mestrado, Universidade Metodista de São Paulo,
São Bernardo do Campo, 2006.
Sinopse
O impacto cultural e religioso causado pelo encontro dos indígenas e
europeus no Novo Mundo me levou à busca de uma reconstrução do universo
mental, simbólico e religioso dos povos que viveram no Brasil, nesse
período.Para entender as origens, as matrizes fundantes, da religiosidade
brasileira busquei, através da análise dos relatos dos cronistas quinhentistas,
uma via para essa compreensão. Sabe-se que durante muito tempo a
historiografia brasileira desconheceu o fenômeno das “Santidades Ameríndias”,
ou seja, a dimensão dessa religiosidade envolta em magia, mas que pode ser
observada e relatada pelos cronistas. Podemos verificar que o sagrado
perpassa o campo social e o político dos indígenas brasileiros. Além da crença
religiosa, existe a crença em outras forças que regem esse mundo: a crença
nas profecias, nas “benzeções” para afastar os males e na cura ou nos feitiços
que podem fazer o mal para seus desafetos. Todavia, nosso propósito não é
um estudo da magia ou da religião, mas uma tentativa de abordar as crenças, a
religiosidade indígena, nesse Paraíso Terrestre, que por um bom tempo foi o
Brasil do Século XVI. O principal personagem: o “profeta-caraíba” é, ao mesmo
tempo, sacerdote e fiel seguidor dos princípios tradicionais, fundamentais de
sua tribo. Esse guia espiritual, com a missão de derrotar as forças do mal e
libertar sua tribo das garras do inimigo, é quem deverá os conduzir até a Terra
sem Mal.
PALAVRAS-CHAVE: indígenas, cronistas, reconstrução, origens, sagrado
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CARVALHO, Elaine Terezinha Alves de Miranda. Paraíso Terrenal” o “Tierra
sin Males”?, Disertación de Maestría, Universidade Metodista de São Paulo,
São Bernardo do Campo, 2006.
Sinopsis
El impacto cultural y religioso ocasionado por el encuentro de los
indígenas y los europeos en el Nuevo Mundo llevó a la búsqueda de una
reconstrucción del universo mental, simbólico y religioso de los pueblos que
vivieron en ese periodo.
Para entender los orígenes, las matrices fundacionales de la religiosidad
brasileña, busqué a través del analice de los relatos de los cronistas
quinientistas una vía para esa comprensión. Se sabe que durante mucho
tiempo la historiografía brasileña desconoció el fenómeno de las “Santidades
Amerindias”, o sea, la dimensión de esa religiosidad involucrada en la magia,
pero que pudo ser observada y relatada por los cronistas. Podemos verificar
que el sagrado atraviesa el campo social y lo político de los indígenas
brasileños. Además da la creencia religiosa, existe la creencia en otras fuerzas
que rigen ese mundo: la creencia en las bendiciones para alejar los males y en
la cura o en los hechiceros que pueden hacer el mal a sus desafectos. Todavía
nuestro propósito no es un estudio de la magia o de la religión, sino un intento
de abordaje a las creencias, la religiosidad indígena en ese templo que fue el
Brasil del Siglo XVI. El principal personaje es el “profeta-caraiba”, que es al
mismo tiempo sacerdote y fiel seguidor de los principios tradicionales
fundamentales de su tribu. Ese guía espiritual con la misión de derrocar a las
fuerzas del mal y libertar su tribu de las garras del enemigo es quién conduce
hasta el mundo superior.
Palabras claves: Indígenas, cronistas, reconstrucción, origen, sagrado.
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CARVALHO, Elaine Terezinha Alves de Miranda. “Heaven on Earth” or “Land
with no evil”?, Master`s dissertation, Universidade Metodista de São Paulo, São
Bernardo do Campo, 2006.
Abstract
The cultural and religious impact that emerges from the clash between
natives and europeans in the New World is what led me to attempt a
reconstruction of the mental, symbolic and religious atmosphere of the native
inhabitants of Brazil at that time. In order to comprehend the origin and the
founding roots of Brazilian religiousness, I sought for a way to achieve this
understanding through the analysis of sixteenth century chroniclers' reports.
Although It is known that for longs periods of time, the “American Sanctity” was
an unknown phenomenon to Brazilian historiography, a dimension of magic
surrounded religiousness that can, nevertheless, be observed and reported by
chroniclers. One notices that the concept of holiness runs through the social
and the political fields of native Brazilians. Other than the religious creed, there
is also the belief in forces running this world: in prophecies, in superstitious
blessings that keeps away evil ('benzeções') and in cures or spells that bring
misfortune to foes. Studying magic and religion, however, is not our purpose
here. Rather, we make an attempt to approach beliefs and native religiousness
in this Paradise on Earth which, for while, was Brazil in the XVIth century. Our
main character: the “Caribean-prophet” is, at the same time, a priest and a
faithful follower of traditional principles essential to his tribe. This spiritual guide
baring the mission of defeating the forces of evil and of releasing his tribe from
the enemy's claws is the one that shall guide them to the Land with no evil.
KEY WORDS: Natives, chroniclers, reconstruction, origins, holy.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 09
CAPÍTULO I PARAÍSO TERRESTRE DIVIDIDO
Introdução 17
O tempo que antecede a Conquista
1.1 Situação Política e Econômica da Europa entre os Séculos XII e XVI. 18
1.2 - Situação Religiosa da Europa, especialmente de Portugal entre os 21
Séculos XII e XVI.
1.2.1 - Geografia mítica e escatológica. 25
1.2.2 - Milenarismo Apocalíptico. 28
1.2.2.1 Judeu Cristianismo Primitivo. 30
1.2.3 Inquisição. 32
1.2.4 Reforma e Contra-Reforma. 33
1.2.5 - As Bulas Papais. 36
A Conquista 37
1.3 Primeiras Impressões sobre o Novo Mundo. 38
1.3.1 Cristóvão Colombo. 38
1.3.2 Bartolomé de Las Casas. 41
1.4 O Confronto: Situação Complexa e Ambígua. 44
Conclusão 50
CAPÍTULO II Brasil: Paraíso Perdido ou Inferno Atlântico?
Introdução 51
Durante e depois da Conquista
2.1 Brasil A Terra Nova das Profecias 52
2.2 Colonização do Brasil e Cristianização dos Indígenas 56
2.3 Aspectos da Religiosidade no Brasil Colonial 61
2.4 Os Relatos dos Croniostas 64
2.4.1 O Relato de Nóbrega 65
2.4.2 O Relato de Thevet 69
2.4.3 O Relato de Hans Staden 72
2.4.4 O Relato de Léry 75
7
2.5 Quadro Comparativo dos Relatos do Cronistas Quinhentistas 78
2.6 Descrição sobre os Selvagens e sua Religiosidade 85
2.6.1 A Invenção do Indígena Brasileiro 87
2.6.2 Povos sem Superstição 88
2.6.3 Os Selvagens e a Palavra Divina 92
2.7 Outro olhar sobre a História Religiosa dos Indígenas Brasileiros 95
Conclusão 98
CAPÍTULO III Paraíso Terrestre ou Terra Sem Mal
A Conquista Espiritual dos Indígenas Brasileiros. Realidade ou Desejo?
Introdução 100
3.1 O Sagrado e o Profano se Complementam no Universo Indígena 101
3.2 Entre o Sagrado e o Profano no Mundo Cristão 103
3.3 A Mestiçagem Étnica e Espiritual dos Indígenas Brasileiros 108
3.3.1 Cristianização via Coerção 113
3.4 Profetismo Tupi-guarani “Terra Sem Mal” 117
3.5 Profetas Caraíbas Santidades Indígenas 121
3.6 Missionários e Profetas 123
3.6.1 A lenda de São Tomé 132
3.7 Hibridismo Religioso 133
3.8 Paraíso Terrestre Terra Sem Mal 135
Conclusão 138
CONCLUSÃO FINAL 139
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 143
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PARAÍSO TERRESTRE OU TERRA SEM MAL?
INTRODUÇÃO GERAL
No decorrer dos últimos anos a história caminhou depressa. Não só a
história que se faz no mundo, a que nós vivemos; como também a história que
os historiadores fazem e nos contam.
Os recentes trabalhos, em crítica literária e filosofia da linguagem têm
destruído a crença num passado fixo e determinável, negando a possibilidade
de recuperação da intenção do autor e desafiando a plausibilidade da
representação histórica; outra abordagem, a de Dominik LaCapra, busca
estabelecer uma relação dialógica entre o aspecto documental e o “ser-obra
na análise dos textos complexos. Segundo ele, dos textos históricos devem ser
destacados também os aspectos lingüísticos e literários, e não meramente sua
pretensa função documental; devemos neles buscar perceber, sobretudo, a
forma como se expressam, porque também a linguagem empregada há de ter
muitas informações importantes a nos oferecer. Outra contribuição
fundamental, de La Capra é referente à relação entre texto e contexto. No seu
entender, a palavra contexto não pode ter o uso restringido apenas à
“conjuntura histórica”, nem sequer ser usada no singular. Devemos levar em
conta que os contextos também são textos, e não uma realidade ou conjuntura
objetiva na qual os fatos históricos acontecem. As principais possibilidades de
trabalhar um texto com contextos pertinentes são: o diálogo entre as intenções
do escritor ao escrever e o texto que gerou, entre o texto e a vida do escritor,
entre o texto e a sociedade em que foi publicado pela primeira vez, entre o
texto e a cultura que o envolvia, entre o texto e os demais pertencentes ao
corpus de um mesmo escritor, enfim, entre o texto e possíveis modos de
discurso.
Estas considerações são muito importantes para a tentativa aqui
proposta, pois serão analisados e reinterpretados documentos do Século XVI
no Capítulo II.
9
Em sua abordagem inicial, esta pesquisa será tratada na amplitude das
durações seculares, ou seja, o tempo em que ela se desenrola: do Século XII
ao Século XVI. Como testemunhas evidentes do imaginário desse período,
faço uma descrição de tradições religiosas do povo europeu e dos povos
indígenas Tupi-guaranis, que entraram em contato no início da Colonização do
Brasil. Procuro mostrar, através de obras históricas, antropológicas, teológicas,
filosóficas e sociológicas (referentes à Idade Média e Renascimento) além de
documentos e iconografias, a mentalidade contrastante de duas civilizações
que se confrontaram.
A sociedade projeta suas necessidades e suas insatisfações. Cada
cultura, portanto, cada sociedade tem seu imaginário. O domínio do imaginário
é constituído pelo conjunto das representações que excedem o limite colocado
pelas constatações da experiência e pelos encadeamentos dedutivos que estas
autorizam. O imaginário passado da sociedade brasileira, só recentemente
constituiu objeto da história. Sendo assim, existem pouquíssimos trabalhos
referentes à esse período, principalmente na área de Ciências da Religião, daí
a importância deste estudo se quisermos conhecer um pouco mais, o passado
da formação histórica e religiosa do povo brasileiro.
Esta pesquisa busca abrir novos horizontes à compreensão do impacto
cultural e religioso causado pelo encontro dos indígenas e europeus no Novo
Mundo, e principalmente, mostrar a extensão dos desdobramentos históricos e
teológicos, ao tentar reconstituir o universo social, “mental” e simbólico, antes,
durante e depois da Conquista da América, especialmente do Brasil.
Para o (a) cientista da religião, toda manifestação do sagrado é
importante; todo rito, mito, crença ou figura divina reflete a experiência do
sagrado, e por conseguinte, implica as noções de ser, de significação e de
verdade. É curioso e instigante pesquisar à respeito da religiosidade do povo
brasileiro à partir do início de sua colonização enfocando a religiosidade
indígena, através da visão dos cristãos europeus: “gente sem fé”, disseram dos
indígenas os primeiros observadores.
Procurei abordar principalmente, a mitologia, a espiritualidade e a crença
dos indígenas brasileiros, no Século XVI, através de registros, com várias
10
procedências: ibéricos, franceses, alemães, religiosos e laicos como os de
Manuel da Nóbrega, André Thévet, Hans Staden, Jean de Léry, entre outros.
Estas informações são consideradas importantíssimas para o estudo da
história brasileira. Viajantes e missionários, testemunhas de uma cultura até
então intacta, deixaram-nos descrições notáveis sobre as sociedades do litoral,
primeiras a entrar em contato com os europeus. Também busquei informações
em livros de Antropologia: Nimuendajú, Métraux, Egon Shaden, Hélène
Clastres e Pierre Clastres, entre outros. Esses autores, muito contribuíram para
o conhecimento que hoje temos das tribos Tupi-guaranis. Sabe-se que durante
muito tempo a historiografia brasileira desconheceu o fenômeno das
Santidades Ameríndias, ou seja, a dimensão dessa religiosidade envolta em
magia, mas que pôde ser observada e relatada pelos cronistas quinhentistas.
Através de uma análise dos acontecimentos históricos, relatados pelos
cronistas procuro mostrar entre outras coisas, a paixão heróica de antigos
habitantes dessas terras brasileiras - os caraíbas (pajés ou xamãs), esses
líderes selvagens, “profetas” possuidores de poderes mágicos, habitantes das
florestas, que prometiam a cura e o êxito total nas batalhas e incitavam os
índios a abandonar o trabalho e a dançar eram guias espirituais, com a missão
de derrotar as forças do mal e libertar sua tribo das garras do colonizador ou do
inimigo, até alcançarem a “Terra sem Mal”, mesmo que isso implicasse na
condenação à morte de toda uma estrutura social e de seu sistema de normas
ou seja, na dissolução da própria sociedade.
Este tema foi bastante pesquisado por antropólogos e etnólogos. Porém,
no campo da historiografia e ciências da religião deixa muito à desejar. Como
minha pesquisa é bibliográfica e não aborda trabalho de campo, me baseio
principalmente em historiadores como: Maria Isaura Pereira de Queiroz,
Serafim Leite, Ronaldo Vainfas, Laura de Mello e Souza, Sérgio Buarque de
Holanda, etc., que nos deixaram importantes informações sobre o assunto.
Conhecer um pouco mais, sobre a vida religiosa dos indígenas no
período da conquista, ou seja, no início da colonização do Brasil é enigmático e
fascinante! Esse imaginário, cheio de contradições e semelhanças, com muita
riqueza de contrastes, dentro de um emaranhado de paradoxos, onde se
11
encontra inserido o mundo real e o metafísico, o profano e o místico, o
conhecido e o desconhecido mundo do indígena brasileiro, é uma das
abordagens desta pesquisa. Tentarei ser fiel à história dos povos que já
estavam aqui, antes mesmo desta terra ser chamada Brasil.
Todavia, o propósito deste trabalho não é um estudo da magia ou da
religião, mas uma tentativa de abordar a crença, a espiritualidade indígena, na
Terra de Santa Cruz.Esta pesquisa é, acima de tudo, a busca de uma
reconstrução teológica. Para contextualizar esse período inicial da Conquista
da terra e das almas ameríndias, ela está dividida em três capítulos.
O primeiro capítulo aborda questões referentes ao universo imaginário
europeu, num período considerado de “longa duração”, situado entre os
séculos XII e XVI, período que antecede a Conquista da América. Este período
já foi e continua sendo muito estudado. Trabalho com os autores: Jean
Delumeau, Carlo Ginzburg, Mircea Eliade, Jacques Le Goff, Cristóvão
Colombo, Bartolomé de Las Casas, e outros mais. São revisadas questões
sobre a situação política, econômica e religiosa da Europa, especialmente de
Portugal no período medieval e início de Idade Moderna. Naquele momento, os
universos estavam muito imbricados. Era difícil separar questões de ordem
política e questões religiosas, já que o Estado e a Igreja mantinham relações
estreitas de cumplicidade e dependência no campo político e ideológico.
Nesse capítulo, também serão abordados acontecimentos que retratam
a transição do período Medieval e Idade Moderna, ou seja: fatos que podem
nos mostrar, como os pensamentos e sentimentos religiosos cristãos
influenciaram nas atitudes do dia-a-dia das pessoas e marcaram todo o
período. Através do estudo sobre a Reforma Protestante, a Contra-Reforma
instituída pela Igreja Católica, a Inquisição, as Bulas Papais, as idéias
milenaristas e apocalípticas e outros movimentos da época que se tornaram
essenciais para o entendimento do mundo cristão renascentista. Esses fatos
são referências e matrizes fundantes, que serviram como gênese de uma
ideologia religiosa. Ideologia esta, que alterou a configuração do pensamento
ocidental.
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Acrescento a esse estudo, autores como Giovanni Reale e Dario
Antiseri, que nos trazem uma contribuição filosófica ao entendimento desse
período.
Num mundo em que a religião forma a trama da vida coletiva, cabe
nesta pesquisa, apresentar esse período percorrido por tensões, conflitos,
contradições, por uma troca dialética ainda viva, e de forma alguma em sentido
único, entre cultura popular e cultura de elite; não podendo aceitar sem
reservas, uma estrutura empobrecedora que só vê uma face das relações.
Ao aprofundarmos no conhecimento histórico que resgata este período,
ainda neste capítulo pretendo fazer uma avaliação da complexidade que foi a
Conquista da América entre os Séculos XV e XVI. Quais foram as primeiras
impressões à respeito do Novo Mundo? Esses primeiros anos foram marcados
por contrastes que “distanciaram” em muito os diferentes universos. Para
explorar esse momento da história, me baseio em Cristóvão Colombo e no Frei
Bartolomé de Las Casas que nos dão uma idéia de quem eram os povos
nativos da América.
Uma natureza exuberante e um povo selvagem, primitivo aos olhos dos
cristãos civilizados, não deixaram de persuadir Colombo nem os primeiros
missionários que para aqui vieram. A conquista do Paraíso Terrestre, como
consta nas profecias, estava muito próxima de se realizar. Era o fim do mundo
anunciado por Isaías: a América representava a possibilidade de uma Nova
Jerusalém. Foi atribuído um significado escatológico para essa descoberta. A
difusão do Evangelho como consta nas profecias deveria ser realizada antes
do fim do mundo e a América, no nosso caso o Brasil, representava toda essa
esperança.
Mas, alguma coisa mudou. De uma visão paradisíaca a um inferno
Atlântico, foi só um passo. Esta é uma das abordagens que introduzem o
segundo capítulo e será analisado através dos relatos dos cronistas que no
Brasil estiveram no Século XVI, nos deixando uma rica literatura sobre a Terra
e os moradores do Novo Mundo. Sob a forma de cartas, diários, tratados ou
crônicas, esses textos informativos foram escritos principalmente por religiosos.
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Tentar entender em parte, a construção do “universo religioso do povo
brasileiro”, assim como, mostrar que a representação histórica se transformou
em mise em scène literária pela prática da escrita historiográfica, como disse
Michel de Certeau em sua famosa análise sobre o relato escrito por Jean de
Léry, é um dos pontos desta pesquisa. Ciente das dificuldades com que se
depara o cientista religioso contemporâneo, ao querer extrair dos escritos
europeus a informação histórica-teológica desejada.
Os textos de viagem quinhentistas fundaram o olhar antropológico, como
podemos verificar, ao nos revelar uma observação aguçada pelo seu “outro”, o
imaginário, eles se constituíram no objeto de uma cultura “assombrada por sua
exterioridade selvagem”. Na Europa, o “selvagem” se tornou tema de
discussões filosóficas servindo de argumento à postulação de sistemas de
interpretação e organização do mundo, já que a descoberta de homens e
culturas, até então ausentes do universo mental europeu, trazia conseqüências
inevitáveis, tanto no campo da evolução das idéias como no das
representações, predispondo à emergência de novos valores sociais. (Souza,
1993: 125).
No Capítulo II investigo questões consideradas fundantes, primordiais,
que mostram as várias facetas resultantes do contato entre cristãos e pagãos.
Para desenvolver estas idéias, me baseio além dos antropólogos e etnólogos,
em José Eizenberg, cientista político, que em sua tese de doutoramento “As
missões Jesuíticas e o pensamento político moderno Encontros culturais,
aventuras teóricas” (2000), o autor faz uma leitura dos dilemas enfrentados
pelo empreendimento jesuítico na conversão dos indígenas. Pessimistas que
estavam com relação ao sucesso das missões, um importante jesuíta: o padre
Manuel da Nóbrega reforma esse empreendimento e justifica teologicamente
sua reforma. A organização da instituição, seu funcionamento, as propostas
para a conversão dos gentios, o Plano Civilizatório são questões abordadas no
capítulo. Os papéis desempenhados pelos missionários e pelas autoridades
coloniais em relação aos índios também serão questionadas. Assim como: a
importância da “polícia cristã”. Termo que na época denotava o conjunto de
costumes morais dos cristãos europeus que seria ensinada aos índios. Me
14
apoiando neste autor tento mostrar como as missões jesuíticas do Novo Mundo
formaram o contexto histórico e intelectual do desenvolvimento do pensamento
político e teológico do início no era moderna.
Entretanto, esta pesquisa, só pode ser realizada, através de uma
interpretação de textos e contextos, baseados na visão dos europeus que
relataram esse encontro. Não existe nenhum material escrito pelos indígenas.
Toda a documentação existente foi apresentada por leigos ou religiosos
europeus. Esse rico material nos habilita a fazer uma nova releitura das bases
religiosas do povo brasileiro. O Brasil do Século XVI retrata os primeiros
contatos entre indígenas e estrangeiros, conseqüentemente, o início da história
da colonização e cristianização. Esse momento traz de volta, imagens de um
Brasil bastante diversa da que hoje existe. Imagens que foram inicialmente
vividas pelos antigos moradores dessas terras “selvagens”, e que aos poucos
foram se modificando, se construindo e se estruturando à partir do contato
estabelecido nesse encontro.
A abordagem do segundo capítulo refaz o percurso da “conquista” do
Brasil. Ao tomar posse das terras recém-descobertas, os portugueses
pensaram ter encontrado a “Terra Nova” das profecias, mas esta imagem
perdurou ao passar do tempo? O que mudou? Além de tentar responder a
estas questões, procuro analisar características da religiosidade indígena
através de um quadro comparativo sobre os relatos dos cronistas: Padre
Manoel da Nóbrega (jesuíta), Andre Thevet (capuchinho), Hans Staden
(arcabuzeiro) e Jean de Léry (calvinista), enfocando a via religiosa; também
examinarei as produções de representação a propósito de idolatria, heresia e
demonolatria em Pero Vaz de Caminha, Pe. Anchieta, Américo Vespúcio,
Claude d’Abbeville, Gândavo; existe uma literatura riquíssima sobre o tema.
A invenção do selvagem nas terras Brasilis é outro tópico abordado.
Quem eram aqueles povos sem crença religiosa, sem superstição, “sem lei e
sem rei”? A “não-religiosidade” dos indígenas é analisada através dos aspectos
etnográficos, relatados pelos cronistas e através das interpretações de
Nimuendajú, Métraux, Maria Isaura Pereira, Serafim Leite, Cristina Pompa,
Hèléne e Pierre Clastres, entre outros.
15
No terceiro capítulo, após a abordagem do “universo cultural, das
projeções imaginárias e das vivências reais” numa aventura interpretativa das
fontes primárias sobre a religiosidade indígena, será colocada uma questão
onde poderemos avaliar, até que ponto os indígenas resistiram ou não ao
processo de cristianização (?).
As questões que envolvem conceitos como “sagrado e profano”, do
ponto de vista cristão são interpretadas de forma bastante diferente da vivida
pelos indígenas. Sendo assim, cabe a pergunta: “O sagrado complementa ou
se opõe ao profano?” Quais os valores morais e éticos que estão presentes em
universos tão distintos: cristãos x pagãos?
Além dos diversos assuntos que envolvem o campo das práticas
religiosas, neste capítulo, serão abordadas as implicações que o “hibridismo
religioso” segundo Ronaldo Vainfas, ou a mestiçagem étnica e espiritual
segundo Grazinski, trouxe para a formação do povo brasileiro. Como se
posicionaram os indígenas? E os cristãos, quais as medidas tomadas por esse
povo conquistador de almas, com o grande propósito de aumentar o rebanho
de Cristo?
Um Cristianismo via coerção é o que poderemos constatar ao longo
dessa exposição? Houve realmente uma adesão em massa aos novos cultos
religiosos ou uma franca resistência? Para estes assuntos abordados, citarei
Vainfas, Gruzinski, José Eisenberg, Hélène e Pierre Clastres. Autores com
visões diferentes, que através de suas pesquisas nos proporcionaram um
conhecimento maior, mais aprofundado nas questões referentes à vida
religiosa dos primeiros habitantes do Brasil .
Entre as Santidades indígenas e os missionários cristãos houve um
deslocamento de tempo. Como sair do mundo dos homens e ingressar no
mundo dos ancestrais? Como abandonar o tempo cotidiano e experienciar o
tempo eterno, vivenciar o tempo sagrado de Deus ou dos Deuses? Estas são
questões que nos colocaram os profetas-caraíbas dos indígenas brasileiros ao
se confrontarem com os cristãos civilizados. E foram desenvolvidas nesse
trabalho, com a contribuição de Cristina Pompa, Hélène e Pierre Clastres, entre
outros.
16
A “Terra sem Mal” que os Tupis-guaranis tanto procuraram, encenando
nos ritos chamados de “Santidade” pelos europeus, exprimiam o espaço e o
tempo sagrados, do homo religiosus denominado por Mircea Eliade, quando se
refere às sociedades arcaicas. Mas, o que era efetivamente a Terra sem Mal?
Estas questões abordadas no terceiro capítulo vão ajudar a concluir o
pensamento que me levou a pesquisar sobre a religiosidade dos indígenas
como causa primeira, essência, presente nas distintas faces que caracterizam
a religiosidade do povo brasileiro.
17
CAPÍTULO I
O PARAÍSO TERRESTRE DIVIDIDO
INTRODUÇÃO
O Capítulo I situa a Europa entre os Séculos XII e XVI, período que
antecede e vivencia a Conquista da América. O progressivo desenvolvimento
do sistema capitalista, em substituição ao feudalismo em crise, determinou
novos caminhos para a história da humanidade, cujas repercussões ainda hoje
podemos sentir. Este capítulo descreve o universo mental, o imaginário de um
povo, que tem em sua história, as glórias das conquistas e as marcas da
destruição. Perpassado por forças antagônicas, esse contexto histórico foi
decisivo para a formação de um pensamento escatológico milenarista. A visão
pessimista do mundo, a atração pelo macabro, a consciência do pecado e da
fragilidade do ser humano, caminharam lado a lado com as expansões
comerciais, marítimas e religiosas, que resultaram no descobrimento do Novo
Mundo.
A ideologia medieval tem um caráter religioso que se fundamenta não só
numa explicação teórica e teológica, mas principalmente na forma como a
Igreja assumiu o papel político, econômico, cultural e intelectual, além do
religioso. Todas as construções religiosas funcionavam como centros
aglutinadores e disciplinadores da vida social, exercendo profunda influência
nas relações de poder, relações afetivas e expressões artística e literária.
Era difícil perceber a separação entre poder estatal e religioso. Este
capítulo apresentará a Inquisição, a Reforma e a Contra-Reforma, as Bulas
Papais e outros movimentos, como importantes marcos, como fatos
referenciais e matrizes fundantes, que serviram como norteadores de uma
ideologia religiosa. Ideologia esta, que alterou a configuração do pensamento
ocidental.
18
O que representou o Novo Mundo para a Velha e cansada Europa? Por
que a América deu um grande impulso as esperanças milenaristas? O
descobrimento das terras selvagens tomou contornos sagrados e sob um signo
escatológico, muitos viajantes e missionários que vieram para o Continente
Americano acreditaram que chegara o tempo de renovar o mundo cristão e
instituir uma nova ordem de justiça e felicidade. Por que na prática, os ideais
cristãos não se concretizaram? O que pensava Colombo a respeito do Paraíso
Terrestre?
Foi Bartolomé de Las Casas que reconheceu no Novo Mundo a
oportunidade de um enorme aprendizado espiritual, afastando-se da opinião de
que os índios deveriam ser cristianizados. Lamentando a sorte do índio,
acabou dizendo ousadamente que as almas dos índios teriam sido mais felizes
se nunca tivessem sido tocadas pelos cristãos. Por que Las Casas chegou a
enfrentar publicamente outros religiosos, contrastando e opondo suas idéias às
de autoridades que não concordavam com ele? Como foi seu convívio com os
“nativos pagãos” no início da Conquista da América?
O confronto entre os dois mundos foi inevitável e trouxe conseqüências
que até hoje são sentidas. Estas são as questões desenvolvidas neste capítulo.
A Europa antes e durante a “Conquista da América”.
O tempo que antecede a Conquista
1.1 - Situação Política e Econômica da Europa entre os Séculos XII e XVI.
Além da visível desorganização social e um certo desespero causado
pela incapacidade de se obter o que a cultura definiu como a satisfação comum
das necessidades vitais, na Idade Média, o progressivo desenvolvimento do
sistema capitalista, a partir do Século XII, em substituição ao feudalismo em
crise, determinou novos caminhos para a história do homem, cujas
repercussões ainda hoje podemos sentir.
Entre os Séculos XIII e XIV, os mercadores e artesãos das cidades
tentaram defender seu direito frente à Igreja e os nobres. No entanto, com o
enriquecimento de uma parte da burguesia, tornou-se cada vez maior à
19
distância que separava os ricos e os nobres dos pequenos comerciantes e
mercadores. Na segunda metade do século XIV, a peste negra intensificou a
crise do feudalismo e as revoltas de trabalhadores nas cidades e nos campos.
Nesse clima de instabilidade, a alta burguesia começou a apoiar os reis, pois
lhe interessava uma autoridade centralizadora. No século XV, grande parte das
nações européias já se configurava como monarquias nacionais. Portugal no
século XIV, Espanha, França e Inglaterra no século XV. Contudo, mesmo nas
monarquias nacionais permaneceram alguns elementos do sistema feudal que
impediam o crescimento do mercado interno. A coexistência de um sistema de
produção feudal em transformação com um sistema de produção capitalista em
formação provocaram uma crise de crescimento na economia européia, no
século XV. Na busca de superação dessa crise, os reis, juntamente com a
Igreja uniram-se à burguesia nacional e empreenderam as expansões
comerciais, marítimas e religiosas, que resultaram no descobrimento do Novo
Mundo.
A era dos descobrimentos, apesar de ser um período de expansão da
Europa, é marcada por uma visão pessimista do mundo, pela atração ao
macabro, pela convicção de que o mundo ia mal e pela experiência da
fragilidade do ser humano. A humanidade era vista como grande pecadora.
Começa a aparecer em toda a Europa, principalmente em Portugal, uma
religião mais individualista, um sentimento de culpabilidade pessoal e uma
“súbita inflação da confissão”. As pestes, guerras, fomes, Turcos, o grande
cisma, é evidente que todas estas catástrofes provocaram esse grande medo.
Atribuíam-se as infelicidades ao castigo divino, provocando uma crise de
consciência individual. Os desvios deviam ser exemplarmente punidos, as
alegrias desse mundo eram falsas, mais valia preparar-se para morrer. As artes
moriendi ensinavam como o homem deveria resistir ao demônio nos últimos
instantes da vida. Os cristãos desse tempo foram atormentados com a idéia do
fim do mundo e do Juízo Final. Este imaginário desencadeou “a mais poderosa
culpabilização da história”. (Delumeau, 1989: 357-470).
A violência e o sadismo eram companheiros dos europeus deste
período. Com exceção da renascença, que se pode dizer foi um tempo de
trégua, no qual houve uma expansão das artes e da literatura, diminuiu um
20
pouco essa tensão; porém, o traumatismo provocado pela violência dos
massacres e martírios expressou-se nas artes como uma projeção libertadora,
segundo Delumeau. (Delumeau, 1989: 195-198).
Suely de Almeida escreveu sobre Portugal nesse período. Ela fez uma
análise do dia-a-dia dos portugueses, retratando uma sociedade decadente e
desesperançosa, segundo ela:
“Na tentativa de fazer frente a uma vivência cotidiana banalizada, funciona
como resistência à saudade de um outro tempo e esse deve ser realizado no
Apocalipse, hoje. Esse é o retrato da sociedade portuguesa, momento em que
as transformações políticas e sociais abarcavam todas as referências
culturais”. (Almeida, 2000: 242).
As apreensões escatológicas, a consciência do pecado, o desprezo do
mundo, o horror de si mesmo e o sentimento geral de fragilidade das coisas,
juntavam-se à corrupção dos costumes entre leigos e eclesiásticos. Tudo era
entendido como castigo de Deus e dessa forma criou-se uma visão de que “o
fim dos tempos estava próximo”. O anúncio apocalíptico gerou uma visão
escatológica. (Delumeau, 1989: 217-227).
A Europa considerou o Novo Mundo como uma nova oportunidade.
Muitas vezes a regeneração pode surgir de um confronto inesperado com uma
novidade radical. Mas a Europa se enganou, e desde o início o confronto se
deu de forma equivocada. Numa época em que ouvir valia mais do que ver,
segundo a historiadora Laura de Mello e Souza:
“Os olhos enxergavam primeiro o que se ouvira dizer; tudo quanto se via, era
filtrado pelos relatos de viagens fantásticas, de terras longínquas, de homens
monstruosos que habitavam os confins do mundo conhecido”. (Souza, 1986:
21,22).
Pode-se afirmar que uma boa parcela da população que viveu nesse
período estava dividida entre concepções grandiosas referentes à expansão e
ampliação de domínios, e as desilusões sociais, políticas e religiosas. Os
lusitanos procuravam resgatar suas vitórias reforçando alguns mitos e
atribuindo seus fracassos à ação contrária do inimigo. Foi justamente nesse
momento, vivenciando sentimentos contraditórios, um misto de felicidade e
21
medo, que os portugueses assumiram a Colonização do Brasil, como veremos
mais adiante no segundo capítulo. (Almeida, 2000: 242).
É tênue a fronteira que divide questões de ordem política e econômica
das questões de ordem religiosa, visto que os reis mantinham uma estreita
ligação com os membros da Igreja. A expansão missionária dos Jesuítas está
sem dúvida, vinculada à expansão política e comercial dos portugueses pelo
mundo. De par em par, os missionários abriram as portas do domínio
Português até o extremo de seu comércio internacional, mantendo até o Século
XVIII fidelidade aos compromissos assumidos perante as concessões
pontifícias, concretizadas pelo famoso padroado. (Viotti, S.J.,1984: 10,11).
É importante sempre nos lembrarmos que a chegada dos europeus, nas
terras hoje chamadas de América, ocorreu sob o lema da expansão da
cristandade, formada ao longo da Idade Média, ainda mais acentuada com a
experiência lusitana na luta contra os mouros e a decorrente do clima da
Reforma do Século XVI e da Contra-Reforma Católica a partir do Concílio de
Trento. (Silva, 2001:132).
1.2 - Situação Religiosa da Europa, especialmente de Portugal, entre os
Séculos XII e XVI.
A iconografia aparece de fato como a testemunha mais evidente do
imaginário das sociedades passadas. Na Idade Média, as formas não são
simples cenários nem expressões passivas de uma sociedade. (Focillon, 1938).
22
Entre os anos de 1471 e 1528 viveu Albrecht Dürer, considerado um dos
grandes artistas alemães. Ele pintou a “Dança da Morte”, “O Cavaleiro, a Morte
e o Diabo”, além de uma série de xilogravuras sobre o Apocalipse. Este tema,
repetido freqüentemente desde as terríveis pragas que haviam assolado a
Europa no século XIV e ainda persistia no século XV, cresceu em popularidade
à medida que passavam as décadas.
Dürer, Albrecht. O cavaleiro, a Morte e o Diabo.
A preocupação com a morbidez estava presente em todos os níveis da
sociedade. Dos príncipes aos camponeses, porque ninguém estava a salvo
desses contágios. Na época, tratados populares ofereciam lições sobre a arte
de morrer, peças de mistério e quadros vivos montadas nas praças de
pequenas cidades e em catedrais, apresentavam cenas de leitos de
moribundos, com pavorosos anjos negros pairando no ar. A arte refinada e a
popular, disseminada em parte pela prensa tipográfica mostravam cenas de
cadáveres apodrecidos, esqueletos em contorções, corpos em decomposição
sendo devorados por vermes e em toda parte, o sorriso alegre, lascivo e
23
triunfante, da própria Morte. (Civita, 1984: 7,12).
O pintor é a testemunha viva desse aspecto da história humana, pois, seu
registro visual documenta os acontecimentos, os anseios e de um modo geral,
o pensamento de toda uma época. Enquanto a literatura de um povo necessita
de comentários e interpretações, devido às contínuas variações de linguagem e
mudanças de mitos, a pintura, na tarefa de explicar coisas, constitui a
comunicação mais eficaz e duradoura. Por isso, ela é tão importante
componente cultural para se avaliar determinados momentos históricos. A inter-
relação da arte com outros ramos da teologia, história, política, literatura, etc. é
fundamental, no sentido da extensão do conhecimento. (Civita, 1984: 114-119).
As tradições que ainda marcavam a Europa, exprimiam uma concepção
de vida voltada acima de tudo para a religião. Santos das cenas Bíblicas e da
história Sagrada eram temas constantes dos pintores medievais. As
preocupações com a realidade objetiva e com a existência concreta e material
dos seres humanos, só aos poucos conseguiam infiltrar-se entre as idéias
dominantes. Todo o período entre as Cruzadas (Século XI) e a maré alta das
explorações marítimas européias
(Século XV), foi um esforço de vários grupos para alcançar a regeneração e
perseguição que lhes foi movida pela igreja. Durante essa longa fase a igreja
acusou e puniu cada vez mais o paganismo, os milagreiros e as bruxas e foi
feroz nas suas tentativas de repressão sexual maciça, até que ela finalmente
tentou purgar e renovar a cristandade nas fogueiras da Inquisição, trágica
perversão das torturas primitivas. (Delumeau, 2000: 165-175, 217-223).
A fé cristã expressou-se de muitas formas, mas foi através da arte que
ela encontrou um campo fecundo. Foi necessário construir igrejas e fazer delas
um ambiente digno das cerimônias religiosas que ali se deveriam realizar. Além
das realizações arquitetônicas, ao contrário do Judaísmo e do Islamismo, o
Cristianismo aceitou e principalmente, incentivou a representação do ser
humano. Na arte e na literatura encontram-se símbolos que ligam a punição
pelo pecado à redenção que proporciona a ressurreição da carne. A visão
pessimista do contemptus mundi não foi capaz de fazer desaparecer o outro
ensinamento que afirmava a eternidade do corpo reconstituído.
A história nos mostra que em tempos de grave crise social, em resposta
24
à experiência de sofrimentos, perseguições e devastações bélicas; resultados
diretos de condições como essas, refletem a crença de que se aproximava
rapidamente o tempo em que as forças do bem se veriam confrontadas com as
forças do mal. Haveria a maior prestação de contas jamais vista pelo mundo,
em que se envolveria o próprio universo. Os poderes das trevas seriam
destruídos e os filhos da luz receberiam a vitória da mão de Deus. (Russell,
1997: 14,15).
Portugal, nos Séculos XV e XVI, como no restante da Europa, era
permeado por relações místicas e religiosas. Essas manifestações se
mostravam nas missas, nos autos de fé, nas procissões, então as pessoas
buscavam encontrar o prazer, a paz e o descanso, nos eventos que envolviam
o mundo sagrado. Segundo Jean Delumeau, as alegrias desse mundo eram
falsas; mais valia preparar-se para morrer. (Delumeau, 1989: 143,144).
Portugal também viveu neste período, as glórias da conquista, e o
descobrimento do Brasil toma contornos sagrados. Preparado para levar a
verdadeira fé aos quatro cantos do mundo, Portugal “é um novo Israel redimido
do egoísmo e xenofobia do passado”. (Almeida, 2001: 239).
Georges Duby, estudando a História Social e Ideologias das
Sociedades, identifica nos dirigentes da Igreja, os responsáveis pela
organização do modelo ideológico que predominou na Idade Média e que
resistiu à modernidade, refugiando-se em setores e regiões específicas por
muito tempo. Esse modelo ideológico, profundamente entrelaçado com a
religião, desempenhava um papel estabilizador e redutor das tensões. Se
compararmos a religião e os modos de produção feudal, concluímos que a
religião justificava aos privilegiados as razões de sua posição e aos não-
privilegiados, oferecia uma esperança de recompensa pós-histórica (religião de
salvação). (Duby, 1976: 140).
O caráter religioso da ideologia medieval não se assenta apenas numa
explicação teórica-teológica. Fundamenta-se também na forma como a Igreja
assumiu o papel político, econômico, cultural e intelectual. Os bispados,
mosteiros e paróquias funcionaram como centros aglutinadores e
disciplinadores da vida social, exercendo profunda influência nas relações de
poder, relações afetivas, expressões artísticas e literárias.
25
A íntima relação entre os dirigentes da Igreja e os governantes, culminou na
confirmação do poder temporal dos Papas e nos diversos conflitos daí
resultantes. A Inquisição foi um dos grandes problemas enfrentado não só
pelas populações européias entre os Séculos XII e XVII, mas pelos povos
colonizados pelos cristãos. Outra questão, as crenças milenaristas
apocalípticas que desencadearam medo e esperança ao mesmo tempo.
Também a Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero, por meio de uma
heresia como a Igreja Romana a chamou. Lutero conseguiu se impor na
cristandade, mas a Igreja Católica, logo tratou de responder à Reforma
Protestante e efetuou uma Contra-Reforma. Todos esses fatos ocorreram
simultaneamente em toda a Cristandade Ocidental. São fatos marcantes e
decisivos que influenciaram todo o imaginário das “humanidades” envolvidas
nesse processo. Esses acontecimentos se tornaram matrizes fundantes de
uma ideologia religiosa que alterou a configuração do pensamento ocidental.
Depois do Século XVI, o cristianismo, principalmente o catolicismo, tornou-se
uma religião mundial. (Delumeau, 2000, 217-255).
A Igreja continuava exercendo e ampliando seu poder. Era difícil
perceber a separação entre o poder estatal e o religioso. O poder não foi
esvaziado de seu conteúdo religioso, que continuou presente, embora
reduzido. Assim, a relação poder-sociedade jamais deixou de possuir uma
carga de sacralidade. Segundo Balandier, “O sagrado é uma das dimensões do
campo político, pois a religião pode ser instrumento do poder, ou seja, é uma
garantia indireta de sua legitimidade”. (Brandão, 2001: 5).
Consideramos importante dar uma ênfase a cada um dos
assuntos comentados anteriormente devido ao fato deles terem influenciado
diretamente na construção do pensamento cristão ocidental e principalmente
por estarem relacionados ao início da colonização do Brasil, período estudado
no segundo capítulo desta pesquisa.
1.2.1 Geografia mítica e escatologia.
O contexto histórico da Europa do Século XIII ao Século XVI é decisivo
na conformação do pensamento escatológico dos europeus desse período.
26
Houve um conjunto de desgraças que marcaram esta época. A mais
significativa foi a peste negra no ano de 1348, um verdadeiro desastre
demográfico, onde aproximadamente um terço da população morreu num
período de três a quatro anos, em segundo lugar o cisma eclesial de 1378 a
1417, com dois e às vezes três Papas rivais. A guerra dos cem anos entre os
reinos da França e Inglaterra, a conquista de Constantinopla, a conquista da
Ásia menor e de uma grande parte dos Balcãs pelo Império Turco, o
protetorado otomano que se estendeu por todo o Norte da África, o
ressurgimento no Século XVI das guerras religiosas, entre outras. Neste
dramático contexto se cultivaram as esperanças e os temores do fim do
mundo, sinais que foram interpretados como apocalípticos. A América deu um
novo impulso à esperança milenarista. Os europeus renascentistas
consideravam que sua civilização era velha e se aproximava o seu fim.
(Carbajal, 2000: 89,90).
Foi em plena transição de dois períodos tão importantes da história,
Idade Média e Moderna, que iniciou a Colonização da América. Sob um signo
escatológico: muitos viajantes e missionários que vieram para o Continente
Americano acreditavam que chegara a altura de renovar o mundo cristão e a
verdadeira renovação era o regresso ao Paraíso Terrestre ou o retomar da
história sagrada, mencionados na Bíblia. A literatura deste período (Século
XVI), bem como: sermões, memórias e correspondências são ricos em
referências paradisíacas e doutrinas milenaristas, que com freqüência
associavam injustamente, aos terrores vividos por seus antepassados.
(Delumeau, 2000: 345).
A linha padrão dos historiadores que analisam a conquista européia da
América, afirma que ela foi motivada por “Deus, ouro e glória”. Pouca dúvida
existe, quando se fala em Colombo ter sido um instrumento de redenção
escolhido por Deus. Mas, sabe-se também que sua busca se tornou obsessiva
como podemos avaliar por sua posterior preocupação frenética com o tipo de
milenarismo bizarro, além do Segundo Advento e do Juízo Final, que
contaminou toda a época. (Kirkpatrick, 1992: 20,21).
Como algumas situações, de forma análoga se repetem em períodos
diferentes da história, a era dos descobrimentos vivia um momento caótico bem
27
parecido com as alusões apontadas pela Bíblia no livro do Apocalipse.
A descoberta da América representou a possibilidade - para religiosos e
conquistadores - do reaparecimento da riqueza, da justiça e da liberdade.
Muitos visionários incitavam membros da coletividade a seguí-los para assim,
se tornarem dignos de um futuro melhor. O Novo Mundo representava esse
ideal. Mais que um continente aberto à propagação do Evangelho, os
missionários viam a possibilidade de se instituir uma nova ordem de justiça e
felicidade, além de verem um sinal da divina Providência no fato de a América
ter estado oculta aos europeus até a altura da Reforma. (Eliade, 1969: 144).
A colonização da América do Norte para os ingleses confirmava e
aperfeiçoava uma história sagrada iniciada com a Reforma; e as investidas
missionárias cristãs na América Central e América do Sul, continuavam a
marcha triunfal da sabedoria e da “verdadeira” religião. Na ânsia de buscar o
desconhecido, aparentemente, os conquistadores viveram apenas para
empurrar a civilização cristã para além de seus limites geográficos. (Eliade,
1969: 145-147).
Foi numa atmosfera messiânica e apocalíptica que iniciou o processo
civilizatório da América. Messiânico, porque entre os anseios e as práticas dos
europeus dos séculos XVI que colonizaram e catequizaram a América,
podemos destacar o fato de que eles consideravam o Novo Mundo como uma
oportunidade para a renovação espiritual de seu “velho mundo”. Apocalíptico,
como podemos confirmar num jornal da época, o Nuremberg Chronicle do ano
de 1493, que colocou aquele ano no sexto ou no penúltimo estágio da terra e
deixava apenas “seis páginas em branco para registrar eventos do dia da
impressão até o Dia do Juízo Final”. (Turner, 1990: 17).
O “grande trabalho de Deus na América”, dizia o missionário J. Edwards,
é que esse Novo Mundo, que provavelmente tenha sido descoberto “em
nossos dias para que o novo e mais glorioso estado da Igreja de Deus, fizesse
iniciar um novo mundo espiritual, criando o novo céu e a nova terra”, é como se
tivesse sido criado em tempo recente, e que até esses últimos tempos ele
estivesse em posse integral de Satanás. (Delumeau, 2000: 350).
O fim do mundo era uma preocupação persistente de Colombo e às
vezes obsessiva. Ele estava interessado em determinar exatamente quantos
28
anos faltavam ainda para o dia do Juízo Final. A fim de descobrir isso, lia
atenta e demoradamente o Apocalipse e o livro de Isaías, embora mais
importante ainda fosse o texto Imago Mundi, de Pierre d’Ailly. Colombo conclui:
Santo Agostinho diz que o fim do mundo acontecerá no sétimo milênio
depois de sua criação; os santos teólogos concordaram com ele...
Segundo esse cálculo, faltavam 155 anos para o fim dos sete mil,
ocasião em que o mundo chegará ao fim.(Colombo,1998: 27).
Cristóvão Colombo escreveu no ano de 1500 que o fim do mundo
chegaria no máximo ao final de 150 anos. Lutero afirmou que havia chegado o
tempo do Apocalipse e o mundo não duraria mais de cem anos. Os
missionários acreditavam que estava próxima a última era do velho mundo, a
Europa, e tinham a esperança que o novo continente seria um lugar ideal para
forjar os mil anos de felicidade. De um modo mais geral, o nascimento e
desenvolvimento do protestantismo permitiu as correntes milenaristas
manifestar-se de forma mais ampla e abertamente. Os primeiros puritanos que
se estabeleceram na costa leste do que hoje chamamos Estados Unidos,
tinham a certeza de que a América era o lugar onde ia estender-se o Reino
Universal de Cristo. O Apocalipse no mundo cristão é que regulou a contagem
do tempo em milênios. A Teologia cristã clássica do milênio não considera um
período da história humana senão um reino de felicidade que deve durar mil
anos, o qual começará com o segundo advento de Cristo, por isso, era
importante saber quando seria o advento para preparar-se.
1.2.2 - Milenarismos Apocalípticos
O Milenarismo, no verdadeiro sentido do termo, remete à esperança de
reencontrar, no futuro, o Paraíso Perdido das origens. A crença milenarista, é
fundamentalmente, a convicção de que entre nosso tempo, com suas
desgraças e crimes, e a eternidade e o Juízo Final haverá um período de paz e
felicidade sobre a Terra. Mas esse reino será precedido e seguido por
cataclismos e guerras. A lenda dos medos do ano mil, nasceu do fato de o
Apocalipse ter evocado essas desgraças futuras com muitos detalhes.
Precedendo o livro de São João, o Judaísmo Antigo anunciaria por seus
profetas, em particular Isaías, um tempo de felicidade, justiça e paz na Terra.
29
Ao longo da história o Milenarismo apresentou dois aspectos diferentes: um
violento e outro pacífico. Aconteceram fortes manifestações de milenarismo
revolucionário, todavia os milenaristas pacíficos tiveram importância maior do
que se crê comumente. O início da colonização da América, como já foi dito,
teve fortes influências das crenças milenaristas. No próximo capítulo
abordaremos a questão da mudança dessa visão da América, mais
especificamente o Brasil, que de Paraíso Terrestre passou a Purgatório e a
Inferno Atlântico.
Emílio Carbajal escreveu um livro, onde aborda questões sobre
milenarismos apocalípticos: La angustia del fin del Mundo o la Esperanza de
Mil años de Felicidad. Em seu livro, ele nos conta que um dos primeiros
pensadores que rompeu com a visão estática do mundo e falou de um fim
próximo que iria transformar esse mundo imperfeito em um mundo novo, foi o
profeta iraniano Zaratustra. Ele viveu aproximadamente entre os anos 1400 e
1000 AC, quando esses povos ainda eram pastores. O mundo era um campo
de batalha e o combate teria um fim. O tempo estava em movimento. Nos
escritos teológicos do profeta, se estabelece uma distinção entre o tempo
ilimitado ou eternidade e o tempo limitado ou encadeado. A batalha entre as
duas divindades o Bem e o Mal - estava contida dentro de um tempo limitado.
Sua conclusão assinalaria o fim do tempo terreno e o princípio de uma
eternidade de paz, consumando-se assim, o plano divino. (Carbajal, 2000: 85-
88).
A angústia do fim do mundo ou a esperança de mil anos de felicidade
tornou-se relevante no período medieval. Os movimentos apocalípticos que
surgiram nesse momento eram aplicados de forma figurada, ao sonho de uma
era de felicidade no futuro, ou de uma terra perfeita que um dia se tornaria
acessível. A América representava exatamente esse ideal. Por trás dos textos
bíblicos e na base de todo movimento milenarista percebe-se a mesma
ansiedade: de que passe logo o tempo atual e se instaure o mundo novo. Mas
como estes movimentos eram encarados pelos representantes da Igreja cristã,
como eles os manipulavam?
30
1.2.2.1 - Judeu-Cristianismo Primitivo
No mundo Judaico-cristão, a história é considerada um vetor. Delumeau
afirma que existe uma diferença importante entre a tradição judaico-cristã e um
determinado número de outras tradições. O Hinduísmo em particular seguido
pelo Budismo crê em uma espécie de curso cíclico das coisas. Nas culturas
nativas americanas também se tem estudado a presença de uma concepção
circular do tempo, como veremos no terceiro capítulo desta pesquisa. Antes do
Século II aC. Surgiu no Judaísmo a Teologia de um dia do juízo, com
recompensa para os justos e castigo para os malvados. Essa idéia implica uma
sobrevivência e uma ressurreição final. O Judaísmo antigo previu o Advento,
anunciou uma terra radicalmente transformada por Deus; o Cristianismo
retomou essa idéia. Jesus promete e anuncia o fim dos tempos, decidido pelo
Pai, ele ressuscitará todos os mortos e logo haverá um Juízo Final. O
Cristianismo precisou notavelmente o que se estava formulando nos últimos
séculos do Judaísmo antes de nossa era.
O tema do fim dos tempos corresponde diretamente ao livro canônico da
Bíblia conhecido como Apocalipse, conceito que se traduz como Revelação.
De acordo com a interpretação teológica milenarista este escrito se
dirige especificamente a sete igrejas da Ásia, anunciando o juízo final da
humanidade, precedido por três seqüências: primeiro um tempo de longas e
dolorosas provas, depois um período de paz terrena de mil anos, onde Satã
estará preso, e por último o terceiro período muito pequeno, porém terrível,
onde haverá um combate final entre o Bem e o Mal que antecede diretamente
ao fim dos tempos, o juízo final e a eternidade definitiva. Essa última fase do
Apocalipse do apóstolo São João nos diz que haverá um grande combate
cósmico o qual precederá o retorno de Cristo. Durante a luta, Deus enviará dois
discípulos que darão testemunho de verdade e atos, seguidos sofrerão a morte
em mãos da besta, uma espécie de encarnação do mal. Delumeau considera
que a Bíblia não dá nenhuma explicação “fehaciente” (consistente) da
existência do mal, porém aponta a esperança de que este, em todas as suas
formas inclusive a dor e o sofrimento, serão eliminados no fim dos tempos.
31
O Apocalipse do Apóstolo São João não é o único texto do Novo
Testamento que fala do fim dos tempos, nos Evangelhos Sinópticos Jesus
pronunciou discursos escatológicos. A idéia geral do Apocalipse, é que não se
elevará a Jerusalém celestial e eterna sem que o bem e o mal hajam travado
um combate definitivo. Jesus indica como signos prévios ao fim dos tempos:
guerras, terremotos, sinais no céu, etc. O conceito bíblico do fim dos tempos
equivale ao conceito de fim da história, porém o fim dos tempos não é em
definitivo o fim da existência humana. (Delumeau, 1999: 75).
Na história humana o bem e o mal estão totalmente envolvidos um ao
outro e essa dialética só terminará no dia do Juízo Final.
Jesus inaugura o fim dos tempos. Para os autores do Novo Testamento,
Cristo inicia o cumprimento das promessas escatológicas. A fórmula “Os
tempos serão cumpridos” significa que a humanidade entrou no último período
de sua aventura e o fim está muito próximo. Os primeiros cristãos distinguiram
os adventos: o primeiro foi o nascimento de Cristo e o segundo será o seu
retorno glorioso, onde começarão, segundo os teólogos milenaristas, “os mil
anos de felicidade: o milênio”. O primeiro advento introduz a humanidade no
princípio do fim e o segundo porá ponto final ao tempo. As datas de
vencimento escatológicas poderiam ser o fim dos tempos ou a entrada dos mil
anos de felicidade na terra”, esta última é a posição mais tradicional do
milenarismo apocalíptico, dando um sentido de esperança a este
acontecimento. Quem faz a reinterpretação do Apocalipse de São João e
ajusta o nascimento de Cristo a este cumprimento dos mil anos de felicidade é
Santo Agostinho. Quando se fala de milenarismo de um modo geral se entende
a espera de catástrofes destinadas a marcar o ano mil, porém a essência do
sentido primário não foi essa, melhor seria a crença de mil anos de paraíso
terreno. (Russell, 1997: 19-189).
A história do Descobrimento da América é marcada por acontecimentos
que justifica todo esse imaginário escatológico. Idéias milenaristas
apocalípticas são uma constante nos diários da Descoberta da América de
Cristóvão Colombo como já foi comentado anteriormente, e entre os
portugueses que colonizaram e catequizaram o Brasil, como veremos mais
adiante.
32
1.2.3 - Inquisição
Para compreender o que foi historicamente a Inquisição, este estudo
terá como base, o livro do historiador Jean Delumeau, “De Religiões e de
Homens”. Para ser abordado o tema Inquisição, é preciso definir primeiramente
heresia, uma vez que a Inquisição foi criada para combatê-la. “Heresia” vem de
uma palavra grega que significa “escolha”. Por conseguinte, assim foi chamada
no cristianismo, toda doutrina incompatível com a fé cristã. Pessoas e grupos
que não concordavam com as idéias imposta pela Igreja Católica eram
excomungados, isto é, exclusos da comunhão dos fiéis.
Dois graves problemas ocorreram a partir do momento em que o
cristianismo, antes perseguido, tornou-se progressivamente a religião oficial do
Império Romano, e depois, dos Estados que lhe sucederam. As autoridades
religiosas e políticas apoiando-se umas às outras, julgaram que no campo da
cristandade só haveria lugar para cristãos. Os muçulmanos e os judeus, que já
eram considerados inferiores, foram cada vez mais perseguidos. Os cristãos,
desviando-se da norma oficial eram considerados hereges e constituíam perigo
para a ordem pública, uma vez que comprometiam a estabilidade da
sociedade. Além de atrair sobre ela, a cólera divina.
A partir da metade do Século XII, os hereges tornaram-se um problema
para a Igreja e como ela já havia criado a Inquisição, que do latim significa
“investigação” tomou o sentido de “investigação da heresia”. Em 1199, o Papa
Inocêncio III considerou a heresia crime supremo, de lesa-majestade. Depois,
uma decisão do IV Concílio de Latrão
1
(1215) confiou aos bispos, sobretudo
aos dominicanos a perseguição aos hereges, incluindo a autorização ao
recurso à tortura nos processos inquisitoriais. (Delumeau, 1996: 217-221).
A Inquisição desempenhou papel importante na repressão à bruxaria,
mas a partir do Século XVI ela foi, cada vez mais, substituída nessa função
pelos tribunais leigos e foram estes que condenaram bruxos e bruxas nos
países que se tornaram protestantes. A partir do Século XIV, espalhou-se na
Europa ocidental a convicção de que as bruxas e seus malefícios se
1
Concílios, segundo a terminologia Católica, são assembléias de bispos, de superiores de ordens e de
teólogos, que de acordo com o Papa decidem questões de fé e organização da Igreja. DELUMEAU, Jean.
De Religiões e de Homens.São Paulo: Loyola: 2000. p.93-99.
33
multiplicavam com a ajuda de Satanás. Esse fato ocupou as autoridades
religiosas e políticas. Tal obsessão explica o clima de medo que reinou na
Europa entre o aparecimento da Peste Negra (1348) e o fim das guerras
religiosas (1648).
A primeira grande suma de demonologia, escrita por dois inquisidores
germânicos, foi publicada em 1486 Malleus Maleficarum O Martelo das
Bruxas. Acreditou-se que o fim do mundo estava próximo e que Satanás, antes
do fim do prazo tinha pressa para capturar o máximo de almas. O livro tornou-
se um manual de referência e alimentou a perseguição às bruxas que se
desencadeou no ocidente desde o Século XV. O apogeu da perseguição aos
bruxos situa-se entre 1560 e 1630. De modo geral, condenaram mais bruxas
que bruxos. (Delumeau, 1996: 221-223).
A Inquisição veio para a América, no Brasil houve casos apurados pelas
Visitações do Santo Ofício, que seguiram para Portugal e lá foram julgadas
pelo Tribunal da Inquisição. As práticas mágicas e a feitiçaria foram motivos de
preocupação para as autoridades coloniais civis e para as eclesiásticas.
Porém, a ambição desenfreada é o que marca a conquista do Novo Mundo.
Por traz da aparência de desejos humanitários e religiosos, muitas culturas se
perderam assim como povos nativos exterminados; cristãos impiedosos
cometeram enormes crueldades “em nome de Deus”. (Souza, 1986: 15).
1.2.4 - Reforma e Contra-Reforma
Não é o caso de escrever nessa pesquisa a Reforma religiosa do Século
XVI, mas não se pode fugir a sua referência como gênese de uma ideologia
religiosa que alterou a configuração do pensamento ocidental. Dos
acontecimentos associados a Lutero, e à nova quebra da unidade cristã, a
Reforma, ainda bem cedo desenvolveu novas tendências teo-políticas.
(Delumeau, 2000: 225).
Martinho Lutero (1483-1546) irrompeu na vida espiritual e política da
época como autêntico furacão, que envolveu toda a Europa e cujo resultado foi
a “dolorosa” ruptura do mundo cristão. Do ponto de vista da unidade da fé, a
Idade Média termina com Lutero, iniciando-se com ele uma importante fase do
mundo moderno. (Reale, 1990: 103).
34
O reforço que o protestantismo desenvolveu inicialmente pela sua
sobrevivência, se debatia com a mais absoluta falta de unidade entre os seus
teólogos. A questão missionária da Igreja ficou à margem de suas
preocupações teológicas e eclesiais. Segundo Gonzáles, nos séculos XVI e
XVII, a expansão do catolicismo romano eclipsou o protestantismo, por razões
políticas, geográficas e teológicas. Especialmente no que se refere ao Novo
Mundo, às terras recém descobertas. (Gonzáles, 1970: 184).
Lutero considerava que o mandado de Cristo era circunscrito aos
apóstolos, portanto, não dizia respeito a todos os cristãos a missão de
propagar a fé cristã. A esse entendimento soma-se o fato de que Lutero
entendia que o catolicismo estava paganizado, pelo que “pregar aos pagãos”
confunde-se com uma missão entre os próprios cristãos de tradição católica.
(Santos, 2001: 217).
Lutero e Calvino (1509-1564), de igual forma concordavam que a difusão
do Evangelho ainda não se completara, que a missão inicial, apostólica, tinha
agora a autoridade civil como continuadora. A primeira mudança nesta
Teologia missionária aconteceu aproximadamente em 1540, pelo teólogo
holandês Adrian Saraiva, o qual argumentava que:
“Se a promessa que compõe o texto se refere a todos os cristãos, o
imperativo é para todo cristão; e mais, que os apóstolos
pressupuseram a continuação de sua missão ao instituir sucessores; e
finalmente que o acanhado número de apóstolos seria insuficiente para
a realização da missão em todo o mundo habitado”. (Santos, 2001:
217).
A esta retrospectiva histórica da teologia missionária da Reforma, cabe
mencionar as reflexões de Joan Gerhard (1582-1637) e Justiniano von Weltz
(1534-1583), por sua referência à questão das populações indígenas. Gerhard
mantinha a posição dos reformadores e sugeria que o anúncio da mensagem
evangélica se fazia pelos povos a quem os apóstolos proclamaram sua
mensagem e se reproduziam aos povos deles descendentes. Weltz tinha a
mesma opinião, além disso, estimulou a organização de sociedades para
arrecadar fundos, promover e enviar agentes missionários.
A resposta oferecida contra Weltz, principalmente J. Ursinus, que
entendia ser o estado de não-cristianização das sociedades resultado da
35
indiferença com que esses povos receberam a mensagem do cristianismo”. E o
mais importante é o que se entendia como condição prévia para a
implementação dos projetos missionários:
“Que os pagãos não fossem positivamente selvagens, carentes de toda
característica humana... Não fossem ferozes e trágicos que não
permitissem que vivesse entre eles estrangeiro algum. Que não fossem
blasfemos obstinados perseguidores e destruidores de cristãos...”
(Gonzáles,1970: 189).
Não chega a ser importante o desenvolvimento das missões
protestantes no Brasil, pois este, só viria a se concretizar nos séculos XVII e
XVIII, com a decadência da supremacia expansionista portuguesa, sobretudo
com a expansão geográfica dos países protestantes (Holanda, Dinamarca e
Inglaterra), que permitiram o encontro com os povos fora do âmbito da
cristandade de então. Porém, a Reforma e a Contra-Reforma são
acontecimentos marcantes, como já foi falado, na relação que será
estabelecida entre os indígenas e os missionários ou os cronistas que no Brasil
estiveram no início da Colonização.(Santos, 2001: 218).
A Reforma católica foi um complexo movimento que se manifestou de
vários modos, voltado para a regeneração da Igreja no interior dela mesma,
teve força para se defender das inovações e desenvolver leis vitais para se
defender do “inimigo” e reconquistar aquilo que havia perdido. A Contra-
Reforma apresenta um aspecto doutrinário que se expressa na condenação
aos erros do protestantismo e na formulação positiva do dogma católico.
Também se manifestou numa forma peculiar de viva militância, sobretudo a
propugnada por Inácio de Loyola e da Companhia de Jesus por ele fundada em
1540.
Com a Reforma católica, a Igreja teve força para se defender das
inovações. A conexão entre a Reforma católica e a Contra-Reforma está na
função central do Papado. Renovado internamente, o Papado tornou-se
promotor da Contra-Reforma e impeliu as forças religiosas a reagirem contra a
inovação com os meios políticos existentes. Para os Papas, os decretos do
Concílio de Trento foram um meio para atingir o objetivo e a Ordem dos
Jesuítas , um instrumento verdadeiramente poderoso em suas mãos. (Reale,
36
1990: 119-123)
O Concílio de Trento, foi o décimo-nono concílio realizado pela Igreja, de
1545 a 1563. É certamente um dos mais importantes, pois tomou uma clara
posição doutrinária acerca das teses dos protestantes e promoveu a renovação
da disciplina da Igreja, tão invocada pelos cristãos há muito tempo, dando
precisas indicações sobre a formação e o comportamento do clero. (Reale,
1990: 121).
1.2.5 - As Bulas Papais
Em Portugal, especificamente, a evolução histórica favoreceu a íntima
relação entre a Igreja católica e o Estado monárquico. Desde que a reconquista
cristã da Península Ibérica contra os mouros (Século XV) foi acompanhada
pelo processo de cristianização dos vencidos, os monarcas lusitanos gozaram
de prestígio frente à autoridade papal. No Século XV essa aliança foi
oficializada. À medida que a expansão ultramarina portuguesa no norte da
África e no Atlântico resultou na conquista de terras e de populações, a Igreja
concedeu aos monarcas lusitanos diversos privilégios condicionando-os, porém
às obrigações de propagar a fé nas terras descobertas e/ou conquistadas. A
partir do momento que os reis portugueses assumiram o controle da Ordem de
Cristo, passaram a ter jurisdição sobre questões de ordem religiosa nas áreas
de sua atuação (terras sob domínio português), iniciando-se assim a instituição
do Padroado Régio, confirmado e ampliado por diversas Bulas Papais durante
os Séculos XV e XVI, destacando-se a Bula Dudum de 26 de setembro de
1493 que precisou o domínio castelhano sobre as terras que fossem
descobertas além das encontradas por Colombo. (Faoro, 1975: 1º vol: 103).
O poder da Igreja foi extraordinário no ciclo das navegações marítimas.
Vale citar algumas "bulas papais", emitidas pelo Vaticano neste período:
Romanus Pontifex (Papa Nicolau V): concedia direitos a Portugal sobre a
África, além de excomungar todos os povos que se colocassem contra aquele
país.
Aeterni Regis Clementia (Papa Xisto IV, 1481): definia a questão do Tratado de
Alcáçovas que deu direito a Portugal sobre as Açores e Cabo Verde que em
37
troca havia concedido à Espanha o arquipélago das Canárias. Colombo havia
invadido os domínios portugueses das ilhas Açores e Cabo Verde.
Eximia Devotions (Papa Alexandre VI): da família Bórgia, de vida
extremamente irregular, protegido pelos reis católicos de Espanha. Emitida a 3
de maio de 1493, quando Colombo havia retornado da sua viagem a 15 de
março de 1493. A bula premiava os reis católicos de Espanha tudo o que
houvesse sido descoberto a Ocidente do Mar Oceano, contanto que não
estivessem sob domínio de outro príncipe cristão.
Por ocasião do Tratado das Tordesilhas, 7 de julho de 1494, na cidade de
Aravalo, sobre os achados ou descobertas marítimas, a Igreja não perdeu a
potestade, quando excluída das negociações. E ficou famosa pelo que se
chamou de ‘ “Nihil obstat", do Direito Eclesiástico, o que significava conhecer
os termos das negociações, mas, sem poder decidir nem criar obstáculos. Mas
quem pode garantir que não haja influído, pelo menos não oficialmente, uma
vez que o "direito de excomungar" ainda tinha grande força e movimentava as
superstições da época. Tanto que, voltou a legislar, em 1506 com a bula:
Praecelsae Devotions (Papa Julio II): que concedia aos portugueses o direito
sobre todas as terras encontradas ao este. (Pinto, 2002: 209).
Esses laços estreitos de dependência sedimentados pelo Padroado
Régio resultaram no fortalecimento do modelo religioso nas estruturas mentais
e nos instrumentos de interpretação da cultura portuguesa. O universo
cronológico em que se inserem questões históricas, que cobrem os Séculos XV
e XVI, são relevantes porque tratam do momento crucial em que a nação
portuguesa definiu o caminho que seria trilhado para a superação da crise
econômica, social, política e religiosa que abatera sobre o país. Uma crise não
só portuguesa, mas européia como já vimos.
A crueldade das guerras, a intolerância com as diferentes religiões e
etnias, o destino dos “infiéis”, os esforços fervorosos e obscurantistas da
Inquisição, que nesse momento operava com terrível eficiência; tais condições
nada prometiam de bom para aqueles povos que os colonizadores, com a sua
força expedicionária cristã iriam naquele momento colonizar.
38
A Conquista
1.3 - Primeiras impressões sobre o Novo Mundo.
Era tão grande a urgência de explorar e dominar esses vazios selvagens
que nem a coroa, nem a Igreja, nem o Almirante Colombo, e nem os seus
sucessores administrativos tiveram a menor preocupação com os nativos, ou o
menor cuidado com o caráter desses indígenas. Dotados de uma ambição
desenfreada, os relatos sobre a riqueza do oriente acenderam a ganância da
civilização européia. Uma questão se faz presente: O desejo por pedras e
metais não seria mais cultural do que natural? A paixão por coisas que
automaticamente conferem poder aos seus donos, não seria mais um sintoma
da petrificação da fé? Os cristãos descobriram em todos os lugares pelos quais
se espalharam, que os povos nativos que viviam na vizinhança de vastas e
inexploradas florestas, com abundantes fontes de minerais, freqüentemente os
consideravam como meras partes integrantes e reluzentes de uma ordem
infinitamente maior e mais bela. Cabe aqui perguntar: não teria sido muito
melhor para os selvagens americanos que esse contato nunca tivesse
acontecido? (Turner, 1989: 87).
A abordagem sobre as impressões de cristãos europeus à respeito dos
habitantes da América primitiva, será feita através de duas figuras
importantíssimas que são Cristóvão Colombo, quem primeiro comprovou a
existência do Novo Mundo e Bartolomé de Las Casas, quem identificou com
clareza, as raízes mais significativas do confronto entre civilizados e selvagens,
no início da Conquista da América e entendeu em parte, o que os europeus
pensavam dos nativos americanos.
1.3.1 - Cristóvão Colombo
Como já foi exposta, para os europeus do século XVI, a descoberta da
América tinha uma implicação religiosa. A busca do Paraíso Terrestre, para
Cristóvão Colombo (1451-1506), não era simplesmente um sonho. Em seu
Livro de Profecia” ele afirma que Deus o havia feito mensageiro das palavras
de São João, segundo o Apocalipse, assumindo um papel fundamental nessa
história:
39
“Fundarei um novo céu e uma nova terra, e não mais se pensará no que era
antes. Deus fez-me mensageiro do novo céu e da nova terra, de que falou no
Apocalipse segundo São João, depois de ter falado dele pela boca de Isaías; e
ele mostrou-me onde encontrá-los”. (Colombo, 1998: 7, 34).
Colombo não tinha dúvidas de que estava preste a encontrar o Paraíso
Terrestre. Contrariamente aos sistemas de explicação deterministas da história,
os movimentos proféticos, escatológicos e milenaristas, assim como o
interesse pelas origens do Novo Mundo ocidental, revela a preocupação de
recuperar uma situação primordial, denota também o desejo de começar de
novo, ou a nostalgia pelo “Paraíso Terrestre” que os antepassados
mencionaram. O desejo de reencontrar as origens religiosas ou o desejo de
uma renovação de velhos valores e estruturas estavam presentes no
imaginário desses desbravadores. Colombo estava persuadido de que a
difusão do Evangelho através do mundo inteiro, como consta nas profecias,
deveria ser realizada antes do fim do mundo; que estava próximo e seria
precedido pela conquista do novo continente, pela conversão dos pagãos e
pela destruição do Anticristo. (Eliade, 1969:112-114).
A colonização da América abalou e transformou radicalmente a Europa
Ocidental. Eliade afirma que: “esse drama grandioso, simultaneamente
histórico e cósmico”, previsto pelo grande navegador, atribuiu um significado
escatológico para as expedições transoceânicas. (Eliade, 1969: 114).
Colombo, determinado a cumprir o seu destino, armado de uma devoção
íntima e intensa à Santíssima Trindade, aprendeu navegar naquele mar
mediterrâneo, onde a sua civilização teve as primeiras lições de embarcação
marítima. Com o forte desejo de encontrar o Paraíso Perdido, ele entendeu que
a descoberta da América abria para a civilização européia a possibilidade de
empurrar a civilização cristã para além de seus limites geográficos. Além de
propagar o Evangelho e renovar o mundo cristão, retomaria a história sagrada
mencionada na Bíblia. (Turner, 1986: 120).
Colombo foi integralmente sincero até a morte, na sua crença de que a
escravização, a exploração e a remoção das criaturas ritualistas e nuas, davam
força e nova vitalidade a toda civilização cristã. Sem a ajuda de Deus e das
40
armas de fogo, o pequeno grupo de cristãos dificilmente teria conquistado um
povo tão numeroso.
Para Frederick Turner, Colombo era o que Jung chamaria de homem
integralmente moderno e o que outros chamariam de o herói da história: um
indivíduo que de alguma forma tinha adivinhado as necessidades e aspirações
urgentes de sua época e que tinha intuído um meio para tentar satisfazê-las.
Um indivíduo que não dominava apenas a mecânica, os fatos e as teorias de
sua época, mas na realidade os ultrapassava; por isso seus contemporâneos o
consideraram excêntrico, confuso e até perigosamente iludido. (Turner, 1986:
123).
O almirante Colombo extraiu um consolo difícil do Velho Testamento e
anotou em seu diário, no dia 23 de setembro de 1492, antes de avistar as
costas verdejantes da América:
“Eu estava precisando muito desse mar bravio porque nada como isto
aconteceu desde a época dos judeus, quando os egípcios perseguiram
Moisés, que os liderava na fuga da escravidão”. (Colombo, 1998: 41).
Colombo falava sobre a proximidade do rio Ganges e de Catai,
afirmando que “A Sagrada Escritura atesta que Nosso Senhor criou o paraíso
terrestre, nele colocando a árvore da vida, e de onde brota uma fonte de que
resultam os quatro maiores rios deste mundo: o Ganges na Índia, o Tigre e o
Eufrates que separam a serra dividem a Mesopotâmia, e o Nilo, que nasce na
Etiópia e acaba no mar, em Alexandria”. Porém, não encontrou com segurança
em nenhuma escritura de latinos ou gregos, o lugar em que se situa neste
mundo o Paraíso terrestre. E afirmava que para muitos teólogos como: Santo
Isidro, Beda, Strabo, Santo Ambrósio, Scoto, o Paraíso terrestre se encontra no
Oriente. (Colombo, 1998: 188-190).
Continuando a leitura de seu diário... “Mares de sangue fervente como
um caldeirão num fogo enorme, diálogos com Deus sobre sua santa missão
nessas Índias, e exclamava: “A Deus muitas graças sejam louvadas!”, repetia o
Almirante. Uma montanha com uma tumba esculpida no topo, dentro da qual
havia um corpo embalsamado, macaco de rostos humanos e porcos de rabos
parecidos com tentáculos”.O ouro presenteado pelo rei Davi a Salomão veio
41
dessas Índias!”. Os cristãos aqui deveriam reconstruir Jerusalém e Sion. Sobre
os povoados existentes, porém, dizia que “Eles estão numa situação de
fraqueza. Embora não tenham morrido, sua doença é incurável ou pelo menos
crônica, deixai que aquele que o levou a essa situação descubra o remédio se
ele conseguir. Todos são mestres da desordem.”Ele implorava perdão aos
seus soberanos por essas desventuras. Dizia que eram resultados inevitáveis
das tensões da descoberta, do medo de estar cercado por milhões de
selvagens hostis e cruéis, e de todo aquele ouro. (Colombo, 1998: 200-205)”.
1.3.2 - Bartolomé de Las Casas
Bartolomé de Las Casas (1474-1566), o historiador da primeira fase da
exploração do Novo Mundo comenta a respeito do descobrimento da América e
de Colombo:
“Por ser evidente que naquele momento Deus deu a esse homem as
chaves desses mares temíveis, ele e mais ninguém abriu essas trevas;
a ele e a mais ninguém se deve para todo o sempre, tudo o que existe
além daquelas portas”. (Las Casas, 2001: 17).
Apóstolos dos índios, “procurador e protetor universal de todos os povos
indígenas” como se autodenominava, Bartolomé de Las Casas foi autor de
dezenas de livros implacáveis onde narrou, com riqueza de detalhes, o
macabro processo da Conquista dos territórios do Caribe, América Central,
México, Colômbia, Venezuela e Peru. (Las Casas, 2001:11).
Durante meio século Bartolomeu de Las Casas, um homem solitário,
debateu um único assunto, cara-a-cara com príncipes, clérigos e funcionários
coloniais, ou lhes apresentou petições; foi um dos poucos do seu tempo que
compreendeu o real significado do Novo Mundo. Las Casas, acabou
entendendo o Novo Mundo em si mesmo e reconheceu nele uma enorme
oportunidade de aprendizado espiritual. Assim como ele veio a compreender
que a escravidão destrói qualquer raça de seres humanos, gradualmente se
afastou da opinião de que o Novo Mundo era uma enorme oportunidade para o
trabalho de evangelização. “Ele se convenceu de que o Novo Mundo era um
presente misteriosamente concedido à cristandade para que esta pudesse
recuperar o seu vigor primitivo”. Num primeiro momento, lamentara a sorte do
índio por causa de sua candura e simplicidade; no entanto, mais tarde ele
42
passou a admirar o valor de suas culturas. Las Casas acabou dizendo,
ousadamente, que as almas dos índios teriam sido mais felizes se nunca
tivessem sido tocadas pelos cristãos uma verdadeira blasfêmia para alguém
de sua posição na época. (Las Casas, 2001: 12, 80,170).
Embora Las Casas nunca chegasse a admitir que houvesse algo de
fundamentalmente errado no próprio cristianismo, denunciou firmemente que a
prática cristã no Novo Mundo era evidentemente patológica. Embora não
admitisse que alguma coisa na história dessa religião tornava os cristãos
impiedosos e os levava a cometer crueldades enormes em nome de Deus, ele
foi capaz de denunciar essas crueldades e quase chegou a discernir uma de
suas causas: o divórcio entre a fé e o corpo humano. “Os cristãos desprezam
os nativos, escreveu Las Casas, porque não sabem se eles são animais ou
seres dotados de alma”. (Las Casas, 2001: 88-136).
As necessidades interiores da civilização européia alimentaram a sua
capacidade de se lançar além de seus próprios limites. A ânsia de avançar,
inerente à história cristã, fez mais uma vez, com que esta civilização se
tornasse “um povo cruel, sanguinário e corrupto: analfabetos truculentos que se
lançaram sobre o Novo Mundo como aves de rapina”. Esta idéia foi relatada no
livro Brevíssima Relación de la Destruición de las Índias Ocidentales, escrito
com surpreendente audácia por Las Casas. Lançado em 1552, Las Casas
chama os conquistadores de sujos ladrões”, tiranos cruéis”, sangrentos
destruidores”. (Las Casas, 2001: 12).
Com o passar dos anos, o texto de Las Casas se enriquece. Sua
denúncia irada serve de protesto contra todos aqueles que bestializaram os
habitantes do Novo Mundo.
É verdade que tudo que Las Casas escreveu manteve uma linha básica:
alertar a Espanha e o resto da Europa para as injustiças e atrocidades que se
cometiam no Novo Mundo.
Sua tese era simples e direta: para ele, “A América era a mais bela e rica
parte do mundo”, uma reminiscência do paraíso terrestre, e os índios, seus
habitantes, seres humanos, inteligentes, audazes e belos. Em sua opinião
radical, os espanhóis jamais tiveram uma guerra justa contra os índios, senão
que “eram todas provocadas pela ganância, luxúria e cegueira desses cruéis
43
conquistadores”. (Las Casas 2001: 147-148).
Entre meados de agosto e setembro de 1550 aconteceu em Valladolid,
Espanha, o grande debate entre Las Casas e Sepulveda. O doutor Sepulveda,
cronista do Imperador, havendo sido informado e persuadido por alguns
espanhóis, daqueles que respondiam pelas destruições que foram feitas entre
as “gentes das Índias”, escreveu em forma de diálogo um livro em latim, que
continha duas conclusões principais. Uma era que as guerras que foram feitas
pelos espanhóis nas Índias, foram justas quanto a causa e ao direito em cujo
nome foram movidas sendo que de modo geral, essas mesmas guerras podiam
e deviam ser feitas. Outra conclusão era que os índios deveriam ser obrigados
a submeter-se para serem governados pelos espanhóis, como os menos
sábios deviam submeter-se aos mais prudentes e sábios; e que, se não
quisessem submeter-se, os espanhóis poderiam mover-lhes guerra. Sepulveda
deu a seu trabalho a aparência de querer defender e justificar o título do direito
que têm os reis espanhóis à dominação e soberania universal desse mundo
das Índias.
Bartolomé de Las Casas, chegou das Índias na mesma ocasião e foi
informado da conduta de Sepulveda e conhecendo também a matéria que seu
livro continha, assim como a perniciosa cegueira do autor e os prejuízos
irreparáveis de que seria causa, se o livro fosse impresso, opôs-se à
publicação, denunciando as mentiras, assim como os fins a que tendia. Las
Casas reagiu contra os adversários dos índios, na Assembléia composta por
ilustres senhores e “mui reverendos e mui sábios Padres”, cujo fim principal era
desculpar e defender as guerras que eram feitas contra os nativos.
O frei Bartolomé reagiu com doze réplicas às acusações de Sepulveda.
A seguir, será exposto o extrato da Décima Réplica:
_ Não é absolutamente verdade, que os índios sacrificavam 20 mil
pessoas por ano, porque se assim tivesse sido, não teriam como justificar suas
tiranias nem manter em servidão os índios já oprimidos e desolados que
sobraram da conquista (vindima) feita. Foram os espanhóis, que sacrificaram
desde todos os tempos à sua deusa Avareza um número muito maior de índios
por ano; porque o número de índios sacrificados a essa deusa, por eles tão
amada e adorada é tal, que os índios nunca sacrificaram tantos nem em cem
44
anos.
_ Somente para ter bens e riquezas consumimos em quarenta e cinco
ou quarenta e oito anos uma extensão de terra maior que o comprimento e a
largura de toda a Europa, e uma parte da Ásia, roubando e usurpando tudo
com crueldade, injustiça e tirania, havendo sido mortas e destruídas vinte
milhões de almas de um país que tínhamos visto tão cheio de gente e de gente
tão humana.
Na Décima Segunda e Última Réplica, Las Casas diz o seguinte: Os
Espanhóis não vão às Índias movidos pelo zelo da fé, nem pela honra de Deus,
nem para socorrer e adiantar a salvação do próximo, nem tampouco para servir
a seu Rei como sempre se orgulham de dizer sob falsos pretextos; é a avareza
e a ambição que para ali os arrasta a fim de dominar perpetuamente sobre os
índios, como Tiranos e Diabos, desejando que lhes sejam dados como animais.
(Lãs Casas, 2001: 147,148).
Os prejuízos e as perdas que por virtude de todas essas causas receberam
as coroas européias há de receber ainda por todas as devastações e matanças
que perpetrarem no resto das Índias, dizia o Frei Bartolomé; e mais, os cegos o
verão, os surdos o ouvirão, os mudos o gritarão e os sábios o julgarão. (Las
Casas, 2001: 171).
1.4 - O Confronto: situação complexa e ambígua.
O contraste entre os dois mundos: o dos civilizados e o dos selvagens,
só não causou maior impacto, devido aos elementos que compunham o
imaginário europeu. Somados a esses elementos, apresentam-se as aventuras
de uma nova era: a das viagens ultramarinas e a dos grandes descobrimentos.
Muitos viram a Índia na América, mas, tomados pela vertigem da curiosidade,
captaram e aprisionaram o raro, o estranho e o singular do Novo Mundo e
deram origem a relatos, crônicas, narrativas de viagem, que será abordado
mais detalhadamente no segundo capítulo.
Meio ambiente, demografia, organização social, política e religiosa,
cosmologias, tudo se modificou no decorrer dos tempos. A desestabilização de
todas as estruturas indígenas durante a conquista, bem como a dizimação
ocorrida durante as missões modificou profundamente as tradições indígenas e
45
as formas de povoamento.
Sobre os povos que os portugueses encontraram ao desembarcarem em
Porto Seguro, “depararam os marujos de Cabral com homens pardos, nus, sem
coisa alguma que lhes cobrissem suas vergonhas”, relatou Pero Vaz de
Caminha em carta a Dom Manuel, o Venturoso. Não sabia o Almirante Cabral,
se a nova terra descoberta era a costa da África ou a Índia, se era ilha ou terra
firme. Evidentemente não eram negros, indianos também não pareciam ser.
Ainda assim, ficou-lhes pelos tempos afora o nome de índios. (Ribeiro,
2001:19).
A descoberta das terras e povos americanos fez com que o europeu
reconhecesse “o outro cultural” como esboçou Michel de Certeau,
hierarquizando essa diferença, e rejeitando o “desconhecido”, por meio da
bestialidade e da demonização. Esse fato deixou uma marca profunda na
formação da “identidade religiosa” do povo brasileiro, como também implicou
na re-construção da “identidade cristã ocidental”. (Vainfas, 1995: 24).
A Antropologia histórica nos ensina a abandonar o discurso eurocêntrico
do colonizador e privilegiar a “visão dos vencidos”. Isso nos permitiu descobrir
a riqueza de formas de pensamento e modos de expressão que tinham se
desenvolvido na América antes da invasão dos europeus.
Mas, será possível exumar a visão dos vencidos”, conhecer
engrenagens tão complexas? Hoje reconhecemos que as sociedades da
América antiga desenvolveram modos de apreensão da realidade, tão
sofisticados, complexos e eficazes como o que ainda hoje nos serve para
escrever a história.
A confrontação elucida a parte de etnocentrismo e de artificialidade que
implica a noção de cultura e sua freqüente inadequação às realidades extra-
européias. Pode-se constatar que a idéia de uma cultura indígena é uma
construção do observador ocidental.
Por enquanto, vamos trabalhar com estas categorias, mas ao longo
deste estudo alguns conceitos serão deconstruídos e esta visão se desdobrará
em um outro contexto.
Para entender a visão dos vencidos esta pesquisa enfocará da parte
ameríndia a sua persistência e as suas resistências à Colonização, não os
46
reduzindo a apenas um instrumento de dominação a serviço das nações
européias.
Segundo o historiador Gruzinski (2001: 61), a incerteza e o aleatório,
nem sempre são importantes para o historiador. No entanto o papel deles é
essencial em situações como o descobrimento da América, onde mundos com
histórias e tradições tão distintas, encontram-se brutalmente confrontados.
O choque da Conquista e as mestiçagens desencadeadas a partir desse
encontro provocaram, como já foi esboçada, a ocidentalização das almas, dos
corpos e dos territórios no Novo Mundo. A chegada dos europeus foi para os
nativos, sinônimo de desordem e caos.
Houve uma necessidade que impulsionou a civilização ocidental para a
conquista do globo e isso dá uma tonalidade diferente a essa conquista, porém
as explorações marítimas européias, ao vigor do renascimento, ou ao
sentimento otimista de expansão retinham a explicação tradicional da
dedicação missionária. Uma pestilência antiga e estranha foi levada para os
litorais distantes e floridos da América. A ambição daqueles conquistadores,
que desbravavam tenebrosos mares e suspendiam enormes velas ao inflarem
seus peitos e seus navios, levavam consigo a força da destruição, e não da
regeneração. (Turner, 1989: 122).
Quando aquele mundo tão mais vasto dos desbravadores europeus
explodiu nesses perímetros frágeis, os pequenos mundos dos nativos se
quebraram. Esse Novo Mundo, que não era vazio nem demoníaco, como
julgaram os primeiros conquistadores, era habitado por ricas vidas tribais que já
existiam há muito tempo nesse território, mas tragicamente, foram mal
interpretadas. Considerados selvagens os habitantes dessas terras incógnitas,
mesmo quando o Novo Mundo sucumbira à civilização cristã e as suas armas e
arados. Essa ignorância prosseguiu mesmo quando tudo parecia ter sido
descoberto e mapeado e quando os últimos selvagens das mais remotas terras
tinham se transformado em seres demoníacos e marginais: habitantes de uma
espécie de zoológico humano.(Turner, 1990: 109).
Porém, não se pode resumir a história da conquista da América a um
enfrentamento destruidor entre os bons índios e os malvados europeus, com a
convicção que outrora se recorria para contrapor os selvagens pagãos da
47
América aos conquistadores cristãos civilizados. Concordo com Gruzinski,
quando ele afirma que esse modo de ver as coisas imobiliza e empobrece a
realidade, eliminando todo tipo de elementos que desempenham papéis
determinantes: as trocas entre um mundo e outro, os cruzamentos, as
misturas. Igualmente importantes são os indivíduos e grupos que fazem às
vezes de intermediários, que transitam entre os grandes blocos possíveis de
serem localizados. Esse espaço de mediação teve um papel essencial na
história da colonização do Novo Mundo:
“Nos espaços “in between” criados pela colonização aparecem e se
desenvolvem novos modos de pensamento cuja vitalidade reside na
aptidão para transformar e criticar o que as duas heranças, ocidental e
ameríndia, têm de pretensamente autêntica”.(Gruzinski, 2001:48).
O interesse despertado por esse espaço de mediação, pela questão da
fronteira, corresponde em parte à dificuldade que temos em pensá-la, de tal
forma ela parece a um só tempo: real e imaginária, intransponível e
escamoteável. A passagem muito rápida de um universo a outro, no caso dos
brasileiros: o universo indígena e o universo português; provoca a sensação de
inacabado, muitos dizem que o povo brasileiro não tem uma identidade.
Podemos nos perguntar: Havia uma dinâmica híbrida em gestação sob o
aparente triunfo do ocidente ao colonizar essas terras e junto com a conquista,
a “adoção” do cristianismo? A situação fronteiriça revela o caos de uma
sociedade em conflitos: devastada e dominada, transformada na presa de um
futuro incerto, sem nome. Como diria Gruzinski, é uma incógnita o
desdobramento de tal situação:
“É emblemática dos mundos intermediários, que brotam logo em
seguida às catástrofes, perdidos entre um sistema em derrocada e a
recomposição brutalmente imposta por um ocidente triunfante”.
(Gruzinski, 2001: 49).
Fronteiras podem oscilar, passar por etapas transitórias ou aleatórias e
até mesmo, como no caso do Brasil Colonial, as fronteiras que separavam os
diferentes grupos étnicos se deslocavam num ciclo ininterrupto. Toda essa
mistura formou um gênero novo. Miscigenado diria Gilberto Freyre.
48
Para apreender as misturas, é preciso entender o termo “Cultura”. Este
termo alimenta a crença de que:
... Existiria um conjunto complexo, uma totalidade coerente, estável, de
contornos tangíveis, capaz de condicionar os comportamentos: a
cultura. (Gruzinzki, 2001: 51).
Seja qual for a época ou o meio, é importante definir seu conteúdo, sua
lógica interna, descobrir comportamentos inalteráveis. Mas essa demarcação
culturalista leva-nos a imprimir à realidade uma preocupação obstinada pela
ordem, pela formatação, insistindo nas especificidades e nas diferenças, em
detrimento do que liga cada cultura a outros conjuntos, a outros grupos. Porém,
basta examinar a história de qualquer grupo humano para perceber que esse
arranjo de práticas e de crenças não fica bem definido. A cultura, se por um
lado mantém as tradições, por outro ela é dinâmica, criativa, acompanha o
devir, é produção ininterrupta humana. A categoria de cultura é o exemplo
perfeito de como uma noção ocidental é aplicada a realidades que ela
transforma ou faz desaparecer. Seu emprego rotineiro minimiza o que essas
realidades comportam, em matéria de “contaminações estrangeiras, influências
e empréstimosvindos de outros horizontes. Podemos considerar as
mestiçagens resultantes de processos que posteriormente denominaríamos
culturas ou civilizações. Podendo também ser uma espécie de desordem que
rapidamente atrapalhariam conjuntos impecavelmente estruturados e tidos
como autênticos. (Gruzinski, 2001: 51,52).
Outra cilada é a noção de identidade que atribui a cada sujeito ou a cada
grupo, características e aspirações igualmente determinadas, supostamente
fundadas num substrato cultural estável ou invariante.
Cada criatura é dotada de uma série de identidades, ou provida de
referências mais ou menos estáveis que ela ativa sucessiva ou
simultaneamente, dependendo dos contextos {...} A identidade está
ligada a capacidades variáveis de interiorização ou de recusa das
normas inculcadas. Essas identidades são plurais, pois se definem a
partir de relações e interações múltiplas. (Gruzinski, 2001: 53).
Foi o contexto da Conquista e da colonização da América que provocou
nos invasores europeus a identificação de seus adversários como índios e
49
dessa forma a englobá-los nessa idéia unificadora e redutora
2
. (Gruzinsk, 2001:
52, 53).
Cultura e Identidade: as duas palavras são categorias que impregnam
tanto a nossa visão das coisas que parecem dar um quadro de explicação
satisfatório, porque decorrem de maneiras de pensar profundamente
arraigadas. Esses hábitos atravessam todo o raciocínio histórico, procedendo
da mesma maneira; levando-nos a evocar um Brasil Colonial, como se tratasse
de realidades homogêneas e coerentes, das quais só restasse estabelecer os
caracteres originais. Ou então estudarmos a religião indígena antes da
chegada dos portugueses, mas como? Sem nos preocuparmos com a validez
do quadro que escolhemos, quando na verdade esse é apenas um reflexo das
noções e práticas do Ocidente cristão. É através da visão dos cronistas
europeus que podemos reavaliar os nativos americanos.
Desse modo, os Cronistas do Século XVI, e seus sucessores dividem
em categorias e conceitos palavras como: deus, religião, panteão, santidades,
idolatrias, heresias, sacrifícios, mitos... Características por eles arrancadas,
arbitrariamente do contexto ameríndio. Tal visão supõe que existiria um modelo
subjacente, universal, atemporal e eterno. “Embora definido no Ocidente,
composto de referências idênticas e independentes da época para: Religião e
Sociedade”. (Gruzinsk,2001:52-54).
Explicar como sendo fruto do primarismo espiritual de gente ignorante, é
antes de tudo um equívoco, implicando a ignorância das características do
cristianismo popular ocidental. Em suma, precisamos submeter nossas
ferramentas de pesquisador a uma crítica severa e reexaminar as categorias
canônicas que nos condicionam e com freqüência compartimentam nossos
estudos: sociedade, civilização, selvagens, religião, arte, cultura, identidade,
pois estas levam-nos a separar o que não deve sê-lo e a passar ao largo de
fenômenos que transpõem as divisões clássicas.
2
Sabe-se que a descoberta da América não foi de imediato considerada uma novidade.
Colombo buscou encontrar os traços asiáticos que lhe assegurasse ter chegado à Terra do
Grande Cã, chamando índios aos aborígenes que encontrava, procurando associar o que via
às narrativas de viagem de outros exploradores medievais que percorreram a Ásia e a região
do Índico. O imaginário dos conquistadores europeus buscava identificar ou confirmar o que já
sabiam. Foram relutantes ao reconhecimento do outro. TODOROV, La conquêt de l’Amérique
La question de l’autre. Paris, Seuil, 1982, p.14-21.
50
CONCLUSÃO
Ao buscar reconstruir o universo imaginário europeu, entre os Séculos
XII e XVI foram revisadas questões sobre a situação política, social e religiosa,
especialmente de Portugal e das terras recém descobertas.
O Estado e a Igreja mantiveram relações estreitas de cumplicidade.
Entre situações complexas e ambíguas, se formou o imaginário desta época.
Marcado de um lado - por guerras, pestes, culpabilidade, pecado... e de outro,
por conquistas, descobrimentos, expansões comerciais, marítimas e religiosas.
A ideologia medieval é fortemente marcada pelo religioso, pelo
sobrenatural.
Acontecimentos como a Reforma, a Contra-Reforma, a dilatação do
poder papal, a Inquisição foram decisivos e alteraram a configuração do
pensamento ocidental.
O descobrimento do Novo Mundo representou uma grande esperança
para a “velha e cansada Europa”.
Idéias milenaristas apocalípticas alimentaram esta expectativa de um
futuro melhor. A Terra Nova das Profecias ou o Paraíso Perdido estava na mira
daqueles conquistadores de terras e de almas.
51
CAPÍTULO II
BRASIL: PARAÍSO OU INFERNO ATLÂNTICO?
Introdução
Este capítulo é uma aventura interpretativa de fontes primárias e do
material histórico disponível a partir da análise dos Relatos de Cronistas
Quinhentistas como o Padre Manuel da Nóbrega, Andre Thevet, Hans Staden e
Jean de Léry sobre a religiosidade indígena. Neste sentido, uma das principais
contribuições desta pesquisa é tentar estabelecer pontes e diálogos com a
produção antropológica (Métraux, Hélène e Pierre Clastres, Darcy Ribeiro,
etc.,) historiográfica (Jean Delumeau, Braudel, Ginzburg, Gruzinski, Ronaldo
Vainfas, Laura de Mello e Souza, etc.,), cientistas religiosos (Campbell, Mircea
Eliade. Etc.), entre outros pensadores.
Trata fundamentalmente, da documentação produzida pelos viajantes
que no Brasil estiveram no Século XVI. A abordagem central é a análise da
visão do cristão europeu, sobre a religiosidade indígena deste mesmo período,
buscando avaliar a resistência indígena à colonização portuguesa, assim como,
recuperar a atividade e participação dos índios em face da conquista,
revelando as elaborações simbólicas produzidas pelos índios sobre o contato
com vários agentes: missionários, administradores coloniais, viajantes, etc.
Na tentativa de desvendar o outro lado da história, a parte que cabe aos
índios no processo religioso de cristianização, esta pesquisa busca entender
também, as razões indígenas e a forma como estes elaboraram o processo de
contato com os cristãos. Para fundamentar essa interpretação e tirar proveito
da etnografia indígena, construída por aqueles que narraram seus encontros
com estas culturas será proposto uma interpretação destas variáveis e seus
possíveis cruzamentos, ao mesmo tempo realizar uma crítica da cultura e da
história religiosa do povo brasileiro analisando as complexas relações
engendradas pelo contato intercultural.
O Capítulo II está dividido em partes. Primeiramente refaz o percurso da
“descoberta” e do encontro entre portugueses e índios, balizando o contexto
em que se desenvolverá a trama principal: os relatos produzidos pelos
52
visitantes sobre o contato com os nativos, enfocando a questão religiosa,
examinando assim, as versões dos europeus sobre os nativos e a produção de
suas representações a propósito de idolatria e demonolatria, na classificação e
percepção dos indígenas. A seguir, através de um material etnográfico sobre
este contato, será analisada a morfologia social indígena, seus símbolos e suas
principais manifestações: os rituais comemorativos e suas crenças religiosas,
além de avaliar como o profeta-caraíba e seus seguidores interferiam no
comportamento das diferentes tribos; enfim, fazer uma análise da religiosidade
indígena, através dos relatos dos cronistas, sobre a parte referente à “feitiçaria”
ou a espiritualidade indígena.
2.1 - Brasil Paraíso ou Inferno Atlântico?
Como boa parcela do Novo Mundo, o Brasil deve muito aos elementos
do imaginário europeu, pois é através desse olhar, que será inventada a
Colônia portuguesa. O Brasil, assim como toda a América, foi colocado a
serviço das novas descobertas do mundo. Como tudo que era considerado
raro, estranho ou singular tornasse alvo de uma ganância que aumentaria a
cada dia; à exuberância da natureza, dos humanos e dos animais somava-se a
fascinação pela diferença: canibalismo, nudismo, liberdade sexual, erotismo,
poligamia e incesto tudo isto, despertava uma atenção especial.
Podemos considerar que os desbravadores europeus, após ter
explorado o Oceano Índico e desmistificado o seu universo fantástico, o
Oceano Atlântico passou a ocupar papel análogo no imaginário do europeu
medieval e assim, o Novo Mundo veio a ser “Reduto derradeiro das
humanidades monstruosas, do paraíso terreno, do reino do próprio demo...”
(Souza, 1986: 26).
Sergio Buarque de Holanda, importante historiador brasileiro, em seu
livro “Visão do Paraíso” (1969), nos mostra o deslocamento do mito do Paraíso
Terrestre para o universo Atlântico vindo da Ásia e da África através de
tradições bastante antigas. Essa mudança ocorreu de forma lenta. No Século
X, o Paraíso Terrestre situava-se no meio do Oceano, conseqüentemente foi
deslocando-se, acompanhando o progresso dos conhecimentos geográficos,
53
até desaparecer já em fins do Século XVI, embora estivesse presente na
imaginação popular até o Século XVIII. (Souza, 1986: 27).
Mapa do Brasil, d’après Guillaume Lê Testu, Cosmographie universelle, Atlas enluminè sur
papier, Lê Havre, 1556, f. 44 vº, Vincennes, S.H.A. T., clichê Giraudon.
As lendas medievais européias encontraram um novo espaço no
imaginário dos cristãos civilizados. Às novas terras foram associadas antigas
lendas sobre o arquipélago das ilhas Brasil. Estas ilhas constam em vários
mapas e cartografias medievais. Laura de Mello liga esse conhecimento, às
várias transformações que sofreu o nome Brasil, que os europeus associavam
à Ilha de São Brandão. E diz, que de 1351 a 1508, estas ilhas conheceram
variações como: Brazi, Bracir, Brasille, Bracil, Braxili, Bresilge, e muitos outros.
Estas ilhas eram registradas na maioria das Cartas Marítimas, como disse
anteriormente, e sua posição se manteve inalterada:
A mais meridional das ilhas encontramos assinalada no
grupo dos Açores, aproximadamente na latitude do Cabo do
54
São Vicente; a segunda demora a NW do Cabo de Finistera, na
latitude da Bretanha; a terceira a W e não muito longe da costa da
Irlanda. (Souza, 1986: 27-28).
A primeira pessoa a comentar e a tentar explicar o nome Brasil foi Frei
Vicente do Salvador. Ele não tinha conhecimento da presença do nome Brasil
nas cartas medievais, mas explica a designação pela presença da madeira, de
cor avermelhada utilizada para tingir, além de outras coisas, tecidos.
Entretanto, é interessante notar que, ao fazê-lo forneceu uma complicadíssima
explicação de cunho religioso, referente à luta entre o bem e o mal. O céu:
reino de Deus e o inferno: reino do Demônio. Mais do que isso associou “esta
porção imatura da terra” ao âmbito das possessões demoníacas. Sobre a
Colônia nascente, projetou toda a carga do imaginário europeu, no qual, desde
o início do Século XVI, o demônio ocupou papel de destaque. Se a
identificação com as regiões infernais é transparente no texto do frei Vicente, a
associação entre o fruto de uma viagem concreta, que foi o descobrimento do
Brasil, e as incontáveis imagens “exóticas”, que os europeus tinham acesso há
tempos, através de textos literários, diários de viagens, etc., Entre o real e o
imaginário, se pensarmos nas terras selvagens, recém-descobertas, as
imagens projetadas, não eram menos importantes, apesar de nem tão
legítimas quanto pareciam.
Frei Vicente diria que o diabo transferira seu reino para a América, uma
vez expulso da velha cristandade, do que resultaria inclusive o triunfo do nome
Brasil sobre a Terra de Santa Cruz, homenagem ao “pau de cor abrasada e
vermelha” que abundava no litoral. (Vainfas, 1995: 28).
O Brasil, Colônia portuguesa, nascia assim sob o signo do demo e das
projeções do imaginário do homem ocidental. Mas o domínio infernal não era a
única possibilidade neste trecho do Frei Vicente.
O primeiro movimento, o de Pedro Álvares se fez no sentido do céu: a
este, acoplar-se-ia a Colônia. Não fossem os esforços bem sucedidos
de Lúcifer, pondo tudo a perder. (Abreu, 1900: 48).
O texto do primeiro historiador que comenta as relações ambíguas
existente à partir do próprio nome Brasil, para a Colônia é extraordinário,
55
justamente por dar conta da complexidade subjacente às duas possibilidades:
enxergar-se a Colônia como domínio de Deus o paraíso, ou domínio do Diabo
o inferno. Para Frei Vicente, o demônio levou a melhor. Brasil foi o nome que
vingou, e o frade lamenta que se tenha esquecido a outra designação, muito
mais virtuosa e conforme aos propósitos salvacionista da brava gente
portuguesa; “Ilha de Vera Cruz” ou “Terra de Santa Cruz”. (Souza, 1986: 28-
29).
Existe uma outra interpretação para a mesma questão; a do frade
Jaboatão, bastante diversa, que enxergou o descobrimento do Brasil como
sobrenatural e miraculoso, ‘uma dádiva dos céus’:
Por muitos anos Deus mantivera oculta a existência dessa dilatada região,
desvendando-a por fim aos olhos dos homens e permitindo que desse
tesouro colhesse o Céu “multiplicados lucros”. Foi Deus quem, através
de seus desígnios insondáveis conduziu os homens até aqui. O
descobrimento revela e reforça a existência de Deus: milagre divino, eis
o que foi o descobrimento da colônia portuguesa na América. (Souza,
1986: 29).
O descobrimento do Brasil desvendou aos portugueses a natureza
paradisíaca que tantos aproximaria do paraíso terrestre: buscavam, assim, no
acervo imaginário, os elementos de identificação da Nova Terra. Associar a
fertilidade a vegetação luxuriante, a amenidade do clima às descrições
tradicionais do paraíso terrestre tornava mais próxima e familiar para os
europeus a terra tão distante e desconhecida. A presença divina fazia-se sentir
também na natureza. Esta elevada à esfera divina, mais uma vez reiterava a
presença de Deus no universo: é o que dizem Thevet e Lery, como veremos
mais adiante ao analisarmos os relatos desses cronistas. Rocha Pita, que viveu
neste mesmo período, comenta sobre os atributos da terra brasileira:
É o próprio Paraíso Terrestre: em nenhuma outra região se mostra o céu
mais sereno, nem madruga mais bela a aurora; o sol em nenhum outro
hemisfério tem os raios tão dourados, nem os reflexos noturnos tão
brilhantes; as estrelas são as mais benignas e se mostram sempre alegres;
os horizontes, ou nasça o sol ou se sepulte, estão sempre claros, as águas,
ou se tomem nas fontes pelos campos, ou dentro das povoações nos
56
aquedutos, são as mais puras: é enfim o Brasil terreal o paraíso
descoberto, onde tem nascimento e curso dos maiores rios; domina
salutífero clima; influem benígnos astros e respiram auras suavíssimas,
posto que por ficar debaixo da tórrida zona, o desacreditassem e dessem
por inabitáveis Aristóteles, Plínio e Cícero. (Souza, 1986: 38).
Lugar de concretização dos mitos de um paraíso terrestre, as terras
brasileiras se contrapunham a humanidade pecadora. Como afirma Laura de
Mello, entre a visão paradisíaca da Terra e a visão da natureza pintada de
negro pelo escravo africano e de amarelo pelo indígena, venceu a diferença:
infernalizou-se o mundo dos homens em proporções jamais sonhadas em toda
a história européia. O Brasil passou a ser o lugar imaginário das visões
ocidentais de uma humanidade inviável. (Souza, 1986: 29-30).
Diante de tal impasse, muitos hesitaram ao decidir entre o inferno ou o
paraíso e escolheram o purgatório. Pelo menos teriam a possibilidade de
purgarem seus pecados e garantirem uma vaga no céu.
Os relatos de viagens nos mostram essa ambigüidade. Em muitos
momentos, poderiam ser agradáveis ou trágicos, dependendo da imaginação
do autor. Agindo como choque cultural e provocando dúvidas e
questionamentos às estruturas sociais de então, umas surgem como
tendências edenizadoras, outras como inferno atlântico; que têm ressonância
nas crônicas e relatos escritos sobre o Brasil.
2.2 - Colonização do Brasil e Cristianização dos Indígenas
Xilogravura de Hans Staden. Primeiros registros escritos e ilustrados sobre o Brasil e seus
habitantes,1557.
57
Sobre o início da colonização do Brasil e catequese dos indígenas,
utilizarei como principal referência bibliográfica o livro “Brasil A época
colonial”, v.2: administração, economia e sociedade de Aziz Nacib (2003); além
dos livros de Emília Viotti da Costa “Monarquia-República”, (1999) e “Cartas
Correspondência Ativa e Passiva” do Pe. Hélio Abranches Viotti, S.J (1984).
Em 1534, Dom João III, rei de Portugal, tomou as primeiras providências
para a colonização do Brasil, criando as Donatárias. A primeira das Capitanias
foi a de São Vicente, entregue a Martim Afonso de Souza. O rei de Portugal
resolveu impetrar de Paulo III, Sumo Pontífice de Roma, que destinasse alguns
apóstolos para ajudá-lo na propagação da fé, nos seus domínios ultramarinos:
Ásia, África e América.
Reconhecido o “generoso patrocínio”, dispensado desde então pelo
monarca lusitano à Nova Ordem, este mereceu da parte do fundador e de seus
filhos, o título de “Pai da Companhia de Jesus”. (Viotti, 1984: 10,11).
A expansão missionária dos Jesuítas está sem dúvida, vinculada à
expansão política e comercial dos portugueses pelo mundo. É desse período
que temos notícia dos primeiros provimentos eclesiásticos. Por alvará de 5 de
outubro de 1534, determinou D. João III que o provedor dos armazéns pagasse
a um vigário e quatro capelães, que iam para Pernambuco com Duarte Coelho,
quinze e oito mil-réis respectivamente. Os ditos eclesiásticos haviam sido
examinados pelo bispo de São Tomé, Deão da Capela Real, provavelmente
comissário pelo metropolita do Funchal, chefe de sua província eclesiástica.
Esse alvará ocorre no livro, Primeiro das Provisões e está publicado na série
Documentos Históricos (Bibl. Nac., vol. XXXV, p. 42. In. Nacib, 2003: 66-67).
O ano de 1549 começa nova fase em nossa história religiosa do povo
brasileiro com a chegada dos primeiros jesuítas. Em carta a Tomé de Souza
recomendou o rei que lhes fosse dado “tudo para que as ditas cousas ouverem
mister”. Em cumprimento dessa ordem fixou o governador em 5.600 réis, o
auxílio real para cada um. (Holanda 2003:63-67).
Fato decisivo para a Igreja no Brasil foi a criação, pela bula Super
specula militantes ecclesiae (04 de dezembro de 1554), do bispado de
Salvador, na Cidade de Salvador da Capitania de Todos os Santos, com
58
cláusula de que, enquanto não houvesse outros bispados na Colônia
Portuguesa, exercesse o novo bispo a sua jurisdição em todas as terras e
partes da Colônia. O próprio bispo intitulava-se “bispo do Salvador e
comissário-geral, em todas as terras do Brasil”. A carta de apresentação e
confirmação do bispo (04 de dezembro de 1554) é um documento notável sob
todos os pontos de vista, inclusive o histórico, pois que, começa por uma
minuciosa exposição relativa à ereção dos bispados nas terras descobertas e
ao padroado e termina por determinar expressamente o sistema de escolha
das autoridades religiosas:
O bispo ora novamente, e os que adiante se proverem do dito bispado
sejam providos à minha apresentação e dos ditos reis meus sucessores, mas a
apresentação das dignidades, conezias e benefícios da dita igreja catedral, e
assim das igrejas e benefícios com cura, ou sem cura, do dito bispado, seja do
mestre ou do Governador da dita Ordem e Cavalaria de N. S. Jesus Cristo, o
que tudo pelo Santo Padre me foi concedido. (Holanda, 2003 : 67).
O rei se propunha sustentar a diocese a principio com seus próprios
rendimentos, visto que as terras do limite dito bispado são poucas, e os gastos
que se fazem com as armadas (que continuamente é necessário que ande na
costa do mar das terras do Brasil para defensão dos moradores) são muito
grandes.
O primeiro bispo do Brasil foi um homem ilustrado. Mestre em artes pela
Sorbonne, foi aluno do famoso Colégio de Santa Bárbara, núcleo de
estudantes portugueses e espanhóis regido pelo célebre Diogo de Gouveia. Foi
colega de Calvino, então padre católico e contemporâneo de Santo Inácio e
Simão Rodrigues.
Foram os jesuítas que fizeram a campanha pela criação do bispado. Em
cartas sucessivas o Pe. Manoel da Nóbrega evidenciara, perante o provincial
português, a necessidade da vinda de uma autoridade, que contivesse os
péssimos elementos do clero português que para cá vieram. A pobreza de
recursos dificultava a obtenção da medida. Os dízimos a esse tempo deveriam
representar minguada contribuição daí assumiram o rei a responsabilidade das
despesas pela sua tesouraria, caso as contribuições eclesiásticas não fossem
59
suficientes. A América espanhola já contava dezenas de dioceses quando o
Brasil começou a forma a sua hierarquia.
Duas grandes lutas sustentaram o bispo durante sua estada no Brasil a
primeira contra os jesuítas, a segunda contra o Governador Duarte da Costa. É
realmente chocante que, num momento tão delicado da colonização,
divergissem força que deveriam concorrer para a salvação da grande empresa
da colonização. Frei Odulfo van der Vate, vê no primeiro conflito, o choque
entre duas mentalidades: a da renascença encarnada pelo bispo, nutrido dos
ensinamentos clássicos, e a da Contra-Reforma, de que eram expressão
máxima os jesuítas. Sem contestar a validade da atribuição daquelas
representações, não se pode duvidar que aquele conflito tenha sido o primeiro,
entre duas concepções do empreendimento colonizador: a dos jesuítas,
querendo colocar a cristianização acima das contingências políticas e mesmo
culturais da Europa, e a do bispo, não concebendo a catequese se não como a
conquista do Brasil para o tipo de civilização e “cristianização” européias.
Confundindo, e até identificando, a religião com a cultura, queria o bispo que se
exigisse dos índios, antes de serem admitidos ao batismo, a capitulação diante
da civilização ocidental. Escandalizou-se assim, com o fato de tolerarem os
missionários a nudez dos selvagens, mesmo em reuniões religiosas, quando
observava Nóbrega, não haveria no país inteiro, fazenda que chegasse para
todos. Mais ainda por aceitarem nas procissões e cerimônias não litúrgicas,
cantos e danças selvagens. Escandalizou-se ainda mais com o fato de
permitirem os jesuítas que as suas visitas às aldeias indígenas fossem feitas,
com a cruz alçada, mas cantando os meninos e tocando à moda dos índios
“com os seus mesmos sons e cantares, mudados as palavras em louvor a
Deus”. Os índios “folgavam muito e vinham ao nosso tanger a cantar e bailar”,
dizia Nóbrega. Impugnou asperamente a catequese através das crianças,
mortificando em extremo o Pe. Nóbrega, que tinha posto nisso todas as suas
esperanças. Repreendeu, até certo ponto, os inacianos por admitirem a
confissão por meio de intérpretes, mas baseado no pressuposto que deveriam
os índios fazê-lo em português, “porque enquanto o não falarem, não deixam
de ser gentios nos costumes”.(Nacib, 2003:70).
60
Sem levar em conta a assimilação pela igreja de tantos ritos pagãos,
dando-lhes um sentido sublime, opôs-se tenazmente a qualquer concessão nos
hábitos puramente europeus da época. Profundamente racista ao que parece,
não concebia sua missão apostólica senão perante os europeus imigrados e
nunca perante os selvagens. Segundo Nóbrega:
“não se tinha por seu bispo, e eles lhe pareciam incapazes de toda
doutrina, por sua bruteza e bestialidade, nem as tinha por ovelhas de
seu curral, nem que Cristo Nosso Senhor se dignaria de as ter por tais”.
(Nacib, 2003: 70)
Nem mesmo as missões volantes nas aldeias permitiu que fossem
mantidas, pois “não gostava de capelas e casas de meninos entre os índios”.
(Nacib, 2003: 70).
Com essa mentalidade não admira que o bispo quebrasse a resistência dos
jesuítas em admitirem como legítima a escravidão dos selvagens. Segundo ele,
seria “lícito fazer guerra a este gentio e cativá-lo, hoc nomine et titulo, que não
guarda a lei da natura por todas as vias”. (Nacib, 2003: 70).
Ninguém, portanto, mais afastado da conduta defendida por Bartolomé de
Las Casas, e até mesmo das determinações pontifícias, especialmente do
Papa Paulo III que em sua bula Veritas ipsa, (1537), declarara ilícita a privação
dos direitos humanos dos selvagens, todos remidos pelo sangue de Cristo.
(Holanda, 2003:70-71).
Nesse conflito portou-se o Pe. Nóbrega com alto espírito de disciplina.
Feitos os protestos perante os superiores e esclarecidas as autoridades régias,
preferiu retirar-se da Bahia e dirigir-se a São Vicente, onde o chamavam não
menos importantes interesses da sua empresa espiritual. Nunca mais se
encontraria com o seu digno oponente, porque, ao voltar do Sul, já o bispo
tinha sofrido a terrível morte, que bem pode ser tomada como um martírio.
Voltaram mais tarde, os jesuítas a desenvolver amplamente sua ação
missionária, mas nunca mais nas bases da larga tolerância para com os
costumes indígenas com que a haviam iniciado.
61
O conflito entre o bispo e o Governador teve aspectos bem graves e até
trágicos. Os motivos foram, porém, de natureza bem menos elevada as
queixas, de parte a parte, acumulavam-se na Corte. O rei terminou por
convocar o bispo, o que não deixou de constituir uma vitória parcial de Don
Duarte da Costa. Com o naufrágio e posterior matança canibalesca dos
refugiados, encerrou-se tragicamente a primeira luta no Brasil em torno do
papel da igreja. (Holanda,2003:70,71).
Daremos continuidade a questão catequética dos jesuítas no próximo
capítulo quando abordarmos o relato do Pe. Manoel da Nóbrega.
2.3 - Aspectos da Religiosidade no Brasil Colonial
Baseado no livro de Laura de Mello e Souza, “O Diabo e a Terra de
Santa Cruz” (1986), abordarei alguns acontecimentos que retratam, a
espiritualidade do povo brasileiro no início da colonização. A religião forneceu
os mecanismos ideológicos justificativos da Conquista da América (do Brasil)
encobrindo e escamoteando as atrocidades cometidas em nome da fé. Como
já foi colocado, existem poucos trabalhos sobre o mundo complexo da
religiosidade brasileira. Nunca é demais lembrar que o fim da Idade Média e o
início da Idade Moderna caracterizaram-se por uma religiosidade profunda,
exacerbada, cheia da angústia. Portanto sem que os propósitos materiais
fossem retraídos, cristianizar era de fato um dos principais objetivos do
programa colonizador dos portugueses diante do Novo Mundo.
Propagava-se a fé, mas colonizava-se também. As caravelas
portuguesas eram de Deus, nelas navegavam juntos missionários e soldados,
pois, não só são apóstolos os missionários, senão também, os soldados e
capitães, porque todos vão buscar gentios e trazê-los à luz da “verdadeira” fé e
ao grupo da Igreja cristã. Aumentar a fé católica, era o intento com que
mandavam cruzar os mares, nas tão repetidas armadas. Propagação da fé
católica, colonização, escravização e fortalecimento do poder monárquico
sempre aparecem associados. D.João III empenhou seu católico zelo nessa
empreitada: das terras e das almas do Brasil, e conseguiu ambos os trunfos,
trazendo tantas ovelhas ao rebanho desgarrado do cristianismo universal,
62
como súditos ao jugo do seu domínio.
A idéia de que o descobrimento do Brasil fora ação divina, estava
generalizada, sobretudo entre eclesiásticos; e dentre os povos, a de que Deus
escolhera os portugueses para serem os senhores da Nova Colônia. Portanto,
eles tinham por dever nela produzir riquezas materiais, explorando a natureza e
riquezas espirituais, resgatando almas para o patrimônio divino.
As produções sobre as fontes do Século XVI, sobretudo quando tratam
de analisar as relações entre índios e brancos, expressam-se, na maioria das
vezes, de modo a enfatizar o “espanto” dos europeus com os índios,
acentuando e construindo uma alteridade radical, entre esses povos, como se
fosse este valor que inaugurasse estas relações. Procurando fugir desta
caracterização, embora reconhecendo o argumento do cristão europeu sobre a
animalização e demonização dos índios como uma tentativa de afirmar a
superioridade, hierarquizar as diferenças, rejeitar o desconhecido.
O período da Colonização do Brasil caracterizou-se por uma
religiosidade exacerbada. Para os conquistadores e missionários, foram três os
motivos das navegações: o humano, o divino e o natural. Mantendo entre si,
uma esfera contraditória: na esfera divina, não existe Deus sem diabo, no
mundo da natureza, não existe paraíso terrestre sem inferno; entre os homens,
alternam-se virtude e pecado. Com esse imaginário, estava justificada qualquer
tentativa de explicação sobre o período. (Souza, 1986: 29).
Logo na chegada dos portugueses à Ilha de Vera Cruz, após terem
tomado posse das terras, a primeira carta destinada ao rei de Portugal, escrita
por Pero Vaz de Caminha (1450-1500), escrivão da frota de Pedro Álvares
Cabral, confirma a idéia de uma natureza paradisíaca e uma população pagã.
Segundo Caminha, o melhor fruto que poderia dar a terra recém descoberta,
seria salvar aquela gente.
De todos os frutos que poderia dar a terra recém descoberta, o melhor
seria salvar a gente indígena. E esta deve ser a principal semente que
vossa alteza nela deve lançar. (Caminha, 1923: 99).
A proporção da fé católica aparece no texto de Caminha, como forte
desejo do monarca: “Fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, o
63
aumento de nossa fé!”. Quase 50 anos depois D. João III reiterava os
propósitos cristianizadores da monarquia portuguesa. “A principal causa que
me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil, foi para que a gente dela
se convertesse a nossa Santa fé Católica”, escrevia em 1548 a Tomé de
Souza. Tornou-se lugar comum afirmar que a religião forneceu os mecanismos
ideológicos justificativos da Conquista e Colonização da América. (Souza,
1986: 32).
As visões paradisíacas e infernais se alternavam no imaginário do
europeu colonizador. À natureza edenizada referia-se ao ouro (universo
econômico); as infernais, sempre relativas aos humanos: índios, negros e logo
depois colonos. Entre uma e outra, existia ainda uma terceira possibilidade: a
do purgatório. Desvios cometidos na metrópole eram purgados na Colônia
através do degredo; colonos desviantes, hereges e feiticeiros eram, por sua
vez, duplamente estigmatizados por viverem em terra particularmente propícia
à propagação do mal.
Esse movimento duplo perdurou por séculos em terras americanas: a
edenização da natureza e a desconsideração dos homens (bárbaros, animais,
demônios); era uma tendência que se fortaleceria posteriormente. São
incontestáveis, o interesse sempre renovado pelo exame da natureza, e o
desinteresse pelos homens que dela usufruem. (Souza, 1986: 37).
64
2.4 - Os Relatos dos Cronistas
Viajantes europeus que aqui estiveram, no século XVI, registraram no
papel suas observações sobre a terra. Fizeram-no por obrigação profissional
ou motivo pessoal. Seus textos são basicamente depoimentos, com a
finalidade de apresentar aos compatriotas um panorama do Novo Mundo.
Esses europeus, que viveram durante um tempo nas proximidades ou
nas próprias aldeias indígenas, observaram uma efervescência religiosa, que
foi descrita nos relatos desses cronistas quinhentistas. São informações
preciosas, de valor histórico e etnográfico. A análise dos escritos sobre esses
rituais místicos, nos levará a conhecer melhor a religiosidade dos nativos e
como essas práticas foram interpretadas pelos cristãos do século XVI.
Havia entre as tribos indígenas do Século XVI, um ambiente, cuja euforia
“religiosa” os europeus observaram e descreveram, em seus relatos. Serão
analisadas a seguir, estes documentos. Embora quase todos os cronistas
negassem a existência de religião entre os gentios, este fato relaciona-se
historicamente com o início da Colonização do Brasil pelos portugueses, assim
como, a implantação do colonialismo e suas terríveis conseqüências. Do
conjunto de informações obtidas através dos relatos, apesar de fragmentadas,
podem ser extraídas informações etnográficas e históricas sobre a religiosidade
indígena no momento do encontro entre os civilizados europeus e os selvagens
65
pagãos. A seguir farei uma análise dos relatos destes cronistas,
pormenorizadas.
2.4.1 - O Relato de Nóbrega.
Este estudo sobre o relato de Manuel da Nóbrega é baseado nos livros
dos historiadores Serafim Leite - “Cartas dos Primeiros Jesuítas no Brasil”
(1954), José Eisemberg “As Missões Jesuíticas e o Pensamento Moderno”
(2000) e Ronaldo Vainfas “A Heresia dos Índios” (1995).
66
Manoel da Nóbrega nasceu em 18 de Outubro de 1517, em local
atualmente desconhecido. Aceita-se que tenha nascido na região do Minho, no
Norte de Portugal. Estudou na Universidade de Salamanca, Espanha, entre
1534 e 1538. Acabou transferindo-se para Coimbra, onde em 1539 obteve
título de bacharéu em Direito Canônico. Em 1544 entrou para a Companhia de
Jesus, recém-fundada por Inácio de Loyola. Cinco anos depois, foi designado
pelo provinçal dos jesuítas de Portugal para acompanhar Thomé de Souza ao
Brasil. Desenvolveu um intenso trabalho missionário, do qual resulta, em 1554
a fundação do Colégio do Planalto de Piratininga, que foi o núcleo de onde se
desenvolveu a cidade de São Paulo. Em colaboração com Anchieta,
conseguiu pacificar os Tamoios em 1563. Com a fundação da cidade do Rio de
Janeiro, no mesmo ano, tornou-se superior do Colégio Jesuíta aí estabelecido.
Morreu em 18 de Outubro de 1570 no Rio de Janeiro.
A primeira carta de Nóbrega é de abril de 1549, enviada para Portugal
após ter chegado a Salvador. Apesar de pouco tempo de Brasil é um relato
detalhado da vida cotidiana da capital da América portuguesa. A primeira
observação, como um bom jesuíta dos primeiros tempos, é sobre a moral dos
habitantes da Bahia. (Olivieri e Villa, 1999: 45).
Logo os jesuítas iniciaram o trabalho de evangelização dos índios,
começaram com as crianças, aprendendo-lhes a língua. Aos adultos pregava
contra a poligamia e a antropofagia. A preocupação com a nudez dos
indígenas, levou Nóbrega a já ensaiar os primeiros passos da especificidade do
Cristianismo brasileiro: “o que diriam os irmãos de Coimbra se souberem que
por falta de algumas ceroulas deixa uma alma de ser cristã e conhecer a seu
Criador e Senhor e dar-lhe glória”. (Olivieri e Villa, 1999: 45-46).
O “Diálogo sobre a conversão do gentio” foi escrito entre 1556 e 1557.
Através de uma conversa, Nóbrega discute aspectos práticos, morais e
religiosos da relação entre os colonizadores e os índios, defendendo a tese de
que estes não deveriam ser escravizados, pois têm alma como os cristãos.
No começo do ano de 1556, o governador-geral do Brasil Duarte da
Costa, tinha se envolvido em uma contenda com o Bispo Pedro Fernandes
Sardinha. No mesmo ano, Duarte da Costa conseguiu derrotar os índios da
67
Bahia. Estimulado por essa derrota (dos índios), Nóbrega decidiu viajar para a
Bahia com o intuito de ajuntar algumas aldeias em uma povoação com a
finalidade de converter os índios e lhes tirar o costume de comer carne
humana. (Eisemberg, 2000: 92-93).
Duarte da Costa negou-lhe ambos os pedidos, pois o rei havia ordenado
que nenhum índio fosse coagido a fazer qualquer coisa contra a sua própria
vontade. A idéia de forçar os nativos a se mudarem para novas aldeias era
expressamente contrária à vontade real. Foi nesse momento de profunda
irritação com a inércia administrativa do governador, que não atendeu
prontamente aos pedidos dos jesuítas que Nóbrega escreveu O Diálogo sobre
a Conversão do Gentio, no qual ele tenta demonstrar aos seus colegas jesuítas
a necessidade mais do que eminente de uma reforma do projeto missionário,
sistematizando argumentos em prol da continuidade das missões religiosas no
novo mundo. Nóbrega faz um estudo comparado das formas de paganismo
com vistas à conversão e salvação dos infiéis e escolhe comparar os Tupis ao
que ele chama de “pagãos da antigüidade”, só se interessando em dividir os
povos pagãos entre civilizados e selvagens.
O argumento usado por Nóbrega, não se refere à violência dos colonos
contra os índios e nem defende o direito da coroa portuguesa sobre as terras
do Novo Mundo; o jesuíta preocupa-se em resolver dilemas teológicos
originados nas práticas missionárias da ordem e em reavivar o ânimo
missionário dos seus colegas e foi escrito somente para circular entre os
padres jesuítas: “porque me dá o tempo, lugar para me alargar, quero falar com
meus irmãos o que meu spírito sente”. (Eisenberg, 2000:95).
Embora Nóbrega negasse haver religião entre os índios, podem ser
extraídas informações de valor etnográfico e histórico importantíssimas sobre a
religiosidade tupi no momento do “encontro”.
Sobre o Deus cristão, Nóbrega diz que eles (os índios) são tão bestiais
que não lhes entra no coração coisa de Deus.
Que são tão encarniçados em matar e comer, que nenhuma bem-
aventurança sabem desejar; “pregar a estes é pregar em deserto a pedras”.
68
Qualifica o profeta indígena como feiticeiro, embusteiro e servidor do
Diabo. E diz que esses homens, dotados de singular capacidade de lidar com
os espíritos, são reconhecidos como portadores de mensagens divinas, razão
pela qual transitam livremente pelas aldeias mesmo inimigas. Eles prometiam
aos índios o êxito total nos combates, e os instigavam a sair em busca da Terra
sem Mal. Sobre a Terra sem Mal, ele dizia:
Lugar de abastança, onde os víveres não precisariam ser plantados,
nem colhidos, e as flechas caçariam sozinhas no mato; fonte de
imortalidade, de eterna juventude, onde as velhas se tornariam moças,
espécie de juventa tupi. (Leite, 1954: 150).
A associação com a guerra e a antropofagia aparece de forma evidente
nesse relato, e Nóbrega a percebe bem, uma vez que a valentia era condição
essencial para ingressar na Terra sem Mal.
Muitas festas e bailes comemorativos eram preparados para a chegada
do profeta/caraíba, as quais, no entender de Nóbrega, “preludiavam a
cerimônia maior”. A confissão, somente das mulheres, a qual, não obstante
descrita em termos visivelmente cristãos, aparece registrada em outras fontes
e, no relato de Nóbrega, parecia funcionar também como rito preparatório.
Existia uma espécie de maloca de culto, a “casa escura”, uma certa morada
especial, onde o profeta/caraíba invocava os espíritos e tornava-se por eles
possuído.
Outro ritual importantíssimo era a personificação da cabaça, que
Nóbrega dizia aparentar “figura humana”. Trata-se do maracá, “instrumento
mágico feito do fruto seco da cabaceira, que funcionava como chocalho nas
danças tupis, furado nas extremidades, perpassado por uma seta feita de
brejaúba, enchido com milho miúdo, sementes ou pedras e adornado com
penas e plumas de arara”. Todo maracá possuía força mística produzida pelo
som, energia que somente o mesmo caraíba lhe poderia dar. Esta era uma das
formas de provocação para o acontecimento do transe místico em que entrava
o caraíba em contato com o maracá principal, modificando a voz e fazendo-se
de espírito nele encarnado. “espírito de que o maracá era receptáculo
apossava-se do pregador, habilitando-o a profetizar”. Não é sem razão,
69
portanto, que alguns estudiosos afirmam que o maracá era a personificação
mística do caraíba.
Nesses rituais, acontecia uma possessão coletiva que tomava conta dos
participantes da cerimônia e Nóbrega a percebeu, sobretudo, entre as
mulheres com salivações, tremores, tombos, embora não esclareça de que
modo a possessão do caraíba se transferia aos demais; e todos os presentes
eram obrigados a participar da cerimônia, senão eram ameaçados . O que em
Nóbrega não apareceu senão como reprimendas “a quem isto não faz tem-lho
a mal”.
Quanto ao emprego da palavra santidade (santa), Nóbrega o fez em
quatro diferentes acepções:
- Santidade é a virtude do “feiticeiro” (caraíba), recebido com festa na aldeia
por ser capaz de se comunicar com os espíritos e mesmo de encarná-los;
- Santidade é o espírito (santo e divino) que a cabaça mágica abriga, o qual se
transfere ao próprio “feiticeiro”;
- Santidade é a possessão coletiva que o “feiticeiro” transmite a seus
seguidores, concluída a pregação sobre as excelências da “terra da
abundância”;
- Santidade é também um engano, um embuste, uma falsa virtude de quem,
parecendo ser profeta, não passa de agente do diabo. (VAINFAS, 1995: 53-
55).
2.4.2 - O Relato de Thévet.
A análise do relato de André Thevet, está baseada nos livros
Singularidades da França Antártica a que outros chamam de América” de
André Thevet, “Cronistas do Descobrimento” de Antonio Carlos Olivieri e Marco
Antonio Villa e em Ronaldo Vainfas “A Heresia dos Índios”.
Nada se sabe sobre a infância e a mocidade de André Thevet (1502-
1590), exceto que teria ingressado ainda jovem na ordem dos Franciscanos.
70
Tornando-se frade, empreendeu uma longa viagem cujo roteiro incluiu a Itália,
a Grécia, Constantinopla (atual Istambul, na Turquia), ilha de Chipre, Ásia
Menor, Egito e ilha de Malta. A partir de suas observações de viajante,
produziu a obra Cosmographie du levant, sobre os países percorridos.
Públicou-a na sua volta à França em 1554.
No ano seguinte, Thévet embarcou com Villegaignon para o Brasil, na
tentativa de estabelecer aqui uma colônia francesa, batizada de França
Antártica; permaneceu aqui de novembro de 1555 a janeiro de 1556. Data de
1557 a rimeira edição de As singularidades da França Antártica, em que relata
sua aventura bem como descreve a terra que conheceu. Além das informações
sobre a terra o autor também levou para a França o tabaco, sendo considerado
o introdutor desta planta em seu país.
Sua vida depois dessa data também permanece pouco conhecida. O
frade teria sido capelão de Maria de Médicis (que se tornou rainha da frança
em 1600) e historiador oficial do rei Henrique IV. Abandonou o hábito
franciscano, retornando à vida secular, para dedicar-se aos estudos históricos
e geográficos. Em 1571, publicou a Cosmographie Universelle, que se tornou
sua obra mais conhecida.
Os estudiosos supõem que Thévet tenha origem familiar pobre e tenha
estudado tardiamente, obtendo uma formação deficiente. O fato se reflete em
suas obras, em que se encontram freqüetemente erros e concepções errôneas.
Além disso, são comuns as citações de autores clássicos, como tentativa de
demostrar uma erudição que, efetivamente, não possuía. Por outro lado,
Thévet escreve bem: seu estilo é marcado pela simplicidade e pela
objetividade, que se impõe mesmo nas passagens de maior pedantismo.
Em grande parte, as informações deste relato, resultam de contatos
diretos que o padre manteve com os Tupinambás no Rio de Janeiro, durante
cerca de três meses.
As Singularidades da França Antártica apresenta linearmente a viagem
do autor, desde a partida do porto Havre, na França (1555), até o retorno ao
mesmo país no ano seguinte. De seus oitenta e três capítulos, a grande
maioria refere-se ao Brasil, como observações geográficas, botânicas e
71
antropológicas. Entretanto, narra-se pormenorizadamente o roteiro de viagem
até aqui, bem como a jornada de volta, passando pelo Canadá. Sobre o livro,
vale a pena transcrever algumas observações do Professor Estevão Pinto que
o editou em português, em 1944:
“Espurgada de seus Aristóteles e de seus Plinius, posto de lado o moralista
ingênuo e simplório..., a obra de Thévet é útil e interessante. Os estudos sobre
a antropofagia dos tupinambás estariam incompletos sem a obra Thévet”.
(Olivieri e Villa, 1999:58).
Reforçando as palavras do professor, são muito importantes as
descrições de Thévet sobre os pajés, as práticas mortuárias e as idéias a
respeito da imortalidade da alma.
O relato de Thévet é mais demonizador do que a carta do jesuíta,
Manoel da Nóbrega. Sobre a religião dos selvagens americanos, ele diz que os
índios vivem sem lei e sem religião; de nenhum modo sabem orar ou venerar.
Sobre os pajés, estes “são falsos profetas e magos da terra, se
comunicam com os espíritos malígnos, são curandeiros, interpretam sonhos,
ou seja, os pajés ou caraíbas são pessoas de má vida que se dedicam a servir
o diabo”; ele também fala em idolatria ao aludir à reverência com que os
nativos tratavam os pregadores: ...”Eles são muito respeitados por todos os
membros da tribo, que fazem reverência na presença desses pregadores, e
que também são os poderosos curandeiros”. (Thévet, 1944: 176,178, 214-220).
Sobre as cerimônias, Thévet escreve que estas tinham um caráter
secreto, fato que não é confirmado no relato dos outros cronistas. A invocação
do espírito durava cerca de uma hora, se revelando através de pios e assovios,
também podendo se manifestar “no meio do povo reunido”. Ao final destas
cerimônias, o pajé saía da choça e, rodeado pelos índios, contava-lhes o que
os espíritos lhes havia dito. Esses pajés tinham uma vida itinerante, de tempos
em tempos visitavam aldeias, sendo recebidos sempre “com toda a honra e
consideração” e sempre “alimentados e sustentados de tudo”. Estes caraíbas
viviam, de certa forma isolados, numa choça nova, na "casa escura", como
disse Nóbrega, com rede branca e limpa. Víveres e cauin eram armazenados
para o seu consumo. (Thevet, 1944: 217-218).
72
Da sepultura e demais cerimônias mortuárias dos selvagens (Capítulo
XLIII), ele descreve os funerais e seus processos de inhumação.
Quando a alma se separa do corpo, os selvagens, não obstante a rudeza
natural, sepultam o cadáver no próprio sítio em que a criatura tinha em vida,
satisfação de estar. Segundo dizem, não há lugar mais nobre para o defundo
do que a terra. É a terra que gera o homem. A terra que produz tantos belos
frutos, tantas riquezas úteis e necessárias ao uso de todos. (Thevet, 1944:
258).
Para Thevet, os selvagens, embora rudes e ignorantes, são mais
racionais que muitos outros povos; a inhumação do corpo e suas cerimônias
conexas são práticas aprovadas pela Sagrada Escritura. Por outro lado, a
sepultura corresponde à esperança de futura ressurreição e permite que o
corpo aguarde esse dia em segura guarda. (Thevet, 1944: 258-260).
No texto Cosmografia Universal, Thévet descreve a mitologia heróica
dos tupis e nos conta em detalhes sobre a instituição dos caraíbas; profetas
vistos como um deus similar aos heróis da mitologia grega. Thévet menciona a
palavra santidade, quando se refere à comitiva que seguia o caraíba em suas
andanças. (Thevet, 1978: 262).
2.4.3 - O Relato de Hans Staden.
A análise do relato de Hans Staden está baseada no livro do prórpio
autor “História Verídica e descrição de uma terra de selvagens”, (1981), pelo
ensaio de Fernando A Novais, intitulado “O ‘Brasil’ de Hans Staden” (1997),
que nos oferece uma preciosa contribuição sobre o primeiro século do país.
Brasil entre aspas, pois sem aspas, como nação e como estado, seria gestado
apenas tardiamente, em plena colonização portuguesa nessa parte da
América, “ Hans Staden - Primeiros registros escritos e ilustrados sobre o
Brasil e seus habitantes” de Mary Lou Paris e Ricardo Ohtake (1999). Também
pesquisei em Antonio Carlos Olovieri e Marco Antonio Villa “Cronistas do
Descobrimento” (1999).
73
Ritual antropofágico. STADEN, Hans , Primeiros registros escritos e ilustrados sobre o Brasil e
seus Habitantes. 1557.
São escassos os dados sobre a vida de Hans Staden (Século XVI).
Nasceu em Hessen, na Alemanha. Empreendeu duas viagens ao Brasil. Na
primeira, embarcou como artilheiro numa nau portuguesa que veio a
Pernambuco em 1547 e retornou a Lisboa no ano seguinte. Na segunda, em
1550, veio incorporado na armada do espanhol Diogo de Sanábria, que
pretendia fundar um povoado na costa da ilha de Santa Catarina e outro na
embocadura do rio da Prata. Seu navio naufragou no litoral paulista e os
sobreviventes seguiram para São Vicente, onde o alemão agregou-se aos
74
portugueses. Em 1553, Staden foi nomeado condestável da fortaleza de
Bertioga, por Tomé de Souza. No ano seguinte, foi aprisionado pelos
tupinambás. Permaneceu cativo na aldeia do chefe Cunhambebe, entre
meados de janeiro e 31 de outubro. Freqüentemente ameaçado de morte e de
ser devorado num ritual antropofágico da tribo, conseguiu adiar a sua morte ao
longo dos meses, até ser resgatado por um navio francês. Nele retornou à
Europa seguindo para sua cidade natal. (Olivieri e Villa, 1999: 83,84).
O relato de Hans Staden sobre sua vinda ao Brasil no século XVI, pode
parecer uma história infantil, com personagens criados para preencher o
imaginário com aventuras, naufrágios, armadilhas e fugas numa terra de
canibais. Mas sua história é real, e seu relato é a primeira grande reportagem
escrita e iustrada sobre os habitantes da terra então recém-descoberta. É,
como diz o longo título da edição original, “Uma História Verídica e a Descrição
de uma Terra de Selvagens, Nus, e Cruéis Comedores de Seres Humanos”
que o aventureiro alemão conheceu. (Paris, 1999: 7).
O relato é enriquecido com xilogravuras feitas a partir das descrições de
Staden. Estes documentos são fundamentais para a compreensão da formação
do Brasil e despertaram enorme interesse desde a primeira vez em que foram
publicados, em Marburgo na Alemanha.
Depois da primeira edição de seu livro, várias reedições se sucederam
nesse mesmo ano. A obra foi traduzida para o flamengo, o holandês, o latim e
o francês. A primeira edição em língua portuguesa apareceu somente em 1892,
e em 1930, lançaram uma edição com texto traduzido do original, por Alberto
Löfgren e notas de Teodoro Sampaio. É esta edição que será utilizada no
presente estudo. “Duas Viagens ao Brasil”, que está dividida em duas partes. A
primeira narra a chegada do viajante ao país e sua captura pelos índios. A
Segunda descreve, com precisão etnográfica, os nativos e seu modo de vida,
tornando uma das principais fontes históricas e antropológicas acerca dos
indígenas no início da colonização do Brasil, no século XVI. (Olivieri e Villa,
1999: 85)
Ao afirmar que outros poderiam testemunhar que a história contada por
ele era verdadeira, Hans Staden descreve sua experiência à respeito da terra e
dos primeiros habitantes do Brasil, seus cruéis inimigos. Neste estudo serão
75
analisadas somente as questões onde o cronista relata as práticas religiosas
por ele observadas.
Em Staden, praticamente não existe a demonização dos costumes
tupinambá. Ele nos informa mais sobre o caraíba ou pajé e quase nada sobre a
Terra sem Mal. Sobre o pajé, afirma que estes “portavam um espírito que vinha
de longe, de lugares estranhos, da terra da imortalidade”; e que o pajé exortava
os índios a guerrear, a apanhar prisioneiros e comê-los. Esses pajés eram
pregadores itinerantes, considerados “adivinhos”, que visitavam cada aldeia
uma vez por ano e seu poder era transmitido aos maracás que falavam por seu
intermédio. Os maracás eram um tipo de chocalho fabricado pelos índios.
(Paris, 1999: 115).
Os bailes e cantos que precediam a cerimônia duravam dias... A grande
cerimônia acontecia numa cabana especial, “a casa escura” de Nóbrega, ou a
“choça nova” de Thévet, da qual eram retiradas as mulheres e as crianças,
enquanto os homens de fora, pintavam e enfeitavam seus maracás com penas.
O transe do pajé ocorria por meio do fumo de uma erva, Staden escreve
bittin, depois de fumar, defumava cada maracá e chocalhava-o, exortando os
índios à guerra. (Staden, 1981: 101-103)
Staden afirma que, “Quanto ao verdadeiro Deus, que criou o céu e a
terra, eles não dão atenção”. Eles crêem que o céu e a terra sempre existiram.
Tampouco sabem qualquer coisa sobre o início do mundo, apenas contam que
certa vez houve um grande mar onde todos os antepassados se afogaram.
Somente alguns deles teriam se salvado numa grande barca e outros em
grandes árvores. Para o cronista, esse mito devia se tratar do dilúvio.
Ele considerou os gentios como gente tola e iludida. (Staden,1981:102).
2.4.4 - O Relato de Jean de Léry.
A análise sobre o relato de Jean de Lery, foi baseada principalmente no
livro do prórpio autor “Viagem à Terra do Brasil” (1960); em Ronaldo Vainfas “A
Heresia dos Índios” (1995) e em “Cronistas do Descobrimento” de Antonio
Carlos Olivieri e Marco Antonio Villa (1999).
76
O francês Jean de Léry (1534-1611) pertencia a uma família de
burgueses da Borgonha, que aderiram rapidamente ao movimento da Reforma
Calvinista. Assim, aos 18 anos, seguiu para Genebra, que Calvino havia
transformado numa cidade-igreja e centro de difusão de idéias reformistas.
Artesão e estudante de teologia em 1555, Léry seguiu viagem para o Brasil no
ano seguinte, para se estabelecer na Colônia Francesa fundada por
Villegaignon. Aqui permaneceu por dois anos. Os desentendimentos entre
calvinistas e papistas da ilha de Coligny, sede da Colônia, levaram-no ao
continente, onde conviveu com os índios, observando atentamente seu modo
de vida.
Retornou a Genebra em 1558, onde completou seus estudos de teologia
e se tornou ministro protestante. Participou das guerras de religião que
dividiram católicos e protestantes da França, desde 1568, deixando uma
Narrativa do cerco de Sancerre (1574). Voltou então para Genebra,
permanecendo em território suiço, mesmo após o Édito de Nantes (1598) que
pôs fim às guerras de religião e definiu os direitos dos protestantes na França.
A obra de Léry sobre o Brasil tem como título original Narrativa de uma
viagem feita à terra do Brasil, também dita América, contendo a navegação e
coisas notáveis vistas do mar pelo autor: a conduta de Villegaignon naquele
país, os estranhos costumes e modos de vida dos selvagens americanos; com
um colóquio em sua língua e mais a descrição de muitos animais, plantas e
demais coisas singulares desconhecidas aqui. Foi escrita dezoito anos após a
estada do autor no Brasil e publicada em 1578, obtendo enorme sucesso junto
ao público europeu: rapidamente conheceu novas edições e foi traduzida para
o holandês, o alemão e o latim.
A narrativa apresenta os momentos iniciais da França Antártica,
detendo-se em seguida nas descrições da terra e do modo de vida dos seus
nativos.
É justamente a parte relativa aos indígenas que destaca o texto do autor,
transformando-o num referencial dos estudos antropológicos brasileiros. Léry
revela em toda a sua obra uma qualidade notável, de paixões e preconceitos,
senso da relatividade dos costumes, e uma certa ‘simpatia’, que conduz à
77
compreensão dos semelhantes e à análise objetiva de suas atitudes, essas
observações podem ser verificadas no texto que vem a seguir; o calvinista que
esteve no Rio de Janeiro entre 1557 e 1558, presenciando no local as
cerimônias em questão. Contam que ele abriu com as próprias mãos, um
buraco na maloca, entrando sem ser molestado pelos índios. Descreve os
rituais da “santidade” tupinambá como um ritual demoníaco, um verdadeiro
sabá, considerando as mulheres tocadas pelos espíritos dos maracás, como
possuídas pelo diabo”. Também considerou esses caraíbas, embusteiros e
incentivadores de idolatrias. (Léry, 1960, 191-195).
Léry faz referência a Terra sem Mal, que ficava “além das montanhas”,
morada dos ancestrais e lugar de abundância, onde os frutos e raízes cresciam
sozinhos. (Lery, 1960: 180).
Sobre os rituais, Léry afirma que os caraíbas eram profetas itinerantes,
que “percorriam as aldeias a cada três ou quatro anos, agindo a sós ou em
grupo”; com a sua chegada, as mulheres, homens e crianças eram separadas
em malocas diferentes. Havia muita agitação, muita cantoria: “as mulheres
urravam, saltavam com violência, agitavam os seios e espumejavam pela boca
até desmaiar”. Todos os homens dançavam unidos em volta dos caraíbas,
ricamente adornados de plumas, cocares, máscaras e braceletes de diversas
cores. Ele também pode observar que “de quando em quando tomavam uma
vara de madeira em cuja extremidade ardia um chumaço de petun e voltavam-
na acesa para todos os lados soprando a fumaça contra os selvagens
dizendo”:
“Para que vençais os vossos inimigos recebei o espírito da força!” E repetiam-
na por várias vêzes os astuciosos caraíbas. (Lery, 1960: 194).
Os caraíbas sacudiam seus maracás, dançavam e, no final da cerimônia
fincavam os maracás no chão, que ali permaneciam durante duas a três
semanas, após o que “lhes atribuem santidade e os trazem sempre nas mãos,
dizendo que ao soarem os espíritos lhe vêem falar”. (Léry, 1960: 196).
78
Acreditavam não só na imortalidade da alma assim como na
ressurreição dos corpos. Eles diziam que as almas dos mortos que viveram
dentro das normas consideradas certas, vão para além das altas montanhas
dançar em lindos jardins com as almas de seus antepassados, ao contrário, as
almas dos covardes vão ter com Ainhãn, nome do diabo que as atormenta sem
cessar:
... depois da morte, as que viveram dentro das normas consideradas certas,
que são as de matarem e comerem muitos inimigos, vão para além das altas
montanhas, dançar em lindos jardins com as almas de seus avós. (Lery,
1960:188).
Muita semelhança existe entre os relatos do que viram e descreveram
esses observadores quinhentistas a importância dos caraíbas itinerantes, a
pompa da cerimônia em que pregavam, as alusões à Terra sem Mal, o transe
coletivo, a ingestão de uma espécie de fumo ou planta alucinógena, a
defumação, o caráter mágico dos maracás, as exortações à guerra, entre
outros. Todas estas referências são de fundamental importância para a análise
da religião indígena assim como para a abordagem sobre o profetismo tupi que
será descrito no próximo capítulo. (Vainfas, 1995: 21-34).
2.5 - Quadro Comparativo dos Relatos dos Cronistas Quinhentistas
No quadro comparativo serão expostas as visões dos cronistas sobre
diversos aspectos da cultura indígena. Suas crenças, seus rituais, suas
cerimônias, enfim, aspectos que se relacionam à religiosidade ameríndia.
Manoel da
Nóbrega
André
Thevet
Hans
Staden
Jean de
Léry
Sobre o Deus
Cristão
Não sabem
que coisa é
crer nem
adorar. Não
Quanto ao
verdadeiro
Deus, que
criou o céu e a
Não têm
conhecimento
algum do
verdadeiro
79
lhes entra no
coração
coisa de
Deus.
terra eles não
dão atenção.
Deus.
Sobre as
divindades
indígenas
Os indígenas
vivem sem lei e
sem religião.
De nenhum
modo sabem
orar ou
venerar. Se
alguém lhes
fala de Deus,
escutam
adm
irados e
atentos. Fazem
menção a um
grande senhor
Tupan,
que lá
do alto faz
trovejar e
chover. 176-
180
Eles crêem, de
acordo com
tradições
antigas, que o
céu e a terra
sempre
existiram.
Tampouco
sabem alguma
coisa sobre o
início do
mundo.
Não adoram
quaisquer
divindades
terrestres ou
celestes como
os idólatras que
veneram o sol
ou a lua. Não
têm nenhum
ritual nem lugar
determinado de
reunião para a
prática de
serviços
religiosos. Não
oram em
público nem em
particular.
Sobre os
Pajés Caraís
Caraíbas ou
Profetas
Feiticeiro,
Embusteiro,
Servidor do
Diabo,
homens
dotado de
singular
capacidade
de lidar com
Falsos profetas
e mag
os desta
terra se
comunicam
com espíritos
malígnos;
curandeiros,
interpretam
sonhos;
Os pajés são
como os
adivinhos.
Percorrem o
território uma
vez ao ano,
vão de cabana
em cabana e
anunciam que
Falsos profetas
que andam de
aldeia em
aldeia como os
tiradores de
ladainha; se
comunicam
com os
espíritos; dão
80
os espíritos e
reconhecidos
como
portadores
de
mensagens
divinas,
razão pela
Qual
transitavam
livremente
pelas aldeias
mesmo
inimigas.
pessoas de má
vida que se
dedicam a
servir ao diabo.
Levavam uma
vida itinerante,
“errando aqui e
ali pelas
matas...”
Visitando as
aldeias e
sendo
recebidos com
toda honra
e
consideração,
como se
fossem
deuses.
um espírito
vindo de muito
longe esteve
com eles e
lhes delegou
poder. Os
pajés podem
dar poder aos
marac
ás para
que possam
falar.
força a quem
lhes apraz,
para vencer e
suplantar os
inimigos nas
guerras. Os
caraíbas são
iguais aos
frades
pedintes,
iludem e
enganam, são
trapaceiros
gabando-
se de
fazer crescer
frutos e raízes.
Sobre a Terra
Sem Mal
Lugar de
abastança,
onde os
víveres não
precisariam
ser
plantados,
nem
colhidos, as
flechas
caçariam
sozinhas no
mato; fonte
de
Depois da
morte as
pessoas que
viveram dentro
das normas
consideradas
certas, que são
as de matarem
e comerem
muitos
inimigos, vão
para além das
altas
montanhas
81
imortalidade,
de etern
a
juventude
onde as
velhas se
tornariam
moças.
dançarem em
lindos jardins
com as almas
de seus avós.
Sobre os
Maracás
Instrumento
mágico feito
do fruto
fresco da
cabaceira.
Funcionava
como
chocalho nas
danças tupis.
A
personificaçã
o da cabaça
aparentava
figura
humana.
Todo manacá
possuía uma
força mística
produzida
pelo som,
energia que
somente
o
caraíba, lhe
poderia dar.
Os selvagens
acreditam
numa coisa
parecida com
uma abóbora.
Eles enfiam um
bastão através
dela, recortam
um buraco com
a forma de
boca e
colocam
algumas
pedras em seu
interior de
modo a fazer
um chocalho.
Com isso
fazem barul
ho
quando cantam
e dançam.
Cada homem
tem o seu
próprio maracá
Instrumento
utilizado pelos
caraíbas nas
cerimônias
festivas.
Enfeitados com
as mais
bonitas penas,
fincam-
nos ao
lado das casas
e ordenam que
lhes sejam
dado comida e
bebida. Em
geral deixam
assim, os
maracás de 15
dias a 3
semanas, após
o que lhes
atribuem
santidade.
82
Sobre
Imortalidade
da Alma
Os selvagens
julgam que a
alma, a quem
chamam
Cherrepicouare
, seja imortal.
As almas
seguem em
companhia de
seus
antepassados.
Alguma luz
atravessa as
trevas de sua
ignorância.
Acreditam na
imortalidade da
alma e na
ressurreição
dos mortos.
Sobre
Demônios ou
Espíritos
Malígnos
Um mal
espirito que se
apresenta sob
var
ias formas.
Chamam-lhe
Agnan.
Adoram o
diabo por meio
de seus
ministros
chamados
Pajés.
Essa pobre
gente é afligida
durante a vida
por espíritos
malignos que
também
chamam
Kagerre
e
também
Ainhãn.
Os
endiabrados
Ateus
procuram fazer
crer que Deus
não e
xiste. Nos
selvagens
encontraram
pelo menos a
prova da
existência do
diabo.
83
Sobre o
Dilúvio
... Contam que
certa vez
houve um
grande mar
onde todos os
antepassados
se afogaram.
Somente
alguns deles
se salvaram
numa grande
barca e outros
em grandes
árvor
es. Penso
que devia se
tratar do
Dilúvio.
Celebram em
suas canções
o fato das
águas terem
transbordados
por tal forma
em certa
época, que
cobriram toda
a terra,
afogando todos
os homens do
mundo, à
exceção de
seus
antepassados
que se
salvaram
trepando nas
árvores mais
altas do país.
Sobre
Antropofagia
São tão
cruéis e
bestiais...
carniceiros
de corpos
humanos, a
todos matam
e comem.
Não hesitam
em matar e
devorar um
cristão à
semelhança do
que fazem a
seus inimigos.
O Pajé
exortava os
índios a
guerrear,
ap
anhar os
prisioneiros e a
comê-los.
Vingavam seus
inimigos,
aprisionando-
os e comendo
o maior
número
possível belo
exemplo da
natureza
corrupta do
homem.
84
Sobre as
Cerimônias
Indígenas
Ocorrências
de bailes e
festas
comemorativ
as da
chegada do
profeta /
Caraíba;
transe
místico em
que entrava o
caraíba em
contato com
o maracá,
modificando
a voz e
fazendo-se
espírito nele
encarnado.
Possessão
coletiva;
sobretudo,
entre as
mulheres,
com
salivações,
tremores e
tombos.
Quando os
indígenas
querem saber
algo novo
e
importante,
usam de certas
cerimônias e
invocações
diabólicas.
(217)
Cerimônias
funerárias com
processos de
inhumação.
Sepultam os
cadáveres no
próprio sítio e
acreditam na
ressurreição.
Bailes e cantos
precediam a
cerimônia
comemorativa
da chegada do
P
ajé. A grande
cerimônia
ocorria numa
“cabana
especial”. O
transe do Pajé
ocorria por
meio do fumo
de uma erva
especial
(bittin)
ou tabaco.
O Pajé
defumava cada
maracá e
exortava os
índios à
guerra. O
derradeiro rito
era a
transformação
dos maracás
em Ídolos.
Ao chegarem
os caraíbas,
homens,
mulheres e
crianças eram
separados em
malocas
diferentes de
onde se
punham a
gritar e a
cantar. Alguns
talvez
entrassem em
transe, pois,
urravam,
saltavam com
violência,
espumejavam
pela boca até
desmaiar... Na
maloca, d
os
homens, todos
dançavam em
volta dos
caraíbas,
ricamente
adornados de
plumas,
cocares,
máscaras e
braceletes de
85
diversas cores.
Sobre o que
é chamado
de Idolatria e
Heresia
A
representaçã
o humana do
maracá como
indicativa de
idolatria, ou
seja, do cul
to
de um ídolo.
Reverenciam
altamente seus
profetas: os
pajés ou
caraíbas, ou
seja, eles são
o mesmo que
semideuses.
São realmente
idólatras.
No final da
cerimônia, dos
bailes e
cantos, os
maracás eram
transformados
em ídolos,
após o que
lhes atribuem
sa
ntidade e os
trazem sempre
nas mãos
dizendo que ao
soarem os
espíritos lhe
vêem falar.
2.6 - Descrição sobre os selvagens e sua religiosidade.
Aspectos da “não-religiosidade” Indígena no Brasil Colonial
Representantes da Igreja Católica Romana afirmavam que os índios não
tinham alma, que eram como os animais; e que, portanto eles estavam fazendo
um enorme bem em cristianizá-los, salvando suas almas do “pecado e da
condenação eterna” através do batismo. Os missionários eliminavam com isso
seus nomes de origem, numa tentativa de assim tirar-lhes suas identidades.
(Vainfas, 1995:23).
O Batismo tinha essa função: para as comunidades indígenas,
significava a transformação dos costumes. O rito batismal era a senha do
abandono dos “costumes bárbaros” e aceitação dos costumes cristãos. Sempre
que um índio era batizado, era imediatamente doutrinado. O batismo era a
86
prova da adaptação, além da troca de nome, fato dado por uma imposição da
ideologia religiosa cristã:
Ao passar para o cristianismo, as pessoas devem ser semelhantes aos
cristãos, mas não de uma semelhança qualquer e sim algo que
especifique sua condição de membro de uma comunidade ungida pelo
Verbo. Se a língua é sagrada, como nomear irmãos por nomes
exteriores, estranhos ao Código do Verbo? (Paiva, 1982: 6).
O novo nome faz renascer o batizado na comunidade cristã. Só isso já
bastaria para traduzir todo o significado do rito. No entanto, o novo nome é um
nome português. O índio deixa seu nome antigo, deixa de pertencer ao grupo
inominável em língua cristã e recebe um nome e um modelo. São lhe dados
nomes dos grandes portugueses, ou seja, os que se impuseram primeiramente
pela força das armas e, depois, pela força das palavras. (Paiva, 1982: 7,8).
Além do batismo, todo um pensamento político, muito bem elaborado
estava se construindo por trás dessas práticas missionárias. Nóbrega e seus
colegas realizaram uma polêmica reforma do empreendimento missionário, a
qual previa que os índios seriam forçados a viver de acordo com a cultura cristã
para logo depois serem persuadidos a se converter à religião de Cristo.
(Eisenberg, 2000: 21).
Os encontros do Novo Mundo levaram os Jesuítas no Brasil a escrever
etnografias sobre o índio Tupi-guarani, com a finalidade de justificar suas
práticas missionárias. Nessas etnografias os padres descrevem a conversão
dos nativos e os vários problemas que cercavam essa empreitada. Os Jesuítas
contam que as maneiras mais eficazes de se avançar na persuasão dos índios
era o aprendizado de sua língua e a cura de suas doenças. Mas, para
decepção dos missionários, os índios pareciam voltar rapidamente aos seus
costumes pagãos e esquecer a nova religião adquirida. O fracasso dos
primeiros esforços de catequização dos Jesuítas se deve às experiências
históricas que moldaram a institucionalização das Missões no Novo Mundo. Na
busca de novas maneiras de converter os pagãos através da perssuasão.
No Diálogo sobre a Conversão do Gentio (1556-1557), escrito por
Nóbrega, ele discute a condição natural dos indígenas e o papel da polícia
87
cristã na conversão dos pagãos. Sua investigação teológica e etnográfica o
levaram a buscar estratégias mais eficazes para a conversão. Em um
documento que ficou conhecido como Plano Civilizador (1558), Nóbrega
propôs a formação das Aldeias; essa nova instituição abrigava um grande
número de índios que ‘consentiram’ em se submeter ao governo dos Jesuítas
em troca de proteção contra as agressões dos colonos. Os índios que se
recusassem a entrar nas Aldeias poderiam ser escravizados pelos colonos
através de uma guerra justa movida pelas autoridades coloniais. Para N´brega,
a ameaça de violência justamente aplicada não significava coerção; pelo
contrário, dizia ele “os índios consentirão por medo”. (Eisenberg, 2000:21,22).
Essa justificação política para as Aldeias desenvolvida por Nóbrega, não
só tornou-se modelo para as missões Jesuíticas, como também deu origem a
uma fundamentação do poder político pelo medo e consentimento dos
governados (dominium); esse consentimento foi usado como uma causa
eficiente da autoridade política. Em 1567, Nóbrega comenta sobre uma nova
atitude: a “escravidão voluntária”, ou seja, os índios escravizados por eles
haviam vendido sua liberdade por livre e espontânea vontade. De acordo com
este pensamento, os índios maiores de 21 anos poderiam vender sua
liberdade, porque a liberdade é um direito que a pessoa possui como uma
propriedade. Em suma, essas mudanças conceituais introduzidas pelos
teólogos Jesuítas no pensamento político do Século XVI tiveram origem nas
reflexões contidas nas cartas dos missionários sobre o empreendimento de
conversão do gentio. (Eisenberg, 2000: 23).
2.6.1 - A invenção do indígena brasileiro
As Relações de viagem como fruto do processo de "invenção da
América", como diz O’Gorman, já foram e continuam sendo muito estudadas.
Basta pensar no próprio O’Gorman, em De Certeau, em Todorov, só para citar
alguns autores fora do Brasil ou, no Brasil, em Laura de Mello e Souza, em
Ronaldo Vainfas, em Ronald Raminelli, etc.
Não constitui nenhuma novidade, hoje, dizer que o indígena descrito nos
relatos dos viajantes e missionários é a alteridade radical que a Europa já
88
conhece bem de toda uma literatura clássica, medieval e renascentista. As
observações dos cronistas não surgem a partir da realidade indígena, mas,
ajudadas pela peculiaridade das culturas nativas, contam algo sobre seu
próprio sistema de crenças e valores. Os relatos de viagem, a partir de
Colombo, encontram e descrevem apenas o que já conhecem, do Reino do
Prestes João ao itinerário teológico, pois a argumentação decisiva não é a
prova empírica, mas o discurso de autoridade dos “eruditos e dos santos”.
Entre real e imaginário, as imagens e narrativas que os viajantes do século XVI
carregam consigo “Viagens sem rumo pelas ilhas, atrás das mágicas terras
descritas pelo aventureiro Marco Polo” fornecem uma imago mundi coerente,
sustentada e protegida pelo horizonte teológico. Mesmo quando as imagens
oníricas e fantásticas se apagam, a "observação" da realidade continua
ocorrendo através da mediação dos esquemas culturais familiares ao
observador, mediação esta necessária para organizar e até mesmo para
perceber os "fatos", pois a comparação das semelhanças é o único instrumento
de conhecimento e de compreensão cultural. (Pompa, 2005: 10-12).
A famosa análise de Michel de Certeau da História de uma Viagem à
Terra do Brasil, de Jean de Léry, por exemplo, mostra como a representação
histórica se transforma em referência literária pela prática da escrita
historiográfica. A narrativa é uma viagem em busca do eu, cujo produto final é a
invenção do Selvagem. Na véspera dos tempos modernos, as descrições de
Léry inauguram uma série de quadros análogos aos que os relatos de viagem
vão apresentar durante quatro séculos. (Pompa, 2005: 13-15).
2.6.2 - Povos sem superstição
Para comentar sobre as descrições dos cronistas à respeito da
religiosidade indígena, recorro aos textos de Cristina Pompa: "O mito do Mito
da Terra sem Mal: a literatura ‘clássica’ sobre o profetismo tupi-guarani".
(1998); e “Profetas e santidades selvagens. Missionários e caraíbas no Brasil
colonial” (2005).
No caso específico do domínio do "religioso", as descrições dos
viajantes e, sobretudo, dos missionários, clareiam a atitude do ocidente
89
evangelizador diante dos habitantes das Terras Brasilis: a descrição dos
"selvagens" e de sua religião, ou melhor, da falta desta, é uma construção que,
por um lado, é devida à impossibilidade de reconhecer nos índios o modelo de
alteridade religiosa oferecido pelo paganismo clássico e, por outro, é funcional
ao projeto catequético.
Com efeito, os cronistas recusam-se a ver fatos de ordem religiosa onde
a Igreja não manda encontrá-los; por isto, os selvagens Tupi-guaranis são tão
"bárbaros" que não têm religião. Mas, por outro lado, com eles precisa se
realizar o plano divino da pregação do Evangelho aos quatro cantos da terra.
Por isto, eles são "gentis", na concepção de São Paulo. Ou seja, não são
conhecedores da verdadeira fé, mas são capazes de recebê-la. Entre bárbaros
e gentis, entre selvagens e inocentes, entre a ausência de regras morais e a
presença de um fundo de humanidade que pode tornar o índio um bom cristão,
constrói-se o indígena na terra de Santa Cruz.
Entre os Tupi-guaranis, os missionários não encontraram nenhum sinal
da "idolatria" ou do "paganismo" que eles esperavam e que caracterizava
outras regiões do Novo Mundo, como o Peru incaico ou o México asteca:
crenças, sacrifícios, ídolos. Nos relatos, não apenas de missionários de
diversas ordens religiosas, ou até de diversas confissões, mas também de
viajantes leigos, esta ausência de crença, seja mesmo idólatra, junto com a
ausência de outros princípios da civilização que até os pagãos têm, é muito
clara. Com exceção dos maracás, que tinham um aspecto antropomórfico e
que no final das cerimônias, bailes e cantos, eram transformados em ídolos,
para alguns cristãos.
Pero Vaz de Caminha, poucos dias depois do "achamento", declarava
que "… eles, segundo parece, não têm nem entendem em nenhuma crença".
Também pouco tempo depois de sua chegada, em sua "informação das terras
do Brasil" (agosto de 1549), o padre Manuel da Nóbrega afirmava que "esta
gentilidad a ninguna cosa adora". Pero Magalhães de Gândavo, em 1570, e
Gabriel Soares de Souza, em 1587, escreviam que os índios não têm "nem fé,
nem lei, nem rei". Também para o jesuíta Cardim, "este gentio não tem
conhecimento algum de seu Creador, nem de cousa do Céo… e, portanto, não
90
tem adoração nenhuma, nem ceremonias, ou culto divino". (Pompa, 2005: 12-
16).
O cosmógrafo franciscano André Thevet, de volta da experiência na
"França Antártica", assim a descrevia em 1558:
"…esta região era e ainda é habitada por estranhíssimos povos
selvagens sem fé, lei, religião e nem civilização alguma, vivendo antes
como animais irracionais..."(Thevet, 1978:98).
Jean de Léry mostrou em várias ocasiões sua aberta simpatia para com
os "selvagens", cujas "barbáries" eram bem menores do que aquelas
cometidas pelos europeus dilacerados pelas guerras de religião. Contudo, ele
teve que reconhecer que é difícil aplicar aos selvagens Tupinambás a famosa
sentença de Cícero, de que não há nação tão bárbara e selvagem que não
tenha sentimento de uma divindade:
Pois, além de não ter conhecimento do verdadeiro Deus, não adoram,
quaisquer divindades terrestres ou celestes, como os antigos pagãos, nem
como os idólatras de hoje, tais os índios do Peru… Não têm nenhum ritual,
nem lugar determinado de reunião para a prática de serviços religiosos, nem
oram em público ou em particular. (Léry, 1960: 185).
As palavras de Léry voltam, praticamente idênticas, quase quarenta
anos depois da publicação de sua obra, no relato do capuchinho Claude
d’Abbeville, que traduz de forma mais articulada o espanto do ocidental
(eclesiástico) perante a "falta de religião" entre os Tupinambás:
o há, penso eu, nenhuma nação no mundo que não tenha uma religião.
Todas adoram a um deus, salvo a dos Tupinambás que não adora nenhum,
nem celeste nem terrestre, que não idolatra nem o ouro nem a prata nem as
madeiras, nem as pedras preciosas nem qualquer outra coisa. Não tinha, até
nossa chegada, religião; portanto não tinha sacrifícios, nem sacerdotes, nem
ministros, nem altar, nem templos ou igrejas. Nunca souberam os índios
Tupinambás o que fosse nem prece nem ofício divino nem oração pública ou
particular. … Não têm culto algum, nem interior nem exterior. (d’Abbeville,
1975: 251).
A extraordinária coincidência destas observações, é importante lembrar,
depende menos de uma coincidência de fatos observados do que da circulação
dos relatos entre os escritores. É patente o caso dos jesuítas, cujas cartas
circulavam, de acordo com as indicações do próprio Inácio de Loyola, em
91
várias traduções, entre a casa geral e as diferentes províncias. Também vale
lembrar a longa polêmica entre Thevet e Léry, que conheciam muito bem um a
obra do outro, e que por sua vez influenciaram os autores sucessivos, de
Montaigne ao próprio d’Abbeville. Todos eles parecem ter atingido uma
primeira fonte: a carta de Amerigo Vespucci a Lorenzo de Medici, datada de
1502: "Non tengono né legge né fede nessuna, vivono secondo natura. … non
hanno Re né ubidiscono a nessuno", como também o Mundus Novus: "nullum
habent templum et nullam tenent legem, neque sunt ydolatre”. Vespucci, de
fato, foi o primeiro teórico do "estado de natureza" dos selvagens, teoria esta
que também influenciou, como veremos, nossos autores. (pompa, 2005: 15).
A coincidência dos relatos dos viajantes revela também o grande debate
que estava se travando na Europa a respeito da natureza dos selvagens ou,
melhor, do "estado de natureza" deles: tratava-se, de fato, do processo de
releitura da identidade ocidental ante as novas humanidades que a descoberta
apresentava, através da construção de sua alteridade. O código religioso era, o
privilegiado na definição da alteridade pela concepção teológica dos
missionários. Mas aqui a construção dos outros esbarrava numa dificuldade: os
selvagens da terra de Santa Cruz não apresentavam aqueles elementos que
encontramos na longa lista de d’Abbeville e que definem o que é a Religião:
ídolos, templos, sacerdotes.
A recuperação da antigüidade clássica pela cultura humanista fazia com
que a comparação nós-outros se desse em termos de "paganismo": o
politeísmo pagão era a dimensão em relação à qual o monoteísmo cristão
pensava em si próprio. Por isto, o paganismo transformado em "idolatria"
constituía a necessária linguagem de reconhecimento e de comunicação com
as outras humanidades. Isto tinha funcionado na Índia e funcionava no México
e no Peru; mas o que fazer da humanidade Tupi-guarani, junto à qual não se
encontram os sinais identificáveis da existência de uma "religião"? (Pompa,
2005: 17).
A interpretação dos viajantes sobre a religiosidade indígena,
caracterizava-se então pela ausência, o que se apresentava como
impossibilidade de identificação de uma presença esperada: se não há ídolos,
sacerdotes e templos, não há religião.
92
2.6.3 - Os selvagens e a Palavra Divina.
Para dar continuidade a esta análise, usarei os textos de Cristina Pompa
“Profetas e santidades selvagens. Missionários e caraíbas no Brasil colonial”
(2005) e Ronaldo Vainfas “A Hersia dos Índios”, além dos textos dos próprios
cronistas quinhentistas.
Existe religião sem Deus? O conteúdo de um saber, imbuído de
Escolástica e Renascimento, entre projeto teológico medieval e cultura
humanista, tinha chegado à conclusão, codificada pela Bula Sublimis Deus de
1537, de que os americanos eram homens ("veri homines"), homens "naturais",
de acordo com a primeira noção de Vespucci. Também os homens da
natureza, principalmente estes, precisavam da palavra divina para que se
cumprisse a profecia da pregação do Evangelho aos quatro cantos do mundo.
Se esta falta de religião facilitava a catequese, eliminando o trabalho de
extirpação da idolatria e permitindo trabalhar num terreno virgem, por outro
lado a Escolástica mandava identificar no intelecto deste homem "natural" um
mínimo sinal da presença de Deus. (Pompa, 2005: 20).
Portanto, quase nas mesmas páginas em que declaram a ausência de
religião entre os Tupi-guaranis, os autores apontam para a presença desta
noção mínima de Deus entre os selvagens brasileiros. É uma contradição, não
apenas interna aos missionários mas à própria cultura ocidental do século XVI,
problema histórico e cultural posto pelo conflito entre o saber garantido pelas
certezas da fé e a nova razão "natural", entre os paradigmas medievais e o
novo sistema que está se construindo, como já foi exposto no ítem 2.6. Cristina
Pompa coloca a questão como “o novo sistema global que está se construindo
a partir da absorção das novas humanidades”. (Pompa, 2005: 8).
Em vários pontos de sua obra, Thevet e Léry lembram a máxima de
Cícero (e também a filosofia de Aristóteles, de Tomás de Aquino), segundo a
qual não existe povo tão bárbaro que não possua, por instinto, uma mínima
noção de divindade. E esta noção se concentra em Tupã, ser mitológico ligado
ao céu e ao trovão e, portanto, por analogia, à dimensão celeste do ser
supremo da religião judaico-cristã. (Lery, 1960: 188; Thevet, 1978: 176).
93
No que se refere a este assunto, os selvagens deste lugar mencionam
um grande senhor, chamando-lhe em sua língua, de Tupan,o qual
dizem lá no alto troveja e faz chover. (Thevet, 1978: 176).
A analogia é ainda mais clara no discurso jesuítico. Nas mesmas
Informações das terras do Brasil, em que declara a falta de crença entre esta
"gentilidade", Nóbrega acrescenta que os inacianos, por falta de outro termo
para indicar Deus, servem-se justamente de "Padre Tupana". Cardim se
expressa mais ou menos nos mesmos termos, mostrando a pedagogia jesuítica
que constrói o Tupã enquanto deus para, a partir dele, elaborar o projeto
catequético. A analogia ocasionada pelo caráter divino de Tupã é a mais
patente, mas há outras, como no caso da passagem do apóstolo Tomé ou o
conhecimento que os selvagens tinham do dilúvio. Trata-se, aqui, do que
Ronaldo Vainfas chama de "hibridismo cultural", derivante da "tradução do
catolicismo para o tupi e a tradução tupi do catolicismo". Esta questão será
abordada no Capítulo III. (Vainfas, 1995: 151-159)
Os indígenas, portanto, não tinham religião, mas apenas como era
possível em um povo "natural" uma vaga noção de divindade. O homem
natural trazia consigo, a possibilidade de uma religião, e de uma religião
monoteísta, conforme a teoria da "degeneração" em virtude do isolamento das
tribos do Brasil, depois da primeira Revelação.
A bula do papa Paulo III, além de reconhecer-lhes a dignidade de
homens, mandava trazer os índios para a fé cristã através da pregação do
Verbo de Deus e do exemplo. A imposição da religião dos conquistadores
encontrava assim sua plena legitimação, realizando a grandiosa profecia da
Conquista: a construção do Reino de Deus na Terra, com um povo virgem.
Aqui está um dos problemas conceituais da pregação missionária, nó
que, aliás, tinha dirigido teologicamente até a própria "descoberta": o
milenarismo cristão.
Muito já foi dito a respeito da visão escatológica e providencialista do
próprio Colombo, influenciado pelo meio franciscano ibérico no primeiro
capítulo. Colombo estava certo de estar realizando a profecia das Sagradas
Escrituras, "descobrindo" o novo céu e a nova terra, dos quais fala João no
Apocalipse (21,1), e apressando a história do mundo, conforme a promessa de
94
Mateus "...porém abreviar-se-ão aqueles dias em atenção aos escolhidos"
(Mat. 24,22).
Também, como descrito no Capítulo I, vários autores apontaram para o
caráter de "fim dos tempos" da pregação no Novo Mundo, intérpretes das
aspirações profético-apocalípticas de uma parte da cristandade perante a
reforma. Milenarista era d’Abbeville, basta pensar na primeira página da
Histoire de la Mission, de d’Abbeville, em que o capuchinho transcreve a
profecia de Mateus: "Et predicabitur hoc evangelium regni in universo orbe, in
testimonium omnibus gentibus, et tunc veniet consummatio." Também os
outros autores, como Thevet e Léry, não deixam de mencionar o fim dos
tempos e o juízo final, que coincidiria com a pregação da palavra de Deus aos
selvagens. (Pompa, 2005:10).
Nos jesuítas, este pendor profético é menos evidente, porque a
iminência do Apocalipse não condiz com seu projeto catequético de longo
prazo. O grande teórico da alteridade indígena pelo código religioso, Acosta,
dedica até sua obra De temporibus Novissimis à exegese do Apocalipse que,
para ele, não pode ser considerado tão próximo, já que o simples anúncio do
cristianismo a todas as gentes não significa uma verdadeira conquista espiritual
à fé cristã. Contudo, se pensarmos na visão edênica de Vasconcelos, que
coloca o paraíso terrestre no Brasil, ou no grande intérprete do milenarismo
barroco: Antônio Vieira, ou, principalmente, no grandioso projeto das reduções
jesuíticas do Paraguai como realização do Reino de Deus na terra, aparece
claro que os inacianos também foram sensíveis às instâncias proféticas que
animaram a conquista espiritual do Novo Mundo. (Pompa, 2005: 11).
A necessidade, filosófica e teológica, de atribuir aos índios umas
crenças, mesmo que vagas ou errôneas, obedecia a uma exigência cultural de
"ler" o outro e traduzi-lo e, por outro lado, traduzir o "eu" para o outro. Para isto
era necessário construir uma linguagem de mediação. No início da Idade
Moderna, o código prioritário de leitura e interpretação da realidade, inclusive
das alteridades antropológicas, ainda era o religioso; este último englobava
todos os outros: o moral, o político, o filosófico: os indígenas eram sem fé, sem
lei e sem rei. Ou seja, qualquer manifestação social da alteridade que a
95
descoberta apresentava era lida sob o prisma religioso e traduzida na
linguagem religiosa.
A oposição presença/ausência de religião, que impossibilita qualquer
tipo de mediação retrocedendo na esfera da não-humanidade os selvagens
americanos, transforma-se em verdadeira/falsa religião. A partir daí é possível
a comunicação e, portanto, a obra de catequese dos selvagens. (Pompa, 2005:
13).
2.7 - Outro olhar sobre a História Religiosa dos Indígenas Brasileiros.
Através do testemunho dos cronistas sobre as crenças dos antigos Tupi-
guaranis fica evidente e é impressionante a convergência de seus dizeres. Os
índios não adoram nenhuma divindade, não têm nenhum ídolo, não
reconhecem a dimensão do sagrado, agem em relação a tudo segundo o seu
“bel-prazer”, não têm nenhuma obrigação ritual que ordene sua atividade
cotidiana nem regulam o seu tempo. Por conseguinte, não há crença nem
práticas religiosas; nem fé, nem lei, estritamente. (Clastres, 1978: 14).
É interessante notar que todos os viajantes concordaram com esta
afirmação. “Eles não tinham conhecimento algum do Deus verdadeiro”, nem
tampouco tinham falsas crenças. Em nada acreditavam. São precisamente
“sem superstições, sem nenhuma preocupação com o sobrenatural”. Desta
forma os missionários, não precisavam combater crenças já estabelecidas.
Quanto ao sentimento religioso presente nos cultos ameríndios, os
ibéricos, em especial os eclesiásticos, os enquadraram como feiticeiros ou
idólatras, incluindo os sacrifícios humanos e os rituais antropofágicos, que era
praticado por vários povos. Porém, entre os jesuítas do século XVI, como
Nóbrega e Anchieta, os índios em matéria de fé, não tinham adoração
nenhuma, nem cerimônias ou culto divino. A única exceção nesse domínio foi a
leitura que fizeram do “profetismo tupi” que seria a pregação de certos caraíbas
ou pajés que andavam de aldeia em aldeia, possuídos por espíritos a falar aos
índios. Servidores do Diabo eram reconhecidos como homens dotados de uma
capacidade singular de lidar com os espíritos e penetrar no mundo dos mortos.
(Vainfas, 1995: 28, 30).
96
Thevet, chega a afirmar que nas aldeias, seus profetas - os pajés, eram
tão reverenciados, que poderiam ser identificados como semi-deuses. Estava
assim, identificado uma relação de idolatria entre os selvagens. Além da
atribuição de santidade aos maracás, que também foi considerado um tipo de
idolatria. Abordagens sobre Idolatria e Heresia Indígena são assuntos
praticamente inéditos em nossa historiografia, uma vez que nossos
historiadores, desde Varnhagen, se acostumaram a ver o indígena
principalmente como mão-de-obra, como bárbaro não domesticável que
dificultava o avanço da colonização ou como objeto de catequese na melhor
das hipóteses. (Vainfas, 1995: 14).
No Brasil, embora não tenham faltado autores que demonizassem os
índios, não houve a mesma obstinação persecutória que houve na América
Espanhola. A visão portuguesa sobre os índios da Costa se explica em parte,
porque existia de fato, uma diferença nas formas de representação do sagrado
entre os índios do México e Peru e os Tupi-guaranis brasileiros, como já foi
comentado. As práticas da religiosidade dos nativos influenciou uma visão mais
ou menos demonizadora sobre o seu mundo. Embora os nativos brasileiros
tivessem costumes expressivos para que se desenvolvesse sobre eles uma
visão diabólica, como o canibalismo, que em todos os relatos foi associado a
um culto sacrificial. Rituais, danças, indumentárias, pintura corporal, estes
elementos não eram considerados uma simbologia religiosa.
Faltou à colonização portuguesa a perseguição implacável aos
indígenas por razões estritamente religiosas. Apesar de haver quem
demonizasse a terra e os índios como Frei Vicente ao afirmar que “o diabo
transferira o seu reino para a América”. No Brasil, não houve uma campanha
extirpatória ao se referir à religiosidade indígena como existiu entre os Incas e
os Astecas. (Vainfas, 1995: 28).
Existiram alguns processos, julgados pelo Tribunal do Santo Ofício,
entre os anos de 1591 e 1595, no nordeste brasileiro. Após a chegada da
bandeira da Santa Inquisição, apoiada pelo governo monárquico português,
houve a fragmentação da cultura indígena, mesclando de forma original a
cultura tupinambá e o catolicismo. Este assunto será abordado no Capítulo III.
(Vainfas, 1995: 15).
97
Os primeiros relatos de viagem apresentavam o silvícola sob um prisma
maniqueísta: “Bom ou Mal Selvagem?”, “Paraíso ou Inferno?”, já que aqui não
existia...
“... Nenhum tipo de propriedade privada, e todas as coisas pertenciam a toda a
comunidade. Viviam todos juntos, sem rei ou chefe de qualquer tipo, e cada um
sendo o seu próprio senhor. Tomavam por esposa a primeira mulher que
encontravam e atuavam em tudo sem prender-se a qualquer lei. Lutavam entre
si sem arte nem regras, devoravam-se uns aos outros, incluindo seus mortos,
pois a carne humana é uma das formas habituais de alimentação... Alcançando
a idade de cento e cinqüenta anos e raramente adoecendo”. (Holanda, 1961:
315).
A partir da observação de Sérgio Buarque de Holanda, vamos iniciar
uma reflexão sobre a importância do corpo, ou seja, as ideologias da
corporalidade na elaboração das cosmologias indígenas.
Esta problemática não trata apenas de mitos, ilusões e ideologias: trata de
princípios que operam ao nível da estrutura social. O corpo, afirmado ou
negado, pintado e perfurado, resguardado ou devorado tende sempre a ocupar
a posição central na visão que as sociedades indígenas têm da natureza do ser
humano. A pessoa (indivíduo) é entendida como um agregado de papéis
sociais com consciência de seus direitos e deveres. Portanto, as categorias
coletivas de uma sociedade são experiências de organização social construída
e vivida pela própria coletividade. A sociedade é parte da Natureza e a
Natureza é uma região dentro de uma cosmologia socialmente mantida e
organizada. Não existe um modelo. Ela sempre será uma construção que
interage.
Entre as sociedades indígenas do Brasil, o corpo não é tido por simples
suporte de identidades e papéis sociais, mas sim como instrumento, atividade,
que articula significações sociais e cosmológicas; o corpo é uma matriz de
símbolos e um objeto de pensamento e ocupa uma posição organizadora
central. A fabricação, decoração, transformação e destruição dos corpos são
temas em torno dos quais giram as mitologias, a vida cerimonial e a
organização social. (Castro, 1987: 16-25).
Se o corpo é um articulador de significados sociais e cosmológicos, é
através dele, que o saber sagrado das tradições nativas é passado, de geração
98
em geração através da tradição oral. Talvez esse seja um dos motivos para
esses povos respeitarem tanto o dom das palavras ao reunirem-se em
conselho em torno da grande fogueira para compartilhar seus ensinamentos e
suas histórias.
Entre os cristãos civilizados que catequizaram o Brasil, o domínio da fala
foi fundamental para que houvesse a comunicação entre mundos tão
diferentes. Embora nem sempre as questões faladas, referentes à religião
tenham ficado claro para os cronistas. “Falar é antes de tudo deter o poder de
falar”. O exercício do poder assegura o domínio da palavra: só os senhores
podem falar. Quanto aos súditos estão submetidos ao silêncio do respeito, da
veneração ou do terror.
Segundo Pierre Clastres, entre os indígenas, esta lógica funciona ao
contrário. A palavra é o dever do poder. O humano deve provar seu domínio
sobre as palavras e ser “um ser de palavra”. Antes de mais nada, a palavra é
um ato ritualizado. O discurso do “chefe” consiste essencialmente em uma
celebração, muitas vezes repetida, das normas de vida tradicional:
“Nossos avós se sentiam bem vivendo como viviam. Sigamos seu
exemplo e, dessa maneira, levaremos juntos uma existência
tranqüila”. (Clastres, 1990: 108).
No cruzamento de duas possibilidades de leitura dos relatos europeus
sobre a religiosidade indígena; entre a que busca as crenças e os rituais dos
ameríndios e a que analisa o “olhar cristão ocidental” sobre a estrutura destas
narrativas, não é tarefa fácil entender os contrastes ou os desvios; tudo gira em
torno da palavra e do ato de quem fala.
Conclusão
Os nativos das terras brasileiras se viram confrontados com os
civilizados portugueses no Século XVI. Estes viajantes conquistadores e
catequizadores nos deixaram as pistas para decifrar as crenças e ritos
indígenas desse período, através dos primeiros contatos.
99
Reavivar a memória de tempos longínqüos, do povo brasileiro é também
reconstruir a colonização de um mito e recuperar o tempo em que os índios
ousaram ser eles mesmos, com suas características genuínas, autônomas,
livres.
A tentativa de conhecer o passado através da interpretação destes
relatos é também uma viagem ao mundo de “nossos antepassados”.
100
CAPÍTULO III
A CONQUISTA ESPIRITUAL DOS INDÍGENAS BRASILEIROS. REALIDADE
OU SÓ DESEJO?
INTRODUÇÃO
Nos capítulos anteriores foram analisadas questões relativas à
mentalidade européia antes e durante o encontro estabelecido entre os nativos
das terras selvagens americanas e os civilizados europeus. Abordamos através
do imaginário da época, a situação complexa, criada à partir desse encontro, e
logo a seguir analisamos os relatos dos cronistas que no Brasil estiveram
nesse período. Vimos através da descrição desses viajantes, características
não só da religiosidade indígena, mas também de sua cultura, além de
perceber como a imagem do indígena brasileiro foi sendo construída através do
tempo, no imaginário do povo brasileiro.
Também foi abordada através da obra de José Eisenberg (2000), a
forma como os colonizadores e os missionários cristãos travaram um combate
étnico e espiritual com os nativos pagãos, em suas respectivas crenças e
tradições. Desses encontros culturais e religiosos com os índios emergiram as
aventuras teóricas empreendidas pelos missionários, ansiosos que estavam
por justificar as reformas da doutrina que lhes pareciam necessárias para o
sucesso da conversão dos indígenas. Essas aventuras teóricas constituem
também os primeiros traços de um pensamento político brasileiro e certamente
ampliam nossa compreensão da gênese de importantes conceitos
sistematizados posteriormente na Europa. Os textos escritos e as técnicas
argumentativas empregadas pelos Jesuítas no Século XVI foram fundamentais
para as reflexões da época e ajudaram a moldar o pensamento ocidental
moderno.
No terceiro capítulo serão abordadas algumas questões que podem nos
ajudar a desvendar esse universo complexo que é o “sincretismo” religioso
brasileiro. Universo criado à partir desse encontro entre cristãos europeus e
indígenas pagãos.
A leitura do “indígena”, através da religiosidade cristã, se encaminha
desse modo em trilhas mais conhecidas e percorríveis: a religião cristã é o
101
referente privilegiado no encontro com as "religiões" ameríndias. E como a
primeira sistematização teológica cristã tinha elaborado a noção de
"paganismo" a partir da oposição verdade-falsidade, a mesma teologia é
projetada nas leituras da religião nativa, que existe, mas que é falsa, fruto da
manipulação diabólica. É de fato o Diabo, o rei da mentira, que falsifica e
corrompe as puras imagens da fé para conquistar as almas dos índios.
Pregações na língua Tupi, conhecimento da cultura nativa, cura dos
índios enfermos, adaptação e tolerância nos ritos sacramentais foram
estratégias experimentadas pelos missionários com um único objetivo:
converter os índios ao cristianismo. O sucesso dos Jesuítas, quando ocorria,
não dependia somente do desenvolvimento de uma tecnologia lingüística para
a conversão dos nativos, mas também da descoberta e controle da força de
ritos pré-lingüísticos como a cura e os rituais religiosos. (Eisenberg, 2000: 86).
As cartas das missões mostram que os índios somente tinham êxito
quando eram identificados pelos índios com os profetas-caraíbas. Em seus
relatos edificantes os missionários produziram abundantes relatos de curas,
batismos, casamentos e confissões; contudo, a maioria das tentativas de
conversão ao cristianismo, desse período fracassou. Como aconteceu esse
processo de conversão ou resistência indígena é que tentarei mostrar ao longo
desse terceiro capítulo.
3.1 - O Sagrado e o Profano se complementam no Universo Indígena
A abordagem deste tópico será apresentada à partir da leitura de
antropólogos como Helene Clastres “Terra sem Mal” (1978) e Pierre Clastres
“A Sociedade contra o Estado” (1990), “Arqueologia da Violência” (2004).
Contrariamente a outras sociedades americanas, os indígenas
brasileiros, não representam jamais os deuses. Estranha religião sem deuses,
a dos índios brasileiros! Essa ausência tão intrigante provocou em muitos
missionários uma dúvida, fazendo com que estes chamassem de “verdadeiros
ateus” aos povos indígenas brasileiros. Povos, no entanto, de uma extrema
religiosidade: é que esta, antes de ser individual e privada, é social e coletiva,
102
por dizer respeito em primeiro lugar às relações da sociedade como o mundo
dos vivos com esse Outro que é para ela o mundo de seus mortos.
O pensamento indígena situa os antepassados num tempo anterior ao
tempo, tempo em que se desenrolam os acontecimentos narrados pelos mitos:
tempo primordial em que ocorrem os diversos momentos da fundação da
cultura e da instituição da sociedade, verdadeiros tempos dos antepassados
com os quais vêm se confundir as almas dos mortos antigos, anônimos e
separados dos vivos por uma grande profundidade genealógica.
Conforme a idéia européia de religião, tal como ela define as relações
entre sagrado e profano, e mais precisamente, entre Deus e os homens, Deus
e natureza, evangelizadores e conquistadores quinhentistas tentaram,
imbuídos às vezes sem o saber, da convicção de que, não há fato religioso
senão sob a espécie do monoteísmo, descobrir entre os índios sul-americanas
versões locais do grande Deus único, ou o germe embrionário da unicidade do
Divino. Ora, a etnografia, nos mostra a inconsistência de tal tentativa. Com
efeito, quase sempre as práticas culturais desses povos desenrolam-se, sem
referência implícita a uma figura única ou central do Divino. Em outras
palavras, a vida religiosa apreendida em sua realização ritual, desdobra-se
num espaço exterior ao que o pensamento ocidental está acostumado a
chamar esfera do divino: os deuses estão ausentes dos cultos e dos ritos que
os homens celebram porque estes não lhes são destinados. Desta forma,
podemos perguntar: “a ausência de um culto prestado, significa assim, a
ausência do divino?” Acreditou-se poder desvendar nos mitos de diversas
tribos, figuras divinas dominantes. Mas quem decide a hierarquia desses
representantes do divino? São precisamente os missionários, que mergulhados
na crença monoteísta imaginaram sua expectativa satisfeita pela descoberta
dessa ou daquela divindade nomeada. Quem são esses “deuses” que nenhum
culto vem honrar? Depois de algum tempo passado, outros registros nos
contam os seus nomes e o que eles designam, na verdade, os corpos celestes
visíveis, sol, lua, estrelas, constelações, sendo que numerosos mitos contam
as metamorfoses de humanos em astros; designam igualmente os fenômenos
naturais “violentos”, como o trovão, a tempestade, o raio. Com muita freqüência
os nomes dos deuses referem-se não a ordem da natureza, mas da cultura:
103
fundadores míticos da civilização, inventores da agricultura, heróis culturais às
vezes destinados a serem corpos celestes ou animais:
Os Gêmeos, heróis míticos das tribos tupi-guarani abandonam a Terra
para se transformar um no sol , o outro na lua. Embora o sol, nosso
irmão mais velho, desempenhe um papel muito importante no
pensamento religioso dos guaranis, ele não é objeto de nenhum culto
especial. Pompa, 2005: 9).
Todos esses deuses não passam na maioria das vezes de nomes,
nomes mais comuns do que pessoais e como tais índices e designação do
mais além da sociedade, do Outro da cultura: alteridade cósmica do céu e dos
corpos celestes; alteridade terrena da natureza próxima. Alteridade originária
da própria cultura, sobretudo: a ordem da Lei, como instituição do social (ou do
cultural), é contemporânea não dos homens, mas de um tempo anterior aos
homens, ela se origina no tempo mítico, pré-humano, a sociedade encontra a
sua função no exterior dela mesma, no conjunto das regras e instruções
legadas pelos grandes antepassados ou heróis míticos, geralmente
designados, uns e outros, pelo nome de Pai, Grande-Pai ou Nosso Pai
Verdadeiro. O nome desse deus longínquo e abstrato, indiferente ao destino
dos homens, desse deus sem culto, isto é, privado da relação geral que une os
humanos aos divinos, é o nome da Lei que, inscrita no núcleo do social,
garante a manutenção de sua ordem e pede aos homens apenas o respeito à
tradição. (P. Clastres, 2004: 95-103). ?
É no seio de uma sociedade sem superstição e sem culto à divindades,
que está inserida a religião primitiva dos indígenas brasileiros.
3.2 - Entre o Sagrado e o Profano do Mundo Cristão
As relações entre vencedores, vencidos e colaboradores; todos
saídos de universos com trajetórias tão diferentes são de uma complexidade
sem precedentes. Se pensarmos nos encontros e nas misturas ocorridas na
Ibéria Medieval, verificamos que estes foram feitos de trocas e conflitos que
duraram muito tempo. De misturas e coexistências entre diferentes mundos: o
cristão, o muçulmano, o judeu e de um paganismo antigo, vivido com muita
intensidade.
104
No Brasil, da mesma forma, os diferentes universos que se misturaram,
forjaram um país rico em contrastes e complexo nos seus ajustes ou
sobreposições religiosas.
Em todos os níveis, cultural, étnico e espiritual, os universos se
interpenetraram, se conjugaram, criaram novas formas de relacionamento e
novos conceitos. Algumas tradições, porém, permaneceram como que
inalteradas. Por que isso aconteceu? Que força é esta que perpassou
diferentes mundos e, no entanto conservou um viés autêntico, original? Por que
outras se moldaram, se adaptaram, criaram uma terceira margem?
Quando Carlo Ginzburg analisa o sabá, em seu livro “História Noturna”
(1991) ou os casos de feitiçaria na Europa medieval, através dos Processos e
dos Autos de Inquisição, o que ele constata é exatamente o que podemos
verificar, quando analisamos os cultos ou as cerimônias dos indígenas no início
da colonização do Brasil.
Ginzburg nos mostra como práticas camponesas milenares foram sendo
transformadas, através de estereótipos, criados pelos religiosos cristãos, em
festas satânicas. As cerimônias religiosas indígenas, da mesma forma, foram
transformadas em cultos heréticos e demoníacos.
A propósito da feitiçaria dispomos apenas de testemunhos hostis, que provém
de demonólogos, inquisidores e juízes ou foram por eles filtrados. As vozes dos
acusados nos chegam sufocados, alteradas, distorcidas; em muitos casos
perderam-se. Donde - para quem não queira resignar-se a escrever pela
enésima vez a história dos vencedores - a importância das anomalias, das
lacunas que se abrem por vezes na documentação, rompendo sua unidade. Do
desvio acentuado entre as falas dos acusados e os estereótipos dos
inquisidores, aflora um extrato profundo de mitos camponeses, vividos com
extraordinária intensidade. Pouco a pouco, por meio da lenta introjeção de um
modelo cultural hostil, esse extrato foi transformado no sabá. (Ginzburg, 1998:
106).
A história nos mostra que a religiosidade das populações da Europa
Medieval estava fortemente impregnada de paganismo, e quantas violências
acarretaram os esforços católicos e protestantes no sentido de separar
cristianismo e paganismo. “O cristianismo vivido pelo povo caracterizava-se por
um profundo desconhecimento dos dogmas, pela participação na liturgia sem a
compreensão do sentido dos sacramentos e da própria missa”. As pessoas
pouco distinguiam o natural do sobrenatural, o visível do invisível, a imagem da
105
coisa figurada. “Um cristianismo de fachada emprestava nomes de santos e de
festas católicas a forças da natureza e a consagrações pagãs”. (Souza, 1986:
90,91).
Nesse sentido Lutero chegou a afirmar: “Vivem como um rebanho
inconsciente, como suínos desprovidos de razão”. Ao constatar que todos se
denominavam cristãos; eram batizados e recebiam o Santo Sacramento;
porém, não sabiam nem o Pai-Nosso, nem a fé nem os Dez Mandamentos.
Os imaginários estão igualmente perturbados. Na América,
especialmente no Brasil, o choque é tão brutal quanto imprevisto. Disparidades
regionais somam-se às diferenças culturais. Gruzinzki coloca a questão da
seguinte maneira:
A diversidade dos protagonistas indígenas e europeus religiosa, física,
lingüística, social, etc. e as tensões que os opõem introduzem uma
heterogeneidade ainda mais acentuada pelo choque da derrota e pelas
deficiências do quadro político. Os poderes locais tradicionais, derrotados
militarmente e privados de sua aura ancestral, sofrem uma crise de
legitimidade, ao passo que as novas autoridades penam para se definir e se
impor. (Gruzinzki, 2001: 76).
Todo período de transição é turbulento. Mas o que estava acontecendo
no imaginário das pessoas que viviam nessas terras americanas?
Rigorosamente falando, o Brasil dos cronistas ainda não existia; como nação e
como Estado, foi-se gestando muito lentamente, no centro da colonização
portuguesa. Esse processo de transformação, extraordinariamente complexo,
que parte da percepção da nova paisagem e vai delineando aos poucos as
diferentes situações de vida, para finalmente tomar consciência da condição
colonial, isto é da diferença específica com relação à metrópole.
Dominação política, exploração econômica, missionação, as três
vertentes básicas da colonização, são três esferas da mesma aventura,
absolutamente imprevisível. Neste momento, além dos nativos, é importante
ressaltarmos a figura do degredado, isto é, o aventureiro forçado. Deles pouco
se sabe, além do fato de que foram fundamentais para o destino dessa
experiência.
Tomé de Souza, o primeiro governador geral, parece que trouxe, a par
dos primeiros missionários jesuítas, cerca de 600 degredados, figuras
106
inquietantes, sem origens e fins, cuja história é difícil, se não impossível de
rastrear, mas decisivos para os destinos dos brasileiros. Ficaram poucos
registros e a iconografia os ignora, mas podemos imaginar o olhar angustiado,
aflito ou melancólico com que deviam mirar as caravelas, que logo depois,
deviam zarpar deixando-os em meio à imensidão da natureza e à incógnita dos
selvagens gentios. (Novais, 1999: 12-22).
Ao comentarmos as relações entre cronistas e ameríndios, entre
missionários e nativos, não podemos nos esquecer de descrever as questões
sociais, políticas, e principalmente religiosas que se estabeleceram na Colônia
com os degredados. Já foi dito que eles eram uma incógnita no campo social,
mas o que representava, religiosamente falando, a presença dessas pessoas,
que estavam cumprindo uma pena e que se relacionavam diretamente com os
gentios, com os missionários e com os governantes? Quais as implicações
desses relacionamentos?
Pode-se observar desde os testemunhos mais antigos, um tema
identificável em culturas muito afastadas uma das outras, o ameaçador
aparecimento de depoimentos que foram silenciados (mortos inquietos), ou que
foram interpretados em sentido cristão e moralizante. Este é o caso do período
aqui estudado; todos os depoimentos são de cristãos, não de nativos, o que
torna ainda mais difícil nossa investigação.
Um tema que será abordado à seguir, que tem influência direta nos
mecanismos criados para se estabelecer uma convivência “pacífica” entre os
moradores do Brasil é a justificação do Purgatório. O Purgatório foi um conceito
elaborado na Europa Medieval. (Ginzburg, 1998: 108).
Laura de Mello e Souza aborda em seu livro O Diabo e a Terra de Santa
Cruz, a construção do Purgatório a partir de elaborações mentais, sonhos,
projeções do imaginário europeu, fundidas a tradições milenares originárias do
mundo antigo. O purgatório foi uma criação onde entremearam elementos da
cultura popular com a cultura erudita. Apesar de verificarmos que a cultura
popular sempre foi vista como ameaçadora. (Souza, 1986: 72).
Os Concílios que institucionalizaram o Purgatório: Lião II (1274),
Florença (1438) e Trento (1563), tenderam a manter todo o rico imaginário do
Purgatório fora dos dogmas e das verdades da fé; separando ainda mais a
107
cultura popular da erudita. Mas as penas de práticas mágicas poderiam ser
purgadas no Purgatório; esse novo espaço geográfico que nascia, garantia ao
povo um lugar no Além. (Le Goff, 1981: 404, 405).
Sobre a Colônia Portuguesa, podemos dizer que de Paraíso Terrestre
ela se transformou em Purgatório Possível. O Purgatório diminuía a tensão
entre ter o destino inexoravelmente amarrado às duas possibilidades extremas
representadas pelo Paraíso e pelo Inferno. Os cristãos tinham a chance de
corrigirem o seu desvio e serem perdoados pelos pecados cometidos. Dessa
forma, o Purgatório passou a ter um papel muito importante na mentalidade
cristã desse período.
Nos fins do Século XV, a expansão ultramarina, fundiu as formulações
européias a cerca do Purgatório com a função purificadora da travessia
marítima e do degredo. Uma vez descoberto, o mundo colonial catalizava o
próprio acesso ao Purgatório. O mundo ultramarino associou-se no imaginário
europeu, à região em que se pagavam os pecados, o Terceiro Lugar de que
falaria Martinho Lutero.
Frei Vicente nos mostra com sagacidade as estruturas do Sistema
Colonial: “Estas terras transmarinas são sempre as que pagam por nossos
pecados e ainda pelos alheios”. O Novo Mundo e suas Colônias estavam
fadados a servirem de imenso purgatório aos pecados do Velho Mundo. Ele
passou a ser inferno por sua humanidade diferente, animalesca, diabólica e era
purgatório para os cristãos, sobretudo por sua condição colonial.
Como Purgatório a Colônia tinha uma dupla função: a de estirpar
pecados, purificando almas e a de garantir a continuidade da produção de
riquezas. A Colônia perde o sentido se não produz riqueza e se não normaliza
a população. Homogeneizar a população através da Catequese e produzir
gêneros rentáveis no mercado externo eram as duas grandes modalidades
purgatórias da Colônia. Nada se alcança sem esforço, já que é estreito o
caminho do céu, como diz Laura de Mello:
Essas modalidades deviam ser levadas a cabo a ferro e fogo,
misturando sangue, suor e lágrimas, dispensando paradoxalmente
a doçura e não medindo o rigor necessário à consecução dessa tarefa
maior. (Souza, 1986: 79).
108
A Colônia atenuava os pecados conforme avançava os processos
civilizatórios. A Igreja teve grande peso na justificação teológica do Sistema
Colonial como sendo Colônia-Purgatório. Para o Pe. Antônio Vieira, a
escravidão foi interpretada como uma pedagogia, um aprendizado. A África era
o inferno, o negro era escravo de corpo e alma; o Brasil era o purgatório, onde
os africanos e indígenas eram libertos na alma pelo batismo e a morte à
entrada no céu. O Brasil era um lugar de transição entre a terra da escravidão
e do pecado que é o inferno e o céu, lugar da libertação definitiva. No século
XVI, o purgatório era uma realidade, uma esperança para o cristão.
Escravidão era o inferno necessário da metrópole na colônia. Não havia
resgate possível, sem escravos o mundo colonial não sobreviveria. A saída do
escravo através da possibilidade de salvação era um artifício ideológico
totalmente consentido nas Colônias. Para os brancos cristãos, o sistema
oferecia inúmeras possibilidades: quando oneroso, inadaptado ou indesejado
na metrópole, tinha a possibilidade do purgatório colonial. O degredo foi o
artifício máximo pelo qual os brancos portugueses purgaram seus pecados.
Ao complexo inferno-purgatório-paraíso que relaciona a colonização do
Brasil: aos africanos, indígenas e portugueses, existe a edenização da
natureza e a desclassificação dos seres humanos. Paraíso Terrestre pela
natureza, inferno pela humanidade demonizada que abrigava.
Fundado dessa forma, o Novo Mundo se tornou um lugar assombrado
por espíritos violentos e pelo fantasma da destruição.
O Brasil ocupará no imaginário europeu, o mesmo lugar que antes
ocuparam terras longínquas, selvagens e misteriosas, que uma vez conhecidas
e devassadas, se desencantaram.
3.3 - A Mestiçagem Étnica e Espiritual dos Indígenas Brasileiros.
Diante de tantos obstáculos e desafios, este estudo enfocará as
mestiçagens e seus mecanismos intelectuais e religiosos do período Colonial
brasileiro; delimitando histórica e geograficamente a Europa e a América no
início da Colonização.
109
A diversidade de costumes e de práticas religiosas que caracterizam o
início da colonização do Brasil, possibilitaram o entrecruzamento dessas
diversas culturas, como a indígena (os nativos dessa terra), os portugueses
cristãos e os africanos que vieram para o Brasil no início de sua colonização.
Uma herança produzida a partir dessa mistura não pode simplesmente ser
percebida como uma passagem do homogêneo ao heterogêneo, do singular ao
plural, da ordem à desordem; a idéia de misturar carrega implicações que
analisaremos à seguir.
O antropólogo Gonzalo Aguirre Béltran colocou em relação idéias de
mestiçagem e aculturação. Dessa análise, resulta que a mestiçagem, no Brasil,
é resultado do enfrentamento entre distintos costumes. A tradição colonial
européia, a tradição indígena e a tradição africana. Os elementos opostos das
culturas em contato tendem a se excluir mutuamente, eles se enfrentam e se
opõem uns aos outros, num primeiro momento; mas, ao mesmo tempo tendem
a se interpenetrar, a se conjugar e a se identificar. Foi esse enfrentamento que
permitiu o surgimento de uma cultura nova, mestiça, miscigenada, nascida da
interpenetração, e da conjugação de elementos contrários.
Se a terra explica a gente, essa mistura de espírito e sensibilidade, do
povo brasileiro, pode ser entendida a partir da ruptura dos antigos habitantes
com sua terra natal e sua cultura. As três etnias que formam o povo brasileiro
foram de certa forma despatrializadas e deram origem a um povo miscigenado.
Isso leva-nos a pensar, na obscuridade dos registros desse passado, abrindo
uma lacuna na história dos brasileiros. Este é um campo de estudo ainda
pouco pesquisado.
Diria Capistrano de Abreu, que a luxúria imperou nos primeiros tempos
de fixação do homem ao meio e a tristeza e o romantismo deram o tom aos
hábitos desfibrados e decadentes dos luso-brasileiros e em seguida dos
brasileiros propriamente dito. (Dias, 1984:57).
Sabe-se que povo algum jamais se dobrou facilmente à superioridade
“natural” de um outro, e isso se torna ainda mais difícil quando os atos dos
invasores revelam dúvidas interiores a respeito da suposta superioridade. O
que pode ser verificado em relação aos europeus que colonizaram os nativos
brasileiros. (Turner, 1990: 121).
110
Existem vários trechos nos relatos dos cronistas, que eles colocam em
cheque a moral e a índole dos próprios portugueses. Inclusive das crianças que
para o Brasil vieram. O padre Anchieta, em carta escrita à Inácio de Loyola,
chega a afirmar que os nativos tinham melhor índole do que os cristãos que
vieram com eles de Portugal.
[...] “nos mandaram de Portugal alguns meninos órfãos, assim, para
amparar e ensinar, porque é a mais perdida gente dessa terra. E
alguns piores que os meninos índios, e temos que é tão importante
ganhar um destes como ganhar um índio, porque neles está muita
parte da edificação ou destruição da terra...” (Viotti, 1984: 55).
Os processos de mudança decorrentes dos contatos entre grupos
culturalmente diversos desenrolam-se em planos distintos, embora
interdependentes: o cultural, o social, o psíquico e o espiritual. A rigor,
cumpriria acrescentar a esfera biológica, uma vez que a relação estreita entre a
marcha da mestiçagem e da aculturação dos grupos em contato e a mistura
racial ou conforme o caso, os casamentos interétnicos formaram o povo
brasileiro. Cada um dos aspectos desse processo pode ser considerado como
facetas de um todo, mais amplo e mais complexo. (Pompa, 2005: 15).
Talvez o contraste mais profundo entre o mundo do civilizado cristão e o
mundo dos indígenas selvagens, seja o que se refere ao papel dos valores
religiosos como determinantes do ethos cultural. O apego a esses valores, em
oposição à rapidez com que em muitas outras esferas se processam mudanças
em ritmo crescente é uma das causas decisivas do desnivelamento das
culturas em transformação e da “desorientação” dos indivíduos no tocante aos
padrões reconhecidos como normas de comportamento. O problema da
aculturação ou da mestiçagem religiosa não é simplesmente o da substituição
de uma cultura ou de um sistema religioso por outro, mas o de se assumir uma
atitude essencialmente diversa com relação aos fenômenos do mundo
sobrenatural, ou espiritual. (Shaden, 1965: 5-10).
Viajantes, missionários ou etnólogos observaram constantemente, o
forte apego dos povos primitivos a seus costumes e tradições. Podemos não
apenas constatar a devoção dos selvagens, mas o investimento na vida social.
O campo religioso parece dissolver-se na esfera social e política. Apaga-se o
111
limite entre o domínio do profano e a esfera do sagrado. Resumindo, a
natureza é, como a sociedade, atravessada de uma ponta a outra pelo
sobrenatural. (P. Clastres, 2004: 100)
O pensamento indígena que enfrenta a dominação européia está longe
de ter o contorno nítido, a pureza ou a autenticidade que lhe são atribuídos. Ele
está misturado com características da mentalidade ocidental, pois são eles que
descrevem a religiosidade ou a “falta de religiosidade” das culturas indígenas.
É possível encontrar alguns traços que se aproximam, de uma cultura indígena
genuína, ainda sem a interferência dos colonizadores cristãos. Esses traços se
expressam principalmente no que tange a espiritualidade indígena, através das
descrições de suas cerimônias, seus cultos, ritos, bailes, danças, etc. De
maneiras diferentes, a grande maioria das comunidades indígenas se
desagregaram: perderam sua autonomia política e econômica, além do líder
religioso. Poucas comunidades indígenas conservaram sua língua o guarani
porém, quase todas mantiveram uma tradição religiosa, (que alguns
antropólogos afirmam, “original”) com o maior empenho, porque nela e só nela,
entraram a razão e o meio de resistirem ao mundo dos civilizados cristãos.
A complexidade desse fenômeno atrapalha nossa compreensão das
misturas, da mestiçagem. Nós carregamos uma herança positivista que nos
traz a noção de cultura numa ótica evolucionista e de tempo baseada na
concepção linear. É comum, aos historiadores lerem as épocas passadas como
fruto de um movimento linear, de uma evolução ou de um progresso.
As mestiçagens quebram essa linearidade. Surgindo na América do
Século XVI, afirma Gruzinski: “Na confluência de temporalidades distintas as
do Ocidente cristão e dos mundos ameríndios elas as colocam brutalmente
em contato e as imbricam umas nas outras. O tempo dos vencidos não é
automaticamente substituído pelo dos vencedores, como pode coexistir com
ele durante séculos a fio. Ao juntar abruptamente humanidades há muito
separadas, a irrupção das misturas abalam a representação de uma evolução
única do devir histórico e projeta luz nas bifurcações, nos entraves e nos
impasses que devemos levar em conta”. (Gruzinski, 2001: 58).
Se a exploração econômica foi violenta e iníqua, a mestiçagem no Brasil
atuou como elemento atenuador, diminuindo as diferenças, segundo Gilberto
112
Freyre. Os males tradicionalmente atribuídos à mestiçagem: as doenças, a
amoralidade, a apatia, a aversão ao trabalho, passariam a ser atribuídos ao
sistema econômico. Ao contrário da monocultura, a mestiçagem mostrou-se
benéfica no Brasil. No que se refere à religiosidade, é mais complexo, pois
sabemos que uma das características da religiosidade colonial foi a
necessidade de negar as práticas religiosas dos grupos que foram associados
ao projeto de ocupação territorial e econômica das terras brasileiras.
Nessa perspectiva, misturas e mestiçagens perdem o aspecto de uma
desordem passageira e tornam-se uma dinâmica fundamental. Esta
interpretação adapta-se melhor à complexidade das misturas e à importância
das mestiçagens, mas dificulta o estudo delas, pois se choca não só com a
rigidez de nossas categorias, mas igualmente com nossa concepção de tempo,
ordem e causalidade.
As relações entre vencedores e vencidos também assumiram a forma de
mestiçagens. A mistura de corpos, mestiçagem biológica - quase sempre veio
acompanhada pela mestiçagem de práticas e crenças religiosas. Por essas
razões, índios, brancos e negros tiveram que inventar, no dia a dia, modos de
convívio ou soluções de sobrevivência. Onde começa o mundo do indígena e
onde termina o dos conquistadores? É impossível descrever situações tão
diferentes como as trocas entre um português e uma índia, as relações entre
as diferentes comunidades tribais, entre um missionário e um pajé. O que os
ligavam? Não podemos nos contentar em analisar estas situações em termos
de aculturação e de deculturação. O mesmo grau de indeterminação,
precariedade e improvisação, caracterizam essas diferentes situações.
Segundo Gruzinski em “Pensamento Mestiço” (2004), a colonização do
Brasil apresenta um quadro peculiar; ela deixa margem de manobra maior aos
grupos de interesses e aos indivíduos estabelecidos na terra nova. Eles são em
parte os degredados, os delinqüentes portugueses condenados ao exílio do
outro lado do Atlântico. Daí os comportamentos que valerão à Terra de Santa
Cruz uma reputação corrosiva e a proliferação de mestiçagens que receberão o
nome de mamelucos. Mais que em qualquer lugar da América, as fronteiras
entre as populações: européias, mestiças, índios (as) convertidos (as), índios
(as) da floresta, são pouco nítidas. A ausência de um sólido enquadramento
113
imposto pela Metrópole, também confere por muito tempo, toques selvagens e
brutais a essa ocupação, sobretudo quando ela se traduz na escravização das
populações indígenas e depois na importação maciça de negros da África.
(Gruzinski, 2001: 80-82).
3.3.1 - “Cristianização via Coerção”.
Abrir novos horizontes à compreensão do impacto cultural causado pelo
encontro entre os indígenas e os missionários no Novo Mundo, é também
localizar uma matriz cultural originária e fundante do processo colonizador e
catequizador. Na historiografia mais antiga, temos um relato detalhado do
cotidiano das missões, sem no entanto, uma análise crítica da matriz cultural
que emerge dos encontros do Novo Mundo. Dando seqüência a este raciocínio,
buscarei enfatizar as modificações causadas por esses encontros e mostrar,
principalmente, através das missões jesuíticas brasileiras do Século XVI, que
estas foram um espaço concreto de reflexões e mudanças no campo teológico
e político. Estas mudanças foram norteadoras dentro de uma corrente de
pensamento que irá se estruturar no imaginário do recém-nascido “povo
brasileiro”.
As relações entre vencedores, vencidos e colaboradores; todos saídos
de universos com trajetórias tão diferentes, são de uma complexidade sem
precedentes. Se pensarmos nas misturas ocorridas na Ibéria Medieval,
verificamos que estas foram feitas de trocas e conflitos que duraram muito
tempo. De misturas e coexistências entre diferentes mundos: o cristão, o
muçulmano, o judeu e de um paganismo antigo, vivido com muita intensidade.
A mestiçagem aconteceu; com a derrota indígena, as antigas tradições
foram substituídas, porém de uma forma lenta. A agudeza do conflito foi
mascarada pela aparente ausência de tensão. Já vimos que os processos de
inquisição na América espanhola foram muito mais intensos, que no Brasil.
Porém, o extermínio aconteceu da mesma forma em todas as Américas.
Gilberto Freyre e outros escritores, oscilando entre o progresso e a tradição,
idealizaram a vida colonial e pintaram um retrato da mestiçagem e da
escravidão que refletia a imagem que os proprietários ou os governantes
114
faziam do sistema. Esses escritores contentaram-se em opor um “róseo quadro
da democracia étnica brasileira” ao cenário sombrio do conflito étnico do
restante da América.
Sabe-se que a miscigenação nos Estados Unidos era condenada, a
concepção que o homem branco tinha do indígena era distorcida pelo racismo
e a discriminação era institucionalizada; no Brasil o preconceito jamais criava
antagonismos entre brancos (as) e índios (as). Os direitos pessoais dos
indígenas, enraizados nas tradições medievais da Península Ibérica, e nas
concepções da Igreja sobre a natureza da alma, foram assim preservados no
Brasil.
Mais recentemente, alguns estudiosos como Arnold Sio (1954), David
Davis (1966), Carl Degler (1971), comparando as relações raciais e étnicas nos
Estados Unidos e no Brasil; diferentes de Gilberto Freyre e de seus adeptos, os
quais estavam comprometidos com uma luta política contra as estruturas de
classe e lançaram uma campanha mais ou menos sistemáticas para destruir
tradicionais mitologias sociais. Em particular, atacaram os dois referidos mitos
sobre escravidão e raça no Brasil: os “mitos da democracia racial e do senhor
benevolente”.(Viotti,1999: 344-346).
Baseando-se nessa literatura revisionista concluímos que ambas as
sociedades viam o escravo como “um ser humano e uma propriedade”. Apesar
da propriedade do escravo indígena não ser reconhecida por lei, nada garantia
a estabilidade das comunidades indígenas. Nem a Igreja nem o Estado
exibiram nenhum interesse real na humanidade dos “selvagens”.
Em razão da natureza exploradora do sistema Colonial, os governantes
tinham o direito de punir fisicamente os rebeldes. Os missionários por sua vez,
definiram o consentimento dos governados, gerado pelo medo, como a fonte
de legitimidade do poder dos governantes.
No jusnaturalismo medieval, direitos eram interpretados como um
conjunto de atributos da condição humana, resultantes da graça divina que
eram, por esse motivo, inalienáveis. Esse conceito de direito sofreu uma
transformação cujas origens podem ser atribuídas aos missionários jesuítas no
Brasil. Visando a justificação da escravização voluntária dos índios, os
missionários substituíram a interpretação dominicana do direito natural, pelo
115
conceito de direito subjetivo, definindo-o como uma faculdade humana que a
pessoa pode alienar segundo a sua vontade. (Eisenberg, 2000: 19).
A especificidade do empreendimento jesuíta era aquilo que eles
chamavam de “nosso modo de proceder”, uma dialética entre obediência e
prudência resultante dos elementos voluntarísticos da doutrina espiritual de
Inácio de Loyola. Do ponto de vista institucional, esse modo de proceder
jesuítico implicava na comunicação constante entre os missionários jesuítas
por todo o mundo e seus superiores, algo somente possível através de uma
eficaz e periódica circulação de cartas regulada pela “Instituição Epistolar”, o
principal instrumento dos jesuítas para a organização e controle das atividades
da ordem. (Eisenberg, 2000: 20).
Foi dentro dessa instituição epistolar que os jesuítas formularam
justificativas para suas estratégias missionárias no Brasil.
Grandes comunidades de índios, governados por padres jesuítas,
segundo um sistema econômico e político peculiar, foram erroneamente
interpretados por muitos como “democráticas e comunistas”. Mas como já
comentamos acima, elas não foram nem democráticas nem comunistas. O
sistema de governo naqueles povoados aproximava-se mais a um paternalismo
benevolente, e o sistema econômico, mesmo que organizado para o benefício
dos nativos, não era baseado na propriedade coletiva, pois o título de
propriedade era da Igreja e não dos índios.
A experiência das missões no Brasil do Século XVI, descritas pelos
padres, ,apontam os vários problemas enfrentados na empreitada para a
conversão dos gentios. Os jesuítas contam que as maneiras mais eficazes de
avançar na persuasão dos índios são o aprendizado de sua língua e a cura de
suas doenças. Mas, para a decepção dos missionários, os índios pareciam
rapidamente retornar aos seus costumes pagãos e esquecer a nova religião
adquirida.
O fracasso dos primeiros esforços de catequização dos jesuítas se deve
às experiências históricas que moldaram a institucionalização das missões no
Novo Mundo. Manoel da Nóbrega e seus colegas, na busca de novas maneiras
de converter os pagãos, através da persuasão, acabaram por realizar uma
polêmica reforma que precisaram ser cuidadosamente justificada, tanto perante
116
seus superiores jesuítas, como também perante a Coroa Portuguesa. O novo
plano dos jesuítas:
Previa que os índios seriam forçados a viver de acordo com a cultura
cristã para subseqüentemente serem persuadidos a se converterem à
religião de Cristo. (Eisemberg, 2000: 21).
Foi no esforço de justificar esta reforma, que Nóbrega e seus colegas
realizaram as duas mudanças conceituais aqui analisadas. A primeira mudança
conceitual foi o consentimento gerado pelo medo, ao ocupar o lugar da
natureza na justificação da autoridade política. A segunda transformou o
significado do conceito de direito. Um outro documento, o debate travado por
Nóbrega e Quirício Caxa, sobre a escravidão voluntária”, constrói uma
justificação para os argumentos dos colonos em prol da escravidão voluntária,
que dizia que os índios escravizados por eles haviam vendido sua liberdade
por livre e espontânea vontade. De acordo com esta interpretação os índios
poderiam vender sua liberdade se fossem maiores de 21 anos, porque a
liberdade é um direito (ius) que a pessoa possui como uma propriedade
(dominium). (Eisenberg, 2000: 22,23).
O desenvolvimento de uma teoria do consentimento gerada pelo medo
como fundação legítima do poder político foi efetuado por Nóbrega em dois
textos escritos na segunda metade da década de 1550. No Diálogo sobre a
Conversão do Gentio (1556 - 1557), que já foi analisado no segundo capítulo;
onde o jesuíta também discute a condição natural dos índios Tupi e o papel da
polícia cristã na conversão dos indígenas. Sua investigação teológica e
etnográfica a respeito das perspectivas de conversão dos Tupis o levou a
buscar estratégias mais eficazes para a conversão. Em um documento que
ficou conhecido como Plano Civilizador (1558) Nóbrega propõe a formação de
uma nova instituição, as Aldeias, que abrigariam um grande número de índios
que tivessem consentido em se submeter ao governo dos jesuítas em troca de
proteção contra as agressões dos colonos. Nesse sistema, os índios que se
recusassem a entrar nas Aldeias poderiam ser escravizados pelos colonos
através de uma guerra justa movida pelas autoridades coloniais. Para Nóbrega,
a ameaça de violência justamente aplicada não significava coerção; pelo
contrário dizia ele “consentirão por medo”.
117
Essa justificação política, não só tornou-se o modelo para as missões
jesuíticas, como também deu origem a uma fundamentação do poder político
pelo medo e consentimento dos governados. O consentimento tornou-se uma
causa eficiente da autoridade política. Nóbrega distancia-se ainda mais da
doutrina aristotélica e afirma que os homens naturais consentiam em entrar
para a sociedade política devido ao medo. Esse consentimento gerado através
do medo era a fonte legítima da autoridade soberana.
A Igreja bem cedo estabeleceu um compromisso entre escravidão e
cristianismo, encontrando na tradição ocidental os argumentos para justificar a
escravidão. Durante o período colonial, a teoria da “guerra justa” forneceu a
base lógica para a escravidão: “aqueles que se opunham ao cristianismo
mereciam ser escravizados”. Num mundo governado pela Providência Divina, a
escravidão era uma punição para o pecado: os escravos deviam pagar por
transgressões presentes ou passadas. A Igreja cumpria seu papel
recomendando benevolência ao senhor e resignação ao escravo; o pecado do
senhor era a crueldade, o pecado do escravo era a revolta. Uma teologia com
óbvias implicações conservadoras. Como a Igreja Católica era uma instituição
universal, não havia grupos religiosos que questionassem a legitimidade da
escravidão no Brasil, como existiram em outros locais da América. (Viotti, 1999:
354-355).
A Igreja Católica no Brasil Colonial tinha uma visão de mundo tradicional
e um conceito hierárquico e estático de organização de classe, que
enfatizavam as obrigações recíprocas bem mais do que os direitos individuais e
liberdade pessoal, além de sacramentarem as desigualdades sociais. Segundo
essa visão providencial do mundo, os senhores nasciam para ser senhores e
os escravos para ser escravos. O único estudo sobre as relações entre a Igreja
e a instituição da escravidão é o de Luis Anselmo da Fonseca, “A escravidão, o
clero e o abolicionismo” (1887). Há várias referências sobre o assunto na obra
de Serafim Leite.
3.4 - Profetismo Tupi-guarani “Terra sem Mal”
Entre as obras "clássicas" sobre o profetismo tupi-guarani e o mito da
"Terra sem Mal", encontramos: Curt Nimuendaju "Die sagen von der
118
Erschaffung und Vernichtung der Welt als Grundlagen der Religion der
Apapocuva-Guarani". In Zeitschrift für Ethnologie. (1914); Alfred Métraux
“Migrations historiques des tupi-guarani” (1927); Id. “A religião dos tupinambás”.
(1950); Egon Shaden “A mitologia heróica de tribos indígenas do Brasil” (1959);
Maria Isaura Pereira de Queiroz “O Messianismo no Brasil e no mundo”. (1965)
e Hélène Clastres. “Terra sem Mal” (1978).
Poucos fenômenos culturais da América do Sul tiveram tanto interesse
entre os estudiosos de religião indígena quanto o chamado "Profetismo Tupi-
guarani", cujo tema central consistiria principalmente, mas não exclusivamente,
nas migrações "místicas" dirigidas pelos grandes caraíbas, ou profetas, em
busca de uma terra maravilhosa, onde não seria mais necessário trabalhar, e
onde não existiriam nem doença nem morte: a Terra sem Mal.
Desde as primeiras observações de Nimuendajú, através dos trabalhos
de Métraux, até as pesquisas de Hélène e Pierre Clastres, o Profetismo Tupi-
guarani tem sido geralmente considerado como um fenômeno totalmente
autóctone, relativo a um sistema cosmológico intrínseco à cultura Tupi-guarani
como um todo, preexistente à conquista, que se manteve intacto ao longo dos
séculos da história do contato como o núcleo mais autêntico do "ser" cultural
Tupi-guarani. Nos últimos anos, porém, estas teses estão sendo postas em
discussão por etnólogos e historiadores, a partir de uma perspectiva que leva
mais em consideração o enfoque histórico, perspectiva esta quase ignorada até
a década de setenta. (Vainfas. 1995: 43-44).
Métraux desvendou características da cultura tupi e relacionou-os a sua
própria história, também clareou os sentidos das migrações indígenas; no
entanto, ele acentuou as raízes pré-coloniais dessas migrações nativas, bem
como o caráter “puramente indígena do messianismo tupi”, definido
basicamente a partir de mitos tribais que nada deviam à cultura européia.
O possível cruzamento cultural que diversos movimentos nativos
apresentavam no Século XVI, nos mostrou que alguns desses movimentos
absorveram elementos ocidentais em sua mensagem e estrutura. A ênfase
exagerada dada ao caráter “autêntico” do profetismo, que nega a influência do
mundo cristão nessas migrações, pode apresentar uma visão um tanto limitada
11
9
dessas cerimônias, não querendo aqui negar as origens indígenas da busca da
Terra sem Mal. Alguns historiadores e etnólogos sugerem com muita
eloqüência quão decisiva foi à chegada dos portugueses nas manifestações e
práticas religiosas dos nativos. Vainfas assinala o conteúdo anticristão e
antiescravista presente na exortação dos profetas. (Vainfas, 1995: 41-46).
Não é possível enfrentar o problema da construção do "Profetismo
Tupinambá" como objeto antropológico. Também, é muito difícil retomar a
discussão sobre a anterioridade ou a posterioridade das manifestações
"proféticas" à chegada dos brancos, sobretudo porque colocada nestes
termos a questão não pode ser resolvida. O que interessa aqui é tentar
compreender os limites e a função do campo, ou melhor, dos campos
semânticos construídos em volta e a partir da noção de "profecia", no contexto
do encontro entre indígenas e europeus no Brasil quinhentista.
Antes de abordarmos a questão dos profetas-caraíbas, vamos dar um
panorama sobre o fenômeno do “Profetismo Tupi-guarani e sobre a Terra sem
Mal”. No Século XVI, não passou desapercebida dos viajantes um clima de
efervescência religiosa que contagiava os nativos da costa brasileira. A
observação desse fenômeno foi praticamente unânime entre os cronistas
quinhentistas ainda que a maioria deles se inclinasse a negar,
contraditoriamente, a existência de alguma fé ou superstição entre os nativos.
O Profetismo Tupi fala de um tempo e um lugar específico. Um tempo de
redenção dos humanos, tempo de se obter a eterna juventude, ou até mesmo a
imortalidade. E lugar de extraordinária abundância e felicidade, morada dos
ancestrais e do espírito dos heróis que ali habitariam postumamente. Tempo e
lugar sagrados, usufruído e possuído por homens-deuses. Homens-deuses que
os “profetas indígenas” encarnavam em suas exortações. (Vainfas, 1995: 41).
A busca desse “Paraíso Tupi-guarani” estimulou diversas nações dessa
cultura a migrar do interior para o litoral, ou em sentido contrário, do litoral para
o interior, antes que lá chegassem os portugueses. A obsessiva busca pela
“terra da eterna juventude” foi o motivo da efervescência religiosa observada
pelos cronistas.
Segundo H. Clastres, a busca da Terra sem Mal está essencialmente
vinculada à convicção de que a Terra será, mais uma vez destruída. A figura do
120
destruidor comanda a religião guarani, não a do criador, portanto os
missionários não se enganaram sobre a importância de Tupã.
A prática religiosa dos Tupis-guaranis sempre se inscreveu na busca da
Terra sem Mal, a que eram levados pela certeza de um cataclismo iminente,
pode-se compreender que Tupã fosse para eles coisa sagrada dentre todas,
enquanto artesão dessas destruições. Era ele o senhor verdadeiro do destino
dos seres humanos. (H. Clastres, 1978:29).
O que nos intriga e constitui a originalidade da religião Tupi-guarani é
que ela não se desenvolve no elemento da Teologia, do saber dos deuses.
Homens e deuses são dois polos que se pretende pensar fora das categorias
da disjunção. Dissolve-se a distinção ou o limite entre o domínio do profano e a
esfera do sagrado. A natureza e a sociedade são atravessadas pelo
sobrenatural. “Tudo é sagrado”. (P. Clastres, 2004: 100).
Já sabemos que a Terra sem Mal é um lugar privilegiado, indestrutível,
em que a terra produz por si mesma os seus frutos e não há morte. Para todos
os cronistas, as alusões à Terra sem Mal são invocações pagãs, dionisíacas, já
que os indígenas falam de uma vida futura, regada à danças e bebidas; esta
crença devia parecer extremamente pecadora aos cristãos civilizados!
Atribuiam ao ‘paraíso’ uma localização geográfica, pois estava situada em seu
espaço real, às vezes a leste, outras a oeste. Confirma Thevet: além das
montanhas”, portanto, numa tal direção do espaço que possa ser preservada a
idéia de um local acessível.
Morada dos ancestrais, sem dúvida, a Terra sem Mal, também era um
lugar acessível aos vivos, onde era possível “sem passar pela prova da morte”,
ir de corpo e alma. A terra de “além das montanhas”, morada das almas, dos
ancestrais, dos heróis, da eterna juventude; era a mesma terra que produz sem
semeadura e não há morte, que os profetas prometiam aos índios. Como
entender uma religião onde os próprios humanos se esforçavam por se tornar
semelhantes aos “deuses”, aos heróis, viverem no mesmo lugar, serem
imortais como eles?
A esperança afirmada de ascender à imortalidade sem passar pela
morte era justificativa para tal procura. Nessa perspectiva, homens são tão
importantes quanto deuses; esta religião atéia dos indígenas forjou a ausência
121
de culto ou de sacrifícios, mas não de prática, daí a originalidade de seus
profetas, os caraíbas. A mitologia heróica dos Tupis, através de seus profetas e
xamãs, reforçaram as tradições ancestrais daquela cultura, atitudes de franca
resistência e hostilidade ao cristianismo e ao colonialismo.
A busca da Terra sem Mal levantou uma bandeira contra o colonialismo,
funcionou como uma barreira à sujeição dos amerínidios ao processo de
ocidentalização, instigando fugas em massa do que para os índios tornava-se,
segundo Mário Maestri, a trágica fuga das “terra dos males sem fim”. (Vainfas,
1995: 46).
O impacto da colonização reforçou na realidade, a busca da Terra sem
Mal. Na pregação dos profetas, encontra-se o ímpeto guerreiro com que várias
tribos enfrentaram os portugueses, ou deles fugiram, rumo oeste. “Alterava-se
a rota, mantinha-se o mito”. O Paraíso Tupi se deslocaria lentamente do mar
para o interior, pois com certeza, não era no litoral que se achava a sua velha
“morada dos ancestrais”.
3.5 Profetas-Caraíbas Santidades Indígenas
Para conhecermos um pouco mais sobre os Profetas-Caraíbas, estarei
utilizando os livros dos Cronistas Quinhentistas: Nóbrega, Thevet, Staden e
Lery, além dos antropólogos: Hèlene e Pierre Clastres; e historiadores: Vainfas,
Laura de Mello e Souza e Cristina Pompa.
Para uma melhor designação dos conceitos de "profeta" e "profecia" no
interior dos códigos religiosos que estão sendo analisados, vale lembrar alguns
momentos decisivos na história de sua construção e utilização. O grego
prophetes traduz o hebraico nabi. O sentido original do termo, o de adivinho,
especialista da divinação, amplia-se no hebraico clássico, designando o "autor
inspirado". A profecia hebraica tradicional consiste, na Bíblia, na previsão de
calamidades ou na explicação de desastres acontecidos como punições
infligidas por Yahweh ao povo de Israel; são estes os chamados "profetas
anteriores". Com o colapso final do Reino de Judá e o exílio babilônico, a
profecia passa a proclamar, com os chamados "profetas posteriores" (Isaias,
122
Ezequiel, etc.) a próxima instauração de uma nova, perfeita ordem das coisas:
o novo Reino, ligando-se à expectativa do Messias. Imbuído, desde o início, da
idéia profética da realização do Reino, o cristianismo lê, portanto, a história
como história da salvação. A plenitude dos tempos é anunciada no livro do
Apocalipse, conclusão cristã da tradição profética de Israel. A etnologia
religiosa herda o sentido cristão do termo "profetismo", com o qual indica os
movimentos sócio-religiosos dos grupos étnicos que projetam num futuro
escatológico a radical transformação de uma realidade de crise,
freqüentemente, mas não necessariamente ligada à situação de domínio
colonial. (Pompa, 1998: 40-44).
Voltando ao Brasil do século XVI, acompanhar a essência semântica dos
termos "profeta" e "santidade", usados para designar os grandes xamãs, leva-
nos a desvendar o processo de leitura e tradução do "outro", que se iniciou
com a descoberta, com os primeiros relatos dos viajantes e missionários a
respeito dos tupinambás e de seus grandes xamãs: os caraíbas. Pretende-se
assim refletir sobre o fato de que o "profetismo" é muito mais a projeção de
uma categoria ocidental, utilizada na época do contato para ler, entender, e
finalmente construir o "outro" indígena, do que propriamente um elemento
"original", no sentido de pré-colonial, da cultura tupi-guarani.
A presença de "profetas" e "santidades" em terra de bárbaros e pagãos,
em suma, remete a um problema histórico-cultural: o do uso que foi feito destes
termos na época dos primeiros contatos, para entender uma alteridade
antropológica que a descoberta colocava como dilema. A projeção na
humanidade selvagem de categorias tão carregadas de sacralidade no mundo
ocidental tinha em primeiro lugar a função de analisar e classificar (a de
"nomear" o outro através de uma linguagem conhecida), mas obedecia também
a uma exigência teorética dos missionários de época colonial, portadores de
algumas instâncias profético-salvíficas da Idade Média que estava terminando,
instâncias que alimentavam as próprias descobertas que estavam
acontecendo.
Os antropólogos, encontrando categorias já constituídas nas fontes, as
"herdaram", pois além de cumprir a mesma função analógico-classificatória,
123
elas obedeciam também a exigências teórico-metodológicas específicas. Isto
não quer dizer que o "profetismo" tupinambá seja apenas uma "invenção"
ocidental da época renascentista, "reinventada" pela antropologia no século
XX. Pelo contrário, tentarei mostrar como ele constitui um produto cultural
original da colônia, fruto do encontro e da tradução recíproca entre escatologia
missionária e cosmologia indígena. Assuntos, em parte, já abordados nos
capítulos anteriores.
Por isso, a questão da construção do objeto "profeta", ou "santidade",
nas fontes quinhentistas, será recolocada em seu contexto histórico e cultural
para reformular em termos históricos o problema do "profetismo tupi-guarani".
3.6 - Missionários e Profetas
Ronaldo Vainfas, Laura de Mello e Souza, Cristina Pompa, além dos
Cronistas trabalharam com os temas que desenvolverei a seguir. A leitura
desses textos relativa aos missionários e aos caraíbas é ricas em informações
e nos permitem captar, com alguma nitidez as relações entre esses dois
personagens, tão importantes para o entendimento do período quinhentista,
assim como as repercussões que as diferentes condutas e práticas destes
religiosos tiveram para o entendimento da história espiritual do povo brasileiro.
A leitura do “outro” via código religioso se encaminha desse modo, em
trilhas mais conhecidas e percorríveis: a religião do mundo clássico é o
referente privilegiado no encontro com as "religiões" ameríndias. E como a
primeira sistematização teológica cristã tinha elaborado a noção de
"paganismo" a partir da oposição verdade-falsidade, a mesma teologia é
projetada nas leituras da religião nativa, que existe, mas que é falsa, fruto da
manipulação diabólica. É de fato o Diabo, o rei da mentira, que falsifica e
corrompe as puras imagens da fé para conquistar as almas dos índios.
Eis, então, o grande antagonista do projeto missionário em terra
americana, incontrastável senhor das almas dos pobres índios: o Demônio.
Muito já foi escrito sobre a preeminência da chave de leitura demonológica na
124
interpretação dos indígenas do Brasil, fartamente utilizada na literatura
quinhentista, principalmente missionária; assim, não me deterei mais aqui
sobre esta questão. Basta lembrar que de Thevet a Léry, de frei Vicente de
Salvador a Nóbrega, todos os homens de fé do século XVI apontam para o
senhorio do Maligno sobre os índios.
Este domínio do Demônio sobre os indígenas se manifesta de uma
forma bem precisa: através dos grandes xamãs, os pajés ou caraíbas, que as
fontes chamam, obviamente, de feiticeiros e, menos obviamente, de "santos",
"santidades" ou, finalmente, de "profetas". Na falta de outros sinais de idolatria,
são estas extraordinárias personagens, das quais as fontes não ignoram nem
minimizam o poder, os intermediários entre o Diabo e as almas selvagens.
Desde o princípio, os missionários identificam nos caraíbas os inimigos
mortais da catequese e, por conseguinte, seus "maiores contrários", para usar
as palavras de Nóbrega. São eles que, com suas "cerimônias diabólicas",
impedem os índios de se aproximarem da verdadeira fé. São eles que
convencem os índios de que o batismo praticado pelos padres provoca doença
e morte (o que, em época de grandes epidemias e de batismo in articulo mortis
não é difícil). São eles que organizam levantes e fugas dos indígenas das
aldeias. São eles que conduzem as grandes migrações em busca de novas
terras, talvez de "terras da imortalidade", como diz Gândavo. Enfim, são eles
que se opõem com toda a sua força e poder diabólico ao grande desenho
catequético de marca escatológica, vale dizer, à realização do grandioso
projeto do Reino de Deus na Terra, com o genus angelicum dos índios.
Os inacianos são claríssimos em imputar ao Demônio a ação dos
feiticeiros que, porém, não se incomodam em chamar de "santidades", embora
tenham quase sempre o cuidado de apontar para a sua falsidade. Na mesma
página dos Tratados citada acima, Cardim declara:
Entre elles se alevantarão algumas vezes alguns feiticeiros, a que
chamão caraíba, Santo ou Santidade, e é de ordinario algum Indio de
ruim vida: este faz algumas feitiçarias e cousas estranhas á natureza,
como mostrar que ressuscita a algum vivo que se faz morto, e com
esta e outras cousas similhantes traz após si todo o sertão.
(Cardim,1978: 102).
125
Nas Informações das terras do Brasil, Nóbrega também fala das
santidades: santidade enquanto virtude do feiticeiro, por ser capaz de se
comunicar com os espíritos; santidade como o espírito que a cabaça mágica
abriga, o qual se transfere ao próprio feiticeiro; santidade como um engano,
uma falsa virtude de quem parecendo ser profeta, não passa de agente do
diabo.
O texto de Nóbrega é particularmente interessante porque permite
desvendar também um fragmento da hermenêutica do "outro". Com efeito, ao
acusar os padres de matar os doentes através de objetos inseridos no corpo,
os Tupinambás mostram sua leitura da atitude jesuítica no interior de seu
próprio sistema de sentido, isto é, em termos de xamanismo.
Estos son los majores contrarios que acá tenemos, y hazen crer
algunas vezes a los dolientes que nosotros les metemos en el cuerpo
cuchillos, tigeras y cosas semejantes, y que con esto los matamos.
(Leite, 1954: 150).
Passando às outras testemunhas missionárias, notamos que o termo
que traduz para o francês pajé ou caraíba é o de prophète, profeta. André
Thevet intitula o cap. XXXVI das Singularidades: "Dos falsos profetas e magos
desta terra, os quais se comunicam com os espíritos malignos." Na
Cosmografia Universal, ele transcreve o mito do herói civilizador, Maire-Monan,
um grande caraíba, em outras fontes seu nome é Sumé, ou Zumé, o mesmo
que os jesuítas identificaram com São Tomé, do qual ainda se conservam as
pegadas numa pedra. A remoção desta pedra está ligada à catástrofe que
destruirá o mundo. Assim conclui o franciscano: "Esses pajés ou caraíbas, são
gente de má vida, que se aplica a servir ao diabo com o objetivo de tirar partido
de seus companheiros”. (Lery, 1978: 214).
A descrição dos rituais dos caraíbas, feita por Jean de Léry, e sua
assimilação ao sabá, são muito importantes. Vale lembrar que em Léry,
também, o termo usado é "profeta". A comparação bíblica esclarece as
características destes profetas tropicais:
"Esses trapaceiros, em suma, nos aborreciam tanto quanto os falsos
profetas de Jesabel que odiavam ao profeta Elias, denunciador de seus
abusos..." (Lery, 1960: 197).
126
Yves d’Evreux intitula um capítulo inteiro de sua obra: "Como fala o
diabo aos feiticeiros do Brasil, suas falsas prophecias, idolos e sacrificios."
Nele, o capuchinho não nega "verdade" às obras dos grandes feiticeiros, mas,
através de muitas citações das Escrituras e dos Padres da Igreja, mostra que
se trata de obras do Maligno. (d’Evreux, 1929: 84).
Santos, santidades, profetas. Nem sempre os religiosos lembram de
esclarecer o caráter de falsidade desta qualidade. Por que, então, os
missionários aplicam aos feiticeiros os termos que, em sua cultura, pertencem
à esfera do sagrado?
Ronaldo Vainfas enfrenta este problema, com relação ao termo
"santidade", a partir das observações de Laura de Mello e Souza sobre a
fluidez das fronteiras entre Deus e o Diabo no imaginário (principalmente
popular) no início da época moderna, em que freqüentemente a santidade é
apenas a falsa aparência da natureza demoníaca. Assim, os missionários
trouxeram para a América os dilemas religiosos de uma época em que a
necessidade de separar o santo do diabólico era a verdadeira obsessão de
inquisidores e teólogos. Este contexto foi rapidamente projetado nos discursos
sobre os índios, e neste contexto tem que ser enquadrado o uso do termo
"santidade" para indicar as "cerimônias diabólicas" dos caraíbas. (Vainfas,
1995: 62, 63).
Seguindo o raciocínio de Vainfas, podemos acrescentar alguns
elementos, úteis talvez para esclarecer esta "fronteira incerta" entre o divino e o
demoníaco na cultura ocidental que se debruça sobre a alteridade americana.
Em primeiro lugar, vimos que os missionários encontram-se diante da
necessidade epistemológica de atribuir aos "outros" uma religião, e a exigência
prática de estabelecer com esta um diálogo na base da oposição
verdade/falsidade. Estas exigências levam à elaboração de uma linguagem que
possa dar conta, ao mesmo tempo, da realidade falsa (construída pelo
Demônio) e da verdadeira, revelada por Deus e transmitida pelos padres. Vale
lembrar, neste sentido, que a Patrística condena a feitiçaria porque é falsa, não
enquanto ineficaz, mas enquanto eficaz a partir da distorção diabólica do
mundo natural. Este aspecto é bem expresso, como vimos, por d’Evreux.
127
Eis, portanto, que os feiticeiros são os "santos" dos outros e seus
embustes são "como dizer coisa divina". É no conflito radical entre a realidade
falsa dos feiticeiros e a verdadeira dos padres que podemos acompanhar esta
confusão de horizontes devida à utilização de uma linguagem comum.
Francisco Pires, em carta de 1552, relata um sermão de Nóbrega numa
aldeia indígena: "dizendo-lhes ao padre que aquela era a verdadeira santidade,
e dizendo aos principais que se aproximassem das coisas de Nosso Senhor,
de parte do Bispo, que era ele o verdadeiro ‘Pajé-Guaçu’, que queria dizer:
"Grande Pai". (Leite, 1954: 386).
Há também outras testemunhas desta "batalha pelo monopólio da
santidade", segundo a feliz expressão de Vainfas. Assim, por exemplo, o padre
Azpilcueta Navarro inflamava os índios em suas pregações nas aldeias do
sertão: começava a despejar a torrente da sua eloqüência, levantando a voz e
pregando-lhes os mistérios da fé, andando em roda deles, batendo o pé,
espalmando as mãos, fazendo as mesmas pausas, quebras e espantos
costumados entre seus pregadores, para mais os agradar e persuadir.
(Vainfas, 1995: 59).
Da mesma forma, Pero Correa, ainda irmão, relata as indicações
precisas recebidas pelo padre Leonardo Nunes em suas pregações nas
aldeias:
Por todos os lugares e povoações que passavamos me mandava
preguar-lhe nas madrugadas duas horas ou mais; e era na madrugada
porque então era custume de lhe preguarem os seus Principaes e
Pagés a que elles muyto creem. (Corrêa, Op. Cit., 220).
Não se trata de iniciativas autônomas, mas da pedagogia jesuítica
clássica que se utiliza elementos da cultura nativa como "linguagem" para
veicular conteúdos da fé católica, na mesma linha da utilização do nome Tupã
para indicar Deus, ou Jeropari e Anhã para o Diabo, e assim por diante. Sem
dúvida, nesta apropriação de certas características dos caraíbas, jogou um
papel fundamental a questão do poder. Ou seja, a "batalha pelo monopólio da
santidade" foi uma luta mortal pelo poder espiritual, em que os rivais tentaram
se apoderar dos instrumentos, dos símbolos e da fala dos outros.
128
Há, então, uma sobreposição entre caraíba e missionário procurado
como vimos, pelos padres, mas também construída do lado indígena no
esforço de atribuir sentido à nova realidade colonial. Basta pensar na leitura em
termos xamanísticos da atitude dos jesuítas, relatada por Nóbrega. É bom
lembrar também que o nome caraíba foi dado aos brancos (e este nome ainda
hoje os designa em muitas regiões do Brasil) enquanto categoria de alteridade,
talvez indicando os heróis culturais cujo retorno tinha sido prometido pelos
mitos.
Mas não é tudo. As "santidades" indígenas apropriaram-se não apenas
dos signos exteriores, como também da fala dos padres católicos, certos de
poder exercer o ministério sacerdotal.
O trecho seguinte, tirado do livro de Ronaldo Vainfas “A Heresia dos
Índios”, relata a história de uma santidade. Trata-se de um exemplo
extraordinário da situação simbolicamente "híbrida", na qual a fronteira entre
"eu" e "outro" (e, do lado missionário, entre "lícito" e "ilícito") torna-se sutil e
confusa.
Em meio ao forte declínio da população indígena no litoral, assolada por
fomes e pestes, agrilhoada pela escravidão e pela catequese, as santidades
ameríndias, superaram o efeito devastador das epidemias dos anos de 1560, e
estimuladas pelo desespero de tantos flagelos coloniais, atravessaram todo o
século, havendo notícias de semelhantes movimentos até as primeiras
décadas do século XVII.
Este é um relato sobre a Santidade de Jaguaripe; a mais conhecida
Santidade, localizada ao sul do Recôncavo da Bahia; pouco se sabe da vida do
índio Antônio, o grande profeta da santidade, cujo nome cristão adquirira na
Aldeia de Tinharé, litoral de Ilhéus, de onde fugira dos jesuítas, para o sertão.
Como os outros caraíbas e pajés-açu de que falam os cronistas,
errantes, solitários, isolados, a peregrinar de aldeia em aldeia, com sua
mensagem guerreira e sua esperança na Terra sem Mal, Antonio era um
autêntico caraíba, líder da santidade, apregoava ser Deus e Senhor do Mundo,
dotado de poderes divinos, como os heróis da mitologia Tupi, o caraíba-mor da
santidade, dizia ser capaz de metamorfosear os outros e a si mesmo, de
transformar as velhas em moças, de fazer as plantas crescerem sozinhas.
129
Antonio para os padres, Tamandaré para os índios; dizia nascer só de
mãe, não tendo pai; é importante assinalar a fórmula que significava para os
Tupis que tais homens não tinham parentesco patrilinear, pairando acima das
aldeias e de suas inimizades. Essa inversão de valores entre os caraíbas
terrestres e os caraíbas míticos é muito interessante, pois é de pai para filho
que se sucedem os heróis na mitologia Tupi, porém, os caraíbas terrestres
diziam ter somente mãe.
O caraíba da santidade dizia ter escapado do dilúvio como Noé, o
patriarca bíblico, embora metido no alto da palmeira, conforme pregava o mito
tupinambá. Construiu enfim uma identidade híbrida. Dizia ser também o
verdadeiro papa, chefe da verdadeira Igreja que levaria os índios para o céu. A
ambiguidade do caraíba e da própria santidade que liderava, espelhava o
hibridismo da catequese e de seu método evangelizador que traduzia o
catolicismo para a língua tupi e moldava os costumes nativos. Na guerra de
imagens e de palavras que se travou no Brasil quinhentista, santidade e
idolatria se confundiram, o bispo tornou-se pajé-açu, e o caraíba virou papa.
A seita abrigava várias Marias Índias, embora menos afamadas que a
chamada Mãe de Deus. O que importa é destacar o prestígio da imagem de
Santa Maria entre os índios. Foi a tal “Mãe de Deus” que passou a comandar a
seita na fazenda de Fernão Cabral, sugerindo ter sido a igreja de Jaguaripe
dirigida por uma caraíba. Alguns cronistas aludiram mesmo à existência de
feiticeiras e adivinhas entre os tupinambás. É o caso de Hans Staden, que
dedicou um capítulo de sua obra para tratar de como os índios tornavam as
mulheres adivinhas.
Os selvagens vão para uma cabana, pegam todas as mulheres e
aplicam-lhes fumaça. Depois a mulher precisa gritar, pular e dar voltas
até ficar tão exausta e cair no chão como se estivesse morta. Quando
ela volta si, ele diz que doravante está apta a adivinhar coisas futuras.
(Staden, 1999:103).
A santidade de Jaguaripe, situa-se no cruzamento do afã evangelizador
dos padres e a resistência indígena, entre a tradução do catolicismo para o tupi
e a tradução tupi do catolicismo. Corte celeste governada num sertão pelo
caraíba Tamandaré, também conhecido por Noé, Antônio ou, enfim, o
130
verdadeiro papa dos Tupis. Corte celeste governada em Jaguaripe pela índia
Santa Maria Mãe de Deus, a Nossa Senhora Ameríndia, talvez a “Tupansy”
inventada por Anchieta.
Segundo Vainfas, a maior parte das crenças e hibridismo culturais foi
gerada nos aldeamentos da Companhia de Jesus. Na confusão entre bispos e
caraíbas, entre Terra sem Mal e Terra Santa, jesuítas e indígenas teceram,
juntos, a teia da santidade. Promoveram a metamorfose da mitologia tupi,
transformando-a em idolatria insurgente. Parece ter sido no interior da missão
que se elaborou o exótico e surpreendente catolicismo tupinambá. (Vainfas,
1995:105-117).
Logo, estamos perante a leitura da alteridade religiosa nos termos que o
horizonte simbólico de cada cultura oferece: neste sentido, a "santidade" para
designar os feiticeiros é o oposto especular do termo caraíba para indicar os
brancos. Da mesma maneira, na situação colonial, o caraíba Sumé dos
Tupinambás é o São Tomé dos missionários. Se o grande caraíba mitológico é
o grande santo da tradição católica, não há de estranhar que os caraíbas
contemporâneos sejam "santos".
Quanto ao profeta, poder-se-ia dizer, de antemão, que o termo parece
em muitos casos utilizado mais no sentido grego (prophetes) de "adivinhar o
futuro" através de oráculos, do que propriamente no sentido bíblico de
instrumento de Revelação ao povo de Deus. As fontes concordam em frisar o
fato de que o caraíba "diz o futuro" a respeito da saúde e da guerra, com a
ajuda dos maracás. Esclarecedora é a passagem de Thevet que define os
caraíbas como adeptos da nigromancia, mostrando claramente, e mais uma
vez, a negativização da prática pagã, neste caso a oracular, operada pelo
cristianismo: quem prediz o futuro fora do modelo bíblico e cristão da "profecia"
e da "visão mística" é nigromante, evocador do Diabo.
Em verdade, quando o homem possue tudo quanto precisa e de tudo
entende até a medida permitida por Deus, por que então, essa
necessidade de pesquisar os segredos da natureza, que Nosso Senhor
só a si reservou conhecer? Tal curiosidade indica mentalidade
atrasada, ignorância e falta de fé ou de boa religião. E ainda mais
iludida é a gente simples que acredita em impostores desse jaez.
(Thevet, 1978: 218, 219).
131
Propõe-se de novo aqui a dicotomia verdade/falsidade já apontada para
o termo "santidade", dicotomia que ganha profundidade a partir de toda a
tradição bíblica e cristã dos "falsos profetas", anunciando a vinda do Anticristo
na véspera do fim dos tempos. Trata-se exatamente daquela vertente
milenarista do cristianismo, imbuída da tradição profética vetero-testamentária
e da apocalíptica joanina, que foi mantida por uma parte dos intelectuais
cristãos e teve um momento de grande auge justamente no século XVI, como
foi abordado no Capítulo I.
Esta tradição profética, trazida para o Novo Mundo, se apresenta
freqüentemente nos autores que estamos examinando. Já vimos, por exemplo,
os versículos de Mateus sobre o fim do mundo no texto de d’Abbeville.
Podemos acrescentar aqui que no texto de d’Evreux está claramente dito que a
viagem dos capuchinhos e a conversão do gentio da ilha do Maranhão foram
profetizadas por santos inspirados pelo Espírito Santo (e aqui está a marca
joaquimita) e por Isaías e Sophonia.
Igual "profecia" é atribuída por Thevet aos próprios caraíbas. Depois de
ter relatado a comunicação entre caraíbas e o Demônio, ele comenta que em
certas ocasiões na presença de toda a gente, apesar de ninguém os ver, todos
percebem qualquer coisa semelhante a um ruído ou uivo ao que todos
exclamam, a uma só voz: “Rogamos-te dizer a verdade ao nosso propheta, que
te aguarda lá dentro”. (Thevet, Op. cit., p. 217).
Por sua parte, Léry põe na boca de um velho índio as seguintes
palavras:
[…] há muito tempo, já não sei mais quantas luas, um mair como vós, e como
vós vestido e barbado, veio a este país e com as mesmas palavras procurou
persuadir-nos a obedecer a vosso Deus; porém, conforme ouvimos de nossos
antepassados, nelle não acreditaram. Depois dêsse veio outro e em sinal de
maldição doou-nos o tacape com o qual nos matamos uns aos outros. (Léry,
1960: 198)
Léry relaciona estas palavras com a tradição cristã da pregação do
Evangelho às extremidades do mundo antes do Juízo Final; também o
huguenote lembra um trecho do Apocalipse para explicar a presença dos dois
132
"profetas": o verdadeiro, no qual os homens não acreditaram, e o falso, que os
levou à perdição. Vale lembrar, também, que Mair é o nome com que os
tupinambás designavam os franceses. O termo parece ter vivido a mesma
"aventura semântica" de caraíba: Maira é um herói cultural da mitologia tupi,
cujas ações são, em outras versões, atribuídas a Sumé, justamente um grande
Caraíba.
3.6.1 - A lenda de São Tomé
Caraíba para os índios, São Tomé para os cristãos o mais importante
é entendermos que Sumé é um herói civilizador. Ele reforça a idéia cristã de
que os índios deviam tudo que de civilização possuíam. A este apóstolo de
Cristo.
Entre os europeus, a lenda segundo a qual o Apóstolo São Tomé teria
vindo evangelizar as índias ocidentais se propagou rapidamente. Os guaranis
sabem por tradição ancestral que São Tomé, a quem eles chamam Zumé,
viveu outrora em suas terras. A mesma crença é atribuída aos tupis.
Reportemo-nos ao mito tupinambá recolhido por Thevet e Lery ”grande pajé e
caraíba, é o pai dos dois irmãos Tamendonare e Ariconte que, entre outras
coisas provocaram o dilúvio. (Lery, 1960: 195).
Zumé é o herói civilizador, a quem os tupis atribuem em especial, o
conhecimento que tem da agricultura e sua organização social. Ele ensinou
outrora aos homens as artes da civilização: certas pegadas impressas em
rochedos, constituiam para os tupis a prova ainda visível de sua passagem; no
Rio de Janeiro existia “uma pedra comprida e da largura de uns cinco pés, na
qual aparecia algumas marcas de varas ou varetas, e pegadas de homem, que
eles diziam ser do grande caraíba que lhes deu conhecimento e o uso do fogo
e juntamente com esse, o ensinamento de plantar as raízes. Essa história de
pegadas miraculosas viria a conhecer um sucesso inesperado entre os
cristãos, contribuindo sem dúvida em grande parte para a formação da lenda.
Para eles, o mito podia ser compreendido assim: a essas terras recentemente
descobertas viera, outrora, uma personagem a quem os índios deviam tudo o
que de civilização possuiam. Acrescentemos a isso a semelhança dos dois
133
nomes Zumé e Tomé e a fé nas sagradas escrituras que afirmavam que a
palavra dos apóstolos correria toda a terra. Já bastava isso para que a lenda
ganhasse consistência. Graças a isso, a percepção do mundo indígena se
tornará coerente: será possível atribuir à pregação do apóstolo as parcelas de
verdade que se crê identificar, no discurso indígena. Desde os primeiros
tempos da conquista os brancos apreenderam e relataram as crenças Tupi-
guarani e delas retendo apenas os motivos que, nos termos da sua própria
religião eles podiam reinterpretar.
Está claro aqui o jogo de espelhos que se estabelece entre padres e caraíbas,
entre verdadeiros e falsos profetas, entre profecias cristãs sobre pregação aos
gentios e profecias nativas sobre a chegada dos brancos. Mais do que a uma
coincidência de mitologias, estamos diante do problema epistemológico da
compreensão e, portanto, da tradução das alteridades antropológicas no
interior do quadro de uma história preestabelecida, de um e de outro lado: pelo
mito do herói cultural e pela história da salvação. Isto leva a uma curiosa
coincidência opositora, que se expressa através de uma linguagem comum. As
"santidades" e os "profetas" indígenas são, por conseguinte, uma construção
negociada. A linguagem religiosa parece tornar-se o terreno de mediação onde
cada cultura pode tentar ler a diversidade da outra e onde a alteridade pode
encontrar seu sentido e, portanto, sua "tradução" em termos culturalmente
compreensíveis. Apenas no interior deste campo semântico me parece
possível colocar corretamente e, diante disso, tentar interpretar o problema
histórico e cultural posto pelos profetas tupinambás. (H. Clastres, 1978: 23,24).
3.7 - Hibridismo Religioso
A idéia desenvolvida neste capítulo sobre hibridismo religioso é baseada
no livro “A Heresia dos Índios” de Ronaldo Vainfas.
Embora se fale em Tupinambá ou Tupi-guarani, para generalizar os
índios e sua cultura no Século XVI, deve-se estar atento para o fato de que os
“tupinambás” foram na verdade, uma construção dos cronistas e mais tarde,
dos etnólogos, não constituindo propriamente uma sociedade. O que havia na
costa do Brasil, do Nordeste ao Sul, era uma complexa rede de sociedades
134
distintas que, por apresentarem traços comuns e falarem a mesma língua, teve
sua possível heterogeneidade sacrificada em favor da construção de um
modelo indígena, ancorado em costumes comuns, que asseguravam a
construção do que veio a ser designado “tupinambá”. Heterogeneidade
marcada também do lado dos conquistadores, uma vez que entre eles também
não havia homogeneidade, ou seja, as mesmas intenções e idênticas
representações sobre os índios: comerciantes, jesuítas, colonos,
administradores, proprietários de terra, aventureiros, contrabandistas,
portugueses, franceses, holandeses e ingleses produziram múltiplos
significados a partir deste mesmo signo, resultando, por sua vez, em variadas
formas de interação intelectual.
Um exemplo que retrata muito bem, a questão do hibridismo ou do
sincretismo religioso, entre indígenas e cristãos é o que se costumou chamar
de Santidade Indígena. As razões indígenas e a forma como elaboraram o
processo de contato com os cristãos são expressivas, as práticas em que os
indígenas mostravam-se apegados ao passado e à tradição sem desafiar
frontalmente, quer a exploração colonial, quer o primado do cristianismo,
também. Resistência cotidiana adotada como manifestação global de
resistência ao colonialismo.
Vainfas associa essas Santidades ou a busca pela Terra sem Mal à
chegada na “terra dos males sem fim”, vinculando assim, Terra sem Mal e
Colonialismo. Este projeto indígena, ao se cruzar com o projeto europeu, se por
um lado levou à miséria e desgraça para os índios, por outro, possibilitou uma
reelaboração de suas próprias crenças, que passaram a ter o caráter de
resistência cultural, encarnada nas Santidades, tanto à ordem colonial quanto
ao destino traçado pela própria cultura indígena. Como exemplo da influência
do colonialismo no mito da Terra sem Mal podemos mencionar as constantes
migrações incentivadas pelos caraíbas. (Vainfas, 1995: 41-50).
Levando em consideração a etnografia e uma concepção de mundo
Tupi-guarani, retira a busca da Terra sem Mal de uma razão prática ditada
apenas pelo colonialismo, que fazia com que os índios saíssem procurando o
“Paraíso Terrestre”, fugindo do “inferno” produzido pela submissão de suas
vidas àquela nova ordem. Esta visão parte do mito para a história e da história
135
para o mito, numa relação dialética que fortalece a análise desta conjunção
intercultural. (Pompa, 2005: 7).
As Santidades, esta nova ordem social produzida pela aculturação
indígena, foram tratadas como movimentos de contestação ao colonialismo. Os
índios que as integravam poderiam ser de procedências distintas (foragidos de
engenhos e fazendas, de missões), portanto, índios que experimentaram
muitas formas de contato.
Havia um clima de preocupação com as Santidades, tomando-a de fato,
enquanto uma manifestação que contestava o poder colonial dos portugueses
e missionários no Brasil e que, por este seu caráter, atraía cada vez mais,
índios fugitivos de seus respectivos senhores padres ou fazendeiros para
se incorporarem ao movimento. (Vainfas, 1995: 201-203).
Vainfas chama a atenção para o papel que os mamelucos
desempenharam na colonização: o de intermediários, por sua ambivalência
cultural. Estavam ao mesmo tempo a serviço do colonialismo e das tradições
indígenas. Os mamelucos eram, portanto, figuras híbridas, que viviam da preia
de índios de índios para os portugueses e mantinham os costumes do
canibalismo, participando dos rituais de sua tribo. Se por um lado existiam os
índios que se aculturavam à nova ordem, representados pelos mamelucos,
existiam também aqueles brancos que se fundiam à cultura indígena, que
estavam na contramão da história, fato que demosntra o jogo de forças entre
cultura dominante indígena e o nascente colonialismo. (Vainfas, 1995: 71-151).
O comportamento cultural das Santidades reforçava, cada vez mais a
hipótese geral de que se tratava de uma reelaboração do “profetismo Tupi-
guarani” e da busca pela Terra sem Mal. Os bailes ininterruptos, a abundância
de víveres, a divinação dos humanos, repetiam de certa forma todos os rituais
consagrados aos caraíbas e uma afronta aos missionários cristãos . (Vainfas,
1995: 39-64).
A Santidade, esta nova forma de organização social, surgida a partir do
contato com os brancos, misturando e reelaborando muitos elementos (índios,
brancos e negros), que condensariam o que se designou por “resistência ao
colonialismo”, sobreviveram até os dias de hoje, nos catimbós e na Umbanda,
que apresentam o caboclo, o Tamandaré e os tupinambás.
136
3.8 - Paraíso Terrestre - Terra sem Mal
Podemos fazer uma analogia entre a procura do Paraíso Terrestre e a
busca da Terra sem Mal? Para responder esta pergunta utilizo livros dos
autores: Jean Delumeau, Hèléne e Pierre Clastres, Guinzburg, Eliade e
Campbell.
A questão da incompletude, da falta, do vazio ou da esperança por um
mundo melhor, talvez seja um castigo da condição humana. A história nos
mostra que em tempos de grave crise social, em resposta à experiência de
sofrimentos, devastações bélicas, miséria e violência, aparecem crenças
milenaristas apocalípticas. Quando a “proximidade do fim” é eminente, a
esperança de reencontrar o “Paraíso Perdido” das origens, pode se tornar uma
saída.
A Terra sem Mal é um lugar privilegiado, indestrutível, de abundância,
onde a terra produz por si mesma os seus frutos e não há morte, esta é a Terra
da Imortalidade. Assim como a Nova Jerusalém descrita no livro canônico da
Bíblia conhecido como Apocalipse.
De acordo com a interpretação teológica cristã milenarista, o Apocalipse
anuncia o juízo final da humanidade, porém aponta a esperança de que este,
em todas as suas formas inclusive a dor e o sofrimento, serão eliminados após
um combate final onde as forças do bem vencerão definitivamente as forças do
mal. O conceito bíblico para fim dos tempos equivale ao conceito de fim da
história, não se refere ao fim da existência humana.
A busca pelo “Paraíso Terrestre” está bem clara e não deixa dúvidas
quanto à intenção de encontrar um mundo melhor. Os cristãos aventureiros,
religiosos ou não, viram o sinal da Divina Providência, nas recém-descobertas
terras americanas. O Brasil “era realmente um paraíso terrestre”. Porém, a
busca da Terra sem Mal para os indígenas brasileiros tem duas versões: antes
e depois da chegada dos portugueses.
Efetivamente, a Terra sem Mal era a preocupação fundamental dos
profetas-caraíbas. Uma terra sem maldades, um espaço sem lugares marcados
e um tempo sem pontos de referência; em que se abolem as gerações. No
137
conjunto dos humanos, cada um se vê restituído de si próprio, é a completude
que suprime a dupla distância entre deuses e humanos, entre homens e heróis.
A relação contestadora com a ordem social, já que busca um outro
espaço e a relação não teológica com o sobrenatural, já que não existe
distinção entre humanos e deuses, estabelece-se num único discurso que é o
campo da crença. É uma Terra Prometida na própria terra, entretanto não será
um reino, mas ao contrário, a abolição de qualquer forma de poder. Discurso
inesperado, por ligar justamente o que esperaríamos ver segregado, por
inverter as linguagens a da fé onde aguardava o mito e que implica uma nova
maneira de pensar o humano, a terra, o céu, os deuses, em que explode o
sentido e se dispersa a verdade. (P. Clastres, 1990: 106-118).
A procura da Terra sem Mal, remete a uma renúncia. Fora da lei que
designa a cada um o seu lugar no espaço marcado de um território tribal, no
tempo contabilizado de uma genealogia; por colocar-se adiante de toda
legalidade, gera um espaço e um tempo novos, fora do espaço e do tempo
sociais, quer dizer sem diferenças. (H. Clastres, 1978: 93).
O profeta que diz belas palavras, não comunica a ninguém, não
comunica, não enuncia verdade alguma. O profeta que fala e escuta, nunca
encontra nada, a não ser a ausência ou um significado original, antes de
qualquer ato de interpretação. É precisamente um discurso não encarnado em
Deus, que assegura a possibilidade de um Deus vivo entre todos. O espiritual
apresenta-se através de uma ausência-presença. Deus torna-se real não por
meio da sua encarnação, mas através dela.
O Profetismo Tupi-guarani anuncia um certo futuro e o advento do
“homem-deus”; para preservar a possibilidade desse desejo impossível
escolhe-se o risco de perder todas as certezas: a da existência sedentária ao
instigar uma vida nômade, como a das verdades estabelecidas, pois o poder é
exercido nas relações, não ocupando um lugar fixo, nem uma posição de
comando. Rei, lei, fé são verdades internalizadas pelas tradições que se
tornam tão nômades quanto a própria proposta de vida. (H. Clastres, 1975:
113-116).
138
Conclusão
O Capítulo III abordou principalmente a questão da resistência indígena
e as várias formas de sobrevivência.
Michel de Certeau em “A Invenção do Cotidiano” (1994), ao se referir à
Colonização na América Latina afirma que há muito tempo um equívoco
“rachava por dentro o sucesso dos colonizadores europeus, entre as etnias
indígenas que foram submetidas e mesmo consentiram na dominação”. Porém
a verdade é que muitas vezes esses indígenas faziam das ações rituais, das
representações ou leis que lhes eram impostas, outra coisa que não aquela
que o conquistador julgava obter por elas. Os indígenas a subvertiam,
modificando-as, não rejeitando-as diretamente, mas pela sua forma de usá-las
para fins e em função de referências estranhas ao sistema do qual não podiam
fugir, adequando-as à sua maneira de viver.
Sabemos que não existem “super-homens” que consigam abrir mão dos
processos de aculturação, ou seja, da recepção e re-significação das verdades
e dos princípios estabelecidos pelas estratégias dominantes. Os indígenas
brasileiros fizeram exatamente isso: ressignificaram a cultura do “outro”.que
lhes foi imposta. E como os encontros não acontecem em via única, entre os
indígenas pagãos e os cristãos europeus, ficou estabelecida uma relação de
dominação e hierarquia, mas mesmo assim, influenciados foram os dois
mundos, como podemos observar através dos hibridismos. Mas, a religião
indígena teve a capacidade de modificar seu funcionamento interno e se
transformar em resistência, sem que essa mudança comprometesse a
sinceridade e autenticidade de suas crenças. Nem a lucidez com a qual se
vêem as lutas e as desigualdades que se ocultam sob a ordem estabelecida.
139
CONCLUSÃO GERAL
Houve um tempo em que os historiadores pensavam haver escapado ao
“meramente literário”, um tempo onde ficou estabelecido para os estudos
históricos, a objetividade e o argumento racional. Porém, os recentes avanços
em crítica literária e filosofia da linguagem destruíram esta confiança. A
literatura volta à história com tudo que lhe é de direito: metáforas e alegorias,
interpretações e aporias, traço e signo, exigindo que os historiadores aceitem a
presença dessas categorias bem no coração daquilo em que consistia sua
disciplina própria, autônoma e verdadeiramente científica.
Entre as responsabilidades do historiador estava a de “reconstruir as
intenções primárias” onde a mensagem real do texto fosse encontrada. Os
historiadores deviam reconstruir o mundo mental no qual o autor escreveu seu
livro todo conjunto de princípios lingüísticos, convenções simbólicas e
suposições ideológicas nas quais o autor viveu e pensou. Somente fixando o
texto nesse contexto elaboradamente reconstruído é que os historiadores
podiam esperar recuperar “tudo o que pode ter sido tencionado”.
Para muitos, a história que não fosse escrita nesses termos, seria
confusa, e não-científica. Hoje, os pós-estruturalistas como Derrida, Michel
Foucault, Paul de Man entre outros, definem a linguagem como um sistema
autônomo:
“A linguagem é um sistema autônomo que constitui mais do que reflete;
é um mecanismo de auto-transformações não-intencionais e auto-
notificações irrestritas, e não um conjunto de significados estáveis e
referências externas. É intertextual, ao invés de intersubjetiva,
escrevendo seus próprios significados acumulados sobre os desejos e
intenções do autor”. (Harlan, 2003: 21-22).
Portanto, como o autor está ausente do ato de ler e o leitor ausente do
ato de escrever, e uma vez que o texto encontra-se liberado da referência
autoral, ele é também liberado da intenção autoral. Dessa maneira, o texto
oferece possibilidades que seu autor pode jamais sequer ter imaginado, assim
como, a tradição na qual o texto foi escrito, nós jamais poderemos recuperá-la.
O que é reconstruído, não é original.
Sendo assim, mesmo sabendo os limites que envolvem a reconstituição
140
de um contexto histórico, ao entender que a linguagem ganha autonomia e
nem sempre reflete a intenção do autor, esta pesquisa pode ser considerada
somente mais uma interpretação de textos, mas ao propor esta análise
documental, busquei trazer à tona, algumas matrizes fundantes que
caracterizam a religiosidade do povo brasileiro. Através de uma tentativa de
reconstrução do universo mental, simbólico e religioso dos indígenas e dos
europeus no período da Conquista da América, principalmente das tribos
brasileiras Tupi-guaranis, que viveram nesse período busquei remeter os
relatos dos cronistas, ao contexto histórico e cultural em que se produziram.
Este trabalho propõs algumas reflexões sobre o campo semântico a partir do
qual o Ocidente evangelizador realizou a leitura e a construção da alteridade
indígena.
A necessidade, filosófica e teológica, de atribuir aos índios umas
crenças, mesmo se vagas ou errôneas, obedecia a uma exigência cultural de
"ler" o outro e traduzi-lo e, por outro lado, traduzir o "eu" para o outro. Para isto
era necessário construir uma linguagem de mediação. No início da Idade
Moderna, o código prioritário de leitura e interpretação da realidade, inclusive
das alteridades antropológicas, ainda era traduzido na linguagem religiosa, esta
englobava todos os outros: o moral, o político e o filosófico.
Na batalha pela conquista das almas selvagens, a oposição irredutível
presença/ausência de religião, que impossibilita qualquer tipo de mediação
retrocedendo na esfera da não-humanidade os selvagens americanos,
transforma-se no binômio verdadeira/falsa religião. A partir daí é possível a
comunicação e, portanto, a obra de catequese dos selvagens.
Os caraíbas, os grandes xamãs, dos Tupi-guaranis, foram considerados
pelos missionários como instrumentos do demônio. Desde o princípio, os
missionários identificaram nos caraíbas, os inimigos mortais da catequese e,
por conseguinte, seus "maiores contrários". Ao mesmo tempo, nas fontes
quinhentistas encontramos as categorias de "santidade" ou "profeta", como
tradução do termo indígena caraíba. O "profeta" aparece assim como uma
construção ajustada: a linguagem religiosa é o terreno de mediação, onde cada
cultura, a ocidental e a indígena encontram o sentido da "diversidade" da outra.
141
A presença da religião em terra de bárbaros e pagãos, em suma, remete
a um problema histórico-cultural: o do uso que foi feito destes termos na época
dos primeiros contatos, para entender uma alteridade antropológica que a
descoberta colocava como dilema. A projeção na humanidade selvagem de
categorias tão carregadas de sacralidade no mundo ocidental tinha em primeiro
lugar, a função de analisar e classificar, ou seja, a de "nomear" o outro através
de uma linguagem conhecida, portanto, não constitui nenhuma novidade, hoje,
dizer que o indígena descrito nos relatos dos viajantes e missionários é a
alteridade radical que a Europa já conhece bem de toda uma literatura clássica,
medieval e renascentista. As observações dos cronistas não surgem a partir da
realidade indígena, mas, ajudadas pela peculiaridade das culturas nativas,
contam algo sobre seu próprio sistema de crenças e valores. Os relatos de
viagem, a partir de Colombo, encontram e descrevem apenas o que os cristãos
europeus já conheciam.
A coincidência dos relatos dos viajantes revela também o grande debate
que estava se travando na Europa a respeito da natureza dos selvagens ou,
melhor, do "estado de natureza" deles: tratava-se, de fato, do processo de
releitura da identidade ocidental ante as novas humanidades que a descoberta
apresentava, através da construção de sua alteridade. O código religioso era,
obviamente, o privilegiado na definição da alteridade pela concepção teológica
dos missionários. Mas aqui a construção dos outros encontrou uma dificuldade:
os selvagens da terra de Santa Cruz não apresentavam os elementos que
definiam o que era a Religião: ídolos, templos, sacerdotes.
A hermenêutica dos viajantes caracterizava então pela ausência o que
se apresentava como impossibilidade de identificação de uma presença
esperada: se não há ídolos, sacerdotes e templos, não há religião.
A imposição da religião dos conquistadores encontrou assim, sua plena
legitimação, realizando a grandiosa profecia da Conquista: a construção do
Reino de Deus na Terra, com um povo primitivo ainda intacto.
Os missionários encontraram-se diante da necessidade de atribuir aos
"outros" uma religião, e a exigência prática de estabelecer com esta um diálogo
na base da oposição verdade/falsidade levaram à elaboração de uma
linguagem que podia dar conta, ao mesmo tempo, da realidade falsa,
142
construída pelo Demônio, e da verdadeira, revelada por Deus e encaminhada
pelos padres. Houve, então, uma sobreposição entre caraíba e missionário
procurado como vimos, pelos padres, mas também construída do lado indígena
no esforço de atribuir sentido à nova realidade colonial, com a criação das
Santidades. As "Santidades" e os "profetas" indígenas são, por conseguinte,
uma construção negociada, segundo Cristina Pompa. A linguagem religiosa
parece tornar-se o terreno de mediação onde cada cultura pode tentar entender
a diversidade da outra e onde a alteridade pode encontrar seu sentido e,
portanto, sua "tradução" em termos culturalmente compreensíveis. Somente
entendendo as mudanças sofridas no tempo e no espaço, pela significação das
palavras; ou seja, apenas no interior deste campo semântico me parece
possível colocar corretamente e, diante disso, tentar interpretar ou responder
ao problema histórico e cultural posto pelos profetas Tupi-guaranis.
Entendendo que reconstruir um texto seja um ato poético reconstituir o
contexto, e então interpretá-lo do mesmo modo como se ele próprio fosse um
texto, é o que procurei fazer nesta pesquisa, já que esse passado da história
brasileira e seu significado desdobram-se frente ao texto que ficou registrado.
Segundo Roland Barthes, textos não apontam para trás, para o contexto
histórico ou para as intenções supostamente verdadeiras de seus autores (já
mortos), eles apontam para a frente, para as possibilidades ocultas do
presente.
Existem poucos trabalhos no Brasil referentes à religiosidade indígena
do período Colonial, principalmente na área de Ciências da Religião. Com esta
pesquisa procurei trazer à luz, através de uma tomada de consciência, um
pouco de compreensão sobre a riqueza das diversas manifestações de
religiosidade expressas na identidade do povo brasileiro. Reconhecendo as
características da espiritualidade indígena.
143
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